ciencias sociales y religión ciências sociais e religião

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ciencias sociales y religión ciências sociais e religião
Año 8
Número 8
Octubre de 2006
ISSN 1518-4463
CIENCIAS SOCIALES Y RELIGIÓN
CIÊNCIAS SOCIAIS E RELIGIÃO
Publicación de la Asociación de Cientistas Sociales de la Religión del Mercosur
Publicação da Associação de Cientistas Sociais da Religião do Mercosul
Asociación de Cientistas Sociales de la Religión del Mercosur
Presidente Maria Julia Carozzi (IDAES-USAM/ CONICET, Argentina)
Vice-presidente Carlos Alberto Steil (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil)
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Pierre Sanchis (Universidade Federal de Minas Gerais , Brasil)
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Catálogo
Biblioteca Setorial de Ciências Sociais e Humanidades/ UFRGS
Bibliotecária
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Editoração
Carlos Batanoli Hallberg
CIENCIAS SOCIALES Y RELIGIÓN
CIÊNCIAS SOCIAIS E RELIGIÃO
Número dedicado a las XIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas en Latinoamérica
Organizador
RICARDO MARIANO
Ciencias Sociales y Religión /Ciências Sociais e Religião / Asociación de
Cientistas Sociales de la Religión del Mercosur. Año 8, n. 8 (2006). Porto
Alegre: 2000.
ISSN 1518-4463
Revista anual
Adquisición: suscripción y compra
SUMÁRIO
Apresentação
07
Otras religiones, otras políticas: algunas relaciones entre
movimientos sociales y religiones sin organización central
María Julia Carozzi
11
Políticas de redención y redención de la política
Enzo Pace
31
O Espírito Santo, a mídia e o território dos crentes
Patricia Birman
41
Religião e transformações urbanas em Recife, Brasil
Marjo de Theije
63
Peregrinação e romaria: um lugar para o turismo religioso
Pierre Sanchis
85
Religião, família e imaginário entre a juventude de Minas Gerais 99
Fátima Regina Gomes Tavares
Marcelo Ayres Camurça
Poder e política na Congregação Cristã no Brasil:
um pentecostalismo na contramão
Norbert Hans Christoph Foerster
A busca da saúde integral por meio do trabalho pastoral
e dos agentes comunitários numa favela do Rio de Janeiro
Victor Vincent Valla
Maria Beatriz Guimarães
Alda Lacerda
Estrategias del poder sagrado: la construcción de la jerarquía
y la autoridad en el Budismo Zen argentino
Catón Eduardo Carini
Orientación para posibles colaboradores/
Orientação para possíveis colaboradores
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139
155
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APRESENTAÇÃO
Em setembro de 2005, foram realizadas, na PUCRS, em Porto Alegre, as XIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina, cujo
tema geral foi Religião, poder e política: novos atores e contextos na América Latina.
Este número de Ciências Sociales y Religión / Ciências Sociais e Religião contém
9 artigos, sendo sete deles selecionados pelos coordenadores de Mesasredondas e Grupos de Trabalho das XIII Jornadas, além de uma conferência e do trabalho premiado no Concurso de monografias “Religión, poder
y política”, promovido pela Associação de Cientistas Sociais da Religião do
Mercosul.
Os textos deste volume apresentam forte unidade temática, uma vez
que todos, não obstante os distintos objetos empíricos e abordagens teóricas, discorrem, em maior ou menor medida, sobre o tema central das XIII
Jornadas. Sem pretender articulá-los, segue uma pequena síntese de cada
um deles.
Com base em pesquisas empíricas realizadas em Buenos Aires, María
Julia Carozzi analisa quatro tipos de articulação entre religiões não controladas por especialistas religiosos – isto é, sem organização, doutrina e hierarquia formais – e movimentos sociais. Mostra formas de influência mútua entre grupos religiosos e movimentos sociais, assinalando que, se há
religiões que se apropriam da retórica de movimentos sociais, estes se valem igualmente do imaginário religioso, de estruturas de comunicação, de
recursos, de estratégias e de retóricas de matriz religiosa para arregimentar
e mobilizar seus potenciais membros. Num dos casos analisados, um grupo religioso se transmuta num movimento por justiça e emprega técnicas
de protesto social de aparência religiosa, conseguindo, depois de anos, intervir no sistema judicial e na atividade policial e obter a renúncia do governador. Noutro caso, diante da ameaça de repressão ditatorial, um movimento social recorre, estrategicamente, à sobrenaturalização de seus ideais
revolucionários como mecanismo de defesa e sobrevivência de seu ativismo.
Por fim, aponta as semelhanças organizacionais de religiões e movimentos
sociais dotados de bases sociais similares.
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RICARDO MARIANO
Enzo Pace investiga a emergência de novos atores sócio-religiosos
engajados na luta contra a separação jurídica entre Igreja e Estado e a autonomia da política. Avalia que esses grupos religiosos, filiados às ou derivados de distintas tradições religiosas (cristã, islâmica, judaica, hindu), sustentam uma perspectiva neopuritana e visam purificar o poder político secular
por meio da observância rigorosa de virtudes morais e da “absolutização”
de sua verdade religiosa. Instrumentalizados por grupos, movimentos, instituições e líderes políticos conservadores, disseminam-se, sobretudo, em
contextos de violência, injustiça e pessimismo, que reforçam sua crença na
pecaminosidade do mundo e da política. Sua luta para solapar as fronteiras
legais e institucionais estabelecidas na modernidade entre religião e política, na opinião de Pace, põe em risco a democracia e acarreta uma série de
conflitos de valor relativos, como, por exemplo, os relativos ao aborto, ao
uso do véu em escolas públicas.
Patrícia Birman investiga a relação de uma comunidade pentecostal
da Assembléia de Deus – que há três gerações domina a vila de pescadores
de Provetá, na Ilha Grande – com o território geográfico, a política, a mídia
e os turistas. Em conformidade com as mudanças processadas recentemente no pentecostalismo nacional, a comunidade assembleiana, a despeito de seu sectarismo, incorporou a música gospel e certos discursos e imagens midiáticos para construir suas fronteiras identitárias (em nível local e
nacional), reafirmar sua singularidade religiosa, reforçar seu senso de
pertencimento comunitário e atestar sua salvação.
Marjo de Theije analisa a relação entre religião e espaço urbano em
Recife. Destaca a concomitância dos processos de urbanização e diversificação religiosa e a visibilidade pública das edificações religiosas na capital
pernambucana. Apresenta alguns casos empíricos, exemplificando como a
construção de identidades sociais e a competição religiosa baseiam-se na
apropriação territorial e na demarcação simbólica do espaço urbano.
Pierre Sanchis mostra que a peregrinação constitui quase uma espécie de “anti-romaria”, porque regulada pela autoridade eclesiástica em detrimento do caráter autônomo das velhas romarias frente aos ordenamentos
sacerdotais. A peregrinação resulta da tensão, do “encontro e fricção criativa” entre a tradicional dimensão festiva das romarias e os anseios de ordenação eclesiástica, em meio a sucessivas tentativas de “recristianização” e
de enquadramento institucional. Na análise da “estrutura romeira”, consi-
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APRESENTAÇÃO
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dera igualmente sua relação com a demarcação jurídica e simbólica do espaço, o poder político, a dimensão econômica e o turismo religioso.
Com base num amplo survey com estudantes secundários da rede
pública de Minas Gerais, Fátima Regina Tavares e Marcelo Camurça apresentam diversos dados quantitativos sobre jovens e religião no estado mineiro. Confirmam a imensa hegemonia do catolicismo nas cidades menores e constatam que sua perda de adeptos cresce à medida que aumenta o
tamanho da população. Verificam que, no caso católico, a família influi
majoritariamente na opção religiosa dos filhos, mantendo-se como a mais
importante fonte de transmissão religiosa, enquanto que, nos demais grupos religiosos, os “motivos pessoais” constituem a principal influência na
adesão, secundada pelos “pais”. Em ordem decrescente, família, escola e
trabalho são as instituições sociais mais positivamente valorizadas pelos
jovens mineiros, independentemente de sua religião. Da mesma forma, suas
crenças mágico-religiosas extrapolam as fronteiras organizacionais e simbólicas.
Norbert Foerster mostra que, em contraste com a maioria das igrejas pentecostais no Brasil, a Congregação Cristã no Brasil mantém-se sectária, ascética e deliberadamente afastada da política partidária, dos meios
de comunicação de massa e das estratégias publicitárias. Seu poder
gerontocrático é legitimado pela “manifestação” do Espírito Santo e, sobretudo, pela tradição, que justifica igualmente a dominação masculina e a
exclusão feminina da hierarquia.
Baseados numa pesquisa empírica na região da Leopoldina – área
do Rio de Janeiro de baixa renda e com altos índices de criminalidade –,
Victor Vincent Valla, Maria Beatriz Guimarães e Alda Lacerda identificam
semelhanças entre o trabalho de pastores presbiterianos que assistem à
saúde de seus fiéis e o dos agentes comunitários de saúde. Em contraste
com o modelo hegemônico de prestação de serviços de saúde nos hospitais públicos e privados, pastores e agentes comunitários convivem com a
comunidade à qual prestam atendimento, visitam regularmente a casa de
sua clientela, estabelecem vínculos pessoais e relações acolhedoras e de
confiança, prestam apoio emocional, fortalecem sua auto-estima e os
conectam a redes de solidariedade.
Carini Catón Eduardo analisa os dispositivos discursivos e as estratégias rituais de legitimação que sustentam e estruturam as relações de poder, a autoridade e a hierarquia num grupo zen-budista argentino. Para
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RICARDO MARIANO
tanto, compara o grupo zen-budista local e o movimento de Nova Era,
realçando suas semelhanças e diferenças. Em linha de continuidade com a
Nova Era, o grupo zen-budista valoriza a natureza, crê na existência de
uma perfeição humana interior e propõe a transformação espiritual (por
meio da meditação) como motor da mudança social. As principais distinções entre ambos, a seu ver, repousam na manutenção de uma rígida hierarquia, na ênfase na pertença institucional e na centralização do poder
pelo mestre zen, tratado como patriarca da linhagem de Buda.
Organizador convidado
Ricardo Mariano
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 7-10, outubro de 2006.
OTRAS RELIGIONES, OTRAS POLÍTICAS:
ALGUNAS RELACIONES ENTRE
MOVIMIENTOS SOCIALES Y RELIGIONES
SIN ORGANIZACIÓN CENTRAL
María Julia Carozzi
Instituto de Altos Estudios Sociales- Universidad de San Martín/ CONICET –Argentina
Resumen: El artículo analiza algunas relaciones que asocian religiones sin
organización central, por un lado y movimientos sociales, por otro, basándose en
el análisis de cuatro casos empíricos. A partir del mismo sostiene, en primer lugar,
que un mismo fenómeno puede dar lugar a una masiva respuesta religiosa popular
y a un masivo movimiento de protesta, pero esto último no necesariamente implica la expresión de una protesta velada pre-existente suponiendo, en cambio, un reenmarcado radical de la situación. En segundo lugar, se argumenta que en
condiciones donde la amenaza de represión ante la acción colectiva es muy alta,
los objetivos de un movimiento social pueden mantenerse al tiempo que se
espiritualizan los medios para lograrlos alimentando un movimiento religioso. En
tercer lugar, se señala que las religiones y los movimientos sociales que convocan a
idénticos segmentos de población suelen implementar formas de organización
también similares. Finalmente, se afirma que la participación activa en un
movimiento social puede transformar los sentidos atribuidos a los miembros del
panteón religioso, re-enmarcándolos en términos del primero.
Palabras-clave: Movimientos sociales, religiosidad popular, nueva era.
Abstract: The article analyzes relationships that may be established between
decentralized religions and social movements, based on data drawn from four case
studies. It is argued that an event that triggers both a massive religious response as
well as a corresponding protest movement does not necessarily imply the pre-existence
of veiled protest, as some authors have argued, but sometimes involves a radical reframing of the situation. It is also suggested that in situations where the threat of
repression against collective action is high, the goals of a social movement may be
maintained as the means to accomplish them are spiritualized, fueling a religious
movement. Further, it proposes that religions and social movements that appeal to
the same segments of the population develop similar forms of organization. Finally,
it states that active participation in a social movement may transform the meanings
assigned to spiritual beings, re-framing them in its own terms.
Keywords: Social movements, folk religion, new age, resistance.
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MARÍA JULIA CAROZZI
Cuando, en la actualidad, los cientistas sociales de la religión pensamos en los modos de articulación entre política y religión, generalmente
vienen a nuestra mente: las presiones de las grandes organizaciones religiosas sobre el Estado para garantizar la implementación de ciertas políticas;
las actitudes de los miembros y los adherentes de determinadas
organizaciones religiosas en relación con ciertos ítems de la agenda política
o, directamente, sus preferencias en relación con los distintos partidos políticos; las convicciones religiosas de los funcionarios de gobierno; la
participación como funcionarios del gobierno de los miembros de ciertas
organizaciones religiosas; la creación de partidos políticos por parte de las
organizaciones religiosas; el accionar de los funcionarios de los partidos
así formados en el gobierno y las políticas del Estado en relación con el
pluralismo religioso. Otros tipos de interrelación han sido menos
frecuentemente analizados y, sobre todo, menos centrales en nuestra
concepción de la articulación entre religión y política. Esto parece indicar
que el Estado, por un lado, y las grandes organizaciones religiosas, por
otro, ocupan un lugar hegemónico en nuestra concepción de la articulación
entre religión y política, a pesar de que todos mantenemos definiciones más
amplias tanto de una como de la otra cuando las consideramos por separado.
Esta centralidad parece herencia, al menos en parte, de la importancia que el
problema de la secularización tuvo en el nacimiento y posterior desarrollo de
las ciencias sociales, no sólo como tema a investigar sino como norma
constitutiva1 y objetivo programático (Beckford, 2003, p. 30-72).
Adicionalmente, en mi país, la Argentina, en que los estudios de
religión tienen un lugar absolutamente marginal en las ciencias sociales, el
hacer públicas frente a otros cientistas sociales estas articulaciones entre
las grandes organizaciones religiosas, particularmente la iglesia católica, y
el Estado ha sido la táctica central que los estudiosos de la religión han
desplegado para legitimar su objeto de estudio. Es mi fuerte impresión que
esta táctica, que parece tener algunos resultados a corto plazo, como hacer
que otros cientistas sociales se interesen brevemente por lo que quienes
estudiamos religiones tenemos para decir, en el largo plazo, no hace sino
echar más sombras sobre nuestro objeto de estudio y, consecuentemente,
sobre la calidad académica e integridad moral de quienes lo investigamos.
Esto sucede, al menos en parte, porque cuando observadas con este foco
en la relación Estado/ catolicismo las relaciones entre los movimientos
progresistas y la religión aparecen generalmente como relaciones de
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oposición más o menos encarnizadas y esto no hace sino reforzar la
identificación entre religión y conservadurismo que es parte de la cultura
de las clases medias ilustradas porteñas.
Hay, por otra parte, un modo también central, que fue muy frecuente
en los últimos años de la década del 60 y primeros de la del 70, de oponerse
a este modo de ver la articulación entre religión y política que constituye
una inversión del anterior y que reside en preguntarse, desde algunos de los
marcos teóricos proporcionados por la sociología marxista y neo-marxista,
por las relaciones entre religiosidad popular, conciencia de clase y revolución.
Dadas las escasas oportunidades que la historia latinoamericana proporciona para investigar empíricamente esta relación, las respuestas a las
cuestiones así levantadas son generalmente especulativas refiriéndose al
potencial transformador de la religión y sus potenciales límites que parecen
depender más del grado de simpatía que el investigador tenga con la actividad
religiosa que de su análisis de algún caso concreto de relación. Así, por
ejemplo, algunos intelectuales marxistas Argentinos en las décadas del 60 y
70, rescataron algunos difuntos milagrosos como manifestaciones protorevolucionarias enmarcando, a la manera del mito, como origen lo que para
ellos constituía un objetivo: el apoyo popular a los ideales revolucionarios2.
Cuando, en cambio, intentamos un descentramiento de esa mirada
sobre las articulaciones entre religión y política, este descentramiento trae
una –desde mi punto de vista- siempre saludable variedad a las cuestiones
abordables dentro de ese campo mixto política-religión . Una de estas
cuestiones, que es la que voy a considerar aquí, es la de la diversidad de
modos de articulación entre las religiones que no están controladas por
asociaciones de especialistas en lo religioso y que no tienen –por lo tantoni una organización, ni una doctrina ni una jerarquía de poder formalizada,
por un lado, y los movimientos sociales, por otro. Como los antropólogos
bien saben, esas religiones sin organización, doctrina ni jerarquía –a las que
en occidente se suele llamar religiosidad popular o Nueva Era, dependiendo
del segmento social que las practique— son, en el registro etnográfico, más
comunes que las iglesias y sectas, que sin embargo, ocupan un lugar central
en los esquemas culturales occidentales acerca de las religiones (Boyer,
2001, p.265-296). Sin pretender, de modo alguno hacer un racconto exhaustivo
de tales vinculaciones, voy a ocuparme aquí de cuatro tipos de articulación
entre movimientos sociales y religiones sin organización central ni doctrina
instituida refiriéndome a cuatro casos empíricos.
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MARÍA JULIA CAROZZI
El estudio de la articulación
entre movimientos sociales y religiones
Esta búsqueda de conexiones empíricas entre movimientos sociales
y religiones no organizadas se inscribe en una línea de estudios relativamente integrada que busca flexibilizar los límites entre los estudios de
movimientos sociales –entendidos de un modo amplio como los intentos
colectivos de identificar, desafiar y cambiar situaciones que los participantes consideran injustas o inaceptables empleando principalmente medios
que se encuentran por fuera de la política institucionalizada (Beckford 2001),
por un lado y los estudios de religión, por otro.
Una buena parte de los trabajos que pueden ser incluidos en esa
línea se dedicaron a cultivar lo que Mauss (1993), invitando a profundizar
el uso de conceptos y metodologías comunes y el planteo de problemas
comparables, denominara la cros-fertilización entre los estudios de nuevos
movimientos religiosos y los de nuevos movimientos sociales.
Probablemente, el primer producto de esta cros-fertilización fue la aplicación
de la teoría de movilización de recursos al análisis del desarrollo de
movimientos religiosos (Bromley y Shupe, 1980; Bromley, 1985), un
procedimiento que fue, en nuestra área geográfica, continuado por Frigerio
(1997) aunque imprimiéndole modificaciones para incluir los simbólicos
entre los recursos considerados. Otra vinculación teórico-metodológica en
el estudio de movimientos sociales y religiosos residió en la difusión del
uso, en el estudio de ambos, de los conceptos de “marcos de movimientos”
y “alineamiento de marcos” impulsado por Snow y sus asociados (Snow et
al.,1986). Estos conceptos resultarían empleados en nuestra región por un
buen número de estudios de diversos movimientos religiosos que he revisado en otra parte (Carozzi, 1998). Finalmente, Lofland y Richardson (1984)
emplearon un concepto derivado del estudio de movimientos sociales, el
de “organizaciones de movimientos”, al análisis de movimientos religiosos
para reemplazar los de iglesia y secta que, a su juicio, dificultaban las
comparaciones entre unos y otros.
Sin embargo, no son estas interrelaciones teóricas las que nos
interesan aquí a fin de contextualizar los fenómenos que discutiremos más
abajo sino los tipos de conexión empírica que los trabajos que se inscriben
en esta línea han encontrado entre religiones, por un lado, y movimientos
sociales, por otro. Probablemente la clase de conexión más tempranamente
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OTRAS RELIGIONES, OTRAS POLÍTICAS: ALGUNAS RELACIONES...
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analizada en la literatura fueron las relaciones de competencia entre
organizaciones de movimientos políticos y religiosos. Lofland y Richardson
(1984) pasan breve revista a las mismas apuntando que su presencia se halla
condicionada por el grado de amenaza de represión imperante. Basándose
en trabajos anteriores, los autores afirman que la represión consistente de
las organizaciones de movimientos políticos coincide a menudo con el
surgimiento de nuevas organizaciones de movimientos religiosos. En tanto, las organizaciones de movimientos religiosos compiten más
efectivamente con las de movimientos políticos en momentos en que un
alto grado de efervescencia política coincide con un alto grado de represión.
Zald y Mc Carthy (1990), por su parte, encontraron que los grupos
religiosos a menudo actúan como fuentes, facilitadores y potenciadores de
movimientos sociales prestándoles sus estructuras de organización y
comunicación, dinero y personal u organizaciones mediadoras que
comunican habilidades, tácticas y visiones que pueden ser utilizadas por
distintos movimientos sociales emergentes. Un análisis de una articulación
de este tipo la proporciona Mc Adam (1982) quien muestra cómo varias
congregaciones cristianas locales se involucraron en forma directa en el
movimiento por los derechos civiles en el sur de los Estados Unidos. Osa
(2003) establece una relación similar entre organizaciones católicas y el
movimiento Solidaridad en Polonia. En nuestra región un ejemplo de esta
articulación lo proporciona la suma de bases organizacionales de distintas
religiones en la potenciación de un movimiento por la paz ciudadana que
analiza Patricia Birman (2004 ) .
Otro tipo de conexión encontrada entre religión y movimientos
sociales, que a menudo parece coincidir con el anterior , es el que señala el
uso de imaginería religiosa por parte de los movimientos sociales. Empleado
intencionalmente o no con ese fin, este uso tiene a menudo gran efectividad
para convencer y movilizar a los potenciales adherentes. Tanto Laba (1991,
p. 126-154) como Osa (2003) han mostrado el amplio despliegue de
imaginería católica por parte del movimiento Solidaridad en Polonia. Mc
Adam (1999) por su parte señala que los estilos discursivos de los pastores
de las congregaciones cristianas fueron exitosamente adoptados por los de
los líderes del movimiento por los derechos civiles en sus apariciones públicas. En nuestra área geográfica Pereira Leite (2003) ha mostrado como
el Movimento Popular de Favelas al mismo tiempo que encuentra en la
pertenencia religiosa católica uno de sus elementos para la convocatoria,
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MARÍA JULIA CAROZZI
formula sus objetivos –la defensa de los derechos civiles de los habitantes
de las favelas- en discursos documentos y panfletos, empleando un lenguaje
religioso.
Kent (1993) encuentra una relación idéntica pero de sentido inverso
mostrando que los grupos religiosos pueden apropiarse de la retórica de un
movimiento social de amplia convocatoria modificando sus objetivos. Su
estudio analiza este tipo de relación entre diversos grupos religiosos
orientalistas jerárquicamente organizados que proponían la transformación
individual, por un lado, y la retórica del movimiento de la Nueva Izquierda
en los Estados Unidos, por otro.
Adicionalmente, algunos estudios han encontrado que los nuevos
movimientos sociales poseen características tradicionalmente atribuidas a
los fenómenos religiosos en general. Así Beckford (2001) ha afirmado que
movimientos aparentemente no religiosos que promueven transformaciones
en los derechos humanos, las relaciones de género, el medioambiente y la
guerra tienen costados definidamente religiosos. Por un lado, los activistas
de los movimientos sociales que practican alguna religión determinada a
menudo formulan, para sí y para otros, los objetivos del movimiento en
términos de ésta. Al mismo tiempo, los activistas que no practican ninguna
religión a menudo sacralizan –en el sentido de tornarlos algo que suscita
sentimientos de reverencia- los objetivos, la ideología o las acciones colectivas
del movimiento. De tal modo, afirma el autor, los sentimientos optimistas
que emergen de la convicción de que finalmente el bien triunfará sobre el
mal; la inmersión “efervescente” en las actividades del movimiento que
celebran su unidad y su propósito o una visión espiritualizada de la situación
que el movimiento busca alcanzar, a menudo suscitan sentimientos asociados
a la sacralidad. A estos aspectos identificados por Beckford Hannigan (1993)
acrecienta el uso de una retórica religiosa por parte de algunos sectores de
los activistas de nuevos movimientos sociales como el feminismo y el
movimiento ecológico.
El presente trabajo intenta ampliar este panorama de conexiones
entre religión y movimientos sociales focalizándose en prácticas religiosas
que carecen de doctrina y organización central generalmente englobadas
en la religiosidad popular y el movimiento de la Nueva Era mediante el
análisis de cuatro casos empíricos provenientes de Argentina.
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 11-29, outubro de 2006.
OTRAS RELIGIONES, OTRAS POLÍTICAS: ALGUNAS RELACIONES...
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Santificaciones Populares y Marchas
del Silencio en el Noroeste Argentino
El primero de estos casos, que fue estudiado por Claudia Lozano
(2003; en prensa), ilustra algunas vinculaciones empíricas directas entre
una religión no organizada que podemos describir sucintamente como la
canonización popular de mujeres muertas por sus compañeros sexuales en
el noroeste argentino y un movimiento de protesta que desembocó en la
intervención del poder judicial y la policía y la renuncia del gobernador de
una provincia de esa región.
De acuerdo con el relato de aquella investigadora, en el año 1990
en la ciudad capital de una provincia del Noroeste argentino –Catamarcase encontró el cadáver semidesnudo de una joven de 16 años,
presuntamente violada y asesinada, y visiblemente mutilada: María Soledad
Morales. En la ciudad pronto comenzó a correr el rumor de que un grupo de jóvenes con directas relaciones de parentesco y lealtad política con
funcionarios del gobierno era responsable del crimen. Los agresores
pertenecían a la elite dirigente, en tanto la víctima pertenecía a una familia
humilde, señala Lozano. A lo largo de los sucesivos juicios, en parte gracias
a los rumores que corrían en la ciudad y en parte debido a la investigación
periodística fue descubriéndose como las autoridades policiales
inmediatamente después del hecho ocultaron las evidencias que podrían
ayudar a identificar a los autores del crimen e inventaron otras para
encubrirlos (Lozano 2003, en prensa). Como señala Guy (2004, p.263) el
mutilar el cadáver y arrancarle el cabello cuando ya estaba muerta fue una
de estas maniobras de ocultamiento.
En el lugar donde fue hallado el cuerpo mutilado de María Soledad
Morales en Septiembre de 1990, en las afueras de la ciudad de Catamarca,
un sacerdote puso una cruz de madera, para que el pueblo reflexionara
sobre las razones del asesinato. Rápidamente, los habitantes de Catamarca,
comenzaron a realizar pedidos y promesas a la difunta María Soledad y a
dejarle ofrendas en la cruz dando origen a un santuario (Morandini, 1991,p.
109). Ocho años después, cuando el juicio terminó, a la cruz se había agregado una lápida conmemorativa, una estatua de la víctima con una balanza en la
mano, representando la justicia y dos bancos de plaza. Tanto la lápida como
la estatua estaban colmados de ofrendas para María Soledad: flores, velas,
guardapolvos, cuadernos escolares y placas de agradecimiento (Lozano, 2003).
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MARÍA JULIA CAROZZI
De acuerdo con la reconstrucción de los hechos que realiza Lozano
(en prensa) fue gracias al liderazgo de una religiosa que estaba al frente del
colegio católico donde asistía la víctima, al impulso proporcionado por el
sentimiento de injusticia que embargó a las compañeras de María Soledad y
a la acción sostenida de los familiares de la joven, que comenzaron a
organizarse las Marchas del Silencio. En ellas los participantes recorrían
las calles de la ciudad hasta la plaza, sin pancartas ni banderas y en absoluto
silencio. A partir de las “Marchas del Silencio”, que muy pronto concitaron el
interés de los medios nacionales, la prensa opositora catamarqueña impulsaría
el debate público sobre la impunidad imperante en la sociedad y sobre la
desigualdad de los ciudadanos ante la Justicia. Las Marchas comenzaron a
crecer para abrigar no sólo a los interesados en el esclarecimiento del crimen
sino al conjunto de los opositores del gobierno catamarqueño y habrían de
realizarse durante los ocho años que duraron los sucesivos juicios.
Durante todo ese período varios funcionarios del gobierno trataron
de encubrir a los responsables del crimen a través de amenazas y sobornos
a los testigos, policías y peritos involucrados en él. “El carácter masivo de
las marchas, y la continuidad en el tiempo de la investigación periodística,
llevaron al gobierno nacional a intervenir el gobierno provincial y al
gobernador, Ramón Saadi, a renunciar a su cargo”, señala Lozano (en prensa,
s/n). Finalmente, en 1998 se realizó un juicio en el cual los dos principales
responsables de la agresión según la opinión popular fueron condenados.
La canonización popular de María Soledad era absolutamente previsible.
En el noroeste argentino abundan los casos de mujeres muertas en manos de
parejas sexuales, estables, ocasionales o forzadas, que se vuelven hacedoras
de milagros. Por otra parte en todo el territorio argentino, las víctimas de
asesinato –varones o mujeres- con menos poder oficialmente reconocido y/
o riquezas que sus victimarios son frecuentemente canonizadas popularmente:
objeto de pedidos, promesas y ofrendas y depositarias de poder milagroso.
Sin embargo, y dado su doble carácter de canonizada popular y mártir/emblema de un movimiento por la justicia que acabó con la intervención tanto
del sistema judicial como de la policía de su provincia y con la renuncia del
gobernador, los eventos que siguieron a la muerte de María Soledad nos
permiten pensar por qué en su caso, y no en otros, la muerte violenta de una
mujer que aparentemente había mantenido relaciones sexuales con su
victimario no acabó exclusivamente en milagros sino también en protesta
continuada y en pedido de justicia y transformación política.
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 11-29, outubro de 2006.
OTRAS RELIGIONES, OTRAS POLÍTICAS: ALGUNAS RELACIONES...
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La primera hipótesis que podríamos adaptar de la literatura sobre
canonizaciones populares es que la frecuente canonización de mujeres
muertas en manos de sus maridos, amantes o violadores serían una forma velada de expresar la conciencia de la injusticia de las relaciones de
género, que sólo en contadas ocasiones, como en el de María Soledad, se
volvería protesta explícita y visible (De Certeau 1984, Scott 1990) . Sin
embargo, los datos no parecen corroborar esta hipótesis. Una de las cosas que Claudia Lozano encontró es que quienes asistían a las marchas y
quienes les pedían milagros a María Soledad, la criticaban por “andar en
la calle”, gustar de las fiestas y mantener relaciones sexuales fuera del
matrimonio y que estas críticas se extendían a todas las muertas milagrosas en el noroeste. En cambio, nadie parece hablar de la injusticia de sus
muertes: de la injusticia de la que se habla, en el caso de María Soledad es
de la que reside en la impunidad de los hijos de la elite gobernante ante la
justicia. La relación que se pone en tela de juicio en las marchas es la de
los poderosos con los/las humildes frente a la justicia, no la que repetidamente da origen a la santificación: la de las mujeres muertas en manos de
sus compañeros sexuales. A partir del material presentado por la investigadora (Lozano 2003), es posible deducir que en el noroeste de Argentina en general, y en Catamarca en particular, estas muertas se tornan milagrosas más por su carácter liminar -en el sentido de que conjugan características de comportamiento consideradas masculinas y cuerpos
clasificados como femeninos (esto es son mujeres a las que les gusta el
sexo y que salen del ámbito doméstico) que porque encarnen registros
ocultos o formas veladas de expresar la conciencia de la dominación de
las mujeres y la violencia de género. Con escasas excepciones nadie en
Catamarca parecía reivindicar el derecho de María Soledad o de las otras
mujeres santificadas a llevar la vida sexual que le apetecía sin ser criticadas
o agredidas. Lo que sí parecían reivindicar tanto los participantes en las
marchas del silencio como quienes le hacían pedidos de milagros a María
Soledad, que en muchísimos casos eran las mismas personas, era el hecho
de que sus victimarios debían ser juzgados e ir presos en vez de gozar de
impunidad por su carácter de “hijos del poder” y la contrastante humildad
de su víctima.
De modo que la movilización masiva y continuada que implicaron
las marchas del silencio requirió un proceso de re-enmarcado (Carozzi
1998) del caso de María Soledad, efectuado tanto por la hermana
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MARÍA JULIA CAROZZI
directora de la escuela como por los opositores al gobierno y la prensa.
Este re-enmarcado agregaba al esquema que, en su carácter de difunta
milagrosa asociaba a María Soledad a otras “mujeres de costumbres
liberales muertas por sus compañeros sexuales” otro que ponía el acento
en los culpables- los hijos del poder y el gobierno provincial que los
encubría, en la injusticia que ello implicaba para los humildes y en el
modo de terminar con esa impunidad e injusticia: participar en forma
continuada en las Marchas del Silencio. La construcción y propagación
de ese marco parece haber sido clave para transformar una santificación
popular en un movimiento de protesta.
Tenemos entonces, una primera forma de articulación entre
religión –no organizada, sin doctrina, ni jerarquía- y un movimiento
de protesta que es una relación de continuidad histórica directa entre la
primera y el segundo. Sin embargo, esta continuidad no se produce de
un modo directo y sin mediaciones debido a la expresión abierta de lo
que se hallaba velado, sino que supone la construcción de un nuevo
marco de acción colectiva (Snow y Benford, 1992): la identificación de
una injusticia, la determinación de los agentes responsables de esa
injusticia, y la implementación de una tecnología de protesta que se
presentó como medio para subsanar esa injusticia. En el caso de la
Catamarca de María Soledad, donde el costo de la protesta era muy
alto, debido a la dependencia de la población en relación con el empleo
público y el control que el gobierno ejercía sobre este empleo (Lozano,
en prensa), esto implicó además el echar mano de una tecnología de
protesta, las marchas del silencio, que tenía características de procesión
religiosa, se realizaba en silencio, sin consignas ni pancartas. Y esto
conlleva una segunda forma de articulación entre movimientos sociales
y religión en situaciones donde la amenaza de represión es alta: el empleo
de técnicas de protesta de apariencia religiosa, que resulta en formas a
un tiempo muy visibles, muy movilizadoras y muy eufemísticas de protesta social. Aquí también como en el caso del movimiento por los
derechos civiles que analiza Mc Adam (1982,1999) y en el de Solidaridad
que investigó Osa (2003) este empleo está directamente ligado a la
participación de organizaciones de una religión instituida, en este caso
el colegio católico al que asistía María Soledad, su personal y sus redes
–las alumnas y su familia- en la protesta.
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OTRAS RELIGIONES, OTRAS POLÍTICAS: ALGUNAS RELACIONES...
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Anunciando la Nueva Era en Buenos Aires,
o los caminos de la revolución en medio de la represión
Un segundo caso que revela otras formas de articulación entre religión
y movimientos sociales sucedió en Buenos Aires, en el año 1981, durante la
última dictadura militar. Cuando la derrota del peronismo y la izquierda
revolucionarios resultaba evidente y la efectividad de la represión militar había
sido demostrada, Miguel Grinberg, desde la revista Mutantia, anunciaba con
bastante éxito una “revolución de los corazones”. La revolución, afirmaba,
no se llevaría a cabo por la organización y la acción colectiva sino mediante:
• el acceso definitivo de la Conciencia hacia un cuadro de dimensiones
nuevas, y su consecuencia inmediata: el nacimiento de un Universo completamente renovado,
• la encarnación en personas individuales concretas de una capacidad
particular de cambiar las reglas del juego
• y, finalmente, la incubación en el inconsciente de mucha gente en
todo el planeta de la afirmación de la vida.
Esta revolución de los corazones, se llamaba Nueva Era o
Conspiración Acuariana.
En las páginas de los sucesivos números de la revista Mutantia, primer
plataforma de lanzamiento de este movimiento espiritual en Argentina, durante los últimos años de la dictadura militar, la transformación radical de la sociedad
que tantas adhesiones había generado en la Argentina de los 70, se mantenía
como objetivo pero cambiaba drásticamente sus medios: ya no se vería lograda
por la acción colectiva, impensable bajo las condiciones de represión que había
impuesto la dictadura militar, sino mediante la transformación individual interna . Vemos aquí entonces un movimiento de sentido opuesto al presentado en
el ejemplo anterior: allá la religión desembocaba en movimiento social, aquí, el
movimiento social se transforma en movimiento religioso. Y en este proceso,
también se produce un re-enmarcado según el cual, los objetivos siguen siendo
exactamente los mismos, lo que cambia son los medios necesarios para llevar
a cabo la transformación: en las palabras de los activistas de la nueva era la
acción colectiva se ve demonizada como fuente de todo tipo de males, en tanto
la transformación individual de las conciencias se postula como camino de
transformación personal, social y planetaria.
Este proceso de sobrenaturalización de los ideales revolucionarios
en Argentina, bajo condiciones de represión extrema, es paralelo tanto al
que Stephen Kent (1993) en el trabajo arriba citado menciona para los
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MARÍA JULIA CAROZZI
grupos orientalistas centralmente organizados, como al que Todd Gitlin
(1993) señala para la emergencia de la Nueva Era en Estados Unidos una
década antes, donde la conversión o el pasaje de izquierdista revolucionario
a “new ager” parece haber sido un tránsito común :
En los tempranos 70 parecía que ningún hogar de un ex-activista estaba
completo sin meditaciones, cartas de tarot, terapias de grupo, el tao te ching
y los escritos de Alan Watts sobe el zen, Fritz Perls sobre terapia gestáltica;
Wilhem Reich sobre la recuperación del cuerpo; Idries Shah sobre sufismo,
R.D. Laing sobre las verdades de la locura, la invocación de Baba Ram Dass
a “estar aquí y ahora” y sobre todo las parábolas de Carlos Castaneda sobre
las reacciones de un intelectual escéptico frente al shaman yaqui don Juan.
Los gurús hacían sus peregrinaciones. Las apariciones públicas de Baba Ram
Dass (antes Richard Alpert), Fritz Perls, Chogyam Trungpa, Werner Erhart,
Arthur Janov, John Lilly, Swamis Satchidananda y Muktasnanda y una corte
de menos conocidos semidioses aparecían como los grandes eventos de la
temporada, mientras alegres insiders parecían poseídos por secretos de la
vida negados a los mortales comunes. (Gitlin 1993:425)
De modo que estamos aquí en presencia dos nuevas formas de
articulación entre religión y movimientos sociales que se suman a las anteriores. En primer lugar, la permanencia o el rescate de los objetivos de un
movimiento social al tiempo que el diagnóstico de los medios necesarios
para llevar a cabo la transformación cambia: la acción colectiva es
reemplazada por la transformación espiritual de modo que el movimiento
social desarrolla un ala religiosa. Por otro lado, el tránsito frecuente de los
activistas de un movimiento social al movimiento religioso así conformado. Ambos procesos suelen producirse conjuntamente y parecen más
frecuentes cuando la amenaza de represión violenta crece y las oportunidades de éxito del movimiento social disminuyen como fue el caso para los
movimientos de izquierda tanto en los Estados Unidos en los tempranos
70s como en la Argentina, en los tempranos 80s.
Habitus y Aires de Familia entre
movimientos sociales y religiones no organizadas
Además de estas vinculaciones históricas directas parecen existir
otras vinculaciones indirectas que se producen entre movimientos religi-
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 11-29, outubro de 2006.
OTRAS RELIGIONES, OTRAS POLÍTICAS: ALGUNAS RELACIONES...
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osos y sociales que convocan adherentes entre los mismos segmentos de
población. Por ejemplo, tanto el movimiento de la Nueva Era como los
nuevos movimientos sociales que se originan en la misma época histórica
y convocan mayoritariamente a las nuevas clases medias, comparten
transformaciones semejantes en el modo de organización de sus
adherentes cuando se comparan con los modos de organización de los
movimientos sociales y religiosos preexistentes. En efecto, como concluía en otra parte:
La Nueva Era comparte con el nuevo pacifismo, el nuevo feminismo y el
movimiento ecológico una organización basada en redes de individuos y
microagrupaciones que se reúnen sólo temporariamente y con fines acotados.
Estos movimientos también comparten como objetivo una dirección de
cambio que privilegia la autonomía, rechazando la autoridad, el poder, la
obediencia y las organizaciones jerárquicas y burocráticas. Este sesgo torna
tanto a la nueva era como a los nuevos movimientos sociales , en la práctica,
parte de un macromovimiento hacia la autonomía que cuenta entre sus protagonistas al sector más educado y acomodado de entre quienes fueron
jóvenes en la década del 60. (Carozzi 1999:186)
De modo que estamos en presencia de otra articulación, empírica
pero indirecta, entre movimientos sociales y religiosos que se producen
en la misma época y que reúnen adherentes pertenecientes a los mismos
segmentos sociales. Producto de habitus similares, los modos de
organización de tales movimientos sociales y religiosos parecen asemejarse
entre sí al tiempo que se distancian de los de otros segmentos sociales y
épocas históricas.
Finalmente, además de este contagio de modos de organización entre movimientos sociales y religiosos que comparten los segmentos sociales
de los que derivan sus adherentes, también parecen producirse coincidencias,
contagios y desplazamientos en los modos de concebir a las figuras religiosas y a las figuras políticas . A partir de algunas entrevistas que estamos
realizando en una villa porteña (la 21.24 de Barracas) acerca de las ideas
acerca del milagroso Gauchito Gil 3que expresan sus devotos, es posible
comprobar lo siguiente: los devotos del Gauchito, que son a un tiempo
militantes activos del movimiento piquetero Barrios de Pie, ofrecen ante
algunas preguntas, respuestas claramente diferentes de quienes no militan
en ningún movimiento.
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MARÍA JULIA CAROZZI
Cuando a los no militantes se les pregunta si hay otras personas que,
para ellos, se parezcan al Gauchito Gil, responden mencionando a otros
santos del panteón popular como San La Muerte o La Difunta Correa.
Ante la misma pregunta, los militantes mencionan al Che Guevara y a Evita
Perón. Mientras ante la pregunta hipotética de quiénes serían los amigos
del Gauchito si hoy viviera, los no militantes mencionan a los pobres, los
militantes mencionan a los dirigentes de Barrios de Pie y a su actual aliado
el Presidente Kirchner. Cuando a quienes no militan se les pregunta acerca
de los hipotéticos enemigos actuales del Gauchito, mencionan a los ricos y
a la policía. Los militantes, en cambio, mencionan tanto a los líderes
peronistas como a los líderes piqueteros que se oponen al gobierno. Una
de estas militantes activas, que está a cargo de un comedor comunitario,
incluso transforma la creencia prácticamente universal en la villa de que el
Gauchito robaba a los ricos para ayudar a los pobres, diciendo que el
Gauchito conseguía de los ricos para entregar a los pobres y se preocupaba
continuamente por la situación de estos últimos: asignándole exactamente
el trabajo que ella realiza.
Ahora bien estos corrimientos de sentido entre la militancia en un
movimiento social -aliado del actual gobierno- y la religión que venera a
este santo popular son probablemente posibles porque los sentidos
originarios atribuidos al Gauchito Gil ya resonaban con sentidos
políticamente marcados. Militantes y no militantes en la villa coinciden
en que los amigos del Gauchito Gil en vida eran los pobres y sus enemigos
los ricos y en que lo mató la policía por robar a los últimos para ayudar a
los primeros. Lo que la militancia en el movimiento piquetero parece
tener como efecto es el agregar a estos enemigos genéricos, enemigos
políticos concretos, que no son definidos por una oposición ideológica,
sino que incluyen a todos quienes disputan lugares concretos de poder
en el ámbito inmediato en que los devotos/militantes y sus aliados se
desempeñan y de cuya ocupación depende su acceso a recursos vitales.
Estamos aquí ante una relación similar a una de las señaladas por Beckford
(2001) pero de sentido inverso. Él afirmaba que los practicantes de una
religión pueden reformular los objetivos de un movimiento social en términos de esa religión. Aquí, los militantes de un movimiento social
reformulan, en cambio, los sentidos asociados a una figura religiosa en
términos de aquella militancia.
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OTRAS RELIGIONES, OTRAS POLÍTICAS: ALGUNAS RELACIONES...
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Conclusiones
Quise aquí mostrar algunas articulaciones entre religión y política
que aparecen cuando retiramos nuestra mirada de la relación entre el Estado, por un lado y las grandes organizaciones religiosas, por otro. Particularmente, me he focalizado en aquellas relaciones que asocian religiones sin
organizaciones jerárquicas, sin grandes asociaciones de especialistas religiosos y sin doctrinas articuladas por un lado y movimientos sociales, por
otro. Para ello me he basado en el análisis de algunos casos empíricos con
los que me he encontrado en tanto investigaba el movimiento de la Nueva
Era y las canonizaciones populares en Argentina. Dado lo accidental del
muestreo, el presente trabajo se encuentra muy lejos de pretender haber
arribado una enumeración exhaustiva de los modos de articulación entre
ambos fenómenos. Por el contrario, se trata más de un primer ensayo de
identificación de algunas formas de relación entre movimientos sociales y
religiones no organizadas que se han manifestado en los últimos años en el
extremo sur de América .
El caso de María Soledad ilustra el hecho de que un mismo fenómeno
puede dar lugar al mismo tiempo a una masiva respuesta religiosa popular
y un masivo movimiento de protesta, pero esto no significa necesariamente
que la religión popular suponga formas veladas de expresar las mismas
situaciones de dominación que el movimiento de protesta viene a intentar
subsanar. Al menos en algunas ocasiones lo único que comparten uno y
otro es un evento desencadenante liminar, esto es memorable y llamativo
para la cultura en que se produce, en tanto este evento resulta enmarcado
de modos divergentes por la tradición religiosa y el movimiento de protesta. Otra articulación entre religión y movimientos sociales que nos mostraba
el mismo caso, era el empleo, en situaciones donde el costo de la protesta
es alto, de prácticas de apariencia religiosa como tecnologías de protesta
semi-veladas. Este empleo ya ha sido señalado en la literatura sobre relaciones entre movimientos sociales y religiones organizadas (Laba, 1991; Osa,
2003) y en el caso analizado probablemente se deba a la participación activa
de una institución religiosa –el colegio católico al que asistía María Soledaden la protesta El uso de estas tecnologías de cuño religioso parece reducir
las posibilidades de represión violenta, o por lo menos, aumentar su costo
político (Mc Adam, 1999).
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MARÍA JULIA CAROZZI
El exitoso anuncio de una revolución de los corazones por parte de
los activistas de la Nueva Era en la Argentina de la década del 80 nos
muestra que en condiciones donde la amenaza de represión ante la acción
colectiva es muy alta, los objetivos de un movimiento social también pueden
mantenerse al tiempo que se espiritualizan los medios para lograrlos. Como
muestran los ex activistas de la izquierda norteamericana devenidos new
agers en la década del 70 (Gitlin 1993), en estas condiciones también parecen
frecuentes los tránsitos entre el movimiento social y el religioso por parte
de las mismas personas . Estas relaciones entre movimientos sociales y
religiones sin organización central coinciden –teórica y temporalmentecon las observadas por Kent (1993) para las relaciones entre los primeros y
las religiones organizadas jerárquicamente.
Además de estas relaciones directas entre religión y movimientos
sociales, hemos encontrado otras indirectas. La comparación entre los modos
de organización de adherentes en que se basaron el movimiento de la nueva
era, por un lado y el nuevo pacifismo, el nuevo feminismo y el movimiento
ecológico por otro señalan que las religiones y los movimientos sociales
que convocan a segmentos de población que comparten habitus semejantes,
suelen implementar formas de organización también similares. En ocasiones esto hace que estos movimientos religiosos compartan con los
movimientos sociales que reclutan adherentes en el mismo sector, más
semejanzas organizativas que las que comparten con movimientos religiosos que convocan a otros segmentos de la sociedad.
Finalmente, las versiones del Gauchito Gil que algunos militantes de
una rama del movimiento piquetero en Buenos Aires sostienen, muestran
como la participación activa en un movimiento social puede transformar
los sentidos atribuidos a los miembros del panteón religioso, asemejándolos
a los propios militantes, tornando enemigos de la figura religiosa a sus
oponentes y aliados a sus adherentes.4 Este tipo de relación entre religiones
no organizadas y movimientos sociales es inversa y complementaria de uno
de los modos de relación que Beckford (2001) identificara entre religiones
organizadas y movimientos sociales. En tanto el autor señalaba que los
activistas que practicaban una religión podían re-interpretar los objetivos
del movimiento en términos de la misma, en el caso que analizamos encontramos que una figura religiosa puede ser interpretada en términos del marco
movimiento social en que los devotos participan.
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OTRAS RELIGIONES, OTRAS POLÍTICAS: ALGUNAS RELACIONES...
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OTRAS RELIGIONES, OTRAS POLÍTICAS: ALGUNAS RELACIONES...
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Notas
1
De acuerdo con Searle (1969), las normas constitutivas constituyen una actividad cuya
existencia es lógicamente dependiente de la presencia de las mismas. Se distinguen de las
normas regulativas, que regulan una actividad cuya existencia es lógicamente independiente
de ellas.
2
Para un ejemplo, se puede consultar Isidro Velázquez: Formas Pre-Revolucionarias de la Violencia,
de Roberto Carri (2001) que fue recientemente reeditado
3
El Gauchito Gil es el santo popular que más famoso se volvió entre los sectores populares
de todo el país en las últimas dos décadas. La extensión de su fama es sólo comparable a la
que alcanzara La Difunta Correa en décadas anteriores y en la actualidad probablemente la
supera.
4
Este no es un fenómeno exclusivo de los sectores populares, recordemos que la década del
70 en Argentina, también para los jóvenes de clase media que abrazaban los ideales
revolucionarios, si Cristo hubiera estado vivo en esa época, hubiera sido guerrillero.
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 11-29, outubro de 2006.
POLÍTICAS DE REDENCIÓN
Y REDENCIÓN DE LA POLÍTICA
Enzo Pace
Universitá di Pádova – Italia
Resumen: Las modernas políticas de redención, impulsadas por los movimientos
neo-puritanos, llevan aparejada la redención de la política. Es claro que la política –
en la retórica de estos movimientos- es corrupta por antonomasia, éticamente neutral
y por lo tanto altamente censurable, para aquellos grupos radicales o confesiones
religiosas que pretenden indicar normas universales, y por ello se la considera
responsable de la decadencia de las costumbres y de la pérdida de identidad y de las
raíces, que padecen las sociedades modernas. Son movimientos y grupos, instituciones,
líderes políticos, los cuales, como en el pasado, pueden utilizar la religión como una
especie de gran archivo de la memoria colectiva donde ir a hurgar furiosamente para
encontrar símbolos de identidad que esgrimir contra el otro. El resultado es ambivalente:
por un lado la política pierde valor, por otro emerge una nueva clase conservadora
que se dirige a las grandes agencias religiosas para volver a encontrar una nueva
legitimidad y una energía ideológica en la gestión del poder. Esta nueva clase trabaja
en favor de una revisión de hecho del principio moderno de la separación de las
esferas, la temporal y la espiritual, la religiosa y la política.
Palabras-clave: Religión y políticas, neopuritanismo, políticas de identidad.
Abstract: New puritan movements around the world claim to save the world
through the politics. The salvation means to cope with the moral disorder that the
modern State is not able to cope with. Therefore their action tend to be a sort of
redemption of politics. The political sphere is the realm of corruption for many
leaders of these movements, because it reflects the idea of the neutrality of the
State towards the ethics and religious values. Restoring the ethic profile of the
State means to restore the social order and to regain the consciousness of the
collective identity, its religious roots and its good social performances. Religion
becomes an archives of symbols of the collective memory where political leadership
and religious one could furiously ransack for searching strong symbols of identity
to exhibit against the other. The outcome of the policy of redemption run by these
movements is contradictory: on one hand the politics tends to be devaluated, on
the other religion tends to be a tool of the policy. Both of them, religious and
political actors, when they agree with this strategy, aim to destroy the modern
functional separation between religious and political spheres.
Keywords: Politics and religion, neo-puritanism, politics of identity.
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 31-40, outubro de 2006.
32
ENZO PACE
Introducción
Las reflexiones que me propongo desarrollar parten de una sencilla
constatación: la aparición –desde hace ya más de veinticinco años— de
movimientos colectivos religiosos que luchan contra la autonomía de la
política, contra su pretensión de poder funcionar como un sub-sistema
fundado en principios propios, diferentes de otros sub-sistemas. Se lucha
contra la weberiana racionalización del mundo que habría debido hacer
cada vez más no plausible la ética de la hermandad en distintas esferas de la
vida: desde la economía a la política, desde la ciencia a la esfera erótica y
estética. Se trata de una crítica radical, desarrollada por nuevos actores socioreligiosos y que tiene como objetivo poner en discusión la forma jurídica,
totalmente moderna, que la autonomía de la política ha adquirido a lo largo
del tiempo (por lo menos desde el final de las guerras de religión en el
territorio europeo) de la separación entre Iglesia y Estado (para usar categorías
deducidas de la tradición liberal occidental, al estilo de Toqueville, para
entendernos) o, en sentido más amplio, de la necesidad de proteger los
ordenamientos políticos de la influencia directa del poder y del saber religiosos. Un solo ejemplo, a mi entender intrigante y esclarecedor al mismo
tiempo, puede ayudarnos a comprender los contornos sociológicos del problema que acabamos de citar. Cuando George W.Bush era todavía
gobernador de Texas, hizo aprobar una ley –la Texas Education Agencyen la que se establecía, para todos los docentes de escuelas públicas, la
obligación de exaltar la virtud de la abstinencia sexual para combatir el SIDA
en el ámbito de los programas de educación sexual. Esta iniciativa se difundió
por otros estados y por todo el territorio nacional con el paso del tiempo,
con una aceleración notable en 2005, tras la reelección de Bush. De hecho,
en 2005, el gobierno americano destinó 107 millones de dólares (en 2002
había puesto a disposición la cifra de 50 millones: o sea que se ha duplicado
la financiación) para sostener los programas que promueven la abstinencia
en las escuelas y para fomentar la actividad de grupos religiosos implicados
en las campañas for the virginity. En algunos estados y en algunas escuelas de
Estados Unidos, estos grupos ya han experimentado con éxito la virginity
pledge ceremonies: la promesa solemne por parte de chicos y chicas de permanecer vírgenes hasta el matrimonio, celebrada ante los padres, los profesores
y los coetáneos. Una política de la virtud, por lo tanto. Se delinea un complejo
intento de intervenir en la esfera erótica de los individuos en nombre de
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valores ético-religiosos, so pretexto de la lucha contra una de las
enfermedades más inquietantes que se han difundido por el mundo (en
EEUU se calcula que hay unos 30-40.000 infectados cada año). La virtud
contra la infección, la virtud contra la corrupción.
Los movimiemtos neo-puritanos
Nos hallamos frente a nuevos actores sociales que proponen la
purificación de la corrupción que aflige a la socidad y, con mayor razón, a aquello
que, en el estereotipo popular, es la quintaesencia de la corrupción: el poder político secular y sus ordenamientos. Todos los nuevos movimientos
socio-religiosos comparten una dimensión neo-puritana que no concierne sólo
al mundo evangélico-protestante que forma parte del ideal-tipo
fundamentalista. En efecto, se pueden hallar rasgos comunes también entre los militantes de los movimientos para la hindutva (un neologismo que se
traduce con hinduidad, que no existía y que no se encuentra en la gran
tradición de los Veda) que en India han afirmado la necesidad de oponerse
al Estado secular, propiciado por Nehru, en nombre de la identidad pura e
incontaminada del pueblo hindú, contra las amenazas representadas, al
mismo tiempo, por el Islam y por el Cristianismo. Un movimiento de monjesguerreros, culturalmente toscos pero orgullosos de su identidad étnica
Pashtun, como ha sido el de los Talibanes, que en Afganistán pusieron en
escena –de formas paródicas e inéditas respecto a la gran tradición islámicaun régimen político que preveía, entre otras cosas, un Ministerio de la Virtud,
exhumando una práctica -la hisba- nacida como poder de control sobre la
equidad de los precios y del intercambio de mercancías y que, bajo los
Abasíes, se transformó, en algunos momentos, en una forma de censura
político-religiosa para combatir a presuntos herejes y opositores políticos.
Si se analizan los comportamientos de los militantes de la secta ultraortodoxa
hebrea –Habad o Lubavitch (Ravitsky, 1993)— se nota que están dominados por el principio del escrúpulo moral: la observación meticulosa de los
preceptos de la Torah (desde el vestuario a la alimentación, desde las relaciones sexuales al baño ritual para las mujeres después de la menstruación)
crea una tupida red de solidaridad de grupo, una intensa disciplina colectiva
que, a la larga, alimenta en los píos hebreos el sentimiento de ser una
vanguardia de creyentes convencidos de la inminente llegada del Mesías a
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las Tierras de Palestina, recompuesta por fin según las fronteras fijadas en
los Textos Sagrados (y, por lo tanto, inalienables) tras la guerra de los Seis
Días en 1967. La retirada de las colonias de Gaza y Cisjordania representa
hoy en día, para este movimiento neo-hasídico como para otros de
inspiración nacional-religiosa, el fracaso terrenal y una utopía religiosa
mesiánica. Mientras tanto, generaciones de hebreos han sido educadas en
el convencimiento de que la observación de la Ley de Dios es la suprema
forma de virtud, que hay que afirmar indiferente e integralmente tanto en
la esfera espiritual como en el ámbito civil y político. La virtud de este tipo
no conoce fronteras, no respeta fácilmente las mediaciones (consideradas
como humanas, demasiado humanas) que necesariamente se imponen en
los distintos ámbitos de la vida individual y social (Pace y Stefani, 2002).
Conflictos de valor y Estado ético
Los movimientos neo-puritanos, que se han afirmado en el mundo
en los últimos treinta años en distintos contextos religiosos, se representan
como vanguardias de la fe, que desde un punto de vista sociológico, orientan
su acción social generalmente en tres direcciones:
a) el redescubrimiento de la pureza ritual como disciplina de los
cuerpos y de las mentes, inventado a menudo nuevos ritos en los que la
liturgia canónica se mezcla con formas modernas de acciones de protesta
civil y política;
b) la vuelta al mito de las raíces puras, de los orígenes incontaminados
de un pueblo o de una nación, mito que reduce la complejidad y el espesor
de la historia (que, a menudo, no tiene nada de puro, pues en ella vige más
bien la ley de la acumulación progresiva en estratos sucesivos y en
inextricables entramados culturales);
c) también la narración de los orígenes de un pueblo se convierte en
la inversión simbólica que tales movimientos efectúan en el proceso de
definición de la identidad colectiva (imaginando unido lo que en la sociedad
está diferenciado por clases, grupos, estilos de vida, ideologías, intereses
económicos, visiones plurales del mundo, etc.), en la bolsa de valores (en el
stock exchange) de la política.
Para demostrar lo que acabamos de decir basta simplemente hacer
una lista de las siglas de algunos movimientos socio-religiosos que en estos
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POLÍTICAS DE REDENCIÓN Y REDENCIÓN DE LA POLÍTICA
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decenios han operado como actores sociales abarcando un amplio radio de
acción (es decir, desde el campo espritual hasta el político, sin mediaciones
aparentes) para notar, ya en el nombre mismo, que tales movimentos se
han dado la marca neo-puritana: el Partido del Pueblo Hindú, los grupos
Salafitas (literalmente “del retorno a los padres”) en el mundo musulmán,
el Bloque de la Fe en Israel, el movimiento de opinión católico para la
afirmación de las raíces cristianas de Europa, los movimientos etno-religiosos nacidos en Holanda, Dinamarca y en parte en Italia, con una función
anti-islámica, los movimientos etno-fundamentalistas latino-americanos
(Berdichewsky, 2005), los grupos neo-budistas en Sri Lanka para la defensa
de la identidad cingalesa contra las pretensiones autonomistas de la minoría
Tamil (hindú, cristiana o laica), los movimientos de renacimiento del espíritu
del Khalsa en ambiente sij (movimiento de monjes-guerreros en defensa
de la integridad de la identidad religiosa y étnica amenazada por los hindúes
y por los musulmanes, en apoyo de las reivindicaciones de independencia
de la India del Punjab). Todos estos actores comparten -obviamente de
formas distintas, según los contextos en los que han nacido y se mueven- la
idea de que la separación funcional de la esfera religiosa de la política, tal
como la modernidad ha impuesto en los grandes y en los pequeños Estados nacionales, es insoportable y por lo tanto hay que superarla. Desde los
repetidos ataques dirigidos en estos años contra la segunda enmienda de la
Constitución norteamericana por parte de los movimientos neofundamentalistas, hasta el borrador de la nueva Constitución iraquí (que
parece aceptar el principio según el cual la Ley coránica es la ley fundamental del Estado) la idea recurrente es siempre una sola: es preciso desmantelar la separación por ser fuente de corrupción, de desorden, de disgregación
de la sociedad y de las virtudes morales individuales y colectivas. El Estado
debe volver a ser un Estado ético, capaz de favorecer la virtud y de combatir
el vicio. Si observamos la agenda del debate público de muchos estados de
la llamada tradición democrático-liberal, desde hace tiempo se nota un crescendo de conflictos de valor que ocultan los reales conflictos de interés y
de clase. Conflictos de valor que se adensan (dividiendo a la opinión pública) en las redes de las relaciones sociales que conciernen a la familia (¿hay
un único modelo “natural” de familia o también dos personas del mismo
sexo pueden formar una? Los hijos ¿tienen que ser procreados o pueden
ser elegidos y deseados con métodos artificiales? El aborto ¿es siempre un
crimen contra la vida o en algunos casos la mujer puede decidir abortar?
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 31-40, outubro de 2006.
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ENZO PACE
Las parejas del mismo sexo ¿pueden contraer matrimonio o el matrimonio
es una institución reservada solamente a la “célula natural” de la familia
compuesta por una mujer y un hombre? Una chica musulmana ¿puede
negarse a llevar el velo, si su padre se lo impone? Y una chica ¿puede negarse
a taparse el ombligo, según la última moda de los teen-agers, si el profesor
la invita a hacerlo? Y así sucesivamente y la lista sería mucho más larga...).
Los nuevos actores neo-puritanos no se conforman con redimir a las
personas –llegando a formas “sin pudor” de celo fanático (en el fondo, el
fanático es, para decirlo con una fulminante frase de Amos Oz (2004), una
persona que te quiere, que te quiere demasiado, y justamente porque te
quiere, desea convertirte, reconducirte a la recta vía, en definitiva,
redimirte...); ellos sueñan con redimir a toda la sociedad. Comportándose
de esta manera se imaginan que el Estado, en su forma moderna, es en el
fondo una superestructura episódica, un incidente de la historia, que, por
lo tanto, puede ser abatido. De ahí la paradoja: en algunos casos este
pensamiento anarco-religioso comprende muy pronto realísticamente que
el Estado no se abate sino que se conquista, tal vez empezando desde abajo,
reconstruyendo simulacros de micro-sociedades perfectas y virtuosas, bajo
la presunta soberanía de Ley (de Dios o del Cosmos), en otros, en cambio,
la tentación de “permanecer fuera” de los ordenamientos de este mundo es
elevada, pero no irresistible, porque también ellos a veces entran
fragorosamente en la escena política (convirtiéndose en auténticos partidos o en lobbies que actúan a la luz del día, sosteniendo a tal o a cual
candidato u hombre político) (Pace, 2003)..
La redencion de la política
Las modernas políticas de redención, impulsadas por los movimientos
neo-puritanos, llevan aparejada la redención de la política. Es claro que la
política –en la retórica de estos movimientos- es corrupta por antonomasia,
éticamente neutral y por lo tanto altamente censurable, para aquellos grupos radicales o confesiones religiosas que pretenden indicar normas
universales, y por ello se la considera responsable de la decadencia de las
costumbres y de la pérdida de identidad y de las raíces, que padecen las
sociedades modernas. Las civilizaciones no chocan por sí solas como peñas
erráticas que vagan por los exterminados valles de la historia. Son
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 31-40, outubro de 2006.
POLÍTICAS DE REDENCIÓN Y REDENCIÓN DE LA POLÍTICA
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movimientos y grupos, instituciones, líderes políticos, los cuales, como en
el pasado, pueden utilizar la religión como una especie de gran archivo de la
memoria colectiva donde ir a hurgar furiosamente para encontrar símbolos
de identidad que esgrimir contra el otro. El resultado es ambivalente: por un
lado la política pierde valor, por otro emerge una nueva clase conservadora
que se dirige a las grandes agencias religiosas para volver a encontrar una
nueva legitimidad y una energía ideológica en la gestión del poder. Esta
nueva clase trabaja en favor de una revisión de hecho del principio moderno de la separación de las esferas, la temporal y la espiritual, la religiosa y la
política. Esto nos sirve de pretexto para revisitar el pensamiento de un
autor como Carl Schmitt (1888-1985), uno de los muchos alumnos brillantes
de Max Weber, activo en política, junto con su maestro, durante las
postrimerías de la República de Weimar, teórico del derecho y sociólogo de
la política, ante todo, pero también, quizá sin saberlo, finísimo sociólogo de
la religión (su obra maestra es un pequeño libro titulado Catolicismo romano y forma política, primera edición 1923 (Schmitt, 1986), que todos los
que estudian las sociedades dominadas por la civilización católica tendrían
que leer para comprender la especificidad exquisitamente política de la Iglesia
católica respecto a otras formaciones del tipo iglesia). En un pasaje de una
de sus obras menores Ex captivitate salus, escrita en 1947 en la cárcel de
Nuremberg, donde estaba recluido acusado de haber sido un jurista ligado
al régimen nazi de Hitler (como realmente fue durante un período de su
vida de intelectual fascinado por la personalidad del dictador alemán: el
fervor dura tres años 1933-36), Schmitt utiliza, como le sucede a menudo,
una metáfora para describir la relación ambivalente (y por lo tanto no lineal,
irreversible y fijada de una vez por todas) entre política y teología, entre
esfera religiosa y esfera política. Se trata de la metáfora padre/madre aplicada a la relación entre derecho romano e Iglesia católica. Escribe así:
“Somos conscientes de que la ciencia jurídica es un fenómeno
específicamente europeo... Está profundamente implicado en el racionalismo
occidental. En cuanto espíritu desciende de nobles padres. El padre es el
derecho romano, la madre la Iglesia de Roma. La separación de la madre se
llevó a cabo por fin, tras varios siglos de arduos conflictos, en la época de
las guerras civiles de religión. La hija eligió estar con el padre, el derecho
romano, y abandonó la morada materna. Buscó una nueva casa y la encontró
en el Estado. La nueva morada era principesca, un palacio renacentista y
barroco. Fue grande el sentido de orgullo de los juristas e igualmente su
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 31-40, outubro de 2006.
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ENZO PACE
sentido de superioridad sobre los teólogos. Nació así, de las guerras civiles
de religión de los siglos XVI y XVII el jus publicum Europaeum. Al principio
hay...una intimación hostil a los teólogos, una invitación a callarse dirigido
por uno de los fundadores del derecho internacional (Alberico Gentile):
sinite, theologi, in munere alieno (grosso modo: ¡callaos en las cuestiones que no
os conciernen!). El éxodo de los juristas de la Iglesia no fue una secesión
sobre una montaña sagrada, fue, por el contrario, un éxodo de una montaña
sagrada a un lugar profano. Yéndose, los juristas se llevaron consigo,
ostensiblemente o a escondidas, más de un sagrario. El Estado se adornó
con varios simulacros de origen eclesiástico” (Schmitt, 1987).
Conclusion
Las categorías de lo político, según la conocida tesis de Schmitt (en
sus escritos de 1922-36) (Schmitt, 1072), fueron producto de un proceso
de secularización de categorías teológicas. Este proceso tiene lugar entre
los siglos XVI y XVII y despliega todos sus efectos en el Iluminismo y,
sucesivamente, en las dos revoluciones democráticas, la francesa y la americana. Hemos dicho que no se trató de un desarrollo lineal, dado que
durante la época de la Restauración en Europa –la fase del aparente retorno de la Santa Alianza entre trono y altar- vuelve a ganar terreno un
pensamiento teológico-político (expresado por pensadores católicos como
De Bonald, de Maistre, Donoso Cortés, Stahl y otros) que colocan
nuevamente, en el centro de la teoría política, el dogma de la pecaminosidad
intrínseca de la naturaleza humana y, en consecuencia, de la estructural
corrupción de la “ciudad terrenal”. En un mundo bueno –anota
irónicamente Schmitt (1972, p. 149) “entre hombres buenos domina naturalmente solo la paz, la seguridad y la armonía de todos con todos; los curas
y los teólogos son aquí tan superfluos como los políticos y los hombres de Estado”. Y
sólo cuando la interpretación del conflicto (social, económico e ideológico) toma la forma del choque amigo/ enemigo, tenidos metafísicamente
como emblemas del Bien contra el Mal, uno se pregunta si no es este el
momento social e histórico en que se representa puntualmente la fuerza
del discurso teológico y de las religiones en sentido sociológico. Cuando la
violencia y la injusticia superan cualquier límite de la imaginación, triunfa el
pesimismo relativo a la irremediable pecaminosidad del mundo. Quien ha
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POLÍTICAS DE REDENCIÓN Y REDENCIÓN DE LA POLÍTICA
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conocido en tiempos recientes la guerra civil de forma directa (como ha
sucedido en muchos países de Europa o en América Latina) o de forma
indirecta (¿qué han sido muchas dictaduras, si no máquinas armadas que se
movían contra una parte de la sociedad para destruirla y hacerla desaparecer definitivamente de la faz de la tierra?) sabe que la banalidad del mal de
la que hablaba Hanna Arendt aparece justamente en toda su absurda
banalidad. Inconcebible. Los tiempos del pesimismo ofrecen la posibilidad
a los movimientos neo-puritanos de volver a proponer un esquema de acción
y de pensamiento muy cercano a cuanto Hobbes consideraba necesario
proclamar: la verdad según la cual Jesús es el Cristo es una verdad de la fe
pública, una public reason y del culto público en el que participa el ciudadano.
La frase de Hobbes podría muy bien sustituirse con otras semejantes: “Alá
es grande”, “El dharma por encima de cualquier cosa”, “la Torah es nuestra
constitución” “el Adi Grant (el libro sagrado de los Sijs) es nuestro guru
viviente” y así sucesivamente. O podría escucharse en los grandes espacios
donde se celebran concentraciones masivas para aclamar a un Papa o a un
Cristo místico capaz de expulsar puntualmente los espíritus malignos que
se esconden en el corazón de los hombres.
El problema que los movimientos neo-puritanos plantean es el
mismo del que habla una vez más Carl Schmitt: “¿quién interpreta y
perfecciona de manera jurídicamente vinculante tal verdad (Jesús es el
Cristo) que necesita ser interpretada progresivamente? ¿quién decide qué
es verdadero cristianismo (pero podríamos decir: verdadero islam,
verdadero budismo, verdadero hinduismo, verdadera via de los sijs, etc.)?
¿Quién acuña la verdad en monedas con valor legal? A este problema
responde la máxima auctoritas, non veritas, facit legem, la verdad no se realiza
sola, sino que necesita un mando”.
Si aplicáramos estas palabras a la geografía de los conflictos globales
o regionales que tienen lugar en el mundo y que cada vez más a menudo
ven enfrentarse a partidos de Dios contra lo que queda y resiste del
pensamiento laico, nos daríamos cuenta de que todas las veces que un
movimiento neo-puritano ha alcanzado el poder o ha intentado hacerlo, ha
demostrado puntualmente –sin sombra de duda y sin que los sociólogos de
afanen realizando grandes sondeos de opinión- que al final no triunfa la
verdad, sino el mando de la autoridad, no la libre búsqueda de la verdad,
sino la obediencia. Los riesgos para la democracia no provienen solo de los
enemigos externos sino también de todos aquellos movimientos neo-puri-
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ENZO PACE
tanos que en nombre de la verdad absoluta intentan alterar el principio
moderno de la diferenciación de las esferas sociales, especialmente de la
religiosa de aquella política.
Referencias
BERDICHEWSKY, Bernardo. “Indigenismo-Indianidad”, in R. SALAS (coord.),
Pensiamento critico latino-americano, vol. II, Santiago de Chile, Ediciones Universidad
Catolica Silva Henriques, p. 561-568. 2005.
OZ, Amos. Contro il fanatismo, Milano, Feltrinelli. 2004.
PACE, Enzo. “Politics of Paradise. Conflitti di religione e conflitti d’identità prima e dopo l’11 settembre”, in Rassegna Italiana di sociologia, n. 1, p. 25-42. 2003.
PACE, Enzo & STEFANI Piero. Fundamentalismo religioso contemporaneo, São Paulo,
Paulinas. 2002
RAVITSKY, Aviezer. Messainism, Zionism, and Jewish Religious Radicalism, Chicago,
University of Chicago Press. 1993.
SCHMITT, Carl. Cattolicesimo romano e forma politica, Milano, Giuffré. 1986.
_______. Ex captivitate salus, Milano, Adelphi. 1987.
_______. Le categorie del politico, Bologna, Il Mulino. 1972.
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 31-40, outubro de 2006.
O ESPÍRITO SANTO, A MÍDIA
E O TERRITÓRIO DOS CRENTES 1
Patricia Birman
CIS/UERJ
Resumo: O artigo explora as relações estabelecidas entre pentecostais pertencentes a uma Assembléia de Deus e uma vila de pescadores do ponto de vista político,
religioso e mediático. Discute como a imagem de uma “comunidade de crentes”
que se apresenta “apartada do mundo” se relaciona com a mídia e faz desta um
auxiliar importante para a construção das referências bíblicas, sociais e morais dos
seus membros bem como a visibilidade destes no espaço público.
Palavras-chave: Pentecostalismo, mídia, território e política.
Abstract: This article concern is with the relations between a pentecostal group
belonging to the Churh Assembléia de Deus and a fishermen village, from the
political, religious and mass media points of view. The question is: how does a
group figuring itself as “a community of believers separated from the outside
world”, relates on a specific mass media to enforce the biblical, social and moral
references of its members as well as to increase its own public visibility.
Keywords: Pentecostalism, media, territory, politics.
Logo na primeira visita à comunidade de crentes de Provetá um assunto
parecia obrigatório em todas as conversas com seus moradores: o caráter
singular daquela comunidade, o quanto esta é especial e inconfundível. O
espaço geográfico da vila e do seu entorno adquiriam nestas conversas
uma configuração moral peculiar que parecia evidente para os nossos
interlocutores. Saltava aos olhos a experiência religiosa pentecostal
onipresente, atravessando todas as relações sociais e que avançava nos discursos de seus moradores como referência primordial para definir o que
havia de comum entre eles. A ação do Espírito Santo que a igreja propiciava há quase setenta anos ali orientava o coração dos seus fiéis mas, antes
mesmo destes existirem, há muito tempo, Ele já havia agido em Provetá de
modo a fundar um território cuja natureza seria, por assim dizer, também
“espiritual”.
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 41-62, outubro de 2006.
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PATRICIA BIRMAN
Vamos pois analisar de que forma os membros de uma pequena
Assembléia de Deus, situada numa enseada da Ilha Grande, fazem de certas relações territoriais e midiáticas, um “território de difícil acesso” e uma
“comunidade de crentes” soldada pelos valores do Evangelho, uma referência essencial para a construção de uma coletividade cuja gestão se encontra sob o controle da igreja há, ao menos, três gerações2.
Com efeito, a igreja pentecostal que se estabeleceu com sucesso nesta pequena vila na Ilha Grande parece ter tido como projeto para seus fiéis
a construção de um modo de vida “apartado do mundo”. A separação
entre a Ilha e o continente alimentou e alimenta ainda hoje a idéia de um
“isolado” territorialmente contido, onde o “mundo” fica “fora” dali. Chega-se ao “mundo” de barco… e reitera-se por esta fronteira marítima o
contraste entre os comportamentos das pessoas nestes territórios moralmente distintos.
A idéia de um isolado durante muito tempo significou para a igreja
uma tentativa de proteger a vila das investidas da mídia e das pessoas, vindas
do exterior. No entanto, podemos perceber que hoje, com a mudança do
pentecostalismo nos anos noventa, que a mídia não somente se encontra
presente mas participa da construção desta imagem de uma “comunidade de
crentes” com o concurso da própria igreja. A possibilidade de projetar a
“comunidade de crentes” de uma forma positiva na televisão é valorizada
pelos moradores crentes e pela igreja. De forma complementar, a condição
de evangélico “local” bem como as fronteiras da localidade são fortemente
alimentadas pela presença do som evangélico, como veremos adiante. Buscamos aqui descrever como uma “comunidade de crentes” que se fundou através do pentecostalismo “clássico” encontra novos caminhos para se afirmar
“no mundo” e assim reforçar suas diferenças em relação a este.
O exotismo como fronteira
Os procedimentos de territorialização dos vínculos religiosos não se
fazem sem problemas numa nação cujo marco de fundação é a cruz trazida
pela colonização católica, cujas divisões político-administrativas foram sempre recobertas por fronteiras eclesialmente concebidas. O caráter
espacializado da administração católica dos espaços públicos durante muito tempo supôs uma coincidência entre seus marcos territoriais e os sím-
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 41-62, outubro de 2006.
O ESPÍRITO SANTO, A MÍDIA E O TERRITÓRIO DOS CRENTES
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bolos sagrados e sacralizantes da nação brasileira. Esta comunidade evangélica
busca estabelecer fronteiras de certo modo em ruptura com alguns dos
princípios maiores que estruturam a unidade territorial da nação por um
lado e, por outro, em continuidade com os princípios religiosos e políticos
que, dos anos noventa para cá, informam a ação dos pentecostais na sociedade nacional3. A comunidade de crentes de Provetá, longe de estar isolada, participa (e se beneficia) cada vez mais de uma comunidade evangélica nacional e também, em certo sentido, virtual que amplifica, reverbera e reforça
os empreendimentos dos crentes. Transações políticas, culturais e religiosas, que exibem marcas identitárias evangélicas, crescem a olhos vistos no
estado do Rio de Janeiro e, em menor grau, nos demais estados brasileiros.
Estamos pois diante de um coletivo de religiosos pertencentes à Assembléia de Deus local que se apresenta como gestor não somente dos fiéis da
sua igreja mas da comunidade, isto é, de uma vila de três mil habitantes, com
a qual de certo modo se confunde, ou melhor, busca permanentemente se
confundir. Este coletivo religioso entretém laços estreitos com a comunidade dos evangélicos mais ampla, cujas referências, nem sempre precisas,
ultrapassam as fronteiras dos estados-nação.
A base territorial que a igreja reivindica tem permitido a esta usufruir de um reconhecimento no plano político e administrativo, que lhe é
assegurado pelos governos evangélicos municipal e estadual. Trata-se pois de
uma vila governada pelo pastor de sua única igreja. Não é de se espantar que
os moradores de Provetá falem constantemente da sua comunidade, da diferença entre ela e o resto do país e do mundo, enfatizando, aprovando ou
questionando a natureza da relação que envolve a igreja, o território e a
vila. Em outras palavras, a lei dos crentes será esta, realmente, de fato e de
direito, a lei de todos? Será que os limites sociais e políticos de sua aplicação
são estabelecidos por um critério “territorial”, independente de outras
injunções? A condição de morador é englobada, em consequência, neste
caso, por esta condição religiosa supostamente comum? Estas questões
podem ser acompanhadas por outras, relativas aos elementos sociais e simbólicos que contribuem para a construção desta comunidade de crentes.
Como veremos, a tensão entre o pertencimento à igreja e o
pertencimento ao território é objeto de uma atenção constante dos dirigentes da igreja, dos moradores da vila, além de fonte de inumeráveis conflitos entre uns e outros. No entanto, para os de fora da vila, se supõe facilmente uma perfeita identidade entre a condição de morador e a de mem-
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 41-62, outubro de 2006.
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PATRICIA BIRMAN
bro da igreja, o que alimenta uma imagem de estranheza e exotismo que
mais repele do que aproxima os curiosos, em geral, turistas.
De certo modo, o nosso primeiro contato com Provetá se fez por
intermédio desta imagem: uma comunidade que se destaca pela posse de
um território onde se observa uma ética protestante que afasta sua população da praia, interdita o álcool e promove o trabalho da pesca contra os
efeitos deletérios do turismo e seus prazeres. Nesta narrativa, ao contrário
das referências usuais feitas às demais vilas e localidades da Ilha Grande4,
enfatiza-se uma diferença religiosamente estabelecida: lá há imperativos e
interditos que valem para os de dentro e afastam os de fora.
Várias histórias garantem sua fama: dizem que as mulheres tomam
banho de roupa. Dizem que o Pastor não só proíbe a venda de álcool como
expulsa ou maltrata os turistas e ameaça os maconheiros e hippies que
aportam por lá. Nos guias turísticos nacionais e internacionais existentes a
“comunidade de Provetá” é mencionada em poucas linhas e nestas se destaca
como referência maior à condição evangélica da comunidade local. O mesmo
viés interpretativo predomina nas reportagens eventuais da mídia, como
lemos a seguir:
“…Evangélicos. Entre outras coisas, só entram no mar totalmente vestidos. Bebidas
alcoólicas e cigarros são mal vistos. Tamanha rigidez faz com que o local se torne pouco
atraente a turistas. A comunidade é liderada pelo pastor Eliseu Benedito Martins, da
Assembléia de Deus, e vive exclusivamente da pesca da sardinha. ‘Sempre conservamos e
preservamos Provetá, que tem um povo sadio e sem doenças”, diz o pastor’“ (JB, 22/07/
2001. p.27).
Não podemos negar que foi este exotismo tropical às avessas o que
inicialmente nos atraiu.
Provetá como território,
segundo seus moradores crentes
Para os membros da igreja, a conexão entre esta e o território
provetaense tem uma história, aquela da sua fundação e sacralização. Com
efeito, a condição comunitária reivindicada ancora-se num mito que conta
como Provetá se transformou do ponto de vista físico, moral e social a
partir da chegada do primeiro indivíduo convertido à Assembléia de Deus.
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O ESPÍRITO SANTO, A MÍDIA E O TERRITÓRIO DOS CRENTES
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Foi através de Deoclécio Neves, seu primeiro e único missionário,
há quase setenta anos, que Deus mostrou que naquela vila habitariam seus
eleitos. Segundo contam, Deoclécio Neves era “um filho do lugar” que
tinha ido embora e voltou do continente convertido, membro da Assembléia de Deus: “já veio como missionário”. Chegou numa canoa, cujo nome,
bastante sugestivo aliás, era “Não bebe”, e trazia com ele a sua mulher e o
filho de colo, chamado Samuel. Fazia um enorme calor e Deus fez o barco
ser acompanhado por uma pequena nuvem que protegeu os viajantes do
sol até a chegada em Provetá. Deoclécio desde que chegou fundou a igreja
e fez muitos milagres. O importante é o fato que a sua presença convertida
mudou definitivamente o destino da vila.
Antes, o que havia ali, segundo moradores antigos, era quase nada,
algumas roças, criação de galinhas e pesca de canoa. Não havia barcos de
pesca de sardinha, como hoje, que empregam cada um doze homens5. As
pessoas possivelmente eram católicas, alguns mencionaram para nós a festa da Nossa Senhora da Lapa, cujo cortejo passava pelos arredores. Outros
mencionam a existência de “bandeiras” que visitavam as casas. Estas lembranças desse tempo raramente são acionadas pelos moradores a não ser
para afirmar a radicalidade da ruptura provocada pela igreja.
Para todos os efeitos, nesta narrativa, com a chegada de Deoclécio,
houve uma ruptura radical de Provetá com o seu passado. Inaugurou-se
uma nova era para os seus habitantes pelo rompimento com a aparente
neutralidade do território na sua relação com Deus. Por intermédio do
homem que para lá levou o Evangelho chegou o Espírito Santo cuja presença propiciou uma transformação da natureza mesma do lugar.
Mudou o mar, mudou a terra e mudaram os homens. As transformações impressionantes que lá aconteceram, de todo modo, foram extremamente benéficas para todos. O mar “amansou”, deixou de ser “grosso”:
as ondas, antes imensas, que impediam que os barcos aportassem na pequena baía, baixaram e diminuíram tanto na freqüência quanto na violência
e os barcos de pesca começaram a sair e a voltar sem perigo. A pesca assim
obteve um impulso significativo e se iniciou um período de prosperidade.
O solo e o ar também mudaram.
Quanto a estes dois elementos da natureza, o mais relevante foi o
desaparecimento da “doença” que circulava pelo ar e contaminava a terra.
Poucos ousam dizer seu nome – finalmente não foi difícil compreender
que se referiam à “lepra”. Ela aparece nos relatos pelas referências que
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misturam os habitantes do lugar com uma natureza fétida e podre, que sai
da terra e define física e moralmente os homens que nela vivem. Embora
afirmem que a “doença” existisse por lá ocupando o território na sua totalidade, salvo posteriormente pelo Evangelho, também dizem que a “doença” atingiu mais alguns recantos do que outros, coincidentemente os que
hoje seriam ocupados por habitantes que se mostram mais renitentes em
relação à igreja.
A descrição dos antigos territórios da lepra freqüentemente é acompanhada de um olhar ou de um gesto que designa um “outro lugar”, distante daquele no qual se encontra o nosso interlocutor: “lá no morro”, “lá
na costeira” onde moram os que guardariam nos seus corpos uma história
de sujeira e de indignidade que teria continuidade no presente enquanto
falta moral e social: são simultaneamente os mais pobres, os que moram
nos lugares mais sujos e os que mais resistem a responder aos chamados de
Jesus. O Espírito Santo assim participa ainda hoje da construção das fronteiras, separando os territórios salvos daqueles submetidos à condenação.
Os “crentes de Provetá” possuem uma história de conversão que diz
respeito a pessoas definidas através do que seria um elemento englobante,
“a comunidade”, cujos limites são dados pelo território a partir do momento de sua refundação pela bênção divina. A geografia local é, em
consequência, mapeada obedecendo os critérios definidos por este momento inaugural. O destino biblicamente fixado para os moradores de
Provetá tem no território as marcas dos desígnios divinos. Imagens bíblicas
são relacionadas aos acidentes geográficos locais que passaram a ser signos
cuja leitura apropriada permite reconhecer a escolha divina deste território.
Alguns acidentes geográficos são assim submetidos a uma leitura
bíblica e participam da narrativa a respeito da história da comunidade. Próximo à entrada da baía, do barco de pesca que nos transporta, é possível
ver, na costa, uma enorme pedra equilibrada sobre outra. Esta estranha
escultura em rocha é freqüentemente mencionada como uma comprovação da escolha divina. Numa apropriação pouco ortodoxa do reconhecimento que os índios, primeiros habitantes do país, fizeram da catolicidade da
Terra de Santa Cruz, vemos os índios acionados como testemunhos da ação
divina: em outros tempos, também estiveram presentes no ato inaugural
de fundação do Brasil, e agora fornecem para os proventaenses a prova
bíblica da intervenção de Deus. Como nos foi várias vezes traduzido,
“provetá” é uma palavra indígena que quer dizer “sobre as pedras”, em
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tupi-guarani. Seu significado na língua dos índios remete a um acidente geográfico cujo sentido maior está escrito nos Evangelhos: “sobre a pedra fundarei a minha igreja e as portas do inferno não prevalecerão sobre ela”.
“A pedra é Cristo”, diz um dos pastores, exegeta local: pro-ve-tá, quer
dizer, em tupi-guarani “sobre a pedra”, soletra o nome para esclarecer a
correspondência entre a designação indígena e o seu referencial bíblico, em
português.
A noção de comunidade é pois empregada pelos membros da igreja
tomando como premissa este elo entre o território e o que Deus determinou para os seus habitantes, conforme se infere da chegada de Deoclécio
no “Não Bebe”, dos milagres que transformaram a sua natureza e, finalmente, da origem bíblica do seu nome.
As lideranças da igreja percebem, em conseqüência, Provetá como
uma “comunidade” territorial e moral, cujos habitantes são os herdeiros
naturais da graça divina, obtida ou, talvez, revelada pelo esforço missionário da igreja e pelos milagres do Espírito Santo. “Aqui foi um lugar que Deus
escolheu para ele”, formulou para nós um membro da igreja, que assim nos
explicou porque os “de fora” precisam respeitar “a nossa cultura”. O Evangelho que embebe o território é assim referido como “cultura”, isto é, como
um modo próprio de ser dos habitantes deste lugar, herdeiros deste ato
que os distingue e os engloba como eleitos pela graça divina. Homens e
mulheres não se pensam como “convertidos”, mas “nascidos” e “criados”
no Evangelho.
A lógica territorial em seus
desdobramentos político-religiosos
Em suma, a “comunidade de Provetá” se realiza idealmente para os
membros de sua igreja na imagem de um território cujas fronteiras foram
estabelecidas por meio desta ruptura primordial. O tempo de “antes” não
era aquele somente das doenças e do “mar grosso”, quando “não existia nada
ali”. A imagem de um vazio pode ser entendida, como o fizemos inúmeras
vezes, como a ausência de “tudo” que indica o progresso atual da vila: eletricidade, televisão, um aglomerado de casas cuja população chega a 3 mil
pessoas, além de farmácia, padaria, escola, posto de saúde e posto policial.
Este progresso, no entanto, não foi alcançado pelos meios mundanos co-
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muns. Ele é fruto de uma prosperidade construída pela pesca daqueles que
puderam usufruir a graça de Deus e neste sentido se opõe ao “progresso”
mundano e moralmente pernicioso. Mas a prosperidade de Provetá indica
também algo menos “material” e mais importante, qual seja, o sentimento
compartilhado de uma coletividade definida pela condição de uma “comunidade de crentes” que se forjou no interior de fronteiras que delimitavam
um “vazio” católico no passado. A leitura do passado faz do vilarejo anterior um “lugar” onde “nada” acontecia, cuja “inexistência” teria sido preenchida por Deus, com a chegada do Evangelho. A ruptura com o passado,
diferente da maioria das histórias de fundação das igrejas pentecostais que
conhecemos, se fez através de um princípio territorial englobante, o que
deu origem a um aparente “isolado” religioso, a comunidade de crentes, cuja
fundação parece lhe garantir um estatuto político específico: neste “lugar”
a lei dos homens se dobrou à lei de Deus, o que é reconhecido por todos,
de “dentro” e “de fora”. No cotidiano, o pastor reafirma e busca exercer
(com relativo sucesso, aliás) a sua autoridade sobre o conjunto da vila, fazendo da igreja o centro de onde emana os princípios e as regras da sociabilidade, do exercício da política e da religião.
No entanto, sabemos que a vila, longe de ser um “isolado” religiosamente construído, encontra-se envolvida, através das muitas modalidades
de existência de seus moradores, com discursos e práticas distantes destes
defendidos pelo pastor. Estes, apesar da igreja, possibilitam uma continuidade entre os modos de vida locais com aqueles do “continente”. Como
acontece em outras “comunidades”, valores dissonantes ou mesmo antagônicos entre si encontram seu lugar nesta vila. Embora o isolamento seja
uma imagem cultivada e presente entre os moradores de Provetá, a comunidade de crentes é um forte testemunho da importância crescente do
pentecostalismo no espaço público brasileiro contemporâneo. Como já
mencionamos, sem o relativo sucesso de uma política evangélica que se
desenvolve nacional e mediaticamente dificilmente Provetá poderia se construir através desta figura do “isolado”. A imagem de um “isolado”, com
efeito, não visa nem reiterar, nem produzir um “isolamento”, mas sim estabelecer, por intermédio de discursos teológicos (uma comunidade “fora do
mundo”) e políticos (uma unidade administrativa), um conjunto de práticas de diferenciação e de cultivo de diferenças6. A imagem de uma “comunidade exemplar” pôde assim ganhar mais proeminência e variadas formas
de circulação.
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A figura do “isolamento” participa do imaginário local e supra-local
e, sem dúvida, possibilita também fazer dos pesquisadores nesta vila, “isolada” pelo mar, figuras próximas daquelas emblemáticas do exotismo antropológico, tão referido na história da disciplina: pesquisadores que “partem” para fazer trabalho de campo numa ilha de “difícil acesso” com uma
“cultura” peculiar. Abaixo vemos deliciosamente descrita esta diferença:
“Ao contrário das demais praias da Ilha Grande, repletas de turistas, bares, restaurantes
e pousadas, a de Provetá conseguiu se manter praticamente isolada do mundo. Primeiro
porque o acesso é complicado: só pode ser feito por barco e não há linhas regulares. Para
piorar, é necessário passar por um trecho de mar aberto que nem sempre é navegável.
Além disso, os habitantes da praia seguem à risca rígidos preceitos evangélicos para
nortear suas vidas” (JB, op.cit).
Dificilmente poderíamos dizer que esta reportagem não participa
da construção de Provetá e, em conseqüência, da imagem de seus pesquisadores que chegam num pequeno barco nesta ilha praticamente deserta...
Embora não seja a única imagem existente, esta, como muitas outras, reafirma a existência de um elo natural entre a comunidade de crentes e o seu
território, bem como a especificidade de sua cultura e do comportamento
de seus habitantes que conseguem, assim, garantir seu isolamento.
As referências constantes a certos coletivos como comunidades enquanto lugares de produção de diferenças se constituem também através
de instrumentos mediáticos poderosos, projetados no plano político e social para designar os atributos morais de segmentos sociais variados. Como
as favelas, os quilombos, também referidos ad nauseam como comunidades,
estamos, em Provetá, participando de dinâmicas identitárias que envolvem
imaginários variados tanto “dentro” quanto “fora” de seus limites territoriais.
A presença do Espírito Santo na mídia
Exterior “ao mundo” numa certa medida e em alguns contextos e
“no mundo” em relação a outros, as referências dos habitantes evangélicos
à comunidade de Provetá oscilam entre afirmar o seu isolamento dos modos de vida “do mundo” e a sua perfeita ligação e continuidade com este. A
idéia de separação do mundo, tão cara aos evangélicos, aqui é construída
por uma sacralização do território. Ao invés de pessoas que rejeitam o
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mundo temos um “mundo” a parte, em conexão com Deus. Esta interpretação do credo protestante cria um elo entre o céu e a terra, dando a esta
última propriedades divinas. As idas e vindas da “ilha” ao “continente”
podem ser referidas na igreja como uma “passagem” entre domínios teológicos distintos ou, mais ordinariamente, no cotidiano das pessoas, como
um deslocamento banal, sem maiores significações e pesos cosmológicos.
Como “todo mundo” seus habitantes conhecem e freqüentam o “continente”: semanalmente vão estudar, trabalhar, fazer compras, visitas e tudo
o mais na cidade de Angra dos Reis.
Da mesma forma, Provetá está ligada “ao mundo” pelo rádio, pela
televisão e, mais recentemente, pela videolocadora que acabou de ser inaugurada na praça da igreja. O “mundo”, no sentido teológico do termo,
apesar dos esforços da igreja, se infiltra no “território sagrado” provetaense
– em geral, aqueles que são vistos como os que mais transgridem seus
valores são identificados como pessoas “de fora”, mas estariam conseguindo algum sucesso junto à “juventude” e aos “adolescentes” do lugar –
grupo que nomeadamente passou a ser a principal preocupação do Pastor.
Seria simplista da nossa parte considerar que a “mídia” e o “mercado” se encontram do lado oposto da “religião” e da “tradição”7. Queremos
destacar aqui como a mídia bem como a estética do consumo e do lazer se
encontram a serviço tanto dos valores religiosos que buscam preservar a
“comunidade” do “mundo” quanto daqueles que se orientam no sentido
oposto. Mesmo os indivíduos que se recusam a ter televisão em casa – e
que são francamente minoritários, aliás – costumam mencionar os programas, personagens, spots publicitários ao longo de inúmeras conversas e
mesmo usar estas referências no púlpito, como veremos. Em outros termos, a mídia participa da construção dos imaginários religiosos e laicos
locais. A entrada da televisão de forma inapelável se deu antes da chegada
da eletricidade, através dos geradores, os moradores conseguiam ver televisão, o que se intensificou a partir de 20018. A entrada da mídia eletrônica
foi fortemente combatida pelo Pastor até o início dos anos noventa, o que
contribuiu para gerar a imagem da comunidade como “atrasada” e submetida a um pastor “fanático”, objeto de pesar e de indignação de todos, na
TV Globo, para revolta dos moradores que até hoje mencionam este programa que os denegriu. O desejo de mudar esta imagem faz parte dos
projetos atuais da igreja e de uma grande parte dos seus habitantes. Mais
recentemente receberam a visita do programa do Gugu Liberato que apre-
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sentou os crentes de Provetá de forma simpática, provocando uma enorme
comoção local. Tanto a participação no programa quanto a sua visualização
posterior mobilizou enormemente os moradores9.
Entre os meios mais cobiçados hoje em dia pelos pastores da maioria das igrejas evangélicas para garantir o Espírito Santo entre os homens,
para aproximá-los da igreja e conservá-los afastados “do mundo” encontra-se, pois, a mídia eletrônica. Esta cria imagens e circuitos por onde passam rituais, milagres e testemunhos que ganham um novo estatuto de realidade
e alargam o mundo e o horizonte daqueles que acedem a estes novos espaços virtuais10. Provetá não é exceção a esta regra. A entrada neste mundo
virtual foi desejada e é sempre referida pelos seus moradores como parte
da prosperidade que alcançaram. As histórias sobre o programa em que se
viram destratados pela mídia também aparecem nas conversas. Estão todos, como nós, aliás, atentos aos efeitos identitários e políticos produzidos
pelas imagens na sociedade local e nacional11. Participam assim da elaboração de certos imaginários relacionados aos crentes na sociedade mais ampla, da mesma forma como utilizam os meios eletrônicos para gerar testemunhos e também novas formas de intervenção milagrosa do Espírito
Santo. Vamos então apresentar um episódio significativo, relativo à relação
que a igreja estabelece com a televisão, para em seguida analisar
etnograficamente as apropriações que os membros e os não-membros da
igreja fazem do som, que se constitui como o principal veículo de propagação do Espírito Santo na comunidade.
O dia em que Provetá subiu ao céu
Segundo André Bakker, o “repórter”, isto é, sobretudo o “Jornal
Nacional” da TV Globo, é a resposta imediata das pessoas quando perguntadas sobre os seus programas favoritos na tevê12. Trata-se do meio informativo por excelência das “coisas do mundo”, apreciado por todos e aquele que aparenta ser moralmente mais “neutro”. Foi de uma referência “ao
repórter” no quadro de um sermão na igreja que se configurou para nós o
que seria o lugar da mídia nos eventos de caráter messiânico, biblicamente
previstos para o final dos tempos. Este lugar se mostrou especial para nós
na medida em que sua elaboração demonstra a maneira específica da dita
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sociedade de informação ser posta a serviço do Espírito Santo e de contribuir decididamente para projetar a sua imagem no território nacional.
Foi num culto dominical, onde o principal pregador era um pastor
vindo de Nova Iguaçu. A tarefa que ele se propôs no culto era a de criar um
momento de presença do Espírito Santo. O júbilo, o choro, o dar graças, os
glórias a Deus e as manifestações crescentes do público falando línguas estranhas na igreja eram, pois, esperados por todos. O pastor era aquele que
conseguiria fazer este milagre, propiciar novamente um momento de alegria e de emoção intensos para os fiéis, fazê-los sentir o que é a experiência
mais importante e mais agradável oferecida pela freqüência à igreja, aquela
que se alcança quando o Espírito Santo toma o coração de todos e se faz
presente através de suas manifestações reconhecidas.
Com este intuito explicitado, o pastor começou a contar a história
do “dia mais importante do mundo”. Apoiando-se tanto na Bíblia quanto
na sua cultura mundana, demoradamente se deteve na descrição do nascimento de Cristo, sua morte e ressurreição. Evocou vários episódios mundanos, considerados importantes do ponto de vista do progresso científico
para contra-argumentar a favor de um evento de caráter escatológico, de
importância maior para todos os presentes:
“O pastor prolongou sua pregação referindo-se aos dias que ficam registrados na memória
histórica: citando os anos com precisão, citou o ano em que foi concebido o primeiro bebê de
proveta; o dia em que o homem finalmente aterrissara em solo lunar (ressaltando que até
os dias de hoje só os EUA já estiveram lá mais de cinco vezes); guerra do Vietnã, queda
das torres gêmeas do WTC. Mas nenhum destes eventos teria sido o maior dia da História. Identificou-o em seguida, com o nascimento de Cristo. Descreveu-o com a ortodoxia do
bom conhecedor da Bíblia, cada detalhe do dia era descrito em sua magnitude e singularidade histórica. Afirmara que, ainda em sua juventude, Jesus já era uma “celebridade” e
que seu rebanho era predominantemente composto por pescadores, sujeitos valentes, embuídos
da coragem para enfrentar o mar em seus dias de fúria. Vê-se claramente aqui o sincretismo
contemporâneo mediante o qual constantemente a fé é edificada: para transmitir aos presentes a idéia de que Jesus era de fato um sujeito singular, distinto, imagem referencial
para um número razoável de pessoas que identificavam-se com ele, utiliza como referência
uma terminologia própria de nossa sociedade espetacular, termo que nos é familiar, indicativo
dos sujeitos que habitam a esfera da distinção: as “celebridades”. Deve-se aqui tomar
nota da breve distância temporal que nos separa da novela de grande sucesso recentemente
transmitida pela rede Globo de televisão, “Celebridades”. Mas, ao cabo da descrição,
negou que este tenha sido o maior dia da história.
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Descreveu e identificou como o maior dia, em seguida, o dia da
morte de Cristo. Seu primeiro comentário em relação a ele referia-se à falta
de verossimilhança, a precariedade com que o filme de Mel Gibson, “Paixão de Cristo”, relatou o seu sofrimento. Ele refutou veementemente o
que o filme narrava, fundando continuamente seus argumentos em bases
científicas: “os historiadores irmãos dizem que aquela cruz que Cristo carregou pesava mais de cento e vinte quilos! Cento e vinte quilos irmãos!”.
Criticava a insuficiência da narrativa, as lacunas do sofrimento não mostrado. Descrevia a coroa de espinhos em todos os seus detalhes, sua origem, o
tipo de planta que lhe deu origem. “Mas entre o filme e a Bíblia irmãos, eu
fico com a Bíblia!”, dizia enfático. Novamente, tornou a refutar o reconhecimento deste dia como o maior da história. Passou, em seguida, a identificálo no episódio da Ressurreição.
Novamente, descreveu-o emotiva e minuciosamente em cada detalhe, para posteriormente negar-lhe a posição de maior dia da História: “Mas
este, irmãos, não foi o maior dia da História. O maior dia da História,
irmãos, o maior dia da História, irmãos, repetia, exaltadamente, será quando as câmeras da rede Globo, do SBT, entrarem por aquelas portas, irmãos,
e não será 60, 70, 80 porcento de crentes não, irmãos, será 100%!!! E eles
não vão encontrar mais ninguém aqui, irmãos, não terá ninguém aqui para
aparecer na reportagem porque vamos estar todos, irmãos, todos nós estaremos ao lado do Senhor, estaremos com ele, irmãos, Aleluia,
Aleluia!!Aleluia!”13
A Ressurreição se transforma aqui num evento mediático maior. Ou
será que o evento mediático se transforma em Ressurreição? Em todo caso,
a aura de que ambos se revestem é destacada pelo Pastor que afirma, emocionado e buscando exaltar o seu público, que a celebridade de todos é um
dos feitos que participa da subida aos céus e da chegada ao Paraíso.
No imaginário do Pastor, a ciência e o progresso como aquisições
mundanas são reconhecidos mas postos no seu devido lugar diante deste
acontecimento maior. Nada se compara à grandeza aos eventos que obrigarão a mídia a se dobrar, quando terá que reconhecer e, em conseqüência,
celebrizar os heróis anônimos da fé que se encontram até agora num estado de quase total invisibilidade, nesta vila “isolada” e de “difícil acesso”
que é Provetá.
No futuro, quando o tempo da subida aos céus chegar, a televisão será
seu único testemunho e nesta condição privilegiada será ela quem anunciará ao
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mundo a importância desta comunidade. A celebridade a ser alcançada por Provetá
não se dissocia pois da condição de crentes e de membros de uma comunidade
“apartada do mundo”. A mídia e a diferença pentecostal se associam para fazer
deste “isolamento” a conquista de visibilidade na esfera pública. O júbilo que
tomou o público na igreja, desconfiamos, deveu-se ao entrelaçamento da subida aos céus com a sua transmissão pela televisão para o mundo. E certamente
foram as duas coisas juntas que transformaram o momento paroxístico da
pregação do Pastor num momento de alegria e choros coletivos na igreja, quando
todos gritavam aleluia, glória a Jesus, e falavam línguas.
O momento maior da vida de todos, de sentido escatológico, se
uniu, pois, a um desejo que possui uma face “terrena” (mas também de
significado religioso) de inserção da igreja na esfera pública e do reconhecimento almejado pela igreja nesta esfera. Este projeto político-religioso,
com efeito, não é da responsabilidade exclusiva da Assembléia de Deus
local. Começou a ser construído ao longo dos anos noventa pelas igrejas
pentecostais no Brasil que buscam, cada vez mais, seguir o exemplo dado
pela Igreja Universal, que transformou a magia dos afro-brasileiros nos
cultos de exorcismo e no milagre cotidiano da sua difusão em escala global,
tendo a televisão e o rádio como os seus veículos mais importantes.14
Destacamos aqui a forma pela qual a mídia é utilizada tanto para construir as modalidades de diferenciação de Provetá recriando-a como um “isolado” como para integrá-la numa narrativa de origem bíblica referida ao juizo
final, tendo a televisão como testemunho. É no espaço eletrônico que a comunidade de Provetá melhor realiza o ideal de sua territorialização. No território apresentado como pertencente à comunidade de crentes, conforme se
vê no programa de Gugu Liberato, não temos na tela planos que destaquem
elementos heterogêneos e conflitivos, mas um modo de vida guiado pelo
Evangelho apresentado por mulheres felizes, abraçando o apresentador de
TV, todos juntos, tomando banho de roupa no mar verde de Provetá... Finalmente, não foi necessário chegar no Juízo Final para a imagem da comunidade de crentes se projetar na mídia nacional.
As trilhas sonoras da igreja e seus paradoxos
Não deixa de ser relativamente recente a explosão da música gospel
no cenário musical brasileiro e contemporâneo. Esta vincula-se ao cresci-
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mento do pentecostalismo e sobretudo as suas novas formas de se relacionar com “o mundo”. Deste fenômeno não estão alheios os provetaenses.
Segundo Dolghie (2004:206), “a hinódia tradicional do protestantismo brasileiro é sempre identificada com a importação dos hinos folclóricos americanos, que aqui foram entendidos e sentidos como um produto
genuinamente sagrado, separado para a adoração a Deus. Contudo, um
tipo de produção independente se fez presente desde os anos 50. Tratavase de corinhos, posteriormente denominados cânticos, usados apenas em
reuniões específicas de jovens, tais como louvorzões, acampamentos e escolas dominicais. Portanto, não havia o reconhecimento litúrgico de tais
cânticos. A tensão dentro do campo religioso se instaurou exatamente na
discussão do que podia ou não ser separado para o ato cúltico de adoração
a Deus. Altamente difundidos por instituições para-eclesiásticas, os “nãohinos” foram, aos poucos, sendo incorporados no culto, de forma sutil e
sempre com resistência.”
Dolghie atribui à Igreja Renascer a canalização desta resistência dos
jovens ao hinário tradicional fundando o primeiro movimento de música
jovem entre as igrejas: “da mesma forma que a Renascer deu ao músico a
possibilidade de profissionalização, deu ao jovem a possibilidade de entretenimento social, o “entretenimento gospel”. Seguindo a tendência de
visibilização social e abandono da atitude ascética e contra-cultural das igrejas
neopentecostais, o jovem cristão buscou, na música gospel, uma interação
com o mundo secular… O roqueiro que se converte na Renascer continua
sendo roqueiro, só que ouve e dança “rock gospel”. Dessa forma, o descontentamento duplo do jovem foi percebido pela Renascer e o gospel se
tornou quase que sinônimo de modernidade e liberdade de estilo” (idem,
p. 210). A música, com efeito, tem servido particularmente aos jovens como
uma forma de abertura para o mundo, para a realização de novas combinações entre o “sagrado” e o “profano”, como destaca Regina Novaes, ao
analisar o hip hop gospel e a proximidade do rap com a cultura evangélica
tal como praticado por grupos de jovens das periferias urbanas15.
A característica da música gospel apontada pelo autor é o fato desta
combinar na mesma música aspectos seculares e sagrados. E isto se faz
associando a qualquer ritmo e melodia, de qualquer gênero musical, letras
“espirituais”. Em Provetá este princípio de estruturação das músicas que
se toca e se canta na igreja encontra-se perfeitamente estabelecido. Nos
cultos, vemos todos os tipos de música sendo cantados e mesmo uma cui-
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dadosa valorização de possíveis cantores de sucesso, pertencentes à comunidade, como uma dupla sertaneja que sempre se apresenta.
A distinção que se opera nos produtos musicais, juntando o que é
do espirito com o que é do mundo, isto é, a letra evangélica com ritmos e
melodias “seculares”, desdobra-se por meio de outra, qual seja, a junção e
a separação entre o que seria próprio de Provetá e o que é “de fora”. Os
ritmos que vêm “de fora” constituem a matéria prima através da qual se
opera as identificações e os conflitos entre as pessoas e as coisas “de dentro”. Estes ritmos e estas melodias que são, ao mesmo tempo, veículos de
mundanidade e de santidade, circundam o espaço comunitário, reforçam e
desfazem fronteiras por meio de seus sons16.
As músicas cantadas na igreja e nas rádios evangélicas são exaustivamente repetidas pelas mulheres em suas casas17, os ritmos que as acompanham também circulam com outras falas. Freqüentemente o que também
se escuta pelo alto falante da igreja é reproduzido nas casas pelas vozes das
mulheres. Algumas, em certos momentos, impõem a sua tonalidade e a sua
interpretação à vizinhança pela força com que louvam Jesus… Estes cantos assim reverberam de diferentes maneiras e permitem entrecruzar seus
sentidos: conectam seus ouvintes e cantores com a estética musical do
momento, permite-lhes acompanhar o percurso das estrelas do rádio e da
televisão e sonhar com o mundo iluminado da tela e do púlpito que eventualmente se transforma em palco (cf.Birman, 2003 e Campos, 1997). Mas
alimentam também os talentos locais: a apresentação de “suas” duplas
sertanejas, de “seus” cantores e de “seus” compositores. De Provetá para o
mundo, para o mundo da mídia e também através da mídia para a comunidade de irmãos. Pela própria expansão pentecostal os cantores de gospel e o seu
público possuem afinidades com um meio evangélico que nem sempre se
constroem por intermédio das igrejas. Não é possível negar que o som cuja
construção independe da igreja, mas participa da “cultura evangélica”, fortemente mediatizada, constitui um elemento essencial para a elaboração de
momentos extraordinários em que a comunidade evangélica de Provetá busca
se efetivar como uma unidade política com expressão terrritorial.
Contudo, o que se passa no interior da igreja, propagado pelo altofalante, não necessariamente tem a eficácia pretendida pelos líderes religiosos. De fora do culto, o entusiasmo dos gritos de aleluia podem servir de
indicador que se encontra próximo o fim da cerimônia - olhando o relógio
se saberá que dentre alguns minutos dezenas de pessoas virão para a praça
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comer bolo, refrigerantes, hamburguers e pizzas. Indica também para casais de namorados que é hora da mocinha voltar para o culto, antes que sua
ausência seja notada pelos seus pais. Marca também o início da festa nos
limites exteriores do território dos crentes, no bar, onde os homens, de
forma um pouco clandestina, vêm tomar uma cerveja, depois de deixarem
suas namoradas em casa.18 Estas formas prosaicas de interpretar as ondas
sonoras que enunciam a presença do Espírito Santo (ou de seus mediadores terrenos) estabelecem um certo ritmo da sociabilidade local e dão a esta
uma marca comum de reconhecimento e de pertencimento à comunidade de
crentes de Provetá. Contudo, outras “comunidades” partilham deste mesmo
espaço, mas ocupam-no de forma diferente, ainda que haja implícita uma
referência a certos valores comuns.
Este som, na sua dimensão física e moral, pretende alcançar, no
pequeno território a que nos referimos, todas as casas e, sobretudo, a
integralidade do espaço geográfico e todos os seus acidentes com o intuito
de fazer destes partes de uma mesma totalidade no plano religioso. Num
certo sentido, o som consegue ultrapassar as barreiras que diferenciam o
espaço social, já que é capaz de atravessar os muros que separam o público
e o privado: acordamos e eventualmente dormimos com a voz do pastor19.
Todos, crentes e não-crentes, são obrigados a ouvi-lo: mesmo nos poucos
bares onde se pode tomar uma cerveja o som proveniente da igreja consegue chegar. Atravessa becos, ruas, chega à praia, ouve-se da ponte, da escola, da pousada, da própria casa, da padaria e dos terrenos baldios onde
namorados se escondem. Atravessa pois ambientes onde os comportamentos se diferenciam bem como os valores morais que os presidem.
Uma relação de exterioridade frente a esta massa sonora cotidiana
indica onde se encontram os seus “outros”, principalmente aqueles que
moram “na costeira”, no Canto do Inferno. A distância do centro geográfico
e político de propagação da fé corresponde assim aos lugares onde este
som é menos audível e pode mais facilmente ser abafado como nos antigos
lugares “contaminados” pela lepra, onde existem bares que vendem álcool
e jovens que se drogam. A distância física da voz do pastor indica, nestes
casos, a sua impertinência para aqueles que o poder de convocação da igreja parece irrisório e que utilizam como contraponto o som de músicas seculares.
Na nossa primeira experiência “no campo” hospedamo-nos nestes
confins, onde o bar e a música nos faziam esquecer os imperativos comuni-
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tários – para nós “estávamos lá” em Proveta – perto da praia, junto de pescadores e de muitas manifestações da vida social “local”. Quando, numa outra
vinda, passamos a ficar “no centro”, isto é, numa casa próxima à igreja (e da
massa sonora que esta busca expandir) sentimos intensamente a diferença
moral e social com que se definiam os lugares. O caráter imperativo da voz
do pastor passou a ser melhor apreendido nas suas nuances; os chamados,
mais audíveis; e o ritmo do cotidiano mais claramente pautado por estas
diferentes sonoridades provenientes dos alto-falantes da igreja.
Mas duas coisas se destacaram nesta nova experiência: a primeira,
nós mesmos começamos a viver estas sonoridades como uma forma de
definição social do território onde nos encontrávamos; a segunda, embora
se pretenda abolir as barreiras sociais pela difusão do som, estas estão longe de serem anuladas. Embora a voz do pastor seja quase sempre audível,
dificilmente ela realiza o que seria a sua pretensão maior: fazer coincidir
plenamente a condição de morador de Provetá com a condição de crente.
Esta dupla definição do território, como vemos, não se recobre inteiramente: os espaços sonoros tanto reafirmam a geografia religiosa local como
desafiam os limites que são propostos pela igreja.
As marcas que indicam pertencimento à comunidade não podem
ser inteiramente resumidas a uma definição das suas fronteiras dadas pelo
alcance do som no seu território. O próprio som se apresenta através de
uma conjunção de elementos contraditórios. No entanto, a propagação das
ondas sonoras de certo modo cria um espaço territorial imaginado que
pode ser percebido por alguns como homogêneo. Promove uma certa regularidade da vida social, e um reconhecimento de um espaço comum a
partir da igreja. A “voz” do pastor fala pelo alto-falante todos os dias e o
modo de falar, seu timbre, melodia, suas pausas e inflexões são intimamente conhecidas por todos, inclusive por nós. A “voz” não precisa se apresentar, aliás, nunca ouvimos o Pastor enunciar a sua presença – é um dado
naturalizado o reconhecimento imediato da voz e da autoridade do seu
emissor. Esta “voz” também se manifesta a cada vez que tem uma “confusão” promovida por indivíduos “desviados”. E o principal desvio, neste
caso, é fazer bagunça na praça, é falar alto perto da casa do pastor e fazê-lo
(bem como os demais) ouvir impropriedades – que desrespeitam a igreja e
os bons costumes.
Assim, há uma forma peculiar de expor as fraturas sociais locais que
se passa também por intermédio de manifestações sonoras. Aqueles que
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gritam nas madrugadas são os que dançam à noite ao som de samba, forró
e funk proibidão nas festas do Canto do Inferno. Na grande maioria pescadores jovens que buscam desafiar a autoridade da igreja a que também pertencem pelos seus laços familiares, sem ousar fazê-lo em plena luz do dia e
nos seus lugares centrais. Quando passam pelo “centro” caminham em
silêncio e escutam, como todos os outros, os cânticos evangélicos e os
chamados da igreja. Alguns, visivelmente incomodados, evitam a praça e
buscam contorná-la, passando por becos e cantos. Os outros, filhos da
igreja, eventualmente “afastados”, aprendizes de canto, de violão e de teclado, fazem rodinhas de violão na praça em noites de fim de semana, onde
tocam e cantam “gospel”. Vez por outra se escuta uma música de um cantor “não-evangélico”, vinda de um lugar difícil de identificar.
A efetivação da comunidade de crentes é pois alimentada pelos ritmos
com que crescem as igrejas pentecostais no país, e acompanha passo a
passo, sobretudo pelos seus jovens, a expansão desta cultura gospel que
contribui, decisivamente, para estabelecer tanto suas fronteiras quanto para
integrar Provetá na comunidade evangélica, esta bem maior e sem referentes territoriais precisos. Integração que, como vimos, é fortemente investida
no plano político pelo Estado através dos seus governos municipal e estadual. Os dispositivos através dos quais se busca a territorialização do poder
evangélico, contudo, fazem parte de movimentos cuja natureza e diversidade apontam também para caminhos de dispersão desta unidade e
homogeneidade desejada. A comunidade de crentes de Provetá talvez se
perceba menos pousada no rochedo de Cristo e mais situada no ponto de
encontro entre as rochas cujo equilíbrio fornecido pela interpretação bíblica é reconhecidamente precário.
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PATRICIA BIRMAN
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Notas
Este texto foi originalmente apresentado no Grupo de trabalho “Estética, consumo e
diversão”, coordenado por Leila Amaral e Eloisa Martins na XIII Jornadas da Associação
de Cientistas Sociais da Religião do Mercosul, em Porto Alegre, setembro de 2005. Agradeço às duas coordenadoras o convite e também os comentários feitos à apresentação. A sua
elaboração contou com a participação de André Bakker, bolsista de iniciação científica.
Eduardo Pereira e Vicente Cretton contribuíram também, igualmente, como bolsistas de
iniciação científica, durante o último período de realização do trabalho de campo. Agradeço
a Marc Piault, que participa também deste projeto, pelos comentários sempre pertinentes e
a Rosane Prado pela sua leitura crítica cuidadosa e gentil.
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Provetá é, pois, o nome da pequena vila de três mil habitantes que se situa numa enseada que
lhe dá limites geográficos “naturais”. Estes limites “naturais” são historicamente relacionados
a outros, referentes à Ilha Grande na sua totalidade, onde esta “comunidade de crentes” se
encontra. O “isolamento” da Ilha Grande foi garantido durante muito tempo pela existência
do presídio, cuja destruição na década de noventa “abriu” a Ilha para o turismo e também para
movimentos utópicos relacionados à construção de um outro isolado, este de natureza
ambiental. A comunidade de crentes guarda como especificidade o fato de até agora se encontrar relativamente à margem do movimento turístico e também o fato de não ter sido atingida
pelas severas restrições ambientais que regem a apropriação de outros espaços na Ilha. Somente Provetá guarda a condição de uma vila cujos moradores são essencialmente “nativos”,
que vivem da pesca e não se encontram num lugar de subalternidade na coletividade a que
pertencem. A imagem difundida e cultivada pela igreja e pela mídia da vila como uma “comunidade de crentes” contribui para a idéia de que lá impera um isolamento primordial ainda
“preservado” e garantido pelo “fanatismo” do seu pastor.
3
Para o fortalecimento de suas fronteiras, é preciso reconhecer o quanto tem sido importante no Rio de Janeiro o fato do governo do estado ser dirigido por pessoas que afirmam
publicamente uma identidade evangélica e se estruturam politicamente também com base
neste pertencimento religioso. Cabe assinalar que há duas legislaturas que o governo do Rio
de Janeiro é ocupado por pessoas que fazem do pertencimento evangélico um instrumento
importante de atuação política. O município onde se situa esta comunidade da Ilha Grande
atualmente tem um prefeito também evangélico. Os dirigentes locais da igreja se orgulham
do acesso direto que possuem a estes governantes bem como do tratamento diferencial que
usufrem da parte destes.
4
A Ilha Grande, cujo passado foi essencialmente marcado por histórias de cárcere – através
do seu presídio que abrigou presos comuns e presos políticos como Graciliano Ramos,
Madame Satã e os precursores do Comando Vermelho, hoje foi transformada num pólo
turístico importante do estado do Rio além de se constituir como uma área de preservação
ambiental. Tanto o turismo quanto o ambientalismo oficial e oficioso contribuíram para
expropriar de suas terras e praias os habitantes – auto-designados como “nativos”, antigos
pescadores, convertidos na sua maioria em “crentes” e em mão-de-obra das pousadas que
pipocaram em algumas praias a partir dos anos noventa. Em Provetá a oposição e mesmo o
antagonismo entre “nativos” e “turistas/ambientalistas” parece adquirir um sentido mais
radical: os primeiros se distinguem dos segundos por um traço que parece sintetizar a profunda diferença que separa uns dos outros: a crença evangélica (cf. o artigo de Rosane
Prado (2003) que explora esta face pregnante do antagonismo entre os interesses dos grupos ambientalistas e turísticos e os grupos de moradores da ilha.
5
Ficam ancorados na enseada habitualmente uns quarenta barcos de pesca. Alguns poucos
pertencem a pessoas do lugar, a grande maioria é de empresários da pesca em Angra que
empregam os pescadores da Ilha e confiam os seus barcos aos “proeiros” (chefes da embarcação e responsáveis pela pesca) locais.
6
Para compreender o desenvolvimento do pentecostalismo no Brasil, ver, entre outros,
Soares (1992), Freston (1994), Mariz (1999), Giumbeli (2002) e Mariano (1996).
7
Cf. Meyer e os seus trabalhos sobre a mídia cinematográfica como constitutiva da
modernidade e do seu imaginário religioso em Ghana.
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A chegada da luz elétrica na vila fez parte da política do governo do estado do Rio, que
privilegiou a comunidade evangélica e o trabalho de mediação feito por seus pastores.
9
Ver a descrição de André Bakker deste programa televisivo a respeito de Provetá e também a análise que faz da narrativa de um dos opositores da igreja que reivindica-se como
aquele que trouxe o progresso e a televisão para a vila.
10
O pentecostalismo na sociedade brasileira atual apresenta como novidade o fato de ter
criado na esfera pública novas formas de intervenção midiáticas, o que lhe possibilitou
explorar lugares sociais antes indisponíveis para as camadas sociais que se converteram a
este culto. Esta presença midiática, por sua vez, se estrutura por meio de intervenções cujo
poder sobrenatural reivindicado pelos testemunhos, altera não somente o lugar dos
pentecostais na política bem como do religioso no espaço público. Para uma análise da
relação entre mídia e pentecostalismo, ver Campos (1999), Fonseca (2000), Mariz (1998 e
2003) e Birman (2003 e 2005).
11
Para uma análise detalhada das controvérsias provocadas pelo crescimento do
pentecostalismo no país, ver Emerson Giumbelli (2002) e para uma análise do grande evento mediático que foi o chute dado por um pastor da IURD na imagem de Nossa Senhora da
Aparecida na televisão, Giumbelli (2003). Ver Mariz (1999), para uma análise da literatura
sobre a “batalha espiritual” inaugurada pelos pentecostais no país.
12
Bakker, André. Relatório do trabalho de campo, agosto, 2005.
13
Notas de caderno de campo de André Bakker. Op.cit.
14
Cf. Fonseca (2000) e Mariz (1998 e 2003), para uma análise dos formatos evangélicos dos
programas de tv.
15
A dinâmica que assim se cria, envolvendo realimentações recíprocas entre cultura religiosa evangélica e as lógicas de territorialização da violência é destacada por Novaes: “Entretanto, ainda que o movimento hip-hop não seja religioso, ele também expressa a dinâmica do campo religioso
brasileiro. A insistência nas referências bíblicas seria a mesma sem as centenas de templos pentecostais que
proliferam nas periferias, nas favelas brasileiras? Hoje não é possível descrever a paisagem destas áreas
pobres e violentas sem falar das inúmeras igrejas evangélicas que se fazem presentes naqueles territórios”.
16
Num trabalho recente, Martijn Oosterban (2006) analisa de forma rica e minuciosa as
relações sonoras no interior de uma comunidade de favela no Rio de Janeiro.
17
Uma jovem cuja família é das mais importantes em Provetá fez para nós uma pequena
lista dos seus cantores gospel preferidos. Nesta lista vemos reproduzidos, com efeito, aqueles que atualmente fazem mais sucesso nos programas de rádio evangélicos, conforme pudemos verificar pela internet, nos vários sites dedicados à música gospel.
18
Existem somente três bares em Provetá. Destes, dois se situam no Canto do Inferno e um
único se encontra mais próximo do centro, numa ruela lateral.
19
Um dos obstáculos maiores para o sucesso do hotel que recentemente foi construído na
praça, segundo o seu proprietário, é o fato de que os futuros hóspedes terão forçosamente
de conviver com as emissões sonoras da igreja da manhã à noite, além do fato de não terem
facilmente acesso a bebida neste local.
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RELIGIÃO E TRANSFORMAÇÕES
URBANAS EM RECIFE, BRASIL
Marjo de Theije
Vrije Universiteit Amsterdam
Resumo: A paisagem urbana foi palco de muitas transformações religiosas importantes nas últimas décadas. Urbanização e diversificação religiosa aconteceram
juntas, e os pesquisadores de religião apontaram a migração de milhares de pessoas para as cidades como a causa para o crescimento de novos grupos religiosos e
identidades religiosas no ambiente urbano, para a emancipação das religiões tradicionais, e para o pluralismo no campo religioso como um todo. Como outras
cidades Brasileiras, Recife viu muitos processos de significação religiosa e formação de identidades inspirada pela religião. Onde antes dominava o catolicismo
romano, existe agora uma variedade de religiões, de anglicanismo por
pentecostalismo para mormonismo, enquanto os cultos indígenas e afro-brasileiros que viviam escondidos antes apareceram no aberto. Estas transformações religiosas deveriam ser incluídas nas análises da vida urbana contemporânea. Neste
trabalho, o papel da religião na pluralização cultural no contexto urbano será explorado por meio de três episódios diferentes, nos quais focalizarei a relação entre
paisagem urbana, vidas urbanas, e a significação e prática religiosa de populações
urbanas diferentes. A ênfase estará em aspectos visuais da presença religiosa no
urbano, que relacionarei aos processos de construção de identidade e formação de
grupos religiosos.
Palavras-chave: Cidade, religião, paisagem religiosa, pluralização religiosa.
Abstract: The urban landscape is the stage of many significant religious
transformations in recent decades. Urbanization and religious diversification went
hand in hand, and the researchers on religion and religious movements accredited
the migration to the cities of millions of poor peasants in Latin America as an
important contribution to the growth of new religious groups and identities in the
urban environment, the increasing emancipation of old religions, and a
diversification of the religious field as a whole. Like other Brazilian cities, Recife
has witnessed many processes of religious meaning making and religiously inspired
identity formation. Where Roman Catholicism once predominated, there is now a
rich variety of religions, ranging from Anglicanism through Pentecostalism to
Mormonism, while the previously hidden urban indigenous and Afro-Brazilian
cults – such as Catimbó and Xangó – have now emerged into the open. Such
religious transformations are worth including in analyses of contemporary urban
life. In the urban context of increasing cultural pluralization, religion plays multiple
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roles. These roles and the development of religion in this city, are explored by
recounting three different episodes of the connection between the urban landscape,
urban lives, and the religious meaning making and practices of different urban
populations, with a focus on the visual aspects of the religious presence in the
urban landscape, and processes of identity construction.
Keywords: City, religion, religious landscape, religious pluralism.
Introdução
A paisagem urbana é o palco no qual muitas transformações religiosas significativas se desenrolaram nas últimas décadas. A urbanização e a
diversificação religiosa andaram de mãos dadas, os pesquisadores da religião e dos movimentos religiosos apontaram a migração de milhões de
camponeses pobres para as cidades na América Latina como uma importante contribuição para o crescimento de novos grupos religiosos e identidades no ambiente urbano. O mesmo processo ocorreu na África e na
Ásia, onde a esfera do religioso diversificou-se rapidamente nas últimas
décadas, acompanhando o processo de modernização e industrialização.
Entretanto, no campo em expansão da antropologia urbana – cujo foco é a
antropologia da cidade moderna, do espaço/local urbano – a presença física das manifestações e expressões religiosas geralmente não recebe muita
atenção (Low, 1996, 1999b; Sanjek, 1990). Isso é algo notável, já que as
edificações e expressões religiosas são assaz visíveis, tanto quanto audíveis,
na vida moderna contemporânea.
Mesmo um breve tour pela cidade do Recife já revela o papel dominante de tais edificações na ocupação do espaço urbano, resultado do processo de diversificação religiosa. A praça principal do bairro operário Alto
José do Pino, em uma noite qualquer, é uma boa ilustração disso: enquanto
ônibus vão e voltam do terminal da linha viária do Alto, homens jogam
dominó na rua ao alcance auditivo da música produzida pelos católicos
carismáticos, na capela de José Operário na parte alta da praça, e pelos
crentes da “Deus é Amor”, em um prédio bem em frente à capela católica. A
essa cacofonia soma-se ainda a música oriunda de pequenos bares ao redor
da praça, alguns dos quais famosos pela versão local do reggae. Mas não é
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 63-84, outubro de 2006.
RELIGIÃO E TRANSFORMAÇÕES URBANAS EM RECIFE, BRASIL
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apenas nos bairros populares que a presença da religião se faz tão dominante. Todo sábado à noite, nas imediações do bairro de classe média Casa
Forte, a missa católica na antiga igreja da praça principal causa engarrafamentos, e geralmente alguns dos freqüentadores têm de acompanhar a celebração da calçada, por falta de assentos suficientes na parte interna. Da
bela praça, pode-se entrever a recentemente construída Igreja de Jesus Cristo
dos Santos dos Últimos Dias – outro prédio característico do bairro. Vagando pelas ruas de Casa Forte encontram-se muitas outras, embora mais
modestas, edificações religiosas.
A razão para a falta de atenção acadêmica aos aspectos religiosos da
cidade, na antropologia urbana, remete-se, provavelmente, à pressuposição
equivocadamente generalizada de que a modernidade acarreta um processo de secularização, e a urbanização é o caminho que leva ao fim da religião.
A demolição de igrejas nas últimas décadas em muitas cidades européias
demonstraria que os cidadãos da sociedade ocidental têm tido cada vez
menos interesse na cristandade institucionalizada. A assunção oculta é,
entretanto, evidentemente uma falha teórica, conforme demonstrado também por estudos sobre a sociedade norte-americana, onde a religião nunca
perdeu seu papel importante (ver, p.ex, Warner, 1993). Em muitas sociedades, a modernidade parece ter tido outras conseqüências religiosas. A urbanização do Brasil foi acompanhada pela fundação de muitos novos grupos
religiosos, por uma emancipação crescente de antigas religiões e pela diversificação do campo religioso como um todo. Assim como outras cidades
brasileiras, Recife testemunhou vários processos de produção-de-sentido
religioso e de formação de identidades de inspiração religiosa. Onde predominara o catolicismo romano, há hoje uma rica variedade de religiões, do
anglicanismo ao mormonismo passando pelo pentecostalismo, ao mesmo
tempo em que cultos urbanos indígenas e afro-brasileiros – tais como o
Catimbó e o Xangô –, anteriormente escondidos, emergem para o espaço
aberto. Tais transformações religiosas são, sem dúvida, dignas de serem
incluídas nas análises da vida urbana contemporânea.
Assim, como poderíamos explicar a posição marginalizada da religião na antropologia urbana? Tratar-se-ia da perspectiva secularizada do
pesquisador? Dada a proeminência da religião na paisagem urbana, a única
explicação convincente para a subestimação de seu papel na antropologia
urbana seria uma certa predisposição da pesquisa antropológica urbana. As
edificações, as festas e os símbolos religiosos estavam lá, mas por muitas
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MARJO DE THEIJE
décadas os pesquisadores simplesmente não os consideraram interessantes. Apenas recentemente a construção de mesquitas, templos hindus e
novos locais de encontro religiosos em geral – o que é em parte resultado
das migrações globais contemporâneas e seus subseqüentes padrões de
assentamento na Europa e América do Norte metropolitanas – trouxe à
tona o entendimento de que a religião contemporânea é um importante
elemento componente da cidade (Guest, 2003; Hervieu-Léger, 2002).
Prestar a devida atenção às vidas religiosas dos habitantes da cidade,
aos símbolos e relações sociais manifestados nas atividades religiosas da
população urbana – e aos significados que conferem à religião e aos espaços urbanos que lhe servem de contexto; eis aí um cuidado antropológico
que indubitavelmente iluminaria as reflexões acerca dos processos de contestação, identificação e simbolização na paisagem urbana. O presente artigo pretende mostrar que a construção religiosa do lugar e do espaço urbano é um elemento importante nas vidas dos habitantes do Recife, a quarta
maior cidade do Brasil, com uma população em torno de meio milhão de
pessoas1. No contexto urbano da crescente pluralização cultural, a religião
desempenha múltiplos papéis. Pretendo, aqui, explorar as diversas implicações desses papéis, bem como o desenvolvimento da religião nessa cidade,
através da narrativa de três episódios diferentes acerca da conexão entre a
paisagem urbana, vidas urbanas e as práticas e produção de sentido religiosos
por diferentes populações urbanas – focalizando os aspectos visuais da presença religiosa na paisagem urbana, os quais serão relacionados aos processos de construção de identidade e formação de grupo religioso. A seção
seguinte apresentará algumas considerações gerais sobre religião e a cidade.
Religião e cidade
Em larga medida, a religião deve sua visibilidade pública na cidade
às suas edificações. Em Recife, os monumentos católicos no antigo centro
da cidade testemunham uma longa e rica história de devoção e dominação.
Algumas dessas igrejas despertam no visitante de hoje a mesma estupefação e admiração que certamente provocaram há três séculos. No entanto,
sabemos que igrejas, templos e outros lugares religiosos estão constantemente sendo construídos na cidade. Se é fato que não há dados quantitativos sobre a fundação das igrejas em Recife, pode-se presumir que a situa-
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RELIGIÃO E TRANSFORMAÇÕES URBANAS EM RECIFE, BRASIL
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ção é semelhante àquela do Rio de Janeiro, onde, um tempo atrás, cinco
novas igrejas pentecostais eram fundadas a cada semana2. O resultado é
altamente visível: aonde quer que se vá, vêem-se as edificações religiosas,
lugares onde as comunidades religiosas se reúnem, onde o divino está próximo do humano, onde a adoração e ritos de passagem do ciclo de vida têm
lugar. A esse respeito, as edificações religiosas podem ser vistas como
marcadores de uma esfera específica da vida urbana; esses marcadores são
muito mais importantes do que geralmente se imagina, por também deterem um valor simbólico. As edificações religiosas também podem ser percebidas como obras-de-arte, a serem admiradas por sua majestade
arquitetural, ou pela beleza de seus ornamentos.
Tais construções são lugares reconhecíveis dentro da cidade, destacando-se de outros lugares – exibem uma conspicuidade a qual, no entanto, não necessariamente inspira exotismo ou reverência. Na vida diurna da
cidade, templos e igrejas podem, por exemplo, servir como pontos de referência utilizados pelas pessoas para orientar a si mesmas e a outros ao movimentarem-se pela cidade (“quando chegar à igreja atrás dos semáforos,
vire à esquerda, siga em frente e depois vire à direita após a Igreja Universal
do Reino de Deus). Tanto as igrejas católicas quanto protestantes, tradicionais ou pentecostais, podem ser usadas para fins de orientação. No entanto, há exceções: os templos afro-brasileiros, por exemplo, não são geralmente tão visíveis. Isso se deve ao caráter singular do xangô, da umbanda e
do candomblé frente às religiões cristãs. A ausência de pontos de referência afro-brasileiros na paisagem urbana da maior parte das cidades brasileiras3 indica que essas religiões são mais privadas, secretas e muito menos
públicas do que o catolicismo ou o protestantismo. Isso remete ao desenvolvimento histórico dessas religiões na sociedade brasileira: as religiões
afro-brasileiras formaram-se sob repressão, e não tentaram competir com
o catolicismo enquanto religião dominante do país. Até os anos 50, seus
terreiros estiveram sujeitos a perseguição e controle policial. Embora a proibição tenha cessado, elas permanecem em edificações geralmente simples,
freqüentemente localizadas em bairros mais remotos, de classe baixa, do
Recife, onde por tanto tempo se mantiveram escondidas. Até mesmo o
famoso templo do Pai Edu, na parte velha da cidade de Olinda, é uma
edificação modesta, reconhecível apenas aos que sabem de antemão sua
localização. De toda forma, não há como comparar esse low profile às muitas
igrejas católicas barrocas que pairam sobre a cidade nas mesmas colinas.
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 63-84, outubro de 2006.
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A religião foi, assim, um divisor primário do espaço e lugar na cidade do século XX, com o catolicismo monopolizando a marcação religiosa
do espaço urbano. No decorrer do século XX, entretanto, esse monopólio
foi quebrado pelas igrejas protestantes construídas nos bairros de classe
média, e posteriormente pelos pequenos templos de grupos pentecostais,
tais como “Assembléia de Deus” e “Brasil para Cristo”, em bairros de classe operária. É claro que o poder econômico das elites influenciou o espaço
urbano muito mais do que as pessoas pobres o fizeram: as primeiras vêm
construindo igrejas católicas desde os tempos coloniais, estando ainda predominantemente conectadas ao catolicismo. A classe média emergente nas
cidades brasileiras na primeira metade do século XX aliou-se ao catolicismo (Owensby, 1999), e de 1930 em diante a Igreja buscou a participação
das classes média e alta no movimento Ação Católica, organizando eventos
tais como Congressos Eucarísticos (Theije, 1999a, 2002). Entre muitas outras
coisas, a religião pode ser entendida como oferecendo identidade às pessoas na cidade. As edificações e outros aspectos visíveis tornam-se, assim,
representações dessa identidade.
De forma crescente, o catolicismo teve de abandonar sua posição
dominante: no Recife contemporâneo, assim como em muitas outras cidades brasileiras, outras religiões construíram igrejas em lugares proeminentes, tais como em importantes avenidas, ou em grandes prédios, como cinemas. Foi notavelmente a Igreja Universal do Reino de Deus aquela que
recentemente mais visivelmente contestou a paisagem urbana e modificou
o uso do espaço para fins religiosos. Não é preciso dizer que essa contestação do espaço simboliza também a contestação dos seguidores da igreja, ao
mesmo tempo em que é um meio de atrair mais fiéis. Pontos de referência
urbanos, tais como templos, não são neutros, mas antes, estruturas às quais
as pessoas associam emoções, conferem sentido, e que podem desempenhar papéis cruciais na formação de identidades tanto individuais quanto
coletivas. Um elemento importante quanto ao uso do espaço urbano por
grupos religiosos é a competição entre eles. A construção de uma igreja
impressionante é uma declaração pública não apenas direcionada aos fiéis
e aos não-crentes, mas também aos rivais no mercado religioso. A religião
assume um papel importante na contestação do espaço urbano.
Não apenas as edificações marcam o espaço religioso na cidade:
para onde quer que se olhe, vêem-se também textos religiosos – de decorações artísticas em caminhões, pedindo a bênção de Deus, a pichações pro-
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clamando que não há vida sem crença, ou um outdoor para uma loja no
centro aludindo a santos populares4. Em qualquer conversa entreouvida
testemunha-se referências a seres de outro mundo, do casual “se Deus
quiser” a textos bíblicos recitados nas esquinas das ruas por pregadores
evangélicos. Essas referências também podem ser vistas sob forma de gestos, quando as pessoas fazem o sinal da cruz ao passarem por uma igreja
católica. Ainda uma outra maneira na qual a demarcação do espaço urbano
é estabelecida é através do barulho. A cacofonia ouvida na praça de Alto
José do Pino não é de forma alguma excepcional. Freqüentemente, carros
de som ziguezagueiam pelas ruas da cidade, convidando as pessoas a comparecerem a uma reunião religiosa, ou simplesmente disseminando as palavras de Deus. A religião deixa, assim, suas marcas no espaço e lugar urbano
de várias maneiras. As pessoas usam marcadores – particularmente
marcadores religiosos – para ajudar a ordenar seu ambiente e para localizarem-se em um espaço especial e sagrado. Elementos e rituais religiosos e
igrejas também podem se tornar símbolos na construção das relações sociais entre crentes e não-crentes.
Lugares sagrados que organizaram a cidade
Até tardiamente no século XX, o catolicismo dominou a demarcação religiosa do espaço urbano e monopolizou as marcações sociais nas
vidas das pessoas e na vida pública. Os brasileiros começaram a construir
lugares sagrados desde os primeiros dias da colonização. Há uma ligação
estreita entre os desenvolvimentos religiosos no Brasil e na vida citadina.
No desenvolvimento histórico da vida religiosa no Brasil, as confrarias urbanas foram de grande importância, uma vez que a Igreja Católica
institucional era parcamente organizada por volta dos séculos XVI e XVII
(Theije, 1990). Na época da ocupação holandesa no nordeste do Brasil, o
catolicismo no Recife e em tantas outras cidades brasileiras estava largamente organizado em confrarias religiosas que estruturavam não apenas o
calendário das festas de seus santos padroeiros, mas também a paisagem
urbana através da construção de igrejas (Mello, 1987 Boxer, 1993).
A maior parte da beleza barroca ainda presente no Recife foi
construída pelos fiéis. A Igreja Católica, como disse acima, era parcamente
estruturada: o catolicismo estabeleceu-se amplamente no país muito mais
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de “baixo para cima” do que de “cima para baixo”. Organizada em irmandades, confrarias e terceiras ordens, nos tempos coloniais a laicidade tomava conta da infra-estrutura religiosa. Elas construíam capelas e igrejas, organizavam festas e encarregavam-se dos funerais de seus irmãos e irmãs.
Essas associações laicas ordenavam não apenas a vida religiosa dos primeiros brasileiros, mas também a vida social das cidades. Cada grupo social
tinha sua própria irmandade. A Terceira Ordem de São Francisco uniu a
elite, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário uniu os escravos, e para
todos os status entre esses dois extremos havia uma irmandade, confraria
ou terceira ordem particular (Theije, 1990). Os cidadãos aderiam ao grupo
religioso que representasse sua posição social no contexto urbano. Embora o catolicismo fosse a religião dominante, ele tinha de ser internamente
diverso de modo a se adequar às necessidades dos fiéis e construir uma
sociedade organizada destacada do caos dos primórdios da colonização.
Assim, o catolicismo representava unidade e variedade, e oferecia identificação para todos.
O catolicismo continuou a ser a base comum para muitas atividades
religiosas até tardiamente no século XX. As igrejas católicas seiscentistas e
setecentistas do Recife são hoje grandes atrações turísticas; por exemplo, a
capela dourada da Terceira Ordem de São Francisco é o ponto alto de
qualquer excursão pelo centro da cidade. E, de fato, ainda hoje essas igrejas
servem como foco e pontos de demarcação da religiosidade urbana. Os turistas podem apenas visitar as igrejas, mas muitos nativos ainda vão a elas
buscar curas e milagres. Os inúmeros ex-votos e pedidos nos altares dos
santos evidenciam essa busca por sentido religioso e eventos extraordinários.
A festa da santa padroeira do Recife – Nossa Senhora do Carmo –
em 16 de julho ilustra os muitos aspectos da religião na cidade. As celebrações começam uma semana antes, mas o ponto alto é no dia 16, quando, a
partir das cinco horas da manhã, uma missa é celebrada a cada hora. Às três
horas da tarde, uma missa é celebrada em frente à basílica, após a qual uma
longa procissão carregando a imagem da santa toma seu rumo pelas ruas
do centro da cidade. Dezenas de milhares de recifenses participam desses
atos de devoção. Segundo o antropólogo e frade carmelita Frei Tito Figuerôa
de Medeiros (Medeiros, 1990), a festa representa a combinação de diversas
celebrações: é católica, no sentido em que está conectada à Igreja Católica
universal; é afro-brasileira, porque é a festa de Oxum, a deusa da fertilidade, prosperidade (entre outras coisas), sincretizada com Nossa Senhora do
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Carmo em Recife; é elitista, porque as elites políticas e econômicas locais e
regionais participam dela, assim como o fizeram os ricos que financiaram
festividades desde os primórdios da colonização; é a festa dos “donos” do
santo, os frades do Carmo e a Ordem Terceira do Carmo, os principais
organizadores da festa; por fim, é uma festa urbana, celebrada no centro
comercial da cidade. Ela reúne os devotos de toda a cidade, das favelas
suburbanas e até mesmo de estados vizinhos. As lojas fecham nesse dia (é
um feriado oficial local), mas os vendedores de rua estão lá, vendendo
flores amarelas (amarelo é a cor tanto de Nossa Senhora do Carmo quanto
de Oxum, em Recife), cachorros-quentes, pipoca, fogos de artifício e todo
o tipo de bebidas e artigos religiosos. A praça em frente à igreja e as ruas
vizinhas tornam-se uma combinação de parque de diversões e feira, e a
avenida principal é fechada ao tráfego (Medeiros, 1990, p. 31.).
Na última década, o antigo centro do Recife vem sofrendo um processo de “revitalização”, e seus usos e significados na vida urbana estão
mudando (Leite, 2002). Embora a festa tenha sofrido consideráveis alterações através dos anos, ela manteve, contudo, em grande medida, suas formas e conteúdos rituais característicos. A democratização do catolicismo
marginalizou as celebrações elitistas para Nossa Senhora do Carmo e permitiu às classes mais baixas participarem nas celebrações da Igreja. A visão
hierárquica da sociedade, por séculos inerente às festividades, foi virada de
ponta-cabeça, como resultado das novas interpretações ideológicas da fé
católica, as quais, baseadas em uma teologia da libertação, contestaram os
velhos costumes. O banquete no convento, tradicionalmente dedicado às
elites, foi substituído por um almoço de confraternização oferecido a todos aqueles que participam na organização da festa, aos bispos e padres
que co-celebram as missas, aos amigos e patrocinadores do convento e aos
membros dos corais (Medeiros, 1990, p. 32.). Assim, a relação entre a cidade e a festa católica mudou, embora uma grande parcela dos residentes
continue identificando-a com Nossa Senhora do Carmo, mantendo sua
posição como santa padroeira da cidade.
No entanto, o impacto da festa junto aos habitantes do Recife é
indiscutivelmente menor do que costumava ser. Aos que não vão ao centro
da cidade, o dia santo de Nossa Senhora do Carmo pode passar despercebido. Apesar disso, a festa continua a ser bastante visível, por causa do
fechamento de comércio, escolas, bancos e serviço público no aniversário
da santa, e também por conta da extensa cobertura que as comemorações
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recebem dos jornais, televisão e estações de rádio locais. A festa católica
também remete a uma noção generalizada de religião a qual parece ser
compartilhada pela maioria dos recifenses, no mínimo porque é esse catolicismo que define parte do calendário da vida na cidade. Viver em Recife
também significa identificar-se com Nossa Senhora do Carmo.
Mas, como indiquei acima, a vida na cidade tornou-se cada vez mais
complexa, e as opções religiosas cresceram tremendamente. Embora o catolicismo continue a ser o maior organizador da vida pública, ele certamente não é mais o único a marcar de forma visível a paisagem urbana e as
vidas dos recifenses5. Outras opções religiosas mais ou menos organizadas
estão continuamente se tornando disponíveis para eles, um processo que
teve sua contrapartida na paisagem urbana, algo que pode ser ilustrado pela
história de uma proeminente família local e sua mansão em Casa Forte.
A pluralização do espaço religioso
Quem chega a Casa Forte, vindo de Madalena (bairro vizinho), e
atravessa a ponte do supermercado Carrefour, tem a atenção inevitavelmente capturada por uma imensa igreja de mármore coroada por um anjo
dourado resplandecente à luz do sol6. Esse templo, inaugurado em 2001,
domina a silhueta arquitetônica não apenas do ponto de vista de quem
cruza a ponte, mas também daquele de muitos dos habitantes dos novos
apartamentos dos prédios construídos na vizinhança nos últimos dez anos.
Apenas recentemente o terreno no qual a igreja foi construída tornou-se
solo religioso.
Casa Forte é um bairro residencial – construído no lugar de um
engenho de açúcar abandonado – fundado nos séculos XIX e (começo do)
XX, quando a sociedade cujas raízes fincavam-se na escravidão e nas
monoculturas de açúcar deteriorava. O engenho de açúcar, por sua vez, foi
fundado no século XVI, e as casas e a capela localizavam-se no lugar que
hoje é chamado Praça de Casa Forte. O nome Casa Forte se refere a uma
batalha ocorrida em 1645, quando um batalhão de soldados holandeses,
que ocuparam a principal casa do povoado, mantendo várias mulheres como
reféns, foram capturados pelo exército luso-brasileiro (Pereira Da Costa,
2001). No século XIX, os engenhos de açúcar nas vizinhanças do centro
de Recife foram abandonados e substituídos por pequenas fazendas. A
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urbanização dessa área não demorou muito para concretizar-se, uma vez
que era conhecida por seus ares saudáveis e por suas águas limpas extraídas
do Rio Capibaribe — dentro de poucas décadas as pequenas fazendas haviam se tornado mansões. Hoje, na virada do século XXI, Casa Forte é um
bairro de classe média, com grandes prédios residenciais, os quais vão progressivamente substituindo as mansões do século XIX e começo do século
XX, extinguindo também o verde que caracteristicamente lhes cercava.
A família de minha informante – chamá-la-ei de os “Cardoso” – era
proprietária de uma dessas mansões desde 1926. Àquela época, a área quase não era considerada urbana. A maioria dos habitantes de Casa Forte
advinha de famílias tradicionais de plantadores de cana-de-açúcar (Reesink,
2003). Ao contrário dessas famílias tradicionais, os Cardoso, contudo, descendiam mais de uma elite intelectual: seus membros eram ativos na política e lecionavam direito na universidade. Mas, assim como seus vizinhos, os
Cardoso tinham uma casa grande com várias dependências em seu sítio.
Por um pequeno período, três gerações da família viveram na casa, e a
partir do começo dos anos 30, após um casal se mudar pela primeira vez
para o Rio de Janeiro, um de seus filhos, com a esposa e os quatro filhos,
além de vários outros membros agregados da família, voltaram para viver
lá. A família de um ex-trabalhador de uma plantação de fora da cidade vivia
nas dependências. Havia um imenso jardim, com muitas árvores e uma
pequena horta. Era como uma casa de campo, e beirava o Rio Capibaribe7.
A casa dos Cardoso tinha uma – o que chamava – “sala dos santos”,
com anjos pintados nas paredes8. Havia também um santuário móvel, onde
imagens de santos eram guardadas. É ainda muito comum entre famílias
católicas ter um santuário em casa. Isso não quer dizer que todos os membros da família fossem católicos fervorosos; diz-se, por exemplo, que a avó
era, mas o avô não era. Este último era um intelectual que acreditava mais
em ciência do que em religião9. Entretanto, o catolicismo ainda dominava
a paisagem urbana e as vidas da classe média em Casa Forte e no resto do
Recife: o avô ia à missa todo domingo com sua esposa, e os rituais de
passagem do catolicismo estruturavam também as vidas dos Cardoso. Todas as crianças eram batizadas, recebiam sua primeira comunhão, freqüentavam escolas católicas e participavam de grupos católicos, tais como o
Apostolado da Oração e os Filhos de Maria. Entre os amigos da família,
incluíam-se padres. De 1940 em diante, vários membros da família participaram de grupos de Ação Católica.
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Nas décadas de 60 e 70, seus filhos receberam a mesma educação e
participaram de grupos de jovens católicos. Vários membros da segunda
geração, hoje aposentados há vários anos, ainda são ativos em grupos como
Casais com Cristo e outras associações católicas. Os filhos destes últimos,
por sua vez, são menos envolvidos no catolicismo. Alguns ainda freqüentam missas, batizam seus filhos e assim por diante, mas outros viraram as
costas à religião tradicional da família e agora se encontram envolvidos
com o espiritismo kardecista, ou o sufismo, ou a Igreja Anglicana. A atual
geração é muito menos católica, e suas escolhas religiosas, de membros
individuais da família, coincidiram com a segunda, terceira e quarta novas
“vidas” do sítio, onde tudo começou há três quartos de séculos.
Por muitos anos, a família viveu na casa, compartilhando a terra
com as famílias de alguns ex-trabalhadores. Com o passar dos anos, porém,
partes do sítio foram vendidas, na medida em que a cidade se aproximava e
a terra se tornava mais valiosa. A partir de 1930, outras partes foram designadas a cada um dos filhos, de modo que pudesse construir cada qual sua
própria casa. O que um dia fora uma grande chácara tornou-se um aglomerado de casas urbanas ordinárias, ainda que de classe média-alta.
Em 1975, o avô morreu e sua viúva foi morar com a filha em uma
das outras casas no sítio. Uma vez que a avó não queria que a casa fosse
vendida, decidiu-se por alugá-la. Os primeiros inquilinos eram seguidores
de Bhagwan Shree Rajneesh (1931-1990). Esses “rajneeshees” eram um
grupo de psicólogos oriundos da mesma classe média-alta dos donos da
casa. Tinham, entretanto, alguns costumes peculiares, como emitir gritos
primais às seis horas da manhã – parte das novas formas de meditação ativa
ensinadas pelos Bhagwan, as quais incomodavam aos vizinhos. Incomodavam também aos Cardoso, porque corriam rumores através de Casa Forte
de que “eles dançavam nus na casa dos Cardoso”, os quais não mencionavam, evidentemente, que os Cardoso não viviam mais ali. Os rajneeshes
eram uma presença nova no bairro de classe média-alta o qual Casa Forte
se tornou.
Depois disso, vieram os novos ocupantes hare krishnas. Esse grupo
era, no mínimo, tão “diferente” quanto os seus predecessores na ocupação
da casa. Eram considerados bastante exóticos, e não se integravam muito
com seus vizinhos em Casa Forte. Os Cardoso, contudo, gostavam mais
deles: não apenas eles efetivamente pagavam o aluguel, como também distribuíam comida aos pobres em algumas das favelas do Recife, prática reli-
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giosa semelhante àquela praticada pelos católicos. Um dos krishnas era
dentista, e tratava dos pobres de graça, motivo suplementar de admiração
por parte dos Cardoso. Ainda assim, os krishnas não deixavam de pertencer a uma espécie “peculiar”, com seus rituais de dança no jardim e suas
togas da cor amarelo-açafranado.
Para a família católica, os grupos religiosos orientais obviamente
não personificavam os inquilinos ideais10. Mas, o que é que se poderia
fazer? Ademais, por volta do final da década seguinte, as coisas pioraram
ainda mais. Em 1995 – após a morte da avó – a família vendeu o terreno a
uma empresa construtora, a qual planejava construir um prédio no local.
Contudo, a recessão econômica obrigou a companhia a vender o terreno, o
qual foi comprado novamente por um grupo religioso. Dessa vez, embora
o grupo não fosse de inspiração oriental, era, do ponto de vista católico,
tão estranho quanto os rajneeshees e os hare krishnas: foi a Igreja Mórmon
– a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias – que comprou os
restos daquilo que foi um dia um grande sítio. Os novos donos demoliram
todas as edificações coloniais restantes e construíram seu majestoso templo, que agora domina uma grande parte do bairro. A conquista de almas
expressou-se através da conquista de espaço (cf. Hervieu-Léger, 2002).
Vemos, assim, através de três gerações de uma família de classe média, um sítio urbano e suas construções e usos refletirem a crescente diversificação de religiões. A relação “natural” entre as classes alta e média e o
catolicismo foi substituída por um pluralismo religioso impensável anteriormente – os membros individuais da família tornaram-se membros de
diversos grupos religiosos e o bairro mudou visivelmente no que diz respeito aos símbolos e edificações religiosas ali contidos. O bairro de classe
média Casa Forte mudou, deixou de ser uma vizinhança onde o catolicismo monopolizava tanto as paisagens urbanas quanto as vidas das pessoas,
até mesmo daquelas não-católicas devotas, como no caso do avô Cardoso.
Esse monopólio deixou de existir e o laço aparentemente natural do território local com o catolicismo pereceu.
A contestação do espaço e a busca por sentido
A complexidade crescente entre a vida urbana e a competição religiosa em bairros como Casa Forte tem de ser vista sob o pano de fundo do
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tremendo crescimento populacional do Recife: entre 1900 e 1980, a população aumentou mais de dez vezes11. A população da região metropolitana
também cresceu, e isso teve desdobradas conseqüências. Uma delas é a
incorporação do antigo (e quase rural) sítio na parte urbanizada da cidade,
e sua subseqüente alta densidade populacional na virada do século. Casa
Forte continua a ser um bairro predominantemente de classe média. As
renovações religiosas, sob a forma de grupos religiosos orientais, podem
ser relacionadas à identidade de classe dos habitantes de Casa Forte. A
chegada da Igreja Mórmon é mais ambígua. Há pouca informação disponível na literatura brasileira das ciências sociais sobre a prática missionária
mórmon, mas me parece que ela seria menos ligada a uma classe em particular12. Embora o mormonismo seja um fenômeno recente na paisagem
religiosa brasileira, essa imensa edificação anuncia publicamente sua presença de maneira bastante audaciosa.
No entanto, a diversificação das práticas religiosas nas cidades brasileiras aconteceu principalmente em bairros de classe operária e favelas. As
recentes atividades religiosas das classes mais baixas são extensivamente
documentadas por estudos brasileiros. A paisagem urbana das áreas pobres continua a ser, em larga medida, estruturada através da religião, como
demonstra a pesquisa de Motta sobre um culto sincrético regional. Motta
afirma que no Recife a religião dos mais pobres é o catimbó (Motta, 2001).
Segundo o autor, há centros de catimbó nas áreas onde moram “recémmigrados sub- ou desempregados, em geral analfabetos”, que observa também, de modo interessante, uma associação com a “distribuição ecologicamente periférica dos centros de catimbó nos morros que contornam a cidade, ou no solo baixo sujeito a enchentes sazonais” (Motta, 2001 p. 74).
Quanto a esse aspecto, será útil nos reportarmos novamente à festa da
santa padroeira do Recife na Basílica de Nossa Senhora do Carmo: as celebrações católicas acontecem no centro da cidade. Há também as festas de
xangô (ou candomblé), mas estas não são nem tão públicas nem tão visíveis – acontecem nos bairros pobres mais remotos, nos terreiros (construções simples e muito mais difíceis de serem encontradas).
No que concerne à pluralização da religião no Brasil contemporâneo, o fenômeno que mais se destaca é o crescimento extraordinário das
igrejas pentecostais. De 1940 em diante, a população rural brasileira começou a migrar para as cidades industrializadas no sudeste do país, principalmente para o Rio de Janeiro e São Paulo, mas também para o Recife13. A
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RELIGIÃO E TRANSFORMAÇÕES URBANAS EM RECIFE, BRASIL
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explicação habitual dada pelos intelectuais para o fenômeno é a de que
devido ao rápido crescimento dos centros urbanos, os camponeses se encontraram em um mundo desprovido de toda forma de segurança às quais
estavam acostumados no campo. Isso causou um sentimento de confusão
e desamparo, o que fez com que essas pessoas procurassem por uma solução religiosa, encontrada na adesão às comunidades religiosas pentecostais
nas favelas onde moravam. Voltaram-se para essas opções religiosas em
busca de soluções instantâneas para seus problemas urbanos (cf. Birman,
2000 Greenfield, 2001 Banck, 1998b). A maioria dos autores vê uma conexão entre pobreza e busca por sentido religioso e soluções miraculosas
para os problemas: a urbanização foi parte e parcela da industrialização e
da modernização, cuja articulação desencadeou uma pobreza extrema entre os novos habitantes; pobreza esta que conduziu, por sua vez, à crescente importância da religião como estratégia adaptativa. Em outras palavras,
pobreza causa religiosidade. O foco na religião como estratégia adaptativa
para lidar com a pobreza é bastante difundido, como vemos no trabalho de
Banck e Mariz (Banck, 1998a, Mariz, 1992; Mariz & Machado, 1994). Esses
autores, entretanto, não afirmam que ela é a única estratégia utilizada para
lidar com a pobreza, ou tampouco afirmam que a religião é apenas uma
estratégia para lidar com a pobreza. A busca pela religião concerne, evidentemente, a mais que uma solução funcional para os problemas mundanos.
As pessoas envolvem-se com uma religião porque foram emocionalmente
instigadas por um pastor, pelo poder de certos rituais, pela reverência inspirada por certos templos, ou pelas práticas sociais de uma comunidade
paroquial com cujos membros se mantêm em contato.
São interessantes, no entanto, as interpretações antropológicas acerca
do crescimento pentecostal, porque são úteis para o entendimento dos usos
religiosos do espaço urbano. Em primeiro lugar, a idéia de comunidade no
espaço urbano parece ser um elemento importante no que concerne aos
sentidos religiosos associados à cidade. Quanto a isso, é importante observar
que a maioria dos brasileiros era (e ainda é) católica, e isso inclui os migrantes.
O catolicismo dos migrantes remete fundamentalmente à continuidade, na
cidade, da noção de comunidade presente na sociabilidade camponesa. Na
cidade, contudo, a comunidade católica não se formava tão fácil através do
espaço e lugar; embora nem tampouco isso fosse o caso do pentecostalismo
e das religiões afro-brasileiras (Fry, 1978). Argumenta-se, no entanto, que
igrejas pentecostais, tais como a Assembléia de Deus, conseguiram criar (ou
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recriar) um senso de comunidade e pertencimento nas pessoas. É difícil precisar se nesse caso a comunidade está conectada ao território, quer dizer, se o
pentecostalismo efetivamente estabelece um laço entre os crentes e o lugar,
do modo como o catolicismo o fez em outras épocas. A construção da comunidade deve basear-se na afinidade, mais do que no território, como parece ser o caso em bairros de classe média. Assim, os crentes pentecostais não
se tornam necessariamente membros da igreja mais próxima de suas casas;
ao invés disso, afiliam-se na base da persuasão ideológica ou das preferências
estéticas. Conseqüentemente, a idéia de comunidade torna-se menos fortemente ligada ao território local. A despeito disso, as pessoas experimentam
seus grupos religiosos como uma comunidade estreitamente entrelaçada. O
mesmo se aplica às manifestações religiosas dos mórmons ou dos hare
krishnas, menos fortemente conectadas à comunidade local porque
arrebanham crentes por toda a cidade, organizando-se mais como redes (cf.
Hervieu-Léger, 2002, p.103). Em contraste com as igrejas pentecostais, o
catolicismo continuou a se organizar na base de um lugar compartilhado. A
Igreja Católica demorou a desenvolver uma infra-estrutura institucional nos
bairros populares onde moravam os migrantes – em geral não haviam igrejas
ou padres nas novas favelas. Entretanto, o catolicismo libertário dos anos 70
e 80 enfatizou a importância da comunidade, e as Comunidades Eclesiais de
Base (CEBs) que se formaram nos bairros populares fundamentavam-se na
idéia de que as pessoas se organizariam de acordo com as ruas e bairros nos
quais viviam. Em Recife, essas CEBs eram chamadas de Encontro de Irmãos, de modo a enfatizar seu aspecto comunitário, quase familiar (Castro,
1987)14. Portanto, nessa resposta católica às demandas da urbanização, a
comunidade religiosa é antes de mais nada (ainda) de base territorial. Em
recente pesquisa desenvolvida em duas partes do bairro Casa Amarela, adjacente a Casa Forte, Reesink mostra que ali o catolicismo continua sendo
considerado “natural”. A comunidade natural do campo foi reconstruída, e a
religião é um meio de criação desse laço (Reesink, 2003).
Em segundo lugar, a religião desempenha um importante papel na
contestação do espaço urbano. Os grupos religiosos não apenas constituem uma forma de comunidade na selva urbana, mas também oferecem
uma linguagem através da qual externalizam-se os problemas encontrados
na cidade. Como eloqüentemente explicou Banck, os ensinamentos do catolicismo libertário dos anos 80 – os quais enfatizaram a leitura da Bíblia
pelos leigos – simbolizaram o acesso às habilidades e ao conhecimento de
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RELIGIÃO E TRANSFORMAÇÕES URBANAS EM RECIFE, BRASIL
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grande importância para o mundo moderno (Banck, 1990, 1997). Banck
também mostrou como os grupos religiosos foram ativos na ocupação de
terras onde os pobres poderiam construir suas casas e se sustentar, defendendo sua ação através da linguagem religiosa. Mudara, portanto, o caráter
dos significados religiosos desenvolvidos pelas pessoas, uma vez que aqui
elas próprias estavam ativamente envolvidas em sua produção. Desse modo,
a relação entre a comunidade religiosa e o espaço urbano tornou-se extremamente próxima (Banck, 1998b).
Em terceiro lugar, assim como com a Igreja Mórmon em Casa Forte, as edificações religiosas despertaram sentimentos de deslumbramento e
admiração – sentimentos importantes, tanto para os membros da comunidade religiosa quanto para os passantes ou membros de outros grupos
religiosos. A construção das edificações pode ser entendida como uma
maneira através da qual grupos religiosos tentam impor sua autoridade religiosa e marcar sua presença no espaço urbano. Tal como as obras-de-arte,
os templos podem ser interpretados como construções projetadas para
seduzir os outros, os não-crentes (Mafra, 2003). Igrejas também simbolizam o conhecimento, os ideais e a proximidade com o sagrado. No contexto da competição religiosa, as edificações são também declarações desses
princípios de religiosidade. A pluralização da religião fomenta a competição e produz resultados mais visíveis.
Muitos outros casos poderiam ser a este adicionados. As edificações
continuam a desempenhar um papel importante na formação dos coletivos
religiosos e na apresentação de suas respectivas identidades no Recife contemporâneo, do mesmo modo que as festas e outras expressões menores
de religiosidade. Entretanto, a relação entre as edificações e os arredores
urbanos não é mais natural: elas agora são avaliadas por seu valor simbólico, enquanto declarações ideológicas. No contexto contemporâneo de competição religiosa, esse é um importante elemento de expressão, no qual o
aspecto estético da construção religiosa recobra a importância que tivera
nos tempos coloniais (Cf. Low, 1999a).
Considerações finais
Em geral, a antropologia urbana e a antropologia da religião não se
encontram. Considerando-se a presença distintiva das edificações religio-
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sas no espaço urbano e a importância das festas e outras atividades religiosas na vida urbana, a falta de atenção antropológica com relação à religião
na paisagem urbana é notável.
O presente artigo demonstra que religião é mais que um acontecimento coincidente na cidade, e que a cidade é mais que um contexto neutro para os fenômenos religiosos. Se considerarmos a imbricação entre
espaço urbano e organizações religiosas e a produção de sentido, veremos
que a religião é um elemento eficaz nos processos de identificação e contestação da paisagem urbana. “Uma leitura religiosa do Recife” revela as
muitas formas de contestação do espaço urbano e de produção de sentido
através dos rituais religiosos, da construção de edificações e da criação de
novos grupos religiosos.
Assim, a urbanização que se desenrolou no século XX coincidiu
com uma crescente diversificação das religiões, bem como com a ampliação da visibilidade dessas diversas religiões na paisagem urbana. A busca
por sentido religioso, e por soluções religiosas para problemas mundanos,
parece operar como uma motivação constante para a população urbana na
construção da cidade15. O que é da ordem do religioso também constrói a
própria cidade.
Novas religiões entram em cena: mudam as relações entre religiões
diferentes, e no seio de várias tradições religiosas desenvolvem-se novas
interpretações e movimentos, com o catolicismo figurando como líder nesse
processo de produção religiosa. Um recente estudo sobre religiosidade no
Recife mostrou uma grande variação nas crenças sustentadas pelos católicos (Souza, 2002), e que as diferentes versões têm todas suas respectivas
demandas com relação ao espaço urbano. O crescente Movimento
Carismático Católico organiza missas em encontros no estádio esportivo
local (Estádio Geraldão), os devotos de Frei Damião (um frade muito popular falecido em 1998, cujo túmulo está se tornando lugar de peregrinação) precisam de um centro onde possam venerar seu “quase santo” e
realizar seus atos de devoção, enquanto os católicos da linhagem majoritária precisam de uma igreja (edificação) que seja respeitada tanto por católicos quanto por não-católicos. A localização desses espaços religiosos não é
mais totalmente dependente de um território fixo, uma vez que nos últimos anos os grupos religiosos têm-se organizado mais em termos de redes.
Esse tipo de formação de comunidade religiosa é comum entre grupos
religiosos não-dominantes em uma dada situação local – condição válida,
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RELIGIÃO E TRANSFORMAÇÕES URBANAS EM RECIFE, BRASIL
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talvez, para um número crescente de diferentes religiões no Brasil urbano
contemporâneo.
A julgar pela visibilidade e presença conspícuas da religião, o contexto urbano parece ter, na verdade, intensificado o fervor religioso no
Brasil. Outros estudiosos sustentam essa visão: não apenas houve um aumento no número de opções religiosas nas últimas décadas, mas também
na adesão dos brasileiros à religião (Greenfield, 2001, p. 56.). Entretanto, o
papel exato desempenhado pela urbanização nesse processo não está claro,
afora a explicação através do binômio migração-pobreza, mencionada acima. Os dados etnográficos apresentados no presente texto mostram, contudo, que não são apenas os pobres que participam da diversificação da
paisagem urbana religiosa. Grupos como rajneeshees e os hare krishnas
atraem, em geral, outros habitantes que os das favelas. Além disso, as preferências de certas partes da população quanto a certas religiões não podem ser afixadas, sendo sujeitas a mudanças ao longo do tempo, como
aconteceu com a Renovação Carismática Católica, que surgiu nas paróquias de classe média, mas que logo arrebanhou seguidores nos bairros mais
pobres (Theije, 1998a, 1999a, 2002).
Mais que isso, eu gostaria de sugerir que a disponibilidade da religião
no contexto urbano também gera a busca pelo sentido, cura e participação
religiosos. Especialmente quando a religião se torna muito visível – através
das edificações, dos textos, dos rituais públicos e outros atos –, isso pode
criar curiosidade e engendrar uma busca por envolvimento religioso. Assim, o círculo se completa: a ampliação da produção e diversificação religiosas modifica a paisagem urbana, e, por sua vez, a proeminente disponibilidade da religião nesse contorno urbano modificado cria uma busca por
sentido e participação religiosos16. Publicações recentes baseadas em dados estatísticos sobre as afiliações religiosas em 1980, 1991 e 2000 confirmam essa idéia. Os dados demonstram claramente que o Recife – assim
como a maioria das cidades brasileiras – tornou-se diversificado em termos
religiosos há poucas décadas. Os pesquisadores apontam para a rápida urbanização, “a qual favorece o surgimento de novas religiões, ou a difusão
de religiões advindas de países estrangeiros”, como uma causa fundamental para essa diversificação (Jacob, 2003 p. 34).
Enquanto esperava pelo sinal de trânsito da Avenida Rui Barbosa, o
pai de 75 anos de minha entrevistada foi abordado por um grupo de
mórmons que lhe entregou um convite para uma visita ao novo templo
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que construíram no terreno onde um dia vivera a família de sua esposa. Ele
aceitou o convite, mas disse que jamais voltará ao lugar: “É um belo templo”, me diz, “mas muito diferente e eles têm crenças estranhas”.
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PEREGRINAÇÃO E ROMARIA: UM
LUGAR PARA O TURISMO RELIGIOSO
Pierre Sanchis
Resumo: As perspectivas aqui exploradas originam-se num caso historicamente
situado e limitado: a distinção de estratégia pastoral (e política) estabelecida na
primeira parte do século XX pela Igreja católica em Portugal entre “romaria” e
“peregrinação”. A primeira sendo uma manifestação religiosa complexa e
atavicamente popular, orientada para uma “sacralização” da existência humana na
sua própria dimensão profana; a outra uma transfiguração “sacramental” desta
existência, sublimada através dos ritos eclesiásticos oficiais. Dois modelos idealtípicos, que suportam gradações, pesos relativos e dominâncias, variadas
compatibilizações enfim, e cuja aplicação generalizante na história tem sentido.
Pois eles abarcam diferentes modos de assumir uma relação “peregrina” com o
tempo, o espaço, o corpo, a dimensão coletiva. Acrescenta-se a presença de outras
dialéticas, em certa medida sempre remodeladoras, eventualmente até fatores de
transição entre um e outro modelo: as da relação entre dimensão religiosa e dimensão política, entre jornada devota e excursão turística.
Palavras-chave: Peregrinação, romaria, sagrado, religião.
Abstract: The perspectives which are exploit here come from a historically-situated
and limited case: a distinction, resulting from a pastoral (and politic) strategy,
established in the first half of the twentieth century by catholic Church in Portugal between “romaria” e “peregrinação”. The former being a complex and
atavistically-popular religious manifestation, oriented toward a sacralization of the
human existence in its own profane dimension, whereas the latter is oriented toward
a “sacramental” transfiguration of this existence, sublimated by means of the
ecclesiastic, official rites. Two ideal-typical models, which are open to gradations,
relative weights and dominances, which can be made compatible with each other
as well as with several other models, and whose generalizing application in history
makes sense. For they both comprehend different ways of taking a “pilgrim”
relationship with time, space, the body, the collective dimension. One must add
the presence of other dialetics, which are, to some extent, always reshaping. These
dialetics are, eventually, even factors of transition between one model and the
other: those of the relationship between religious dimension and political dimension,
between devotional journey and tourist excursion.
Keywords: Peregrination, romaria, holiness, religion.
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PIERRE SANCHIS
O convite que recebi para participar desta Mesa dava-lhe como
título um nome simples e corriqueiro: “Peregrinações”. Ele me transportou de repente a Portugal, onde já estudei – mas com outro nome –
as peregrinações. Que se chamavam: “Romarias”. Estas estavam inscritas na sensibilidade religiosa local desde a Alta Idade Média. Uma manifestação popular que preenchia o imaginário religioso das populações, sobretudo do Norte, uma experiência, singular, individual e/ou
coletiva, que ritmava, em muitos casos, o fluxo dos anos, as etapas da
vida (namoros, casamentos, chegada dos filhos, carreira, problemas e
restabelecimentos da saúde). O que era Romaria? Um caminhar, muitas
vezes penoso, doloroso até, em condições voluntariamente precárias,
por isso demorado, mas cheio de encantos – imersão numa natureza
selvagem e encontros lúdicos no caminho – até a concretização da apresentação e presença do peregrino a um “Santo”: santuário próximo ou
longínquo, Sagrado feito gente, com quem se conversa, se troca bens,
energia e saúde (promessas), perto de quem se vive uma pequena porção de tempo, o tempo feito Festa: comida, bebida, encontros, dança;
até a volta para um quotidiano transfigurado, já na espera de outra romaria. Um ritmo de vida – e na vida. Uma relação constituinte com o
além-vida fonte da vida, o Sagrado. Mas uma relação tradicionalmente
pouco regulada pela instituição (a Igreja) em princípio investida da missão de apresentar, representar, concretizar e distribuir este Sagrado à
sociedade profana em que os homens instauram o quotidiano de suas
vidas. Por isso, esta procura ativa de “refontalização”, a partir de iniciativas repetidamente administradas por cada um, no quadro de uma
tradição que dificilmente aceitava para isso regulações autoritárias, aparecia com freqüência às autoridades eclesiásticas (e políticas) como
descambando para manifestações de “paganismo”: promessas sangrentas em atitudes penitenciais excessivas, que criavam um foco de devoção autônomo, popular e não-oficial, cantos e espetáculos “profanos”,
“arraiais noturnos”, bebedeiras, eventualmente sexo e violência. Empreendeu-se então uma “cruzada para a recristianização” das Festas,
contra “o paganismo religioso das romarias, pretexto a bacanais e desordem”. Cruzada que alternou e misturou – em proporções variáveis,
conforme os regimes políticos, os poderes conjunturalmente dominantes, a posição de influência ou marginalização pública da Igreja – o
recurso à repressão policial, o combate retórico direto em nome da
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PEREGRINAÇÃO E ROMARIA: UM LUGAR PARA O TURISMO RELIGIOSO
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ortodoxia religiosa, as suspensões de ordem e outros castigos canônicos
para os padres coniventes, para os organizadores leigos, os músicos e o
simples povo, acusado de “não reagir”, a tentativa de alargar, no seio
mesmo da romaria, o espaço do Sacramento e da Liturgia oficial. Até
que, em torno dos anos 20, num momento em que a Revolução Nacional (e nacionalista) não tinha ainda restituído à Igreja uma situação de
troca tranqüila entre sua autoridade institucional própria e o poder político, nova estratégia foi privilegiada. Já que as “Romarias” mantinham,
apesar dos esforços oficiais, uma larga margem de autonomia, criar-seia outra manifestação de “ida-ao-Sagrado”, concebida, esta, como “estritamente religiosa” porque totalmente regulada pela autoridade eclesiástica. À imagem do que acontecia nos célebres santuários franceses
ou italianos, La Salette, Loreta, sobretudo Lourdes, o tradicional habitus
festivo do povo português nas Romarias seria doravante transmutado
na prática das “peregrinações”. É então que o nome (o de nosso primeiro “título”) aparece, como significativo de uma estratégia, que tenderá a culminar com o caso de Fátima, o caso antonomástico das “peregrinações”, quase uma “anti-romaria”...
Esta oposição levou-me logo a generalizar. Não constituiria ela
uma dialética constitutiva da “romaria”, uma estrutura? Desde o nascimento historicamente apreensível das romarias portuguesas, no séc VII,
os sermões de Martinho de Dume, o primeiro Arcebispo de Braga,
contemporâneo do primevo reino Suevo que foi núcleo de Portugal,
nos mostram um povo que se desloca em direção a montes, a florestas,
a rochedos, a fontes – ou às capelas já ali construídas – venerar as relíquias ou as imagens dos santos, que no seu imaginário podem muito
bem confundir-se com os seres míticos – deuses ou encantados – (“demônios”, dirá o bispo) que as religiões antigas, celta ou romana, lhe
tinham ensinado a cultuar. Reproduzindo até para os santos cristãos os
gestos do culto tradicional.
Desde então, e ao longo da história de Portugal, sempre haverá uma
distância, e uma luta correspondente, entre a manifestação festiva da romaria e a tentativa de “ordenação” eclesiástica. Às vezes, a luta foi até física:
padres foram jogados no rio, outros encontraram na sua porta o alguidar
com a faca para a matança do porco, em certos casos as mais altas autoridades públicas tiveram que entrar em campo para sua proteção, etc. Oposição no mais das vezes negociada, que chega finalmente a compor uma
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“estrutura de compatibilização”. As “romarias” são caso típico de encontro e fricção (criativa) entre a religião do “povo” e a do “clero”. As multidões peregrinas são em princípio “leigas”, dirá Dupront, o grande especialista das peregrinações...
Além do mais, não se trata somente de Portugal... Para só evocar
alguns exemplos: no Brasil, a reforma das romarias preocupará o episcopado na época da romanização, quando congregações estrangeiras são chamadas para transformar a sua prática – e bem antes, em Minas por exemplo, logo na instituição do bispado de Mariana.
Também no século 18, na Europa o iluminismo da contra-reforma
visa suprimir os restos de “superstições” herdadas dos tempos célticos.
Especialmente em algumas regiões, como a Bretanha.
Remontando no tempo, poderia citar-se o papa Gregório (século
VII) e suas recomendações ao missionário Agostinho, quando mandado a
terras Anglas. E, mais cedo ainda, o outro Agostinho, o grande, criticando
as peregrinações aos túmulos dos santos, de sua própria mãe Mônica.
Quanto à pregação de Martinho de Dúmio em Portugal, ela serviu
de modelo em toda a Europa, inclusive na Escandinávia. Sinal de que o
problema estava em toda a parte presente.
Nesta oposição institucional a determinado tipo de romaria, três
pólos se deixam perceber: 1) o dentro frente ao fora, o lugar natural (montanha, rio, fonte...) frente ao edifício construído, o santuário. O elemento
cósmico rivalizando com o elemento institucional na polarização da atenção que reconhece o sagrado; 2) a experiência subjetiva – a do contato
direto, da transformação interna, da exaltação em nome da vida (a dança é
dela testemunha universal) – frente à “conversão” moral pela mediação
dos sacramentos: penitência, eucaristia... Em via de retorno, perigo de “deturpação” do sacramento quando reduzido a simples prática de contato
vital e natural1; 3) em conseqüência, autonomia leiga frente à autoridade
clerical. Pois, o Sacramento é domínio exclusivo do clero. Recusando-o,
este frustra o povo da presença apreciada do sagrado institucional; concedendo-o, ele pode barganhar a supressão de manifestações por ele julgadas
“profanas”.
Nesta contenda, afinal, existe um mediador; em torno de quem se
constrói a romaria: o Santo.
Era conclusão assentada de uma historiografia crítica a afirmação: “Os Santos sucessores dos deuses” (Saintyves, 1985). Uma conclu-
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PEREGRINAÇÃO E ROMARIA: UM LUGAR PARA O TURISMO RELIGIOSO
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são que continua válida, apesar de em parte superada. Pois não se trata
só de estratégia pastoral substitutiva da parte da Igreja, mas de algo
mais radical (Brown, 1990). A grande transformação operada pelo cristianismo primitivo parece ter sido a passagem da natureza à história, da
polarização num sagrado cósmico à veneração de uma presença humana: “antropomorfizar o cósmico”. Um povo real, efetivamente eleito,
um Cristo histórico, morto e cujo corpo ressuscitou, a memória de homens concretos, que cristalizaram ao longo dos séculos os momentos
de este desenrolar do tempo. Na proposta da Igreja e na resposta dos
fiéis, veneram-se Corpos “inventados” (isto é, descobertos)2, reverenciam-se relíquias. Ou simplesmente cultuam-se lembranças: passou por
aqui, morou, teve aqui tal experiência...3. O lugar “sagrado” tende então a tornar-se o lugar “santo”, a plenitude de Vida torna-se santificação4.
Mas a primeira dimensão, cósmica, continua tencionalmente presente.
Um só exemplo: Santiago de Compostela. É significativo o fato que
cita Sandra de Sá Carneiro (2006): a substituição, no “Alto do perdão”,
num caminho de plena montanha, de uma ermida dedicada à Virgem
do perdão e de um hospital da Confraria de Santiago por um monumento dos Caminhantes, figuras humanas genéricas recortadas sobre o
horizonte, com a legenda: “Donde se cruza el camino del viento con el
de las estrellas”. Uma volta ao cósmico... Do caminhar em direção ao
corpo santo passa-se à celebração do lugar “onde se cruzam os caminhos do vento e das estrelas”.
Às vezes, aliás, há um intermediário entre a veneração do locus sacer
natural e daquele criado por uma presença humana corpórea: o das aparições – corporais – de seres “desencarnados”: em regime cristão, o mais das
vezes a Virgem Maria. Um corpo alusivo, uma presença quase que “virtual”, que acabará se cristalizando numa estátua. Em vários casos tomando o
lugar, no imaginário coletivo local, de outra presença, também intermediária entre a natureza e a humanidade, mas na chave de outra “tradição”: a
presença dos “habitantes” míticos da floresta, da montanha, das grutas.
Num estudo recente (Recroix, 1986-89) fala-se em “estruturas mentais” a
propósito das crenças populares na existência de numerosas fadas nas grutas dos Pireneus centrais, inclusive na gruta de Massabielle, onde a Virgem
apareceu nos arredores de Lourdes.
Santuário, relíquia, sacramento, clero e suas mensagens institucionais,
santo e suas imagens... todas essas realidades, que, afinal, compõem uma
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 85-97, outubro de 2006.
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PIERRE SANCHIS
‘religião”, se constituem em mediações entre o peregrino e o sagrado: o
gesto peregrino hesita entre “romaria” e “peregrinação”.
E isso me levou a mais uma generalização.
Com efeito, muito aquém e além do cristianismo, constatamos a
existência da mesma dialética. No Islã, os gestos fundamentais da Meca,
que tendem a reassumir no quadro do Corão as tradições árabes préislâmicas, Kerbala, sobretudo, no Iraque e Mechad no Irã, mausoléus
dos imans para os chiitas; para os sunitas, os túmulos dos marabus (santos), que rivalizam com as grandes peregrinações oficiais – incluindo
Medina e Jerusalém – e onde se articulam, nem sempre sem divergências, os preceitos e a mística do Islã com a cosmovisão popular tradicional, do Irã, da Arábia, mais ainda da zona berbere no Maghreb. Tensão
e compatibilidade... Os exemplos seriam homólogos no seio do Budismo, no Hinduísmo; na América Latina, com a Mãe-Terra/Maria/
Pachamama (Silva, 2003).
Sem falar do Egito, da Grécia antiga... No culto grego primitivo,
“naturista”, da fecundidade e da ressurreição da natureza (hierogamia, numerosos mitos de rapto subterrâneo), os santuários de peregrinação eram
frequentemente grutas – ou subterrâneos de palácios evocando grutas (outro modo de combinar natureza e mito institucional)...
Enfim, os santuários pré-históricos: grandes grutas paleolíticas,
não destinadas à moradia, cujo percurso (centenas de metros) parece
ter sido iniciático. Sabe-se pouco, é verdade, sobre o seu uso provavelmente ritual, mas tende hoje a ser consensual a rejeição tanto de uma
representação naturalista do mundo ambiente, quanto de rituais simplesmente mágicos (fecundidade, caça). Uma penetração progressiva,
desde a luz até a obscuridade do mistério, através de um mundo de
símbolos codificados, que reconstituem, para o viajante, e presentificamlhe um cosmos carregado de sentido. Segundo alguns estudiosos5, um
simples código essencialmente dicotômico, a oposição homem/mulher
sendo projetada no mundo animal: bison/ cavalo. Para outros, autêntico percurso iniciático, acesso caminhante ao Sagrado, tornado presente
nesta representação, sua disposição, seus signos. Essas grutas, escreve
o pré-historiador responsável científico pela Gruta de Chauvet (mais
de 30.000 anos AC), constituem “um mundo sobrenatural, em que estão os espíritos, e as pessoas iam a este mundo para entrar em contato
com estes espíritos, que estão nas paredes, e realizavam este contato
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através das imagens. E isso é o próprio fundamento de algumas religiões de tipo xamanístico”. Uma ida, que o autor compara com a ida às
imagens de santos na igrejas antigas, ida que culmina no gesto da mão
que toca e acaricia: “É a mão [centenas de traços de mão são ainda
visíveis]6 que vai ao contato da parede carregada de pintura, uma pintura provavelmente sagrada, e que estabelece uma relação. Isso faz parte
dos universais: tocar, captar a potência” (Clottes, 2000). Acesso caminhante ao Sagrado, mas a um sagrado socialmente regulado. Outro préhistoriador chama sobre isso a atenção. Ele diz-se “fascinado” pela liberdade com que os artistas se expressaram. Mas acrescenta: “Acredito
no entanto que tudo isto está inserido no interior de um quadro rígido
– que devemos chamar, acredito, uma “religião” (Garcia, 2000).
Esta convergência de indícios parece finalmente apontar para uma
estrutura assimptoticamente antropológica, que tende a estar em todo
lugar presente. Estrutura da “romaria”7? Não, quero dizer: essência. Utilizo o conceito de “estrutura” como algo – paradoxalmente – mais flexível e dinâmico. Uma “definição” congela; todos seus elementos devem
estar presentes no objeto a propósito do qual ela se enuncia, sob pena
deste objeto não responder à sua “essência”. A “estrutura”, ela, não é
sistema nem realidade. É o princípio de organização desta realidade. O
próprio Levi Strauss (1976:115), falando do “princípio de reciprocidade,
sempre em ação e sempre orientado na mesma direção”, descreve a estrutura como força motora, princípio de orientação da realidade e não
como as regras sistêmicas de uma realidade constituída. Conforme os
casos, a mesma estrutura sustenta realizações incrivelmente diferentes,
mas “sejam quais foram as mudanças, a mesma força está sempre em
ação e é sempre no mesmo sentido que reorganiza os elementos que lhe
são oferecidos ou abandonados” (Acima o autor dizia: “os elementos
que a História põe à [sua] disposição”). Se existir antropologicamente
uma estrutura romeira, as peregrinações – todas – obedecerão a um mesmo princípio, mas de mil maneiras diferentes. Estrutura romeira? Alguns
traços parecem corresponder a seu dinamismo tendencial: procura caminhante do Sagrado; relação ativa com o espaço, o lugar longínquo, a
alteridade visada pela transformação de si. Para mais vida, haurida na
conjunção ativa com uma força meta-quotidiana, Natureza habitada por
uma terceira dimensão ou Supernatureza. Sentido, que dá força para
retornar, transformado, à vida comum.
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É pela presença tensional desses traços que pode reconhecer-se a
“estrutura romeira”. Presença dinâmica, que, em si, não “define” nenhuma
realização concreta. Pois para tornar-se “real” toda estrutura precisa articular-se a outras numa dada situação. O Sagrado de que falamos vai carregar
de sentido profundo os gestos que ele inspira, mas não lhes determina, por
si só, a forma. Aqui, é Durkheim que nos ajuda a entender: “A religião
como administração do Sagrado”, diziam os seus discípulos. O Sagrado de
Romaria, para existir na concretude do real, deverá passar pelo constrangimento formal que lhe confere uma empresa de administração. Não há religião sem Igreja, afirmava Durkheim. Queria assim dizer que não existe
Sagrado sem uma forma (formatação) recebida – ou tendencialmente imposta: dogma (visão do mundo definida), ética, rito e autoridade de tipo
administrativo: quatro elementos que marcam a existência de uma religião
– e dão forma (formas diferentes, históricas, e cada vez específicas) ao
Sagrado. O Sagrado que a estrutura romeira “tende” a tornar presente na
vida do homem aparecerá assim como necessariamente modelado pela estrutura da “religião”. Quer dizer, por uma visão do mundo, uma ética, um
conjunto ritual, um exercício ordenado do poder. Nesta operação, o “romeiro” tornar-se-á “peregrino”. A estrutura do Sagrado não se confunde
com a estrutura da religião, mas articula-se necessariamente com ela para
fazer história. Estrutura de estruturas.
Não somente com ela, aliás. Digamos que uma realidade – social,
humana – existe na confluência de estruturas de vários níveis, em trabalho tensional de pressão e rivalidade mútua (“sempre em ação”, dizia Levi-Strauss) para amoldar (“reorganiza na mesma direção”) esta
realidade. Por isso veremos a estrutura romeira profunda, para existir
em manifestação social, encontrar, além da estrutura da “religião”, outras estruturas. Uma delas, intensamente presente na peregrinação: a
estrutura política, aquela que tende a organizar a distribuição, ou repartição ordenada, do poder. Estrutura direta ou indiretamente atuante em
qualquer peregrinação.
Não se trata somente da rivalidade das instâncias religiosas e civis
para a definição e o cumprimento da ordem, nem da orientação eventualmente política das mensagens veiculadas, da supervisão dos recursos envolvidos e das rendas obtidas pelos dons dos peregrinos, como foi caso
agudo no Brasil do Império ou da primeira República ou em Portugal do
início da Revolução Nacional, quando maçons e instituição eclesiástica
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disputavam o comando das confrarias. Trata-se de dimensões mais radicais. Romaria implica relação ao espaço. Ora, Michel Foucault bem mostrou o caráter eminentemente político do enquadramento do espaço:
“Território é sem dúvida uma noção geográfica, mas é, antes de tudo,
uma noção jurídico-política: aquilo que é controlado por certo tipo de
poder” (Foucault, 199l: 156). Para Santiago de Compostela, por exemplo,
Sandra de Sá Carneiro (2000) mostrou, a partir dos estudos do historiador galego Barreriro Rivas, que, desde a Alta Idade Média, a rede densa
do Caminho de Santiago, que cobria a Europa, significava, por um lado,
graças ao estabelecimento de rotas seguras, freqüentadas e habitadas, reconhecidas e acolhedoras, desde Roma até o “fim das terras”, a presença
teimosa de um Império cuja unidade efetiva acabava de desaparecer para
dar lugar à pulverização feudal que se transformaria nos Estados nacionais europeus; por outro lado, e a partir do reino de Astúrias, uma promessa de “reconquista” que afirmava, frente ao invasor muçulmano, a
perenidade dinâmica do domínio da cristandade.
E é significativo constatar que é quase nos mesmos termos que,
na outra extremidade da história, o papa João Paulo II lança o seu apelo, precisamente desde Compostela, em 1982 : “Oh, velha Europa, lanço-te um grito cheio de amor: reencontra-te a ti mesma, seja ti mesma,
descubra tuas origens, renove o vigor de tuas raízes, viva de novo aqueles valores autênticos que cobriram de glória tua história e tornaram
benéfica tua presença nos outros continentes”. Trata-se ainda de espaço, mas dessa vez em perspectiva de tempo, na ambição de apontar
para o grupo social a versão julgada autêntica de sua memória coletiva
(Hervieu-Léger, 2005). É exatamente o momento em que a Igreja tenta
obter que a Europa se reconheça, no texto de sua Constituição, como
terra de tradição cristã.
Pense-se também no peso político desta multidão peregrina que João
Paulo II reuniu no santuário nacional de Czestochowa, quando enfrentava
o regime do seu país.
Peregrinação e política, interpretação da memória coletiva, ainda, e em sentido mais radical, este cartaz recente que anuncia uma peregrinação da juventude a Chartres, antigo santuário de romarias. “Peregrinação da Tradição”, diz o título. E a imagem de mostrar, sobre um
fundo de fortaleza feudal, um cavaleiro medieval segurando uma bandeira francesa moderna, com a imagem do Sagrado Coração na parte
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central, bandeira que foi distintiva dos Zuavos pontifícios, esta legião
de voluntários franceses católicos que, em 1870, foram acudir ao papa
soberano assediado em Roma pelas tropas “liberais” que combatiam
em prol da unificação da Itália. “Cristandade”! Uma escolha entre os
legados possíveis da memória coletiva, que o pregador oficial assim
comentava num outro ano na mesma peregrinação: “Vocês estão dando, para Nossa Senhora, a melhor imagem da cristandade (que ele define como sendo a organização política – internacional – baseada no catolicismo explícito). E se um dia, face à invasão da barbárie, formos
obrigados a pegar em armas em defesa de nossas cidades, será porque
elas são, como dizia nosso caro Péguy, “a imagem, o começo, o corpo e
a âncora da casa de Deus”. Mas mesmo antes que soe a hora da reconquista
militar, não seria possível falar em cruzada, pelo menos quando a comunidade está ameaçada nas suas famílias, nas suas escolas, nos seus santuários, nas almas de suas crianças?” (grifo nosso).
Memória... Também, como se vê, Programa. Assim como, num
sentido de prospectiva oposto, o são as “Romarias da Terra”, que, no
Brasil, tentaram mobilizar os peregrinos em direção a mudanças sociais
mais igualitárias.
Última função política frequentemente preenchida, ao longo da
história, pelos caminhos e os santuários de peregrinação: erigir-se em
ícone da identidade, regional ou “nacional”, do seu povo. A dimensão
regional pode (podia) observar-se, intensa, em Portugal, culminando até
em eventuais “zaragatas” entre grupos locais. E o exemplo contemporâneo mais candente da dimensão “nacional” é o que oferece a peregrinação ao local das aparições de Nossa Senhora em Medjugorje, numa disputada região de maioria croata (católica) na Bosnia-Herzegovina (muçulmana) (Claverie, 2002).
“Estrutura romeira” que se articula à estrutura da religião, à estrutura da política. Para citar só mais uma, à estrutura da economia.
E assim chegamos – enfim – a situar a proposta explícita que
nos fez o título definitivo desta mesa. Pois, agora, parece-me
logicamente situada – e explicada – a presença de uma dimensão de
turismo na peregrinação. Presença recente? Não, com certeza! Virginia
Rau (1943) demonstrou há tempo para o Portugal que a maior parte
das feiras e mercados teve por origem uma romaria, e conclusões de
historiadores do medievo permitem estender à Europa inteira esta
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PEREGRINAÇÃO E ROMARIA: UM LUGAR PARA O TURISMO RELIGIOSO
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afirmação (por ex. Brehier e Aigrain., 1938). Mesmo assim, condições
e “mentalidade” econômicas irão, sem dúvida, modificar as formas
históricas da pressão dessa estrutura. E fazer, por exemplo, dessa presença o que hoje chamamos “turismo religioso” na peregrinação. O
importante é sublinhar que, mesmo entrando assim na composição
do feixe estrutural da peregrinação, a dimensão “econômica”, organizada e prazerosa, do turismo por si só não anula ou perverte necessariamente a estrutura romeira. Se não me engano, utilizando outros
conceitos e categorias, pelo menos parte dos membros desta mesa
(Carneiro, 2006, Abumanssur, 2005, Steil, 2003) concordaria com a
recusa desta simples oposição.
Não poderia terminar, no entanto, sem evocar outra eventual perspectiva. Apesar do que acabamos de afirmar, não é impossível que o
trabalho da simbiose, em parte harmônica, em parte conflitual, das estruturas que concorrem para a formação de determinada realidade social acabe por enfraquecer e quase esvaziar a força de uma delas. A
lógica de seu significado pode não mais ser apreensível nos comportamentos e nas representações. É historicamente atestado, por exemplo,
que, em regiões portuguesas de antiga e marcada decristianização
(Alentejo), boa parte das peregrinações perderam sua dimensão romeira e se transformaram em feiras de trocas friamente econômicas. Meramente seculares, pelo menos em nível consciente. Seria o caso de detectar assim mesmo nelas um “sagrado de substituição”? Ou simplesmente é fato que as estruturas, para além de multiplicar na história suas
“transformações”, podem chegar a desaparecer, deixando lugar a outras na ordenação do real, e inaugurando assim, para o fenômeno em
questão, uma nova história?
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Notas
Preocupação pastoral, numa recente campanha de reforma, com a prática, em Canindé, de
nove comunhões eucarísticas no mesmo dia. Ou ainda, no século 18, injunção do recémchegado bispo de Mariana explicando que a confissão sacramental terá o mesmo valor
quando realizada na paróquia, antes da romaria, por conseguinte em território de jurisdição
clerical mais direta, evitando-se assim as longas filas de homens e mulheres juntos num
espaço mal fiscalizado.
2
A “inventio” medieval dos corpos santos ou das relíquias, é “achamento”, conforme o
sentido primeiro do latim clássico.
3
Os pés de São Tomé esposando, na Bahia, as pegadas de Sumé, no primeiro santuário
fundado pelos jesuítas, junto a grupos indígenas cujo herói epônimo era Sumé.
4
Mesmo quando esta “santidade” não se refere a uma definição – ou aceitação – eclesiástica.
1
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São numerosos na América Latina os casos de “heróis” populares santificados por um culto
de romaria. O caso extremo parece ser o do “santo galgo” cuja memória era venerada em
romaria, até o século 19, por populações camponesas do centro da França (Schmitt, 1979).
5
Annette Laming Emperaire, André Leroi-Gourhan.
6
São ainda as mãos, masculinas e femininas, impressas nas grutas de Gua Masri, na ilha de
Borneu (Indonésia. Mais de 10.000 anos AC), que permitem a Jean Michel Chazine, pesquisador do CNRS, uma afirmação quanto ao papel ativo das mulheres nas atividades
xamanísticas ocorridas nestas grutas, indo além da simples presença feminina na clientela
terapêutica (Bourdet, 2006).
7
Ou “Estrutura romeira”. Pois, não se trata mais aqui de uma alusão às romarias concretas
de Portugal, mas a uma dimensão estrutural, que, ao mesmo tempo, subjaz a qualquer
romaria, dando-lhe sentido, e resiste à sua regulação ab externo. Na verdade, no fenômeno
romaria-peregrinação está presente, com dominante variada, uma estrutura de estruturas, a
articulação tensa entre a “estrutura romeira de acesso ao Sagrado” e a “estrutura religiosa
de sua administração”.
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RELIGIÃO, FAMÍLIA E IMAGINÁRIO ENTRE
A JUVENTUDE DE MINAS GERAIS 1
Fátima Regina Gomes Tavares
Marcelo Ayres Camurça2
Resumo: Este artigo contém alguns resultados de uma pesquisa ampla realizada em
forma de survey aplicado a estudantes do ensino médio da rede pública do estado de
Minas Gerais. A partir dos indicadores extraídos da base de dados da pesquisa busca-se detectar as preferências e pertencimentos religiosos destes jovens e os
rebatimentos destes nos seus valores e crenças. Circunscritos a um recorte geracional,
os dados aqui analisados podem contribuir também para traçar um panorama atual
das tendências em jogo no campo religioso brasileiro. Podem também fornecer um
olhar mais refinado para os estudos acerca do segmento juvenil, compondo uma
zona de interseção entre “antropologia da religião” e “antropologia da juventude”.
Palavras-chave: Religião, juventude, família, imaginário.
Abstract: This article contains some results of wider research carried out through
surveys applied to middle school students in the public education system in the
state of Minas Gerais. The religious preferences and affiliations of these young
people was found from the indicators extracted from the research database, as
well as the affects of these on their values and beliefs. Restricted to generational
viewpoint, the data analyzed here could also contribute to sketching a current
panorama of the trends now taking effect in the Brazilian religious field. It may
also provide a sharper view upon youth studies in the intersection between
“anthropology of religion” and the “anthropology of youth.”
Keywords: Religion, youth, family, imaginary.
Introdução
Pode-se situar a introdução do tema da religião nos estudos sobre
juventude no bojo de um “alargamento” desta categoria3. De um foco inicial
da juventude como segmento da classe média urbana e universitária com o
imaginário centrado na política (Poerner, 1967, Ianni, 1968, Foracchi, 1972)
chega-se a um reconhecimento da diversidade empírica do “campo”, com
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 99-119, outubro de 2006.
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FÁTIMA REGINA GOMES TAVARES E MARCELO AYRES CAMURÇA
outras modalidades de “ser jovem” em suas experiências, crenças e comportamentos: como o consumo, a sexualidade, a música, a estética e a violência. (Abramo, 1994, Vianna, 1997, Diógenes, 1998, Minayo, 1999,
Abramovay, 2002, Dayrell, 2002).
No estudo pioneiro de Regina Novaes (1994) que incorpora a dimensão da religião ao tema da juventude, apesar da abertura do recorte, o objeto
padece ainda de um “afunilamento”, destacando-se apenas a juventude estudantil universitária. No entanto, esta amplitude de perspectiva abre a abordagem da religiosidade para um segmento, que nas análises anteriores era apenas
identificado sob o crivo da política. Ressalve-se também que nesta abordagem
a juventude universitária nunca foi tomada como paradigma de “juventude”,
mas apenas um “espaço” de encontro de tendências sociais contemporâneas
com uma apropriação geracional singular, mas representativa.
Estudos posteriores dessa autora (Novaes, 1999, 2003) ampliam o
enfoque para as manifestações culturais de determinados subconjuntos da
juventude, como o hip-hop, em contexto específico de exclusão e violência,
mas que atravessam e agregam outras “juventudes” que, embora vivendo
em contextos de classe média, partilham da mesma conjuntura social e
simbólica. Em outros estudos (Novaes, & Mello, 2002) montados em pesquisa de opinião sobre a totalidade de jovens de grandes metrópoles, a
autora revela para além das clivagens sociais e culturais amplos espaços de
interseção em termos de experiências geracionais, sociais e culturais.
Desta maneira, um conjunto dos trabalhos que vem formando o
campo de estudos de “juventude e religião” não escapa das tensões e articulações interpretativas do campo de estudos da juventude em geral: ênfase de um lado nos marcos geracionais e de outro na pluralidade de experiências de “ser jovem”. Acrescenta ainda a esta nova área de estudos questões cruciais ao campo de estudos da religião: como o do papel da religião
na modernidade e no Brasil, a questão da secularização e do sincretismo
com todo seu corolário.
O artigo que apresentamos a seguir faz parte dessa seqüência de
estudos, que se inicia com a pesquisa pioneira de Regina Novaes sobre
religião e política entre alunos de Ciências Sociais, tendo como seguimento
a pesquisa coordenada por Carlos Alberto Steil e Sonia Herrera, do Núcleo
de Estudos da Religião (NER) da UFRGS, em universidades do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais4, que introduziu de forma marcante
esta temática nos fóruns acadêmicos das Ciências Sociais no país, como a
ABA, a RAM e as Jornadas5.
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 99-119, outubro de 2006.
RELIGIÃO, FAMÍLIA E IMAGINÁRIO ENTRE A JUVENTUDE DE MINAS GERAIS
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O presente texto tem por objetivo apresentar alguns resultados de
uma pesquisa sobre religião e juventude em Minas Gerais iniciada em agosto de 2003 com o apoio da FAPEMIG e do programa de bolsas BIC-UFJF
e PIBIC-CNPQ 6 e em colaboração com a professora Léa Freitas Perez e
sua equipe na UFMG.
A pesquisa visou detectar, dentre outros indicadores, as preferências
religiosas desta juventude estudantil mineira por sexo, cor, distribuição geográfica, seus valores e suas crenças. Para tal foi aplicado um survey em
11.481 alunos da rede pública de Minas Gerais, acoplado ao Sistema Mineiro de Avaliação da Educação Pública (SIMAVE) da Secretaria de Educação
do Estado, que visa avaliar a situação da educação no Estado. O questionário contou com oitenta perguntas estruturadas em cinco blocos: caracterização socioeconômica, pertença religiosa, valores morais e política. O questionário foi aplicado em escolas distribuídas em cinco pólos de Minas Gerais: Zona da Mata, Capital, Centro-sul, Triângulo Mineiro e Norte.
O universo geral dos estudantes pesquisados apresenta as seguintes
características: feminino (59,1% mulheres e 40,9% homens) e branco (47,9%
brancos, 31,5% negros, 12,6% pardos). Predomina um perfil típico dos
estudantes secundaristas: faixa entre 17 e 19 anos, solteiro, sem filhos,
morando com os pais. Contudo, nota-se uma vinculação expressiva ao mercado de trabalho (43% trabalham, 18,5% desempregados, 22,2% donas de
casa e 36,2% só estudam). Isto nos leva a concluir que sendo estudantes da
rede pública, oriundos de classes com menos poder aquisitivo, tem então a
necessidade de trabalhar. No entanto, não interrompem seus estudos, o
que os faz eleger o binômio: trabalho-escola como valor importante para a
vivência da juventude, como demonstraremos a frente.
Pertença religiosa
No que se refere à escolha religiosa, a quase totalidade dos estudantes
afirma ter religião (94,9%) contra apenas (5,1%) de “sem religião”. Dentre a
maioria dos estudantes com religião, embora haja a presença de um leque de
opções religiosas, em termos quantitativos verifica-se uma preponderância do
catolicismo (79,4%), seguido de longe pelos protestantes (7,7%), do
pentecostalismo (6%), dos espíritas (2,4%), do candomblé-umbanda (0,3%) e
de outros (4,3%). Isto significa que em Minas Gerais, neste segmento juvenil, o
catolicismo tende a preservar o seu caráter de religião majoritária, reproduzinCiencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 99-119, outubro de 2006.
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FÁTIMA REGINA GOMES TAVARES E MARCELO AYRES CAMURÇA
do-se numa escala ainda superior a média dos católicos no estado (79,4% de
estudantes católicos superior a 78,9% da média geral dos católicos).
Estes dados nos fazem inferir que em Minas Gerais ocorre uma
resistência católica à tendência geral de alterações na hierarquia do campo
religioso nacional, onde se verifica uma queda percentual do catolicismo
acrescida do crescimento das religiões evangélicas e do aumento dos “semreligião”. Nesta direção, vale lembrar que em Minas, a queda percentual do
catolicismo é menor (14,2%) que a média nacional (15,4%) e que a presença dos “sem religião” – um dos fenômenos de mais evidência no último
censo – no estado é incipiente (4,2%da população) em relação à média
nacional (7,3%) ou em comparação com à do Rio de Janeiro, o estado com
mais “sem-religião” (15,5%) do país.
Ainda na perspectiva de situar a pertença religiosa dos jovens mineiros numa escala de comparação com outras realidades (juvenis) brasileiras,
fizemos o cotejo de nossos dados com aqueles coligidos pela antropóloga
Regina Novaes na sua pesquisa “Jovens do Rio: circuitos, crenças e acessos”
publicada em Comunicações do ISER, nº 577. Uma visada geral deste cotejo
conclui por uma polaridade no comportamento religioso destes dois grupos de jovens, funcionando quase como antípodas um do outro.
Tabela 3
Distribuição das religiões entre estudantes mineiros e jovens cariocas
Verifica-se de fato uma acentuada polaridade entre os dois grupos,
em que os jovens cariocas acompanham as tendências do seu estado, quais
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RELIGIÃO, FAMÍLIA E IMAGINÁRIO ENTRE A JUVENTUDE DE MINAS GERAIS
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sejam, a queda do catolicismo e o avanço dos evangélicos e “sem-religião”
e os estudantes mineiros resistem a esta tendência de acordo com a dinâmica existente no seu estado, mantendo a preeminência dos católicos e reduzindo a taxas pequenas os “sem religião”. Note-se que as tendências em
ambos os estados ultrapassam a média nacional, tanto para o pólo da “exacerbação” (7,3% de sem-religião na média nacional e 15,5% de sem religião
no Rio) quanto para o da “resistência” (73,8 % de católicos na média nacional e 78,9 % de católicos em Minas).
Indo mais além nessa mesma direção, chamamos a atenção para uma
maior radicalização em ambos os grupos jovens com relação às tendências
gerais dos seus próprios estados, seja para afirmar uma ainda maior adesão
ao catolicismo, no caso dos estudantes mineiros, seja para afirmar uma
também maior adesão aos “sem-religião”, no caso dos jovens cariocas.
Ainda em outra comparação pode-se sugerir a forte reprodução do
catolicismo enquanto religião majoritária entre estes estudantes de Minas
Gerais, na contramão de indicadores que apontam um declínio do catolicismo entre jovens das principais metrópoles do país. Trata-se da pesquisa
do Centro de Estatísticas Religiosas e Investigação Social (CERIS), instituto assessor da CNBB, sobre a presença do catolicismo nas principais metrópoles
do país (Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre).
O gráfico que relaciona a idade com a religião mostra que em todas as
faixas etárias há mais católicos que não-católicos, exceto na faixa de 18 a 25
anos, onde a proporção se inverte, donde se pode deduzir um declínio na
reprodução de católicos justamente nas faixas mais jovens. No entanto, em
nossa pesquisa a média dos nossos jovens católicos pesquisados (79,4%) é
superior a soma das médias de jovens de outras religiões (20,7%). Também
para o caso da metrópole contemplada na nossa pesquisa, Belo Horizonte,
temos que, embora a taxa média de estudantes católicos caia para 67,4%
(em relação ao número absoluto da pesquisa de 79,4%) ainda assim ela é
superior a soma das médias dos jovens das outras religiões (32,5%)8.
Além disso, quando pai e mãe não são católicos e o filho adota outra
religião, a principal escolha reside sobre o catolicismo9. Observamos também que o maior poder de reprodução de religião dos pais nos filhos situase entre os católicos: 93% de pais católicos têm filhos católicos10.
Com isto, podemos afirmar que no caso destes estudantes da rede
pública de Minas Gerais, a situação inverte-se em relação ao processo identificado pelo antropólogo Ronaldo de Almeida, que ao examinar, sobre
bases estatísticas o transito religioso em São Paulo, configurou o catolicisCiencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 99-119, outubro de 2006.
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mo como um “doador universal”11. No nosso caso o catolicismo mantém
uma taxa de reprodução entre os jovens acima de 90% e ainda é a principal
escolha de filhos de pais não católicos que optam por outra religião.
Distribuição Geográfica
Quanto à distribuição geográfica das religiões destes jovens, verifica-se também que o catolicismo é amplamente superior às demais religiões
em todas as regiões.
No entanto, ao cruzar a filiação religiosa com as cidades e suas faixas populacionais constata-se que a Igreja Católica conserva força nas cidades menores (88%) e vai perdendo influência na medida em que a população aumenta, chegando ao seu menor percentual em cidades acima de
500 mil habitantes (68,1%)12. Ao passo que nas demais religiões o movimento é inverso, estas tem suas principais áreas de influências nas cidades
de mais de 500 mil habitantes.
Tabela 4
Religião por tamanho da cidade
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Se formos discriminar os índices de concentração na população por
religião podemos afirmar: que os católicos estão mais concentrados na região centro-sul e estão menos concentrados na região de Belo Horizonte,
ao passo que os evangélicos (protestantes + pentecostais) encontram-se
mais presentes na capital do que nas demais regiões do estado.
Se compararmos, proporcionalmente, as religiões entre si, no que
tange a suas presenças nas regiões, identificamos que os pentecostais encontram-se majoritariamente na capital (55%). Comparativamente, também, as demais religiões alcançam em relação aos católicos seu maior
percentual na capital, por exemplo, a concentração de pentecostais é 90%
superior que a de católicos em Belo Horizonte13.
Diferentemente da capital, na região centro-sul os católicos superam as demais religiões em termos de concentração. Na região norte os
índices de maior concentração estão entre os protestantes (22,4%) seguidos pelos católicos (18%). No Triângulo destacam-se, proporcionalmente,
as religiões mediúnicas (espíritas com 28,5% e afro 27,6%) contra os católicos (8,6%) e os pentecostais (6,4%). Na Zona da Mata há uma distribuição eqüitativa de todas as religiões no seu território14.
Perfil da juventude
a) Sexo
Como afirmamos anteriormente, o universo feminino é mais religioso que o masculino, entretanto, é interessante observarmos que no catolicismo, ao contrário das demais religiões, existe uma pequena diferença percentual
em favor dos homens. Dado esse confirmado nos números levantados pelo
Atlas de Filiação Religiosa para o universo geral de católicos no país.
Vale observar, a diferença mais acentuada entre mulheres e homens
ocorre na religião pentecostal (o universo feminino é 29% maior que o
masculino).
b) Cor
A declaração de católico foi maior entre os brancos (82%) do que
entre todos os jovens que se consideram representados por outros perfis
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étnicos15. Não obstante, dentro os que se declaram adeptos do espiritismo,
os brancos estão mais representados (55,6%), possuindo o menor número
de negros (10,3%).
Também a declaração de católico foi maior entre os negros (75,4%)
seguido pentecostalismo (8,6%). No entanto dentre os adeptos do candomblé–umbanda o percentual de negros é maior (22%), seguido dos adeptos do pentecostalismo com um percentual de (17,6%) de negros.
c) Classe
Observa-se entre católicos e protestantes pouca variação na sua presença entre as quatro classes consideradas (alta, intermediária e baixa) (índice socioeconômico com variáveis disponíveis na ABIPEME). Entre os
jovens pentecostais, sua concentração é menor na classe mais alta, e entre
os jovens espíritas observa-se tendência inversa, quanto mais alta é a classe,
maior é a sua presença.
Acrescentamos uma análise acerca do índice de escolaridade dos
pais também como forma de medir a presença destes jovens entre as diversas classes sociais estipuladas. Entre os jovens protestantes existe pouca
variação entre a escolaridade dos pais na distribuição pelas classes. Já entre
os jovens espíritas, quanto maior a escolaridade dos pais, maior sua presença (categoria “nunca estudou”: 1,7%). Entre os jovens pentecostais o maior percentual de pais está entre aqueles com escolaridade relativamente
baixa (categorias “nunca estudou”: 6,7% ; “ensino fundamental”: 5,8% ;
“faculdade”: 3,6%).
Entre os jovens católicos apresenta-se um problema quando o
percentual diz respeito ao grau de escolaridade do pai. Estes se concentram na faixa de escolaridade mais baixa, mas quando diz respeito à mãe é
maior a faixa que se concentra no nível universitário (81,1%; 80,6% “ensino fundamental”).
Transmissão religiosa e centralidade da família
No que se refere à religião dos pais, também observamos uma alta
taxa de pertença religiosa semelhante à dos estudantes, e também de altos
percentuais de católicos, como apresentado na tabela abaixo.
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Tabela 5
Religião dos pais
Observa-se que não somente os pais são religiosos como também
parecem exercer grande influência na escolha da religião dos filhos. Assim,
a importância da escolha da religião pela influência dos pais em comparação com a opção “motivos pessoais” constitui um indicador da centralidade
da família na transmissão religiosa entre os jovens mineiros.
Essa transmissão religiosa também pode ser observada na pesquisa “Jovens do Rio”. Entre os jovens do Rio, 58,1% responderam
que a família determinou a escolha da religião. Em Minas Gerais,
61,1% dos jovens devem sua escolha religiosa à influência dos pais,
contra 31,5% que responderam “motivos pessoais”. Esses são dados
que apontam para a importância da família, mas que também revelam
a presença de outras influências nessa transmissão religiosa (na pesquisa “Jovens do Rio”, mais de 40% apontaram outras “influências”
na escolha religiosa).
Por outro lado, esse índice de transmissão religiosa sofre variações
quando discriminamos a influência da família pela religião declarada dos
jovens. A influência dos pais ocorre mais intensamente entre os que se
declararam católicos (67,5% contra 27,8% de motivos pessoais). Já nas de-
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mais religiões declaradas ocorre a tendência inversa: os motivos pessoais
variam de 44% a 50% contra 36% a 38% aproximadamente para a influência dos pais, como se pode depreender na tabela abaixo.
Tabela 6
Quem mais influenciou a sua escolha pela sua religião
A importância dessa transmissão religiosa também varia significativamente de acordo com a escolha religiosa dos pais. O pai ter ou
não religião é um dado importante na conformação religiosa do filho:
quando o pai não tem religião é que se observa o maior índice de jovens sem-religião (20%). O maior percentual de respondentes que declararam ter religião é encontrado quando o pai é católico. Vejamos a
tabela a seguir:
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Tabela 7
Religião do Pai X Religião do Filho
O catolicismo, enquanto religião hegemônica, no que diz respeito à
juventude estudada, se reveste de forte vitalidade no âmbito da vida familiar. Se aprofundarmos as correlações apresentadas acima, verifica-se que
quando os pais são católicos é que se observa o maior índice de transmissão religiosa: acima de 90% dos filhos declararam-se católicos. Pode-se
notar ainda que quando os pais são protestantes tem-se o segundo maior
índice de filhos sem-religião (aproximadamente 10%). Numa comparação
com os “Jovens do Rio” percebem-se diferenças acentuadas no âmbito da
transmissão religiosa: entre os jovens da nossa pesquisa são os católicos
que mais seguem a crença da mãe (94,5%); entre os jovens cariocas, os
evangélicos é que mais seguem a crença da mãe (71,4% entre os protestantes e 60,2% entre os pentecostais).
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Tabela 8
Qual a religião do seu pai x Qual é a sua religião
Tabela 9
Qual a religião da sua mãe x Qual é a sua religião
Dos jovens que declararam ter religião, a esmagadora maioria (83,1%)
mantém-se na primeira escolha e os 16,9% restantes mudaram de religião
(na pesquisa “Jovens do Rio”, 17,3% declararam ter mudado de religião).
Dentre aqueles que mudaram de religião, os principais motivos alegados
para a troca foram “a nova religião trouxe paz e felicidade” (43,9%), seguido da “doutrina da nova religião” (31,1%). Quando perguntados sobre a
época em que foi feita a nova opção religiosa, verificamos que os índices de
mudança de religião aumentam à medida que se recua no tempo. Assim,
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observamos a menor percentagem entre os que se converteram há menos
de um ano (20,7%) e a maior entre aqueles com mais de cinco anos na nova
religião (34,5%).
Tabela 10
Há quanto tempo você está na nova religião x
Quem mais influenciou a sua escolha pela sua religião
Como podemos observar, a importância dos pais na escolha da nova
religião é maior para conversões mais antigas (com mais de cinco anos).
Considerando que os nossos entrevistados situam-se na faixa que vai dos
17 aos 19 anos, pensávamos encontrar maior incidência entre os recémconvertidos, o que favoreceria a hipótese de que os jovens encontram-se
mais propensos a realizar uma opção pessoal de mudança em relação à
religião familiar. Essa hipótese, no entanto, não se confirmou: nós vamos
reencontrar o peso da família ao recuarmos no tempo para avaliar o contexto em que se deu a mudança de religião. Assim, a partir dos dados apresentados, podemos sugerir que no restrito grupo dos que se converteram a
uma outra religião, muitos deles podem tê-lo feito no contexto de uma
mudança familiar.
Ainda sobre a importância da família
A força da família reafirma-se novamente quando questionamos
sobre a importância que certas instituições, hábitos e rotinas exercem em
suas vidas. Subseqüentemente à importância da família, apresenta-se em
ordem decrescente: a religião, o trabalho, o estudo e, nos últimos postos, os
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amigos, o namoro e o esporte. Assim, define-se aqui a possibilidade de
relativização das teses de “moratória social” e de “moratória vital”16 (suspensão de responsabilidades e obrigações sociais em favor de uma liberdade para fruir a vida) enquanto uma categoria de caracterização da juventude. Nossos jovens estudantes fogem a ela ao afirmarem a importância de
hábitos que pressupõem “vínculos” sociais em detrimento da idéia de se
“aproveitar a vida”.
No conjunto de questões que procurou medir hierarquicamente o
valor de várias instituições sociais, observamos a importância da família, da
escola e do trabalho, tanto entre os “com” como entre os “sem” religião (a
religião, portanto, não parece constituir um forte apelo para o fortalecimento dessas instituições).
Gráfico 3
Valores entre os “com” e “sem” religião
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Evidencia-se, assim, o perfil de uma juventude que se constitui e se
reconhece nos espaços tradicionais de reprodução de valores e costumes
(como a família, a escola e o trabalho), mesmo considerando-se as atuais
transformações na esfera familiar. No entanto, podemos considerar que
essa juventude assimila e conjuga a força da tradição familiar, recriando-a
na medida em que adquire novos valores e costumes na sua experiência em
outros espaços sociais, o que pode ser observado nas opiniões acerca de
questões relativas à moral e à ética corporal (virgindade, homossexualidade, aborto, etc.).
O imaginário religioso
Abordando o campo das crenças, percebemos que esses jovens possuem um imaginário tipicamente católico, porém transbordando os limites
dessa instituição17, caracterizando-se por uma certa porosidade institucional.
Dessa forma, sugerimos que, ao menos no que diz respeito ao imaginário
religioso, esses jovens são mais abertos e tolerantes.
Gráfico 4
As crenças dos nossos jovens
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Caracterizando um movimento mais amplo de “empréstimos mútuos” no terreno das crenças religiosas, a nossa pesquisa indicou que estas
crenças têm extrapolado as fronteiras institucionais características das religiões estabelecidas. Assim, por exemplo, entre os que se declaram semreligião (4,1%) a quase totalidade dos respondentes afirmou acreditar em
Deus (87,3%).
Gráfico 5
Crenças entre os “com” e os “sem” religião
Pretendemos, então, explorar um pouco mais esse universo de crenças comparando o imaginário dos jovens “com” e “sem” religião.
Podemos observar através dessa comparação que:
a) imaginário rico e diversificado entre os “sem” religião;
b) imaginário dos “sem” religião é menos católico (Virgem Maria e
Santos ocupam posições inferiores), mas também pouco permeável a outras crenças religiosas (Entidades/orixás ocupam a última posição em ambos os grupos), bem como ao imaginário comumente designado por Nova
Era” (Energia/aura na quinta posição; Adivinhação/previsão do futuro
em penúltimo lugar, mesma posição entre os “com” religião)
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Ao analisarmos a ética religiosa do conjunto dos estudantes
pesquisados através de suas percepções acerca do pecado, observamos que,
para a grande maioria, o pecado não corresponde a uma invenção religiosa
para controle dos homens, mas é visualizado como uma desobediência
voluntária à vontade de Deus e possível de ser cometido mesmo sem o
intuito de fazê-lo. Percebemos, então, que Deus povoa o imaginário religioso desses jovens como uma figura austera e onipotente, o que se confirma
ao constatarmos a admissão da possibilidade de intervenção divina no curso sócio-histórico do mundo.
A interferência do “sobrenatural” no mundo também é percebida
entre os “sem” religião. Assim, a crença de que o demônio ou alguma entidade do mal possa se apossar do corpo e do espírito é partilhada por 58,5%
dos “com” religião e de 53,4% dos “sem” religião. A crença no pecado
também é partilhada pela maioria de ambos os grupos, apresentando os
seguintes percentuais:
Gráfico 6
Pecado entre “com” e “sem” religião
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Observamos, ainda, grandes semelhanças entre os dois grupos quanto
à questão que mede a “interferência” de Deus no curso da história. Assim,
a concordância com a afirmação “Deus manda em tudo o que acontece no
mundo” é partilhada por 38,9% dos “com” religião e 36,8% dos “sem”
religião; a afirmativa “Deus só intervém em ocasiões graves e especiais”
também obteve índices próximos: 35,2% dos “com” religião e 39,7% dos
“sem” religião”. Já a afirmativa “Deus não interfere na história é partilhada
por 24,3% dos “com” religião e 22,8% dos “sem” religião. No entanto, ao
considerarmos o poder da mediação institucional das igrejas entre o “outro” mundo e “este” mundo, as reservas parecem ser grandes em ambos os
grupos: quando perguntados se padres e pastores têm o poder de perdoar
os pecados, a discordância foi de 63,2% entre os “com” religião e de 83,8%
entre os “sem” religião.
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Notas
Texto originalmente apresentado com o nome de “Como é ser jovem em Minas Gerais:
religião, costumes, moral e política” no GT “Juventude e religião: modulações e articulações com a cultura, socialidade e política”, nas XIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas
na América Latina. Porto Alegre, 27 a 30 de setembro de 2005.
2
Docentes do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião (PPCIR) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Minas Gerais, Brasil.
1
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 99-119, outubro de 2006.
118
FÁTIMA REGINA GOMES TAVARES E MARCELO AYRES CAMURÇA
Ver CAMURÇA, Marcelo A. & TAVARES, Fátima G. ‘Juventudes’ e religião no Brasil:
uma revisão bibliográfica. Numen, vol. 7, 2004, p.11-46.
4
O resultado da pesquisa saiu publicado em Debates do NER com o título “Religião, política
e Ciências Sociais” e contou com artigos de Carlos Steil, Daniel Alves e Sonia Herrera, para
o panorama geral. Também de Marcelo Camurça para a UFJF, de Lea Perez, Alexandre
Cardoso e Luciana oliveira para a UFMG, de Bernardo Lewgoy para a UFRGS, de Luiz
Inácio Gaiger para a UNISINOS e de Airton Jungblutt para a PUC-RS. Além desta pesquisa, outra que envolveu um estudo comparado entre estudantes do Brasil e da Europa foi
publicada em Religião e Sociedade 22/2 de 2002 com o título ‘Religião e Esoterismo entre
estudantes: um estudo comparado internacional’, assinada por Deis Siqueira, Franz Hollinger
e Adriana Valle Hollinger.
5
O tema juventude e religião passa a ganhar visibilidade nas reuniões científicas das Ciências Sociais brasileiras na IV Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM) realizada em 2001
no Paraná, Curitiba, com o Simpósio ‘Juventud, Ciências Sociales y Religión’ quando se
divulga a pesquisa coordenada pela UFRGS. Segue no Fórum de Pesquisa ‘Religião e política entre os universitários”, coordenado por Carlos Steil e Léa Perez na 23ª Reunião Brasileira de Antropologia em Gramado-RS em 2002 e no Fórum de Pesquisa ‘Juventudes: cultura e espaço urbano, religião e política” coordenado por Léa Perez e Rosilene Alvim na
24ª Reunião Brasileira de Antropologia em Olinda, Recife, em 2004. Por fim, nas XIII
Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina compõe o GT “Juventude e religião: modulações e articulações com a cultura, socialidade e política”, coordenado por Léa
Perez e Carla Coelho de Andrade.
6
Contamos com o apoio de cinco bolsistas alunos do curso de Ciências Sociais da UFJF:
Amanda Gomes Pereira, Carlos Eduardo Procópio, Corina Valente Ferreira, Rafael Pereira,
Rodrigo C. de Mello R. de Carvalho. Cabe também agradecermos o professor Luiz Cláudio
Ribeiro, do Departamento de Estatística (UFJF), pela assessoria e pelos esclarecimentos
nas questões com respeito a demografia.
7
Deve-se deixar clara a desproporcionalidade existente entre as duas pesquisas para uma
comparação rigorosa, o que não invalida este exercício, desde que ressalvada esta desproporção. No nosso caso trata-se de um universo restrito a estudantes da rede pública do
estado de Minas Gerais, captados através de uma amostra não probabilística, ou seja, dos
11.481 estudantes que estavam em sala de aula quando da aplicação do questionário. No
caso da pesquisa de Novaes, seu espectro é a juventude como um todo do município do Rio
de Janeiro, e sua abrangência também visa cobrir todo esse universo através do método
probabilístico, por sorteio dos respondentes numa proporcionalidade com a população
juvenil dos bairros, distritos e regiões administrativas do município. Por fim, o tema da
pesquisa de Novaes é bem mais amplo que o nosso, abrangendo as esferas da família,
escola, trabalho, lazer, religião, sexualidade, drogas, violência, etc. No nosso caso embora o
foco fosse na religião e política, apareceram também como decorrência desse recorte desdobramentos nos campos da família, escola, trabalho, sexualidade, etc. De agora em diante,
essa pesquisa será referenciada neste relatório apenas com o título de “Jovens do Rio”.
8
“Juventude Mineira: religião e valores”, texto de Léa Perez (pesquisadora consorciada
desta pesquisa para os dados relativos a Belo Horizonte) apresentado na mesa redonda:
Religião e Juventude: cultura, valores morais e política no XII Congresso Brasileiro de Sociologia,
realizado na UFMG, de 31 de maio a 03 de junho de 2005.
3
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RELIGIÃO, FAMÍLIA E IMAGINÁRIO ENTRE A JUVENTUDE DE MINAS GERAIS
119
9
Entre os jovens que têm pai espírita, 44,5% são espíritas e 44% são católicos. Entre jovens
que tem mãe espírita, 56,7% deles são espíritas e 35,3% são católicos. Entre jovens que têm
pai pentecostal, 78,3% são pentecostais, mas 11,5% são católicos e quem têm mãe pentecostal,
76,5 são pentecostais, mas 13,8% são católicos.
10
Aprofundaremos essa questão mais adiante.
11
‘Religião na metrópole paulista’, RBCS, Vol. 15, nº 56, out. 2004.
12
Esse dado confirma-se no Atlas de Filiação Religiosa, que detectou que, do ponto de vista
demográfico, os católicos estão mais presentes nas zonas rurais que urbanas (op.cit. p.06).
13
Segundo o Atlas de Filiação Religiosa, os espaços geográficos do Triângulo Mineiro e das
regiões limítrofes com o Rio de Janeiro são espaços de maior diversidade religiosa, com
pouca presença de igrejas tradicionais como a católica, e maior presença das religiões
mediúnicas e orientais. O espiritismo aparece com destaque, principalmente nas cidades de
Uberlândia e Uberaba, no Triângulo mineiro, o que se confirma nas declarações dos estudantes pesquisados. Pode-se explicar o alto percentual de espíritas na região devido à presença do falecido médium Chico Xavier.
14
Segundo o Atlas de filiação religiosa no Brasil, a região de Belo Horizonte (acompanhada
de Governador Valadares) é a que mais concentra os pentecostais em Minas Gerais. Cerca
de 600 mil pentecostais vivem na capital. Estes concentram-se, em geral, na periferia das
capitais (Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Vitória, etc), também em Belo Horizonte e em
alguns distritos como Venda Nova, representando 15% da população. Estes indicadores se
confirmam na nossa pesquisa entre os estudantes entrevistados.
15
O que também se confirma nos dados apresentados pelo “Atlas de Filiação Religiosa”.
16
Tais teses são apresentadas por M. Margulis e M. Urresti (1996) como princípios
norteadores da categoria juventude, percebida como uma experiência geracional comum, a
despeito, por exemplo, de distinções de classe.
17
O que nos é revelado, por exemplo, pela constatação de um elevado índice de não adeptos
de religiões mediúnicas que crêem em entidades, orixás, reencarnação e vidas passadas,
entre outros inúmeros casos.
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 99-119, outubro de 2006.
PODER E POLÍTICA NA
CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL:
UM PENTECOSTALISMO NA CONTRAMÃO
Norbert Hans Christoph Foerster
UMESP/Brasil
Resumo: Como nos seus tempos primordiais, a Congregação Cristã no Brasil
continua se propagando pelas redes sociais pessoais e pelo culto como únicas
estratégias de marketing. Ela mantém a regra que lideranças não podem ser candidatos políticos, e que nos cultos não se pode fazer propaganda por nenhum candidato ou partido. Estes fatos demonstram que a CCB se mantém fora de algumas
dinâmicas religiosas, culturais e sociais que atingiram praticamente todos os grupos religiosos contemporâneos e têm na sua ponta outros grupos pentecostais. A
CCB continua sendo, portanto, o que os primeiros pesquisadores já afirmaram a
seu respeito: um pentecostalismo sui generis. O presente trabalho analisa as relações
de poder no interior deste grupo religioso, suas estratégias concorrenciais, sua
falta de inserção na política partidária, e indaga quais dispositivos na sua memória
e representações coletivas não permitem as mudanças que se operam nos outros
grupos religiosos.
Palavras-chave: Dominação religiosa, tradição religiosa, memória coletiva, política.
Abstract: Just as in the time of her beginning, the Christian Congregation of
Brazil continues to propagate herself by personal networks and by cult as unique
ways of marketing. Leaders are prohibited to be political candidates, and in the
cult there is no place for political propaganda. These facts prove that the CCB
keeps herself aside some religious, cultural and social dynamics which had impact
on nearly all contemporary religious groups, with other pentecostals at the frontline.
Therefore, the CCB continues what their first scholars already affirmed about her:
a pentecostalism sui generis. The present paper analyses the relations of power within
this religious group, his competitive strategies, and his lack of participation in
party politics. It looks for the devices in his memory and collective representations
that block the transformations which are occuring in other religious groups.
Keywords: Religious domination, religious tradition, collective memory, politics.
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 121-138, outubro de 2006.
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NORBERT HANS CHRISTOPH FOERSTER
Introdução
Ao contrário de outros grupos religiosos – e incluem-se aqui a Igreja
Católica e as igrejas do protestantismo histórico –, a Congregação Cristã no
Brasil (CCB) parece ter sofrido poucas mudanças diante do avanço da concorrência e do pluralismo religiosos. Como nos seus tempos primordiais, a CCB
continua apostando na eficácia do culto e da propagação pelas redes sociais
pessoais como únicos meios de dar continuidade à sua tradição religiosa. Enquanto quase todos os outros grupos estão se gospelizando em termos musicais,
a CCB não modificou seu hinário nos últimos quarenta anos. A respeito do
campo político, ultimamente muito disputado por grupos religiosos, com um
enorme apetite por benefícios institucionais, a CCB mantém a regra que lideranças não podem ser candidatos políticos, e que nos cultos não se pode fazer
propaganda para nenhum candidato ou partido. Estes fatos demonstram que a
CCB fica alheia a certas dinâmicas religiosas, culturais e sociais que atingiram
praticamente todos os outros grupos religiosos e têm na sua ponta outros
grupos pentecostais. A CCB continua sendo, portanto, um pentecostalismo sui
generis, como seus primeiros pesquisadores já afirmaram.
O presente trabalho analisa as relações de poder no interior deste
grupo religioso, suas estratégias concorrenciais, sua falta de inserção na
política partidária, sua relação com o Estado, e indaga quais dispositivos na
sua memória e representações coletivas não permitem as mudanças que se
operam nos outros grupos religiosos.
As relações de poder no interior da CCB
A CCB afirma no artigo 1 dos Estatutos aprovados em 1931 e reformados em 1936: “Na parte espiritual não existe nenhum governo humano,
só o Divino, como será explicado nos artigos que seguem.” Diz o artigo 3:
“Sua organização consiste em amar a Deus, ter por cabeça só a Jesus Cristo
e por guia o Espírito Santo.” Já o artigo 4, porém, afirma:
Entre os membros da Congregação mais revestidos de dons espirituais do
alto (1 Cor 12) serão constituídos pelos Anciãos mais velhos, e reconhecidos e aprovados por unanimidade da Congregação a que pertençam, como
ancião, encarregados ou diácono, para presidir ao serviço, manter a ordem e
ministrar a Palavra. Na ausência do ancião, ao diácono compete substituí-lo
(CCB, 1936, apud Yuasa, 2001, p. 270).
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 121-138, outubro de 2006.
PODER E POLÍTICA NA CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL...
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Os estatutos de 1968 formulam no artigo 7: “Sendo a Congregação
Cristã no Brasil uma instituição espiritual, não existe hierarquia, segundo a
Palavra de Deus; no entanto é respeitada a antigüidade no ministério.” (CCB,
1968, apud Yuasa 2001).
As relações de poder no interior da CCB podem ser esquematizadas
da seguinte maneira:
A Reunião de Ensinamentos e Assembléia anuais são, portanto, a
instância de maior poder decisório. Sobre elas dizem os Estatutos de 1968,
no artigo 16:
A fim de conservar a unidade de Espírito do povo de Deus, far-se-á realizar
anualmente na capital de S. Paulo uma reunião de Ensinamentos para todas
as Congregações da mesma fé existentes no país, devidamente representadas pelos irmãos Anciões, Cooperadores do Ofício Ministerial e Diáconos e
será presidida pelo irmão Ancião local mais antigo no ministério. ¶ Único:
Após essa Reunião anual, será também realizada a Assembléia Geral Ordinária (CCB, 1968, apud Yuasa, 2001, p. 283).
Nesta ocasião, serão eleitos também os novos Anciãos, Cooperadores
do Ofício Ministerial e Diáconos.
A Congregação Cristã no Brasil constrói a sua hierarquia, portanto,
de maneira bem específica, como gerontocracia. Nesta, o sistema político
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 121-138, outubro de 2006.
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NORBERT HANS CHRISTOPH FOERSTER
está nas mãos dos membros mais velhos da comunidade. A sua liderança se
apóia no fato de serem os mais velhos, seja de idade, seja de tradição. Isso
quer dizer que o ancião não será necessariamente o mais velho, mas pode
ser aquele que iniciou a tradição e evangelização no local. Ele é eleito pela
assembléia dos anciãos e somente por ela, após muita oração. Afirma-se
que a assembléia dos anciãos não elege de livre vontade, mas ora para descobrir quem é que Deus predestinou para ser ancião.
Por isso, excluem-se praticamente conflitos ou brigas pelo poder. A
liderança carismática sempre é ameaçada, porque se apóia no carisma pessoal, e sempre pode surgir um líder mais poderoso com um carisma mais
forte ainda que ameaça “destronar” o líder carismático existente. O ancião
é líder porque é o mais velho e, por isso, o mais apto como guardião da
tradição, e sobre isso não há discussão. Em segundo lugar, sim, ele deve ter
também um certo carisma e uma condução de vida condizente com as
normas da Congregação. Assim como a autoridade na CCB não é
carismática, ela também não é burocrática. Não é o diploma que determina
quem será o líder, porque não há diplomas. Não há estudo e diploma de
teologia na CCB.
Na CCB, também não há clero. Todos são leigos, e jovens entrevistadas falam com muito carinho dos anciãos que “são igual a gente, são
simples e humildes”, com a diferença que conhecem melhor a tradição.
Desta maneira, a CCB resolveu um problema crônico do protestantismo
brasileiro de forma diferenciada de outros grupos protestantes: a precariedade do pastor protestante. Na CCB, a ausência de clero contorna a questão da
precariedade do pastor protestante, elaborada por Willaime (1992). Igualmente, não existem funcionários na CCB, porque ninguém é pago pelo
serviço que faz ou pelo cargo que ocupa. Desde a reforma dos Estatutos no
ano 1936, os anciãos são excluídos do controle do dinheiro – fato que
coloca claros limites a seu poder e prestígio na CCB.1 São eles, porém, que
elegem, em Assembléia, os integrantes da administração.
Por causa da estrutura social da CCB – sem governo central regular;
as decisões que dizem respeito ao conjunto das casas de oração são tomadas nos dias da Reunião de Ensinamentos e da Assembléia –, acreditamos que
ela pode ser definida como estrutura segmentária. Encontramos o conceito
nos autores Émile Durkheim (1893), Edward Evans-Pritchard (1940a,
1940b, 1956), Meyer Fortes e Élio Masferrer Kan (2004).
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 121-138, outubro de 2006.
PODER E POLÍTICA NA CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL...
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Élio Masferrer Kan lembra no livro em que apresenta seu modelo
antropológico do campo religioso, Es del César o es de Dios?, que um sistema
religioso pode possuir
um modelo de estrutura segmentária, onde os distintos fragmentos da estrutura se mantêm
coesos por um sistema de equilíbrio instável, seguindo por analogia o modelo dos
Nuer (2004, p. 41).
Foi Émile Durkheim que introduziu o conceito da sociedade segmentária
na obra De la division du travail social, quando fala de “sociedades segmentárias
baseadas em clãs” (1893, p. 150), às quais corresponde a “solidariedade
mecânica”. Para ele, as “sociedades inferiores” viviam numa homogeneidade
quase total, amenizada somente por uma segmentação interior dos clãs
conforme famílias.
Meyer Fortes e Edward Evans-Pritchard distinguem, na introdução
do livro African Political Systems (1940), três tipos de sistema político na
África. John Middleton and David Tait comentam:
Um deles inclui sociedades nas quais a autoridade não é centralizada. Nelas não
existe um detentor do poder político no centro, e é mais difícil encontrar papéis
específicos com autoridade política claramente definida. ... Em todas as sociedades, papéis que são politicamente significativos podem ser revestidos de autoridade legítima, mas em sociedades não-centralizadas esta autoridade normalmente não é especializada. ... Um outro tipo é aquele no qual relações entre
grupos locais são controladas pelos detentores de status em sistemas de configurações e graduações de idade, pelas quais se reveste a autoridade política. ... Um
outro ainda inclui aquelas sociedades nas quais assembléias e associações da
aldeia são revestidas de autoridade política (1958, p. 1s).
Edward Evans-Pritchard chama os Nuer, nos quais encontrou esta
estrutura segmentária, também de anarquia ordenada: “De fato, os Nuer não
têm governo, e seu estado pode ser descrito como uma anarquia ordenada”, estruturada por linhagem (1940, p. 5). Já Max Weber usa, no capítulo a
respeito da transformação do carisma, de Economia e Sociedade, expressão
semelhante: anarquia regulada, referindo-se a comunidades primitivas:
Uma anarquia regulada somente pela manutenção dos usos e costumes de
fato, irrefletida ou temendo qualquer conseqüência incerta de inovações,
pode ser quase considerada o estado normal de comunidades primitivas
(1922, p. 770; tradução nossa).
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 121-138, outubro de 2006.
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NORBERT HANS CHRISTOPH FOERSTER
Nós apreendemos, portanto, o conceito de estrutura segmentária referente à CCB para elucidar sua estrutura sem governo central, na qual as
várias unidades preservam uma certa independência entre si.
Por causa desta configuração da hierarquia na CCB – gerontocracia,
cuja autoridade é legitimada pela tradição –, consideramos mais adequado
falar de dominação na CCB do que de poder. Para Weber, que considera o
conceito de poder “sociologicamente amorfo”, “poder significa toda probabilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra
resistências, seja qual for o fundamento desta probabilidade”. Ele atribui
ao conceito de dominação mais precisão, porque este “só pode significar a
probabilidade de encontrar obediência a uma ordem” (Weber, 1991, p. 33).
De fato, os membros da CCB obedecem à tradição e à ordem, das quais o
ancião é apenas o guardião e representante.
O culto é um dos lugares primordiais nos quais o ancião exerce a sua
autoridade. Seu discurso sempre é “a manifestação de um dom e a
legitimação de um poder, o qual remete às relações de poder dentro da
CCB” (Corrêa, 1989, p. 117). No discurso religioso, o locutor é do plano
espiritual (divino) e o ouvinte é do plano temporal (humano). Uma vez que
é o próprio ancião que interpreta o dogma da manifestação do Espírito
Santo nele, não há mais separação entre o ancião e a divindade. Sendo o
auditório composto de convertidos e não-convertidos, o ancião deve argumentar nos dois níveis. Ele procura incluir o auditório institucionalmente e
em termos lingüísticos, revestindo seu discurso com certa não-reversibilidade
para “conduzir os fiéis à conclusão institucionalizada – necessidades e soluções vistas segundo o prisma do sistema de representações da CCB”
(ibidem, p. 125).
A testemunha fala com Deus, o ancião como Deus, diluindo o ouvinte
que passa a circular entre as personagens bíblicas. O último traço fundamental no discurso da CCB é o silêncio. Ele se produz calando o interlocutor
e pela própria fala, ocultando o que não é permitido dizer. Não é o dito,
mas o próprio ato de dizer que silencia o outro, e a divindade que se manifesta silencia as carências humanas. O ancião (voz divina), ao dizer o que
deve ser dito, obriga também o interlocutor a dizer o que se quer ouvir. Se
este não corresponder às expectativas, o ancião tem o direito de adverti-lo
ou até de desligar o microfone.
A estrutura hierárquica da CCB tem claros traços de uma dominação
masculina sobre o sexo feminino. Mulheres são excluídas de qualquer acesso
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 121-138, outubro de 2006.
PODER E POLÍTICA NA CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL...
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à hierarquia.2 Seu lugar nas representações bíblicas que circulam na CCB é
de anti-deus, enquanto nas histórias do cotidiano ela parece como parceira
com um grande poder de oração diante de Deus. Excluídas do púlpito, são
as mulheres que mais se manifestam nos momentos de êxtase religioso por
glossolalia. Este talvez marque, de certa maneira, uma zona intermediária
entre o falar com Deus e o falar como Deus.
De certa maneira, a própria casa de oração da CCB constitui um espaço ambíguo ou intermediário entre espaço privado (casa) e espaço público.
Tanto na cultura italiana como na brasileira, a casa é mais domínio da mulher, enquanto o espaço público é domínio do homem.3
Apesar da mulher, nas normas escritas da CCB, praticamente não
ter vez, as mulheres membros da CCB parecem sentir um empoderamento
por serem membros deste grupo religioso, e que este, na maioria dos casos,
melhorou suas condições de vida e sua satisfação com a vida.
As estratégias concorrenciais da CCB
Estudando os primeiros relatórios sobre o culto da CCB (Leonard,
1988, original: 1952) e observando o culto da CCB hoje, não se percebem
maiores mudanças. Após a saudação inicial, cantam-se três hinos, escolhidos por integrantes da assembléia e cuja escolha é confirmada pelo ancião
ou dirigente do culto. Segue o momento da oração, em que o êxtase, a
emoção e a palavra são liberados; há pessoas que oram em línguas
(glossolalia). No fim deste momento, uma voz se levanta e se impõe sobre
as outras. Encerra-se este momento com um hino, e o dirigente anuncia
que as pessoas têm a liberdade de dar o seu testemunho, louvando e dando
glórias a Deus pelas maravilhas que Deus operou em suas vidas. O dirigente dá os avisos e chama mais um hino. É o momento do recebimento da
palavra, destacado pelo dirigente e talvez o mais festivo de todo o culto. O
dirigente ou uma pessoa convidada faz a leitura da Bíblia e em seguida o
discurso. Canta-se mais um hino e segue o agradecimento final, outro momento de liberação da emoção, do êxtase e da palavra. O culto termina
com a saudação final, uma espécie de bênção, após a qual os fiéis são convidados a saudar com o Ósculo Santo os fiéis do mesmo sexo.
Canta-se as canções do hinário, que é o mesmo em todas as congregações. Nele, nas primeiras edições foram acrescentados muitos hinos e
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 121-138, outubro de 2006.
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NORBERT HANS CHRISTOPH FOERSTER
suprimidos alguns. Desde a edição Livro no 4 do hinário, de 1965 – há 40
anos, portanto! –, não houve mais nenhuma mudança no hinário, mas apenas reimpressões. O estilo musical, sereno e clássico, é o mesmo como nos
tempos antigos.4 Também as letras são as antigas ainda; não se percebe
nenhuma influência do movimento gospel ou outras inovações da moda. O
hinário e a Bíblia são os únicos utensílios indispensáveis para os fiéis (acrescentando, para as mulheres, o véu). Igualmente, não se percebe uma maior
espetacularização dos cultos como forma de aumentar a atração e o recrutamento de adeptos.
Não se percebem mudanças também na estratégia de conversão.
Como nos primeiros dias até hoje, fazem-se novos conversos no círculo
dos familiares, dos vizinhos e dos amigos. José Guilherme Cantor Magnani
(1998, e Magnani e Torres, 2000) distingue as estratégias de trajeto, mancha e
pedaço. No caso da estratégia do pedaço, penetra-se sempre mais num bairro,
por redes de parentesco, vizinhos ou amigos. Acreditamos que esta seja a
estratégia que a CCB está usando.5 Em entrevistas, jovens ainda não
batizadas afirmaram que já evangelizam e tentam ganhar outras pessoas
para a CCB. Uma entrevistada afirmou que só se conversa sobre a fé e se
convida pessoas a participar da CCB quando estas dão a impressão de uma
predisposição religiosa e espiritual.
O rito com suas propriedades, que praticamente não mudaram desde os dias primordiais até hoje, e a evangelização pelo testemunho nas
redes sociais pessoais constituem as únicas formas de marketing da CCB.
Como nos dias primordiais, ela continua sem reunir multidões nas praças
para convertê-las, não faz uso de panfletos ou qualquer outro material de
propaganda escrito e muito menos dos meios eletrônicos e meios de comunicação (rádio, TV, internet). Lembramos que até a Deus é Amor, talvez o
sistema religioso pentecostal mais rigoroso ao lado da CCB, em termos de
exigências comportamentais, já tem seu site na internet, além dos indispensáveis programas na rádio. A CCB, porém, sistema religioso pentecostal
que nasceu na cidade de São Paulo, “cidade que não pode parar” e expressão máxima da modernidade, dá a impressão de uma tradição imutável.
Pergunta-se da possibilidade e da chance de uma religião que se pretende
imutável e cadeia de memória oral numa sociedade que já não é mais uma
sociedade de memória.
Para Ricardo Mariano (1999), o lance da estratégia concorrencial
dos neopentecostais é o simples abandono das posições sectárias,
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 121-138, outubro de 2006.
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separacionistas e ascéticas dos primeiros pentecostais e a inserção e acomodação à sociedade abrangente, caindo, sem sentimento de culpa, nos
braços do consumismo capitalista e até tornando-se uma ponta de lança
deste. É esta virada que faz afluir ao neopentecostalismo gente de classe
média, empresários e profissionais que não encontram lugar nas tradições
pentecostais da austeridade, disfuncional para propostas expansionistas de
grande porte. É nossa hipótese que, neste quadro, a CCB se mantém menos austera e apresenta uma maior pluralidade comportamental do que às
vezes se pensa.
Ainda em 1999, o próprio Ricardo Mariano atesta um “modo sui
generis, sectário e pouco suscetível a influências externas” à CCB, que “apresenta poucas alterações comportamentais” (p. 204). O autor observa que o
terno deixa de ser obrigatório para os homens, e as mulheres têm uma
liberdade maior para cortar os cabelos e até se maquiar. Léonard (1988, p.
81), porém, citando uma pesquisa do Roger Bastide do fim dos anos quarenta, desperta a atenção para um pluralismo interno de comportamentos
na CCB já há sessenta anos, e escreve sobre as mulheres na casa de oração
no Brás: “Todas as mulheres ornamentadas, via-se que elas tinham se arrumado para ir à Igreja. (...) Moda da época, roupas de seda, decoradas, bordadas, laços nos cabelos, penteados de toda espécie, bijuterias, pingentes,
colares, anéis, broches.”
Nossa pesquisa de campo, que está em andamento, indica que os
fiéis fazem uso de rádio, TV etc. e que essa prática seja muito mais difusa
do que a teoria e o ensinamento permitem. Assim, há vários indícios que
a ruptura com a modernidade, referente aos meios de comunicação, esteja sofrendo um desmanche. Pedimos a uma amiga nossa pesquisar na
casa de suas duas primas bem idosas, membros da CCB, esta questão, e
ela nos escreveu (carta do dia 24 de janeiro de 2005): “A televisão, o
rádio, o computador são opcionais, e a maioria tem. Só que não é para
pôr o coração, o pensamento nos argumentos da mídia.” Reed E. Nelson
escreveu em 1984: “A proibição da CCB contra televisão, rádio, jogos, o
fumo, mais as suas restrições de ordem moral erguem uma barreira entre
o crente e as pessoas do mundo.” Em dezembro de 2004, ele afirmou,
um tanto decepcionado, que a família onde ele estava hospedado em
Sorocaba – família, diz ele, bem honrada e importante na CCB de
Sorocaba, apesar de ninguém ser ancião ou diácono – agora já tem também televisão em casa. O dono da casa, questionado por Nelson, respon-
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 121-138, outubro de 2006.
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NORBERT HANS CHRISTOPH FOERSTER
deu que os anciãos também já possuem TV na sua casa (comunicação
verbal). Uma jovem, ainda não batizada, nos afirmou numa entrevista
informal, dando risada e aparentemente consciente da problemática, que
há duas TVs na sua casa, na qual todos participam da CCB (uma delas na
sala, lugar público da casa). Questionada sobre relações sexuais antes do
casamento, proibidas na CCB conforme Mariano (1999), ela respondeu
que a CCB não as aprova, mas tolera se os jovens depois casam. Vê-se,
portanto, que as fronteiras rígidas entre os membros da CCB e os que
não pertencem a ela estão se tornando difusas, e a austeridade ascética,
que já nos anos quarenta não era abrangente, está se amenizando.
A (não-)inserção e atuação
da CCB na política partidária
A CCB continua sendo francamente apolítica. Ainda no ano 1999,
Ricardo Mariano atesta seu “renitente apoliticismo”, compartilhado pela Deus
é Amor (1999, p. 236). Assim, ela mantém a tradição da velha máxima evangélica brasileira que “crente não se mete em política”, e adverte seus membros:
“Tu não participarás”, como Christian Lalive D’Epinay formulou a regra de
ouro do pentecostalismo chileno para os anos 80 (1970, p. 206).
Esse apoliticismo da CCB está sacramentado num de seus esparsos
textos, no Resumo dos Ensinamentos da reunião de março de 1948. Nele lemos a respeito do item política (CCB, 2002, p. 21):
Nas Congregações não são admissíveis partidos de espécie alguma; cada um
é livre, cumprindo o seu dever de votar, que é uma determinação da lei.
Todavia nós, remidos pelo Sangue do Concerto Eterno, nunca devemos
votar em partido que negue a existência de Deus e a sua moral.
Quem ocupar cargos no ministério não deve aceitar encargos políticos. Não
se deve permitir que candidatos a cargos políticos venham fazer propaganda ou visitar as Casas de Oração com esta finalidade.
Enquanto a CCB se mantém fiel a essa tradição, sua contemporânea
Assembléia de Deus a abandonou faz tempo. Há quase vinte anos, em 1986,
um dos seus pastores publicou um livro que, já no título, anunciou a ruptura com essa antiga tradição do pentecostalismo brasileiro a favor de um
franco corporativismo eclesiástico: Irmão vota em irmão (Sylvestre, 1986). A
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PODER E POLÍTICA NA CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL...
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estrutura da Assembléia, legitimada pela autoridade carismática e baseada no
modelo organizacional do clientelismo, possibilita que, com respeito à política, ela se acomode e assemelhe mais às dinâmicas neopentecostais. Já a
estrutura da CCB, legitimada pela autoridade tradicional e baseada no modelo organizacional da família extensa ou do clã, torna uma mudança assim
mais difícil, como discutiremos mais adiante.
É verdade que numa eleição recente, na cidade de Osasco-SP, um
músico de orquestra –e, portanto, ministro – da CCB se candidatou como
vereador.6 Ele deveria, em conseqüência, ser excluído dos cultos da sua
casa de oração. Isso, de fato, não ocorreu. O motivo, porém, não foi qualquer interesse político da CCB: esta apenas tolerou uma exceção, com o
único motivo de garantir a continuidade tranqüila da execução dos hinos
em seus cultos.
As relações da CCB com o Estado
O mesmo apoliticismo que encontramos com relação à (não-)inserção e (não-)atuação da CCB na política partidária, rege também as
relações da CCB com o Estado. A CCB não mostra nenhuma pretensão
de regular os princípios organizadores da sociedade e nenhuma aspiração de construir uma sociedade cristã.7 As relações da CCB com o
Estado se limitam àquilo que a lei prescreve. A CCB começou a publicar o Relatório anual com seus dados estatísticos para cumprir a lei, como
estava estampado nas primeiras edições: para dar a César o que é de César.
Não é do nosso conhecimento qualquer aliança com representantes do
executivo ou do legislativo, ou qualquer tentativa de formar lobbies religiosos ou políticos. As relações com o Estado se limitam ao estritamente necessário. Mudanças na legislação exigem da CCB uma maior
burocratização, porém, e a obrigam a mudar estratégias tradicionais.
Assim, a CCB costumava construir novos templos a partir de mutirões
de fim de semana, realizadas por seus membros: os homens trabalhando na construção, e as mulheres preparando refeições na cozinha. Mudanças na legislação trabalhista dificultam a comprovação da
voluntariedade do trabalho em mutirão, e forçam a CCB a estudar especificamente essa questão.
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NORBERT HANS CHRISTOPH FOERSTER
Dispositivos relevantes
na tradição e memória da CCB
Analisamos, até aqui, as relações de poder no interior da CCB, suas
estratégias concorrenciais, sua falta de inserção, e estratégia de eximir-se de
qualquer atuação, na política partidária e sua relação com o Estado. Restanos indagar quais dispositivos na sua memória e representações coletivas não
permitem as mudanças que se operam nos outros grupos religiosos. Sem
pretensão de esgotar o assunto, queremos apresentar pelo menos alguns.
Certamente, é uma característica da CCB seu elevado nível de
sectarização. Ela tenta impor sua visão da tradição verdadeira como única
válida e não procura nenhum diálogo com outros sistemas religiosos: para
a CCB, nem os fiéis da Assembléia de Deus se salvam. O imaginário da CCB
ganha seu contorno próprio a partir três representações e práticas centrais
interrelacionadas: “serem escolhidos de Deus”, “separação do mundo” e
“o combate ao demônio” (Deitos, 1996, p.70). As vestes devem ser dignas
dos escolhidos. O trabalho é sacralizado, porque os escolhidos aumentam
a glória de Deus pela atividade e não pelo ócio e prazer. Pela importância
que se dá à seriedade do trabalho, se vê como o cotidiano é impregnado de
moralidade e de fé. O fiel sustenta o fato de ser escolhido por Deus, separando-se do mundo: este é necessário para dar o sustento pelo trabalho,
mas nele também está presente o demônio. “A idéia de ‘separação do mundo’ – possível dentro do imaginário pentecostal – precisa de um constante
reabastecimento, porque frágeis são os signos e imagens que são construídos
a partir desta separação, provocando no fiel a necessidade de recorrer aos
cultos, onde pode alimentar este imaginário” (ibidem, p.80). Sem conversação, este imaginário ou mundo construído começa a vacilar e perde sua
plausibilidade subjetiva. Enquanto, nas representações e no imaginário da
CCB, a casa de oração é o lugar de Deus onde o demônio não entra (por
isso, não há exorcismo e expulsão de demônios nos cultos da CCB), o
mundo é o mundus immundus sempre prestes a contaminar os fiéis. Estes,
por isso, têm que participar do culto para se purificar sempre de novo. Os
freqüentes cultos (a maioria das casas de oração da CCB têm cultos pelo
menos três vezes por semana) mantêm o fiel no mundo das idéias da CCB
e diminuem a exposição a idéias alheias.
O diabo, como um dos principais componentes do imaginário
pentecostal, corresponde à experiência de caos ou perigo da ausência de
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sentido. O pecado gera anomia ou caos, porque nega o abrigo religioso que
‘dá sentido’ ao mundo. A representação de serem eleitos passa pela negação do caos, e o caos se nega rendendo-se ao plano divino, aceitando Jesus
e pertencendo à Igreja. “A perspectiva pentecostal está voltada não para a
transformação do mundo, mas para o cumprimento do fiel de sua vocação.” (Deitos, 1996, p. 87). Esta moralidade, além de ser um letreiro fácil de
se ler, explica o notório apoliticismo da CCB.
A separação torna necessária uma rígida manutenção das fronteiras.
De fato, a CCB mantém fronteiras rígidas com pouco desvio (Nelson, 1984).
Sua estratégia de propagar-se por redes sociais já existentes garante
homogeneidade. Além disso, as visitas constantes entre os membros e as
reuniões nas casas criam profunda interdependência pessoal e controlam o
comportamento. A única maneira de conhecer as minúcias da CCB é pelo
contato prolongado. Maturidade na CCB: caráter pessoal, não conhecimento específico. A proibição de TV, rádio, jogos e fumo constitui um
repúdio de literalmente todos os passatempos da população em geral. É
verdade que a fronteira é permeável no batismo (quem deseja, pode ser
batizado, sem nenhuma preparação), na contribuição (livre) e no álcool
(moderadamente liberado). Aqui, a estratégia da manutenção de fronteiras
facilita o ingresso de novos membros, mas dificulta o seu contato prolongado com o meio ambiente, uma vez que aderiram.
O ahistoricismo da CCB está ligado à sua representação do tempo.
Este é construído como tempo de expectativa e aguardo de Deus; nega-se
a importância da história, a qual pertence ao mundo (por isso a CCB não se
importa com registros), valoriza-se o presente e o futuro. O membro da
CCB é como peregrino neste mundo a caminho da casa do pai. Enquanto
muitos sistemas religiosos pentecostais (especialmente os neopentecostais)
sobrevalorizam o hic et nunc, a idéia do fim do mundo está sempre presente
na CCB. A própria frase com que os fiéis, no culto, costumam iniciar seus
testemunhos – “Eu agradeço a Deus pelo perdão dos meus pecados e pela
coroa da vida eterna que Ele me reserva se eu for fiel aos seus mandamentos” – mostra como o presente (“fiel aos seus mandamentos”) deve ser vivido no horizonte do futuro com Deus (“coroa da vida eterna que Ele me
reserva”). A constante repetição desta frase nos cultos ajuda a inculcar esta
representação e fazer da espera pela vinda do Senhor um habitus arraigado.
Acreditamos que outro dispositivo que não permite mudanças rápidas na tradição e transmissão religiosa da CCB seja a tradição oral. Tradi-
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ção oral é conservadora por definição, e faz parte da sua natureza que ela se
mantenha relativamente constante. Só se fixa por escrito o que a instituição
não consegue impor por tradição de uso e costume oral (Einhorn, 2000).
Ligada à tradição oral, a estrutura social da CCB como gerontocracia
é legitimada pela tradição. Já vimos que os membros da CCB não obedecem
nem ao carisma de um líder, nem a uma estrutura burocrática, mas à tradição
e à ordem, da qual o ancião é apenas o guardião e representante. Ser o guardião
e representante da tradição legitima a autoridade do ancião. Uma vez que não
existe tradição por escrito, mas somente tradição oral, os anciãos, como
guardiões e representantes desta tradição e os contadores de história, são
membros cruciais da comunidade de tipo tribal que é a CCB. Eles agem
como “condutores” da tradição oral de geração em geração. Eles guardam e
transmitem a memória coletiva da CCB e são seus portadores. Esta memória
coletiva não existe petrificada por escrito, mas apenas fixada no rito: o rito é
o quadro social da memória da CCB.8 Nele, tanto a tradição religiosa e a
autoridade do ancião como a identidade de todo o grupo são reafirmadas.
Conclusão
Tentamos analisar, neste trabalho, as relações de poder no interior
da CCB, suas estratégias concorrenciais, sua falta de inserção na política
partidária, e sua relação com o Estado, e indagar quais dispositivos na sua
memória e representações coletivas não permitem as mudanças que se
operam nos outros grupos religiosos. Acreditamos ter mostrado que o sistema religioso pentecostal da CCB constitui realmente um pentecostalismo
sui generis que se mantém afastado das tendências da maioria dos outros
grupos religiosos, especialmente pentecostais. Foram demonstradas fundamentais diferenças em relação às Assembléias de Deus, ao lado das quais a
CCB muitas vezes é citada, subsumidas como “pentecostalismo clássico”.
Na discussão dos dispositivos relevantes na tradição e memória da
CCB, tentamos evidenciar como eles são interligados e se sustentam mutuamente, formando um sistema bastante coeso. O abandono de um elemento, nos parece, criaria um desequilíbrio no sistema todo. A nosso ver, especialmente os dispositivos da tradição oral e da gerontocracia, legitimada
pela autoridade tradicional, se reafirmam e ratificam um ao outro. Se um
destes dois fosse abandonado, nos parece, o outro e provavelmente todo o
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sistema cairia por terra, assemelhando a CCB aos outros pentecostalismos
e assimilando a CCB, a passos largos, à sociedade abrangente. Acreditamos
que, com o avanço espantoso dos neopentecostais, a CCB, que já era a
locomotiva do pentecostalismo no Brasil (nos anos iniciais, maior do que
as Assembléias de Deus e no Censo de 2000 ainda o segundo maior sistema
religioso pentecostal), irá ocupar, no futuro, provavelmente um nicho no
campo religioso brasileiro – possivelmente um nicho bastante relevante,
atraindo talvez aqueles que consideram as religiões históricas estéreis demais e os outros grupos pentecostais barulhentos demais e procuram um
retorno a um ponto intermediário, como já suspeitou Mendonça (1998).
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NORBERT HANS CHRISTOPH FOERSTER
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Notas
Key Yuasa mostra como o conceito da separação entre o governo espiritual da igreja e a
administração dos assuntos materiais evoluiu na CCB (2001, p.171-179).
2
Parece até que o espaço da mulher se reduziu. Na Assemblea Cristiana, da qual a Congregazione
Cristiana saiu no dia 16 de abril de 1926 após um conflito interno, Rosa, mulher de Louis
Francescon, figurava ainda doze dias antes (4 de abril de 1926) como diaconisa – a única ao
lado de seis diáconos homens. Anos antes, no dia 7 de outubro de 1907, ela viajou sozinha
(!) para Los Angeles para testemunhar o movimento pentecostal italiano em Chicago a
família de Nicola Moles. (cf. Yuasa, 2001) No início da CCB, mulheres podiam ministrar a
reunião dos menores; mais tarde, a liderança das reuniões para jovens e menores foi reservada aos
homens.
3
Salvatore Cucchiari discute essa questão para o pentecostalismo italiano na Sicília (1988 e
1990).
4
Muitas composições e músicas do hinário da CCB aparecem também no Hinário Evangélico
com Músicas Sacras, editado pela Conferência Evangélica do Brasil (1980). As letras do hinário da CCB costumam ser poesias de membros seus ou traduções, às vezes bastante livres,
de hinos do hinário da CCB em italiano ou de outros em inglês.
1
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5
De certa maneira, os relatórios da CCB confirmam isso. Conforme o relatório de 1999/
2000, a CCB adquiriu novas casas de oração como imóvel próprio em 36 cidades, e destas
casas seis em Barueri (SP), doze em Carapicuíba (SP), três em Cotia (SP), duas em Cunha
(SP), quatorze em Limeira (SP), três em Piracicaba (SP), três em São José dos Campos,
quatro em São Paulo, duas em São Roque (SP), três em Ponta Grossa (PR), duas em Tuneiras
do Oeste (PR), e duas em Estância (SE). Já o relatório 2003/2004 indica que a CCB adquiriu novas casas de oração (imóveis próprios) em vinte cidades, e destas casas três em Ituverava
(SP), cinco em São Carlos (SP), sete em São Paulo, e três em Telêmaco Borba (PR). Chama
atenção que a CCB investe pesado num pedaço (p. ex. em Limeira, onde adquiriu quatorze
(!!) imóveis próprios num só ano), mas poucos anos depois esta cidade nem consta mais na
lista, e se investe com força em outros pedaços.
6
Agradecemos esta informação a um colega de curso que pesquisa o comportamento político dos evangélicos.
7
Juan Cruz Esquivel demonstra e analisa essas aspirações, em concorrência com o Estado,
para o caso da igreja católica na Argentina e no Brasil (2003).
8
Evidentemente, as questões da memória coletiva e dos quadros sociais da memória devem
ser analisadas a partir dos estudos de Halbwachs (1990, 1994). Paulo Barrera Rivera (2001)
aplica sua teoria aos sistemas religiosos pentecostais.
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 121-138, outubro de 2006.
A BUSCA DA SAÚDE INTEGRAL POR
MEIO DO TRABALHO PASTORAL
E DOS AGENTES COMUNITÁRIOS
NUMA FAVELA DO RIO DE JANEIRO
Victor Vincent Valla1
Maria Beatriz Guimarães2
Alda Lacerda3
Resumo: Esta pesquisa tem como foco pastores de igrejas evangélicas que moram e/
ou convivem com a comunidade onde atuam. A radicalidade do gesto de conviver com
moradores de favela se enquadra num conjunto de gestos também radicais oriundos da
religião presbiteriana. Richard Shaull, considerado o “avô” da teologia da libertação, ao
vir para o Brasil, baseado na vida de Cristo, trouxe a proposta dos seminaristas irem
morar em comunidades pobres. Vimos nos questionando se a convivência com os
pobres pode contribuir para a melhoria das suas condições de vida, e se o trabalho
destes pastores tem alguma relação com o trabalho desenvolvido pelos agentes comunitários de saúde. Os objetivos deste artigo consistem em identificar as possíveis analogias entre o trabalho dos pastores e dos agentes comunitários na construção de uma
saúde integral na sociedade contemporânea; e discutir como esta convivência influi na
forma de cuidado que é oferecida às classes populares.
Palavras-chave: Pastores presbiterianos, agentes comunitários de saúde, classes
populares, processo de saúde-doença
Abstract: This research focus in some ministers of evangelical churches who live,
or are sociable, in the communities where they act. The radical gesture of living
among slum inhabitants is easily understood if we take a close look at other radical
practices of the presbyterian religion. When Richard Shaull, considered the liberation
theology’s “grandfather”, came to Brazil, he brought this proposal to the seminarists,
taking Jesus Crist’s life as the foundation of his motion. We have been questioning
if living with poor people would contribute to improve their life conditions, and if
pastoral work have a direct relation with the work developed by health
communitarian agents. The purpose of this article consists in identifying the possible
analogies that can be established between the works of the presbyterian ministers
and of the communitarian agents in the construction of an integral health in the
contemporary society, and also discuss how this sociability influences the health
care offered to the poor classes.
Keywords: Presbyterian ministers, health communitarian agents, popular classes,
health-illness process.
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 139-154, outubro de 2006.
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VICTOR VINCENT VALLA, MARIA BEATRIZ GUIMARÃES E ALDA LACERDA
Introdução
O presente trabalho faz parte das investigações que vêm sendo desenvolvidas pelo Departamento de Endemias Samuel Pessoa, da Escola
Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/ FIOCRUZ)4, por meio
da sua linha de pesquisa “Educação, Saúde e Cidadania” do CNPq. A nossa proposta é articular o campo da saúde e da religião na compreensão do
processo de saúde-doença das classes populares.
A pobreza e miséria de grande parte da população e a falta de recursos
básicos à sobrevivência das camadas mais pobres interferem diretamente no
adoecimento dos sujeitos e grupos sociais e colocam em questionamento a
garantia constitucional do direito à saúde dos cidadãos. Como conseqüência,
cresce a demanda de atenção médica decorrente de diversos problemas de
natureza socioeconômica e política, tais como a violência, as precárias condições de vida, a fome, a exclusão escolar, entre outros. Mas os serviços públicos de saúde não estão estruturados para lidar com esse tipo de demanda.
Os serviços de saúde costumam trabalhar com uma oferta pré-determinada, e, desse modo, não privilegiam as demandas e necessidades dos
sujeitos e as realidades de cada comunidade, de cada região. O modelo
médico hegemônico a orientar as práticas de saúde enfatiza as doenças e
suas causas, e não se tem espaço para as dimensões simbólicas, emocionais
e culturais do adoecimento e sofrimento. Com isso, a qualidade do cuidado
fica comprometida.
A baixa resolutividade de propostas oferecidas pelo Estado para
melhorar as condições de vida das classes populares e os limites de acesso
e resolutividade dos serviços públicos de saúde revelam alguns dos impasses
que esses segmentos da população convivem no seu dia-a-dia. A análise da
conjuntura socioeconômica e política atual evoca um pessimismo diante da
situação de miséria radical e da dificuldade em eliminar a pobreza, o que
torna difícil superar os impasses do cotidiano, principalmente para quem
trilha o que Chauí (1990) chama de “caminho estreito”, isto é, uma vida de
pouco dinheiro, espaço e tempo livre.
Diante desse “caminho estreito”, chamamos atenção para os recursos encontrados pelas classes populares para enfrentar os impasses do cotidiano e resistir às condições de precariedade. Estamos nos referindo ao
modo como a sociedade civil se organiza, tecendo estratégias e táticas de
redes e apoio social (Valla, 1999; Lacerda & Valla, 2003), entre as quais
destacamos a organização de alguns grupos religiosos.
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 139-154, outubro de 2006.
A BUSCA DA SAÚDE INTEGRAL POR MEIO DO TRABALHO PASTORAL...
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Ao falarmos de apoio social nos referimos aos diversos recursos
emocionais, materiais e de informação que os sujeitos recebem por meio
de relações sociais sistemáticas, e que gera efeitos positivos tanto para quem
recebe como para quem oferece o apoio, com conseqüentes benefícios à
saúde física e mental (Minkler, 1992; Valla, 1999; Lacerda, 2002). A importância do apoio social como promotor da saúde indica que as pessoas necessitam uma das outras e que algumas soluções dos impasses podem passar pelo apoio mútuo e pelas redes de solidariedade. As instituições religiosas, nesse sentido, podem ser vistas como espaços de apoio social onde os
sujeitos vão para desabafar os seus problemas e serem escutados, cuidados
e acolhidos. Além do apoio informativo que os ajudam na solução de problemas e tomadas de decisão, também recebem apoio emocional que propicia um maior sentido e coerência de vida.
Embora existam diversas atividades e práticas de apoio social em
nossa sociedade, estudar a questão religiosa como uma forma de apoio
social é importante devido à demanda crescente das classes populares nessa direção, principalmente das igrejas evangélicas. O nosso pressuposto é
que as classes populares procuram as instituições religiosas para enfrentar
os impasses e solucionar os problemas de saúde, soluções estas que não
são encontradas nos serviços públicos de saúde.
Dentro dessa perspectiva, a nossa pesquisa tem como foco alguns
pastores de igrejas evangélicas, entre as quais as presbiterianas, que moram
e/ou convivem com a comunidade onde atuam e, dessa forma, compartilham com os moradores alguns dos perigos e incertezas que os afligem. São
pastores que vêm desenvolvendo há alguns anos trabalhos de assistência relacionados à educação e saúde da população e acabam, portanto, se tornando
uma espécie de elo entre as classes populares e os profissionais de saúde.
Vimos nos questionando se o ato de conviver com os pobres pode
contribuir para a melhoria de suas condições de vida e se o trabalho dos
pastores que moram nas comunidades tem alguma relação com o trabalho
desenvolvido pelos agentes comunitários de saúde que atuam nos serviços
públicos de saúde. Os objetivos deste artigo consistem em identificar as
possíveis analogias entre o trabalho dos pastores e dos agentes comunitários na construção de uma saúde integral na sociedade contemporânea; e
discutir como a convivência influi na forma de cuidado que é oferecida às
classes populares, tanto por parte dos pastores presbiterianos quanto do
trabalho exercido por agentes comunitários de saúde.
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 139-154, outubro de 2006.
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VICTOR VINCENT VALLA, MARIA BEATRIZ GUIMARÃES E ALDA LACERDA
A pesquisa foi realizada na região da Leopoldina, na Área de Planejamento 3.1 do Rio de Janeiro, conhecida como uma das áreas mais violentas da cidade com renda média de três salários mínimos, praticamente a
metade da média da cidade. A região tem um grande número de favelas e
conjuntos habitacionais de baixa renda. Fizemos entrevistas semiestruturadas com pastores de igrejas presbiterianas e agentes comunitários
de saúde que atuam nessa localidade.
Teologia da libertação:
uma opção voltada para os pobres
A radicalidade do gesto de conviver com moradores de favela se
enquadra em um conjunto de gestos também radicais de homens e mulheres que optam por morar e conviver com os pobres, conforme evidenciados em várias partes do mundo ocidental por razões diferenciadas e em
conjunturas distintas.
Na Rússia, em fins do século XIX, jovens militantes da esquerda se
propuseram a conviver com os camponeses (Paiva, 1984). Na década de
30, Simone Weil, uma jovem professora de filosofia decide se empregar em
uma fábrica na França (Bosi, 1979). Como não possuía condições físicas
para trabalhar junto com os operários, essa professora vai morar em um
bairro operário e oferece aulas de matemática e geometria para os operários vizinhos. O gesto de Simone se repete quando padres católicos franceses se dirigem ao trabalho em fábricas durante a Segunda Guerra Mundial.
O pastor presbiteriano Richard Shaull, missionário norte-americano, conhecido por estudiosos como um dos primeiros teólogos da libertação (Cesar & Shaull, 1999), em viagem à Colômbia e, posteriormente, ao
Brasil, nas décadas de 1950 e 60, fica assombrado com o grau de pobreza
das populações desses dois países. Professor de teologia em um seminário
protestante em Campinas, ele propõe aos seminaristas presbiterianos que
aluguem um quarto na casa de uma família operária e se empreguem em
uma fábrica. Esta proposta tinha a ver com o interesse de Shaull no trabalho dos padres operários franceses. Assim sendo, um grupo de seminaristas decide alugar uma casa simples em um bairro de Campinas chamado
Vila Anastácio, onde se concentrava grande parte dos operários.
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A BUSCA DA SAÚDE INTEGRAL POR MEIO DO TRABALHO PASTORAL...
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A experiência de Vila Anastácio permitiu aos seminaristas compartilharem de uma vida de subsistência e precárias condições econômicas.
Dessa forma, foram profundamente transformados e forçados a estudar
mais seriamente a realidade social e econômica do povo. Constataram que
a visão da vida e do mundo e, em especial, suas perspectivas religiosas eram
diferentes de tudo o que haviam presumido até então. A medida que se
acercavam do povo e viviam as mesmas lutas diárias – situação de
marginalidade e de opressão dos seus vizinhos – sentiam-se compelidos a
examinar tudo que haviam pensado sobre o mundo emergente da indústria
e os seus desafios para os cristãos. A experiência de Vila Anastácio consistiu em uma das raízes da teologia da libertação, na medida em que “foi
visto e feito coisas nunca antes ditas ou feitas a nível das bases” (Shaull,
2003, p.122). Entre os participantes, havia nomes como os de Mateus
Benevenuto, Jovelino Ramos, Rubem Alves, Claudius, entre outros.
Shaull foi um dos primeiros cristãos a propor a convergência do
marxismo com o cristianismo, um movimento que mais tarde resultaria na
criação da organização política de Ação Popular, cujo objetivo era a superação da pobreza por meio da ação política. Por causa das suas posições
teológicas, sofre represálias dos seus superiores nos Estados Unidos e é
afastado do Brasil por longo período de tempo. Essas posições, além de
conviver com os operários na moradia e no trabalho, incluíam a formação de
comunidades eclesiais de base, mais tarde assimilada pela teologia da libertação, e a crença polêmica de que Deus, além de amar todos os homens, tem
uma preferência pelos pobres e desvalidos da sociedade. No fim de sua vida,
Shaull declara que a conversão religiosa não significa passar a acreditar na
existência de Deus nem adotar uma determinada religião no lugar de outra,
mas exclusivamente se converter à causa do pobre (Shaull, 2003).
A preocupação de Shaull com os pobres foi permanente. Embora
fosse professor de seminário protestante, realizou na década de 90 um longo estudo sobre as igrejas pentecostais porque foram para essas igrejas que
os pobres se dirigiam na época.
André Corten, ao escrever o prefácio do livro de Waldo Cesar e
Richard Shaull (1999, p. 9), comenta que os autores chamam atenção para
uma idéia que contraria a opinião de muitos religiosos: “a salvação não é mais
uma aposta no além, a vida é salva agora”, dentro da compreensão de alguns
protestantes de que a salvação trata da remoção dos obstáculos que impede
que a vida seja vivida com dignidade.
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As motivações que levam as pessoas a morar com os pobres são
diferenciadas. Para Simone Weil, a sua escolha está relacionada ao desejo
de compreender melhor o modo de vida dos operários. Já para os pastores
presbiterianos e padres operários franceses, a motivação corresponde a uma
determinada leitura do evangelho onde Cristo compartilha a mesa com
ladrões e prostitutas, convivendo assim com os pobres, conseqüência de
uma escolha de vida que começou com o seu nascimento em um estábulo.
Dentro da experiência de convívio, é interessante o relato feito por
um dos pastores entrevistados na nossa pesquisa, que no ano de l965 vem
de Belém do Pará para o bairro da Penha, na região da Leopoldina, zona
norte da cidade do Rio de Janeiro. O local escolhido veio a ser o embrião
da grande favela Parque Proletário da Penha, onde ele reside até os dias
atuais com sua família. A escolha desse pastor presbiteriano em morar e
conviver com os pobres se insere numa opção que se repete em várias
partes do mundo ocidental, e, embora talvez ele não tivesse clareza, o seu
gesto pode ser interpretado como uma continuação de um processo que se
iniciou com os jovens militantes russos da esquerda no fim do século XIX
(Paiva, 1984).
A viagem do pastor, que se instala no Parque Proletário da Penha, e
a vinda de Richard Shaull ao Brasil são eventos contemporâneos ao golpe
militar nos primeiros anos da década de 60. A proposta desses dois pastores presbiterianos fazia parte de uma filosofia da época, que atualmente é
chamada de “cristianismo de libertação” (Löwy, 2000). De modo semelhante ao movimento dos jovens militantes russos, tratava-se de um retorno ao sentido inicial do cristianismo por meio da releitura e reinterpretação
dos padres da Igreja, como fica evidenciado em Paulo Freire (1985, p. 31)
ao citar São Gregório de Nissa do ano 330 no Sermão contra os usuários:
Não dês esmolas. Mas, de onde as tiras, senão de tuas rapinas cruéis, do
sofrimento, das lágrimas dos suspiros? Se o pobre soubesse de onde vem o
teu óbolo, ele o recusaria porque teria a impressão de morder a carne dos
seus irmãos e sugar o sangue do seu próximo. Ele te diria estas palavras
corajosas: não sacies a minha sede com as lágrimas de meus irmãos. Não dês
ao pobre o pão endurecido com os soluços de meus companheiros de miséria. Devolve a teu semelhante aquilo que reclamaste e eu te serei muito grato. De que vale consolar um pobre, se tu fazes outros cem?
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A BUSCA DA SAÚDE INTEGRAL POR MEIO DO TRABALHO PASTORAL...
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A proposta pedagógica de Paulo Freire era uma contribuição a essa
filosofia que compunha o novo pensamento social cristão. Freire (1985, p.
30-31) afirmava:
Com a distorção de ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde,
a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando
os oprimidos, ao buscar recuperar sua humanidade, que é uma forma de
criá-la, não se sentem idealisticamente opressores, nem se tornam de fato
opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E
aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos - libertar-se a si
e aos opressores.
A partir da teologia da libertação é possível compreender como os
pastores presbiterianos foram contaminados com idéias de conviver com
os pobres, pois ser revolucionário implicava romper com o mundo
circundante para dedicar-se ao povo, penetrando nele, identificando-se com
ele. Dentro de uma perspectiva do populismo russo, e guardando as devidas diferenças com as classes populares brasileiras, era preciso que as vanguardas se fundissem voluntariamente com a massa camponesa (Paiva, 1984).
O povo sabe o que quer a partir da vivência, cabendo aos revolucionários
(militantes) aprender com ele os segredos da sua vida e da sua força.
Basta ler os documentos dos jovens católicos brasileiros do início
dos anos 60 para ver questões semelhantes às enfrentadas pelos populistas
russos sobre como vencer o atraso e evitar os abusos, as explorações e os
crimes contra a dignidade da pessoa humana gerados pelo capitalismo. Se
as massas eram as condutoras do processo nacional, portadoras da verdade, careciam, no entanto, de condições para proferir seu ideário.
Talvez a experiência mais importante da teologia da libertação tenha
sido a praticada por jesuítas missionários na Nicarágua e em El Salvador na
década de 70, cuja figura central desse grupo era o Padre Rutilio Grande,
um jesuíta que decidiu abandonar a cidade e compartilhar a vida com os
pobres das áreas rurais. Löwy (2000, p. 167-168) descreve a proposta de
educação popular em El Salvador que nos lembra o debate sobre as críticas
ao populismo católico:
A equipe missionária viveu entre os camponeses e formou comunidades de
base que eram concebidas como uma comunidade de irmãos e irmãs dedicados a construir um novo mundo, sem opressores e oprimidos, de acordo
com o plano de Deus. Liam a Bíblia, comparando suas vidas com as dos
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hebreus, que escravos sob o Faraó do Egito, tinham se libertado graças à
ação coletiva. Uma média de setecentas pessoas participou das reuniões semanais, com um círculo de influência de mais de três mil. Estimulavam a
autoconfiança dos camponeses, assim como o desenvolvimento de uma nova
liderança, eleita pela própria comunidade.
Rutilio Grande e outros religiosos convertidos à causa progressista,
além de vários cristãos da teologia da libertação, foram assassinados pelo
exército e pelas forças paramilitares.
Pastores e Agentes Comunitários de Saúde: suas formas
de atuação no convívio com as classes populares
O trabalho exercido por pastores e agentes de saúde comunitários
tem em comum o fato de ambos serem moradores e, portanto, conviverem
com a comunidade na qual prestam serviço, além de visitarem regularmente as casas de sua clientela. Uma das características importantes desse tipo
de trabalho é o vínculo que eles estabelecem, por meio de contatos sistemáticos, com a população, o que, por sua vez, propicia o apoio social e o
cuidado em saúde.
Na entrevista com o pastor do Parque Proletário da Penha, ele enfatiza
a importância de o pastor morar próximo aos fiéis, pois assim participa do
dia-a-dia e está atento a tudo o que acontece, sabendo das notícias de antemão. Tendo em vista que os pastores são solicitados para diversas atividades dentro da comunidade, eles podem prestar o atendimento de forma
mais rápida e eficaz.
Do mesmo modo, o convívio com as classes populares também auxilia o trabalho dos agentes comunitários, já que o conhecimento de alguns
problemas que ocorrem no cotidiano pode ajudar na compreensão dos
determinantes de saúde. Tomemos como exemplo o aumento da demanda
dos postos de saúde devido aos quadros de vômito e diarréia nas crianças
ou as crises hipertensivas nos adultos após uma noite de tiroteio na favela
(Guimarães et al, 2005). Esses episódios, freqüentes nos postos de saúde,
são diagnosticados a partir dos seus sintomas e, portanto, medicalizados,
pois muitos profissionais não correlacionam as queixas dos usuários com
os problemas vividos pela comunidade.
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A BUSCA DA SAÚDE INTEGRAL POR MEIO DO TRABALHO PASTORAL...
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Essas situações se tornam usuais nos serviços públicos de saúde em
função dos profissionais não disponibilizarem tempo adequado para escutar seus pacientes e, desse modo, contextualizar o que dizem. É verdade
que a lógica econômica imposta aos serviços públicos de saúde disponibiliza
pouco tempo para cada consulta, mas o que vemos é que, em geral, o mais
crucial entre os médicos não é a falta de tempo, e sim o fato de que faz
parte da racionalidade da medicina ocidental contemporânea não se ater ao
relato do paciente, muitas vezes considerado “impreciso” e “subjetivo”,
optando por encontrar a doença no organismo, através de exames clínicos
e instrumentos técnicos (Guimarães, 2001).
A qualidade do cuidado e a resolutividade das queixas ficam comprometidas. Ao invés da substância medicamentosa, esses pacientes buscam outro tipo de “remédio”, que só seria possível caso houvesse uma
maior compreensão e envolvimento do profissional de saúde com os sujeitos doentes (Lacerda, 2002).
O fato de fazer parte da comunidade traz ganhos para as relações e
estreitam os vínculos de confiança dos profissionais com a população, além
de se ficar sabendo tudo o que se passa no dia-a-dia:
“A colega ali ganhou neném, a criança foi internada.” Quer dizer, eles chamam a gente pra falar da sua vida e para falar da vida do outro, dizendo:
“Oh, fulano passou mal ontem à noite”. São coisas importantes que a gente
vê que a gente realmente é conhecido na área, apesar da gente já ser moradora, que isso também ajuda muito, quando eles vêm que você é da área, que
vive na mesma situação que eles, conhece os problemas da comunidade
(Agente Comunitário de Saúde).
A fala do agente comunitário revela a importância que as classes
populares atribuem ao se reconhecer no outro que está cuidando, “que
vive na mesma situação”. A possibilidade de identificar parceiros, de saber
que outras pessoas compartilham situações semelhantes, fortalece os vínculos e cria um sentimento de pertencimento e identidade de grupo, diminuindo a sensação de carência e isolamento (Lacerda, 2002).
Com base nas entrevistas realizadas, pudemos constatar que a proximidade dos pastores com os moradores propicia encontros que, muitas
vezes, podem provocar mudanças radicais em suas vidas, como o exemplo
de jovens que deixam o tráfico e se convertem à igreja. Esses sujeitos recebem diversos tipos de apoio social dos pastores, desde o apoio tangível
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para arrumar emprego, até o apoio emocional, que os ajuda a largar o vício
e encontrar um sentido para a própria vida.
Acompanhar de perto os moradores, freqüentando inclusive suas
casas, associado ao trabalho de formação com base teológica desenvolvido
com os fiéis da igreja presbiteriana, faz com que seus membros permaneçam na mesma denominação religiosa por toda uma vida, passando de
geração a geração. Isso difere do que ocorre com igrejas evangélicas
pentecostais e neopentecostais, que reúnem grande número de crentes,
mas que no entanto possuem um público flutuante, com um constante
entra e sai de seus membros, e onde o pastor não acompanha de perto seus
fiéis. Essas igrejas são chamadas de “socorro espiritual” por serem procuradas por pessoas que se encontram “no fundo do poço” e para quem “a
igreja é a última porta” (Cesar & Shaull, 1999). A percepção dos pastores
entrevistados é que as pessoas quando estão bem saem dessas igrejas, pois
as mesmas não têm uma base teológica suficiente para poder firmar o fiel.
Segundo César & Shaull (1999), o poder do Espírito Santo, presente
no universo das igrejas pentecostais e neopentecostais, é uma resposta ao
sofrimento daqueles sujeitos que não têm nenhum projeto, pois a vida não
reservou nada para eles. Os pentecostais querem resolver o problema imediato de seus fiéis e melhorar sua condição de vida, enquanto a teologia da
libertação propõe que a transformação desses sujeitos se dê por meio da
conscientização e ação política.
Ao contrário dos pentecostais e neopentecostais e em consonância
com a teologia da libertação, os presbiterianos consideram a pobreza e a
miséria algo ocasionado pelos homens e não pela vontade divina, conforme evidenciado nas palavras do pastor do Parque Proletário:
Deus se revolta com a pobreza e a miséria. Ele não quer que ninguém viva
pobre. Nosso sistema está cada vez piorando mais e o povo não tem coragem de tomar o poder, as religiões não deixam porque dizem que é a vontade de Deus. Mas isto é um falso ensinamento. Tem que oferecer Cristo, mas
vida também. Todo povo de Deus nasceu para viver bem.
O envolvimento dos pastores e agentes comunitários com a população aponta para relações mais humanizadas, nas quais nem sempre é possível curar os problemas de saúde, mas é possível cuidar dos sujeitos necessitados. As visitas realizadas nas casas dos pacientes e/ou dos membros da
igreja favorecem um ambiente acolhedor onde formas diferenciadas de
cuidado e atenção integral à saúde podem ser percebidas:
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A BUSCA DA SAÚDE INTEGRAL POR MEIO DO TRABALHO PASTORAL...
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A gente sabe que o médico não olha para o paciente, só anota, anota, não tem
aquela coisa do olhar, de pegar na mão, de ter esse contato mesmo físico e
passar essa coisa do emocional, ter um elo mais de amizade, não é ser amigos
íntimos, mas que a pessoa possa se sentir segura, tendo um consolo, já que na
sua vida cotidiana não tem isso (Agente Comunitário de Saúde).
A demanda dos sujeitos, muitas vezes, não é desencadeada por problemas de saúde de ordem física, mas de ordem mental ou psicológica ou
até mesmo pela necessidade de falar e desabafar os seus problemas. Quando um membro da comunidade de fiéis mostra-se abatido, aparentando ter
algum problema, o pastor logo pergunta o que está acontecendo. Se a pessoa se abre com o pastor e pede ajuda, ele interfere na tentativa de resolver
o problema ou reverter a situação desencadeante. O mesmo ocorre no
trabalho dos agentes comunitários:
Ah, encontramos aquelas pessoas que não estão doentes fisicamente, mas a
mente está bem adoecida, encontramos muito aquelas pessoas que precisam
só conversar com você. A gente encontra bastante. Às vezes elas não querem ir ao médico. Aliás, às vezes elas até querem ir ao médico, mas para
conversar também. Você vê que não tem nenhuma causa (Agente Comunitário de Saúde).
A escuta e o acolhimento dos sujeitos são fundamentais quando se
realizam as visitas domiciliares. Essas visitas podem ser entendidas como
atos terapêuticos. Para tanto, é preciso perceber o momento apropriado
para se fazer as orientações e/ ou recomendações:
Quando você sai daqui para ir a uma visita, você tem que tá preparada para
ouvir, mais do que falar. Às vezes você sabe que naquela primeira visita você
não pode falar tudo que teria que falar, passar os programas, aquelas coisas
da rotina nossa de trabalho. Na primeira visita o primordial é saber ouvir
(Agente Comunitário de Saúde).
A disponibilidade para a escuta permite dar a devida atenção às demandas dos pacientes. Desse modo, conforme discutido por Silva et al
(2004), os agentes comunitários não seriam apenas elos com a população,
no sentido de ser um veículo de comunicação, mas sim laços quando a relação predominante é fundamentada no respeito e no diálogo. Por meio da
escuta ampliada, os conteúdos do conhecimento são construídos e
reconstruídos de acordo com as situações do cotidiano.
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A atenção despendida sob a forma de cuidado por parte dos agentes
comunitários que passam a acompanhar o tratamento dos sujeitos doentes
pode auxiliar na recuperação da saúde e no fortalecimento da auto-estima e
confiança:
“Ah, depois que você veio aqui, que você falou e tal, eu tô indo nas consultas, eu tô me tratando”. A pessoa começa a se sentir mais gente, né, que tem
alguém que tá preocupado com a saúde dela, porque às vezes na própria
casa dela ninguém tá preocupado um com outro. Às vezes sai e chega, outro
vai. Então, têm pessoas que dizem: “Ah, eu tô muito feliz, tô melhorando, eu
não achei que tinha jeito”.
A atuação dos pastores que optam por conviver com os pobres e
dos agentes comunitários de saúde está permeada pelos saberes populares,
o que permite compreender o agir da população. Esse tipo de relação vai
de encontro às relações de grande parte dos gestores, técnicos e profissionais de saúde que têm dificuldade em compreender as classes populares,
pois legitimam os saberes técnico-científicos em detrimento dos saberes
provenientes das experiências. Essa discussão é importante e deve ser considerada ao pensarmos em práticas promotoras de saúde que privilegiem o
exercício da democracia e da autonomia.
Cabe ressaltar que os benefícios advindos do convívio com os pobres se estendem também aos mediadores, no caso os pastores e agentes
comunitários de saúde. A possibilidade de escutar o depoimento do outro,
de compartilhar problemas e soluções, permite que esses atores
ressignifiquem suas experiências de vida, dando um novo sentido às mesmas, e, desse modo, “curem a sua própria ferida”.
Considerações finais
O intuito de chamar atenção para um grupo de cristãos que convive
com os pobres foi o de descobrir uma pista de como o ato de conviver com
os pobres poderia representar uma melhoria das condições de vida daqueles com quem eles convivem. A primeira vista parece uma possibilidade
difícil porque no Parque Proletário da Penha há mais de 30.000 moradores.
O que poderia um pequeno grupo de pastores fazer em face de tantos
moradores? O pastor da comunidade em questão, em entrevista, diz que
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 139-154, outubro de 2006.
A BUSCA DA SAÚDE INTEGRAL POR MEIO DO TRABALHO PASTORAL...
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criou, a partir de sua igreja, uma rede de aproximadamente 100 fiéis que
estão inseridos em uma rede de cuidados e apoio social que prevê alimentação, saúde, educação, lazer, segurança e emprego. Todos olham para todos. Durante os anos morando na favela, esse pastor foi o principal responsável pela campanha para melhorar a distribuição de água em sua comunidade, uma contribuição essencial para a saúde da população. Atualmente, por meio dos esforços desse pastor e seus assessores, a secretaria
do estado está construindo um centro de saúde na comunidade.
Mas continuam as dúvidas. Será que a presença de poucos pastores
convivendo com as comunidades pode afetar positivamente a saúde de sua
população?
O que se pode concluir é que essa convivência contínua com a população certamente cria uma percepção das suas condições de vida que
poucas pessoas têm. Os pastores se tornam especialistas no conhecimento
do modo de vida, do fazer e do falar dessas populações e passam a conhecer em profundidade seu modo de agir em face da violência e suas formas
de solidariedade em face das necessidades dos seus vizinhos. Nesse sentido, com relação à saúde, esses pastores acabam se tornando uma espécie
de elo entre as classes populares e os profissionais de saúde, o que em si já
é um fato positivo.
Mesmo assim, persistem as dúvidas. Esse elo ou mediação com todos seus benefícios pode ser ampliado? Ou seja, é possível permear todas
as favelas do Rio de Janeiro com pastores desse caráter? Estão disponíveis
outras figuras, padres, freiras ou outros militantes com a disposição desses
pastores?
Essas questões nos levaram a pensar se não seria esse justamente o
papel do agente comunitário de saúde. Os agentes comunitários poderiam
ser esses sujeitos que expandiriam o trabalho nas comunidades, já que a sua
contratação exige que sua origem e moradia sejam da própria comunidade
popular. Nesse sentido, possuem todas as condições de serem o elo ou
mediador que são os pastores.
Assim como os agentes comunitários trabalham com territorialização
e adscrição de clientela, os pastores entrevistados também são responsáveis pelo acompanhamento de sua população – a rede de fiéis que freqüentam sua igreja. As atividades dos pastores e dos agentes comunitários podem ser vistas como exemplos de práticas de apoio social que propiciam a
integralidade das ações em saúde (Lacerda & Valla, 2003).
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Do mesmo modo que os pastores constroem redes de apoio social
formadas por algumas lideranças religiosas e pelos fiéis que freqüentam os
cultos, seria interessante pensar na construção de redes de apoio para grupos de agentes comunitários. Não obstante a supervisão oferecida pelo
Programa de Saúde da Família aos agentes, esses profissionais ainda carecem de um maior apoio emocional para enfrentar as situações de violência
e as adversidades presenciadas na sua prática cotidiana. Estes cuidadores
também necessitam ser cuidado para manter-se motivados para o trabalho.
Por fim, cabe questionar se os agentes têm clareza do seu papel. É
possível indagar, como disse Paulo Freire, que não sabem que sabem? Quem
inventou o papel do agente de saúde talvez não tenha imaginado o grau de
importância desse trabalho. O elo, ou melhor, o laço que o agente de saúde
preenche certamente pode servir de mediação não apenas para os profissionais de saúde, mas também para militantes, políticos e religiosos.
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p.103-117, 2004.
Notas
Doutor em História pela USP; Pesquisador Titular da Escola Nacional de Saúde Pública/
FIOCRUZ; Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense;
Coordenador da Linha de Pesquisa Educação, Saúde e Cidadania do CNPq; Pesquisador do
LAPPIS e integrante do Projeto Integralidade: saberes e práticas no cotidiano das instituições de saúde. End: Departamento de Endemias Samuel Pessoa, Escola Nacional de Saúde
Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões, 1480. Rio de Janeiro, RJ, CEP:
21041-210, Brasil. e-mail: [email protected]
2
Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; Pesquisadora
Visitante do Convênio FIOCRUZ/FAPERJ; Pesquisadora das Linhas de Pesquisa Educação, Saúde e Cidadania, e Racionalidades Médicas, ambas do CNPq; Pesquisadora do LAPPIS
e integrante do Projeto Integralidade: saberes e práticas no cotidiano das instituições de
saúde. End: Departamento de Endemias Samuel Pessoa, Escola Nacional de Saúde Públi1
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 139-154, outubro de 2006.
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VICTOR VINCENT VALLA, MARIA BEATRIZ GUIMARÃES E ALDA LACERDA
ca, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões, 1480. Rio de Janeiro, RJ, CEP: 21041210, Brasil. e-mail: [email protected]
3
Doutoranda em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública /FIOCRUZ; Pesquisadora da Linha de Pesquisa Educação, Saúde e Cidadania do CNPq; Pesquisadora do
LAPPIS e integrante do Projeto Integralidade: saberes e práticas no cotidiano das instituições de saúde. End: Departamento de Endemias Samuel Pessoa, Escola Nacional de Saúde
Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões, 1480. Rio de Janeiro, RJ, CEP:
21041-210, Brasil. e-mail [email protected]
4
A pesquisa é resultado de um projeto interinstitucional do Departamento de Endemias
Samuel Pessoa (ENSP/Fiocruz) em parceria com o LAPPIS (Laboratório de Pesquisas
sobre Práticas de Integralidade em Saúde), do IMS/UERJ, sobre Religiosidade e Cuidado
integral à saúde nas classes populares.
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 139-154, outubro de 2006.
ESTRATEGIAS DEL PODER SAGRADO:
LA CONSTRUCCIÓN DE LA
JERARQUÍA Y LA AUTORIDAD
EN EL BUDISMO ZEN ARGENTINO1
Catón Eduardo Carini
Universidad Nacional de La Plata - Argentina
Resumen: El artículo explora los procesos por los cuales se construyen las
dimensiones del poder, la jerarquía y la autoridad en un grupo budista zen argentino. Para ello se analiza la figura del “linaje de ancestros” del cual el maestro zen
recibe su autoridad en tanto último de los patriarcas y los ritos que legitiman este
rol. Además veremos una serie de concepciones que presentan al maestro como
un Buda actualizado, poseedor de una gran cantidad de energía vital o ki que lo
dota de poderes mágicos. Esta fuerza se relaciona con la capacidad de gobierno en
el interior de la comunidad budista y con una postura política combativa al exterior de la misma. Todo esto nos lleva a problematizar la inclusión del budismo zen
dentro del marco de la Nueva Era, pues presenta características tales como una
fuerte estructura de autoridad, que contrastan con las comúnmente aceptadas para
los grupos de este movimiento.
Palabras-clave: Budismo zen, Argentina, poder, legitimación.
Abstract: This article investigates the processes through which the dimensions of
power, hierarchy and authority are constructed within a zen buddhist group located
in Argentina. With this goal, we analize the figure of the “lineage of the patriarchs”
of wich the zen master, being the last one of them, receives his authority, and the
rites that legitimate his position. Also, we present a series of conceptions that
depict the master as a realized Buddha, in possesion of a great amount of vital
energy or ki, that provides him with magical powers. This strenght is related to his
capacity as ruler of the buddhist community, and to a revolutionary political attitude
towards the outside of the community. This takes us to the problem of the inclusion
of zen buddhism in the framework of the New Age, as it presents aspects, such as
a solid structure of authority, opposite to the ones commonly accepted features
of this movement.
Keywords: Zen buddhism, Argentina, power, legitimation.
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 155-172, outubro de 2006.
156
CATÓN EDUARDO CARINI
Introducción
El proceso de expansión del budismo a través de todo el planeta
tiene una historia de dos mil quinientos años. En el último siglo y medio
llegó a Europa y Estados Unidos, y más recientemente, a Latinoamérica.
No es mucha la bibliografía que aborde esta cuestión en los países de esta
última región, salvo en el caso de Brasil, pues en este país hay una creciente
cantidad de investigadores abocados al estudio de este fenómeno, desde la
perspectiva de las ciencias sociales.2
En un trabajo anterior (Carini, 2005) expusimos un cuadro histórico
global del budismo zen3 argentino que reseñaremos brevemente. Siguiendo
los planteos de Baumann y Koné4, diferenciamos tres momentos en el
desarrollo del budismo zen en la Argentina:
Un primer momento, caracterizado por un interés teórico e intelectual en el zen, a partir de la segunda mitad del siglo XX. Literatos y filósofos, entre quienes se destaca Jorge Luis Borges, comienzan a familiarizarse
con el budismo, y en particular con el zen. Aparecen las obras obra de D. T.
Suzuki y Alan Watts, quienes exponen su filosofía al gran público.
Un segundo momento, a partir de mediados de los ochenta, cuando
llegan los maestros japoneses Daygo Moriyama y Ryotan Tokuda a difundir el zen, al mismo tiempo que algunos argentinos van a aprender al exterior su práctica y su filosofía. Cabe mencionar que ninguno de los maestros
japoneses continuó visitando al país más allá de fines de los años ochenta;
los grupos que se desarrollaron fueron formados por aquellos argentinos
que habían tenido su experiencia del zen en el extranjero y que, a su regreso,
crearon centros de práctica de zazen.5 Entre ellos, están los maestros Jorge
Bustamante, Ricardo Dokyu y Augusto Alcalde.
El tercer momento se desarrolla desde mediados de la década del
noventa hasta la actualidad. Está caracterizado, por un lado, por la formación
de grupos de práctica de zazen pertenecientes a comunidades internacionales,
liderados por maestros extranjeros y sus representantes locales. Por otro
lado, aparecen grupos zen no tradicionales, o grupos alternativos, que
incorporan algunos elementos zen, ya sean prácticas, rituales o doctrinas,
dentro de un contexto que podríamos llamar de la Nueva Era. Un
coordinador de un grupo con estas características explicaba que los talleres
que brinda son de un estilo de zen “laico”, fuera del sistema de linaje y de
ordenación tradicional6.
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ESTRATEGIAS DEL PODER SAGRADO: LA CONSTRUCCIÓN...
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En los estudios académicos, es habitual incluir el zen dentro del
complejo de prácticas y sistemas de pensamiento denominados Nueva Era.
Creo que esta inclusión es apropiada, aunque sólo es aplicable a los grupos
zen “laicos” o alternativos que se desarrollaron en el tercer momento mencionado. Los restantes grupos zen presentan algunas características no
compatibles con los rasgos claves del movimiento de la Nueva Era.
Estos se debe a que los grupos zen constituidos por monjes budistas, ya sean argentinos o extranjeros, presentan un núcleo de continuidad
con la tradición japonesa que no está presente en el zen alternativo. Esta
continuidad se puede expresar a nivel de los rituales, de las practicas, o de
las formas de organización social. En el presente caso abordaremos uno de
estos aspectos tradicionales, la organización jerárquica de la shanga.7 Retomaremos, en el final del articulo, las implicancias que esto tiene con respecto
a la relación entre el budismo zen y el movimiento de la Nueva Era.
El grupo referente de esta investigación es un caso de comunidad
internacional del tercer momento de desarrollo del zen local. Es dirigido
por un maestro francés llamado Stephan Kosen Thibaut, quien realiza una
actividad misionera en la Argentina (y otros países latinoamericanos, como
Uruguay, Chile, Bolivia y Cuba) desde hace quince años. Kosen recibió la
autorización formal como maestro en 1983, de manos del líder mundial del
zen soto Niwa Zenji, luego de la muerte de su propio maestro Taisen
Deshimaru, introductor de esta escuela en Europa. Se separó a principios
de los noventa de la Asociación Zen Internacional, creada por Deshimaru,
y fundó su propia comunidad en Europa. A partir de mediados de los
noventa comenzó a realizar visitas a la Argentina para dirigir retiros de
meditación y, con el tiempo, fueron apareciendo centros de práctica de
zazen en Rosario, Mar del Plata, Esquel, Trelew, La Plata y Córdoba, además
de formarse grupos en otros países latinoamericanos como Uruguay, Bolivia,
Chile y Cuba. La comunidad se constituyo formalmente como Centro Zen
de América Latina y desde hace casi una década posee un templo en Capilla
del Monte, Córdoba, llamado Shobogenji. En él se realiza el encuentro anual
denominado “Campo de Verano”, durante el cual se juntan todos los
practicantes latinoamericanos para llevar a cabo un mes de meditación intensiva junto al maestro Kosen.
Los miembros en Argentina son alrededor de ciento cincuenta. Son
argentinos sin antepasados orientales, en su mayoría de clase media y edades
que van desde los veinte a los cincuenta años.
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CATÓN EDUARDO CARINI
La investigación en la cual se basa este artículo se realizó durante los
años 2001 y 2004. Se utilizó el método de investigación cualitativo con
observación participante durante los retiros anuales realizados en el templo zen. Además, se efectuaron entrevistas abiertas y se consultó textos
escritos de circulación interna en la comunidad, la mayoría transcripciones
de las palabras pronunciadas por el maestro zen durante la meditación8. El
trabajo de campo antropológico estuvo entrelazado con una participación
personal en las prácticas de meditación y con una pertenencia activa en el
grupo. Esto tiene, a mi entender, dos consecuencias: ha facilitado el acceso
a ciertos ámbitos, conversaciones y experiencias, otorgando la ventaja de
conocer a la comunidad “desde adentro”. Por otro lado, esta circunstancia
implicó el riesgo de naturalizar experiencias, por lo que en un momento
posterior de análisis de datos he intentado realizar un ejercicio de
deconstrucción de mi participación en el campo. Es con la convicción de
que la objetividad en Ciencias Sociales está relacionada con la explicitación
del contexto de producción del conocimiento, más que por una mirada
aséptica del objeto de estudio, que se señalan estas circunstancias.
Tipos de liderazgo y estrategias
de transnacionalización
Según Koné (2001, p. 148-150) “the institutions supporting zen
Buddhist practices must define their attitude according to the tradition they
are importing”, señalando a continuación que entre los primeros estudiantes
de Taisen Deshimaru existen distintas posturas con respecto al zen tradicional japonés:
1) La repetición de la tradición: se trata de emular lo más posible el
estilo de entrenamiento japonés. No se puede decidir que aspectos del zen
son más o menos importantes, por lo tanto, lo correcto es reproducir fielmente el budismo zen “original”.
2) La adaptación de la tradición: es frecuente la idea de que es
indispensable innovar. Este es un lento proceso, donde los cambios son
colectivamente examinados y aprobados. Esta postura está relacionada con
una intención explícita de reformar la tradición del zen japonés.
3) Actitud crítica hacia la tradición: la occidentalización del zen implica mantener su esencia y descartar todos los “decorados culturales”. Los
cambios son mucho más radicales que las adaptaciones anteriores.
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ESTRATEGIAS DEL PODER SAGRADO: LA CONSTRUCCIÓN...
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4) “Pedir prestada” la tradición: el zen es reinterpretado en nuevos
y diferentes contextos. Su cosmología y práctica es incorporada a diferentes grupos: desde centros cristianos, a terapias y técnicas asociadas con la
Nueva Era.
El trabajo de campo revela que el maestro zen del grupo estudiado
sostiene una actitud de “critica hacia la tradición”, según la clasificación de
Koné reseñada arriba. Esto implica que los aspectos considerados negativos son abandonados, otros son conservados y algunos son reformulados.
Taisen Deshimaru frecuentemente criticaba el zen japonés diciendo que
los monjes no practicaban zazen y sólo les interesaba realizar ceremonias
para recibir las donaciones de los laicos. La actitud crítica hacia la tradición
de Kosen Thibaut incluye frecuentes denuncias de esta situación.
Por otro lado, las adaptaciones propiciadas son la revalorización de
la práctica en la sociedad: el ideal es un nuevo tipo de monje zen que no
vive en un templo ni pasa todo su tiempo meditando, sino que, sin descuidar su práctica, vive la vida cotidiana en el seno de la comunidad secular:
Así, la enseñanza de Deshimaru -y también de Kodo Sawaki- fue que no
solamente los monjes que viven en monasterios pueden despertarse, también
cualquier persona adentro de su simple vida humana. Esto es para mi la
nueva forma del zen del futuro, se puede practicar seriamente viviendo
también su vida, por ejemplo con su familia, con su trabajo, con niños...
Esto es muy difícil. Todavía practicar en un monasterio sin tener mujer, ni
familia, ni casa ya es muy difícil... Pero existen muchos ejemplos de gente
que viven una vida muy intensa en la sociedad (...) pero que en realidad
dedican la raíz de sus vidas al zazen.9
Los aspectos de la tradición japonesas que son conservados son los
rituales y las ceremonias, la organización jerárquica de la shanga y la autoridad
centrada en la figura del maestro zen.
El planteo de este trabajo es que el modelo de autoridad centralizado, del tipo de patriarca zen, es uno de los aspectos de la tradición japonesa
que se ha conservado en el presente caso, como estrategia de
institucionalización del zen en el ámbito de la Argentina. Este estilo de
liderazgo fue el utilizado por Taisen Deshimaru al realizar su misión en
Francia: él era considerado por sus discípulos como el “Bodhidarma de los
tiempos modernos”, que había llevado el zen de Japón a Europa, al igual
que aquél lo había llevado de la India a la China. Es con esta investidura de
“patriarca que lleva el verdadero zen a una nueva tierra” que el antiguo
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discípulo devenido en maestro, Kosen Thibaut, llega a la Argentina. La
figura del patriarca zen se recrea mediante un proceso de construcción de
autoridad que centraliza el poder en manos del maestro. ¿Cómo se construye
este poder, cuáles son los enunciados y las narrativas que tejen el sustento
simbólico del mismo? Como veremos, esta construcción se basa en una
práctica discursiva del maestro zen que hace referencia a una serie de temas
específicos: el “mito fundador” del linaje zen, el rito de la transmisión del
dharma10, la concepción del maestro como un Buda actualizado, la cosmología
zen relacionada con el poder sagrado y secular, y la revolución como
ideología política.
Seguiremos las conceptualizaciones de Balandier (2004)11 sobre el
poder y la política para explorar estos temas que se constituyen y legitiman
el rol jerárquico del maestro zen en el caso estudiado.
El linaje zen
Una figura discursiva central en las enseñanzas del budismo zen es
la del linaje, una cadena histórica de ancestros que recibieron la comprensión
del zen de sus predecesores, remontándose hasta el Buda. El linaje está
compuesto por los llamados “patriarcas”, los legítimos sucesores de su
maestro que mantienen viva la enseñanza. Kosen Thibaut, narra la historia
de su linaje de la siguiente manera:
Y después tuvo (el Buda) un discípulo a quien le transmitió el Zen, era Mahakashyapa.
Después de la muerte de Buda, Mahakashyapa fue el primer patriarca. Después de
Mahakashyapa el Zen fue transmitido a Ananda. Así en India la esencia se transmitió
de maestro a discípulo, por el Kesa12. Así se transmitió hasta Ceilán. El gran maestro
Prashnatara le transmitió el Zen a Bodhidharma, y Bodhidharma fue a China. En
China le transmitió el Zen a Eka y así todos los patriarcas en China. Hace 700 años,
un gran monje japonés, llamado Eihei Dogen fue a China para buscar el verdadero Zen
(....) y así el Zen se transmitió de la China al Japón. Es el Zen puro, es lo mismo que el
Zen Indio. Lo importante no es saber si es chino, japonés o hindú, lo importante es saber
quién es el maestro y quién es el maestro de el maestro, quién es el maestro del maestro del
maestro, hasta Buda. Eso es lo importante. Al final, se transmitió hasta mi maestro,
Tasien Deshimaru. Es el Bodhidharma de los tiempo modernos (...) Mi maestro transmitió
el Zen en Francia 13
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ESTRATEGIAS DEL PODER SAGRADO: LA CONSTRUCCIÓN...
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Balandier (2004, p. 122) sostiene que en las sociedades que se basan
en un linaje el culto a los ancestros es uno de los soportes del poder que los
que están en una posición jerárquica superior utilizan con el fin de justificar
su prestigio. De acuerdo con Lachs (1999), la idea de un linaje de patriarcas
que se remontan hasta el Buda es una estrategia que caracteriza al budismo
zen, la cual está basada en el modelo confuciano de respeto a los ancestros
familiares. Es un proceso de re-creación de una comunidad de ancestros
espirituales, un “mito fundador” que sienta las bases históricas de la
comunidad. Y de este linaje recibe el maestro la legitimación de su posición,
pues constituye su último eslabón. Como dice Balandier (2004, p. 20) “todo
nuevo poder sólo puede constituirse en relación con ellos (los ancestros,
los notables)”. Es una estrategia política que establece una relación solidaria
entre los muertos y los vivos, pues no todos los muertos se convierten en
ancestros, sólo los que tienen un heredero de su cargo y su poder.
Por otra parte, el maestro es el transmisor de esta historia, la memoria
de los ancestros, además de su último eslabón. Ser la conciencia histórica
del grupo es una estrategia de poder, pues “los únicos guardianes del saber
sobre el pasado son generalmente los detentadores del poder” (Balandier,
2004, p. 90).
Los practicantes que reciben la ordenación en el zen pasan a
incorporarse al linaje mítico. Reciben un documento denominado en japonés
ketsumiaku, en el que están todos los nombres de los maestros, desde el
Buda hasta el maestro que otorga la ordenación, certificando la pertenencia
a la familia del Buda del discípulo. Vemos entonces que la idea del linaje
funciona como estrategia discursiva que centra la autoridad en el maestro,
quien narra y transmite el saber histórico de la comunidad.
Hay grupos zen argentinos en los cuales hemos realizado una
investigación preliminar, que tienen una organización social mas horizontal. En ellos el maestro o instructor se considera como un amigo espiritual
o “hermano mayor en el dharma”14 y, generalmente, no se hace tanta
referencia al linaje de ancestros. Pero en los grupos con un poder centralizado en el maestro, la referencia a los mismos es de primaria importancia.
El líder se convierte entonces en el punto de unión entre el linaje actual,
constituido por los vivos, y el linaje idealizado portador de los valores últimos, constituido por los ancestros.
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El shijo y la transmisión del dharma
La comunidad de ancestros que constituye un linaje zen se basa en
la idea de la “transmisión del dharma”, acto por el cual un maestro lega al
discípulo la esencia del zen y, de esta manera, lo convierte en su sucesor.
No es, evidentemente, un linaje basado en la herencia de sangre o familiar,
sino que esta basado en una herencia espiritual. Surge entonces la cuestión
de qué es lo que se transmite en la “transmisión”. El maestro Kosen Thibaut,
se ha referido a ella en tres sentidos diferentes.
Primero, la transmisión tiene un sentido de una intuición o un
“conocimiento silencioso”:
Esta cosa transmitida de Buda a Buda no es un pensamiento, no es una idea, no es un
conocimiento intelectual (...) es como un conocimiento silencioso directo (...) Es una intuición,
una certidumbre, una intimidad más allá de las palabras, sin tocar la cosa, sin necesidad
de tener la certeza objetiva de la cosa15
Segundo, la transmisión energética, en palabras de Kosen, es “un
acto objetivo, del maestro hacia su discípulo. Éste le transmite literalmente,
si le considera digno, una energía fría y luminosa que se denomina la médula
del zen. Esta energía se transmite como el agua de una botella a otra”.16
Notemos que la analogía del agua de la botella implica una exclusión de
otros maestros budistas (zen o no), pues no permite la ramificación del
linaje (no es que varias personas reciben parte del agua). De esta manera, el
sucesor legítimo del Buda es uno solo de sus discípulos, y así con los demás.
En su libro La Revolución interior Kosen Thibaut (1996, p. 43) relata
como su maestro Taisen Deshimaru le transmite la “médula” del zen:
Entonces Sensei se acercó a mi, exactamente en la misma posición que habría de tomar
más tarde ante el maestro Niwa para recibir el documento de la transmisión del zen.
Cuando uno está de rodillas delante de su maestro, su energía, su shen, su espíritu, pasa
a nosotros. Sensei me tomo de la mano, y me la apretó durante un tiempo que me pareció
infinitamente largo, repitiendo: “you understand, Stephane?, ¿comprende Stephane?”. Yo
no comprendía nada, pero tampoco podía decir que no comprendía. (....) Sentí que algo
pasaba a través de mí, algo frío e íntimo, el recuerdo que tengo es indefinible(....) sólo hoy,
quince años después puedo comprender y afirmar que ese día recibí la médula del zen de
Deshimaru
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Por último, la transmisión tiene un sentido mas cercano al del legado
de una enseñanza:
Si yo les explico lo que es el zen, es eso, el zen es zazen; y el zen es la esencia del budismo,
que se trasmitió -no es alguien que lo inventó- es la trasmisión de maestro a discípulo:
Buda le trasmitió a su discípulo Mahakashyapa, Mahakashyapa lo trasmitió a Ananda,
etc, etc, etc... hasta hoy durante 82 generaciones. El Zen se trasmitió de maestro a discípulo, es la particularidad17
Aquí lo que los patriarcas le dejan como herencia a sus discípulos es
la práctica de zazen, y el maestro tiene la responsabilidad de transmitir la
correcta postura en la cual se practica, además de las técnicas respiratorias
y los métodos de concentración que la acompañan.
La transmisión se institucionaliza en el shijo (jap), una ceremonia
iniciática en la cual el maestro le entrega al discípulo un documento certificando su realización espiritual. Recibir el shijo significa, dentro de la
comunidad de practicantes, convertirse en un maestro zen. No se puede
reclamar ese título sin este documento. Por el shijo el discípulo recibe toda
la autoridad y el prestigio de su maestro; en otras palabras, con él se legitima un maestro zen.
La critica a la tradición de Deshimaru y Kosen apunta a que en el
Japón el shijo se transmite de padre a hijo, como una herencia familiar, sin
una “verdadera transmisión” del zen.
El maestro zen
Para comprender la importancia de la figura del maestro en el zen,
es necesario abordar la noción de los “tres tesoros del budismo”: el Buda,
el dharma y la shanga. Cuando una persona se ordena, “toma refugio” en
ellos. Pero, si bien esta tríada es central en la mayoría de las escuelas budistas, hay una diferencia en cuanto al significado que cada una le atribuye.
Como hemos visto, el maestro zen es del linaje de los Budas, ha recibido la
transmisión, esa “energía que pasa de un recipiente al otro sin volcarse”, a
través de casi cien generaciones. De modo que para el grupo zen que estamos
estudiando, el maestro reactualiza en el momento presente al Buda de hace
dos mil quinientos años. La figura del Buda histórico es secundaria, a diferencia de la importancia que adquiere el maestro zen:
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No creo en el Buda imaginario porque he tenido la suerte de conocer verdaderos Budas
vivientes. Entonces prefiero los Budas vivos a los imaginarios. He tenido dos maestros,
eran verdaderamente Budas, Budas vivientes como Shakyamuni Buda. Entonces, si tengo
que rezar, voy a rezarles a ellos, voy a rezar al maestro Deshimaru y al maestro Niwa18
Hay otras escuelas en las que el Buda es invocado y venerado. Los
antiguos sutras19 son estudiados en profundidad, pues revelan la palabra del
iluminado, el “verdadero dharma”. Sin embargo, en el zen, el dharma es la
enseñanza del maestro, este Buda actual que pronuncia una doctrina adaptada a los tiempos modernos: la enseñanza no está en los textos antiguos
sino que fluye del Buda presente.
El trabajo de campo ha revelado que, en el grupo estudiado, las
lecturas de los kusenes20 del maestro zen y de su maestro Taisen Deshimaru
(que publicó alrededor de quince libros, muchos traducidos al castellano)
ocupan el lugar central en las preferencias de los integrantes de la comunidad;
los antiguos sutras del Canon Pali21 tienen, en cambio, un lugar muy
secundario. De modo que tenemos un Buda y un dharma actualizados, a los
que se le suma el tercer elemento: la shanga actualizada, compuesta por la
comunidad de practicantes del centro zen.
Los tres tesoros son inseparables: si falta uno de ellos no existe el
budismo. Por lo tanto, la presencia del maestro zen se considera fundamental para practicar la meditación, porque sino es muy probable caer en
errores de todo tipo y fracasar en la búsqueda espiritual. Este es un factor
muy importante para mantener la autoridad del maestro zen, pues consolida su estatus al considerar su rol como un requisito indispensable para una
práctica acertada.
Teorías nativas del poder
Las nociones indígenas hablan de una fuerza que es la sustancia del
poder. Su posesión otorga la capacidad de actuar sobre los hombres o sobre la naturaleza. Lo sagrado y lo político se entrelazan, pues la capacidad
de gobernar a los hombres depende de un poder que se expresa en términos mágico-religiosos (Balandier, 2004, p. 182).
La noción japonesa de “ki” es el término nativo relacionado con el
poder y la energía en el zen22. El ki se obtiene mediante la práctica de la
meditación, especialmente mediante el dominio de las técnicas respiratorias.
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Deshimaru (1997) cuenta el caso de un antiguo maestro que tenia un ki tan
fuerte que podía matar una rata concentrando la mirada sobre ella. El ki es
el “poder vital”, la energía cósmica que mediante la práctica de la meditación
se transforma en energía personal. Por ejemplo, los samurais de la antigüedad
buscaban desarrollar su poder para el combate entrenando en monasterios
budistas para desarrollar su ki (Deshimaru, 1993).
En las conversaciones informales durante el trabajo de campo, es
frecuente escuchar que determinada persona o maestro es “fuerte”, al
referirse tanto al desarrollo espiritual, como a la capacidad de liderazgo de
la misma. Cuando el poder de un maestro zen es muy fuerte, aparecen los
sidhis o poderes sobrenaturales, propios de los que se han iluminado23.
El gran historiador de las religiones Mircea Eliade, sostiene que en
la meditación budista se lleva a cabo un proceso que va en contra de todo
lo que caracteriza a la vida: opone al movimiento del cuerpo la inmovilidad
de la asana24, a la respiración agitada y arrítmica, el pranayama;25 a la expulsión
del semen fertilizador, su retención; al flujo desordenado de la actividad
mental, la fijación del pensamiento. Según este autor, “el hombre que rechaza
su propia condición, esforzándose por abolirla, es un hombre sediento de
lo incondicionado, de libertad, de poder... al retirarse de la vida humana, el
yogi encuentra otra, más profunda, más verdadera: la vida misma del cosmos”. La salvación implica morir en esta vida profana para renacer en una
vida transhumana y “la muerte en condición profana se traduce en el plano
fisiológico, psíquico y espiritual, mediante una serie de experiencias místicas y de poderes mágicos” (Eliade, 1988, p. 101-105).
De modo que tenemos un fundamento simbólico del poder, relacionado con la práctica de la meditación como ascesis dirigida a acumular
“energía vital” y lograr tanto los poderes sobrenaturales como la capacidad
de gobernar a los hombres.
La dimensión política
El maestro zen representa un centro de acción política en dos sentidos diferentes: una acción política al interior de la comunidad, y una acción
política al exterior de la misma.
La primera implica una autoridad entendida como “el derecho
reconocido a una persona o grupo, por consentimiento de la sociedad, de
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tomar decisiones que conciernen a los otros miembros de la sociedad”
(Balandier, 2004, p. 63). El maestro zen supervisa los asuntos que van desde lo ceremonial a lo administrativo. El mismo Kosen se refiere al liderazgo
político de la shanga en los siguientes términos:
Con la responsabilidad que tengo en el Zen de Deshimaru, las dificultades que tengo...
Porque veo un error y me digo: “si a este error lo dejo avanzar va a destruir todo esto.” Y
es lo mismo, es como gobernar un país. Estoy obligado a actuar, objetivamente, políticamente.
Enojarme con gente, declararle la guerra a la gente. Es terriblemente difícil, y me molesta
enormemente en mi práctica. Y me imagino lo que debe ser hacer política en gran escala,
con gente que entiende aún menos.26
Pero lo que queremos destacar aquí es que el “derecho reconocido”
del que habla Balandier, es posible porque, en términos de Berger (1971, p.
50) “la autoridad política es concebida como agente de los dioses” (o de los
Budas), así “el poder, el gobierno y el castigo humano se convierten en
fenómenos sacramentales, en canales por los cuales se hace a las fuerzas
divinas influir sobre las vidas de los hombres”.
El segundo tipo de acción política, la que se dirige al exterior de la
comunidad, responde al imaginario zen del patriarca que está en conflicto
con los poderes establecidos en la sociedad27. El patriarca zen es un centro
de inconformismo político que plantea la revolución como la verdadera
alternativa para la crisis de la humanidad. Esto se puede ver, por ejemplo,
en la remera del EZLN (Ejercito Zapatista de Liberación Nacional) que
usó Kosen durante varios años en sus visitas a la Argentina, o en la imagen
del Che Guevara junto a la de un monje zen en la portada de su libro. De
todos modos, la relación con la política es ambigua y no está exenta de
tensiones. Por ejemplo, aunque el propio hijo del Che Guevara es discípulo
de Kosen en el dojo de Cuba, un campo de verano que se iba a realizar en la
Habana hace varios años fue prohibido por las autoridades locales y tuvieron
que mudarse a otra ciudad para llevarlo a cabo. Uno de los requisitos del
gobierno era la presencia de un policía durante las prácticas de la meditación.
En las siguientes palabras de Kosen vemos otro ejemplo de estas relaciones conflictivas con la política:
A los 17 años decidí que quería volverme un religioso. Luego encontré un maestro que se
llamaba Le Maitre. Fue un hombre que me dio una conciencia política. Destruyó todo el
apego que yo tenía hacia la familia; me daba mucho miedo: tenía una barba larga, los
pelos todos revueltos... nos fuimos a los países comunistas, después a Italia, nos ocurrieron
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historias imposibles, me aterrorizaba, me decía: “sos un burguesito de mierda”, y yo
trataba de escribir... escribía poemas, él me decía: “lo que hacés es una porquería, tu
madre es una puta.” Me aterrorizaba, pero era un maestro. Estuve un año con él,
hicimos teatro revolucionario, y así seguí hasta que llegó Mayo del 68. Y ahí todo eso se
convirtió en realidad, la política... creí que íbamos a hacer la revolución, etc., y después, en
París fue casi una guerra civil. Ya ni se sabía quién estaba con quién. La calle llena de
barricadas, tiros por todas partes, la mafia mezclada con todo eso... Nadie era realmente
puro. Y al final era un caos, totalmente desalentador. Fue mi pequeña experiencia de la
política. Me dejó miedo por la violencia.....Y ahora, por supuesto que tengo ideas políticas,
pero si empiezo a hablar de política o a pensar en política, me enfermo. Y si quiero seguir
realmente esa vía, la vía de la política, sólo tengo una dirección: es el terrorismo. Realmente. Matar gente, hacer una resistencia... pero es una cosa de locos.28
Entonces, para evitar la violencia de la acción revolucionaria externa, la alternativa es la transformación interior, que va a generar un cambio
exterior:
Si queremos llevar a cabo la revolución tenemos que emplear el arma mágica que nadie
puede atrapar ni detener. Para conseguir esta arma hay que trabajar sin descanso sobre sí
mismo... el poder mágico de zazen está más allá de todo lo que podamos controlar.29
Como vemos, la meditación es vista como una fuente de poder que
va a cambiar la sociedad. Es propuesta por el maestro zen como una vía
alternativa para hacer política. La revolución es el ideal, pero debe realizarse
de una manera más efectiva y menos violenta, mediante la práctica espiritual de cada uno. Estas ideas políticas otorgan una gran legitimidad y
autenticidad al maestro frente a sus discípulos, especialmente si tenemos
en cuenta el perfil progresista, contracultural y con una fuerte conciencia
social de muchos de ellos.
Conclusión
Como dijimos al principio, la estrategia de transnacionalización del
zen adoptada en el caso estudiado implica una postura con respecto a la
tradición que critica algunos aspectos, mantiene otros y también realiza
algunas innovaciones. La autoridad centralizada en la figura del maestro
zen es uno de los aspectos que permanece e incluso es realzado.30 Esto
incluye una construcción discursiva de un linaje de ancestros del cual el
maestro recibe su autoridad en tanto último de los patriarcas; una ceremonia
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que legitima este rol y da cuenta de la transmisión que une a los muertos
con los vivos. Además existen una serie de concepciones que presentan al
maestro como un Buda actualizado, poseedor de una gran cantidad de
energía vital o ki que lo dota de poderes mágicos; esta fuerza se relaciona
con la capacidad de gobierno en el interior de la shanga y con una postura
crítica y combativa al exterior del la misma.
Con respecto la relación entre el budismo zen y el movimiento de la
Nueva Era, del presente estudio se pueden deducir algunas similitudes y
diferencias entre ambos. Según Carozzi (2000, p. 145-150), el marco del
movimiento de la Nueva Era valora de manera positiva “la supresión de
jerarquías de poder establecidas, o su inversión, como motores de la
evolución espiritual y la transformación positiva de la humanidad”, al tiempo
que “la afirmación de la autonomía individual y la supresión del ejercicio
del poder sobre el accionar, las creencias y las decisiones ajenas”. En este
sentido, podemos decir que un grupos budista zen que, como en el presente caso, mantienen cierta continuidad con el modelo tradicional, aunque
tienen muchos puntos de contacto con la Nueva Era, no comparte la
valoración de la supresión de las jerarquías y el ejercicio del poder; por el
contrario, legitima ambos factores mediante un proceso de construcción
de la figura de maestro en tanto “patriarca del linaje del Buda”, que contiene
ideas especificas sobre las relaciones de lo sagrado con el poder y la política. Otra de las características que el marco interpretativo de la Nueva Era
presenta es el rechazo de la identificación con grupos e instituciones estables
y el valor dado a la circulación permanente de sus miembros. En el grupo
zen estudiado, por el contrario, la pertenencia y la permanencia en la
institución se torna de primera importancia para la legitimidad de la
enseñanza y la autenticidad de la shanga.
De todos modos, las relaciones de los practicantes zen con la Nueva
Era observadas en el campo son ambiguas, pues aunque muchos de los
miembros del grupo adscriben a prácticas y terapias características de dicho
movimiento (gemoterapia, astrología, reiki, yoga, flores de Bach y
homeopatía, por citar algunas), hay una general reticencia de los budistas
zen a identificarse a si mismos con él. Esto se debe a que, si bien entre los
miembros del zen la Nueva Era está muy estigmatizada considerándosela
como superficial o banal, hay una gran coincidencia entre algunas de las
características de este movimiento y la cosmovisión zen. Los puntos de
contacto se relacionan con otras características de la Nueva Era planteadas
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 155-172, outubro de 2006.
ESTRATEGIAS DEL PODER SAGRADO: LA CONSTRUCCIÓN...
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por Carozzi (2000), tales como la idea de una transformación de la
humanidad basada en cambios espirituales, la existencia de un interior
perfecto en el hombre y la valoración de la naturaleza.
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Notas
El presente artículo es el ganador del Primer Concurso de Monografías para Jóvenes
Investigadores, organizado por la Asociación de Cientistas Sociales de la Religión en el
Mercosur, en 2005.
2
Ver por ejemplo: Usarski, 2001; Da Rocha, 2000,2001; Pereira, 2002; Shoji, 2002.
3
El zen pertenece al budismo mahayana (skt.: “gran vehículo”), escuela de budismo que
predomina en Tibet, China, Japón y Corea. El budismo hinayana o theravada (skt: “pequeño
vehículo”) se ha desarrollado en el Sudeste asiático. El origen del zen se remonta a la India
donde es conocido con el nombre de dyana. Se esparce cuando el monje hindú llamado
Bodhidarma va a misionar a China en el siglo VI y funda la escuela chan, desarrollada luego
en Japón bajo el nombre de zen. En este país se subdividió en varias líneas, las dos más
importantes son el zen soto y el zen rinzai. El zen soto es el llamado zen “silencioso”, y a
diferencia del zen rinzai no utiliza formalmente los koans (problema sin lógica aparente
sobre el que el discípulo medita).
4
Según Baumann (2001) el budismo theravada se extendió al Occidente en un proceso que
tuvo varias etapas, las cuales retoma Koné para el zen europeo:
- El budismo zen como texto sin contexto:
Es un período de interpretación intelectual del budismo por parte de autores occidentales
(entre ellos podemos nombrar a D.T. Suzuki, Alan Watts, Hubert Benoit, Christmas
Humphreys y Eugen Herrigel). El énfasis está puesto en los aspectos racionales de la religión,
y la confianza en la investigación y experimentación individual, más que el dogma y la
autoridad.
- La institucionalización del budismo en el Occidente:
Periodo caracterizado por la llegada a Europa y Estados Unidos de maestros zen entrenados
en Asia. Se produjo un auge de la práctica del zen formal japonés en Occidente a fines de
los años cincuenta hasta los ochenta, tras lo cual el budismo tibetano pasó a primer plano.
- EL budismo en una era de pluralismo religioso:
Durante los últimos veinticinco años el zen se ha establecido como una opción más dentro
de la oferta budista institucionalizada en Occidente. Hay una gran variabilidad de tradiciones,
linajes y escuelas. Muchos instructores occidentales que habían entrenado con maestros
japoneses han comenzado a liderar centros zen.
5
Zazen (jap): práctica de la meditación sedente, central en el budismo zen.
1
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 155-172, outubro de 2006.
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6
Entrevista a Osvaldo Ribot, coordinador de los talleres de meditación zen en la Fundación
Amigos del Tao, realizada en febrero de 2005.
7
Shanga (skt): comunidad budista de monjes y laicos que siguen a un maestro.
8
Parte de este material está disponible en el sitio web www.zen-deshimaru.com.ar
9
Kosen Thibaut, enseñanza oral durante zazen, campo de verano de Córdoba, Argentina,
Febrero de 2002.
10
Dharma (skt.): en este trabajo significa “enseñanza, doctrina”, que es uno de sus muchos
significados.
11
En su estudio de la dimensión política de las sociedades sin Estado, este autor señala que
la antropología política estudia las instituciones y prácticas que aseguran el gobierno de los
hombres, y el sistema simbólico en que se fundan. Las nociones de poder y legitimidad son
claves en el estudio de lo político. El poder es la capacidad de producir efectos, de actuar
efectivamente sobre las personas y las cosas. Es un factor por el cual los individuos y los
grupos luchan, y a la vez limita la competencia entre aquellos. De modo que el poder es un
efecto de la competencia al mismo tiempo que un modo de contenerla. Para Balandier, la
finalidad más importante del poder es defender a la sociedad de sus debilidades, de promover el respeto a las reglas que la fundan: es un factor necesario para el orden interno y un
resguardo contra la entropía del sistema. Pero el poder implica una asimetría en las relaciones sociales, supone relaciones de dominación y de subordinación, y también una legitimación
de esas relaciones.
12
Kesa (skt) hábito de monje, hecho con telas cosidas y teñidas de color ocre. En el zen el
maestro entrega a su sucesor el kesa y el cuenco como símbolos de su transmisión espiritual.
13
Conferencia en el dojo (jap: lugar donde se practica la meditación) de Buenos Aires, marzo
de 1994.
14
La diferenciación de dos estilos de maestros budistas, ya sea el “patriarca” o el “amigo
espiritual” se desarrolla en Coleman, 2001.
15
Kosen Thibaut, enseñanza oral durante el zazen, dojo de la Habana, Cuba, noviembre
de 2001.
16
Kosen Thibaut, mondo (jap: pregunta-respuesta) virtual, disponible en www.zendeshimaru.com
17
Kosen Thibaut: conferencia en el dojo de Montevideo, Uruguay, diciembre 1995.
18
Kosen Thibaut, mondo del campo de verano de Barcelona, España, Julio de 2000.
19
Sutra (skt): texto que contiene las palabras del Buda.
20
Kusen (jap): enseñanza que el maestro zen pronuncia durante la meditación.
21
Canon Pali: vasto cuerpo de enseñanzas en idioma pali, la lengua que hablaba el Buda, que
contienen una recopilación de sus sermones, realizada por sus discípulos luego de su muerte.
22
Esta palabra japonesa tiene una gran diversidad de significados, en este caso nos referimos a ella específicamente como “energía” o “fuerza vital”, ya que es el sentido que le dan
los propios practicantes de zen en el grupo estudiado.
23
Algunos de los poderes son: volar, ver a lo lejos, escuchar a la distancia, materializar y
desmaterializar el cuerpo a voluntad, hacer llover, conocer el pasado, conocer el futuro, etc.
24
Asana (skt): postura de Hata Yoga, una de ellas es el loto, la postura de la meditación.
25
Pranayama (skt): técnica respiratoria del Yoga.
26
Kosen Thibaut, mondo campo de verano en Chivilcoy, Argentina, Febrero de 1995.
Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 155-172, outubro de 2006.
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CATÓN EDUARDO CARINI
Ver por ejemplo Besserman y Steger, 1998.
Kosen Thibaut, mondo Campo de Verano en Chivilcoy, Argentina, Febrero 1995.
29
Kosen Thibaut, Ib.
30
Según el maestro zen argentino Ricardo Dokyu, quien estudió en Japón diez años, la
figura del maestro zen no tiene gran importancia en los monasterios japoneses tradicionales.
El rol del maestro en ese país sería en la actualidad una formalidad administrativa.
27
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Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 155-172, outubro de 2006.