Revista da ESPM MAI_JUN 2012
Transcrição
Revista da ESPM MAI_JUN 2012
Os pilares da democracia José Gregori A solução é educar, não proibir Luiz Lara Verdades inconvenientes Renato Janine Ribeiro revista da espm • volume 19 • ano 18 • edição nº3 • maio/junho 2012 • R$ 28,00 nem babá, nem big brother A eterna luta do indivíduo contra o Estado Regulamentação e responsabilidade A propaganda comercial é vítima de bullying Em defesa do Estado Não cabe ao Estado dizer como cada um deve ser Interferência do Estado na sociedade: uma visão de marketing social “Não é pelo temor do abuso que se vai proibir o uso!” Quem é o dono do Estado? O jornalismo também tem de prestar contas à sociedade Sociedade digital: o individual versus o coletivo O direito de intervir na sociedade é inerente ao estado de direito? O paradoxo da democracia O espelho da sociedade contemporânea A era da cooperação instituição mantenedora conselho deliberativo associados • Armando Ferrentini – Presidente • Alex Periscinoto • Armando Strozenberg • Dalton Pastore • Décio Clemente • João Vinicius Prianti • José Carlos De Salles Gomes Neto • Luiz Marcelo Dias Sales • Luiz Lara • Roberto Duailibi • Sérgio Reis • Adriana Cury • Alex Periscinoto • Altino João de Barros • Antonio Fadiga • Antonio Jacinto Matias • Armando Ferrentini • Armando Strozenberg • Dalton Pastore • Décio Clemente • Francisco Gracioso • Jayme Sirotsky • João Carlos Saad • João De Simoni Soderini Ferracciù • João Roberto Marinho • João Vinicius Prianti • José Bonifácio de Oliveira Sobrinho • José Carlos De Salles Gomes Neto conselho fiscal Titulares • Antonio Jacinto Matias • Luiz Carlos Brandão Cavalcanti Jr. • Percival Caropreso 4 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 • José Heitor Attilio Gracioso • Luiz Carlos Brandão Cavalcanti Jr. • Luiz Carlos Dutra • Luiz Lara • Luiz Marcelo Dias Sales • Marcello Serpa • Octávio Florisbal • Orlando Marques • Percival Caropreso • Petrônio Corrêa • Ricardo Fischer • Roberto Civita • Roberto Duailibi • Roberto Martensen • Saïd Farhat • Sérgio Reis • Waltely Longo Diretoria executiva da ESPM • J. Roberto Whitaker Penteado Presidente • Alexandre Gracioso Vice-presidente Acadêmico • Elisabeth Dau Corrêa Vice-presidente Administrativo Financeira • Emmanuel Publio Dias Vice-presidente Corporativo • Hiran Castello Branco Vice-presidente de Operações EXPEDIENTE Conselho Editorial Francisco Gracioso – Presidente Alexandre Gracioso Hiran Castello Branco Thomaz Souto Corrêa J. Roberto Whitaker Penteado (MTB no 178/01/93) Coordenação Editorial Lúcia Maria de Souza Editora Assistente Anna Gabriela Araujo Edição de Arte Mentes Design Ilustração de Capa Dorinho Bastos Revisão Anselmo Teixeira de Vasconcelos Antonio Carlos Moreira Mauro de Barros Redação Rua Dr. Álvaro Alvim, 123 São Paulo – SP – CEP 04018-010 Tel.: (11) 5085-4508 Fax: (11) 5085-4646 e-mail: [email protected] Comercial J.L.Décourt Ricci e-mail: [email protected] Tel.: (11) 5085-4679 Impressão Editora Referência Gráfica Distribuidor Exclusivo Fernando Chinaglia Distribuidora S/A Revista da ESPM Uma publicação bimestral da Escola Superior de Propaganda e Marketing. Os conceitos emitidos em artigos assinados são de exclusiva responsabilidade dos respectivos autores. Professores, pesquisadores, consul tores e executivos são convidados a apresentar matérias sobre suas especialidades, que venham a contribuir para o aperfeiçoamento da teoria e da prática nos campos da administração em geral, do marketing e das comunicações. Informações sobre as formas e condições, favor entrar em contato com a coordenadora editorial. editorial Estado versus sociedade A té que ponto o Estado deve interferir ou mesmo coibir a liberdade de expressão e o comportamento social do indivíduo? Ao levantarmos essa questão como tema da presente edição da Revista da ESPM, não imaginávamos que provocaríamos tanta controvérsia nas opiniões entre nossos entrevistados e colaboradores. Estamos diante de um amplo espectro que vai desde a posição dos regimes totalitários, sempre propensos a controlar a sociedade e a situação idílica do homem em seu estado natural que regride à miséria moral e material, como bem lembra Roberto Civita (ver artigo na página 10) citando o filósofo inglês Thomas Hobbes. De modo geral, quanto mais absolutista for o regime, maior será a tendência a proibir, coibir ou condicionar a liberdade de expressão e de comportamento dos indivíduos. Mas não se pode negar que todos os regimes políticos, totalitários ou democráticos, interferem e limitam a liberdade do indivíduo na sociedade, sob os mais diversos pretextos, muitos deles perfeitamente legítimos. Adolf Hitler, por exemplo, dizia que as multidões podem gerar forças incontroláveis, mas tornam-se dóceis quando sabemos conduzi-las. No outro extremo, Winston Churchill, adversário de Hitler e defensor da democracia, dizia que não existe opinião pública, mas, sim, opinião publicada, e que é lícito aos governantes fazê-la pender a seu favor. Esse é um dilema que possivelmente acompanhará a humanidade até o fim de sua saga neste mundo. Enquanto isso, queiramos ou não, teremos de conviver com limitações e proibições que nos parecem excessivas, mesmo nos regimes democráticos. Por exemplo, em nome da segurança e do bem-estar públicos, continuaremos a conviver com a proibição do fumo, a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança, a proibição da propaganda de medicamentos, as barreiras à propaganda de produtos infantis e muitas outras. Mas há uma delas que não consigo aceitar: o famigerado plugue de três pinos nos novos aparelhos elétricos e eletrônicos. Talvez nunca faça a substituição das tomadas lá em casa, deixando o assunto para ser resolvido pelos meus herdeiros. No entanto, lembremos sempre que a democracia, que nos é tão cara, depende de três coisas sobre as quais não podemos transigir: liberdade de expressão, organização e propriedade. Haverá sempre momentos em que teremos de dar um “basta!”, e nesses momentos será imprescindível termos ao nosso lado uma imprensa livre e vigilante, cujo rabo está preso apenas com o leitor. Afinal, como já dizia Maquiavel, o poder sustenta apenas o poder. Francisco Gracioso Presidente do Conselho Editorial PARA ASSINAR, LIGUE: (11) 5085-4508 OU MANDE UM FAX PARA: (11) 5085-4646 - www.espm.br/revistadaespm índice Artigos Regulamentação e responsabilidade Roberto Civita O equilíbrio entre interesses comerciais e bem-estar da sociedade é essencial para o exercício da democracia. Ao Estado cabe fazer valer as regras do jogo. Esta equação tem sua base fincada na liberdade de imprensa e na livre iniciativa Página 10 A propaganda comercial é vítima de bullying Gilberto Leifert No Brasil, a liberdade de expressão continua ameaçada por inúmeros projetos de lei que visam coibir a publicidade em diversos setores da economia. Na tentativa de reverter este quadro, a indústria da comunicação investe na autorregulamentação Página 22 Não cabe ao Estado dizer como cada um deve ser Ives Gandra da Silva Martins Na verdadeira democracia, Estado, sociedade e indivíduo convivem, em liberdade, respeitando as leis. Os dois primeiros não podem interferir no jeito de ser e de pensar do indivíduo Página 32 Página 28 Quem é o Estado? A redação das regras que dão poder e limitam a sua ação foram escritas de forma consensual, democrática e popular? A história do Brasil diz que não. Aqui, as elites redigiram esse contrato de acordo com sua visão de mundo “Não é pelo temor do abuso que se vai proibir o uso!” Anna Gabriela Araujo Como a indústria da comunicação tem reagido contra as tentativas do poder público em proibir, restringir e 8 censurar a liberdade de expressão comercial, principalmente nas áreas de alimentos, bebidas alcoólicas, medicamentos, produtos agrícolas e proteção de dados pessoais Revista da ESPM | maio/junho de 2012 Quem é o dono do Estado? Heródoto Barbeiro Página 40 O jornalismo também tem de prestar contas à sociedade Marina Dias O papel da imprensa, do Judiciário e dos operadores do direito na espetacularização do crime Página 52 Sociedade digital: o indivíduo versus o coletivo Patricia Peck No Brasil, há um paradoxo natural entre o livre arbítrio e a proteção do Estado. As próximas gerações terão de fazer a difícil escolha entre ter mais privacidade ou mais segurança coletiva Página 58 Em defesa do Estado Jorge Lorenzo Valenzuela Montecinos A evolução da relação entre Estado e economia, com base no conceito de que o homem não é um animal social. Ao longo dos anos, estas conexões e atividades têm leis próprias, que possuem uma função específica no sentido da vida social Página 66 Interferência do Estado na sociedade: uma visão de marketing social Daniel Kamlot Os fundamentos do marketing social para o bem-estar da sociedade. Agindo de forma responsável e seguindo esses conceitos, o governo contribui para o desenvolvimento de uma comunidade saudável, correta e que age de acordo com princípios éticos O paradoxo da democracia Entrevistas Eduardo Oyakawa A liberdade moderna baseia-se numa busca exaustiva por novas experiências sensoriais. Como entender a função do Estado diante desse cenário comportamental? Página 92 14 O espelho da sociedade contemporânea Verdades inconvenientes Paulo Roberto Ferreira da Cunha Diante das incessantes transformações que vive o ambiente da comunicação, é oportuno compreender a sociedade e o sujeito contemporâneo pela ótica dos pensadores sociais contemporâneos e da psicanálise Renato Janine Ribeiro Página 96 44 Página 78 O direito de intervir na sociedade é inerente ao estado de direito? A era da cooperação Jonas Cardona Venturini e Marcello Noetzold Mafaldo As relações jurídicas entre Estado e sociedade a partir da interferência do poder público nas atividades privadas com o objetivo de determinar a real extensão do termo interesse público A contribuição das redes de cooperação para o desenvolvimento de negócios entre micro, pequenas e médias empresas, que estão compondo uma nova economia institucional, com base em uma estrutura híbrida Página 84 Página 102 Denise Fabretti A solução é educar, não proibir Luiz Lara 72 Seções Leitura recomendada Sumário English abstracts Ponto de Vista 106 110 112 114 Os pilares da democracia José Gregori maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 9 liberdade de imprensa Regulamentação e responsabilidade A democracia se alimenta da livre circulação de ideias, que, por sua vez, não existe sem a presença da livre iniciativa. Esse é o tripé que sustenta uma sociedade aberta, na qual responsabilidade caminha junto com liberdade de expressão Por Roberto Civita 10 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 unicamente às forças de mercado todas as complexidades da produção e distribuição, como forma de garantir a perfeita alocação de recursos. Não é preciso muita reflexão para concluir que nada de muito útil para a compreensão da realidade sairá desse cabo de guerra artificial entre a mão de ferro do Estado e a mão invisível do mercado. Portanto, o que realmente interessa para entender mos e escapa r mos da a ng úst ia provocada pelo dilema entre os limites e os papéis do Estado e dos indivíduos inseridos em uma economia de mercado, não se passa nas extremidades habitadas por mentes radicais e, felizmente, minoritárias. zirconicusso A nda fora de esquadro a fundamental questão sobre os limites e os papéis do Estado e dos mercados nas sociedades atuais. A polarização excessiva das posições é tão potente que parecem predominar apenas os extremos. De um lado estão os defensores do Estado centralizador, onipotente, onipresente e capaz de garantir a perfeita harmonia social descrita no famoso aforismo igualitário “de cada um de acordo com sua habilidade, para cada um de acordo com sua necessidade”. De outro ficam os proponentes de uma sociedade em que deveriam vigorar o individualismo integral e a liberdade irrestrita, deixando-se maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 11 O que interessa se passa no cotidiano da vida das pessoas de carne e osso que vivem em países reais e não nas pólis utópicas dos totalitários do Estado opressor, mas provedor, nem nos campos de liberalismo total dos individualistas devotos dos mercados sem regras. Como costumam dizer os economistas da escola de Chicago, para desespero dos totalitários, o experimento definitivo sobre a viabilidade do Estado centralizador foi levado a cabo na extinta União Soviética durante 75 anos no século passado, e o resu ltado foi um desastre de proporções astronômicas. Para desânimo dos libertários radicais basta a leitura do inglês Thomas Hobbes (1588-1679), para quem o homem em estado natural – ou seja, não submetido a leis, refratário aos contratos sociais, impermeável aos constrangimentos morais e éticos – está condenado a uma vida Com a autorregulamentação, a iniciativa privada se “solitária, miserável, sórdida, adianta à fúria regulatória, muitas vezes inepta e crivada brutal e curta”. de ideologias do Estado, e consegue atender muito Longe dos extremos, no mundo real, a vida é pactuada. A melhor às exigências dos consumidores liberdade de ação de um é limitada pela liberdade de ação do outro; as ambições de um são limitadas pelas ambições do outro. As disputas indivi- a livre iniciativa. Portanto, o Estado que se pretende duais são arbitradas pelo Estado que, idealmente, cui- moderno não deve mexer com essa simbiose perfeita, da de fazer valer as regras do jogo sem favorecimentos. essa indissolúvel interdependência entre democracia, No mundo real não existem garantias permanentes de liberdade de imprensa e livre iniciativa. Sem livre que as regras serão aplicadas equanimemente pelos iniciativa não há concorrência, sem concorrência agentes do Estado. Isso se define na política, campo não há publicidade e sem publicidade não sobrevive em que o sistema democrático ainda não encontrou a imprensa livre. Esse ciclo virtuoso vem provando rival. A democracia se alimenta da livre circulação de há mais de um século seu imenso valor como a viga ideias, cuja manifestação mais conspícua é a liberdade mestra de sustentação das sociedades abertas – um de imprensa que, por sua vez, tem como base material valor fundamental do homem que, infelizmente, 12 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 zirconicusso liberdade de imprensa O governo pode proibir as pessoas de fumar? Não. Mas pode exigir delas que, para manter seu direito de fumar, elas se rendam aos direitos dos demais que não querem respirar fumaça involuntariamente muitas vezes só é inteiramente reconhecido quando as sociedades se veem privadas dele. Não por outra razão a Constituição brasileira assegura em suas cláusulas pétreas a liberdade de expressão como direito inalienável do povo. Aos poderes constituídos cabe assegurar que os direitos constitucionais possam ser exercidos sem a interferência arbitrária dos agentes do Estado ou de regulamentos e leis infraconstitucionais. Cabe reparar que os cidadãos e os órgãos de imprensa e de publicidade, que, à primeira vista, apenas desfrutam do direito constitucional à liberdade de pensamento e expressão, têm também sua parcela de responsabilidade. Desfrutar plenamente de direitos constitucionais não significa regredir ao estado natural – que para Hobbes equivalia à escravidão. O indivíduo se liberta justamente por aceitar se submeter às regras da convivência civilizada. A essa imposição eu chamo “responsabilidade compartilhada” – o Estado zela pela liberdade de expressão, as empresas de comunicação valem-se dela dentro dos mais rigorosos critérios de qualidade e transparência, enquanto os cidadãos premiam os veículos tornando-se leitores, telespectadores e ouvintes ou os punem ignorando-os. Qualquer tentativa de inverter a ordem desses papéis constitui um risco para a democracia e tudo que ela representa. O mesmo raciocínio vale para o que, acredito, seja o papel ideal do Estado nas sociedades abertas. O governo pode proibir as pessoas de fumar? Não. Mas pode exigir delas que, para manter seu direito de fumar, se rendam aos direitos dos demais que não querem respirar fumaça involuntariamente. O governo poderia até exigir dos fumantes que arquem com os custos derivados de seu hábito pagando um plano médico particular, de modo a não sobrecarregar com sua escolha mórbida o sistema de saúde público. O governo pode proibir as empresas de venderem ou fazerem propaganda de produtos alimentícios que contenham substâncias comprovadamente nocivas nas quantidades contidas nos pacotes? Não. Mas, na minha maneira de ver as coisas, pode exigir que fabricantes e suas agências de publicidade alertem os cidadãos a respeito dos riscos que eles correm ao consumir tais produtos. Melhor ainda é que os próprios produtores, espontaneamente, alterem seus produtos e serviços para torná-los mais saudáveis ou menos nocivos para o meio ambiente. O que o Estado não deve fazer é chamar a si toda a responsabilidade pelo que o indivíduo tem permissão para fazer. Isso é arbítrio. Não é arbítrio exigir transparência e informação verdadeira sobre os produtos. Ao aplicarmos sobre esses dilemas o princípio da responsabilidade compartilhada, abrem-se novos e promissores horizontes. O mais frutífero deles, a meu ver, é a autorregulamentação. Com ela, a iniciativa privada se adianta à fúria regulatória, muitas vezes inepta e crivada de ideologias do Estado e consegue atender muito melhor às exigências dos consumidores. Os exemplos dessa atitude proativa se multiplicam aos nossos olhos sem que os governos tenham tido que movimentar um único fiscal ou baixar qualquer portaria. Para citar apenas alguns casos, fiquemos com a ação da rede McDonald’s, que alterou seu cardápio para servir alimentos com menor teor de gordura e açúcares – e mais ricos em fibras. A embalagem plástica do papel higiênico Neve, da Kimberley-Clark, passou a ser feita com plástico verde da Braskem, um produto com menor impacto ambiental feito com 56% de matérias-primas vindas de fontes renováveis. A Coca-Cola lançou a água Cristal ECO, envasada em garrafas totalmente recicláveis, que podem ser amassadas, ocupando 37% menos espaço no transporte depois do consumo. Autorregulamentação exige bom-senso e responsabilidade por parte da iniciativa privada. A contrapartida exigida dos órgãos do governo é lucidez e cautela, virtudes que permitam afastar os riscos das proibições e regulamentações discricionárias. Com mais responsabilidade, todos saímos ganhando. Roberto Civita Presidente do conselho de administração e diretor editorial da Editora Abril S.A. maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 13 entrevista Verdades inconvenientes “O Brasil sempre lidou mal com sua história. Nossas rupturas não são para valer, mesmo quando deveriam ser. Mudamos tudo para manter tudo como estava, na célebre frase do romance de Lampedusa”, desabafa Renato Janine Ribeiro. Professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo (USP), esse conhecido filósofo brasileiro é especialista em apontar os erros e acertos da vida pública e privada, principalmente sob o ponto de vista da ética. A base de sua teoria está fincada no trabalho de outro filósofo, o inglês Thomas Hobbes, a quem Janine dedicou seu mestrado, feito na década de 1970, na Sorbonne, e também sua tese de doutorado na USP, em 1984. Ex-professor visitante na Columbia University (Nova York), escreveu diversos livros, como o premiado A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil. Publicado pela Companhia das Letras e Fundação Biblioteca Nacional, o título – que discute a cultura e a sociedade brasileiras – ganhou o Prêmio Jabuti 2001, na área de ensaios e ciências humanas. Entre as reflexões propostas por Janine, no decorrer desta entrevista, estão o papel da propaganda na vida do cidadão e a real eficácia da autorregulamentação no universo da comunicação. Confira. Entrevistado por Francisco Gracioso e Anna Gabriela Araujo 14 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 Renato Janine Ribeiro maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 15 entrevista Gracioso – Nossa pauta, basicamente, é: até que ponto é lícito admitir a interferência do Estado na liberdade de pensamento, expressão e comportamento do indivíduo? Como conheço seu interesse por Thomas Hobbes, gostaria de começar a entrevista fazendo uma comparação entre dois extremos. Um deles, sugerido pelo próprio Hobbes, quando diz que “o homem em seu estado natural regride à última condição de indignidade, de miséria moral”. No outro extremo, gostaria de citar uma frase do presidente da Rússia, Vladimir Putin, que foi um defensor da antiga União Soviética, como homem da KGB: “Ter saudades da União Soviética é natural, prova que a pessoa tem coração. Agora, querer que ela volte é prova de que falta juízo”. Qual sua avaliação sobre estes dois extremos? Renato – Sou favorável à mais ampla liberdade de expressão. Mas ela traz sérios problemas quando se trata de liberdade de propaganda ou publicidade de produtos que podem ter algum efeito maléfico. Por exemplo, pregar que uma raça é inferior a outra é proibido em quase todos os países e ninguém acha que, com isso, a liberdade de expressão é atingida. Como é um discurso que geralmente apela para o crime, ele acaba sendo proibido, assim como a apologia do assassinato e do tráfico. Alguns países têm uma to- lerância maior com isso por razões históricas. É difícil fechar o Partido Fascista na Itália. Em compensação, outros países que passaram por dramas, como a Alemanha, proíbem terminantemente a propaganda nazista. Recentemente, os alemães cortaram um conjunto de árvores antigas, bonitas, de alta qualidade, porque, vistas do céu, elas formavam o desenho de uma suástica. Sou favorável à fronteira mais ampla de liberdade, mas a apologia do crime não deveria ser tolerada. Esta é minha posição no caso da política. Com relação à publicidade econômica, a questão é bem mais delicada, porque a apologia a um regime privador de direitos pode ser considerada um crime. Isso já foi muito discutido no Brasil. É difícil, por exemplo, pensar na proibição da propaganda de cigarros de maneira abstrata, já que existe o direito de expressão e a pessoa é livre para escolher se quer ou não consumir o produto. O argumento que tenho ouvido de pessoas ilustres e que admiro é o de que o Estado não pode proibir uma pessoa de fazer mal a si própria. Não concordo com esta tese, porque os procedimentos utilizados na comunicação, às vezes, são muito sofisticados e, com frequência, levam os consumidores a pensar que estão sendo livres para escolher, quando, na verdade foram, de alguma forma, condicionados. Gracioso – Os publicitários dizem que a publicidade não é tão importante como os críticos sugerem, nem o único meio de estimular alguém a fumar. Há vários exemplos de países que proibiram a propaganda de cigarros, mas não conseguiram acabar com o vício. Renato – Esse argumento é o mesmo que dizer: “Estamos fazendo propaganda de algo que sabemos ser eticamente ruim, só que não assumimos a responsabilidade de estarmos causando esta conduta ética ruim”. É como afirmar: “Eu dei o tiro, mas não foi meu tiro que matou”. Gabriela – Não seria melhor evitar o tiro ou, no caso, a produção? Renato – Não quero discutir a questão jurídica, e sim a ética. Do ponto de vista jurídico, você proibir é complicado. Do ponto de vista ético, tolerar a apologia daquilo que sabidamente é mal é algo duvidoso. Não chego ao ponto de dizer que deva ser proibida a propaganda de uma série de coisas, mas gostaria de salientar que não dá para defender em termos éticos a propaganda. O problema é que o conjunto de coisas que estão fazendo mal é cada vez maior: cigarro, fast-food e até o carro. O país está praticamente paralisado porque nós, classe média alta, só nos locomovemos de carro. “Algo que está ficando claro é que o planeta não aguenta um mundo em que o consumo tenha toda essa relevância” 16 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 Renato Janine Ribeiro “Se estamos num mundo em que o consumismo se constitui numa ameaça para a espécie, isso pode ser resolvido pela autorregulação da sociedade e pelo comedimento dos profissionais da área. A intervenção do Estado é a última solução” Gracioso – Você fala da falta de bom-senso do governo, que estimula a produção de automóveis sabendo de todos os problemas gerados por eles. O que dizer então de um governo que estimula a produção de motocicletas que estão se transformando numa verdadeira carnificina urbana, com centenas de mortes todos os meses? Renato – Tudo isso está errado. Gabriela – Como resolver esta questão? Renato – O ponto de partida deve ser o investimento em transporte coletivo, junto com medidas de dissuasão do uso individual do carro. Por exemplo: se o veículo estiver cheio de passageiros, vai pela pista expressa e não paga pedágio. Temos de tirar do nosso imaginário a utopia do carro, que é um elemento de desejo fortíssimo para a classe média brasileira. Aí entra a responsabilidade publicitária, que estimula esse “casamento” entre a minha psique e o carro. É preciso pensar em uma economia que seja menos adicta ao carro. Este é um ponto que acaba batendo muito na questão da própria escola, porque algo que está ficando claro é que o planeta não aguenta um mundo em que o consumo tenha toda essa relevância. Como vamos pensar a publicidade, que é uma atividade importante, num mundo em que o mais sensato é reduzir o consumo? Gabriela – O caminho passa pela educação. Gracioso – Isso significa que você defende a intervenção e o poder disciplinador do Estado até determinado ponto, o que é natural. Lembro-me de uma frase famosa dita por Winston Churchill, durante um debate no Parlamento inglês: “Não existe opinião pública. O que existe é opinião publicada, e esta o governo tem o direito de usar a seu favor”. Em outras palavras, mesmo sendo um defensor da democracia, Churchill admitia que a intervenção do Estado era necessária em alguns momentos. Até que ponto, e quem determina essa medida? Renato – Não concordo com a sua descrição da minha posição, porque não estou chegando ao ponto de defender a intervenção do Estado. O que estou querendo expor é que um problema sério pode ser resolvido de muitas maneiras. Se estamos num mundo em que o consumismo se constitui numa ameaça para a espécie, isso pode ser resolvido pela autorregulação da sociedade e pelo comedimento dos profissionais da área. A intervenção do Estado é a última solução. Minha preocupação é sobretudo ética. Pense, por exemplo, no trabalho que as ONGs estão fazendo. Muitas delas estão envolvidas com a ideia do consumo sustentável e consciente, mas é difícil convencer uma empresa a fazer isso, porque vai contra o negócio dela. Até quando? A economia verde já está movimentando trilhões de dólares. Então, existe espaço para um mercado diferente. Agora, temos também que nos acostumar a pensar numa vida distinta da que vivemos hoje. Por exemplo: até 30 anos atrás se falava em redução de horas de trabalho devido aos ganhos de produtividade. Talvez não tenha havido na história um salto de produtividade tão grande como nas últimas três décadas e as pessoas continuam trabalhando o mesmo ou até mais do que antes. Não seria possível começar a pensar numa vida com lazer criativo, seguindo a tese do ócio criativo, que Domenico De Masi levantou? Com a ampliação dessa fatia de ócio, as pessoas teriam mais tempo para ter acesso à arte, à natureza e ao esporte, atividades que também gerariam uma riqueza econômica fantástica. Nossa sociedade precisa pensar em opções diferentes. Quando ouço as pessoas discutindo sobre a questão das horas de trabalho, que está ligada à previdência social, vejo maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 17 entrevista “Quando a previdência social surgiu, antes da primeira metade do século 20, ela foi ancorada pela ideia de que a pessoa idosa seria recompensada pela sociedade” que elas só analisam como a conta vai fechar. Agora, é preciso lembrar que quando a previdência social surgiu, antes da primeira metade do século 20, foi ancorada pela ideia de que a pessoa idosa seria recompensada pela sociedade, com um final de vida adequado, sem precisar trabalhar até o fim. O projeto estava associado à construção de toda uma rede de lazer, no caso do Brasil as colônias de férias dos sindicatos. É um projeto de vida, não um ajuste contábil. Ocorre que, apesar de se ter tanta chance no mundo de hoje, a imaginação das pessoas é usada para pouca coisa. Quem aparece nos jornais dizendo que podemos ter por meta as férias das crianças ou um lazer melhor? Mal se ouve falar disso. Temos poucos projetos de vida. Gracioso – Democracia e República são temas caros para você. Renato – São. Vejo que o senhor conhece bem o que escrevi. Gracioso – Fale um pouco sobre a nossa democracia e a nossa República. Renato – Entendo República como a defesa do bem comum, da “res publica”, acima dos interesses privados ou de grupos específicos. A rigor, há monarquias que são 18 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 republicanas, como as escandinavas, preocupadas com o bem comum. E há repúblicas que são autocráticas, como todas as ditaduras pelas quais passamos. No caso da educação, por exemplo, a postura republicana é defender a melhor educação possível e não os interesses desse ou daquele grupo que são legítimos, mas são interesses locais. Por mais que esteja convencido de que não há educação sem professor, o objetivo da educação é o aluno. Desde o começo da democracia na Grécia, a palavra é associada ao povão, ao pobre. É um regime no qual a grande maioria com menos posses manifesta a sua voz, que nem sempre é agradável, com reivindicações até ásperas e duras. A questão importante para o estadista seria como pegar esse cerne democrático da reivindicação da igualdade e fazer com que isso se manifeste em algo que não seja destrutivo para a sociedade. Para ser mais específico, o Brasil viveu nas últimas décadas um processo de inclusão social fabuloso, que causou uma mudança na pirâmide social. Agora, temos um losango, no qual a classe C sozinha tem mais pessoas que a D e a E juntas. Isso é fabuloso e foi uma conquista do governo Lula. O que falta para o governo Dilma é dar uma ênfase maior à educação e cultura, porque o critério desse desenho é do acesso ao consumo e o consumo, como o próprio nome diz, é destrutivo. Já educação é aquilo que constrói, que ensina a pessoa a sair dos seus preconceitos e de sua ignorância e passar a viajar pela vida. Gracioso – Os valores típicos da classe média também levarão algum tempo para cristalizar. Renato – São valores complicados por incluir honestidade, aversão à corrupção, egoísmo e desprezo pelos pobres. São valores que têm elementos positivos e negativos. Numa sociedade desigual como a brasileira, o desprezo pelo pobre é uma chaga. Gabriela – Para Maquiavel, o medo é uma forma de conquistar e manter esse poder. A educação brasileira é muito alicerçada nesse ponto, ou seja, não estimula o aluno a pensar. Utiliza o medo para obrigá-lo a aprender. Como esse ponto pode influenciar de maneira negativa a evolução da sociedade? Renato – É algo muito contraditório. Por um lado, há uma grande convicção de que você precisa centrar o foco em duas ou três coisas essenciais: ler, escrever e matemática – pontos essenciais dos quais Renato Janine Ribeiro todo o resto pode derivar. Para isso, você precisa ter uma pessoa que domine sua língua e não use esse vocabulário extremamente restrito que está surgindo. Mas até os jornais estão usando menos palavras. Ao reduzir o vocabulário das pessoas, você torna ridículo aquele que usa um termo ma is rico. Quando a Folha de S.Paulo adotou uma linha mais “didática”, ela passou a explicar palavras difíceis. Isso dispensa a pessoa de ir consultar no dicionário. Aprendi no ginásio que para lembrar uma palavra não podia perguntar para a professora, tinha que olhar no dicionário, como forma de registrar o aprendizado. Depois, ao assistir aos programas de TV, noto um descaso muito grande pela cultura de maneira geral e pela cultura erudita em particular. O mundo que as novelas oferecem é o do gozo imediato e do hedonismo. Tudo precisa ser rápido e sem esforço. Algo que também me choca é o fato de que, nos últimos cinco anos, é praticamente impossível entrar no plantel de atores da Rede Globo um rapaz ou uma moça que não sejam muito bonitos. Não tem mais artista como o Tony Ramos, por exemplo. Isso tudo está criando na sociedade brasileira uma grande adesão ao fácil. É fácil ser bonito para ganhar coisas. Tudo isso foi se fortalecendo no nosso país. Gabriela – E incentivado pela internet. Renato – Também pela internet. Em face disso, a educação está na defesa. Não existe uma pregação pró-educação. Aparentemente, o básico na educação seria aprender português e matemática para saber ler, escrever e raciocinar. Quando você inclui, por exemplo, filosofia no ensi no méd io, tem pessoas que perguntam como fazer isso se os alunos não sabem português. Como tornar obrigatório o ensino de história da África se a pessoa nem sabe a própria língua? Por outro lado, não sinto a sociedade e a família empenhadas em melhorar ou mesmo estimular a educação. Tenho uma certa reticência quanto a culpar o governo, que é um esporte do brasileiro. Gracioso – Muitos sociólogos dizem que os valores perante a vida – como dedicação e respeito ao trabalho árduo, confiabilidade e senso de responsabilidade – são tão importantes quanto a educação propriamente dita para estimular o progresso social e o bem-estar coletivo. Você concorda com isso? Renato – Concordo até certo ponto. Todos esses valores são importantes, mas ao mesmo tempo só temos ética quando a pessoa é interpelada para ela própria tomar suas deci- sões. Quando se ensina o que é certo ou errado sem abrir para a pessoa o espaço para ela escolher em quais valores acreditar, não estamos formando um ser ético. Uma pessoa ética é aquela que vai se perguntar o que é certo durante um conflito entre dois valores, como a liberdade de expressão e o respeito às crianças que podem estar engordando desmedidamente por causa do fastfood. Nosso sistema desfavorece esse tipo de formação, como chegar para uma discussão sem estar já com os dados marcados. O primeiro ponto é dizer o que é ou não ético. É o que procuro na aula que ministro na pós-graduação de jornalismo com ênfase em direção editorial da ESPM. Os jornalistas têm muita vontade de discutir tudo, mas também possuem uma facilidade extraordinária de esquecer onde está a questão ética precisamente. Houve uma aula em que começamos a discutir o Facebook e de repente estávamos comentando sobre como a rede social está mudando as relações. Eu disse: “Pessoal, não é um papo sobre o Facebook, nem um curso de sociologia ou teoria da comunicação. Estamos discutindo questões éticas”. Esse é um ponto crucial: as pessoas perceberem onde está a questão ética. A propaganda do fast-food, por exemplo, tem a questão política, a jurídica e a ética. Se conseguirmos fazer com que as “Até os jornais estão usando menos palavras. Ao reduzir o vocabulário das pessoas, você torna ridículo aquele que usa um termo mais rico” maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 19 entrevista pessoas percebam que esta é uma questão ética, teremos um grande ganho. É um lado da educação que vai além dos conteúdos fundamentais, como português e matemática. Pelas pesquisas que tenho lido, quando você educa por meio dos valores, esse conteúdo vem junto. Mas, se eu tentar formar um a lu no somente pa ra por t ug uês e matemática, sem incutir nele hábitos de trabalho, respeito ao colega, dúvidas quanto aos caminhos da vida, o aprendizado não será tão bom. Gracioso – Entre os publicitários, fala-se com certo orgulho do Código de Autorregulamentação do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária). Para eles, essa seria uma forma mais eficiente de controlar a propaganda do que a intervenção ou proibição direta por leis, por pressão estatal. É possível confiar a determinados segmentos da sociedade a sua própria autorregulamentação? Renato – É duvidoso que a sociedade possa confiar nisso, porque todo o grupo é corporativista. Então, por natureza, quando dou a um grupo a autorregulação, ele vai tentar defender os seus interesses. Em certos casos, pode até ter efeito positivo. Acredito que os médicos autorregulem a profissão no sentido de excluir aquele profissional que cometa um crime ou assassinato. Isso também acontece no caso da engenharia. Mas a autorregulação da medicina e da engenharia está relacionada à capacitação técnica. Na publicidade, a autorregulação tem quase tudo a ver com a ética. Há uns dez anos, acompanhei o trabalho do Conar e até dediquei um artigo a isso, que está no meu livro O afeto autoritário (Ateliê Editoria l, 2005). Estudei vários julgamentos que estavam no site da instituição naquela época e deu para notar que as decisões não eram totalmente coerentes. Um exemplo é a campanha “Faça bem feito, faça FEI”, do Centro Universitário FEI, que zombava das mulheres ao dizer: “Quer ver muitas meninas bonitas? Vá fazer letras. Quer ter uma formação boa? Vá fazer engenharia na FEI”. Isso gerou um protesto no Conar, que julgou ser somente uma brincadeira. Em outro caso, a brincadeira era com as enfermeiras e o Conar tirou a propaganda do ar. Não havia uma diferença grande entre as duas campanhas. Então, a sensação é de que depende muito da grita do setor. Há certo receio em atender a todas as reclamações, principalmente aquelas que estão na fronteira da ética. Lembro de ter assistido a uma propaganda em que a atriz Deborah Secco batia com a sandália num menino. Era uma gozação, não um ato de violência na TV. Quando se tem uma regulação, o desejável é a presença de gente externa julgando. Não acredito na autorregu lação. Também ten ho muita desconfiança da regulação pelo Estado. Gabriela – Há alguns anos, o governo tenta implantar o documento unificado no Brasil. A ideia de reunir documentos como CPF, carteira de motorista, passaporte e RG em um só cartão é facilitar a vida das pessoas. Mas até que ponto essa padronização de dados não irá aumentar o controle do Estado na vida do cidadão? Renato – Não vejo assim, até porque, se o Estado quiser fazer isso, é só ele cruzar os documentos das pessoas. Hoje, a informática nos permite ter o documento único na prática, nos arquivos do governo, cruzando CPF, RG e passaporte. Pode dar um pouco mais de trabalho, mas você tem aplicativos que permitem este cruzamento, que é inevitável. Gracioso – E já existe, de certa forma. Renato – Já existe. O Facebook é isso nas mãos de uma empresa privada. Tem gente que defende a adoção do Linux e de outras plataformas que não a do Bill Gates, “A autorregulação da medicina e da engenharia está relacionada à capacitação técnica. Na publicidade, a autorregulação tem quase tudo a ver com a ética” 20 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 Renato Janine Ribeiro “O grande problema é que as pessoas escrevem, postam coisas e mandam e-mail sem ter tempo de refletir. A única forma de vencermos isso é aumentar a dúvida e melhorar a escuta” porque dizem que a Microsoft passa os dados para o governo americano. Quem disse que não passa? O simples Facebook oferece vários anúncios dirigidos para você. Ele relaciona as pessoas que foram seus amigos de colégio e que de repente se desencontraram. Tudo que faz além disso é só para vender mercadoria para o usuário. O documento único é a menor das ameaças, porque sabemos quem vai manejar esses dados. No caso do Facebook, não. Meu medo maior é de organizações criminosas que podem ser muito fortes e até tomar conta de governos. Por ouro lado, como isso me parece irreversível, seria preciso ter uma capacitação técnica fantástica para enfrentar isso tudo. Gabriela – Nesse contexto, podemos dizer que a população é cada vez mais objeto e não sujeito de sua história? Renato – Nesse sentido, sim. Quando todos os seus dados são tomados por outros, a única vantagem é você não ter nada a ocultar. Talvez uma forma de lutar contra isso fosse, em vez de preservar os sigilos que não serão preservados, o melhor é dizer: “Não tenho nada a esconder”. Gracioso – Qual é a posição que deveríamos procurar dentro de um estado democrático, que respeita os direitos humanos e básicos de uma democracia, como liberdade de expressão, iniciativa, organização e propriedade? Renato – Tenho dúvidas, porque as pessoas que compõem a sociedade brasileira estão com crenças demais. Elas assumem uma posição e se aferram a ela. E a internet está favorecendo isso com a possibilidade de todos serem autores. O grande problema é que as pessoas escrevem, postam coisas e mandam e-mail sem ter tempo de refletir, às vezes, sem ao menos ter lido direito aquilo pelo qual estão se manifestando. Em vez de ser um ambiente democrático, a internet se transformou num ambiente de falas surdas, com uma grande quantidade de gente falando e totalmente surdas ao argumento contrário. Essas pessoas têm muita dificuldade de diálogo. Temos hoje uma democracia no Brasil apesar dos cidadãos, não por causa dos cidadãos. Não é porque todos prezamos esse valor democrático fundamental da divergência que eu o colocaria à frente de todos os outros valores. Uma boa parte da sociedade brasileira gostaria que outra boa parte se calasse, mesmo na marra, e isso é assustador. Quando se tem uma campanha eleitoral e dois lados se opõem, dá a impressão de que estão fazendo isso porque a Justiça Eleitoral impõe e não porque o outro lado esteja querendo debater também. As pessoas têm uma dificuldade extraordinária de escutar aquilo de que discordam, porque elas logo traduzem. Hoje, por exemplo, qua ndo se lê nos jorna is o que precisa ser feito na educação ou na economia, todos dizem quase a mesma coisa. A única forma de vencermos isso é aumentar a dúvida e melhorar a escuta. Gabriela – A sociedade ideal existe? Renato – Se é ideal, não existe. Mas, sem você ter um ideal, tudo fica muito mais difícil. Um dos problemas do nosso tempo é que de certa forma as coisas que eram boas, que foram almejadas acabaram se realizando. O sonho da diferença sumiu. Temos prosperidade, conforto, prazeres. O sexo deixou de ser algo assustador. Tanta coisa foi conseguida que a tendência das pessoas é achar que isso é bom. No caso dos jovens, é bom viver na casa dos pais para sempre. É tudo tão confortável. A diferença é que o ideal antigo às vezes era o ideal do desejo. Já o ideal de hoje talvez seja o do dever e da dificuldade. Gracioso – Obrigado. A entrevista foi excelente! maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 21 Opinião 22 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 A propaganda comercial é vítima de bullying Por Gilberto Leifert fotomontagem com imagens de levente gyori e ostill p retendo abordar neste discurso o tema “Liberdade de expressão e democracia”, a partir de um viés preocupante: “a liberdade de expressão está sofrendo bullying”. Antes, porém, vou contextualizar nossa atividade em face desse fenômeno atual e perturbador. Num plenário exatamente como este, em abril de 1978, foi aprovado por aclamação o Código de Autorregulamentação Publicitária, documento cuja execução foi confiada ao Conar. Estavam, então, suspensas as liberdades públicas e em vigor o AI 5. A opinião, a produção cultural, a notícia e o anúncio estavam submetidos à censura. Uma década mais tarde, a Constituição de 1988 aboliu a censura e restabeleceu as liberdades de pensamento, criação, expressão e informação. E, ainda, consagrou a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor. É nesse ambiente que opera hoje a indústria da comunicação brasileira, reconhecida internacionalmente pela qualidade do conteúdo editorial e da publicidade que produz. Tanto a informação editorial (notícia) quanto a informação comercial (anúncio) são transmitidas pelos veículos de comunicação, propiciando ao leitor, ouvinte, telespectador ou internauta situar-se no tempo e no espaço, obter dados para identificar opções, estabelecer comparações e, principalmente, fazer escolhas. Queria, agora, citar a advertência do filósofo John Stuart Mill, sobre a autonomia dos indivíduos e o emprego de suas faculdades para fazer escolhas: “As faculdades humanas de percepção, julgamento, sentimento discriminativo, atividade mental e até mesmo a preferência moral só são exercitadas quando se faz uma escolha. Aquele que só faz alguma coisa porque é o costume não faz escolha alguma. Ele não é capaz de discernir nem de desejar o que é melhor. Após 32 anos e 7.500 casos analisados, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) é talvez o melhor exemplo de que a autorregulamentação é melhor do que a proibição pura e simples do que aquilo que parece ser inconveniente ao Estado. Neste artigo, transcrevemos o discurso proferido, recentemente, no V Congresso Brasileiro de Comunicação, por Gilberto Leifert, presidente do Conar desde 1998. Nota da redação maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 23 Opinião As capacidades mentais e morais, assim como as musculares, só se aperfeiçoam se forem estimuladas [...] Quem abdica de tomar as próprias decisões não necessita de outra faculdade. Apenas da capacidade de imitar, como os macacos. Aquele que decide por si emprega todas as suas faculdades”. Pois bem: empregando tais faculdades, os cidadãos elegem representantes políticos, professam religião, constituem família e decidem o que fazer com seu precioso tempo e rico dinheirinho. Os consumidores são os senhores do mercado. Eles podem gostar do produto, mas não gostar do anúncio; podem não gostar nem do anúncio nem do produto e desprezá-lo na gôndola do supermercado; podem, ainda, gostar de ambos e livremente decidir consumir ou não. Tais escolhas são livres e devem ser respeitadas. Para que um produto possa ser anunciado, ele precisa ser lícito e seguro para o consumo, ou seja, os poderes públicos terão autorizado sua fabricação, comercialização e consumo. A propósito, a Constituição de 1988 admite que cinco categorias de produtos (tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias) estarão sujeitas a restrições, desde que estabelecidas por lei. Decretos, resoluções da Anvisa e portarias não podem impor restrições à publicidade. O Código de Defesa do Consumidor já pune com detenção e multa os anunciantes que cometem propaganda enganosa ou abusiva, e a autorregulamentação tira de circulação os anúncios julgados antiéticos. Vigora no Brasil o chamado “sistema misto de controle da publicidade”, pelo qual se combinam lei e autorregulamentação, conferindo aos cidadãos ampla proteção e parâmetros éticos à nossa atividade. A publicidade interage com toda a sociedade, assim como as artes e a política. As críticas, os festivais e as campanhas de propaganda comparativa compõem o contraditório típico da nossa atividade. Tanto os produtos quanto os anúncios são submetidos a permanente escrutínio. Consumidores, imprensa, Procon, redes sociais e anunciantes concorrentes são livres para reconhecer virtudes e vantagens e para apontar defeitos e inconveniências. E o Conar, a qualquer momento, pode solicitar ao anunciante que comprove as alegações feitas no anúncio, corrija omissão ou excesso, garantindo amplo direito de defesa e de recurso. Em 32 anos, 24 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 “A publicidade interage com toda a sociedade, assim como as artes e a política. As críticas, os festivais e as campanhas de propaganda comparativa compõem o contraditório típico da nossa atividade. Tanto os produtos quanto os anúncios são submetidos a permanente escrutínio” iodrakon o Conselho de Ética do Conar julgou mais de 7.500 casos. Em 2011, foram 366 processos éticos e 215 anúncios sustados. Volto, agora, ao bullying. É fato que o Brasil vive plenamente a democracia. Existe liberdade de imprensa. Os cidadãos são livres para fazer escolhas e as empresas para empreender, competir e se comunicar com os consumidores. No entanto, a liberdade de expressão está sofrendo bullying. Entendo por bullying os abusos por ilegalidade e anonimato e as hostilidades de cunho ideológico e inspiração totalitária. Como exemplo de ilegalidade, aponto as iniciativas da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) ao tentar impor seriíssimas restrições à veiculação de propaganda comercial de medicamentos, bebidas alcoólicas, alimentos e refrigerantes. A própria Advocacia Geral da União emitiu parecer contestando a competência da Anvisa para legislar sobre publicidade por meio de resoluções de diretoria. A agência persistiu na ilegalidade e enfrenta por isso várias ações no Judiciário, cujas decisões têm garantido a liberdade de expressão comercial. Bullying também é cometido na internet por quem, contrariando a Constituição, se escuda no anonimato. São grupos informais de pressão, ONGs sem existência legal e endereços eletrônicos fajutos homiziados nas redes sociais. Não são, portanto, pessoas de carne e osso nem instituições dotadas de personalidade jurídica e legitimadas a exercer a liberdade de expressão. Todavia, suas copiosas manifestações, frequentemente contra a publicidade, chegam a ser levadas em consideração até por autoridades. A quantidade dessas manifestações pode até impressionar, mas não é real. Nesse “octógono” em que se converteu a ágora, os adversários da liberdade de expressão clamam por mais e mais regulação, impelindo o Estado a invadir a esfera privada da cidadania. Outro exemplo: o bullying à publicidade de bebidas alcoólicas não poupou nem a Presidência da República. Em exposição de motivos, decreto presidencial atribuiu a uma entidade de renome dados sobre acidentes de trânsito associados ao álcool que ela jamais pesquisara. Mais um exemplo: a existência dos medicamentos de venda livre pressupõe o direito à automedicação, meio de aliviar sintomas e curar pequenos males. O bullying à publicidade manipula as estatísticas sobre intoxicação, debitando à conta da automedicação até suicídios consumados mediante a ingestão de barbitúricos de tarja preta e de pesticidas como o “chumbinho”, produtos controlados que, por lei, não podem ser anunciados. Comete-se bullying em nome da proteção à saúde, família e infância. Que o diga a publicidade de alimentos e refrigerantes, brinquedos e outros produtos destinados à criança – um certo movimento espevitado e bem fornido de recursos pretende que as crianças sejam banidas de todos os anúncios e exerce pressão incisiva sobre o Congresso Nacional, ignorando os avanços da autorregulamentação no tocante ao público infantil. maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 25 Opinião iodrakon “Devemos combater o bullying em todas as suas abomináveis formas, como a intolerância, o mau humor e o politicamente correto, que obscurecem a criação publicitária e podem aniquilar a liberdade de expressão comercial que honramos” 26 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 De vocação fundamentalista, um desses movimentos se atribuiu a tarefa de dirigir a educação de nossas crianças, em substituição dos pais e educadores, como se seus adeptos fossem mais sabidos que os pais dos filhos dos outros. Como se a escolha do “sim” ou do “não” da família devesse ficar ao arbítrio de uma ONG. Recentemente, uma dessas organizações cometeu bullying ao divulgar aos quatro ventos que a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) havia aprovado novas diretrizes para a publicidade e o marketing de alimentos e refrigerantes. A notícia era falsa. No documento original, a Opas advertia que se tratava da opinião de pessoas físicas, que não refletia a posição daquele organismo. É bullying! Para forçar o Estado a impor mais regulação à publicidade, na contramão do que preconizam atualmente a Organização Mundial da Saúde, o Parlamento Europeu e o FDA norte-americano, que estão encorajando as iniciativas de autorregulamentação para alimentos e refrigerantes. Concluindo, vou alinhar alguns pontos para reflexão do plenário, como contribuição à tese da Comissão de Liberdade de Expressão e Democracia: 1º. Produtos lícitos e seguros para o consumo podem, sim, ser anunciados, admitindo-se que restrições sejam estabelecidas por meio de leis e de autorregulamentação, que elas sejam necessárias, justas, razoáveis e proporcionais. Afinal, o Brasil já tem leis demais e os ímpetos de ampliar a regulação revelam a crença equivocada de que restringir a liberdade de expressão fará bem aos brasileiros. 2º. O anunciante não deverá ser obrigado à “autodetração”, ou seja, falar mal de si ou de seus produtos, defeito reincidente em vários projetos de lei e nas resoluções da Anvisa. 3º. Devemos combater com igual vigor a censura à informação e a censura ao direito de escolher, de dissentir e de ser diferente. Nesse sentido, devemos estimular o consumidor a empregar todas as suas faculdades, como dizia Stuart Mill. 4º. Nenhum cidadão deverá sofrer bullying em razão de suas escolhas. Gostar de batatas fritas e refrigerantes, apreciar manteiga, ovo, carne vermelha e cerveja, ou preferir a bicicleta ao automóvel... Todas estas são escolhas baseadas principalmente nas informações tão abundantes quanto controversas veiculadas na imprensa. 5º. Nenhum consumidor deverá sofrer bullying por fazer parte da minoria. A democracia não deve prescindir dos contrários e das minorias. O mercado também não. 6º. Devemos combater o bullying em todas as suas abomináveis formas, como a intolerância, o mau humor e o politicamente correto, que obscurecem a criação publicitária e podem aniquilar a liberdade de expressão comercial que honramos. A propaganda comercial é a principal fonte dos recursos que viabilizam o direito à informação, respeitando a independência dos veículos e a liberdade de imprensa. Esse nobre papel institucional e político da propaganda comercial nos impõe o dever de lutar pelas prerrogativas constitucionais da atividade com o mesmo destemor com que o fazem os jornalistas. Esse nobre papel nos impõe o dever de repelir as tentativas maliciosas de banir categorias anunciantes ou de afastá-las da mídia para, desse modo, colocar em risco a saúde financeira das empresas de comunicação. Encerrando, cito trecho do poema que foi adotado como legenda pelo Centro de Referência sobre Liberdade de Expressão, instituído pelo Conar e pela ESPM-SP. De autoria do poeta fluminense Eduardo Alves da Costa, chama-se No caminho, com Maikóvski: Tu sabes, Conheces melhor do que eu A velha história. Na primeira noite eles se aproximam E roubam uma flor Do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem: Pisam as flores, Matam nosso cão, E não dizemos nada. Até que um dia, O mais frágil deles Entra sozinho em nossa casa, Rouba-nos a luz e, Conhecendo nosso medo, Arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada. Gilberto Leifert Presidente do Conar maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 27 latinstock sociedade 28 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 Não cabe ao Estado dizer como cada um deve ser Em uma verdadeira democracia, o Estado representa o direito da sociedade e do cidadão, permitindo que a liberdade de ser, pensar e agir do indivíduo não seja sufocada pela imposição de um pensamento coletivo do povo ou do governo Por Ives Gandra da Silva Martins E m meus livros Uma breve introdução ao direito e Uma breve teoria do poder (Editora Revista dos Tribunais), procurei focar o direito nos Estados democráticos, como uma forma de o povo dizer o que gostaria que o Estado fizesse a favor da sociedade, tanto em relação às liberdades individuais quanto ao equilíbrio social, propiciando, também, o desenvolvimento econômico à luz da iniciativa privada. Quanto aos direitos individuais, o ordenamento estabelece as regras destinadas a controlar o exercício do poder por aqueles que o detêm – que, mais do que representar a sociedade, tendem sempre a considerar que possuem um direito superior ao dos comuns mortais e, por serem “autoridades”, são cidadãos de primeira categoria. Já no livro O estado de direito e o direito do Estado (Editora Lex/Magister), procurei mostrar a absoluta inconfiabilidade do homem no poder e a fragilidade das sociedades em enfrentar aqueles que as governam, pois estamos ainda nos primeiros passos da verdadeira democracia, no Brasil e no mundo. A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi uma conquista decorrente, de um lado, dos crimes da Segunda Guerra Mundial e, de outro, da percepção jurídica além do direito escrito, que permitiu a condenação de criminosos nazistas, sem que houvesse norma internacional sancionatória, visto que a declaração da Organização da Nações Unidas (ONU) só surgiu em 10 de dezembro de 1948, enquanto o primeiro e mais importante dos julgamentos daquela Corte especial é de 1º de outubro de 1946. O grande dilema da atualidade reside em saber quais os limites que balizam o poder da sociedade de intervir na formulação de políticas do Estado, do Estado em relação à sociedade, assim como os limites do coletivo em relação ao individual, cujos direitos devem ser respeitados numa democracia, no legítimo exercício da liberdade de ser, de expressão e de convivência. John Rawls, no seu famoso Uma teoria da justiça (Martins Editora), declara que o equilíbrio para que sociedade e Estado convivam, em uma democracia respeitadora de direitos individuais e da liberdade de ser, pensar e agir, decorre das denominadas teorias “não abrangentes”, isto é, daquelas teorias que terminam por coexistir com outras, sem a busca de imposição. Considera nada mais prejudicial a uma teoria da Justiça e a um Estado democrático do que as teorias abrangentes, aquelas absolutistas que impõem ao cidadão uma determinada maneira de pensar e que terminam por gerar ditaduras, como se viu com os comunistas de Stalin, os nazistas de Hitler, os fascistas de Mussolini ou os socialistas de Fidel Castro. Estas quatro ditaduras do século 20 mataram a individualidade e impuseram uma maneira equivocada e coletiva de agir. Na célebre série Star Trek, o gênio cinematográfico Gene Roddenberry criou os Borgs, um povo que pretendia impor a sua maneira coletiva de agir aos outros. Eram os Borgs controlados por uma rainha que centralizava o domínio completo de um povo meio máquina, meio ser humano e que só raciocinava a partir do coletivo. maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 29 sociedade Não tinham nomes, mas números. E todos pensavam da mesma forma. E os povos que conquistavam tinham de ser “assimilados”, isto é, passavam por um processo de reeducação e robotização, senão seriam “eliminados”. Roddenberry pretendeu, na sua série, criticar as ditaduras ideológicas, que excluem a liberdade de pensar, condenando aqueles que ousam discordar. À evidência, a evolução política do ser humano leva-nos a outra dimensão: a da busca dos ideais democráticos, em que as liberdades individuais, o direito de representação e de eleger seus representantes terminam por gerar a possibilidade do povo de interferir no comando que deseja para suas aspirações. Neste particular, o ceticismo de Thomas Hobbes (Leviatã, Ícone Editora), não compartilhado por John Locke (Dois tratados sobre o governo, Martins Editora), que via a possibilidade de uma participação real do povo na condução dos governantes, desemboca em Charles Louis de Montesquieu, que, conhecendo a natureza humana no poder, termina por sistematizar a divisão dos poderes (Do espírito das leis, Editora Edipro). Na época, criticado, porque diziam que o poder dividido não é poder, contrabalançou com a assertiva de que o homem, no poder, jamais é confiável, razão pela qual havia necessidade de o poder controlar o poder. O direito de legislar, dado a totalidade da nação, seria exercido pelo Parlamento (onde se encontram representadas tanto a situação quanto a oposição); o de governar, executando as leis, seria exercitado pelo Poder Executivo, constituído pela maioria da nação (a oposição 30 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 divulgação Com a série Star Trek, Gene Roddenberry pretendeu criticar as ditaduras ideológicas, que excluem a liberdade de pensar, condenando aqueles que ousam discordar não participa do Executivo); e o poder de julgar, outorgado a um poder técnico, que não é político. Em outras palavras, Montesquieu percebe, com particular acuidade, que a identificação do homem com o poder torna-o um representante inconfiável. E que deve mais ser controlado por outros poderes do que pelo próprio povo que, mesmo nas democracias, tem instrumental de controle reduzido, sobre o poder ser manipulado facilmente, por aquilo que Rawls denominou de o “véu de ignorância”, pertinente à grande maioria da sociedade, que não tem uma visão de conjunto do Estado. Neste quadro, é de compreender, como procurei mostrar no livro Uma breve teoria do poder, que são as oposições fortes que garantem a democracia. Oposições fracas levam os detentores do poder a enfraquecer as instituições para seu domínio, como ocorreu na Venezuela, na Bolívia e no Equador, em que os maiores instrumentos de controle e repressão são dados aos presidentes da República, como o de derrubar o Congresso, convocar plebiscitos etc. O amadurecimento social, todavia, com uma presença cada vez maior da imprensa como fiscalizadora dos atos de governo, facilita a tomada de consciência pelo povo de suas responsabilidades e direitos perante os governantes, com o que seus integrantes podem exercer melhor a cidadania, sempre com o risco de serem facilmente manipulados pela própria imprensa, que, como ironizava Mark Twain (pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens, que é autor de As aventuras de Tom Sawyer), tem a tendência de separar o joio do trigo e publicar o joio. Com todas as deficiências, preconceitos e equívocos, a imprensa exerce, contudo, um papel profilático no desventrar a podridão dos porões governamentais, em todo o mundo, o que é bom para fortalecimento da democracia. Não haverá, todavia, jamais uma democracia forte se, paralelamente aos direitos da coletividade como um todo, não houver respeito aos direitos individuais, que não devem “ser superados pelos direitos coletivos”, como apregoam diversas correntes socialistas ou comunistas, mas devem “conviver em condições de igualdade com aquele complexo de direitos que cabe à pessoa exercer independentemente da autorização do Estado ou da sociedade”. Não sem razão, o constituinte ressalva os direitos individuais como cláusulas pétreas, imodificáveis, mas não os coletivos ou sociais, estando assim redigido o § 4º do artigo 60 da Constituição: “A rt. 60. [.....] § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir : I – a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais”. É que há direitos naturais que o Estado não deve criar, como procurei esclarecer no livro Uma breve introdução ao direito, mas apenas reconhecer como é, por exemplo, o direito à vida. O Estado não o cria. Pode criar a melhor forma de governo (parlamentarismo ou presidencialismo), mas não pode criar o direito à vida de quem quer que seja, pois este direito lhe é inato. René Cassin, relator principal da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, declarou que os direitos, nela contemplados, não foram ali incluídos por terem sido considerados bons, no correr do tempo, “mas porque eram inerentes e próprios do ser humano, que com eles nasciam”. O grande desafio, portanto, do século 21 em que vivemos, como diz Norberto Bobbio em A era dos direitos (Editora Campus), não é declarar quais são os direitos, o que já fizemos no século 20, mas “assegurá-los”. Ora, nessa busca de um equilíbrio entre o direito do Estado, o direito da sociedade e o direito do indivíduo – todos os três devendo ser respeitados, numa autêntica democracia – reside o grande desafio do século 21, para “A imprensa tem a tendência de separar o joio do trigo e publicar o joio” Mark Twain todas as nações e todos os sistemas jurídicos dominantes. Não deve um Estado, nem a sociedade, dizer o que é bom para o exercício da individualidade de cada um (ser), da sua maneira de expressar (pensar) e de como deve agir (família, trabalho e relações sociais). Deve o Estado, enquanto seus governos são representantes do povo, dizer quais as obrigações do cidadão para com a pátria e de que forma exercer os direitos próprios de uma democracia (vida, segurança, propriedade e liberdade, art. 5º da Constituição federal), na busca de uma igualdade assimétrica. Não deve, todavia, dizer como educar os filhos – a não ser na grade curricular das escolas –, ou seja, não deve interferir nos valores que os pais pretendem que seus filhos tenham, inclusive de natureza religiosa. É que o Estado laico não é o Estado ateu, mas o Estado em que o governo não é dirigido pela religião. De resto, é de lembrar que a religião católica não é religião oficial de nenhum Estado, embora o anglicanismo seja a religião oficial da Inglaterra, o judaísmo de Israel, o islamismo dos Estados do Oriente Próximo e o protestantismo dos Estados nórdicos. O Estado laico não deve, todavia, desconhecer a opinião de seu povo e da maioria que o constitui, pois, caso contrário, terminaria por excluir todos os que acreditam em Deus, como ocorreu com os países comunistas, em suas constituições, antes da queda do muro de Berlim. Enfim, para concluir, o correto equilíbrio entre o direito do Estado, da sociedade e dos indivíduos é que constitui a verdadeira democracia, em que a política do Estado deve respeitar o pensamento da sociedade, o direito do indivíduo de ser, pensar e agir, desde que não ponha em risco as instituições, nem agrida direitos de terceiros. Ives Gandra da Silva Martins Advogado, professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra. É presidente do Conselho Superior de Direito da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (Fecomercio) maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 31 mercado “Não é pelo temor do abuso que se vai proibir o uso!” Indústria da comunicação levanta a voz e sai em defesa da liberdade de expressão comercial, um direito que desde 1988 é garantido pela Constituição Por Anna Gabriela Araujo 32 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 “O preço da liberdade é a vigilância constante”, assegurou o Prêmio Nobel da Paz Desmond Tutu, durante visita ao Brasil, no último mês de maio. “É por isso que a indústria da comunicação, em especial a imprensa, deve ter liberdade para cobrir o mercado de forma responsável.” De acordo com o líder sul-africano que ousou erguer a voz contra o regime segregacionista da África do Sul, a liberdade de expressão dos veículos de comunicação é um dos principais indicadores para determinar se um país é democrático. “Toda produção intelectual e artística deve ser livre de censura. A propaganda faz parte desse contexto e precisa ter o seu direito garantido”, ressaltou Tutu, durante a cerimônia de abertura do V Congresso Brasileiro da Indústria da Comunicação, realizada no dia 28 de maio, em São Paulo. Ele, que passou a vida lutando por direitos civis iguais na terra do apartheid, veio ao Brasil lembrar a todos que “liberdade de expressão e democracia” caminham juntas. “A primeira vez que estive aqui foi no início da década de 1970, quando toda a América Latina estava sendo devastada pelas ditaduras de golpes militares. O contraste entre aquela época e agora é de tirar o fôlego. Não poderia ser mais espetacular.” Este foi o tom do discurso feito pelo arcebispo sul-africano, que deu voz e forma ao V Congresso. O evento entrou para a história como o grande ma- nifesto de agências, anunciantes e veículos na defesa da liberdade de expressão comercial, que está garantida pela Constituição brasileira. “Liberdade de expressão e democracia são irmãs siamesas. Uma não é forte quando a outra for fraca”, informa a carta de conclusão do encontro, promovido pela Associação Brasileira das Agências de Publicidade (Abap). Com o apoio e coordenação do Fórum Permanente da Indústria da Comunicação (ForCom), a Abap reuniu, de 28 a 30 de maio, cerca de 1,3 mil profissionais, que participaram de 13 comissões temáticas. Durante três dias, eles debateram desde a privacidade que deve ser assegurada pela comunicação one to one até propriedade intelectual, legislação e ética na publicidade. “Em comum, todas as comissões apresentaram como pano de fundo a democracia e a liberdade de expressão, que foram o mote principal do evento”, avalia o presidente do ForCom, Dalton Pastore. “Toda produção intelectual e artística deve ser livre de censura. A propaganda faz parte desse contexto e precisa ter o seu direito garantido” Desmond Tutu, arcebispo sul-africano maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 33 mercado Entre os temas discutidos pelas 13 comissões estão: o direito do cidadão receber informações livres, independentemente de censura; a formação de consumidores conscientes, capazes de fazer suas escolhas, depende de informação e educação; a defesa da liberdade de imprensa e da economia de mercado para garantir a pluralidade e diversidade dos meios de comunicação; a autorregulamentação do setor; e o direito de o consumidor ser informado a respeito de produtos licitamente produzidos e divulgados no país. “Somos a indústria da liberdade e acreditamos que todo produto legalmente produzido e distribuído pode ser comunicado para alimentar o empreendedorismo e a livre competição em benefício dos consumidores”, detalha o presidente da Abap, Luiz Lara. “Nosso mercado é baseado na liberdade e na meritocracia. Não acreditamos na tutela autoritária e arbitrária daqueles que, com o pretexto de salvar o mundo, acabam coibindo a livre iniciativa.” A preocupação com a liberdade de expressão tem fundamento, uma vez que hoje tramitam no Congresso Nacional cerca de 200 projetos de lei que visam proibir, restringir ou censurar a indústria da comunicação, em especial a publicidade. “Muitas dessas iniciativas são descabidas e exageradas”, garante o deputado federal Milton Monti, presidente da Frente Parlamentar da Comunicação Social (Frecom). A Frecom foi criada há quatro anos, durante o IV Congresso, com o objetivo de estimular a discussão e trazer à luz todas as questões que envolvem as inúmeras restrições propostas pelos parlamentares brasileiros ao mundo do marketing. “O subproduto do enfraquecimento da publicidade brasileira é o fortalecimento da publicidade estatal e o consequente aumento da dependência dos veículos em relação ao Estado”, avalia o deputado, citando alguns dos projetos de lei que ultrapassam, e muito, a fronteira não só da liberdade de expressão, como também da razão. “Proibir a propaganda de brinquedos e produtos infantis das 6 horas às 21 horas, como prevê o Projeto de lei 5.921/2001, do deputado Luiz Carlos Hauly, é um excesso. Tanto faz para a criança ver ou não essa propaganda. Até porque não dá para colocá-la em uma redoma de vidro e impedir que ela seja impactada pelas ações de marketing”, explica Monti. Proibições indigestas Além da restrição de horário, a propaganda brasileira pode sofrer um novo golpe caso o projeto de lei (nº 25/03) proposto pelo ex-senador Tião Viana seja aprovado. A medida visa proibir a propaganda de alimentos e a utilização de persona- 34 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 Luiz Lara, presidente da Abap, ao lado do arcebispo Desmond Tutu, que esteve no Brasil em maio para participar do V Congresso “Nosso mercado é baseado na liberdade e na meritocracia. Não acreditamos na tutela autoritária e arbitrária daqueles que, com o pretexto de salvar o mundo, acabam coibindo a livre iniciativa” Luiz Lara, presidente da Abap gens em campanhas direcionadas ao público infantil. Outra iniciativa ainda mais restritiva está tramitando na Câmara dos Deputados, desde março de 2009. Apresentada inicialmente pelo médico Sergio Antonio Nechar, o projeto começa proibindo a comercialização de lanches acompanhados por brinquedos nas redes de fast-food. “O artifício de induzir a criança a adquirir alimentos acompanhados de batata frita e refrigerante, comprovadamente nocivos à saúde, para ter direito ao brinquedo de brinde, explora a fraqueza ou a ignorância do consumidor infantil, como proíbe a lei”, argumentou Nechar. Na época, o então deputado fez o projeto inspirado em uma ação do Instituto Alana, que incentivou o Ministério Público Federal a entrar na Justiça pedindo a proi- A arte de ouvir o consumidor A autorregulamentação do setor de marketing one to one visa estabelecer regras claras para a atividade. Efraim Kapulski, presidente da Associação Brasileira de Marketing Direto (Abemd), explica que o uso da tecnologia possibilita a personalização de ofertas e mensagens publicitárias. Isso traz inúmeras vantagens, como o aumento da satisfação dos consumidores e a customização, que propiciam um melhor direcionamento da publicidade e maximizam o investimento do anunciante. ”Esse mesmo cenário gera uma preocupação da sociedade, que enxerga nas práticas de marketing direto um modelo de comunicação capaz de oferecer restrições aos direitos básicos dos consumidores, como a privacidade e a segurança de seus dados.” Assim, o Projeto de lei 4.060/2012 foi estruturado com base na transparência e nas boas práticas do segmento. ”Hoje, no nosso setor, todas as regras valem apenas para a iniciativa privada. Seja qual for a regulamentação aprovada, as empresas estatais devem passar a ser regidas pelas mesmas leis do mercado”, assegura Kapulski. ”A ideia é promover a evolução do segmento por meio de mecanismos que possibilitem uma gestão inteligente do negócio.” bição da venda casada de brinquedos e alimentos nas três maiores redes de fast-food do Brasil – McDonald’s, Bobs e Burger King. No mês seguinte à apresentação do projeto, em abril de 2009, o deputado Jorge Tadeu Mudalen tratou de ampliar as restrições propostas por Nechar ao sugerir a “proibição de venda casada de produtos alimentícios destinados ao público infanto-juvenil, de 0 a 16 anos de idade, não só em redes de fast-food, mas em toda a cadeia de venda – supermercados, mercados e lojas de todo o país”. E assim o projeto de lei foi sendo ampliado com novas restrições. Hoje, ele pretende proibir até a realização de qualquer tipo de promoção no formato “compre e ganhe” para a venda de alimentos e bebidas. Para Gilberto Leifert, presidente do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), neste caso, admitir a ação do Estado é Para o apresentador Marcelo Tas, que participou ao lado de Kapulski da comissão ”Comunicação one to one” do V Congresso Brasileiro da Indústria da Comunicação, antes de proibir, é necessário entender o papel da internet e das redes sociais, que trouxeram mais transparência à sociedade. ”Essa transparência tem suas virtudes e também seus efeitos colaterais, pois acaba com a privacidade das pessoas. A comunicação está sendo alterada de maneira significativa. Em função disso, o marketing direto precisa ser repensado.” Foi acompanhando as histórias e comentários postados por seu público no Twitter e no Facebook que Tas descobriu o real posicionamento do CQC no Brasil. ”Aqui ele é considerado o programa da família brasileira, enquanto nos outros países é visto mais pelo público jovem.” Navegando pelas redes sociais, ele também reuniu uma quantidade enorme de material sobre os telespectadores que acaba até servindo de pauta para o programa. ”Comunicação não é o que a gente fala, mas o que os outros escutam. E as redes sociais são verdadeiros orelhões, que nos permitem ouvir o mercado e aferir diariamente o resultado do nosso trabalho.” maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 35 mercado colocar em xeque a democracia e a própria atuação dos representantes políticos. “Afinal, quem não tem capacidade de comprar um pacote de biscoito também não é capaz de escolher seus governantes.” E as medidas contra a propaganda de alimentos e bebidas representam apenas a ponta desse iceberg de restrições, que atinge também os setores farmacêutico, agrícola e até de marketing direto. Entre as de maior impacto está o anteprojeto de lei sobre privacidade e proteção de dados pessoais no Brasil. Elaborado pela Secretaria de Assuntos Legislativos (SAL) e pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) do Ministério da Justiça, o texto visa assegurar aos cidadãos o controle sobre suas infor- mações na web. De acordo com o presidente da Associação Brasileira de Marketing Direto (Abemd), a iniciativa poderá engessar o setor do marketing direto ao criar mecanismos para fiscalizar e regulamentar as atividades relacionadas à coleta, tratamento e armazenamento de dados pessoais. “O avanço da internet e o surgimento das redes sociais tornam a regulamentação necessária, mas o projeto do governo é detalhista ao extremo e apresenta uma série de excessos.” Na tentativa de reverter esse panorama, Kapulski abordou o assunto na comissão “Comunicação one to one”, realizada durante o V Congresso Brasileiro da Indústria da Comunicação (ver boxe na página 35). Desta discussão saiu um projeto de lei para regula- Abaixo a propaganda Em 2005, o Ibope apresentou o seguinte dado: ”Crianças brasileiras de 4 a 11 anos, que em 2004 assistiram a 4 horas, 48 minutos e 54 segundos de tevê por dia, passaram a ver 4 horas, 51 minutos e 19 segundos em 2005”. Na época, o índice colocou o Brasil em primeiro lugar em um ranking mundial que aponta a quantidade de tempo que as crianças ficam diante do televisor. No mesmo ano, outro levantamento chamou a atenção do Instituto Alana: o índice de obesidade infantil subiu de 5% em 1964 para 20% em 2005 e continuou crescendo. De acordo com a Escola Paulista de Medicina (Unifesp), 14% das crianças são obesas e 25% estão acima do peso, curvas que acompanham o crescimento do volume investido no marketing infanto-juvenil. Após cruzar esses dados, o Instituto Alana decidiu criar o projeto Criança e Consumo para tratar do assunto. Resultado: a entidade passou a ser fonte de diversos veículos de comunicação e acabou conhecida 36 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 no meio como ”aquela ONG que fala mal da publicidade”. A seguir, você confere qual é o posicionamento do Instituto Alana com base nesta entrevista concedida por Isabella Henriques, diretora de defesa e futuro dessa organização sem fins lucrativos criada em 1994. Revista da ESPM – Por que proibir a propaganda de produtos infantis? Isabella – Não somos contrários à propaganda. Somos favoráveis à restrição do direcionamento da comunicação mercadológica às crianças. Esse tipo de mensagem comercial deveria ser voltada a pais, mães e responsáveis, para que possa haver uma mediação entre a mensagem publicitária e o público infantil. Dirigir conteúdo comercial diretamente às crianças – de até 12 anos – é inadequado, porque elas não têm condições de fazer uma análise mais crítica. Revista da ESPM – Muitos estudiosos alegam que melhor do que proibir seria debater o problema com o setor, para juntos chegarem a uma solução e, quem sabe, até uma autorregulamentação. Você acredita que isso seja viável? Isabella – Sim. Mas ainda encontramos muita resistência em relação à possibilidade de haver uma mudança de postura nessas relações de consumo. Ainda que, de fato, existam passos importantes dados em direção à proteção da infância, como, por exemplo, os pledges assumidos pelas empresas do setor alimentício – os quais demonstram que o setor está atento às discussões e concorda ser a publicidade um fator importante no agravamento do quadro de obesidade infantil no país. A autorregulamentação não depende da sociedade civil organizada, nem dos governos. Ela pode acontecer independentemente desses atores. A que já existe mostrouse insuficiente, até por isso a demanda da sociedade como um todo é cada dia maior. Se ela melhorar e for, de fato, eficaz, teremos um novo cenário – que não conflitaria com a existência de uma mentar o uso responsável dos dados pessoais. Criada pelo setor, a iniciativa foi encaminhada ao Congresso Nacional no último dia 13 de junho, pelo deputado Milton Monti. “O Estado deve se preocupar em dar educação de qualidade e cultura aos brasileiros e deixar que as pessoas façam suas escolhas. Elas têm o direito de receber ou não mensagens comerciais por meios físicos ou digitais”, explica o presidente da Frecom. Assim, em 25 artigos embasados na Constituição brasileira, ele propõe a autorregulamentação do setor, por meio da criação de um órgão regulador, formado pelas entidades do mundo do marketing, que pretende atuar nos mesmos moldes do Conar. “Estamos prevendo mais rigor no tratamento aos dados sensíveis, que são as informações relativas à origem social e étnica, à informação genética, à orientação sexual e às convicções políticas, religiosas e filosóficas do titular.” A consulta a estes dados ocorrerá somente mediante autorização deste órgão ou por imposição legal. O texto também garante ao consumidor o direito de pedir a exclusão de seu cadastro do banco de dados. “Com esse documento estamos combatendo a ideia do governo, que pretende criar uma autarquia, mais um organismo estatal para policiar a coleta de dados no Brasil”, observa o criador do Projeto de lei 4.060/2012. “Ele agora passa por análise das comissões temáticas para depois ser votado em plenário, fato que deverá acontecer ainda neste ano.” regulamentação mais específica sobre o tema. como a erotização precoce, o estresse familiar e a violência. Revista da ESPM – Que estudos o instituto utiliza para comprovar o mal que a propaganda infantil pode fazer às crianças? Revista da ESPM – Em uma sociedade cada vez mais voltada ao consumo, com pessoas recebendo estímulos o tempo todo, é possível evitar que a criança seja impactada com ações de marketing? Isabella – Fazemos revisões de pesquisas feitas no mundo sobre o assunto. Elas são praticamente unânimes em demonstrar que as crianças até 12 anos de idade não têm condições de analisar criticamente as mensagens publicitárias e, por conta disso, acabam sendo envolvidas pela propaganda, que convida os pequenos a consumir habitualmente e em excesso produtos infantis e alimentícios. As pesquisas mostram, por exemplo, que a obesidade infantil seria diminuída se não houvesse incentivos ao consumo de alimentos com altos teores de sódio, gorduras e açúcar e de bebidas não alcoólicas de baixo teor nutricional. O bombardeio publicitário aos pequenos contribui para a formação de valores materialistas e consumistas, bem como para o agravamento de problemas Isabella – A ideia não é evitar que a criança seja impactada ou que ela viva em uma ”bolha”, mas que ela não esteja sozinha quando isso acontecer para que tenha a mediação de um adulto. Em um shopping ou num supermercado, a criança está sempre acompanhada de um adulto, que, nesse momento, tem condições de mediar as ações de marketing realizadas nesses ambientes. O ideal é que toda publicidade direcionada à criança se reinvente e passe a falar com os adultos responsáveis por ela. Revista da ESPM – Nesse contexto, qual seria o cenário ideal para a prática do marketing? Isabella – Aquele que não enxergasse a criança exclusivamente como um nicho de mercado, mas como o futuro da humanidade. E que, por isso, estivesse prioritariamente preocupado em resguardar todos os direitos da infância, inclusive quanto à sua integridade física, psíquica e moral. Um mundo que não direcionasse mensagens comerciais ao público infantil. Revista da ESPM – Qual o ganho da sociedade com a restrição à propaganda infantil? Isabella – É um ganho de futuro, a construção de uma infância preservada, que terá a possibilidade de se desenvolver livre do assédio consumista. Esse público poderá se transformar numa sociedade adulta com valores mais humanísticos e menos materialistas. Em um mundo que precisa urgentemente discutir a forma como se produz e se consome para que o planeta Terra não acabe em termos de recursos naturais, a restrição ao incentivo de consumo junto às crianças é urgente. maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 37 mercado Liberdade de expressão Como disse Leifert no V Congresso Brasileiro da Indústria da Comunicação, a indústria está sofrendo bullying, já que esse tipo de regulação defende uma falsa ideia de restrição à liberdade de informação. “Se o produto é lícito e seguro para o consumo, as escolhas dos consumidores devem ser respeitadas.” O executivo também atacou as inúmeras normas impostas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), principalmente à publicidade de medicamentos, bebidas alcoólicas, refrigerantes e alimentos. “Tentar resolver problemas graves, como obesidade, tabagismo e alcoolismo, por meio de decretos e leis é uma ideia muito simplista e demagógica.” Segundo Leifert, este é um movimento que vai contra uma tendência mundial de flexibilização das leis. “Neste momento, no Parlamento Europeu, na Organização Mundial da Saúde e no FDA americano ganha força a ideia da mobilização de todos os interessados – fabricantes de produtos, órgãos de defesa do consumidor, mídia, agências de publicidade e Estado –, unidos no esforço de encontrar a melhor resposta para as aspirações da sociedade em termos de saúde e bem-estar.” Com base nesse conceito, se o Estado reconhecer que existe excesso de sódio em alimentos, vai discutir com os fabricantes o nível tolerável da substância nessas fórmulas e não restringir a publicidade. “Propaganda não tem excesso de sal, sódio ou gordura trans. Os produtos é que podem conter excessos”, afirmou o presidente do Conar, durante a comissão Liberdade de Expressão e Democracia do V Congresso, que reuniu no mesmo palco o ministro Carlos Ayres Britto, presidente do Supremo Tribunal Federal, e Roberto Civita, presidente do grupo Abril, além de Leifert e Dalton Pastore, para debater a questão. “Existe uma confusão entre produto, propaganda e consumo no Brasil. Se o Estado tiver de orientar a população, deve fazer por meio de campanhas regulares. Afinal, ele é um grande anunciante e tem meios de promover a chicória, o chuchu e a abobrinha em lugar de proibir a propaganda de alimentos industrializados. Outro exemplo é o banimento de crianças nos comerciais, que fará com que o Brasil se apresente como uma sociedade doente.” Em uma aula de democracia, o ministro Ayres Britto explicou por que este tipo de projeto é ilegal: “A Constitui- “Imprensa e democracia são irmãs siamesas. Se cortar o cordão umbilical, o resultado é a morte das duas. Daí a importância de a lei conciliar liberdade com responsabilidade” Carlos Ayres Britto, ministro do STF 38 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 Quem cala, consente! ”Vivemos em um país democrático, onde a lei de mercado vale para todas as áreas. Então, por que a cultura não pode se autorregulamentar?” Com esta pergunta, o ator Odilon Wagner abriu sua apresentação no V Congresso. ”Sofremos um processo de patrulhamento grande pelo Estado.” Inserida na chamada indústria criativa, a cultura representa hoje 5% do PIB brasileiro e, segundo o ator, recebe apenas 1,5% de todo o incentivo fiscal concedido aos diversos setores da economia. ”O governo investe cerca de R$ 2 bilhões por ano na cultura. Somos o penúltimo orçamento da União, só perdemos para a pesca, embora a arte faça parte da chamada economia criativa, que no ano passado movimentou R$ 40 bilhões em negócios apenas na cidade de São Paulo. Esse problema estrutural ocorre devido à falta de mobilização dos artistas. Se nos portássemos como indústria, a situação seria bem diferente.” o Estado trata o universo das artes no Brasil. ”Este é um país esquizofrênico. O governo vive liberando pacotes de incentivo para elevar a produção da indústria nacional e na área cultural acontece o inverso: quem produz é punido.” Como exemplo, Wagner cita a questão da meia-entrada. ”Na década de 1950, o cinema não estava indo bem e resolveu dar desconto para os jovens como forma de atrair mais público. A iniciativa virou direito adquirido. Hoje, o governo exige a meia-entrada, mas não dá uma contrapartida, um subsídio para a categoria.” Para ele, o problema está na forma como Com o objetivo de mudar este cenário, Wagner vem trabalhando na conscientização da sociedade, por meio da divulgação de estudos que demonstram a importância da atividade. ”Um estudo aponta que, para cada real investido na cultura, a cidade tem um retorno de R$ 5 a R$ 6”, comenta o ator, na expectativa de que esse espetáculo termine com um final feliz. ção nacional diz que não é pelo temor do abuso que se vai proibir o uso”. Ele acrescenta ainda que a informação deve ser vista como meio, e não como fim, por isso é um direito fundamental do cidadão. “De origem grega, demo significa povo e cracia, governo. Esta combinação é o visual do poder político, que se estrutura observando um movimento ascendente de prestígio das bases e limitação e controle das cúpulas.” Isto é o mesmo que tirar o povo da plateia e colocá-lo no palco das decisões coletivas. “É por isso que os dois primeiros fundamentos da Constituição são: artigo 1º, incisos I e II: soberania e cidadania. A Constituição também garante que nenhuma lei poderá conter dispositivo que apresente embaraço à liberdade jornalística. “Imune à censura prévia, a imprensa livre vitaliza, tonifica e robustece os conteúdos da democracia”, assegura Ayres Britto. “Imprensa e democracia são irmãs siamesas. Se cortar o cordão umbilical, o resultado é a morte das duas. Daí a importância de a lei conciliar liberdade com responsabilidade.” Já Civita aproveitou sua participação no V Congresso para apresentar o modelo de Estado moderno, que só se desenvolve quando estruturado sobre três pilares: democracia, liberdade de imprensa e livre iniciativa. “Esta é uma das mais extraordinárias simbioses do mundo moderno, que forma um tripé indissolúvel, um não sobrevive sem o outro. Sem democracia, não há livre iniciativa, que para existir precisa da concorrência. Esta, por sua vez, mantém viva a publicidade, que alimenta a imprensa livre, o alicerce da democracia.” E o caminho para a preservação deste tripé passa necessariamente pela responsabilidade compartilhada entre sociedade, iniciativa privada e Estado. “A linguagem é poderosa. Ela não apenas descreve a realidade. Ela cria a realidade que descreve”, conclui Desmond Tutu. maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 39 “Pela lei, um homem é culpado quando viola os direitos dos outros. Pela ética, ele é culpado se apenas pensa em fazê-lo” file404 Emmanuel Kant 40 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 dono do Estado? Quem é o Por Heródoto Barbeiro A s pessoas, consciente ou inconscientemente, se relacionam com o Estado para exercer o direito de participar da escolha do governante ou de obedecer à sinalização de trânsito para chegar em casa. O Estado atravessa nosso cotidiano com leis, governos, burocracia, forças armadas e policiais. Não é possível viver sem se relacionar com ele. A questão é quanto ele pode intervir na intimidade das pessoas a pretexto de organizar a sociedade em busca da felicidade, como disse Thomas Jefferson. As ideologias políticas do século 19 defenderam sociedades com Estados fortes, que teriam a missão de criar uma nova ordem social. Para isso, tinham poderes discricionários, outorgados, supostamente, pela sociedade, para fazer o que aqueles que se apropriaram do poder do Estado julgassem o que deveria ser feito. O resultado dessa ação todos conhecemos. maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 41 história file404 Desde o século 16, com Nicolau Maquiavel, se discute a organicidade do Estado e suas limitações. Esse debate foi condicionado historicamente e, no final do século 18, a burguesia liderou o processo de arruinar com o Estado absolutista e advogar uma nova concepção que tem como base o contrato social. Essa vertente, base da concepção liberal, se materializa com as revoluções inglesa, americana, francesa e o processo das independências das colônias ibéricas, onde se insere o Brasil. O principal contrato é a Constituição, escrita ou não. O Brasil surgiu libertado no início do século 19, sob a égide de um conflito que culminou com o fechamento da primeira Assembleia Constituinte. Portanto, o primeiro “contrato” foi imposto pelo soberano, que era o próprio Estado, e se preservou até o advento da República. Portanto, era uma carta outorgada e não uma Constituição. As constituições brasileiras, outorgadas ou não, foram redigidas e promulgadas pelas oligarquias dominantes, com mínima participação popular. Ela sabe que a única coisa que o poder respeita é o poder, como disse o filósofo de Florença. Poder é a capacidade de mudar as coisas e dar forma ao Estado, como fizeram as oligarquias ao longo de nossa história, sejam elas oriundas do latifúndio, das indústrias, dos bancos ou dos demais setores poderosos do mercado. Na sociedade aberta, geralmente não se herda o poder, já na oligárquica ele é hereditário. Elas aprenderam que a melhor forma de consolidar o seu poder é reconhecer os sinais de ameaça e agir. Até mesmo propondo a redação de um novo pacto social para não perder poder. Cabe aqui também outra reflexão de Maquiavel, que disse: “Os fracos não vão herdar a Terra, mas os aliados terão mais chances de ajudar a herdar por eles”. Pode parecer cínico, mas está em O Príncipe (traduzido por Mauricio Santana Dias, Editora 42 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 O comportamento da sociedade sugere que eu considere que o Estado invade a minha privacidade quando atropela minhas convicções pessoais. Mas é justo quando invade a privacidade dos outros para impor as minhas convicções Penguin). A liderança da elite na organização do Estado brasileiro sempre foi a de projetar uma imagem de força para obter o aval da população. Somos ou não programados para obedecer às autoridades? O “contrato” diz que sim. Fomos educados para obedecer a ordens dadas pelas autoridades; como simples agentes, deixamos de assumir responsabilidades e obedecemos pacificamente. Não somos preparados para desenvolver uma reação cidadã, democrática e popular. É bom lembrar que o “contrato” deixa claro que a autoridade vem com o cargo, e isso é inegociável. Outra lição de Maquiavel que se aplica ao longo do tempo na nossa história é a de que o medo é uma forma de conquistar e manter o poder. A educação escolar replicou durante muito tempo o dever de obedecer, e não de reagir, ao que nossa consciência não aceita. É assim, porque sempre foi assim e vai ser assim. Afinal, estar coletivamente errado é mais seguro do que estar individualmente errado. As elites aprenderam com Adam Smith que a primeira superioridade para se introduzir a submissão é a qualificação de força. E a praticaram. Já Karl Marx identificou a formação dessa elite: “A compra da força de trabalho por um período fixo é o preâmbulo do processo de produção, e esse preâmbulo é constantemente repetido quando o prazo estipulado chega ao fim, quando um período definido de produção, como uma semana ou um mês, tenha decorrido”. Ou seja, o que chamou de enriquecimento através da acumulação de mais-valia ou excedente de capital. Até mesmo a Constituição de 1988 foi fruto das vontades das elites organizadas, e o partido popular, representado pelo PT, se recusou a assiná-la, ainda que posteriormente tenha aderido e se aliado às elites a que tanto se opunha. A ausência de participação popular, da organização das forças populares de pressão, facilitou o advento de um Estado tutelar, capaz de impor, de cima para baixo, as regras do contrato social. Esse elitismo se manifestou desde a primeira Constituição republicana, e as elites se sucedem com o passar dos anos. Um grupo eleito, representante das elites, obteve a procuração para assinar o contrato em nome de todos. Um processo democrático apenas no formalismo. A última Constituição deixou uma brecha considerável às PECs (Projetos de Emendas Constitucionais), uma saída para “aprimorar” o texto constitucional. “Os fracos não vão herdar a Terra, mas os aliados terão mais chances de ajudar a herdar por eles” Nicolau Maquiavel A tradição mostra que nem mesmo o Estado cumpre com o contrato, uma vez que os governos têm mecanismos de desobediência. O Estado republicano nasceu laico e, no entanto, a moeda nacional diz que nós acreditamos em Deus, os símbolos religiosos cristãos estão espalhados pelos prédios públicos até hoje. No Congresso, bancadas religiosas querem impor a todos as suas convicções, como no caso do debate sobre o aborto, o casamento homossexual e tantas outras questões. O Estado aprimora suas defesas que, no fundo, é a manutenção da vontade e das concepções de vida da elite. Elas julgam ser o farol que vai nos conduzir a uma sociedade mais aberta, justa e solidária. Ainda não há organização comunitária, local e popular. Por isso, não há cidadania. A maior parte da população brasileira continua sendo objeto, e não sujeito, de sua história. A identidade de um homem não pode mais ser avaliada socialmente apenas pelo que ele possui, mas pelo que faz. Parafraseando Edmund Burke, a única coisa necessária para o triunfo da elite é que os demais nada façam. O comportamento da sociedade sugere que eu considere que o Estado invade a minha privacidade quando atropela minhas convicções pessoais. Mas é justo quando invade a privacidade dos outros para impor as minhas convicções. Isso demonstra que há uma disputa do seu controle não para reorganizá-lo de uma forma democrática, mas de manipulá-lo de acordo com os interesses de quem tem o poder. As mudanças ocorridas na sociedade brasileira na última década, os confrontos políticos e ideológicos, a ascensão econômica de novas classes sociais, a nova comunicação através das redes sociais, a globalização da economia e a impossibilidade de segurar notícia são os motores que movem essas mudanças. Afinal, como diz Rosa Luxemburgo, quem não se movimenta não percebe as correntes que o prendem. Heródoto Barbeiro Escritor e jornalista da Record News TV maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 43 entrevista 44 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 Luiz Lara A solução é educar, não proibir F ormado em direito pela Universidade de São Paulo (USP), Luiz Lara é conhecido no meio publicitário como um dos maiores defensores da liberdade de expressão e da livre iniciativa do Brasil. Presidente da Associação Brasileira de Agências de Publicidade (Abap), ele advoga a favor da propaganda ao estimular a discussão do papel da comunicação na sociedade. “Defendo que todo produto legalmente produzido, distribuído e comercializado possa ser propagado, respeitando as leis do país”, comenta Lara, que em 1992, junto com Jaques Lewkowicz, fundou a Lew’Lara, atual Lew’Lara/TBWA. Desde então, esse profissional, especializado em planejamento estratégico, coleciona inúmeros cases em seu currículo. O Banco Real foi cliente da agência, que criou o slogan “O banco da sua vida” e todo o conceito de sustentabilidade da marca. Natura, Pedigree, Adidas, TIM e Nissan também contaram com a ajuda da equipe de Lara para construir seus posicionamentos de marca. Em maio, ele liderou o V Congresso Brasileiro da Indústria da Comunicação, que teve como tema a democracia e a liberdade de expressão. Nesta entrevista, Lara mostra como a educação – no lugar da proibição – pode contribuir para a evolução da ética e da responsabilidade do conteúdo das mensagens publicitárias. Entrevistado por Francisco Gracioso e Anna Gabriela Araujo maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 45 entrevista Gracioso – Lara, como presidente da Abap, você pode comentar um dos grandes temas abordados no V Congresso Brasileiro da Indústria da Comunicação: a democracia e a liberdade de expressão? Lara – Liberdade de expressão e democ rac i a são v a lores q ue posso fa la r como cidadão porque acredito neles. Na década de 1980, participei de movimentos est uda nt is, lutei pela redemo cratização do Brasil, e acredito que a liberdade de expressão é o a licerce f undamenta l da democracia. Como publicitário, prefiro fa lar mais sobre a liberdade de expressão comercial. A publicidade é um instrumento legítimo da l iv re i n ici at iva , que e x i ste para alimentar o empreendedor ismo e o processo de cr iação, construção e posicionamento de marcas, gerando uma percepção de valor maior que o da etiqueta de preço. Nesse processo, temos a capacidade de desenvolver mercados , c r i a r nov a s cat egor i a s de produtos e ser a indústria de ponta da economia criativa, que regula e gera riquezas, empregos e i mpostos. Pa ra ter mos l iberdade de ex pressão no Brasi l, é fundamental que os veículos de comunicação – entre emissoras de televisão e de rádio, jornais, revistas e portais de internet – tenham os recursos trazidos pela publicidade. A liberdade comercial é irmã siamesa da liberdade de expressão, porque são os re- 46 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 “A liberdade comercial é irmã siamesa da liberdade de expressão, porque são os recursos trazidos pela publicidade criativa e ética que constroem marcas” cursos trazidos pela publicidade cr iat iva e ét ica que const roem ma rcas em di ferentes segmentos da econom ia . É a verba de grandes anunciantes – das áreas de v a r ej o, t e le c om u n ic aç õ e s , automotiva, cosméticos, higiene e beleza, a limentos e bebidas – que permite aos veículos investir numa programação de qualidade com um conteúdo isento e independente. Graças a isso, temos no Brasi l uma comun icação de primeiro mundo numa economia ainda em desenvolv imento. No momento em que o país se torna a sexta economia mundial, temos mais de 100 milhões de pessoas na c lasse méd ia , das qua is 4 0 milhões acabam de ingressar na c ha mada “nova c lasse méd ia”, com aspirações e desejos legítimos de consumo. E a publicidade cumprirá um papel fundamental de t razer i n for mação, ent reter e até educa r esses m i l hões de consumidores. A propaganda não obriga n ing uém a compra r, ela respeita a liberdade de escolha dos consumidores. O que ela faz é utilizar uma linguagem criativa para posicionar marcas, acirrar a compet it iv idade e fa zer com que o consumidor seja um cidadão mais crítico, exigente e com ma is opções de escol ha . Hoje, na era da i nternet, o consu m idor pode estabelecer um diálogo com a marca, receber e produzir conteúdo em uma comunicação posit iva mente i nterat iva . Com isso, a reputação das empresas está permanentemente em risco, porque o consumidor fala mesmo sem ser cha mado a fa la r. E é a liberdade de expressão comercial que permite a ele exercer a sua liberdade de escolha. Gracioso – Neste contexto, a propaganda deve contentar-se em agir como espelho da sociedade refletindo cada momento ou deve intervir, procurando introduzir valores e novas formas de comportamento? Lara – A propaganda sempre é ref le xo do compor t a ment o de uma sociedade. Defendo que todo produto lega lmente produzido, distribuído e comercializado possa ser propagado, respeitando as leis do país. Ao longo da sua história, a publicidade demonstrou que ela pode ser um instrumento legít imo pa ra dissem ina r bons hábitos. Não hesito em dizer que a propaganda brasileira ensinou e contribuiu muito para a educação de muitas crianças que aprenderam a escovar seus dentes, numa linguagem infantil. Luiz Lara Gracioso – Trabalhei em campanhas desse tipo. Lara – Também ensinou, numa l i ng uagem sut i l e del icada , as mu lheres a usar absor vente feminino, as donas de casa a lavar melhor a roupa, a operar a máquina de lavar e muitos out ros equ ipa mentos domést icos. Então, a propaganda também pode ser utilizada, como instrumento legítimo, para dissem ina r bom compor ta mento em relação ao consumo responsável de bebidas. Ela pode ser utilizada de forma soci a l mente respon sáve l pa ra dissem inar esse novo conceito de sustentabilidade que estamos construindo. Ainda estamos vivendo um período de gerúndio na questão da sustentabilidade, mas a propaganda pode, sim, de forma verdadeira e transparente, disseminar as boas práticas na gestão de marcas que estão em busca da equação de seus recursos sociais, ambientais e econômicos. A propaganda cumpre o papel de estar à frente do seu tempo, dissemin a ndo b on s h á bit os de for m a “Defendo que todo produto legalmente produzido, distribuído e comercializado possa ser propagado, respeitando as leis do país” proativa. É papel da comunicação educar, informar, entreter. Uma recente pesquisa do Ibope r e a l i z a d a p e l a A ba p m o s t r o u que 87% dos brasileiros gostam, con hecem e confiam na propaganda brasileira. Diante disso, a propaganda não pode deixar de cumprir esse papel relevante. E se ligarmos a TV aberta ou a cabo, as rádios, jornais e revistas, veremos vários exemplos de veículos e agências empenhados em realizar esse tipo de campanha. Gabriela – Com base na sua experiência no atendimento de contas como Banco Real e Natura, você acredita que uma posição humanista favorável à sustentabilidade, ao respeito à natureza e ao ser humano torna mais remota a possibilidade de intervenção do Estado na comunicação e no próprio negócio da empresa? Lara – Banco Real e Natura não fizeram publicidade da sustentabilidade. Elas adotaram práticas sustentáveis na gestão de suas marcas e buscaram a equação dos recursos sociais, econômicos e ambientais no seu dia-a-dia. E expressaram isso na sua comunicação mostrando a missão, os valores e o jeito de fazer de forma responsável, ética e transparente. Sou contrário a tentar maquiar prát ica s de empresa s e usa r a sustentabilidade como modismo. A propaganda constrói posicionamento e procura integrar diver- “A propaganda é um espelho da sociedade, mas também cumpre o papel de estar à frente, disseminando bons hábitos de forma proativa” sas disciplinas de comunicação sobre o mesmo diapasão conceitual alicerçado na verdade e na transparência. O objetivo é criar uma cultura de marca para transmitir verdade, missão, valores e o jeito de ser de uma empresa. Esse posicionamento é construído de dentro para fora. Então, ela precisa se relacionar com todos os públicos: funcionários, colaboradores, parceiros, distribuidores, consumidores, acionistas, órgãos r e g u l ador e s , a u t or id ade s no s âmbitos municipal, federal e estadual, ONGs, imprensa e a sociedade como um todo. Não acredito que a sustentabilidade deva ser usada para dar um tom mais humanista à marca, ela só deve ser comunicada se for verdadeira. E as relações com o Estado entram no dia-a-dia das organizações e das empresas, assim como a relação com os demais stakeholders. Adotar boas práticas é essencial. O modelo de governança exigido pelas orga n izações precisa ser cada vez mais transparente, porque a reputação de uma empresa maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 47 entrevista está permanentemente em risco nas redes sociais. Hoje, o melhor serviço de atendimento ao consumidor são o Twitter e o Facebook. No si s t e m a de mo c r á t ic o p e lo qual optamos, a comunicação entra como um valor fundamental e estratégico da empresa. Por mais que ten ha boas prát icas industriais e produtos de qua lidade, essa empresa não vai prosperar caso não estabeleça uma gestão de marca na relação com todos os seus stakeholders. Gracioso – Para alguns filósofos, o livre-arbítrio pode fazer o homem regredir à selvageria na sua expressão maior. E há os que defendem o Estado como regulador, chegando aos países totalitários. São os extremos. Qual sua opinião sobre isso? Lara – Acredito na tese de Hobbes: “Por trás de nós, homens, sempre há um lobo”. Um país é tanto melhor quanto mais sólidas forem suas instituições. Defendo o liv re-a rbít rio, mas ta mbém a regulação no sentido de que devemos respeitar as leis. No que concerne à comunicação, acredito no arcabouço jurídico formado pelo sistema híbrido, no qua l temos a Constituição Federal – que no artigo 820, inciso IV, defende que “é livre a publicidade comercial, respeitadas algumas restrições a medicamento, tabaco e bebidas” –, o Código de Defesa do Consumidor e o Código de Autorregulamentação P ublicitá ria . Ju ntos, eles formam um sistema híbrido, pro- 48 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 “O modelo de governança exigido pelas organizações precisa ser cada vez mais transparente, porque a reputação de uma empresa está permanentemente em risco nas redes sociais” tege o livre-arbítrio, os direitos do cidadão e a liberdade de escolha do consumidor em qualquer segmento da economia. O modelo do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) – criado em 1980, após a realização do III Congresso da Indústria da P ubl icidade – vem ju lga ndo campan has que eventua lmente tenham abusado da ética, mentido, desrespeitado o consumidor ou a liv re concorrência . Em 32 anos, mais de 7,5 mil campanhas foram julgadas pelo Conar, que é permanentemente atualizado, visando atender às demandas da sociedade. Esse sistema deu credibilidade à comunicação brasileira e a tornou uma indústria pujante, que representa 2% do PIB e contribui para o desenvolvimento da livre iniciativa e a formação de um mercado de consumo interno for te no Bra si l . A propaga nda desenvolve hábitos, antevê comportamentos e contribui para a cultura nacional. Cumprimos bem nossa missão. Sobre a sua pergunta, Max Weber dizia: “Todos nós, individualmente, temos a nossa ética de convicção pessoal ”. Fortalecer as instituições significa conciliar essa ética de convicção pessoal com uma ética de responsabilidade coletiva. O arcabouço jurídico formado pelo conselho de autorregulamentação do Conar, o Código de Defesa do Consumidor e a Constituição Federal representa uma boa ética coletiva. Gabriela – Em julho de 2011, sua agência criou a campanha Pôneis Malditos para anunciar a picape Frontier, da Nissan. O comercial fez muito sucesso. Mas também foi alvo de críticas, com a campanha sendo julgada pelo Conar, por fazer a associação de figuras infantis – os pôneis em desenho animado – com a palavra “malditos”. Qual sua avaliação sobre o ocorrido? Lara – Ninguém imagina a repercussão de uma campanha antes que ela aconteça no âmbito da criação. Buscamos realçar a vantagem comparativa da marca, que foi percebida pelo consumidor. Hoje, a comunicação não é mais unidirecional, o consumidor recebe o conteúdo e estabelece uma conversa, um diálogo com as marcas. A comunicação é positivamente interativa. Então, aquilo que é visto na TV aberta é alimentado nas redes sociais, como Facebook, Twitter e YouTube. Os Pôneis Malditos foi uma grande brincadeira. Mas o fato de os consumidores poderem acessar o Conar, e haver esse debate, é uma conquista da nossa sociedade, da democracia. Luiz Lara e promover uma discussão aberta com a sociedade brasileira. E foi isso que propusemos com a cr iação do por t a l w w w.somostodosresponsaveis.com.br, que apresenta o depoimento de várias personalidades e também de pessoas comu ns pa ra most ra r que somos todos responsáveis. O objetivo é fazer a sociedade evoluir na ética e na responsabilidade do conteúdo das mensagens para as crianças. Gracioso – E, ao mesmo tempo, educar o público. A educação torna a pessoa capaz de discernir e julgar melhor. “Pôneis Malditos foi uma grande brincadeira... A campanha foi julgada e o Conar entendeu que não seria preciso tirar o comercial do ar, até porque as crianças crescem ouvindo histórias como a da Branca de Neve e os Sete Anões” A campanha foi julgada e o Conar entendeu que não seria preciso tirar o comercial do ar, até porque as crianças crescem ouvindo histórias como a da Branca de Neve, os Sete Anões e a da Bruxa Malvada. Este debate é fantástico. Gabriela – Baseado nesta experiência, qual deve ser o limite da publicidade voltada para o público infantil? L a r a – S ou pu bl ic it á r io, m a s também sou pai e educo os meus filhos. Proibir a propaganda para cr ia nça s é i mpossível , porque hoje vivemos na era do conhecimento e da informação. Se você proíbe a propaganda na T V, ela continuará acontecendo em revistas e jornais infantis, tablets, games, internet, shoppings, super mercados, e levadores . . . A s crianças crescem cercadas pela m íd i a , porque v ivemos n a so ciedade da livre iniciativa e da propaganda do consumo. Neste cenário, o melhor caminho não é tutelar e proibir, mas sim educar Lara – Exatamente. Não acreditamos na punição pura e simples, nem que o Estado deva tutela r a educação, que começa dentro de casa, na família. Somos todos responsáveis pelo conteúdo que é transmitido para essas crianças. Gra c i o s o – Como a Abap e os publicitários mais conscientes encaram o fato de termos hoje no Congresso Nacional mais de 200 projetos de lei que de alguma forma cerceiam, limitam ou até proíbem a propaganda? Lara – É normal que em um sistema democrático o Congresso Nacional discuta projetos de lei. O que nos cabe, enquanto entidade, é oferecer a nossa visão ou até estabelecer um contraponto em relação a cada projeto de lei que ali é levado. Após o IV Congresso Brasileiro da Publicidade, reali- maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 49 entrevista zado em 2008, criamos a Frente Pa rla ment a r de Comu n icação, que é presid ida pelo deput ado Milton Monti. Desde então, vários pa rla menta res acompa n ha m a apresentação de projetos de lei que estabelecem novas regras, restrições e até proibições para vários segmentos da publicidade e oferecem a nossa visão, num debate legítimo e democrático. A Frente Parlamentar tem funcionado muito bem, porque estamos sempre atentos e propensos ao diálogo. Gabr ie la – E que balanço você faz dos quatro anos de trabalho da Frente Parlamentar? Lara – Um balanço extremamente posit ivo, porque até então a Abap não se pronunciava durante a aprovação dos projetos de lei. Não adianta nada ficar achando que somos vítimas. Somos agentes da sociedade e temos que cumprir com o nosso papel cidadão de defender e valorizar a nossa atividade. Este é um canal aberto ao debate para que possamos aprimorar ainda mais as práticas e o conteúdo de nossas mensagens. O objetivo das agências de publici- “Somos agentes da sociedade e temos de cumprir com o nosso papel de cidadão, de defender e valorizar a nossa atividade” 50 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 dade e dos anunciantes é conectar as marcas e respeitar o público com o qual elas se relacionam. Gracioso – O que ocorre nos países mais representativos – Estados Unidos, Japão, Alemanha, França, Inglaterra e Itália – a este respeito? Como as leis e os congressos desses países tratam a nossa profissão? Lara – Há diferenças que reflet e m e x a t a me n t e o e s t ág io do comportamento e o jeito de ser e de fa ze r de cad a u m desses países. Nos Estados Unidos, por exemplo, a livre iniciativa é mais rad ica l i zada . Já a lg u n s pa íses e u r op e u s e s t a b e le c e m r e g r a s m a i s r igorosa s . Temos de nos inspirar nas boas práticas desses pa íses, mas nossa propaga nda conquistou esse patamar porque temos um modelo brasileiro de agências de publicidade alicerçado no Cenp (Conselho Executivo das Normas-Padrão), que reúne prof ission a is de atend i mento, pla neja mento, m íd ia , cr iação, produção e f i na nças dent ro da mesm a agência . Isso per m it iu que a propaganda brasileira capacitasse melhor os seus recursos humanos e ganhasse asas. Hoje, a criatividade brasileira é respeitada no mundo inteiro. Criamos modelos de autorregulamentação inspiradores para outros países e respeitamos o Código de Defesa do Consumidor e a Constituição federal. O Brasil tem peculiaridades e nua nces em re lação à “O valor futuro da marca será formado pela soma de contatos e interações dela com os seus diversos públicos” cu ltu ra, à diversidade e à m isc ige n ação do nos so p ovo q ue fizera m com que a propaga nda florescesse, criando uma indústria de comunicação de primeiro mundo. Então, vamos sim acompanhar, nos inspirar e monitorar permanentemente as práticas de out ros pa íses. O Brasi l precisa respeitar, preservar e perenizar todas as boas práticas, a governança e as entidades do setor que garantem o respeito à criatividade, ao talento, à livre iniciativa e à liberdade de escolha dos consumidores. O que nos trouxe até aqui são valores importantes que nos permitirão seguir em frente, e isso foi corroborado no V Congresso. Temos de lutar por uma c om u n ic aç ão m a i s i nc l u s i v a , criativa, integrada e propensa ao diálogo. Gabriela – A Lew’Lara atende a contas de bebida alcoólica, como a vodca Absolut, que enfrentam uma série de restrições na propaganda. Nesse setor, a regra da educação no lugar da proibição também poderia ser válida? Lara – O Conselho de Autorregulamentação Publicitária evoluiu Luiz Lara muito no conteúdo do seu código, criando uma série de restrições à propaganda de bebidas alcoólicas, como a cerveja, que não pode ser a nu nciada em comercia is com pessoas menores de 25 anos ou mostrar o ato de pedir a bebida. São restrições que atendem às demandas cidadãs da sociedade. Nós, publicitários, temos de estar cada vez mais conscientes do nosso papel de fazer campanhas criativas, respeitar a liberdade de escolha do consumidor, construir preferências para as marcas, sempre respeitando o Código de Autorregulamentação do Conar. Ao mesmo tempo, a propaganda deve investir em campanhas de consumo responsável de bebidas. É importante que consigamos sempre mostrar que a propaganda pode ser disseminada para utilizar as práticas de um consumo responsável. Gabriela – Para finalizar, como você vê o futuro da sua profissão? Lara – O futuro é fascinante, porque estamos na era do conhecimento e da informação. Hoje, com tantos pontos de contato e interação entre as marcas e seus diversos públicos, aumentou muito a quantidade de plataformas de mídia e interação. O grande desafio que se coloca para todos os profissionais de comunicação é como, a partir de uma ideia memorável, con st r u i r u m posicion a mento forte que ponha todas as disciplinas de comunicação sob o mesmo diapasão conceitual. Isso porque o valor futuro da marca será formado pela soma de contatos e interações dela com os seus diversos públicos. A gestão da marca f icou ma is complexa e o papel das agências, mais relevante. Os profissionais de comunicação precisam gerir todos esses pontos de contato e fazer uma comunicação mais integrada, eficaz, criativa e positivamente interativa, porque “O grande desafio que se coloca para todos os profissionais de comunicação é como, a partir de uma ideia memorável, construir um posicionamento forte que ponha todas as disciplinas de comunicação sob o mesmo diapasão conceitual” hoje o consumidor fala, mesmo sem ser chamado a falar. Então, a comunicação não é mais unidirecional e o diálogo é permanente. O consumidor recebe aquilo que você d iv u lga no a r, produz u m novo conteúdo e estabelece uma conversa com as marcas. Estamos na era virtual do conhecimento e da convergência das plataformas de mídia. A mídia retroalimenta a mídia, a TV aberta alimenta o Twitter, que alimenta o Facebook, que é a l i ment ado por jor n a is, revistas, TV a cabo, portais de internet, mídia out of home. Estamos criando mais experiências com os públicos. Uma empresa não consegue mais viver sem comunicação. Gracioso – O consumidor está ganhando cada vez mais voz. Lara – E isso é muito positivo. A reputação das empresas está em risco a todo instante, somos atores em cena aber ta . Acredito que a comu n icação vá v iver o seu apogeu neste sécu lo e os profissionais do futuro saberão percorrer essa grande avenida da convergência e da integração. Gracioso – Há vários anos, começamos a falar na ESPM das novas arenas da comunicação, que representam exatamente o que você acaba de descrever, a multiplicidade de canais, que são utilizados com o mesmo objetivo estratégico interagindo entre si, sobre a égide de um grande guarda-chuva. Estamos vivendo na sociedade do espetáculo. A própria propaganda tem de ser um espetáculo para atrair e reter a atenção do espectador. Enfim, o futuro nos dirá para onde vamos. Lara, foi ótimo. Parabéns, porque você falou com muita clareza e não deixou nada de fora. La ra – Foi u m priv i légio esta r aqui. Muito obrigado. maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 51 realinemedia mídia responsável 52 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 O jornalismo também tem de prestar contas à sociedade Sem imprensa livre não existe democracia e vice-versa. A imprensa deve se pautar no respeito aos princípios que sustentam o estado democrático. É crucial responsabilizá-la pelos abusos cometidos contra pessoas acusadas de crimes, sem com isso ferir a liberdade de imprensa Por Marina Dias A Constituição federal estabelece princípios que devem nortear a cobertura jornalística de casos criminais: a liberdade de expressão e de imprensa; o direito e o dever de informar; a presunção da inocência; o direito de defesa; o direito à intimidade; o princípio da dignidade humana; e o direito de resposta proporcional ao agravo. Tais garantias são os pilares do estado democrático de direito. A Lei de Imprensa foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, que proclamou a importância da liberdade de imprensa, apontando que os parâmetros para a atuação jornalística já estão previstos constitucionalmente. O Código Penal estabelece os crimes contra a honra e o Código Civil regulamenta a indenização por danos morais e materiais causados pelos abusos cometidos pela imprensa. Não cabe, em uma democracia, a interferência do Estado na atuação livre da imprensa. No entanto, a sociedade deve exigir mais transparência e responsabilidade dos órgãos de comunicação. Nesse sentido, diz Eugênio Bucci [diretor do curso de pós-graduação em jornalismo com ênfase em direção editorial da ESPM]: “Quando as autoridades estatais querem ‘melhorar’ o jornalismo por decreto, temos o ‘liberticídio’. Daqui por diante, se jornalistas continuarem a se recusar a avaliar em público o seu próprio ofício, teremos o suicídio”. A imprensa exerce o papel fundamental de informar e de trazer à tona fatos de inegável interesse público, que, não fosse a permissão constitucional, ficariam desconhecidos da sociedade. É atribuição da imprensa jogar luz em esquemas perversos do crime organizado, que alimentam um sistema imoral de corrupção e de tráfico de influência exercido por aqueles que ocupam o poder estatal. Assim como é inegável o dever de denunciar a lentidão da Justiça, de cobrar políticas públicas do Executivo no que concerne ao sistema de Justiça criminal e segurança pública, de revelar o descaso para com o sistema prisional e o de fiscalizar projetos de lei que firam as garantias constitucionais individuais. Da mesma forma cumpre desconfiar de investigações conduzidas de forma açodada pela polícia e também duvidar de suas fontes, sejam promotores, delegados, juízes ou advogados, quando buscam atrair os holofotes da mídia. maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 53 mídia responsável Sem imprensa livre e independente não existe democracia e vice-versa. E, justamente por essa ligação visceral, a imprensa deve pautar seu trabalho na observância intransigente dos preceitos fundamentais que sustentam o estado democrático, principalmente no que concerne às garantias constitucionais individuais que existem para proteger o cidadão do poder estatal opressivo e que estabelecem as regras do jogo. Não é à toa que a imprensa sempre teve papel decisivo no restabelecimento das liberdades nos países em que vigorava a escuridão dos governos totalitários. Da mesma forma, cumpria aos advogados exercerem função estratégica de serem porta-vozes dos direitos individuais durante os regimes ditatoriais. Afora os momentos em que advogados eram valorizados por lutarem pelo restabelecimento da ordem democrática, sempre existiu um clima de incompreensão com a função desempenhada pelo defensor. É cada vez mais frequente ouvir da opinião pública que os advogados são aliados da impunidade. No entanto, a justiça só se realiza quando se observa o devido processo legal, o que só é possível com o amplo exercício do direito de defesa. Com muita frequência confunde-se a pessoa que está sendo investigada com o advogado que atua em sua defesa. No entanto, na lição do jurista, escritor e político Rui Barbosa: “Quando quer e como quer que se cometa um atentado, a ordem legal se manifesta necessariamente por duas exigências, a acusação e a defesa, das quais a segunda, por mais execrado que seja o delito, não é menos especial à satisfação da moralidade pública do que a primeira. A defesa não quer o panegírico da culpa ou do culpado. Sua função consiste em ser, ao lado do acusado, inocente ou criminoso, a voz dos seus direitos legais”. Hoje, contudo, observa-se que em muitos casos a imprensa dissemina esse clima de incompreensão e intolerância. Nesse espírito, a fala da defesa tem muito pouca relevância durante a apuração jornalística. Não são poucos os casos de jornalistas que preferem ouvir a versão da defesa já perto do fechamento da reportagem para não correrem o risco de perder a “história” e o suposto “furo”. É uma pena, pois sem dúvida, assim como a justiça se faz de um equilíbrio entre acusação e defesa, a boa reportagem é fruto de uma apuração rigorosa de 54 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 todos os lados envolvidos na história. Os novatos na profissão, que vivem a pressão surreal do jornalismo instantâneo, deveriam ficar mais atentos à lição dada pelo jornalista Sidnei Basile [ex vice-presidente de Relações Institucionais da Abril, que faleceu em março de 2011]: “Corra o risco de perder o furo; não corra o risco de dar uma notícia errada”. É notório e histórico o interesse da sociedade nas reportagens policiais. O que sempre garantiu às coberturas de crimes, envolvendo ou não pessoas públicas, um grande espaço na mídia. Não são poucos os exemplos em ioannis ioannou A censura prévia é incompatível com a democracia, mas a imprensa precisa ser devidamente responsabilizada pelos abusos que vier a cometer que a imprensa acabou por propiciar massacres públicos de pessoas às voltas com a Justiça criminal, violando frontalmente a presunção da inocência. São também diversos os textos que discutem a influência da imprensa nos julgamentos dos casos criminais, sejam eles proferidos por juízes ou pelo júri popular, esses últimos com muito mais intensidade. Em artigo publicado no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, intitulado “A mídia e o direito penal”, o professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Sergio Salomão Shecaira faz considerações importantes acerca do papel desempenhado pela mídia no sentido de criar clima de intolerância, de preconceito e punitivo na sociedade. Com frequência assistimos a veículos de comunicação realizando verdadeiras “campanhas” de recrudescimento penal, em absoluto desacordo com os valores de respeito ao direito da dignidade humana. Nesse sentido, Shecaira alerta: “Por derradeiro, bem é de observar-se que qualquer discussão acerca do que faz ou deixa de fazer a imprensa, no plano político ou policial (são realidades nada distantes, até no plano semântico), só se justifica dentro do contexto da democracia garantidora da liberdade de pensar e agir. Se a própria mídia não cria mecanismos asseguradores da mantença dos valores democráticos, corre o risco, em face dos resultados decorrentes de sua ação, de sofrer as eventuais consequências da falta de democracia, que tanto apregoa defender, mas que não defende”. É fato que invariavelmente os princípios constitucionais que sustentam a liberdade de imprensa entram em choque com as garantias constitucionais individuais. Já que as fronteiras são tão nebulosas, que é muito difícil traçar uma linha objetivamente sem o risco de ferir alguma das liberdades em jogo. É preciso criar mecanismos que permitam fomentar discussão permanente sobre os conflitos em evidência, mobilizando diversos atores da sociedade: profissionais da imprensa, juízes, advogados, membros do Ministério Público, agentes da segurança pública, políticos, sociólogos e, finalmente, o cidadão. Dessa forma, o grande desafio posto para os veículos de comunicação está em promover um debate sério, amplo e comprometido com o intuito de se criarem paradigmas para a realização de um jornalismo responsável, atento ao direito e ao dever de informar, assim como as garantias constitucionais individuais. Tal processo deve ser feito paulatinamente, por meio de um diálogo constante com a sociedade civil, visando estabelecer um maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 55 bloomimage/corbis mídia responsável marco importante em que a autorregulação realizada nas respectivas redações surge quase como uma consequência natural e necessária para trazer mais credibilidade, responsabilidade e transparência à cobertura jornalística. De modo que o cidadão possa entender os mecanismos de apuração do veículo que pretende questionar. Nesse sentido, a figura do “ombudsman” é exemplar. Seguindo essa linha de pensamento, vale novamente citar o jornalista Sidnei Basile, que deixou algumas reflexões interessantes sobre o papel a ser desempenhado pelas grandes organizações jornalísticas em um mundo permeado pelo acesso fácil e rápido à informação: “A maneira como você resgata a relevância para a grande imprensa é conferir às grandes organizações jornalísticas, ao DNA delas, a certeza de que nelas se apuram os fatos segundo os rituais da imprensa liberal clássica. Assegurar o direito de defesa, ouvir todas as partes, assegurar que não se ‘abrigue’ em informações ‘em off’”. Em outro texto, Basile afirma que a imprensa tem “um encontro marcado com a autorregulação”: “Como satisfazer esse direito (o direito à informação, de que todo cidadão é titular) sem códigos de autorregulação 56 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 Não são poucos os exemplos em que a imprensa acabou por propiciar massacres públicos de pessoas às voltas com a Justiça criminal, violando frontalmente a presunção da inocência que assegurem o direito de defesa de quem esteja sendo acusado? De que se ouçam as partes? De que se evitem ao máximo as acusações off the records? De que não se confunda o leitor misturando, em um mesmo texto, opinião com notícia? De que não se obtenham notícias com o jornalista se fazendo passar por outra pessoa? De que não se vaze o conteúdo de fitas de áudio e vídeo sem antes explicar ao público os muitos cuidados que foram tomados para tentar obter as informações de muitas outras maneiras? Em um regime decente de autorregulação o jornalista finalmente publica o conteúdo da fita gravada somente depois de convicto da veracidade de sua apuração profissional, e com seu recurso constitucional para satisfazer a esse direito de saber o que se passa, que todo cidadão tem e o jornalista é fiel depositário”. Além dos jornalistas, há outros protagonistas envolvidos nessa teia tão complexa que é a cobertura pela imprensa de casos criminais, daí por que tema tão espinhoso não deve ser adstrito ao ambiente do jornalismo. É preciso avançar e suscitá-lo no universo dos profissionais do direito. Afinal essa lógica da devassa realizada pela imprensa só é possível graças a uma relação simbiótica da imprensa com muitos operadores do direito. É óbvio e ululante que a imprensa, por exemplo, não deixará de publicar informações de processo que corre em segredo de Justiça. O que a imprensa precisa obrigatoriamente fazer é avaliar a relevância, o interesse público da informação a ser revelada. Bucci analisa tal questão do ponto de vista do jornalismo: “A sociedade não pode ficar refém daquilo que os poderes do Estado consideram ou não consideram sigilosos. Bem ao contrário, a democracia precisa da imprensa justamente porque ela é a única capaz de tornar públicas as decisões que o poder gostaria de tomar às escondidas. Para que uma sociedade precisa de jornais livres senão para revelar segredos? O que é uma notícia senão um segredo revelado? Eis o núcleo da missão da imprensa: investigar e fiscalizar o poder, informando o cidadão. Sem isso não há segurança democrática. Guardar o sigilo de Justiça é função dos juízes. A função da imprensa é descobri-lo e, a partir daí, considerar a necessidade de publicá-lo. Em liberdade. A posteriori, e apenas a posteriori, ela poderá ser responsabilizada, aí sim, na Justiça, pelos excessos que vier a incorrer”. Com diferente enfoque, a professora e conselheira do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Flávia Rahal, traz considerações relevantes sobre as consequências nefastas da publicidade no processo penal e dos atores envolvidos na espetacularização do crime: “O processo penal por si só tem o peso da infâmia para aquele que sofre e, ainda, para a própria vítima. Por outro lado, o Estado, na persecução dos fins punitivos, exerce a atividade investigatória que leva quase que automaticamente a uma violação da vida privada do indivíduo. A superexposição do processo pela mídia é fermento para essas duas circunstâncias: acrescenta ainda mais infâmia ao fato e torna a invasão da vida privada ainda mais profunda”. Nessa linha de raciocínio, Flávia Rahal vai adiante e questiona o papel exercido pelos operadores do direito nessa relação simbiótica com a mídia. São inegáveis os abusos cometidos pela mídia, porém a informação que nutre a imprensa é fruto da conduta ainda mais reprovável de delegados, promotores e juízes que, em vez de zelar pela observância dos direitos e garantias individuais penais, alimentam de maneira sórdida esse espetáculo do crime. É o delegado que disponibiliza para a imprensa filmar e entrevistar aquele que está sob a custódia do Estado; que permite à imprensa acompanhar a realização de prisões nas madrugadas, flagrando o investigado ainda de pijamas; o juiz que libera decisão para jornalistas e não para defesa; o promotor que se presta ao papel de levar câmera escondida para filmar audiência de processo que corre sob segredo de Justiça, entre tantos exemplos. Assim sendo, deve haver um olhar mais holístico para a questão. Não dá mais para ignorar o fato de que as outras instituições envolvidas também precisam tomar medidas para prevenir a ocorrência desses abusos cometidos pelos operadores do direito. É preciso dar um basta em comportamentos corporativistas para o bem da democracia e da distribuição da justiça. Por tudo isso, é crucial dedicar especial atenção à formação dos profissionais de jornalismo e direito. No mais, cabe ao Judiciário exercer a difícil tarefa de equilibrar os mandamentos constitucionais que norteiam a cobertura jornalística de casos criminais. Por um lado, é extremamente importante que a instituição esteja atenta à propositura de ações indenizatórias como instrumento de intimidação para cercear a liberdade de imprensa e de expressão. Por outro, o Judiciário também desempenha papel decisivo no sentido de difundir uma cultura de maior responsabilidade dos meios de comunicação. A censura prévia é incompatível com a democracia, mas a imprensa precisa ser devidamente responsabilizada pelos abusos que vier a cometer. Da mesma forma que os desvios do poder estatal, a má atuação policial e o mau julgamento têm de estar sob o escrutínio da sociedade, a imprensa não deve se eximir da sua responsabilidade. Afinal, o mau jornalismo também tem de prestar contas à sociedade. Marina Dias Advogada criminal e presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 57 direito penal Sociedade digital: o individual versus o coletivo Por Patricia Peck Pinheiro 58 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 vladgrin A sociedade digital é uma aldeia global conectada. O indivíduo de hoje, por certo, tem mais voz e opinião do que uma pessoa de dois mil anos atrás. Vivenciamos um momento de maior transparência e mais informação, no qual o acesso democrático ao conhecimento proporcionado pela internet permite que façamos melhores escolhas. A obra Sociedade da informação no Brasil – Livro Verde (organizada por Tadao Takahashi, Ministério da Ciência, Tecnologia e Informação, 2000) assegura que “o conhecimento tornou-se hoje, mais do que no passado, um dos principais fatores de superação de desigualdades, de agregação de valor, de criação de emprego qualificado e de propagação do bem-estar. A nova situação tem reflexos no sistema econômico e político. A soberania e a autonomia dos países passam mundialmente por uma nova leitura, e sua manutenção – que é essencial – depende nitidamente do conhecimento, da educação e do desenvolvimento científico e tecnológico. maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 59 No entanto, estamos em um planeta de recursos escassos, onde há necessidade de não apenas decidir sobre o momento presente, dentro de uma ótica individual. É essencial, por uma questão de sobrevivência, desde sempre, planejar o futuro, investir em questões que possam garantir melhores condições de existência humana na Terra, de convivência social, tais como segurança, saúde, habitação, alimentação, trabalho e educação. Nesse sentido, podemos dizer que a realização individual depende diretamente das escolhas coletivas. O que é feito visando o todo permite que uma pessoa possa ter mais chances de garantir sua própria felicidade. A necessidade de um Estado que possa proteger o indivíduo e permitir seu crescimento e desenvolvimento pessoal é antiga. De certo modo, a noção de Estado nasceu dentro do próprio conceito de família, quando ainda éramos nômades, muito antes da própria Revolução Agrícola. A escolha de um líder, e a obediência a ele, ocorre também com os outros animais, que criam modelos sociais para enfrentar a lei da selva, que é a lei do mais forte. Por isso, a humanidade optou há muito tempo por construir um estado de direito, sustentado em regras de conduta, substituindo o estado de natureza. Como José Afonso da Silva define em seu livro Curso de direito constitucional positivo (Editora Malheiros, 1994, p.100), “Estado é uma 60 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 Ramin Talaie/Corbis Meridith Kohut/The New York Times direito penal O Estado opressor ainda marca presença em diversos países, como a Venezuela de Hugo Chávez, o Oriente Médio com o presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad, a República Popular da China comandada por Hu Jintao e a ditadura no Egito, que ocasionou uma revolta popular na região ordenação que tem por fim específico e essencial a regulamentação global das relações sociais entre os membros de uma dada população sobre um dado território, na qual a palavra ordenação expressa a ideia de poder soberano institucionalizado. O Estado, como se nota, constitui-se de quatro elementos essenciais: um poder soberano de um povo situado num território com certas finalidades. [...] Uma coletividade territorial, pois só adquire a qualificação de Estado quando conquista sua capacidade de autodeterminação, com a independência em relação a outros Estados”. Xinhua/Nasser Nouri/eyevine Chen Xiaowei/Xinhua Press/Corbis Apesar da aparência de modelo ideal, o Estado pode tornar-se ilegítimo, quando não representa mais a vontade da maioria de um povo. Quando o poder, que deveria proteger, passa a ser utilizado para oprimir. O Estado opressor já se apresentou diversas vezes na história, mais recentemente nas ditaduras que ainda persistem em países da América Latina, no Oriente Médio, na China e na África. O Estado é apenas um meio, um mecanismo para criação e distribuição de riqueza, e não deve nunca ser um fim em si mesmo. Quando isso ocorre, há uma ruptura. Por certo, é mais fácil dominar quando há menos informação. Por isso, há uma tendência de cada vez mais ser questionado o papel do Estado. Principalmente com o crescimento do terceiro setor e da mobilização social que foi potencializada pelo poder da internet, da manifestação e do protesto público digital. Na busca de um equilíbrio para evitar que a distorção do modelo criasse um Estado tirano e arbitrário, muitos países implementaram o princípio tripartite de poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário –, cuja independência e autonomia são condição sine qua non para garantir a própria liberdade. O autor de Curso de direito constitucional positivo explica ainda que “o Estado, como estrutura social, carece de vontade real e própria. [...] Os órgãos do Estado são supremos (constitucionais) ou dependentes (administrativos). Aqueles são os a quem incumbe o exercício do poder político, cujo conjunto se denomina governo ou órgãos governamentais. Outros estão em plano hierárquico inferior, cujo conjunto forma a administração pública, considerados de natureza administrativa. [...] Vale dizer que o poder político, uno, indivisível, indelegável, se desdobra e se compõe de várias funções, fato que permite falar em distinção das funções, que fundamentalmente são três: a legislativa, a executiva e a jurisdicional”, afirma José Afonso Silva, na página 109 da obra citada. Neste sentido a própria imprensa se tornou essencial para coibir abusos de autoridades. Por outro lado, diversos estudos mostram que o excesso da liberdade também gera consequências danosas ao indivíduo. Segundo Eduardo Benzati, “pela psicologia, quando há escolhas demais, as pessoas ficam infelizes. Em que medida liberdade em excesso não faz com que o indivíduo perca o chão?” Quais são as principais questões que demandam grande reflexão para evolução do formato atual da relação indivíduo-Estado, até então mais protecionista e paternalista, para outro que seja de maior liberdade individual? A primeira questão envolve educação. Há necessidade de que uma pessoa tenha uma formação básica rica em valores maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 61 anson 0618 direito penal “Pela psicologia, quando há escolhas demais, as pessoas ficam infelizes. Em que medida liberdade em excesso não faz com que o indivíduo perca o chão?” Eduardo Benzati éticos, para que possa ter maior discernimento na tomada de decisões. Ou seja, o direito de escolha depende diretamente da capacidade de desenvolver visão crítica, análise, diagnóstico, estudo de cenários, gestão de risco e opinião. Deixar alguém decidir, sozinho, com informações erradas ou incompletas, e tendo ainda dificuldade de raciocinar em cima de fatores complexos e ecléticos, em um cenário de mudanças constantes, é extremamente prejudicial. Dessa forma, o direito ao voto é o exercício máximo da liberdade e deveria ser levado muito mais a sério. Até porque, em um Estado democrático, o 62 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 sufrágio é a forma de representação popular que vai determinar a condução de um povo, seja pelas leis, seja pelo governo. Logo, sem uma boa educação, não somos capazes de fazer boas escolhas, e o voto se transforma em uma ferramenta de manobra e manipulação. Esse é o primeiro grande problema na relação Estado-cidadão, especialmente no Brasil. Em seguida, considerando que há necessidade de estabelecer regras de convivência social, há temas que precisam ser profundamente estudados. São eles: proteção de dados pessoais - LATAM país status lei ou pl Argentina Sim. 25.326 – 2000 Barbados Lei de Prot. de Dados – 2005 Belize Nem em discussão Brasil Em discussão, mas não como projeto de lei Chile 19.628 – 1999 Colômbia Projeto de Lei do Senado nº 184 – 2000 Costa Rica Lei nº 8.968 – 2011 República Dominicana Nem em discussão El Salvador Nem em discussão Guiana Francesa Sim. A que vigora na França. Lei de Processamento de Dados desde 1978 Guatemala Em discussão, nº 4.090 – 2009 Guiana Nem em discussão Honduras Nem em discussão Jamaica Nem em discussão México Sim. Desde 2010 Nicarágua Em discussão, nº 5.378 – 2008 Panamá Nem em discussão Paraguai 1.682 – 2001 Peru Em discussão, nº 4.079 – 2009 Suriname Nem em discussão Trinidad e Tobago Em discussão desde 2011/Jan Uruguai Lei nº 18.331 – 2008 Venezuela Nem em discussão. Fonte: Patricia Peck Pinheiro Advogados, 2012 » P rivacidade do indivíduo versus segurança pública coletiva » L iberdade de expressão versus responsabilidade » I dentidade obrigatória versus anonimato » P roteção de dados versus acesso à informação » Crimes digitais (novos tipos penais) Esses são os grandes temas do direito digital, ou seja, do direito aplicado a um modelo socioeconômico-políticojurídico de sociedade que se manifesta de forma não presencial, por meio de testemunhas-máquinas, provas eletrônicas, e na qual o modelo de riqueza é a informação, sem fronteiras físicas ou temporais, em tempo real. No tocante à privacidade, a Constituição federal de Toda informação nasce pública e só terá seu acesso protegido se estiver enquadrada nas hipóteses legais que justifiquem essa medida de segurança 1988, em seu art. 5º, inciso X, garantiu a proteção do indivíduo, em especial de sua vida privada, honra, imagem e reputação. Interessante que, em uma primeira análise, já se verifica o desafio dessa garantia quando confrontada com o direito à liberdade de expressão. Isso ficou resolvido na mesma norma, em seu art. 5º, inciso IV, que determina a livre manifestação de pensamento e proíbe o anonimato, assumindo a presunção de que todos podem falar o que pensam, mas devem responder pelo que dizem. Portanto, em apenas dois artigos da Lei Magna de nosso ordenamento jurídico, há uma tentativa de harmonizar a vontade do indivíduo (privacidade, liberdade, anonimato) com a necessidade de proteção dos demais, do coletivo (segurança, responsabilidade, identidade obrigatória). Recentemente, foi aprovada a Lei de Acesso à Informação (LAI), de nº 12.527/11. Então, agora o princípio vigente no Brasil no tocante aos dados que estão na administração pública e nas empresas de economia mista é o da publicidade e transparência (art. 3º, inciso I, da Lei), ou seja, toda informação nasce pública e só terá seu acesso protegido se estiver enquadrada nas hipóteses legais que justifiquem essa medida de segurança (previstas nos arts. 23 e 24 do mesmo diploma legal). Isso demonstra a cobrança do próprio povo brasileiro de que o poder público cumpra com o dever de assegurar a gestão transparente da informação, propiciando amplo acesso a ela e sua divulgação. Apenas, excepcionalmente, as informações serão protegidas, em princípio, só nos casos em que elas estiverem arroladas como sigilosas, se representarem um risco à segurança ou à soberania nacional, ou se já estiverem protegidas por outra lei, como ocorre com o segredo de Justiça e com o segredo industrial, este último previsto na Lei nº 9.279/96. Por outro lado, cresceu a discussão de projetos de lei de proteção de dados sensíveis, de forma a complementar o próprio Código de Defesa do Consumidor, no que tange ao uso dos dados dos indivíduos por empresas privadas ou públicas. A tabela ao lado demonstra o crescimento de importância dessa temática na América Latina. maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 63 lee avison photography direito penal Patrulha virtual O Projeto de Lei 2.793/2011, de autoria do deputado Paulo Teixeira, propõe alterar o Código Penal brasileiro para tratar de crimes como: A invasão de dispositivo informático. Art. 154-A: devassar dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo, instalar vulnerabilidades ou obter vantagem ilícita. Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. § 1º Na mesma pena incorre quem produz, oferece, distribui, vende ou difunde programa de 64 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 computador com o intuito de permitir a prática da conduta definida no caput. § 2º Aumenta-se a pena de um sexto a um terço se da invasão resulta prejuízo econômico. § 3º Se da invasão resultar a obtenção de conteúdo de comunicações eletrônicas privadas, segredos comerciais e industriais, informações sigilosas assim definidas em lei, ou o controle remoto não autorizado do dispositivo invadido: Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. § 4º Na hipótese do § 3º, aumenta-se a pena de um a dois terços se houver divulgação, comercialização ou transmissão a terceiro, a qualquer título, dos dados ou informações obtidos, se o fato não constitui crime mais grave. § 5º Aumenta-se a pena de um terço à metade se o crime for praticado contra: I – Presidente da República, governadores e prefeitos; II – Presidente do Supremo Tribunal Federal; III – Presidente da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Assembleia Legislativa de Estado, da Câmara Legislativa do Distrito Federal ou de Câmara Municipal; ou IV – dirigente máximo da administração direta e indireta federal, estadual, municipal ou do Distrito Federal. A interrupção ou perturbação de serviço telegráfico, telefônico, informático, telemático ou de informação de utilidade pública. Art. 266 § 1º Incorre na mesma pena quem interrompe serviço telemático ou de informação de utilidade pública, ou impede ou dificulta-lhe o restabelecimento. § 2º Aplicam-se as penas em dobro se o crime é cometido por ocasião de calamidade pública. A falsificação de documento particular – falsificação de cartão. Art. 298 Parágrafo único. Para fins do disposto no caput, equipara-se a documento particular o cartão de crédito ou débito. Outro projeto de lei, o PL 84/1999, de autoria do deputado Eduardo Azeredo, propõe, por exemplo, alterar o Art. 298 para “falsificação ou alteração de dado informático ou documento particular – falsificar ou alterar, no todo ou em parte, dado informático ou documento particular verdadeiro”. Considerando a LAI, recentemente aprovada, isso poderia parecer até contraditório, mas não é. Uma coisa é a transparência da informação nos órgãos públicos, outra é a necessidade de proteger o cidadão de abusos no uso de seus dados. Isso porque há hoje uma grande oferta de serviços gratuitos, que na verdade são pagos com informações que depois são utilizadas muitas vezes para propósitos que o usuário nem imagina. Como viabilizar o direito ao protesto pacífico na internet e ao mesmo tempo garantir a segurança dos internautas, coibindo ações que tiram do ar websites de serviços de utilidade pública prejudicando milhares de pessoas? Como exposto, há um limite bem sutil entre liberdade e abuso. Isso só consegue ficar mais bem definido com investimento em educação, primeiro ponto que apontamos como essencial para garantir a própria liberdade. Pegando esse gancho, entramos na discussão da necessidade de novas leis que tipifiquem os crimes digitais. Em muitos casos, eles são apenas um novo modus operandi de um crime antigo, já previsto no Código Penal, mas, em algumas situações, trazem uma nova conduta, não tratada ainda como ilícita pelo ordenamento jurídico. Como exemplo, temos o crime de fazer um vírus ou o de disseminar um arquivo malicioso, ou ainda o crime de invadir uma rede, um computador, ou mesmo o celular de uma pessoa, para obter dados. Desde 1999, o Brasil discute o projeto de lei de crimes eletrônicos, por meio do Projeto de Lei 2.793/2011, de autoria do deputado Paulo Teixeira, que propõe alterar o Código Penal brasileiro para tratar de crimes como a invasão de dispositivo informático (Art. 154-A); a interrupção ou perturbação de serviço telegráfico, telefônico, informático, telemático ou de informação de utilidade pública (Art. 266); e a falsificação de documento particular e de cartão (Art. 298). (Ver boxe na página ao lado.) Nem o ataque das quadrilhas fez o projeto andar, como o efeito “Carolina Dieckmann”. O vazamento Uma coisa é a transparência da informação nos órgãos públicos, outra é a necessidade de proteger o cidadão de abusos no uso de seus dados O vazamento de fotos íntimas de uma celebridade trouxe à tona novamente a importância de se aprovar uma lei como essa. Isso porque a liberdade de um vai até onde não fira o direito de outro de fotos íntimas de uma celebridade trouxe à tona novamente a importância de se aprovar uma lei como essa. Isso porque a liberdade de um vai até onde não fira o direito de outro. Mas é bem difícil legislar sobre a matéria, pois exige conhecimento técnico. Além disso, o computador não consegue, como testemunha que é, diferenciar uma conduta dolosa (com intenção) de uma culposa (sem intenção), o que faz com que haja possibilidade de criminalizar condutas que, em tese, seriam inocentes, como mandar um vírus de computador para outra pessoa sem querer. Precisamos, sim, aprender a usar a tecnologia de forma ética, segura e legal. A liberdade não pode se tornar uma bandeira para proteção de criminosos. O anonimato, por si só, estimula prática de ilícitos. Há necessidade de o Estado ter uma atuação social forte, mas que garanta a livre iniciativa com o mínimo de intervenção possível. Concluindo, independentemente do modelo que se adote no futuro para regular melhor a relação entre o Estado e o indivíduo, sabemos que a perda da crença na própria Justiça pode criar uma próxima geração, herdeira da geração Y, que faz justiça com o próprio mouse. E aí teremos voltado para o estado de natureza, o que representará um grande retrocesso. A informação tem de construir e não banalizar, além de estimular a evolução da humanidade cada vez mais solidária e comprometida. O excesso de individualismo nos torna mais animais. Como dizia Thomas Hobbes, “o homem é o lobo do homem”. Patricia Peck Pinheiro Especialista em direito digital, formada pela Universidade de São Paulo, fundadora da Patricia Peck Pinheiro Advogados, autora do livro Direito digital e do eBook iMarketing – direito digital na publicidade (twitter: @patriciapeckadv) maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 65 ordem e progresso Stefano Bianchetti/Corbis A questão territorial e a proteção das divisas sempre estiveram associadas ao papel assumido pelo Estado Moderno, desde o seu nascimento, com Maquiavel 66 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 Em defesa do Estado Por Jorge Lorenzo Valenzuela Montecinos “E ra uma vez um gigante egoísta que não deixava as crianças comerem frutas de seu quintal. Um dia ele foi castigado. As árvores do jardim secaram e as crianças nunca mais voltaram a brincar em seu jardim” (Oscar Wilde: El gigante egoísta). Assim os “gigantes” dos bancos quebraram a economia do mundo, em 2008. Milhares de famílias, sem emprego e sem casa, foram obrigadas a morar dentro de seus carros, em estacionamentos de supermercados, onde viveram infelizes para sempre. Um caso mais atual é o do avô grego que, depois do anúncio de redução da sua aposentadoria, suicidou-se em frente ao parlamento. Aristóteles, em sua Política, iniciou a doutrina do “fim” do Estado como problema fundamental a todas as teorias políticas, que começou nos anos 1980 com a “jibarização do estado” (tribo que reduz as cabeças de seus inimigos). Foi com Margareth Thatcher e Ronald Reagan, o Consenso de Washington, tudo isso liderado pelos professores Friedrich Hayek e David Friedman, em conjunto com seus discípulos da Escola de Economia de Chicago (Chicago’s Boys). Segundo eles, o “fim” da intervenção do Estado na economia passava por uma reforma profunda e estrutural do Estado e da sociedade. Essa transformação estava destinada a afastar o Estado de suas funções históricas, originárias de gestão em economia e assuntos sociais, como educação, saúde e emprego, argumentando que o “mercado” e sua “mão invisível” resolveriam as reivindicações da sociedade (laisser faire, laisser passer). maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 67 ordem e progresso Segundo Aristóteles, o Estado, “como as plantas e os animais”, é um fim em si. Naquela época, a questão do Estado e seu fim apareciam como problema central através da história, sua transformação na visão socialista ou, simplesmente, sua eliminação segundo os anarquistas. Foram as décadas anteriores à crise de 2008, particularmente a década de 1980, que fizeram surgir o discurso da redução ou afastamento do Estado nos assuntos econômicos. Voltando às origens do Estado, sua missão política é difícil de ser determinada, por sua grande complexidade, sobretudo no que diz respeito à administração das instituições. Desde o nascimento do Estado Moderno, com Maquiavel, sua importância concentrase na coesão territorial. A importância situa-se em sua geopolítica, concretamente em sua população e coerência jurídica, onde problemas sociológicos e ideológicos se misturam. Por último, temos de considerar a relação divina (Os 10 Mandamentos), como o destino do gênero humano. O homem não é um animal social. Polemizando com a tradicional tese aristotélica, Thomas Hobbes, autor de Leviatã (Ícone Editora), afirma que os homens não são abelhas ou formigas e que via na sociedade o resultado de um instinto primordial. Hobbes sustenta que, no gênero humano, diferentemente do animal, não existe sociabilidade instintiva, como mostra Norberto Bobbio no livro Thomas Hobbes (Editora Campus). No começo do capítulo XIII do livro Leviatã, Hobbes diz que os homens são iguais em força física e, no segundo parágrafo, que também o são no espírito. Note-se que não se trata de identidade, de igualdade exata. É claro que uns são mais fortes que outros, fisicamente. Mas isso não impede que o mais fraco mate o mais forte. A diferença de força é menor ou menos relevante por seus efeitos do que a razoável igualdade que há entre as pessoas nesse tocante. Igualdade e diferença assim se medem por seus efeitos, ou melhor, por seu efeito no tocante a matar ou ser morto, como explica Renato Janine Ribeiro, no capítulo “Medo e esperança em Hobbes”, do livro A crise do Estado-nação, organizado por Adauto Novaes (Editora Civilização Brasileira). Entre os indivíduos não existe um amor natural, mas somente uma explosiva mistura de temor e necessidade recíprocos que, se não fosse disciplinada 68 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 Entre os indivíduos não existe um amor natural, mas somente uma explosiva mistura de temor e necessidade recíprocos que, se não fosse disciplinada pelo Estado, originaria uma incontrolável sucessão de violência e excessos pelo Estado, originaria uma incontrolável sucessão de violência e excessos. Além do medo mais visível, que é o de um a outro no estado de natureza, também é preciso tratar do medo que se tem do soberano e que se expressa como awe, não como fear. Awe é corretamente traduzido como “reverente temor”, e keep in awe significa “manter em respeito” (da palavra awe, praticamente todas se referem ao temor em face de um poder superior e comum a todos, que seria o Estado – como é citado por Ribeiro, em “Medo e esperança em Hobbes”). Não é, portanto, o mesmo medo recíproco e ilimitado que temos, todos de todos, no estado e natureza, mas um medo respeitoso – mais respeito talvez que medo –, que se sente em relação ao superior que tenha título a mandar em nós. Precisamente porque o contrato de fundação de toda sociedade humana tem caráter artificial, faz-se necessário que o Estado seja absoluto (como lei fundamental), soberano e poderoso, capaz de suprimir qualquer tentativa de fazer prevalecer o interesse pessoal. Somente reconhecendo todos como súditos de uma autoridade externa (o Estado), os homens podem suprimir qualquer forma de antagonismo recíproco que, segundo Hobbes, predominaria se os súditos se transformassem em cidadãos, adquirindo o direito de julgar a coisa pública. O próprio Hobbes percebeu uma das grandes razões para notar que uma parte significativa da opinião cultivada de seu tempo, aquela que ele acusou de se embeber nos clássicos, reconhecia a uma assembleia soberana poderes que jamais atribuiria, de bom grado, a um príncipe, embora igualmente soberano. E teve ele toda a razão ao lembrar que, se a palavra-chave é soberania, os poderes de uma assembleia democrática, de um senado aristocrático ou de um rei devem ser os mesmos (Ribeiro, Op. cit. p.151-152). Andrey Pavlov Segundo Thomas Hobbes, o homem não é um animal social. No Leviatã, ele diz que os homens não são abelhas ou formigas e que via na sociedade o resultado de um instinto primordial Guerra de todos contra todos. Para Hobbes, essa expressão refere-se à inevitável condição do homem no estado de natureza, em que cada indivíduo, não submetido à lei e a um poder supremo, torna-se lobo dos outros homens. Conforme os princípios do absolutismo, pode-se sair de tal situação, em que a segurança pessoal está eternamente em perigo, somente por meio de um contrato social entre os súditos, que delegue, para sempre e irrevogavelmente, todo o poder a um soberano. Estado de natureza indica, nas teorias políticas dos séculos 17 e 18, a condição dos homens antes de estipular um tipo qualquer de contrato social, na qual os indivíduos viviam isolados uns dos outros, sem qualquer organização estatal. Trata-se de uma condição hipotética, e não de uma específica fase histórica, posto que a própria continuidade da espécie entraria em crise com tal isolamento dos indivíduos. Segundo Hobbes, um eventual estado de natureza seria dominado pela guerra de todos contra todos. O Estado surge e se consolida contendo o medo da maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 69 Anthony Correia ordem e progresso morte violenta, substituindo o fear, que há um tempo resulta da guerra de todos contra todos e a retroalimenta (usamos a imagem da inflação), pelo awe, que é sua versão regulada, civilizada, sua passagem de sentimento antissocial para social e socializador. Mas, assim procedendo, o Estado ainda não pode nada quanto ao medo da morte. É contido o homicídio e inaugurado o prazer nas relações sociais, mas um espectro continua a rondar a condição humana: a inevitabilidade da morte e o medo daquilo que virá depois dela. Ora, aqui não apenas nasce a religião, como todo discurso está ligado a um poder, que o profere e eventualmente manipula também o clero. Este, assim, é um espinho cravado na garganta do Estado (Ribeiro. Op. cit. p.156). Durante muito tempo, o Estado foi causa e efeito no todo social, determinando sua objetividade como as funções que possuem certos organismos, animais ou vegetais, em relação à nutrição, reprodução ou defesa. Essa concepção do Estado foi muito bem-vinda pelos regimes fascistas ou autoritários, e concretamente com a instauração da Doutrina 70 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 A esquizofrenia do Estado depois da queda das torres gêmeas fez surgir, de um lado, um poder hegemônico absoluto e, de outro, uma presença cada vez mais marcante nas decisões econômicas, sobretudo a partir da crise de 2008 de Segurança Nacional (DNS), do general Golbery do Couto e Silva, espalhada pelo conjunto dos países da América do Sul. Os territórios geográficos limitados pela presença de diferentes povos fiéis do Estado, um elemento central na limitação territorial, desenvolve a necessidade de uma ação de proteção, no sentido de diminuir a ampliação de outras populações. Surge a necessidade de uma solidariedade e identidade, nos planos culturais, políticos e sociais, frente a seus limites externos. Dessa forma, tem início o contrato social, teoria segundo a qual a reunião dos homens em sociedade não é um evento natural ou instintivo, mas resultado de um pacto, um contrato original que põe fim ao estado de natureza. No século 17, a teoria contratualista foi sustentada tanto pelas filosofias políticas favoráveis ao absolutismo (Hobbes), quanto por aqueles que defendiam o liberalismo (John Locke). A teoria política defendida por Locke, em oposição ao absolutismo de Hobbes, se tornou o fundamento teórico da democracia moderna: 1) O contrato social é estipulado não somente entre os cidadãos, como afirmava Hobbes, mas também entre estes e o Estado. 2) O escopo do Estado é a salvaguarda dos direitos fundamentais do indivíduo (liberdade e propriedade privada). 3) O Estado não está acima da lei, sendo obrigado a observá-la. 4) O cidadão reserva-se o direito de rebelião, quando um aparato do Estado tenta lesar os direitos inalienáveis do indivíduo. A necessidade de uma organização territorial, permanente e unitária, com referência a uma demarcação especial e à organização de sua comunidade, desde Maquiavel conhece-se com o nome de Estado. Sua função consiste na organização e ação autônoma da cooperação social dentro de um território, fundada na necessidade histórica de um status vivendi comum, que harmonize todas as oposições e interesses dentro de uma zona geográfica. A relação existente entre a função estatal e a economia é uma das questões mais discutidas na atualidade, mesmo que hoje seja um exagero, se pensarmos que o elemento comum de crítica ao liberalismo se bifurcava em diferentes formas de resgate da democracia. Isso a desvinculava de suas conotações liberais, impregnadas pela economia de mercado e responsabilizada pela anarquia que teria gerado a crise de 1929 e suas dramáticas consequências sociais. No livro A refundação do Estado e da política (Editora Civilização Brasileira), Emir Sader mostra que o nazismo resgatava a soberania como elemento da identidade nacional, atacando os mecanismos da democracia partidária como forma de corrosão dos interesses nacionais, contrapondo-lhe propostas de democracia corporativa. A relação entre Estado e economia, mesmo nos tratados científicos da Teoria do Estado, supõe-se que se trata de conexões e atividades com leis próprias, as Se a palavra-chave é soberania, os poderes de uma assembleia democrática, de um senado aristocrático ou de um rei devem ser os mesmos quais praticamente possuem uma função específica no sentido da vida social. Mesmo o marxismo atual mostra-se incapaz de propor uma solução ao problema da relação entre Estado e economia, por conta do dogma de que o Estado é só um meio para uma função econômica. As diferentes pesquisas entre essa relação têm formalizado uma identidade própria, relacionada com a força militar, para resolver a falta de ordenamento jurídico existente atualmente no mundo, onde o poder cada vez é mais e mais associado aos vetores econômicos das corporações. Nos últimos anos, o lucro dos bancos tem estado em torno de 50%. A esquizofrenia do Estado depois da queda das torres gêmeas fez surgir, de um lado, um poder hegemônico absoluto e, de outro, uma presença cada vez mais marcante nas decisões econômicas, sobretudo a partir da crise de 2008: violação sistemática do direito internacional, fim da soberania dos Estados-nações, imposições de primeiros-ministros nos casos da Grécia e da Itália, sem falar da Espanha, Irlanda, Portugal e mesmo da França. Se o Chile foi o laboratório para uma nova ordem econômica internacional (crise do petróleo de 1973), o perigo crescente é a militarização das decisões políticoeconômicas. Nessa ótica, o Estado é hoje o princípio e o fim na atual crise econômica e no ordenamento mundial, onde devemos voltar ao Estado social e gestionário, que leve em conta o direito internacional, o respeito ao homem e ao seu meio ambiente. A meus alunos, hoje avós, que, nos anos 1970, acreditaram em sonhos, e que hoje, no Chile, se revoltam na Ilha de Puerto Aguirre (caleta Andrade), província de Aysén, pelo alto custo e insustentável preço a pagar pela “modernidade e progresso” Jorge Lorenzo Valenzuela Montecinos Professor da ESPM-SP, doutor pela Universidade de Paris em História Social, pós-doutor pela USP em Política Internacional e Comparada e especialista em Ética pela PUC-Seminário Campinas-SP maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 71 entrevista Os pilares da democracia E le já foi ministro da Justiça no governo Fernando Henrique Cardoso, embaixador do Brasil em Portugal, secretário nacional dos Direitos Humanos, ouvidor da República, deputado estadual e coordenador-geral do Programa de Segurança Pública e do Programa Nacional de Direitos Humanos lançado pelo governo federal em 1996. Hoje, aos 81 anos, José Gregori é um dos maiores representantes do Brasil no exterior na área de direitos humanos. Formado em direito pela Universidade de São Paulo (USP), ele aprendeu cedo a lição de que um dos pilares para a manutenção do estado democrático de direito é a educação. Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), entre os anos de 1977 e 1993, ele luta por um Brasil melhor por meio da melhoria do ensino e da manutenção da liberdade de expressão. Confira, nas páginas a seguir, qual a fórmula de Gregori para estimular o desenvolvimento da nação, a partir do exercício da democracia. Entrevistado por Francisco Gracioso e J. Roberto Whitaker Penteado 72 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 José Gregori Gracioso – Na propaganda, a liberdade de expressão está cronicamente ameaçada – há sempre projetos de lei no Congresso cerceando 90% das formas de anunciar. Não há grandes discussões quanto à presença do Estado e à necessidade de ele guiar o comportamento do indivíduo, impondo limites nem sempre agradáveis. Partindo deste ponto, que tipo de presença deveria ser essa? José Gregori – Este é um processo que abrange várias etapas. O Estado foi criado como o único instrumento para garantir certos direitos básicos que todos têm pelo fato de serem criaturas humanas. A Declaração de Independência dos Estados Unidos, redigida por Thomas Jefferson, é, digamos, a peça de maior clareza a respeito disso. Precisamos partir do conceito de que viemos ao mundo portadores de uma dignidade intrínseca que nos distingue de uma árvore, de um pássaro ou de uma lagoa. Para não ser algo abstrato, que só existe em poesia, essa dignidade fundamental se materializa em certos direitos. E o que expressa objetivamente essa dignidade são os direitos básicos, fundamentais. A criação do Estado é algo que vem depois... criatura humana, que na sua evolução procura por melhores instrumentos para assegurar a dignidade fundamental expressa em certos direitos. JR – Quando estudei na faculdade, havia duas vertentes contraditórias em relação ao papel do Estado: uma representada pela obra de Jean-Jacques Rousseau e, outra, por Thomas Hobbes. O primeiro dizia que os homens nascem bons e, se não forem corrompidos pela sociedade, todos se entendem muito bem. Já Hobbes, com a história do Leviatã, afirmava que o homem é o lobo do homem e o Estado precisa existir para evitar que os seres humanos se matem. Será que o homem é intrinsecamente mau e o Estado precisa controlá-lo ou o homem é bom e o Estado só serve para atrapalhar? “Não somos produto do Estado. O Estado é que deve ser produto da nossa contribuição, da nossa maneira de ser e dos direitos fundamentais que temos” JR – Depois da criatura humana. José Gregori – Depois da conscientização de que essa criatura humana é portadora de uma dignidade fundamental, aí surge a questão do Estado como um instrumento que historicamente foi o mais adequado para garantir a cada um esses direitos. Não podemos perder isso de vista porque admitir que somos “criaturas do Estado” é dar o primeiro passo para o totalitarismo. Nós invertemos a equação: o Estado foi criado pela história da José Gregori – Para responder a essa pergunta é preciso ter a perspectiva evolutiva. Até hoje, um mistério não decifrado pela filosofia e mesmo pelas religiões é saber por que não viemos perfeitos e acabados. Por que somos produtos de uma longa, penosa, sofrida e às vezes até cruel evolução? Os fatos apontam mais no sentido de que vivemos sempre respeitando o pai e o avô, mas querendo fazer mais e melhor do que eles fizeram. Se não fosse assim, estaríamos ainda nas cavernas. As dualidades por esses mistérios sempre existiram, nunca houve apenas a perfeição, a bondade ou a injustiça. Isso pode ferir a lógica, mas é possível que tenha tornado a vida mais fascinante. À medida que vamos tomando pé dessa realidade, nos convencemos de que temos de lutar. Não somos seres passivos, que aceitamos as coisas mecanicamente. Temos de imprimir nossa marca em qualquer setor. Nesse sentido creio que Rousseau está mais próximo das coisas como elas se passaram. Mas Hobbes também tem razão quando diz que o homem é um ser capaz de maldades. Da mesma maneira como aceitamos essa dualidade, o homem criou o sentido de justiça, de superar o império da maldade sobre a bondade. Não somos produto do Estado. O Estado é que deve ser produto da nossa contribuição, da nossa maneira de ser e dos direitos fundamentais que temos. Esse é o pano de fundo da discussão. Gracioso – Com este pano de fundo, é evidente que não podemos nos limitar à dicotomia bondade e maldade, porque, para lidar com isso, o Estado não usa meias-palavras, usa a força. O Estado obriga o indivíduo a comportar-se conforme as leis. Há uma infinidade de leis – no trânsito, por exemplo, temos a obrigatoriedade do cinto de segurança e a proibição de falar ao celular enquanto se dirige. Tudo isto é plenamente explicado. Há, entretanto, os que dizem que, ao tomar estas medidas, o Estado procura plasmar o indivíduo de acordo com o seu ideal, o indivíduo perfeito, que estaria contra este princípio básico do qual estamos falando. José Gregori – Exatamente. Por causa da recordação histórica, somos obrigados a saber que existem vários maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 73 entrevista modelos de Estado. No Brasil, não optamos pelo Estado totalitário, pelo Estado autoritário, sequer pelo estadismo. Depois da Constituição de 1988, adotamos o estado de direito democrático, em que a força, o poder do Estado tem de se exercer, rigorosamente, os limites estritos da lei. Todas as regras emanam de uma prévia combinação, digamos rousseauniana, que fizemos, delegando poderes aos nossos representantes para que eles defendam os nossos direitos básicos. Toda vez que uma lei não respeitar esta combinação, ela será inconstitucional. Esta discussão será sempre oportuna, porque há uma tendência de hipertrofiar o Estado e hiperalargar o Estado. Temos de fazer como se estivéssemos cuidando da saúde: não é por não termos febre ou hemorragia, que não temos de controlar a pressão ou o colesterol. O Estado é igual. De tempos em tempos, devemos fazer uma reflexão se esse modelo pelo qual optamos está sendo respeitado nos limites ou está havendo algumas tentações do Estado absoluto ou totalitário. Gracioso – E até que ponto isso deveria ser tolerado ou não? José Gregori – A intolerância será apenas quando a pessoa não tiver a Constituição do seu lado. A Constituição foi suficientemente benfeita para deixar claro que o nosso modelo é o do estado democrático de direito, que representa o exercício do equilíbrio. O que ferir isso, ainda que em nome do coletivo e da segurança geral, deve ser muito refletido. No Estado totalitário, o ditador, o partido único, a seita, os monges ou os generais não têm o menor interesse 74 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 em fazer esse equilíbrio, basta a vontade deles. Já o estado democrático de direito cria uma série de mecanismos para nos manter sempre fiéis ao modelo pelo qual optamos. “A Constituição foi suficientemente benfeita para deixar claro que o nosso modelo é o do estado democrático de direito, que representa o exercício do equilíbrio” JR – Há alguns anos, a ESPM participou de um grupo de trabalho para a elaboração de um código de ética para o profissional de marketing. Tivemos uma experiência muito interessante com o jurista Gabriel Lacerda, que também fez parte desse grupo. Um dos nossos companheiros queria que constasse no código de ética o respeito às leis do país. O doutor Gabriel não permitiu, alegando que a quantidade de leis, considerando todas as instâncias legislativas, é de tal ordem que há leis contraditórias e injustas. Portanto, um verdadeiro código de ética não pode aceitar todas as leis como boas. Considerando que a Constituição é uma lei maior e “boa”, um número razoável de leis ruins não deveria existir. Como o cidadão deve se comportar em relação a essa contradição? José Gregori – A receita no Brasil foi dada pelo jurista Rui Barbosa: “Lei é lei e deve ser respeitada”. Se ferir a Constituição, a ética coletiva ou o sentimento cultural, ela deve ser corrigida, não desrespeitada. Democraticamente, temos mecanismos para anular a lei que não obedece aos princípios do estado democrático de direito. A posição do doutor Gabriel Lacerda é legítima, porque se trata de um código de ética, e ética é algo que vem antes da lei, é uma questão interna do indivíduo, que pode não aceitar um determinado comportamento admitido pela lei. JR – Pode ser o contrário, a lei pode impor alguma coisa que fira os princípios. José Gregori – Sim, mas esse tipo de contradição entre a ética ou o querer coletivo com o que está na lei não pode ser um ato voluntarista. O estado democrático de direito oferece hoje ações e meios legais para você anular essa lei. Os tribunais estão anulando e declarando inconstitucionais muitas leis. JR – Outra questão é de onde emanam as leis. Por exemplo, nós que atuamos na área de comunicação e marketing muitas vezes nos deparamos com entidades que não são legisladoras. São organismos do Estado que têm uma determinada função e que emanam normas ou circulares, não são leis. Um exemplo clássico é a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que nos últimos anos tem produzido uma série de normas restritivas em relação à saúde, à alimentação – até sobre a publicidade –, que são muitas vezes questionadas. Afinal, esse organismo do Estado tem o poder de determinar como os cidadãos devem comportar-se em certas circunstâncias? Gracioso – É a velha e eterna questão: a liberdade de expressão individual e a José Gregori liberdade que tem o indivíduo de decidir o que é melhor para si. Até que ponto isto permanece nesta análise? pela Anvisa, que realmente esteja a benefício da minha saúde e não da saúde de seus dirigentes. José Gregori – Vivemos em sociedade. Só na ficção existe a possibilidade de alguém construir o projeto da sua vida apartado do seu semelhante. Para esta vida em sociedade não virar um caos, certas restrições são impostas à decisão de cada um em benefício do funcionamento geral. O individualismo tem de ser respeitado, mas também não podemos negar a necessidade que se tem na vida em sociedade de colocar limites cooperativos. Praticando o estado democrático de direito, temos uma enorme necessidade de cuidar da educação com qualidade, porque é ela que vai dar a todos esse sentido de equilíbrio. A noção de que o individualismo tem de ser temperado com o coletivismo. Mesmo que estejam na Constituição, essas leis não têm eficácia comparável à que recebemos nos bancos escolares ou na família. É difícil imaginar a sobrevivência de um estado democrático de direito que seja inculto e avesso à boa educação, porque o bom funcionamento dele vai temperar boas leis e também boas morais – aquilo que o indivíduo recebe antes de ingressar na vida em sociedade. Nesse sentido, o Brasil está no bom caminho, o que não significa que as pessoas cruzem os braços porque os dirigentes estão velando por elas. Esse modelo impõe um aumento gradativo da vida participativa. É preciso que haja participação, entidades e questionamentos. A Anvisa, para alguém que queira zelar pela saúde, é um avanço. Mas é preciso saber se esse zelo tem fundamentação em cada passo dado JR – O livro Estado Babá (“The Nanny State”), do americano David Harsanyi, mostra que não é um problema exclusivamente nosso. Com exemplos tirados da vida nos Estados Unidos, o autor mostra que o Estado está ultrapassando limites, definindo questões em relação a como as comunidades devem se organizar ou se as pessoas devem ou não ter cachorros. Por que isso acontece em sociedades até mais evoluídas do que a nossa? “Praticando o estado democrático de direito, temos uma enorme necessidade de cuidar da educação com qualidade, porque é ela que vai dar a todos esse sentido de equilíbrio” José Gregori – Tenho um pouco de cerimônia em aceitar que existam sociedades mais evoluídas do que a nossa. JR – Mais organizadas. Gracioso – Diferentes da nossa. José Gregori – Talvez isso. Eu usava a Noruega como um exemplo de lugar onde os direitos humanos estavam aculturados e sendo vividos concretamente até aquela tragédia do fim do ano passado, quando um homem pegou um fuzil e matou mais de 100 pessoas em nome de ideias próprias. Gracioso – Aconteceu coisa muito pior na Alemanha nazista, com os grupos paramilitares nazistas. Muito mais eficiente que criar regras é trabalhar os valores em que as pessoas acreditam para que o comportamento seja ditado pelo interior do próprio indivíduo. Isso explica, por exemplo, a diferença entre o Japão e o Brasil em termos de disciplina coletiva. O Estado de Israel compreendeu a necessidade de influir nos valores e, também, que não podia deixar isto a cargo exclusivamente da família. Dessa forma, o sistema escolar israelense tem como função criar e modificar valores, mais condizentes com os objetivos do Estado. Não é à toa que os melhores soldados deles são os que vêm dos kibbutzim, onde a família é proibida de educar a criança. Isso é uma coisa antiga do tempo do Burrhus Frederic Skinner, que escreveu o livro Beyond freedom and digntity (“Para além da liberdade e da dignidade”, Editora Edições 70 – Brasil). Ele dizia que algo além da liberdade e da dignidade deveria ser considerado para obter uma sociedade mais civilizada. Enfim, onde ficamos? José Gregori – Creio que a equação está formada nesta nossa conversa, porque falamos dos direitos básicos, do Estado e também da escola e da família – que são os polos geradores de formação, consciência, critérios. O Estado intervém demais quando a escola falha ou a família derrapa. O ideal é que essas questões fundamentais de atitude e reconhecimento de valores sejam, em grande parte, uma conquista de família e da escola, desde o ensino fundamental. Esta profusão de leis no Brasil é uma das manifestações da insuficiência da nossa escola, principalmente da escola pública, que maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 75 entrevista no meu tempo tinha mais qualidade. As pessoas precisam ter um apreço pela educação, não apenas para formar conhecimentos, mas também a personalidade de pessoas que saibam avaliar, mensurar e equilibrar. Uma das funções da educação é tornar a vida social com menores taxas de conflito. Hoje é citada uma palavra que se falou muito no tempo do Jefferson, que é a felicidade. Quando Jefferson fez a Declaração da Independência dos Estados Unidos há cem anos, ele colocou como um dos direitos fundamentais a busca da felicidade. Gracioso – O tal índice de qualidade de vida. José Gregori – E agora estamos vendo que sociólogos, economistas e politólogos estão novamente falando em felicidade e acham que as taxas medidoras de progresso, como o PIB (Produto Interno Bruto), são uma forma muito materialista e insuficiente para julgar, já que a vida é prioritária em todos os sentidos. O fato de o Brasil hoje estar numa democracia é algo auspicioso. Em alguns aspectos, como na representatividade do poder, essa democracia apresenta índices que são quase incomparáveis em termos de mundo, porque não há nos últimos 50 anos nenhum país onde um príncipe acadêmico, que fez bonito na Universidade de Sourbonne, tenha sido presidente da República. Depois dele, assume um príncipe sindicalista de fazer inveja a todo o sindicalismo inglês e, na sequência, a primeira mulher chega à Presidência da República. Isso comprova o quanto está aberta a nossa 76 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 democracia. Mas ainda temos muito a caminhar em diversos aspectos, porque as tendências que levam o estado democrático de direito para um modelo mais autoritário desapareceram, mas ressurgem o tempo todo. Por exemplo, agora notamos que há pessoas em conflito com a imprensa. Não sou contra isso, mas temos de informar os setores que contestam essa tendência de querer colocar a imprensa num nível de maior qualidade e sacrificar a sua liberdade. “No meu tempo, eu, como ministro da Justiça, mandei casos para o Conar, um órgão de publicitários no qual o governo não tinha a menor ingerência. Fiquei bem impressionado com o trabalho” JR – Através de um controle social. José Gregori – Um controle social que, em última análise, será o controle do poder. Isso é uma discussão democrática, que precisa ser apresentada como uma questão que não é unânime. O mesmo acontece com a Anvisa, em relação a outros óbices que possam surgir. Nessa discussão há de estar sempre presente o espírito de negociação e diálogo. O estado democrático de direito não convive bem com aqueles que acham ser possuidores do sal da verdade. Cristo conversava com os apóstolos, ele não impôs as verdades de forma absoluta. Gracioso – Ele pedia frequentemente a opinião deles. José Gregori – Às vezes, ficava impaciente, porque os apóstolos não pediam a sua opinião, mas ele nunca cessou o diálogo. Nós, que somos mortais, com maior razão temos de discutir. Daí a importância de a imprensa ser livre. Claro, não podemos permitir que a imprensa se torne apenas o veículo de uma ideia ou de uma verdade. Temos de combater isso não fechando a imprensa, mas discutindo. Toda atividade é capaz de não só colocar em linha de vanguarda a atividade em si, mas também criar mecanismos de discussão. No meu tempo, eu, como ministro da Justiça, mandei casos para o Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), um órgão de publicitários no qual o governo não tinha a menor ingerência. Fiquei bem impressionado com o trabalho. Também tenho o maior respeito pela entidade que vocês dirigem, porque sei o quanto é importante o trabalho que desenvolvem para aumentar a qualidade dessa atividade. JR – Nas avaliações feitas internacionalmente com as universidades, o Brasil tem um papel ruim. Não temos nenhuma instituição de nível superior entre as 100 melhores no mundo. Quando se amplia isso para 200, a única instituição que entra no ranking é a USP (Universidade de São Paulo). Estou há 30 anos nisso e nesse convívio com escolas americanas, europeias e asiáticas, tenho a sensação de que, no Brasil, a regulamentação do Estado na educação ultrapassa os limites do que José Gregori seria desejado. Parece-me que, na área do ensino superior, teríamos melhores resultados se houvesse uma participação maior da iniciativa privada. Como é que o ministro vê esta questão? Gracioso – Nos Estados Unidos, por exemplo, o aluno de um curso superior pode escolher a profissão que vai seguir depois de um curso básico de dois anos, o que dá mais segurança à escolha que ele fará. No Brasil, estamos engessados de tal forma que o aluno não pode sequer mudar de curso. Se ele cursa administração e chega à conclusão de que o curso dele seria engenharia, tem de voltar e fazer um novo vestibular. José Gregor i – Sou produto da educação pública, fiz grupo escolar, colégio do estado e faculdade na USP. A opção brasileira não é pela exclusividade da escola pública. Hoje, fico muito entristecido pela escola pública não ter, ao menos no grau fundamental, a mesma qualidade que tinha no meu tempo. É um problema em aberto que precisamos resolver. Agora, tenho tido nas minhas andanças pelos direitos humanos, contato com universidades particulares e colho delas uma boa impressão. Gracioso – Houve uma melhora muito grande. José Gregori – São pessoas interessadas em assegurar uma educação qualitativamente superior à de alguns anos. A verdade é que, de uns anos para cá, o Brasil está tendo uma espécie de explosão e, nessa época de muita demanda, realmen- “Hoje, fico muito entristecido pela escola pública não ter, ao menos no grau fundamental, a mesma qualidade que tinha no meu tempo” te a forma de ser mais criterioso e exigente aumenta a dificuldade. É preciso mais atenção e, aí sim, o Estado pode exercer um papel fiscalizatório grande. O governo Fernando Henrique é titular de três marcas pioneiras: a saúde financeira do país com o fim da inflação; os direitos humanos; e o programa de controle da qualidade de ensino, algo que não existia. É possível que o sistema ainda não funcione a contento, mas já se criou a consciência de que o ensino deve ser avaliado. Criar esta obrigatoriedade de rever, fiscalizar e avaliar o nível de competitividade foi um avanço, porque o mundo atual é muito competitivo e temos de criar uma juventude capaz de competir. Por enquanto, não andamos bem nisso, porque todo concurso em que colocam meninos contra meninos em termos de várias nações, os brasileiros não têm se saído bem. É um sinal amarelo que acendeu no sentido de comprovar que precisamos melhorar nosso ensino. JR – No Brasil, o Estado ultrapassa em várias áreas as suas funções tradicionais. Ele entra na indústria, nos serviços. E aí ocorre que o poder de regular é confiado a um participante, um concorrente. No caso do ensino superior, as cartas são marcadas no sistema de avaliação em favor das universidades públicas. Gracioso – O sistema deixado pelo ex-ministro da Educação Paulo Renato Souza era muito mais perfeito que o atual citado pelo professor Whitaker. JR – É possível. Isso pode ser dito também em relação à proteção do consumidor. O Procon (Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor), é uma entidade ligada ao Estado. Da mesma forma, o Estado presta serviços ao cidadão de várias maneiras, como os serviços públicos ou concessões, às vezes monopólios concedidos. E aí ficamos diante do nosso tema: a intervenção do Estado e direitos do indivíduo. Como fica o indivíduo diante de uma entidade – seja ela fiscalizadora da educação, seja ela reguladora das questões do consumo –, se ele tem queixas ou agravos a resolver diante do fornecedor desses serviços, o próprio governo, que fiscaliza a si mesmo? Há certa contradição nisso. José Gregori – Não há dúvida. Mas, de certa maneira, já temos mecanismos que precisam ser aperfeiçoados para fiscalizar melhor a fiscalização do Estado. Democracia é isso. O ideal democrático é que todos saibam – pela educação que receberam na escola, na família e na vida – o mínimo múltiplo comum que precisa ser respeitado. Quanto menos o Estado intervir, melhor, diante das experiências que temos do Estado provendo tudo, sendo babá, mãe e madrasta. O Estado-mãe, mais dia menos dia, torna-se um Estado-babá. maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 77 responsabilidade social Quanto mais os princípios básicos do marketing social forem seguidos, maior será o bem-estar da população. Assim, a atuação governamental deve assumir tais princípios e influenciar positivamente na atuação de seus membros para agregar valor à sociedade Por Daniel Kamlot 78 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 cienpies design Interferência do Estado na sociedade: uma visão de marketing social A expressão “marketing social” é apropriada quando uma empresa faz uso de ações sociais aliadas ao marketing, com o objetivo único de trazer benefícios para a sociedade, como observa Luiz Cláudio Zenone, no livro Marketing social (Editora Thomson Pioneira, 2006). A ideia não é criar vínculos com uma marca ou vender mais, como têm feito atualmente diversas organizações. Todavia, alguns autores defendem a tese de que o objetivo das empresas é criar vínculos com a marca. Já a meta das atividades de marketing social é conquistar a lealdade do consumidor por meio do comprometimento da empresa com uma demanda social, de modo que os consumidores façam a associação automática entre a marca, a empresa e o projeto social. Para Philip Kotler e Nancy Lee – autores de Corporate social responsibility: doing the most good for you company and your cause (Editora John Wiley Trade, 2005), o conceito de marketing social pode ser definido como um meio pelo qual “uma empresa desenvolve ou implementa uma campanha de mudança de comportamento visando melhorar a saúde, a segurança, o ambiente e o bem-estar da sociedade”. Em Administração de marketing: análise, planejamento, implementação e controle (Editora Atlas, 1998), Kotler indica que é um conceito diferente do marketing tradicional – no qual a relação entre empresas e consumidores se baseava na satisfação de desejos destes e na obtenção do lucro por aquelas, sem preocupações maiores com o ambiente que os cercava ou com outros atores envolvidos nas transações. No marketing social percebe-se uma preocupação também com a sociedade, uma vez que tanto empresas quanto consumidores fazem parte dela. Logo, é legítimo supor que devam preservá-la, além de buscar o bem-estar de todos que a compõem. Isso é observado no quadro “Atores do marketing societal”. Ele mostra o conceito de marketing societal (ou societário), no qual as empresas e os consumidores devem perseguir o bemestar da sociedade no longo prazo, independentemente de suas respectivas buscas por lucro (no caso das empresas), e por satisfação de desejos e necessidades (no caso dos clientes e consumidores). É preciso considerar um ator muitas vezes esquecido, a própria sociedade, que O marketing tradicional tinha como foco a satisfação dos desejos dos consumidores e a obtenção do lucro pelas empresas, sem preocupações maiores com o ambiente que os cercava. No marketing social, percebe-se uma preocupação também com a sociedade, uma vez que tanto empresas quanto consumidores fazem parte dela pode ser prejudicada quando consumidores e empresas consideram apenas seus respectivos interesses, sem se incomodar com as consequências de suas atuações para todos os que estão à sua volta. Em suma, uma sociedade saudável e pujante favorece a expansão do negócio na medida em que as necessidades são satisfeitas e as aspirações crescem. Qualquer empresa que persiga seus fins em detrimento da sociedade em que atua alcançará no máximo um sucesso ilusório ou temporário. Justamente para evitar a proliferação de empresas sem compromisso com a sociedade, ou mesmo com o país onde atuam, o governo passa a ter uma grande responsabilidade, tendo em vista que cabe a ele a estruturação de políticas públicas para garantir o bem-estar de todos. Um exemplo, no caso brasileiro, pode ser notado quando se observa o Código de Defesa do Consumidor em seus artigos 36, 37 e 38, referentes à propaganda enganosa e abusiva. O artigo 37 deixa claro que “é enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços”. Já a propaganda abusiva alude àquele tipo de peça que incita a violência, a discriminação, o desrespeito ambiental ou que induz o consumidor a se comportar de forma prejudicial à sua saúde ou segurança, conforme consta na Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, do Código de Defesa do Consumidor. maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 79 responsabilidade social Atores do marketing societal a indicar como devem proceder os componentes de uma sociedade? Uma abordagem para responder a essa pergunta pode ser percebida sociedade ao se analisar um caso real. Em deseja obter bem-estar meados da década de 1990, diversas cidades brasileiras começaram a instituir normas que obrigavam os motoristas a utilizar o cinto de segurança ao dirigir. O Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997) também passou a indicar a autuação (em seu artigo 65), daqueles que estivessem empresas consumidores conduzindo automóveis sem fazer desejam obter desejam ter seus lucro desejos atendidos uso do cinto. Tal situação, na época, gerou bastante controvérsia. Alguns Fonte: Adaptação de Kotler (1998) motoristas, e mesmo pessoas que sequer dirigiam, protestaram com base no argumento de que não cabe ao governo – por intermédio Uma sociedade saudável e pujante favorece a expansão do do Ministério dos Transportes ou negócio na medida em que as necessidades são satisfeitas de qualquer outro órgão – preocuparse com a vida de alguém que não e as aspirações crescem. Qualquer empresa que persiga valoriza sua própria segurança. seus fins em detrimento da sociedade em que atua Isso seria uma intromissão em um alcançará no máximo um sucesso ilusório ou temporário domínio particular, e não público. Outros simplesmente diziam: se o motorista não se preocupa em usar Observa-se, então, que há necessidade de construir o cinto e não dá valor à própria vida, por que o Estado um ambiente de ordem para que não sejam prejudicados deveria perder tempo e recursos com isso? Entretanto, aqueles que prezam por uma nação em que haja liberdade um argumento surgiu para justificar tal ação governapara todos. O cumprimento de leis e normas como as mental: um motorista irresponsável sofre um acidente citadas tem por finalidade evitar que alguns membros e precisa ser levado a um hospital porque seu estado de da sociedade prejudiquem outros em determinadas cir- saúde é grave, justamente por não ter utilizado o cinto cunstâncias ou por não existir algum regulamento que de segurança. Ele vai ocupar o leito de uma pessoa (“reslhes dê algum suporte. E quando uma lei é aprovada e ponsável”) que sequer o conhece e pode estar necessipassa a fazer parte do cotidiano dos cidadãos, o governo tando de internação. Se o leito está ocupado por aquele indica que está participando da vida deles, mesmo que “motorista irresponsável”, quem deixa de ser atendido é alguns possam considerar tal ato uma intromissão ou o outro paciente, que poderia não sofrer com tal situação, caso o motorista estivesse usando o cinto, o que evitaingerência em suas vidas. Assim, será que, do ponto de vista do marketing social ria as graves consequências do acidente. Tal situação – que tem por objetivo alterar comportamentos nocivos justificaria, do ponto de vista do marketing social, que e que gerem prejuízos de diferentes naturezas aos cida- o Estado interviesse e exigisse de todos os motoristas – dãos –, haveria justificativa para que o Estado passasse por uma questão de prevenção de danos aos indivíduos marketing societal 80 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 Premiado com Leão de Ouro no Festival de Cannes 2004, o anúncio “Favela”, faz parte da campanha do Movimento Cuide, promovido pelo Instituto Akatu de Consumo Consciente Cena do comercial criado para divulgar a Semana Otimismo que Transforma, que reverte parte da venda de todos os produtos da Coca-Cola para um programa de reciclagem da marca Fabrício Rian, de três anos, é estrela da campanha do McDia Feliz 2012, que acontece no dia 25 de agosto na rede McDonald’s. No ano passado, o evento vendeu 1,6 milhão de sanduíches Big Mac Maior fabricante brasileira de cosméticos e líder no setor de venda direta no país, a Natura tem a sustentabilidade como o principal pilar de sua marca, que segue a filosofia do “bem estar bem” O conceito de marketing social pode ser definido como um meio pelo qual “Uma empresa desenvolve ou implementa uma campanha de mudança de comportamento visando melhorar a saúde, a segurança, o ambiente e o bem-estar da sociedade” Philip Kotler & Nancy Lee maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 81 responsabilidade social 82 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 Contudo, deve-se ressaltar que o Estado também pode apenas aparentar agir em nome da sociedade que representa quando na verdade está buscando algo em benefício próprio. Políticos desonestos constantemente se utilizam de discu rsos, nos quais expõem suas vontades como a vontade “do povo” a fim de justificar ações perniciosas que ten ham comet ido justamente em prejuízo daquela sociedade que deveriam representar. Nesse caso, o Estado, por meio de seus componentes, parece agir de forma tendenciosa e oposta ao que exige o marketing social. Nessa conjuntura, não se observa bem-estar social, mas o uso do aparelho estatal como ferramenta para prejudicar justamente aquela sociedade que deveria sentir conforto e um estado de espírito positivo. Kotler e Lee (em Corporate social responsibility), assim como José Antonio Puppim de Oliveira – autor de Empresas na sociedade (Editora Campus, 2008) –, explicam as práticas socialmente responsáveis das empresas. Para eles, o apoio a causas sociais e ações socioambientais amplificam a prosperidade da comunidade e favorecem o meio ambiente, sendo calcados em comportamentos morais e éticos, e não apenas naqueles exigidos por leis ou normas estabelecidas cienpies design em particular, e à sociedade em geral – que usassem o cinto de segurança ao dirigir. Como a preocupação do marketing social se refere a uma mudança de comportamento visando à geração de bemestar na sociedade, no exemplo apresentado haveria justificativa para a intervenção estatal – ainda que muitos não concordem com isso. O ato seria uma forma de evitar prejuízos a diversos indivíduos ao impedir um mau procedimento de um deles. Em suma, com o Estado ditando um procedimento aos membros da sociedade, esta se beneficiaria, no longo prazo, das ações adotadas graças à obrigação de que se aja de maneira adequada à geração de bem-estar aos membros daquela comunidade. O mesmo pode ser dito da conhecida campanha “Se dirigir, não beba”, que pode parecer uma intromissão na atuação individual daqueles que teriam a suposta liberdade de optar por beber e conduzir seu próprio veículo ou mesmo uma manifestação do Estado como regulador da vida dos indivíduos. Mas tem foco no bem-estar da sociedade. Esse seria proporcionado pelo cumprimento de normas de boa conduta, respeitando o direito daqueles que ficariam à mercê de motoristas bêbados – e, portanto, com seus reflexos comprometidos – de terem segurança nas ruas das cidades. Com o Estado ditando um procedimento aos membros da sociedade, esta se beneficiaria, no longo prazo, das ações adotadas graças à obrigação de que se aja de maneira adequada à geração de bem-estar aos membros daquela comunidade. Contudo, deve-se ressaltar que o Estado também pode apenas aparentar agir em nome da sociedade que representa quando na verdade está buscando algo em benefício próprio É preciso que todos os atores de uma sociedade procedam de forma a cumprir o que é necessário para que o Estado não atue como o dono da razão. E também para facilitar que todos tenham uma atuação voltada para a geração de boa vontade e bem-estar para as empresas, os indivíduos e o próprio governo por agências reguladoras. Entretanto, uma pesquisa demonstra que os brasileiros, ao serem perguntados sobre quem deveria se responsabilizar pelas ações de natureza social existentes no país, deram as respostas mostradas na tabela abaixo. A análise da tabela “Quem deve ser responsável pelas ações sociais no país?” demonstra que a população ainda tem a noção de que o governo, ou o poder público, deve ser o maior responsável individual por ações sociais desenvolvidas no país. Ainda assim, a maioria afirma que tal responsabilidade deve ser repartida por todos os envolvidos, inclusive empresas e pessoas físicas, estas mais lembradas do que as próprias companhias e organizações não governamentais (ONGs). Vale ressaltar ainda que as empresas, ao praticarem atividades de marketing social e de apoio a causas Quem deve ser responsável pelas ações sociais no país? Opção Ninguém Empresas Percentual de pesquisados 1% 3,5% ONGs 4,75% Pessoas 7,25% Governo 17% Todos os citados 66,5% Fonte: Marketing de ação social e percepção de valor: do plano tático para o estratégico. Tese de doutorado defendida por Alexandre Luz Inkotte, em 2003, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). sociais, devem fazê-lo em toda a sua plenitude, e não em ocasiões ou eventos esporádicos. Dessa forma, a comunicação da atuação da empresa também deve seguir o preceito de que é necessário respeitar o consumidor, não fornecendo informações enganosas ou colocando-o como alvo de alguma atividade condenável ou inescrupulosa, uma vez que isso poderá gerar atritos que terão consequências também para a sociedade que a empresa e o consumidor compartilham. É necessário, assim, observar se as organizações seguem os preceitos do marketing social visando a melhorias e ao bem-estar da sociedade, e também se os consumidores se manifestam a favor desse comportamento, tanto em suas ideias quanto em suas condutas. Tendo por base o conceito de marketing social, percebe-se que podem existir argumentos a favor de algum controle do Estado na vida dos cidadãos. Entretanto, um exagero de controle acarretaria exatamente o contrário, o que é apregoado pelos preceitos desse tipo de marketing, ou seja, restringiria a liberdade daqueles que compõem a sociedade e, eventualmente, poria a perder o livre-arbítrio, acarretando mal-estar à sociedade – exatamente o oposto do que é preconizado pela teoria por trás do marketing social, o que justificaria um menor controle governamental. É preciso que todos os atores de uma sociedade procedam de forma a cumprir o que é necessário para que o Estado não atue como o dono da razão. E também para facilitar que todos tenham uma atuação voltada para a geração de boa vontade e bem-estar para as empresas, os indivíduos e o próprio governo. Com isso, a sociedade só terá a ganhar. Daniel Kamlot Professor da ESPM-RJ, da PUC-RJ e do Ibmec-RJ maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 83 hans slegers direitos humanos 84 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 O direito de intervir na sociedade é inerente ao estado de direito? Para avaliar a licitude da interferência dos poderes do Estado nas esferas de direitos dos particulares, é fundamental determinar o conteúdo, o sentido e o alcance do termo jurídico interesse público, uma vez que este pauta as relações entre Estado e sociedade Por Denise Fabretti C omo funcionam as relações jurídicas entre Estado e sociedade, principalmente no que se refere às situações que envolvem o direito administrativo e, mais especificamente, o poder de polícia do Estado? Quais as normas que emanam de entidades representativas do poder público no sentido de adequar o exercício das atividades individuais ao interesse coletivo? Estas e outras questões são apresentadas a seguir, por meio de reflexões sobre relações que envolvem a interferência do poder público nas esferas de direitos dos particulares, bem como dos cuidados que as autoridades administrativas e julgadoras devem ter na aplicação e interpretação dessas normas. maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 85 direitos humanos Sistema de direito e organização do Estado O direito corresponde ao conjunto de regras impostas coercitivamente à sociedade no sentido de disciplinar determinadas situações e regular o comportamento livre do ser humano. É condição essencial para uma sociedade que esse conjunto de regras seja organizado como um sistema a partir de uma concatenação lógica. Uma vez sistematizado ou ordenado de forma lógica e coerente, esse conjunto de regras poderá alcançar um determinado grupo de pessoas que convive dentro de um mesmo território em uma determinada época. Um grupo social, todavia, necessita de uma direção, de um corpo político que o governe, estabeleça a forma e a criação das regras de convivência (Poder Legislativo), sua aplicação e execução (Poder Executivo), bem como solucione os conflitos decorrentes de sua interpretação (Poder Judiciário). Surge, assim, a noção de Estado, ou seja, uma nação politicamente organizada, como é citado no livro Instituições de direito público e privado, de Ruy Rebello Pinho e Amauri Mascaro Nascimento (Editora Atlas, 24ª edição, p. 90). “O Estado é a nação governada por uma instituição estruturada e estável”, escreve Gofredo Telles Jr, em Iniciação na ciência do direito (Editora Saraiva, 2011). Ressalte-se que, além da função jurídica, o Estado desenvolve, também, aquilo que Telles denominou de “função não jurídica ou função social”, no sentido de “garantir ou melhorar as condições de vida dos cidadãos e de possibilitar ou promover o processo civilizador e o avanço cultural da sociedade”. A organização do Estado, a sua formação, surge a partir de uma norma fundamental, que se sobrepõe a todas as outras com o intuito de conferir uma racionalidade lógica ao sistema, como mostra Norberto Bobbio, em Teoria do ordenamento jurídico (Editora UnB Polis). Para Hans O direito corresponde ao conjunto de regras impostas coercitivamente à sociedade no sentido de disciplinar determinadas situações e regular o comportamento livre do ser humano 86 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 O Estado também está sujeito às normas estabelecidas pela Constituição e não deve ultrapassar os limites dos poderes que esta lhe atribuiu Kelsen, autor de Teoria pura do direito (Editora Martins Fontes), essa supremacia decorre do fato de que compete à norma criar a estrutura, o funcionamento, as atribuições, os direitos e deveres do Estado e dos indivíduos que estão em seu território. Essa norma fundamental corresponde à Constituição. Ela é o ponto de partida de todo o processo de criação do direito em um dado sistema. Uma vez que a Constituição caracteriza-se como fundamento de validade de outras normas dentro de um sistema de direito, indaga-se qual seria o fundamento de validade da própria Constituição. Kelsen demonstra ser este fundamento para a criação da Constituição o que se denomina de “norma hipotética fundamental”, que, de forma resumida, corresponderia ao propósito de um grupo social no sentido de se organizar por meio de uma ordem de normas coercitivas. Assim, para a concepção do direito e do Estado, é necessário reconhecer um pacto através do qual o estado de natureza da humanidade passa ao estado social. Pacto esse que acaba por estabelecer em quais condições os indivíduos abrem mão de alguns direitos para se sujeitarem a um poder com a finalidade de obter vantagens para o grupo. Através desse tipo de acordo, os indivíduos entregam a si e seus bens ao poder do coletivo ou à vontade do grupo soberano que tem competência para estabelecer as diferenças entre bens coletivos e particulares e determinar a consecução do interesse comum. Citadas na coletânea Os clássicos da política (Editora Ática, volume I, 1995), as cláusulas do Contrato social de Jean Jacques Rousseau mostram que “cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte indivisível do todo”. Direito público, privado e administrativo A doutrina tradicional divide as relações jurídicas, que se estabelecem a partir das normas de direito, de gina rothfels “Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte indivisível do todo” Jean Jacques Rousseau, Contrato social acordo com a relação entre sujeitos. A Teoria pura do direito, de Kelsen, também analisa a repartição dessas relações, estabelecendo os seguintes fatores de distinção: “o direito privado representa uma relação de sujeitos em posição de igualdade – sujeitos que têm juridicamente o mesmo valor – e o direito público entre sujeito supraordenado e um sujeito subordinado – entre dois sujeitos, portanto, dos quais um tem, em face do outro, um valor jurídico superior”. Assim, por exemplo, o ato jurídico do casamento decorre de uma relação de direito privado, enquanto a cobrança de impostos decorre de uma relação de direito público. Na seara do direito público é possível destacar as relações jurídicas de direito administrativo que disciplinam as situações que se desenvolvem a partir do exercício, por parte do Estado, da administração do interesse público ou da coletividade. No livro Elementos de direito administrativo (Malheiros Editores), Celso Antônio Bandeira de Mello esclarece que o direito administrativo encontra fundamentos em dois princípios básicos: supremacia do interesse público sobre o privado e indisponibilidade, pela administração, do interesse público. A administração pública, ou poder público, encontra-se em situação de autoridade para garantir os interesses da coletividade. Ao mesmo tempo, essa autoridade, ou agente público, está legalmente impedida de dispor livremente sobre os bens ou interesses de que cuida, como aponta Ruy Cirne Lima na obra Princípios de direito administrativo (Malheiros Editores): “A relação de administração somente se nos depara, no plano das relações jurídicas, quando a finalidade a que a atividade de administração se propõe, nos aparece defendida e protegida, pela ordem jurídica, contra o próprio agente e contra terceiros”. Ressalte-se que as normas que compõem o direito administrativo provêm de poderes maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 87 direitos humanos Poder de polícia e a esfera de direitos dos particulares Uma vez que ao Estado foram atribuídos o poder público e a função de zelar pelo interesse da coletividade, como determinar os limites de atuação desse poder? Uma vez que a Constituição e o ordenamento jurídico atribuem aos cidadãos e ao Estado uma série de prerrogativas ou direitos, é necessário que o exercício destes últimos não afete o bem-estar da sociedade. Assim, o Estado exerce “uma atividade no sentido de condicionar a liberdade e a propriedade, ajustando-as aos interesses coletivos”, segundo afirma o autor Bandeira de Mello. Essa ação do poder público, todavia, tem sempre, como pressuposto de validade, a lei no sentido formal: ato emanado do Poder Legislativo, criado pelos representantes do povo e dentro da esfera de validade da Constituição federal. Por exemplo: a aplicação de multa, pelo policial, ao indivíduo que desrespeita as leis de trânsito corresponde a um ato administrativo fundamentado em lei (Código Nacional de Trânsito) no sentido de adequar a liberdade e a propriedade ao interesse coletivo. Porém tem-se observado que essa interferência do Estado na liberdade e na propriedade dos indivíduos está cada vez mais constante e presente na vida da coletividade. Até que ponto é possível afirmar que essa interferência é legítima e corresponde aos anseios da sociedade? Tomando-se como exemplos os casos recentes em que o Ministério da Saúde, no Brasil, proibiu a comercialização de cigarros mentolados e a França, que desde abril de 2011, em nome do Estado laico, aboliu e proibiu o uso do véu islâmico em locais públicos, será desenvolvido um raciocínio que procurará avaliar qual a lógica da decisão adotada pelo intérprete da norma jurídica ao solucionar conflitos decorrentes de tais imposições. Ressalte-se que o Estado também está sujeito às normas estabelecidas pela Constituição e não deve ultrapassar os limites dos poderes que esta lhe atribuiu. Num sistema de direito em que o Estado segue essa regra fundamental, é possível afirmar que se está diante do estado de direito. Todavia, se o Estado, no exercício de suas funções, extrapolar os limites legais, abusando de seus poderes, desprezando os preceitos da Carta Magna, será caracterizado como um Estado arbitrário. Uma vez que ao Estado foram atribuídos o poder público e a função de zelar pelo interesse da coletividade, como determinar os limites de atuação desse poder? Qual a situação que caracteriza uma invasão arbitrária do Estado na esfera de direitos dos particulares? Qual a interpretação que deverá nortear a autoridade julgadora para decidir determinada controvérsia que envolve essa interferência nos direitos individuais? Nos exemplos mencionados, é possível afirmar que o Estado agiu defendendo de forma legítima o interesse coletivo? Qual é a real dimensão da expressão interesse público ou coletivo? A doutrina ligada à área da filosofia do direito que mais se aproxima das respostas a estas indagações é aquela que analisa os conceitos vagos e imprecisos. Partindose da premissa de que, em alguns casos, a expressão interesse público pode caracterizar-se como um conceito vago, é possível, a partir de seu estudo, tentar chegar a uma solução para os conflitos que surgem das diversas interpretações de uma regra fundamentada em um conceito muitas vezes carregado de imprecisão. No livro Notas sobre derecho y lenguage (Editora Abeledo Perrot), Genaro R. Carrió ensina que, embora exista determinada palavra ou expressão apta a definir certo objeto, essa palavra pode ser vaga e, em algumas situações, não se tem certeza da sua aplicabilidade. Para explicar esse raciocínio, Carrió recorre a uma metáfora: “Há um foco de intensidade luminosa onde se agrupam os exemplos típicos, aqueles frente aos quais não se duvida que a palavra é aplicável. Há uma mediata zona de obscuridade circundante (do conceito), onde caem todos os casos nos quais não há dúvida de que não é. O trânsito de uma zona a outra é gradual: entre a total luminosidade e a obscuridade total existe uma zona de penumbra sem limites precisos. Paradoxalmente, ela não começa nem termina em nenhuma parte e sem embargo existe. As palavras que, diariamente, usamos para fazer alusão ao mundo em que vivemos e a nós mesmos têm consigo essa aura de imprecisão”. diferentes: as leis emanadas do Poder Legislativo e os atos praticados pelo Poder Executivo no exercício da função administrativa (atos administrativos). 88 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 paul reid “Há um foco de intensidade luminosa onde se agrupam os exemplos típicos, aqueles frente aos quais não se duvida que a palavra é aplicável. Há uma mediata zona de obscuridade circundante (do conceito), onde caem todos os casos nos quais não há dúvida de que não é” Genaro R. Carrió maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 89 doki direitos humanos Assim, seguindo-se a linha de raciocínio do referido autor, é possível afirmar que um ato administrativo que negue a concessão de alvará de licença e funcionamento para a abertura de um restaurante que não se encontra de acordo com as normas de vigilância sanitária está na zona de intensa luminosidade citada, onde é perfeitamente aplicável o conceito de interesse público ou coletivo. Por outro lado, a concessão de licença ambiental para que um indivíduo, parente de autoridade administrativa, venha a explorar atividade que, comprovadamente, irá causar destruição e prejuízos irreparáveis para a sociedade, corresponde a um ato administrativo de poder de polícia, que se encontra naquela zona de obscuridade total citada pelo filósofo e que, portanto, não caracteriza interesse público. E as demais circunstâncias? A medida adotada pelo Ministério da Saúde estaria naquela zona de penumbra ou de luminosidade total? A Constituição federal, ao tratar da ordem econômica e social, estabelece que ela se fundamenta no princípio da livre iniciativa e liberdade de empreendimento. Considerando-se que o objetivo maior da autoridade administrativa seja a saúde pública e da coletividade e também evitar gastos dos recursos públicos com tratamentos e licenças médicas, seria possível afirmar que esse ato administrativo está em conformidade com o interesse público ou da coletividade e não contraria o princípio da livre iniciativa, uma vez que este deve ser exercido dentro das normas estabelecidas pelo Estado. Assim, se ao julgar uma eventual ação proposta pela indústria de cigarros, o Poder Judiciário entender que a 90 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 Considerando que o uso do véu para as muçulmanas corresponde a uma tradição secular que pode impedi-las até mesmo de saírem de suas casas, como adequar essa medida à Declaração Universal dos Direitos Humanos que assegura a todos os indivíduos o direito à liberdade de crença? medida visa ao interesse público, essa decisão estaria norteada pelos critérios acima mencionados, ou até mesmo por outros que o juiz venha a utilizar para fundamentar a sua decisão, e a interpretação da expressão interesse público estaria na zona de luminosidade proposta por Carrió. E a medida adotada pela França no sentido de preservar o Estado laico? Se for considerada essa finalidade e, principalmente, a de evitar confrontos motivados por intolerância religiosa, é possível afirmar o interesse público e o enquadramento desse ato nessa mesma zona de luminosidade apregoada por Carrió. Porém, levando-se em conta que o uso do véu para as muçulmanas corresponde a uma tradição secular que pode impedi-las até mesmo de saírem de suas casas, há que se falar em interesse público? Como adequar essa medida ao preceito estabelecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos que assegura a todos os indivíduos o direito à liberdade de crença? Considerando-se que a citada declaração preceitua que ninguém poderá ser privado de seus direitos por motivo de crença religiosa, tal imposição, tecnicamente, estaria impedindo que as muçulmanas exercessem, por exemplo, o seu direito à educação? Seria legítima essa interferência do Estado na esfera de direitos dos particulares? O artigo XVIII da Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma: “Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular”. Esta é uma situação em que é possível afirmar que o ato da autoridade pública está na zona de penumbra citada por Carrió e que irá requerer de seu intérprete uma série de considerações para averiguar a aplicabilidade do conceito de interesse público. Há uma diferença básica entre o Estado e seus representantes utilizarem símbolos religiosos e os indivíduos, enquanto integrantes de um grupo social, utilizarem esses mesmos símbolos. O poder público, no exercício de suas funções, ao utilizar símbolos religiosos, colocaria em dúvida a neutralidade do Estado em relação à sua tutela a todos os indivíduos que integram a sociedade. Dessa forma, qualquer manifestação de crença religiosa seria nitidamente contrária ao interesse público. Porém os indivíduos, ao utilizarem esses mesmos símbolos, socialmente, estão exercendo sua liberdade de crença. Devido a ela, dispõem da prerrogativa de frequentar espaços ou templos onde são ministradas tais doutrinas. O entendimento, por parte da autoridade julgadora, do interesse público na proibição do uso desses símbolos para pessoas pertencentes ao grupo social, não poderia levar, como via de consequência, a uma intolerância religiosa por parte de outros indivíduos? Neste caso, em vez de atender ao interesse coletivo de evitar confrontos sociais por motivos religiosos, a interpretação equivocada poderia contrariar este interesse maior. Quais os efeitos de uma medida deste porte em um Estado que não tem, em sua tradição histórica, os mesmos ideais da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade? No caso específico da França, somente o passar do tempo, aliado às reações da sociedade, poderá confirmar se a regra atendeu ao interesse público ou causou mais distúrbios na coletividade e, dependendo das consequências daí advindas, obviamente que as regras serão alteradas novamente, pois o direito é dinâmico e não estático, adaptando-se às necessidades dos indivíduos e da coletividade. Todavia, em outros países, como o Brasil, por exemplo, tais medidas configurariam sinais de intolerância. A Constituição brasileira estabelece em seu artigo 5º, inciso VII, que ninguém será privado de seus direitos por motivo de crença religiosa. Sendo assim, ninguém poderá ser privado de seu direito à educação estando impedido de adentrar uma instituição de ensino em virtude do uso de um símbolo religioso. Por um mundo melhor A interferência do Estado na sociedade muitas vezes se faz necessária para assegurar toda a estrutura do sistema de direito, bem como a continuidade do pacto social, que é o pressuposto de validade de toda nação politicamente organizada. Porém nem sempre essa interferência pode ser considerada totalmente benigna, como é o caso de adentrar pela seara da liberdade de crença religiosa. Em alguns casos, dependendo da história daquele grupo social, dos valores por ele prestigiados, da época e da conjuntura política, entre outros fatores, é necessário que o Estado avalie cuidadosamente a eficácia e legitimidade de suas ações, a fim de evitar que, indiretamente, venha a propiciar o surgimento de situações que distorçam totalmente a sua finalidade, que é a de preservar o interesse da coletividade. Sob tais circunstâncias, não estaria o Estado exercendo a sua “função social”, no sentido de “garantir ou melhorar as condições de vida dos cidadãos e de possibilitar ou promover o processo civilizador e o avanço cultural da sociedade”, como descreve Telles Jr, em seu livro Iniciação na ciência do direito. Mas, ao contrário, estaria, sim, interferindo de modo autoritário não condizente com as premissas básicas de um estado de direito. Com essas medidas tomadas arriscar-se-ia a propagar efeitos diversos e contrários à real intenção da tutela constitucional dos interesses da coletividade. Denise Fabretti Doutora em direito pela PUC-SP, professora da ESPM, da PUC-SP e da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção de São Paulo (ESA-OABSP) maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 91 comportamento 92 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 O paradoxo da democracia Cabe ao Estado legal garantir sempre a ordem e os limites de nossas liberdades individuais? Por Eduardo Oyakawa A 2 jenn rigor, podemos falar de duas visões antagônicas sobre a liberdade dos cidadãos nas modernas democracias ocidentais. De matriz anglo-saxã, a primeira pontifica a liberdade humana como intrinsecamente associada ao direito à propriedade privada, às concessões políticas plenas no que tange a ordem cível e constitucional e uma superestrutura moral na qual o indivíduo é artífice de sua própria Moira (entendida aqui em seu sentido grego). Uma segunda corrente de pensamento de viés francês, que tem em Rousseau seu ideólogo-mor, identifica justamente nesse Estado democrático e garantidor dos direitos à vida constitucional e à propriedade privada o algoz seviciador no qual se aninham todas as mazelas da vida em sociedade. Não cabe aqui traçar os embaraços e confrontos dessas duas linhas de retórica e reflexão que permeiam a filosofia política desde o iluminismo até nossos dias. Entretanto, tudo que dissermos sobre o atual estado democrático de direito e, no caso particular, o brasileiro, devemos, sob o perigo imenso da douta ignorância, valermo-nos dessas matrizes conceituais como paradigmas para uma compreensão clara da liberdade moderna. maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 93 comportamento Imaginemos uma cena comezinha de nosso cotidiano urbano. Estamos parados com nosso automóvel num desses congestionamentos gigantescos na cidade de São Paulo. À nossa frente, uma fila de carros que nos permite andar poucos quilômetros a cada dez ou quinze minutos... De repente um cidadão ao nosso lado pega a faixa exclusiva de ônibus e, em toda a velocidade, transgride a lei, a mesma que nos cinge ao marasmo da espera. O que se passa em nosso íntimo? Em primeiro lugar, uma vontade inequívoca de que um agente do Estado multe o transgressor, severamente. E, em segundo lugar, que a ordem seja novamente restabelecida. Afinal de contas, se todos se dispusessem a desobedecer às regras de convivência básica no trânsito, por que cargas d’água seríamos nós os defensores de uma lei emasculada e inimputável? Neste caso específico, clamamos por um Estado legítimo que garanta a todos a mesma punição, caso aconteça que sobrevenha aos mais pressurosos a sede por uma liberdade plena e incoercível. Mas poderíamos aplicar esta mesma lógica às várias instâncias da vida social? Cabe ao Estado legal garantir sempre a ordem e os limites de nossas liberdades individuais? Se seguirmos a escola anglo-saxã, deveríamos dizer, peremptoriamente, depende... Há um espaço de nossas vidas privadas, inviolável, no qual as escolhas devem prescindir ao máximo do arbítrio da normatividade constitucional. Esse seria o âmbito de nossas opções religiosas e sexuais, por exemplo. Há outros nos quais é absolutamente imprescindível a presença do Leviatã, como no caso da garantia pétrea à propriedade privada. Se nossa opção analítica fosse a escola rousseauniana, o Estado, baseado numa burocracia formal e legal (no sentido de Max Weber), ocupar-se-ia sempre em aliciar e locupletar-se dos cidadãos, retirando-lhes a criatividade e forças produtivas, ingerindo-se no que concerne apenas ao livre-arbítrio dos homens. Enfim, domesticando ao Se todos se dispusessem a desobedecer às regras de convivência básica no trânsito, por que, cargas d’água, seríamos nós os defensores de uma lei emasculada e inimputável? 94 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 seu jaez a liberdade espoliada aos seus atores políticos. Curiosamente, no caso brasileiro, o pensamento liberal encontra-se mais à vontade com o filósofo Jean-Jacques Rousseau do que com os ingleses... E o pensamento de esquerda prefere um Estado mais presente na vida do cidadão, Tópos, que os herdeiros de Rousseau jamais admitiriam, incluindo os arautos de Marx que, aliás, glorificavam o pensador suíço como um marxista avant la lettre... Mas, sob uma ótica um pouco menos formalista do que aquela que a filosofia política costuma nos ensinar, devemos buscar na sociologia recursos teóricos mais ricos para responder de maneira mais complexa a nossa indagação inicial. O ethos moderno caracteriza-se por uma busca desenfreada do prazer sensorial e tudo o quanto a cultura tecnológica do entretenimento pode oferecer de diversão ao ser humano. Os sociólogos costumam chamar a essa cultura pragmática e individualista de narcisismo. Trata-se do final da metafísica entendida aqui não no sentido Heideggeriano [do filósofo alemão Martin Heidegger], mas na certeza do homem científico de que os deuses estão definitivamente mortos e que nossas existências terrestres devem enfrentar com coragem e altivez o silêncio e o desamparo cósmicos. Dirá Jean-Paul Sartre para não agirmos de má-fé, desobrigando-nos de nossas imensas vicissitudes morais. Pois bem, como recusar ao homem moderno seu quinhão de liberdade absoluta, uma vez que ele só tem essa vida para realizar plenamente sua existência? Caberia ao estado democrático de direito esse papel? Como convencer as pessoas que querem fazer a diferença (nossa indústria cultural idolatra as corruptelas mal compreendidas do american way of life) de que elas devem sofrear seus desejos sejam eles quais forem... as melhores roupas e viagens e automóveis... o prazer da carne, do sexo e das drogas? Por que a marcha da maconha mobiliza mais a juventude brasileira do que a tragédia da educação ou o desatino agrário? A resposta parece ser porque a individuação moderna baseia-se no desaparecimento por completo do outro, portanto, na vida que um dia a sabedoria grega chamou de esfera pública do agir político, a Pólis. Interessa ao sujeito moderno apenas ele mesmo, já que o mundo dos outros significa apenas um empecilho intratável à felicidade menna Interessa ao sujeito moderno apenas ele mesmo, já que o mundo dos outros significa apenas um empecilho intratável à felicidade pessoal. Sob o manto desse ethos individualista, o que devemos esperar do Estado brasileiro? pessoal. Sob o manto desse ethos individualista, o que devemos esperar do Estado brasileiro? Parece-me indiscutível que o espaço privado de nossa existência deve ser preservado de qualquer maneira. Faz parte das grandes conquistas morais da modernidade iluminista o direito ao voto e à escolha religiosa, por exemplo. Entretanto, a racionalidade intrínseca à ordem democrática garantidora da liberdade possível ergue-se soberana no que concerne à regulação de nossos comportamentos públicos. Se a ordem legalmente constituída deliberar que crianças não devem mais aparecer em novelas televisivas ou em peças publicitárias, devemos reconhecer que essa é uma demanda legítima do poder estatal. Em nome de consensos éticos (a heterogeneidade da sociedade civil), o Estado deve e tem por obrigação sobrepor-se à iracunda e desenfreada vontade do mercado de locupletar-se sempre que possível... Por fim, em nossa modernidade tecnológica, a humanidade, em sua sede insofreável por liberdade pessoal, tem no controle democrático da sociedade civil sobre o poder constituído a legitimidade das leis. O nosso motorista parado no trânsito de São Paulo deve, para que haja vida civilizacional possível, respeitar a fila que o faz perder a vida no congestionamento. Paradoxo? Sim! Afinal de contas, nosso motorista quer liberdade, mas ele é livre apenas para cumprir as normas e as leis. Ou, se não, para consumir segundo os padrões mercadológicos da ordem capitalista de produção. Fora das normas, das leis e do consumo não há vida possível. Ou deveríamos afirmar, junto a Rousseau, não há vida autêntica possível, pois as sociedades baseiam-se na coerção externa e na disciplinirização interna dessa criatura intratável que é o ser humano para forjar o convívio civilizacional – ad baculum... Entretanto, como bem nos ensinou o filósofo marxista Walter Benjamin, para compreendermos o ser humano, não basta possuirmos uma razão analítica e crítica disposta a verificar seu modus vivendi. Para compreendermos em verdade essa criatura perdida na solidão cósmica, devemos amá-la sem qualquer tipo de esperança... Eduardo Oyakawa Escritor, publicou Lâminas do cotidiano, O azul dos dias, e A espiritualidade da palavra, pela Stilgraf editora. Professor de filosofia e lógica da argumentação na ESPM maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 95 consumo O espelho da sociedade contemporânea Narcisismo, consumo, relações de pertencimento e de referencialização e a psicanálise são caminhos para compreender o sujeito contemporâneo inserido em uma sociedade multifacetada, seletiva, consumista, fragmentada, grandiloquente e antagônica em seus grupos Sandra Cunningham Por Paulo Roberto Ferreira da Cunha 96 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 A nte as incessantes transformações que vive o ambiente da comunicação, é oportuno construir relações entre pensamentos sociais, olhar psicanalítico e questões que cercam o sujeito contemporâneo. É possível, por exemplo, encontrar afinidades entre a constituição do sujeito em sua cepa narcísica e as caracterizações de forças que ora regem a sociedade ocidental, em especial o consumo e as relações de pertencimento e referencialização que emergem na contemporaneidade, o que pode sinalizar estratégias a serem consideradas pela comunicação A premissa do espelho O psicanalista francês Jacques Lacan, em seu estudo denominado Estádio do espelho, explica que as bases do que se constituiria em relações de referencialização, ainda na mais tenra idade do sujeito, nada mais é do que o reflexo de um amor incontinente. Isso ocorre quando uma mulher se debruça sobre o berço e fala coisas doces para seu bebê. Ela lembra de recomendações ancestrais sobre a importância, para a criança, de ouvir a suave voz de sua mãe a acalmar e a demonstrar seu amor. Afinal, por quanto tempo mais ela poderia cuidar integralmente de sua vida, protegê-lo, afastá-lo dos riscos do mundo? Ali, deitado no berço, ele pode ser cuidado, amado e sentir o que ela deseja de melhor para ele. Que seja sempre tão amoroso, lindo e fofo como agora o é. Que saiba pedir o que lhe é devido, como quando chora pelo leite ou pela nova fralda. Que seja feliz. Que seja forte para segurar as barras do mundo tão cruel que um dia há de enfrentar. Neste gesto habitual, que compõe o dia a dia de tantas mães, pais e filhos, o retrato lindo de uma família amorosa, transpira, entretanto, a relação que acompanhará essa criança por toda a sua vida. Na incapacidade de se perceber ainda como sujeito, sentindo um mundo como se ele fosse o mundo também, passa a ver esse mundo – e, portanto, a si mesmo – a partir do olhar e da voz dessa mãe. A projeção feita sobre ele, no melhor e mais nobre dos sentidos, se tornará constituinte de sua psiquê. Primeiro, com a visão de si pela descrição feita por sua mãe – ou por quem desempenhar a função da maternidade –, como um corpo que é visto por alguém e, a partir da imagem sobre ele, constituindo-se por essa premissa e lembrando que essa reação já lhe garantiu bons ganhos afetivos em retorno. Mais à frente, alguém “Somente pelo fato de viver com outros homens, os seres humanos ficam presos, irreversivelmente, em um jogo de identificações que os impelem a repetir aquela relação com a imago antecipatória” Norberto & Célia Bleichmar nomeará o bebê para o bebê – tal como em um espelho “aquele é o bebê!” –, que causará estranheza a princípio, pois a sua relação com seus pares gerou a percepção de que os outros não são eles, mas sim parte dele, ou melhor, ele, o bebê. Este registro se consolidará em percepção um pouco mais tarde, entre os seis e os dezoito meses de idade, quando o bebê perceber que não é outra pessoa no espelho ou na fala das pessoas que o cercam, mas que é ele separado. Um dos aspectos que tornam esta dialética impressionantemente forte e atual é a questão da identificação, que se torna elemento constitutivo desse sujeito. Há uma ilusão e uma imagem à qual ele ficará vinculado e da qual tentará se aproximar. E, como Norberto e Célia Bleichmar detalham no livro A psicanálise depois de Freud (Editora Artmed, 1992), “somente pelo fato de viver com outros homens, os seres humanos ficam presos, irreversivelmente, em um jogo de identificações que os impelem a repetir aquela relação com a imago antecipatória”. O mesmo que um dia, quando bebê, participou da constituição do mesmo sujeito, naquele momento fragmentado e narcisicamente voltado apenas para si, mesmo ainda sem a percepção de si. O espelho torna-se, pois, uma boa metáfora para o reflexo do outro em mim e o reflexo de mim mesmo – que é um reflexo, e não o eu de verdade. O sujeito e a sua identidade A inspiração no pensamento de Jacques Lacan permite trazer à discussão visões sobre a constituição do sujeito na denominada contemporaneidade. Tomando-se o ponto de partida proposto por Stuart Hall, em seu livro A identidade cultural na pós-modernidade (DP&A Editora, 2006), ocorre o surgimento de novas identidades e da maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 97 consumo fragmentação contemporânea do homem tendo base no contexto histórico e econômico, oriunda de mudanças sociais ocorridas no século 20. Pouco a pouco, elas “fragmentaram paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade que, no passado, tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais”, afirma o autor. Com isso, a ideia de mudança nas identidades pessoais vai de encontro à ideia de sujeito integrado, gerando a perda de um “sentido de si” e, consequentemente, a sensação de deslocamento ou de descentramento. Publicada em 2006, a obra de Hall detalha três concepções de identidade. A primeira é a do sujeito do iluminismo, baseada “numa concepção da pessoa humana como indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação [...], cujo centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa”, apontando assim para uma concepção mais individualista. A segunda é a do sujeito sociológico, expressão da complexidade do mundo moderno trazido pela pós-Segunda Revolução Industrial, compreendida como concepção “interativa”, amparada pela identidade como fruto da interação entre o eu e a sociedade, preenchendo o espaço entre o mundo pessoal e o mundo público. E a terceira é a do sujeito pós-moderno, que aponta para uma “celebração móvel, formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos apresentados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”. Dessa forma, a constituição desse sujeito, também denominado como contemporâneo, expõe, por sua vez, uma série de conflitos. A enganosa percepção de que existe uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é nada mais nada menos do que uma reconfortante história sobre si mesmo, diante da “multiplicidade O sentimento de viver algo exclusivo e de estar entre – não necessariamente ser um dos – os escolhidos agrega valores que explicam a vida e suas escolhas para o próprio sujeito 98 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 Vladimir Wrangel Quanto maiores são as cidades, os países, os grupos sociais, maiores são também os esforços para fazer parte e não ficar à margem da sociedade. Pertencer significa ter uma identidade comum, avalizada, menos vulnerável a críticas e ao abandono – algo como não se perder na multidão ou tornar-se alguém desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente”, como Hall descreve em seu livro, aqui anteriormente citado. Assim, pode ser observado que a teoria social traz à discussão a importância dos valores culturais que, por sua vez, representam a sociedade e os grupos que a constituem. A cultura, que é ferramenta para a perpetuação dos valores sociais transmitidos desde tenra idade pela mãe ao bebê, também é a base para a identificação de integrantes de um mesmo grupo social. A situação contemporânea amplificou essa relação através dos códigos que regem o pertencimento aos grupos, cada vez mais midiatizados e vendidos abertamente pela comunicação de massa e pelos valores inclusos no consumo. Quanto maiores são as cidades, os países, os grupos sociais, maiores são também os esforços para fazer parte e não ficar à margem da sociedade. Pertencer significa ter uma identidade comum, avalizada, menos vulnerável a críticas e ao abandono – algo como não se perder na multidão ou tornar-se alguém. Pode-se dizer que o sentido é de “seduzir e abusar por meio do jogo da aparência” – como cita Gilles Lipovetsky em A era do vazio (Editora Manole, 2005) –, de certa forma envolto na nuvem da particularização, da interação e da espontaneidade. Verbalizase que o “afetado e o padronizado” não têm mais espaço, mas para fazer parte de uma tribo há de seguir seus códigos. Parte desses códigos é representada por posse e bens de consumo. No livro A arte da vida (Editora Zahar, 2009), Zygmunt Bauman afirma que “além de uma fragrância incomum, eles oferecem um emblema olfativo de magnificência e pertencimento ao grupo dos magnificentes”. Isso gera um “certo tipo de êxtase e outros semelhantes [que] combinam o sentimento de pertencimento a uma categoria exclusiva – um grupo vetado a quase todos os outros, como um distintivo do supremo bom gosto, discernimento e savoir-faire (demonstrados pela exibição de objetos ou pela visita a lugares que são fechados para os outros)”. Em suma, o sentimento de viver algo exclusivo e de estar entre – não necessariamente ser um dos – os escolhidos, agrega valores que explicam a vida e suas escolhas para o próprio sujeito, em um moto-contínuo incessante, capaz de sugerir até a tão discutida sensação de aceleração da vida. Por sua vez, Michel Maffesolli, em O mistério da conjunção – ensaios sobre comunicação, corpo e socialidade (Editora Sulina, 2005), aponta para outro traço relevante da contemporaneidade, acerca dos elementos que pontuam a vida cotidiana e dos jogos que a compõem, visto que sua manutenção e sua força se preservam na pouca importância deles mesmos, possuindo a “permanência do maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 99 A ideia de mudança nas identidades pessoais vai de encontro à ideia de sujeito integrado, gerando a perda de um ”sentido de si” e, consequentemente, a sensação de deslocamento ou de descentramento 100 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 Pukhov Konstantin consumo insignificante”. Essa matriz revela que o poder para o sujeito – envolto pela efemeridade e fragmentado pelas relações sociais – é o “centro de diversos interesses e a posse de bens ou a glória e as honras são desesperadamente procuradas, o que [pode ser chamado] de potência social”, deixando de lado, com isso, o que realmente pode ser considerado a trama da vida desse sujeito. Pode-se afirmar que o poder do consumo e da referencialização possibilita, por sua vez, a compreensão de um combustível narcísico, onde há quem quer ser visto e quem quer ser a referência para o outro, sem que necessariamente assumam apenas um desses papéis. O que por si só já é material importante para estudo. O espelho contemporâneo Para relacionar as premissas do Estádio do espelho – e o narcisismo inerente dessa construção – com características discutidas no momento social contemporâneo, cabe resgatar um dos pontos levantados por Lacan. O psicanalista francês refere-se à busca pela aprovação externa, que será uma constante, graduada de formas diferentes, a partir de cada história particular, mas presente e fortemente estimulada pelas relações grupais. É cultural, social e constituinte. Portanto, conclui-se que há relevância no estudo dos papéis sociais a partir da necessidade de inserção e de pertencimento dos integrantes de grupos e de tribos. Entre os pontos relevantes também estão os elementos que colaboram para concretizar essa experiência – e que nem sempre conseguem sustentá-la –, tais como o consumo, a referência, o modelo idealizado de modus vivendi, e a posição do sujeito ante essas escolhas. A relevância, no caso, é a confluência dessas características com a visão da vida contemporânea imersa no narcisismo. Este, por sua vez, pode aparecer como indulgência voltada ao consumo, necessidade excessiva de exposição em seu meio e um clamor discriminatório de sua pessoa – que está inserida em um grupo. Logo, vale observar que o consumo desmensurado tanto pode servir como um alento a frustrações de batalhas não vencidas quanto de suporte a recalques que teimam em retornar. Também pode ser prova de uma aproximação do homem ao imaginário que o persegue – como ser um herói ou um vencedor. O segundo ponto a ser destacado é a personalização que, por sua vez, estimula O consumo desmensurado tanto pode servir como um alento a frustrações de batalhas não vencidas quanto de suporte a recalques que teimam em retornar. Também pode ser prova de uma aproximação do homem ao imaginário que o persegue – como ser um herói ou um vencedor as raízes narcísicas desse sujeito, fazendo “da sedução uma representação ilusória do não vivido” – como afirma Gilles Lipovetsky –, isso que prolonga a oposição entre o real e a aparência. Esse fato torna o indivíduo mais solitário e com mais necessidade de se sentir incluído. Seu refúgio pode estar exatamente numa capa narcísica, onde se bastar justifica sua incapacidade de ser-se pleno em um cenário tão abstrato e desprovido dos valores um dia sussurrados em seu ouvido, ainda no berço. Por fim, resgatando o processo do espelho defendido por Lacan, a fragmentação não é apenas fruto da contemporaneidade, mas, sim, elemento constitutivo do psiquismo humano. Ao que os autores Hall, Bauman, Lipovetsky e Maffesoli apresentam como sinalizadores, pode-se compreender como uma percepção de seu tempo, exterior e não interna. Portanto, sem se ater a tempos precisos e definidos, a fragmentação percebida na maturação dos bebês, que permanece por toda a vida, encontra os braços abertos de uma sociedade multifacetada, seletiva, consumista, grandiloquente e antagônica em seus grupos. E essa sociedade cobra um pedágio para o sujeito se constituir como parte dela. Valores que assumem o papel da mãe sussurrante, para sujeitos que se tornam bebês no seu dia a dia, na eterna busca por aprovação, por referências e por sua inclusão. Matéria-prima para o marketing e para a comunicação. Paulo Roberto Ferreira da Cunha Professor de planejamento estratégico e de comunicação integrada da ESPM-SP, psicanalista, coach, publicitário e autor do livro O cinema musical norte-americano – gênero, história e estratégias da indústria do entretenimento maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 101 economia A era da cooperação Os interesses empresariais e coletivos analisados sob o ponto de vista da nova economia institucional e dos custos de transação Por Jonas Cardona Venturini e Marcello Noetzold Mafaldo A o se analisar a economia institucional, destaca-se seu caráter enfático como um estudo abrangente das instituições, na qual considera o mercado um resultado da interação complexa dessas várias instituições (por exemplo, indivíduos, firmas, Estados, normas sociais). Não obstante, essa corrente do pensamento econômico incitou novas possibilidades de análises dos fenômenos econômicos, sem perder o eixo estrutural que a pautou, a exemplo da nova economia institucional. 102 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 cienpies design Nessa linha de raciocínio, a corrente de pensamento da nova economia institucional delimita o seu escopo de análise teórica a partir das contribuições da Teoria dos Custos de Transação (TCT). Também chamada de economia dos custos de transação, a TCT tem uma trajetória de desenvolvimento teórica marcada por duas obras principais. A primeira delas, reconhecida como a obra originária, é o artigo “The nature of the firm”, de Ronald Coase, publicado na revista Econômica, em 1937. A segunda é Markets and hierarchies: analysis and antitrust implications, livro de Oliver Williamson, publicado em 1975, pela editora The Free Press. Com essas obras, ambos os autores foram laureados com o prêmio Nobel de Economia. Coase recebeu o título em 1991 e Williamson, em 2008. Corroborando a discussão que vem sendo estabelecida, Coase (1937) argumenta que sua teoria encaixa-se na abordagem tradicional de análise da firma e pode ser operacionalizada pelo instrumental marginalista, na qual defende que os desenvolvimentos da microeconomia neoclássica nesse longo intervalo de tempo não levaram em conta suas ideias. Seu trabalho, como ele próprio diz, é muitas vezes lembrado, mas não lido com a devida atenção. Assim sendo, na década de 1970, Williamson retoma a ideia de Coase, sobre a qual vai trabalhar com o objetivo de construir uma teoria da evolução das firmas. Com Markets and hierarchies, Williamson (1975) apresenta a ideia básica do modelo econômico que estava a desenvolver: mercados e hierarquias são formas alternativas de organizar a produção capitalista, estando o tamanho da firma limitado à sua capacidade não só de produzir um bem com menores custos que aqueles incorridos na produção automatizada do mercado, mas também em ter menores custos, somados, de produção e de transação que correspondem aos demais custos incorridos na passagem do bem entre interfaces tecnologicamente distintas. Seus trabalhos afluem para The economic institutions of capitalism, publicados em 1985, muito embora já tenham influenciado outros autores a buscar tanto os desenvolvimentos teóricos incrementais como meios de operacionalização e estudos de caso para a sua teoria, como os estudos de Granovetter, Barney e Hesterly, Sandler, entre outros. Nela, o enfoque da TCT é utilizado para explicar o desempenho de diversas instituições capitalistas e, em particular, o movimento dos limites da firma. Reunindo trabalhos publicados na década passada, Williamson lança maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 103 economia rarquia, deve-se a Thorelli, no seu artigo publicado em 1986, a aproximação do conceito da forma híbrida de Williamson com os estudos de relacionamentos interorganizacionais. É bem verdade que no estudo original de Thorelli (1986), o autor ainda enquadrava os diferentes relacionamentos interorganizacionais como redes de empresas. Somente nos dias atuais é que a classificação está mais clara para os acadêmicos e pesquisadores. Para Thorelli, a forma híbrida passava por um processo cooperativo entre empresas. Nessa altura da discussão e dado um esclarecimento sobre qual lente de análise será pautado esse artigo, retoma-se o argumento inicial: “A nova economia institucional e o papel das instituições – os interesses das empresas não devem conflitar com os interesses coletivos”. Diante do explicitado e ancorado no arcabouço teórico da Teoria dos Custos de Transação, defende-se o papel de uma estrutura híbrida para o entendimento e para a convergência dos propósitos organizacionais/ empresariais e coletivos. Incutido no argumento de Thorelli, uma das formas de estruturas de governança que emerge na estrutura híbrida é a governança de rede. Segundo Candace, Hesterly e Borgatti (1997, p. 914), governança de rede “implica a existência de um grupo específico, persistente e estruturado de empresas autônomas (bem como agências sem fins lucrativos) envolvidas na criação de produtos ou serviços baseados em contratos implícitos e abertos, em condições de se adaptar às contingências ambientais e coordenar Mercado e salvaguardar as trocas. Tais contratos Híbrida são elos sociais e não legais”. Para Fombrun (1982), redes são como Hierárquica um conjunto de nós interconectados, possibilitando que esse conceito amplo seja utilizado em diversas áreas do conhecimento. Nitin Nohria (1992) afirma que, embora não constitua uma ideia recente, visto que o conceito de rede é empregado na teoria organizacional desde o começo do século 20, a união de empresas com o objetivo de obter soluções coletivas, que individualmente seriam impossíveis, vem recebendo uma maior atenção dos estudos e práticas organizacionais nas últimas décadas. o que considera a última peça de sua trilogia, The mechanisms of governance (Williamson, 1996). O estudioso baseia as suas contribuições da TCT acerca de premissas centrais, tais como a racionalidade limitada, a assimetria de informação e o oportunismo. Ele resume o oportunismo a um comportamento como mentir, roubar, lograr, formas sutis de enganar, revelar informação de forma distorcida ou incompleta, ofuscar e confundir. É conveniente lembrar que não são todas as pessoas que se comportam de maneira oportunista o tempo todo, mas sim algumas e algumas vezes, o que, mesmo dessa forma, pode ser um grande problema para o desenvolvimento das redes. Os custos de transação também são influenciados pela especificidade dos ativos, frequência das transações, incerteza e complexidade do ambiente e quantidade de agentes envolvidos na transação. Os atores econômicos irão escolher a estrutura de governança (mercado, híbrida ou hierarquia) capaz de reduzir possíveis problemas transacionais, criados pela racionalidade limitada, de um lado, e pela ameaça do oportunismo, de outro, a um menor custo. A figura abaixo apresenta com propriedade as diferentes estruturas de governança mencionadas. Ainda no que se refere à estrutura de governança, por mais que se deem créditos acadêmicos a Williamson no que se refere à forma híbrida entre mercado e hie- Estrutura de coordenação Custos da estrutura de governança e especificidade de ativos Especificidade de ativos Fonte: Williamson (1991), adaptada pelos autores 104 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 Ao final de 2007, mais de 130 redes haviam sido lançadas contendo um número de aproximadamente três mil empresas trabalhando sob a égide da cooperação Nesse contexto, as empresas possuem um sentido de pertencer a um grupo, com a existência de processos de seleção e as relações de cooperação duradouras e, em grande parte, mantidas por vínculos sociais e não contratuais, o que não significa que esses dois aspectos sejam excludentes. Para entender o processo de governança, é necessário considerar a dimensão da estrutura desse novo tipo de configuração organizacional e a dimensão da ação coletiva. No caso das redes de empresas, a governança e os seus mecanismos são condições sine qua non para sua existência, especialmente porque a existência de uma rede acena com relações de cooperação de longo prazo. Uma afirmação básica da teoria do custo de transação é que mercados e hierarquias são instrumentos alternativos para completar um conjunto de transações e, como tais, são frequentemente chamados “mecanismos de governança”. A globalização dos mercados tem trazido oportunidades e ameaças para as empresas, independentemente de seus portes. Assim sendo, a competição empresarial no âmbito global ampliou-se de maneira expressiva nos últimos anos. Por muito tempo, a competição dominou o comportamento das firmas e não só representou o combustível para a prática da gestão estratégica, como também estimulou a maioria dos ensaios acadêmicos no campo da estratégia. Competir significava lutar contra adversários que deveriam ser derrotados ou eliminados. Nohria apontou três razões para o aumento do interesse no tema “redes de empresas”: a) a emergência da “nova competição”, como está ocorrendo nos distritos industriais italianos e no Vale do Silício. Se o “velho” modelo de organização era a grande firma hierárquica, o modelo da organização considerada característica da “nova competição é a rede de inter-relações laterais intra e interfirmas; b) o surgimento das tecnologias de informação e comunicação (TICs) tem tornado possível uma maior capacidade de inter-relações entre firmas dispersas; e c) a consolidação da análise de redes como uma disciplina acadêmica, não somente restrita a alguns grupos de sociólogos, mas expan- dindo para uma ampla interdisciplinaridade dos estudos organizacionais. Sob a égide do olhar empírico, destaca-se a constituição do Programa Redes de Cooperação da antiga Secretaria do Desenvolvimento e dos Assuntos Internacionais (Sedai), hoje abrigado na Secretaria da Economia Solidária e Apoio à Micro e Pequena Empresa (Sesampe). O programa vem implementando com certo grau de sucesso a cultura das redes de micro, pequenas e médias empresas. No final do primeiro ano do programa, sete redes foram formadas. Passados cinco anos, esse número subiu para 120 redes de cooperação em todo o Estado do Rio Grande do Sul. Ao final de 2007, mais de 130 redes haviam sido lançadas contendo um número de aproximadamente três mil empresas trabalhando sob a égide da cooperação. Ainda, o Programa do Estado do Rio Grande do Sul Redes de Cooperação, através da Sedai (2010), aponta que no somatório de atividades, desde seu início no ano 2000, o programa constituiu e apoiou mais de 220 redes de cooperação, com um total de 4,7 mil empresas integradas, gerando e/ou mantendo mais de 61,1 mil postos de trabalho diretos e alcançando em conjunto um faturamento anual superior a R$ 5 bilhões. À luz da teoria dos custos de transação, preconizada pela visão de Thorelli, permite considerar que as relações empresariais, principalmente os movimentos de integração vertical, não são os únicos modelos capazes de gerar resultados expressivos. Mas também a forma híbrida se apresenta como um mecanismo capaz de congregar os interesses coletivos, pelas relações cooperativas, aqui comprovadas com os resultados do programa Redes de Cooperação. Por fim, os três preceitos de Nohria se justificam com os preceitos de Williamson, no estabelecimento dos vínculos de reciprocidade entre os agentes integrantes, uma vez que os desafios e adversidades entre essas empresas são os mesmos, o que favorece a capacidade de inter-relações entre elas, fortemente dissipado em debates interdisciplinares, não restritos aos “grupos de sociólogos”. Tal abordagem evidencia o ganho produtivo e mercadológico dos agentes de mercado, favorecendo frequentemente as políticas de incentivos às inovações e de defesa da concorrência. Jonas Cardona Venturini e Marcello Noetzold Mafaldo Professores da ESPM-Sul maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 105 leitura recomendada História do rádio no Brasil Magaly Prado Livros de Safra, São Paulo – 2012 480 p. – R$ 75,00 Esta obra chega às prateleiras em bom momento, já que em 2012 o rádio completa 90 anos de história no Brasil. O livro resgata a importância histórica do meio, retratando os principais momentos do rádio e dos profissionais que encantaram plateias e influenciaram diretamente na formação cultural brasileira. Apresentando imagens históricas e inéditas de personagens que marcaram época no país, o livro conta com uma ”linha do tempo” com os principais acontecimentos desta que já foi a maior mídia do Brasil. Por apresentar um conteúdo diferenciado, a publicação deve se tornar leitura de referência para profissionais e estudantes, além de fonte de consulta permanente para os apaixonados pelas notícias, músicas e ações de entretenimento que o rádio oferece. Magaly Prado é jornalista, radiomaker, doutora em comunicação e semiótica, professora das universidades PUC-SP, ESPM-SP, ECA-USP e da Universidade de Tuiuti (UTP). 106 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 Competência: a chave do desempenho Estratégias de marketing digital e e-commerce Editora Atlas, São Paulo – 2012 168 p. – R$ 35,00 Editora Atlas, São Paulo – 2012 224 p. – R$ 45,00 Diante do desafio da globalização, as organizações já não podem mais contratar e manter no seu quadro de pessoal aqueles que lhes são simplesmente fiéis. É indispensável contar com colaboradores que sejam acima de tudo competentes, isto é, que estejam preparados e dispostos para ir cada vez mais longe. Como transformar a competência de cada indivíduo que compõe o seu público interno em um dos mais importantes diferenciais competitivos de sua empresa é o que ensina a autora. Segundo ela, a chave para explorar o tema é aliar o potencial interior do ser humano a um certo tipo de predisposição interior consciente, o que exige conhecimento ligado a predisposições afetivo-emocionais. O universo digital tem trazido profundas transformações para o mundo dos negócios. O impacto direto dessa verdadeira revolução virtual é sentido nos relacionamentos, na comunicação e no entretenimento. O crescimento da participação das pessoas na mídia, a agilidade de interação, a ampliação do poder de barganha dos consumidores e a mudança nas relações com as organizações estão entre as principais mudanças. De forma objetiva, o livro apresenta uma visão sobre as diversas estratégias de marketing digital e e-commerce, por meio da exposição de artigos, pesquisas e casos, tanto de multinacionais, quanto de médias e pequenas empresas nacionais, somados à experiência da autora junto ao mundo digital. Cecilia Whitaker Bergamini Cecília Whitaker Bergamini é bacharel em psicologia clínica pela PUC-SP, professora da FGV e consultora de empresas. Sandra R. Turchi Sandra R. Turchi é administradora de empresas formada pela FEA-USP, que há mais de 20 anos atua na área de marketing nos setores de varejo, financeiro, educacional e serviços. O fenômeno do empreendedorismo Você não pode demitir todo mundo Bordões, slogans & conceitos na publicidade brasileira Editora Saraiva, São Paulo – 2012 392 p. – R$ 79,00 Editora Saraiva, São Paulo – 2012 240 p. – R$ 34,90 Editora Unisul, Santa Catarina – 2012 289 p. – R$ 30,00 O fenômeno do empreendedorismo vem se espalhando pelos quatros cantos do mundo, em ritmo acelerado. O número de indivíduos que desejam criar o seu próprio negócio no Brasil cresce dia a dia. Mas para concretizar esse sonho, o candidato a empreender tem de vencer uma verdadeira corrida de obstáculos até conseguir ser dono do próprio negócio. Pensando nesse público, o autor deste livro mostra como desenvolver esse espírito mais empreendedor. Inovação e incubação de empresas também estão entre os temas abordados, uma vez que o empreendedorismo, adotado como opção de vida, será a alternativa profissional para muitos indivíduos nos próximos anos. Este livro é ótimo para os novos chefes que precisam de ajuda, pois o autor compartilha crônicas e estratégias reais e casos interessantes ocorridos durante seus 20 anos de gestão. O autor lembra que, quando assumiu a função de editor, passou a ser responsável por uma equipe de repórteres ”difíceis” e não tinha a menor noção de como chefiá-los. A partir daí, ele desenvolveu uma espécie de manual do chefe, com dicas para facilitar as tomadas de decisão no dia a dia. Uma delas é descobrir o que cada um de seus colaboradores faz melhor. Outro ensinamento aponta que alguns chefes pensam que a melhor forma de cortar alguém da equipe é deixá-lo irritado a ponto de ele pedir as contas. Mas o que é mais humano: demitir o colaborador ou deixar que ele se definhe em um cargo em que ele não tem chance de evoluir? Este é um livro que reconhece o slogan como uma palavra velha e desgastada, mas que ainda funciona. De acordo com a obra, o conceito pode conter uma personalidade marcante e oferecer algo novo para as marcas, permitindo aos anunciantes se estabelecerem na cabeça do consumidor. Para explicar essa estratégia, a obra apresenta quase cinco mil slogans e conceitos já experimentados pelo mercado. Essa é uma coletânea que pretende ser uma importante ferramenta auxiliar para quem cria, analisa e julga o trabalho do publicitário. O livro pode ser comprado diretamente na Editora Unisul (www.editora.unisul.br). Emanuel Leite Emanuel Leite é pós-doutor em inovação e empreendedorismo, doutor em ciências da engenharia pela Universidade do Porto, mestre em administração pela Universidade Federal da Paraíba. Hank Gilman Hank Gilman é editor-executivo adjunto da revista Fortune. Ao longo de sua carreira, trabalhou no Boston Globe, Wall Street Journal, Newsweek e Beaufort Gazette. Elóy Simões Elóy Simões é publicitário, jornalista e professor no curso de comunicação da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul). Foi redator, diretor de criação, diretor de operação e assessor de imprensa. maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 107 leitura recomendada O código da superação – uma fascinante jornada além da conquista História do jornalismo – itinerário crítico, mosaico contextual Editora Gente, São Paulo – 2012 152 p. – R$ 19,90 Paulus, São Paulo – 2012 448 p. – R$ 41,00 O livro trata dos desafios contemporâneos que qualquer ser humano, líder de sua própria vida, deve enfrentar com consciência e preparo. O executivo, o dirigente, o gestor, o empresário, o educador, cada profissional em si precisa superar a vontade do contínuo aperfeiçoamento da sua vocação, além de conquistar competências novas. Para isso, é necessário superar a si mesmo, as barreiras da cultura social, as incertezas e as dúvidas do ambiente, aprender a ter êxito em equipe, em times criativos e, além de tudo, inovar, saber liderar com sustentabilidade e construção de valor. Segundo o autor, isso só é possível se cada pessoa perseguir seu próprio código, que, ao ser descoberto e acessado, o permite evoluir de forma acelerada numa competição em que velocidade e mudança são as regras do jogo. A obra trata sobre a disciplina História do Jornalismo e procura situar os futuros praticantes do ofício diante dos acontecimentos que marcaram o desenvolvimento das rotinas de produção, estimulando as novas gerações a registrar com fidedignidade os fatos de interesse público, contextualizando-os no tempo e no espaço. O leitor encontrará profundas reflexões sobre os desafios da prática da profissão nos dias atuais. Na expectativa de ilustrar os caminhos percorridos pelo jornalismo para se adaptar às mudanças, o autor selecionou e correlacionou, na literatura de campo, as fontes mais adequadas para os novos praticantes compreenderem suas alterações, continuidades e ressurgências no século 21. O título também explora figuras importantes do setor, como Hipólito da Costa, considerado o patrono da imprensa brasileira. José Luiz Tejon José Luiz Tejon é publicitário, jornalista, palestrante, autor e coautor de 28 livros. É professor do Núcleo de Agronegócio da ESPM. 108 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 José Marques de Melo José Marques de Melo é jornalista, escritor, doutor e professor emérito da USP. Gestão da comunicação pelo anunciante Roberto Corrêa Global Editora, São Paulo – 2012 189 p. – R$ 32,00 Observando que o relacionamento entre cliente e agência tem se mostrado bastante difícil, o livro aborda questões práticas, conceitos e procedimentos que podem vir a ajudar o trabalho daqueles que têm a função de solicitar, avaliar, criar, produzir e veicular campanhas de comunicação. O texto aborda alguns aspectos da atividade publicitária, explica o funcionamento da agência, o relacionamento do anunciante com a agência, além de conceituar a comunicação integrada de marketing, a comunicação empresarial e a importância da marca para o sucesso de produtos e empresas. Com esse trabalho, o autor pretende mostrar como um relacionamento mais profícuo pode conduzir a melhores resultados na produção de peças publicitárias, propiciando um ambiente de colaboração e trabalho conjunto. Roberto Corrêa é doutor em marketing pela FGV, economista, publicitário e professor da ESPM. Autor de vários livros, trabalhou em agências de propaganda e em indústrias anunciantes. COMUNICADO ACADÊMICO A ESPM e a Berlin School of Creative Leadership tornam público, em especial para conhecimento dos interessados da comunidade acadêmica brasileira e internacional, um acordo entre as instituições. Esse acordo tem o objetivo de estabelecer cooperação acadêmica por meio de atividades de interesse mútuo. Em breve, serão divulgados os novos projetos e programas dessa parceria. São Paulo, junho de 2012 J. Roberto Whitaker Penteado Diretor-presidente ESPM Michael Conrad Presidente Berlin School of Creative Leadership www.espm.br Sumário Regulamentação e responsabilidade Roberto Civita pág. 10 Ives Gandra da Silva Martins pág. 28 A polarização das posições e o risco dos extremos, quando se trata de opinar sobre o papel do Estado como regulador e disciplinador do comportamento social. Neste artigo, o presidente do conselho de administração e diretor editorial do grupo Abril também mostra os riscos das posições extremadas, citando como exemplo a extinta União Soviética e o homem natural de Hobbes que, por meio da liberdade total, regride à selvageria. Felizmente, como prossegue o autor, vivemos em um mundo de pactuações em que a liberdade de um termina quando atinge os direitos do outro, agindo o Estado como regulador dessas pendências. Na base dessa delicada estrutura estão dois elementos fundamentais que o Estado deve respeitar: a liberdade de imprensa e a livre iniciativa. A evolução do Estado para os regimes democráticos coloca a necessidade de haver um equilíbrio entre o poder, o povo e o indivíduo. Como o homem no poder não é confiável, podendo com ele confundir-se, e como a sociedade ainda carece de um conhecimento mais amplo do que seja a autonomia do poder, tendem os governantes a ser manipuladores nos regimes em que as oposições se enfraquecem na opinião pública. Quando isto acontece, os direitos individuais sempre correm risco, enquanto os textos constitucionais e a vivência da democracia são absorvidos pelos direitos coletivos. Para este renomado jurista brasileiro, a verdadeira democracia é aquela em que governo e a sociedade não tiram do indivíduo o direito de ser, pensar e agir com liberdade, mas dentro da lei. A propaganda comercial é vítima de bullying Quem é o dono do Estado? Gilberto Leifert pág. 22 Na teoria, a Constituição de 1988 acabou com a censura e restabeleceu as liberdades de pensamento, criação, expressão e informação, assegurando a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor. Na prática, a liberdade de expressão continua ameaçada por inúmeros projetos de lei que visam coibir a publicidade em determinados setores da economia. É isso que mostra o presidente do Conar neste artigo, que traça um panorama da Indústria da Comunicação Brasileira e aponta como a propaganda comercial está sendo vítima de bullying. Como exemplo, Leifert cita os inúmeros decretos, resoluções e portarias criados pela Anvisa, que impõem sérias restrições ao meio. Contra essa espécie de censura prévia, o argumento é claro: produtos lícitos e seguros para o consumo podem, sim, ser anunciados, admitindo-se que restrições sejam estabelecidas por meio de leis e de autorregulamentação, que elas sejam necessárias, justas, razoáveis e proporcionais. Afinal, o Brasil já tem leis demais! 110 Não cabe ao Estado dizer como cada um deve ser Revista da ESPM | maio/junho de 2012 Heródoto Barbeiro pág. O jornalismo também tem de prestar contas à sociedade Marina Dias pág. 52 A Constituição federal traz os princípios norteadores da cobertura jornalística de casos criminais: a liberdade de expressão e de imprensa, além das garantias constitucionais individuais. ”Sem imprensa livre não existe democracia e vice-versa”, afirma a advogada, ressaltando que, justamente por essa ligação visceral, a imprensa deve se pautar na observância dos preceitos fundamentais que sustentam o estado democrático. Há também uma relação de simbiose entre a imprensa e os operadores do direito que alimenta a espetacularização do crime. Nesse contexto, qual é o papel da imprensa, do Judiciário e dos operadores do direito? As fronteiras entre a liberdade de imprensa e as garantias constitucionais individuais na cobertura jornalística são nebulosas, portanto é difícil traçar uma linha clara sem o risco de ferir alguma das liberdades em jogo. Assim, uma das formas é criar espaços para discussão na imprensa envolvendo os demais atores. 40 As elites brasileiras lideram o processo de organização do Estado desde a independência. Historiador, jornalista e professor, o autor ressalta que a população não participou da redação da Constituição do Império, nem do movimento que proclamou a República e derrubou a Monarquia. Foi alijada das cartas e constituições que se sucederam. Nem em 1946 ou em 1988 tiveram voz ativa, ainda que tenham eleito livremente os seus constituintes. Grupos da elite tomaram a dianteira e inscreveram a sua visão de mundo para que todos cumprissem. A ausência da cidadania, a organização comunitária e a participação ativa no debate de um projeto nacional colaboraram para que uns poucos tomassem a dianteira e impusessem suas concepções. As mudanças democráticas, duradouras e cidadãs ocorrem de baixo para cima, e isto ainda não aconteceu porque, primeiro, falta organização e empenho populares e, depois, porque quem tem o poder não quer abrir mão dele. Sociedade digital: o indivíduo versus o coletivo Patricia Peck pág. 58 O avanço tecnológico vivenciado pela humanidade no último século permitiu a construção da atual sociedade digital, baseada na eletrônica e nos ativos intangíveis, dependente dos insumos de energia, telecomunicações e tecnologia. Mas será que teríamos chegado até aqui sem um papel forte do Estado na vida das pessoas? Desde uma tribo indígena até as próprias redes sociais, os valores são codificados em regras coletivas impostas a cada participante daquela determinada comunidade. Advogada especializada em direito digital, a autora assegura que o direito, em linhas gerais, prioriza a vontade coletiva sobre a vontade particular, em especial no que tange à segurança social. A liberdade de expressão e a livre iniciativa são princípios fundamentais, mas podem ser preteridos em favor de um bem maior, dentro do desafio de criar sustentabilidade e governança pública, em um cenário cada vez mais competitivo e de recursos ambientais escassos. Desta forma, será que vamos evoluir para um mundo com mais controles ou mais liberdades? Em defesa do Estado Jorge Lorenzo Valenzuela Montecinos pág. 66 O papel histórico do Estado na vida dos seres humanos é abordado pelo professor da ESPM de São Paulo, que mostra por que a relação existente entre a função estatal e a economia é uma das questões mais discutidas na atualidade. Desde o nascimento do Estado moderno, com Maquiavel, a importância do Estado concentra-se na coesão territorial e no contrato social, que resulta de um pacto, de um acordo original que põe fim ao estado de natureza. Depois da queda das torres gêmeas, a esquizofrenia do Estado fez surgir, de um lado, o poder hegemônico absoluto e, de outro, a presença cada vez mais marcante nas decisões econômicas, sobretudo a partir da crise de 2008. O fim da soberania dos Estados-nações e o perigo crescente da militarização das decisões político-econômicas deu origem a uma nova realidade, que nos remete ao Estado social e gestionário, o direito internacional e o respeito ao homem e ao seu meio ambiente. Interferência do Estado na sociedade: uma visão de marketing social Daniel Kamlot pág. 78 O marketing social tem como fundamento a atuação de empresas e indivíduos no sentido de gerar bem-estar à sociedade compartilhada por ambos. Entretanto, nem sempre os players de uma sociedade consideram a felicidade desta quando executam suas ações profissionais. Daí decorre a necessidade de um novo ator para organizar as normas a serem seguidas visando ao alcance do que é preconizado pelo marketing social. Tal ator, o governo, pode agir de forma positiva – ao exigir uma conduta socialmente responsável dos cidadãos, punindo aqueles que avariam o ambiente da sociedade com uma conduta nociva. Também pode agir de maneira negativa – quando movido por interesses que não os da sociedade, buscando benefícios para apenas um pequeno grupo de indivíduos, por exemplo. Neste artigo, o professor da ESPM do Rio de Janeiro apresenta os conceitos básicos do marketing social e sua relação com o bem-estar da sociedade, além de avaliar como a conduta do governo pode se mostrar em consonância ou discordância com as bases desta importante ferramenta de marketing. O direito de intervir na sociedade é inerente ao estado de direito? Denise Fabretti pág. 84 Doutora em direito, a professora da ESPM procura tecer neste artigo algumas considerações sobre as relações jurídicas entre Estado e sociedade com base nas normas que emanam de entidades representativas do poder público, visando adequar o exercício das atividades individuais ao interesse coletivo. Detalhando algumas linhas do pensamento de renomados doutrinadores do direito, ela elabora algumas reflexões sobre o tema, que envolve a interferência do poder público nas esferas de direitos dos particulares, bem como dos cuidados que as autoridades administrativas e julgadoras devem ter na aplicação e interpretação dessas normas. A ideia é apresentar uma análise da extensão da aplicação do termo ”interesse público” por parte dos poderes que constituem o Estado, uma vez que este é um dos conceitos de direito fundamentais que regem as relações sociais. O paradoxo da democracia Eduardo Oyakawa pág. 92 ”O estado democrático de direito é uma conquista inegável da civilização ocidental”, garante o professor de filosofia e lógica da argumentação da ESPM, que neste artigo mostra como a modernidade tecnológica trouxe novos desafios comportamentais e ideológicos para a sociedade. Isso exige uma pergunta basilar: até onde podemos admitir as liberdades individuais, sem colocar em xeque as virtudes democráticas baseadas na isonomia dos cidadãos? Entre a perspectiva francesa à la Rousseau e a postura anglo-saxã, o autor mostra qual seria o melhor método para conjugarmos democracia e liberdades individuais. O espelho da sociedade contemporânea Paulo Roberto Ferreira da Cunha pág. 96 Diante das incessantes transformações que vive o ambiente da comunicação, é oportuno compreender a sociedade e o sujeito contemporâneo a partir da ótica de pensadores sociais da atualidade e da psicanálise, ressaltando questões como narcisismo, identidade, consumo, pertencimento e referencialização. Para o psicanalista, publicitário e professor de planejamento estratégico e comunicação integrada da ESPM, estas questões se apresentam como sinalizadores e pontes para uma percepção do nosso tempo. Neste contexto, as relações percebidas desde a maturação dos bebês permanecerão por toda a vida, ao encontrar acolhida nos braços abertos de uma sociedade multifacetada, seletiva, consumista, fragmentada, grandiloquente e antagônica em seus grupos. Esta é uma sociedade que cobra pedágio para o sujeito se constituir como parte dela, sendo também um material de trabalho relevante para o marketing e para a comunicação. A era da cooperação Jonas Cardona Venturini e Marcello Noetzold Mafaldo pág. 102 Neste artigo, os professores da ESPM de Porto Alegre relatam uma abordagem evolutiva da visão da nova economia institucional, sob o enfoque das empresas na era da cooperação. São detalhadas algumas implicações da teoria dos custos de transação, para o desenvolvimento empresarial, principalmente em relação à defesa da estrutura híbrida, em especial das ”redes”, as quais convergem favoravelmente aos propósitos da cooperação mútua e duradoura. A visão dos autores converge para uma estrutura dinâmica, autorreguladora a partir de princípios básicos, como as inter-relações laterais intra e interfirmas, o avanço das tecnologias da informação e da comunicação e a consolidação dos estudos da interdisciplinaridade no meio acadêmico – fatores que favorecem as políticas de defesa da concorrência preconizadas por Oliver Williamson, que em 2008 recebeu o Prêmio Nobel de Economia. maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 111 english abstracts Regulation and responsibility Roberto Civita page 10 This article seeks to expose the effects of the polarization of opinions as well as the risk of extremism when it comes to expressing opinions about the role of the state as a regulator and disciplinary agent of social behavior. Roberto Civita, president of the board of directors and chief editor at the Abril group, analyzes the risks of extremist positions by relying on examples such as the former Soviet Union and Thomas Hobbes’s natural man (who regresses to savagery for having access to total, unlimited freedom). The author proceeds to explain that we fortunately live in a world of pacts and agreements in which one’s freedom ends where someone else’s freedom begins – and the state is the regulator of quarrels related to these issues. At the very basis of this delicate structure are two fundamental elements that the national state must observe: freedom of the press and free will. Commercial advertising is the victim of bullying Gilberto Leifert Ives Gandra da Silva Martins page page 22 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 28 The evolution of democratic regimes has raised the need to establish balanced relationships between the power, the people and individual citizens. Since human beings who are given the power are not trustworthy (for they may end up trying to take the power solely to themselves) and human groups still have a lot to learn about power autonomy, governing authorities tend to manipulate regimes so that opposing parties will become weaker and less relevant to the public opinion. In this scenario, individual rights are frequently under attack while collective rights absorb constitutional charters and the democratic experience itself. Renowned Brazilian jurist Ives Gandra da Silva Martins believes true democracy is the one in which government and society don’t deprive individuals from the freedom of being, thinking and doing whatever they want to (within the boundaries of the law). Who owns the state? Theoretically, the Constitution of 1988 marked the end of censorship in Brazil and reestablished the freedom of thought, creation and speech. It also ensured free information, free will, free competition and consumer protection. In practice, however, freedom of speech is still threatened by countless bills that aim to restrict advertising in certain market segments. That’s what Gilberto Leifert, president of the Conar (National Agency for the Self-Regulation of Advertising), shows in this article by conducting an analysis of the Brazilian Communications Industry and exposing how commercial advertising is being a victim of bullying. As an example, Leifert mentions the countless decrees, resolutions and ordinances passed by the Anvisa (National Health Surveillance Agency) to restrict the operations of advertising agencies. This kind of behavior can be questioned based on simple reasoning: brands selling legal products that are safe for consumers must be allowed to advertise them under the restrictions of fair, reasonable and proportional laws created by self-regulatory agencies. After all, Brazil’s laws are already too numerous. 112 The state can’t tell people what to be Heródoto Barbeiro page Journalism has to be accountable to society Marina Dias page 52 The Brazilian Constitution includes the guiding principles for press coverage of criminal cases: freedom of speech and freedom of the press, in addition to other individual rights. “There can be no democracy without freedom of the press, and vice-versa,” says lawyer Mariana Dias, emphasizing that this deep connection implies that the press should focus on the observance of the fundamental precepts of the democratic state. There’s also a symbiotic relationship between the press and law enforcement agents, which increasingly turns crime into a spectacle. In this scenario, what is the role of the press, the judiciary, and the law enforcement agents? The borders between freedom of the press and the individual rights in the journalistic coverage are hazy, which makes it hard to draw a line between them without actually harming the freedom of those involved. One of the ways to promote this debate is to create spaces for discussion, engaging both the press and all the other stakeholders. 40 Brazilian elites have led the process through which the state was organized since Brazil became an independent country. Historian, journalist and professor Heródoto Barbeiro highlights that the Brazilian people didn’t take part in the creation of the Imperial Constitution, nor did it participate in the movement responsible for taking down monarchy and establishing the republican government. The people was sidelined when it came to writing the Charters of 1946 and 1988 – even though it had democratically elected those who wrote them. Elite groups have taken the lead of these processes and written laws that would reflect their own points of view, which would have to be followed by the whole Brazilian population. The lack of citizenship, communitarian organization and active participation in the debate of a national project have made it possible for some people to take the lead and impose their world conceptions. Long-lasting democratic and civic change must be grassroots movements – and this has yet to happen in Brazil, for the country has never seen true popular engagement and organization (not to mention the fact that those who have the power are not willing to share it). Digital society: the individual versus collectivity Patricia Peck page 58 The technological progress that took place during the last century has allowed for the creation of what we currently know as the digital society. This society is based on electronic media and intangible assets, and it depends on energy, telecommunications and technology. But would we have been able to build a society like this without a strong, powerful state? From indigenous tribes to social networks, values are coded into collective rules that are imposed to each participant of a certain community. Patricia Peck, a lawyer who specializes in digital rights, asserts that laws generally prioritize the collective will rather than the individual will, especially when it comes to social security. Freedom of speech and free will are fundamental principles, but they can be neglected in favor of a greater good, considering the challenge of generating more sustainability and public governance in a scenario of growing competitiveness and scarce environmental resources. Considering all this, are we going to evolve to a world where control is stricter or are we going to have more freedom in the future? In defense of the state Jorge Lorenzo Valenzuela Montecinos page 66 Jorge Lorenzo Valenzuela Montecinos, professor at the ESPM, in São Paulo, approaches the historical role of the state in the lives of human beings to show why the relationship between the functions of the state and the economy is one of the most debated questions of today. Since the birth of the modern state, with Maquiavel, the importance of the state resides mainly on territorial cohesion and in the social contract, the latter being a result of an original agreement that puts an end to the state of nature. After the terrorist events of 9/11, the state has adopted schizophrenic positions that have turned it into a hegemonic power and increased its role in the economic decisions (especially after the 2008 crisis). The end of the sovereignty of the nation state and the ever growing danger of militarization of political and economic decisions have created a new reality, one that is connected with the social and managerial state, international rights and the respect for human beings and the environment. State interference in society from the point of view of social marketing Daniel Kamlot page In this article, Daniel Kamlot, professor at the ESPM in Rio de Janeiro, introduces the basic concepts of social marketing and how they relate to society’s well being, in addition to evaluating how the government can be in consonance or dissonance with the basis of these important marketing tools. 78 Social marketing is based on the role of companies and individuals who work together to generate benefit for all stakeholders. However, players don’t always take the common good into consideration when executing their professional duties – thus the need of a new social actor to organize the rules that everyone must follow in order to fulfill the role of social marketing. This actor – the government – can have a positive impact by demanding socially responsible actions from citizens and punishing those who harm society as a whole with vicious behavior. It can also have a negative impact if it is moved by interests that are not related to the common good, and if it seeks to generate benefits for a small number of individuals, for example. Is the right to intervene in society inherent to the rule of law? Denise Fabretti page 84 Denise Fabretti, a professor at the ESPM with a PhD in law, seeks to analyze the legal relations between the state and society based on standards that come from entities that represent the public power and aims to adapt individual activities so that they will benefit the public interest. The author takes into consideration some lines of thought of renowned law scholars in order to elaborate reflections about the subject, which involves an interference of the public power in the area of individual rights, as well as having the administrative authorities and judges being careful in the application and interpretation of these standards. The idea is to present an analysis on the extension of the application of the term “public interest” by the authorities that constitute the state (since this is one of the fundamental concepts of law that govern social relationships). The paradox of democracy Eduardo Oyakawa page 92 According to Eduardo Oyakawa, professor of philosophy and logical reasoning at the ESPM, “The state of democratic law is an undeniable achievement of western civilization”. In this article, the author seeks to show how technological modern times have brought about new behavioral and ideological challenges to society. This poses a fundamental question: to what extent are we able to comply with individual freedom without questioning democratic virtues based on the equality of citizens? Between the French perspective of the likes of Rousseau and the Anglo-Saxon approach, the author shows which would be the best method to combine democracy and individual freedom. The mirror of contemporary society Paulo Roberto Ferreira da Cunha page 96 Given the constant transformation to which the communication environment is subject, it is advisable to understand society and the modern subject from the perspective of social thinkers and psychoanalysis, highlighting issues such as narcissism, identity, consumption, possession and reference. For the psychoanalyst, publicist and professor of strategic planning and integrated communications at ESPM, these issues present themselves as signals and as a branch for our modern point of view. In this context, the relations that were noticed since the formation of babies will remain for life when it encounters itself safe in the open arms of a multifaceted, selective, consummative, fragmented, grandiloquent and antagonist society. This is a society that charges tolls in order for the subject to constitute itself as part of it, and it’s also a relevant work material for marketing and communication. The era of cooperation Jonas Cardona Venturini e Marcello Noetzold Mafaldo page 102 In this article, Jonas Cardona Venturini and Marcello Noetzold, professors at the ESPM in Porto Alegre, report an evolutionary approach of a vision on the new institutional economics, from the standpoint of the companies in an era of cooperation. The professors also detail some implications of the theory of transaction costs for business development, especially concerning the defense of a hybrid structure (particularly, the “networks”, which converge to the purpose of mutual, long-lasting cooperation). Their visions converge favorably toward a dynamic, self-regulatory structure established over basic principles such as lateral interrelationships (both intra and intercompany), the advances of information and communication technologies, and the consolidation of interdisciplinary studies in the academic environment – factors that favor the policies of protection of competitiveness suggested by Oliver Williamsom, recipient of the 2008 Economic Sciences Nobel Prize. maio/junho de 2012 | Revista da ESPM 113 Ponto de vista Ricos, preconceituosos e controladores O Dalton Pastore Brasil tem, já sabemos disincapazes de nos medicar, mas que “A tirania so, uma das cargas tributáentendemos um português bem businceramente rias mais altas do mundo. rocrático e elaborado: “a persistirem Algo como 36% de tudo o que os 200 os sintomas, o médico deverá ser conexercida para o milhões de brasileiros produzem por sultado”. Nada de “se não melhorar, vê bem das vítimas ano vai para o governo. E os brasise arranja um médico”. pode ser a mais leiros produziram R$ 4,143 trilhões Quando se trata do quesito “honestiopressiva. Aqueles no ano passado! dade”, no qual o Estado não é, digamos que nos atormentam, assim, um exemplo esplendoroso, o Resultado: dinheiro demais, governo demais. preconceito que os governantes têm a para o nosso O melhor governo é aquele que nosso respeito não é muito melhor. E próprio bem, irão governa menos, porque permite que tome burocracia em cima do brasileinos atormentar seu povo se autodiscipline, já dizia o ro, o tempo todo, para provar que está sem fim, porque terceiro presidente dos Estados Unifazendo a coisa certa; por exemplo, na eles o fazem com a dos, Thomas Jefferson, que comandou hora de vender um carro, ou quando abre o país entre 1801 e 1809, e previa um ou fecha uma empresa. aprovação de suas grande futuro para os americanos, E, entre todas as tiranias, como bem consciências” “se puderem evitar que o governo dizia C.S. Lewis, “a tirania sinceramente C.S. Lewis desperdice o resultado do trabalho do exercida para o bem das vítimas pode povo, sob o pretexto de cuidar dele”. ser a mais opressiva. Aqueles que nos O Estado brasileiro parte do princípio de que o povo é atormentam, para o nosso próprio bem, irão nos atorincapaz de se cuidar. Ou pior: que, se tiver uma chance, mentar sem fim, porque eles o fazem com a aprovação vai fazer a coisa errada. E, acreditando nisso, se sente de suas consciências”. Ou para se sentirem bem com com o direito ou no dever de se meter em tudo e de suas consciências, eu acrescentaria. controlar tudo. Este é o caso daquela elite iluminada, que se apreEntão, aos brasileiros é negado, por exemplo, o direito senta magnânima e se sente com o direito de decidir de decidir se querem ou não escolher candidatos em uma pelos outros o que eles devem ler, ouvir, assistir e eleição, e o voto é obrigatório. O brasileiro tem de votar consumir! sob as penas da lei e tem de guardar aquele papelzinho Somente a educação pode nos livrar do preconceito e – uma mancha humilhante em nossa democracia – pro- do castigo de nossos tutores. E educação, infelizmente, vando estar em dia com sua obrigação eleitoral. custa caro e leva tempo. Mas já somos hoje mais eduAssim também aos brasileiros é negado o conforto cados do que éramos antes e continuamos avançando. de comprar um sorvete ou um refrigerante na farmácia, Em breve, mais bem educados, seremos mais respeitados. porque o governo acredita que, idiotas como somos, aproveitaríamos a ida à farmácia para tomar, quem sabe, Dalton Pastore um anti-inflamatório. Presidente da DPastore Comunicação e Editorial e do ForCom – Fórum O Estado acred it a que nos oferece u m bom e Permanente da Indústria da Comunicação abundante serviço público de saúde, que nós somos 114 Revista da ESPM | maio/junho de 2012 Ninguém esquece da primeira impressão digital. f0031502 INOVAR É O QUE VAI FAZER UMA EMPRESA ESTAR À FRENTE DAS OUTRAS. E VOCÊ À FRENTE DOS OUTROS PROFISSIONAIS. Não seja um profissional em extinção. Faça o curso Gestão da Inovação Voltada para o Mercado – Intensivo. O curso Gestão da Inovação do CIC – Centro de Inovação Para quê? Nosso ramo é outro! e Criatividade da ESPM possui forte apelo prático. O programa é conduzido por diretores de inovação em grandes empresas, que abordam o conteúdo com profundidade – da geração Vamos aplicar design thinking à nossa empresa. de insights à formulação de business plan. Inovação é o único caminho para fechar efetivamente a lacuna entre as demandas dos consumidores e os recursos cada vez mais escassos. É o que nos possibilita fazer mais com menos. O mercado quer inovação e o seu currículo também. Inscreva-se já. www.espm.br/cic CIC