religião e política no antigo israel - FNB Online
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78 RELIGIÃO E POLÍTICA NO ANTIGO ISRAEL Elissa Gabriela Fernandes Sanches* Resumo A teologia cristã, na tentativa de fornecer respostas ao contexto presente, deve ser coerente com a sua linha de pensamento. Como saber da fé, ela precisa, a partir das Escrituras, olhar para o contexto histórico atual e pensar como Deus atua nos setores da vida pública social, ética e, sobretudo política. Em vista disso, é premente entender como Deus age na criação, e por isso a necessidade de retorno às origens, de modo a investigar Sua presença no mundo. Este artigo tem como proposta analisar, – com base em dados bíblicos e documentais, enfatizando, sobretudo, na fonte javista – a forma como Israel compreendia a Iahweh desde a formação das doze tribos até o estabelecimento na Terra Prometida. Com isso, pretende-se reforçar a imprescindibilidade de se olhar para a história bíblica e recuperar a riqueza de discernimentos dos antigos sobre como Deus se manifesta no mundo, este o ponto de partida para recomeçar a pensar na forma como Deus se revela hoje, em meio a Sua criação, acompanhando a cultura e história humanas. Palavras-chave: pré-exílio; patriarcas; teologia e política; fonte javista. Abstract Christian theology, as it tries do provide answers to the current context, must be coherent with its line of thought. As the knowledge of faith, it must, from the Scripture, look to the current historical context and think how God acts in the different public life’s areas: social, ethical and especially political. It is, therefore, a pressing issue to understand how God acts in its creation and, because of that, a necessity of returning to the origins, to investigate His presence in the world. This paper attempts to analyse – based in biblical and documental data emphasizing specially the Yahvistic source – the way in which Israel understood Yahweh since the formation of the twelve tribes until their settlement in the Promised Land. In this way, we want to reinforce the indispensability of looking to the biblical history and recover the richness of understanding from the ancients about how God manifests Himself in the world, that being the starting point to rethink how God reveals Himself today, amidst His creation, accompanying human history and culture. Keywords: pre-exile; patriarchs; theology and politics; Yahwistic source. * Graduada em Teologia [email protected]. pela Faculdade Nazarena do SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel. dez. 2015, p. 78-93. Brasil (FNB). Contato: INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. - 79 INTRODUÇÃO O Antigo Testamento é uma coleção de livros escritos anteriores ao nascimento de Jesus de Nazaré, fenômeno este que demarca o início de um novo tempo. No total ele é constituído por 39 obras – são 46 na Bíblia Cristã Católica – e apresenta o anseio profético diante do futuro, em que uma nova aliança será estabelecida. O vocábulo aliança, no latim, significa testamentum, no qual se situa o léxico bíblico: Antigo Testamento, Antiga Aliança. São marcantes as diferenças entre o Antigo e o Novo Testamentos, de tal forma que surgiram diversas seitas como a dos cátaros, que afirmavam a distinção concomitante dos deuses. O Catarismo foi um movimento asceta que surgiu no século XI d.C. e perdurou até o século XII d.C. Acredita-se que suas crenças tiveram origem no Império Bizantino, e eles se opunham à Igreja Católica, protestando contra suas práticas “impuras”. Na visão deles, o Deus bom e verdadeiro era unicamente aquele do Novo Testamento. Todavia, os primeiros pensadores medievais cristãos já avaliavam o Novo Testamento como um conjunto de textos que, dentre outras coisas, apresentavam o cumprimento das profecias presentes no Antigo Testamento. Agostinho de Hipona, filósofo e teólogo patrístico, estudava as Sagradas Escrituras na tradução da Vulgata Latina trabalhando uma hermenêutica que encontrasse correspondências entre os dois conjuntos bíblicos. As narrativas bíblicas retratam uma série de eventos que, em sua maioria são considerados realmente históricos. A humanidade ali presente, vinculada à divindade de Yahweh (ou Elohim), deve servir como base para as perguntas que assolam a razão de hoje. Submersa no mar da complexidade contemporânea, a Bíblia, em nenhum momento, se mostra menos complexa. Recheada de simbolismos, significados e revelações ocultas, ela apresenta, de forma bastante sensível, a origem, continuidade e desenvolvimento do contato da criação com o criador, em particular dos seres humanos. O objetivo desta breve investigação é suscitar algumas pistas, através das reflexões de estudiosos da Bíblia, que possam ser capazes de elevar o pensamento a, no mínimo, visualizar a necessidade de se aprofundar nas questões por eles apresentadas. Talvez assim, despontem pequenos estalos de iluminação que auxiliem na atual busca por respostas. 1. O Antigo Testamento: história e a torah O conjunto de livros agrupados pelo Antigo Testamento fornecem relatos históricos dos mais diversos, bem como incluem escritos de uma variada gama de SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel. dez. 2015, p. 78-93. INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. - 80 gêneros textuais, os quais, em síntese, favorecem a compreensão da historiografia do povo de Israel. As edições dos textos bíblicos que se encontram disponíveis nos dias atuais são resultado de traduções de manuscritos de origens miscigenadas, como Elpidius Pax informa Nossas edições modernas do texto se baseiam em manuscritos hebraicos dos séculos IX a XII d.C., entre os quais se destacam o chamado códice dos profetas do Cairo, o códice de Leningrado e principalmente o chamado códice padrão dos judeus sefaraditas de Alepo (PAX, 2012, p. 29). Após a recuperação dos documentos, se seguiram vários esforços em traduzilos, como a obra Septuaginta, também chamada de LXX, resultante da tradução da Bíblia hebraica para a língua grega koinê. Ela também foi considerada a única fonte documental historiográfica até a descoberta dos manuscritos do Mar Morto, os documentos de Qumran (SANTOS, 2008a, p.3), em 1947. Este evento pode ser descrito da seguinte forma: A seita judaica lá estabelecida, que viveu numa espécie de ordem religiosa do século I a.C. até o século I d.C., guardou a sua biblioteca em utensílios de barro ante a invasão iminente dos romanos e escondeu-os em cavernas inacessíveis nas montanhas da Judeia. Lá apareceram um rolo completo do livro de Isaías e fragmentos maiores ou menores de todos os livros canônicos, com exceção de Ester, que datam mais ou menos do séc. I a.C. A grande surpresa consiste no fato de que esses textos estão amplamente de acordo com os textos que nos eram conhecidos até então. Mostrou-se que não tinha fundamento o temor de que muitas mudanças tivessem sido feitas ao longo dos séculos. Nas variantes, eles se assemelham fortemente à Septuaginta (PAX, 2012, p. 31.). É preciso destacar o vasto trabalho dos massoretas na reconstituição dos vocábulos textuais, inserindo vogais entre as letras para identificação dos termos. Neste sentido observa-se, principalmente, a importância dos trabalhos executados pela família Ben Asher, entre os séculos VIII a X d.C., uma das principais a realizarem este empreendimento1. O cânon bíblico do Antigo Testamento atual se divide em duas vertentes: a primeira foi estabelecida pela Igreja Católica, no Concílio de Trento (PAX, 2012, p. 33), realizado entre 1545 a 1563 pelo Papa Paulo III e dividido em três períodos de discussões (1545-47, 1551-52 e 1562-53). Nas sessões iniciais estabeleceu-se a 1 PAZ, 2012, p. 30. Para conferir informações mais detalhadas sobre o assunto, ver a dissertação de mestrado: FRANCISCO, Edson Farias. Masora Parva comparada: Comparação entre as Anotações massoréticas em textos da Bíblia Hebraica de Tradição Ben Asher em Isaías, capítulos de 1 a 10. 2002. 250 f. Dissertação (Mestrado em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel. dez. 2015, p. 78-93. INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. - 81 oficialidade do cânon bíblico do Antigo Testamento 2 a ser utilizado pela Igreja Católica nos anos que se seguirem e. Neste acordo foram incluídos na versão final do cânon, os livros apócrifos de Judite, Tobias, Sirácida, Sabedoria de Salomão, 1 e 2 Macabeus e Baruque. Já a segunda vertente do cânon foi adotada por Martinho Lutero (PAX, 2012, p. 33) que optou pela versão aceita pelo Concílio de Jâmnia, ocorrido entre os anos 75 a 115 a.C. Johann Maier deixa bem claro que a afirmação da canonicidade de um texto não o torna mais ou menos verídico historicamente em comparação com os textos não-canônicos, “A canonicidade define uma qualidade religiosa, no âmbito de uma teologia da revelação, e decide sobre o uso litúrgico ou outro uso religioso” (MAIER, 2005, p. 22). O Pentateuco é o conjunto dos cinco primeiros livros do Antigo Testamento, e agrupam o conjunto de leis e relatos acerca da formação das doze tribos de Israel e sucessivo assentamento na terra que havia sido prometida por Iahweh (fonte javista) ou Elohim (fonte eloísta). Para a religião judaica, este grupo bíblico é denominado torah, ou seja, o conglomerado de normas definidas como a lei de Deus para o Seu povo, e que possui suposta autoria mosaica. Para alguns teóricos biblistas, a formação narrativo-literária do Pentateuco se estende ao longo dos livros de Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis. Portanto, o conjunto total deveria ser um Heptateuco, Octateuco ou até Eneateuco. Por outro lado, estudiosos como Martin Noth e Roland de Vaux afirmam a necessidade do livro de Deuteronômio ser colocado a parte e, assim, ser considerado o prefácio da obra deuteronomista. O Pentateuco neste caso seria denominado Tetrateuco (SANTOS, 1998b, p. 16). Todavia, Ska reconhece a relevância própria da tradicional ordem bíblica: Há razões importantes para continuar falando de um “Pentateuco”, embora [...] esse modo de integrar os primeiros livros do Antigo Testamento não exclua outros. Mas ele tem um valor especial, porque leva em conta uma forma canônica, definitiva e normativa da Bíblia para a comunidade de fé, ou seja, primeiro para o povo de Israel, agora para as Igrejas cristãs. (SKA, 2003, p. 23). Com referência à autoria, sabe-se que, na tradição judaica, a escrita do Pentateuco foi realizada pelo patriarca Moisés. Porém, um dos primeiros teólogos a contestarem tal afirmativa foi o reformado Andreas Bodenstein von Karlstadt entre os séculos 15 e 16 (SANTOS, 1998b, p. 21) por meio de análises no estilo textual de Deuteronômio 34. Em seguida, outros biblistas, ao proporem novas hipóteses, avaliaram a possibilidade da existência de compiladores que deram a forma final ao 2 Enciclopaedia Britannica. Council of Trent: Roman Catholicism. 2014. Disponível em: http://www.britannica.com/event/Council-of-Trent. Acesso em 10 Jul 2015. SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel. dez. 2015, p. 78-93. INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. - 82 texto do Pentateuco.3 2. A organização tribal de Israel Em Gênesis está apresentado o princípio da compreensão política do povo de Israel, em que o próprio texto aborda o entendimento dos israelitas sobre o tipo de governo que Iahweh requeria deles. O livro é uma compilação de diversas narrativas e tradições que, por muito tempo, permaneceram orais. Afirma-se4 também que tais composições possuem muitos elementos de similaridade com a mitologia mesopotâmica, egípcia e da extinta cidade portuária síria, Ugarit. Alguns autores afirmam que estes elementos não são coincidentes, e resultam de um longo processo de assimilação narrativa. Para eles, tais mitologias serviram como um modelo para as histórias da criação posto que eram anteriores ao pensamento monoteísta dos indivíduos pré-patriarcais. Afinal muitos já tinham feito os mesmos questionamentos que o povo de Israel estava começando a realizar, para fins de compreender as origens de sua fé. No prólogo da obra A criação e o dilúvio: segundo os textos do Oriente Médio Antigo o autor Jacques Briend se preocupa em esclarecer esta questão: Antes de o povo de Israel ter à luz da fé sua própria visão das origens, outras culturas, no quadro literário do mito ou da lenda, tinham procurado trazer uma resposta aos grandes questionamentos do homem que vive em sociedade: Quem somos nós? Qual a nossa relação com os deuses? Como compreender a realidade do trabalho, do casal humano, do ato de gerar, do culto? Qual a ordem deste mundo? Quem preside as forças presentes neste mundo e a quem elas obedecem? Como compreender os flagelos que se abatem sobre a humanidade (seca, fome, epidemias, dilúvio)? Por outras palavras, a reflexão de Israel não é a primeira, em época precisa; sem deixar de ser original, inscreve-se em longa busca religiosa: de um lado e de outro, as perguntas são as mesmas, embora as respostas não sejam idênticas. (DUPRAT, 1990, p. 5). Ainda que o texto em Gênesis seja de linguagem mítica, esta característica 3 Andreas Masius acreditou ter sido Esdras o compilador dos textos do Pentateuco, para Jean Leclerc foram os samaritanos a manterem a identidade das narrativas (SANTOS, 1998). Todavia, é de consenso geral da crítica bíblico-histórica que as formas finais do Pentateuco foram reunidas por um sacerdote durante o período do exílio babilônico (587 a.C.). “A postura mais tradicional (dentro da crítica histórica) é de supor que esse sacerdote não compôs na realidade uma obra literária própria, senão que se limitou a reunir em um volume duas obras anteriores (JED e P) sem incluir nada substancial que lhe fosse próprio (por esta razão se lhe dá o nome de “redator” e não de “autor”), com a finalidade de recompilar todas as tradições existentes e impedir assim que se perdessem neste período tão calamitoso para seu povo” (SANTOS, 1998, p. 24). 4 Referente a isto, conferir CLIFFORD, R. J.; MURPHY, S. J. R. E.; CARM, O. Gênesis. In:. BROWN, R. E.; FITZMYER, J. A.; MURPHY, R. E. Novo comentário bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. Trad. Celso Eronides Fernandes. São Paulo: Ed. Academia Cristã Ltda; Paulus, 2007. E a obra DE M. DUPRAT, M. C. (trad.). A criação e o dilúvio: segundo os textos do Oriente Médio Antigo. São Paulo: Paulinas , 1990. (Documentos do Mundo da Bíblia, v. 7). SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel. dez. 2015, p. 78-93. INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. - 83 não dispensa a tradicional compreensão das Sagradas Escrituras como literatura inspirada, pois todos os relatos contidos devem ser compreendidos como fruto de uma experiência vivencial entre Iahweh e Seu povo. Como Briend também reconhece: “O texto bíblico procura compreender o destino da humanidade diante do Deus vivo” (DUPRAT, 1990, p. 6), destino esse presente na totalidade da história humana, cumprido a cada dia por meio da missão que cada cristão assume através de seu chamado para servir a Deus. Nos relatos bíblicos de forma geral está claro que o povo de Israel se apropriou, com o tempo, de uma composição política semelhante à dos grandes impérios ao seu redor, como o egípcio por exemplo. Porém, com a ressalva de que a liderança era, na verdade, uma intermediadora do governo de Iahweh em relação ao seu povo. Assim, retornando ao modo tribal pré-monárquico de Israel, em que o governo era realizado pelas próprias tribos, sua articulação sócio-política era diferenciada daquela de seus vizinhos. A dinâmica da organização interna das tribos de Israel durante a sua primeira fase, do estabelecimento na terra de Canaã de acordo com Roland de Vaux (2003, p. 26) ocorreu da seguinte forma: os indivíduos eram as unidades-base que, ligados por vínculo de sangue5, constituíam as famílias, as quais eram reunidas em clãs que, agrupados, formariam uma tribo. Esta descrição serve para se ter uma noção da totalidade da constituição política do povo de Israel antes do exílio6. Cada unidade de formação (família, clãs, tribos, Israel) possuía sua liderança e seu governo específico: a família era regida pelo patriarca, o clã pelo conjunto de patriarcas, denominados anciãos. Cada tribo possuía o seu chefe que, no caso dos árabes, é o sheikh. De Vaux afirma não saber exatamente o cargo semelhante ao sheikh nas tribos israelitas, no entanto “seria normal que as tribos fossem representadas nele [espécie de conselho] nas pessoas de seus chefes” (DE VAUX, 2003, p. 27). O chefe das tribos era o juiz “que tinha a missão de manter a unidade das tribos. Era como uma espécie de curinga, quando surgia algum conflito interno ou externo, entrava em ação”. 7 . Entretanto, De Vaux explica que não existia um 5 De Vaux (2003, p. 24) informa que “Com relação aos indivíduos, sua incorporação a uma tribo pode realizar-se por adoção em uma família [...] ou por aceitação do sheikh ou dos Anciãos. [...] o recém-chegado é ligado ‘por nome e sangue’ à tribo, ou seja, reconhece o antepassado da tribo como seu próprio antepassado, se casará dentro da tribo e fundará uma descendência.”, e no caso das tribos de Israel, o elo de parentesco entre todos se dava pela fé que possuíam em Iahweh. Este era superior a qualquer vínculo sanguíneo (DE VAUX, 2003, p. 25). 6 Tal constituição política está de forma clara apresentada na Bíblia Sagrada, Antigo Testamento, livro de Josué, capitulo 7, versículos 14 a 18. 7 LUZA, Nilo. Formação das Tribos. In: LUZA, Nilo. Etapas da história de Israel. Fev. 2014. SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel. dez. 2015, p. 78-93. INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. - 84 sistema político propriamente dito, muito menos um governo permanente das tribos: Em todo caso, os relatos do livro dos Juízes mostram a confederação das tribos sem órgão de governo e sem verdadeira eficácia política. Os membros formam um mesmo povo, participam de um mesmo culto, mas não têm um líder comum e a tradição antiga não conhece nessa época nenhuma personalidade comparável a Moisés ou Josué. Sem dúvida, o redator do livro dos Juízes divide o período entre líderes, que teriam regido sucessivamente a todo Israel depois de têlo libertado de uma opressão estrangeira. Faz já tempo que se reconhece que essa apresentação é artificial. Esses a quem chamamos os ‘grandes juízes’, são os ‘salvadores’, cf. Jz 3:9,15, de um clã ou de uma tribo em situação crítica. Só excepcionalmente sua ação se estende a um grupo de tribos, como no caso de Gideão e, sobretudo, de Débora e de Baraque (DE VAUX, 2003, p. 119). Quanto à formação tribal e sua origem, algumas teorias histórico-bíblicas concordam que Israel é um grupo heterogêneo de famílias, indivíduos e clãs que já existiam anteriormente e migraram de pontos em pontos na busca de um local para se estabelecerem, protegidos de outros povos maiores e possíveis invasões estrangeiras. Em seu meio haviam mercenários, estrangeiros, bem como conjuntos familiares de antigas tradições. Para Georg Fohrer existiram várias ondas de migração de diversos grupos no Oriente Médio Antigo para a Palestina, e que ele enumera de um a quatro. A quarta onda, ele chama de onda aramaica, a qual justifica a procedência de parte dos indivíduos que compõem a população de Israel. Todavia, “é duvidosa a origem aramaica dos grupos associados com os nomes dos patriarcas” (FOHRER, 2006, p. 34). devido a assincronia temporal entre a penetração na Mesopotâmia seguida da migração para a Palestina. Suspeita-se que tais grupos “aramaicos” eram, na verdade, povos mesopotâmicos. Os relatos bíblicos apresentam uma outra explicação das origens dos israelitas. Segundo Dt. 26:5-9 eles são provenientes de um arameu, José, que foi para o Egito, ali se sedentarizou e constituiu várias famílias, que foram escravizadas pelos egípcios. Para sair de tal condição todos fugiram para a terra que Deus havia separado, que mana leite e mel, Canaã8. Fohrer refuta a teoria bíblica deuteronomista explicando que, de acordo com Gn. 25:1-5, 12-18, sobretudo o v. 18, a descendência de Abraão – que Israel contempla como fundadora da nação – segundo a localização geográfica, foi composta de tribos arábicas juntamente com os madianitas. Nenhum destes possuía origem aramaica. E assevera: Disponível em http://www.paulus.com.br/portal/colunista/nilo-luza/etapas-da-historia-de-israel2.html#.VZpjWflViko. Acesso em 06 Jul. 2015. 8 Cf. a distribuição das tribos de acordo com os dados bíblicos em Dt. 3:12-29. SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel. dez. 2015, p. 78-93. INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. - 85 A ocupação da Palestina pelos israelitas não foi uma realização de todo o Israel sob a liderança de uma única pessoa; ela aconteceu em diversos estágios e num considerável período de tempo.9 De Vaux considera a documentação bíblica como insuficiente para determinar a demografia das tribos de Israel 10 . Henri Cazelles (1986, p. 17-30) constata que a historiografia bíblica, ao ser confrontada com as historiografias egípcias, babilônicas e gregas, demonstra incertezas, bem como a sua cronologia. Todavia, o mesmo autor afirma existir grupos de estudiosos que atentam para os achados arqueológicos como forma de corroborar as evidências bíblicas a partir de Abraão (CAZELLES, 1986, P.27). Desta forma, é necessário ressaltar o estudo arqueológico como uma das formas de comprovação ou contraposição das narrativas. Cazelles pondera que “não convém começar uma história política de Israel por Abraão” (CAZELLES, 1986, p. 71) e que é importante recorrer às origens próprias de cada tribo israelita. O autor, ao discorrer sobre as etnias que deram origem às tribos de Israel, aponta que foram diversas e de localização diferenciada11. 3. Iahweh e as tribos de Israel Cristopher Wright explica que: Deus age primeiro e convoca as pessoas para que reajam. Este é o ponto de partida do ensinamento moral do Antigo Testamento. Deus, pela sua graça, toma a iniciativa num ato redentor e, então, faz suas exigências éticas à luz dessa iniciativa. A ética se torna, então, uma questão de reação e gratidão, e não apenas uma obediência cega.[...] Quando penetramos mais na história do livro de Êxodo, descobrimos que o relacionamento de Israel com Deus não apenas se fundamentou na sua graça redentora, mas também foi mantido pela sua graça perdoadora (WRIGHT, 1983, p. 22). Muito embora o pensamento político do povo de Israel seja primitivo em nível 9 FOHRER, 2006, pp. 74, 75. Para uma descrição mais completa da teoria de Fohrer, ver o tópico “4. A religião dos antigos Israelitas na Palestina”, especificamente o primeiro subtópico contido em FOHRER, G. O fundo religioso. In: FOHRER, Georg. História da religião de Israel. Trad. José Xavier. São Paulo: Academia Cristã Ltda, Paulus, 2006, p. 74-77. 10 Para o estudo demográfico da soma da população de Israel, De Vaux (2003, p. 89) avalia: “É certo que há na Bíblia algumas indicações numéricas, mas não ajudam muito.”. Ele percebe que alguns relatos se assemelham muito na soma total de habitantes, porém outros, como o censo da época de Davi descrito em II Sm. 24:9 seriam exagerados frente à contagem real. Segundo os poucos documentos oficiais que existem, a exemplo do censo inglês de 1931, De Vaux afirma não terem existido muito mais do que um milhão de habitantes em Israel antes do movimento sionista, portanto, em anos anteriores, a população de Israel não deveria ser superior a este valor, sobretudo devido aos meios de subsistência escassos que impediam a manutenção alimentar de um grande número de população. 11 Para mais informações cf. CAZELLES, H. Os agrupamentos de tribos. In: CAZELLES, 1986, p. 79-86. SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel. dez. 2015, p. 78-93. INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. - 86 de sistematização, Iahweh era o grande rei do conjunto das tribos. Os israelitas estavam vinculados nesta certeza, eram os súditos de Deus, e é sobre esta ética, da qual fala Wright, que se pautava o eixo político do povo. Aliás, política sem ética vira uma forma de tirania ou totalitarismo, ou seja, deixa de ser política e se torna o poder sobre o poder. Deve-se evitar este modelo em toda a construção política humana. Tal compreensão ética, que possui como foco a solidariedade, o preocupar-se com o outro, bastante presente nas tribos de Israel parece ter desaparecido durante a monarquia e, certamente nos governos modernos e contemporâneos, abrindo espaço para a conquista, a violência e a ambição. Destaca-se que a relação entre Iahweh e seu povo se dava sempre pela mediação de pessoas como o chefe de família, sacerdote, o profeta ou o rei. De Vaux relata que “a vida social de Israel era permeada pela religião” (DE VAUX, 2003, p. 309) e que o culto prestado a Deus se igualava a um serviço ao rei, inclusive possuía o mesmo nome – em hebraico, a palavra culto é chamada ‘abodah e significa “serviço” no sentido de serviço ao rei (DE VAUX, 2003, p. 309). Tal devoção era inicialmente realizada pelo chefe de família pois não haviam sacerdotes, e o autor descreve que “o sacerdócio só aparece num estágio mais avançado de organização social, quando a comunidade escolhe alguns de seus membros” (DE VAUX, 2003, p. 384). Contudo, em determinado momento da história de Israel, Iahweh seleciona a tribo de Levi, descendente de Jacó para realizar o serviço relacionado ao culto e servi-Lo diretamente (cf. Nm. 8:14, 18 e 19). Como os israelitas sabiam que eram governados por Deus? Considerando a ideia de que as narrativas em Gênesis foram influenciadas pelas mitologias de outras regiões do Oriente Médio Antigo as quais eram, em sua maioria eram politeístas, pode-se perguntar a partir de quando as tribos de Israel deveram sua lealdade suprema a um único Deus, Iahweh? Em que momento os israelitas começaram a legitimar o poder supremo de Deus? Tais perguntas são de grande relevância principalmente quando se descobre a diversidade de origens das tribos de Israel. Afinal, como tantas etnias diferentes se agruparam em torno do governo de um único Deus? Sendo a fé em Iahweh algo comum a todo o Israel, torna-se preemente compreender quem é esse Deus, da mesma forma que o ser humano necessita depreender quem é o seu Criador. Fohrer, ao explicar as origens e significado da palavra “Iahweh” esclarece Segundo a única explicação israelita, que se encontra em Êx 3.14, o nome significa que esse Deus é alguém a quem o termo hayâ pode ser perfeitamente atribuído. Visto que este verbo no hebraico se refere não meramente a uma existência estática, mas a uma SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel. dez. 2015, p. 78-93. INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. - 87 presença dinâmica e eficaz, o nome atribui a Iahweh um ser dinâmico, poderoso e eficaz. A natureza de Iahweh, como é expressa por seu “nome”, é uma união de ser, tornar-se e agir, isto é, uma existência eficaz que está sempre em devir e, contudo, permanece idêntica a si própria. [...] Iahweh existe sozinho [...] [e] não está limitado a um lugar fixo de residência. Ele não é um deus local ou territorial, mas o Deus que acompanha o grupo que está vinculado a ele ou está ao lado desse grupo. Mais tarde, ele é o Deus de um povo. [...] Iahweh não tolerará outros deuses entre o povo que se uniu a ele. Ele exige adoradores exclusivos. Ele é justificado nessa prerrogativa, porque acompanha o grupo de Moisés em sua jornada e porque é mais poderoso que os outros deuses, como foi demonstrado no êxodo (FOHRER, 2006, p. 96-98). Para Israel, Deus era alguém que não somente possuía forma humana como traços humanos, Ele vivenciava os mesmos sentimentos e emoções do Seu povo. Todavia, Ele não possuía defeitos, logo não poderia ser humilhado, rejeitado, nem acusado de qualquer delito. Iahweh também se encolerizava, se fazendo notar “pela violência furiosa de sua intervenção” (FOHRER, 2006, p. 98), além de ser um Deus preocupado com a moral, com a forma como o ser humano se relacionava com Ele e com os outros indivíduos. “Isso foi importante para o israelita não sofisticado, que precisava de imagens concretas.” (FOHRER, 2006, p. 98). Existem várias formulações históricas sobre quando Iahweh começou a ser adorado12 como a tese de Albrecht Alt que tem sido bastante considerada para o assunto nos dias atuais. Acerca dela, Jean Louis Ska comenta [...] o ‘Deus dos pais’ pertence à religião dos nômades, porque a divindade não está circunscrita a um lugar, mas a uma pessoa. Não tem nome próprio. Identifica-se pelo antepassado a quem se revelou. Por exemplo, “o Deus de Abraão” (Gn 26,23; cf. Gn 28,13; 32,10; 46,3; Ex 3,6). Esse elemento primordial da religião de Israel remonta ao período nômade pré-israelita e os patriarcas figuram, assim, como fundadores de culto. Desse modo, a religião patriarcal afasta-se da religião cananéia, ligada aos santuários (SKA, 2003, p. 131). Fohrer fornece sua própria contribuição ao concluir que, “no período antigo de Israel cada clã (e provavelmente também cada tribo) cultuava o seu deus particular” (FOHRER, 2006, p. 46), e explica Há uma multiplicidade de religiões de clã (e religiões tribais), de modo que a tradição está correta em sustentar que os pais cultuavam outros deuses (Gn 35.1-7; Js 24.2,14-15). [...] Por 12 Sem dúvida é interessante perceber que a fé em Iahweh teve assimilação de práticas cúlticas provenientes das tribos que deram origem a Israel, as quais foram encontradas em outros povos que adoravam outros deuses. Como acentua Fohrer, a exemplo da circuncisão, um ritual presente entre os amonitas, moabitas e edomitas (FOHRER, 2006, p. 39). Vários rituais possuíam como finalidade evitar a contaminação da tribo com outros seres espirituais como a destruição dos despojos das guerras durante a vida nômade, possivelmente explicado “como consequência do tabu ligado ao despojo retirado do domínio de outra divindade” (FOHRER, 2006, p. 40). SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel. dez. 2015, p. 78-93. INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. - 88 intermédio do fundador do culto, todo o grupo e sua posteridade se tornavam adoradores da divindade relacionada com seu ancestral (FOHRER, 2006, p. 47). Em outras palavras, o papel intermediador entre o clã e o deus, executado pelo chefe do grupo era imprescindível para que todas as famílias se identificassem como adoradoras deste deus em conjunto. O chefe do grupo era o patriarca receptor da revelação e fundador das práticas de devoção, por isso a mediação, dado que a divindade somente se comunicava a quem ela se revelava (FOHRER, 2006, p. 47). Fohrer cita como exemplo a revelação de Iahweh a Abraão quando Sara, sua esposa, não podia conceber filhos (FOHRER, 2006, pp. 47 e 48). Deus então se apresenta prometendo a Abraão e a sua família uma terra e uma descendência, aliança sobre a qual se firma o compromisso de todas as gerações posteriores a Abraão (cf. Gn. 15:5, 12 e 18), e que se identificam com essa descendência da promessa. Abraão foi o patriarca receptor da revelação de Iahweh e, por isso, era o deus que deveria ser adorado por toda a sua família e descendentes. Ao se assentarem em Canaã, os grupos israelitas levaram as suas religiões e crenças seguidas por seus clãs, e ali encontraram santuários de adoração de origem cananéia. Os cananeus são conhecidos por seu politeísmo, sobretudo pelo culto às divindades Baal e El. Durante a caminhada dos clãs e tribos pelo deserto, certas práticas e rituais permaneceram até o estabelecimento em Canaã e outras foram se perdendo. As que se mantiveram eram compreendidas como importantes para a cultura religiosa do novo povo israelita (FOHRER, 2006, p, 78). Fohrer comenta: “Poucos foram preservados no conjunto das tradições israelitas, porque estavam associados com importantes santuários” (FOHRER, 2006, p. 78). O autor analisa as considerações religiosas das tribos israelitas durante o regime nômade a partir da tradição javista, que tem como princípio o posicionamento de Iahweh como o Deus da Aliança. Ele aponta para o segundo estágio do estabelecimento da cultura religiosa israelita, após o assentamento em Canaã, como o instante em que os adoradores de Iahweh começaram a identificá-Lo com o deus cananeu El. Tanto os termos “Iahweh” como “El” são encontrados nas narrativas bíblicas – p. ex. El-Shaddai. A partir disso os biblistas começaram a se questionar se o vocábulo “El” teria alguma relação com o deus cananeu El, e se esta associação se formou ainda durante a vida nômade ou somente após o assentamento. Para Julius Wellhausen, tanto o deus El como Iahweh seriam os mesmos desde o início, teoria esta defendida por Frank Moore Cross mas facilmente refutada, uma vez que Iahweh e El possuíam características bem distintas. Na SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel. dez. 2015, p. 78-93. INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. - 89 visão dos antigos, Iahweh alternava entre amor, bondade e ferocidade, enquanto El era totalmente bom13. Após esta fase, Fohrer ressalta um terceiro estágio de assimilação e construção cultural em que El começou a ser oficialmente tratado como Iahweh. [...] o javismo não combateu a religião de El, empenhando-se, ao contrário, numa acomodação. Assim, El, o deus que foi identificado com os deuses do clã, foi concebido como uma revelação antiga do Deus que mais tarde se tornou conhecido como Iahweh. Isso preparou o caminho para Iahweh tomar por empréstimo muita coisa de El. Material cultual, como práticas sacrificais e hinos, estava incluído nesse empréstimo. Acima de tudo, os traços perigosos, sinistros e impetuosos de Iahweh, que apareciam ao lado de suas características generosas, foram suplementados pelas características típicas de El: prudência, sabedoria, moderação e paciência, tolerância e misericórdia [...]. Mais tarde acrescentaram-se as funções de criador e rei (FOHRER, 2006, pp. 132, 133). A terceira etapa de assimilação demonstra, aparentemente, a semelhança entre El e Yahweh que possibilitou que a figura de Yahweh adotasse novas características. Atenta-se para a declaração de Fohrer, em que ele deixa claro não ter ocorrido qualquer tipo de fusão entre as duas divindades, mas uma complementação à imagem do deus da tradição javista. 4. Análise teo-política da libertação dos escravos sob a liderança de Moisés Entre tantas teorias e explicações, observa-se que os israelitas, a todo o momento, realizavam um esforço de compreensão do deus a quem adoravam. Empenho este que auxiliou a milhares de gerações posteriores a se manterem no mesmo empreendimento frente às diversas perguntas sem respostas que ainda permanecem. No final das contas, no ponto em que a teologia se encontra hoje, será que ela consegue compreender como Deus age no mundo? Até porque, são mais de dois mil anos de histórias, eventos e ação de Deus. A teologia cristã, como saber da fé cristã, surgiu a partir destas investidas, preocupada em entender o mundo à luz do conhecimento de Deus e vice-versa. Como parte dos confrontamentos teológicos, é urgente corresponder às questões que surgem na contemporaneidade, sobretudo aquelas referentes à esfera política. Neste sentido, as Escrituras fornecem valioso material por meio da vida política do próprio povo de Israel e sua ótica de governo. William César de Andrade corrobora esta visão explicando como o regime tribal de Israel pode auxiliar no entendimento 13 CORRÊA, Lucas. Yahweh e El: origem do deus de Israel e suas relações com os deuses e deusas de Canaã. Jan. 2014. Disponível em http://histriadasreligies.blogspot.com.br/2014/01/yahweh-e-el.html. Acesso em 07 Jul. 2015. SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel. dez. 2015, p. 78-93. INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. - 90 de fenômenos políticos como o imperialismo, ampliação das desigualdades sociais, movimentos migratórios de populações pobres para regiões de boa qualidade de vida e etc, dado que os israelitas enfrentaram semelhantes desafios: Na Bíblia encontram-se, além das memórias e feitos dos impérios (Egito, Assíria, Babilônia, Pérsia, Grécia e Roma), uma permanente presença de enfrentamentos a esses poderes e a seus aliados locais. Para muitos estudiosos da Bíblia a tradição literária é um indicativo de processos históricos de longa duração marcados pela Aliança entre os segmentos marginalizados e empobrecidos de Israel e a divindade, vista como dinamismo libertador e fonte geradora de uma nova ordem social, política, econômica e religiosa (ANDRADE, 2009, p. 270). Andrade (2009, pp. 270, 271) acentua que, ainda no Egito Antigo, o grupo plural de Moisés, Aarão e Míriam, quando eram escravos estrangeiros dos egípcios, não possuíam direitos civis nem desfrutavam de qualquer proteção por parte do Estado. Diante da autoridade e sociedade egípcias os israelitas eram um grande conjunto de pobres marginalizados que trabalhavam exageradamente para a manutenção dos luxos e poder do Faraó e sua família. E o que a narrativa bíblica relata foi que: [...] os marginalizados derrotaram o opressor e abriram caminhos viáveis para a realização de um ‘outro mundo’. Para que essa possibilidade histórica de mudança e, portanto, ruptura com a ordem vigente pudesse existir, foi preciso um processo de empoderamento dos pobres (ANDRADE, 2009, p. 271). O conceito de empoderamento ainda têm sido bastante utilizado e, em suma, se define como o conjunto de práticas constituintes de um processo que permite aos indivíduos e comunidades a desenvolverem uma auto-consciência de suas próprias condições sociais, e aprimorarem habilidades para assumirem o controle de suas próprias vivências no mundo, muitas vezes alterando as mesmas relações de poder que os subjugam. Foi um termo amplamente trabalhado na década de 90, inclusive para legitimar práticas diversas e até contrárias à proposta original que permanecem ativas, mas latentes. Jorge O. Romano chama a atenção para os perigos desta prática, chamada de transformista – ou gattopardistas – de empoderamento para fins de manter as relações de poder inalteradas: Assim, o empoderamento invocado pelos bancos e agências de desenvolvimento multilaterais e bilaterais, por diversos governos e também por ONGs, com muita freqüência vem sendo usado principalmente como um instrumento de legitimação para eles continuarem fazendo, em essência, o que antes faziam. Agora com um novo nome: empoderamento. Ou para controlar, dentro dos marcos por eles estabelecidos, o potencial de mudanças impresso originariamente nessas categorias e propostas inovadoras. Situação SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel. dez. 2015, p. 78-93. INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. - 91 típica de transformismo (gattopardismo): apropriar-se e desvirtuar o novo, para garantir a continuidade das práticas dominantes. Adaptando-se aos novos tempos, mudar tudo para não mudar nada (ROMANO, 2002, p. 10). Hannah Arendt, filósofa alemã, argumentou que o poder surge do conjunto de pessoas que se unem para agirem. Mas isto somente ocorrerá quando os indivíduos estiverem livres para se organizarem, ainda que seja uma liberdade oculta, não percebida pelo governo (HEUER, 2007, p. 99). Para a autora “o poder emerge onde quer que as pessoas se unam e ajam em concerto, mas sua legitimidade deriva mais do estar junto inicial do que de qualquer ação que então se possa seguir.” (ARENDT, 2013, p. 69). O estar junto forma um espaço que se mantém desde que os indivíduos executem suas ações, somente assim o poder se tornará visível. Tal grupo poderá influenciar a cadeia de eventos e atingir o seu objetivo proposto. Obviamente não é tão fácil assim, cada etapa é um processo cuja duração varia conforme a urgência da ação política, o grau de legitimidade do poder, e este último está ligado à influência dos indivíduos do grupo no espaço externo – o quão imprescindíveis são para o fazer político, por exemplo – e vários outros fatores. Os clãs de Moisés, Aarão e Míriam precisaram se organizar para se libertarem. Todavia, segundo os relatos bíblicos, a iniciativa foi de Moisés, que recebeu a missão, diretamente de Deus, para reunir os hebreus escravos do Egito e conduzi-los às terras de Canaã (cf. Êx. 3:17), à libertação. A liderança de Moisés foi necessária para promover o empoderamento das famílias estrangeiras sujeitas aos trabalhos forçados, contudo, quem legitimou o seu comando foi Iahweh (cf. Êx. 3:17-20). Moisés sabia que o dever que estava realizando era um absurdo, não por não confiar em Deus, mas por não acreditar em si mesmo, em sua própria autoridade. Ninguém legitima o seu próprio poder, para este existir, é necessário que o indivíduo seja reconhecido pelos outros que nele acreditam. Na breve dúvida de Moisés (Êx. 4:1) não houve um conflito de fé, mas houve um dilema da razão: porque o faraó acreditará que minha autoridade para libertar os hebreus foi concedida e legitimada por Iahweh? Afinal, tal ousadia poderia custar-lhe a vida. No entanto, era uma missão que deveria ser realizada por alguém. Os hebreus estavam sofrendo miséria, dor, morte, punições gratuitas, a opressão era severa, e o povo clamava pela salvação. Moisés, frente ao seu chamado também não podia mais se calar e se manter cego ao que estava ocorrendo. Iahweh então comunicou a Moisés o que deveria ser feito, cada sinal que se apresentaria e como o faraó reagiria, para que não temesse os egípcios pois era Deus quem estava SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel. dez. 2015, p. 78-93. INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. - 92 no comando (Êx. 4:10-17). Deus se revelou a Moisés e o chamou, este correspondeu a Ele cumprindo o seu dever. Semelhante processo ocorreu com os patriarcas Abraão (Gn. 22:1-19), Jacó (Gn. 28:13-15) e Noé (Gn. 6:13-22). A libertação ocorreu, a promessa foi cumprida, as tribos se estabeleceram em Canaã e se organizaram em função da autoridade de Iahweh. Israel começou a compreender a vida no mundo a partir de seus particulares pontos de vista, e em contrapartida à aliança firmada entre eles e Iahweh, se comprometeram em obedecer à lei do Senhor (Êx. 19:3-8). CONSIDERAÇÕES FINAIS A história de Moisés, bem como dos outros patriarcas, deve servir como um dos fundamentos mais sólidos para a reflexão teológica inserida em um contexto político, social, histórico e econômico. O esforço deve compreender tanto um trabalho exegético como hermenêutico, além das respectivas análises filosóficas, sociológicas, biológicas, para que nenhum detalhe se perca no processo. A teologia deve dialogar com outros conteúdos para desenvolver suas obras de raciocínio, dado que estes podem contribuir valorosamente com informações que, ela por si só, não possui. Apesar dos muitos anos e tentativas de estudo do Pentateuco, o fato dele representar as primeiras expressões documentadas da ação de Deus no mundo deve servir como uma das principais justificativas para que se continue o empreendimento de investigação e aprofundamento nas narrativas. A Bíblia é única, apesar de variar relativamente conforme a tradução realizada, porém, seu sentido deve ser aplicado no contexto histórico a todo o momento, o que significa que ela é capaz de responder às demandas através de sua pluralidade de narrativas. Esta dinâmica do texto bíblico revelada pelo potencial da verdade que nele contêm deve ser uma das maiores expressões de sua inspiração. Ela é completa em si mesma. Resta à humanidade explorar toda a sua totalidade, e tudo o que ela é capaz de oferecer. REFERÊNCIAS ANDRADE, W. C. As tribos de Israel: exemplo histórico de empoderamento dos marginalizados. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, Brasília, n. 33, jul./dez. 2009, p. 270. ARENDT, H. Sobre a violência. 4 ed. Trad. André Duarte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. CAZELLES, H. Historiografia de Israel. In: CAZELLES, Henri. História política de SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. Religião e política no Antigo Israel. dez. 2015, p. 78-93. INTEGRATIO, v. 1, n. 2, jul. - 93 Israel: desde as origens até Alexandre Magno. Trad. Cácio Gomes. São Paulo: Paulus, 1986. CLIFFORD, R. J.; MURPHY, S. J. R. E.; CARM, O. Gênesis. In: BROWN, R. E.; FITZMYER, J. A.; MURPHY, R. E. 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