NEW URBAN CARTOGRAPHIES AND THE PLACES OF
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NEW URBAN CARTOGRAPHIES AND THE PLACES OF
NOVAS CARTOGRAFIAS E ESPAÇOS DE GLOBALIZAÇÃO NA CIDADE DE FLORIANÓPOLIS – SANTA CATARINA – BRASIL O NOME DA MÚSICA É: TERRA MAGIA Ao se falar em novas cartografias urbanas e áreas de globalização, estamos necessariamente abordando duas idéias fundamentais para se entender nosso objeto de análise: o espaço e o tempo. Entretanto, ao situarmos este tempo e espaço na contemporaneidade, nos processos de globalização, estamos falando no hoje, no aqui e agora, estamos falando de pósmodernidade, o que envolve entendermos um terceiro conceito e suas conseqüências. David Morley nos adverte que falar da pós-modernidade é falar sobre um período: a dificuldade é que os eventos não têm só a dimensão temporal, mas também uma forma espacial. Além da notória dificuldade de se dar uma delimitação temporal para o período da pós-modernidade, nós temos que supri-lo também com uma delimitação espacial; não podemos pressupor que todo mundo, em todos os lugares, simultaneamente, vive na era da pósmodernidade.1 Ainda David Morley lembra que Michel Foucault já advertia que a grande obsessão do século dezenove foi a história; a presente época talvez seja obcecada sobretudo pelo espaço. Tem havido recentemente um foco de interesse nos trabalhos da ‘geografia pós-moderna’.2 O pós-moderno ou contemporâneo, quando pensado sem especificações e restrições espaciais, entendemos que são atribuições impostas pela hegemonia euro-americana, que não considera as especificidades geográficas como parte dos processos sociais, e mais, não considera que a própria prepotência imperialista cria territórios de desigualdade social ao excluir ou marginalizar os menos favorecidos economicamente. Conseqüentemente, leva-os a viverem e perceberem e, especialmente, a serem percebidos de maneira diversa. As palavras do geógrafo brasileiro Milton Santos são esclarecedoras: “o espaço social tem uma espessura, uma densidade socioistórica; o espaço geográfico não é externo aos processos sociais”.3 O espaço no qual as pessoas habitam, trabalham e se divertem são pontos de vista que determinam sua posição na sociedade. Percebe-se, assim, que os eventos não têm só uma dimensão temporal, mas também uma forma espacial. Ao descontextualizarmos geograficamente o presente não levamos em conta que nosso tempo, ainda que globalizado em 1 “To speak of postmodernity is to speak of a period: the difficulty is that events have not only a temporal but also a spatial form. In speaking of a period of postmodernity, the temporal marker tends to override the spatial one. Quite apart from the notorious difficulties in giving a temporal delimitation to the period of postmodernity, we must also supply it with a spatial delimitation, if we are not to presuppose that everyone, everywhere, simultaneously lives in the era of postmodernity. In Stuart Hall critical Dialogues in Cultural Studies, edited by David Morley and Kuan-Hsing Chen. 2001, p. 327. 2 David Lorley, op.cit.,327. the great obsession of the nineteenth century was history, the present epoch will perhaps be obsessed, above all by space, there has been, in the recent period, a flowering of work in ‘postmodern geography’. 3 Milton Santos, O pais Distorcido, pps. 28, 181. 1 sua forma externa, criou diferentes maneiras de se viver e perceber a contemporaneidade. “Nem todo mundo tem acesso à mesma quantidade e qualidade de capital cultural e econômico”, adverte David Morley.4 Pensando o tempo, lembramos que a modernidade teve como parâmetro histórico a industrialização e as colonizações; e a pós-modernidade, suas conseqüências. As colonizações e os novos meios de comunicação facilitaram o deslocamento das pessoas, e a idéia do nomadismo caracteriza o homem pósmoderno, sem território fixo ou nação estabelecida em limites geográficos tradicionais. Entretanto, David Morley, já anteriormente citado, nos lembra: “a questão é simplesmente que nós não somos todos nômades, subjetivamente fragmentados, vivendo no mesmo universo pós-moderno”.5 Stuart Hall tem argüido que, ao desenvolvermos nossa análise do pós-moderno e a diáspora cultural, nós precisamos nos distanciar da noção atual de ‘nomadismo’ na pósmodernidade – da idéia de que ‘todo mundo simplesmente vai a todo lugar’ nos dias de hoje. Isto seria simplesmente romantizar a figura do viajante, do hibridismo e do movimento numa forma generalizada, o que seria exatamente inadequado (ou oposto) às ideologias contemporâneas de tradição e nostalgia, em todas as suas formas reacionárias e regressivas. A questão é entender a relação entre o lugar e o viajante, entre ‘indígenas’ e ‘exógenos’, entre o processo de migrações internas e as dinâmicas da globalização e da localização. Claro que, ao desenvolvermos uma análise, temos que reconhecer que nós não somos, de maneira nenhuma, todos pós-modernos da mesma forma. Faz toda uma diferença no mundo de hoje se alguém migra ou torna-se cosmopolita por escolha ou necessidade. 6 Pensando o Brasil, temos que levar em conta que esta é uma nação de muitos territórios, não só geográficos especificamente, mas relacionais. Há muitos brasis num mesmo Brasil. Nossa formação foi a partir de um processo de globalização. Para cá vieram portugueses, italianos, espanhóis, alemães, poloneses, africanos, japoneses, chineses, coreanos, turcos e libaneses. Para cá vieram muitas culturas que a princípio formaram núcleos regionais mais ou menos fechados. Muitos migraram atraídos pelo exotismo do país, mas a maioria foi à procura das novas possibilidades de exploração da terra e de suas 4 Idem,ibidem, p. 327. David Morley. The point is simply that ‘we’are not all nomadic, fragmented subjectives, living in the same postmodern universe. 6 Stuart Hall has argued that, in developing our analysis of postmodern and diasporic cultures, we need to differentiate ourselves from fashionable postmodernist notions of ‘nomadology’- the idea that ‘everyone simply goes everywhere’ nowadays. This would simply be to romanticize the figure of travel, hybridity and movement, in a generalizing manner, which would be just as inadequate (if in an opposite way) as contemporary ideologies of tradition and nostalgia, in all their reactionary and regressive formations. The question is to understanding the realationship between place and travel, between the indigenous and exogenous, between the process of indigenization and the dynamics of globalization and localization. Of course, in our attempt to develop that analysis, we must recognize that we are not, by any means, all ‘postmodern’ in anything like the same way. It makes all the difference in the world whether one’s migrancy or ‘cosmopolitanism’ is a matter of choice or necessity. “(333) 5 2 riquezas. Mais recentemente, nos anos 50, a obsolescência do trabalho rural e o conseqüente empobrecimento das cidades pequenas pela modernização da agricultura e dos serviços – talvez uma passagem tardia do feudalismo para o capitalismo - forçaram muitos brasileiros a migrarem diariamente para as cidades em desenvolvimento ou para as metrópoles, à procura de novos meios de subsistência econômica, social e intelectual. Sem amparo social estabelecido nas leis urbanistas e sem recursos econômicos compatíveis com as exigências do mercado imobiliário das capitais, esses indivíduos criam políticas alternativas para enfrentarem as novas situações, especialmente as de moradia. Novas e improvisadas cartografias invadem ou margeiam a cidade, novas articulações sociais são negociadas para (re)unir os sujeitos da diáspora transnacional. Para David Morley, na modernidade os povos migravam mais freqüentemente de um país ao outro, na pós-modernidade as migrações ocorrem do interior para as metrópoles. 7 Esse processo de deslocamento nacional e reunião em comunidades periféricas ou condomínios verticais estabelecidos nas novas cartografias oficiais ou aleatórias das cidades grandes propicia o estabelecimento de uma nova ordem cultural. Sem qualquer identificação étnica, religiosa ou política, mas identificadas pela escassez econômica, essas famílias provenientes de diferentes partes do Brasil são forçadas a explorar e a se adaptar a novas formas de viver e habitar a cidade, respeitando outros comportamentos e experimentando as diversas manifestações surgidas nesses encontros. Ao se expressar a respeito desses momentos de trânsito, Homi Bhabha diz: “espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão. (...) O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses ‘entre-lugares’ fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria idéia de sociedade. É na emergência dos interstícios – a sobrevivência e o deslocamento de domínios da diferença – que as experiências intersubjetivas são negociadas. Apesar de histórias comuns de privação e discriminação, o intercâmbio de valores, significados e prioridades pode nem sempre ser colaborativo e dialógico, podendo ser profundamente antagônico, conflituoso e até incomensurável?”8 Nossa pesquisa percebe a cidade de Florianópolis como uma base de referência histórica territorial da transformação das cidades grandes no Brasil na última década.9 Ainda que tenhamos consciência de que existam semelhanças e 7 David Morley, op. cit., 1996, p. 329. Homi K. Bhabha. 2003, p. 19/20. 9 David Morley, citando King, diz: “A cultura, a sociedade e o espaço no começo do século vinte em Calcutá ou Singapura prefiguravam o futuro de forma mais acurada do que London e New York. A ‘Modernidade’ não nasceu em Paris, mas no Rio. A partir dessa interpretação, os paradigmas do chamado ‘pós8 3 diferenças entre as cidades e seus modos de ocupação, pensamos que nossa pesquisa pode servir de apoio para uma reflexão sobre as significativas modificações cartográficas e relacionais das cidades brasileiras, especialmente no que concerne à formação dos condomínios de periferia conhecidos como favelas. Favela, originalmente, é o nome de uma planta de ramos lenhosos, folhas sinuosas e dentadas, flores brancas e sementes oleaginosas, das quais se faz farinha rica em proteínas e sais minerais. A planta favela era muito encontrada na região da Bahia, no monte em que ficaram instalados os soldados na guerra de Canudos, em 1909. Ao voltarem ao Rio de Janeiro, os soldados pediram permissão ao Ministério da guerra para se instalarem com suas famílias no morro da Providência e passaram a chamá-lo morro da Favela, por analogia ao seu assentamento na Bahia. A partir daí, o nome se generalizou para as habitações populares.10 Como uma moldura no espaço físico da cidade, a periferia define-se pela pobreza dos excluídos econômica, social e politicamente. Hoje, mais do que os sujeitos históricos, são os sujeitos geográficos que chegam à cidade e interferem nela imprimindo suas marcas de sobrevivência. Como lembra Milton Santos, “nosso mundo novo se caracteriza também pelo fato de que as massas entraram em movimento”.11 As pessoas não podem prescindir de território, de habitação, mesmo que esta seja a rua. Nesse processo, os territórios vão sendo ocupados a partir de conseqüências históricas, mas não com preocupações históricas, e sim geográficas, pela necessidade de habitar. A partir daí, começam a fazer história. Os deslocamentos transnacionais dos que se deslocam dentro do próprio território nacional não é uma novidade que entra no mundo pós-moderno. A novidade talvez seja o aceleramento desse processo, que faz das periferias uma dominância de caráter horizontal, que vem perturbando a ordem vertical em todos os seus domínios, especialmente artísticos e culturais. Hoje é impossível negar a presença das formas de representação da cultura e da arte provenientes das margens, das periferias, das favelas e seus desdobramentos nas expressões dominantes. Nosso ponto de partida é que os critérios de ocupação dos espaços nas cidades brasileiras contemporâneas, no que se refere à construção dos habitantes de baixa renda, as favelas nas periferias das cidades, que excluem ou classificam as pessoas, atestam que nosso tempo reproduz meios extremamente preconceituosos de racionalizar os conflitos binários entre ricos e modernismo’ não tem muito significados nem importância fora dos estreitos confins geográficos da Euro-América onde eles se desenvolveram “the culture, society, and space of early twentiethcentury Calcutta or Singapore prefigured the future in a much more accurate way than did that of London or New York. ‘Modernity’was not Born in paris but rather in rio. With this interpretation, euro-american paradigms of so-called ‘postmodernim’ have neither much meaning nor salience, outsite the narrow geographical confines of Euro-America where they developed. David Morley, op. cit., 1996. p. 329. 10 Dicionário eletrônico Houais, 2003. 11 Milton Santos, 2002, p. 113 4 pobres, uma vez que as elites insistem em ignorar a diversidade cultural popular e econômica bem como conviver com ela. Já a Antigüidade greco-romana nomeava bárbaros os nômades assentados nos limites das cidades. Povos pertencendo a diferentes regiões e culturas que não possuíam uma língua comum e se estabeleciam pela necessidade de sustento para si e seus rebanhos. O vernáculo bárbaro entrou nas línguas ocidentais passando, por analogia, a significar ignorância, selvageria, e tudo que fosse contrário às regras, e daí, as manifestações culturais que exprimem surpresa e admiração. Nosso presente histórico nomeia marginais os habitantes que enfrentam semelhante situação e, por analogia, os textos que ainda não se enquadram nos valores culturais vigentes. Lotman já advertia que a cultura necessita de um entorno exterior ‘não organizado’ e o constrói no caso de não haver. A cultura cria não só sua organização externa, mas também sua própria desorganização externa.12 A partir de Lotman, percebemos que essas divisões binárias planejadas nas cartografias urbanas oficiais - como foi o caso da construção da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, 1958, e que se repete em outras cidades, como é o caso do bairro Nova Esperança, em Florianópolis, nosso local de pesquisa comprovam uma efetiva segregação espacial dos menos favorecidos economicamente e insinuam situações de verticalidade e dominância já registradas em culturas muito anteriores à nossa. Tal divisão cartográfica confirma procedimentos culturais extremamente simplistas de mascarar e mistificar os conflitos sociais. A concepção de poder está associada à demarcação de território. Segundo Gomes, a divisão espacial “é uma das formas mais antigas que conhecemos de classificar as coisas, não apenas por seus atributos ou valores singulares, mas sobretudo por sua localização”.13 Continua Gomes, “o controle do território é a expressão de um poder, ele é aquilo que está em jogo em grande parte das disputas sociais, aí incluídas aquelas que disputam um direito à cidade.” Completando diz de Milton Santos: “há desigualdades sociais que são em primeiro lugar desigualdades territoriais, porque derivam do lugar onde cada qual se encontra. Seu tratamento não pode ser alheio às realidades territoriais. O cidadão é o indivíduo num lugar.” O lugar em questão é a periferia, as margens, as fronteiras da cidade. Entretanto, Homi Bhabha, citando Martin Heidegger, lembra que ‘a fronteira’ não é o ponto onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, a fronteira é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente." 14 Algo começa a se fazer presente, isto é, a ser incorporado pela cultura dominante. Ainda citando Lotman, “A fronteira é um mecanismo bilíngüe que traduz as mensagens externas em linguagens internas da semiosfera e vice-versa. Assim, pois, só com a ajuda da fronteira pode a semiosfera realizar os contatos com o espaço não-semiótico e alosemiótico. (...) A fronteira é uma parte indispensável da semioesfera. A 12 Iuri M. Lotman, 1996, ps. 26. 13 Paulo César da Costa Gomes, 2002, p. 11. Homi Bhabha, 2003, p.24. 14 5 função de toda fronteira ou película se reduz a limitar a penetração do externo no interno, filtrando-o e elaborando-o adaptativamente.”15 Nossa investigação procede de uma sentença de Roland Barthes segundo a qual “a fotografia é um atestado de presença”. Cientes de que este atestado de presença é um ponto de partida e não um fim em si mesmo, já que só podemos voltar à cena primordial na imaginação, recortamos os registros fotográficos como efeitos do presente. Partindo desse pensamento, passamos a agendar entrevistas com as pessoas da área da Nova Esperança, que se dispusessem a contar suas estórias memoradas nos registros fotográficos. A área da Nova Esperança é um espaço da periferia de Florianópolis cedido pela prefeitura para assentar famílias dispersas em terrenos considerados nobres da cidade. A partir de 98, essa área abriga famílias com diferentes histórias de habitar, mas com a mesma história de privação e discriminação. Destacamos aqui algumas falas dos moradores desse condomínio, registradas em vídeo, que confirmam as globalizações transnacionais, suas dificuldades, seus ritmos de deslocamentos e da conquista do lugar, do espaço de habitar, de se inserir na sociedade dominante e as incorporações da sociedade dominante em seus rituais festivos. Como nome e trilha do vídeo, escolhemos a fala Norival Barreto, morador da Nova Esperança, quando anuncia a música-letra que compôs para Florianópolis. “O nome da música é Terra Magia. Também a poesia Rap de dois garotos da Nova Esperança serve de base inicial para pensarmos o vídeo-poema que elaboramos a partir das falas dos entrevistados e que pode ser visto como uma metáfora ilusionista das metrópoles, aqui especificamente, Florianópolis. . Transcrevemos aqui os recortes das falas acima citadas. Nova esperança Seu papel devia ser cuidar de mim, cuidar de mim, cuidar de mim. Eu não pedi pra nascer Eu só queria ser criança normal O nome da música é Terra Magia Como eu trabalhava fora, eu não ia deixar as minhas coisas numa barraca. Daí eu comprei madeira e na noite da ocupação eu fiz a minha casinha. Daí eu comprei cadeado, porque eu não tinha dinheiro pra comprar uma fechadura. Estava muito difícil pra pagar prestação, condomínio, daí, compramos esta casa. Foi o dia que eu estava trabalhando. Eu cheguei tava um monte de polícia derrubando os barracos. Aqueles homens grandão. 15 Iuri M. Lotman, idem, ibdem, ps. 26,27,28. 6 Primeiro foi de lona preta feito daqueles sacos de dormir, onde a gente convivia ali três pessoas e um fogãozinho e tal... Esta aqui sou eu e isto aqui são as pernas do meu filho Eu sei que só cabia o fogão, uma cama de solteiro e um guarda-roupa de duas portas. Nem mesa tinha. Daí eles não derrubaram a minha casa. Daí nós fomos num confronto lá na prefeitura. Começamos a jogar pedra na prefeitura, porque eles queriam mete fogo nas nossas casas, nos nossos barracos. Aí depois eu ainda passei por boa. O homem da prefeitura disse: Oh Maria, tu não tava junto naquele dia. Eu disse: Não, não tava não! Eu fui a primeira a jogar pedra na prefeitura. Mas eu chorei bastante. Éramos tipos completamente diferente uns dos outros. Musical, intelectual, cultural, completamente diferente . Aí tinha o gaúcho, tinha o catarinense, tinha o nordestino, como também tinha nosso povo do oeste catarinense. Essa é minha mãe. Ela é de Florianópolis, lá do Saco dos Limões. Eu saí de Tubarão, vim pra Florianópolis, Florianópolis eu andei, andei, andei. Isso aqui foi no dia que elas me pegaram de supetão. E daí me vestiram , me vestiram de Madona. Mãe, bota meia fina e a bermuda. Você vindo de Tubarão pra cá, você vem com trejeitos de cabelos grandes, barba mal feita, um coturno lá do jeito mal agraciado e com aquele falajar bastante popular. Ah! , né qu’’e, não sei o quê! Cada vez que eu, que ia ter uma festa, mesmo de Natal, eu decorava tudinho com papel, fazia flores. Eu dava um jeito de ter o dinheiro pra comprar as coisas pra fazer uma festinha pra eles. E, daí, quando eles iam ver, a casa tava lotada de gente. Nossa Senhora, era uma festa boa que eu dava. A capital, ele é a ilusão. Naquele tempo dava de fazer festa, agora não dá mais. Daí, nós nos vestíamos por baixo e outra saia por cima . daí nós saíamos na rua, bebendo, brincando. Nós vestíamos tudo de preto pra fazer as bruxas. 7 O norte e o nordeste do Brasil, alguma coisa, só alguns, não todos., ta entendendo/ O Zé Ramalho, a forma como ele se porta, como ele fala, Ehi! Eu sou, eu estou, Agora me vejam Eu to, Eu to te sentindo Isso, isso faz, isso traz, digamos assim, uma perspectiva inovadora, entende, para quem quer compor algo. Vejo o sol como era antes, levo a vida a todo vapor Na capital você já é desdenhado com palavras, aliás, bastante irritantes, às vezes. Ou você é jeca, ou você veio de um lugar que não conhece, não, não, coitado daquela gente lá, deve ser mais um cara que está boiando pó aí. Ontem bicho da seda, hoje, uma delata a voar. Quando chega na capital, a capital ela tem exatamente trejeitos diplomáticos. Alô, como vai, satisfação, prazer enorme... Mesmo que essas palavras, elas estejam da boca pra fora. E meu casulo deixar. Até criarmos coragem de enfrentarmos a pior argúria da vida, que era passar por uma favela. Não , não éramos filhos da favela. Daí pra cá, estou aqui. Daí construímos essas casas. Nós ainda temos algo, que a população lá fora pensa que não existe mais. Nós estamos com eles, vivemos com eles e desejamos estar com eles. Fadas amadas Terra magia Ondas do mar Floripa! O mosaico de pequenas narrativas e os registros fotográficos apresentados como documentos-relíquia de seus deslocamentos, assentamentos e o pertencimento a Florianópolis são enunciativos de suas histórias de migração, das diásporas culturais e políticas dos que vivem e trabalham como refugiados ou estrangeiros em seu próprio território. Embora os locais de origem não sejam os mesmos, as histórias de deslocamento enfatizaram, por um lado, a discriminação por parte da sociedade dominante e, por outro, um relacionamento de aproximação. Entre um antes e um depois tem a margem, o lugar da tolerância e da intolerância. Dos conflitos e códigos a serem negociados. 8 Significativas para nossa percepção são as apropriações dos rituais ou expressões de ídolos nacionais e internacionais; como o exemplo da festa de Halloween, do ídolo pop Madonna, do estilo do cantor nordestino Zé Ramalho e o canto rap dos adolescentes. Também a organização dos álbuns de família segue uma tradição euroamericana. Essas são celebrações que merecem nossa atenção, pois incorporam manifestações globalizadas na mídia dominante e ao mesmo tempo ultrapassam as fronteiras da hegemonia cultural. “Através da transculturação”, esclarece Stuart Hall, “grupos subordinados ou marginais selecionam e inventam a partir dos materiais a eles transmitidos pela cultura metropolitana dominante. É um processo da ‘zona de contato’, um termo que invoca ‘a co-presença’ espacial e temporal dos sujeitos anteriormente isolados por disjunturas geográficas e históricas (...) cujas trajetórias agora se cruzam.” Essa perspectiva é dialógica, já que é tão interessada em como a colonizador produz o colonizado quanto vice-versa.” Esse conjunto dos relatos das práticas de convivência negociadas no diaa-dia da comunidade somados as nossas percepções do local pesquisado propiciam ao nosso campo visual e a nossa percepção social uma simultaneidade semântica e nos fazem compreender que a cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar. A cultura é uma produção. Através da cultura passamos a nos produzir a nós mesmos. Percebemos também, que a globalização e a hierarquização social propiciam a descontinuidade dos processos socioculturais e comunicativos e, conseqüentemente, a descontinuidade nos processos de representação e apresentação dos códigos, quer seja no cotidiano ou na arte. Esses cidadãos que habitam as zonas de marginalidade não são neutros à cultura, reproduzem e produzem linguagens. Fazem-nos perceber que se no passado, no modernismo, nas vanguardas do século XX, o colonialismo trouxe códigos de diferentes culturas, tais como africanas, indianas, japonesas e chinesas, que oxigenaram os códigos e as formas de representação da cultura ocidental dominante (a exemplo do cubismo de Picasso, inspirado nas máscaras africanas e das pinturas de Van Gogh, inspiradas nas gravuras japonesas, ou no teatro de Antonin Artaud e Bertolt Brecht, que olhavam outras representações culturais), hoje, na sociedade pós-moderna, são os códigos das periferias latinoamericanas que estão interferindo e modificando as formas de representação e apresentação da cultura dominante, tanto na moda - roupas remendadas e rasgadas, tatuagens e piercings -, quanto na música e nas artes visuais. Haja vista todas as derivações das músicas de origem africanas (blues, jaz, samba, gospel, samba, hoje traduzidas nos raps das periferias) e, nas artes visuais, os grafites, que ocupando os espaços da cidade, seus muros e prédios, propiciaram uma nova forma de se perceber o espaço como um dos elementos na formulação e na transmissão da mensagem. A partir daí, a arte desloca-se dos museus para as ruas, para os sites específicos. Compreender o pósmoderno, tanto nas manifestações artísticas, quanto nas manifestações sócioculturais, significa conhecer as expressões das periferias latino-americanas, especialmente, e mais que isso, compreendê-las. A crise da arte e da cultura só acontece porque o que era fixo, estável, tradicional, se desloca, se 9 descentraliza. Mas é exatamente a partir dessa descentralização, dessa descontinuidade das linguagens que as expressões humanas se renovam. Bakhtin e Volochínov argumentam: A plurivalência social do signo ideológico é um traço da maior importância (...); na verdade, é este entrecruzamento dos índices de valor que torna o signo vivo e móvel capaz de evoluir. O signo, se subtraído às tensões da luta social (...), irá infalivelmente debilitar-se, degenerará em alegoria, tornar-se-á objeto de estudos dos filólogos.16 Nossa pesquisa observou as comunidades e suas manifestações de fundo de quintal e os registros de família. Esses ‘entre-lugares’, para além da subjetivação, vêm propiciando novos códigos e maneiras de se inserirem na sociedade dominante. Ainda que trespassados pela hegemonia cultural, percebemos nessas expressões interstícios que interferem e modificam a hegemonia cultural. Talvez não exatamente uma manifestação artística, mas expressões culturais ou ensaios de manifestações artísticas. Segundo Stuart Hall, “’Pós-modernidade’ é o termo preferido para assinalar o caráter cultural dos ‘Novos Tempos’. ‘Modernismo’ é o que dominou a arte e a arquitetura, a cultura da imaginação, das primeiras décadas do século vinte, e representa o olhar e a experiência da própria modernidade, um fim em si mesmo. Este tem declinado no estilo internacional e nas características do estilo livre (‘free’) , nas paredes envidraçadas do estilo característico dos aeroportos internacionais. O impulso revolucionário do Modernismo, o qual pode ser visto nos movimento do surrealismo, dadaísmo, construtivismo, nas tendências à abstração e à cultura não figurativa - vem sendo dominado e guardado pelos museus. É o lugar de preservação da elite avant-garde, traindo sua revolução e os impulsos populistas. Pós-modernidade, ao contrário, celebra a penetração da estética no dia-a-dia da vida e a ascendência da cultura popular nas ‘Grandes Artes’”.17 Entretanto, é importante percebermos que, assim como a modernização seguiu diferentes caminhos, também a pós-modernidade não é unilateral. Bem 16 Apud “’Postmodernism’ is the prefered term which signals this more cultural character of ‘New Times’. ‘Modernism’, which dominated the art and architecture, the cultural imaginatio, of the early decades of the twentieth century, and came to represent the look and experience of ‘modernity’itself, is at an end. It has declined into the international style characteristic of the freeway, the wall-of-glass skyscraper and international airports. Modernism’s revolutionary impulse-which could be seen in surrealism, Dada, construtivism, the move to an abstract and non-figurative visual culture – has been tamed and contained by the museum. It has become the preserve of an avant-garde elite, betraying its revolutionary and ‘populist’impulses. ‘Postmodernism’ by contrast, celebrates the penetration of aesthetics into everyday life and the ascendancy of popular culture over High Arts.”17 17 10 ao contrário. Hoje mais do que a globalização, percebemos os deslocamentos transnacionais e as traduções da cultura global nas histórias locais e vice-versa. A história e a arte se manifestaram sempre em diferentes possibilidades. As periferias não são os únicos espaços onde se produzem novos códigos de revolução artística e cultural e nem os únicos a partir dos quais podemos pensar a pós-modernidade. Mas certamente seus meios de expressão são autênticos e politicamente engajados e vêm interferindo de maneira significativa nos domínios da cultura, especialmente estéticos. Até porque, esses novos sujeitos históricos também se beneficiam dos avanços tecnológicos. Hoje, com muito pouco qualquer um pode registrar seu protesto via expressão musical ou pictórica e propagá-la na cidade ou em mídias “clandestinas”. Se os caminhos bruscos dos sistemas e idéias científicas produziram as revoluções técnicocientíficas, tais sistemas também produziram novas sociedades. Seus resultados vão muito além das paredes dos laboratórios ou das circunvizinhanças da cultura dominante. Os ‘Novos Tempos’ disponibilizam vantagens e desvantagens para ambos os lados; o importante é percebermos e valorizarmos a posição do indivíduo no mundo, seu local de cultura e o dialogismo entre centro e periferia e, hoje, entre global e local. Bibliografia BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Humanitas, UFMG. Belo Horizonte, 2003. CANEVACCI, Massimo. Sincretismo. São Paulo. Nobel. 1996. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 2003. KITWANA, Bakari. The Hip hop Generation.New York. Civitas. 2002. LAMIZET, Bernard. 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