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Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais BRUNO DA SILVA AZEVEDO EM RITMO DE SERESTA: Narrativas e espaços sociais da música brega e choperias em São Luís do Maranhão Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão para obtenção do Título de Mestre em Ciências Sociais. Orientadora: Profa Dra. Mundicarmo Maria Rocha Ferretti São Luís 2012 Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 1 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 2 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Azevedo, Bruno da Silva Em ritmo de seresta. Narrativas e espaços sociais da música brega e choperias em São Luís do Maranhão. - São Luís, 2012. 174p. Impresso por computador (fotocópia). Orientadora: Profa Dra. Mundicarmo Maria Rocha Ferretti Dissertação (Mestrado) — Universidade Federal do Maranhão, Programa de Pós–Graduação em Ciências Sociais, 2012. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 3 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais BRUNO DA SILVA AZEVEDO EM RITMO DE SERESTA: Narrativas e espaços sociais da música brega e choperias em São Luís do Maranhão Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão para obtenção do Título de Mestre em Ciências Sociais. BANCA EXAMINADORA Profa Dra. Mundicarmo Maria Rocha Ferretti (orientadora) _____________________________________________________ Profa Dra. Elizabeth Maria Beserra Coelho _____________________________________________________ Prof Dr Marcus Ramúsyo de Almeida Brasil _____________________________________________________ Aprovado em -----/----/---- Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 4 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais AGRADECIMENTOS Ao gato Marreco, por seu inabalável rigor e fortitude, incapaz de render-se, mesmo que por um breve instante, à banalidade ou ao desvio do foco narrativo. Pode a idade lhe chegar, os pelos lhe abandonarem o couro, mas nunca faltar-lhe-ão o senso de companheirismo, a palavra amiga e a expressão certa, quando estas me faltarem. A Mundicarmo Ferreti, pela orientação e paciência. A todos que cederam seu tempo e memória às entrevistas desta pesquisa. Karla Freire, que me atura. Aos professores Igor Grill, Sérgio Ferretti, Beta, Henrique Borralho, Flávio Reis, Wagner Cabral, Marcelo Carneiro e Álvaro Pires, por todo o diálogo e influência ao longo desta pesquisa. Obrigado mesmo! À CAPES, pela grana. Ao programa de mestrado em Ciências Sociais, por todo o suporte. E mais! Pepper, Gabriel Girnos, Deyse Damasceno, Eduardo Patrício, Heve Estrela, João e Helton, Celso Borges, Zema Ribeiro, Hamilton, Sogra e um monte de gente que esqueci. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 5 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais RESUMO Análise dos movimentos relacionados à música brega e às festas de seresta em São Luís do Maranhão, a partir da influência do teclado musical eletrônico com programação na constituição deste tipo de festa e no surgimento de uma nova música. Com base em entrevistas com os agentes envolvidos em seu surgimento e continuidade, o trabalho narra a história das serestas na capital maranhense, seus artistas e espaços de realização conhecidos como choperias, sob a hipótese de que tanto artistas quanto espaços são estigmatizados. Por fim, é discutida a construção de uma identidade musical maranhense, que opera uma exclusão simbólica da música brega e das serestas, como parte do que seria a música do Maranhão. Palavras-chave: Seresta, Brega, Identificação, Estigma. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 6 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais ABSTRACT An analysis of the movements related to the brega music and the seresta parties in São Luís do Maranhão, Brazil, from the influence of the electronic musical keyboard on its constitution and the rise of a new musical style. Based on interviews with social agents involved on its origins and current status, this work tells the story of seresta in Maranhão’s capital, it’s artists and the ballroom spaces knows as choperias, under the hypothesis that both artists and these spaces are stigmatized. It is also discussed the construction of a Maranhão’s musical identity thet operates on the simbolic exclusion of brega music and serestas as something integrated into Maranhão’s musical scope. Keywords: Seresta, Brega, Identification, Stigma. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 7 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Numa banda o teclado é só preenchimento, na seresta o teclado é o coração. Talitha de Sá Eu trabalho com esse tipo de música porque é o tipo de música mais popular. Mas se for pra mim fazer bumba boi eu faço, se for pra mim fazer cacuriá eu faço, se for pra mim fazer tambor de crioula eu faço. Se for pra rodar de macumbeiro eu rodo, entendeu? Tudo é música isso aí, tudo é música. Zé Ray Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 8 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais SUMÁRIO Introdução ...................................................................................................................................... 10 01. BEGUINE ................................................................................................................................... 19 1.1. Música e técnica ............................................................................................................ 27 1.2. A música brasileira e a técnica ...................................................................................... 34 1.3. Orquestras, bandas de baile, seresta ............................................................................ 41 2. MÚSICA BREGA, SERESTA E TECLADO ....................................................................................... 69 2.1. Raimundo Soldado ........................................................................................................ 71 2.2. Adelino Nascimento ...................................................................................................... 73 2.3. Gema gravadora ............................................................................................................ 76 3. O ESPAÇO DA SERESTA: AS CHOPERIAS .................................................................................... 89 3.1. O crescimento do mercado de choperias ...................................................................... 90 3.2. Sobre as bandas e grupos das choperias ....................................................................... 99 3.3. O arrocha e a “seresta moderna” ................................................................................ 103 3.4. As estratégias mercadológicas das choperias ............................................................. 109 3.5. A seresta de elite e o brega society ............................................................................. 111 3.6. Choperias, estigma, má fama ...................................................................................... 119 4. A SERESTA E A IDENTIDADE MUSICAL MARANHENSE ............................................................ 127 4.1. Amplificadoras, boleros e o Bandeira de Aço .............................................................. 129 4.2. Mirante Popular Maranhense ..................................................................................... 147 4.3. Música maranhense e discursos legitimadores .................................................... 157 Considerações finais .................................................................................................................... 168 Referências ................................................................................................................................... 171 Anexos .......................................................................................................................................... 178 Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 9 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais INTRODUÇÃO Se existe algo fugidio na composição de um trabalho em Ciências Sociais é o objeto do trabalho em si. Por mais que se construam temas, objetos, métodos e formas de análise, me parece que a obra resultante de um estudo tem menos da intenção do estudo que dos caminhos pelos quais o trabalho de campo, a teoria e o labuto da escrita conduziram o pesquisador. Digo isto não na perspectiva de um romantismo exacerbado em volta da figura do autor como o autônomo gerador de sua obra ou mesmo no ultra-romantismo da obra que se auto-gera, tendo o autor como seu mero condutor; falo da fusão de um conjunto de informações, cujo filtro que chamamos de análise possa levar à fissura da proposta original de estudo. Como aconteceu no meu caso. A esta altura, o trabalho que percebi ter escrito carrega menos do que eu projetei e mais de para onde fui projetado. O campo e a reaudição contínua do material de entrevistas, faz com que surjam novos problemas e novos embates, que antes não eram alvo da pesquisa. Além disso, elementos que, como hipótese, pareciam cruciais para tentar entender o universo social estudado, mostraram não ser de grande importância, ou não fazer parte da maneira como antevista, da vivência ou das trajetórias do recorte realizado. Entendo que, para as ciências em geral, a sonegação de informação é informação, e, como tal, está também passível de análise; contudo, a dinâmica da relação que o pesquisador estabelece com seu universo empírico e a maneira como articula um jogo teórico para dialogar com este universo, faz com que a nova descoberta seja facilmente posta à mesa, em detrimento da menor relevância da hipótese anterior. O campo é fluído, como é o processo de análise dos dados que são construídos a partir dele. Mesmo que este seja um processo corriqueiro na construção de um trabalho nas Ciências Sociais em geral, entender o fenômeno sem algum estranhamento me parece um equívoco e acho importante discuti-lo antes de prosseguir. Inicialmente, me propus a compor um panorama amplo em torno daquilo que categorizei, ainda em 2008, quando comecei a pesquisar o tema para a minha monografia de conclusão do curso de História na Universidade Federal do Maranhão, UFMA, como “Brega de teclado”. Em poucas palavras, é a música popular executada com o instrumento teclado fazendo a função de cozinha1 da música, além de sua função original harmônico/melódica. Um tipo de performance comum na cidade onde moro, e que vemos sempre sem nos dar conta de que ali, naquele arranjo tecnológico e de palco, pode haver uma singularidade. 1 Cozinha é como, no jargão dos músicos, chama-se o duo baixo e bateria, responsáveis por fornecer uma “base” rítmica à canção. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 10 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais O brega de teclado era para mim o grande achado, a singularidade a partir da qual eu pretendia desenvolver uma análise que mais interessava a outras músicas (e à minha rejeição costumeira ao stablishment, ao encarcerado enquanto cultura formal) e talvez não visse o brega pelo brega, por assim dizer. Esta perspectiva mudou à medida que mudava a minha relação com a categoria brega de teclado e com a palavra brega nas entrevistas. O termo brega em si não só parecia pesado demais para alguns entrevistados, e algumas vezes dificultou a obtenção de outras informações, de maneira que meus enunciados para entrevistas foram passando de “brega” para “música brega”, “música popular”, “música brasileira” e, por fim, me apresentava como alguém que pesquisava genericamente sobre “música maranhense”, dando espaço para a que a categoria brega aparecesse, ou não, de forma menos violenta (ou seja, sem ser provocada pelo pesquisador) nos depoimentos. A própria categoria “brega de teclado” foi aos poucos dando lugar à categoria nativa “seresta”, mais ampla, e que passou a representar uma das manifestações deste tipo de música dita brega dentro do trabalho. A seresta, como categoria utilizada pelos meus interlocutores, apresentava suas próprias tensões e representações dentro do campo empírico de pesquisa, o que ampliou o foco da análise, antes centrada na categoria brega, para a menos polêmica, porém mais aplicável, seresta. Assim, o brega de teclado, como um parâmetro de análise do pesquisador, deu lugar, no escopo da pesquisa, à seresta, que é um termo prenhe de sentido para o universo dos pesquisados, de maneira que esta passou a ser o mote. Assim, a análise se mostrou mais prolífica como uma pesquisa sobre a seresta, que propriamente sobre o brega. Uma participação, mais branda, nas discussões sobre a identidade desta música maranhense voltou meus interesses para a forma como o mercado das serestas funciona, pois que a relação que estabelecem com o mercado e com a música enquanto um trabalho contínuo é um dos pontos que caracteriza os seresteiros. A análise deste mercado levou a outras discussões aqui presentes, como a da pirataria e a da circulação de bens simbólicos no ambiente das choperias. Contudo, antes que entremos na descrição das festas e nos embates que as envolvem, é necessário explicar a diferença entre duas categorias recorrentes ao longo deste trabalho, o brega e a seresta. Estas duas categorias são constantemente invocadas pelos mais diversos agentes, com as mais diversas adesões e com os mais diversos propósitos. Estes posicionamentos são analisados ao longo do trabalho, o que interessa aqui é estabelecer alguma compreensão, mesmo que básica, de como esta dinâmica funciona. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 11 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais O termo brega é utilizado, pela maioria dos agentes, como sinônimo de canção, lugar, modo de vestir e portar-se voltados ao exagero, à descomesura, e ao kitsch2. Como música, é usado para denominar um tipo de canção sentimental, às vezes cômica, que não mede as palavras na busca do efeito mais direto em seu ouvinte, esta música é também classificada como “música de corno”, “música pra curtir”, ou “música pra beber”, ou, nas palavras do radialista Nonato Costa, criador e apresentador de um dos programas de brega de maior audiência no Maranhão, o Mirante Brega (sábados, 18:00 às 21:00h): Brega pra mim é sentimento. Vai direto. Tá. Um amor mal resolvido. Aquela vizinha que você é fã, mas que você não pode dizer nada pra ela, até porque o esposo dela é teu amigo. (Nonato Costa, 2008) A seresta é um tipo de festa de forte veia saudosista, voltada para a dança de salão e ao encontro, cujo repertório é construído com base no bolero dos anos 1940. A seresta estaria em oposição ao brega, sendo suas características mencionadas a “música para a reflexão e apreciação”, “o passado” o “belo”. A seresta é utilizada diversas vezes e por diversos agentes como sinônimo do bolero , como na fala do seresteiro Riba Show, apontado por diversos seresteiros, produtores e público como um dos pioneiros na seresta no Maranhão: Qual a diferença entre brega e bolero? “é que o bolero ele é lento. O brega ele é mais quente. O Bolero é, que diz assim (canta) na hora do adeus! Isso aí é lento, pro cara dançar agarrado. Já o outro dança agarrado, mas brega tá dizendo: ele é mais aperreado, gostoso do cara dançar. Esse aí a gente bota pra tocar que é pro cara suar e beber cerveja. (Riba Show, seresteiro, 2011). A canção brega está, para Riba Show, em oposição à canção bolero, mas as festas brega e seresta podem comportar os dois gêneros musicais. Assim, pode-se dizer que vai a um brega, para se referir a uma noite de boleros, ou que se vai a uma seresta, na qual tocará algum artista ou grupo de repertório mais associado ao brega. [a gente ouvia] as músicas do Silvio Caldas, Dolores Duran, do Ataulfo Alves, Tito Madi, aquelas músicas antigas pra dor de cotovelo, aquela coisa e tal, né? Enfim, mas era só música boa. Era música boa, não é o brega. Era música romântica de qualidade. (Papete, 2011) Para quem está de fora, o termo brega é mais utilizado, e mais amplo, já que engloba um conjunto ainda maior de práticas, associadas a elementos mais amplamente midiatizados e com 2 Kitsch é um termo de origem alemã usado comumente em outras línguas para designar objetos ou elementos culturais voltados à descomesura, reconhecidos amplamente como de mau gosto ou exagerados. Segundo Umberto Eco, o kitsch seria uma “vulgar pacotilha artística destinada a compradores desejosos de fáceis experiências estéticas (ECO, 2001, p. 71), ou, de maneira mais sintética, toda “comunicação que tende à provocação de efeitos” (idem, p. 76). NO Brasil, o termo que mais se aproxima do sentido de kirsch é brega. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 12 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais representantes mais famosos, como Reginaldo Rossi e Wando. Para estes agentes, locais de seresta, como a choperia Marcelo e Kabão3 são facilmente qualificados de locais de brega. Assim, brega e seresta aparecerão neste trabalho, geralmente, como sinônimos de geral/brega e particular/seresta, dependendo de quem emita o juízo. Como objeto principal desta pesquisa, proponho a observação acerca da criação daquilo que chamei de identidade musical maranhense, fruto do trabalho de uma geração da elite local, que construiu os parâmetros do que se passaria a identificar como a verdadeira música maranhense. Isto posto, a dissertação está dividida em quatro capítulos: Beguine Neste momento narro a “formatação” do estilo musical conhecido como seresta, partindo da hipótese de que a inserção de um aparato técnico pode catalisar uma mudança paradigmática no processo de realização de um estilo de música. Para isso, busquei respostas às seguintes perguntas: Como um aparato tecnológico pode contribuir para a mudança de paradigmas de um estilo de música popular? Como este aparato técnico facilita a reabilitação de um gênero musical (no caso, o bolero) e o surgimento de novas práticas em relação á música? Como o surgimento de uma nova facilidade técnica pode remodelar a condição de músico, de público e dar vazão a um tipo de música antes restrita a nichos? Neste capítulo, conto quem eram e o que faziam os artistas de seresta antes do surgimento do teclado com programação e sua difusão no Maranhão, nos anos 1980, e a maneira como este surgimento afetou suas carreiras. Contextualizo a rede de produção centrada nas bandas de baile4 nos anos 1970 e 80, seus locais de apresentação e seu público; a crise no sistema de festas baseado nos clubes sociais e, consequentemente, das bandas de baile, favorecendo a conversão de músicos destas bandas para a seresta. O capítulo é concluído com a consolidação do arranjo tecnológico/mercadológico/estético do teclado como um gênero musical per si, que é batizado, então, com o nome de um modelo de festa já existente, conhecido como seresta. Demonstro que uma primeira geração de seresteiros 3 As choperias Marcelo e Kabão são as maiores da cidade, e foram as casas onde fiz boa parte do trabalho de campo. Mais informações sobre as duas nos próximos capítulos. 4 Bandas de baile, em uma definição breve, são grupos musicais sem produção autoral, que emulam outros grupos e tocam os sucessos da estação. Esta definição será ampliada no capítulo 01. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 13 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais no Maranhão era formada de músicos egressos das bandas de baile e que tiveram pouca inserção fonográfica e baixíssima produção de música autoral; já uma segunda geração, com músicos mais novos, surgidos sob a lógica de produção do teclado, constrói uma associação menos traumática com o rótulo “brega” e passa a compor e gravar músicas neste estilo usando o aparato da seresta, criando assim um fenômeno de mercado nos anos 1990 que perdura, mesmo que com menor intensidade midiática, até os nossos dias. Música brega, seresta e teclado Aqui é trabalhada a maneira como a seresta adquire novos ares, nos anos 1990, com a sua inserção no universo do disco. Vários artistas de seresta começam a compor canções para arranjo em teclado e, com diversos investimentos, levam estas canções para as prateleiras das lojas de discos populares, o que os faz ganhar também o espaço do rádio. São analisadas as trajetórias de dois artistas de música brega do Maranhão, Raimundo Soldado e Adelino Nascimento, que tiveram o auge de suas carreiras nos anos 1980, tocando com bandas completas, e se tornaram o norte para os que vieram depois, em termos de qualidade musical, expressividade no nicho e venda direta de discos. Após isto, é analisado o papel da gravadora paulistana Gema no mundo da seresta no Maranhão, e seu papel na propagação desta música, culminando com o fenômeno midiático de Lairton dos teclados. Ao fim, mostro como nomes consagrados da música brega (como os dois cujas trajetórias são descritas) aderem ao arranjo do teclado, e como o teclado é visto, por diversos agentes dentro do universo da seresta, como sinal de decadência para estes artistas. O espaço da seresta: as choperias. Neste capítulo faço uma análise de cunho etnográfico do universo social das choperias em São Luís, com foco em duas delas: Chopperia Kabão e Choperia Marcelo. Estas são as duas maiores choperias da cidade e recebem os mais famosos cantores e o mais volumoso público. Foram ambas formadas no final dos anos 1980, primeiros anos das serestas na cidade. Aqui me propus analisar a circulação de bens materiais e simbólicos, a alocação de posições e o funcionamento do mercado em torno das choperias, a relação das choperias com a lei, com o público, com os cantores, com a mídia e com as políticas públicas. Analiso alguns fenômenos recentes dentro destes espaços, como a ascensão da vertente baiana conhecida como Arrocha nos espaços das choperias em São Luís. Também dedico espaço à Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 14 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais análise da produção fonográfica da música de seresta, dos grandes aos pequenos artistas e das formas pelas quais estes utilizam o produto fonográfico no mercado atual. Os espaços midiáticos da seresta também serão alvo de estudo, em especial, nas disputas por classificação dentro dos diferentes tipos de serestas, com ênfase nos programas de rádio Mirante Brega, Sabadão Brega e Clube da Saudade. Ainda nestas disputas por classificação, traço características da segmentação de mercado dentro da seresta, analisando outras casas de seresta voltadas para a elite, assim como choperias que o público do Kabão e Marcelo julga perigosas e de classe mais baixa, como o Gaiolão. Este capítulo se propõe a descrever este ambiente com seus vários agentes, focando as formas de circulação de capital (pirataria, seguranças, ambulantes, vigias de carro, alocações de poder, status etc). Também são realizadas análises de trajetória dos cantores de seresta e dos empresários das choperias, assim como o possível estigma que estas podem ter dentro do universo de vida festiva da cidade de São Luís. A música de seresta e a identidade musical maranhense Onde se situa a seresta ou a música feita na e para as festas de seresta no escopo maior do que se reconhece enquanto música maranhense? Como cantores e públicos se sentem e se representam em relação à chamada identidade musical maranhense? Aqui traço parte do processo de formação do que hoje se conhece como a música do Maranhão, passando pela valorização do folclore e sua integração à canção urbana local, assim como ocorreu com o reggae jamaicano. Analiso a formação daquilo que se tornou conhecido como Música Popular Maranhense (a partir daqui mencionada por sua sigla, MPM) e o espaço que ocupa na visibilidade pública da música local. Esta discussão parte do sentimento expresso pelos cantores de choperia, de não “fazer parte” da música maranhense e é a partir deste discurso de não inclusão que alicerço minha investigação. Para tanto, é necessário entender o que é reconhecido como a verdadeira música maranhense (dentro daquilo que os cantores de choperia e agentes vinculados à MPM identificam como tal) e como esta se formata. Como a criação de uma ideia de música popular maranhense define os artistas e sua autoexclusão no contexto da música maranhense? Traço um paralelo entre a MPM, a criação da rádio Mirante FM e outros meios de legitimação, além da “folclorização” da música do Maranhão nos anos 1970 e 1980, concluindo com uma aparente virada na visibilidade pública dos cantores de seresta. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 15 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Também analiso momentos-chave na definição ou reafirmação da música local, como as várias edições do Prêmio Universidade FM, do Perfil Musical do Maranhão (documento elaborado como uma radiografia do que existe no estado) e em editais públicos de apoio à música. As referências à literatura sociológica são usadas ao longo do trabalho de maneira pontual, quando do auxílio ao esclarecimento de alguma questão relevante do universo social. Parto do pressuposto de que a teoria colabora para a análise dos objetos, e não da premissa de que se parte para a análise a partir de uma teoria. Assim, por mais que a leitura de trabalhos de sociologia aplicada jogasse luz sobre aspectos que antes eram de difícil descrição e percepção do mundo das choperias (como é o caso do estigma analisado por Goffman, 1978), tendo a não pensar a partir deles, mas pensar com eles. Vários trabalhos de Pierre Bourdieu são citados, por sua frequente busca pela desnaturalização dos objetos, instâncias e relações sociais (2000, 2008, 2005). O raciocínio com o qual o autor desenvolve suas análises e formula categorias analíticas é um norte importante para esta pesquisa, considerando que estou preocupado em compreender um terreno de disputas por classificação, dentro do qual há diversos jogos de afirmação e negação de valores, assim como criação e alocação de bens materiais e simbólicos como instrumentos neste terreno de disputas. Não posso, contudo, defender esta dissertação como um trabalho propriamente bourdiano, pois entendo a limitação de algumas de suas categorias (e a dificuldade de transcrição de alguns aspectos de suas análises – como a supervalorização do sistema escolar [e a necessidade constante de textos dentro e textos], que fogem à realidade brasileira). O já citado Irving Goffman é outro autor relevante, por estudar universos sociais em posição desfavorável, como entendo que esteja aquele que analiso. Não foi possível realizar uma revisão bibliográfica específica sobre o tema. Não consegui localizar obras sobre a seresta ou sobre o fenômeno musical surgido com a ascensão do teclado com programação no Maranhão. Assim, me vali de vasta literatura correlata, inicialmente cobrindo o tema música, na tentativa de situar o movimento analisado em alguma discussão corrente, partindo depois para aquilo que se escreveu sobre o brega em si, cuja maior referência é o livro “Eu não sou cachorro não”, de Paulo César de Araújo. O autor analisa a geração de cantores em atividade durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985), demonstrando como aqueles artistas sofreram rejeição de seus pares, da crítica, e foram perseguidos pela censura do regime militar. Outros livros, ainda sobre o tema brega, foram importantes, à medida que tratavam do contexto no qual alguns dos pesquisados se inseriam. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 16 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais A principal fonte deste trabalho são os depoimentos. Meus trabalhos como músico e frequentador de choperias me possibilitaram boa penetração e contatos com os agentes relacionados ao movimento. Utilizei entrevistas gravadas. Os depoimentos privilegiaram cantores e músicos envolvidos com a seresta, bandas de baile e MPM, que estivessem em atuação quando do surgimento do teclado em meados dos anos 1980. Além destes, entrevistei donos de choperias e demais funcionários do local, assim como músicos e cantores que nelas trabalham. Também foram ouvidos frequentadores das choperias em entrevistas quantitativas (por questionário) e qualitativas, durante o trabalho de campo. A pesquisa de campo foi realizada nas choperias Marcelo e Kabão preferencialmente, mas, entre 2010 e 2011, visitei mais de 15 casas de seresta, na intenção de presenciar diversas formas de realização dessas festas. Em algumas fui diversas vezes, como as três casas de seresta de elite que descrevo no capítulo 03. Contudo, antes da pesquisa formal, já havia frequentado algumas destas casas e, aqui, cabe explicar a minha posição em relação ao objeto. Tenho 32 anos, sou músico e por alguns anos toquei com bastante frequência na cidade, como integrante de uma banda de pop rock chamada Catarina Mina. O universo onde transitávamos era diferente do das choperias, mas o ofício me propiciou uma gramática comum com os entrevistados, seja pela música em si, ou por ter participado ativamente do mercado de música local nos anos 1990/2000. A música brega de compositores como Júlio Nascimento, Waldick Soriano, Adelino Nascimento e Raimundo Soldado fez parte da minha formação, pelas fitas cassete que as empregadas domésticas da minha casa escutavam, de modo que suas letras, melodias e intenções fazem parte da minha sensibilidade musical. Na época da Catarina Mina, tocávamos algumas canções ditas bregas (como as de Raimundo Soldado) e alguns boleros (como Torturas de amor, de Waldick Soriano) com rearranjos para o nosso estilo e para o público que acompanhava os shows da banda. Também trabalhei, por mais de uma década, como guia de turismo freelance em São Luís. Este trabalho me deu oportunidade de tomar contato com a representação que se faz da cidade como terra do folclore, da festa e do reggae, assim como me pôs em contato com várias vivências norteadas por estes discursos, como contrato de grupos musicais para apresentação, indicação de locais próprios para visita (o que inclui advertências a respeito dos impróprios) e eventos nos quais eram discutidas as estratégias para o reforço destas representações. Esta experiência é mais relevante para o terceiro e quarto capítulo da dissertação. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 17 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Me considero um pesquisador-nativo, já que falo de um local com o qual convivo diariamente, e tenho relações com vários dos pesquisados, assim como conheço os locais e agentes desde antes do meu interesse enquanto cientista social. O trabalho conta com um disco em anexo com canções representativas dos diversos momentos referendados ao longo do trabalho, assim como uma boa quantidade de imagens que ilustrem o descrito no texto. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 18 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais 1. BEGUINE5 Ano 2000. Maio. A revista Veja, em sua seção de cultura, publica a matéria intitulada “A fruta da temporada” (Veja, Edição 1650, de 24/maio/2000), assinada pelo jornalista Sérgio Martins. O artigo constatava, de maneira consternada, o sucesso da canção Morango do Nordeste, de autoria da “dupla de compositores pernambucanos do gênero brega” Walter de Afogados e Fernando Alves. Para a Veja, a canção: 01. “É mais uma demonstração de que não há fórmulas para o sucesso.” 02. “Não faz o menor sentido e seu português é uma piada.” 03. “Tem uma letra canhestra.” (letra reproduzida na nota 12) Àquela altura, Morango do Nordeste tinha mais de 15 anos e circulava em fitas cassete por camelôs e pequenas lojas ou bancas de rodoviárias pelo nordeste do Brasil, na versão original de seus compositores. Estas bancas se apresentavam em diversos formatos: um ambulante com caixas de fitas, uma loja de produtos variados que também oferecia música, uma lanchonete que vendia fitas e coxinhas etc. Eram pontos de distribuição que vendiam, principalmente, músicas associadas ao estilo romântico, brega e forró6, num mercado que funcionava à margem da grande indústria fonográfica e que oferecia artistas sancionados pelas gravadoras, no mesmo espaço de artistas que a indústria não absorvia. As músicas destes cantores, de abrangência local, não eram executadas nas grandes rádios FM e as bancas de comércio informal de produtos “piratas7” funcionavam como um importante meio de circulação de informação para o público e para o mercado musical em um período pré-internet, dentro do qual a vendagem e a execução de uma canção ou artista alimentavam o que seria vendido e executado nas rádios e em shows. 5 Este título usa duplo trocadilho. Begin, em inglês, quer dizer começar, assim como era “Beguine” o ritmo mais utilizado nos teclados com pré-programação dos anos 1980. 6 O estilo romântico é bastante amplo, englobando canções lentas que falem, de alguma maneira, sobre amor. Cantores como Roberto Carlos e Amado Batista são igualmente chamados de românticos. Brega seria o romântico exagerado, kitsch e de mau gosto; forró é um estilo de música originado no nordeste do Brasil, caracterizado pelo uso de triângulo, sanfona e zabumba, além da associação ao imaginário poético do semi-árido. 7 No universo das serestas e da música brega em geral, a noção costumaz de pirataria como a apropriação e comercialização indevida de um produto não tem tanta aplicação. Para estes cantores, produtores e vendedores de disco, a banca do pirata é uma mídia, através da qual o artista faz com que seus fonogramas cheguem ao público. O pirata opera em conjunto com o pirateado, que assim terceiriza a prensagem e distribuição de seu material, como o mercado fonográfico regular faz com o selo e gravadoras. Sobre isto ver os filmes Good Copy Bad Copy (2007), Brega S.A. (2009) e o livro Tecnobrega: o Pará reinventando o negócio da música (2008). O papel da pirataria será analisado com maior profundidade no capítulo 02, quando falarei da produção fonográfica dos seresteiros. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 19 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Figura 1 - Vendedor de discos "piratas" e sua loja móvel. No repertório, os mais recentes lançamentos do brega. Mercado Central, São Luís, 2011. Foto: Bruno Azevedo. A banca do pirata é uma estratégia de mercado que beneficia os pequenos artistas (pela possibilidade de exibição sem o investimento de mídia necessário), assim como para os vendedores (que comercializam produtos livres de impostos e royalties). Hoje, alguns artistas do universo da canção popular brega e da seresta se referem aos piratas como “divulgadores”, ou seja, aliados. A gente gostava de ir nas bancas pra fazer pesquisa, ver que música que tava no auge, qual era a fita que tava vendendo mais, pra gente pegar a música daquele cantor e colocar na banda. O que tava vendendo era o que ia tocar. (Lairton dos teclados, cantor e músico de seresta, 2008). Foi em uma destas bancas que o cantor e instrumentista Lairton Paulino da Silva, natural de Alto Alegre do Pindaré-MA, encontrou a canção que batizaria seu primeiro disco, gravado em Imperatriz-MA e prensado no final de 1998, pela gravadora paulista Gema, que também se encarregou da distribuição. Discorre novamente a Veja: A canção mais tocada no Brasil chama-se Morango do Nordeste. Sintonizou com uma rádio de samba? Morango do Nordeste é o grande sucesso do grupo de pagode Karametade, e está entre as campeãs de execuções em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Fugiu para uma emissora dedicada ao forró? Dois 8 dos astros do gênero, Lairton dos Teclados e Frank Aguiar , regravaram a músi- 8 O piauiense Frank Aguiar foi um dos pioneiros no uso do teclado em disco, com trabalho mais voltado para o gênero forró; sob o epíteto de “Cãozinho dos teclados”, estourou com a canção “Mulher Madura” (1999). Aguiar estudou música na UFPI e é bacharel em Direito. Foi eleito deputado federal por São Paulo em 2006. Hoje é secretário de cultura do município de São Bernardo do Campo-SP. Tem 19 discos gravados. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 20 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais ca e a estouraram no Nordeste. Nem na Bahia, onde 90% das rádios só transmitem axé, é possível escapar da invasão. O novo disco do grupo Chiclete com Banana ainda não chegou às lojas, mas mesmo assim um arranjo da música temperado a dendê já é líder de execuções em Salvador. Ao todo, a canção toca cerca de 150 vezes por dia no país, o que faz dela um fenômeno comparável a Pense em Mim, que Leandro & Leonardo lançaram em 1990. (...) A provável razão para o sucesso de Morango do Nordeste, no entanto, é mesmo a maleabilidade. Com uma melodia simples, ela pode ser adaptada facilmente a qualquer estilo. Hoje existem mais de 100 regravações de Morango do Nordeste no país. (VEJA, 2000. Grifo meu) O sucesso da canção, que parece ter ocorrido num fluxo nordeste/centro-sul/Brasil, e que a revista categoriza como invasão, é parte do processo de construção de um estilo de música popular que se desenvolveu nas regiões norte e nordeste do país nos anos 1980/90, e que tem seu auge midiático nacional com Lairton. Este estilo de canção é amplamente identificado pelos meios de comunicação e pelo público em geral como o da música romântica ou brega, termo popularizado no começo dos anos 1980, para designar um tipo de música e/ou comportamento que “não tem figuras ou maneiras; cafona; de mau gosto, sem refinamento, segundo o ponto de vista de quem julga; de qualidade reles, inferior” (DICIONÁRIO HOUAIS, apud CABRERA, 2007), ou uma geração de cantores surgida após a jovem guarda, que tinham naquele movimento (e em seu nome de mais peso, Roberto Carlos) sua maior inspiração. Segundo o Cantor Fernando Mendes (s/d), brega é “um lugar onde a gente ia, um substantivo. Hoje é um adjetivo com que falam mal da gente”. Com o passar dos anos, o gênero ganhou novos nomes e novos contornos. Cantores antes associados ao rótulo brega passaram a novos status sociais como Cult9 e MPB10, assim como novos estilos de música surgiam dentro deste rótulo, gerando o que se pode classificar como subgêneros da música brega ou como novos estilos de canção, sem relação musical direta com o estilo, mas que são identificados pelo público e pela crítica como tal. O que tratarei aqui é do desenvolvimento de uma destas correntes da música brega conhecida pelo público, artistas, empresários e meios de comunicação como “seresta”, na qual incluo a obra de Lairton dos Teclados e dos demais músicos que menciono ao longo do trabalho. Sobre as definições de brega tratarei mais na frente, de maneira mais cuidadosa. É uma categoria polissêmica, da qual diversos agentes se apropriam na formulação de definições e operações. Parte do objetivo deste trabalho é analisar as diversas maneiras como o universo social pes9 Cult é uma categoria usual no campo de diversas artes. Utiliza-se para autor ou obra que, passado algum tempo de seu surgimento, atingiu posição estável de culto entre seu público. Usada também para identificar uma obra ou artista por sua suposta alta qualidade intelectual. 10 MPB é uma denominação bastante abrangente para a Música Popular Brasileira surgida com o período da ditadura militar (1964-1985) e que se consolidou como um rótulo de definição de mercado nos anos pós-ditadura. O termo é utilizado também para distinguir a produção popular com aura erudito-intelectualizada. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 21 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais quisado (as choperias e os seresteiros) se relaciona com a palavra brega e como criam e reproduzem sentido por meio dela. Por ora, voltemos à revista. Lairton é definido pela Veja como “forrozeiro”11, cantor do estilo de música de origem nordestina chamada forró, muito popular por esta região, e que volta e meia emerge como moda nacional. Contudo, o artista tinha uma longa trajetória como músico em diversos estilos: duplas sertanejas, bandas de quermesse e de baile, bandas de forró, rock, miami e apresentações em barzinhos tocando canções do repertório catalogado por rádios, gravadoras e público como de MPB. O cantor começou a carreira nos palcos antes dos 10 anos de idade, como guitarrista, em bandas de forró pé de serra e de baile na região de Santa Inês-MA. Filho de um garimpeiro e uma dona de casa, teve pouca formação escolar. Em meados dos anos 1990, trabalhava em uma banda de baile como músico tecladista/vocalista, se apresentando em pequenas cidades em torno de Santa Inês. Nas folgas, fazia shows solo em barzinhos na cidade, com uma estrutura de palco de teclado e voz. A revista Veja é, talvez, uma das mais importantes instâncias de legitimação12 do mercado cultural do Brasil, fora da mídia especializada em cada um dos segmentos das artes. É um semanário de notícias com conteúdo político, que pretende representar o gosto hegemônico daquele que seria o público médio/alto brasileiro. De orientação conservadora, cristã, e distante do gosto popular, tende a privilegiar grandes nomes sancionados pelo mercado ou produtos não sancionados por este, mas que estariam relacionados ao que se poderia identificar como alta cultura, que traduziriam (ao mesmo tempo em que constroem) o gosto das elites. Abalizadas pelo que é produzido e consumido/legitimado pelo eixo Rio-São Paulo, as opiniões expressadas pela Veja, contribuem para a construção, nestas classes, daquilo que Pierre Bourdieu chamaria de disposições estéticas (BOURDIEU, 2005), sendo estas disposições um mecanismo facilitador da leitura de um objeto estético graduado pela formação escolar/educação de um agente, somado com aquilo que é identificado publicamente como a voz do grupo social ao qual este agente pertence, constituindo uma gramática comum, a partir da qual esta ou aquela produção estética é percebida nos mais diversos setores sociais. 11 Forrozeiro é como se costuma chamar diversos agentes relacionados ao forró. O termo pode designar cantores, músicos, frequentadores, empresários ou mesmo fãs do estilo. É comum também se ouvir o termo bregueiro com as mesmas conotações, assim como regueiro etc. 12 Segundo Bourdieu, as instâncias de legitimação “consistem em instituições específicas — por exemplo, as academias, os museus, as sociedades eruditas e o sistema de ensino —, capazes de consagrar por sanções simbólicas e em especial pela cooptação (princípio de todas as manifestações de reconhecimento) um gênero de obras e um tipo de homem cultivado (trata-se de instâncias mais ou menos institucionalizadas, como os cenáculos, os círculos de críticos, salões, grupos e grupelhos mais ou menos reconhecidos ou malditos reunidos em torno de uma editora, de uma revista, de um jornal literário ou artístico” (2005, p. 118 e 119). Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 22 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Por este mecanismo, ainda segundo Bourdieu, os sujeitos (e as inúmeras instituições às quais estão, de alguma maneira, filiados) não somente definiriam o outro, mas a si mesmos: O gosto classifica aquele que procede à classificação: os sujeitos sociais distinguem-se pelas distinções que eles operam entre o belo e o feio, o distinto e o vulgar; por seu intermédio, exprime-se ou traduz-se a posição desses sujeitos nas classificações objetivas (BOURDIEU, 2008, p. 13). Ser referendado ou mesmo criticado pela Veja é garantia de atenção (seja esta benéfica ou deletéria) e, estando sua opinião editorial e gosto alinhados aos da elite brasileira, relata e constrói a obra de arte legitima para o consumo deste público, estabelecendo assim o local social de canções e de seus produtores dentro, não somente do mercado, mas da opinião abalizada do público brasileiro. Daí o tom jocoso e a ideia de invasão sugerida pelo texto, que evidencia a não dominação de uma gramática que permita ler, não somente a canção, mas o movimento no qual ela está inserida: A obra de arte só adquire sentido e só tem interesse para quem é dotado do código segundo o qual ela é codificada. A operação, consciente ou inconsciente, do sistema de esquemas de percepção e apreciação, mais ou menos explícitos, que constitui a cultura pictórica ou musical é a condição dissimulada desta forma elementar de conhecimento que é o conhecimento dos estilos (BOURDIEU, 2004, p. 10). Figura 2. Quadro da matéria da revista Veja, abril de 2000, mostrando as regravações da canção Morango do Nordeste (Lairton à esquerda), a letra, e uma ilustração do título da canção, que sintetiza a região nordeste do país na imagem de 13 um chapéu de cangaceiro. 13 A letra da canção no box é a seguinte: Estava tão distante quando ela apareceu/Os olhos que fascinam logo estremeceu/Meus amigos falam que eu sonho demais/É somente ela que me satisfaz/Você só colheu o que você planBruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 23 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Não estou afirmando que o repórter da Veja não “entenda” a canção Morango do Nordeste. Estou tentando demonstrar que a publicação, dado seu local social e expectativas de seu público, analisa a canção com parâmetros e perspectivas que lhes atendam. O componente distintivo e responsável pelo sucesso da canção, ainda segundo a matéria, seria a sua “maleabilidade”, ou a capacidade de ser transposta para outros estilos igualmente populares como o pagode, o axé e o forró. A música é, portanto destituída analiticamente de sua forma temporária (que no jargão do que se chama de música popular, é chamado de arranjo) apresentada e analisada enquanto poesia (classificada como sofrível) e fenômeno de mercado (comparação com o estouro da música sertaneja urbanizada em 1990, que também é amplamente refratada como música brega, de mal gosto, alto consumo e símbolo de toda sorte de excessos). Nesta comparação com a música sertaneja, vale revisitar a própria Veja quando do sucesso da canção mencionada. Em matéria da edição de 11 de setembro de 1991, intitulada “O vôo veloz do tomate ao estrelato”, assinada por João Gabriel Lima, a Veja usa o mesmo tom jocoso para falar do sucesso da dupla Leandro & Leonardo, cantores que “têm um vocabulário chucro, uma astúcia que impressiona, mas cuidam da aparência” (VEJA, 1991, p. 96); prossegue com a seguinte descrição: O primeiro sucesso da dupla, Entre Tapas e Beijos, por exemplo, é um enigma. A melodia é primária – três acordes apenas – e a letra chega a ser engraçada de tão absurda. Ainda por cima, foi muito mal gravada e, por falhas na mixagem, quase não se entendem os versos cantados (...) Os dois não compõem, quase não tocam, mal distinguem um dó de um ré, mas tem grande olho para o sucesso. (...) Já Tapas e Beijos foi achada no repertório de um compositor bissexto, o furador de cisternas Nilton Lamas, que nas horas vagas faz bicos como cantor de churrascarias no interior de Goiás (VEJA, 1991, p. 97) O discurso se assemelha ao da matéria sobre Lairton, e aquilo que é argumentado sobre o seresteiro no ano 2000 é quase um pastiche do que a revista havia dito sobre a dupla sertaneja quase uma década antes. A canção é considerada de baixa qualidade, pobre. Vale ressaltar que acorde é a parte que harmoniza a canção e sobre a qual a melodia é posta, uma coisa não qualifica a outra, sendo a comparação em si, musicalmente, inválida. Ainda há a afirmação de que a canção foi composta por um “furador de cisternas que faz bicos de cantor”, desqualificando-o tou/Por isso é que eles falam que eu sou um sonhador/Me diz o que ela significa pra mim/Se ela é o morango aqui do nordeste/Status não existe sou cabra da peste/Apesar de colher as batatas da terra, com essa mulher eu vou até prá guerra/Ai, é amor/Ai ai ai é amor/É amor! Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 24 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais enquanto artista; só o que é ressaltado de qualidade da dupla se relaciona ao sucesso. Mas voltemos para o Lairton. Fazer versões é um hábito corriqueiro na indústria brasileira da música e parte de seu ciclo produtivo. A lógica do mercado determina, como vimos no exemplo de Lairton (e podemos constatar a toda estação), que só será amplamente transposto aquilo que já foi sancionado pelo público e mercado, ou que, para os investidores, tem possibilidade de alcançar tal sucesso. Há aí uma relação construída tanto pela fonte (a canção a ser versada) quanto pelo usuário (o produtor da versão), com grande ênfase no produtor em si, este um agente especializado em determinado estilo. Entre os agentes envolvidos com o movimento reggae em São Luís, existe uma expressão para referir-se ao hábito disseminado de fazer versões em reggae (no estilo das radiolas) de sucessos populares, de que “tudo vira pedra”. O mesmo hábito pode ser visto em diversos mercados musicais, que operam na base de fórmulas como o forró eletrônico14, o rock, pop, MPB e a seresta, onde uma canção de sucesso dos mais diversos gêneros é quase instantaneamente replicada. O sucesso determina a versatilidade, não o contrário. A versão da canção gravada por Lairton se insere em um modo de fazer e distribuir música que se popularizava no Maranhão desde os anos 1980. O que é chamado de “brega” pela reportagem faz mais sentido para seus leitores (como demonstrado), que para o público que frequentava as festas onde tocavam cantores como Lairton e outros de sua geração15. Minha análise se volta a estas festas e ao modo de fazer música que se construiu em torno delas. Lairton, como outros seresteiros, gravava algumas de suas apresentações em fitas cassete, que vendia nos shows, bancas de pirata ou encaminhava para gravadoras, na esperança de ser contratado e entrar no mercado fonográfico vinculado às grandes gravadoras. Isto era raro para um artista que operasse no Maranhão e não migrasse para o centro sul em busca dessa inserção no mercado. Uma destas gravações foi enviada para o selo paulistano Gema, especializado em música brega, que já gravara outro artista local com relativo sucesso, Ray Douglas, com quem Lairton tocava. A fita chegou com a recomendação do produtor maranhense José Oniton, figura de mediação de um grande número de artistas junto ao mercado do centro-sul, incluindo Zé Ray, Lairon, Júlio Nascimento, Adelino Nascimento, Raimundo Soldado e outros nomes do cast da Gema e outras gravadoras associadas ao gênero brega/seresta, para que se investisse no cantor. 14 Forró eletrônico é como se convencionou chamar as bandas de forró surgidas nos anos 1990, tendo como foco o Ceará. Estas bandas expandem a estrutura de palco tradicional do forró e do baião (que é a da zabumba, sanfona e triângulo), incluindo bateria, guitarras e, principalmente, o teclado cada vez mais proeminente, resultando em uma sonoridade diferente do forró de Luís Gonzaga e, por este motivo, gerando controvérsia entre os apreciadores deste forró mais vinculado à tradição. 15 Para o público das festas de seresta, o termo brega corresponde a um tipo de ambiência e canção que por vezes faz parte da festa. No caso de Lairton, há mais associação com a seresta e com a MPB. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 25 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Com este contato, Lairton recebeu da gravadora a encomenda de um disco, com a condição de que fosse feito “do mesmo jeito que você fez a gravação ao vivo” (Lairton, 2008), ou seja: com a estrutura de palco teclado de programação, guitarra e voz. Foi quando o cantor mudou de sobrenome e tornou-se Lairton e seus teclados. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 26 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais 1.1. MÚSICA E TÉCNICA Disponibilizar o prazer de criar música para o máximo de pessoas possível. Casio Ltda, sobre o lançamento do teclado Casiotone 201, em 1980. Ir a uma apresentação de grupo de forró, banda de baile ou outro tipo de festa, com música ao vivo, voltada para a dança, no interior do Maranhão, nas décadas de 1960 e 1970, era bailar sob os sons de sua própria imaginação. Os locais de realização destas festas, nos lugarejos16 do interior, eram geralmente barracões improvisados, prédios que serviam a outros propósitos (como clubes de moradores, casas de farinha etc.) ou descampados ao ar livre em sítios ou quintais. As bandas17 tocavam com pouca ou nenhuma amplificação e, mesmo do palco, “o som era tão baixo que chiado da chinela no salão a gente escutava”, como afirma o músico Orlando Andrade, que atuou em bandas de baile nesta época e em serestas nas décadas seguintes. A estrutura de palco variava e, geralmente, incluía voz, bateria, baixo, guitarra e sanfona, o que permitia executar uma grande diversidade de canções. Os trios de forró com zabumba, triângulo e sanfona se saiam melhor. Sua estrutura já funcionaria bem sem amplificação, por conta do som forte da zabumba18 e a estridência do triângulo, além da altura que o fole proporciona ao acordeom. Contudo, instrumentos que necessitavam de eletrificação quase não conseguiam ser ouvidos. Muitos grupos improvisavam instrumentos harmônicos e percussivos, baterias com peles de animais e tambores de troncos queimados, guitarras com cordas de arame, sopros com flandres etc. Independentemente das condições de performance, estes grupos continuavam a alimentar a demanda crescente em lugarejos ainda sem eletricidade por festas nos finais de semana e datas especiais, regadas, principalmente, a cachaça e forró. As cidades maiores contavam com grupos instrumentais que animavam festas, com base em instrumentos de sopro e percussões, sem cordas, voz ou amplificação, nos moldes das big bands ou bandas de sopro, chamadas nestes locais de orquestras19. Estas bandas viajavam pelo 16 Lugarejo é a categoria nativa para pequenas cidades, povoados, vilas com poucos habitantes. 17 Ao longo do trabalho, utilizarei a categoria “banda” como sinônimo de um grupo de pessoas reunidas com o objetivo de executar músicas para um público. Há, no universo social pesquisado, uma grande variação taxonômica para este mesmo conceito. Como a análise destas variações é parte do trabalho, usarei banda como uma categoria neutra do pesquisador. Quando conveniente, usarei as categorias nativas, sempre com alguma explicação. 18 Tambor de duas peles, uma com afinação grave, tocada com a maceta, e outra de voz alta, com o espinhaço. Espinhaço é uma baqueta fina e rígida que produz o som agudo na zabumba. 19 José Ramos Tinhorão identifica a origem deste tipo de banda no Brasil no século XIX. Na segunda metade deste século houve a proliferação das “bandas de corporações militares nos grandes centros urbanos, e (...) bandas municipais ou liras formadas por mestres interioranos, nas cidades do interior.” (Tinhorão, 1990 p. 139). O autor indica como estas bandas marciais tinham o propósito inicial de apresentar-se em cerimônias oficiais, mas, ao longo dos anos, o Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 27 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais interior para tocar em bailes civis ou militares, oficiais ou não, religiosos ou profanos. As orquestras, formadas em escolas, quartéis e outras instituições, entraram em crise com o surgimento amplo da eletrificação não só de seus locais de apresentação, mas da música em si. Esta tendência seguiu um fluxo capital/interior. Neste caso, a eletrificação ampla das pequenas cidades, que passaram a comportar festas das ascendentes bandas de baile com instrumentos elétricos, pode ser vista como uma modificação técnica da forma de fazer e fruir as festas populares e a própria música. O conceito de técnica, explorado pela Escola Crítica20, particularmente no ensaio “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”, de Walter Benjamin (publicado em 1936), que analisarei adiante, é aqui entendido como uma facilidade, um atalho entre intenção e resultado, uma mediação deliberada e instrumental. A eletrificação de instrumentos musicais tornou-se popular na década de 1950 com a guitarra elétrica (os captadores21 são dos anos 1920, mas a comercialização em larga escala de um modelo compacto e a preço acessível ocorre somente 30 anos depois) e do baixo elétrico (1953, por Leo Fender). A popularização de instrumentos elétricos foi seminal na criação e difusão de alguns estilos de música popular como o rock and roll e, antes dele, na difusão de outros estilos de canção através do rádio, mídia por excelência fruto da eletrificação. A técnica e as diversas sucessões tecnológicas tiveram forte influência na conformação de diversas paisagens sonoras22, seja nos bastidores, mediadores ou público. O historiador inglês Tim Blanning demonstra, em seu longo estudo “O triunfo da música” (2011) como, na evolução tecnológica constante, “todas as artes foram afetadas, mas a música foi a que mais mudou” (2011, p. 189). Max Weber mostra, em “Os fundamentos nacionais e sociológicos da música” (1995), como o piano se firmou como instrumento hegemônico na cultura europeia e condicionou a forma de pensar e reproduzir música a partir de então. Com base no cravo23, que encontrou seu local de excelência nas igrejas e teve nelas seus primeiros construtores, o instrumento de teclas passa para o ambiente doméstico. Weber diz: repertório se abriu aos gostos populares para apresentações em coretos, festas de carnaval ou casas das famílias abastadas. 20 A Escola Crítica, também conhecida como Escola de Frankfurt, é uma corrente teórica alemã que utiliza sua orientação neo-marxista para analisar o desenvolvimento do século xx com foco em elementos além das relações de produção, dando assim abertura para temas como a cultura e as relações cotidianas, utilizando para isto conhecimentos de fora das Ciências Sociais. Seus principais expoentes são Adorno, Horkheimer e Benjamin. São creditados a estes autores conceitos amplamente difundidos nas Ciências Sociais como o de indústria cultural. 21 Captador é um dispositivo eletrônico que capta vibrações mecânicas geradas por um instrumento musical (geralmente de cordas, como guitarras, baixos, ou violinos), e as converte em sinais elétricos, que podem ser, posteriormente, processados, amplificados ou gravados. (wikipedia.org. Acessado em 02 de dezembro de 2011). 22 “A paisagem sonora deve ser estudada e entendida como um campo de interações do modo com que os sons se afetam e se modificam e seu vínculo com suas fontes geradoras (eventos sonoros)” (LACERDA, s/d, p. 02). 23 Cravo é o instrumento de teclas no qual o som é produzido pelo pinçamento ou belisco das cordas. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 28 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais A construção do piano é condicionada pela venda em massa, pois o piano também é, de acordo com sua essência musical, um instrumento doméstico burguês. Se o órgão, para desenvolver suas melhores qualidades, exige um espaço gigantesco, o piano exige um espaço moderado. Todos os êxitos virtuosísticos dos pianistas modernos não alteram em nada o fato de que o instrumento, ao apresentar-se sozinho na grande sala de concertos, é involuntariamente comparado com a orquestra, e encontra-se então sem dúvida muito à vontade. Por conseguinte, não foi por acaso que o povo do norte, cuja vida está ligada, em razão do clima, à casa, cultuada na expressão “lar”, se construíram nos suportes da cultura pianística, em oposição aos povos do Sul. Pois o culto ao conforto doméstico burguês ficou, no Sul, muito pouco desenvolvido, por motivos climáticos e históricos, e o piano, lá inventado, não se espalhou – como vimos – tão rapidamente como entre nós, e até hoje não obteve, na mesma medida, a posição, já há algum tempo natural entre nós, de “móvel” burguês (WEBER, 1995, p. 150). Blanning ataca o que chama de “argumento meteorológico” (2011, p. 200) de Max Weber, demonstrando como, no processo de formatação do piano, a criação do Pianoforte24, por Bartolomeu Cristofori, no século XVIII, e sua compactação em piano de mesa, contribuíram para que este superasse o cravo em venda e produção, e desse vazão a músicas até então impossíveis de ser ouvidas25. A ascensão de um novo aparato técnico, ao formar sua própria gramática, age no universo que o antecede. Desta forma, o compositor Franz Liszt (1811/1886), dizia que o piano “no escopo de suas sete oitavas, abarca todo o alcance da orquestra, e bastam os dez dedos do pianista para reproduzir todas as harmonias produzidas por cem músicos de orquestra tocando juntos” (LISZT apud BLANNING, 2011, p. 196). Assim, o piano não põe em cheque somente seu antecessor direto, o cravo, mas todo o paradigma de produção/execução de música baseado nas orquestras, ao mesmo tempo em que dialoga com sua lógica, pois “por seu intermédio podem ser transmitidas obras que normalmente permaneceriam desconhecidas, devido às dificuldades de reunir uma orquestra completa” (idem, 2011, p. 196). O novo instrumento também retira a exclusividade do ato de tocar músicas daqueles que o tinham por ofício (ou ao menos o amplia significativamente), tornando o instrumento uma peça de mobília burguesa (como no argumento de Weber) e parte do modo como esta classe se distinguiria em seu universo social, integrando o sistema de educação, para as mulheres, como prenda, e convívio social, com saraus. Esta mudança foi alvo de amplas críticas por parte das camadas mais tradicionais de músicos que viam o instrumento como um “usurpador tirânico” da função das orquestras, além de elemento vulgarizador da música, por sua ampla popularização. Querelas 24 Mecanismo que dava ao piano o que no jargão musical se conhece como dinâmica, ou seja, a capacidade de oscilar a intensidade das notas executadas Este mecanismo substituía o toque das cordas do piano, antes feito por pinçamento, por um martelo, cuja intensidade poderia ser controlada pelo executante. 25 Como Fur Elise, de Beethoven, composta supostamente em 1810 e publicada em 1867, que usa a dinâmica em sua narrativa sonora. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 29 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais à parte, menos de um século mais tarde, qualquer sallon de romance de bang-bang tinha lá seu pianista com a frase “don’t shoot me I’m Just the piano player”26 grafada no instrumento, já destituído da aura de artista criada pelo romantismo, como um profissional liberal, funcionando como parte do cenário. O piano tornava-se, na esteira de suas progressões técnicas, o instrumento moderno por excelência, tornando a música uma experiência mais privada/doméstica e expandindo diversos mercados que tinham como foco a venda do piano em si (com luthiers e fábricas por toda Europa e América); de acessórios como cordas, teclas, pedestais; e serviços como o de afinação e ensino de música. Talvez o mais importante, no que importa à minha análise desta abertura de mercado, seja a comercialização ampla de partituras, que não somente popularizava a música em si, mas contribuía para a formatação de estilos populares e formação de compositores que compunham suas obras pensando, não mais em agradar ao mecenas, patrão ou nobre do qual era compositor exclusivo, mas sim ao mercado consumidor, ávido por novidades musicais27 e regulado pelo próprio mercado. Não somente os instrumentos de teclas sofreram diversas modificações até consolidar uma forma que pudesse ter ampla exploração mercadológica e reprodução em série. Também o violino e demais instrumentos de corda modificaram-se para melhor enquadramento em orquestras e para uso privado. A criação das chaves para flauta, no século XIX, foi outra grande mudança, assim como a invenção do saxofone, instrumento de sopro versátil e timbre único (e inédito à época de sua invenção); a válvula para os instrumentos de sopro significou uma grande mudança em toda a família dos metais, e possibilitou o “explosivo crescimento das bandas de metais na segunda metade do século XIX” (BLANNING, 2011, p. 209) e a “emancipação social” (HERBERT apud BLANNING, 2011, p. 209) de músicos amadores, com a abertura do mercado de bandas liberais, que no Brasil teriam sua versão mais primitiva com a chamada “música de barbeiros”28. Vale ressaltar que é este mesmo modelo de bandas de metais (ver nota 14, sobre as bandas marciais no Brasil) que a 26 “Não atirem em mim, sou só o pianista”. A cena, aparentemente desconexa, está aqui para mostrar como os avanços técnicos mudam não somente a música, mas como um mesmo avanço, no caso, o piano, ainda cabe às mais diversas apropriações. 27 A mudança técnica não foi o único fator desta mudança, mas certamente as novas tecnologias têm na música um efeito mais “audível” e imediato que, por exemplo, na literatura. Blanning ainda aponta outros fatores para aquilo que chama de triunfo da música: prestígio, propósito, lugares e espaços, libertação. 28 Segundo Tinhorão, os barbeiros negros tinham muito tempo de ócio por conta de sua função. A profissão de barbeiro exigia a mesma habilidade do músico, ou seja, o trabalho com as mãos; assim “ao juntarem-se para a execução concertante de música instrumental, tornavam-se também capazes de sopro, corda e percussão, produzindo um tipo de música alheia a qualquer preocupação de funcionalidade, o que valia dizer gratuita em nível de gosto puramente estético” (p, 125). O que interessa no meu argumento é entender que “a enumeração de tão variadas solicitações para a música de barbeiros serve desde logo para pôr em destaque um facto sociocultural muito importante: o de que, meio século depois do seu aparecimento, aqueles grupos de instrumentistas negros eram praticamente os únicos fornecedores de um novo tipo de serviço urbano, ou seja, o da música destinada ao entretenimento público”. (idem p. 126). Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 30 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais eletrificação suplantou no mercado do Maranhão, nos anos 1960, como veremos adiante (ver figuras 02 e 03). Figura 3 - Banda de sopro inglesa em 1903. FONTE: Blanning, 2008. Figura 4 – ... e banda de sopro no Maranhão em 1937. Este modelo seria hegemônico até a eletrificação, nos anos 1960. FONTE: Capa do CD Música no Maranhão, de 1997. Outra mudança técnica facilitaria ainda mais que a música estivesse presente nos mais diversos espaços: a gravação (e seu arauto maior, o gramofone) no final do século XIX. Se a populaBruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 31 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais rização de instrumentos, proliferação de bandas e espaços de fruição levaram a música a públicos e artistas amadores que antes não tinham acesso a ela, as gravações e a criação do reprodutor de gravações, o gramofone, trazem a possibilidade de a música existir sem a presença de um músico, o que Schafer identifica como o fenômeno da esquizofonia: O prefixo grego schizo significa cortar, separar. E phone é a palavra grega para voz. Esquizofonia refere-se ao rompimento entre um som original e sua transmissão ou reprodução eletroacústica. É mais um desenvolvimento do século XX. No princípio, todos os sons eram originais. Eles só ocorriam em determinado tempo e lugar. Os sons, então, estavam indissoluvelmente ligados aos mecanismos que os produziam. A voz humana somente chegava tão longe quanto fosse possível gritar. Cada som era individual, único. Os sons têm semelhanças entre si, a exemplo dos fonemas que se repetem numa palavra, mas não são idênticos. Testes mostraram que é fisicamente impossível para o ser mais racional e calculista da natureza reproduzir duas vezes exatamente da mesma maneira um só fonema de seu próprio nome. (SCHAFER, 2001, p. 133) A posterior disseminação de fonogramas através dos jukeboxes29 e do rádio foram mudanças radicais na música e na sociedade, no sentido de que não somente as obras compostas antes dos processos de gravação poderiam ser registradas, mas também um novo leque de composições passava a ser feito na ciência da possibilidade de registro sonoro e de seus limites. Figura 5 – Anúncio do jukebox Wurlitzer, década de 1940. A música gravada inserida nos espaços públicos e de consumo. Fonte: Google images. 29 Jukebox é um aparelho de reprodução de fonogramas geralmente instalado em locais públicos como bares ou lanchonetes. A máquina toca mediante pagamento por faixa. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 32 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Como consequência, da mesma forma que ocorreu com a popularização dos instrumentos, as gravações contribuem para o remodelamento de posições sociais, ofícios e na circulação de diversos tipos de capital em torno da música. A forma de captação de som para o gramofone, através de um cone que leva o som a um cilindro ou disco onde a faixa é registrada, privilegiava instrumentos de som forte, “altos e direcionais” (Blanning, 2011, p. 212), assim como a voz dos tenores era mais bem reproduzida. Desta feita, pianos, alguns instrumentos de corda ou outros de sons difusos, menos marcados, perdiam a pauta do mercado fomentado pela nova tecnologia. No primeiro quartel do século xx começa o processo de eletrificação do som, com amplificadores e microfones, que codificavam as ondas sonoras em impulsos elétricos transmitidos via rádio ou registrados em cilindros, posteriormente substituídos por discos de vinil. Mas para muitos dos que ganhavam a vida com música, a disseminação das gravações trouxe grandes transtornos. Para cada um que ganhou emprego no novo setor, muitos outros se viram descartados. Assim como a divisão de trabalho e a linha de montagem tornaram os artesãos desnecessários, a mecanização da música reduziu a necessidade de dotes musicais tradicionais. A combinação de cinema, rádio e disco transformou inexoravelmente o público de músicos em público consumidor de música. (...) Por que comprar e aprender a tocar piano se um gramofone oferecia desempenho musical superior por muito menos dinheiro? Nas décadas de 1930 e 1940, o número de músicos profissionais caiu de 26 mil para 15 mil e dos professores de música, de 21 mil para 11 mil (idem, p. 217). Em paralelo, a rádio oferecia o mesmo produto (música) por menos dinheiro, sem necessidade de gastos extras (com discos) e trazia como brinde todo um universo simbólico de artistas, crooners, locutores, peças de ficção, notícias de maneira mais veloz que os jornais impressos e a possibilidade, pela primeira vez, de grandes territórios se conectarem na mesma informação. Estava aberta a “era do rádio”30. É interessante notar que o discurso da relação piano x orquestra se assemelha ao discurso gravação x performance ao vivo, nos quais a nova tecnologia traz consigo possibilidades antes inexistentes, mas também uma fissura no estado de coisas baseado no modo de fazer anterior. Este discurso vai se repetir nas sucessivas mudanças técnicas pelas quais passará o ato de fazer e consumir música, particularmente naquela que é o objeto desta pesquisa, como veremos com mais detalhe ainda neste capítulo. Por ora, cabe atravessar o oceano rumo ao Brasil, na tentativa de compreender como a música brasileira se formatava pela perspectiva das novas tecnologias. 30 Era do Rádio é o período entre a popularização deste meio de comunicação e o advento da televisão (entre as décadas de 1920 e 1950), durante o qual o rádio foi a mídia hegemônica, importante na formação de opiniões e popularização de canções. No que interessa a minha pesquisa, a formatação, nas décadas de 1920 e 1930, de novos gêneros musicais. Nos Estados Unidos e Europa o rádio estava presente no entre-guerras (décadas de 1920/30); no Brasil o rádio teve seu apogeu nas décadas de 1940/50, com forte expressão pela Rádio Nacional (1939) e a política cultural do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937 a 1945). Sobre isto ver CALABRE, 2002. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 33 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais 1.2. A MÚSICA BRASILEIRA E A TÉCNICA A entrada da possibilidade de gravação sonora no Rio de Janeiro foi fundamental para a consolidação do samba como música nacional. Wander Nunes Frota (2003) mostra como a gravação da canção “Pelo Telefone” em 1916, de Donga e João Mauro de Almeida 31, a primeira a estampar a palavra samba como gênero musical, marcou a produção de música popular no Brasil. Mais relevante é a forma como canções no feitio de Pelo Telefone estavam para as gravações quando esta tecnologia literalmente aportou no Brasil32. O músico e musicólogo Luiz Tatit enxerga os registros fonográficos nos primeiro anos do samba como uma forma de sedimentação do próprio samba, sendo “os primeiros beneficiados pela nova tecnologia” (TATIT, 2008, p. 33) exatamente aqueles cujas obras estavam mais próximas do gosto popular, que executavam “os sambas de diversão talhados para os passos de dança” (idem, p. 31). Em outras palavras, os estratos sociais marginais, que futuramente se associariam à figura zecarioquesca do malandro. Estes compositores não dominavam a escrita musical e suas obras acabavam por perder-se na ressaca do dia seguinte à composição; alguns músicos investiam na escrita de suas canções por profissionais, como no caso de Noel Rosa33, pelo registro das obras, mas também pela possibilidade de entrar no mercado de partituras. A forma de cantar e tocar dos primeiros sambistas e músicos de gêneros próximos como o lundu e a modinha34, além do aparato necessário para as suas canções (por vezes somente voz e violão) “mostravam-se compatíveis com as limitações técnicas da grande novidade” (idem, p. 33). Assim, o “encontro dos sambistas com o gramofone mudou a história da música brasileira e deu início ao que conhecemos hoje como canção popular” (idem, p. 35).35 31 Há uma querela sobre a autoria desta canção, que remete à própria forma de composição usual do tipo de música a festa nas chamadas “casas das tias baianas”. Boa parte dos músicos populares não dominava a escrita musical e as canções eram feitas coletivamente, em rodas do que se chamaria posteriormente de samba. Assim, muitos participantes da roda inseriam versos ou inflexões em uma canção. Donga teria assinado a canção como sendo sua. Ver FROTA, 2003 e TATIT 2004. 32 Algumas das primeiras gravações foram realizadas em um estúdio montado num navio atracado na Bahia de Guanabara. Sobre isto ver FROTA 2003. 33 Para mais sobre isto ver FROTA, p. 86 a 91. O autor entende o domínio da escrita e, por conseguinte, o alcance do mercado de partituras como uma importante instância de consagração da música popular. 34 Segundo o Dicionário de termos e expressões da música, Lundu seria uma “Dança de roda e umbigada brasileira, teve origem no batuque dos bantos africanos, provavelmente trazida de angola pelos escravos na segunda metade do século XXVIII, e posteriormente introduzida nos salões das cortes do Brasil e Portugal, assimilando no Brasil as influências da modinha portuguesa e do fandango espanhol. Costuma ser acompanhado por uma simples viola de arame e palmeado, mas pode empregar uma variedade de instrumentos, como taróis, cavaquinhos, pandeiros, rabecas e bandolins” (DOURADO, 2004, p. 188); Modinha seria um “gênero de canção surgida no Brasil entre brancos e mestiços no final do século XVII, que assimilou fortes influências da música portuguesa, depois de ter sido lá introduzida em meados do século XVIII. Originalmente, era encontrada apenas em compasso ternário. No Brasil, a modinha é bastante permeável a influências das mais diversas, adaptando-se facilmente às tradições regionais.” (idem, p. 209). 35 Nunes Frota destaca outra canção, Na Pavuna, sucesso no carnaval de 1930. De autoria de Dornellas e Almirante e gravada pelo Bando de Tangarás; foi a primeira canção a registrar a percussão tradicional do samba. Ainda segundo o autor, havia resistência dos técnicos estrangeiros em gravar a percussão brasileira, sob o argumento de que “não ‘graBruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 34 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais A afirmação de Tatit pode parecer exagerada ao jogar sobre os ombros da técnica todo o peso da formatação da canção popular brasileira. O começo do século XX, o Brasil possuía uma confluência de instâncias que levam a este pensamento: a política varguista36, que usou a música popular como instrumento de propaganda, a busca modernista por uma identidade brasileira nas expressões populares, a influência do rádio e a mercantilização em larga escala da canção, que se sobrepunha, como forma hegemônica, no campo da produção musical no Brasil (em detrimento da música instrumental). A técnica pode não ter sido a “responsável” pelas mudanças ocorridas na música e no jogo de relações em torno dela, mas as novas possibilidades, antes de alterar a canção em si, alteram exatamente este jogo de relações, que passam a gerar demandas sobre o produto canção. A técnica media as relações e, como tal, as formata (ver IAZETTA, 2009). Walter Benjamin, em seu ensaio “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução” (1983), debate os efeitos da reprodução em larga escala da obra de arte, com base nas teorias de Marx e na expansão/crítica de seus postulados à área da cultura, no que ficou conhecido como a Escola Crítica. Benjamin enfoca, não somente os efeitos da reprodução em campos de produção artísticas existentes antes dela (como a pintura, a escrita), mas no surgimento de novas formas de arte que têm na reprodução a sua singularidade e maneira de concepção, em especial, o cinema. Fruto das mudanças da modernidade, o cinema seria uma nova forma de ver e exibir o mundo, desvendando “novas estruturas da matéria” (idem p. 23), facetas que estavam “visíveis”, mas que o homem era ainda incapaz de ver. Assim, o cinema, fotogramas dispostos em sequência inicialmente mudos, que ganhou o acompanhamento do som, mudaria todo um paradigma de percepção e produção da realidade, assim como promoveria uma “crítica revolucionária das concepções antigas de arte” (idem, 1983 p. 18), pois “o que caracteriza o cinema não é apenas o modo pelo qual o homem se apresenta diante do aparelho, é também a maneira pela qual, graças a este aparelho, ele representa para si o mundo que o rodeia” (idem, 1983 p. 22). Benjamim ainda diz que “as técnicas de reprodução aplicadas à obra de arte modificam a atitude da massa com relação à arte.” (idem, 1983, p. 21). Não só o cinema é uma forma de arte nova e moderna, como as formas anteriores de arte têm seu caráter e valor de culto e exibição37 vavam’ bem e acabavam atrapalhando a voz do intérprete e comprometendo também a performance dos instrumentos ‘mais nobres’ de sopro e corda.” (Frota, p. 89). Frota credita esta gravação, fruto da insistência dos autores, como aquela que fez com que a cozinha do samba tradicional ganhasse as ruas, sendo também “a primeira vez no mundo que instrumentos de percussão teriam sido usados em gravações de disco pelo mundo afora.” (idem, p. 89/90) 36 O Estado Novo é o período no qual Getúlio Vargas foi presidente do Brasil, de 1937 a 1945, caracterizado pela centralização do poder nas mãos do presidente/ditador. No plano cultural, teve grande interesse na formulação de uma identidade cultural brasileira, com expressiva participação do movimento modernista, buscando e formatando várias ideias de brasilidade. 37 Segundo Benjamin, o valor de culto de uma obra de arte confunde-se com sua aura, com algo quase sobrenatural, único, que uma obra pode possuir, por sua singularidade no mundo. Este valor de culto é paulatinamente perdido com o crescimento do valor de exibição, que seria aquele gerado pela industrialização, que propicia à obra de arte sua reprodução ampla e disponibilidade mercadológica. Assim, a obra passa a existir como produto antes de como objeto Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 35 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais alterados. O tipo de música popular que emerge com as técnicas de reprodução tem pouco em comum com aquela feita antes destas, pois a técnica subtende demandas de mercado e a superposição do capital econômico àquilo que poderia ser visto como a aura da obra de arte. Se “a própria noção de autenticidade não tem sentido para a reprodução” (idem, p. 07), a canção produzida e consumida na era das revoluções tecnológicas presta cada vez menos conta aos cânones, escolas e formas de fazer que lhes antecederam. Na trajetória da canção popular brasileira, a técnica foi relevante em diversos momentos. Se a formação do samba enquanto gênero de canção nacional passa pelas técnicas de gravação, a popularização do rádio como instância de legitimação da música popular também consagra um tipo de performance que perpassa o gosto popular, mas também as estruturas de captação de som existentes à época. Esta performance está relacionada à grande potência vocal, ao “dó de peito”, à impostação firme e persuasiva do canto operístico, que no Brasil se convencionou chamar de “vozeirão”. É desta época a entrada no Brasil de vários gêneros musicais estrangeiros como o tango e o bolero, que a grande “massa” ouvinte do rádio consumia e “que uma certa intelectualidade ligada à música popular julgava nociva à tradição” (NAPOLITANO, 2005, p. 57). No campo de disputas em torno da identidade nacional na Era Vargas, a afirmação dos gêneros populares brasileiros se dava pela negação dos gêneros estrangeiros, que eram tachados de exagerados, melodramáticos. Uma nota intitulada “antologia da música brasileira” (não assinada) argumenta que as músicas estrangeiras veiculadas pelo rádio – o bolero, a rumba e, principalmente, o bebop – se misturam com a música popular, causando impacto negativo na nossa cultura (NAVES, 2010, p. 11). Ainda no calor das discussões sobre a autêntica música do Brasil no Estado Novo, é criada a Missão de Pesquisa Folclórica (da qual falarei mais no terceiro capítulo), capitaneada por Mário de Andrade, que esteve à frente do Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo, entre 1935 e 1938. Esta missão, formada por “quatro pesquisadores munidos com o que havia de mais moderno em tecnologia de registro sonoro e visual” (SANDRONI, s/d, p. 18), viajou pelo norte e nordeste do Brasil (na passagem pelo Maranhão foi registrado o tambor de mina, bumba meu boi e tambor de crioula. Ver FERRETTI, M. 2006), “com o intuito de descobrir o que fosse possível sobre a cultura popular destas regiões, e muito especialmente sobre sua música folclórica” (SANDRONI, s/d, p. 18). carregado de mistério. Reproduzem-se cada vez mais obras de arte que foram feitas justamente para serem reproduzidas (BENJAMIN, 1983, p. 11). Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 36 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais O que interessa neste momento é a análise das categorias “populário” e “popularesco”, criadas à época por Mário de Andrade. A primeira se referia aos achados de sua Missão de Pesquisa, a segunda a: Submúsica, carne para alimento de rádios e discos, elemento de namoro e interesse comercial com que fábricas, empresas e cantores se sustentam, atucanando a sensualidade fácil de um público em vias de transe. (ANDRADE apud NAVES, 2010, p. 09) O popularesco, neste caso, coincide com as canções modernas, criadas a partir da era da reprodução técnica e dos formatos de mercado que delimitavam tempo de duração, temática, timbres e demais parâmetros sancionados por este. A afirmação da identidade nacional negava, portanto, o próprio mercado da música, costumeiramente visto pelas elites intelectuais como algo que degenera a “cultura pura”. Este embate, que envolve a afirmação através de um passado mítico (o samba de raiz, o bumba meu boi) faz parte de algumas teorias de formação do Brasil38, como demonstra Renato Ortiz, quando percebe que “a identidade nacional está profundamente ligada a uma reinterpretação do popular pelos grupos sociais e à construção do Estado brasileiro (ORTIZ, 1985, p. 08). A música é um dos elementos que integra o que Ortiz chama de popular e, como a construção do estado brasileiro se deu através de diversos regimes políticas e corpos ideológicos, a interpretação aceca da canção popular também passou por vários momentos. O ciclo de ressignificações e da dialética de negação/inserção de gêneros de música popular ao corpo sancionado da música brasileira pelas elites detentoras da voz crítica e dos meios de sedimentação histórica da canção, existe nos debates intelectuais brasileiros “desde que o samba é samba”, mas estes debates não estão no escopo desta pesquisa e me interessa salientar a resistência ao bolero (que é a base das serestas, objeto maior deste trabalho) por parte das camadas intelectualizadas da elite, desde o momento de sua entrada no panorama da canção no Brasil (porque estou falando do período de sua inserção no país). Esta negação ao bolero e ao mercado hegemônico adquire forma musical concreta com o advento da Bossa Nova, nos anos 1950, fruto não só do encontro de elementos do samba com o cool jazz americano, mas das novas técnicas de captação de som, que possibilitavam o registro tanto da voz aveludada de João Gilberto (como já fizera Chet Baker), quanto do seu violão gago39. O embate no qual os fundadores da Bossa Nova se engajavam era aquele da negação ao exagero, à provocação de efeitos, e ao kitsch demonstrado no padrão de canção representado pela Rádio 38 Estas teorias podem ou não estar aliadas a políticas de estado. No caso varguista, o samba como identidade nacional era parte de sua política cultural. 39 “Certa batida de violão da Bossa Nova em que predominam pausas nas partes fortes dos tempos, adequando-se ao contorno rítmico das músicas junto às batidas da bateria no aro da caixa ou no contratempo.” (DOURADO, 2004, p. 358) Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 37 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Nacional, “considerados excessivos e associados ao mau gosto” (NAVES, 2010, p. 26). A oposição se caracterizava pela busca de uma “música anti-contrastante” (PITRE-VÁSQUES, 2009, p. 09). A dicotomia entre bossa e bolero, por mais que perpasse inúmeros fatores ideológicos, de afirmação de classe social e formação de espaços simbólicos, carrega, se observarmos os dois gêneros, uma forte relação com a época de criação destas formas de canção e as possibilidades técnicas existentes e disponíveis em seu tempo. O vozeirão do rádio não era somente um pavoneamento para exibir potência vocal, mas a forma como a voz tinha alguma chance de captação. A canção bossa-novística, com suas inflexões harmônicas e melódicas, cantores de voz branda e atitude comedida, não teriam sido tecnicamente possíveis anos antes, salvo em apresentações intimistas. Na década seguinte à Bossa Nova, outro aspecto técnico torna-se protagonista de debates na música brasileira. A Jovem Guarda/Tropicalismo e a MPB/Bossa Nova, polarizavam um embate entre “alienação” e “engajamento/nacionalismo” com a acusação de que o movimento liderado por Roberto Carlos desvirtuava a música e a juventude brasileira, e que esta música deveria seguir valores e elementos que fossem nacionais e barrassem a invasão do rock, por exemplo. O elemento físico do conflito tinha seis cordas, braço de madeira e captadores magnéticos: a guitarra. Em julho de 1967, com patrocínio da TV Record (emissora que realizava os grandes festivais de música popular)40, ocorreu, em São Paulo, a “Passeata contra a guitarra elétrica”41. Na prática, era um evento promocional do programa “Frente única da MPB”, que bradou hinos e canções nacionais em defesa da “verdadeira” música brasileira. A passeata era integrada por nomes como Elis Regina, Edu Lobo, Jair Rodrigues e Gilberto Gil. Para estes agentes, o uso da guitarra elétrica já representava complacência ao imperialismo cultural americano, e fugia do esquadro de qualquer noção de brasilidade estabelecida pela tradição da música brasileira. A guitarra, enquanto aparato técnico, fornecia a agilidade necessária ao rock da Jovem Guarda e seu uso ajudava a definir a própria categoria jovem, dos anos 1960 em diante, o que Blanning chamou de “eletrificação da cultura jovem” (BLANNING, 2011, p. 225). A guitarra era um instrumento barato e simples, que demandava menos estudo e treino para atingir os efeitos necessários às expressões que se tornavam populares como o rock and roll, de maneira não oferecida por nenhum outro instrumento, além de ser extremamente versátil. O gênero musical que dominou o mercado mundial na segunda metade do século XX, o rock, tem seu fundamento nos mais diversos usos da guitarra elétrica e ideias como o “faça você mesmo”, do movimento punk,42 40 Uma fonte rica sobre os festivais é o site www.eradosfestivais.com.br. 41 Ver Araújo, 2005. 42 O movimento punk surgiu na Inglaterra dos anos 1970, como uma “expressão simultânea de frustração e desejo de mudança” (HOME, 2005), visível principalmente através da música de bandas como Sex Pistols e The Clash. Parte da forma de expressão punk consistia em negar o stablishment e os parâmetros formais de produção de qualquer coisa, Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 38 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais ficam possíveis de expressão por um instrumento que permitia muito impacto sonoro com pouco apuro formal e estudo. “Na era pós-Fender, era possível formar uma banda com pouco dinheiro e menos know-how: bastavam três acordes para começar a tocar” (BLANNING, 2011, p. 243). No seu festival de 1970, a Record proibiu o uso da guitarra elétrica. Dois anos antes, a deflagração do movimento tropicalista havia subvertido a noção de nacionalidade na música brasileira, a estrutura de arranjos/letras e a forma de usar instrumentos e timbres. Mesclando o rock and roll de bandas como os Beatles em sua fase Sgt Peppers e sons folclóricos populares do Brasil, nomes como Caetano Veloso, Tom Zé e Os Mutantes usavam o pressuposto antropofágico43 de absorver elementos estrangeiros (eruditos e populares) para criar algo brasileiro ou mesmo construir/reproduzir uma ideia de brasilidade, como fizeram os Novos Baianos44. Os Mutantes usavam guitarras elétricas e sonoplastia (sons que não vinham diretamente dos instrumentos e que tentavam imitar sons cotidianos) em suas músicas, indo do sussurro de Rita Lee, em uma faixa, ao berro, em outra. A eletrificação e os pedais de efeito ajudam a organizar a forma que a música adquiria.45 Se a Bossa Nova era o anti-bolero, a busca de uma canção moderna brasileira e a tropicália advogava a abertura geral a todos os elementos de todas as naturezas disponíveis, ambos tinham em comum o uso de diversas técnicas e estratégias como parte de seus projetos de afirmação46. Anos mais tarde, todas estas tendências encabeçadas pelas elites intelectuais fariam as pazes sob o abrangente rótulo de MPB. através de diversas estratégias, assim “garotos que nunca tocaram um instrumento na vida formaram bandas e, dentro de poucos meses, faziam apresentações públicas. Uma ética do faça-você-mesmo prevaleceu, com selos independentes de discos lançando bandas desconhecidas, uma vasta proliferação da imprensa independente na forma de fanzines punk (geralmente xerocados em edições de algumas centenas), e quase todos os punks fazendo alterações no design de suas roupas, na forma de rasgos e cortes” (HOME, 2005, p. 127). 43 O manifesto antropofágico de Oswald de Andrade propõe que “só me interessa o que não é meu” e que nos cabe comer o que for estrangeiro, para digeri-lo em algo brasileiro. 44 Os Novos Baianos usavam as imagens do samba/choro como estilo nacional e o futebol era tão parte da banda quanto à música. Algumas letras fazem apologias à imagem do malandro (A minha velha é louca por mim/só porque sou assim/meu pai, por sua vez/se liga na minha/e nos botecos onde passo não há outro papo/eu sou o caso deles/sou eu que esquento a vida deles/no fundo, no fundo coloco os velhos no mundo/boto na realidade/mostro a eternidade/senão eles pensavam que tudo era divino, maravilhoso/levavam tudo na esportiva/ficavam contado com a sorte/e não se conformariam com a morte). É deles o famoso verso “Quem não gosta de samba bom sujeito não é.” 45 José Ramos Tinhorão interpreta tanto a Bossa Nova quando a Jovem guarda como dois lados da mesma moeda, que é a moeda da invasão cultural americana. De clara abordagem Marxista, o autor conclui seu pensamento decretando o fim da música brasileira: “Ao lado de explosões eventuais de um ou outro gênero ou estilo de música urbana realmente brasileira, irrompidas como modas temporárias ao sabor dos interesses da indústria do disco, todas as demais criações classificadas como ‘brasileiras’ surgidas pelo correr da década de 1980 – principalmente durante o carnaval baiano – viriam provar apenas a extensão da penetração que os ritmos de massa internacionais alcançaram entre as próprias camadas populares.” (TINHORÃO, 1990, p. 274) 46 Tinhorão diz que, em comum, Bossa Nova e Tropicália guardam a desbrasileirização da música. A primeira era fruto de um grupo de jovens endinheirados que decidiu “realizar como amadores aquilo que os músicos de boîte já faziam como profissionais: imitar os americanos: as samba sessions que lhes permitia tocar samba em estilo jazz , com liberdade de improvisação e sem preocupação de tempo (Tinhorão, 1990, p. 247); a Tropicália seria uma enorme vitrine do americanismo e estaria alinhada com os projetos desenvolvimentista da Ditadura Militar no Brasil, fazendo estripulias no palco e nos discos, “certos de estar promovendo a revolução cultural” (TINHORÃO, 2010, p. 41) Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 39 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais O que me interessa nestes casos é ver como estas tendências trataram, ou de alguma maneira foram condicionadas pelo aparato técnico de seu tempo, e a forma como a disponibilização de novas tecnologias gerou, ou forneceu, possibilidades para o afloramento de novos comportamentos musicais. Os Mutantes não são somente fruto da rebeldia de seu tempo, mas tiveram na saturação sonora, nas guitarras amplificadas, flangers, delays, overdrives e wahs o instrumento de expressão adequado. As festas de seresta e o estilo de canção que se confunde com elas também estão intimamente ligados a elementos técnicos. Para entender a conformação deste estilo, embarquemos novamente, agora do centro hegemônico da indústria cultural brasileira para um estado no nordeste onde estas discussões entrariam de maneira tímida nos anos 1970, com efeitos particulares e soluções não tão particulares: o Maranhão. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 40 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais 1.3. ORQUESTRAS, BANDAS DE BAILE, SERESTA O Maranhão é um estado com grande fama de festeiro47. Este discurso está presente na mídia, nas publicações voltadas para o turismo, na literatura local e no recorte que alguns setores da academia fazem dos temas abordados sobre o estado (no qual se inclui este trabalho). As festas que rendem fama ao estado (e à sua capital, São Luís), presentes nestes discursos, são aquelas reconhecidas por estes mesmos agentes como as de cultura popular, que, a despeito de ter passado por processos de inserções traumáticas junto às elites locais (das quais falarei no terceiro capítulo), são hoje aquilo que os agentes promotores do estado utilizam para distinguir a cultura do Maranhão das demais unidades da federação, de maneira que as pessoas de fora têm a imagem de que somos uma terra de bumba meu boi, tambor de crioula e reggae o tempo inteiro48. Contudo, o estado possui um mercado de música e uma rede de produção e venda de canções populares em outros estilos, já desde os anos 1970. Aqui me interessa entender os caminhos trilhados por algumas gerações de músicos e outros agentes integrantes destas redes sociais de produção e venda de performances de música popular urbana; músicos que têm em comum a visão de música enquanto um produto inserido em um mercado, para quem a canção não é tocada por motivos sagrados, que não tem fortes adesões a estilos musicais e cuja função principal do seu trabalho é a de fomentar a dança e atender aos anseios do contratante. Estes músicos tiveram um mercado rico e diversas oportunidades de trabalho a partir do final dos anos 1960, quando a eletrificação trouxe ao estado, num fluxo capital-interior, as chamadas bandas de baile. Bandas de baile são grupos musicais formados com uma estrutura básica de guitarra, baixo, bateria e voz. Estas bandas têm grande rotatividade de integrantes, não possuem estrelas ou composições próprias, geralmente não possuem inserções fonográficas e escolhem seu repertório pelo que está sendo sucesso na estação, independentemente do estilo. As bandas podem crescer ou diminuir de acordo com a demanda ou a necessidade de um estilo específico, além de transformar-se por completo para um evento especial. No carnaval, ensaiam um repertório momesco, para o São João, concentram-se nos forrós, toadas e outros estilos cuja execução está implícita no momento. Podem ser uma banda de pagode para um evento e converter-se no seguinte em um 47 Esta fama é construída, em boa parte, pelas iniciativas turísticas no estado, e podem ser vistas no material que estas iniciativas disponibilizam em brochuras, eventos e na imprensa. Nelas se pode ler Slogans como “São Luís: Ilha do Reggae” (folheto sobre o projeto da Secretaria municipal de turismo, s/d); “São Luís: Um grande terreiro!” (Cazumbá, jornal turístico e cultural do Maranhão, ed 27, junho/julho 3006). 48 Meus trabalhos, por mais de 10 anos, como guia de turismo em São Luís me possibilitaram incontáveis narrativas desta ideia, desde pessoas espantadas com a presença de outras festas, àquelas que exigiam festas de bumba meu boi a cada dia, a cada esquina. Freire entrevistou guias de turismo em seu trabalho sobre o reggae e estas expectativas. Colheu o seguinte depoimento: “Porque eles chegam aqui e pensam que vão encontrar um rastafári em cada esquina. Essa imagem que é vendida pelo próprio governo, na mídia: São Luís como Jamaica brasileira... eles acham que aqui todo mundo gosta de reggae e não é bem assim.” (SOARES apud FREIRE, 2010). Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 41 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais grupo de rock; podem hoje tocar sertanejo universitário49 e amanhã mesclar tudo isso em outra festa. As bandas podem ou não ter dançarinos, múltiplos vocalistas, ser residente em um clube ou itinerante. É comum que tenham parelhas de sopro. As bandas de baile existem em todo o país. No Maranhão, havia bandas no começo dos anos 1960, mas o mercado só se torna próspero pelo fim da década. Outras cidades tinham modelos particulares de festas urbanas, como a gafieira carioca. No Maranhão era também comum a antiga seresta, feita com violões e percussão. O que tento demonstrar aqui é que as bandas de baile começaram a reunir um público cada vez mais numeroso em uma festa só, promovendo maior centralização no mercado, circulação de bens e narrativas, como apontado por vários dos meus entrevistados. Na maioria dos lugares onde este mercado se fomentou, a eletrificação dos instrumentos confunde-se com a própria chegada da eletricidade. Nós criávamos muito problema pra orquestra que tinha lá [em Itapecuru/MA] que era Os Furiosos, né? E depois que nasceu o Bandeirantes, aí o povo começou a chamar “A Furiosa”, né, e começou a tratar de forma já deselegante e pejorativa, uns rótulos pejorativos pra coisa que era a raiz da terra, né, porque surgia algo novo. Então eu passei a ser o vilão, o inimigo, eles passaram praticamente a não tocar mais na cidade, só tocavam nas festas da periferia, dos interiores, que não tinha energia elétrica. E quando puxavam um fio de energia já era os Bandeirantes que tocava (Almir Sérgio, músico de banda de baile e seresteiro, que hoje assina como Almir de Deus, 2011). O depoimento de Almir Sérgio é semelhante ao de vários outros agentes em atividade no mercado de festas pelos anos 1960/70, que apontam para uma mudança no tipo de estrutura performática, propiciada pela eletrificação das cidades/lugarejos, assim como o expressivo crescimento de um mercado, que se expandiria, ainda neste formato, até o final da década de 1980, quando sofreria um choque, também fruto de mudanças tecnológicas. As festas urbanas no Maranhão eram animadas, como mencionado, pelas orquestras, bandas marciais e big bands, que não precisavam de amplificação. Contudo, a música trazida pelo rádio desde os anos 1940 (no Maranhão, a primeira rádio a operar foi a rádio Difusora, em 1941, posteriormente rebatizada como rádio Timbira) não era facilmente reproduzida ao vivo no interior, salvo em festas com som mecânico50, nas cidades com energia elétrica. Enquanto a juventude de São Luís já formava pequenos grupos inspirados na Jovem Guarda ou outras correntes (Papete, 49 Sertanejo universitário é uma corrente da música sertaneja surgida nos anos 2000, que busca usar elementos da música sertaneja tradicional com uma veia mais pop/rock, para atrair o público mais jovem (daí o nome); há também o forró universitário (não confundir com forró eletrônico). 50 Som mecânico é como se conhece, em São Luís, a modalidade de execução de música na qual esta é reproduzida através de toca discos, toca fitas ou, recentemente, em aparelhos que leiam arquivos MP3; sem música ao vivo. É uma categoria nativa, amplamente utilizada em peças publicitárias e nas falas de promotores de festas, público e DJs. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 42 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais 2011), cidades menores tinham seus conjuntos de forró e serestas, estas ainda com violão, à moda de serenatas51. O começo da amplificação e do mercado de bandas de baile no Maranhão, nos anos 1960, foi marcado pela busca incessante por novas tecnologias e pela convivência com a precariedade técnica. As bandas maiores tinham acesso a novas possibilidades tecnológicas como pedais de efeito e múltipla amplificação, assim como maior capital de giro. É importante mencionar que o Maranhão é um estado distante dos grandes centros de produção e comércio de instrumentos musicais e tecnologias, o que aumenta a dificuldade de acesso ao que surge de novo neste campo e acarreta maiores custos52. A cidade conta com poucas lojas de música, tradicionalmente no centro. A capital São Luís já contava com grupos elétricos de baile no começo dos anos 1960, sendo seu maior expoente a banda Nonato e seu Conjunto (1963), cujos êxitos em turnês, rádio e em disco foram essenciais para a formação de outras bandas. Vários futuros seresteiros (da primeira geração eletrônica, nascida no final dos anos 1960) apontam em Nonato e seu Conjunto o exemplo que seguiam no começo de suas carreiras em bandas de baile. 51 Serenatas são ocasiões nas quais um jovem, supostamente apaixonado, canta canções de amor ao alvo de sua paixão. Muitos dos entrevistados associam a seresta diretamente à serenata, ressaltando que, depois da serenata, o grupo de amigos saia para beber e continuar tocando, às vezes em um prostíbulo. 52 Mesmo nos anos 1990, época na qual atuei como músico, esta situação persistia. Até hoje é difícil encontrar cordas para contrabaixo de alta milimetragem na cidade. Instrumentos musicais como guitarra e baixo não são produtos compráveis pela internet, pois demandam a “pegada” prévia antes da compra. É comum nos depoimentos por mim colhidos com agentes ativos no mercado das bandas de baile, nos anos 1960/70, a atribuição de diversos pioneirismos em relação à tecnologia; exemplo: “a primeira guitarra elétrica quem comprou fui eu”, “o primeiro DVD gravado no Maranhão fui eu que fiz”. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 43 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Figura 6 - Capa do disco de Nonato e seu conjunto de 1978. A banda estava inserida no mercado fonográfico nacional. Mesmo as grandes bandas operavam em um ambiente de palco ainda extremamente deficiente. “Eu vou completar 60 anos, mas eu toquei muito no Jaguarema, no Lítero sem microfone, sem nenhuma aparelhagem, sem nenhum recurso eletrônico” (Almir Sérgio, 2011). O mercado das bandas de baile na cidade de São Luís tinha uma forte presença nos chamados clubes sociais, locais tradicionais frequentados pelas elites e que promoviam festas de carnaval, São João, além de festividades como formaturas, eventos beneficentes, festas com a “grife” de algum promotor de renome etc. Jaguarema e o Grêmio Lítero Recreativo Português foram dois dos mais expressivos clubes sociais de São Luís, junto com o Casino Maranhense, onde era possível escapar do entrudo em um local seguro e asséptico. Ser sócio de um destes clubes era parte do corpo de práticas distintivas que correspondia à posição de elite53. Para os trabalhadores da música (músicos, empresários, investidores), representavam os palcos mais valorizados, nos quais tocavam as bandas de maior prestígio e onde se recebia os maiores cachês. Na década de 1980, a população de São Luís nem de longe poderia imaginar que as grandes festas da cidade pudessem ser realizadas em outros locais que não fossem os grandes clubes daquela época. Grêmio Lítero Recreativo Português, Casino Maranhense e Jaguarema, eram considerados “points” e reuniam a sociedade local até o fim da década de 1990, quando entraram em decadência. (O ESTADO DO MARANHÃO, 08 de setembro de 2011) 53 Ver Bourdieu, 2008. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 44 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Os clubes operavam exatamente com a ideia do requinte e da exclusividade, um local cuja proposta era a de receber a nata da sociedade em um ambiente preparado para este segmento, dotados de “códigos de ética” que impediam, por exemplo, que casais de beijassem no interior do clube (Idem, 2011), dentre outras “imoralidades”. Ali eram realizados saraus, tertúlias semanais, festas de debutante (que são rituais de corte, no qual a família informa que a filha já está apta ao matrimônio). O ingresso ao clube era feito por meio de convite de um dos sócios e quem sócio fosse deveria contribuir mensalmente para a manutenção do espaço, além de pagar separadamente por qualquer consumo. As mesas para as festas eram disputadíssimas. O cargo de presidente do clube era de grande prestígio, como vemos no depoimento abaixo: Um senador, o qual não posso falar o nome, me ligou antes de um dos bailes de Carnaval pedindo uma mesa. Educadamente, eu disse que não poderia fazer isso, mas deixei claro que se ele quisesse ir, o receberia na minha mesa. (Cleon Furtado, ex-presidente do Lítero, IN O ESTADO DO MARANHÃO, 08 de setembro de 2011) Este prestígio contamina a todos os integrantes do público em diversos graus, formando um universo de distinções e valorações de status simbólicos em torno dos clubes, que incluía os músicos. Alguns dos meus entrevistados como Walfredo Jair, Almir Sérgio e Gilberto Santos, demonstraram como o fato de tocar nas bandas que animavam as festas nestes clubes, lhes concedia uma posição de alta visibilidade. O mesmo era dito do mercado de hotéis de alta categoria. Tocar para a elite, para estes agentes, era fazer parte dela. Figura 7 - Cartão postal de São Luís com fachada do clube Jaguarema, década de 1970. Os clubes sociais como parte da cidade que a cidade queria exibir. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 45 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Se a precariedade técnica era característica destes palcos, é de se pensar que as festas em clubes de bairro e bares (onde as mesmas bandas também tocavam) eram ainda mais deficientes estruturalmente. Domingos Castro: Não, não tinha esse negócio de retorno. Era assim: tinha as caixas da Giannini, o nome das caixas era tremendão. Era assim. Tinha uma caixa mais ou menos, deixa eu ver, um metro de largura, com um metro e pouco de altura e uns cinquenta centímetros de fundura com quatro auto- falante cada uma e um amplificador em cima daquela caixa, vamos dizer, um amplificador de contrabaixo, do outro lado o mesmo amplificador pra guitarra. E tinha umas caixas mais compridas, mais ou menos de dois metros e poucos com quatro ou cinco autofalantes de doze polegadas, que colocavam num cano e ficava lá na frente, assim ó, tipo um picolé, que a gente chamava de picolé mesmo. E a voz da pessoa saía lá, do cantor. Tudo ligado nesse amplificador Giannini que ficava aqui atrás, então aqui saia tudo misturado, não tinha negócio de mesa de som. Bruno: Amplificação de bateria não existia? Domingos Castro: Não. Não tinha. Não tinha isso não! Então, tipo assim, tinha aqui a cabeça, tinha assim ‘plug da guitarra’, metia a guitarra aqui’, ‘plug do microfone’, metia aqui. Atrás desse amplificador que era o de voz, que a gente falava, não tinha reverberação, tinha um troço assim que chamavam de reverber, um negócio assim de alumínio que tinha uma mola dentro dele. Então quando a voz passava por aquela mola ali, a mola sacudia e dava, dava justamente. Bruno: Como é que o público ouvia esse som? Domingos Castro: Mas ouvia. É porque as caixas ficavam alta. Essas que ficavam lá na frente, elas ficavam um pouco pra cima da cabeça das pessoas. (...) então aqui em cima do palco ficava esses três coisas de tremendão, e lá na frente ficava essas caixas. Bruno: E o retorno de vocês era... Domingos Castro: Era as próprias caixas que ficava ali. Tanto é que quando a gente terminava de tocar uma festa o ouvido da gente ficava ‘ziiiiiiiiiiiin’, da zoada que era alta demais, não tinha como baixar ali o retorno. Se baixasse baixava tudo. (Domingos Castro, músico de bandas de baile e seresteiro, 2011). Se comparado ao que se usa hoje em dia, com PAs54, retornos em fones de ouvido, mesas de incontáveis canais, efeitos digitais de luz e som, playbacks e o acesso quase imediato às novas tendências tecnológicas, os shows de grupos das mais diversas cenas locais na época da lambada aconteciam com equipamentos que hoje poucos músicos iniciantes utilizariam. As bandas tinham como retorno o mesmo equipamento que transmitia o som para o público e os últimos sons que o músico ouvia, após o show, era um zumbido constante, fruto do barulho. Todos os instrumentos ficavam ligados a um mesmo amplificador que transmitia os sinais 54 PA é sigla para Public Address. Refere-se às caixas de som voltadas para o público, diferente das caixas de retorno, cuja função é fornecer áudio para os músicos. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 46 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais para poucas caixas repetidoras; as baterias não eram microfonadas55 e, dependendo do local da apresentação, o som se perdia ou reverbeava; as casas de show não tinham o tratamento acústico adequado e os poucos técnicos de som penavam para equalizar o som das festas. Soma-se a isto o fato de não se dispor dos melhores instrumentos por conta da dificuldade de se obter toda sorte de tecnologia na cidade. Mesmo os grandes artistas de renome nacional, quando vinham a São Luís, precisavam que a estrutura de palco e som fosse trazida de outro estado, pois a cidade não tinha uma empresa que fornecesse este serviço. Só na metade dos anos 1980 que começariam a surgir os primeiros sistemas de som realmente profissionais, como o Bacanga e outros. Mas tudo era muito feito na raça no nosso território “alternativo”. A grande estrutura era usada mais pras coisas oficiais ou pros shows de gente apadrinhada pelo poder (e eu não estava nesse time). (Zeca Baleiro, cantor e compositor, 2011) 56 Os shows, todos que eu vi, nos anos 70, Rabo de Vaca , eram precários tecnicamente, os sons eram horríveis! Então a gente tinha microfonia. Os sons não eram bons, era um sacrifício fazer show aqui. Porque não tinha um som profissional (Celso Borges, poeta e jornalista, 2011). Zeca Baleiro e Celso Borges são dois artistas em atividade na cena musical de classe média intelectualizada da cidade a partir dos anos 1980, cujas inspirações maiores vinham da geração dos anos 1970 e, de maneira mais genérica, da MPB. Aqui me interessa mostrar que mesmo universos aparentemente tão distantes dentro do mercado da música (o das bandas de baile e o da canção “alternativa”, para usar a categoria aplicada por Baleiro) tinham em comum a má estrutura técnica para realização de seu trabalho57. É também importante que se perceba que a cena sobre a qual trabalho é plural e enquanto o movimento em torno das serestas se desenvolvia, outros movimentos eclodiam e tomavam seus rumos na cidade e no interior, com interinfluências, integrantes em comum e diferentes formas de legitimação e visibilidade. Cabe aqui mencionar que apesar do sucesso alcançado em suas apresentações, o grupo [Rabo de Vaca] não dispunha de nenhum aparato técnico e nem disponibilidade de equipamentos, pelo menos razoável, para as apresentações. A estrutura de sonorização que existia em São Luís era extremamente precária, as55 Hoje em dia é comum a microfonação ao menos do bumbo da bateria, que é o tambor maior que lhe serve de base. A microfonação permite maior controle do resultado daquilo que é mostrado no palco. 56 O Rabo de Vaca foi uma banda atuante em São Luís entre 1977 e 1986. O grupo foi formado para acompanhar a peça Os Saltimbancos, mas depois seguiu carreira sem o teatro. Formada por Josias Sobrinhos, Betto Pereira, Manoel Pacífico, Mauro Travincas, Tião Carvalho, Zezé Alves, Rodrigo Castelo Branco, Serejo (Baixinho) e Vitório Marinho (fundadores), e Erivaldo Gomes, Jeca, Omar Cutrim e Ronald Pinheiro (que entraram depois). Tinha repertório voltado para composições próprias e influência de movimentos como a Tropicália e as tendências da música brasileira e local de fundir elementos da cultura popular com o da música popular urbana. A banda não deixou registros fonográficos. Sobre isso ver TRAVINCAS, 2010. Falarei mais do Rabo de vaca na discussão sobre a identidade musical do Maranhão, no capítulo 04. 57 Há vários exemplos de encontros entre estes dois universos. Alguns músicos da chamada MPM começaram a carreira como instrumentistas ou compositores em bandas de mercado como Betto Pereira (na época conhecido como Beto do Cavaco); alguns trabalham em bandas e levam carreiras paralelas como “autores”. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 47 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais sim como os técnicos de som. Tudo acontecia muito na base do improviso e tirando o máximo do que, naquele momento, o mercado local tinha de equipamentos. Instrumentos musicais, equipamentos, cordas e acessórios importados, era um sonho extremamente distante da realidade. No máximo o grupo tinha acesso – e com muita dificuldade – a revistas e catálogos de instrumentos e equipamentos de som que só eram comercializados nos grandes centros comerciais, como Rio de Janeiro e São Paulo. A questão da precariedade de equipamentos foi sentida pelo próprio autor. No início, utilizava-se um violão como contrabaixo, tirando-se a 1ª e 2ª cordas deixado apenas a 4ª, 5ª, e 6ª cordas, extraindo o som grave dos bordões. A compra de um contrabaixo Giannini – produto nacional – só ocorreu muito tempo depois, em suaves prestações, em uma loja local chamada “Arpaso” que, entre roupas masculinas e femininas, tinha uma área reservada para venda de alguns instrumentos musicais. A estreia desse contrabaixo aconteceu em um distante dia de sábado, em um show realizado no Hospital da Hanseníase, no Bomfim em meados de 1979. (TRAVINCAS, 2010, p. 19 e 20. Mauro Travincas era baixista do grupo Rabo de Vaca). O que se nota nas narrativas é um mercado em ebulição até meados dos anos 1980, com o surgimento de novas bandas, importação e exportação de músicos, mescla de estilos e pouquíssima inserção fonográfica. Estes artistas tinham ampla atuação, trabalhando em shows de calouros, circos, tocando diversos instrumentos e fazendo o que fosse necessário para continuar no mercado. É comum que nomes hoje associados à seresta e ao brega tenham atuado como palhaços, crooners, radialistas, bateristas, jornalistas, donos de casas de show, atores, sambistas e demais ofícios relacionados, genericamente, ao palco. Alguns moraram longos anos fora do Maranhão, em ambientes onde também havia uma lógica de mercado para a produção de arte, como o cantor e compositor Zé Ray (que foi montador de palco no programa da Xuxa, figurante de novelas e chanchadas, fundador da banda Dr Silvana e chegou a negar canções ao produtor Michael Sulivan antes de ficar famoso no Maranhão como o compositor de “Bebo mais”), Wilsinho (que trabalhou em circos excursionando pelo país58) e Rogerinho (que foi palhaço “antes de palhaço virar babá”, Rogerinho, 2011). As bandas de baile operavam em um mercado de grande rotatividade e, como tal, tinham formas de recrutamento peculiares, assim como diferentes status sociais. As bandas “não tocava(m) só pra society não. Nós tocamos muito, por exemplo, no Bairro de Fátima, na União de Moradores, naquele clube deles, a URDV59”. (Gilberto Santos, empresário de bandas de baile, músico, cantor e seresteiro, 2011). Almir Sérgio: Nós tínhamos aqui em São Luís era 5 bandas. Porque tinha a primeira classe, né: Fantoches, Som Livre, Curtison, Nonato e seu conjunto, consegui quatro, né. Aí vinha, que quando ela terminou foi como Banda Litorânea, 58 Wilsinho era baterista e contrabaixista, tendo tocado com Sérgio Reis, Fernando Mendes, Maurício Reis, entre outros. No circo também foi pugilista. (Wilsinho, seresteiro, 2011) 59 O nome é suposto, já que não está claro na gravação. Refere-se a um clube de moradores no Bairro de Fátima, periferia de São Luís. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 48 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais era chamavam banda a escolinha, todo mundo passava por lá, pela Banda Litorânea, mas não era banda Litorânea o nome, tá me fugindo o nome, fugiu agora. Tinha também uma outra escolinha chamada Carrinho, era o cabaré do Carrinho. O músico vinha do interior, aí ele chegava, ficava nas redondezas lá do Carrinho, num quartinho. Bruno: Onde é que ficava o Carrinho? Almir Sérgio: No João Paulo. Na linha, na estrada do trem. Era um puteiro lá. Mas aí o músico chegava, ninguém conhecia, aí ele ficava lá, por perto, à noite ele ia pra lá e pedia canja, né. Aí os donos de banda, que tavam sempre em conflito com os músicos, pela questão financeira, iam pra lá, como agem os olheiros de futebol, né. Aí chegavam ‘fulano! Chegou um guitarrista’, isso aqui, era de Teresina, era um guitarrista de Teresina era bom, era tecladista tinha que ser de Fortaleza por causa da sanfona. Então dizia ‘ah, rapaz, de Teresina, o cara toca demais!’. Então ali era a escolinha do Carrinho, a escolinha melhorada, depois do Carrinho, já era do Ferreira, e tinha também o Marinho, que Foi Máquina do Tempo, Máquina do Som, Mákina do Tempo é hoje de Fernando, Fernando Piloto. Então tinha as bandas de segunda classe, né, e tinha as de primeira. E eram só quatro, como eu coloquei aqui, mas dava pra se viver de música. Isso nos anos 70. (Almir Sérgio, 2011). As bandas de “primeira classe” equivaliam às bandas que tocavam para a elite, em clubes como os já citados Lítero e Jaguarema. Estas bandas estavam nos jornais, colunas sociais e seus integrantes eram conhecidos dos filhos da elite. Em muitas narrativas destes músicos, é mais valorizado o fato de terem animado o casamento de Fulano, as bodas de ouro de Beltrano ou o aniversário de Sicrano, que o fato de terem tocado para 5000 pessoas, ter alta vendagem de discos ou grande valor por parte da crítica especializada, como é comum no mundo da música. A segunda classe de bandas tocava em lugares menores, às vezes com os mesmos integrantes e outro nome. Bandas como a Gen tinham uma versão para clubes, uma para serestas e outra para shows de rock em ginásios, mudando de nome em cada local (neste caso os nomes são Experiência [rock] e Celebridade [seresta]). Estas eram as bandas que excursionavam pelo interior e, eventualmente, acompanhavam cantores de música brega como Raimundo Soldado ou Adelino Nascimento, além de fornecer apoio humano e logístico a outras bandas. Ocorria um movimento semelhante ao que hoje se vê nas serestas de São Luís, onde a segmentação do público por poder de compra também faz surgir espaços de “primeira” e “segunda classe”, que carregam diferentes cargas valorativas para público, mídia, e músicos. Raramente um músico tem seu primeiro emprego em um dos grupos das grandes choperias, mas estas casas geralmente buscam talentos nas festas mais populares. O sistema de recrutamento dentro dos próprios ambientes de festa, ou por indicação, é recorrente nas entrevistas. Lugares como o Carrinho, mencionado por Almir Sérgio, ou Guarani, Montes Claros e O Casarão, onde trabalhou Wilsinho, eram locais onde os músicos se reuniam após o trabalho e nos quais o palco era livre. Clubes de elite não ofereciam esta possibilidade. A Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 49 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais posição de vocalista era a mais fixa dentro das bandas, pois era a que dava personalidade e empatia com o público (Walfredo Jair tocou em Os Fantoches até o fim da banda, por exemplo) e estes acabavam por ser reconhecidos/identificados pela filiação à banda, mesmo que por trás houvesse a figura do “dono da banda”, empresário que tomava as decisões pelo grupo, incluindo a de quem o integraria. Era valorizada a perícia em vários instrumentos, facilidade de negociação, presença de palco e disponibilidade. Um cantor mediano teria mais espaço que um compositor brilhante, e um baterista razoavelmente treinado em muitos ritmos era mais valorizado que um virtuose do rock, por exemplo. Assim, o mercado da música comportava artistas que enxergassem a música mais como um ofício que como uma missão, capazes de se moldar ao sabor do mercado hegemônico e se atualizar para não cair na obsolescência. As bandas tinham repertório eclético voltado para as mais novas tendências das rádios FM e do que se ouvia pelas ruas da cidade. Tocavam para o público e, por isso, tocavam o que o público queria ouvir. Sabe o que eu fazia? Nesse tempo tinha um programa na TV Globo por nome Globo de Ouro. Então, naquele mês ali, as músicas mais tocadas, os lançamentos, tocavam nesse programa, Globo de Ouro. Tu sabe o que eu fazia? Eu tinha um gravador assim por nome National, que nesse tempo tinha esses gravadorzinho assim. Eu coloquei na televisão lá de casa um... que eu sempre mexi com esses negócio de eletrônica. Antes de eu vim vender na loja [de instrumentos musicais] eu aprendi com um tio meu por nome Tio Adelmo. Ele é engenheiro, ele é professor da UFMA. (Domingos Castro, 2011). Uma característica importante das bandas de baile é que elas são empresas e como tal existem para fazer eco ao investimento de alguém. Assim, a condição de músico em uma banda de baile é aquela de um funcionário, que pode receber um salário fixo ou por apresentação, mas que tem obrigação de ensaios e horários, além de não participar das decisões empresariais que o dono da banda toma. Assim, é comum o remanejo de integrantes e a busca, por parte dos donos de banda, por novos músicos (mais baratos, mais competentes, menos exigentes), como por parte dos músicos a busca por dinheiro, reconhecimento e, talvez, pela possibilidade de um trabalho autoral. Esta descrição da lógica de operação das bandas de baile é encontrada, com adaptações às mudanças de mercado, nas narrativas dos agentes relacionados com os grupos que despontaram no Maranhão desde o final dos anos 1970, até os que atuam hoje em dia. Me refiro aos grupos que tocam covers de canções da estação para público de elite, em locais de festa de/para a elite. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 50 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais A resposta mais frequente à pergunta “o que vocês tocam (ou tocavam)?”, aos membros das bandas de baile, empresários e público que as ouve e ouvia é “de tudo”. O que estes parecem querer dizer é “de tudo o que for necessário”, ou seja: Todo tipo de música que se tocava na época: o forró, chamava mais baião, samba, as coisas da época, discoteque, que tava na moda a discoteque, né? O que nós não tocávamos na época acho que nem existia: era reggae (...) tocávamos bolero, bossa nova, jovem guarda... jovem guarda era o chique (...) era um público muito misturado de jovens e adultos. Por isso é que nós tocávamos muitos temas de novelas. Sucessos que a televisão jogava, nós tocávamos. (Gilberto Santos, 2011). Uma análise das tendências musicais no Brasil, ao longo das décadas de 1980 e 1990, mostra uma variação de ritmos ora centrada na música brasileira (Titãs, Blitz, Kid Abelha, o chamado rock nacional) no pop internacional (Michael Jackson, Madona), na disco music (as Frenéticas), no forró (Mastruz com Leite), lambada (Betos Douglas e Barbosa, Kaoma), pagode (Só pra Contrariar, Raça Negra), a música baiana (Luís Caldas, Daniela Mercury) e demais hits e ritmos presentes no mundo das festas e rádios do Brasil. Além disso, houve casos e repertórios locais como o reggae, a MPM, a música brega, ritmos que encontraram novos locais e significados como o bolero e a música folclórica, além de novas inserções em âmbito regional como o arrocha60. Tocar em uma banda de baile era estar preparado para tocar o que o público pedisse, sob o risco de corte sumário e perda de novos contratos. Isso também determinava o aparato instrumental destas bandas. Uma banda de baile básica tinha guitarra, baixo e bateria, mas as temporadas de festa, ao longo do ano, as forçavam a ter metais para as marchinhas no carnaval, sanfona ou órgão para o período junino, assim como novos vocalistas que soubessem imitar os timbres e tons que estivessem na moda. A imitação, ou o cover, é aspecto de grande importância no universo das bandas de baile. Uma boa banda, em princípio, é aquela que consegue reproduzir ao vivo, em detalhes, aquilo que é apresentado no disco do artista/intérprete consagrado da canção. O público espera ter na apresentação a sensação de estar no show do artista admirado e é papel da banda satisfazer esta sensação. Arranjos eram copiados, frases, timbres e andamentos também. Este fator era importante tanto para o público, quanto para a distinção dos músicos e bandas dentro da própria rede de produção. Para alguns agentes, a precisão do cover está na própria definição do que é um baile e uma banda de baile, como no caso de Pepê Júnior: “É isso. Pegar, copiar idêntico, tentar imitar a voz do cantor, fazer idêntico pra mostrar pro público ao vivo aquela música, tá entendendo? Isso 60 O arrocha é um subgênero da música brega/seresta surgido nos anos 2000, na Bahia, do qual falarei amplamente no capítulo 03. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 51 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais aí que é um baile” (Pepê Júnior, músico, empresário e vocalista de bandas de baile ainda na ativa, 2011). O mercado das bandas de baile não era um celeiro de composição de canções novas e criação musical, menos pela incapacidade de seus agentes, que pelas necessidades do mercado onde estes operavam. Muitos dos envolvidos com as bandas, como Pepê Júnior, Betto Pereira e Lairton, puderam mostrar suas composições depois da dispersão das bandas, com a abertura do mercado proporcionada pelo teclado de programação (para Lairton) e com investimento do Estado (para Betto). Pepê Júnior completa: rapaz, antes a gente copiava um... um toquezinho de guitarra tinha que copiar, velho! Se não o outro músico ‘ahhhh, essa banda não copiou direito!’ Tu é doido, bicho! Se tu não copiasse igual, não tirasse som igual tu... (Pepê Júnior, 2011). Em outros palcos, havia uma geração de músicos que operava fora desta lógica de mercado, com repertórios próprios, diálogos com outras formas de expressão artísticas, intenção de movimento e espírito político. Esta geração se reunia em grupos de poesia (Poeme-se, Akademia dos Párias), teatro (Laborarte), dança ou cultura popular, com a ideia de que era possível mudar o mundo através da arte e que, para isto, seria necessário mudar a própria arte, constituindo uma arte (no caso, a música) que fosse particularmente maranhense em sua forma e conteúdo, tratando de temas que julgavam nossos e com uma forte veia folclorista que dialogaria com as classes populares através de suas brincadeiras e festas como o bumba meu boi, o lelê, o cacuriá, o tambor de crioula etc. Esta geração, que engloba músicos de faixas-etárias e vivências diferentes, acabou conhecida pelo termo genérico de MPM, e será o tema principal da discussão do quarto capítulo deste trabalho. Tais músicos tocavam em pequenos teatros e casas de show, focavam suas ações em festivais competitivos e tinham uma relação mais direta com a mídia, sendo vários deles jornalistas ou universitários. Estes dois mundos das festas se cruzavam com frequência e era comum que compositores de música no estilo MPM tocassem em bandas de baile. Contudo, a dicotomia entre canção autoral e música para dançar, “alienada”, estava presente na época, como está na narrativa de agentes filiados às duas correntes. Além dos universos das bandas de baile e da música intelectualizada, por assim dizer, havia as festas com som mecânico em clubes como o Mangueirão e o Pop Som, animadas por um discotecário (que seria rebatizado como DJ), que tocava repertório semelhante ao das bandas (ou seja, os sucessos da estação), mas começava a desenvolver contornos distintivos, pela inserção de um estilo de música reconhecido inicialmente como uma “música estrangeira lenta” (SILVA, 1995), a Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 52 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais partir do final dos anos 1970. O reggae tem seu início em São Luís via periferia, em festas com público misto. Estas festas seguiam uma narrativa dinâmica, em que a animação do público ditava as batidas que o discotecário colocaria e na qual os novos hits eram executados em momentos especiais, assim como haveria um momento para dançar junto, com música mais lenta, um momento mais agitado e um momento no qual a festa “pegava fogo”. As festas ocorriam nos mais diversos lugares: de união de moradores de uso eclético a clubes especializados, de ruas fechadas para o evento a desterros onde se montava o sistema de som e os congeladores para vender cerveja. Pela estrutura, eram as mais comuns nas periferias, onde um par de caixas de som sobre algumas grades de cerveja garantiam a animação. O som mecânico com discotecário era frequentemente usado para abrir e fechar as noites onde tocavam as bandas de baile e não demorou pra que estas bandas começassem a inserir o reggae em seu repertório. Contudo, havia um elemento que, com o tempo, marcaria de maneira mais forte a ligação entre som mecânico/reggae e músicos da noite: Por que que o reggae caiu no [gosto do público do] Maranhão? Por causa do bolero. Os caras dançavam o bolero, porra! Dançavam o bolero direto aqui, é a mesma métrica do reggae é o bolero! (...) o reggae é o seguinte: o que a gente sabe que levava a galera pra festa antigamente, né, a gente sabe das histórias da rua 28, aqui de São Luís, aqueles clássicos, né... era o bolerão [cantarola a batida básica do bolero, a do beguine dos teclados Casio]... e os caras dançavam agarradinho o bolero, aquele baixão do bolero tocava aí e os caras saiam pra dançar. Eu não vi, mas a história conta, né? E o reggae quando entrou, por exemplo, lá no Pompeu, que era uma boate antiga, muito antiga, tocava só bolero, quando o reggae entrou foi bem aceito pelos caras, porque além de ser o reggae uma música de sentimento, de melodia bonita, ele entrava no mesmo ritmo do bolero, no mesmo ritmo não: no mesmo compasso assim de dança de passos mesmo, de dançarinos. Então você dançar o reggae, se você tiver dançando um bolero e tirar o bolero e meter um reggae você não perde a mulher, não perde a dança. Continua dançando a levada do bolero no reggae. E se tiver dançando um bolero e não souber, você leva num reggae. (Tony Tavares, cantor e compositor de reggaes, radialista, 2010) Tocava bolero. A dança do reggae, a dança agarradinho do reggae aqui no Maranhão é filha legítima do bolero. Aqueles passos são passos do bolero, com o tempero mais quente do bolero. Quando esses ritmos, lambada e tal, chegaram, bolero já era coisa de velho, e esses ritmos mais quentes era coisa de jovem. (Ademar Danilo, DJ, radialista e proprietário de clube de reggae, 2011). A semelhança/identificação apontada por Danilo e Tavares está no pulso, na batida forte que impele os casais à dança. Mas a inserção do ritmo jamaicano nas festas com som mecânico exatamente neste espaço consagrado à dança a dois, ocupado pelo bolero, “de velho”, provocou, com outros fatores, uma fissura nestas festas e no espaço. O reggae é inserido na cidade a partir das periferias, nos anos 1970. A princípio, o ritmo rechaçado por parte das elites, sob o argumento de que se tratava de uma invasão cultural, contaBruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 53 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais minação e desvirtuamento daquilo que seria o rótulo maior de São Luís, o epíteto de Atenas Brasileira, pelo contraste direto que o novo apelido de Jamaica Brasileira aparentemente oferecia. Freire (2010) analisa diversas tomadas de posição nos conflitos sobre identidade local envolvendo o reggae, do qual destaco o artigo de Ubirajara Rayol, exemplar da dicotomia mencionada: Não se conhece na história da Jamaica feitos nos campos das letras, artes e ciências [...]. Por outro lado, a Grécia antiga continua sendo um ponto de referência para a cultura ocidental [...]. Eis que a ignomínia parece contagiar a cidade, profanando a sua cultura, maculando um passado fastígio literário e artístico [...] Protesta-se contra o insulto à memória maranhense (RAYOL apud FREIRE, 2010). Nos anos 1980 ocorre um gradual processo de mudança da visão pública acerca do reggae, que começa a ganhar espaços junto a setores sociais de elite, com clubes fora das áreas de periferia (Espaço Aberto, no São Francisco e Bar do Nelson, na Av. Litorânea), exibições na mídia nacional que ajudavam a lhe conferir outro local social em São Luís (FREIRE, 2010). A despeito da inserção traumática e conflituosa que o reggae teve no Maranhão, as discussões oscilam no binômio Atenas/Jamaica (nobre/plebeia, europeu/africano), sendo a primeira por vezes representada pela cultura popular contemporânea e não escolada (mas sancionada por diversos discursos vindos da academia) ou aos movimentos musicais sintetizados sob a sigla MPM. Contudo, quando a ascensão do reggae em São Luís é posta em paralelo aos espaços de festa que ocupava nos anos 1970 e suas novas configurações nas décadas seguintes, o que se nota é a ocorrência de uma gradual fissura nas festas mistas. O reggae distingue-se com e pela obtenção de seus próprios espaços (os clubes de reggae), sua própria mídia (as radiolas, responsáveis pela customização do produto reggae na cidade) e suas próprias estrelas (as figuras de mediação conhecidas como DJs), assim como todo um rico conjunto de práticas que constitui seu universo social. Segundo Silva (1995), este universo teve expressiva adesão e impulso da comunidade negra de São Luís. Se analisarmos o público das festas mistas em clubes de bairro quando da ascensão do reggae, encontramos o bolero como a argamassa da festa, trespassando gerações de ouvintes de um longo cânone de canções que, desde os anos 1940 eram, junto com o samba canção (seu primo brasileiro), as baladas de salão mais apreciadas no país.61 O que chamo de fissura é o recorte do público que aderiu ao reggae. Se o bolero era “coisa de velho”, o reggae era uma novidade popular entre os jovens. Portanto, o ritmo jamaicano faz com que uma parte do público das festas de músicas mistas, os jovens, migre para um evento em particular, a festa de reggae, e mantenha do outro lado da fenda os ditos coroas com as canções antigas para dançar a dois. 61 Sobre o gosto pelo bolero ver Tatit (2008) e Severiano (1997 e 1998); neste último é possível perceber como uma grande parte das canções que foram sucesso no Brasil, desde os anos 1940, são boleros ou samba-canção. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 54 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Aqui convém situar melhor o bolero. Ritmo de origem espanhola, que remonta do século XVIII e alcançou grande popularidade na Europa nos séculos XVIII e XIX; chegou ao Brasil na década de 40 do século XX, em sua versão cubano-mexicana (ARAÚJO, 1999; PITRE-VÁSQUES, 2009). O bolero espanhol difere do americano, principalmente pelo compasso ternário que utiliza. O ritmo encontra a forma que conhecemos hoje em Cuba e no México, de onde é exportado para diversos países do mundo, constituindo-se, segundo Pitre-Vásques, no “primeiro gênero musical a ser mundializado pela indústria cultural” (PITRE-VÁSQUES, 2009).62 De veia romântica e pensado para a audição e para a dança, o bolero figurou entre os estilos de canção popular mais apreciados no Brasil nos anos 1940 e 1950. Foi inserido através do cinema mexicano, com suporte da política de boa vizinhança dos Estados Unidos, que incentivava a indústria cinematográfica estadunidense a aproximar-se de gêneros musicais latino-americanos como a rumba, o tango, o samba e o bolero. Ainda nos anos 1940, compositores e cantores brasileiros já trabalhavam em boleros originais ou versões de boleros internacionais, iniciando uma longa tradição, que tem no país nomes de grande expressão popular como Altemar Dutra, Nelson Gonçalves, Nelson Ned e Agnaldo Timóteo. O musicólogo Bruno Renato Lacerda demonstra como a ascensão do bolero enquanto gênero musical transnacional se deveu, em grande parte, à eletrificação e radialização do mundo, argumentando que “todo o sucesso que o bolero veio a alcançar jamais teria sido possível sem o apoio do crescente recurso difusor das mídias” (LACERDA, s/d, p. 01). No Brasil, o cinema e o rádio foram seus grandes propagadores, que possibilitaram a sucessivas visitas de astros do bolero mexicano ao país. O pontapé inicial do bolero no Brasil é exatamente a apresentação dEl tenor de lãs Américas, Pedro Vargas, em 1941 (PITRE-VÁSQUES, 2009, p. 02). Os anos 1940 são conhecidos como La Época de Oro do bolero. Não tardou para que também ocorressem diálogos com ritmos brasileiros, sendo a forma mais notável o samba-canção, espécie de samba de andamento mais lento (80 batidas por minuto – BPM, contra 100 do samba habitual), considerado por Tatit uma “versão brasileira dos gêneros hispano-americanos” (TATIT, 2008, P. 78).63 62 Pitre-Vásques concentra sua análise no papel que teve o bolero como gênero musical transcultural de integração na América Latina, sendo um ritmo de difusão inicial através do México e Cuba, mas que encontra identificação e é apropriado por diversos músicos e cantores em diversos países do continente, sendo assim um elemento que “forma o capital simbólico da América latina” (Pitre-Vásques apud Pitre-Vásques, 2009, p. 04) 63 Também fruto dos diálogos com o bolero está a corrente musical brasileira conhecida como fossa, cujo nome alude metaforicamente ao local em que se encontra alguém no auge do sofrimento causado pelo abandono da pessoa amada. A música de fossa é representada por nomes como Dolores Duran, Tito Madi (que gravou dois volumes de A Fossa, além da série “Dois na fossa”, com Mariza), Mariza, Márcia, Maysa, Waleska. A canção de fossa também é enquadrada Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 55 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Apesar de ter sido confrontado no Brasil com discursos ideológicos de nacionalidade e modernidade frequentemente paradoxais e suas “formas apropriadas de representação musical”, o bolero expressou necessidades subjetivas de uma sociedade que mudava rapidamente, sob pressão, e tornou-se popular interculturalmente; seus padrões e significados foram de alguma maneira integrados a ou re-trabalhados junto a práticas musicais locais (principalmente aquela co64 nhecida como samba-canção) (ARAÚJO, 1999, p. 01, tradução minha ) Na década de 1940, o bolero brasileiro e o samba-canção eram práticas dificilmente distinguíveis em termos textuais, musicais e sociais (ARAÚJO, 1999, p. 65 05) Como já mencionado, a inserção do bolero e sua prevalência por décadas no cenário da música brasileira foi alvo de críticas (sendo a mais expressiva, a Bossa Nova), e o ritmo foi aos poucos se estigmatizando no país, expresso das mais diversas maneiras dentro e fora do mundo da música, como no caso de Carlos Lyra, que “compôs em 1957 um samba que, citando nominalmente o bolero, o jazz, o rock e a balada, criticava sua influência na música brasileira” (TINHORÃO, 1990, p. 249). A oposição ao bolero e à sua associação ao exagero, ao mal gosto e ao kitsch, seria fundamental no delineamento daquilo que, anos depois, se conheceria amplamente como brega, rótulo utilizado para classificar o lugar-objeto e personagens desta pesquisa. Pitre-Vásques comenta: O bolero de certa forma enfrentou este processo no Brasil pós-bossa-nova, foi considerado brega, cafona, kitsch e por algumas décadas associado a uma imagem de algo decadente e antiquado. Nas décadas em que ele esteve visível tanto às elites quanto os setores populares desfrutaram esta estética. (PITREVÁSQUES, 2009, p. 10). O bolero era, junto com outros gêneros no Brasil, uma forma de música que compartilhava de diversos espaços e públicos, sendo comum em transmissões radiofônicas, radionovelas, cinemas, discos e na própria gramática social do país, na medida que era canção-alvo para as mais variadas críticas e canção-base para as mais diversas festividades. “No Brasil, contudo, o bolero tornou-se popular tanto como um gênero para salões de baile e como um tipo de canção sentimental para audição privada, trespassando quaisquer limites sociais imagináveis”. (ARAÚJO, 1999, p. 05). Este estilo dramatizado continua a ser muito popular no Brasil, apesar das reações negativas de críticos musicais e de muitos músicos escolados, que a tratam como uma forma pegajosa de sentimentalismo e nostalgia, ou mesmo como por diversos meios como música brega e integra o repertório das serestas. Sobre a fossa ver Maria Izilda dos Santos (2005) e Waleska (2009). 64 Para melhor fluência do corpo do texto, optei por traduzir as citações em língua estrangeira. 65 Despite being confronted in Brazil with often paradoxical ideological discourses on nationality and modernity and their "appropriate forms of musical representation," bolero has addressed subjective needs of a fast-changing society under pressure and has become cross-culturally popular; its patterns and meanings have been somehow integrated into or reworked within local musical practices (mainly the so-called samba-canção). (…) By the 1940s, Brazilian bolero and samba-canção were hardly distinguishable practices in textual, musical, and social terms (ARAÚJO, 1999, p. 05) Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 56 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais demonstração patológica de mau gosto musical, evocado por termos como “dor de cotovelo” (década de 1960), “cafona” (década de 1970) ou “brega” (década 66 de 1980 em diante). (ARAÚJO, 1999, p. 06). O bolero, portanto, consagra-se ao longo do século XX como importante expressão musical brasileira, formando ao longo dos anos um volumoso repertório, constantemente alimentado, não só quando de sua moda, em meados do século, mas nos anos seguintes (ver SEVERIANO, 1997 e 1998), sem que nunca tenha de fato voltado a ser a grande canção midiática brasileira, espaço que foi ocupado por diversos estilos ao longo do século. O bolero permaneceu como canção de audição e principalmente de dança nos mais diversos espaços e com os anos encontrou público em gerações que o associavam à pureza musical, à grande música antiga e, em geral, ao passado67. O ritmo aparece nas narrativas de vários agentes entrevistados para esta pesquisa, exatamente com esta aura de pureza. É importante ressaltar que mesmo as vozes de maior oposição à música brega demonstram enorme respeito pelo bolero, particularmente por ser a música que cresceram ouvindo no rádio e à qual associam categorias como família, beleza, infância etc. Para estes agentes, o bolero dos fonogramas dos anos 1940 a 1960 não tem associação com as mesmas canções executadas pelos seresteiros contemporâneos. O que nos traz de volta ao ambiente das festas urbanas no Maranhão e à fissura que identifico como tendo o reggae e outros tipos de festa com música gravada como norteadores. O bolero está presente nas narrativas dos entrevistados, sejam eles seresteiros ou nomes associados à MPM e ao reggae, como a canção que animava a dança de salão e de encontro na cidade. O reggae, na minha leitura, antes de separar o segmento negro das festas, promove a distinção de um segmento jovem, menos afeito à canção de nostalgia e mais próximo da novidade. É, sobretudo este seguimento que opera a distinção das festas de reggae, tornando as festas de bolero eventos de nicho associados ao público mais velho. É este público mais velho e este modelo de festas que se encontra com as redes de músicos integrantes das bandas de baile, quando estas começam a entrar em declínio, provocado, entre outras coisas, pelo surgimento de um novo aparato técnico na metade dos anos 1980. Vários integrantes das bandas de baile no Maranhão identificam o final dos anos 1980 como um período de crise, agravada na década seguinte, quando foram praticamente extintas. As 66 This dramatized style continues to be very popular in Brazil to this day, despite the negative reactions of music critics and many trained musicians who have regarded it as a sticky form of sentimentalism and nostalgia, or even as a pathological demonstration of bad taste in music, evoked by terms such as "dor-de-cotovelo" (perhaps translatable as heartache; 1960s), "cafona" (1970s) or "brega" (1980s on). 67 Há ainda espaço em rádio consagrado ao bolero, em horários específicos, como em São Luís o programa Clube da Saudade (Rádio Mirante AM, domingo, 05:00 às 09:00), que toca boleros antigos e canções que “falem de saudade, porque não mata, só ajuda a viver”, como diz o bordão do apresentador José Santos. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 57 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais bandas “foram se acabando. Primeiro se acabou é... Super King Som, que era aí... montaram Banda Litorânea. Aí botaram... Banda Tropical se acabou, aí as bandas vieram se acabando uma por uma assim ó” (Pepê Júnior, 2011). O que teria feito um sistema de relações de mercado em torno da música, aparentemente sólido, desintegrar-se em pouco tempo? Para onde teriam ido estes músicos e que novas formas foram se construindo neste panorama? A começar, as festas com música gravada cresceram largamente na cidade com abertura de boites (casas que, ao contrário dos clubes sociais, eram voltadas somente para a dança do nicho jovem), clubes de reggae, casas de show e bares fora da região central da cidade. Havia mais opções para festas e esta ascensão coincide com a decadência do sistema baseado nos clubes sociais. Os grandes clubes tiveram seu auge nos anos 1970 e 1980. De acordo com o jornal O Estado do Maranhão68, “na década de 1980, a população de São Luís nem de longe poderia imaginar que as grandes festas da cidade pudessem ser realizadas em outros locais que não fossem os grandes clubes daquela época”, aquilo que era a referência para os músicos entrava em declínio e estes tinham cada vez menos espaços onde se apresentar. A revisão do espaço ocupado pelas manifestações folclóricas, no final da década de 1980 e nos anos 1990, criou novos nichos de festas que atraiam o público. Contudo, um elemento fundamental nos bailes de clube não era reproduzido nos arraiais, a dança, mais precisamente, a dança de salão. O brincante de Bumba Meu Boi, por exemplo, não tem a mesma relação com a dança que tem um frequentador de boleros, e para este segundo grupo, surgia um hiato. Esta valorização do folclore teve sua maior expressão nos mandatos de Roseana Sarney como governadora do estado, a partir de 1994, com a criação de pontos de festas folclóricas, investimento em propaganda turística associada ao folclore e injeção de capital nas brincadeiras69. Na metade da década de 1980 um elemento técnico chega ao Maranhão e se junta a este panorama, como fator definidor, inicialmente do impasse encarado pelos músicos e, posteriormente, como facilitador na emergência de um estilo de música e festas. Este aparato é o teclado eletrônico, também chamado de teclado arranjador ou eletrorritmo, sintetizador ou, simplesmente, teclado. O teclado é fruto de diversos experimentos tecnológicos e performáticos, cuja família é a dos sintetizadores, aparelhos capazes de produzir sons sem que a origem seja a ressonância de vibrações de corpos físicos, como até então. Os sintetizadores 68 Caderno especial de aniversário de São Luís, de 08 de setembro de 2011, matéria “Clubes de São Luís viveram época áurea na década de 1980”, assinada por Diego Torres. 69 O “brincante” é aquela pessoa que participa de várias “brincadeiras” na ilha, no São João toca matraca no “boi”, na festa de São Benedito ele bate “tambor”, no aniversário da morte de Bob Marley ele vai para o reggae. Este indivíduo sente-se atraído pela pulsão coletiva que é proporcionada pelas instituições culturais de origem africana, que são essencialmente baseadas no sentido da vibração interna do corpo no transe. (BRASIL, 2005, p. 47). Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 58 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais inicialmente usavam tecnologia analógica (na qual ocorre a reprodução, mesmo que modificada, de um som captado), mas popularizaram-se nos modelos totalmente digitais, nos quais a síntese é gerada digitalmente (através de códigos numéricos), convertida em sinal analógico (ou seja: impulsos elétricos) para então seguir para amplificadores e caixas de som, que finalmente transduzem o sinal elétrico em energia mecânica que perturba o ar e cria as ondas de rarefação e condensação do ar que percebemos como som. Os sintetizadores digitais possuem, portanto, uma nova forma de geração do som, o que permite à interface chamada teclado reproduzir um número virtualmente infinito de timbres tanto de outros instrumentos, quanto timbres que o som, mecanicamente produzido, é incapaz de propagar. As experiências com manipulação de eletricidade para produzir sons remontam ao século XIX. Peter Manning em seu Electronic and Computer Music (2004) descreve os caminhos e intenções na história da música eletrônica, mostrando como registro mais antigo o de uma patente americana de 1897, por Thaddeus Cahil. O registro feito por Cahill descrevia um sistema de geração de som com base elétrica, posteriormente conhecido como Dynamophone ou Telharmonium, sendo o primeiro modelo plenamente desenvolvido apresentado ao público no início de 1906, em Holyoke, Massachussetts. Como o antigo nome sugere, a máquina era essencialmente um dínamo elétrico modificado, utilizando um número de hastes manipuláveis e seus respectivos indutores para produzir correntes alternadas de diferentes frequências de áudio. Estes sinais passavam por um teclado polifônico e seus bancos de controles para uma série de receptores de telefones preenchidos com cornetas acústicas especiais. O dynamophone era uma construção formidável, com cerca de 200 toneladas de peso e algo em torno de 198 metros de comprimento, assumindo as proporções de um gerador de eletricidade. O valor cotado, em torno de 200,000 dólares era outra estatística impressionante. Por todas estas proporções excessivas e excentricidades, a máquina oferecia capacidade de produção de som inteiramente novas e flexíveis a um grau não igualável por inventos subsequentes por um tempo conside70 rável . (MANNING, 2004, p. 03 e 04). A invenção de Cahill era grande e cara, além de interferir com os sinais telefônicos próximos de onde estivesse sendo usada, não alcançando, assim, relevância de mercado. Ao longo da primeira metade do século XX, em diversos países, músicos, inventores, engenheiros e artistas, em geral, aprimoraram e especularam a música gerada eletronicamente, em discussões que pas70 Cahill's entry described an electrically based sound-generation system, subsequently known as his Dynamophone or Telharmonium, the first fully developed model being presented to the public early in 1906 at Holyoke, Massachusetts. As the former title suggests , the machine was essentially a modified electrical dynamo, employing a number of specially geared shafts and associated inductors to produce alternating currents of different audio frequencies. These Signals passed via a polyphonic keyboard and associated bank of controls to a series of telephone receivers fitted with special acoustic horns. The Dynamophone was a formidable construction, about 200 tons in weight and some 60 feet in length, assuming the proportions of a power-station generator. The quoted cost, some $200,000, provides another startling statistic. For all its excessive proportions and eccentricities the machine offered sound-production features that were entirely new and flexible to a degree not equaled by subsequent designs for some considerable time. (MANNING, 2004, p. 03 e 04) Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 59 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais savam pela técnica prática de aplicação (e sua comercialização) e sua função estética, que oscilavam entre o uso da eletrônica para fortalecer a música “tradicional” ou para criar um novo conceito de música e relação com ela, com novos timbres e possibilidades. Os dois paradigmas se concretizaram antes do final do século. A maioria confiava em métodos eletrônicos de geração de som, por exemplo o Teremin (1924), o Sphiirophon (1927), o Dynaphone (não confundir com o Dynamophone) (1927-8), o Ondes Martenot (1928), e o Trautanium (1930). Grande parte usava o teclado, proporcionando uma única saída melódica e modos auxiliares de controle de volume, geralmente na forma de uma alavanca 71 manual ou um pedal. (MANNING, 2004, p. 04 e 05). O “esforço coletivo” (Moog, s/d) para a criação dos instrumentos eletrônicos teve um grande salto nos anos 1960, quando se tornaram comercialmente viáveis em larga escala com o Mini Moog, lançado em 1970. Desenvolvido pelo Dr. Robert Moog com a intenção de produzir “sons completamente novos, sons que ninguém jamais tenha ouvido” (Moog, s/d), era um instrumento eletrônico leve, barato e que rapidamente foi incorporado à música popular em gêneros como o rock progressivo, a música clássica (com o famoso disco Switched on Back72) e à ascendente música eletrônica, para a qual a nova tecnologia era a raiz. Bandas como os Beatles e os Beach Boys utilizaram o Mini Moog. Ainda assim, o instrumento somava à música, não emulando outros instrumentos elétricos ou percussivos, mas oferecendo novas possibilidades timbrísticas. 71 The majority relied on an electronic method of sound generation, for example, the Theremin (1924), the Sphiirophon (1927), the Dynaphone (not to be confused with the Dynamophone) (1927-8), the Ondes Martenot (1928), and the Trautanium (1930). Most were keyboard-Oriented, providing a single melodic output and an ancillary means of controlling volume, usually taking the form of a hand-operated lever or a foot-pedal. (Manning, 2004, p. 04 e 05) 72 Álbum lançado por Wendy Carlos (na época ainda Walter Carlos) em 1968. Foi a primeira gravação a popularizar a música de sintetizadores eletrônicos, e resultou em um enorme interesse por eles, particularmente os sintetizadores Moog. Foi o primeiro álbum erudito a vender 500 mil cópias, recebendo disco de platina pela RIAA. Entrou a parada da Billboard Top 40 em 1 de março de 1969, subindo rapidamente para o Top 10; permaneceu no Top 40 por 17 semanas, e no Top 200 por mais de um ano. O álbum recebeu em 1970 o Grammy em três categorias: Melhor Álbum Clássico, Melhor Desempenho Clássico, Solista Instrumental e Melhor Gravação Clássica. (wikipedia.org. acessado em 29 de dezembro de 2012) Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 60 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Figura 8 – Mini Moog, de 1970. É a música eletrônica disponível a um preço camarada. 73 Figura 9 - ... e a capa do disco Switched on Back, de Wendy Carlos, uma espécie de pré-steam punk musical. Os anos 1960 e 1970 foram de popularização e aprimoramento destas tecnologias, com novas empresas investindo em produtos e pesquisas, além do surgimento de tendências dentro do mercado da música, que fortaleciam ainda mais seu uso. Estas tendências levavam à criação de novas músicas com os sintetizadores como forma e temática, a exemplo do Kraftwerk, ou soma73 Steam punk é um subgênero da ficção científica ambientado em uma era vitoriana imaginária, na qual a tecnologia à vapor é capaz de realizar feitos só possíveis pela tecnologia contemporânea, como viagens ao espaço, comunicação à longa distância e grandes máquinas de guerra. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 61 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais vam a formas performáticas e de dança, com a criação do sintetizador de baixo em 1980, que alicerçaria a música eletrônica dançante de grupos como Duram Duran, Pet Shop Boys e Eurythmics. Na década de 1980, os sintetizadores já estavam consolidados no terreno da música popular, com estilos diversos e múltiplos usos, ao passo que a tecnologia se tornava cada vez mais acessível e o nível de especialização necessária para operá-la poderia ser bem menor. Assim como ocorreu com o pianoforte, a intenção dos novos sintetizadores digitais nos anos 1980 era de levar a experiência da música aos lares, atraindo assim o maior número de consumidores. A criação do protocolo MIDI, em 1983, padronizou a comunicação entre sintetizadores e o também emergente ramo dos microcomputadores, proporcionando uma linguagem padrão para toda a indústria e barateando ainda mais os custos de pesquisa e produção. É nesta época que surgem os teclados eletrônicos populares polifônicos, que começavam a incluir bancos de ritmo, além de diversos timbres que poderiam ser trocados ao toque de um botão. O teclado se tornava um aparelho que continha diversos outros instrumentos em suas teclas. Mesmo os modelos mais simples emulavam piano, órgão, flauta, baixo e sons de outros sintetizadores. A execução do músico poderia ser acompanhada por um metrônomo ou algum ritmo pré-programado na memória do instrumento como rock, salsa, valsa, funk ou beguine. O andamento deste acompanhamento também era manipulável. É importante ressaltar que estes instrumentos surgem por empresas japonesas como Yamaha e Casio. No Japão, cantar é um dos grandes entretenimentos nacionais, com milhares de karaokês espalhados pelo país, onde programas de calouros fazem grande sucesso. Popularizar os sintetizadores no Japão parecia suprir uma demanda latente por uma forma simples, rápida e barata de produzir música em ambiente doméstico, ou como disse a Casio, “disponibilizar o prazer de criar música para o maior número possível de pessoas”. No Maranhão, a chegada destes sintetizadores ocorre por volta de 1985, de acordo com a narrativa da maioria daqueles que tiveram contato com o instrumento. Havia nas redes de produção de música na cidade, de músicos envolvidos com as bandas de baile e com o mercado dos palcos, uma busca constante por novas tecnologias. A entrada do teclado com programação, acredito, provoca entre estes agentes a abertura de novas possibilidades para a continuidade do seu trabalho, assim como outras rupturas. Uma coisa eu sentia: que mais cedo ou mais tarde bateria ia mudar, bandas iam mudar e eu aderi ao teclado, porque, assim, era muita gente. Muita gente, banda com muitos componentes. O patrão não dava conta de pagar todo mundo porque os cachês também eram mixaria, aí eu senti, cara, daqui a uns dias vai ter só um cara tocando e eu cantando no teclado, quando eu vi o teclado com bateria, né. (Lairton, 2008). Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 62 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Eu já tinha visto um. Mais ou menos uns anos atrás eu vi um na mão de um colega meu, que era sargento da polícia, ele tocava comigo o teclado. Era pequenininho, da Casio. E eu me lembro que ele disse assim: ‘olha, Gil, isso aqui vai revolucionar. Vai desempregar muitos músicos!’ e eu dizia ‘que nada, cara!’, e ele disse ‘vai’. Eu falei ‘por quê?’, ‘porque ele tem ritmo’. (Gilberto Santos, 2011) Lairton é um dos que migrou para o teclado neste período. O teclado com programação possibilitava o barateamento dos shows, ao eliminar baixista e baterista. Os músicos começam a fazer bicos em pequenas apresentações em bares, no estilo das festas chamadas de seresta, ou seja, festas voltadas para a dança, com música romântica, antes animadas ao som do violão. A nova tecnologia encontra os mais diversos usos dentro deste ambiente das serestas e, mesmo músicos que não tocavam teclado, aderem ao instrumento, alguns usando somente a emulação de timbres para execução como teclado em piano-bares nos hotéis de luxo da cidade, outros utilizando a bateria eletrônica para tocar em serestas e MPB em barzinhos, acompanhados ainda do violão. Mas a maioria usa ritmo e harmonia. Ao longo da última metade da década de 1980, proliferam em São Luís e no interior as primeiras casas de seresta, que começam a utilizar o nome choperia. Este movimento começa a se desenvolver em um momento de crise nas bandas de baile, com seus altos custos de manutenção e demanda cada vez mais baixa, favorecendo uma corrente migratória. Grande parte dos músicos das bandas de baile torna-se seresteiros e deixam de atuar nos clubes para tocar nas choperias. Quando começa não, quando foi substituída. Foi em meados de 93/94, que surgiu o teclado mesmo, aí pronto, aí acabou mesmo, banda acabou mesmo e ficou só grupo de seresta, aí todo mundo... quem era de banda pegou sua aparelhagem e foi fazer seresta (Walfredo Jair, ex-vocalista de bandas de baile de elite, hoje, seresteiro, 2008). Ao que parece, ocorre aqui uma confluência de fatores que coloca o teclado de programação como a solução encontrada por estes músicos para se manter no mercado, além de criar na cidade um novo nicho, que cresceria e ganharia espaço midiático nos anos 1990. Tu já pensaste a ruma de músico que foram ficando aí desempregados. A solução foi essa! Do teclado eletrônico. Imagina 10 bandas que pararam, 100 músicos, ou quase isso. Walfredo, quando deixou os Fantoches, passou a fazer seresta, e vários, rapaz, uma ruma deles, que ficaram no teclado. Por exemplo, o irmão de Wilsinho, que é Zeca Diabo, ele era contrabaixista; hoje não sabe nem pronde vai. Ele se passou pro teclado. (Gilberto Santos, 2011). Músicos que por anos tocavam os mais diversos instrumentos passaram para o teclado com programação, músicos que nunca cantaram passaram a emprestar sua voz para as serestas. Nas emergentes choperias, não havia a necessidade de contratar uma grande banda, se era possível ter “uma banda inteira” (Riba Show, 2011) ao toque de poucas teclas. Se nos anos 1980 houve a Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 63 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais proliferação inicial da seresta, os anos 1990 presenciaram uma forte migração de músicos das antigas bandas de baile para universo da música brega/seresta com teclado. Se antes as festas eram animadas por bandas/empresas que contratavam até 10 músicos por salários e cachês, agora, os membros destas bandas/empresas tornam-se músicos empreendedores, que com o teclado e algumas caixas de som, dispensam o aparato empresarial em crise e transformam-se em seus próprios empresários, roadies, técnicos de som e crooners. E com isso ganhavam mais. “A banda é uns 12 músicos. O conjunto é só eu mais eu mesmo. Eu canto e toco.” (Riba Show, 2011) Aí o Patrocínio foi embora pra Brasília, o Luís foi embora pro Rio e eu fiquei sozinho. Aí esse dito Zequita disse assim pra mim: ‘por que tu não aprende a tocar teclado e faz uma coisa pra ti cantar, pra tocar com a Eugênia’. Eu disse, que eu chamo ele só de cumpade Zé. Eu disse: ‘cumpade Zé, como é que eu vou tocar teclado, se eu não sei nem pra onde vai as coisas do teclado. ‘Rapá, tu aprende!’. Aí na banda Gen tinha dois teclados. Um com ritmo e o outro um sintetizador. Aí eles foram embora e deixaram as coisa tudinho na casa do Patrocínio lá no Anil, mas eu que ficava tomando de conta. (...) Eu disse ‘rapaz, eu vou ter que aprender’. É o jeito tocar teclado. (Domingos Castro, 2011). Não. Não tocava o teclado, eu só tocava bateria e violão. Aí começamos a tocar o teclado, e ele tinha um recurso que era só 2 dedos aqui, e dois dedos era menor, e ele começou, pouco tempo ele pegou desarma, pegou tudo aí. E o pessoal vinham olhar, os donos das casas noturnas vinham olhar aqui no Hora Certa pra ver o que era aquilo. E às vezes diziam que tava dublando, que era dublagem e tal, às vezes eu tinha que dizer nome feio no microfone pra saber que eu tava cantando mesmo. (Almir Sérgio, 2011). Além de Almir Sérgio, um dos pioneiros na seresta com teclado foi Riba Show, que em 1985 criou o grupo que leva seu nome com um teclado Casio que tinha ritmos pré-programados. Riba Show era proprietário do clube Mangueirão, que operava com bandas e festas de reggae no bairro da Vila Palmeira. Em 1984 começou a organizar o Arraial das Malvinas (o nome é por causa da guerra das Malvinas) no bairro do Maranhão Novo e foi neste arraial que estreou o trabalho com serestas, tocando com “a garrafinha (que) é o som que vinha junto com a bateria, tuc téc tec tec tom, todo tempo. Mas não tinha outro, o pessoal gostava” (Riba Show, 2011). Garrafinha é como Riba Show define o ritmo chamado beguine, disponível no banco de memória dos antigos teclados da Casio, cujo timbre de marcação dos compassos lembra o som de uma baqueta fina contra uma garrafa de cerveja vazia. Este ritmo era o que mais se assemelhava ao pulso encontrado no bolero, buscado pelos seresteiros. Além do beguine, os teclados dispunham de outros ritmos como salsa, forró, funk e bossa,74. “Agora não era programado, ele já vinha. Agora aquilo ali era uma 74 Em meu Casio Tonebank MT-260, do começo dos anos 1990, os ritmos disponíveis são: rock 1, rock 2, 8 beat 1, 8 beat 2, 12 beat 1, 16 beat 2, disco 1, disco 2, pops 1, pops 2, slow rock 1, slow rock 2, swing, reggae, samba, tango, bossa nova, beguine, waltz, march. Este teclado é muito semelhante ao usado por músicos como Riba Show. Não havia programação, somente os bancos de memória, que poderiam ser tocados em paralelo à execução do teclado em si. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 64 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais música de japonês. Japonês é muito desgraçado, não sabe distinguir porra nenhuma [ri]. O bolero que hoje é o serestão já vinha essa garrafinha junto. Não tinha como tirar.” (Riba Show, 2011). O fato de não ter “como tirar” demonstra a dinâmica dos primeiros anos da seresta. O beguine entrou no universo das festas no Maranhão como um facilitador financeiro, que contribuiu para o florescimento das choperias e grupos de seresta. Contudo, sua repetição durante anos e anos nas choperias, para a execução de diversos estilos musicais locais, formatou a paisagem sonora das festas de seresta, que passaram a ser associadas a esta célula rítmica e este pulso em particular. O beguine entra na seresta e, anos depois, é aquilo a partir do qual o estilo seresta se define, assim como o teclado. Novas gerações de músicos e público ouvem os timbres do teclado e a programação rítmica como algo que sempre fez parte das festas e passam a narrar a partir desta posição de naturalidade, assim como a entrada no mercado para estes músicos já se dá dentro desta lógica. Na verdade, a destruição dos dispositivos hi-fi não somente contribui generosamente para o problema do lo-fi como cria uma paisagem sonora sintética na qual os sons naturais estão se tornando cada vez mais não-naturais, enquanto seus substitutos feitos a máquina são os responsáveis pelos sinais operativos que dirigem a vida moderna. (SCHAFER, 2001, p. 135) O ritmo da seresta, nos anos 1980, era o mesmo em todas as casas, bares e fitas que se encontrasse, aquele pré-definido como beguine nos bancos de ritmo nos teclados e reinterpretado como bolero pelos usuários locais75, que alteravam somente o bpm das músicas. “Se você queria um bolero lento, você botava 80 (bpm), entendeu? 120 já dava um brega, porque o bolero, se você aumentar a velocidade ele dá brega.” (Riba Show, 2011). Beguine, né, bolero, rumba, salsa, merengue, não tinha forró, mais os ritmos americanos (que vinham no teclado) jazz, blues, rock (...) a gente improvisava, às vezes. O forró a gente usava o bolero acelerado, acelerava o bolero aí dava um forró meio capenga, com o baixo meio atravessado! (Almir Sérgio, 2011) O teclado no Maranhão e suas facilidades favorecem o ressurgimento do bolero como música de alta execução nos novos locais de festa, com público majoritariamente acima dos 30 anos e significante presença do tipo de frequentador identificado pelos agentes da seresta como coroas76, que encontravam nas festas as canções que haviam sido parte de sua formação. O público jovem migrava para outros eventos, como as festas de reggae e as boites. O mote principal da seresta era, genericamente, a música romântica. 75 Pitre-Vásques (2009) demonstra a similaridade rítmica entre bolero, samba canção e o beguine. 76 Coroas são pessoas de maior idade, geralmente acima dos 50 anos. No ambiente das festas de seresta, os coroas podem ser facilmente vistos como alguém que tem dinheiro e que pode pagar algumas cervejas. É comum jovens homens ir às serestas em busca de coroas, assim como é comum coroas procurarem homens mais jovens nestes espaços, às vezes com intenção sexual. É uma categoria valorizada nestes ambientes, que não primam pelo público jovem, antenado e sim pela estabilidade. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 65 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Estes são também os anos de popularização do termo brega no imaginário e vocabulário musical brasileiro, com diversos cantores, que antes eram taxados de cafona, sendo associados ao novo rótulo. Uma nova geração de cantores surgia já incorporando este rótulo de maneira afirmativa como artistas de brega, mas disto falaremos mais em breve. Assim, as serestas proliferaram rapidamente na cidade, seja em pequenos bares como o Gata Mansa, na Cohab, ou casas patrocinadas por cervejarias como o Hora Certa e o Jumbo, o que culmina no surgimento das grandes choperias como a Marcelo e o Kabão, para onde grande parte desta geração de músicos das bandas de baile convergiu, já como seresteiros. No começo da década de 1990, São Luís e o interior do estado contavam com um grande número de festas de seresta nos mais diversos espaços, o que ocorre com a formação de um novo mercado de música, para o qual o elemento distintivo dos clubes sociais perde sua relevância; não era mais importante uma mega estrutura de palco, não se fazia mais necessário acompanhar as tendências radiofônicas (pois o mais valorizado era exatamente fazer-conhecer o repertório consagrado do bolero, da era do rádio em diante), assim como não havia mais a congregação de vários músicos em uma mesma banda. Figura 10 - Casiotone CT-310. Semelhante aos modelos que aportaram no Maranhão e em outros estados nos anos 1980. As serestas se organizavam em um ambiente de festa que poderia ocupar espaços mais modestos como calçadas, terrenos baldios, ruas, bares na praia ou em bairros, praças públicas, entre outros. Em comparação com as bandas, o seresteiro faz um tipo de música de baixíssimo custo, com somente um instrumento e um músico, o que, além de facilitar a contratação, acrescenta a mobilidade, bastando um carro de passeio para carregar todo o equipamento necessário para a apresentação. Financeiramente, a gente não teve mais condição de sustentar uma banda. Porque... eu, por exemplo, dono de banda. Até a palheta do guitarrista eu comprava, cara. Ninguém tinha nada. A bateria era minha, o contrabaixo era meu, os teclados eram meus. Todos os donos de banda tinham que comprar tudo (...) nós tínhamos uma despesa enorme. Então, com o avanço do reggae, pagode, Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 66 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais nos anos 94, a inauguração da Litorânea, mexeu muito com o carnaval dos clubes, do Jaguarema, do Lítero e depois foi terminando. (Gilberto Santos, 2011). Depois que começaram a fabricar esses teclados com recursos... com vários recursos e tal, bateria e tal, esse monte de coisa. Guitarra já programada você só... então. Então a gente viu que aí, muita gente vou que aí era um negócio menos... mais barato pra poder ir tocar. Por exemplo, se fosse uma banda completa o cara não ia sair de casa pra tocar por menos de dois mil reais, com a Banda, uns dois mil, três mil. E com um teclado desse aí o cara vai com quinhentos reais o cara faz uma festa. Aí ficou muito mais barato, muito mais em conta e os donos de casas de show aderiram pelo teclado já com ritmo, né. teclado com ritmo, que ele já tava composto ali de tudo, guitarra, com baixo, com tudo, harmonia e tal. Então era mais fácil uma pessoa sozinha ou duas faz uma festa a noite toda. Pronto. Acabou. (Zé Ray, cantor e compositor de brega, 2011). No começo dos anos 1990, as choperias já eram o templo da seresta e da música brega. Tocavam nestes espaços vários egressos das bandas de baile, assim como cantores de renome regional e nacional do gênero brega, estilo de música associado ao bolero e ao modelo de festa das choperias. Aí veio Choperia Marcelo, Kabão, Marujo, é o Bar das Ostras, porque é uma referência. Era a UTI, Última Tentativa do Idoso, era lá. Lá era o seguinte: quem não se arranjasse por lá não se arranjava mais em lugar nenhum. Nós tínhamos 300 mesas lá, era cada garçom tinha uma praça ali com 10 mesas, foi a maior casa noturna que eu vi aqui em São Luís. (Almir Sérgio, 2011) Assim, a seresta era uma festa saudosista, associada à melancolia e ao passado, aquela serenata do luar, quando você, em cidades também na época, que tinha pouca energia, ou então, zero hora, onze hora a energia desligava, ficava só a luz de vela ou lamparina e aquele luar bonito. Quando eu às vezes tava dormindo, não tava na patota, quando eu via aquilo longe, aí eu chamava meu pai: tava os amigos dele lá na porta, fazendo aquela serenata, o acordando pra ele participar. Aí meu pai acordava e eu acordava junto com ele e ficava lá até quando eles iam embora (...) na época era Evaldo Braga, era Vicente Celestino, era Silvinho, Orlando Dias, só coisa mesmo de serenata mesmo. (Rogerinho, 2011. Músico seresteiro) O Maranhão já tinha suas estrelas neste segmento, sendo as figuras de maior destaque Raimundo Soldado e Adelino Nascimento, ambos, até aquele momento, tocando com banda. Ao longo da década, o que se vê no exemplo destes dois e em uma série de outros compositores e cantores da canção dita brega, é o encontro e a associação com o teclado de programação nos espaços das choperias, o que fomenta o surgimento de uma nova geração de seresteiros que teve pouco contato com o mercado de bandas de baile, ou mesmo nenhum contato, começando suas carreiras já sob a égide do teclado de programação e da informação rítmica do beguine, das fitas cassete e das choperias. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 67 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Esta geração é marcada pela prolífica produção fonográfica e pela associação direta do teclado ao nome (Cãozinho dos teclados, O Rei dos teclados, Anjinho e seus teclados, Lairton e seus teclados) e à música que faziam. Com o teclado, a partir dos anos 1980, a festa começa a ganhar novos ares e novas estrelas, e passa a ser reconhecida como uma festa onde se toca com o teclado e vice-versa. Músicos em diversos lugares compunham novas canções para o teclado e as gravavam; em meados dos anos 1990 o misto de bolero e brega executado com o teclado que era reconhecido como seresta começa a ganhar o território do disco, das rádios populares, da banquinha dos piratas e do coração de milhares de ouvintes apaixonados que dançavam, faziam coro, e bebiam. Estava aberta a era da seresta de teclado. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 68 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais 2. MÚSICA BREGA, SERESTA E TECLADO Os avanços tecnológicos no campo da feitura musical e de suas formas de mercantilização tiveram grande influência em aspectos da música que não são facilmente perceptíveis para o público leigo. Além dos novos timbres, novos instrumentos e novos arranjos performáticos, a digitalização da canção e o crescimento do mercado do disco, ao longo do século XX, trouxeram uma nova figura ao mercado fonográfico. Esta figura é a do produtor musical, apontada por Luiz Tatit como “aquele que, sendo ou não músico, sabe converter uma composição, por mais simples que seja, num produto expressivo e agressivo que invade a sala do ouvinte com a mesma exuberância de um som ao vivo.” (TATIT, 1990, p. 41). O produtor musical pode ser um técnico de som, arranjador, maestro, músico ou alguém sem conhecimento propriamente musical, mas que desempenhe este papel de refinamento do produto final da gravação, com olhos voltados para seu desempenho no mercado. O produtor é alguém a quem pertence o investimento da gravação, ou alguém contratado por este investidor, para defender seus interesses, otimizando a comunicação entre o produto disco e o ouvinte/cliente, articulando timbres, duração das faixas, ordem das músicas e outras tarefas necessárias, com os olhos nas vendas diretas de discos ou, no mercado de hoje, na alta execução que possa levar o artista a vender mais shows. As atribuições especificas do produtor variam por artista, disco, selo ou gênero. Quando Tatit (1990) ressaltou a importância da figura do produtor, sua preocupação era a de pensá-lo como uma figura de mediação entre a tecnologia e o artista, dentro do próprio processo de gravação, responsável pelo fonograma final. Isto fazia muito sentido ante o panorama do mercado da música nos anos 1990, quando tecnologias como o pro tools ainda não eram amplamente popularizadas e pirateáveis em qualquer computador. Assim, uma atualização desta questão nos afasta da capacidade técnica de manipulação da tecnologia e nos faz pensar no produtor de maneira mais ampla, como alguém cujo campo de ação se estende para além do aquário77. Para esta análise, me interessa pensar no dono do investimento sobre a canção, que pode ocupar o cargo do produtor ou contratar um profissional para este fim. Este investidor pode ser o próprio artista, no caso de uma gravação independente, mas geralmente é do selo fonográfico, a gravadora. No mercado de música nos anos 1980 e 1990, as gravadoras, selos e lojas de disco tinham mais importância do que a que têm hoje. Na década seguinte, alguns elementos como a pirataria, a internet e a popularização dos meios de gravação afetaram tanto o papel do produtor como 77 Aquário é como se chama a sala acusticamente isolada onde se grava sons. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 69 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais aquele que domina a tecnologia e a quem se deve obrigatoriamente recorrer para obter êxito, quanto a importância das gravadoras para quem almeja uma carreira musical. Se até a década de 1990 era possível a bandas como a Legião Urbana abdicar da venda de shows e viver somente da vendagem de discos, hoje isso é bastante raro. As novas tecnologias, que possibilitaram a instalação de um estúdio em espaços mínimos e a gravação com o uso apenas do computador pessoal, pode fazer parecer, a futuras gerações, que as coisas tenham sido sempre assim. As décadas de 1970 e 1980, no Maranhão, foram de pouquíssimos registros fonográficos. Bandas e artistas construíam suas carreiras no palco alimentando o sonho de um dia assinar com alguma gravadora e assim entrar, efetivamente, no mercado hegemônico da música. Com exceção de alguns poucos nomes como Nonato e seu conjunto, Cláudio Fontana, Papete e Chico Maranhão (todos gravados fora do Maranhão, por selos do Rio de Janeiro), poucos foram os que conseguiram. O estado também contou com coletâneas como o disco Viva (1985) e o Primeiro Festival da Música Popular Brasileira no Maranhão (1971), discos de grupos folclóricos como Boi da Madre Deus (1972), Boi de Pindaré (1973) e Boi de Guimarães (1974), todos gravados no Rio de Janeiro, com dinheiro público. Na década de 1980, contudo, ao menos dois artistas do segmento brega tiveram grande destaque no mercado norte/nordeste: Raimundo Soldado e Adelino Nascimento. Estes dois cantores/compositores, cujas trajetórias descreverei brevemente, são importantes para identificar o papel deste outro aspecto da música do Maranhão, o brega, que também encontrará, no teclado com programação, uma saída para a crise. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 70 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais 2.1. RAIMUNDO SOLDADO Raimundo Teles Carvalho nasceu em Santa Inês-MA. Em 1980, gravou seu primeiro disco, intitulado “Abraçando você”, de forma independente. O disco vendeu bem e foi comprado pelo selo Copacabana (da multinacional EMI), tornando-se rapidamente uma referência local, com sua fusão de música nordestina, pop e rock, com composições próprias. O disco totalizou mais de um milhão de cópias78. Seus shows, ao longo dos anos 1980, tinham bom público e o cantor transitava entre o interior do Maranhão e Piauí. Gravou mais de 5 LPs e CDs, sendo os últimos pelas gravadoras Gema e Atração Fonográfica, além de coletâneas oficiais e não oficiais, facilmente encontradas nas bancas de pirata pelo interior do Maranhão e do Piauí (onde ainda é bastante popular). É amplamente reconhecido como um artista de música brega, opinião reforçada pela inclusão de uma de suas mais famosas canções, “Não tem jeito que dê jeito”, no disco “A besteira é a base da sabedoria” (1995), do cantor cearense Falcão. Falcão faz um pastiche da música brega, com forte cunho de crítica social, e considera Raimundo como “uma das primeiras coisas boas que ouvi na adolescência.” (FALCÃO, 1995). O nome artístico vem dos tempos que servia ao exército. No mercado de música do Maranhão, Raimundo Soldado exerceu grande influência, sendo visto como alguém que “virou estrela” (Almir Sérgio, 2011) para os agentes vinculados à seresta e ao brega; contudo, sua carreira ocorreu fora da capital, sem que se tenha notícia de apresentações de grande porte ou menções nos meios de comunicação da capital, mesmo na ocasião da sua morte. O cantor é pouco conhecido em São Luís, salvo por nichos da música brega, onde é visto como “um cara que fez muita coisa, gravou muito disco (...) um cara muito importante pro meio” (José Oniton, 2011). Sua fama é maior na capital do Piauí, de modo que muitos pensam e dizem, nas entrevistas, que ele era de lá. Raimundo Soldado morreu aos 55 anos em Timon, cidade do Maranhão que faz divisa com Teresina, vítima de meningite. 78 A informação de vendagem oscila entre 1 e 2 milhões de cópias, de acordo com a fonte. A gravadora diz um milhão, outros agentes trabalham com dois. Aqui entram em jogo interesses como a vendagem direta, a supervalorização do disco e de seu sucesso ou a ofuscação do mesmo. O que nos interessa aqui é que, nos dias de hoje, qualquer disco que venda 100.000 cópias já pode ser considerado um tremendo estouro. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 71 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Figura 11 - Capa de disco de Raimundo Soldado. Mais uma vez um artista local inserido no mercado fonográfico regional. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 72 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais 2.2. ADELINO NASCIMENTO Figura 12 - Adelino Nascimento. Adelino Nascimento nasceu em Turiaçu-MA, era filho de um seresteiro e já havia colaborado, como compositor, para artistas de música brega como Oswaldo Bezerra, sob seu nome de batismo de Ceyle Nascimento79. Gravou seu primeiro disco, “O Cantor Apaixonado do povão”, em 1984, pelo selo Unacan, assumindo o nome Adelino, por sugestão da gravadora (por conta da identificação com Adelino Moreira80). O cantor começou uma carreira meteórica no segmento de música brega, alcançando grandes vendagens e respeito dentro da rede de produção de música no Maranhão. Adelino compunha suas próprias músicas, gravou ainda vários discos por selos como RCA e Gema. Olha. Adelino pra mim, eu vou te dizer um negócio, Adelino pra mim é, de brega, dos artistas brega, de cantores brega pra mim é o melhor do mundo. Pra mim, o Adelino foi o melhor do mundo! Não teve um bregueiro, não tem um bregueiro que chegue aos pés de Adelino Nascimento. Pode tentar do jeito que tentar, mas não chega não. Porque o trabalho dele, com aquela voz dele, com 79 No disco O Rei do Brega vol 02 (s/d), Faixas Aventureiro da paz e Traição. 80 Sobre o renomeação de cantores bregas falarei no próximo capítulo. A história da renomeação de Adelino, contudo, merece menção imediata. O cantor gravou o disco e esperava assinar com o seu nome de batismo. Só soube que foi rebatizado quando recebeu as cópias da bolacha pela gravadora. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 73 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais 81 aquela voz meia cheia assim de quem tá bêbado ou xilado entendeu, mas foi uma voz que ele entranhou nos corações das pessoas, que de norte a sul e de leste a oeste todo mundo gostava de Adelino. Todo... em qualquer lugar que tu chegar do Brasil todo mundo sabe quem é Adelino Nascimento, e até foda no exterior. Então pra mim, dos bregueiros foi o cara que mais vendeu. Pra tu ter uma ideia, quando Adelino gravou na RCA, que era o maior estouro, maior vendagem de discos, a RCA... Amado Batista era da RCA, eu te conto isso porque eu tava lá. Amado Batista era da RCA e Adelino era da Unacan. Aí o Amado Batista, como bregueiro também, vendeu, tava vendendo parece que duzentos e cinquenta mil cópias de discos, quando o Adelino tava vendendo setecentos na Unacan. Setecentas mil cópias, aí fizeram uma pesquisa pelo Brasil e no norte/nordeste, o cantor que mais vendia música brega era Adelino, aí sabe o que aconteceu? A RCA despachou o Amado Batista e contratou o Adelino Nascimento (...) o maior vendedor de disco brega do Brasil. E a Globo mandava pra Adelino, mandava era passagem de avião que era prele passar na TV Globo, pra ele cantar na Globo, ele nunca foi. Ele ‘eu não preciso da Globo. Eu não preciso da Globo pra fazer sucesso, eu faço sucesso é com o povo, não é com mídia não’ ele faz sucesso é com o povo, e era mesmo, era verdade. Tu via as músicas de Adelino quase não tocava nas rádios, mas onde tu andar tem um ser humano que tinha um disco de Adelino tocando no carro. (...) não toca na rádio, mas os corações das pessoas quer Adelino. (Zé Ray, 2011) O cantor entrou em decadência nos anos 1990, em decorrência do alcoolismo e do alto consumo de drogas, e faleceu em 2008, sendo enterrado em Maracaçumé com grandes honras de estrela local. Adelino Nascimento é um dos cantores de maior prestígio do brega local, visto como alguém que ganhou muito dinheiro, mas se estragou no vício. Segundo Geraldo Proença, dono da gravadora Gema, onde o cantor gravou seus últimos registros (com o teclado de programação e produção de José Oniton), “O Adelino foi um marco, né? Igual a você ter o Roberto Carlos na sua gravadora.” (Geraldo Proença, empresário, dono da gravadora Gema, 2008). 81 Xilado, no Maranhão, é a palavra para designar alguém sob efeito de maconha. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 74 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Figura 13 - Após sucesso nos palcos e no disco, Adelino Nascimento tentou a carreira política em 1996. O financiamento foi permutado com a gravadora Gema, em troca da gravação de seus últimos discos. Adelino não foi eleito. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 75 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais 2.3. GEMA GRAVADORA Adelino, Raimundo Soldado e alguns outros que são identificados por público, mídia e pelas diversas redes de produção musical como artistas de brega do Maranhão nos anos 1980, têm em comum o desenvolvimento de uma longa carreira no interior do estado e em outras capitais, raramente se apresentando ou tendo seus discos executados pelas rádios em São Luís. Aqui há um movimento paralelo com o das bandas de baile na capital. Estes cantores de música autoral dita brega também animavam festas, como na capital faziam as bandas de baile como o Nonato e seu conjunto. Os caminhos divergem, principalmente quando vemos que os cantores bregas conseguiam grande vendagem de discos, e buscavam inserção nos mercados de fora do estado, já que a capital era identificada por alguns deles como um local de alta cultura, onde a música que faziam, carregada da má fama do rótulo brega, não teria espaço. (...) então era o Raimundo Soldado, naquela época, tinha o Manelino da Sucupira, que era de São João dos Patos, que era conterrâneo do Tom Cleber, que era uma galera que fazia sucesso ali, Antônio machado, que eles chamavam, de Caxias, que era empautado. Todo mundo dizia até hoje que ele era empautado com o satanás, com o cão, porque ele tocava 12 a 14 horas sem tirar o instrumento do peito. Sanfoneiro com uma sanfona de quase 40 quilos, então diziam ‘ele é empautado’. Todas as festas dele era lotado, como era também do Manelino da Sucupira, como era do Raimundo Soldado. (Almir Sérgio, 2011) Em comum, estas duas correntes possuem o fato de que a maioria de seus representantes migrou para o teclado no começo dos anos 1990. Ao final da década de 1980, o teclado com programação já estava presente em dezenas de espaços de festa no Maranhão e outros estados do nordeste, com seu uso majoritário nas festas de seresta em Alagoas, Fortaleza, Salvador, Belém e outras cidades que, aos poucos, descobriam formas de apropriação do novo instrumento, assim como criações de música com estas formas. A partir dos anos 1990, uma nova geração de músicos começa a surgir, já sem a passagem por uma banda de baile na carreira, sem a mesma visão em relação ao mercado hegemônico de música e com grande influência da música brega de cantores como Raimundo e Adelino no âmbito local, e Evaldo Braga e Carlos Alexandre, na esfera nacional. Esta geração passa a levar o teclado para o disco e seu primeiro grande sucesso surge em 1992, com a gravação da canção Leidiane, de Júlio Nascimento (nascido Antônio Carlos de Jesus Feitosa, Colinas-MA, 1974). Nascimento cantava desde criança, mas antes de gravar o primeiro disco nunca tinha pisado num palco que não fosse o da Assembleia de Deus. “Meu plano era ser cantor evangélico. Aí tinha uns hinos, e quando eu tocava os meus hinos na igreja os (...) irmãos lá na igreja choravam, chegavam a chorar, porque diziam que era muito penoso”. (Júlio Nascimento, cantor e compositor de bregas, 2011). Penoso seria um bom adjetivo para descrever o personaBruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 76 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais gem encarnado por Nascimento em seus mais de 25 discos. O cantor explora o nicho da música brega conhecido como o de “música de corno”, aquela cuja letra, invariavelmente, narra a desventura de um homem enganado pela mulher, que bebe, sofre e chora. Estas canções trafegam entre a tragédia e o humor e são geralmente o que vem à mente de boa parte dos entrevistados não integrantes de algum nicho relacionado à música brega, quando perguntados sobre ela. Leidiane narra a história de um homem que vai ao garimpo a trabalho, manda o dinheiro arrecadado para a mulher, que o gasta “com os homens lá no cabaré” (NASCIMENTO, 1992). A canção teve grande sucesso popular e tornou-se um marco sempre referendado pelos agentes locais relacionados ao brega e à seresta como, na definição de Riba Show, “uma revolução pai d’égua.” (Riba Show, 2011). Completamente diferente de todos os estilos, de todos os bregas. Completamente diferente. A história dele, do garimpo, quer dizer, é uma história que não tem nada a ver com a vida dele, na verdade (...) o Júlio nunca foi garimpeiro, nunca teve problema com mulher, nunca teve Leidiane, nunca teve nada. Ele criou um filme e contou a história do filme e foi aquilo ali que pegou, que deu uma diferença pra ele, a narrativa dele e, se você ouvir ele, as histórias dele, o brega dele, você fala: ‘porra, esse cara tem uns 40 anos, 40 e poucos anos’, e na realidade não, ele tinha 20, 20 e poucos anos. Aí que tava a diferença, o brega dele era dum cara, dum quarentão, que cantava aquele tipo de música, de beber e tal. Porque outro cara na idade dele ia cantar coisa de amor. Ele não. Ele partiu presse lado e bateu em cima. (Geraldo Proença, 2008) O arranjo de Leidiane era aquele que se podia ouvir nas choperias, com o timbre e pulso característico dos teclados com eletrorritmo e, principalmente, com a programação de baixo e bateria usada pelos seresteiros. Punha-se no disco o som com, para novamente usar as palavras de Tatit, “a mesma exuberância de um som ao vivo”, com a diferença que esta exuberância era fruto de um arranjo mercadológico, proporcionado pelas novas tecnologias, que o público já tinha o hábito de ouvir no crescente mercado das choperias, fitas cassete e rádios AM: a festa popular transposta para o produto fonográfico, mas ainda com a tentativa de fazer soar como um disco com banda, sem a declaração clara de que se tratava de um disco feito com o teclado.82 A canção tinha alta execução nas rádios populares, estações AM e equipamentos de som espalhados pelas cidades, marcando um momento de entrada da música brega local com maior força na capital, junto com nomes como Hilton Vargas (Eu vou pedir a lua), Roberto Villar (Profissional Papudinho) e Chico Lopes (Fã da Eliane). A canção brega e seus representantes encontraram na capital o espaço consagrado às serestas, que se fortaleciam desde a década anterior (1980). Choperias como a Marcelo (fundada em 1989) realizavam shows destes artistas, com 82 O expediente de alguns destes discos, como o segundo de Júlio Nascimento, mostram o mesmo nome nos créditos para baixo, bateria e teclado. Trata-se da figura que opera o teclado. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 77 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais grande lotação e o investimento nos espaços se tornava cada vez maior, com a abertura de novas empresas e o surgimento de novos seresteiros e cantores de brega que haviam abandonado as bandas e passado a compor e se apresentar somente com o teclado e uma eventual guitarra ou saxofone. Assim, nomes como Ray Douglas começavam a despontar neste mercado, que teria uma grande virada pela entrada de investimento privado e de produtores musicais. Os primeiros seresteiros tinham por hábito gravar suas apresentações em fitas cassete, que eram usadas como fitas demo ou vendidas nas bancas de pirataria, com baixas tiragens. Nestas bancas apareceram as primeiras fitas de seresta: Olha eu comecei gravando fita cassete, em uma loja de discos, em minha cidade. Gravei a fita vol. 01 e logo depois passei a gravar, no meu próprio stúdio, do Musical Sygnus. Em menos de um ano, de divulgações das fitas, fui convidado pela gravadora GEMA, onde gravei 13 CDS. Depois fui para a gravadora SOMZOOM de Fortaleza CE. Onde gravei 1 CD. Após 1 ano, fui contratado pela CD Center do Brasil, onde gravei mais 6 CDs. Atualmente tenho meu próprio stúdio, Bianca Promoções, O Stúdio de Anjinho dos Teclados. (Anjinho dos Teclados, seresteiro, cantor de brega, 2011) Anjinho, natural de Afogados da Ingazeria, Pernambuco, é visto por vários agentes, dentro do mercado nacional do brega e da seresta, como aquele que gravou o primeiro disco de seresta do Brasil, inicialmente de forma independente, em fitas, que logo chamaram a atenção da gravadora Gema. Falo aqui do produto CD, subsidiado por uma gravadora com o propósito de distribuição comercial, um produto final, não uma demo ou fita de performance ao vivo em casa noturna, pois estas já eram feitas por dezenas de cantores em diversas cidades. Pioneira na gravação de artistas que usavam o teclado de eletrorritmo, a Gema, nos anos 1990, foi o maior selo de bregas do Brasil em número de discos vendidos e em visibilidade relacionada ao gênero. É a empresa responsável pelo investimento nesta geração de cantores do nordeste, visando o mercado de nordestinos em São Paulo. 83 O Anginho começou a estourar em São Paulo na fita cassete. Todo mundo “Anginho dos teclados! Anginho dos Teclados!”, na fita cassete, e foi embora. Então o que que aconteceu: nós pegamos o telefone que ele dava lá na fita, entramos em contato com ele, que ele é lá de Afogados da Ingazeira, em Pernambuco. Aí entrei em contato com ele, marquei com ele, fui lá no estúdio de Recife. Chegamos lá no estúdio, marcamos e encontramos lá no estúdio. ‘Então vamo gravar?’, ‘Ah, como vamos gravar?’, ‘Vamos gravar o que você canta’, ‘Ah, não, mas tem que fazer arranjo, tem que pegar música’, e eu falei , ‘não. Eu quero fazer um negócio você tocando e você cantando.’ Todo mundo achou estranho, até o estúdio. O estúdio sempre teve um padrão de gravar os músicos, depois gravar o cantor, fazer mixagem, acertar tudo. Eu falei pro cara assim: 83 A grafia de Anjinho realmente varia de acordo com a fonte. Aqui conservei como me foi apresentado. Também respeitei a grafia nos depoimentos do cantor, que me foram dados por escrito, via e-mail. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 78 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais ‘não, você pega o cabo do teclado dele, ele entra dentro do estúdio, da parte de (gravação, o aquário) e você pega o cabo dele e liga direto na mesa, e você grava. ‘não, mas depois tem de mixar’, ‘não, ele vai cantar no microfone e você vai gravar em dois canais. Um canal da voz dele e um canal do teclado’. O cara achou um negócio esquisito, mas eu falei: ‘não. Eu quero pagar’. Fizemos cinco ou seis fitas em uns 3 dias de gravações, tudo direto, tudo gravado direto. (Geraldo Proença, 2008) O sorocabano Geraldo de Jesus Proença, no começo dos anos 1990, já havia trabalhado como locutor e programador de rádio, dono de loja de disco e vendedor de fitas piratas, de onde veio seu conhecimento do mercado da música. “Aqui (em São Paulo) o pessoal conhecia mais o sertanejo. No interior é sertanejo, São Paulo, brega, mais de nordestino.” (idem, 2008). O mercado de fitas cassete de artistas brega nordestinos cresceu nas bancas do comércio popular paulistano e formou um nicho cada vez maior. Geraldo era um cara que era pirateiro! (...) só que antigamente ele pirateava fita, fita cassete ele já era pirateiro forte em São Paulo. Ele tinha uma barraca na avenida Ferreira, onde hoje é o escritório dele. Ele foi ganhando dinheiro, foi ganhando dinheiro, foi ganhando dinheiro e chegou num patamar de fundar o selo dele, Gema, o que é Gema: Geraldo e Marilda, que é a mulher dele. (Bruto Dantas, compositor e empresário de artistas de brega, 2008) Então nós pegamos um filé que eles (as grandes gravadoras) não queriam. Eles já tiveram seus bregas antigos, o Bartô Galeno, o José Ribeiro, Carlos Alexandre, e passou aquela fase que eles vendiam duzentas, trezentas mil cópias, passou. Então preles venderem dez, quinze mil cópias de um artista não interessa pra eles. Que nenhum brega ultrapassa um número desse. Hoje prum artista vender dez mil cópias ele já é um astro. (Geraldo Proença, 2008) A Gema foi fundada em 1992, com o propósito de fazer “brega e popular”, gravando discos exclusivamente com o teclado, “Porque funcionava na fita cassete. Porque já tinha, já tinham vários que gravavam na fita cassete só tocando o teclado” (Idem, 2008). Grande parte dos artistas gravados pela Gema vinham do interior do Maranhão, através da indicação do produtor José Oniton, figura de mediação que levou para Geraldo vários dos cantores e compositores do Maranhão que integraram o cast do selo. A Gema mantinha um estúdio na cidade de Santa Inês, coordenado por José Oniton, onde os discos eram gravados e encaminhados para prensagem em São Paulo, como um produto da Gema. A estratégia do selo para o controle do mercado do brega estava, naquele contexto, em controlar o gênero através da fonte, e oferecendo em lojas populares os discos a preços igualmente populares. Aqui retorno à figura do produtor musical e sua relação não somente com as tecnologias, mas com a percepção de um nicho a ser explorado e da possibilidade de resposta de mercado a um determinado produto. Geraldo Proença admite que o teclado com programação no disco é Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 79 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais um “arranjo”, que não é o ideal, mas que aquilo tinha ressonância no mercado informal paulistano. Assim, um estilo de música brega de produção baratíssima ganhava o grande mercado com artistas do Maranhão e um selo paulistano voltado para nordestinos imigrantes. Se o teclado para os seresteiros egressos das bandas de baile era uma forma de se manter no mercado de shows, para esta nova geração era a maneira de fazer música dentro da qual foram formados e para a qual compunham e cujo mercado exploravam. O teclado começa a ser associado não mais somente à seresta, mas à música brega de cantores surgidos nos anos 1990, nordestinos, que despontavam nas rádios AM, casas de festas populares e no mercado fonográfico. Dentre os artistas maranhenses que assinaram com a Gema estava Júlio Nascimento. Indicado por José Oniton e já com sucessos como Leidiane, Dalziza e Sapatão no currículo, uma crescente carreira de shows e estouro local nas AMs e choperias, Nascimento gravou “ao vivo” o seu primeiro disco pela Gema: Eu falei (pro Julio) ‘vamo ensaiar no estúdio ali’, tem um estúdio do Ademir, um conhecido da gente. Aí eu mandei ele pra lá, ele foi lá e eu falei pro Ademir: ‘Liga o teclado dele na mesa, a mesma coisa que foi feito com Anginho. Grava aí, depois a gente vai ver o que vai fazer, que tipo de disco a gente vai fazer’. O cara pegou e ligou e ele ficou cantando. Teclado ele tocava horrível, horrível. (...) tocando o teclado que ele tinha aprendido há uns 3 meses atrás, ele sabia só bater a tecla, tanto é que você escuta ele raspar a tecla, aquilo ali num tem pra quem toca teclado. Tanto é que um rapaz do estúdio, desceu do terceiro andar, desceu lá, foi comer um lanche o Júlio tava tocando lá a e a fita já tinha acabado. O quê que nós vamos fazer? Vamo gravar o disco. Ele só tava ensaiando. Eu já apliquei o golpe pra fazer, pra ficar diferente mesmo. Então ficou o melhor disco dele. O pior disco gravado e o melhor disco dele pra vender. Por isso que a gente não tem possibilidades técnicas e financeiras pra você patrocinar uma orquestra, músicos, um estúdio grande, pra um cantor grande, nós pegamos dentro das possibilidades nossa. E foi o que deu certo até hoje, (idem, 2008) [o disco é] Cheio de erros. Eu tocando, já cheio de uísque lá, tocando tudo errado lá, meu deus do céu. Mas o pessoal adoraram aquele CD. (Júlio Nascimento, 2011) Nascimento, em uma conversa não gravada em 2008, por telefone, mencionou um raciocínio interessante. Ele conta que não sabia da gravação do disco, que fez um ensaio com Geraldo, que depois o levou para passear e fez umas fotos no centro de São Paulo. Algumas semanas depois, recebeu o disco prensado em casa e pensou: agora é o fim da minha carreira, eu tava fazendo tudo certinho e não dava certo, agora mesmo com esse disco horrível é que estou acabado. Geraldo exibia ao cantor placas nas quais pedia que fosse mandando um alô para fulano de tal, feito o anúncio X ou Y e o comentário A ou B, com a intenção de criar o clima de uma apresen- Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 80 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais tação ao vivo, em choperia. Essas chamadas aparecem no disco, que também dá a impressão (anunciada) de que o cantor está alcoolizado. A capa do CD mostra Nascimento atravessando uma rua no centro da capital paulista. Na contracapa vemos novamente o cantor encostado em um poste, aparentemente na mesma esquina que cruza na imagem anterior. Um olhar atento pode perceber que o poste, que estampa o anúncio “uma boa ideia” da cachaça Caninha 51, exibe duas placas indicativas do endereço, no qual se pode ler “Avenida São João” e “Avenida Ipiranga”, sacralizadas nos versos de Caetano Veloso84. Figura 14 - Júlio Nascimento, sem saber, posa no cartão postal da MPB, em ritmo de seresta. Capa do CD. Até a realização da entrevista com Júlio Nascimento, em 2011, o cantor não sabia que a contracapa do seu disco fora feita nesta esquina, nem mesmo do peso simbólico que ela carrega para a música brasileira. O nome do disco era “Em ritmo de Seresta”, e foi lançado em 1993. Estes dados são importantes para se pensar esta figura do produtor, aqui personalizada em Geraldo Proença e José Oniton, como aquele que pode perceber e deflagrar um movimento. No caso da música brega/seresta maranhense dos anos 1990, o movimento floresceu via rádios AM, 84 “Alguma coisa acontece no meu coração, só quando cruzo a Ipiranga e a Avenida São João”, diz Caetano em Sampa, gravada em 1978, no disco Muito. A canção, escrita por um imigrante nordestino, fala de suas impressões pela cidade de São Paulo. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 81 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais choperias e pelo investimento de um selo, que aparentemente percebeu que aquilo que os agentes entendiam como arranjo temporário já era um produto em si, com demanda de mercado. O produtor se torna também a figura capaz de afirmar o que é bom e o que é ruim para estas demandas de mercado e mesmo de manipular gostos e demandas em nome do resultado de seu trabalho Tinha mês deu receber 30, 40 fitas, mas eram todos descartáveis praticamente, né? Porque a gente não se baseia no que a pessoa manda e no que a gente gosta. A Gema funciona como um comércio, então não tem sentimento musical, você pode ter ouvido musical, mas não sentimento musical, se não você vai à falência. Ah, gostei dessa música, ela é linda e maravilhosa, esse cantor é bonito, esse cantor é isso, eu vou gravar um disco dele. Aí você grava 10 dele e morre na praia. Então tem que pegar um que já tá andando. (Geraldo Proença, 2008). Este foi o primeiro disco a estampar a marca da seresta em sua capa. Não que a ideia fosse nova ou o formato inédito. Outros discos (como o de Anjinho, visto como o pioneiro na seresta em disco) já haviam explorado a ideia do teclado como instrumento único em CD, mas “Em ritmo de Seresta” foi o primeiro a transpor o ambiente das festas de seresta para o disco e a batizá-lo desta maneira, inaugurando uma tendência amplamente copiada no segmento. O chamado “ritmo de seresta” virou, nos anos 1990, uma vertente da música brega, como o são o tecnobrega, o arrocha e a canção cafona dos anos 1970. Este estilo encontra suas expressões de maior ressonância mercadológica em artistas do Maranhão. A maioria mantém suas carreiras até hoje, atendendo a um mercado e público fora da capital São Luís. O estouro de canções como Bebo Mais (primeiramente na voz de seu compositor, Zé Ray, e quase uma década depois na do arredio a entrevistas Gonzaga Júnior), Leidiane, Eu vou pedir à Lua (Hilton Marques) e Profissional Papudinho (Roberto Villar), abriram o caminho para a enxurrada de jovens que, a partir de então, passaram a apostar na carreira de cantor de música brega, visando os palcos das grandes choperias e o sucesso arrebatador de Lairton em rede nacional. Esta demanda fez crescer, em São Luís e no interior, um novo mercado para a música, desta vez voltado para estúdios de gravação (como o Live Records, que gravou mais de 300 discos de brega nos anos 1990), músico de estúdio como guitarristas e tecladistas (estes tocavam nos discos e faziam/fazem as programações dos teclados para os shows, como veremos no próximo capítulo), dançarinos, produtores fonográficos. Contudo, estes músicos e suas produções estavam restritos aos nichos da canção brega, com pouco ou nenhum espaço nas FMs. Nomes como Mano Maranhão tiveram grande público nas choperias como a Marcelo e o Kabão, sem penetrar nas casas de festa da elite (contudo, nas residências, as canções estavam presentes pelos gostos dos funcionários e prestadores de serviço doméstico como empregadas e pedreiros) e nos seus universos discursivos. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 82 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Importa aqui perceber, de maneira geral, como, no Maranhão, se pôde construir outro ambiente de produção de música popular em meio a um contexto de crise, mediado por um elemento tecnológico, assim como demonstrar que em outros estados próximos como o Pará e o Ceará (duas importantes referências em música brega) a música de seresta não atingiu a mesma maturidade a ponto de configurar-se em um estilo que perdura até os dias de hoje. O Pará, por exemplo, destaca-se por diversos gêneros musicais de influência caribenha associados ao brega como o carimbó, a guitarrada, a lambada85. Ronaldo Lemos e Oona Castro demonstram que, no Pará, já havia estrutura técnica e tecnológica para a existência de selos fonográficos, distribuição e estúdios de gravação desde, os anos 1970/1980, com forte profissionalização e investimentos diversos em artistas locais que compunham e interpretavam as suas próprias músicas: A partir daí, o negócio da música brega e ritmos dela derivados cresceu em ritmo acelerado. Investiu-se na abertura de novas casas de show, estúdios, editoras e gravadoras. ‘os estúdios cada vez mais tentando melhorar, as editoras se profissionalizando, com importante e efetiva participação de Silvinha Silva, da AR Music. Cantores renomados do cenário nacional começaram a selecionar e gravar músicas de cantores paraenses. A prova do sucesso do ritmo paraense são as casas noturnas – como A Pororoca, atualmente a principal e de maior estrutura, a extinta Xodó, onde o movimento recomeçou nos anos 90, Mauru’s, Kuarup, entre outras – específicas para o gênero, superlotadas, apenas com atrações locais e a audiência maciça dos programas de AM,e FM e de TV dedicados somente ao gênero (...) tudo isso provando a paixão do povo paraense por esse ritmo’, exaltou Júnior Neves em entrevista à Alessandra Tosta, antropóloga que realizou a pesquisa qualitativa em Belém. (LEMOS e CASTRO, 2008, p. 27). O brega no Pará teve uma queda no começo dos anos 1990, ressurgindo na metade da década, com andamento mais rápido, guitarras mais pronunciadas e algum uso de tecnologias digitais, como se pode perceber em um dos grandes sucessos desta época, a canção Profissional Papudinho (s/d), de Roberto Villar. A produção fonográfica era intensa e um músico de estúdio como o guitarrista Chimbinha, fundador da banda Calypso, gravou mais de mil discos nos mercados de Belém e outras cidades nordestinas. Havia, naquele momento, uma reformulação na música brega paraense, que culminaria no fenômeno do tecnobrega, uma mistura da música eletrônica nas boites com o brega tradicional. Em todos os livros consultados sobre o assunto, o termo seresta não aparece como algo definidor de um tipo de canção, já que, para o Pará, o termo brega parece ter um peso de mercado mais relevante que as lutas pelas afirmações das identidades locais. Assim, surgem ao longo dos ano 85 A lambada é um arranjo de vários estilos compilados e rebatizados com este nome, nos anos 1980, pelo radialista Carlos Santos e que virou febre nacional. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 83 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais 1990 o Calypso (ritmo ressurgido, representado pela banda homônima, de grande sucesso nacional), bregacalypso, tecnobrega, cybertecnobrega, brega melody. O arranjo tecnológico do teclado com eletrorritmo pré-programado era parte do ambiente de festas em Belém, mas com contornos diversos daquele utilizado no Maranhão, como podemos ver em uma das narrativas sobre a criação do tecnobrega. “Tony Brasil é considerado o primeiro a tocar com apenas uma nota, cantando com voz e teclado.” (LEMOS e CASTRO, 2008, p. 28) Antigamente chamavam o dance de house. Aí virou dance porque mudaram as batidas. Fiquei com essa ideia: ‘por que o brega não pode também mudar?’ Botar uma batida mais pesada. aí tive essa ideia aí. E deu certo. Montei o tecnobrega. Era só trance. pedacinho assim de vinheta, de música, peguei uma batida, o baixo de uma música, de tudo... Fui montando. Aí peguei o brega. Só que fiquei pensando em como eu ia chamar, que é um ritmo mais pesado. Aí a gente tinha gente falando de tecnobrega, mas não era ainda tecnobrega como é hoje, era teclado... (Tony Brasil, apud LEMOS e CASTRO, 2008, p. 31) O movimento das chamadas aparelhagens (que em diversos aspectos se assemelham às radiolas do reggae do Maranhão) dominam o mercado das festas em Belém e no restante do Pará, com mega-empresas familiares, que operam em conjunto com compositores/artistas ou têm seu próprio elenco, focado na figura do Dj. Aqui é importante mencionar, como hipótese, que a crise pela qual passou o mercado da música no Maranhão, pode não ter sido tão impactante no Pará, que desenvolvia já suas formas de festa com outros moldes. Contudo, a relação com a tecnologia também é marca destas formas de festa: Embora reconheça que as festas de aparelhagem, de um certo modo, inauguram formas de sociabilidade próprias, não afirmo que estas tenham se engendrado por algum tipo de ‘encanto’. O que seria um grande equívoco de cunho, inclusive, sociológico. Na verdade, vê-se que houve uma espécie de reavaliação funcional das possibilidades que determinados adventos tecnológicos e outros produtos culturais pudera oferecer. (LIMA, 2008, p. 45) O mercado musical paraense parece ter passado pela seresta, pelo bolero e pelo teclado sem que nem um ou outro lhe fosse tão caro quanto foi aos músicos do Maranhão, apesar de compartilharem do mesmo “compromisso com a ‘inovação tecnológica’” (Idem, p. 48). Ocorre no Pará um fenômeno contrário no que tange a relação barateamento tecnológico/custo de festas. As aparelhagens, que usam de tecnologia barata para produzir fonogramas e não contam com músicos ao vivo em suas apresentações, precisam de uma logística maior em todos os aspectos, quando comparadas a uma banda, de maneira que “a saída de sobrevivência desses artistas tem sido apresentar-se no interior do estado, dados os baixos custos de transporte das bandas (...) os custos de levá-los limita-se ao transporte de pessoal, enquanto as aparelhagens têm que levar, no mínimo, um senhor caminhão de equipamentos” (LEMOS, 2008, p. 85). Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 84 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Outros estados, como o Ceará, fomentaram redes e produção de música popular baseadas nas grandes e pequenas bandas de forró como a Mastruz com Leite e dezenas que a acompanharam e hoje são o que de mais expressivo, do ponto de vista do mercado, se produz no estado. Alguns nomes da canção dita brega surgiram no Ceará, sendo o mais expressivo o cantor Falcão. Em 1993 surgiu mais um novo formato para o forró, com o aparecimento de uma série de grupos e artistas que acrescentaram ao ritmo novos elementos musicais, como os teclados, e darem menos importância à sanfona e à zabumba, originando o forró eletrônico, ou o oxente music, com influência da axé music e da música country sertaneja. São nomes deste período: Frank Aguiar, Mastruz com Leite, Magníficos, Calcinha Preta, Limão com Mel. Estes grupos apresentam shows com um corpo de baile composto por mais de 10 bailarinos, trajando roupas sensuais, além de diversos recursos cênicos, realizando grandes apresentações visuais. (REBELO, s/d, p. 04) Recentemente, uma nova vertente do forró vem ganhando força. É o chamado forró pisadinha, com andamento mais rápido e marcações mais pesadas, características de bandas como Garota Safada e Aviões do Forró. O nome alude à ideia de galope sugerida como dança para este estilo. Em Pernambuco, desenvolveu-se a cena que o jornalista Fernando Fontanella categoriza como a do Brega Pop, influenciada diretamente pelos movimentos de música brega do Pará. O Brega Pop do Recife conta com expressivo corpo midiático (programas de TV, rádios), artistas locais de sucesso que tocam com bandas completas, DJs e se caracterizam por valorizar a dança e os dançarinos no palco, com o foco para o corpo e a dança sensual. O gosto musical popular que culminou no estilo Brega já existia em diversas outras cidades do Norte e Nordeste, mas não havia em nenhuma outra cidade a estrutura necessária para a criação de um mercado consistente. Cidades como o Recife já possuíam sistemas de comunicação desenvolvidos, formados por redes de rádios, TV’s e jornais, mas de certa forma os espaços cedidos para a música brega era muito pequeno. Nesse sentido, o impacto da chegada dos shows de bandas paraenses foi crucial para a formação do estilo no Recife. Esses shows representavam a chegada de uma estrutura espetacular nas periferias, tratando de temas e usando formas que estavam de acordo com as experiências do público popular, mas também usando os mesmos recursos de palco, iluminação e figurinos chamativos dos shows pop. É a democratização, mesmo que em um circuito underground subalterno, do espetáculo midiático. (FONTANELA, 2005, p. 20) Este circuito conta com estrutura de produção e distribuição também análoga à do Pará, com estúdios e vendas via pirataria-consentida. A música não tem relação com o bolero ou outros ritmos tradicionais, associados à velha guarda e à cafonice, como no Maranhão, e sim ao brega surgido após os anos 1990, ao funk carioca (em sua corporalidade) e à música/estrelas do pop internacional, de onde parte de seus artistas retiram inspiração direta, como no caso de cantoras como Michelle Mello (Whitney Huston) e Kelvis Duran (Michael Jackson). Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 85 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Ao que parece, o nordeste brasileiro, região amplamente reconhecida pelos meios de comunicação e público do centro/sul (e aqui me remeto novamente ao gosto médio cujo arauto maior seria a Veja, mencionado no capítulo 01), desenvolveu diversas vertentes da canção dita brega, que se fortaleceram ao longo dos anos 1990 e 2000. Estas vertentes possuem, de uma maneira ou de outra, alguma relação com os avanços tecnológicos disponibilizados ao seu tempo. No que interessa ao meu objeto e campo de pesquisa, a vertente do brega que se consolidou e foi exportada pelo Maranhão foi a única cujas raízes estão na canção associada ao passado, ao bolero, às festas de serenata e à dança mais recatada dos casais estabelecidos, não voltada diretamente ao encontro, que é o que no estado se conhece como seresta. Outros estados como a Bahia, nos anos 2000, receberam influência da seresta vinda do Maranhão para criar uma nova vertente desta música, conhecida como arrocha, da qual falarei no próximo capítulo. De meados dos anos 1980, a seresta no Maranhão encontra um meio de crescimento na crise do sistema de bandas de baile e no recém disponibilizado teclado com eletrorritmo. Nos anos 1990, uma nova geração de cantores de música brega se associa aos ambientes de festa criados pelas serestas e fazem das grandes e pequenas choperias os mais significativos locais para o desenvolvimento de novas redes de produção e distribuição de música popular original feita no estado. Esta música se associa a selos de fora do Maranhão como a Gema, Atração e Unacam, promovendo o maior fenômeno fonográfico que o estado conheceu, com um número de registros fonográficos de artistas locais de difícil apuração, mas que se impõe como algo expressivo se considerarmos que, mesmo artistas que não alcançaram grande êxito comercial e midiático, gravam um disco por ano, há 15 anos. Ao final dos anos 2000, grandes choperias como a Marcelo chegam a receber cerca de 20 discos de brega por semana, de artistas interessados em ter suas músicas tocando na choperia, ou mesmo de tocar ao vivo em seu palco, quantidade semelhante a que recebe o radialista Nonato Costa, locutor do programa Mirante Brega (Jânio Maciel, Nonato Costa, 2008). Somente a Gema lançou em torno de 300 discos em cerca de 10 anos, com um cast formado de 50% de cantores do Maranhão. Não tardaria para que toda esta produção chamasse a atenção das mídias hegemônicas nacionais e que algum representante do movimento brega/seresta do Maranhão acabasse ganhando o estrelato. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 86 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Foi o que aconteceu com o cantor Lairton, contratado pela Gema, que em 2000 foi destaque de programas de TV de diversas emissoras e teve sua versão da canção Morango do Nordeste executada amplamente nas rádios de todo o país, com dezenas de regravações. Lairton cantava em bandas e, nas folgas, fazia shows “na noite”, com teclado de eletrorritmo e voz. Foi apresentado por José Oniton à Gema, através de uma fita feita em um destes shows de barzinho. O repertório era mais aquele associado à MPB de happy hour que ao da música brega de Júlio Nascimento, mas compartilhava da estrutura de palco e, em termos gerais, do romantismo das canções e do intuito maior da dança. Recebeu uma ligação de Geraldo Proença, dizendo: “eu quero que você faça o disco do mesmo jeito que você fez a gravação ao vivo. Por isso que no meu disco tem abraço, fulano de tal” (Lairton dos Teclados, 2008). O CD foi gravado em Imperatriz, no estúdio Juliete, que ainda hoje grava artistas de seresta e brega do Maranhão e Pará. Lairton fez algumas fotos em casa e mandou tudo para a gravadora; semanas depois recebeu uma caixa com o disco “Morango do Nordeste” prensado. Tinha o disco nas mãos e nenhuma divulgação: Muita gente dizia, ah, é feito só com o tecladinho, não sei o que, não vale, isso aí não vai pra frente, não sei o que... isso assim, é, a mídia entre si, né, falava isso. O povão não. O povão gostava de cara! Aí eu fui assim, pegava ele e botava numa mochila, a mesma mochila que eu levava pro ensaio, enchia a mochila de disco e saía na rua do comércio em Santa Inês, onde tinha uma loja com som tocando, chegava e dava o disco pro cara tocar, chegava na banca e dava o disco pro cara botar de amostra lá pra tocar, via um carro de som passando na rua eu atravessava a bicicleta e dava o disco pro cara, aí aquilo ali fui fazendo o boca a boca, sabe, e ia pras cidades vizinhas, por exemplo, Pindaré, Bom Jardim, aquela redondeza ali, saía pras cidades também pra fazer o mesmo trabalho (...) ia visitar as cidades só pra levar os discos nos pontos, tipo, onde tinha som ambiente tocando, tinha carro e som, onde tinha isso eu tava lá. (Lairton dos Teclados, 2008). Começou ele vendendo de bicicleta o disco, colocava na mochila, saía pra vender fazia show em churrascaria, ganhava 20 reais por dia, 30 reais por dia e foi crescendo, crescendo. Aí a grande sorte dele foi a Marlene Matos, que ela foi passar as férias lá no Maranhão, escutou a música e correu atrás. Aí ligaram pra cá, nós marcamos a Xuxa, ele fez a Xuxa, o produtor do Faustão assistiu a Xuxa, gostou e chamou pro Faustão. Foi uma escada, teve uma escada muito boa. (Geraldo Proença, 2008) A partir da participação no programa Planeta Xuxa, a carreira do cantor deslanchou e também a visibilidade das festas nos moldes da seresta no restante do país. Este sucesso, contudo, não alavancou outros artistas do gênero ao estrelato, mas incentivou uma série de novos seresteiros a se espelhar no exemplo de Lairton e aumentou o movimento doméstico de choperias e seus músicos. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 87 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Nessa esteira, artistas de carreira estabelecida migraram para a carreira mais simplificada proporcionada pelo teclado. Adelino Nascimento e Raimundo Soldado, os dois nomes mais influentes do brega no Maranhão, são bons exemplos. Ambos assinaram, através de José Oniton, contrato com a Gema, e gravaram seus últimos discos com o teclado de programação. Ao contrário do que ocorreu com cantores mais jovens, em início de carreira, que se afirmavam através do teclado, o fato destes cantores e de outros como Frankito Lopes usarem o teclado é visto como sinal de decadência. Estes artistas até então gravavam seus discos com banda e produtores de renome no mercado da música brega como Carlos André (que produzia Adelino Nascimento na RCA). Se eu fosse ele não fazia. Porque eu acho assim, o teclado muito amador. Pra ele é. Porque estes cantores que tinham uma carreira sólida e um estilo, não gravam em teclado. Ó, Waldick não grava, Bartô Galeno não grava, Amado não grava e Adelino era pra não ter gravado. O teclado é um arranjo, é uma coisa arranjada, não é uma coisa... é como se fosse assim um genérico. E ele não ligava, ele não tava mais ligando. Ele não tinha mais aquela... eu acho que também custo, gravadora pequena, não queria gastar muito, com os produtores, fazer disco de metal mesmo valendo... então foi onde ele começou a gravar mesmo em teclado, que eu acho teclado uma besteira. (Bruto Dantas, 2008) Lairton, anos depois, passou a tocar com uma banda completa e alguns agentes identificam, neste fator, o motivo da sua menor aparição na mídia. Em meados dos anos 2000, a Gema investia em um novo artista, cujo trabalho remetia exatamente às serestas de bolerões para “coroas”, vindas do Maranhão, o cantor Zezo, do Rio Grande do Norte. Zezo gravou mais de 20 CDs pelo selo, sob o epíteto de O príncipe dos teclados. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 88 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais 03. O ESPAÇO DA SERESTA: AS CHOPERIAS “O teclado hoje faz de tudo, tem uma banda inteira aí dentro.” Assim me esclarece Jânio Maciel, proprietário e gerente da Choperia Marcelo, sobre a utilização do teclado, e somente dele, em todas as noites nos 3600m2 daquela que é a maior choperia da cidade de São Luís do Maranhão. E não somente nesta. Um passeio pela noite da cidade mostra que o teclado com programação, ou eletrorritmo, ou teclado arranjador, ou o “esquema”86 é sinônimo destas casas de festa popular. É destes instrumentos que saem, praticamente, todos os sons que se ouve nas noites das festas de seresta de São Luís: bumbos, caixas, pratos, chimbais e baixo são pré-programados e executados ao toque do botão play, em um instrumento que nunca perde o compasso, não desafina e corrige os possíveis erros de seu executante (quanto este de fato toca), em detrimento de bandas maiores, com instrumentos eletro acústicos. Em São Luís, existem centenas de choperias espalhadas por bairros populares, de elite e pelo centro da cidade, de diversos tamanhos e conformações, utilizando várias estratégias para atrair o público e, consequentemente, atraindo diversos tipos de público. Em comum têm o foco principal na alta vendagem de cervejas, que é o que as sustenta, a valorização da dança e o teclado de programação no palco. Neste capítulo, pretendo apresentar os espaços das casas de festa de São Luís, conhecidas como choperias, casas, em sua maioria, fundadas no começo dos anos 1990, dentro da ascensão da seresta e que, com o tempo, se tornaram sinônimo deste tipo de festa. Procuro identificar as alocações de poder dentro destes espaços, quem neles investe trabalha e frequenta, assim como apontar que, além das serestas populares, a cidade também conta com serestas de elite (cujas casas não recebem o nome de choperias). Também analiso o recente processo de mudança dentro das serestas, com a inclusão do ritmo baiano conhecido como arrocha (no qual incluo a discussão sobre a diferença entre o bolero e o brega), e investigo as formas como hoje se constrói uma carreira dentro do universo do brega de teclado e da seresta. Concluo com a visão pública que possuem estas casas, considerando as casas de música brega como estigmatizadas por algumas parcelas da sociedade ludovicense. 86 Esquema é como os músicos mais jovens das serestas se referem ao arranjo de palco do teclado. Usa-se banda para quando há uma bateria no palco e esquema, como sinônimo de improviso, para o teclado. Os músicos mais antigos, acima dos 40 anos, não usam esta categoria. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 89 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais 3.1. O CRESCIMENTO DO MERCADO DE CHOPERIAS As novas configurações do mercado da música popular em São Luís, em meados dos anos 1980, privilegiavam os pequenos grupos musicais. À medida que a década terminava e os grandes clubes entravam em declínio, novos espaços de festa começaram a surgir em diversos bairros da cidade. Para a camada jovem do público, as boites com som mecânico começaram a se popularizar em espaços como Seven Night, Genesis, Tucanos, Ninja e outras, que tocavam música pop dançante para a elite frequentadora dos clubes sociais. Os bares de reggae cresciam e ganhavam mais espaço também com música gravada e paredões de caixas de som então chamadas de radiolas. Para os amantes do bolero, fatia do público que tinha mais idade, surgiam as primeiras casas nos moldes do que hoje conhecemos como as choperias. Datar o surgimento e fechamento destas casas é uma tarefa difícil, mas pude identificar, pelas entrevistas, uma sucessão de nomes de casas cujo surgimento se dá exatamente nesta seara de entre-décadas. São algumas delas: Momentos (não confundir com Momentu’s) Jumbo, Tom Ver, Escritório Bar, Tom Marron (São Francisco); Hora Extra, El Dourado (Turu); Tia Maria, Bohemia (av. dos Holandeses); Gata mansa (Planalto), Beira Rio, O Tito (Cohab), Caneco (Centro), Bar das Ostras (Calhau). Estas casas não tocavam somente serestas, assim como as serestas começaram a ocupar espaços antes dedicados a outras festas, como o Sindicato dos Bancários e o Arraial das Malvinas. A facilidade logística da festa contribuía para a sua proliferação e esta proliferação gerava ocupação aos músicos, recém demitidos das grandes bandas, ou em busca de trabalho extra para complementar a renda. Havia, além de locais fixos, as serestas itinerantes. Pela facilidade técnica de montagem da festa, cantores passaram a operar sozinhos e se podia fácil e rapidamente instalar duas caixas de som e um teclado sobre um ou dois engradados de cerveja no meio de uma rua residencial, fazendo ali mesmo uma seresta. Tornou-se comum, em bairros, o contrato de serestas para uma ocasião especial como o aniversário de alguém ou outra data festiva. Era uma festa popular e barata. Choperia, em São Luís do Maranhão, é uma casa de festa, geralmente aberta, com um salão de dança rodeado de mesas. Estes locais vivem da venda de cerveja, apesar do nome aludir ao chope e oferecem música ao vivo feita com teclado de programação e voz. Grande parte destas casas fica em locais de passagem de trabalhadores, entre seu local de expediente e suas residências, de modo que a frequência maior é de pessoas que pagam suas próprias contas e estão acima dos 30 anos. Há choperias com 40m2 e outras que poderia facilmente comportar um Moto x Sampaio87. O repertório destas casas é aquele associado à seresta e ao brega, com abertura para di- 87 Moto e Sampaio são os dois times de futebol mais populares de São Luís. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 90 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais versos ritmos populares como o forró, o axé, a lambada, o baião, o arrocha e a MPM/MPB. As casas são frequentadas por um público formado majoritariamente de casais, boa parte nascida ou de segunda geração de alguma cidade do interior do Maranhão. Estas pessoas, em sua maioria, ocupam profissões liberais, são empresárias de pequenos negócios como salões de beleza ou restaurantes; há ainda uma fatia de comerciários e funcionários públicos. As choperias estão, em sua maioria, localizadas próximas às paradas de ônibus; as maiores são empresas com forte formalização, em torno das quais orbita um rico comércio informal, com o qual são coniventes. Ao longo dos anos, estas casas estiveram espalhadas em áreas da cidade tradicionalmente associadas aos mais diversos setores sociais, do Calhau (área nobre, onde funcionava o Bar das ostras) à Forquilha (bairro popular, lar da Choperia Marcelo), a seresta penetrou em diversas classes sociais, segmentação que perdura até os dias de hoje, como veremos neste mesmo capítulo. O investimento nas choperias é sempre privado, algumas eram custeadas por cervejarias, outras por empresários do ramo das casas noturnas como Sérgio Linhares, ou eram locais menores que cresciam com a nova demanda e se estabeleciam. Isto é importante mencionar em se tratando da São Luís nos anos 1990, onde ocorre uma presença cada vez maior do estado no custeio de festas populares, com investimento em músicos, grupos e principalmente em grandes espaços para shows da música considerada folclórica pelos representantes do estado. As serestas não gozam destes investimentos. Buscando entender as diversas sociabilidades no universo das choperias, concentrei meu trabalho de campo em duas destas choperias: Choperia Marcelo e Chopperia Kabão. Choperia Marcelo Meu esquema sempre foi teclado. Jânio Maciel, 2008 Nasci em São Luís, no bairro da Cohab, bairro popular de classe média, que em 1979, ano de meu nascimento, ainda dava os seus primeiros passos. Cresci com diversos sons que vinham de várias direções, fossem das quadrilhas que ensaiavam e se apresentavam nas ruas, das bandas marciais das escolas que passavam, também em ensaios, no mês de setembro ou dos blocos de carnaval que por ali também desfilavam, quando era sua época. Os únicos sons que não eram sazonais e que se poderia ouvir, mesmo à distância, era o das casas de festa como o Gata Mansa e, mais tarde, da Choperia Marcelo. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 91 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Eu não ouvia a Choperia Marcelo de casa, mas as domésticas que trabalhavam conosco frequentavam a choperia e, através delas, conheci vários dos nomes da música brega do Maranhão no começo dos anos 1990. Somente anos mais tarde pude conhecer o espaço e as festas que ali aconteciam. Inaugurada em 1987 como uma pequena lanchonete no bairro da Forquilha, a choperia ficava a mais ou menos 100 metros de onde funciona hoje. O retorno da Forquilha é uma área de alta circulação de pessoas, sendo uma intercessão entre duas avenidas de alto movimento, a saber, a Jerônimo de Albuquerque (que corta a cidade do aeroporto ao Calhau) e a Estrada de São José de Ribamar. Neste retorno há postos de gasolina, muitas residências e uma enorme filial da Igreja Universal, onde originalmente funcionava a Marcelo. O proprietário, Jânio Maciel, nascido em Bacabal (250 km de São Luís), trabalhou como vendedor nas casas Pernambucanas, antes de abrir um bar no bairro do Maiobão. Sua família tinha diversos bares no Maiobão e Araçagy, todos chamados “O Maciel”. Jânio alugou uma lanchonete chamada Marcelo, na Forquilha, e mudou o nome para choperia Marcelo (Marcelo era o filho da dona da lanchonete). A choperia Marcelo começou há 19 anos atrás e quando eu escolhi fazer a Choperia Marcelo eu escolhi uma casa pro povão mesmo, pro povão, no intuito de abrangir justamente o povo do bolero, entendeu? O povo do bolero, que é um ramo, um estilo de música que eu me entendi ouvindo. (Jânio Maciel, 2008) A Cohab já tinha casas de seresta como o Gata Mansa e a choperia rapidamente cresceu, sempre com o teclado no palco e venda de cervejas. Em 1993, o bar mudou para sua atual localização, em sede própria. Os nomes que surgiam no brega do Maranhão, no começo dos anos 1990, tocavam na Marcelo. Ali, Júlio Nascimento, Ray Douglas e Lairton fizeram seus shows de maior público na cidade. O surgimento da choperia acompanhava uma tendência, já apontada aqui, de abertura de casas para explorar este nicho de mercado. O que destaco como importante no caso da Marcelo, e que são apontados como fatores importantes para sua longevidade é a formalização da choperia e a sintonia com o que o mercado oferece de referência no brega e na seresta, além da localização de alta circulação e da cerveja barata. Casa noturna aqui em São Luís, muitos poucos tinha banda completa, com teclado, guitarra, baixo e bateria. A maioria das casas aqui em São Luís, quando eu me entendi aqui em São Luís com casa noturna, geralmente era um teclado, um guitarra e os back (Jânio Maciel, 2008) Maciel já tinha como referência outras casas e, com o passar dos anos, a sua também se tornava a referência para o mercado da seresta em São Luís. Para os cantores bregas, tocar na Marcelo é símbolo de ascensão em suas carreiras. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 92 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Figura 15 - Choperia Marcelo lotada. 2011. Fonte: kamaleao.com.br. Acesso em janeiro de 2012. A choperia possui uma banda residente, com músicos funcionários da casa, chamado Grupo Digital. Em 91 eu vim pra choperia Marcelo, no qual cantei por 16 anos, no grupo Digital. Eu comecei na choperia tinha só um cantor, e eu entrei pra ser o outro cantor. O que que nós fazíamos, esse rapaz cantava uma hora, aí eu cantava uma e ele descansava, todos os dois se acompanhavam (no teclado). Aí ele fazia uma hora, eu tava descansando, fazia outra, isso vice e versa. Isso nós ficamos muito tempo. Aí quando a choperia mudou do retorno onde era a Universal pra essa atual choperia foi quando nós fundamos o grupo (digital). (Rogerinho, 2011) A banda chamava banda Maciel, sobrenome do proprietário da choperia. O novo nome veio por conta do primeiro pedal de reverb de voz que chegou na choperia, o pedal tinha o nome escrito em seu corpo. “é bem moderno, um negócio que tá surgindo agora, a era digital, aí foi batizado o grupo digital, mais ou menos 94 por aí assim” (Rogerinho, 2011) É um grupo que toca de tudo um pouco, mas quando toca aqui na minha casa, 70% é esse estilo aí, que tu acabou de falar, o brega, por causa das músicas. São músicas dançantes a dois, que pega o romântico, como Amado batista, Reginaldo Rossi, o próprio Léo (Magalhães), que é a febre do momento (Jânio Maciel, 2008). O grupo digital anima as noites da choperia de quarta a domingo, com cinco cantores e dois tecladistas. O grupo já gravou diversos discos e os cantores, funcionários da casa, possuem também carreiras-solo. O grupo digital se apresenta fora da choperia e abre os grandes shows que Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 93 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais eventualmente ocorrem na Marcelo. A formação atual do grupo é Alan, Zé Carlos (teclados), Lulu Reis, Alan Borges, Alessandra e Tatiana Pereira (vocais). Em 2008, quando entrevistei Jânio Maciel, a choperia tinha 85 funcionários diretos e vendia cerca de 2000 grades de cerveja Brahma por mês. Vendedores informais, como os de doces, discos, cigarros e outros produtos que a choperia não oferece, têm passe livre no estabelecimento. A entrada nos dias regulares, quando não há show de algum artista convidado, é gratuita. Quando há shows, o ingresso oscila entre R$ 10,00 e 25,00 (entre 5 e 10% de um salário mínimo). Figura 16 - Logotipo da Choperia Marcelo. Chopperia Kabão A Chopperia Kabão é a melhor opção quando o assunto é divertimento, descontração e música ao vivo. Sempre comandada pela Banda do Kabão, nas noites de quinta a domingo. A Banda do Kabão, além de possuir em sua formação os melhores músicos de São Luís, também possui repertórios variados para satisfazer a todos os gostos musicais. Chopperiakabao.com.br Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 94 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Localizada em outro extremo da cidade, no Centro, a Chopperia Kabão é uma das de maior visibilidade para quem circula naquela região. Durante a construção do projeto Reviver88 (1986 a 1989), havia quatro pequenos restaurantes onde hoje é a rampa Campos Melo, na Av. Beira Mar. Eram pequenos quiosques que alimentavam “a peãozada” responsável pela obra (Kabão, empresário, dono da choperia homônima, 2008), oferecendo PFs no almoço e seresta com teclado de programação no jantar, para este mesmo público e outras pessoas que trabalhassem na área do centro, com grande público e alta venda de cerveja. Estes restaurantes eram reconhecidos pelos nomes de seus proprietários: Kabão, Luzimário, Piloto e Nonato. Não havia outras casas, nesse estilo, naquela região. Em 1989, com o término das obras, o governo estadual (sob o comando de Epitácio Cafeteira), tentou consolidar o projeto de transformação do centro histórico da cidade em um sítio de visitação turística, alicerçado na valorização do folclore e nos mitos de formação de São Luís como Atenas brasileira, tendo como síntese/resquício material o casario colonial. Nesta época, novos bares e restaurantes como o Antigamente89 foram abertos na região restaurada, além de museus e lojas de artesanato voltadas para o público turístico e para a elite da cidade. As brochuras da Maratur90, daquele momento, mostram uma São Luís de tradição popular com o Bumba meu Boi e de história “preservada” com o Projeto Reviver, ou como diria o Epitácio Cafeteira, já como senador: [O reviver] é uma “estrada” que resgata o passado, ligando-o ao nosso presente, como “ponte de fé” para o futuro de prosperidade que antevejo para o Maranhão (...) turistas de todo o mundo poderão, doravante, ter impressão oposta ao que se presenciava até recentemente e reconhecer os esforços e a capacidade de nossa gente em defesa da memória e do patrimônio cultural do Maranhão e do Brasil, por extensão. É progresso, sem desrespeitar a nossa história. (CAFETEIRA, 1997, p 03 e 04) Este processo de higienização da área do centro histórico incluiu a retirada dos restaurantes populares e de seu público. Dos quatro, o único que ainda ocupava um espaço próximo era o Barcanal, cuja propriedade passou para a esposa de Nonato, e ainda hoje funciona com serestas ao lado do terminal de Integração de ônibus da Praia Grande, do outro lado da avenida, logo, fora do sítio restaurado. O Kabão foi inicialmente para onde hoje está o Circo Cultural Nelson Brito (aproximadamente 300 metros do local original) e mudou-se para o Portinho em 1998 (mais de 2km de distância), quando deixou de ser o bar do Kabão e tornou-se a Chopperia Kabão. 88 O Projeto Reviver foi uma ação de restauração, reurbanização e suposta revitalização do Centro Histórico de São Luís, no intuito de criar ali um novo atrativo turístico. 89 Restaurante de comidas típicas maranhenses que funcionava na Rua do Comércio, coração do centro turístico. Decorado com temas maranhenses como arquitetura colonial e Bumba-meu-boi; promoveu shows com cantores antigos. 90 Empresa Pública de Turismo do Maranhão, parte da Secretaria de Turismo, já extinta. Acervo próprio. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 95 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais A cerveja custa R$ 05,00 mais caro que no mais caro bar da Praia Grande/Reviver, onde a cerveja oscila entre R$ 02,50 e R$ 4,50 (dados de 2011). O público é formado, majoritariamente, por pessoas vindas do interior, mas residentes na capital, de diversas profissões como pequenos empresários, pedreiros, cabelereiros e outras ocupações ditas populares. O motivo principal da ida à choperia é o encontro, a dança e a música91. Na região do Portinho já havia um movimento de choperias, sendo a primeira a Choperia Marujo92, aberta em 1985 por um ex-marinheiro mercante. Várias outras choperias e casas noturnas começaram a surgir na região do Portinho, ao longo dos anos 1990, como o Forró do Arlindo, a Choperia Cidade, Choperia Beira-Mar, (todas voltadas para a seresta) e casas de reggae como o Papa Reggae, ao lado do Papódromo93. No palco, sempre o teclado de ritmo. Quando eu cheguei aqui não tinha nenhuma choperia e aqui também só tinha um negocinho. Eu fiz isso aqui tudinho, isso aqui tudo foi feito por mim. Só aqui eu coloquei 400 carradas de entulho aqui dentro. Só aqui! Isso aqui era um buraco! (Kabão, 2008). [essa região] eram só barzinhos, quiosques mesmo pequeno [O Marujo] Começou como barzinho, aí foi crescendo e a gente botou música ao vivo (...) Foi no ano de 95. A gente pegou isso aqui um pouco antes de 95, agora a choperia começou em 95, digamos que tenha sido uns dois anos antes, 93, com barzinho, e lá pra 95 a gente começou com música ao vivo. Seresta, esquema de seresta, sempre no esquema de seresta, teclado e voz (Cesar Roberto, gerente da Choperia Marujo, 2011) O proprietário e fundador da choperia, José Martinho dos S. Barros, vulgo Kabão, trabalhou como ambulante, pedreiro, agricultor e formou-se como cabo da polícia militar. No final dos anos 1980 exercia a função de soldado da polícia e abriu um quiosque de venda de lanches no Maiobão, alugando logo após um ponto na rampa Campos Melo, onde dividia os custos dos pequenos shows que realizavam com as outras três lanchonetes no mesmo lugar. Kabão era lotado no posto fiscal do estado, que ficava no prédio onde até alguns anos atrás, o governo do estado tentou instalar um museu do bumba meu boi chamado Casa do Maranhão. Ao apartar uma briga na rampa, foi-lhe atribuído o apelido de Kabão (ou seja, grande cabo), nome que passou a adotar. Em 2008, Kabão foi eleito prefeito do município de Cantanhede pelo DEM e afastou-se da administração direta da choperia. 91 Informações com base em questionários aplicados com o público da Chopperia Kabão em julho de 2010. 92 As choperias raramente existem isoladamente. Via de regra, há um “nicho” de choperias, com doas ou três em um espaço de poucos metros. 93 Estrutura metálica construída para a visita e missa do papa João Paulo II em São Luís, na década de 1990. Hoje, em ruínas. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 96 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Figura 17 - Casal dança bolero na Chopperia Kabão. Foto: Bruno Azevedo, 2012. O Kabão é um enorme pátio entre o rio Bacanga e as paradas de ônibus do Portinho com seus quiosques de venda de pratos-feitos e pequenos bares. Com o Bacanga em nossas costas, à direita temos a Capela de São Pedro e o Ceprama, à esquerda, a área tombada do centro histórico. Em torno dessa choperia, há outras, além de quiosques onde se bebe cerveja ao som da banda preferida troando do porta-malas do próprio carro. Cercada por uma grade de metal que permite visibilidade total de quem está fora, possui o palco em uma extremidade e um quiosque na outra, onde se compram as fichas de cerveja e outros produtos. O consumo de cerveja é tão intenso, que cada mesa da casa conta com uma grade (24 garrafas) vazia logo abaixo, onde os clientes depositam os vasilhames cujo conteúdo já foi consumido. A venda, em 2008, era de 400 grades de cerveja por semana. O Kabão “vive de vender cerveja” e gera quase 50 empregos diretos num terreno de concessão pública (Kabão, 2008). Assim como a Marcelo, os músicos da Banda do Kabão são funcionários da choperia (como nos antigos clubes sociais), como também garçons, seguranças e demais atendentes. É permitida a entrada de ambulantes e, salvo nos dias de shows de artistas famosos vindos de outras cidades, a entrada é gratuita. Quando cobrada, oscila entre os mesmos R$ 10,00 e 25,00. O público é formado, em sua maioria, de casais acima dos 30 anos. O que se notou nos anos 1990 foi um crescimento do mercado das chamadas choperias, com a consolidação das maiores empresas, como as duas analisadas, e o surgimento de centenas de outras casas pela cidade. Somente na área da Cidade Operária, a delegacia de Costumes e diversões públicas de São Luís registra 200 casas noturnas catalogadas como choperia (Ana Tereza Dualibe, 2011). Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 97 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais No que concerne a esta pesquisa, entendo que havia uma demanda para o modelo de festa oferecido pelas choperias, e a facilidade técnica do teclado favoreceu a satisfação desta demanda com casas de custo operacional baixo, estruturas simples e lucro centrado na venda de cerveja. Hoje, é possível ao público ir a uma seresta diferente a cada dia da semana em São Luís, de segunda a segunda, do Calhau ao Estreito dos Mosquitos. As choperias, como os músicos na geração de bandas de baile, buscam a constante melhoria tecnológica. Contudo, desde a segunda metade dos anos 1980, o que se nota são avanços dentro da mesma estrutura (uma mudança, por assim dizer, horizontal), sem que isto modifique a maneira como as festas são planejadas ou realizadas. Nos anos 1990, a produção fonográfica se multiplicou e os teclados, que antes vinham com todos os ritmos e timbres pré-programados (como o mencionado beguine), ganharam capacidade de programação de ritmos e timbres. Na prática, as festas passaram a ser mais diversificadas e não era mais preciso modificar somente o BPM para mudar do bolero para o forró. Era possível, a um músico, programar a batida exata do forró, com os timbres precisos usados em uma gravação acústica, emulados digitalmente. A música ao vivo da época, pro que eu tô hoje aqui na choperia Marcelo só se modernizou. Aqui o equipamento hoje são mais modernos, então a evolução com certeza é bem melhor. mas é o mesmo estilo, teclado, teclado, teclado, caixa de som, aparelhagem é isso ai! (Jânio Maciel, 2008) Isto fez surgir, dentro da mesma lógica de festas, outras figuras como a do músico programador de teclados, além de expandir ainda mais o mercado para cantores e bandas de seresta, que contavam com maiores possibilidades técnicas, riqueza rítmica e timbrística, dos quais falarei a seguir. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 98 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais 3.2. SOBRE AS BANDAS E GRUPOS DAS CHOPERIAS A possibilidade de emulação de instrumentos tornou visível para o público das primeiras serestas que ali não havia um baterista presente. Foi este músico o primeiro a desaparecer dos palcos, quando da ascensão do teclado. Em sua análise do Brega Pop recifense, o jornalista Fernando Fontanella parece descrever o que seria, em partes, resultado desta popularização da possibilidade técnica na música popular: Outra característica interessante é a democratização da condição de artista que o Brega Pop promove. Não há a exigência de um domínio de informações ou de técnicas específicas para a produção artística. Praticamente qualquer pessoa pode ser um astro do brega: cantores não precisam saber cantar, compositores não precisam saber escrever. (FONTANELLA, 2008, p. 10) A afirmação de Fontanella parte de uma ideia de normalidade para as competências musicais, e ignora todo um corpo de competências necessárias para o sucesso nos mais diversos nichos relacionados à música. Se praticamente qualquer pessoa pode ser um astro do brega pop, o que faz com que somente algumas pessoas de fato o sejam? O autor, como no exemplo da Veja, fala a partir de uma posição analítica pouco capaz de dialogar com a gramática interna do brega pop, relegando à incompetência formal o sucesso dos mais diversos artistas. Há um aparente preconceito na ideia de que as obras destes artistas sejam construídas sem vivência e com base em absoluta inaptidão. É comum, em entrevistas com artistas de seresta, que estes demonstrem um vasto conhecimento musical, que engloba não somente o cânone do gênero que praticam, mas a própria teoria necessária à música popular. Estando o trabalho destes compositores fora do registro erudito, não se pode dizer que eles não saibam fazer qualquer coisa que de fato o façam. Estas tomadas de posição são comuns em relação às várias manifestações da música brega, e são abordadas ainda neste capítulo, e no seguinte. Por outro lado, o teclado facilita enormemente a entrada no mercado musical e diversas estratégias passam a ser usadas para facilitar cada vez mais a inserção nos discos e palcos, o que leva a conflitos entre os próprios músicos. Nas entrevistas realizadas, é comum a menção à “enrolação” de músicos que não sabem tocar e ainda assim se apresentam como músicos, fazendo playback da parte instrumental e, algumas vezes, da voz. Com a programação de harmonias e melodias no teclado e a proliferação dos estúdios digitais, esta prática se tornou mais frequente: Ficou mais fácil, mas eu acho que em termos de qualidade de trabalho o teclado veio pra avacalhar muito. Porque hoje você vê, hoje tem uns teclados de alta tecnologia, você vai num shopping, vai não sei aonde aqui em São Luís, você olha ‘puta, que é um puta dum tecladista’. Você vai lá pedir um dó maior pro Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 99 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais cara o cara não sabe fazer. É só playback pego de internet. O cara vem, o cara pode vir aqui ‘Rogerinho, faça um, assim...’ Eu não faço!, mas tem tecladistas aqui que eu conheço, que são bons que fazem. ‘Faz um playback aqui pra mim, quanto é que sai as músicas’. É, 20 músicas, ‘ah, faço por 300 contos’. Faz, o cara vai lá, bota o playback no teclado e diz que é o tal, que é tecladista, mas não faz um dó maior. Então isso daí é até um desrespeito, digo musicalmente, pra quem sabe tocar. (Rogerinho, 2008) Migueloso do brega: Às vezes, quando nós temos uma festa, alguma programação que acontece muito em cima da hora, e nós não temos assim um tecladista fixo. Aí às vezes nós ficamos sem o tecladista, o tecladista oficial... então nós, o que que acontece: nós temos, assim, hoje em dia a gente usa um pen-drive, entendeu, já com uma programação, com uma pré-programação de ritmos e escalas de músicas, entendeu, as músicas já, isso, a harmonia já toda pronta das músicas. O repertório dela já é toda pronta, preparada no pen-drive, ai só é ligado no teclado e o teclado faz todo o trabalho, entendeu, só faz a reprodução do que já foi feito em estúdio. Não necessita de um tecladista, entendeu, qualquer pessoa pode chegar... só uma figura assim fictícia que é pra também você não pegar e colocar o teclado ele ficar tocando sozinho, que tem alguém tocando. Bruno: e o público não percebe? Migueloso do brega: Não, dependendo da pessoa, dependendo da pessoa que tá atrás do teclado, o público não percebe. (...) Hoje em dia, o ao vivo que as pessoas fazem é assim, eles preparam todo o repertório em estúdio, pra corrigir erros, tudinho. Aí fazem aquela programação de repertório. quando chega no ao vivo, pode ser até o tecladista oficial, ele criou aquilo, só que na hora ele não toca aquilo, ele só toca a programação que ele fez em estúdio, porque ali já tá livre de erro, de uma possível, de um possível assim... duma subida de tom do cantor, já tá tudo prevenido ali em estúdio. Até mesmo os tecladistas profissionais fazem isso. (Migueloso do brega, 2011) E aconteceu um fato engraçado em Pindaré: Nós estávamos na AABB e eu tava tocando e gravando, e apareceu um professor pra dar uma canja, e ele cantou, e ele errou algumas letras e tal, tudo bem. Aí houve uma prorrogação, e eu não queria mais fazer a prorrogação, aí o meu primo, que é até médico lá hoje em Pindaré, Dr Valber, ele disse ‘rapá, bota aquela gravação!’, a gente fica só fazendo tal e tal no palco. Aí eu soltei a gravação, quando entrou a parte do cara, do professor, aí negada sacaram que eu tava era... ‘ê, rapá, o cara não tá cantando não, ele tá enrolando a gente aí!’. (Almir Sérgio, 2011) A prática de simulação é comum nas choperias, causando celeuma entre jovens e antigos músicos. Para os antigos, o bem tocar, associado aos boleros antigos, de harmonia mais complexa, é valorizado e é tão importante quanto o carisma do artista. Para os novos nomes, formados no paradigma da tecnologia digital, dentro do qual é comum tanto a figura do DJ quanto o uso de playbacks por artistas de alto mercado como Sandy e Britney Spears, a questão não é tão relevante. Hoje é possível baixar praticamente qualquer timbre pela internet e inseri-los no teclado. Um novo hit é imediatamente disponibilizado na rede e daí vai para os teclados das choperias. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 100 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Alguns teclados valem tanto quanto a sua memória em arquivo de música digital. No caso do Grupo Digital e da Banda do Kabão, os instrumentos pertencem à banda, e não aos funcionários/integrantes, isto permite que cada músico alimente o equipamento com o seu repertório, que permanece em sua memória mesmo depois que este músico deixou o grupo, como acervo da choperia. É também comum nestas choperias que se use mais de um teclado no palco, sendo um para arrocha e outro para forró, ou seja, cada instrumento com os bancos equivalentes aos diversos momentos da festa. “Os teclados já estão pré-programados por artistas que passaram pela banda antes e, de acordo com o que vai acontecendo, música da mídia a gente vai programando” (Som Costa, tecladista e vocalista da Banda do Kabão, 2011) Os músicos tecladistas destas casas são recrutados, portanto, por sua habilidade não somente como executantes de canções, mas por sua familiaridade com a tecnologia, sendo estes responsáveis não somente por tocar o instrumento, mas por alimentá-los com o acervo que pertence à empresa. Alguns tecladistas também cantam, mas esta não é uma habilidade obrigatória para as grandes choperias, pois a atividade de cantor também é segmentada. As festas de seresta, hoje em dia, operam em uma dinâmica que comporta três momentos distintos. A festa oscila entre os gêneros de seresta, que são os boleros mais lentos, o arrocha, que é o bolero mais rápido, e o forró, mais acelerado ainda. Do forró volta-se para o bolero e a festa prossegue. Os cantores de seresta costumam concentrar suas habilidades em um destes macrogêneros94, atendendo a diferentes segmentos de mercado. É comum que cantores de choperia mais experientes cantem os boleros canônicos, enquanto cantores jovens se identificam com o repertório de arrocha e do brega; o mesmo ocorre com as mulheres. Há, como no mercado das bandas de baile, uma preocupação timbrística e maneirística na voz dos cantores, que faz nomes como Eugenia Miranda se inspirarem na Roberta de mesmo sobrenome e diversos novos cantores tentarem copiar a voz alta de Léo Magalhães. Eu não pensava em cantar, que eu achava que cantar não dava pra mim. Achava que podia só tocar, mas as pessoas ficavam me incentivando, dizendo que minha voz era legal, era adequada pra cantar, me dando a maior força. Aí me acostumei, fui cantando, já trabalhei num grupo de pagode, era pagodeiro, comecei tocando pagode (...). Eu cantava assim e o pessoal escutava assim, eu cantava assim, com molecagem e o pessoal dizia assim ‘rapaz, a tua voz é boa pra seresta, entendeu, tu tem que cantar seresta, bolero’. E o pessoal foi me incentivando em seresta, que era adequado pra mim. Aí eu fui dando uma palhinha ali, uma palhinha aqui, e fui pegando o gosto, né. E o pessoal dizia ‘tua voz 94 Outros como a MPB, MPM, bumba meu boi, pagode, reggae e pop também são tocados nas choperias, mas com menos frequência e, na maioria das vezes, em ritmo de seresta, ou seja, abolerados ou forrozeados. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 101 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais é muito boa pra seresta, tu tem que cantar seresta’. E aí eu fui me enquadrando nisso aí, fui me acostumando, estudando a pegada do bolero, armando um repertório bacana e aí hoje eu tô acostumado graças a deus e pra mim tá sendo normal, tá sendo o mesmo gosto que eu tinha com o pagode, entendeu. (Som Costa, 2011) O processo de recrutamento de novos músicos, portanto, segue a lógica dos diversos estilos que as casas cobrem. Também é necessária a estes artistas a frequente atualização de seu repertório com os novos hits. Músicos contratados por bandas fixas tendem a ganhar menos que aqueles que gerenciam suas próprias carreiras. Porém, a formalização proporciona seguranças sociais que o trabalho solo não permite. Nas bandas regulares de choperia, um músico pode ganhar em torno de R$ 1.500 por 4 ou 5 dias de trabalho por semana, além dos ensaios, enquanto uma seresta independente pode custar R$ 500,00 a 1000,00 para o contratante, mas o cantor/empresário precisa arcar com custos de transporte e logística. As duas maiores bandas de choperia de São Luís tem orientações diferentes quanto à carreira de seus integrantes. O Grupo Digital opera como um grupo e grava como tal, identificandose para além de seus integrantes como o “Grupo Digital da Choperia Marcelo”. A Banda do Kabão não grava discos sob este nome e seus integrantes são incentivados em suas carreiras-solo, gravando seus discos e vendendo-os no espaço da choperia, por meio de anúncios que fazem enquanto ocupam o palco. Assim, é possível para os frequentadores comprar o disco de seu integrante predileto, cada um representando um sub-gênero da canção de seresta/brega. O disco também representa uma renda extra para os cantores, divulgação do seu nome no mercado e a possibilidade de novos contratos para shows. Alguns dos cantores de renome no mercado local de choperias, como Walfredo Jair e Wilsinho, foram residentes em uma destas choperias. Hoje, o mercado comporta novos nomes, além dos tradicionais seresteiros. Este processo de rejuvenescimento da seresta, que começa a se desenvolver nos anos 2000, recebe o nome de arrocha, do qual falarei a seguir. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 102 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais 3.3. O ARROCHA E A “SERESTA MODERNA” A seresta é um tipo de festa voltada à tradição, ao antigo, à saudade e ao bolero. Com o passar dos anos, as choperias passaram a ser ocupadas, majoritariamente, por coroas e jovens em busca de algum tipo de relacionamento com estes e estas coroas. Se a seresta surge e se fortalece com o auxílio de uma inovação tecnológica, e sua relação com o brega leva as festas e seus cantores a novos patamares, o gênero é, via de regra, avesso a grandes mudanças. Recentemente, ao gravar um disco com boleros compostos por mim, convidei o cantor Walfredo Jair para emprestar sua voz ao disco. Expliquei que eram canções novas, mas que seguiam os moldes dos antigos boleros, e que, por isso, a interpretação dele seria valiosa. O convite foi rejeitado com o argumento de que “a gente não grava música nova. Só faço regravação”. (Walfredo Jair, conversa não gravada, 2012) Esta postura é exemplar daqueles que estão envolvidos com a seresta mais tradicional, e que quando em vez surgem com uma nova roupagem para um sucesso obscuro (como o fez o próprio Jair com Noite Fria, de Miltinho Rodrigues e Orlando Gomes, gravado pela Gema). Ao que parece, a tendência das festas de seresta é a da ossificação do repertório, salvo por artistas locais que eventualmente despontam no mercado, com um cancioneiro mais relacionado ao brega, ou com regravações de antigos boleros. Contudo, no começo dos anos 2000, um novo segmento da música brega foi inserido nas choperias e festas de seresta, gerando uma série de conflitos nestes espaços, mas ainda assim, cavando um lugar que se consolida como parte das serestas. Este movimento é o arrocha, ou arrocha baiano, ou arrocha romântico. Se o bolero é a argamassa da seresta, a face mais visível das choperias, em cartazes e nos nomes que fazem os grandes shows, hoje em dia, é o arrocha. O movimento, surgido na Bahia, é uma derivação direta da seresta e do bolero, contudo, apresenta um andamento mais acelerado, canções novas e a presença de uma visível lascívia nas letras, no palco e na forma de dançar. O Arrocha é um ritmo musical originário da Bahia ele veio proveniente da seresta, influenciado pela música brega e o estilo romântico, com modificações que o tornaram, segundo seus adeptos, mais sensual. Estilo musical originário da Bahia, nasceu no Distrito de Caroba na cidade de Candeias. Não é necessário ser tocado por uma banda completa. Normalmente são usados: um teclado arranjador, um saxofone e uma guitarra. O arrocha que tem arrastado multidões reinventou antigos ritmos, com uma roupagem mais, digamos, moderna. É uma reinvenção da música brega, da seresta, do estilo romântico. A dança, de embalo romântico, segue os mesmos passos da axé music, do samba, do samba reggae: foram criados pelo povo e são a cara da Bahia. O percussor do Arrocha foi o cantor Pablo (hoje carreira solo junto ao Grupo Arrocha), ele durante o seus shows ele sempre pronunciava a palavra "arrocha", "arrocha", "arrocha"... junto ao grupo Asas Livres, onde o Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 103 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais nome pegou e identifica esse ritmo musical. (portaldoarrocha.com.br, aceso em fevereiro de 2012) Algo importante nas definições sobre o arrocha fornecidas por seus representantes e opositores é o consenso em torno do fato de que se trata de uma derivação direta da seresta, como um meio termo entre o bolero (mais comedido) e o brega (mais “rasgado”). Da seresta vem o teclado arranjador, do brega, a dança mais quente, com a inserção de dançarinas no palco. A jornalista Sara Teles diz que “o ritmo [arrocha] também passou a ser chamado de seresta, esta fora do regalo da geração passada” (TELES, 2006, p. 03), e continua: O arrocha surgiu na região metropolitana do Estado [da Bahia], mais precisamente em Candeias, segundo o grupo Asas Livres, considerado o precursor do ritmo. Jailson Santos, o tecladista da banda, conta que seu pai comprou, em Vitória da Conquista, uma fita com músicas gravadas somente com um teclado. Ele ouviu, gostou da ideia e programou seu próprio ritmo no teclado, ritmo este caracterizado por ser uma aceleração rítmica do já conhecido bolero. Posteriormente, com o constante ecoar da expressão “arrocha, arrocha, arrocha” nos palcos, terminou por ficar esta a denominação do estilo. (TELES, 2006, p. 03) O verbo arrochar significa apertar, dar pressão, e é aludido, nas festas à maneira como os casais se abraçam durante (e depois) da dança. Arrochar refere-se à sensualidade da festa, ao amasso, e funciona como palavra de ordem, combustível da festa. A dança, no arrocha, tem menos da dança de salão que o bolero tradicional. Pode-se dançar solto ou em dupla, há muito rebolado, requebrado e menos dos passos rígidos de corte do bolero. É possível, em festas de arrocha, ver moças ou casais requebrando até o chão (passo vindo do funk carioca). Os dançarinos no palco propõem movimentos e passos novos e sua coreografia prima pela alusão ao sexo. O movimento tomou impulso a partir da metade da década de 2000, quando rádios e TVs baianas começaram a publicizá-lo. Também o apoio de nomes consolidados da música baiana como Ivete Sangalo, aumentaram a visibilidade do ritmo fora de seu público nativo. O arrocha já começava a ser apresentado no Maranhão, inicialmente através de discos e AMs. Em pouco tempo, os cantores e grupos de choperia começaram a tocar o ritmo novo, e usar o termo arrocha em suas serestas. Aos poucos, o arrocha ganhou mais espaço, com a apresentação de grupos e cantores como Silvanno Salles, Pablo, Latitude 10, Léo Magalhães, que lotaram noites na Marcelo e no Kabão. Destes cantores, Silvanno Salles possui uma trajetória típica destes cantores, que usarei como exemplo: Salles tocava em bandas de baile, com repertório variado de pagode, axé, reggae. Migrou para o estilo romântico no final dos anos 1990, “que na época nem era conhecido como arrocha, era conhecido lá na Bahia, eu acho que no Brasil todo, como seresta” (Silvano Salles, cantor de Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 104 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais arrocha, 2012), “seguindo a linha” de Lairton dos teclados. Salles passou por diversos grupos de seresta, até ser convidado por um empresário para fazer carreira solo, já como cantor de arrocha, ritmo pelo qual se tornou conhecido. Para Silvano, foi o povo que deram esse título de arrocha, digamos que é a mesma seresta. Porém, o que, a dança é um estilo mais ritmado, e, digamos, repertório atualizado, né, que antigamente era só aquelas músicas só... na seresta é só música de Fernando Mendes, Reginaldo Rossi, aquelas músicas mais antigas. E hoje o arrocha é o que, é um repertório mais atualizado. Eu toco músicas de todos os gêneros musicais, o pagode do Exalta Samba, do Sorriso Maroto, do Bruno e Marrone, Zézé de Camargo (...) é da juventude, a galera que curte o Luan Santana tem o prazer de escutar a letra do Luan Santana no nosso estilo. (...) digamos que seja uma seresta moderna (Silvano Salles, 2012). Silvano Salles já gravou 14 discos de arrocha e, recentemente, protagonizou um episódio exemplar do modo de operação fonográfica do arrocha/brega. O cantor grava um disco por ano, e em cada disco, insere uma regravação do compositor Amado Batista. Recentemente, surgiu no mercado o disco “Silvanno Salles canta Amado Batista”, coletânea montada por divulgadores (categoria nativa para produtores e vendedores de discos) e que teve boas vendas no mercado informal. O cantor não descarta a ideia de transformar o disco “pirata” em show. O arrocha, de acordo com Silvanno e outros entrevistados, “moderniza” a seresta. Traz para as festas um ar novo, com novo repertório, hibridização de ritmos e abertura para sucessos sazonais, antes fora do universo tradicional das serestas. Além disso, há a inclusão de novos artistas, cantores e cantoras jovens e alinhados aos gostos e à moda, com figurino, cabelos e postura menos associados à imagem do coroa da seresta tradicional, e mais voltada aos atores globais, cantores do chamado sertanejo universitário. Isto atrai um público novo e lota as choperias de jovens antes avessos às festas que estas oferecem. O cantor de arrocha típico é aquele que arranca suspiros das mocinhas em programas de auditório, enquanto o cantor da seresta tradicional é aquele que tenta impressionar pela técnica vocal. Depois que eu vim trabalhar, pra Chopperia Kabão, que o pessoal começaram a admirar meu trabalho, O pessoal começaram a me cobrar muito o meu CD. Aí o que foi que eu fiz: eu gravei um CD solo só de bolero. Agora assim, o pessoal tá me cobrando assim, músicas mais atualizadas, como arrocha. (Lucilene Castro, vocalista da banda do Kabão, 2011) Cantores mais associados ao bolero começam, no Maranhão, a entrar no arrocha, por demanda do público. Contudo, o gênero encontra oposição de alguns setores das serestas e do brega: Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 105 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Eu não vejo que diferença tem do arrocha pra seresta. Aí tem uns imbecil na Bahia, tipo Silvanno Salles, Naira Costa, sabe, na Bahia o povo gosta de inventar coisa, que na verdade, às vezes não se torna sucesso lá dentro do estado deles. Arrocha pra mim é simplesmente um bando de égua correndo atrás um do outro. É Léo Magalhães, quando começou, é Silvanno Salles atrás do Rodrigo Alves, é o Rodrigo Alves atrás do Aviões do Arrocha, é o Aviões do arrocha atrás do Edu Magalhães. Então pra mim são um bocado de égua puxada num só cabresto, esses cara que cantam arrocha (José Oniton, 2011). O arrocha se instala no ambiente de festa das serestas, fazendo com que alguns agentes vejam as novas músicas como o próprio fim da seresta. Alguns cantores tradicionais, como Freitas Maranhão, aponta que a própria eletrificação é o prenúncio do fim da seresta, já Rogerinho diz que “até com o teclado eletrônico, até mais ou menos 10 anos atrás até 2000, 99, por aí assim, nós ainda tínhamos seresta. Mesmo com o teclado eletrônico era aquela seresta, aquele ritmo mais dançante, bem lentinho, não era aquela coisa. Aí depois veio um tal de arrocha que avacalhou tudo” (Rogerinho, 2011). A nova denominação é vista pelos agentes da seresta tradicional como uma corruptela da seresta, uma espécie de degeneração do bolero. É importante notar que a crítica parece estar para além da música, pois é quase consensual de que seresta e arrocha, musicalmente, são “a mesma coisa”, e que o arrocha difere por ser um pouco mais rápido. A diferença parece estar no novo público, no novo repertório e nos novos artistas. As críticas tecidas ao arrocha se voltam para termos como “avacalhação”, bagunça, música de duplo sentido, com arranjos pobres, que perturbam a ordem do ritual da seresta, vista por seus agentes como um tipo de festa com canções harmonicamente sofisticadas, letras rebuscadas e valorização do romantismo em detrimento do sexo descomprometido. O que está de acordo com o tradicionalismo que vejo nestas festas, no Maranhão. Desde os anos 1980, pouco mudou na forma como as festas são realizadas, e o arrocha põe esta forma de fazer em questão, na medida que a seresta, para alguns agentes, começa a assemelhar-se a outras festas para jovens como as festas de pagode, axé e forró, ameaçando o espaço cativo das gerações mais antigas. Este tradicionalismo nas serestas do Maranhão fica mais claro ao comparar uma seresta de arrocha das grandes choperias de São Luís como Marcelo e Kabão, com algumas serestas que fui em Salvador, durante o trabalho de campo. Em um dos clubes, chamado Jangada, na praia de Boa Viagem (região turística de Salvador), descobri que o nome choperia não é associado às festas de brega ou seresta na capital baiana. Os nomes mais comuns são casa de seresta, casa de show. A casa ficava ao lado de outro clube de seresta, chamado Língua de prata. No fim de semana que as visitei, estavam lotadas. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 106 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais O público era mais jovem que o das serestas em São Luís, entre 20 e 30 anos. No palco, guitarra, sax e teclado, com dois dos instrumentistas também cantando um repertório variado e atualizado, que incluía swingueira, arrocha, axé, pagode, rocks brasileiro e internacional, brega, forró e seresta. A seresta aqui é mais um gênero musical dentro da festa que recebe seu nome. A entrada na festa custava, 06,00 reais, a cerveja R$ 05,00 e o consumo era voraz. Os valores são mais altos que os praticados em São Luís. A dança tinha os traços das danças relacionadas aos ritmos baianos como o axé e a swingueira, com moços e moças de camisetas regatas e tops rebolando e não se furtando ao contato direto. Eu estava acompanhando de uma senhora loira na casa dos 50 anos, de classe média alta, reconhecida facilmente pelos frequentadores como uma coroa e que nunca havia ido a uma festa desse tipo. Ela não passou uma canção sem ser assediada e solicitada para a dança, com abordagens bem menos comedidas do que as que vi nas choperias de São Luís. Durante a apresentação, o grupo Magno Show usa o teclado para tocar bateria “ao vivo” em algumas das canções, com grande destaque no anúncio desta performance. Para mim, isto é um novo uso da tecnologia. O teclado de programação é usado, também, como um instrumento não-programado, para emular um instrumento de percussão e tocar um reggae de Bob Marley. Figura 18 - Cartaz de seresta na Bahia. Foto: Bruno Azevedo, 2011. Ao comparar as duas festas, constato que o que se chama de seresta no Maranhão corresponde a uma parte do que recebe o mesmo nome em Salvador. A seresta, como festa popular de música romântica, torna-se mais popular no Maranhão a partir da metade dos anos 1980, e perBruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 107 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais manece sem grandes alterações até que o arrocha, visto por muitos como uma transformação da seresta, mude a cara do mercado e desloque o eixo de produção de canção com teclado arranjador para artistas com pouco apego ao cânone do bolero, que “invadem” as choperias. Os agentes vinculados ao brega e à seresta no Maranhão reclamam a “posse” da seresta, e do fato de ela ter sido “corrompida” pelos cantores baianos. Há, aqui, um discurso de defesa da tradição (bolero) em detrimento da inovação (arrocha), semelhante aos processos de “modernização” amplamente criticados em relação à música folclórica no Maranhão. Os depoimentos de agentes como Zé Oniton, Freiras Maranhão, Rogerinho, Walfredo Jair, Amado Sobrinho, dão a entender o arrocha como um movimento no qual “eles [os baianos] vieram, pegaram o nosso, aceleraram o ritmo, botaram uma percussãozinha, e fizeram o arrocha. Não tem outra explicação!” (Rogerinho, 2011). Já a empresária Idinete Machado, sócia proprietária do restaurante Porto do Calhau (do qual falarei em breve), diz que “o bolero é que faz a casa mais bonita, é o que deixa a casa mais bonita, o bolero mesmo. O arrocha ele polui a casa, mas o bolero deixa a casa com um público maravilhoso” (Idinete Machado, 2011). O arrocha, para estes agentes, é uma ameaça à posição da seresta “pura” no Maranhão. Daí surgem novas posições no mercado, dentro das quais um artista se associa a determinado segmento da seresta, estando geralmente, os mais antigos, associados à tradição da seresta e do bolero, e os mais jovens voltados ao arrocha. Esta divisão é vista tanto nos cantores mais jovens, quanto naqueles com mais tempo de estrada, o cantor Walber, que cantou no Nonato e Seu Conjunto, banda Os Fantoches e hoje comanda a seresta do MAC, diz: “A pessoa que me ouve cantando, por exemplo, um Altemar Dutra, vê eu cantando [canta] ‘foi pelo amor de uma mulher’, que é de Júlio Iglessias, já imaginou eu cantando um Silvano Salles?!” (Walber, 2011). Grupos como o Grupo Digital e a Banda do Kabão tem seus cantores dentro desta divisão, com membros mais jovens cantando arrocha, mulheres cantando forró, “Porque se a gente for ter arrocha, tocando arrocha, e a gente for tocar arrocha cadê nossa identidade?” (Rogerinho, 2011). O arrocha não está presente somente nos palcos das choperias de São Luís. Além de serem os artistas deste gênero os que mais lotam os shows na capital, também os grupos e cantores que gravavam seus discos ao vivo com o rótulo de “em ritmo de seresta”, passam a gravar e cantar, para acompanhar o mercado, “em ritmo de arrocha”. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 108 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais 3.4. AS ESTRATÉGIAS MERCADOLÓGICAS DAS CHOPERIAS Se adaptar-se às novas tendências da música como o arrocha e as demais vertentes da música brega é necessário à sobrevivência das choperias, outras estratégias são aplicadas frequentemente para atrair cada vez mais o público pagante. Das menores às de maior vulto, as choperias estão sempre em busca de elementos que as distingam umas das outras, e que atraia mais público e venda mais cerveja. As estratégias vão do repertório à publicidade. A choperia Marcelo, por exemplo, aposta na “quarta pela metade”. Todas as quartas-feiras, a cerveja é vendida por R$ 2,50, metade do valor de mercado (valores de 2012), para lotar o estabelecimento em um dia no qual, de outro modo, o movimento seria fraco. As noites de quarta são animadas pelo Grupo Digital. Algumas choperias possuem acordos comerciais de exclusividade com cervejarias, assim, conseguem preços menores no produto e otimizam os lucros. Por outro lado, uma cervejaria de baixa popularidade, como a Nova Schin, pode se associar a uma casa consolidada e instalar seus balões, banners e demais peças publicitárias como cartazes de show, comerciais de rádio e TV. A Marcelo é uma das poucas que investe em comerciais em televisão, comprando horários nos intervalor de programas populares como o Bandeira 2 (programa policial da TV Difusora, que vai ao ar de manhã cedo), com os qualificativos de “ambiente familiar”. Também há parcerias com rádios locais, que veiculam comerciais da choperia em troca de pautas para realização de shows de artistas convidados. Já o Kabão aposta na “quinta do bolero”, com o mesmo intuito de fortalecer um dia de fraco movimento. Nas quintas, não há espaço para forró, arrocha ou outros ritmos “novos” como o brega rasgado. O repertório é constituído do cânone do bolero e a noite alude às antigas serenatas. É o dia de maior movimento da choperia (dados de 2011). A choperia também abre no domingo, mais cedo, e consegue receber um bom público quando as demais casas de seresta estão fechadas ou voltadas para outros ritmos como o reggae e o pagode. Esta também é a estratégia adotada pela Choperia São Luís, que fica ao lado do Kabão. Esta abre nas segundas-feiras e lota de trabalhadores que querem terminar com bolero o primeiro dia da semana. A choperia O Marujo, que fica a mais ou menos 200 metros do Kabão, varia as festas, reservando o domingo para o forró com banda completa, em busca do público mais jovem. Nestes dias, é cobrada a entrada de R$ 2,00 somente para os homens, com o argumento de cobrir os custos com a banda. Nos demais dias, a casa funciona com seresta. Não é permitida a entrada de ambulantes no interior da choperia. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 109 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais O Gaiolão e o Palácio da Seresta ficam em frente a um dos terminais de ônibus da cidade, se valendo do alto fluxo de pessoas, para atrair clientes. Também a proximidade da região da rodoviária/distrito industrial leva para estas duas choperias um público expressivo de caminhoneiros e outros trabalhadores da BR 135. A mesma aposta nos trabalhadores fazem casas como o Solar das Flores e o Caneco. Por estar no meio da maior zona comercial de São Luís, ganham maior movimento no sábado à tarde, horário que os comerciantes fecham as lojas e vão beber a semana na seresta. O Restaurante Porto do Calhau, na Avenida Litorânea, oferece o serviço de dançarinos de aluguel chamado táxi dance, que é a disponibilização de jovens provenientes de escolas de dança que cobram para dançar bolero com as coroas, ao valor de R$ 2,00 por dança. Os meninos que tem um projeto nas academias de dança, que são meninos de favelas mesmo, carentes, que vão pra academia, aprendem a dançar e se tornam voluntários. E aí eu convidei eles, na época eu pagava 30 reais por noite pra eles. Fiz uns tíquetes que eram vendidos pras damas, aí eu apresentei eles, eles vinham de roupa branca, todo bonito, aí eu abria o salão meia noite, entrava o bolero, eles abriam com a dançarina aí tinha as taxi girl e os táxi dance. Eram as mulheres e os homens. Mas a procura por mulher era muito pequena, elas passavam a noite inteira sentadas (...) e era aquela velha coisa: o homem achava que a mulher ia, depois da dança fazer um programa com ele (...). Eram 4 dançarinos e eles iam dançar com elas, cada musica valia um real. Tinha delas que compravam 20 tíquetes, era disputa, briga de mulher pelos táxi dance. (Idinete Machado, sócia-proprietária do Porto do Calhau, 2011) Hoje, os táxi dance são freelancers sem relações formais com a casa, que ainda usa o fato de disponibilizar o serviço como um diferencial de mercado. O restaurante aposta na seresta mais tradicional e no público “diferenciado” que, segundo os proprietários, frequenta o restaurante. Outra forma de atrair público é permitir o comércio informal dentro da área da choperia, a não cobrança de ingresso e uma postura pública firme em relação a dois aspectos: a segurança e a prostituição, dos quais falarei ainda neste capítulo. Por ora, seguindo a linha da segmentação de mercado existente nas casas da seresta e a maneira como estas casas se distinguem, é importante mostrar que, se há seresta e arrocha nas serestas, há também serestas pro trabalhador no sábado à tarde e a seresta na qual não se precisa correr o risco da cantada rejeitada, a chamada seresta society. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 110 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais 3.5. A SERESTA DE ELITE E O BREGA SOCIETY Há pouca luz no salão tomado por mesas cheias de senhoras em seus melhores trajes. Nos cantos, jovens garbosos de branco impecável esperam pela próxima pretendente e os donos da casa saúdam os frequentadores pelo nome, mesa por mesa. Um someliér apresenta os vinhos recém chegados, que podem ser apreciados com o jantar servido pela casa. No palco, uma dupla de teclado e voz se prepara para executar “A volta do Boêmio”, canção famosa do cânone do bolero brasileiro, imortalizada na voz de Nelson Gonçalves. Esta é a descrição sucinta de uma noite no Restaurante Porto do Calhau, que fica na Avenida Litorânea, área nobre de São Luís. O que se ouve e o que se vê se assemelha bastante ao que se vê e ouve em casas como o Kabão e a Choperia Marcelo. Contudo, ao entrevistar público, artistas e empresários sobre estas casas, e durante o trabalho de campo, notei que há diferenças entre as festas no Calhau e as festas na Forquilha. Esta diferença está no espaço, e na proposta dos diferentes locais de realização, além dos públicos que dizem atingir. Estamos no mundo da seresta de elite. Mas o que difere estes dois ambientes e como funcionam as serestas elitizadas em São Luís? Atualmente, a cidade possui três locais que oferecem seresta para o público tido como de “elite”, o já mencionado Restaurante Porto do Calhau, a Serenata Caixa Alta (na Associação do Pessoal da Caixa Econômica Federal - Apcef/MA, um clube social no bairro do Calhau); e a Seresta do MAC (na sede do time de futebol Maranhão Atlético Clube, no bairro da Cohama, também um clube social). Os dois últimos funcionam somente nas sextas-feiras. O primeiro também abre aos sábados. Todos com seresta de teclado no palco.95 De antemão, convém notar que nenhum dos três responde pelo nome de choperia, todos cobram ingresso (R$ 10,00 no Porto, e R$ 20,00 nas demais), e estão em bairros de elite, fora de zonas comerciais ou de grande movimento. Segundo a sócia-proprietária, Idinete Machado, o Porto do Calhau atende um pessoal com nível social excelente. Por exemplo, o Dr. Gonzaga (...) ele é médico, dono da Centro Cor [o restaurante é] muito frequentado pelos prefeitos dos interiores. E as pessoas sentem um prazer gigantesco, privilegiado, quando o dono da casa fala com eles. O fato deu entrar no salão e estar bem arrumada, pra eles, é maravilhoso. É lindo! (Idinete Machado, 2011) 95 Outras serestas de elite, já extintas, foram mencionadas pelos entrevistados ao longo da pesquisa. A saber: Tia Maria, Tom Marrom, Bar das Ostras, Casino Maranhense, além de vários hotéis, que abrigavam serestas eventualmente, e ainda o fazem. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 111 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais A presença da proprietária no estabelecimento, o tratamento pessoalizado e reverente às posições sociais ocupadas por seus clientes, são símbolos da seleção a partir da qual o ambiente opera. Reservar a garrafa de uísque ou a mesa para um cliente que ocupe posição de destaque (e nas entrevistas estes são médicos, advogados, altos funcionários públicos, políticos e empresários), demonstra o cuidado na manutenção e afirmação do status destes clientes. Eu tenho agulha, tenho linha, tenho absorvente, tenho Anador, todo tipo de coisa. Porque mulher cai botão, calça descostura, sutiã solta a alça e a gente tem que tá com tudo à postos, pra elas solucionarem o problema, pra poder não ir embora, pra gente não perder o cliente. (...) um público assim, que tem história, que é tradicional aqui de São Luís, que foi um antigo gerente duma lojá, que foi o dono de uma loja muito bonita, muito boa, antiga, gente que tem dinheiro, e que sai de casa realmente só pra se divertir, mas ele é exigente, ele não quer tá com todo mundo, ele quer chegar ele quer ser recebido na porta, ele quer sentar com a cadeira ainda puxada, ele quer ser servido pelo garçom. É aquele que ainda toma um prosseco, que toma um vinho chileno. (Idinete machado, 2011) No Porto do Calhau, os músicos (três vocalistas, um saxofonista, um tecladista) são pagos por cachê, sem vínculo empregatício com a casa. O repertório, contudo, guarda grande semelhança com o das choperias, com espaço para o bolero, o forró e o arrocha. A casa serve jantar (é a única seresta na cidade com este serviço) e não é permitida a entrada de ambulantes, salvo as vendedoras de flores (muito apreciadas no local como presente às damas) e chocolates. O restaurante gera 14 empregos diretos. Quando o arrocha toca, o salão enche muito, mas é um público que a gente não faz questão desse público ser o nosso público, pelo local que a gente fica, que é o Calhau, tem muito cuidado pra gente não ficar igual ao Kabão, à Choperia Marcello, ser diferenciado, ter um público diferenciado. (Idinete Machado, 2011) Bruno: O que que tem no Kabão e o que que tem na Marcello que a Sra não quer? Idinete: O público, por exemplo. Gente muito brega, que quer ir de bermuda, que quer ir de japonesa, quer ficar de camisa aberta, esse tipo de público. Mulher que quer usar short muito curto, que quer sentar no colo de homem. Essas coisas no porto do Calhau a gente não deixa acontecer. Então a gente evita esse público (...) porque o ambiente fica poluído e a gente vai perder o cliente que realmente interessa à gente, um consumo maior e de um nível melhor, que gosta do brega, que gosta do bolero. (Idinete Machado, 2011) A seresta do MAC é o desdobramento de outra seresta de elite em São Luís, a seresta do Ipem, que funcionou por 16 anos no clube do Instituto de previdência do Estado do Maranhão, Calhau, por iniciativa do cantor Walber, ex-vocalista do Nonato e seu conjunto e da banda Os Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 112 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Fantoches e Vôo Livre. A seresta do Ipem ocorria às sextas-feiras, e só era permitida a entrada no clube mediante a apresentação do contracheque que comprovasse o status de funcionário público do estado. A música era a seresta com teclado e o evento durou 16 anos consecutivos ( de 1884 a 2000, com paradas para carnaval e São João), quando Walber passou a integrar a banda de baile Mákina do Tempo. No ano 2000, a secretaria de cultura do estado do Maranhão contratou a banda Mákina do Tempo para tocar no carnaval, na sede do Maranhão Atlético Clube. Após o carnaval, Walber reiniciou a seresta, desta vez no MAC, onde ainda ocorre, todas às sextas-feiras, há 10 anos, com um público de “95% da elite”. (Walber, 2011) A seresta cobra R$ 20,00 na porta e a cerveja custa R$ 5,00. Há vagas de estacionamento dentro do clube e seguranças controlam a entrada. Os carros que vi estacionados são de alto padrão, estilo Corola e pick-ups. Nas noites em que fui à festa, era o único homem desacompanhado, e de longe o mais novo no salão. Há serviço de garçom e boa parte do público, ao adentrar a área das mesas, é saudada pelo nome e título por Walber. Aqui não há um proprietário, mas o cantor ciceroneia e conversa com o público em algumas mesas. Os músicos são contratados dele e são comuns as canjas de artistas da seresta tradicional como Walfredo Jair. Há pouca participação do arrocha no repertório. Walber: Eu tenho meu estilo de seresta, eles [as choperias Marcelo e Kabão] tem o deles. Bruno: Qual a diferença? Walber: A diferença é que eu toco pra elite (...) eu tento agradar a todos. Então eu boto um repertório diferente. Eu canto muito Roberto Carlos, Júlio Iglessias, então eu boto muito essas coisa assim, Emílio Santiago. Eu considero o meu repertório um tanto diferente deles. (Walber, 2011) No salão da seresta do MAC, a dança é intensa, mas ocorre de maneira mais comedida e pudica em comparação aquelas das grandes choperias. Não há serviço de dançarinos profissionais e os figurinos das senhoras são, na minha avaliação, sofisticados, com peças no estilo “festa”, com vestidos longos, muitos adereços e maquiagem. A maioria dos que conversei são frequentadores de seresta há pelo menos uma década e escolhem esse tipo de espaço por características como a segurança, ambiente mais selecionado, bom espaço para dançar. O comerciante Luis Carlos Cantanhede Fernandes, frequentador de serestas há 20 anos, diz que a seresta pouco mudou de lá pra cá, e que frequenta somente a Caixa Alta e o MAC, porque “Você tem um ambiente mais, eu diria, mais seleto, mais agradável, mais ventilado. Melhor” (Fernandes, 2011). Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 113 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Os frequentadores destas serestas de elite costumam variar as sextas-feiras entre as três casas, não frequentando outros ambientes de seresta como as grandes choperias, o que me leva a concluir que o contrário também é verdadeiro. O público entrevistado também mencionou ter sido frequentador de clubes sociais como o Lítero e o Jaguarema. A Serenata Caixa Alta também funciona nas sextas-feiras, na sede social do clube dos funcionários da Caixa Econômica Federal. A entrada custa R$ 5,00 para sócios do clube, e R$ 10,00 para não-sócios e a cerveja é R$ 4,00. O perfil do público é mais o dos dançarinos de idade mista, muitos em busca de praticar aquilo que aprendem nas escolas de dança de salão. A seresta começou em 1988, na esteira da nova popularização do boleiro na capital, por iniciativa da presidência da associação, que convidou o músico Paulo Trabulsi pra “fazer alguma coisa diferente” (Paulo Trabulsi, músico, 2012), Trabulsi não tinha formação em serestas e adaptou um regional de choro para as noites da casa, que atendia pelo nome de Chão de Estrelas. Era um “conjunto com violão cavaquinho, flauta, sax, bateria, pandeiro, cantando um cara, acho que Jota Nogueira” (Ricarte Almeida santos, 2012). No repertório, uma relação mais direta com o samba e com o choro, havendo abertura para o bolero, “mais de Agnaldo [Timóteo] pra cima” (idem, 2012). Esta “primeira fase” durou 4 anos, quando entrou no hiato que duraria uma década. Em 2002, Trabulsi foi chamado para reativar a seresta, e o fez com a mesma formação até 2009, com a diferença de que o nome Chão de Estrelas batizava a banda, com a festa se chamando Seretana Caixa Alta. Logo após, uma nova gestão substituiu o grupo por seresta somente com teclado. Segundo Santos, “o argumento da nova diretoria para a mudança é que um grupo assim para manter semanalmente ficava muito caro. Eram 6, 7 até 8 integrantes, com teclado duas pessoas resolviam a parada” (Ricarte Almeida Santos, 2012), no que a Presidente da casa retruca: As pessoas foram pedindo que fosse diversificada. O que que a gente como dirigente a gente sempre procurou observar. Se o público tá gostando, a gente tá sempre acompanhado o que o público tá querendo ouvir, tá querendo dançar, e a gente tá usando. (Gisele Menezes, Presidente da Apcef/MA, 2012) Trabulsi diz que a mudança se deu porque a diretoria percebeu que havia um nicho de mercado para a seresta com teclado (Paulo Trabulsi, 2012). Hoje, a Serenata Caixa Alta é animada pelo cantor e tecladista Freitas Maranhão e seu grupo, que antes comandava as noites do Porto do Calhau e foi membro do Grupo Digital por quase uma década. O repertório é também focado no bolero e os trajes do público se assemelham aos que vi na seresta do MAC. O clube possui amplo estacionamento e não tem fácil acesso por transporte público. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 114 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais A Serenata Caixa alta é reconhecida, por público e músicos, como a mais “tradicional” da cidade. Segundo o jornal O Imparcial, a Caixa alta é uma festa “para quem tem saudade do som envolvente das serestas e passos coreografados” (O Imparcial, 22/10/2010). A serenata (e note que o nome seresta é excluído do nome da festa, sendo reconvertido ao nome da festa que lhe deu origem, a serenata, mais intimista, passional) era anunciada regularmente na rádio Universidade FM, no programa Chorinhos & Chorões, que vai ao ar aos domingos96. A peça de divulgação do programa diz “Serenata Caixa Alta, onde dançar a dois nunca sai de moda!” (Universidade FM, 2011). Aqui há também a inserção do tango e de outras danças de salão, voltados para o glamour da festa. A Apcef/MA oferece aulas de dança de salão às terças e quintas, no período da noite. Quando a visitei, havia cerca de 12 casais aprendendo os passos do bolero. A maioria dos que entrevistei afirmou que praticaria na serenata. A presidente da associação diz que A gente vê muito assim a classe média, classe alta, você vê pessoas assim, conhecidas da sociedade, assim, é um nível bom, muito bom mesmo. E acho que por isso que eles vem aqui, porque você não vê aquela...não sei nem dizer... a palavra que eu poderia usar... você não tem um clima assim desagradável, né? Você vem com seu marido, você vem com a sua esposa, você se sente à vontade, você vem em rodas de amigos, ficam bem à vontade. (Gisele Menezes, 2012) Estes três espaços, como percebi no trabalho de campo e com as entrevistas e demais peças, primam pela distinção entre as práticas que encerram e aquelas das grandes e pequenas choperias. Os representantes destas casas tomam para si o público diferenciado, e alegam operar a partir das demandas deste público; o público diz escolher as casas porque ali encontra pessoas igualmente distintas e pode com elas ter experiências relacionadas a um passado mitificado como bom, puro e opulento. Nos depoimentos destes agentes, a palavra brega não é mencionada em referência às casas, e mesmo o termo seresta é usado sem nenhuma associação ao brega. A seresta aqui está mais para o baile de dança de salão do que para a festa de encontro. Nestas falas, contudo, é frequente que o termo brega seja usado para definir os demais espaços de seresta, constantemente evocados para comparação entre o espaço legítimo do bolero, e os demais espaços, em diversas formas. As pessoas vão prali [pras choperias Marcelo e Kabão] não é pra dançar. A dança é uma desculpa pra se envolver com alguém, encontrar quem ele queira, entendeu? Dali terminar a noite e sair pra algum lugar. Esse é o objetivo do homem que vai pra lá, entendeu? Aqui [no Porto do Calhau] não, é diferente. É tão diferente hoje, Bruno, aqui, sabe por quê? Eu tenho mulheres casadas, entendeu, que vem pra cá, contratam o táxi dance pra dançar com ela a noite todinha. Pagam pra eles, entendeu e ele fica à disposição dela, ou então de duas, três pessoas que vem com ela, entendeu? Aí ela dança a noite todinha com o 96 das 09:00 às 11:00 da manhã, com locução e apresentação do jornalista Ricarte Almeida Santos. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 115 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais cara, paga e vai embora, entendeu. Na boa. O marido sabe de tudo. (Odilon mendes, sócio-proprietário do Restaurante Porto do Calhau, 2011) Para a cantora Talitha de Sá, da serenata Caixa Alta, a diferença não é nem do público. É a diferença das pessoas que tocam em cada lugar. Assim, às vezes eu começo a cantar, mas eu não procuro me aperfeiçoar na profissão. Isso que falta pros cantores, na maioria das seresta e tal. Eles começam a cantar por cantar, não procura, assim, se aperfeiçoar na voz. Procurar alguma coisa pra ter um QI a mais na minha profissão. Pro cantor que toca, é muito mais privilégio que um cantor que só que canta. (Talitha de Sá, 2011) Nota-se que o jogo da representação não está somente no nível empresarial, e que os seresteiros em si disputam locais de mercado e diferenciação dentro do grupo. No caso, fica subdito que, para ocupar o palco da seresta de elite, é necessário maior estudo e apuro que aquele necessário para tocar nas choperias como Marcello e Kabão. O terreno da disputa é menos o do talento que o do esforço que leva ao aprimoramento. Contudo, os músicos das serestas de elite passaram pelas grandes choperias e ainda tocam, eventualmente, nelas. Freita Maranhão, da seresta do MAC, tocava no Grupo Digital, Meiriane Guedes (cantora do Porto do Calhau) cantava em serestas quando ainda morava no interior do Maranhão e continuou cantando, mesmo quando era membro da banda de baile O Peso; e Walber era cantor de grupos como Nonato e seu Conjunto, mas tocou algumas vezes na Marcelo. Tecladistas são músicos com alta rotatividade de grupos nas serestas de São Luís e o mesmo instrumentista pode tocar no Kabão no começo da noite e fechar o expediente no Porto do Calhau. Segundo o cantor Wilsinho Gogó de Ouro, associado à seresta mais tradicional, há cantores mais e menos adequados a determinados espaços. Assim, o cantor Tom Cleber, cujo trabalho é categorizado por Wilsinho como “brega society” (Wilsinho, 2011), uma forma de música brega consumida por um público mais amplo. Wilsinho cita que nos shows de Cleber “só vai família”, o que o difere daqueles que atraem jovens em busca de contato rápido e lúbrico com o sexo oposto. Ele [Júlio Nascimento] canta desafinado, não tem criatividade. A música dele é bacana pra quem gosta de música de corno. Ó, o Reginaldo Rossi, ele canta pra corno, mas ele canta bem, porra. É diferenciado, entendeu (...) não sei se tu entende. Pra brincar é ótimo. Musicalmente ela é horrível, mas pra brincar é ótimo. (Talitha de Sá, 2011) Pierre Bourdieu analisa o modo como os grupos são construídos e como elementos não propriamente econômicos são manejados neste processo de criação e afirmação/reconhecimento dos mais diversos grupos sociais. O elemento de identificação de um grupo social está naquilo que este grupo sanciona como seu, e entende como legítimo para seu consumo, pela denominação daquilo que não o é. A forma como estes elementos se relacionam entre si (pela oposição direta Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 116 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais de bom e ruim) e com outros (o cinema com a literatura, por exemplo) é, por fim, aquilo que define os grupos. Um grupo social não é um monólito facilmente rotulável, mas a definição e identificação faz parte de um jogo de relações de validação. a classe social não é definida por uma propriedade (...), nem por uma soma de propriedades, tampouco por uma cadeia de propriedades, todas elas ordenadas a partir de uma propriedade fundamental – a posição nas relações de produção – em uma relação de causa e efeito, de condicionante e condicionado, mas pelas estruturas das relações entre todas as propriedades pertinentes que confere seu valor próprio a cada uma delas e aos efeitos que ele exerce sobre as práticas. (Bourdieu, 2008, p. 61) No caso do universo social pesquisado, as diferenciações que os agentes fazem entre as serestas das choperias e aquelas dos três exemplos citados neste tópico, é aquela do uso legítimo de um bem cultural, e da afirmação de local social com base, também, nestes usos. O bolero, espinha dorsal de todas as festas de seresta, aparece nas narrativas como uma canção antiga, para a dança, mas a apropriação que se faz dele no Kabão é diferente da que se faz no Porto do Calhau, assim como o próprio Kabão é visto por agentes frequentadores e que tocam em casas como o Marujo e o Solar das Flores, como uma casa onde o bolero é ainda mais presente do que nestas serestas. “O Kabão é mais música antiga, mais aquela coisa mais pro lado do bolero. Aqui a gente toca, mas a gente toca mais coisa mais nova, arrocha.” (Robinho, tecladista da Banda Total, da choperia O Marujo, 2011). A variação no uso do bolero ajuda a definir o público das casas de seresta em São Luís, somando o gosto por esta música ao capital cultural do público, numa operação que equipara o gosto e conhecimento do bolero (e da verdadeira forma de dançá-lo e apreciá-lo) ao nível social de quem o executa, escuta, e sai para ouvi-lo nas casas da cidade. Também o gosto ou desgosto por gêneros associados (o tango como algo próximo ao bom bolero, o arrocha como sua degeneração), indicam o grupo ao qual pertencem os frequentadores. Se nas serestas que ocorrem nas choperias há a dupla preocupação de se ter o repertório atualizado com os novos hits, ao mesmo tempo em que é reservado o espaço para cantores mais velhos e canções consagradas para parte do público “original” das choperias, a seresta de elite se mantém com a resistência às novas tendências, buscando uma aproximação maior com as festas “originais”, com o que é denominado como os bons tempos e com a qualidade “impossível” de ser novamente alcançada em novas composições, como demonstrou o depoimento de Walfredo Jair algumas páginas acima. A seresta se torna, assim, também um terreno de disputa por locais sociais através das diversas tomadas de posição no universo das festas com teclado de programação, ou como diria novamente Pierre Bourdieu. As lutas pela apropriação dos bens econômicos ou culturais são, inseparavelmente, lotas simbólicas pela apropriação desses sinais distintivos como são os Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 117 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais bens ou as práticas classificados e classificadores ou pela conservação ou subversão dos princípios de classificação dessas propriedades distintivas. Por conseguinte, o espaço dos estilos de vida, ou seja, o universo das propriedades pelas quais se diferenciam, com ou sem intenção de distinção, os ocupantes das diferentes posições no espaço social não passa em si mesmo de um balanço, em determinado momento, das lutas simbólicas cujo pretexto é a imposição do estilo de vida legítimo e que encontram uma realização exemplar nas lutas pelo monopólio dos emblemas da “classe”, ou seja, bens de luxo, bens de cultura legítima ou modo de apropriação legítima desses bens. (Bourdieu, 2008, p. 233) Com isto, vimos que a seresta que se faz no Calhau é diferente da que se faz no Portinho, e que o mercado que começa a se expandir nos anos 1980, chega ao final da década de 2000 com uma forma de segmentação que, aparentemente, se sustenta na negação dos caminhos que os ambientes de seresta, as choperias (foco deste capítulo) tomaram nos últimos 30 anos, negando mesmo o nome dado ao ambiente que se tornou sinônimo das festas feitas com o teclado de programação. Esta negação me leva a uma pergunta que vem sendo “cutucada” até aqui: as choperias são estigmatizadas? Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 118 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais 3.6. CHOPERIAS, ESTIGMA, MÁ FAMA “Porra, Bruno Azevêdo, a inteligência e tempo são teus, mas não é um desperdício pra ‘analisar’ isso aí?” (Garcia Junior, em comentário na rede social Facebook, 2012) O comentário acima, postado na rede social Facebook por um amigo meu, sobre esta dissertação, sintetiza um tipo de questionamento que me habituei a responder desde que escolhi as choperias como campo empírico desta pesquisa. Parecia, para diversas pessoas do meu convívio, que o universo das choperias de seresta de São Luís era incompatível com a ideia que faziam de mim como um intelectual, escritor e pesquisador. Contudo, esta pergunta, aparentemente baseada no que conheciam de mim, demonstra o que estas pessoas presumem sobre as choperias. Durante anos, ouvi e li de pessoas de várias posições sociais, que estes espaços seriam violentos, cheios de ladrões e pessoas de baixa estirpe, que a música era de baixa qualidade, um muzak, brega, que havia prostituição, sujeira. Esta posição é muito semelhante à encontrada acerca dos clubes de reggae em geral nos anos 1980 (som de negros, vadios), ao Bumba Meu Boi, até a metade do século XX (som de negros, vadios) e aos clubes de reggae da periferia, hoje em dia97 (novamente, som de negros, vadios). A palavra brega é a mais evocada em relação às choperias, significando uma música reconhecida como brega e um ambiente igualmente brega. Ao longo da pesquisa, nas lutas por classificação que envolvem a música do Maranhão e a identidade local, constatei que as choperias de seresta e brega são estigmatizadas, ou seja, possuem, segundo o sociólogo americano Erving Goffman, sinais “evidentes” que comunicam algo de extraordinário ou não sobre seu status moral. Goffman enfoca o estigma em pessoas das mais diversas localizações sociais: prostitutas, poetas, deficientes, militares. Na minha análise, faço uso de algumas de suas ideias para um espaço físico e simbólico e um gênero musical. A representação feita sobre as choperias de brega e seresta de São Luís é de descrédito. O estigma é uma característica ou marca a partir da qual seu portador é julgado pelos demais setores da sociedade, tendo este portador consciência de portar tal marca ou não. O estigma ou a má fama são relacionais, e operam dentro de articulações sociais específicas de tempo, grupo e local, de maneira que portar determinada característica pode reverter-se, de símbolo de descrédito, para alguma evidência de status social favorável. A operação em relação ao estigmatizado ocorre com base em “um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo” 97 Freire (2010) e Silva (2007) mostram como a posição social do reggae mudou em São Luís. Oliveira (2003) faz o mesmo com o bumba meu boi. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 119 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais (GOFFMAN, 1978, p. 13), em direção ao grupo social identificado como portador deste estigma, não pelo conhecimento deste grupo social. Compreendo que os locais e símbolos falam através de seus agentes e existem por e com eles. Neste ponto, a má fama direcionada a um local ou tipo de música ou prática é a tentativa de um grupo de definir/resumir todo o escopo social de outro grupo e, por conseguinte, traçar definições favoráveis sobre si mesmo, com associação à ideia de normalidade. Fazer parte de um aspecto do objeto mal afamado pressupõe a contaminação por outro aspecto, como a cumplicidade presumida por estar junto a um criminoso, como um beco destinado à prostituição “emprestava seu colorido a qualquer pessoa que resolvesse entrar ali...” (ROLPH, Women of the streets, in Goffman, 1978, p. 94). Goffman mostra como a má fama/estigma se torna parte da identidade das pessoas e lugares, que fomentam várias estratégias de ocultamento e/ou administração do estigma pelo estigmatizado e pelas pessoas ao seu redor. “As identidades social e pessoal são parte, antes de mais nada, dos interesses e definições de outras pessoas em relação ao indivíduo cuja identidade está em questão” (GOFFMAN, 1978, p. 116). Neste item, pretendo evidenciar como o que identifico enquanto estigma em relação às choperias está presente em diversos discursos a respeito delas, e a maneira como vários representantes das choperias administram seus sinais de estigma, e falam a partir de seu lugar de descrédito. Logo que comecei a pesquisa, recebi uma ligação da Secretaria de Estado do Turismo do Estado do Maranhão, para um trabalho de interpretação. Naquele final de semana, dois dos presidentes do BID98 visitariam São Luís, e foram escolhidas sete pastas do executivo estadual para apresentar projetos ao banco, em uma reunião com secretários e o vice-governador em exercício, João Alberto. Presto serviços como intérprete de língua inglesa e guia de turismo para diversos clientes, e me chamaram para traduzir os três projetos da pasta de turismo que pleiteiam o empréstimo do banco. A reunião aconteceu no Palácio dos Leões (palácio do governo estadual). Um dos projetos da Secretaria de Turismo dizia o seguinte: PROPOSTA: Estudo de Viabilidade Técnica de Urbanização Turística do Aterro do Bacanga. SITUAÇÃO ATUAL: Sub-utilização da área do Aterro do Bacanga, espaço de risco de abordagens marginais; SITUAÇÃO FUTURA: Dinamização do espaço do Aterro do Bacanga dotando o espaço de infra-estrutura urbana e turística voltada ao lazer, à cultura e ao esporte, favorecendo a revitalização da Área do Centro Histórico, por meio da 98 Banco Internacional de Desenvolvimento. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 120 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais agregação de valores turísticos e incremento de rede de serviços de bares, restaurantes e espaços para apresentações culturais. (SETUR-MA, apresentação em Power Point, 2010) A região do Aterro do Bacanga é contígua ao Centro Histórico tombado da cidade, seu maior atrativo turístico. Lá ocorrem em fevereiro os desfiles de escolas de samba, mas durante o ano a área é ocupada por algumas das maiores choperias da região central: Kabão, Marujo e Beira mar. As fotos da apresentação mostravam esta região. A região é qualificada como sub-utilizada, arriscada e violenta. A proposta também pressupõe que a área não está voltada ao lazer e à cultura. É perceptível, no projeto, o direcionamento de uma política pública que não engloba o mercado das choperias como parte daquilo que se pode chamar de “valores turísticos”, estando as choperias, por conseguinte, fora do escopo do que o bureau de exibição externa de São Luís (a secretaria de turismo, responsável pela propaganda do estado) entende como parte da cultura legítima do local. A normalidade é definida como aquela encontrada no Centro Histórico, com casario colonial supostamente restaurado e restaurantes voltados para a elite. Brega é um termo estigmatizante. Quando aplicado aos cantores é sinônimo de má musica, feita por semi-analfabetos, em série, e para consumo rápido, geralmente sobre amores perdidos e adultérios99. Segundo o cantor Walfredo Jair, quando o termo brega é usado para se referir a alguma casa noturna, é sinônimo de “onde as putas moram” (Walfredo Jair, 2008) e as casas não somente tocam brega, mas o são, as pessoas dizem que vão “ao brega”. O Kabão é reconhecido como um bar de brega/seresta e com este rótulo vem a pressuposição da violência, da balburdia, da prostituição e da música chinfrim que mencionei anteriormente, e que aparece no discurso da secretaria de turismo. Kabão interpela: Eu acho que não é nem o brega. É os ambiente. Existem as pessoas que eles recrimina muito os ambientes. O Kabão. O cara diz ‘tu vai no Kabão?’ Aí o cara diz ‘eu vou no Kabão’. Tem muitas pessoas que ele torce o beiço, ou torce a cara e diz ‘tu vai no Kabão’, não sabendo que o Kabão, a choperia do Kabão é um lugar muito tranquilo, muito seguro, mais que determinados lugares que eu não vou citar o nome aqui (Kabão, 2008). O PM Tenente Veracruz, comandante da Quarta Companhia do 9º Batalhão, comando que cobre a área central do comércio de São Luís, diz que existe “uma faixa de, se eu não tiver enganado, de uns 12 estabelecimentos que fazem festa (...) porque se você analisar, quase todas elas estão classificadas nessa situação” [de choperias] (Veracruz, tenente da PM, 2010). Sendo que: 99 Ver Araujo, 1995. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 121 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais As ocorrências corriqueiras, é briga, é homem brigando por mulher, é mulher brigando por homem, e aquele bate boca que acaba gerando um desentendimento e vão às vias de fato, mas ocorrência de grande vulto, assim como homicídio ou tentativa de homicídio, não (...) Aqui na área do centro graças a Deus, esses locais são tranquilos. (Veracruz, 2010) E prossegue: Tem pessoas que já classificam o Kabão, o Marujo, a choperia Beira Mar como locais que não deveriam ir, mas se você analisar, nas grandes casas que existem em São Luís, como aquelas que têm ali no lado do Turu, todo mundo vai, bastou você ter seu dinheiro pra pagar e se comportar, eu não sei porquê esse preconceito, né? Se o cara vão ouvir música, vai tomar a cerveja dele, vai se divertir e fazer amizade, eu acho que não tem porque ter essa discriminação. (Veracruz, 2010) Veracruz aponta que a área do Reviver (turística) é mais complicada que a do Portinho (“sub-utilizada”, “perigosa”), com incidência de drogas e de prostituição, relacionadas aos meninos de rua e ao turismo estrangeiro. A área turística do Centro Histórico, tem sua própria guarnição policial, a CPtur, que também cuida das áreas da avenida Litorânea e Lagoa da Jansen (duas outras regiões turísticas longe do centro). Mesmo com a proximidade geográfica, as choperias do Bacanga não fazem parte “da área de restauração”, de acordo com o Capitão Raifran (2010), comandante, em exercício, da guarnição. As choperias não entram no recorte que define os espaços onde o turista pode frequentar e, por consequência, não se enquadram na jurisdição da CPtur. Se ocorre um incidente na choperia Barcanal, que fica do lado oposto da Avenida Beira-Mar, a menos de 10 metros do Centro de Criatividade Odylo Costa, Filho (pois é, esta vírgula está mesmo no meio do nome dele) e menos de 100m da própria guarita da CPtour, ela é atendida pelo 9º Batalhão. Considerando que as obras da Avenida Litorânea são de 1992 e da Lagoa da Jansen, de 2000, o recorte da CPtour não é o da área de preservação histórica, mas a da ideia de que as choperias seriam improváveis pontos de visitação turística, o que é refutado pelo depoimento de vários guias de turismo que recebem solicitação e levam grupos, principalmente, ao Kabão100. Contudo, as agências locais mantém uma relação de distanciamento com as choperias, trabalhando com a noção de cultura do estado como representada pelas festas financiadas pelo estado como as folclóricas (arraiais e demais festas com Bumba Meu Boi) e, recentemente, também o reggae de elite das praias do Calhau e Ponta D’areia. Nenhum folheto turístico de São Luís, ou guia turístico local, que eu tenha consultado, menciona alguma choperia ou seresta como atrativo da cidade. 100 O guia de turismo Sérgio Augusto diz que costuma levar ônibus de turistas para o Kabão. Geralmente grupos de terceira idade, sempre brasileiros. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 122 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais A questão de divulgação desses locais ela ainda não existe. Mas sempre há uma forma de comunicar ao cliente desses pontos específicos, né. Por exemplo, se colocar pra família obviamente não dá pra indicar, mas se for um rapaz solteiro, jovem principalmente, ele é indicado. Porque a gente sabe que é um local agradável especificamente para solteiro. (...) A localização do Kabão é próxima do centro, então o centro tem um movimento maior de marginais, entendeu. Então assim, a gente sabe que se o cara tiver no Kabão. Sei lá ele beber e tal, ficar embriagado, qualquer coisa que for... qualquer confusãozinha que ele tiver vai gerar uma briga muito grande ali. Porque as pessoas realmente que tão ali não podem tá pra brincadeira. Se ele tivesse na Lagoa, também teria briga, só que seria diferente. (Adriano Brito, supervisor comercial de agência de receptivo, 2011) O depoimento de Brito reforça o estereótipo a partir do qual os setores da sociedade que definem os locais da cidade a ser visitados veem as choperias. O Centro é definido como um local com alta incidência de marginais e o Kabão como um local onde o frequentador “não está pra brincadeira”, no sentido de que quem vai ao Kabão possui uma pré-disposição para a violência. Mesmo a violência é vista como diferenciada daquela que pode ocorrer em regiões de elite. A titular na Delegacia de Costumes e Diversões Públicas, Ana Teresa Dualibe, diz que: Na realidade nós só temos problema com essas choperias ali do aterro em tempos festivos, por exemplo, o encontro do Bois ali, no, todo ano no final do ano... 101 no São João , tem aquele encontro ali, sempre o Kabão é, dá um problema porque sempre tem umas festas de reggae ali, né acho que é o Kabão. Então a gente tenta coibir essas festas pra não atrapalhar o festejo junino, né, que tem, o festejo de São Pedro, mas na realidade aqueles locais ali não dão problema, pelo menos o que chegue a nosso conhecimento. (Ana Teresa Dualibe, Delegada da polícia Civil, 2010) O bar em questão é a choperia Marujo, que fica defronte à capela de São Pedro e o pedido para não permissão da festa de reggae partiu “do pessoal da igreja, da organização do evento, da capela de São Pedro, por achar que atrapalha o festejo, mas eu acredito que não atrapalha porque o boi ele é muito alto aquela zoada, acho que não dá pra atrapalhar não” (Dualibe, 2010). A Delegacia de Costumes age no disciplinamento das festas da cidade, no sentido da regularização documental, fiscalização de equipamentos de segurança e outros aparatos, além da obediência à Lei do Silêncio, que em 2008 mudou o horário limite das festas de 04:00 para as 02:00 da manhã. Para a polícia, tecnicamente falando, é importante que o estabelecimento tenha toda a documentação (bombeiros, alvará etc.) e siga as normas de segurança estabelecidas pelas instituições reguladoras, ela inclusa. Além disso, há as denúncias que qualquer cidadão pode fazer 101 Ao final do período de festas juninas, no Maranhão, existe a tradição do encontro dos grupos de Bumba meu Boi dos sotaques de costa de mão, zabumba, baixada e matraca na capela de São Pedro, como agradecimento pela temporada, no dia 28 de junho, véspera do dia daquele que é considerado o protetor dos pescadores e brincantes. O encontro ocorre na praça defronte á capela, e interdita o trafego em toda a região do Portinho, com cerca de 100 mil participantes. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 123 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais sobre a perturbação da ordem pública por parte de estabelecimento, festa em local irregular ou som de origem ambulante (como carros). Sobre as choperias, a delegacia registra reclamações de duas delas na região da Forquilha: Gaúcho e a choperia Marcelo. No fundo moram pessoas, tem casa, residências. Eu já fui lá, já graduei o sonzinho dele, mas o povo acha que ainda tá perturbando e é difícil a gente resolver um problema desse assim porque, ele já até tentou comprar aquelas casas, tanto o Gaúcho quanto a choperia Marcelo, mas perturba, ali perturba. (Dualibe, 2010) A choperia Marcelo é uma das casas mais vigiadas durante o ano, por ser alvo fácil, acesso fácil, é uma das casas mais vigiadas pela polícia, meio ambiente, vigilância sanitária, juizado de menor. (Jânio Maciel, 2008) Em 2010, a Delegacia de Costumes junto à Secretaria de Estado de Segurança Pública lançou o “Projeto Festa Legal”, um projeto Muito amplo que visa coibir o crime de poluição sonora, como também os demais crimes que geralmente ocorrem nos estabelecimentos de diversões públicas tais como: a prostituição infantil, exploração sexual de crianças e adolescentes, tráfico de drogas, porte ilegal de armas, a venda de bebida alcoólica a menores de 18 anos, a portadores de deficiência mental, a pessoas embriagadas, homicídios e outros, através de ações preventivas e repressivas qualificadas. (Folder Projeto Festa Legal, 2010) O projeto consiste em quatro fases: diagnóstico, ciclo de palestras, blitz preventiva e blitz repressiva. “Vou fazer a aplicação desse projeto agora, eu vou abranger Raposa, São José de Ribamar, Maiobão, Cidade Operária, Paço do Lumiar, aí vou pegar Santo Antônio, Vila Palmeira, Vera Cruz, Santa Cruz. São palestras para os donos desses bares.” (2010). Essa relação me leva a crer que estas áreas já foram diagnosticadas como as mais problemáticas. Áreas ditas nobres como Renascença e Calhau já estão fora do projeto, assim como regiões de grande movimento noturno como o Centro Histórico, as praias da Avenida Litorânea e a Lagoa da Jansen. A seleção é feita pela triagem das queixas da população, mais a lista geral de bares fornecida pelas delegacias de cada bairro. A delegacia enviará convites a todos os bares para as discussões públicas. Nota-se, nas ações e depoimentos dos donos de bares e das autoridades, que existe uma imagem pública formada sobre as choperias e que esta não parece ser das melhores. Tanto Kabão quanto o Tenente Veracruz, têm dificuldades em identificar seus detratores, mas falam a partir da má imagem dos estabelecimentos e de locais que os contaminam. Programas como o Festa Legal e o projeto ao BID mostram uma preocupação maior com a área das choperias (mesmo sem nomeá-las); mostram como as choperias e bares de reggae da periferia são alvo de maior preocupação, contrariando o depoimento da Delegada de Costumes, Ana Teresa Dualibe, quando diz que locais como o Kabão são “muito grandes e bem organizadinhos”. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 124 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais O que me leva de volta a Goffman, quando diz, em relação à avaliação de pessoas, que Ao se considerar a fama, pode ser útil e conveniente considerar a má reputação ou infâmia que surgem quando há um círculo de pessoas que tem um mau conceito do indivíduo sem conhecê-lo pessoalmente. A função óbvia da má reputação é a de controle social. (1978, p. 80) Por mais que os agentes públicos declarem que as choperias podem ser organizadas, seus projetos de disciplinamento as tem como alvo. O impedimento de uma festa em choperia, para não atrapalhar o festejo de São Pedro, compõe uma forte imagem do Maranhão tradicional e sancionado sobre o Maranhão ainda não reconhecido enquanto tal. O que é visto na fala de Kabão, novamente: Então existem lugares muito perigosos aqui em São Luís, totalmente que o pessoal não comenta, na área do Turu, na área do Olho D’água. E as pessoas, porque é bairro de quem... bairro nobre. E o Kabão cara vem aqui e pergunta onde 102 é o Kabão. É lá no aterro, lá na 28 , lá onde era a 28. É lá no terminal. Então as pessoas acham e descriminam. Só que a pessoa que vem aqui pela primeira vez, ela vem a segunda, vem a terceira porque ele vai achar um ambiente não é aquilo que ele imaginava. (Kabão, 2008) E no depoimento de pessoas que tiveram em uma choperia pela primeira vez: Eu tinha uma impressão muito ruim da Choperia Marcelo, mas a partir do momento que eu entrei na Choperia Marcelo eu vi que ela realmente não era o que eu imaginava. Porque eu ouvia falar de muita briga aqui fora, muita baixaria, mas hoje eu vejo que aqui dentro é diferente, muita segurança, o atendimento super 10 e, assim, pra mim, foi ao contrário do que eu imaginava. (Sandra, autônoma, 2011) Meus amigos me convidaram pra ir prum programa diferente. Eu disse ‘que programa diferente é esse?’, ‘não, depois tu vai saber’. Quando eu vi eles tavam entrando num lugar meio estranho, entendeu. ‘que lugar é esse aqui?’, ‘esse aqui é o Kabão’, mas eu já tinha ouvido falar coisas estranhas do Kabão, que as pessoas que vão lá são pessoas violentas, chega no Kabão é risca-faca, que as pessoas andam armadas. Aí eu tive tanto medo que eu falei ‘não vou entrar nesse lugar, não vou entrar nesse local! Não, eu tenho medo de morrer, tenho medo desse pessoal, são muito violento, bebem muito, bate, tem briga, tem revólver, tem faca’. Aí ele falou assim, ‘mas vamos’. Aí quando eu cheguei na porta eu entrei com tanto medo, com tanto medo, e eles atrás ‘cuidado, Olívia’, os cara me revistaram, as mulheres me revistaram, os cara revistando eles. quando eu cheguei no ambiente, eu fiquei meia tensa, mas depois eu comecei a olhar família dançando, olhei casais dançando bem assim, aconchegante, com um clima todo romântico. Eu não olhei nada de briga, não olhei nada de faca, não olhei nada de povo brigando, e hoje eu tenho outra visão do Kabão. Hoje eu iria, se me convidassem meus filhos e o meu marido eu iria pro Kabão sem medo, entendeu, porque eu fui lá e vi que não tinha nada disso. (Olívia Franse, jornalista, 2011) 102 A rua 28 de Julho era conhecida como zona de baixo meretrício. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 125 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais A maioria do público frequentador destas casas não classifica a música que toca no lugar como brega, e não questiona a sua qualidade103. O que para os não frequentadores é somente “brega”, para o público interno é o forró, a lambada, o bolero, o arrocha, a MPB e o brega. O símbolo brega, para os não frequentadores, engloba tudo que é executado na choperia. Para os frequentadores, existe uma gramática extensa de estilos musicais e modos de fruição, análogo à relação identificada por Goffman como “iguais e informados” (1978). Iguais e informados seriam agentes que, de alguma maneira, se relacionam com outros agentes de má fama. As prostitutas, por exemplo, carregam uma má imagem social em vários lugares (mulheres de vida fácil, vadias etc), mas os assistentes sociais ou antropólogos que trabalham diretamente com elas têm mais informação para proceder ao julgamento (informados) e uma outra prostituta possui ainda mais (igual). Os representantes de setores da sociedade que formulam discursos a respeito das choperias não mantém esta relação, e as julgam com base no estigma e na má fama identificada por diversos depoimentos transcritos acima. Além disso, os empresários, músicos e o público da choperia opera a partir do status de estigmatizados, compondo narrativas onde a posição defensiva é predominante. Os empresários se apressam em declarar a formalização da casa, sua preocupação com segurança e higiene. Nas propagandas da choperia Marcelo na TV, as qualidades também são os do “ambiente familiar” e o da “segurança”; os cantores dizem que apesar de ser casa de seresta, as grandes choperias são seguras e de ambiente familiar, enquanto o público tece comentários como os de que nunca viram nada de violento nas casas. Uma boa parcela dos músicos, por outro lado, opera não somente a partir de seu status de estigmatizado, mas dentro da lógica na qual “a pessoa estigmatizada aprende e incorpora o ponto de vista dos normais, adquirindo, portanto, as crenças da sociedade mais ampla em relação à identidade e uma ideia geral do que significa possuir um estigma particular (GOFFMAN, 1978, p. 41)”. É sobre como este processo de construção e definição de uma normalidade para a música no Maranhão, que leva os músicos associados à seresta e ao brega a construir suas narrativas, que falarei no capítulo a seguir. 103 Ao entrevistar seresteiros, cantores das choperias e púbico, um dos fatores apontados como motivador para ir ao lugar é exatamente o de que a música é de qualidade. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 126 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais 04. A SERESTA E A IDENTIDADE MUSICAL MARANHENSE Quem visita a cidade de São Luís do Maranhão, caso venha por alguma agência de viagem, terá farto contato com a música folclórica local. Será indicado para ir a alguma festa de reggae e ouvirá, em algum momento, nomes como o de Zeca Baleiro, Ferreira Gullar, Alcione Nazaré ou Rita Ribeiro, como personalidades das quais a população de São Luís se orgulha. Ao abrir seus folhetos e brochuras, este visitante saberá que a cidade é dotada da “mais rica cultura popular do país”, que se transforma, nos meses de junho e julho, “em um gigantesco arraial”. Saberá que o bairro da Madre Deus é o berço da cultura do Maranhão e lerá sobre um ou outro cantor popular, geralmente associado à sigla MPM104. Contudo, cantores e compositores da música brega, ou o movimento relacionado às serestas105, não entram nos discursos oficiais em relação ao Maranhão, não são objeto de políticas públicas de fomento à música popular, na forma de editais ou apoios diretos, não são contemplados nos prêmios de música local. Raramente aparecem nos cadernos culturais dos diários da capital, apesar de, como tentei demonstrar ao longo deste trabalho, mobilizarem uma significativa parcela da população da cidade em shows, discos, vocabulário e modos de interação nas ruas. Desde o começo desta pesquisa, me parecia importante compreender o que provocou o afastamento dos músicos das serestas (e de suas canções) daquilo que chamo de identidade musical maranhense. Entender como um movimento que mobiliza uma significativa parcela do público frequentador de casas noturnas na cidade, que encontrava no estado sua popularização e fonte de produção para o restante do país, era não só marginalizado no universo dos músicos de outras esferas, mas tratado como se não existisse nas demais esferas discursivas de poder tanto financeiro (o estado), de legitimação (os meios de comunicação), quanto de reconhecimento (os prêmios). A pesquisa de campo e as entrevistas realizadas apontaram para algo ainda mais intrigante: a maioria dos agentes envolvidos com as serestas ou o brega, de alguma maneira, não se sente parte desta identidade musical maranhense, excluindo-se dos processos relacionados àquilo que diga respeito ao estado. Estes depoimentos dão a entender que existe, ao menos na narrativa daquele que textualmente se exclui, algo que ocupe o lugar da verdadeira música maranhense, acionada por estes agentes como o parâmetro de normalidade (no sentido goffmaniano) a partir do qual tecem suas histórias de vida e situam seu local no escopo da canção e da cultura local. 104 A fonte destas informações, novamente, é meu acervo de brochuras e folhetos turísticos do Maranhão. Não só eles. Uma banda de rock uma dupla sertaneja provavelmente não entrariam nos folhetos, matérias ou propaganda do estado. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 105 127 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Desta forma, é necessário entender o que é denominado de música maranhense para estes agentes, analisar como ela é formatada, como se dá o seu processo de afirmação por parte das elites, e consequente exclusão/marginalização dos demais. Este capítulo procura analisar, através de depoimentos de diversos agentes envolvidos com música popular, como ocorreu este processo de construção de uma identidade musical maranhense, e como os cantores populares, antes incluídos no escopo da música do estado, passam a ser excluídos dela e a excluir-se. Quais os meios de legitimação que formataram a música conhecida como MPM? Qual o papel do folclore e da mídia nesta discussão? Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 128 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais 4.1. AMPLIFICADORAS, BOLEROS E O BANDEIRA DE AÇO Nos idos de 1960, a juventude e velhitude de São Luís ouvia música gravada de três maneiras: pelo rádio (maior meio de comunicação da época, que nem todas as famílias possuíam), discos de vinil (difíceis e caros) e por sistemas de sons públicos chamados de “amplificadoras” ou “rádios de poste”, como a Voz Potente do Tirirical. Instaladas em caixas amplificadas penduradas em árvores, postes e fachadas pelos bairros da cidade, como minúsculas rádios comunitárias, para usar um conceito contemporâneo, que emitiam reclames publicitários, recados de amor, convites para eventos como missas e, em grande parte sua programação, boleros. Estas rádios estão presentes nas narrativas de trajetória dos mais diversos agentes sociais envolvidos com música e que estavam vivos nos anos 1960. Desde aqueles que passaram a infância em famílias de classe média, até os que demonstraram ter crescido em lares periféricos ou com dificuldades financeiras, dos que estudaram nas escolas mais ricas aos que não passaram por uma formação escolar tão abastada. Mas antes a música que tocava, era a música que meu pai ouvia muito em casa, que eram os clássicos, até hoje: Orlando Silva, Nelson Gonçalves. Todos os clássicos eu ouvi muito, né. Então assim. Era engraçado, passava um sentimento quase de fim de tarde, sabe? De melancolia. Eles adoravam cantar. E uma coisa que sempre me marcou, e depois eu fui entender porque que eu gosto tanto de sofisticação de harmonias e tal. É que a música brasileira sempre foi, principalmente dos grandes cantores, acompanhados com big bands. (Gilberto Mineiro, radialista e produtor cultural, 2011) Eram as rádios comunitárias, que tinha um locutor de voz austera, que oferecia as músicas, que eram bolerões, na verdade. Bolerões de Carlos Alberto, de Roberto Muller, de José Augusto, aquele antigo Zé Augusto, não esse Zé Augusto que tá aí hoje nas paradas. Waldick Soriano, essencialmente muito Waldick Soriano, Nelson Gonçalves, era isso que a gente ouvia. Era basicamente muito bolero. (Cesar Roberto, radialista e cantor 2011) Um serviço de auto-falante. Era um pau com 3 bocas que saiam assim, que vinha da Madre Deus. Aí a Madre Deus ficava lá mais pra cima, bem longe, mas o vento trazia o som. (...) e ali eu ouvia de Luís Gonzaga a Teixeirinha (...) tocava muito Waldick Soriano e eu gostava do Waldick pra burro; Altemar Dutra e tanta gente assim que tocava. (Papete, cantor e músico, 2011) A música, na chamada Era do Rádio (entre 1920 e 1950), pedia cantores de voz estrondosa, que compensasse as parcas tecnologias de captação de som, contribuindo para legitimar aquilo que se conhece como “cantores de vozeirão”. Cantores de grande expressão popular como Nelson Gonçalves e Waldick Soriano eram executados diversas vezes por dia, seguindo a tradição de outros como Orlando Silva e Dalva de Oliveira. Suas canções falavam de amor em seus mais diversos aspectos, de coisas “da vida” em geral. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 129 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais O bolero era o gênero mais executado e foi parte importante da formação musical dos entrevistados para esta pesquisa, mesmo daqueles para os quais o estilo permanece associado a uma ideia saudosista, que remete à infância, ou os que veem se referem às serestas, festas nas quais o bolero é predominante, como festas de brega. Com os anos 1970, novos ritmos começam a tomar conta do espaço radiofônico da cidade e, timidamente, o rock e outros estilos mais embalados ganham popularidade. Cabe ressaltar que estas tendências se instalavam em São Luís de maneira mais lenta que no resto do país, e era raro que chegasse à cidade um disco no período de seu lançamento. Eu fui o primeiro cara a tocar [no rádio] o ABBA, um dos primeiros a tocar Beatles também, Rolling Stones, um monte de som novo que até então se tocava bolero, praticamente, né. 90% era bolero. Aqueles bolerões que aconteciam, né? Waldick era o cara, ele vinha aqui fazer show todo fim de semana praticamente. (Cesar Roberto, 2011) Gilberto Mineiro, Cesar Roberto e Papete são três bons exemplos de personagens de uma mesma geração que atuariam na música maranhense a partir dos anos 1970/80. Três personagens de trajetórias distintas, mas envolvidos na criação daquilo que seria (re)conhecido como a verdadeira música do Maranhão: a MPM; Gilberto como radialista e produtor musical, Cesar como radialista, cantor e compositor, e Papete como cantor. Três personagens que cresceram num mundo de forte presença do bolero. Ao entrevistá-los, e a tantos outros agentes envolvidos com a música do Maranhão nos anos 1970/80, somente Papete e Cesar Teixeira citam em sua infância a presença de algum tipo de música folclórica/religiosa/africana (no caso, o tambor da Casa de Nagô) como formadora de sua “argamassa musical maranhense” (Papete, 2011). Os demais mencionam a jovem guarda, o bolero e mesmo o rock and roll e o baião como aquilo que mais ouviam na juventude. A produção fonográfica de música folclórica do Maranhão só teve início nos anos 1970, com alguns grupos de Bumba Meu Boi, patrocinados pela prefeitura de São Luís (no mandato de Roberto Macieira. Ver NETO, 2011) e pela gravadora Discos Marcus Pereira. Em 1972, sob a direção de Américo Azevedo Neto, o Bumba Meu Boi da Madre Deus gravou uma bolacha. Sobre isso, consultar o interessantíssimo depoimento de Azevedo Neto em seu livro “Festas Fogos, Fogueira e Fé”. Se “hoje todo ajuntamento de brincantes gera um disco” (NETO, 2011, p. 93), antes dos anos 1990, pouquíssimos artistas locais, dos mais diversos gêneros musicais tiveram inserções fonográficas. Considerando que o folclore, particularmente o Bumba Meu Boi, não estava tão presente na infância destes personagens, como entender que esta manifestação, desde sua geração, se imponha sobre tudo aquilo que é chamado de maranhense? Onipresente nos discursos turísticos, Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 130 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais governamentais, jornalísticos, acadêmicos106 e na boca das pessoas em conversas de bar, o Bumba Meu Boi é amplamente apresentado como a “verdadeira” expressão daquilo que é maranhense, mesmo por quem critica seus mais diversos usos e apropriações, estando esta posição naturalizada para estes agentes. Portanto, para entender a canção que se faz sob a égide do folclore, é preciso antes tentar entender as origens da valorização deste folclore para e pelas elites. A música folclórica, de origem africana, escrava ou indígena, teve lá seus rasgos de maledicência para as elites locais, e era (re)conhecida como festa de marginais, vadios e joguete de baixíssima cultura. Parte do discurso de valorização do Bumba Meu Boi, inclui a menção constante ao fato de que o folguedo ter sido impedido de adentrar os bairros de elite do centro da cidade. Esta postura foi revista (oficialmente) dentro do discurso político de modernização que acompanha a ascensão do Sarneyismo107, e inclui um revés que opera a “transformação [do bumba meu boi] em símbolo maior da identidade cultural do Maranhão, em virtude da atuação de intelectuais e órgãos oficiais de cultura (como também dos próprios brincantes); transformação que produziu um ‘silenciamento’ da história anterior de conflitos entre os brincantes de bumba-meu-boi e as elites locais”. (COSTA, 1999) A jornalista Andréa Oliveira analisou a trajetória de alguns grupos de Bumba meu Boi de São Luís no seu livro “Nome aos Bois” (2003), no qual mostra como ocorre não só o processo de aceitação inicial do Bumba Meu Boi por parte das elites, mas como este processo passa a determinar a maneira como a brincadeira é realizada. Para ela, é no governo de José Sarney que começa a prática de apresentar grupos de Bumba-meu-boi no palácio do governo, como um produto exótico para turistas e visitantes oficiais. O pagamento era sempre em garrafas de cachaça. Nas apresentações em locais públicos e privados, a moeda da época era, além da cachaça, o transporte de brincantes, em caminhões. Hoje em dia esse transporte é feito em ônibus e o cachê é garantido em dinheiro, dentro de um orçamento determinado para o apoio aos grupos durante o festejo junino. (OLIVEIRA, 2003, p. 63) É a partir desta aceitação oficial, da inserção do popular na agenda oficial do estado e nos orçamentos das secretarias de cultura, que ocorre a folclorização, ou a transformação do folclore, de algazarra de meliantes, a autêntica música local, sancionada pelas vozes dominantes. José 106 Um exemplo interessante de como o Bumba Meu Boi aparece em alguns livros acadêmicos está já no título do livro da então Superintendente de Cultura Popular do Estado do Maranhão e Presidente da Comissão Maranhense de Folclore, Maria Michol Carvalho: “Matracas que desafiam o tempo” já apresenta o Bumba Meu Boi com certa veia romântica, enquanto o prefácio do mesmo livro, assinado pelo folclorista e poeta Valdelino Cécio, anuncia a brincadeira como “a manifestação popular mais tipicamente brasileira”. (Carvalho, 1995). 107 Sarneyismo é como se convencionou chamar a corrente política que vigora no Maranhão desde os anos 1960, e que tem como figura central o hoje presidente do senado José Sarney. Sobre isto ver (COSTA, 2006). Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 131 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Sarney faz seu discurso de posse como governador em 1966,108 ao som de centenas de matracas. O folguedo que “causou, desde o início, dissabores, censura e proibição da ordem dominante, justamente por ser virulentamente provocador e ‘atentar’ contra os bons costumes da sociedade” (Regina Prado, apud OLIVEIRA, 2003, p. 61), virou aquilo a partir do qual se descreve o ser maranhense. Não à toa, uma festa de forte referência no fundo agropastoril-colonial, que, segundo a análise de Wagner Cabral, reproduz os locais sociais de colonizador, escravo, índios e demais personagens. Segundo o sociólogo Peter Fry, que analisou o samba e o candomblé, em seu processo de transformação de cultura local para cultura nacional, “quando se convertem símbolos de ‘fronteiras’ étnicas em símbolos que afirmam os limites da nacionalidade, converte-se o que era originalmente perigoso em algo ‘limpo’, ‘seguro’ e ‘domesticado’” (FRY, 1982, p 53). O processo de aceitação do Bumba Meu Boi – e conseguinte transformação da brincadeira em símbolo estadual – altera a própria forma de fazer as brincadeiras e valoriza seus aspectos mais europeizados, como o chamado sotaque de orquestra, que é a vertente do Bumba Meu Boi com a qual grande parte da MPM dialogará. Estamos falando de um contexto de discursos de modernização pela busca das raízes “verdadeiras” do Brasil, que remete ao modernismo da era Vargas (1930 a 1945) e ao trabalho de mapeamento capitaneado por Mário de Andrade, que considerou o Bumba Meu Boi como “a mais estranha, original e complexa das nossas danças dramáticas” (apud COSTA, 1999). Durante a ditadura militar (1964 a 1985), estas noções foram postas nas baionetas da fresta da canção de protesto político (que futuramente seria conhecida como MPB). Também os militares fizeram uso do popular, na tentativa de revisão histórica que culminaria na tentativa de sedimentar uma identidade que fosse “autenticamente” brasileira (ORTIZ, 1985). Existia um novo conceito, um novo conceito de música onde as pessoas faziam as canções de protesto em cima de um gênero musical brasileiro autêntico. Principalmente o redescobrimento da música nordestina, da melodia do nordeste, da coisa do nordeste. Todos os compositores iam muito em cima disso. Não se fazia música de protesto em samba. As músicas de protesto eram feitas em ritmo de baião, de xaxado, de coco. (Papete, 2011). Estes gêneros musicais “brasileiros autênticos” que, segundo Papete, direcionavam a música antiditadura, também eram usados pela ditadura para construir seu tipo ideal brasileiro, o que me leva a concordar com o sociólogo Renato Ortiz, quando diz que “os movimentos populares 108 O discurso de posse pode ser visto e ouvido, parcialmente, no documentário Maranhão 66, de Glauber Rocha, disponível no site youtube.com. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 132 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais não coincidem com as expressões populares. Na realidade, eles agem como filtro, privilegiando alguns aspectos da cultura, mas esquecendo outros”. (ORTIZ, 1985, p 142) Ortiz (1985) tenta entender, como diversos momentos e movimentos ao longo da história do país utilizaram elementos reconhecidos como de cultura popular para se afirmar através de uma ideia de cultura autêntica. Se as elites brasileiras, no século XIX, estavam influenciadas pelas ideias de higienização europeias, outros momentos passaram a integrar aquilo que passou a ser visto como “do povo”, e estes elementos foram acionados como a argamassa da ideia de brasilidade por diversos regimes e correntes ideológicas ao longo da história do Brasil (ORTIZ, 1985). Fry levanta a hipótese de que uma singularidade brasileira, o fato de os símbolos nacionais serem coletados pelas elites entre manifestações subalternas, é “politicamente conveniente, um instrumento para assegurar a dominação mascarando-a com outro nome” (FRY, 1982, p 52). As elites sancionam as manifestações culturais populares, ao mesmo tempo que tomam controle delas e dos dividendos que elas geram, seja através das políticas públicas voltadas para a cultura, do apadrinhamento de grupos folclóricos ou da relação de interdependência que se estabelece entre os produtores destas manifestações e aqueles representantes das elites que intermediam sua legitimação. (FRY, 1982) É sob este ponto de vista que observo a alegada mudança de local social das festas folclóricas no Maranhão e, em particular, do Bumba Meu Boi, em sua inclusão como referência constante na música popular feita pela e para as elites. Os grupos tradicionais de Bumba meu Boi começaram a adaptar seu repertório, indumentária, tempo de apresentação e outros aspectos à sua nova posição social e de mercado. As programações de arraiais, as apresentações por contrato e a expectativa dos visitantes foram aos poucos “domesticando” o boi e formatando aquilo que se vê hoje no período junino (grupos menores com índias de corpos voluptuosos e índios “sarados”, vestimentas mais carnavalizadas e um formato de espetáculo para arraiais em que o boi aparece sem o auto). Esta mesma classe média que misturava o Bumba meu boi em suas músicas também se valia dele para outras formas de expressão, como a dança e o teatro. O exemplo mais claro dessa tendência (e o que mais consequências pode ter tido) é a Companhia Barrica, criada na esteira da valorização do folclore como identidade maior do maranhense. Criada em 1985, Cia Barrica viajou o Brasil de norte a sul e participou de festivais em vários cantos do mundo. No mesmo ano, com o espetáculo O Boizinho Barrica à luz de uma estrela, visitou Diamantina e belo Horizonte, em Minas Geraes. Em seguida, participou de eventos de turismo em Sergipe, Bahia, Pernambuco e Distrito Federal. Em 1988 foi lançado o primeiro disco, ainda em vinil, com o nome do primeiro espetáculo. Na esteira do sucesso local, o grupo participou, em 1989, do primeiro programa em rede nacional, o Som Brasil, da Rede Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 133 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Globo. Volta a viajar pelo Brasil e visita São Paulo e Rio de Janeiro, época que lança seu segundo LP, Baiante. O caráter do grupo toma forma com o musical Bicho Terra – Peleja e Folia em São Luís, seguindo do disco Guizos, do Bicho Terra, nome dado ao subgrupo da Cia Barrica responsável pela parte carnavalesca. 1992 é o ano da primeira viajem internacional, à Alemanha, e também marca o lançamento de dois discos: Bem Maranhão, que reúne festejos juninos e folias de carnaval, e Brincantes de Rua, só com a parte junina, o Barrica propriamente dito. Aberta a porta internacional, o grupo tem no currículo viagens a Argentina, Coréia do Sul, Canadá, França, Japão, Grécia, Estados Unidos, Portugal e Itália. (OLIVEIRA, 2003, p. 36) A Companhia Barrica projeta uma imagem do Maranhão fora do Maranhão. Exatamente a deste estado onde “o boi é a lei”109, apresentando uma mistura de ritmos e danças num formato teatral (não terreiral) que é visto pelo público não só como o autêntico folclore do Maranhão, mas como o Maranhão sendo uma terra de folclore110. Para alguns contratantes, o Barrica é muito mais conveniente que um boi “de raiz”, considerando a suposição de que estes grupos, como empresas, são rígidos no que tange o cumprimento de contratos, horários, tempo de apresentação, comportamento (por exemplo, o consumo de bebida alcóolica) e outros fatores. Em meus mais de 15 anos como operador de receptivos locais111, nunca contratei um grupo de dança que não fosse para-folclórico112, porque no que interessa à operação turística (e a forma como a indústria funciona), fica-se sempre com a opção que se conhece e que fale a mesma língua, que se coadune com os acordos implícitos de horário, disciplinamento etc. E aqui vale uma história pessoal. Certa vez, em uma recepção no Palácio dos Leões, onde trabalhava como intérprete para representantes do Banco Mundial em visita ao Maranhão, houve uma apresentação parafolclórica. Era domingo de manhã e um pequeno grupo de integrantes do Barrica executou uma série de canções do imaginário popular maranhense, passando por toadas de Bumba meu boi, canções (já) canônicas do disco Bandeira de Aço e outras da chamada MPM. As índias chacoalhavam os ombros nus em direção aos convidados e os pegavam para dançar. Os visitantes pareceram gostar muito, e um secretário de estado ao meu lado comenta: “Domingo de manhã. Se não fosse o Barrica a gente tava arrumado!”. 109 A banda Tribo de Jah cunhou o verso “no fim de semana o reggae é a lei”. Justifico o trocadilho pela aproximação que aqui faço entre os discursos acerca do processo de legitimação tanto do boi quanto do reggae. 110 Novamente os folhetos turísticos reforçam esta afirmação. 111 Trabalhei no mercado turístico, e ainda hoje presto serviços ao trade. Esta experiência me proporcionou uma série de contatos com discursos e práticas acerca das identidades do Maranhão. Estes discursos estão evidenciados nas práticas de propaganda e convencimento para atrair o visitante à cidade, que se constituem, em poucas palavras, na construção de uma outra cidade, isenta de suas situações e locais desagradáveis, e desprovida de tudo que possa parecer demasiadamente universal, no que concerne sua cultura. Assim, para o discurso turístico, são todos os maranhenses brincantes de boi, como eu poderia me tornar, se isto me valesse gorjetas maiores, assim como assumiria, em minutos, qualquer identidade esperada ao ser maranhense que agradasse meus clientes, desde que eles fossem embora e me deixassem seu dinheiro. 112 Para-folclóricos são companhias de dança ou grupos que usam aspectos das danças folclóricas para a criação de um espetáculo, estilizando o folclore. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 134 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais A frase se sustenta na confiança que, para estes agentes, o Barrica inspira, e talvez também no fato de que o criador do Boi Barrica, José Berreira Godão, seja (até os dias de hoje), o secretário de cultura. Os contratantes não podem correr o risco de contratar um boi que, segundo sua presunção, fure o contrato, ou apareça com má aparência. Outro grupo parafolclórico que pode servir como exemplo desta diferença entre o boi tradicional e o boi para-folclórico é o Grupo de Arte e Cultura Popular do Maranhão Boi Pirilampo, conhecido como Boi Pirilampo. Criado em 1995 com a proposta de estilização do Bumba Meu Boi. O texto de apresentação do grupo em seu site é bastante sintomático: intitula-se não como grupo folclórico mas como um grupo de cultura popular. O traje utilizado, que é sempre estilizado em todas as suas características, comumente não usa penas ou veludos, adereços essenciais para a caracterização de qualquer grupo de bumba meu boi, ao contrário o Pirilampo usa punhos de rede bordados com canutilhos, miçangas e apiteis, plumas e adereços com os mais diversos enfeites. Sua música traz a introdução de instrumentos acústicos e de cordas em arranjos sofisticados com a mais alta tecnologia do ramo musical, além disso seus instrumentos mais rústicos como pandeirões, pandeiros, tambor onça e zabumbas não usam mais peles, e sim napas acrílicas que dispensam o uso do fogo para seu afinamento. O Boi Pirilampo tem como características principais a representação do Bumba meu boi e apresenta em seu espetáculo os quatro sotaques existentes no Maranhão, apresentando, também, todos os personagens existentes no auto do boi (Chico, Catirina, amo, burrinha, boi, vaqueiro, cazumbás, índios, Índias e rajados). O Boi Pirilampo é hoje a maior atração dos festejos juninos e caiu no gosto popular por uma série de fatores, a começar pelo sentido de organização e disciplina que orienta a brincadeira, mas isso é apenas um aspecto. O momento: O Sucesso do Boi Pirilampo é um movimento contagiante nos dias atuais, a bem da verdade nunca se viu um grupo folclórico tomar a dianteira com tanta rapidez. Nos treze anos que se seguiram à sua primeira apresentação o Pirilampo, sempre aparece com destaque na mídia local e nacional. (www.boipirilampo.com.br/historia.htm. Acesso em abril de 2012) O Boi é aquilo que as elites detentoras dos meios de legitimação da identidade local querem mostrar e projetar sobre o Maranhão, desde que devidamente domado e castrado de seus anteriores surtos de turba e barbárie. Não é mais um gado extensivo dos anos 1970, é um gado intensivo, racionalizado e devidamente vacinado contra qualquer enfermidade ao comensal. E depois os bois morreram. Porque discurso é que o boi Barrica era mais fácil, quando chegava um navio, apresentar nos hotéis, que os outros bois era muito grande trazer o boi de Maracanã. E uma vez eu vi um cara do boi da Madre Deus chorando e dizendo ‘ele tá acabando, esse desgraçado tá acabando com os bois antigos de São Luís. Tá acabando com o boi da Madre Deus. (Gilberto Mineiro, 2011). Com a valorização do folclore, no final dos anos 1970, a canção maranhense se “desabolera” e passa a beber em fontes mais engajadas/modernas, que bebem em fontes ditas tradicionais. Assim, as gerações de compositores maranhenses (particularmente de São Luís) dos anos 1970, Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 135 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais constituía-se sob o signo da repressão militar, da canção engajada e do “delírio com coisas reais”113, em um Maranhão de amplos discursos modernizantes, que incluíam a valorização da “cultura do povo”. O maranhense João do Vale, nos anos 1960/1970, esteve integrado ao mercado musical associado à MPB e aos festivais, como um compositor, não de canções que carregassem o rótulo de música maranhense, mas como alguém dentro deste contexto de valorização daquilo que poderia representar, para a época, a voz do povo. Nonato e seu Conjunto, Claudio Fontana e Alcione foram outros artistas que tiveram sucesso no mesmo contexto (o da ditadura), sem que seu trabalho fosse batizado de “música do Maranhão”. Nonato e seu Conjunto era uma banda de baile, com influência de black music; Claudio Fontana fazia música romântica, sendo gravado por Roberto Carlos; e Alcione era sambista. Nos anos 1970, “para nós de São Luís, um disco era algo misterioso e distante” (NETO, 2011, p. 95), poucas inserções fonográficas foram realizadas por cantores e compositores locais que não se dispusessem (ou não dispusessem) de recursos para sair do estado ou associar-se a um selo/gravadora. Havia, na cidade, os festivais de música popular e shows, que era onde cantores e compositores ganhavam alguma visibilidade. O primeiro disco fruto destes movimentos foi lançado em 1972. Trata-se da coletânea das 12 canções selecionadas (entre mais de 200) para o I Festival de Música Popular Brasileira no Maranhão, realizado em setembro do ano anterior, no Ginásio Costa Rodrigues, com patrocínio da Prefeitura de São Luís e da Fundação do Bem Estar Social. O álbum foi gravado no Rio de Janeiro e não conta com seus compositores como intérpretes. A apresentação do disco já dá a entender o começo “dessa música que quase quarenta anos depois, enfim, é chamada de MPM.” (NETO, 2011, p. 95) A prefeitura de São Luís, promotora do I Festival de Música Popular Brasileira no Maranhão, sente-se, ao realizar este disco, inteiramente compensada. É a juventude do Maranhão, cantando inspirada na cultura de sua terra, a única no Brasil onde ainda estão vivas as raízes da nossa formação: indígena, africana, ibérica. (prefeito Aroldo Tavares, encarte do disco I Festival da Música Popular Brasileira no Maranhão, 1972) 113 Verso do cantor cearense Belchior, símbolo da canção engajada. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 136 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Figura 19 – A música do Maranhão antes da MPM. Segundo Américo Azevedo Neto, promotor do festival, e que na época ocupava a pasta de turismo da prefeitura, o festival mobilizou toda a cidade, com transmissão ao vivo pela TV Difusora e tendo nomes associados à MPB como jurados (Capinam, Jards Macalé e Wagner Tiso). As quatro noites reuniram um total de 20 mil pessoas, que torciam efusivamente por suas canções prediletas, como era comum nos festivais. Nele foram apresentados cantores e compositores que, anos depois, integrariam o movimento que seria (por sua vontade ou não, quer se considerem parte dele ou não) chamado de MPM: Sérgio Habibe, Ubiratan Sousa, Jordano Mochel, Zé Américo. Outros nomes que ganhariam vulto na canção local décadas mais tarde são os de Antônio Vieira e Lopes Bogéa (naquela época, integrantes de grupos estilo regional). Contudo, O festival, na verdade, nada tinha com bumba-meu-boi que, na época, não gozava nenhum prestígio entre os compositores maranhenses. E tanto isso é verdade que, ao contrário do que seria atualmente, apenas uma das canções classificadas para se apresentarem nas eliminatórias utilizava um dos ritmos de boi. E ela, apesar de cenicamente apoiada pela presença de um ou dois caboclosreais, o que, naqueles tempos, se constituía em uma novidade para a plateia, nem chegou a ser classificada. (NETO, 2011, p. 98) O preconceito [em relação à Madre Deus e ao Bumba meu Boi] que havia já era anterior. Quem que ia pra Madre Deus brincar Bumba Boi? Ninguém! Que ali nego dizia ‘não, ali só tem faca, briga de faca, peixeira, não sei o que que tem’ (...), como meu pai morava lá, eu tinha que obrigatoriamente ter contato com esse pessoal, e adorava o ritmo. (César Teixeira, cantor e compositor, 2011) Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 137 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais O que me interessa pontuar é que, no começo dos anos 1970, a associação entre a música popular urbana e as manifestações folclóricas locais ainda não havia acontecido, e os compositores, cantores, bandas, artistas e grupos estavam integrados, apesar de suas diferenças, como músicos brasileiros, como informa o nome do festival. Não se tratava da música do Maranhão, mas da música brasileira feita no Maranhão, sem intenção clara de distinção daquela canção com base nesta ou naquela característica. Ao longo da década, surgem vários movimentos, associados a diversas formas de expressão, que constituem uma cena cultural caracterizada pelo que Papete menciona como a fusão entre o discurso de esquerda e as manifestações populares, sendo o Laborarte um dos mais relevantes. Outros discos foram lançados ao longo da década, entre os quais destaco o trabalho do compositor e cantor Chico Maranhão, que começa sua carreira fora de São Luís, em peças de teatro e festivais, e estreia em disco com “Maranhão e Renato Teixeira” (disco brinde, 1969), lançando em seguida os discos solo “Maranhão” (1974), “Lances de Agora” (1978) e “Fonte Nova” (1980), todos pela Discos Marcus Pereira. Estes álbuns, contudo, não são apontados pelos entrevistados e na crônica da música do Maranhão como discos da MPM, ou discos de música maranhense (apesar do próprio Chico Maranhão se considerar parte do movimento). Estes discos também não apresentam uma grande pulsação boieira, para usar uma categoria do próprio Maranhão. O disco que é apontado como divisor de águas neste panorama se chama Bandeira de Aço, de Papete, lançado também pela Discos Marcus Pereira, em 1978. Bandeira de Aço fazia parte de um projeto cuja intenção era “documentar e divulgar música brasileira de qualidade através de gêneros inéditos ou esquecidos” (Marcus Pereira, encarte do disco Bandeira de Aço, 1978), movido por uma consciência que estava “enfaticamente registrada em toda literatura musical de Mário de Andrade (Idem)114. O disco reúne composições de quatro jovens locais: César Teixeira, Josias Sobrinho, Ronaldo Mota e Sérgio Habibe, todos, então, na casa dos 20 anos. A bolacha foi sucesso nacional e tocou amplamente nas rádios. Papete era um cantor requisitado e o disco, para a juventude local, soava algo messiânico, como “a primeira vez que a gente se ouviu”, na definição de Ribamar Filho, poeta ativo na época e hoje dono do sebo Poeme- 114 Marcus Pereira gravou, por seu selo, o projeto “Cartografia musical do Brasil”, que contou com o Maranhão no volume “Música Popular do Norte”, de 1967. Bandeira de Aço foi gravado após este projeto, mas ainda carrega seu espírito, assim como se pode notar em outros discos de maranhenses gravados pelo selo, como Lances de agora (Chico Maranhão, 1978, que possui uma aura mística atrelada à ideia de patrimônio, por ter sido gravado “na sacristia da Igreja do desterro”. Vários dos meus entrevistados não lembravam do disco, mas lembravam deste fato). Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 138 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais se, no centro histórico da cidade115. O Bandeira de Aço apresentava a “vanguarda” ludovicense num pedaço de disco de acetato para todo o sempre. Uma música que se propunha universal, com o pé no mundo e a cabeça em seu quintal, sofisticada e comparável aos grandes nomes de sua época dentro do mercado e das discussões da música brasileira. Eu tava em Teresina e o Papete tocava 15 vezes por dia no rádio. 15 vezes. Ligava o rádio em Teresina tava o Papete tocando, e eu nem. Eu vim descobrir que o Papete era maranhense quando eu voltei de Belo Horizonte pra cá. Eu ouvia Papete, mas o cara não dizia “do maranhense Papete”. O Papete era um artista nacional pra mim, lá em Teresina, como o Milton Nascimento. (Gilberto Mineiro, 2011) O disco não teve um lançamento em São Luís e Papete não lembra de ter feito shows com ele aqui naquela época. Lembra sim de um sósia seu, que carregava seu nome e andava pelo Maranhão cantando as canções do Bandeira de Aço. Já morando há mais de uma década no sul do país, Papete trabalhava como músico percussionista para vários artistas, além de ser residente no bar Jogral, e já havia gravado uma bolacha instrumental chamada “Papete berimbau e percussão”, pela mesma Discos Marcus Pereira, que lançou seu nome no mercado fonográfico. E foi Chico Saldanha que me apresentou à música maranhense. Até então [final dos anos 1970] eu era ignorante total em termos de música maranhense. Não existia a música maranhense. Apareceram 3 ou 4 compositores fazendo uma música maranhense falando do jeito e do ser maranhense, a saber: Josias Sobrinho, Cesar Teixeira, Ronaldo Mota e Sérgio Habibe. E eu tava um dia na casa do Chico Saldanha e ele começou a cantar Catirina. Eu falei ‘que música é essa?’, ‘é uma música dum pessoal aí’, eu falei ‘Chico, me canta aí essa música’, e ele cantou e falou ‘rapaz, você precisa ouvir as outras’. E ele cantou e cantou e cantou e eu falei ‘grava’. Eu tinha um gravador cassete. Ele gravou e eu cheguei em São Paulo e mostrei pro Marcus Pereira. O Marcus Pereira quando ouviu os olhos dele se encheram de lágrimas. Ele achou que nunca na vida dele ele ouviu uma música que expressasse tanto a cultura e a alma de um povo como Caritina. Ele falou ‘você vai gravar isso aqui?’ e eu falei ‘Não. Não vou.’ Eu tinha que gravar o meu segundo disco de percussão, já que o primeiro foi o maior sucesso e ganhou tudo quanto foi de prêmio, aquela coisa toda na época. E ele falou ‘não, você vai gravar, só você que pode gravar isso aqui’. Resultado: eu gravei o tão discutido e antológico Bandeira de Aço que só me deu dor de cabeça. (Papete, 2011, grifo meu) O Bandeira de Aço foi o pontapé para que uma geração de músicos maranhenses se visse e ouvisse seu trabalho como algo de alguma maneira viável, ao mesmo tempo que definia o tipo de trabalho a ganhar alguma viabilidade, “um divisor de águas”, responsável por “uma descoberta e um reconhecimento do Maranhão (Papete, 2011).” A música maranhense “não existia”, mas havia sim uma série de outras canções feitas por maranhenses (para usar uma definição geográfica) circulando pela cidade, músicas de várias vertentes. Gerações como a minha, que nasci um ano após seu lançamento, cresceram com o espectro sonoro do Bandeira de Aço, capaz de causar, em 115 Depoimento colhido em uma conversa informal, não gravada. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 139 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais boa parte destes jovens (alguns, como eu, futuros músicos), “um sentimento quase de fim de tarde, sabe, de melancolia”, ou algum tipo de identificação ancestral. O Bandeira de Aço, ao expressar “tanto a cultura e a alma de um povo”, usava um duplo jogo de espelhos, no qual refletia e era reflexo, descrevia e criava o objeto descrito. O disco mesclava a canção popular urbana a guisa de MPB, com elementos da chamada cultura popular do Maranhão. Isto estava evidenciado nos temas e na percussão utilizada no disco. Havia bandas na cidade, como o Rabo de Vaca, que exploravam essas misturas, assim como elas já estavam nos trabalhos dos músicos desta geração, além dos quatro que escreveram as músicas do disco. As trilhas sonoras de peças do Laborarte se valiam do folclore (e eram compostas por nomes como Cesar Teixeira) e, ao longo da década, esta geração se engaja no estudo dos ritmos populares para construir, com seus elementos, uma música popular politizada, voltada para a desalienação das classes populares. Bandeira de Aço mostra, em sua capa, a cara de um boi usado na brincadeira, com sua característica estrela na testa, as fitas no chifre e o olhar lânguido, quase dorminhoco. Das nove canções, duas tem “boi” no título (Boi da Lua e Boi de Catirina) e outra é batizada com o nome de uma das protagonistas do auto do boi: “Catirina”; outras duas, de alguma maneira o tematizam (Eulália e Engenho de flores). Mais da metade do disco fala do Bumba Meu Boi em vários aspectos, seja a descrição do auto (Catirina que só quer comer a língua do boi, Catirina), a adesão religiosa da festa (meu São João eu vim pagar a promessa de trazer esse boizinho para alegrar sua festa, Boi da Lua), a angústia de Pai Francisco e sua sina de matar o boi para lhe retirar a língua (ah, bumba boi, meu boi bumbá, me perdoa por querer tua língua só pra dar pressa nega Catirina), politização folclórica (eu não fico pra dormir nesse país que não amanhece nem acorda com meu boi, Eulália), e o mundo rural de onde a brincadeira do boi vem (era o apito do engenho de flores chamando pra trabalhar116).117 Além das letras, os arranjos instrumentais do disco bebem largamente na percussão, melodia e forma das músicas do Bumba Meu Boi, particularmente do Boi de sotaque de orquestra (aquele de influência europeia, que usa instrumentos harmônicos, de sopro, além de banjo e violão118). O disco usa matracas, zabumbas, pandeirões, tambores-onça e outros instrumentos que 116 No disco, várias letras foram cantadas de forma diferente de como compostas, como neste verso de Engenho de Flores. O verso que se ouve na bolacha é “Quero o apito do engenho de flores chamando pra trabalhar”, o que inverte a ideia do personagem e faz com que se torne complacente com a condição de explorado. 117 O auto do Bumba Meu Boi é um momento da festa onde é apresentada, teatralmente, a história de pai Francisco, Catirina, do boi e de seu amo. 118 Convencionou-se dividir o Bumba Meu Boi em sotaques, que são os estilos da brincadeira. A saber, Sotaque de Matraca, de influência indígena, é caracterizado pelo uso das matracas, que são pequenos pedaços de madeira que se toca um contra o outro; Zabumba, africano, tido como o sotaque original do Boi, usa o tambor de pele dupla e som grave; o de Orquestra, europeu, usa instrumentos de harmonia como violão, sopro e banjo. Há também diferenças na Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 140 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais se ouve no Boi, mas ao invés da voz rouca e calejada de trabalho na roça e cachaça dos cantadores de Boi, ouvimos a limpa e afinada voz de Papete. “Bandeira de Aço” foi um divisor de águas na música do Maranhão. Sei de cor e salteado, de trás pra frente, ouvi demais. Pela primeira vez pudemos ouvir em disco e com a qualidade de áudio (ao menos próximo) de um disco de grande gravadora, os nossos ritmos e autores. Papete é um bom cantor, além de bom percussionista, e fez um disco muito esperto, com repertório lindo, antológico, e aquelas vinhetas com a percussão do boi, algo moderno pra época até. Aquilo calou fundo na alma do maranhense. E abriu portas pra que outros artistas se aventurassem naquela seara. Já havia outros discos feitos antes – Chico Maranhão etc -, mas aquele lá foi certeiro. Conjugou a excelência artística com o poder de fogo comercial. (Zeca Baleiro, 2011) O disco busca refletir a “alma de um povo”, que se passa a refletir e representar por ele. [aquelas eram] Musicas de pessoas que estavam reinventando a música maranhense e mostrando pras pessoas que era possível compor uma música falando do Maranhão, como Caetano e Gil falavam da Bahia. Músicas como Engenho de Flores, Catirina, Eulália. São músicas que remetem a um imaginário nativo, aquela coisa de você falar dos aspectos étnico-religioso-culturais que a terra tem, sabe. (Papete, 2011) Para Papete, a qualidade de sua música é diretamente proporcional à sua maranhensidade, sendo esta voltada a um “imaginário nativo”, aspectos “étnico-religioso-culturais que a terra tem”. Baleiro menciona a articulação comercial que o disco realizava, e que levou Papete ao reconhecimento de membro da MPB (artista nacional), apontado por Gilberto Mineiro, dentre outros entrevistados. Esse sucesso comercial, que, na prática, é relativo, pois a Marcus Pereira era uma gravadora pequena, de baixa vendagem, é parte da dor de cabeça que Papete atribui ao disco. forma de abordar o auto, nas indumentárias e da maneira de dançar, mas o que interessa aqui é a tessitura sonora. Sobre isso ver (LIMA, 1982, NETO, 1997, CARVALHO, 1995). Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 141 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Figura 20. - Capa do disco Bandeira de Aço, Papete, 1978. O processo de gravação foi turbulento. Papete conheceu as músicas, captou áudio de shows dos compositores, com equipamento de palco precário (como demonstrei no começo do trabalho), vindo daí os erros nas interpretações das letras. Com o disco gravado no Rio, seguiu-se a burocracia de liberação das músicas, para registro, pagamento de royalties e outras formalidades, que correria, como é de praxe, por conta da gravadora. Segundo Papete, os compositores não tinham ao menos conta bancária para receber os direitos, não tinham inscrição em órgãos de recolhimento de direitos, nem na ordem dos músicos do Brasil, vivendo no ambiente onde a música fazia parte de sua vida boêmia e não era vista como uma profissão. Este mundo é o oposto daquele que Papete, no momento do disco representava, ou seja, o da música como trabalho cotidiano, encarada como produto ou serviço, e que requeria todo um corpo burocrático e conjunto documental e de formalização, para que pudesse integrar a máquina da chamada “indústria cultural”, que incluía o selo, as rádios, jornais e todo um grupo de pessoas que somariam ao trabalho artístico propriamente dito. Papete trabalhava como músico profissional há mais de uma década quando da gravação do Bandeira de Aço, e narra a “dor de cabeça” que se instala, na visão dele, desde a gravação do disco, a partir do ponto de vista de um selo que compra direitos de compositores, e confia ao restante da máquina à operação. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 142 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Reproduzo abaixo dois depoimentos sobre a polêmica em torno do Bandeira de Aço, que, apesar de extensos, julgo importantes para compreender melhor uma questão que, na história da música no Maranhão, é encarada como um tabu em alguns nichos. Os depoimentos são de Cesar Teixeira e Papete. César: O Bandeira de Aço ele tem a ver com esse processo em que o pessoal admitiu que era possível fazer uma música com cara da nossa região, né, que não era nem nordeste, na época, nem amazônica. Era uma região de bumba boi, num sei o que. Disse ‘rapaz, vamo fazer isso’, ‘dá certo?’, ‘dá’’, e cada um fez uma coisinha. Eu já vinha trabalhando nisso antes, mas de qualquer forma, as pessoas acreditaram nisso, e o Josias [Sobrinho] também se esforçou. E começamos a tocar, com todo aquele risco, que a gente passou, da vaia, de dizer ‘porra, tocar negócio de Boi, aqui só tem intelectual. Os caras vão achar chato, porque a música é simples’, mas eu resolvi, quando eu fiz o Boi da Lua, eu não fiz uma música simples. Se tu notar ela tem acordes, ela sai dum Lá menor, ela vai pruma Sol, eu não fiz aquele chavão de primeira, segunda e terceira, pra anunciar que aquilo ali não era uma brincadeira, era um trabalho que a gente tava... o Sérgio Habibe fez Eulália, que é uma música também, uma canção, uma toada que ela começa lenta e depois entra na toada propriamente dita, o ritmo, Josias se empenhou mais. De modo que quando Papete veio, ele veio aqui em 77, eu tava numa crise, numa tristeza tão grande. Eu tava na porta de casa e Sérgio Habibe me chama na casa de Chico Saldanha, e tinha um pessoal lá, Marcus Pereira. Eu não acreditava mais em ninguém, mandava todo mundo tomar no cu. E eles vem... ‘te lembra de Papete?’ eu digo, ‘quem é Papete?’, ‘não, é que ele morava também ali’, ele morou um tempo naquela região, depois foi pra São Paulo. Aí eu fui pra lá, mas eu já tava assim, meio alcoolizado. Rapaz, o pessoal com uma super estrutura, os gravadores Niágara, o que eu senti falta na hora era que ninguém apertou minha mão, ninguém conversou comigo, eles foram fazer como quem tá gravando índio na sua aldeia. Aí eu disse ‘porra, que merda”, eu sempre explosivo, né? Aí eu disse ‘[chico] Saldanha, tem alguma bebida aí?’, ‘não, tem um uísque’, então bota uma dose dupla, enche o copo’. Aí eu peguei o violão, o pessoal instalou o som, sabe o que eu fiz? Porra nenhuma, ele lá e eu disse “vão-se à puta que pariu’. Aí saí, fui embora. No outro ano eles voltaram. O papete tinha uma visão interessante, ele é meio bronco assim, meio burro, intelectualmente, mas ele tinha essa visão pra coisa da música, se não não teria aquele sucesso lá com o Toquinho, não sei quem. Aí eles voltaram. Eu tava tocando na associação de moradores da Madre Deus. Eu me recusei [a assinar o contrato], e o disco só sairia se eu tivesse assinado. O disco já tava pronto. Aí o Papete foi falar com a minha mãe, que ainda era viva na época, e tal. A minha mãe disse ‘Cesar, esse rapaz te trata tão bem, ele foi vizinho nosso, podia tá assinando pra outra pessoa desconhecida, por que tu não faz?’. Eu digo ‘eu tô fazendo uma besteira, mas...’, e foi uma besteira. Que cessão de direitos autorais você cede os direitos autorais durante cinco anos, eu não recebi porra nenhuma de direito autoral. (...) Papete omitiu o nome da gente quando era necessário dizer ‘a música é de fulano de tal’. Muitas vezes fez contratos com músicas nossas, com a Alumar, sem a nossa participação, sem a nossa autorização. Teve uma época que nós entramos com um processo contra a Alumar por causa desse problema (...) eu vou fazer música pra Alumar, detesto a Alumar, fazer música pra brinde?! (Cesar Teixeira, 2011) E Papete, sobre o mesmo tema: Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 143 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais A história do Bandeira de Aço é a seguinte: a gente gravou o disco, trouxe o disco pra São Luís, chamou os compositores envolvidos, mostrou o disco pra eles, e a gente pediu então a autorização deles para que fossem feitos os contratos para que eles pudessem receber seus respectivos direitos autorais, e direitos artísticos, que é o da venda do produto. Na época não tinha internet, não tinha porra nenhuma, era ordem de pagamento, era um telegrama que o banco mandava. E eu me lembro muito bem disso, que o Marcus pereira na época disse: ‘olha, vocês não esqueçam!’, ninguém tinha conta em banco. O pessoal queria mais na época era ir pros buteco beber, tocar violão e cantar, aquela coisa bem da época, aquela coisa de movimento hippie. Era todo mundo meio riponga, sabe, aquela coisa toda. E os ripongas a gente sabe que são pessoas muito relaxadas. (...) então veja, ele falou ‘não esqueçam de abrir conta bancária e me dar as informações preu poder repassar pra vocês’. Eles não fizeram. Eles não fizeram, deixaram pra lá, a coisa foi passando, e o Marcus Pereira, ele não tinha obrigação nenhuma de ficar em cima, e o dinheiro foi ficando acumulado lá, guardado. O dia que eles perceberam que o disco arrasou, arrebentou no Brasil inteiro. Em São Luís então era um horror. E pra completar os nossos apresentadores de rádio, eles têm por vício de não colocar o nome do compositor quando eles tocam a música: ‘ouvimos, de Papete, Bandeira de Aço’, ‘ouvimos, de Papete, Catirina’. É a mesma coisa: ‘ouvimos, de Elis Regina, O bêbado e o equilibrista’. Eles são assim, porque existe uma ignorância, normal e uma falta de conhecimento de aprimoramento e de aprendizado pra que essas pessoas realmente digam: ‘ouvi com Papete, de Josias Sobrinho. E esses caras começaram a ficar putos com isso, ficaram muito chateados, no que eu dou razão a eles. Eu to lá em São Paulo, não tô nem sabendo o que tá acontecendo aqui. Eu só sei que um dia apareceu uma nota na folha de São Paulo. O correspondente da Folha de São Paulo aqui foi chamado por eles, e como era um sucesso o disco, aquilo ali era uma notícia. Bandeira de Aço tava arrebentada no Brasil inteiro! O disco vendeu mais de 150000 cópias na época, sabe, de uma gravadorazinha pequenininha, que não era uma gravadora, era uma produtora cultural a Marcus Pereira. Era um idealismo aquilo, era uma coisa romântica que o Marcus tinha, não era uma coisa que ele fazia pra ganhar dinheiro, né, tanto é que ele fez um mapeamento do Brasil inteiro, um ideal. Aí quando o Marcus viu aquilo ele rebateu com outra nota e disse que no que dependesse dele o maranhão tava riscado do mapa das produções dele. Aí todo mundo recebeu porque aí eles se manifestaram às avessas, da pior forma possível e ao invés de ter pelo menos mandado uma carta, um telegrama: ‘senhor Marcus Pereira, gostaríamos de saber o que que tá acontecendo, por que que papapapapa e tudo teria se resolvido. E eu é que acabei pagando o pato como o cara que não pagou! Como se eu tivesse alguma coisa, como se eu tivesse alguma responsabilidade com dinheiro. Meu negócio era interpretar aquelas músicas, não era pagar. Mas eles foram muito radicais na época e isso é uma coisa que eu colho até hoje. Esse bandeira de aço é uma coisa que respinga até hoje essa coisa rançosa, uma pena porque é um disco tão importante. (Papete, 2011) O conflito formalização/informalidade, mercado/ativismo parece ser um dos fatores importantes que acentua as diferenças entre intérprete e compositor. Para César, o disco era fruto do extenso trabalho de pesquisa de sua geração, que foi apropriado, de maneira impessoal, pelo mercado, sem que isso lhes trouxesse retorno financeiro, ou contribuísse para sua causa política/ideológica (que era, para usar um termo reducionista, a socialista), Papete fala a partir do mercado, e qualifica os compositores como “ripongas” e “relaxados”. O conflito em torno do uso das Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 144 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais canções pela Alumar se insere também neste contexto de disputas internas, no qual a empresa representa o grande capital. Houve, na cidade, quando da instalação da Alumar, vários movimentos contra sua instalação, dos quais César (e outros de sua geração) tomou parte. A querela contratual se resolve, contudo, através de algo que foge ao mercado, que são as relações pessoais, de compadrio, vistas aqui na forma de intermediação através da mãe de César Teixeira. Figura 21 - Capa de Fonte Nova, de Chico Maranhão. 1980. Como a geração de músicos que começava a responder em âmbito nacional pelo título de MPB, as canções do Bandeira de Aço bebiam deste “novo conceito de música onde as pessoas faziam as canções de protesto em cima de um gênero musical brasileiro autêntico.” (Papete, 2011). Se Caetano Veloso usa o afoxé e o Pessoal do Ceará119 tem uma perna no chão de “terra batida” do forró e outra no rock, a música moderna e politizada do Maranhão tinha que beber desta fonte se quisesse “ver boi da lua dançar no planeta do Brasil”. Esse disco é talvez o mais emblemático de todos os tempos da música produzida no Maranhão. Até hoje insuperável, embora tenha também tido um antes chamado Cantaria, feito em dois canais em Belém do Pará, que foi um disco capitaneado por Valdelino Cécio, que tinha músicas como Cavalo Cansado, de Sérgio Habibe, coisas também de Chico Maranhão. Teve um outro também de Chico Maranhão gravado na sacristia da igreja do Desterro. (Cesar Roberto, 2011). 119 Pessoal do Ceará era como se reconhecia o grupo de artistas formados por Belchior, Ednardo, entre outros. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 145 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Outros cantores e outros discos se seguiram ao sucesso do Bandeira de Aço e nos anos seguintes a música desta geração aparecia em coletâneas de festivais como o Viva (1985), e se tornava expressiva na cidade através da criação de novos meios de comunicação e da ideia de música maranhense associada a eles. O casamento da música da elite intelectual com o folclore ia muito bem, obrigado. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 146 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais 4.2. MIRANTE POPULAR MARANHENSE No final dos anos 1970, a ideia de que um certo tipo de música produzida no Maranhão era especial já estava difundida entre os artistas locais. O folclore, representado principalmente pelo Bumba Meu Boi, seguia em sua curva de aceitação como representante da identidade local, assim como o reggae ganhava popularidade na periferia, ainda sendo visto, pelas elites, como marginal. Neste panorama, surge o que talvez seja um dos mais poderosos meios de legitimação da canção popular com elementos de folclore, ou aquele que é mais amplamente alardeado como tal, pelos meus entrevistados: a Rádio Mirante FM. Inaugurada em 08 de setembro de 1981, data simbólica do aniversário da cidade atrelado à fundação francesa, a Mirante se formou como uma emissora na qual “toda programação era produzida por um grupo de amigos convidados por Fernando Sarney” (MIRANTE, 2011), que, além de apresentar um programa, arregimentou a equipe de locutores e produtores (Cesar Roberto, Celso Borges, Gilberto Mineiro, Pedro Sobrinho, entre outros) de outros veículos, com a intenção de “modernizar” a vida cultural da cidade. A filosofia era ser uma rádio assim despojada mesmo, diferente, com outra linguagem, com uma coisa nova, com informação, mexendo com a cidade, com promoções, com shows, com vinhetas, uma rádio de alto estímulo mesmo, mas muito lazer, jogos de verão, fazendo música, jogando bola, essas coisas que eu acho até, desculpem se pode parecer pretensioso, mas eu acho que São Luís antes da Mirante era uma cidade, e depois da rádio ela veio a ser outra, ficou mais frenética, mais quente, mais viva. (César Roberto, 2011) A Mirante teria uma linguagem menos séria, menos empostada, com a proposta de falar diretamente com o público jovem de elite e se afastar do formato tido como mais tradicional das rádios. A equipe era provocada a criar uma linguagem que funcionasse com este propósito. O ponto de oposição mais fácil e sob o qual a rádio se afirmava era aquilo que tocava a exaustão nas outras emissoras: o bolero, as canções de amor, tidas como antiquadas e de gosto duvidoso pelos programadores da Mirante FM, aquilo que era definido por um termo que de popularizava no começo daquela década: o brega. Cesar: Não [não tocava bolero]. Lá não tocava nem Roberto Carlos, esse era um formato que a gente... quando entrava Roberto Carlos, talvez interpretado por um Erasmo, ou uma Nara Leão, alguma coisa assim... Bruno: Mas o Roberto era uma regra? “Não toca o Roberto”? Cesar: É. A gente pode até ter cometido injustiças nesse aspecto, mas nós não tocávamos, era um estilo nosso. Bruno: O Waldick também, que era um cara popular? Cesar Muito menos. Não, Ave Maria, não rolava. Muzak, música de mau gosto a gente não rolava não. (Cesar Roberto, 2011) Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 147 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Na Mirante, tudo que fosse abolerado, jovenguardeado ou que se referisse à música préMPM era considerado de mau gosto. O termo brega começava a ser amplamente usado para se referir a um tipo de música feita principalmente por artistas egressos da jovem guarda, como Reginaldo Rossi e Jerry Adriany. A música transmitida pela rádio vinha da discoteca particular da equipe e incluía nomes como Maria Bethânia, Jorge Bem, João Gilberto, Beatles, o rock, a música disco (em oposição à Lambada, febre no período). A posição em relação a Roberto Carlos (confirmada por outros entrevistados como Gilberto Mineiro e Celso Borges) é sintomática desta intenção de afastamento do popular, Roberto Carlos não tocava diretamente, pois era considerado brega, muzak, enquanto suas canções poderiam ser transmitidas, desde que interpretadas por nomes associado a outras vertentes como Erasmo Carlos (rock), Nara Leão (tropicália), Maria Bethânia (MPB). Havia interação com o público através de eventos e programas, com entrada direta dos ouvintes. A lógica do vozeirão de cantores e locutores da era do rádio caia por terra e o “gogó de aço” era menos importante que sua juventude e capacidade de articulação com as últimas tendências e bagagem pop. (Cesar Roberto, 2011, Girberto Mineiro, 2011, Pedro Sobrinho, 2011). Também era parte do projeto da rádio a divulgação da canção local, da valorização do que seus membros entendiam como “artista local”, o que era difícil com a parca produção fonográfica de música maranhense nos formatos que a Mirante queria: No início o que tinha era um compacto simples de Sérgio Habibe, que tinha Ponteira de um lado e Panaquatira do outro (...) surgiu o disco do [Festival] Viva, o Arrebentação da Ilha, Bandeira de Aço, Pedra de Cantaria, que eu te falei, gravado em 2 ou 4 canais no Pará, mas muito bem produzido. E assim a gente contava nos dedos da palma da mão o que nós tínhamos de material. Ninguém gravava, não tinha quase nada. (Cesar Roberto, 2011) ‘Bom dia amigos da Mirante FM, 96,7, São Luís, Maranhão. A primeira rádio do estado que vai tocar a música do Maranhão, que vai ligar para a cultura do Maranhão.’ (...) Há 30 anos atrás, quando entramos no ar, a nossa preocupação primeira era com a nossa cultura, com a nossa música do Maranhão. (Fernando Sarney, empresário, 2011, programa Repórter Mirante) A história da Mirante é uma história bonita, de sucesso, né. 30 anos que se confunde, na verdade, com a história da gente, né, da nossa música. Eu acho que é uma rádio que foi pioneira em mostrar essa música produzida no Maranhão, e isso nos deu muita visibilidade, né. Isso nos fez ter os nossos fã clubes, né, onde as pessoas passaram a cantar as nossas músicas. (Mano Borges, cantor e compositor ligado à MPM, 2011, programa Repórter Mirante) Convém notar que o que estes agentes chamavam de música do Maranhão coincidia com a música produzida por seu grupo social, que estava em oposição direta a tudo que estes chamavam de muzak. Fernando Sarney evoca a “nossa cultura”, a “nossa música do Maranhão” como mola motriz da rádio, enquanto Mano Borges aponta emissora como algo cuja história se confunBruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 148 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais de com a dele mesmo, e de sua geração, de maneira análoga ao modo como a geração anterior se refere ao Laborarte. Neste ponto reside uma diferença apontada por Flávio Reis (historiador e cientista político que se considera “laborartiano”), como a diferença entre uma experiência de arte engajada versus uma experiência de mercado. Para ele, para a geração que se segue nos anos 1980 “o eixo central não era mais aprofundar a pesquisa da diversidade cultural e afirmar a diversidade através da música, mas apresentar e vender o que aparecia como novidade” (REIS, 2011). Se a geração laborartiana se entende, retrospectivamente, como marcada pela pesquisa, ocupação de espaços periféricos e interdisciplinaridade artística, a que se seguiu parecia preocupada em ocupar o espaço midiático que se formava, e os investimentos eram maiores na produção fonográfica. Já havia um veículo poderoso, festivais e shows pela cidade. A Mirante, na figura de mecenas de Fernando Sarney, começa a fomentar uma série de cantores e compositores a gravar suas canções, já que as gravadoras do centro-sul, aparentemente, não se interessavam pelo material, nem os artistas saíam do estado para fazer carreira (os que saíram, como Zeca baleiro e Rita Ribeiro, não são reconhecidos como MPM). Esta relação de mecenato produz uma contradição, a partir do momento que tenta dialogar com o mercado, liberal, a partir de parâmetros de relação típicos de regimes oligárquicos e do compadrio. A produção não era abalizada por parâmetros de mercado, criticada por representantes do mercado, o tipo de capital gerado pelo tipo de investimento pessoalizado é igualmente pessoalizado, simbólico, que, novamente, parece menos interessado em incitar respostas de mercado que em construir estímulos simbólicos, sintetizados na construção da identidade musical maranhense, expressa na sigla MPM. Esta forma de produção, através do compadrio, gera controvérsias até mesmo na equipe da Mirante FM. Chegava um artista X (...) e dizia assim ‘Fernando eu não tenho grana pra gravar um LP’. Ele dava a grana. Aí depois o artista falava assim: ‘ô, Fernando, me compra os lps’. Então tinha uma sala lá [na Mirante] lotada de LPs e nas reuniões eu dizia. Os artistas pediam todas as reuniões pra ele me demitir. Diziam que eu não gostava de música Maranhense. Eu dizia ‘eu não gosto de música ruim, encomendada: chinês, americana, carioca. Eu não gosto. Eu tenho a obrigação de não programar uma música que não diga nada pra sociedade’. (Gilberto Mineiro, 2011) Fernando era o pai da nossa música, né? O padrinho, o paitrocinador. Então ele ajudou inúmeros e incontáveis artistas. (...) Todo mundo que se organizava e chegava com um projeto (...) ele sempre louco pelos nossos artistas, pela nossa música, como eu te falei, um dos criadores dessa expressão MPM, sempre que podia ele dava força, não só na logística pra gravação e produção, como divulgação. (César Roberto, 2011) Alguns membros desta geração de cantores e compositores integraram grupos como o Laborarte no final da década de 1970 (como César Roberto e Betto pereira). Contudo, pela filiação à Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 149 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Mirante, e consequentemente, à Fernando Sarney (e supostamente ao grupo Sarney), é amplamente criticada pela geração anterior, integrante do mesmo movimento, dentro da qual as mais diversas posições políticas de esquerda convergem no anti-sarneyismo. A adesão política desta geração de cantores, que associada à Mirante FM é mencionada por vários agentes da geração anterior, ou críticos. Além do patrocínio direto, a integração ao projeto incluía a alocação de parte destes artistas em pastas públicas dos mandatos comandados pela família Sarney. Alguns destes cantores, como Manu Borges e Betto Pereira participaram das propagandas políticas televisivas da governadora Roseana Sarney, ajudando a promovê-la como uma mulher “do povo”, que canta bumba meu boi, e se irmana com a comunidade artística da cidade. Fernando Sarney, como “padrinho”, “patrocinador”, “louco pelos nossos artistas”, construía um recorte de música maranhense que conviesse aos seus interesses, além de manter controle sobre os artistas em sua tutela, através do patrocínio e da visibilidade que a rádio oferecia. A ideia de música maranhense, construída por intermédio da Mirante FM nos anos 1980, é acionada, através de seus representantes/artistas, em diversos momentos durante os certames eleitorais, para promover os membros do grupo Sarney como pessoas sancionadas pela elite intelectual da cidade, particularmente, os músicos populares, cantadores de bumba meu boi, cacuriá, tocadores de tambor de crioula e demais agentes relacionados à identidade musical maranhense sancionada. A música produzida localmente pela elite começava a circular na cidade através da Mirante, formatando a cara de uma música local, que se dizia moderna, bebendo da fonte do folclore como o Bandeira de Aço, e que buscava tematizar a cidade, mas sem o engajamento político dos discos anteriores. Uma nova geração de músicos começava suas carreiras dentro desta lógica, como César Nascimento e Mano Borges, que futuramente gravariam discos associados àquilo que estava surgindo na rádio. Em meados da década de 1980, entra no ar pela Mirante FM, aquele que foi o grande emblema desta geração e que gerou ampla discussão em diversos setores envolvidos com a música: o programa Maranhão Popular Maranhense, MPM. A Mirante já possuía um programa de música maranhense, o Raízes, apresentado por José Raimundo Rodrigues, que tocava toadas de Bumba meu boi, “era só umas toadas, era só toadas, porque tem as nossas toadas que são mais urbanas e tal, eu também faço toadas, mas tem a toada ali dos cantadores, dos mestres, né, como João Chiador, Humberto de Maracanã, etc” (Cesar Roberto, 2011). Este programa não tocava a música aos moldes do Bandeira de Aço e, com o seu fim, “foi um consenso, eu, Fernando [Sarney], toda a equipe achou por bem ‘Cesar, você vai apre- Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 150 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais sentar um programa de música maranhense perfeitamente’” (Cesar Roberto, 2011), o programa tocava “tudo que se produzia”. A sigla rapidamente “pegou” e passou a ser utilizada para identificar um tipo de música feita localmente. O grupo de cantores e compositores associados à Mirante passou a se reconhecer e apresentar sob a sigla de MPM, enquanto a geração anterior, associada ao Laboarte e ao Bandeira de Aço, recebeu com estranhamento o rótulo. “E cada vez mais as músicas eram tendenciosas pra agradar, porque se não tivesse boi no meio, zangasse Godão120, os caras se borravam de medo. Tinha que ter boi no meio porque se não tivesse boi no meio desagradava a realeza aí.” (Gilberto Mineiro, 2011) O contexto da ditadura militar brasileira sacralizou, segundo o historiador Paulo Cesar de Araújo (2005), uma ideia de música brasileira enquanto engajada, intelectualizada e que se define pelo rótulo de MPB. Artistas de fora do eixo Rio/São Paulo entravam no grande mercado através de movimentos afirmativos de sua regionalidade como “O Pessoal do Ceará”, o “Movimento Armorial” e mesmo o “Clube da Esquina”121. A MPM seria, assim, um arremedo de movimento centralizado na rádio Mirante, que reunia artistas de música popular inspiradas no folclore, com o intuito de criar um elemento distintivo para música dentro do mercado, e assim fazer com que ganhasse novos espaços. “Comecei a cantar, gravei, toquei na Mirante: eu existo!” (Gilberto Mineiro, 2011) Segundo REIS (2011), há momentos distintos na MPM, sendo esta geração ligada à Mirante marcada pelo abandono da pesquisa que marcou a geração anterior, o que resultaria em uma canção mais pobre. César Teixeira diz que [o movimento musical] Já vinha se desarrumando, daquela época [começo dos anos 1980] pra cá. Imagina o que aconteceu depois, com todo o poderio que foi se fortalecendo, os meios de comunicação do grupo Sarney, então, os artistas se tornaram muito dependentes dessa mídia sarneyzista, e dessa produção, que até hoje é no Marafolia, que até hoje tá aí. Então essas pessoas que tu te referes, foram as pessoas que foram se aproximando, que era o Betto pereira, foi o Cesar Roberto, não sei quem. (...) o momento em que surge a MPM. É uma discussão que surge no rádio, na verdade, nos bastidores da secretaria da cultura, que eu acho que surgiu foi ali. Ou era pra reinaugurar uma geração que não tinha pesquisado coisa nenhuma na vida, tipo assim, legitimar uma geração que não foi lá na zona, não foi lá na zona, que não foi no Bumba Boi, não pegou em matraca, não sei o que, pra legitimar o que eles tavam fazendo, e de repente vender aquele produto, como se venderia o reggae e outras coisas. E mais uma vez não deu certo. (Cesar Teixeira, 2011). 120 José Pereira Godão é um dos proprietários do Boizinho Barrica. 121 Pessoal do Ceará era como se reconhecia o grupo de artistas formados por Belchior, Ednardo, entre outros; Movimento Armorial é um grupo de música barroca e popular ainda hoje ativo no Recife e o Clube da Esquina foi um movimento de música engajada saído de Minas Gerais, com representantes como Lô Borges e Milton Nascimento. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 151 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Esta parece ser uma diferença significativa entre o grupo de músicos que toma para si a sigla MPM e a geração associada ao Bandeira de Aço. Se os primeiros surgiram no contexto da ditadura, e este contexto contribuiu para a formatação e seu trabalho como algo de forte veia política, para o qual a cultura das classes populares seria usada como instrumento esclarecido de desalienação destas classes, a geração e cantores da MPM, que despontam junto ao final da ditadura, usam o título, sobretudo, como uma estratégia de mercado, na tentativa de que a MPM funcionasse como um elemento distintivo, capaz de elevar a música do Maranhão no contexto da música brasileira. Os músicos da geração anterior, por sua vez, buscam afirmar sua posição através de qualificantes como a pesquisa, o compromisso com a cultura e com o povo, estando o conhecimento empírico dos ambientes populares como o divisor de águas entre as duas gerações. A geração do Bandeira de Aço se valoriza desqualificando a geração seguinte. Logo em seu surgimento, o termo MPM já causou celeumas dentro da classe artística e discussões sobre a sua serventia. Sua criação também habita um terreno pantanoso na memória dos agentes envolvidos com música popular no momento. A série de depoimentos que reproduzo abaixo, visa compor um mosaico de afirmações e disputas sobre a formação da MPM, seu propósito, e usos: [O termo MPM] É da rádio. Não foi pelos artistas não. Rotularam pra diferenciar, fazer uma diferença do que é a MPB e o que é a MPM, como se fosse, como se a música daqui a gente cantasse em outra língua. Fez uma merda que até hoje a gente tá penando por isso, que eu não sou artista do Brasil, sou MPM. (Betto Pereira, cantor e compositor, 2008) A falsa ideia de que a música era boa. Porque pra eles tocarem na Mirante bastava porque eles tavam tocando na rádio onde só tocava Maria Betânia, Milton Nascimento, tanto que eu dizia pro coordenador: ‘se cair um avião com esses caras todos não vão ter mais programação na Mirante? Não pode ter renovação?’ e aí o seguinte. Nas reuniões, o discurso do grande ele dizia o seguinte ‘porra, vocês... tu vai estourar, porra! Tu toca aqui na Mirante!’ na reunião ele dizia pra gente. Quando a gente dizia que a gente ganhava pouco ele dizia ‘mas a Mirante tá fazendo o nome de vocês!’. (Gilberto Mineiro, 2011) Foram os próprios artistas que criaram essa sigla, Betto Pereira, Gerude, Betto Pereira, acho que Godão do Boi Barrica também. Hoje eles não gostam, mas ele foi um dos grandes incentivadores (...) surgiu através dos artistas e a rádio [Mirante] abraçou, também porque houve um boom lá pela década de oitenta, um boom da música maranhense, a música maranhense tava, porra, as música maranhense lotava. Quando vinha aquela turma lá de Imperatriz: Carlinhos Veloz, Erasmo Dibel, aí teve esse boom, teve até aquele projeto Baião de Dois, do César Nascimento com o Carlinhos Veloz, lotaram o Itau Cultural, foi a partir daí que neguinho resolveu ‘não a nossa música é a melhor’ e criou a sigla, só que foi um grande, quer dizer, o tiro saiu pela culatra, porque não existe, foi um tiro no pé. (Pedro Sobrinho, radialista da rádio Mirante, 2008) Eu digo assim: aí eles queriam que alguém fosse messiânico: por que que a música maranhense não estoura no Brasil? Várias, toda hora tinha reunião, era muito chato isso, cara. Fazia simpósio, não sei o que e tal, Fernando [Sarney] fez Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 152 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais um grande encontro, Celso [Borges] ainda era da Mirante, um grande encontro pra discutir a música. (Gilberto Mineiro, 2011) 122 De Zeca Baleiro a Bruno Batista , um intervalo perigoso para arriscar qualquer opinião a respeito da música feita no Maranhão fora da receita da MPM. Mas isso não é privilégio só de Baleiro, nem de Rita, nem de Bruno Batista, nem de 123 Cláudio Lima . Isso já faziam seu Antônio Vieira, Josias Sobrinho, Chico Maranhão, Joãozinho Ribeiro, Cristovão Alô Brasil, César Teixeira, Seu Bibi, Dilu e tantos outros que por aqui produziram a verdadeira Música Brasileira. (Ricarte Almeida Santos, 2004) Houve uma promessa, dos cabeças, dos mecenas, houve uma promessa de que se eles se organizassem pra dar uma cara pra música maranhense, com esse título (...) essa MPM foi com a promessa de que, em grupo, todo mundo ia estourar. (Gilberto Mineiro, 2011) Eu fiz com que a música maranhense, durante o ano inteiro, de janeiro a janeiro, ela fosse uma realidade. (Papete, 2011) A adoção da sigla MPM que aqui não estou defendendo, mas apenas discutindo, se não mais tem razão de ser teve seu momento de importância quando aglutinadora de ideias, contribuindo na consciência de uma poesia musical comprometida com a realidade maranhense. Isto, evidentemente, não é lá muito aceito pelos teóricos do sul brasileiro que se esquecem de que Jobim, por exemplo só cantou Rio de Janeiro e você jamais encontrará na música dele uma pulsação boeira, por exemplo. (Chico Maranhão, cantor e compositor da geração contemporânea ao Laborarte, 2004, em resposta ao Ricarte) Agora os cantores populares maranhense, de música popular maranhense, tipo Betto [Pereira], todos. Eles tem uma mania de achar que música que o maranhense canta que é diferente da dele não é música, é simplesmente uma lata de lixo que eles não admitem que a gente também é bom ou melhor do que eles, porque Adelino Nascimento ganhou disco de ouro, ganhou disco de platina, foi sucesso fora do país, cantou em outros países, sabe. Cláudio Fontana é um grande cantor maranhense, sucesso em Portugal, e esses cantores regionais, que na verdade se chama regionais, porque eles não quebram a barreira ali, quando chega no Piauí ninguém sabe mais quem é nenhum deles. Aí eles ficam rotulando que música que Adelino Nascimento canta, que Júlio Nascimento canta, que Evaldo Cardoso canta, que fulano de tal canta não são música (...) Não é só aquilo que você canta falando do alto do Pindaré, que a cachoeira tá linda, que o carcará tá bonito, não tô falando do João do Vale (...) Então esses caras de Música Popular Maranhense, MPM, eles acha que eles são os donos do mundo, e na verdade eles só são alguma coisa porque esse governo do estado aí imbecil sustenta eles de arraial a arraial, de inverno a verão, pagando disco pra eles gravarem. Mas se não fosse isso eles tavam morrendo de fome, todos eles. (José Oniton, 2011) Eu não conheço MPM não. (Papete, 2011) 124 Antigamente só se falava de azulejo, sobradão, mirante e tal, paralelepípedos, ê meu boi, essas coisas. De uma época pra cá, não. Passou a se fazer música descompromissada, música universal, uma linguagem mais interplanetária. (Cesar Roberto, 2011) Ora, por outro lado, é preciso compreender o que significava para nós compositores, a sigla MPM. Isto nunca foi discutido (nem sabemos quem criou esta si122 Bruno Batista é um compositor e cantor da minha geração, nascido no entre décadas de 1970/80, cujo trabalho abriga influências diversas. 123 Cantor maranhense cujo trabalho dialoga com a música eletrônica. 124 Mirante aqui é o elemento arquitetônico que consiste no último pavimento de um imóvel, feito para se mirar longe. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 153 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais gla), mas nós percebíamos muito bem: MPM é um conjunto de ações ou de atividades que, interrelacionadas mutualmente produzem caminhos, rotas, direções, objetivos e tantas outras variações de resultados que nossa música precisa para se conformar. Inclua-se aí também, e naturalmente, a parte do receptador, o ouvinte, o consumidor do produto, o grupo social e cultural a que esta música se destinava. Era nosso interesse a condição evolutiva desse grupo em nossa cidade - lembrem-se de nossas propostas laborartianas. Isto, é evidente na MPM. Senão, ouçam nossos textos cantados - como melhor prefiro chamar nossa música - vide a obra de Sergio Habibe só para dar um exemplo. Naquele momento, a afirmação da nossa identidade era mais importante, e a música popular um veículo significativo, embora naquela época, inconsciente. Tornando-me então mais explícito, quero dizer que MPM é um conjunto de agentes, ou possibilidades com qualidades e características específicas atuando para um mesmo fim: a construção e a afirmação de uma canção maranhense moderna. Isto continha um enorme peso estimulador criador na época. Demos a cara pra bater e acendemos a fogueira que ainda hoje se vê a brasa arder. Éramos muito jovens e necessitávamos responder às ressonâncias que pairavam nos céus do país. Desta forma, qualquer análise sobre esta sigla MPM tornar-se-á vã se não tivermos clareza desses aspectos mórficos históricos de sua “adoção”. (Chico Maranhão, 2004) O artigo de Ricarte, que diz que quando o Zeca se projeta e o chão desaparece, só serve não pra nós, serve pro pessoal da suposta MPM. Meu chão nunca desapareceu, eu sempre tive com o pé do chão. (Cesar Teixeira, 2011) Não tinha relações de mercado. Do cara botar debaixo do braço (e ir vender). Eu dizia ‘gente. Dentro do Maranhão cabe Luxemburgo, Bélgica, Holanda e sobra terra. Vocês tem primeiro que conquistar o Maranhão, cara!’. Eles tinham preconceito de tocar no interior do Maranhão. Muitos dizem que não tinha, [mas] não gostavam, achavam que era menor. Tocar no interior do Maranhão era menor. Era como se tivessem... era decadente tocar no interior do Maranhão. Tocar em São Luís era tocar no Rio e em São Paulo. (Gilberto Mineiro, 2011) Ali (em Imperatriz) tocava a nossa música, mas acanhadamente. A gente tentou doutrinar e tudo, mas não deu muito certo não. (César Roberto, 2011) Eu dizia isso lá trás: ‘cara vocês tem que ter uma leitura de mundo menos insular, menos de ilha, cara! Vocês tem que ter uma leitura mais cosmopolita, menos insular. Quem é que vai querer saber lá em são Paulo? [canta] a Ponta 125 d’Areia, Alcântara!’ (...) gente, isso é muito bonito pra agradar essa, então vocês não vão sair daqui porque, não saindo aqui de São Luís já era suficiente, ninguém tinha ambição. Depois todo mundo foi arrumado emprego pra todo mundo, todo mundo se empregou. (Gilberto Mineiro, 2011) A MPM, que caiu no (re)conhecimento do público, se vale da aura de alta cultura que tem a cidade. O MPM era um programa “de São Luís” (César Roberto, 2011), tocando música da juventude intelectualizada da capital, que procurava se afirmar através da rádio e do ícone que ela criava. Por mais que tenha virado um rótulo maldito e estigmatizante (Betto Pereira, 2008), no momento foi de grande importância para a afirmação de uma música singular do Maranhão, que refletisse os amplamente difundidos signos da qualidade, do bom gosto, da intelectualização e 125 Gilberto se refere a várias músicas que se sacramentaram com temas geográficos locais, como as praias, dunas e bairros. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 154 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais desta cultura urbana que se vale do rural, que não só se identificava com o Maranhão, mas o identificava para outros olhos e ouvidos. Havia um veículo expressivo, financiamento fácil, shows lotados; e tudo apontava para uma brevíssima explosão nacional da música do Maranhão, afinal, “o ‘jabá’ deve sair da alma maranhense” (MARANHÃO, 2004), e a alma do maranhense parecia encarnada na MPM. Por outro lado, a estratégia de distinção também é vista como uma forma de restringir a música local, ser MPM implicaria o não pertencimento à MPB, criando assim um nicho que se constituía em uma “camisa de força” (REIS, 2011) baseada nos ritmos locais. A sigla MPM também passa, para a maioria do público, a definir toda a música popular à guisa de MPB feita no Maranhão, e músicos da geração anterior como Sérgio Habibe passam a ser reconhecidos como MPM, por mais que não tomassem parte ativa em suas engrenagens. A MPM torna-se aquilo que define a música urbana com elementos rurais feita no Maranhão. Se a geração dos anos 1970 experimenta e formata um tipo de canção-síntese para identificar o Maranhão, a dos anos 1980 usa elementos desta identificação para identificar a si mesma e tudo que viesse depois. Se o conflito, em alguns momentos, entre as duas gerações, parece ser uma adesão ao mercado, o produtor da maioria dos artistas de brega dos anos 1990, José Oniton, vê na não ressonância de mercado, e no nicho da MPM a sua fragilidade. Oniton, ainda assim, fala a partir da posição de representante de um gênero marginalizado pelos dois lados do conflito pela identidade musical maranhense. A MPM da Mirante e a canção popular dos anos 1970 desprezam os cantores de choperia e a canção dita brega. Chico Maranhão se considera MPM, mesmo que a sigla tenha surgido depois da maioria de seus discos, e categoriza a legitima música do maranhão como aquela dotada de uma pulsação boieira. A mesma coisa com o disco da Rosa Reis. Música Popular Maranhense pura. Este, considero o melhor disco de todos os tempos produzido em São Luís. Em nosso movimento musical não vejo similar, além de mostrar uma qualidade inusitada, embora de maneira nenhuma surpreendente, de Rosa Reis: sua própria 126 composição. O convívio de Rosa com dona Teté, Felipe e outros mulatos criativos que trabalham no Laborarte deu frutos e Rosa mostra o quanto é capaz com esse seu “Cheiro de Alecrim”. (MARANHÃO, 2004. “Cheiro de Alecrim” é o nome do disco de Rosa Reis) Rosa Reis é apresentada como música popular maranhense “pura”, e o elemento de legitimação deste status é o seu convívio com figuras populares. É a intelectualidade de elite mediando a cultura popular e produzindo uma versão mais agradável aos ouvidos curtidos pela canção naci126 Dona Teté e mestre Felipe são figuras associadas à cultura popular folclórica do Maranhão. Ela, comandante de um grupo de Cacuriá; ele, de um tambor de crioula. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 155 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais onal e internacional, veiculada pelos meios de comunicação, uma versão que não parte diretamente destes mulatos criativos, mas que aparece filtrada por uma representante da mesma elite intelectual que a caracteriza como pura. Se a estratégia de criação da MPM serviu para alavancar a carreira de seus idealizadores ou, como diz Betto Pereira, somente criou uma marca incômoda, a sigla teve sua eficácia para sedimentar, em parte do público ludovicense e nos meios de comunicação, a ideia de uma música do Maranhão. Vendendo ou não discos, sendo ou não sucesso, estando ou não sancionada pelo mercado ou público, estas gerações (e a música que fazem) carregam a “normalidade” (no sentido goffmaniano) da música maranhense. Mesmo Ricarte Almeida Santos, que demonstra uma posição crítica em relação à MPM, propõe um recorte pré e pós o título. De um lado estaria a geração de Antônio Vieira e Benedito Buzar, como músicos que já usavam os ritmos regionais em seu trabalhos, do outro, a cena que surge do meio para o fim dos anos 1990, quando a MPM já não era mais uma sigla sedutora. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 156 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais 4.3. MÚSICA MARANHENSE E DISCURSOS LEGITIMADORES No percurso do trabalho de campo, em uma série de entrevistas com cantores e agentes envolvidos com música brega e seresta, percebi que neles é marcante a impressão de que São Luís é uma cidade de alta cultura. Mesmo os cantores de grande fama, como Lairton, corroboram esta posição, construindo seu local de pertencimento a partir da naturalização desta aura: Eu fiquei meio apreensivo, no início. Pôxa, tocar na capital, chegar na capital com esses estilo assim, que aqui eu tinha uma visão do reggae, que aqui era mais só reggae que tocava, sabe, mais música elitizada, aquela coisa, né... e eu tinha um certo receio, sabe, de vim tocar na capital. Quando foi à noite, pra ir pro show, foi um rapaz pra me buscar no hotel, que nós távamos nos aproximando, já tava ali pela Cohab (...) quase em frente ali àquele terminal, chegou mais ou menos ali no cruzamento, o trânsito tava engarrafado ali (...) isso foi em 99, já no final do ano, praticamente. Aí, meu irmão, foi assim, eu falei ― vixe, o que é que aconteceu? aí o cara falou ―num sabe o que é não? Esse povo todo é pra ir pro teu show. E eu: brincadeira. Aí ele pegou um atalho aqui por dentro, como quem entra pro Cohatrac, pegou um atalho saiu lá na frente. Meu amigo, quando eu subi nesse palco da Marcelo, que eu olhei aquela multidão não aguentei não. Eu disse ― né possível. Aí foi quando a ficha caiu. Senti que a coisa tava acontecendo realmente. Um mês depois me convidaram pra tocar na 127 Expoema , fui fazer um show na Expoema com mais de 30.000 pessoas. (Lairton, 2008) Eu acho que a cidade de São Luís é mais clássica por isso que eles demoraram pra pegar esse ritmo [o brega feito com teclado]. No interior não, no interior já... seria como o caipira da música brega, o interior do Maranhão. Abraçou e pegou todo o interior do Maranhão, do Piauí. Toda aquela região ali do Piauí, do Maranhão e Pará juntou ali o brega, só que São Luís, acredito que por causa de ser uma cidade mais cultural, demorou mais. Ou então na periferia tinha, mas no centro não tinha. Agora não. Agora tem show de monte lá de brega que todo mundo vai. (Geraldo Proença, 2008) O epiteto de “cidade cultural”, “clássica” e da “cultura elitizada” é, via de regra, aquele usado pelos agentes envolvidos com as serestas e a música brega para se referir à cidade de São Luís, e os representantes desta cultura clássica são os músicos relacionados à MPM, como constatei nas entrevistas. Lairton tinha receio de tocar na capital por imaginar a cidade como tomada pela música elitizada. Nas entrevistas com estes agentes, não uso o termo brega na minha apresentação, e costumo introduzir a minha pesquisa como “sobre música maranhense”. O cantor Luís dos Manus, ao ouvir esta apresentação, responde: “Olha, música maranhense... não sei se sou a pessoa correta pra falar sobre isso, não.” (Luís dos Manus, 2010) Nas noites das choperias, “Os Manus” tocam por até cinco horas consecutivas com uma estrutura de palco simples de teclado, guitarra e voz. Os três músicos deslancham clássicos da MPB, 127 EXPOEMA, Exposição Agropecuária do Maranhão. Evento que mescla leilões de animais e shows de cantores e grupos variados (sertanejo, forró, rock pop etc.). Ocorre anualmente em São Luís, no Parque Independência. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 157 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais um extenso repertório de boleros misturados às mais novas tendências de várias vertentes da música brega (arrocha, forró, tecnobrega), adaptações de toadas de Bumba Meu Boi, canções da chamada MPM, versões de reggaes e composições próprias. Luís dos Manus não se sente qualificado para responder sobre a música maranhense. Fala a partir de sua presumida desqualificação, a partir de seu descrédito expressando, o que Pierre Bourdieu chama de violência simbólica128 (2005), na qual quem sofre a violência entende sua condição enquanto natural. A ideia de música maranhense que Luís reconhece (a da MPM de cantores como Papete, Cesar Teixeira e Mano Borges, do Bumba Meu Boi, tambor de crioula, cacuriá e reggae) não é compatível com a música que ele mesmo faz. Apesar de ser maranhense, eu não me identifico muito com a música maranhense, porque meu lado já é mais pro lado do arrochão, é uma coisa que não é maranhense, mas que é povão. Então a diferença tá aí... o Gabriel Melônio, essa pessoa seria a pessoa indicada porque trabalha mesmo a cultura do Maranhão. Teresa Canto seria outra pessoa boa pra indicar. (Luís dos Manus, 2010) Luís dos Manus entende que a música que faz é do “povão” e cita nomes relacionados à MPM como os legítimos representantes da música maranhense. O esforço de construção realizado nas décadas de 1970 e 1980 aparece como natural nas falas de Luís dos Manus e de outros agentes relacionados à seresta e ao brega, quando estes se entendem a partir de sua posição de descrédito. Os seresteiros também nomeiam os legítimos representantes da identidade local, usando o argumento de que a música que fazem serve para “beber cerveja”, para “dançar”. Papete, por sua vez, reforça o poder de afirmar a legitimidade do que seria a música local, ao ser perguntado se a obra de artistas como Júlio Nascimento e Lairton é maranhense: Papete: Mas não é mesmo. Porque na realidade, quando a gente... olha, presta bem atenção, quando eu falo de música maranhense, eu separo bem as coisas. Uma coisa é uma música romântica chamada também de brega, que é uma música feita em qualquer lugar do mundo. Qualquer lugar do mundo tem, tá. Outra coisa é uma música com elemento étnico-culturais, ou socioculturais, onde você expõe, naquela obra, coisas relacionadas com a história, o dia a dia e a alma do povo daquele lugar. Isso pra mim é a música de um lugar. Bruno: Mas tu achas que essa alma não pode, ou essas características étnicas não tão traduzidas na obra desses caras? Papete: Não. Não porque eles não tão preocupados com isso, eles tão preocupados em falar da cerveja que eles bebem, da puta do cabaré, entendeu, da Leidiane da vida deles, entendeu. Não é uma música que é maranhense. Na realidade, se você quer saber, essa música que surgiu no sul do Pará, com um cara chamado Frankito Lopes. Alípio Martins, entendeu. Com esses caras. Na realidade são esses caras. E já existia de outros lugares, como Bartô Galeno, Fernando Mendes. Não é uma coisa que a gente possa dizer ‘ah, isso é maranhense’, não é. Isso aí existe em qualquer recanto do Brasil. Você vai pra Minas Gerais tem, Mato Grosso tem, Goiás, Amazonas, Rondônia, qualquer lugar tem, tem o 128 Esta sendo a violência, que antes de agir sobre um elemento, age a partir deste elemento por já ser internalizada por ele. É a incorporação do ponto de vista dos normais. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 158 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais seu compositor brega, entendeu. Agora é diferente, por exemplo, do trabalho de um Cesar Teixeira. Essa pode-se dizer que é uma música do Maranhão. (Papete, 2011) Papete enumera as características da “verdadeira” música maranhense como aquela capaz de traduzir a “alma” de um povo. Nomeia César Teixeira (compositor da música que batiza seu disco de maior sucesso) como legítimo intérprete dos “elementos étnico-culturais, ou socioculturais” do Maranhão. O próprio discurso de afirmação é carregado de categorias analíticas e vocabulário intelectualizado, enquanto desclassifica os cantores de brega por estes estarem supostamente ocupados das “putas do cabaré”, da “Leidiane”, além do suposto desinteresse em traduzir estes mesmos “elemento(s) étnico-culturais, ou socioculturais”. Para Papete, a verdadeira cultura de um local é aquela que traduz a alma local, sendo esta alma identificada na canção que ele mesmo faz ou interpreta. A partir do momento em que esta cultura é identificada (no caso, o Bumba Meu Boi), ela se engessa sobre ela mesma e surgem conceitos como o de deterioração, deturpação, aculturação, salvaguarda, do pressuposto de a que cultura de um local não é fluida. Não são poucas, em São Luís, as discussões sobre se a mudança do pandeirão de couro para o pandeirão de pele de nylon no Bumba Meu Boi “descaracterizaria” ou não a cultura do Boi, que dá a ela um caráter transcendental.129 A capital São Luís nomeia, através de suas elites, uma música popular vinda das zonas rurais do interior como representante de sua cultura e desenvolve, a partir dela, um tipo de música popular urbana, moderna e de elite. Essa classificação produz a realidade do que classifica e promove o processo de exclusão simbólica, delimitação de espaços sociais de outros tipos de música, já que somente a “intelectualidade esclarecida” preocupada em expressar estes aspectos étnicoculturais, detém o poder do discurso. Essa intelectualidade é a mesma que valida sua pertinência. É da preocupação, da pesquisa e do estudo da alma desse povo que surge a alma desse povo. O recorte da exclusão segue a lógica do esclarecimento, dentro da qual fazer música para o “povão” não é ser o povão ou falar para o povão, nem mesmo falar de ou a partir de seus anseios. O termo brega aparece de maneira pejorativa, como algo para vender cerveja, vulgar, que existe em qualquer lugar. Paulo Cesar de Araújo define o brega, no contexto da ditadura militar, como aquele tipo de música que “a classe média não identifica à modernidade ou à tradição” (ARAÚJO, 1995, p. 353). Vendo por este prisma, e considerando que o processo de formação da música que se chamaria de MPM se dá no período do governo militar, podemos considerar o Bumba Meu Boi do Maranhão como a mais pura expressão da tradição, o reggae como a ponta da 129 Algumas destas discussões podem ser lidas nos boletins da Comissão Maranhense de Folclore. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 159 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais lança da modernidade e o bolero/seresta como algo que ficava no limbo desta música, não sancionada pela intelectualidade local, pelo discurso turístico ou pelas políticas públicas. O que constatei com os dados apurados foi que, antes da construção dessa identidade musical maranhense, as diversas vertentes na cidade estavam integradas, sem que um cantor fosse qualificado ou desqualificado por fatores que levassem em consideração sua “maranhensidade”. Contudo, o processo de construção da tradição da música maranhense, corre em paralelo ao processo de exclusão de outros estilos e seus representantes. Os integrantes das bandas de baile que se converteram em seresteiros, e a geração de músicos que começou a trabalhar dentro da música feita no teclado são parte desta exclusão, e os agentes envolvidos com essa música internalizaram a construção da identidade musical maranhense. Esta identidade, relacionada diretamente ao Bumba Meu Boi e ao folclore, se engendra pelas mais diversas instâncias relativas à música popular, e nestas também fica evidenciada a posição de descrédito dos artistas de seresta e brega. Em 1986, foi criada, pela Universidade Federal do Maranhão, a Rádio Universidade FM (hoje, a rádio funciona sob o prefixo 106,9 mhz). A rádio surge dentro da mesma proposta de “bom gosto” que a Mirante FM havia usado cinco anos antes, “ouça a [rádio] Universidade à noite, feche os olhos e sinta-se ouvindo a Mirante FM dos anos 80”, (Cesar Roberto, 2011). A rádio afirmase pelas ideias da alta cultura e do bom gosto, associados à MPB como gênero de veiculação principal, e, localmente, ao folclore e à MPM. Em 1997, a rádio criou o Prêmio Universidade FM, voltada para promover a “valorização do talento maranhense”, com o “intuito de estimular as produções artísticas maranhenses na área da música, mídia e cultura em geral”. Segundo a rádio, o prêmio é “um marco no calendário cultural da cidade, esperado ansiosamente por artistas, músicos, jornalistas, produtores culturais e todos os envolvidos com cultura”. A votação era dividida em categorias que incluíam gêneros, músicos e pessoal técnico, casas e outros elementos. As cédulas eram (e ainda são) enviadas para “jornalistas, artistas, intelectuais e produtores culturais, através de um questionário elaborado a partir do levantamento das produções do período de um ano, de acordo com os arquivos da emissora”. Com base nestes votos, os escolhidos são anunciados em uma festa, que hoje ocorre no Teatro Arthur Azevedo. (universidadefm.ufma.br) A rádio transmite diariamente o programa Santo de Casa (11:00 às 12:00h), voltado à produção musical local (como o MPM da Mirante FM), com execução de canções, entrevistas e dicas de shows, discos e artistas. Naquela década (90), o estado teve duas grandes expressões musicais em nível nacional: os cantores Zeca Baleiro e Lairton dos Teclados. Ambos frequentaram os maiores programas de TV brasileiros, ambos gravaram por selos de fora do estado e ambos tinham Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 160 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais admiradores na cidade. Na rádio Universidade, Zeca era a grande estrela, enquanto Lairton (como Roberto Carlos na Mirante FM) não existia. A canção feita na e para as serestas, assim como a canção brega produzida no Maranhão não fazem parte do recorte de música maranhense da rádio Universidade, assim como os artistas destes movimentos não são contemplados em seu prêmio. Mesmo a categoria “talento da noite”, do Prêmio Universidade, voltado a eleger músicos que trabalhem em barzinhos, não contemplam músicos de seresta ou brega. Lairton morava em Santa Inês (a 243 km de São Luís) e gravava por um selo especializado em música brega voltado para nordestinos radicados no centro sul (a Gema gravadora) e até a metade da década nunca havia se apresentado em São Luís. Era conhecido no circuito das choperias e rádios AM. Não fora legitimado por um grande nome da música, nem mesmo em seu nicho, e cantava canções que eram parte de uma longa tradição de música popular dita brega e da MPB, sem grandes malabarismos harmônicos, melódicos ou poéticos. Sua fama cresceu em pequenos shows em bares, discos baratos através da pirataria e execuções em rádios AM. Em 1998, o cantor estava “estourado” em várias rádios populares e já gozava de grande fama em São Luís, sendo um dos maiores vendedores de discos naquele ano, no Brasil. Contudo, sua música permanecia fora do recorte de música legítima para as rádios FM de elite. A Universidade FM criou, naquele ano, uma nova categoria no Prêmio Universidade, que chamou de “música sertaneja”. O vencedor nesta, e na edição seguinte, foi o cantor Lairton. No terceiro ano, a categoria foi extinta. Mesmo premiado pela rádio, sua canção não era tocada por ela. Lairton era, nesta época, o cantor mais executado e mais popular do estado com a canção “Morango do Nordeste”. Lotava shows e vendeu, segundo sua gravadora, mais de 2 milhões de cópias de um mesmo disco. Em São Luís, os jornais raramente o noticiavam. Rádios de grande porte como a Mirante FM não o tocavam e sua carreira funcionava em um universo “marginal” à mídia feita por e para a elite maranhense. Sua música e a de seus colegas não tocavam, e não tocam, no Santo de Casa ou no MPM. Goffman (1985) e Bourdieu (2008) convergem ao demonstrar, cada um com sua dinâmica, como os locais sociais são fruto de diversas determinações, e como a diferença entre gosto/mau gosto, legítimo/ilegítimo, puro/degradado, envolve não somente aquele que ocupa a posição de descrédito. O descrédito, para os dois, faz parte da identidade de quem é acometido por ele, e os agentes internalizam sua posição de dominação. Contudo, é interessante notar que, em momentos convenientes, pode ocorrer a reversão deste local social, com o sancionamento pelas elites de um elemento antes rejeitado por ela, como vimos no caso do Bumba Meu Boi, e como parece ser, momentaneamente, no caso de Lairton dos Teclados. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 161 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais O diretor da Rádio Universidade FM, Paulo Pelegrini, comenta a inserção e Lairton no Prêmio: Quem inventou isso, provavelmente, foi Zeca Soares, não tô afirmando. Por esse espírito de que as coisas tão acontecendo, e a rádio não pode ficar fora. Quando eu converso com Zeca, Zeca me cobra umas coisas, tipo assim: ‘pô, Paulo. A rádio não pode ignorar que Tom Cleber leva 60.000 pessoas num show’, eu digo, ‘pô, Zeca, eu não posso fazer isso com a rádio, eu não posso tocar Tom Cleber porque Tom Cleber leva 60.000 pessoas, eu posso tocar Tom Cleber se Tom Cleber gravar uma música que seja da linha da rádio’, entendeu? Nisso a gente discorda. Ele tem essa visão mais mercadológica de inserir a rádio no contexto das coisas que tão acontecendo, custe o que custar, e eu tenho uma visão mais, ‘a rádio está imune a essas coisas, embora, eventualmente, isso possa cruzar’, tipo assim, se o Tom Cleber gravar um CD tocando Caetano Veloso, e a linha musical, que eu Perceber, que Moud [Rebelo] perceber, que Cristina Perceber, que Gisa [Franco, apresentadora do Santo de Casa] Perceber. Por exemplo, o Fiuk, que o Fiuk não toca na rádio, mas Fiuk gravou Blowing on the Wind com Bob Dylan maravilhosamente bem, tá rolando Fiuk aqui, tocando com Bob Dylan, eu não tenho nada contra Fiuk, desde que ele toque uma música que seja a linha da rádio. Então isso acontece. Esse é o ponto. Então, eu tenho a impressão que o Lairton foi aparecer, essa categoria foi inventada por Zeca, porque isso aí foi antes de 2001, uma primeira vez. Na primeira vez não foi em 2001. Aí em 2001, eu já tando aqui, acabou ficando, porque tem aquela coisa, quando você faz o prêmio, você junta os coordenadores da rádio, e os tais dos consultores, que são pessoas da sociedade, que nos ajudam a olhar o regulamento e falar ‘vocês tão de acordo?’, aí geralmente a gente convida um cara de estúdio de gravação, um músico, gente de outros veículos de comunicação, assim umas quatro ou cinco pessoas, que são até citadas na hora do prêmio, a gente cita esses nomes, pra eles olharem e falarem ‘ó, eu acho que a rádio não devia fazer isso’, ‘acho que aqui tá certo’, ‘vocês esqueceram o CD de não sei quem’, aí coisa assim, né. Nessa reunião, de uma forma geral, ficou o lance do [sertanejo/romântico], ‘não, acho que tem que ficar’. Eu era contra, mas aí imagina você falar uma coisa dessa 10 anos depois, gravar um negócio dizendo que eu era contra, mas eu tava lá, ficou, então eu assumo a responsabilidade de ter ficado. Mas de 2002 pra cá, numa outra reunião de consultores, finalmente viram que não tinha nada a ver e saiu. (Paulo Pelegrini, 2011) A inserção de Lairton dos teclados, segundo Pelegrini, ocorre por um breve pensamento de mercado de um ex-coordenador da rádio, que acreditava que a rádio deveria se atualizar a todo custo. A rádio, que se apresenta como legítima representante e divulgadora da música do Maranhão, não entende Lairton dos Teclados como parte desta cultura, com sua premiação sendo vista como uma contaminação da linha da rádio. Lairton foi premiado três vezes, em 1999 como Revelação e em 2000/2001 na categoria criada por conta de seu sucesso, sertanejo/romântico (pelas canções Paixão e Loucura, e Senhorita). O depoimento sobre Tom Cleber e Fiuk lembram o tratamento dado a Roberto Carlos pela Mirante FM, a partir do qual é possível uma exceção, desde que estes artistas se adequem à linha sancionada como de bom gosto pela rádio. No caso da exclusão de Lairton do Prêmio, não ter nada a ver com a linha da rádio confunde-se, no campo do Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 162 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais discurso, com não ter nada a ver com o Maranhão, e com a música alardeada pela rádio como a legítima música do Maranhão. Sobre isso, Pelegrini continua: [A linha de programação] não tá escrito. É uma coisa que tá convencionada. (...) a rádio pensa que música popular brasileira, do clube da esquina, o samba carioca, as caras lá da cena paulistana dos anos 80, 90 e tal, e assim vai. Você vai em Pernambuco, manguebeat e tal, Alceu Valença, o rock lá do Zé Ramalho, dos anos 70 e tal, isso é um tipo de música. O Amado Batista é outro tipo de música, a rádio tem essa convenção. Eu fico imaginando como é que a rádio universidade de Goiânia, por exemplo, trabalha com essa questão. Eu teria uma preocupação mas eu acho que lá toca o sertanejo, porque o sertanejo, pra eles, é o equivalente ao nosso Tambor de Crioula. Agora, entre eles também, provavelmente, eles devem saber separar o que que é o Valente e Roxinho dos anos 50 e o q o Leonardo faz agora, Fernando e Sorocaba. Provavelmente, mas eu não garanto que eles separem. Então esse é o primeiro ponto. Nesse ponto, não interessa se é maranhense ou não. A visão é essa, entendeu. O Lairton nunca tocou na rádio, nem quando ele era premiado, incrivelmente, nunca tocou na rádio, porque ele faz um tipo de música, sendo maranhense ou não, que não é a música que a rádio tocaria, tendo maranhense ou não tendo, que é a música que ele faz, que o Wanderley Andrade, no Pará, faz, e assim vai, outros Lairtons ao longo do Brasil fazem essa música. (Paulo Pelegrini, 2011) O argumento de desqualificação do trabalho de Lairton dos Teclados é o mesmo usado por Papete e por Luís dos Manus, de que a música do cantor é “genérica”, feita em série, no Brasil inteiro, com um equivalente em cada prostibulo de cada rodoviária. Aqui novamente evoco a noção de Goffman de informados, além da ideia de uma gramática comum abordada por Bourdieu (2008), que permita fruir uma obra de arte, ou distingui-la dentro de seus meios de legitimação e fruição. Papete e Paulo Pelegrini não teriam, de acordo com estes autores, como penetrar no universo amplo das choperias e da música brega, para distinguir a obra de Lairton dos Teclados dentro deste universo, como diferem os que dele tomam parte. Como demonstrei no capítulo 02, o cardápio musical das choperias é variado, e os frequentadores raramente se referem a ele como brega, preferindo uma série de nomenclaturas mais específicas, que denotam elementos identificadores de diversas tendências dentro do que os não informados chamariam de brega. Ser maranhense passa, desta feita, a não ser algo relevante, e o raciocínio de música legítima (ou inevitável) conferido à música sertaneja goiana está alicerçado na tradição, com analogia ao igualmente tradicional Tambor de Crioula, sancionado pelas elites do Maranhão como cultura legítima. O próprio epíteto de Lairton como “dos teclados” (existe a variação Lairton e seus teclados) já o coloca dentro de um estilo e forma de fazer musicais e, por conseguinte, ajuda a situar o local social do cantor Lairton como alguém que canta músicas melosas para pessoas de baixa escolaridade e classe social inferior; assim como “brega” e outros rótulos situam o local social da Chopperia Kabão, independentemente do conhecimento do local por quem as classificam. Os dois termos podem ser vistos como “símbolos” da má fama que estes personagens carregam para um outro Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 163 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais grupo social, este legitimado, por si mesmo, enquanto detentor daquilo que é a verdadeira cultura local. Este poder de afirmar uma classificação como verdadeira é naturalizado por aqueles que estão nas posições marginais, como mostra o depoimento de Luís dos Manus sobre Lairton: Eu não indicaria Lairton como um cantor de divulgação maranhense não, até porque ele começou também na mesma área que eu trabalho, o nome dele expandiu numa área totalmente que não é a música maranhense, e sim uma música popular mesmo, não atinge diretamente a música popular maranhense, não (Luís dos Manus, 2010) Os cantores de seresta internalizaram as versões da elite intelectualizada sobre a “verdadeira” música local. Ocorre aqui uma repetição de movimentos de classificação que ocorreram com o Bumba Meu Boi, com o reggae e que já começam a se fazer ver com a música brega em esfera nacional, quando compositores e cantores relacionados à MPB como Caetano Veloso (que já fazia isso desde os anos 1960), Zeca Baleiro e Otto130 começam a absorver (ou admitir) a influência dos cantores bregas dos anos 1970 e 1980. Também movimentos de música brega de outros estados, como o Calypso e o tecnobrega do Pará, ganham espaço nacional e bandas de grande influência no público jovem, como o Los Hermanos, tem um forte pé na canção de dor de cotovelo. Grupos de vanguarda como o cearense Cidadão Instigado bebem da fonte do brega e festas com canções deste estilo começam a se proliferar. O brega dos anos 1970 e 1980, para usar novamente o conceito de Paulo César de Araújo (2005), começa a se configurar como tradição para os novos compositores da MPB. No entanto, isto ainda não atinge a geração de compositores dos anos 1980 e 1990, como Júlio Nascimento e Evaldo Cardoso, que ainda estão na ativa com farta carreira discográfica e agenda de shows lotada, em choperias como o Kabão e outras tantas espalhadas pelo interior. A construção de uma tradição musical local baseada no Bumba Meu Boi, e a exclusão que esta promove da música brega e das serestas está evidenciada em outros locais, como nas políticas públicas relacionadas à “cultura” do estado, e naquilo que se registra como a canção local. O financiamento público do entretenimento ludovicense está focado nos períodos do São João e carnaval, estando cada um deles relacionados a um tipo de “tradição” e identidade, sendo a primeira o Bumba Meu Boi e seus correlatos, a segunda voltada para o carnaval tradicional de São Luís, apresentado como distinto do carnaval do restante do país, por ser ainda “autêntico” e “cultural”.131 130 Otto é um cantor pernambucano, egresso do manguebeat, cena recifense dos anos 1990, que mesclava música pop, rock e ritmos regionais. 131 Acervo de brochuras turísticas. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 164 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Nos dois períodos, são contratados bandas, cantores, e demais artistas, que se apresentam nos “circuitos de carnaval” ou nos arraiais patrocinados pelo governo do estado e pela prefeitura. No restante do ano, as secretarias de cultura operam, às vezes com base em editais, às vezes com financiamento direto, no patrocínio de discos, DVDs shows e outras ações que visam, segundo a Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão, “a preservação e difusão dos bens culturais materiais e imateriais do Maranhão” (www.cultura.ma.gov.br. Acesso em abril de 2012) Contudo, as ações da secretaria de cultura não contemplam os cantores ou produtores de música brega e seresta produzidas no Maranhão, sendo o elemento definidor daquilo que apoia a identificação, pela SECMA, da “maranhensidade” do material apresentado, estando esta “maranhesidade” materializada na similitude que o material possa ter com a música produzida de, para, e a partir do Bumba Meu Boi. Em 2007, a secretaria, sob o governo de Jackson Lago (opositor ao grupo Sarney), comandada por Joãosinho Ribeiro (poeta e compositor ligado à tradição laborartiana e à geração associada ao Bandeira de Aço) lançou o “Plano fonográfico SECMA 2007 – A voz do povo”, cujo objetivo, de acordo com o edital, era o de promover “o incentivo à criação e à expansão da produção e circulação fonográfica no Estado”. O edital estava dividido nos itens “gravação” (que financiaria todas as etapas de novos discos) e “resgate e memória”, que atenderia “5 propostas de relevante interesse para a cultura musical maranhense”, estando esta dividida em 1 relançamento, 1 registro de obra popular e 1 coletânea intitulada “O som da maranhensidade”, contendo faixas gravadas por todos os selecionados nos dois itens, “escolhidos de comum acordo no repertório maranhense já fixado na memória coletiva e relidos pelos artistas e grupos contemplados” (SECMA, 2007). Para inscrever-se no plano fonográfico, era necessário regravar uma música do “cancioneiro maranhense”, independentemente da proposta do disco que estivesse sendo inscrito no plano. A SECMA, ao selecionar os artistas para patrocínio público, trabalhava a partir de uma ideia de música maranhense como aquela já sedimentada na memória coletiva dos habitantes do estado. Esta ideia fica mais claramente demonstrada quando constatamos que os 10 selecionados no item “gravação” trabalham com algum tipo de canção relacionada à tradição da música maranhe, a saber, Ronald Pinheiro, Omar Cutrim (ambos associados à MPM. Cutrim era integrante do grupo Rabo de vaca nos anos 1970), Boizinho de brinquedo, Gabriel Melônio (este apontado por Luís dos Manus como autêntico porta voz da música do maranhão), Nego Kaapor (banda surgida no final dos anos 1980, sob influência do manguebeat, traduzindo os elementos do Maracatu valorizados pela cena recifente para o folclore local), Bloco Os feras (carnaval “tradicional”), Jorge Roberto (música instrumental, chorística), Dinossauro (do compositor Lobo da Siribeira, cujo traBruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 165 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais balho pode ser identificado com o da banda Nego Kaapor), Arsenal MCs (grupo de RAP e única exceção) e Luís Júnior (violonista que acompanha boa parte dos cantores de MPM). O cantor Freitas Maranhão se queixa deste recorte: Pô, tá faltando mais patrocínio, eu vou lá, eles vão... com certeza, a qualidade musical, eles vão escutar, eles vão adorar! (...) ele [Francisco Padilha, secretario estadual da Cultura do governo José Reinaldo tavares, 2002 a 2007] quem era quem dava o aval. [ele disse] ‘vou te ajudar. Vou te ajudar não, a secretaria vai te ajudar, não sou eu que vou te ajudar não’. Aí eu não conhecia ele, o Josafá, que eu te falei que cantava comigo, me apresemtou ele na hora, né. Aí eu conversando com ele, ‘não porque eu tô gravando um CD, já tá quase pronto, e eu tô precissando dum apoio pra esse CD’. Ele, ‘qual foi o tipo de música que você gravou?’, eu digo ‘eu fiz forró’, aí ele ‘rapá, tu tem que gravar é... eu não posso te ajudar, rapaz, tu tem que gravar é música daqui, rapaz, tu tem que cantar é um Bumba Meu Boi!’, eu digo ‘velho, eu tenho cara de cantor de Bumba Meu Boi, rapá!? Tu tá viajando, velho?! Isso aí tem quem cante mil vezes melhor que eu’, como eu acabei de falar. ‘Rapaz, eu vou tirar uma coisa que não é minha, rapaz, vou roubar, porque isso é um roubo, rapaz, eu vou cantar Bumba Meu Boi, perto duns caras que já nasce, já tá na raiz, no sangue dos caras aquilo ali, um cacuriá, ou uma quadrilha, eu vou cantar isso aí pra tu me ajudar, rapaz, pra te me dar em troca dinheiro pra me ajudar no meu CD, rapaz. Isso aqui pode não ser chamado de música maranhense, mas eu sou 100% ludovicense, rapaz.’ (Freitas Maranhão, 2012) Se a corrente sarneyista constrói e se vale da identidade musical maranhense como atrelada no Bumba Meu Boi, governos e prefeituras de oposição também usam esta identidade. A Secma de Joãosinho Ribeiro, e Francisco Padilha, promovem um recorte semelhante ao realizado pelos governos de Roseana Sarney, com Luís Bulcão à frente da SECMA. O critério para avaliação do material é a menção ao Bumba Meu Boi. Mais uma Vez, Freitas Maranhão menciona um caso: Se [meu CD] fosse brega ele [Francisco Padilha] também não ia me ajudar, ele deixou bem claro (...) tem um amigo meu, que é muito bom chamado Paulo Luan. Depois de ser negado esse meu pedido, eu fui escutar o CD dele (...) a maioria das músicas era brega, aí pra ele ganhar o patrocínio, o apoio, ele gravou um Bumba meu Boi, e eles bancaram o CD do cara. (Freiras Maranhão, 2012). O investimento público para música no estado do Maranhão considera como cultura legitima somente aquela, de alguma maneira, relacionada ao Bumba Meu Boi, e isto leva a estratégias, por parte dos agentes relacionados a outras músicas para conseguir o incentivo. Outras fontes indicam esta posição de despertencimento dos cantores de seresta e brega, o “Perfil Cultural e artístico do Maranhão”, assinado por Josias Sobrinho (cantor e compositor da geração do Laborarte e do Bandeira de Aço) e publicado pela Vale e a Associação de Apoio à Música e à Arte do Maranhão – AMARTE, em 2007, com a “intenção de registrar as manifestações culturais do Maranhão e assegurar a sua preservação para as próximas gerações”. O projeto documenta oito segmentos das mais ricas tradições do estado: Arquitetura, Artesanato, Artes Cênicas, Artes Plásticas, Culinária, Cultura Popular, Literatura e Música. (...) A publicação especial reúne e amplia em um único trabaBruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 166 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais lho, um valioso acervo repleto de pluralidade, fruto da herança das diferentes etnias do povo maranhense. Além de beneficiar a população maranhense com a documentação das suas heranças e tradições culturais, o Perfil também servirá como importante fonte de estudo para pesquisadores, universitários, professores e estudiosos do assunto. O Perfil será distribuído em bibliotecas, museus, memoriais, escolas, instituições culturais e artísticas, com a finalidade de difusão e preservação do acervo cultural maranhense. Histórico do projeto - a iniciativa do projeto surgiu há dois anos, quando a AMARTE idealizou o registro histórico do modo mais completo possível. São atividades e eventos que integram a vida cultural e artística do estado, nas suas mais variadas formas de expressão e apresentação: na música, na pintura, na escultura, na literatura, no artesanato, nas artes cênicas, na culinária e nas festas folclóricas etc. (release na sala de imprensa do site da Vale, em www.200.225.83.165/saladeimprensa/pt/releases/release.asp?id=17492. Acesso em abril de 2012) Novamente a cultura do Maranhão é qualificada por sua “diversidade”, “riqueza” e “tradição”, e o livro se apresenta como a “mais completa possível”, e se propõe como fonte legítima para a posteridade. Apesar de brega estar considerada entre as 10 “vertentes musicais no Maranhão” (SOBRINHO, 2007), junto ao canto lírico, canto coral, hip hop, reggae, rock, samba, choro, MPM e o pop, somente Lairton dos Teclados conta com um entre os quase 160 verbetes do capítulo “músicos maranhenses”, aparentemente pelo mesmo motivo que o levou ao Prêmio Universidade FM. também o capítulo. “Espaços públicos e privados de apresentação de shows e música ao vivo” não menciona nenhuma das choperias da cidade, mesmo as mais famosas como Kabão e Marcelo ficam fora do registro. Estes cantores e seus locais de apresentação passam, portanto, pelo desconhecimento e descrédito das instituições legitimadoras da “verdadeira” cultura e da “verdadeira” identidade musical maranhense. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 167 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais CONSIDERAÇÕES FINAIS Comecei esta pesquisa com a intenção de entender como o teclado, enquanto aparato técnico, havia contribuído para a mudança de paradigma de produção, comercialização e fruição da música popular no Maranhão. Para isto, eu precisaria entender mais a fundo como este processo se realizou e como culminou no fenômeno da seresta e do brega feito com teclado nos anos 1990, período de minha formação. Cresci ouvindo estes cantores (Júlio Nascimento, Adelino) e só fui apresentado àquilo que se alardeia como cultura maranhense, o folclore e a MPM, quando já era adolescente, de maneira que a figura “penosa” de Júlio Nascimento é tão representante do lugar onde eu nasci quanto podem ser os acordes do Bandeira de Aço, ambos capazes de evocar em mim um certo saudosismo. De repente, a música que eu ouvia pela minha mãe (Roberta Miranda, Altemar Dutra) e pelas empregadas da minha casa (Júlio Nascimento) era posta em cheque por uma série de discursos e práticas voltadas para um outro foco identitário, que incluía também o reggae, que eu frequentava (e frequento) e o carnaval da Madre Deus. Esta inquietação foi o ponto inicial do meu interesse acadêmico pela canção brega no Maranhão nesta época. O trabalho de campo me apresentou à categoria seresta como uma vertente da música brega, e levou a outros movimentos como o das bandas de baile, diretamente associadas a seu surgimento. A seresta e a canção brega feita com teclado encontram maior florescimento no Maranhão da metade da década de 1980, e é daqui que saem os mais expressivos nomes deste nicho para o mercado regional nos anos 1990, através de gravadoras como a Gema, formatando assim um movimento musical maranhense, com nomes como Adelino Nascimento, Raimundo Soldado, Júlio Nascimento e Lairton. A tecnologia digital é de fundamental importância para a eclosão deste movimento, e o teclado com ritmo se torna sinônimo da seresta e de seus locais de realização, as choperias. Realizei trabalho de campo nas duas maiores choperias de São Luís, Kabão e Marcelo, buscando entender as diversas tomadas de posição dentro de seu universo, e a forma como se viam e representavam públicos, artistas, empresários e demais agentes relacionados a estes espaços, com foco na posição de descrédito que estes locais ocupam nas narrativas da elite de São Luís. Pude perceber que o descrédito e o estigma em relação às choperias, esconde um universo rico de representações e disputa, com choperias segmentadas por público, com a música que executam segmentada pelos seus realizadores por diversos critérios, que incluem o brega, o boleBruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 168 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais ro, a tradição. Identifiquei o Arrocha como uma nova tendência neste universo, e os conflitos que esta tendência gera entre os frequentadores e artistas mais antigos das serestas. Com o começo das entrevistas, percebi que os agentes envolvidos com a música brega se excluíam da música maranhense, o que me fez perceber que, para entender o processo de exclusão internalizado pelos próprios artistas, teria que investigar a formação dessa identidade musical maranhense a partir da qual eles constroem suas narrativas. Foi este exercício de compreensão que tentei fazer neste texto, através de uma narrativa apoiada majoritariamente nos agentes envolvidos com os movimentos analisados. Observei que aquilo que se entende como música maranhense é uma tradição construída por diversos interesses, que perpassam tanto o interesse acadêmico pelo folclore, atos afirmativos no período da ditadura militar, discursos modernizadores do sarneyismo (sobre os quais não me aprofundei, pois isto seria um trabalho à parte), além da literatura de nomes como Josué Montello (que aqui também não explorei). No Maranhão se fazia música brasileira até a criação do emblema afirmativo da MPM influenciadas por discos como o Bandeira de Aço e com o aporte de novos veículos como a Mirante FM. Isto somado à ideia de alta cultura imposta sobre a ilha de São Luís, não só fisicamente apartada do resto do estado, mas vista pelos mais diversos agentes como uma cidade que costuma produzir intelectuais e intelectualismos. É a partir dessa aura que falam tanto aqueles que se incluem no grupo intelectualizado quanto os que dele se excluem. Portanto, os anos 1970 e 1980, assistiram à constituição de uma identidade musical para o Maranhão, substanciada em uma canção urbana, moderna, que bebia nas fontes do folclore, enquanto este mesmo folclore mudava de uma posição marginal para produto turístico e ideológico. Além disso, a formação de meios de legitimação impressos e eletromagnéticos sedimentou aquilo que se reconhece como MPM. A construção da identidade musical maranhense passa pelo que REIS (2010) identifica. Reis entende que “a valorização do ‘patrimônio arquitetônico’ é resultado de um trabalho social de invenção, nos quais os agentes, ao construírem e confrontarem versões de e do ‘patrimônio’ (comum e coletivo), podem incrementar seus patrimônios pessoais, beneficiando-se pela detenção de autoridade legítima de defini-los, e galgando posições socialmente reconhecidas em seu nome” (REIS, 2010, p. 512). A definição de um estilo de música como a “legítima” expressão do Maranhão é acionada não somente por seus criadores (os brincantes, cantores e tocadores de Bumba Meu Boi), mas pela elite que a define como tal. Isto pode ser visto nas posições ocupadas pelos associados à Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 169 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais MPM nos editais públicos, nos pareceres sobre a cultura do estado e cargos ocupados em nome da detenção deste conhecimento. 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Delegada titular da delegacia de costumes, delegada da polícia civil. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. André Lisboa. Jornalista, editor de cultura do jornal O Estado do maranhão. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Anginho dos teclados. Seresteiro. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Betto Pereira. Cantor e compositor. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2008. Bruto Dantas, empresário e compositor. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2008. Celso Borges. Escritor e poeta, ex-diretor da rádio Mirante FM e TV Mirante. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. César Nascimento. Cantor e compositor. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. César Roberto. Radialista, cantor e compositor Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011 César Roberto Jardim Pereira. Gerente da choperia o Marujo. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. César Teixeira. Cantor e compositor. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Domer. Compositor e cantor. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Domingos Castro. Músico, produtor, seresteiro e dono de bandas de baile. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em junho de 2011. Erick Salgado. Músico, produtor de muitos cantores de seresta nos anos 1990. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2008. Eugênia Miranda. Cantora de seresta e bandas de baile. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2008. Euclides Moreira. Secretário municipal de cultura de São Luís. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Geraldo Proença. Dono da gravadora Gema e Produtor de discos. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2008 Gilberto Mineiro. Jornalista e produtor cultural integrante da equipe original da Mirante FM. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 175 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Gilberto Santos “O Peso”, Músico e empresário de bandas de baile. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011 Gisele Menezes. Diretora da Associação do Pessoal da Caixa. . Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2012 Heve Estrela. Advogada. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Idinete Machado. Empresária, dona do Restaurante Porto do Calhau. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Jorge Luongo. Comandante da Companhia de Policiamento de Turismo, Major da PM do Maranhão. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Jorge Thadeu. Jornalista e cantor. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. José Alves. Empresário do cantor Silvanno Salles e vereador. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. José Oniton. Produtor, compositor e cantor de seresta e brega. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Julio Nascimento. Cantor e compositor. Entrevista realizada por bruno Azevedo em 2008 e 2011. Kabão. Empresário, proprietário da chopperia Kabão. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2008. Lairton dos teclados. Cantor e músico. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2008 Lucinele Castro. Cantora da banda do Kabão. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Luis dos Manus. Cantor, seresteiro. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2010. Maguila. Chefe de segurança da choperia Marcelo. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Margarida Froz. Frequentadora de serestas. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Mariane Guedes. Cantora de seresta. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Odilon Mendes. Empresário, dono do Restaurante do Calhau. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Olivia Franse. Jornalista. Produtora da TV Mirante. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Othon Bastos. Guitarrista de grupos de baile, seresta e cantores de brega. Músico de estúdio. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Orlando Andrade. Seresteiro. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Paulo Trabulsi. Músico fundador da serenata caixa alta. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2012. Rosacruz. Tenente da PM. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2010. Tinoco. Coronel da PM. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2010. Papete. Cantor e compositor. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Paulo Pelegrini. Jornalista e músico, diretor da rádio Universidade FM. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Pedro Sobrinho. Radialista da Mirante FM, blogueiro e DJ. Entrevistas realizadas por Bruno Azevedo em 2008 e 2011. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 176 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Pepê Junior. Músico e cantor, integrante da banda O Peso e do Sambauê. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Riba Show. Tecladista e cantor. Um dos pioneiros da seresta com teclado. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Ricarte Almeida Santos. Radialista, pesquisador e produtor cultural envolvido com o choro e a MPM. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2012. Robinho. Tecladista da choperia Marujo. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Robson. Cantor da banda Total. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Robson Jr. Radialista. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Rogerinho. Tecladista e cantor, seresteiro. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Ronaldo Emílio. Gerente da Choperia São Luís. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Sérgio Augusto. Guia de turismo. Entrevista realizada por Karla Freire em 2008. Silvanno Salles. Cantor de arrocha, baiano. entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Som Costa, cantor da Banda do Kabão, entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Tony Tavares. Radialista, cantor e DJ de reggae. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2010. Thalita de Sá. Cantora da serenata Caixa Alta. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Walfredo Jair. Cantor, vocalista de Os Fantoches e seresteiro. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Walber. Cantor. Ex-membro do Nonato e seu Conjunto e dOs Fantoches. Hoje canta na seresta do MAC. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Wilsinho. Seresteiro. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Zé Ray. Cantor e compositor. Gravou 18 discos. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. Zeca Baleiro. Cantor e compositor. Entrevista realizada por Bruno Azevedo em 2011. 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[ ] primeira vez [ ] uma vez a cada seis meses ou a cada ano [ ] uma vez por mês [ ] pelo menos 2 vezes por mês [ ] toda semana [ ] mais de uma vez por semana Qual(is) o(s) motivo(s) de ir a uma choperia? (pode marcar mais de uma) [ ] porque gosto da música [ ] para dançar [ ] é um bom lugar para paquerar [ ] para trabalhar [ ] não gosto da música, mas venho acompanhando amigos [ ] só venho quando acontecem grandes shows [ ] outros motivos: _____________________________________________________________ Como você classifica a música que toca nas choperias? _____________________________________________________________________________ Você ouve estas músicas em casa ou em outros lugares? _____________________________________________________________________________ Você tem CDs, DVDs, Mp3 destas músicas? Se sim, onde os adquire? São “originais”? _____________________________________________________________________________ A sua família ou as pessoas com quem você mora gostam dessas músicas? _____________________________________________________________________________ * Se você gosta das músicas: 1) Como começou a gostar? _______________________________________________________ 2) Qual o cantor e/ou banda preferido? _______________________________________________________ 3) Com o que você mais de identifica nas músicas? _______________________________________________________ 4) Você gosta de ouvir (pode marcar mais de uma opção) [ ] músicas com banda inteira [ ] músicas somente com o teclado [ ] não faz diferença [ ] nunca pensei nisso [ ] outros:_________________________________________ Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 178 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Anexo 02 – CD – Lista de canções 01 – Que queres tu de mim, 1964 Canção no modelo típico daquilo que é considerado como a música brega que erigiu nos anos 1970. Autores - Evaldo Gouveia e Jair Amorim Intérprete – Altemar Dutra Clássico do bolero brasileiro. 07 – Chega de papo, 1978 Autores – 02 – A volta do boêmio, 1956 Intérprete – Carlos Alexandre Autor – Adelino Moreira Canção brega nos formatos mais populares no final dos anos 1970 e 1980, quando o brega se torna mais velos, e com algum humor. Intérprete – Nelson Gonçalves Samba canção, estilo de samba abolerado popular nas serestas. 03 - Two-Part Invention, for keyboard No. 4 in D minor, 1968 08 – Louvação a São Luís, 1972 Autores - Bach Intérprete – Lyra Matos e Côro. Intérprete – Wendy Carlos Canção extraída do álbum do I Festival da Música Popular Brasileira no Maranhão. Aqui serve de exemplo de como era a música local nos anos 1970. Autor – Bandeira Tribuzzi Versão eletrônica de música clássica. 04 – The robots, 1978 Autores - Kraftwerk 09 – Meu samba choro, 1978 Intérprete - Kraftwerk Autor – Chico maranhão Música pop eletrônica, dos primórdios da experimentação com instrumentos como o Minimoog. Os timbres são todos sintetizados, tocados com teclados eletrônicos. Intérprete – Chico Maranhão Canção maranhense dos anos 1970, lançada pouco antes do bandeira de Aço, e pelo mesmo selo, e ainda sem os traços do Bumba meu Boi. 05 - Namoradinha de um amigo meu, 1966 Autores – Roberto Carlos 10 – Tambor de crioula, 1975 Intérprete – Roberto Carlos Autor – Nonato e seu conjunto Iê iê iê, rock do período da jovem guarda, movimento que incluía a eletrificação dos instrumentos. Intérprete – Nonato e seu conjunto 11 – Festa a São João, s/d 06 – Eu vou tirar você desse lugar, 1972 Autor – Boi de Morros Autores – Odair José Intérprete – Boi de Morros Intérprete – Odair José Bumba meu boi de sotaque misto, com elementos de matraca e orquestra Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 179 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais 19 – Leidiane (original), 1991 12 – Catirina, 1978 Autor – Júlio Nascimento Autor Intérprete – Júlio Nascimento Intérprete – Papete Gravação original da canção, ainda com traços de música acústica. A bateria não era feita no teclado. Canção do disco Bandeira de Aço, com fusão da música popular urbana e o folclore maranhense. 20 – Profissional papudinho, s/d 13 – Boi da Lua, 1978 Autor -Roberto Villar Autor Intérprete – Roberto Villar Intérprete – Papete Brega paraense, sucesso quando da eclosão do fenômeno das serestas. Canção do disco Bandeira de Aço, com fusão da música popular urbana e o folclore maranhense. 21 – Proibido amar demais, s/d Autor – Tonny Cajazeiras 14 – Engenho de flores, 1978 Intérprete – Tonny Cajazeiras Autor Típico brega feito no teclado, em estúdio. Intérprete – Papete Canção do disco Bandeira de Aço, com fusão da música popular urbana e o folclore maranhense. 22 – Leidiane (em ritmo de seresta), 1993 Autor – Júlio Nascimento Intérprete – Júlio Nasicimento Versão “em ritmo de seresta”, retirada do disco em ritmo de seresta, feito inteiramente com um só teclado, “ao vivo” no estúdio. 15 – Fiquei tão triste, s/d Autor - Raimundo Soldado Intérprete – Raimundo Soldado 23 – Bebo mais, s/d 16 – Não vendo mais a casa, 1988 Autor – Zé Ray Autor – Adelino Nascimento Intérprete – Gonzaga Júnior Intérprete – Adelino Nascimento Canção estilo brega de teclado, que fez sucesso no final dos anos 1990, com o estouro do movimento. 17 – Não tem jeito que dê jeito, s/d Autor - Raimundo Soldado 24 – Dalziza, 1993 Intérprete – Raimundo Soldado Autor – Júlio Nascimento/Jair Intérprete – Júlio Nasicimento 18 – Toca telefone, 1988 Brega “em ritmo de seresta”, do disco em ritmo de seresta, feito inteiramente com um só teclado, “ao vivo” no estúdio. Autor – Adelino Nascimento Intérprete – Adelino Nascimento Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 180 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais 25 – Morango do Nordeste, 1998 29 – Ilha Bela, s/d Autor – Walter de afogados e Fernando Alves Autor – Carlinhos Veloz Intérprete – Carlinhos Veloz Intérprete – Lairton dos teclados Exemplo de canção reconhecida como MPM, com aspectos de reggae. Canção de maior sucesso comercial vinda das serestas e da junção da música brega/bolero com o teclado. 30 – Pout Porri de toadas, s/d Autor – Vários 26 – Que queres tu de mim, s/d, estimado como começo dos anos 2000 Intérprete – Papete Coletânea de toadas de bumba meu boi na voz de Papete. Autores - Evaldo Gouveia e Jair Amorim Intérprete – Zezo Versão no estilo seresta de um clássico do bolero. 31 – Eu sou seu fã, s/d Autor – Silvano Salles 27 – Vou voltar pra São Luís, 1989 Intérprete – Silvano Salles Autor – Adelino Nascimento Exemplo de arrocha baiano. Intérprete – Adelino Nascimento 32 – Toca telefone, s/d Canção ainda com banda de Adelino Nascimento, no auge de sua carreira Autor – Adelino Nascimento Intérprete – Adelino Nascimento 28 – Boi de Haxixe, 1999 Versão “em ritmo de seresta”, com um Adelino Nascimento já em decadência. Autor – Zeca Baleiro Intérprete – Zeca Baleiro Canção com influência do sotaque de orquestra do Bumba meu Boi. Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 181 Universidade Federal do Maranhão / Centro de Ciências Humanas / Mestrado em Ciências Sociais Bruno da Silva Azevedo / Em ritmo de seresta / dissertação de mestrado 182