pdf - ligia nobre

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B E F O R E
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I N S T A L A Ç Ã O
D E
M E L I K
O H A N I A N
SUMÀRIO
ANDRÉ GAUDREAULT
04
CHARLES MUSSER
JOHN TRESH
11
05
JEAN-LUC NANCY
RICHARD DRAYTON
17
ANNA HALPRIN
BEATRIZ COLOMINA
12
DAVID ELBAZ
19
GILLES CLÉMENT
26
SASKIA SASSEN
32
BRUNO LATOUR
13
07
MEDARD GABEL
09
PATRICIA FALGUIÈRES
16
ROBERT WHITMAN
15
CECIL BALMOND
EDOUARDO VIVEIROS DE CASTRO
27
08
22
PEKKA HIMANEN
PAUL GILROY & EDOUARD GLISSANT
PETER SLOTERDIJK
34
29
36
JANE POYNTER
25
DAVID HELD
31
TACITA DEAN
37
INTRODUÇÃO
C
osmograms é um ensaio em pelo menos três sentidos distintos. Primeiramente, é um
A extensão infinita do mundo além dos limites da Terra é uma das especificidades essenciais
ensaio de interpretação de uma proposta cinematográfica inédita, Seven Minutes
Before, 2004, realizada pelo artista Melik Ohanian no âmbito da participação francesa na
do momento histórico em que vivemos. Os termos da mundialização e da globalização, que
se difundiram desde a metade da década de 90, designam essa nova realidade de abertura
XXVI Bienal de Artes de São Paulo. No entanto, quase não se fala sobre o filme ao longo
dessas páginas. Não se trata, pois, de um catálogo mas de uma espécie de atlas que reúne
práticas, apresentações de obras de outros artistas, pensamentos e idéias passíveis de
situarem numa perspectiva mais ampla um filme de 17 minutos projetado simultaneamente
em sete telas, de forma real, sem corte e sem montagem, sete trajetórias sincronizadas de um
mesmo percurso que culmina numa explosão em algum estúdio solto do Vercors.
infinita do mundo. Mas também aí a conseqüência é, no mínimo, paradoxal. Porque quanto
mais se abre, mais o mundo se criouliza e se dispersa, mais sua unidade abstrata se desagrega
enquanto esfera autônoma unificada. Como se uma das conseqüências fundamentais da
reversão do tempo em espaço fosse a passagem de uma unidade presumida e fabricada pelo
continuum da História à constatação não hierarquizada da pluralidade dos mundos. O mundo
não pode mais ser concebido como uma natureza única e estabilizada sobre a qual
concepções e representações venham fazer valer seu direito. É muito mais o próprio mundo
que, segundo a cultura à qual pertencemos, já é sempre um outro mundo. Quanto mais o
espaço se estende como um horizonte ilimitado, mais a humanidade que o povoa se
subdivide. Nomear o mundo hoje é, de imediato, se situar na escala do diverso no movimento
mesmo que constitui o esforço de globalização.
Paradoxo: o título do filme insiste na idéia de um desenvolvimento temporal, mas o resultado
parece privilegiar a construção de um espaço. Se, de um modo ou de outro, toda forma de
gravação é uma combinação de espaço e de tempo, é a aparente inversão das prioridades, a
importância que se dá ao espaço em relação ao tempo – característica maior do cinema de
exposição – que se enfatiza aqui.
Todo o propósito do livro é ampliar, explorar e expor uma ruptura na modernidade baseada
nessa hipótese. Talvez estejamos em vias de compreender que o verdadeiro progresso não se
representa mais, necessariamente, sob a forma de uma escala graduada e vetorizada segundo
a medida do tempo. A questão moderna por excelência – que história se deve contar? – se
encontraria hoje abafada, recuada, invertida, para redescobrir, em todas as escalas, a
preocupação com o onde eu moro e como morar. A característica mais simples de um
cosmograma é ser uma forma que reúne: um conjunto, uma coleção, uma construção
ordenada. Um cosmograma funciona como aquilo que Tacita Dean diz sobre cronômetros nos
navios: permite saber onde se está. A ausência de cosmograma equivaleria a essa “doença do
tempo” que faz os navegadores se perderem nos oceanos. Tudo aqui nos fala, pois, de espaço:
mas de qual espaço se trata?
O arranjo simultâneo, e até a simples justaposição de acontecimentos ou de realidades
diferentes, revelou ser, muito cedo, uma particularidade própria do cinema. Instrumentos
como o kinetoscope ou o mutoscope, a prática do que se denominou “os exibidores” são
marcas concretas disso, muito antes que a invenção dos diferentes procedimentos de
montagem imobilizasse, através da institucionalização das imagens em série, um sentido
único para os textos. Documentando certas formas ainda não instituídas da projeção no
cinema dos primeiros tempos, interessando-se por alguns dispositivos, por alguns objetos que
se situam entre diferentes gêneros, criou-se, ao longo do livro, um começo de genealogia que,
indo além de sua heterogeneidade histórica e formal, tenta reconstruir essa história
marginalizada e pouco levada em conta, tal como foi iniciada principalmente pelas
exposições mundiais da segunda metade do século XX. A insistência no mundo enquanto
objeto específico e a insistência na exposição que é seu corolário necessário – por diferença
e oposição à projeção – fizeram, de fato, das Exposições Mundiais, um lugar de invenção
privilegiado para os dispositivos cinematográficos não-convencionais.
Portanto, é o próprio livro que, finalmente, é um objeto paradoxal; todos os seus elementos
remetem ao Todo, todos os seus discursos, suas abordagens, suas práticas são outras tantas
perspectivas para o dizer ou o desdizer; ele é também, ao mesmo tempo, a evidência de um
objeto heterogêneo, explodido, falando várias línguas simultaneamente. Nisso, ao menos, ele
pode ser lido como uma ontologia do espaço-mundo contemporâneo.
Cosmograms tenta, pois, traçar uma linha ligando uma obra de arte a um conjunto de idéias
e de objetos que apresentam, por voltas insuspeitadas, muitos pontos comuns. É um espelho
que reflete num filme que lhe serve de suporte um conjunto de discursos suscetíveis de o
situarem num contexto mais amplo. O livro tende a reproduzir, a partir de uma matéria
discursiva polifônica, o que é a experiência do filme. É a tentativa de fazer existir, não através
da escritura mas, sim, do ordenamento dos próprios textos, uma experiência não diretiva de
leitura, importada de um outro suporte. Nesse sentido, Cosmograms é um ensaio de tradução.
Essas três maneiras de ser um ensaio – um ensaio crítico de interpretação: de que nos fala
essa obra?, um ensaio sobre o conceito de mundo, um ensaio de tradução de um filme em um
livro – nos remetem, todas elas, à mesma idéia central de que nossas ações seriam, daqui por
diante, menos guiadas por um sentido projetado da História do que por nossa
responsabilidade em relação ao espaço. Para além da montagem, se trataria de inventar outras
formas de ligações, uma estética da coabitação onde cada um se tornaria responsável pelo
meio ambiente que cria.
Todos os textos reunidos aqui foram realizados com base em entrevistas revistas e corrigidas com os autores.
JEAN - CHRISTOPHE ROYOUX
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TRADUÇÃO DE IRACI D . POLETI
JEAN - CHRISTOPHE ROYOUX VIVE EM PARIS . É CRÍTICO DE ARTE E CURADOR DE EXPOSIÇÃO . NO INÍCIO DA DÉCADA DE 90 ,
“ CINEMA
CRIOU A EXPRESSÃO
DE EXPOSIÇÃO ”; DESDE ENTÃO , NÃO DEIXOU DE SE INTERROGAR SOBRE O SIGNIFICADO E AS
REPERCUSSÕES HISTÓRICAS DE TAL TRANSFORMAÇÃO DA FORMA CINEMATOGRÁFICA . É TAMBÉM DIRETOR DE FILMES OU
DE DISPOSITIVOS FÍLMICOS DE CARÁTER DOCUMENTÁRIO .
PRODUCTION
COSMOGRAMS
A VERSÃO BRASILEIRA DE COSMOGRAMS TEM COORDENAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO
N O B R A S I L D A E X O E X P E R I M E N T A L O R G ., S Ã O P A U L O
A REALIZAÇÃO DE COSMOGRAMS FOI POSSÍVEL GRAÇAS AO APOIO ESPECIAL DE
P.CHARPENEL
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JC.LEMAITRE
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J &M S A L O M O N
AGRADECIMENTOS
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AGRADECIMENTOS ESPECIAIS AOS AUTORES E A TERRELL LAMB
CECILE ZOONENS
KATE GLAZER
EMMA
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TELMA BALIELLO
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TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AOS AUTORES E KRISTALE COMPANY
© 2005
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CLAUDE
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HELMUT BATTISTA & DENISE MILFONT
I M P R E S S O E M S Ã O P A U L O , B R A S I L , M A R Ç O 2005
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EXPERIMENTAL.ORG
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SAO PAULO
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DOMINIQUE MARCHAIS
CAROLINE FERREIRA
ALEXANDRE
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VERONIQUE FAYARD
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CAPACETE
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AND
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AFAA
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JACQUES PEIGNÉ
HAROLD CHARRE
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KATE MULLIGAN
SHARON NOLAN
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ENTRETENIMENTOS
GREGORY DOUEST-LASNE
JEAN MARC LAFORET JEAN PAUL REBAUD
A REPRESENTAÇÃO FRANCESA NA XXVI BIENAL DE SÃO PAULO TEM O APOIO DE
DE LA CULTURE
-
ASSOCIATION FRANÇAISE D’ACTION ARTISTIQUE.
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LIGIA
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EXO
NATHALIE VIOT
DAP
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-
MINISTÈRE
ruído do trem rodando, do barulho das rodas, recriando as condições
da época da viagem por estradas de ferro.
A NDRÉ G AUDREAULT
ANDRÉ GAUDREAULT É PROFESSOR NO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DA ARTE E DE ESTUDOS
CINEMATOGRÁFICOS DA UNIVERSIDADE DE MONTREAL . ESPECIALISTA SOBRE O CINEMA DOS
PRIMEIROS TEMPOS . DENTRE SUAS OBRAS , DESTACAM - SE LE RÉCIT CINÉMATOGRAPHIQUE
-
1991 - COM F . JOST , PATHÉ , 1900 , E FRAGMENTS D ’ UNE FILMOGRAPHIE ANALYTIQUE DU
CINÉMA DES PREMIERS TEMPS - 1993 -
TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI
PARIS
_
01 DE AGOSTO DE 2004
O dispositivo de Melik Ohanian parece conter, de modo alegórico, a
tensão que se encontra na história do cinema, especialmente em seu
início, entre atração e narração. O paradigma da atração, que é de
ordem “pontual”, consiste na afirmação do dispositivo
cinematográfico como fator de artifício e do espetacular para deixar
o público admirado e interpelar o olhar do espectador. Por outro lado,
o paradigma da narração, que é de ordem “vetorial”, dá bastante
primazia à história contada. Com Ohanian, está-se em presença de
sete imagens pouco “narrativizadas”, especialmente porque as
chamadas imagens são fruto de intervenções que se situam no plano
do “profílmico” (em termos do “arranjo” do dispositivo de
encenação) mais do que no plano do “filmográfico” (em relação às
intervenções sobre o enquadramento e a seqüência) - assim, por
exemplo, não há realmente montagem no interior de cada uma das
tomadas e, a priori, o conteúdo do que aí se mostra é relativamente
simples, mais descritivo do que narrativo).
Por outro lado, há o aspecto de pura atração da explosão que vem
pontuar o fluxo narrativo e que, por seu caráter homogêneo - porque
haverá uma harmonização das sete telas pelo ruído e pelos efeitos
espaciais da explosão, eu imagino -, unifica a narração das sete telas,
ao mesmo tempo em que a faz bifurcar. Está-se, pois, diante de uma
tensão atração/narração. E, se desenvolvo longamente a metáfora
que tomo emprestada de um dispositivo da arqueologia do cinema eu preferiria, na realidade, falar de arqueologia da imagem, porque,
justamente, é necessário evitar estudar os dispositivos ditos précinematográficos como “pré”-cinematográficos, senão se nega seu
valor próprio - penso imediatamente no panorama. O panorama, um
dispositivo que data de 1790, foi aperfeiçoado na Inglaterra por
Robert Barker e teve uma popularidade bastante grande, em especial
na década 1830-1840, principalmente com Daguerre (sob a forma do
Diorama) que, como se sabe, é também um dos inventores da
fotografia. Geralmente, os panoramas do começo eram circulares: os
“visitantes” eram colocados no centro do dispositivo, sobre uma
espécie de plataforma, fazendo com que tivessem, assim, a impressão
de estar imersos “na” imagem. Trata-se um pouco da prefiguração da
imersão do espectador obtida recentemente com algumas tecnologias
novas. Um dos primeiros reflexos dos “panoramistas” foi utilizar o
dispositivo para fazê-lo mostrar um evento único, um gênero de
punctum temporis, em certo sentido, um momento pontual da
história (na maioria das vezes, a História com H maiúsculo, aliás –
representações de batalhas, de conquistas, de vitórias etc.).
Entretanto e de forma muito rápida, tendeu-se a não respeitar a
“unitemporalidade” e a fazer figurarem aí momentos diversificados
de uma mesma série de descrição de acontecimentos. Desse modo,
freqüentemente os panoramas integravam, num só quadro, uma
variedade de segmentos temporais através de uma representação
unificada. Tal representação pertencia, então, tanto à esfera da
narração quanto à da atração.
No caso do dispositivo de Melik Ohanian, é um pouco como se esse
princípio fosse retomado, mas a partir de um corte no espaço. No
espaço do lugar de representação e, ao mesmo tempo, no espaço de
cada uma das telas, enquanto o panorama homogeneizava a
diversidade na representação “fabuladora” de um único momento.
Por exemplo, no caso de uma batalha qualquer, poderia haver, num
canto, um dos momentos iniciais da conquista pelos ingleses dessa
ou daquela parte do território; num outro canto, um plano mais
próximo de um personagem representado no momento da reação que
terá tido uma vez tal conquista plenamente realizada etc. Em casos
desse tipo, há uma certa aposta, considerando-se a homogeneização
da representação visual. Penso que há um parentesco profundo –
involuntário, imagino – entre essa forma de construção de momentos
compósitos e o que entrevejo no projeto de Melik Ohanian. É como
se, nas duas extremidades da cadeia da história do cinema, houvesse
essa recorrência da prática do panorama.
Houve também o “panorama desfilante” (cf. a imagem que desfila em
cada uma das telas de Ohanian). Em vários panoramistas, havia essa
vontade de “imobilizar” a imagem. Na seqüência, pode-se pensar nos
famosos “Hale’s Tour” norte-americanos (início do século XX), salas
de projeção nas quais o espectador se sentava no espaço de um
cenário que reproduzia um compartimento de trem. Projetavam-se aí
imagens panorâmicas que desfilavam como se o espectador estivesse
no trem. O dispositivo era concebido para reproduzir as sensações do
Observa-se também, no dispositivo de Ohanian (pelo menos tal como
posso imaginá-lo), que a presença simultânea de sete telas torna
caduco qualquer recurso à montagem alternada. O dispositivo, que
Penso que a diferença essencial entre a imersão e a identificaçãoprojeção é que, no primeiro caso, o espectador perde suas
referências. De uma certa maneira, pode-se pensar que o cinema
narrativo clássico permite também uma certa forma de imersão,
porque há vários modos de perder suas referências. Na época do
panorama, estava-se no interior da cabina, da plataforma. Com o
nos mostra de modo simultâneo sete histórias singulares, esvazia
qualquer veleidade de fragmentação linear de tipo montagem
cinema narrativo clássico, pode-se dizer que, de certa maneira, a
imersão, que pode ser total (mas isso não é necessário), se deve ao
alternada. Sem dúvida, pelo fato de só disporem de uma única tela –
mais ainda, de uma tela de tamanho restrito -, é que os
“cinematografistas” (é assim que os primeiros diretores de filmes se
designavam a si próprios) desenvolveram certas técnicas,
fato de que a adesão do espectador aos mundos da ficção projetada
é muito forte. Pode até acontecer, em alguns casos, que se perca
momentaneamente a consciência do lugar exato em que se encontra
especialmente a fragmentação do espaço e do tempo em vista de
recompor um todo unificado. Pode-se presumir que, se tivesse sido
possível dispor de telas simultâneas, não teria havido,
aparentemente, necessidade de se recorrer de forma tão intensa à
montagem alternada.
de fato. Toda a arquitetura das salas funciona nesse sentido, nem que
seja só pela disposição das cadeiras, o grau de escuridão prescrito, o
silêncio que deve ser mantido.
Aliás, no início do cinema, antes que os códigos da montagem
Uma retomada da história das primeiras projeções de imagens
animadas permite compreender melhor tudo o que o cinema perdeu
– ganhando talvez outra coisa, é claro – com a homogeneização das
práticas à qual levou a virada da década de 10. Antes de 1908, grosso
alternada estivessem completamente desenvolvidos e passassem a
dominar, houve diversas tentativas de expressão da simultaneidade
temporal através do intérprete, por meio de “expedientes” da mesma
modo, os filmes não eram alugados, eram vendidos. Portanto, é na
oficina de cada um dos “exibidores” (como se dizia na época) que se
exercia o único controle sobre a representação: na realidade, era o
ordem, diria eu, que aqueles que se encontram em Ohanian. Tanto
pela apresentação de ações simultâneas em cenários divididos,
quanto também pela segmentação da tela em espaços fragmentados.
Tomemos como exemplo um filme norte-americano de 1907, College
“exibidor de imagens animadas” quem decidia sobre a maneira como
ele ia mostrar o filme. E os “fabricantes de imagens animadas”
perdiam, por sua vez, qualquer controle sobre a cadeia de exibição.
A institucionalização do cinema iria, na seqüência, possibilitar aos
Chums (Porter), em que há uma cena que mostra dois enamorados
conversando ao telefone. Um aparece à esquerda da tela, o outro à
direita e, entre os dois, vê-se a cidade que os separa. Tem-se, então,
“fabricantes” que se tornassem “produtores”, que retomassem o
controle, o que faz, por exemplo, com que, quando apresenta um
filme hoje numa sala, você o apresenta, em princípio, da mesma
três fragmentos simultâneos que são representados numa única e
mesma tela. Há coabitação, num mesmo espaço - o espaço “da tela”
- de três espaços diferentes, espaços “da relação tempo-espaço da
narrativa proposta pelo filme”. Outro exemplo: The Story the
maneira como é mostrado na sala vizinha. Em geral, existe apenas
uma versão “autorizada” e é esta que você deve apresentar. Depois
de 1908 – 1910, o que se vende não é uma película, não é uma cópia;
é muito mais um direito de projeção e o comprador de tal direito é
Biograph Told (Biograph, 1903). Um indivíduo encontra-se em seu
escritório, no trabalho, e está bolinando a secretária; o telefone toca,
ele responde e a imagem da pessoa que chama, sua mulher, se
obrigado a devolver, em seguida, a cópia alugada a quem a
“emprestou” a ele. Aí está a diferença – uma diferença essencial –
entre a exibição cinematográfica de ontem e a exploração
sobrepõe à primeira imagem. Há, portanto, superposição completa de
um espaço B (particularmente carregado, pois a parede do fundo é
recoberta de papel florido) – o de sua mulher – sobre um espaço A –
o do escritório onde se encontra o marido. O que não deixa de
provocar uma certa dificuldade de leitura para um espectador que
cinematográfica de hoje. Na época da cinematografia-atração, é como
se houvesse duas indústrias paralelas que estavam lado a lado e que
existiam em paralelo uma à outra: a dos fabricantes de imagens
animadas e a dos exibidores de imagens animadas, que também
representavam uma “indústria” – mais próxima do artesanato –, a da
não pára de se surpreender por se achar, assim, inopinadamente,
diante de uma imagem embaralhada. Trata-se, desse modo, de dois
exploração das imagens. Em outros termos, na época da
cinematografia-atração, eram exploradores de imagens que
momentos simultâneos que são representados um sobre o outro (no
ponto em que o dispositivo de Melik Ohanian prevê um corte de sete
espaços diferentes). A superposição provoca uma ilegibilidade de um
limiar que só o cinema dos primeiros tempos (ou a “cinematografiaatração”) podia se permitir. O mais cômico no filme da Biograph é
mostravam os filmes, enquanto hoje são exploradores de salas que os
mostram. Naquela época, as imagens animadas eram, com
freqüência, apresentadas em versões que poderiam ser classificadas
como “não autorizadas”! De fato, era o exibidor que decidia tudo
sobre a composição de seu programa e sobre a maneira como seriam
que, em seguida, o marido leva sua mulher para assistir a um
espetáculo de vaudeville. Na cena anterior (a da sobreposição das
apresentadas as imagens que o compunham. O exibidor tinha uma
função verdadeiramente “editorial”. Podia mostrar três imagens
duas imagens), se havia visto que, no momento mesmo em que o
marido tinha começado a bolinar a secretária, um empregado do
escritório se pusera a virar a manivela de um aparelho de imagens o biograph, precisamente – e que ele havia gravado toda cena que o
casal terá o “prazer” de descobrir junto, pois um dos números do
Lumière, uma imagem Pathé, uma imagem Edison, na ordem por ele
decidida. Podia intervir na composição de uma imagem e, por
exemplo, mudar a arrumação das cenas que a composição alinhava.
Podia retirar uma cena, acrescentar uma outra tirada de outro
conjunto e fazer uma mistura dos gêneros. Era como ele queria. Além
espetáculo de vaudeville, naquela noite, consiste exatamente numa
projeção cinematográfica...
disso, era o exibidor quem decidia sobre o acompanhamento sonoro
e musical das imagens, bem como sobre seu acompanhamento
Pode-se conceber o período que antecede a institucionalização do
cinema como uma espécie de laboratório. Procurou-se expressar a
simultaneidade temporal de diferentes maneiras, tentando, às vezes,
superar os limites próprios do dispositivo cinematográfico, um
verbal, por alguém bom de lábia, que fazia comentários em voz alta
durante a projeção. Disso se pode concluir facilmente que não houve
duas sessões no mundo que tenham sido semelhantes de uma sala
para outra. Naquela época, o espetáculo cinematográfico durava de
vinte a quarenta minutos, às vezes até uma hora, e era
dispositivo monocular que apresenta, portanto, um único espaço.
Para encenar essa eclosão do espaço homogêneo, a técnica que
prevaleceu foi a montagem alternada. Foi dessa forma, pois, que se
procurou expressar a simultaneidade dos diversos elementos de um
mesmo espaço-tempo da história proposta. Pode-se sentir autorizado,
aliás, a falar de “relação espaço-tempo do desenvolvimento da
história” no caso do dispositivo de Melik Ohanian, à medida que ele
apresenta um espaço global que é construído de modo a desenvolver
uma “narratividade” mínima que, logo, vai culminar num momento
chave (um clímax) que refletirá em cada uma das sete “histórias”
individuais mostradas nas sete telas.
Entretanto, a grande diferença em relação ao dispositivo que está
sendo instalado no âmbito da exposição é que, justamente, as sete
imagens em simultaneidade não se combinam segundo um princípio
de causa e efeito. A heterogeneidade de cada uma é privilegiada.
Estamos, aqui, mais próximos do dispositivo da câmera de controle,
necessariamente composto de dez, quinze ou trinta imagens,
montadas segundo a ordem prevista pelo exibidor. É claro que, de
tudo isso, nada era imposto pelos fabricantes de imagens. Portanto,
entidades locais é que decidiam sobre o espetáculo. Como eu disse
acima, o exibidor podia igualmente se permitir intervir no interior da
própria imagem. Caso comprasse uma imagem de doze cenas – doze
“quadros”, como se dizia na época – ele poderia muito bem inverter
a ordem de tais quadros ou, ainda, fazer uma miscelânea de duas
versões do filme. Existe, aliás, ao menos um caso documentado de
um exibidor que, aparentemente, gostou de oferecer aos seus
espectadores uma versão bastante original da Paixão, pois ela
alternava sistematicamente os quadros rodados por Pathé e os
rodados por Gaumont! Na época, a exibição das imagens animadas
era um pouco como um albergue onde só tem o que cada um leva!
Desse modo, a Paixão do Cristo “fabricada” por Pathé por volta de
1904 abrangia cerca de trinta quadros, que eram postos à venda
segundo a ordem cronológica da história narrada. Entretanto,
com sete câmeras colocadas de maneira aleatória em sete direções
distintas em torno de um eixo. É como se existisse um espaço
homogêneo, construído a partir de um tipo de eclosão do ponto de
vista em sete movimentos de câmeras, as sete colocadas em ângulos
também se punha à venda um jogo de mais ou menos vinte imagens
e um outro, igualmente bom, de cerca de doze imagens! E mais, cada
uma dessas imagens era vendida separadamente...
diferentes, e que vão desembocar no mesmo ponto. Isso se situa bem
na visão que temos hoje do que é o espaço eclodido, do que é uma
temporalidade fragmentada. Corresponde à não-obrigação que temos
de nos submeter a um único ponto de vista, às veleidades
contemporâneas de abrir perspectivas. Desse modo, o dispositivo põe
em cena um espaço mais favorável à imersão do sujeito espectador,
que é “tomado” “no meio” de sete câmeras.
O termo “exibidor”, que gosto de utilizar, é o que se empregava na
época, principalmente em Méliès. Em 1907, em seu famoso texto para
o Annuaire de la photographie [Anuário da Fotografia] (para uma
reedição bastante recente do referido texto, ver “Georges Méliès.
Propos sur les vues animées”, Les dossiers de la cinémathèque, La
Cinémathèque québécoise, Montréal, 1982, n° 10, p. 7-16), ele
escreveu: “Muitas vezes ouvi, nas salas de exibição, as reflexões mais
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disparatadas”; ou ainda: “Chego enfim à quarta categoria das
imagens cinematográficas. Esta foi denominada pelos exibidores
‘imagens para transformações’...” Utiliza-se pois, realmente, o termo
na época, um termo que exploro deliberadamente nos discursos que
uma lupa todas as exposições internacionais que se realizaram a
partir de 1887, parece-me que se recolheria um grande número de
amostras desse tipo de coisa. Se recorro a uma lembrança de
juventude, posso, por exemplo, citar o caso da exposição
faço sobre a cinematografia-atração a fim de evitar que se pense que
aqueles que mostravam imagens animadas no início do século XX
eram exploradores de salas, como já disse acima. Até mais ou menos
1906, havia um mínimo de salas dedicadas ao cinema (apenas uma
ou duas em algumas das maiores cidades do mundo ocidental). As
internacional de Montréal, em 1967, e do pavilhão da Companhia
Telefônica Bell que, com sua tela circular, antecipava as salas IMAX.
As exposições internacionais são, realmente, o contexto ideal para
experiências espetaculares do gênero, pois exigem um financiamento
ad hoc imponente (com freqüência, são tecnologias pesadas demais
imagens eram apresentadas principalmente por exibidores
ambulantes, em salas da municipalidade, em salões de festas, em
teatros, em barracas de feira etc.
para serem facilmente generalizadas e comercializadas). Um outro
exemplo, o “cinerama” de Grimoin-Sanson, previsto (digo “previsto”
porque ele, afinal, não terá sido explorado nenhuma vez...) para a
CHARLES MUSSER É PROFESSOR TITULAR DE ESTUDOS AMERICANOS , CINEMA E TEATRO NA
Exposição Internacional de Paris, de 1900, e que consistia em um
dispositivo com projetores múltiplos, num cenário simulando um
balão. Os espectadores deveriam colocar-se no cesto do similar do
balão e dez aparelhos deveriam projetar imagens que cercariam o
TRADUÇÃO DE JÔ AMADO
No início, quando se ia ver imagens animadas, o que importava era
ver imagens que se mexiam. Simplesmente, e o assunto tinha pouca
importância. Penso em Méliès que, por ocasião da primeira sessão de
cinematógrafo à qual assistira, havia ficado extasiado ao ver que as
folhas mexiam (particularmente na imagem intitulada Le Repas de
bébé [Lumière, 1895]). Méliès e os outros espectadores da época
estavam habituados a não ver essas folhas mexerem, pois, no
dispositivo cênico (teatral ou outro), eram desenhadas numa tela de
espectador (como no pavilhão de Bell, em 1967) e lhe dariam a
impressão de subir pelos ares. As telas formavam uma espécie de
rotunda completa e permitiam uma imersão total num espaço
panorâmico homogêneo. A história do cinema mostra uma série de
tentativas para tornar a imersão sempre maior.
fundo.
A utilização que se faz hoje do termo “dispositivo” deve muito à
teoria psicanalítica, mas também ao estudo de Jean-Louis Baudry
sobre o dispositivo. Trata-se de uma noção que rapidamente chamou
a atenção. No tempo da cinematografia-atração, a sala improvisada
em que se projetavam imagens punha em evidência justamente os
diversos elementos constitutivos do referido dispositivo. Ainda não
havia salas especializadas e o dispositivo de projeção estava, assim,
exposto à vista dos espectadores durante a representação. O aparelho
de projeção era colocado no centro da assembléia e constituía, tanto
quanto as próprias imagens, o objeto de atração. Olhavam-se a
imagem e o “bicho luminoso”, tão “atraente” quanto o que o referido
aparelho apresentava. É praticamente a mesma coisa que vive o
espectador hoje quando vai a uma sala IMAX (ou, pelo menos a
algumas dentre elas), nas quais, uma vez acabada a projeção,
convida-se para sair pelo alto da sala a fim de se poder admirar a
“máquina de imagens”.
Por sua vez, a máquina de imagens dos irmãos Lumière era
constituída segundo o princípio do dispositivo da lanterna mágica,
que todo mundo conhecia na época. Para uma projeção de imagens
animadas, utilizava-se então uma verdadeira lanterna mágica e
substituía-se o passador de imagens normal pelo Cinematógrafo. Nos
dois casos (projeção de lanterna mágica e projeção de
cinematógrafo), observemos isso, são imagens fixas que passam no
“passador de imagens”. A particularidade desse passador de imagens
muito especial que é o cinematógrafo é o fato de chegar a substituir
as imagens fixas umas pelas outras numa cadência bastante rápida
para que o espectador tenha a ilusão de que as imagens são animadas
(mas, nós sabemos bem disso, essas imagens não são
verdadeiramente animadas!). Por outro lado, como antecipou uma de
minhas colaboradoras (Karine Martinez), a expressão “imagens
animadas” é, provavelmente, percebida no começo como um
oximoro. Porque uma imagem, no início (em todo caso, antes da
invenção do Kinetograph Edison e do Cinematógrafo Lumière), já é
sempre da ordem do fixo.
Uma vez passado o efeito de novelty, uma vez que o dispositivo
torna-se familiar, o interesse do espectador se dirige para o que é
mostrado na tela, para o conteúdo da imagem. É mais ou menos
nessa época (entre 1903 e 1906), que se começa a retirar o aparelho
de base da vista do espectador, colocando-o numa cabina situada no
fundo da sala. Esconde-se, pois, o “bicho” atrás de uma parede e ele
é enjaulado. Além disso, começa-se, com o mesmo movimento, a
dispor as cadeiras em semi-círculo, de forma a fazer os olhares
convergirem para a tela. Procede-se, então, a uma espécie de
organização do olhar – ele é dirigido, é “domado”, graças à
disposição das cadeiras e à sua fixação (sua ancoragem no solo). No
início, como as cadeiras não eram fixadas ao piso, a disposição dos
espectadores podia ser aleatória, e havia uma participação efetiva do
público. Estava-se mais na ordem da celebração, da partilha, do que
na da experiência isolada que o cinema institucional iria propiciar
mais tarde.
O dispositivo cinematográfico conheceu, evidentemente, algumas
tentativas visando à sua mutação. Tomemos, a título de exemplo, o
procedimento do tríptico segundo Abel Gance (a famosa “polivisão”),
experimentado por seu Napoléon (1927). Trata-se aqui muito mais de
um desses casos de espécie, relativamente visionários (este
“anuncia”, em parte, o cinemascópio), que não têm,
necessariamente, descendência direta. No caso do dispositivo
imaginado por Gance, o que é notável é que ele tenha planejado
ultrapassar os limites do quadro não se limitando apenas à ampliação
da visão. De fato, não só as três telas projetam, à maneira do
cinemascópio, uma só imagem, como também há, por momentos,
montagem entre as imagens da tela central e aquelas mostradas pelas
telas laterais. As telas se respondem, assim, uma à outra, e permitem
a “expressão” de uma variedade de pontos de vista. A história do
cinema está cheia de tentativas do gênero. Caso se examinasse com
A idéia que percorre todas as pesquisas que fazemos sobre o cinema
dos primeiros tempos é a de tentar mostrar em que pontos se tem, na
origem, dois sistemas em funcionamento, dois sistemas que não têm
o mesmo “princípio primeiro”, dois sistemas que são concorrentes
um do outro e que não levam, absolutamente, ao mesmo lugar. Isso
pode ser constatado no simples plano da cronologia. Um primeiro
período se esboça e vai até 1907 – 1908, o da cinematografia-atração.
Nesse período, o cinema responde a imperativos muito variados que
não são de ordem “puramente” cinematográfica. Certas
especificidades cinematográficas realmente estão em via de se
implantarem, particularmente com Méliès e seus efeitos especiais,
mas o cinematógrafo é considerado um aparelho de reprodução. É um
dispositivo do qual se serve primeiro e antes de tudo com a idéia de
reproduzir espetáculos que se fazem sobre “outras” cenas que não
aquela do cinema. Antes da institucionalização (um fenômeno que se
produz entre, digamos, 1908 e 1915), o aparelho cinematográfico era,
portanto, antes de tudo, um aparelho de gravação. Na época, se
existe arte em algum lugar, é diante da câmera, não na câmera. Pedese a um artista pintor para pintar cenários que serão colocados diante
da câmera; toma-se um artista de teatro e se pede a ele que
represente “artisticamente” diante da câmera etc. A arte do cinema
não está (ainda) no cinema. Não há aspecto artístico no próprio
cinema. O cinematógrafo serve primeiro e antes de tudo para
diferentes participantes de séries culturais em voga na época
(fotografia, espetáculo cênico, espetáculos mágicos, lanterna mágica
etc.). São, pois, esses participantes de séries culturais já estabelecidas
que se apropriam do cinematógrafo para responder a imperativos
que, de uma certa forma, não pertencem ao cinema. Normalmente,
esses participantes são fiéis à sua própria série cultural. Com o
cinematógrafo, Lumière faz fotografia animada, Méliès faz sketches
mágicos filmados etc. No período seguinte (1907-1915), vê-se emergir
uma indústria cinematográfica que tende a se separar pouco a pouco
dessas outras séries culturais que, num primeiro momento,
acolheram o cinematógrafo. Desenvolve-se, então, um discurso de
autonomia do cinema, a partir, principalmente, da tribuna dos jornais
corporativos (Moving Picture World, Ciné-Journal etc.).
C HARLES M USSER
YALE UNIVERSITY . ESCREVEU EXTENSAMENTE SOBRE OS PRIMEIROS ANOS DO CINEMA ,
INCLUINDO O LIVRO THE EMERGENCE OF CINEMA
NOVA YORK E PARIS
_
- 1990 -
16 DE JULHO E 01 DE AGOSTO DE 2004
E m Seven Minutes Before, o filme em telas múltiplas que Melik
Ohanian apresentou no pavilhão francês da Bienal de São Paulo, há
um único momento em que se juntam os sete temas do filme. De
certa maneira, o que ocorre no filme é uma reorganização da forma
pela qual o tempo se desdobra. Ao invés de cortes interligados, o
filme é projetado simultaneamente em sete partes, em telas distintas.
Assim, Ohanian oferece uma forma de organizar e representar o
espaço-tempo muito diferente daquela que se vê em alguns cinemas
– até num filme de Quentin Tarantino – embora talvez partilhe alguns
dos mesmos impulsos.
O filme Napoleon (1927), de Abel Gance, poderia ser considerado um
óbvio precursor, pois o diretor não se limitou a separar as telas: a
certa altura, passavam-se cenas de ações diferentes nas três telas –
um tríptico de imagens sincronizadas.
É freqüente que o espaço e o tempo surjam em primeiro e segundo
planos. O filme, ou obra de arte, pode priorizar um ou o outro, mas
o espectador pode desviar sua atenção e centrá-la naquilo que o
cineasta pode parecer não enfatizar. Imagine as tomadas panorâmicas
de antigamente, que muitas vezes eram voltadas para o espetáculo do
espaço. Muitas vezes, as alterações da iluminação tinham o objetivo
de sugerir o passar do tempo. Uma vez estabelecido o espetáculo do
espaço, o tour de force, a atração de uma impossível – mas crível –
mudança temporal passaria para primeiro plano.
Quando a expressão panorama foi empregada pela primeira vez no
cinema, esse efeito de movimento através do espaço freqüentemente
era obtido colocando-se a câmera num trem, ou num barco
deslizando pela água. Ainda em 1896, a American Mutoscope
Company instalou uma câmera num veículo sobre trilhos que
circulava pela cidade. Essa penetração de espaço, a sensação de estar
submerso, baseava-se num desdobrar da temporalidade. Muitas vezes
eram chamados “passeios fantasmas”.
À medida que perdia força essa sensação inicial de passeios
fantasmas, surgiram esforços crescentes no sentido de criar
documentários narrados, nos quais o espectador fosse um passageiro
em viagem. Havia a idéia de que o espectador, sentado na sala de
espetáculos, viajava pelo espaço e pelo tempo – sua cadeira se
tornava o assento num trem ou o banco de um barco.
Alguns cinematografistas do início recusaram-se a seguir o
movimento. É o caso de Méliès, o que, aliás, explica seu fracasso a
partir de 1908. Ele quis continuar a fazer seus filmes como os fazia
antes, numa via que estava prestes a se tornar uma alternativa. Mas
o cinema não se faz sem dinheiro... E qualquer via alternativa que
não seguisse a música do tempo corria o risco de perder espectadores
e, portanto, de encontrar alguns problemas financeiros. No início da
década de 10, havia menos oportunidades para as formas
alternativas.
A própria idéia ou definição de “panorama” mudou muito cedo.
Aquilo que agora chamamos “tomada panorâmica” foi muito difícil
de conseguir. Implica um movimento rotativo da câmera,
normalmente apoiada num tripé. O primeiro filme de Edison em que
isso foi feito foi Return of the Life Boat (1897). Nesse filme de uma
única tomada, um bote salva-vidas chega a terra e, quando está para
sair do enquadramento da câmera, o cinegrafista retoma a cena para
mantê-la enquadrada. Definitivamente, o resultado chama a atenção
para o espaço fora do enquadramento, dando ênfase ao espaço fora
Nos jornais especialmente destinados aos participantes da então
nascente indústria do cinema, que foram publicados a partir de 1907,
encontram-se textos sobre o que deve ser e o que não deve ser o
da tela, mas também centra a atenção do espectador na natureza
incontrolável da ação que se passa, do tempo.
cinema, assinados por diferentes participantes culturais. Alguns deles
declararam guerra às práticas alternativas. Depois de 1907-1908, o
cinema começa a ser visto como uma prática cultural autônoma.
Procura-se, então, dar autonomia ao cinema e a legitimá-lo. Cada vez
Em nada surpreende que os fabricantes de equipamento tenham
aperfeiçoado rapidamente a tecnologia necessária para produzir
mais novos apostadores investem no mundo da cinematografia, livres
de qualquer vínculo com as séries culturais concorrentes. Foi isso,
provavelmente, que fez a fortuna de Pathé, que foi uma das
principais forças a levar o cinema para a via industrial e que, ao
contrário de Edison, Lumière e Méliès por exemplo, não tinha
compromissos com alguma série cultural concorrente do cinema.
Para ele, o cinema devia, primeiro e antes de tudo, ter um futuro
comercial. Para Charles Pathé, o cinema era um comércio que devia
encontrar seu nicho, criar seu próprio público e ocupar seus próprios
segmentos de mercado...
BASEADO EM ENTREVISTA COM JC ROYOUX
-
TEXTO REVISTO PELO AUTOR , EM COLABORAÇÃO COM
PIERRE CHEMARTIN .
05
panorâmicas mais suaves; e, por volta de 1899 ou 1900, as empresas
cinematográficas já produziam extensas tomadas panorâmicas da
trágica inundação de Galveston, assim como longas panorâmicas, em
câmera lenta, das cataratas de Niagara ou paisagens de cidades
importantes. A técnica da panorâmica – na qual a câmera se move,
lenta e continuamente, sobre um tripé – era importante porque
aquele movimento, suave e aparentemente frágil, sugere uma
suspensão do tempo, como se pode ver nos filmes Circular Panorama
of the American Falls (Edison, 1900) e Circular Panorama of Atlantic
City, N.J. (Edison, 1900). A atenção do espectador deixou de se fixar
nas paradas e re-inícios que ressaltavam uma passagem urgente, e
cautelosa, do tempo. O espectador podia transcender o tempo. É
interessante notar que alguns desses filmes, particularmente PanAmerican Exposition by Night (Edison, 1901), são contínuos,
“panoramas” sem descontinuidade, que começam a ser rodados à luz
do dia e, quando terminam (num tempo de menos de um minuto de
projeção), já é noite escura, com as luzes elétricas da exposição
proporcionando o espetáculo visual. Em geral, no entanto, essas
surgem. As preocupações de Griffith são semelhantes, ainda que
articuladas de modo muito distinto. Era o cineasta (Griffith) que,
que visitava, John C. Rice podia ser visto beijando May Irwin em uma
sala e beijando Ada Lewis (que fazia o papel de Lydia Languish) em
tomadas panorâmicas com a câmera num tripé abordavam a
temporalidade de uma maneira diferente: poderíamos dizer que o
enquanto narrador fictício, mudava rapidamente de um espaço para
outro. Ele foi o máximo expoente da edição paralela. Muitas vezes,
outra. Via-se, portanto, John C. Rice representando num espaço e
John C. Rice fazendo algo semelhante – mas sem qualquer relação –
espetáculo do espaço era muito mais importante que o do tempo. Na
realidade, o esforço para integrar tais cenas numa narrativa contínua
isso significava o movimento entre espaços numa temporalidade
condensada e intensa. O resgate do último minuto salienta o tempo,
em outro. Enquanto forma de diversão teatral, uma das coisas que o
cinema conseguia fazer era enfatizar o espaço: o desempenho do
criava, muitas vezes, uma separação significativa. The Execution of
Czologosz (Edison, 1901) e The Country Doctor (Biograph, 1909), por
exemplo, começam com longas, extensas panorâmicas; só após as
panorâmicas é que a narrativa (e o fator tempo) surgem em cena.
mas também o espaço. Essa pequena porção de espaço é coberta pelo
pequeno tempo que resta. Mas nem todos os seus filmes usam o
espaço e o tempo dessa maneira. Em Intolerance (1916), Griffith ia e
vinha entre períodos de tempo absolutamente diferentes. Embora a
separação do tempo fosse dramática, ainda havia uma evolução firme
da narrativa em cada um dos fios do enredo. No final, essa separação
mesmo ator ocorrendo simultaneamente em dois espaços distintos.
No entanto, os aspectos “simultâneos” ou temporais parecem tão
importantes quanto os espaciais. Até então, isso nunca fora possível.
Quando essas panorâmicas longas e suaves se tornaram populares,
ocorreram outras tentativas semelhantes de submergir o espectador
no espaço. Em “Ballon Cinéorama”, apresentado na Exposição de
Paris de 1900, o auditório era submerso num mundo com uma visão
de 360 graus. Jacques Deslandes e Jacques Richard citam o fato numa
passagem de sua Histoire comparée du cinéma. No início do cinema,
pelo menos nos tempos de Lumière, colocava-se o rolo de filme e ele
rodava até o final. Era muito linear e forte, em sua temporalidade,
mas também valorizava os espaços em que a ação decorria. Basta ver
os títulos: Employees Leaving the Factory (1895) ou The Train at La
Ciotat (1895). Mesmo quando não era mencionado nos títulos, o
tempo ocupava um lugar central no filme. Com o Vitascope de Edison
constitui um filme, mas não uma narrativa. Consiste em várias
narrativas que sugerem uma narrativa maior. Existe uma progressão,
mas é mais emocional e conceitual do que narrativo. A narrativa dos
dias de hoje é mais esperançosa; sempre termina com a alegre
sugestão de que a história sempre caminha rumo à felicidade geral.
Esses períodos de tempo distintos são, naturalmente, vinculados a
espaços distintos – e a geografias distintas. O que quero sugerir é que
poderíamos comparar Ohanian e Griffith vendo-os completamente
diferentes, mas eles têm muito em comum no impulso de mostrar
espaços distintos, telas distintas, ações distintas.
– que foi a primeira experiência bem-sucedida de projeção de
imagens filmadas nos Estados Unidos – os filmes passaram a ser
Também podemos analisar o período anterior a Griffith, quando as
relações entre espaço e tempo se davam de modo muito diferente.
exibidos num enorme rolo e as pessoas viam as mesmas imagens até
oito vezes. O filme tinha que passar muitas vezes seguidas porque
chegava a levar três minutos para se mudar uma bobina – 15
segundos de projeção para três minutos de escuridão era algo que
não funcionava. Esse é um dos motivos pelos quais em Nova York e
Boston passaram a usar dois projetores. Enquanto repassavam o filme
já exibido, iam mudando a bobina no outro projetor.
Houve esforços no sentido de conectar espaços e, dessa forma,
narrativizá-los, mas não de uma maneira rapidamente identificável.
Um exemplo: por ocasião do lançamento do iate Meteor do príncipe
Guilherme, da Alemanha, os cinegrafistas de Edison o filmaram em
duas tomadas diferentes, no estaleiro. Havia, portanto, dois filmes
sobre o lançamento do Meteor ao mar: Christening and Launching
Kaiser Wilhelm’s Yacht “Meteor” e Kaiser Wilhelm’s Yacht “Meteor”
Entering the Water (ambos produzidos em 25 de fevereiro de 1902).
Edison vendeu as duas versões em separado. Os exibidores podiam
mostrar o “Meteor” sendo lançado ao mar de um ângulo e, depois, de
outro. De certa forma, isso é muito normal para nós, nos dias de hoje,
porque vemos pela televisão um jogador chutar em gol e, em seguida,
em câmera lenta, o mesmo jogador chutar em gol de um ângulo
diferente. Inicialmente, relacionavam-se duas tomadas no espaço
quando, em geral, as tomadas não se relacionavam no espaço. Essa
Os temas apresentados no Vitascope de Edison variavam. Podia ser
uma dançarina, como Annabelle Whitford, que fez Serpentine Dance
e Butterfly Dance. Se a projeção fosse de boa qualidade, quase
parecia que ela dançava continuamente, como se fosse um filme de
uma única tomada e o roteiro unido e linear. Nem dava para notar
quando o filme terminava ou começava; podia ser repassado
continuamente. O tempo era infinito, mas com sua repetição
potencialmente interminável, também parecia suspenso. O espaço,
sim, era potencialmente estável e supremo. Entretanto, voltando à
questão do primeiro e segundo planos e de onde o espectador centra
sua atenção, percebe-se que nesses primeiros filmes de Edison o
espaço é pouco desenvolvido. Quase esquemático. Annabelle dança
contra um fundo preto. Além dela, dá para ver, no máximo, o
assoalho e um corrimão, de um dos lados. Outros filmes sugerem o
espaço de uma barbearia ou de uma oficina de ferreiro. A partir do
momento em que conseguiram uma câmera portátil, os cinegrafistas
de Edison passaram a filmar cenas de rua e outros locais. Aqui, o
espaço ficou muito mais demarcado, mas persiste a interrogação de
até que ponto essa especificidade do tempo pode ter dado impulso a
uma temporalidade mais definida, mais desenvolvida e linear.
Esses primeiros filmes assemelhavam-se, muitas vezes, a quadros em
movimento. É evidente que o principal motivo para as pessoas irem
ao cinema era a animação, o movimento, e, conseqüentemente, o
decorrer do tempo, ainda que este estivesse centrado no micro-nível
de observar um movimento real, como o ferreiro malhando
repetidamente a bigorna, tal como o faz na vida real.Mesmo antes do
cinema, sempre houve um interesse em achar formas de fazer as
imagens ganharem movimento. O cinema apenas padronizou a
maneira pela qual o movimento ocorre na tela, a continuidade por
meio de fotogramas sucessivos, aquilo que chamamos a “moderna
imagem em movimento”. Mas havia outras maneiras de dar
movimento às imagens e as pessoas o viam na tela. Isso também
implicava fazer o tempo da tela mais análogo à nossa experiência de
tempo no mundo real – para torná-lo mais convincente e
intercomunicável.
Se existia uma gangorra – ou talvez se pudesse dizer uma tensão
criativa – entre o espaço e o tempo, também havia outra espécie de
dialética entre os vários tipos de atrações isoladas e o decorrer da
narrativa. Mesmo antes do cinema, já havia “cinemas de atração”,
momentos de espetáculo sem narrativa, de surpresa e assombro,
projetados numa tela ou representados num palco; há, atualmente,
uma espécie de cinema que os recria. O cinema propriamente dito era
novo, espantoso, mas com uma noção mais ampla da prática da tela,
ou de surpresa teatral. Paralelamente, aconteciam saraus de leitura,
de noite, sobre viagens, nos quais as pessoas se moviam no espaço e
no tempo. Havia também longas narrativas, como as fotonovelas de
Alexander Black.
É tentador ver o filme em telas múltiplas de Melik Ohanian como
radicalmente oposto ao cinema comercial e às figuras que Griffith
considerava centrais para sua formação. No entanto, Ohanian tem
mais em comum com Griffith do que se pode pensar. Ambos se
interessam em mostrar espaços múltiplos que se desdobram
simultaneamente. Com Ohanian, o espectador tem a liberdade de
olhar para uma ou para outra tela – ou para várias ao mesmo tempo.
Tem a liberdade de explorar os diferentes enredos de imagens que
relação construiu o espaço de uma maneira nova para os
espectadores. Sabotou a idéia de uma progressão da narrativa, mas
também sua temporalidade, de certa forma confusa. Provavelmente,
as câmeras não começavam a gravação simultaneamente, ou não
filmavam de forma contínua. O mais provável é que parassem, para
continuar de novo, e por isso a relação entre o filme A e o filme B
constituía um verdadeiro desafio para um espectador que realmente
quisesse explorar as relações espaço-tempo. Para eles, seria quase
impossível começar e terminar ao mesmo tempo. Também era
improvável que o filme fosse rodado numa única tomada contínua. A
filmagem poderia começar e, quando ficasse evidente que o barco
não seria lançado à água imediatamente, seria suspensa para ser
retomada mais tarde. Ao contrário do espectador, que acompanha o
evento desde a filmagem do ponto A, prosseguindo continuamente
até o ponto C; e, no segundo filme, começando no ponto A1 e
prosseguindo até C1. Cada filme passava por etapas – começoparada-retomada (tipicamente, por meio de cortes bruscos) – e, por
fim, terminava em momentos distintos. Poderia parecer que esses
filmes antecipavam o tempo e, no entanto, parte da excitação era
mostrar um evento de duas diferentes perspectivas, de duas posições
geograficamente distintas. Dá para imaginar um artista querendo
mostrar os dois filmes simultaneamente, um ao lado do outro – numa
espécie de díptico.
Há uma outra maneira pela qual é possível pensar como o cinema
cria conjunções espaciais e temporais. O cinema foi absolutamente
radical, no sentido de que tornou possível que coisas relacionadas
ocorressem em espaços não relacionados. Imaginemos o filme mais
popular de Edison, The May Irwin Kiss (1986), no qual Irwin beija
John C. Rice. Ele se inspira na penúltima cena de uma comédia
musical, The Widow Jones (1895), na qual o beijo sela o noivado de
Jones (Irwin) e Billy Bikes (Rice). John C. Rice, como Bikes, ganha a
viúva, uma herdeira, e sua fortuna. Esse filme apareceu primeiro
num jornal, a análise cronológico-fotográfica de um beijo. Algumas
semanas depois, foi projetado na tela no Koster and Bial’s Music Hall,
pelo sistema dos rolos de bobina contínuos. Naquela semana,
portanto, o beijo podia ser visto repetidamente no Koster and Bial’s
Music Hall e, simultaneamente, em outra sala, em outro espaço, John
C. Rice e May Irwin se beijavam, mas ao vivo. Na semana seguinte
estreou em Boston o segundo Vitascope e o grande sucesso voltou a
ser The May Irwin Kiss. Dois artistas, absolutamente identificáveis,
beijavam-se, num close up, ao mesmo tempo e em diferentes lugares
do país.
Nesse meio tempo, The May Irwin Kiss tornou Rice muito famoso e
ele começou, imediatamente, a ensaiar o papel de Capitão Absolute,
na peça The Rivals, do século XVIII, de Richard Sheridan. Ocorreram,
então, coisas muito engraçadas que não vou detalhar, mas, em
Talvez valesse a pena deixar de lado como o tempo e o espaço se
entrelaçavam no início do cinema e discutir, ao invés disso, os
métodos de exibição daquela época, que podem repercutir na
abordagem de Ohanian. Bem no começo da exibição cinematográfica,
ocorreu uma situação em que imagens múltiplas eram mostradas
simultaneamente, com o kinetoscope1 e, depois, o mutoscope2. Eram
máquinas em que se observavam as imagens por orifícios (peephole
machines) enquanto rodava a bobina do filme. Em alguns lugares
havia várias dessas máquinas e os usuários viam todas elas,
passando de uma à seguinte. Em 1894-1895, esses kinetoscopes
mostravam, em geral, filmes de dançarinos de várias regiões do
mundo. Embora todos pudessem ter sido filmados nos estúdios Black
Maria, de Edison, podiam ser vistos dançarinos turcos, ingleses,
índios norte-americanos, um dançarino mexicano que lançava facas
etc. De certa forma, os dançarinos representavam as diferentes
culturas do mundo, diferentes espaços geográficos. É evidente que se
podem perceber paralelos potenciais entre os primeiros kinetoscopes
e as sete telas usadas por Ohanian.
O passo para o cinema, que somente exigia um projetor, foi um passo
na direção de uma maneira mais eficiente de exibir filmes.
Conseqüentemente, o cinema afastou-se da idéia de exibir imagens
múltiplas simultaneamente, embora não da mesma pessoa. Um
exibidor só precisava de um ou dois projetores, o que tornava a
exibição do filme muito mais barata.
Outra coisa que merece ser abordada é a maneira pela qual a exibição
em telas múltiplas de Ohanian retoma a idéia do processo de exibição
como parte central do processo de criação. No início do cinema, os
exibidores compravam filmes de diferentes produtoras e também
utilizavam a lanterna mágica. Assim, cada exibidor tinha sua
programação específica; embora, em 1898, praticamente todos os
exibidores mostrassem filmes sobre a guerra hispano-americana,
todos os programas eram diferentes. O exibidor reivindicava uma
certa autoria. A programação e a edição eram subordinadas à
empresa de exibição. Nos primeiros anos do século XX, o que
aconteceu foi que a responsabilidade pela edição passou rapidamente
das mãos do exibidor para o controle do produtor. As unidades de
programação tornaram-se cada vez maiores e o papel do exibidor
cada vez menos criativo e mais o de dono de uma casa de
espetáculos. De início, o exibidor era o autor.
Naquela época, os filmes eram feitos de seqüências curtas e era
possível organizá-los por serem curtos. Eram elaborados em blocos e
esses blocos podiam ganhar a forma de frases. Havia uma liberdade
muito maior para os organizar devido ao formato pré-realizado. Na
época, o cinema era uma extensão da lanterna mágica. Nos
espetáculos de lanterna mágica, ocorria uma tensão criativa entre
mostrar paisagens variadas – que é o que se fazia inicialmente – e
programas mais longos.
A empresa de Edison, que foi a pioneira do cinema nos Estados
Unidos – e talvez no mundo –, tinha interesse em produzir
equipamentos. Edison vendia esses equipamentos e também vendia
filmes, avulso, para exibição. O comprador podia exibir os filmes
como desejasse. Não era incomum que exibidores cortassem pedaços
de filme de que não tivessem gostado. Concretamente, até a década
de 1960, quando a censura de fato acabou nos Estados Unidos, cada
Estado censurava os filmes à sua maneira. O sonho de uma exibição
padronizada, em que tudo fosse idêntico e simultâneo em todo o
país, só chegou com a televisão.
Em 1897, quando apareceu o primeiro Vitascope, havia cerca de 60
projetores nos Estados Unidos. Provavelmente eram usados de formas
diferentes. Alguns deles tinham obturadores, enquanto outros, não;
alguns eram rolos contínuos, outros não. Às vezes exibiam um filme
em transição, de um espetáculo de vaudeville para outro, e às vezes
os exibiam em conjunto. Lyman Howe, que começou a exibir filmes
em dezembro de 1896, se interessava, inicialmente, em criar
seqüências de narração. No final de 1896, ele tinha cinco filmes
diferentes de um incêndio, incluindo os bombeiros saindo do quartel,
a corrida para chegar ao incêndio, a retirada de cavalos que se
encontravam no prédio em fogo e o salvamento. Com esses cinco
filmes, ele contava a história do incêndio. Outros exibidores
mostravam esses mesmos filmes em formatos variados,
descaracterizando a narrativa e enfatizando um espetáculo de
acontecimentos.
resumo, o Capitão Abolute acaba conquistando a mão de Lydia
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER
Languish, que é uma jovem herdeira. Quando a companhia de teatro
fez uma tournée pela Costa Leste dos Estados Unidos, em cada cidade
1 N.T.: Palavra de origem grega: kinetos (movimento) e skopos (observar, ou alvo).
06
B EATRIZ C OLOMINA
BEATRIZ COLOMINA É PROFESSORA TITULAR DE ARQUITETURA NA PRINCETON UNIVERSITY .
ELA É AUTORA DO LIVRO PRIVACY AND PUBLICITY : MODERN ARCHITECTURE AS MASS
MEDIA - 1994 - E A EDITORA DE LIVROS COMO SEXUALITY AND SPACE - 1992 - , E COLD
WAR HOTHOUSES : INVENTING POSTWAR CULTURE FROM COCKPIT TO PLAYBOY - 2004 -
posteriormente, se tornou um lugar-comum muito útil para quem
trabalha em publicidade – a capacidade que temos de absorver mais
e um computador. O computador era um Ramac, uma nova versão da
IBM que respondia a perguntas sobre a vida nos Estados Unidos.
imagens do que pensamos ser possível. Charles e Ray Eames queriam
Havia um universo de 3.000 perguntas possíveis – tais como
que o espectador sentisse que ainda faltava alguma coisa. Essa era
“Quantos carros existem nos Estados Unidos?” – que as pessoas
uma das facetas muito importantes de sua maneira de compreender
podiam escolher por meio de cartões magnéticos. Havia, portanto,
comunicação. Quando se chegava ao ponto em que uma pessoa
estava submersa em mais informações do que podia absorver, uma
parte de seu cérebro começava a fazer conexões. Havia mais imagens
três arquiteturas que, na época, nada tinham de tradicional. A
entrada para o local do domo era uma experiência completamente
diferente daquela de entrar num prédio público tradicional; o filme
e mais telas do que se podia ver num dado momento, pois as telas
em telas múltiplas também era uma experiência original de espaço; e
não só eram imensas, como estavam suspensas de uma cúpula
geodésica muito alta, projetada por Buckminster Fuller. Reduzido a
o computador, um novo tipo de experiência espacial. A
multiarquitetura, e uma colagem de novas concepções de espaço
uma figura diminuta, era quase impossível ao espectador ver todas as
coexistiam, assim, no mesmo espaço físico. É muito significativo o
telas de uma vez, pois o ângulo de visão não o permitia, o que
também foi proposital.
fato de que os Eames não eram apenas cineastas, mas também
arquitetos que davam um depoimento que passava despercebido para
a maioria dos arquitetos daquela época.
TRADUÇÃO DE JÔ AMADO
NOVA YORK
_
18 DE JULHO DE 2004
C harles e Ray Eames encontraram-se envolvidos no planejamento
de uma grande exposição norte-americana em Moscou, em 1959.
Pretendia-se que esta exposição fosse a contrapartida de uma outra
que os russos organizariam, no mesmo ano, em Nova York. A
primeira coisa que perceberam foi que, mesmo na ampla área que
lhes fora reservada para a exposição, não iriam dispor de espaço
suficiente. O filme, portanto, foi concebido, desde o início, como uma
forma de ampliar o espaço destinado à exposição.Primeiro passo:
dois arquitetos concebendo um filme como meio de ganhar mais
espaço para aquilo que pretendiam comunicar.
Foi então que surgiu a idéia de um filme projetado em telas múltiplas,
uma noção que ainda não tinham desenvolvido mas que exerceu
muita influência na década de 60, com as experiências feitas por
artistas com multimídia e expanded cinema1. O interessante é que os
o casal Eames foi o primeiro a fazê-lo. Não havia precedentes na
arquitetura nem na arte. Os Eames já haviam feito experiências com
telas múltiplas para espetáculos de slides, utilizando um complexo
sistema pelo qual os vários projetores eram interconectados. Tiveram
que mandar um técnico, na véspera de uma conferência, para
garantir que todo o equipamento estivesse perfeitamente instalado e
no lugar apropriado. Tanto o performance, quanto os aspectos
técnicos, eram muito importantes para eles. Encontrei em seus
arquivos um documento de duas páginas com instruções
pormenorizadas sobre o funcionamento do equipamento. Também
em Moscou, trabalhariam com a mesma precisão.
O filme, cujo título era Glimpses of the USA, foi projetado em sete
telas gigantescas, de 20 por 30 polegadas (de 50 por 60 centímetros),
com o formato de televisores. Tinham os cantos arredondados, o que
é interessante, pois a televisão comercial fora inaugurada, nos
Estados Unidos, apenas na década anterior. O filme consistia de
milhares de imagens – algumas em still, outras em movimento –
projetadas simultaneamente por sete rolos. A câmera praticamente
não se movia. Todas as imagens foram reunidas e montadas a partir
de slides que os próprios Eames haviam tirado ou obtido de várias
outras fontes, como as revistas National Geographic, Life, Vogue etc.,
assim como de fotografias conseguidas com a Nasa. Algumas das
imagens eram de filmes, como as de Billy Wilder e Marilyn Monroe
em Some Like it Hot, outras, de espetáculos de jazz e alguns clips de
movimentação em fábricas. A imagem de cada um dos sete projetores
era diferente, mas sempre relacionada com um mesmo tema comum.
Um exemplo: o filme começa com estrelas em todas as telas e o
narrador diz que as estrelas no céu são as mesmas nos Estados
Unidos e na Rússia. E termina com pessoas se beijando e dizendo
boa-noite. O que eles pretendiam dizer é que todos nós partilhamos
do mesmo cosmos e temos emoções semelhantes. Tratava-se de um
apelo à paz, diante da corrida armamentista. Se, de certa forma,
somos todos uma família, não devemos nos matar uns aos outros.
É interessante que o trabalho fotográfico intitulado The Family of
Man, de Edward Steichen, também foi apresentado durante a
exposição norte-americana em Moscou. Dá para se refletir sobre a
relação entre a coleção de imagens em três dimensões de The Family
of Man e dispostas de modo circular – que fora apresentada pela
primeira vez em 1955, no Museu de Arte Moderna de Nova York – e
o arranjo com as telas múltiplas utilizado por Glimpses of the USA.
O filme foi organizado como um dia na vida norte-americana.
Começa com um dia de trabalho. Das estrelas, à noite, ao amanhecer
em várias paisagens através do país e, em seguida, pessoas tomando
o café da manhã e saindo, para a escola ou para o trabalho, até o final
do dia. Isto leva 9 minutos. Seguem-se 3 minutos sobre um dia de
final de semana nos Estados Unidos, com imagens de pessoas
cortando a grama de seus jardins, ou cortando o cabelo, saindo para
a missa, passeando de barco, visitando museus, fazendo um
piquenique no parque, indo ao circo, a vida noturna, cinemas, jazz...,
até se beijarem dando boa-noite. Um imenso número de imagens –
2.200 – foi projetado em apenas 12 minutos, algo sem precedentes.
Os Eames haviam feito uma pesquisa científica sobre a capacidade
das pessoas absorverem imagens. Tinham consciência daquilo que,
Em relação ao projeto Cosmogram, outro fator muito importante é o
Sputnik. A intenção dos russos, com o intercâmbio das exposições,
Naquela época, a maioria dos intelectuais norte-americanos
era mostrar aos norte-americanos seus progressos em ciência e
tecnologia. Na verdade, os Estados Unidos deveriam ter levado seus
considerava os computadores coisas assustadoras. Mas Charles e Ray
Eames os adotaram. Acabaram trabalhando para a IBM,
foguetes para mostrar aos russos, mas recearam fazê-lo porque
disseminando a mensagem de que os computadores eram excelentes
avaliaram que estavam perdendo a guerra espacial, uma vez que o
Sputnik estava em órbita e os norte-americanos haviam tido várias
e que arquitetos e projetistas deveriam utilizá-los em seu trabalho.
Não deixa de ser significativo que o filme para telas múltiplas que os
experiências catastróficas. O surpreendente, entretanto – e não sei se
Eames fizeram para o pavilhão da IBM na Feira Mundial de Nova
isto foi consciente –, é que a forma pela qual o filme foi estruturado
tem tudo a ver com a idéia do Sputnik. O filme é como um olho, no
York, em 1964, chamava-se I THINK [EU PENSO] e seu objetivo era
o de convencer as pessoas de que os computadores pensavam, da
céu, que nos observa. Enquanto os norte-americanos se sentiam
apavorados com a idéia de um olho que os observava, o filme
mesma forma que o cérebro de uma pessoa organiza pedaços e
segmentos de uma informação.
reproduz o que fazia o Sputnik, pois atua como um mecanismo de
vigilância que, progressivamente, nos observa com uma lente zoom.
Os Eames queriam envolver todos os sentidos, e não apenas o da
visão. Em 1952, num evento de multimídia que apresentaram na
O espectador começa por ver as constelações no céu, depois vistas
Universidade da Geórgia, na cidade de Atenas, sentiam-se cheiros
aéreas, depois está à porta das casas e, em seguida, dentro das casas,
vendo as pessoas tomarem o café e se beijando: uma cena íntima da
durante a projeção de um filme. As imagens mostravam alguém
fazendo pão e os cheiros entravam pelo sistema de ar condicionado
vida privada projetada nas telas mais públicas possíveis.
da sala. Imagens de fábricas barulhentas faziam-se acompanhar por
uma trilha sonora tão forte que o espectador sentia as vibrações.
Portanto, de certa maneira, eles contrabalançam o medo de um olho
Todo seu corpo era envolvido. Ao contrário do que ocorre num
no céu – não escondendo mas, sim, mostrando o que os russos
poderiam ver em sua imaginação, ou seja: como vivemos bem, como
somos felizes, quantas piscinas temos etc. A idéia de centrar a
atenção na vida doméstica, ao invés de foguetes, foi muito
inteligente. Na exposição soviética em Nova York, no entanto, os
russos exibiram o Sputnik propriamente dito, entre outros êxitos
tecnológicos. Os Eames tentaram diminuir a importância do Sputnik,
mas, ironicamente, representaram o Sputnik de uma maneira mais
interessante: as conseqüências concretas que ele teria na era espacial.
Os russos ainda estavam concentrados no objeto; os Eames, no que
esse objeto significava em termos da nova realidade espacial de
nossas vidas.
cinema tradicional, na exposição de Moscou o espectador fazia parte
A narrativa do filme é igualmente muito proselitista. Consciente, ou
inconscientemente, eles compreendiam perfeitamente qual era a
missão do governo dos Estados Unidos. É um pouco assustador o fato
de que, para evitar a censura, os Eames chegaram a Moscou com o
filme somente na véspera da apresentação, quando o trabalho que
haviam produzido estava em plena sintonia com aquilo que o
governo norte-americano tentava projetar para o mundo. A narrativa
destacava a incrível abundância nos Estados Unidos, o que lembrava
o espectador dos tempos difíceis por que passara a população de
Moscou para conseguir um pedaço de pão. Quando eram mostradas
fábricas, por exemplo, o narrador dizia: “Aqui são as fábricas e aqui
os estacionamentos para os operários” – o que pressupunha que todo
trabalhador norte-americano tinha um carro e, em grande parte, era
verdade. Nas imagens aéreas de áreas suburbanas, mostravam-se
piscinas em todas as casas, o que não era verdade. E aqui, casas com
todo tipo imaginável de eletrodomésticos, supermercados com
estacionamentos para os fregueses etc.
Com a chegada do Sputnik, a noção de espaço ganha uma dimensão
global, o que já ocorria com a geração anterior de arquitetos. Le
Corbusier trabalhara na Argélia, na Índia, no Japão, na Argentina,
nos Estados Unidos... Os arquitetos modernos já eram arquitetos
globais, mas ainda tinham os pés no chão. A idéia que Mies e Le
Corbusier tinham de um espaço universal ocupado por todo mundo é
uma visão horizontal do mundo e da paisagem. Um momento
interessante do trabalho de Buckminster Fuller é aquele em que
substitui a visão horizontal por casas espaciais, ou casas planetárias,
em que a visão é para cima. Isto também pode ser encontrado num
trabalho de Alison e Peter Smithson de 1956, The House of the
Future, em que a casa se fecha totalmente ao mundo exterior. É uma
casa vazia, sem janelas para fora. Há um jardim, no centro, com vista
para o céu e, assim, a relação das pessoas com o mundo exterior não
se dá com o que está do lado de fora mas, sim, com o que está lá em
cima. Trata-se de uma transformação da compreensão de espaço, o
que é muito adequado ao projeto Cosmograms. Para aquela geração
de arquitetos da década de 50, a noção de espaço era planetária. No
momento em que se olhava para o céu, a ordem espacial mudava.
de uma multidão, em pé ou em movimento. A incapacidade de
absorver tudo induz a uma resposta emocional. E a emoção fazia
parte da experiência do filme com telas múltiplas.
Um outro aspecto que é relevante nos filmes para telas múltiplas é a
obsessão que os Eames têm, e sempre tiveram, com o circo. Na
verdade, quando estavam sem dinheiro, ainda na década de 40,
tentaram trabalhar num circo. Queriam ser palhaços e conseguiram o
emprego. Se não tivesse coincidido com a oferta do contrato para
fazerem mobiliários de madeira compensada, os Eames teriam sido
palhaços de circo. E continuaram próximos ao mundo do circo.
Fizeram parte da diretoria do Ringling Brothers Circus, tiraram
milhares de fotografias e fizeram filmes sobre o circo. A idéia de um
espetáculo com muitos cheiros e ruídos, no qual existem três círculos
concêntricos e o espectador não consegue acompanhar tudo
simultaneamente tem uma relação profunda com o que eles tentaram
trazer para a experiência com telas múltiplas, esta atualizada e de
acordo com a nova era tecnológica. O que pode ser uma outra
maneira de dizer que o fato de existir a nova tecnologia não significa
que deva ser abandonada a experiência corporal. Isto sempre foi
importante para eles. E a arquitetura sempre envolve todos os
sentidos.
E por que o formato da tela? E por que sete? Estas são perguntas
sobre as quais é possível especular, mas não exatamente responder.
O que é nitidamente inovador nesse filme é a idéia de que um espaço
fechado não significa simplesmente paredes. O espectador não
precisa de tijolos; ele está encerrado por imagens. Estas imagens
definem um novo tipo de espaço, o que não era acessível à geração
precedente de arquitetos. No entanto, ainda em 1920, num artigo
publicado pela revista L’Esprit Nouveau, Formation de l’optique
moderne, Le Corbusier menciona o Times Square com seus outdoors
criando uma nova forma de visão. As idéias de Le Corbusier eram tão
avançadas para sua época que ele percebia essa nova realidade em
que as imagens criam espaço – e não, os edifícios, que passam para
segundo plano. Mas não trabalhou essa percepção em sua arquitetura
com a mesma intensidade com que o fizeram gerações posteriores.
As imagens são a nova arquitetura. É esta a característica dos Eames.
Eles entenderam que a matéria-prima de seu ofício deixara de ser o
concreto, o aço ou o vidro, como fora para a geração precedente de
arquitetos, e sua matéria-prima passou a ser imagens, dispersas em
publicidade, filmes, publicações e nas ruas. Não porque tenham
desenhado a cadeira, mas por terem desenhado a imagem da cadeira,
o layout do anúncio da cadeira, o contexto em que a cadeira seria
acessível – por exemplo, aquela cadeira cor de laranja, em fibra de
vidro! Nesse momento, mudou o papel do arquiteto. Tornaram-se
profissionais da mídia.
A idéia de fazer o filme surgiu após Buckminster Fuller ter decidido
Atualmente, encontramo-nos cada vez mais cercados por imagens.
Basta pensar na recente adoção de telas individuais, nos aviões, na
fazer o grande domo - geodésico. Num mesmo espaço, acabariam
coexistindo, simultaneamente, três coisas: uma forma de arquitetura
e engenharia muito inovadora, um filme projetado em telas múltiplas
parte de trás das cadeiras. Os aviões ficaram repletos e insuportáveis.
Mas essas telinhas criam uma parede virtual que preserva um
pequeno espaço, permitindo ao passageiro alguma privacidade em
07
meio a um tremendo congestionamento, um espaço particular com
cadeira/cama, mesa, TV e uma vista da paisagem de sua escolha. Há
muito tempo que a tecnologia vem sendo utilizada dessa forma.
Quando cheguei a Nova York, em 1980, espantou-me a capacidade
das pessoas de se isolarem, no metrô, com o recém-criado walkman.
Todo mundo tinha um aparelhinho daqueles. Até com o som era
possível criar aquele espaço de privacidade no meio da confusão
metropolitana. Os filmes para telas múltiplas dos Eames criaram um
novo tipo de espaço público, no qual uma multidão de pessoas juntas
podia sentir o filme – não como cinema tradicional, mas como um
para projetos do E.A.T. Embora a maioria delas nunca se tenha
concretizado, acho isso importante. Existiam entraves de ordem
R OBERT W HITMAN
social e democrática para que artistas pudessem usar tecnologia para
participar das comunidades de uma maneira mais aberta. Uma coisa
ROBERT WHITMAN , NASCIDO EM 1935 , É ARTISTA . VIVE E TRABALHA EM WARWICK , NOVA
YORK .
É
UM DOS PRIMEIROS ARTISTAS DE PERFORMANCE MULTIMÍDIA DO PÓS - SEGUNDA
GUERRA MUNDIAL . EM 1966 , FOI UM DOS QUATRO CO - FUNDADORES
ROBERT RAUSCHENBERG
-
-
ESPECIALMENTE , COM
DO GRUPO EXPERIMENTS IN ART AND TECHNOLOGY
-
EAT - O DIA
ART FONDATION DEDICOU - LHE UMA GRANDE EXPOSIÇÃO EM NOVA YORK , EM 2003 .
“doméstico”. Para eles, o sentido de um bem-estar emocional coletivo
era muito importante. Uma cadeira Eames, assim como a casa ou as
discrição, desde que previamente autorizado. Você não tem o direito
de tirar uma foto de uma pessoa sentada num restaurante e colocar
NOVA YORK
_
26 DE JULHO DE 2004
N o final da década de 50, vários artistas começaram a empregar
estantes em compensado, é uma imagem que envolve quem a vê; cria
engenheiros. Sei que John Cage e David Tudor já tinham uma relação
com engenheiros de som. Billy Kluver tinha um contato com uma
um espaço. A arquitetura sempre interage com o corpo e a saúde.
Vem do tempo dos gregos. Se o corpo da década de 20 é exercitado,
instituição de arte sueca chamada Filkingan cujo principal interesse
era ligado à música. Essa instituição fez um convite para que
saudável, o da década de 50 é diferente, traumatizado. Na década de
20, a preocupação era com a tuberculose; na década de 50, com
participássemos de espetáculos com arte e engenharia. Quando se
doenças mentais. Era impossível voltar da guerra e retomar a vida
fotografia e vídeo, é que elas permitem que o artista use as pessoas.
Às vezes, eu próprio me sinto culpado, pois sou contrário à situação
política que isso cria, na qual o artista usa as pessoas, fotografandoas de uma maneira quase fascista. É difícil utilizar imagens com
TRADUÇÃO DE JÔ AMADO
espetáculo envolvente e acolhedor.
Isso também tem uma relação com a mentalidade do pós-guerra. Os
Eames traziam o espectador para sua “casa”, para seu espaço
preocupante com as máquinas tecnológicas, principalmente em
desfez essa relação entre suecos e norte-americanos, decidimos
seguir em frente e criamos o 9 Evenings Theatre and Engineering, em
normal. Fundamentalmente, a guerra destruía as pessoas, mesmo que
não fossem fisicamente feridas. Todos os projetos feitos pelos Eames
para a organização de espaço – a casa de cartas, os brinquedos, as
meados da década de 60, e que foi montado no espetáculo do
Armory, em Nova York. Participaram Dave Tudor, John Cage, Bob
estantes de armazenamento, que são facilmente montáveis – podem
trabalhava sozinho, de forma independente. Participava um artista
sueco, Oyvind Fahlstrom. Essas apresentações foram o primeiro
Rauschenberg, eu próprio, Yvonne Rainer, Steve Paxton etc. Eu
isso num painel, junto com um monte de porcaria. Isso não se faz!
Fora do E.A.T., eu queria fazer coisas de 25 dólares, ao invés de mil
dólares e aí fiz um trabalho que foi um passeio. Não era muito
confortável porque as pessoas tinham que circular, mas eu já tinha
uma intenção bem clara antes de fazê-lo. Na verdade, foram dois
trabalhos. Um deles foi em fevereiro de 1971, num cais abandonado
à beira do rio. A noite estava espetacular, muito clara e fria. O céu
estava limpo. No meio do cais havia uma gigantesca pilha de entulho
e, quando você entrava no cais, era possível ver uma luz intensa
vinda do céu e entrando pelos buracos no telhado. Havia aquela pilha
de entulho gozada e fantasmagórica, estava muito frio e as pessoas
viam formas vagas de carros, de uma janela ou de uma porta. Lá no
final do cais, você enxergava a outra margem do rio, do lado de Nova
Jérsei. O rio refletia as luzes de Nova York e de Nova Jérsei. No chão
enfim, controlar o mundo em que viviam. Enquanto consumidores,
eram responsáveis por seu espaço. Conseguir controlar uma parte de
seu espaço, num mundo que corria o risco de explodir, era uma
esforço coletivo de um grupo de engenheiros.
do cais havia milhares de pedaços de mármore, cascalho das
construções, corrimões de mármore, janelas e esquadrias, tudo de
Meu trabalho consistia em várias projeções de diferentes tipos. Eu o
mármore. Foi fantástico: todos aqueles pedaços de mármore, brancos,
criando uma atmosfera fantasmagórica na noite. Atravessava-se para
experiência terapêutica.
pensava como uma espécie de cinema drive-in, mas eram as imagens
que faziam o drive-in, e não as pessoas. Como o espaço era enorme,
Esse espaço controlável envolvia a pessoa, protegendo-a, dava a
podiam entrar carros e os filmes eram projetados nas paredes.
inteiramente cúbica e, em seguida, a uma outra sala que só tinha
pequenas prateleiras. Todos esses espaços eram muito bonitos.
impressão de que existia um mundo à sua volta que lhe era íntimo,
que interagia com ela. Isto era ainda mais evidente no filme que os
Eames fizeram para o pavilhão da IBM, em 1964, em que as telas
Comprei filme e rodei alguma coisa; o vídeo era feito a partir de
lugares distantes. Os espectadores viam a luz e a projeção, mas não
Passando por outra sala e através de uma janela, chegava-se ao
telhado. Do telhado, passava-se por outra janela para um dos dois
viam de onde ela vinha. Tínhamos alguns projetores e um vídeo da
idade das cavernas, em preto e branco, pré-histórico. A altura da tela
terminais de estrada de ferro, um pouco como um anfiteatro. As
ser compreendidos como um tipo de terapia. As pessoas conseguiam,
assumiam o formato oval do pavilhão, projetado pelo escritório de
Eero Saarinen. A pessoa era incluída no espaço. Ou no filme que
fizeram para a Feira Mundial de Seattle, em 1962, The House of
Science, em que o espaço circular era contornado por telas múltiplas
e o espectador assistia sentado no chão.
Também as formas, daqueles tempos, eram orgânicas. Os Eames
substituíram o aço e as velhas tecnologias por materiais
aconchegantes, como tecido, lã e madeira compensada, bem como as
novas tecnologias de cadeiras coloridas em material plástico, que
transmitiam uma sensação de felicidade típica das décadas de 50 e de
60. Paradoxalmente, essa idéia de felicidade também tinha algo de
sinistro, como uma arma de outro tipo. Era outra maneira de dizer:
“Nós somos felizes e vocês não são. Temos tudo isto e ainda
sorrimos!” O intenso bombardeio de imagens em Glimpses of the
USA funciona como um enorme sorriso de auto-complacência. O
sorriso como uma arma.
Em seu livro Sociodynamique de la culture, de 1967, Abraham Moles
fala sobre como se tornou impossível acumular sabedoria do jeito
que o faziam os eruditos de séculos atrás. Atualmente, somos
bombardeados com toda essa parafernália que cria um mosaico
cultural, do qual todo mundo acaba tendo uma compreensão distinta.
Os Eames trabalharam muito com a noção de que um discurso linear
não era mais possível, talvez por sermos bombardeados com imagens
demais, informações demais, idéias demais. Portanto, deve ser criada
uma trilha específica selecionando-se esse material.
Charles e Ray Eames não queriam comunicar uma mensagem que
fosse boa para todo mundo. Isto remete à cultura do consumo. Os
consumidores podem fazer suas opções, reorganizar o meio em que
vivem, criar seu próprio conhecimento. Portanto, não se trata de
comunicar uma mensagem, mas de construí-la, criá-la, tal como um
cardápio chinês, uma diversidade de possibilidades na qual a pessoa
pode construir seu próprio meio ambiente.
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO COM KATE GLAZER
1 N.T.: Com as inovações tecnológicas no campo da cinematografia, o vídeo passou
a ser considerado um meio de comunicação artístico; o expanded cinema seria um
destes novos tratamentos da imagem. Gene Youngblood foi um de seus criadores.
era de cerca de 2,5 metros. Os assuntos eram muito simples. Eu usava
imagens que eram distorcidas por espelhos flexíveis. Uma dessas
imagens era de uma pessoa com uma lente na mão; a lente se dirigia
para o que ele apontava. Atualmente, é muito fácil fazer esse tipo de
coisa. A tecnologia de hoje é brilhante. Meu médico me mostrou um
equipamento que usam e que é extremamente avançado, se
comparado com aquelas coisas primitivas daquele tempo.
o outro lado do cais, subia-se uma escada, passava-se a uma sala
pessoas chegavam a esse mezanino e era ali que se projetavam as
imagens. Meu interesse nessa relação era o de tentar levar o
espetáculo para um espaço mais amplo.
O projeto para desenvolver aplicativos de informática na zona rural
da Índia é um exemplo do que quero dizer por espaço mais amplo.
Em termos diretos, nada tinha a ver com arte.
De uma maneira geral, eu achava que era legal usar qualquer imagem
que pudesse fazer e, desde o início, estava particularmente
interessado em usar um tipo específico de arquitetura em meus
trabalhos. Ou fazer arquitetura para cada obra, ou usar um espaço
com características muito especiais, que se adequasse à imagem que
eu tentava fazer. Imagino isso como se fosse a natureza. Você dá um
tempo, tem uma idéia, ela evolui lentamente e então o espaço deve
ser de uma determinada maneira. Com o filme e a projeção, você
pode manter acumulado um pequeno catálogo de imagens que pode
utilizar no espetáculo. As imagens irão mudar o espaço, seu aspecto,
sua sensibilidade, sua natureza. Elas têm outro tipo de conteúdo de
memórias, mas um outro aspecto do trabalho com filme e projeção é
a forma pela qual o tempo é mensurado e esse é um dos elementos
que utilizo. Eu o penso da mesma forma que os músicos pensam o
tempo. Você tem um certo ritmo e uma determinada idéia e, mais
tarde, uma outra idéia repercute na primeira e assim sucessivamente.
Portanto, é possível fazer essas coisas com projeção, assim como ao
vivo. Integrando um todo. Às vezes, pode parecer desarticulado; às
vezes, demasiado suave, o que também é legal. Depende da natureza
do trabalho.
Para o projeto da Índia, Billy Kluver foi convidado a fazer uma
proposta para desenvolver material educacional para aldeias
indianas. Era um projeto do E.A.T. Sem entrar em detalhes, dá para
imaginar os aspectos políticos e incomuns do projeto, pois a maioria
das fundações – em especial, as norte-americanas – é vista com
bastante ceticismo devido ao uso que a CIA fez de fundações. Pode
haver pessoas decentes fazendo coisas decentes, mas foram bastante
desacreditadas. Colaborando com a proposta que foi elaborada,
tínhamos uma equipe que incluía um colega ou uma pessoa ou um
rapaz com conhecimentos de hardware e um psicólogo. A proposta
foi desenvolvida em torno de uma cooperativa de laticínios. O
pessoal da cooperativa fazia duas visitas diárias a duas diferentes
aldeias para lidar com o leite de búfalo. Isso permitia que fossem
enviadas as fitas às aldeias, obter de cada aldeia o retorno sobre o
material que continham as fitas e levá-las de volta para revisar,
editar, alterar ou adicionar material para que se tornassem mais
inteligíveis para as pessoas a quem se destinavam. Era uma
oportunidade de obter um retorno significativo da comunidade sobre
que material interessava e qual não interessava. Era um projeto
maravilhoso.
No princípio, o espetáculo parecia mais natural que as outras coisas,
o que eu não compreendia. Quando era criança, um dos trabalhos
que mais me excitaram e emocionaram foi quando vi um grande
palhaço norte-americano, Emmet Kelly, fazendo uma imagem. Fiquei
atordoado. Olhei em volta e não conseguia acreditar que as pessoas
ali presentes não sentissem o que eu sentia. É o mesmo com o cinema
mudo. Parece normal você ver coisas teatrais cuja única linguagem é
a visual, como com Buster Keaton. Essas pessoas delimitam uma área
de representação e teatro que foi completamente esquecida pelos
chamados dramaturgos – com exceção de Beckett e mais alguns. Mas
os dramaturgos “profissionais” já o ignoravam completamente e
agora, com o cinema sonoro, continuam ignorando.
Parte do meu papel era dizer “Tudo bem, mas não mandem este
pessoal para as escolas de cinema de Nova York ou da Califórnia
porque ali podem acabar com o que eles ainda possam ter em termos
de desenvolver sua cultura.” As pessoas que estão no poder sempre
querem ensinar a fazer as coisas da maneira “certa”, mas não
compreendem que se você toma um produto que tenha sido
culturalmente poluído por outra coisa, aquela maneira pode não
funcionar. Talvez fiquem assustados com os Muppets, quem sabe?
Mas isso não se faz, as coisas têm que vir da própria cultura dos
povos. Meu objetivo era tentar limitar a poluição cultural. A poluição
cultural seria a idéia de desenvolver uma imagem, ou uma técnica de
edição, que não seja natural para uma pessoa nascida naquela aldeia.
Limitar essa poluição é apenas uma maneira de deixar que o material
seja criado fora da comunidade que o está utilizando. Com a
globalização, é impossível evitar muita coisa, mas é muito melhor
deixar as coisas acontecerem de uma forma natural. Basta ver o que
está acontecendo agora com essa nossa espécie de globalização que
mata o resto do mundo.
Depois de 9 Evenings, o grupo Experiências com Arte e Tecnologia
(E.A.T.) evoluiu bastante. Juntei-me ao E.A.T. porque detestava a
idéia de que a relação era somente com artistas e tecnologia, e não
com a sociedade como um todo. Já pude observar pessoas que se
preocupam com o chamado desenvolvimento do mundo artístico;
continuam fazendo tudo o que faziam antes. Não arriscam a
oportunidade de serem apanhados por uma onda e transportados
para uma praia, em outro lugar. Eu sempre procuro outra
oportunidade. Tentei integrar imagens da comunidade por meio de
minha estética. Meu envolvimento foi no sentido de tentar empurrar
meu trabalho para dentro de áreas que sejam mais abrangentes.
Em 1970, Billy, Julie Martin e eu elaboramos cerca de 50 propostas
08
No âmbito do E.A.T., também trabalhei com espelhos esféricos e suas
propriedades. Já fizera experiências com eles antes de usá-los no
projeto de Osaka. No pavilhão de Osaka, utilizamos um espelho
esférico de 210 graus. Era feito dentro de uma abóbada geodésica –
imaginada por um artista, Buckminster Fuller –, mas a abóbada em
si nada tinha a ver com o espelho. A abóbada era uma concha que
lhe dava apoio. É aí que acho que está uma grande idéia do que
mundo funcionar. Numa semana, o tema poderia ser alimentação e a
TRADUÇÃO DE JÔ AMADO
equipe, ou o indivíduo que vencesse – que podia ser de Paris, de
significa trabalhar em colaboração. Os técnicos que construíram a
abóbada estavam habituados a fazer aqueles grandes satélites
meteorológicos. Mas como fazê-la? Pensou-se, então, numa estrutura
FILADELFIA
_
23 DE JULHO DE 2004
Moscou, da Tanzânia ou de Beijing – teria que mostrar como era
possível alimentar toda a população do mundo. Alimentando-a, não
haveria fome no mundo por dez anos. A segunda rodada era ganha
não tinham muita familiaridade com portas giratórias e a coisa não
iria funcionar. Alguém decidiu, então, que dentro da abóbada haveria
A organização World Game foi criada por um grupo eclético de
pessoas, das mais variadas origens. Eu trabalhara com Buckminster
Fuller no departamento de Projetos e Planejamento na Universidade
uma pressão negativa que sugaria o espelho para dentro da
do Sul de Illinois, onde ele morava. O departamento gravitava em
torno dele e de suas filosofias, teorias e métodos. Outras das pessoas
potável para todos. A terceira rodada seria vencida pela equipe ou
inflável. Até aquele momento, a única maneira de manter a pressão
era por meio de uma porta giratória, mas naquela época os japoneses
pela equipe ou indivíduo que conseguisse demonstrar a possibilidade
de fazer a mesma coisa em sete ou oito anos, ou, como alternativa,
eliminar a desnutrição e a fome, ou ainda possibilitar o acesso a água
envolvidas tinham uma formação que ia de planejamento urbano a
indivíduo que demonstrasse que tudo aquilo poderia ser feito em seis
anos e ser muito mais barato usando-se uma tecnologia diferente.
Você via a você próprio e todo mundo suspenso no espaço, de cabeça
para baixo, mas ninguém via essa mesma imagem total. Essa é outra
literatura inglesa, passando por arquitetura. Em certo momento, até
tivemos trabalhando conosco uma pessoa formada em Teatro
Na semana seguinte, o tema seria energia, depois assistência médica,
idéia que já venho trabalhando há muito tempo. Não existe nada
escrito que diga que todo mundo deve ver a mesma coisa ao mesmo
Experimental porque havíamos compreendido que a oficina do jogo
construção – e foi essa a solução.
tempo. O artista teria que compreender que aquilo que faz pode ser
do mundo tinha muito a ver com teatro e nossos conhecimentos de
teatro eram aceitáveis, na melhor das hipóteses.
visto de maneiras diferentes em lugares diferentes, o que acho ótimo.
depois educação, depois meio ambiente e, eventualmente, se poderia
voltar ao tema da alimentação. O objetivo de tudo isso era
desenvolver estratégias cada vez mais irresistíveis, tão atraentes que
acabassem sendo adotadas. Um pequeno grupo de pessoas da cidade
David Tudor projetou um ambicioso sistema de som que permitia que
os sons fossem produzidos dentro da abóbada. O som podia
Aquilo que viria a ser legalmente o World Game Institute foi criado
em 1972. De início, chamava-se Earth M.D., nome que foi dado por
de Genebra, na Suíça, participou do jogo de logística e colocou em
envelopes as soluções para erradicar a varíola. Realizaram uma
aumentar ou diminuir, ou ocorrer à volta da abóbada, e podiam
existir dois sons que se interpenetravam – era um sistema acústico
Howard Brown e por mim. Foi criado sem Fuller. Ele estava em
Carbondale e o Earth M.D. foi fundado em New Haven, Estado de
pesquisa para descobrir quantas vacinas, médicos, enfermeiros,
técnicos de saúde e helicópteros seriam necessários para levar a cura
muito complexo. Fujiko Nakaya, um artista japonês, elaborou um
Connecticut. Seis meses depois, Fuller me visitou; estava se mudando
às regiões mais remotas, assim como quanto seria necessário para o
sistema de névoa e toda a construção ficava coberta pela névoa. Foi
um projeto em que realmente houve colaboração e, de certa maneira,
para Filadélfia e queria saber se eu queria voltar a trabalhar com ele.
Acabamos entrando num acordo e nos transformamos no World
fazer. Seria algo como 300 milhões de dólares. Enquanto faziam o
levantamento final da pesquisa, constataram que os Estados Unidos
pode ser chamado de obra de arte.
Game Institute.
Elaboramos um sistema de programação artística. Vários artistas
De início, o jogo do mundo que desenvolvemos era relativamente
simples – para as pessoas aprenderem sobre o mundo, de certa
e a Europa Ocidental gastam quase 200 milhões de dólares por ano
tentando impedir a entrada do vírus da varíola em suas fronteiras.
chegavam e desenvolviam um programa, ou tocavam um programa.
David Tudor tocou. Pauline Oliveros, que é uma compositora,
também tocou. Tínhamos uma dançarina japonesa, pois também
tentávamos integrar a participação da comunidade artística japonesa.
Trabalhar com a comunidade também fazia parte integral das
apresentações com telefone que fiz. Havia um vínculo com o E.A.T.,
mas era independente. Usava tecnologias muito mais abrangentes,
forma, um jogo de trocas – mas tornou-se uma ferramenta muito
sofisticada. A simulação evoluiu, tornando-se um jogo de economia
sócio-política que envolvia a solução de problemas e o levantamento
de necessidades de uma determinada área – e não mais fichas e
pauzinhos.
Naquela época, achávamos que a ameaça mais séria à existência da
usava o que estava ali, na sociedade. A primeira vez que o coloquei
humanidade era a guerra termonuclear entre russos e norte-
em prática foi em 1970. Depois, em Nova York, Houston,
americanos. Queríamos, então, explicitar isso, mas sempre num
Minneapolis... A última vez foi em Leeds, na Inglaterra, em 2002,
com telefones celulares. Peguei um mapa e marquei lugares de onde
as pessoas ligavam, de cabines públicas. Ligavam para a central,
onde eu estava, eu atendia e gravava a conversa. Depois, ligava o
gravador de volta e dava algumas pistas para que chegassem aos
lugares marcados. Os diálogos eram mais ou menos assim: “Estou na
esquina das ruas tal e tal e há um prédio do outro lado da rua e uma
mulher passeando com o cachorro etc.”, numa descrição do local em
que estava a pessoa. “Há um guardanapo branco no chão” e aí, de
repente, você tem a imagem da mulher passeando com o cachorro em
um lugar e um guardanapo branco no chão em outro. “Está chovendo
e estou com frio.” Eu ficava extasiado com a idéia dessas coisas
sendo combinadas. Quando descreviam alguma coisa, comunicavam
como se fosse uma imagem e você arquivava uma coleção delas. Você
escutava uma por uma, mas estava tudo gravado. O que eu gosto é
de escutar no rádio, numa emissão pública, mas neste caso, na praça
central da cidade, existiam aqueles alto-falantes potentes e as
gravações eram emitidas por eles. Foi maravilhoso. Afinal, uma rádio
não é apenas uma coisa tecnológica; também é cultural e social. É
muito mais abrangente e muito mais interessante que um monte de
tubos. Se fosse num programa de rádio ao vivo teria sido espetacular.
contexto que abrangesse o restante dos problemas do mundo, tais
como o meio ambiente, a destruição da floresta tropical, a diminuição
da camada de ozônio ou o analfabetismo de 900 milhões de pessoas.
Substituímos pela guerra nuclear a destruição do planeta e o prejuízo
ao bem-estar de bilhões de pessoas que não têm acesso a água
potável, a assistência médica e a educação.
As gravações eram relacionadas a um local específico, feitas com
pessoas daquela cidade. As pessoas tinham uma relação de mais
informação, mais específica, de maior sensibilidade com o lugar e
passavam uma experiência que eu não teria podido ter por mim
mesmo. Traziam-me, realmente, algo de novo. Funciona de uma
maneira que eu gosto porque as pessoas que participavam estavam se
divertindo. E você acaba tendo um belo mapa de um lugar específico,
feito pela justaposição de relações aleatórias entre todos aqueles
locais marcados e os locais de onde as pessoas me telefonavam. E o
mapa ainda contém imagens culturais porque a linguagem das
pessoas é sensacional, assim como aquilo que vêm. Num caso
desses, trabalho como uma espécie de editor.
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER
M EDARD G ABEL
MEDARD
GABEL
É
EX - DIRETOR
EXECUTIVO
DO
WORLD
GAME
INSTITUTE
INC .,
UMA
ORGANIZAÇÃO SEM FINS LUCRATIVOS PARA A PESQUISA , PLANEJAMENTO E EDUCAÇÃO , QUE
POR ELE FOI INICIADA EM PARCERIA COM BUCKMINSTER FULLER . DESENVOLVEU INÚMEROS
PRODUTOS ,
INCLUINDO
O
WORLD
GAME
WORKSHOP ,
UMA
SIMULAÇÃO
GLOBAL
QUE
FUNCIONA EM CIMA DE UM MAPA GIGANTE DO MUNDO , DO TAMANHO DE UMA QUADRA DE
BASQUETE . ELE É O CEO DA BIGPICTURESMALLWORLD INC ., CUJA MISSÃO É
TRANSFORMAR
O EXCESSO DE INFORMAÇÃO EM CONHECIMENTO SENSATO QUE LEVE À AÇÃO EFETIVA :
WWW . BIGPICTURESMALLWORLD . COM
Fuller era conhecido como arquiteto, mas não se formara em
arquitetura. Na verdade, apesar de ter 46 diplomas honorários, foi
expulso de Harvard duas vezes. Tinha uma visão abrangente, em
perspectiva, do mundo. Pelos padrões tradicionais, um arquiteto é
contratado por um cliente. Fuller entendia que isso não bastava para
que fizesse arquitetura; achava que você podia ser um arquiteto que
se antecipa no tempo, que você podia ter o mundo como seu cliente.
Num passo seguinte, Fuller diferenciava o cliente ideal de um
arquiteto, que queria um planejamento global eficaz, e o indivíduo
que queria uma casa ou a empresa que queria um edifício, ou uma
fábrica, ou um planejamento urbano ou regional. E como procurar
um cliente que é a totalidade da humanidade, os 100% dos seres
humanos do planeta, ao invés de procurar pessoas ricas que possam
pagar pelos seus serviços? Ele achava que se fosse esperar que um
eventual governo das Nações Unidas o contratasse para esclarecer
alguns desses problemas, já estaria morto. Entendia que tinha um
direito moral de olhar para o mundo e seus problemas a partir de
uma perspectiva global, desenvolvendo soluções para esse cliente – o
mundo e a humanidade. Entendia que tinha um direito moral de
descobrir soluções desde que não violasse os direitos dos outros, ou
aquilo que se chamam os graus de liberdade. Em algumas de suas
conferências, Fuller explicava, bem-humorado, que se ele estivesse
na calçada conversando com você e visse um piano despencando de
um arranha-céu sobre sua cabeça, sentia-se no direito de empurrá-lo
para longe. Embora fosse rude empurrá-lo, quando o piano se
esmagasse no chão você diria: “Opa, obrigado.” Ou também poderia
ficar furioso e dizer: “Por que você me empurrou? Eu estava tentando
me suicidar.” E ele responderia: “Ora, você deveria ter dito. Você
ainda tem o direito de se suicidar, se quiser. Mas não o faça de uma
maneira tão desastrada, no meio da multidão.” Ele achava que tinha
o direito de intervir desde que não violasse os direitos da
humanidade. Esse era um dos princípios éticos do seu trabalho –
resolver o problema de uma maneira que respeitasse o ambiente, a
integridade dos direitos individuais e seus graus de liberdade. E ele
trabalhava bem isso.
O primeiro jogo do mundo foi apresentado, mas não construído.
Fuller foi escolhido para ser o arquiteto da Feira Mundial de
Montreal, em 1967. Foi selecionado porque já havia sido antes o
arquiteto de outros pavilhões dos Estados Unidos. Quem o contratou
foi a United States Information Agency (USIA). Fuller bolou uma
enorme abóbada geodésica com mais de 80 metros de diâmetro. Há
quem pense que foi sua obra-prima. Ele fora contratado para fazer
apenas a concha acústica do edifício, mas, sendo do jeito que era,
também propôs um conteúdo para o edifício. Esse conteúdo, em suas
palavras, era um grande jogo logístico. Era um espaço no qual
jogariam pessoas do mundo inteiro, tentando descobrir como fazer o
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Perceberam, assim, que tinham em mãos um argumento muito forte
– uma ótima análise custo-benefício, em termos econômicos.
Procuraram, então, responsáveis europeus e norte-americanos e
disseram: “Olhe, nós não queremos caridade, não queremos que
façam um gesto nobre de altruísmo e nos digam ‘Pegue aqui os 300
milhões de dólares e suma’. O que queremos é que vocês invistam
300 milhões de dólares neste programa e lhes propomos um retorno
de 5, 10, 20 bilhões de dólares nos próximos 10, 15, 20 anos. Vocês
não vão perder e nós vamos ganhar, todos vamos ganhar. Vocês vão
lucrar com isso, o mundo vai lucrar com isso e a varíola será
erradicada.” Fuller e o pessoal, inclusive eu próprio, tínhamos a
convicção de que era possível utilizar argumentos irresistíveis,
economicamente irresistíveis, para livrar o mundo do analfabetismo,
da fome, da água poluída, da desnutrição, da falta de assistência
médica. É possível usar tal tipo de argumento para todas essas coisas.
Buckminster Fuller inventou o jogo do mundo observando o mundo
como um todo e com a convicção de que os recursos e tecnologia são
suficientes para todos nós. Foi isso que o fez começar a pensar sobre
o que deveríamos fazer para que o mundo trabalhasse para o bem de
todos no planeta. Aprendeu a ter essa perspectiva planetária quando
estava na Marinha. Via os estrategistas militares do Pentágono, em
Washington, ou os do Kremlin, em Moscou, olhando para o mundo
de uma perspectiva global, mas também como uma situação de um
jogo. Como podemos testar nossas idéias antes de implementá-las?
Ele achava que a idéia de “jogos de guerra”, enquanto ferramenta de
planejamento, poderia ter algum mérito. Os objetivos dos jogos de
guerra daquela época eram relativamente diabólicos, como dizia
Fuller: tratava-se de destruir um número cada vez maior de pessoas,
de um modo bastante preciso e num ritmo cada vez mais rápido. Mas
Fuller achava que aquela ferramenta dos “jogos de guerra” podia ser
utilizada de outras maneiras. Ao invés de se ter um jogo de guerra
mundial, Fuller sugeria que se tivesse “um jogo de paz mundial”. Ele
combinava suas experiências na Marinha com tecnologia e com
recursos, às quais qualquer pessoa poderia ter acesso por meio da
inserção dessa ferramenta dos “jogos de guerra” na criação do jogo
da paz mundial. O objetivo desse jogo da paz era o de adotar uma
atitude como “Será possível?” para, em seguida, se testarem as
hipóteses. Será possível cuidar de 100% da humanidade, num padrão
de vida mais alto do que o que temos atualmente, utilizando a
tecnologia e os recursos de que dispomos? Se for possível, como fazêlo? O jogo da paz mundial pretendia testar várias estratégias, teorias
e tecnologias para ver se funcionavam. Esses eram os valores básicos
subjacentes à idéia do jogo da paz mundial – que, mais tarde, seria
abreviado para world game (jogo do mundo). O jogo também
pretendia ser uma ferramenta que nos ajudasse a identificar, definir
e resolver problemas locais e globais num contexto global.
Essa ferramenta possuía um outro aspecto revolucionário: ao invés de
ser apenas para jogos de guerra para uma elite composta pelo
Pentágono e pelo Kremlin e mais alguns generais e almirantes, o jogo
do mundo destinava-se a toda e qualquer pessoa. Pretendia criar um
espaço ao qual você ou eu, ou colegiais parisienses, ou estudantes da
Universidade de Iowa, ou da África, ou da China, pudéssemos ir e
ajudar a descobrir o que era necessário para termos um mundo
melhor. Visava propor estratégias concretas para os setores de
alimentação, vestuário, habitação e educação para, em seguida, os
testar. Será que funciona? Fuller supunha que, à medida que um
maior número de pessoas começasse a participar do jogo, elas
criariam um número cada vez maior de estratégias viáveis e
irrecusáveis no sentido de melhorar o mundo. Não era apenas um
exercício acadêmico. Fuller percebeu que, ao simular o mundo a
partir de fatos e números concretos – a mesma informação
manipulada pelos especialistas em planejamento – o jogo conseguiria
minar a estrutura de poder. Era a mesma informação que eles
“antecipatório” referia-se a lidar com o tempo de forma que se tivesse
espalhadas e bem à vontade, enquanto na China ficavam espremidas.
utilizavam, mas olhava o mundo a partir de uma perspectiva global,
certeza de resolver o problema para hoje e para amanhã, para as
Era uma experiência em densidade populacional.
holística.
gerações futuras.
Se os jogadores começassem a bolar argumentos irrecusáveis para
combater a fome, a desnutrição, o analfabetismo e a falta de
A outra parte de seu pensamento tinha a ver com projetos: a
mostrando a seqüência histórica em que o homem surgiu no mundo.
integração da arte e da ciência, uma integração lógica das coisas. Se
No ano 3.000 antes de Cristo o mundo tinha de 50 a 60 milhões de
assistência médica, o mundo teria que os aceitar. O que o jogo do
mundo pretendia era mostrar que a cooperação para tornar o mundo
você é um bom cientista e um bom artista, você junta as coisas de
uma maneira criativa e contribuindo com novas formas de resolver
pessoas. Introduzíamos, então, uma linha do tempo: aparecia
projetado num telão o mundo de 3.000 A.C. e sua população e as
melhor, para resolver os problemas daquele “pessoalzinho dali”, era
problemas, de olhar o mundo. Era isso, em parte, o que Fuller queria
pessoas iam entrando para o planisfério. Todas tinham na mão uma
no interesse de todos, ainda que nem todos compreendessem que
tinham interesses comuns. Pela simulação, você tinha uma visão do
dizer com “projeto-ciência”. Devemos olhar o mundo de uma maneira
diferente daquela pela qual o olhamos hoje, que nos trouxe até onde
folha de papel e um cartão, em cima do qual constava quem eram –
China, Índia, África etc. – e no canto superior direito a respectiva
todo, de como tudo era interligado. Portanto, ajudar outros povos
nada tem de altruísmo ou de caridade; é em seu próprio interesse.
estamos; temos que pensar para fora dessa caixa.
data. Explicávamos-lhes que quando surgisse a data que lhes
Fuller previa que, com essas estratégias, na medida em que
Ele imaginava uma ética do planejamento, que seria um conceito de
constituíssem argumentos fortes em termos econômicos, e não
mais com menos. Uma solução seria melhor se você resolvesse um
uma peça de teatro mostrando o crescimento populacional. No ano
3.000 A.C., há uma única pessoa no mapa; passam-se mil anos e
apenas morais, todo mundo sairia ganhando. Não era algo como: “Eu
ganho, você perde”, ou “Você ganha, eu perco”, mas, sim, “Ambos
problema com menos recursos, ou com menos energia, ou com
menos tempo gasto. Era isso que ele sempre procurava fazer. E foi daí
entra outra pessoa; passam-se mais mil, e mais duas pessoas entram.
São saltos bruscos e no ano 1.000 depois de Cristo já entra um
ganhamos”. E, portanto, há um motivo para continuarmos. Esses, de
certa maneira, são os princípios filosóficos e a história inicial do que
que veio a abóbada geodésica. Era uma forma de encerrar enormes
volumes de espaço utilizando o mínimo de material. Portanto, era
bocado mais de gente. O tempo vai passando, os séculos XV, XVI,
viria a ser o jogo do mundo.
melhor do que algo que pudesse encerrar o mesmo espaço com dez
vezes mais material. Também isso remete à sua perspectiva global de
pessoas no mapa. E da década de 60 até nossos dias, mais umas 50
entram no mapa. Percebe-se, então, essa corrida de último minuto
pessoas pelo mundo afora – sobre seus recursos, seus problemas,
que não podemos dar casa a toda a humanidade e fazer tudo o que é
necessário, se gastamos material como se gasta atualmente. Se
para o planisfério e você observa o crescimento populacional, sua
densidade e sua distribuição de maneira experimental. Não é um
suas opções e sobre o que cada um pode fazer para resolver os
problemas do mundo. Uma dessas ferramentas, educacional, é uma
queremos proporcionar habitação para o mundo – casas como as que
existem nos Estados Unidos, ou talvez na França – vamos precisar de
raciocínio intelectual do tipo “A população mundial duplicou desde a
simulação desenvolvida pelo World Game Institute pouco após a
morte de Fuller, mas baseada em suas percepções. Tratava-se de um
muito mais material para criar habitações na África, na Índia ou na
qual as 50 pessoas entram para o mapa nos últimos 30 segundos da
China, utilizando nossa tecnologia. Ele se interessava em saber como
mapa gigante, do tamanho de uma quadra de basquete – cerca de 20
era possível fazer muito com pouco, de modo a se poder cuidar de
metros por 10. Nele eram colocadas pessoas comuns, como colegiais,
todo mundo no planeta.
linha de tempo, você compreende de uma maneira completamente
diferente. Você compreende com o corpo, assim como com seu
coração e sua mente. A oficina do jogo do mundo pretendia
universitários, empresários, ou mesmo dirigentes políticos, que
ficavam responsáveis pelo mundo. Uns ficavam responsáveis pela
O mapa propriamente dito foi feito pelo Departamento de Cartografia
mundial, tornando-as acessíveis às pessoas de uma forma
África, outros pela China, ou pela Índia, Sudeste Asiático, América do
Norte ou Europa. O mundo era dividido em dez grandes regiões.
do Departamento de Defesa norte-americano. Fizemos o primeiro em
1981 e, nos 10 ou 15 anos seguintes, fizemos mais uns quinze. Fuller
experimental e não apenas intelectual.
Haveria cem pessoas nesse mapa gigante, cada uma desempenharia
morreu em 1983. Esse foi um dos últimos projetos em que trabalhou.
o papel de 1% da humanidade (63 milhões de pessoas, em termos
Criou um planisfério diferente de qualquer outro porque era o mapa
A primeira apresentação que fizemos com o planisfério foi na
Universidade do Colorado, em Boulder, durante uma conferência
atuais), as quais conduziriam o mundo a um futuro de dez, vinte,
trinta anos, lidando com os problemas que o afetam atualmente.
mais preciso do mundo. Como era geômetra, Fuller descobria como
tirar informação de uma esfera, tornando-a plana e sem qualquer
sobre geopolítica. A segunda foi durante a conferência anual da
Sociedade do Futuro do Mundo. Na época, Ronald Reagan era o
Permitia que essas pessoas aprendessem uma enormidade sobre o
mundo, sobre seus problemas e como resolvê-los num prazo curto de
tempo. Aquela oficina do jogo do mundo levava cerca de três horas e
meia. Fuller achava que, antes de fazer qualquer coisa, as pessoas
devem ter conhecimento dos problemas e dos sistemas em que estão
implantados.
distorção aparente. No planisfério de Mercator (1578), a Groenlândia
tem quase o mesmo tamanho da América do Sul. No de Fuller, a
Groenlândia tem 1/10 do tamanho da América do Sul. No planisfério
de Mercator, não existem os pólos, Norte e Sul. No de Fuller estão lá,
assim como a Antártida, que representa um patrimônio muito valioso
dos bens da Terra. Sua inexistência num mapa significa, no mínimo,
uma distorção. O planisfério de Peters é outro festival de distorções.
A forma da África não é aquela. Peters deve ter pensado que, como
no planisfério de Mercator a área total estava distorcida, então iria
corrigi-la, mas também a distorceu e não é aquele o planeta em que
vivemos. O planisfério de Fuller também tem a vantagem de que você
pode dobrá-lo e voltar a criar um globo. Era muito preciso porque os
militares tinham ajudado nas informações e queriam ter os mapas
mais precisos do mundo. Esses mapas foram usados por pilotos de
grandes aviões a jato, para navegação. Constavam do planisfério
todas as cidades do mundo com mais de 5 mil habitantes, assim
como as que tivessem aeroportos. Era incrivelmente pormenorizado.
Olhando para esse mapa de pé, é como se você estivesse quase 5 mil
quilômetros acima da superfície da Terra. O ônibus espacial entra em
órbita à altura de seu calcanhar. Seu pé tem quase 500 quilômetros
de comprimento. As cordilheiras mais altas do planeta, como o
Himalaia, são do tamanho de uma moeda.
presidente dos Estados Unidos e estávamos no apogeu da Guerra
Fria. Algumas pessoas discutiam “racionalmente” o holocausto
termonuclear. A idéia de vencer uma guerra nuclear era loucura total,
mas os russos e os norte-americanos estavam construindo 50 mil
armas nucleares. Foi o que se soube naquela época e ninguém tinha
conhecimento disso. Um pequeno escritório de consultoria em
Washington, o Center for Defense Information, dirigido por exoficiais da Marinha norte-americana que eram pacifistas, divulgou
essa informação e nós pensamos: “Vamos mostrar o que isso poderia
vir a ser no mapa gigante.” Calculamos as dimensões da área
territorial que, em média, a explosão de uma arma nuclear deixaria
inabitável para os seres vivos pela escala do planisfério. Constatouse que seria o equivalente ao tamanho de uma moeda de 10 centavos.
Compramos 50 mil fichinhas fosforescentes desse tamanho, de um
colorido laranja vivo. Durante a oficina do jogo do mundo, a
determinada altura colocamos todas as 50 mil fichinhas no mapa.
Pensando em termos matemáticos, se você multiplicar por 50 mil a
área daquele pequeno círculo, você terá condições de pavimentar
toda a massa de terra do planeta. Se você fosse colocando as
fichinhas uma a uma, seria uma coisa; mas nós não o fizemos:
despejamos todas elas de dentro de recipientes enormes. Foi uma
experiência incrivelmente dramática, muito forte. Despejávamos as
fichinhas no planisfério e percebíamos imediatamente como ficaria o
mundo se persistisse sistematicamente aquela insanidade e fossem
utilizadas todas aquelas armas. As pessoas ficavam estupefatas, em
silêncio, e algumas choraram. O que fizemos, em seguida, foi deixar
perdurar aquele silêncio. Então aconteceu uma coisa curiosa: em
cada apresentação que fazíamos – e fizemos algumas centenas – as
pessoas começavam a catar as fichinhas do chão sem que ninguém
lhes dissesse para fazê-lo. Alguém iria lá e pegava uma, ou a chutava
com raiva, e aí iria todo mundo e jogavam as fichinhas de volta para
os recipientes. Nós usávamos essa experiência para alertá-los: “O que
vocês acabaram de fazer é o que é necessário fazer no mundo real.”
E, em geral, quando terminava a oficina do jogo do mundo, dizíamos:
“Vocês acabaram de participar deste jogo do mundo, mas o
verdadeiro jogo do mundo está lá fora e vocês têm que ir lá fazer o
que acabaram de fazer aqui.”
O jogo utiliza várias ferramentas. Um de seus objetivos é educar as
No início, as informações que coletamos para viabilizar o jogo do
mundo foram obtidas dos anuários estatísticos das Nações Unidas.
Um dos aspectos pouco conhecidos da ONU reside na enorme
quantidade de informações que detém. Dados sobre saúde, da
Organização Mundial da Saúde. A FAO tem as melhores estatísticas
sobre agricultura, alimentação, pesca ou fertilizantes. As estatísticas
sobre energia vieram de Nova York, assim como sobre população. A
área cultural era com a Unesco. Coletávamos informação sobre todo
o mundo sistematicamente, junto ao Banco Mundial e a todas as
agências da ONU. Uma das coisas que rapidamente descobrimos foi
que as informações de todas aquelas agências eram incompatíveis. O
World Game Institute criou uma ferramenta chamada Gerente de
Informação Global, cujo objetivo era reunir toda a informação em
único lugar e, eventualmente, mostrar as incoerências.
Outra das idéias de Fuller era a de que a maneira de olhar o mundo
está vinculada a sistemas: ele planejava ferramentas intelectuais,
conceituais, que ajudavam a raciocinar sobre o planeta. A noção de
sistemas não pretende meramente registrar uma deficiência de
energia nos Estados Unidos ou a falta de energia elétrica nos países
em desenvolvimento. Se um problema específico está inserido no
sistema energético e se o sistema energético faz parte de um sistema
econômico, então você deve analisar o sistema por inteiro porque, ao
examinar as partes em seu conjunto, talvez você comece a
compreender que o sistema ecológico e ambiental pode ajudar a
resolver esse problema de energia. Você poderá notar que existe um
grande desperdício saindo do sistema energético e sendo jogado no
meio ambiente. E que, se você reduzir esse desperdício, poderá
ganhar em eficiência: você poderá resolver seus problemas de
energia.
Examinando os problemas ambientais de uma maneira holística, você
também poderá ver que, das fontes de energia fundamentais – o sol,
o vento, as marés, a água, todos os ciclos e sistemas que nos
proporciona o meio ambiente –, também é possível obter fontes de
energia limpas e renováveis. Fuller propunha que se examinassem os
grandes sistemas, e não os problemas isolados. Também propunha
que se visualizasse “o grande quadro”; não apenas grandes sistemas,
mas também em termos de tempo. Não queria resolver os problemas
do aqui e agora porque, até elaborar uma solução, já seria amanhã e
o problema seria diferente e maior – haveria mais gente no mundo,
por exemplo. A solução, portanto, não está em resolver o problema
com que você lida hoje, mas também os problemas de amanhã, de
forma a eliminar as causas do problema, e não apenas seus sintomas,
o que envolve pensar por antecipação. Fuller chamava uma parte do
que fazia no jogo do mundo “projeto-ciência abrangente
antecipatório”. A perspectiva do sistema inteiro era abrangente; o
Bem no início do jogo do mundo, enchíamos o mapa de gente,
correspondia no telão, se dirigissem para o planisfério. Era, portanto,
XVII, XVIII, XIX e XX. Quando se chega a 1960, já há umas 50
década de 60”. E daí? Mas se você participa dessa experiência, na
contribuir com informações importantes, tais como a da população
Uma das coisas interessantes sobre essa perspectiva é que, quando
você olha o mapa de pé, você vê toda a Terra, você vê através das
fronteiras e dos obstáculos, através da geografia do mundo, vê como
somos um único planeta. O astronauta Buzz Aldrin, segundo homem
a pisar na Lua, disse-me que ficar em pé olhando aquele planisfério
fora a melhor experiência que já tivera desde que voltara da Lua.
Quando você está ali, a Lua não está a seus pés, ou a seus ombros,
ou à sua frente; ela está a pouco mais de 2 mil metros acima da
superfície da Terra, à altura de um edifício de 70 andares. O sol está
a 40 quilômetros de distância. Em perspectiva, é muito interessante.
Voltando à moedinha que representa as montanhas mais altas:
pegando a mesma moeda e deslocando-a para os oceanos, ela
representaria a média, em profundidade, de um oceano. Se você pega
duas moedas e coloca uma na parte superior do planisfério e a outra
no “chão”, entre as duas moedas se encontrará 99,99% de toda a
vida existente em nosso planeta e tudo aquilo em que ela se apóia,
ou seja, a biosfera. O problema, aqui, é que 90% de toda a vida e de
tudo o que a apóia é da espessura da tinta com que o planisfério foi
impresso. Uma coisa extremamente fina transformou um pedaço de
rocha sem vida numa casa próspera e aconchegante para todos nós,
criaturas biológicas. É essa folha incrivelmente fina e delicada que
envolve nosso planeta. O planisfério, portanto, era um instrumento
muito útil e poderoso para transmitir todo tipo de informações sobre
o mundo e sobre a relação dos vários países e continentes entre si e
o curto espaço de interligação que existe entre nós todos.
Usávamos o mapa de maneiras muito interessantes. Colocávamos
pessoas no mapa: a China e a Ásia Oriental tinham 23 pessoas e só 5
para a América do Norte porque a China e a Ásia Oriental
representam 23% da população mundial e os Estados Unidos
somente 5%. Nos Estados Unidos, as pessoas ficavam mais
10
Após uma dessas apresentações, uma atriz bastante conhecida, Ellen
Burstyn, que ganhara o Oscar, disse-me que o que estávamos fazendo
era teatro de vanguarda. No início, ninguém tinha consciência de que
estávamos nos envolvendo em algo que, de certa forma, era teatral.
Despejar as fichinhas no planisfério, por exemplo, foi um ato teatral
incrivelmente forte e melodramático. As pessoas da platéia seriam os
atores. Para nós, essa era uma perspectiva interessante. Também
tínhamos consciência de que se chamássemos a experiência de teatro
de vanguarda ninguém viria. Estávamos montando cerca de cem
oficinas por ano, envolvendo milhares de pessoas e, por isso, não
podíamos passar a chamar a experiência de teatro de vanguarda;
chamávamos uma simulação do mundo e de seus recursos e
problemas. Atualmente, o pessoal de uma sociedade sem fins
lucrativos, a o.s. Earth, assumiu o projeto do jogo do mundo.
Deixaram de usar o planisfério. Creio que devido aos custos de ter
que transportá-lo e montá-lo nos lugares onde se apresentam.
O jogo demonstrou a necessidade de mudanças fundamentais para o
mundo e, na realidade, demonstrou dramaticamente essa necessidade
de transformações, permitindo que as pessoas passassem pela
particularmente útil. Existem muitas críticas das noções de “cosmos”
e de “cosmologia”, e com razão. Existe sempre um risco, com tais
palavras, de que a definição se torne muito vaga. Em sua Crítica da
dos quais existiam no tempo de Bacon, mas, em sua maioria, só
seriam descobertos muito depois: máquinas que produzem luz,
máquinas voadoras, engenhos de guerra, geladeiras, ou seja, uma
experiência de perceber que tais transformações eram necessárias em
nome do próprio ser humano. Cada oficina do jogo era diferente
porque os participantes eram diferentes. Às vezes, pessoas
encarregadas de dirigir os Estados Unidos, ou a África, ou a Europa,
assumiam a liderança e operavam transformações mais ou menos
Razão Pura, Kant passa várias páginas discutindo as Idéias
cosmológicas; explica que não é possível existir uma ciência do
cosmos enquanto um todo. Quando se questiona o princípio ou o fim
do universo, a imortalidade ou a redenção da alma, entra-se no reino
da especulação; é impossível a existência de respostas seguras, pois
relação, no estilo de Jules Verne, de todas as tecnologias que,
posteriormente, seriam inventadas por uma sociedade tecnocrática. O
que se percebe pela mistura com imagens bíblicas e uma retórica
profundamente religiosa é que, para Bacon, esse ícone da revolução
científica, a ciência não se opunha à religião, mas a reformava a
radicais – formando organizações políticas ou econômicas unificadas
da Europa, Rússia e África, por exemplo, ou da China e América
não há experiência empírica em que se possa basear uma opinião. É
evidente que o conceito de cosmologia é fundamental para a
partir de dentro. A observação empírica do mundo é uma forma de
adorar a Deus por meio da valorização de sua obra. O
Latina. Havia uma variedade de maneiras de buscar solução para os
problemas do mundo que refletia as distintas ideologias políticas dos
participantes do jogo. Se achassem que deveria ocorrer uma
transformação, ela ocorria; se não achassem, não ocorria. Quem
antropologia e para a história das idéias, assim como leva à questão
da hermenêutica – a dependência da parte em relação ao “todo”.
Portanto, as críticas à noção de cosmologia normalmente se alinham
com as críticas da idéia de cultura e com o projeto de interpretação.
desenvolvimento de novas técnicas de agricultura é uma forma de
melhor desempenhar a caridade, aumentando a fertilidade da terra
para que um maior número de pessoas possa partilhar as bênçãos de
Deus.
realmente deveria participar desse jogo do mundo seriam os
representantes das grandes empresas, responsáveis pela maior parte
Tentar compreender a cosmologia de um povo, num local e numa
época distintos, implica adotar a posição de ir além do que se ouve e
da destruição. São exatamente essas as pessoas a quem o jogo é
dirigido. De que adiantaria irmos falar com organizações
ambientalistas sobre coisas que já conhecem perfeitamente? Você tem
que se dirigir às pessoas que, realmente, têm algo a ganhar.
se vê e tentar apreender percepções, as categorias de compreensão
destes “outros”. Mesmo que alguém tente “voltar às raízes”, tornarse parte da sociedade em questão e até se transformar – submetendose aos rituais necessários para se tornar um membro daquela
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER
sociedade –, haverá sempre mil maneiras de provar que não o
conseguiu. Resumindo, portanto, é praticamente impossível
desvendar o que se passava na cabeça de um hipotético interlocutor,
ou descrever sua visão do mundo, ou cosmologia, como uma espécie
de reconstrução imaginária.
J OHN T RESH
JOHN
TRESH ,
ESTUDOU
ANTROPOLOGIA
E
HISTÓRIA
DA
CIÊNCIA ,
É
UM
FELLOW
DA
HUMANITIES INSTITUTE DA UNIVERSITY OF CHICAGO . ESCREVEU UM LIVRO INTITULADO
MECHANICAL ROMANTICISM
:
REBUILDING THE COSMOS IN THE FRENCH INDUSTRIAL
REVOLUTION .
TRADUÇÃO DE JÔ AMADO
exemplo, é emblemático de uma certa versão do tema romântico,
la vie religieuse. As festividades anuais estabelecem tais pontos de
referência para reivindicar pertencer a um determinado grupo. E é
precisamente isso que faz um cosmograma: coloca essa totalidade
numa forma concreta, como ponto de partida para novas
interpretações e ações – relações sociais, com outras culturas, com
convidando o espectador a se identificar com ele, a chegar aos limites
da razão, a mergulhar num mundo dinâmico e natural. Em outras
telas de Friedrich, vêem-se cruzes, templos, ruínas de cemitérios, que
sugerem uma espécie de sensibilidade humana numa relação
específica com a natureza, com a história da humanidade, com a
entidades naturais, com animais ou plantas – e também estabelece
divindade. Porém, sempre isolada – e, em alguns casos, até como
uma relação entre esferas ou níveis ontológicos distintos – o mundo
terreno, o mundo espiritual, Deus e os ancestrais, os pontos em que
se cruzam. É muito mais concreto do que uma cosmologia. Uma
cosmologia não pode ser vista: a “visão do mundo” está encerrada na
negação – da ciência e da mecânica.
diferentes – não é um padrão mental monolítico que determina seu
pensamento e sua ação. Portanto, um cosmograma sugere uma
cosmologia como parte de práticas comuns, uma representação feita
por quem tem uma visão do mundo daquela visão do mundo.
ensina estudos religiosos, usou-o quando falava sobre o Tabernáculo,
o templo construído por Moisés que é citado no final de xodo, o
segundo livro da Bíblia. O Tabernáculo é uma representação da
totalidade do cosmos – dos poderes de Deus, de sua relação com os
homens e do lugar destes na relação com o restante da natureza. Na
época, eu estudava mudanças em representações do cosmos que
ocorreram na França no início da revolução industrial. Vinha usando
o termo “cosmógrafo”, mas este o restringia à escrita. Procurava um
termo que não somente abrangesse a escrita, mas também imagens,
objetos, formas arquitetônicas, gestos rituais, “ações”.
Decidi olhar o texto que Damrosch havia discutido. Aquela passagem
do xodo é um pormenorizado manual sobre como construir o templo
dos hebreus. O papel que desempenha na narrativa da Bíblia é o de
reconstituir os vínculos e a aliança entre Deus, os homens e a
natureza, vínculos que antes já haviam sido rompidos – o pecado
original, o dilúvio, a torre de Babel.O tabernáculo é um templo com
o projeto arquitetônico, o material utilizado – e até as cores –
escolhidos por Deus. Adapta-se à vida religiosa de um povo nômade:
é portátil. Como uma tenda, pode ser desmontado e reconstruído e é
feito a partir das tecnologias que os hebreus dominavam naquela
época: trabalhos de metal, tecelagem, desenho, tintura, trabalhos de
madeira – e, a tudo isto, Deus chama pelo nome. No centro há um
altar, a Arca da Aliança, e dentro, as tábuas da Lei, uma relação de
todos os membros de todas as tribos e todas as recomendações sobre
ética e alimentação: listas dos vários tipos de ações, dos vários tipos
de povos, de plantas e de animais.
Em outras palavras, o texto do xodo é um cosmograma que contém
o projeto do lugar santo que iria encarnar as relações entre os
homens, Deus e a natureza. Também consiste numa maneira
interessante de refletir sobre o modo de trabalho empregado e o papel
da tecnologia. O resultado de tal construção foi que, no sétimo dia,
telas de Caspar David Friedrich são exemplos clássicos de
simbólicos que Durkheim analisa em seu Les formes elémentaires de
primeira vez que ouvi o termo “cosmograma” foi numa
conferência, na Universidade de Columbia. David Damrosch, que
A
de Laplace, eram cosmogramas dessa linha de raciocínio, escritos em
linguagem matemática. É aqui que se dá a grande polarização entre
uma visão mecânica do mundo e o romantismo, muitas vezes
considerado como uma reação à industrialização e à mecanização. As
E é aqui que entra a noção de cosmograma. Sempre existem alguns
pontos de referência fundamentais que permitem às pessoas
chegarem a um acordo – de certa forma, como os ritos e objetos
24 DE JUNHO DE 2004
_
águas da objetividade, se tornara dominante – e os Principia
Mathematica, de Newton, depois atualizados pela Mécanique Celeste,
cosmogramas que se adaptam a tal visão, estabelecendo um vínculo
simbólico entre o interior e o exterior, entre a luz (tanto enquanto
realidade, quanto metáfora) e o ato de enxergar, mas de uma maneira
individualista, isolada da sociedade e da tecnologia. O famoso quadro
do homem visto de trás e olhando para a tempestade no mar, por
cabeça das pessoas. Também permite uma abordagem mais simples:
a pessoa pode se relacionar com um cosmograma de maneiras
PARIS
Por volta de 1800, a percepção da natureza como uma grande
máquina, um relógio que conhecemos como o grande divisor de
No entanto, essa polarização não é tão clara. Na primeira metade do
século XIX é possível encontrar vários projetos de reforma que
poderiam ser chamados “romantismo mecânico” e nos quais se
podem ver tecnologias, máquinas industriais e a vapor, os primeiros
passos da eletricidade e máquinas modernas para observação
científica, como o daguerreótipo, como meios de recriar a totalidade
humana e natural, superando as divisões sociais, culturais e
Meu interesse, assim como o de outras pessoas que estudam a
intelectuais, para reunificar o mundo. Em meados do século XIX,
Auguste Comte partiria da rejeição a quaisquer referências a espíritos
invisíveis, à metafísica, às coisas que não podem ser vistas. Porém,
história da ciência, é estudar a ciência ocidental tal como os
antropólogos fazem com uma cultura estrangeira, compreender como
diferentes tipos de atividades e de práticas se encaixam numa
na última parte de seu trabalho, Comte passaria a encarar a ciência
como um instrumento para construir uma sociedade global
completamente unificada, tomando por modelo a igreja católica. Essa
percepção absoluta do universo e como essa percepção muda com
novas descobertas, invenções, mudanças políticas ou contato com
outras tradições. Para compreendermos a cosmologia ocidental, a
é a Religião da Humanidade. A sociologia não é, de forma alguma, o
estudo meramente teórico e desinteressado da sociedade; pelo
contrário, conclama à transformação da sociedade, à sua
forma como funciona, também é importante diferenciar o
cosmograma da cosmologia, pois atualmente já existe uma disciplina
científica especializada, chamada “cosmologia”, que estuda a história
reconstrução, partindo-se do modelo explícito da igreja católica, num
mundo unificado em que não existem mais Deus nem fé que não
tenha sido posta à prova – tal como existiu um Deus na Idade Média
do universo físico. É interessante observar a conexão entre
astronomia e teologia que, em algum ponto do passado, se
separaram. Portanto, tentar apreender a “cosmologia” do Ocidente
que foi, finalmente, destruído de uma vez por todas com a Revolução.
A diferença está em que as crenças não são mais estabelecidas
através da autoridade, mas através da razão e da observação.
moderno implica problemas complicados; e só é possível ter uma
visão de conjunto refletindo sobre como a ciência e a tecnologia se
adaptaram a outros padrões de que dispomos para que o universo
fizesse sentido.
Pesquisadores de campo coletaram muitos cosmogramas, tais como
símbolos religiosos e objetos de outras culturas. Há muito tempo, a
antropologia se interessa pela religião, o que não é estranho, pois o
advento da antropologia, no século XIX, coincidiu com o declínio da
religião. Mas as religiões “deles” se contrapõem, muitas vezes, à
“nossa” ciência. Em termos de um estudo do mundo ocidental,
poderíamos pensar em cosmogramas fora do padrão religioso daquele
do Tabernáculo. Muitas vezes se diz que ocorreu uma grande ruptura
entre o conhecimento da natureza e o restante da sociedade e que
isto teria tido início com a revolução científica e se teria completado
no século XIX. Então, a ciência teria tomado o lugar da religião. Mas
ao observar os cosmogramas a partir de alguns marcos de nossa
Em 1849, com Catéchisme positiviste, Auguste Comte criou os novos
ritos para a era positiva da humanidade. Criou uma série de
cosmogramas que tinham por objetivo descrever a sociedade em sua
totalidade, dividida em suas distintas classes e funções, nos moldes
de todas as diversas ciências pelas quais se conhecem todos os
fenômenos naturais, os vários segmentos biológicos, físicos e
astronômicos da realidade, toda a história da espécie humana. Mas
iria mais longe: o que ele construiu foi uma espécie de tabernáculo,
uma nova arca da aliança. Comte regrediu, atualizou e reavaliou o
imaginário cristão, porém com novos objetivos, uma vez que queria
restaurar a unidade cosmológica num mundo sem transcendência. O
calendário positivista – gravado na parede norte da Biblioteca de
Sainte-Geneviève – é um imenso cosmograma. Assim como durante a
Revolução Francesa, quando se decide recriar a sociedade, é
necessário começar do zero. O calendário positivista dá novos nomes
aos dias da semana. Atribui a cada mês uma etapa essencial no
e depois que os sacerdotes haviam cumprido os necessários rituais na
ordem adequada – Deus apareceu aos hebreus e, na forma de uma
nuvem, ocupou toda a tenda. Tratava-se de uma máquina para fazer
Deus aparecer. O fundamental é que o vínculo com Deus se tornou
possível por meio de uma construção descrita de maneira
extremamente pormenorizada e técnica; e, nessa construção, há lugar
New Atlantis, um famoso texto de Francis Bacon, do início do século
desenvolvimento da sociedade humana até aquela data: do
politeísmo, do fetichismo, do monoteísmo, do feudalismo, da
metafísica até o estado “normal”, trata-se de um processo cumulativo
XVII, também conhecido como fundador do método científico e da
observação empírica da natureza, é outro cosmograma e, na
de construção, ao contrário do estado “patológico” de eras antigas.
Há, por exemplo, um dia de homenagem à mulher, quando todo
realidade, utiliza e atualiza alguns aspectos do Tabernáculo do xodo.
É a história de um grupo de marinheiros, todos bons cristãos, que se
perdem no mar e acabam sendo levados a uma ilha desconhecida.
mundo é lembrado da contribuição que deram as mulheres à história
da humanidade. Para Comte, a mulher representa a emoção, o lado
afetivo da humanidade. Portanto, essa organização do tempo, esse
para toda a sociedade e para toda a natureza. O importante – e é por
isso que difere da cosmologia – é que falamos de um texto que
resultou numa prática concreta e organizou objetos, tecendo-os entre
si num inventário completo ou num mapa do mundo.
São saudados por representantes da “Casa de Salomão”, o qual usa
roupas de linho de cor vermelha, azul e violeta, justamente as cores
do Tabernáculo, e é carregado numa padiola decorada de cristal e
modo de procurar um novo foco de atenção e essa redistribuição
social de crédito também participam numa psicologia e numa ética.
Na realidade, é uma parcela da natureza da pessoa que é chamada e
ouro e com uma imagem de um anjo, tal como assento de
misericórdia de Moisés. Ele fala sobre os tesouros existentes no
templo – a “Casa de Salomão” –, sobre inventos de todo tipo, alguns
homenageada nessa festa, a força ativa da afetividade é convocada
para reforçar a unidade do cosmos que o sistema descreve e cria. As
festas lembram aos homens a história da sociedade, dando
história, é possível ter um quadro diferente.
quando as pessoas terminaram o trabalho e entraram no santuário –
É a materialidade do cosmograma que o torna um objeto
11
visibilidade às relações sociais do presente. O calendário, tal como a
lidamos com símbolos mas, sim, com as coisas como elas são.
de um sujeito – e na idéia do «kosmotheoros», de um sujeito capaz
ciência aplicada da sociologia, é uma tecnologia para curar a
Atribuímos às ciências a faculdade de se desvincularem de todas as
de uma distância, no fundo infinita, pois possibilita a apreensão do
sociedade contemporânea, para trazê-la de volta a um estado
“normal”.
questões sociais e éticas. Podemos ter uma compreensão de como
funcionam alguns domínios do conhecimento, tais como o
mundo sob todas as suas faces. O mundo, ao contrário, é sempre a
perspectiva – pelo menos a perspectiva, para permanecer na ordem
conhecimento das estrelas, das propriedades de certas plantas, de
do ver.
Estas preocupações de Comte podem parecer estranhas à luz do que
normalmente se considera o positivismo – em especial nos países de
língua inglesa, nos quais, em geral, significa confiar na observação e
na lógica empíricas, rejeitando tudo o que sejam valores, fé, ou
emoção no reino do conhecimento. Penso que esse equívoco a
respeito do positivismo vai de mãos dadas com um equívoco maior
da sociedade ocidental que ainda carregamos. Existe uma corrente de
pensamento muito disseminada que sustenta, de certa forma, que se
o homem domina os segredos do átomo, o código genético e os
Deus, da magia etc.; mas não sabemos como tornar explícitos os
vínculos entre esses domínios distintos. A história da ciência e os
estudos científicos começam a mostrar como as ciências se baseiam
sempre em circunstâncias sociais específicas que só posteriormente
serão esquecidas ou apagadas. O que esses pesquisadores vêm
tentando fazer – e tenho a felicidade de estar entre eles – é
reconstituir todos esses vínculos, essas situações sociais que tornam
possível um “conhecimento autônomo” num dado momento.
JCR
_ Você diz: «m mundo é um meio no qual se está». A ecologia
seria, para você, o paradigma do pensamento do ou sobre o mundo ?
JLN
_ Eu fabriquei a palavra «ecotecnia», que não soa muito bem,
para dizer que o «oikos», o lugar familiar, o lugar de vida, não é mais
«natural», nem «familiar», nem dotado de suas próprias regras («oikonomia»), mas, sim, é inextricavelmente imbricado com a «tecnia», a
transformação de todos os lugares e a dissipação dos fins claramente
princípios que combinam e recombinam a matéria, então nosso
conhecimento é forte porque se separou totalmente das questões da
Portanto, a tarefa consiste em relacionar todos os diversos
cosmogramas que se encontram em circulação num determinado
atribuídos e, mais ainda, do «fim supremo» da humanidade ou do
mundo. Havia lugares como a floresta, o mar, a praia, o campo, a
moral, da política – e fala-se sobre pesquisa científica como se esta
lugar, num determinado tempo, e descobrir como são utilizados,
clareira (alusão a Heidegger!), ou ainda, sem dúvida, a ágora, a praça
fosse desvinculada de questões políticas ou éticas. Apesar de
argumentos infindáveis e de exemplos em contrário, ainda persiste
como agem entre si, como contêm, substituem, ou trabalham em
concordância – ou hostilidade – uns com os outros. Então será
da aldeia, a igreja, o hospício, o castelo, a fazenda, o quarto, e
também os desertos, as montanhas, as terras desconhecidas, as terras
essa noção de uma “ciência pura” que transcende completamente
todas as relações humanas. No entanto, se não quisermos cair em
possível comparar esta partícula de tempo com episódios passados ou
futuros. Indo mais longe, o horizonte está sempre ali, no que Lévi-
proibidas, os túmulos, e tudo isso se transforma em pólos de redes,
em nós e cruzamentos de vias de circulação e de comunicação. Onde
todo tipo de contradições e auto-decepções, devemos reconhecer que
Strauss chamou “antropologia” por oposição à etnografia: a
havia paisagens e países, há, cada vez mais, tecidos e fluxos. Quanto
ainda nos encontramos naquela situação fundamental de ter que
juntar tudo num único mundo. No início da industrialização, as
comparação entre cosmogramas de mundos muito diferentes, tanto
no espaço quanto no tempo. Num outro plano, especialmente numa
à «dissipação dos fins», é um desenvolvimento do que precede: aos
lugares correspondiam fins determinados – à igreja, a oração; ao mar,
pessoas o reconheciam: Comte, o Sacerdote da Humanidade, ou o
grande naturalista e cosmógrafo Alexander von Humboldt, ou o
exposição de arte internacional, devemos perguntar: “Que tipo de
cosmograma é possível conseguir a partir de todos estes
a pesca; ao deserto, o retiro etc. Porém, hoje, os fins imbricam-se
indefinidamente uns nos outros: por exemplo, pesca-se para comer
astrônomo François Arago, tentando unir o conhecimento sobre a
cosmogramas locais, tão diferentes, às vezes até contraditórios?” Não
peixe, mas, para se poder pescar, é necessário preservar as espécies
natureza de suas sociedades, suas orientações éticas, sua ordem
social, em uma única representação. Tal como os cosmologistas de
sei o suficiente do idioma grego para dizer se existe um plural para a
palavra cosmos. Mas cosmograma, decididamente, pode ser
– ou até criá-los em viveiros – assim como as possibilidades de pesca,
as rotas marítimas, o manejo dos equipamentos de pesca, seu
Dogon, os manipuladores de marionetes de Bali ou os xamãs de
Jivaro.
conjugado no plural.
controle etc. São necessárias convenções internacionais, protocolos
sobre a natureza, a estrutura e o tamanho dos equipamentos, sobre a
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX .
circulação dos navios. É preciso regulamentar o comércio. Para isso,
Seria possível se perguntar quais são os limites do conceito de
são necessários engenheiros, contadores, inspetores, gestores.
Escolas, instituições, sistemas de formação. A cada um desses cargos
cosmograma. Para além dos exemplos citados, haveria uma espécie
de cosmograma ideal? E, tentando utilizar o conceito no presente,
que tipos de representação seriam adequados ao mundo esquisito e
complexo em que vivemos? Aqui, não posso deixar de pensar na
relação entre este projeto de pavilhão e o atlas Mnemosyne, de Aby
Warburg, uma coleção de imagens que sugere o espectro de
polaridades e fantasmas que habitam a mente do homem moderno, à
medida que este adapta tradições antigas a um novo momento – tal
como uma maneira, diz ele a certa altura, de acertar as contas e se
recuperar da esquizofrenia de nossa cultura. Existe, inevitavelmente,
uma continuação com alguns projetos do Iluminismo, como a
Enciclopédia – que d’Alembert chamou de mappemonde: os
cosmogramas podem ser inventários de tudo o que existe e existiu;
podem voltar atrás em toda a história da humanidade; como nos
romances de Balzac, podem descrever uma história natural da
sociedade. Mas os românticos, com sua obsessão pelo fragmento, nos
conduzem a perguntar se há alguma coisa que pode não ser
considerada um cosmograma. O fragmento nos remete à totalidade;
qualquer objeto que possamos encontrar é produto de uma infinidade
de relações que se espalham muito além deste instante no espaço e
no tempo.
Muitas vezes, existe num cosmograma um objetivo que vai muito
além da mera descrição ou representação: pode ser uma redescrição,
no condicional ou no futuro – não o mundo tal como é, mas como
poderia ser. Pode existir uma intenção utópica, o objetivo de projetar
novas possibilidades para um mundo que parecia fixo. Um exemplo
recente é o dos romances de Philip K. Dick, que mapeiam pontos em
que a ontologia comum escorrega, em que existem fendas na
realidade, fora da qual pode emergir um mundo novo e mais
completo. Neste sentido, os cosmogramas têm uma relação com o
tempo como têm os ritos de passagem de todas as sociedades: o
tempo liminar, no qual são suspensas as relações comuns, em que há,
muitas vezes, uma recriação simbólica do mundo e da sociedade, ao
mesmo tempo em que há a formação de uma comunidade fora das
estruturas sociais comuns. Após a seqüência ritual, os participantes
voltam a um mundo transformado, com as estruturas redefinidas, o
cosmos refeito: então, o espaço de possibilidades se fecha de novo.
Os cosmogramas costumam guiar essa recriação e restabilização do
mundo. Podem sugerir estruturas permanentes, assim como podem
confirmar sua fluidez e eventualidade.
Também é importante o fato de qualquer cosmograma sempre tentar
re-situar as preocupações e ansiedades de uma pessoa numa
estrutura mais ampla que a individual, o grupo social, a nação ou o
presente. Essa dimensão de realidade é sempre acessível: somos
sempre parte de um sistema mais amplo, mas nem sempre temos
consciência disso. Os cosmogramas implicam uma ecologia. Não
apenas no sentido empregado pelos ecologistas, mas com o sentido
que lhe dá Gregory Bateson em seu livro Steps to an Ecology of Mind.
Bateson tem uma perspectiva antiessencialista que pressupõe a
interdependência de todos os seres, vinculando a ecologia, em sua
acepção biológica, à cibernética e ao que poderíamos chamar a
história natural das idéias.
Não menos importante é avaliar os cosmogramas, comparando-os
entre si. Precisamos superar a idéia de que nossa sociedade não
necessita tais representações – que, com a ciência moderna, já não
corresponde um conjunto de funções criadas, e assim por diante. A
tal ponto, que a finalidade «comer peixe» se perde, de certo modo,
J EAN - LUC N ANCY
JEAN - LUC NANCY , NASCIDO EM 1940 , PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UNIVERSIDADE MARC
BLOCH DE ESTRASBURGO , É PROFESSOR CONVIDADO NA UNIVERSIDADE DE BERLIM E NA
UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA . PUBLICOU INÚMERAS OBRAS QUE ESTÃO TRADUZIDAS EM
MUITAS LÍNGUAS . DENTRE ELAS : LE SENS DU MONDE
OU LA MONDIALISATION
- 2002 -,
- 1993 -
E LA CRÉATION DU MONDE
AMBAS PELA EDITORA GALILÉE , PARIS .
TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI
WEB
_
NOVEMBRO DE 2004
J
EAN - CHRISTOPHE ROYOUX _ Seu livro, Le sens du monde [O sentido
do mundo], parece-me que se articula em torno de duas questões: a
constatação do fim (particularmente, do fim do mundo concebido
como universo ou como “reunião em um”) e o tema da vinda sem fim
(o desaparecimento do sentido como pro-jeto). Perda da unidade e da
unificação de um lado; perda da significação como destinação, de
outro. Em sua opinião, o que, fundamentalmente, torna a unidade do
mundo impossível de ser apresentada? Isso implica sua eclosão em
múltiplos mundos plurais e singulares (cosmogramas?) que não mais
teriam a ambição nem os meios de constituir uma representação do
cosmos ?
JEAN - LUC NANCY
_ O que torna a unidade do mundo impossível de ser
apresentada é, de maneira muito paradoxal, sua unificação, porque a
unidade do mundo nunca fora senão a unidade projetada sobre ele
por esse por aquele pensamento, por essa ou por aquele cultura. E a
representação de um «kosmotheoros» capaz da visão total do mundo
era, cada vez que ocorria, tributária de uma cultura, embora nem
sempre fosse a mesma e embora houvesse várias culturas
alimentando a representação de um olho divino universal. Tal
representação implica um pressuposto: que o mundo pode ser
disposto como um objeto, como um panorama ou como um cenário
integralmente visível para um espectador ideal ou absoluto. E isto é
exatamente o que, sem dúvida, o mundo contemporâneo nos obriga
a descartar: aprendemos, hoje, que o mundo não é um objeto nem
um espetáculo. Um mundo que posso me representar em sua
integralidade de mundo não é mais um mundo: é um universo, é um
cosmos, é uma criação, nos sentidos mais tradicionais desses termos.
Compreendemos, hoje, que um mundo é, ao contrário, um meio no
qual se está e que só pode ser apreendido do interior. Está-se num
mundo, e não diante dele.
Do mesmo modo, pode-se dizer que nunca se vê um mundo: está-se
nele, habita-se o mundo, explora-se o mundo, alguém se acha ou se
perde nele... – inúmeros conceitos que estão muito longe de ser da
mesma natureza que a do «ver», que implica distância, afastamento
12
nessa malha estreita de outros conjuntos de meios - e - fins. E, para
«acabar» criam-se aquaculturas ou, então, fabricam-se caranguejos
artificiais, outras finalidades. Em poucas palavras, seria possível
dizer: os fins intermediários cancerizam os fins finais. Aliás, a
palavra «câncer» indica uma nova abertura de finalidades... Como se
sabe, hoje o câncer prolifera e torna necessárias muitas intervenções
sobre os ecossistemas, ao mesmo tempo em que suscita pesquisas e
invenções terapêuticas, comportamentos e legislações etc., etc.
Produz-se uma intermediação generalizada e sem fim nos dois
sentidos da palavra «fim» em francês.
_ Haveria algum acontecimento na história que poderia ser
indicado como data dessa mudança de sentido da palavra “mundo”,
como data do início desse fim marcado pela unificação ?
JCR
JLN _ Sim, creio que o que nos ensinou isso e nos marcou (com e sem
«s», em dois sentidos portanto) foi a primeira guerra chamada
«mundial»: porque esse epíteto, muito abusivo para a aurora da
«globalização» atual, deve ter surgido (desconheço, de fato, quando
e como essa denominação se impôs, em concorrência com a de
«grande guerra», que é mais européia e mais arcaica; trata-se de uma
pesquisa a ser feita) do sentimento de uma perturbação simultânea
das relações entre Estados (primeira guerra excluída da definição
estrita da guerra, como Carl Schmitt a analisou: guerra se
pretendendo «punitiva» em relação a um mau governo, não em
relação a um povo etc.), das relações entre continentes (os norteamericanos na Europa), das técnicas (aviação militar, gás de combate
etc.), das ordens de grandeza (número de combatentes, de mortos,
amplitude dos meios), dos vínculos entre a guerra (as frentes) e a
sociedade (nunca antes tão estreitos e intrincados), da própria
consciência dos povos em relação à guerra, em relação a si mesmos
etc (a «der des der», a necessidade de superar os ódios nacionais:
depois da guerra, busca de encontros franco-alemães) etc. Não se
acabaria de analisar os elementos de gênese do «mundo mundial» na
história desse conflito.
Segue-se a isso, justamente, também uma perturbação das visões do
«mundo»: muito tempo após a convocação francesa de 1789 a uma
universalidade democrática, apelo que permaneceu ligado às
individualidades nacionais, é uma outra universalidade que
desponta, não mais a de repúblicas iguais, mas a de um todo
internacional ou transnacional confusamente percebido e no qual se
descobre também que se tornou capaz de um desastre inimaginável
até então (já um pouco pressentido, em 1870, dada a crueldade do
combate moderno).
_ Em que medida aquilo que se designa como mundialização ou
globalização seria o sinal de uma divergência fundamental em relação
à idéia de Cosmos ou de Universo ?
JCR
_ À medida que «mundialização» designa o paradoxo de um
mundo que perde sua situação cosmológica bem marcada, que se
sente lançado no indefinido de uma expansão percebida também
como errância. Ele constitui mundo sem se reunir em uni-versum.
JLN
A partir dessa perturbação ou dessa dissipação tendencial das
consistências nacionais ou culturais («França», «Alemanha»,
inadequada, arruinada, desmoronada – ao absoluto do sentido, a um
acontecimento supremo que não se realiza. É muito delicado dizer
«Europa», «Estados Unidos da América», no lugar onde um
«Universo» poderia ainda estender suas esferas acima ou além dos
isso porque nunca é simplesmente verdadeiro a respeito de nenhuma
povos e dos Estados, de repente a topologia se embaralha, tudo se
mistura e vem constituir «mundo».
_ Seria possível tematizar essa mudança de representação ou de
concepção do mundo como a passagem do universo ao «pluriverso»?
Em que sentido, exatamente, se poderia dizer que o mundo de hoje
constitui um não-cosmos ao invés de um cosmos ?
JCR
JLN _ Essa passagem parece-me demasiado simples. «Pluriverso»
quereria dizer que em vez de se orientar para o uno, ou de se inclinar
em direção ao uno, se orientaria para o múltiplo. Mas, então, não se
«orientaria» mais, não haveria mais «versus». Creio que a substituição
do singular pelo plural não é suficiente. Porque a unidade insiste,
mas de outro modo. Não se livra tão facilmente do uno. Realmente,
o uno é sua própria negação, como diz Hegel, mas essa negação não
ocorre sem conseqüência. Ela trabalha a pluralidade: isto quer dizer
que é necessário aprender a se referir a essa negação. Um mundo é
sempre uma postulação de unidade: o mundo, o nosso – este mundo
de que, em resumo, não paramos de confirmar a unidade e mesmo a
unicidade recuando cada vez mais os limites de nossa exploração do
universo sem aí encontrar outros «mundos» de significação, mas
apenas outros mundos físico-químicos, geográficos, geológicos, e não
mundos metafísicos, este mundo, portanto, exige sua unidade.. Mas
como? Não mais a partir do mundo da unidade apresentável: ao
contrário, sobre o modo da negação de tal apresentabilidade. Ora,
isso nos leva a pensar: o que é feito de uma unidade que se retira ou
que se subtrai a si mesma?
Pode-se dizer que o mundo é acósmico no sentido em que não é mais
«ordenado a» por uma potência superior a ele, fundadora, criadora ou
teleológica. Por causa disso, tampouco é «cósmico» no sentido em
que essa palavra grega implicava uma idéia de beleza harmoniosa:
ele não nos apresenta mais uma imagem bem composta, semelhante
a essas esferas encaixadas cuja música era tida como devendo
encantar os ouvidos dos anjos. O esquema cosmológico, hoje, é o de
uma expansão indefinida de um dado finito (o que implica também a
possibilidade, senão a necessidade, de uma implosão, de um fim do
mundo). Uma expansão, um espaçamento indefinido do próprio
espaço. O mundo se afasta de si: eu não quero mais solicitar de
maneira metafórica o que os astrofísicos trabalham e calculam, mas
qualquer que seja a relação com seu saber, creio que é interessante
dizer as coisas dessa forma. O mundo se afasta dele mesmo: ele se
separa de sua própria unidade, de sua centralidade e, portanto,
também de sua finalidade.
_ Em que medida um mundo que não constitui mais Universo,
que não é mais representável como a unidade do diverso – como
Cosmos, Globo ou Esfera – pode ele, entretanto, ser o lugar do sentido?
Para dizê-lo de uma forma pouco feliz, que paradigma poderia vir a
substituir a renúncia a todas as intenções? Se a idéia de fim, se o fim
como pro-jeto é indissociável da construção de uma história, como
nomear o que vem em vez da e no lugar da história ?
JCR
_ Acontece que a representação do «sentido» como realização de
uma significação última não é senão um aspecto muito limitado das
possibilidades do pensamento. Acabamos acostumando-nos a uma
representação muito estreita, aquela, por exemplo, de uma causa que
explica os efeitos (por que existe água? porque houve tal combinação
de átomos…), ou então um fim (por quê a água? para facilitar as
trocas químicas na mobilidade do elemento...), e transpusemos isso
ora para o conceito global de uma «natureza», ora para o de um
«deus», ora para o de um «homem» e de sua «história», de sua
«racionalidade» e de sua «prosperidade» ou então de sua «liberdade».
Mas estamos, agora, no fim dessas construções de visões ou de
concepções do mundo. Então, podemos descobrir que os grandes
JLN
grande disposição e não quero, aqui, falar apenas de grandes
pensamentos (desse modo, Hegel nunca é redutível ao hegelianismo
etc.), mas também das disposições íntimas e silenciosas, e mesmo
mudas (incapazes de falar), de todos os homens em sua relação a
menos consciente, a mais aparentemente imediata à sua vida, à sua
morte, aos seus trabalhos, aos seus dias, aos seus amores. Cada
disposição representada (isto é, discorrida, articulada de uma
maneira ou de outra) sempre comporta nela, sob ela ou além dela
uma disposição mais secreta – e talvez esta não se deixe reduzir em
relação ao absoluto. Talvez ela também seja capaz de se apreender a
si mesma como o absoluto, o que é completamente diferente. Isto é,
de apreender seu próprio afastamento, a distensão que a tende (a
morte, o amor, o sentido, o impossível...) como absoluto, insuperável
e destacado do todo: absoluto espaçamento, vazio de uma abertura
que não abre para nada, mas que se abre. E esse «abrir-se» seria a
única – absolutamente a única – forma de «autoconstituição» sempre
possível (não há «fundar-se», «engendrar-se», «realizar-se» etc. – mas
há um «abrir-se», e ele abre antes de tudo o «se»). Esta seria a
«espacialidade do sentido»: ele se abre. O sentido é envio a ... : e este
envio é para acabar «em nada», isto é, ele é infinito.
E é aí que eu faria intervirem as disposições pensante e operante: elas
são as disposições, ou elas compõem a dupla disposição do «abrirse». Pensar, operar: deixar a abertura se abrir, o espaçamento se
espaçar.
O espaçamento da abertura seria exatamente o que substitui o projeto
– mas, ainda uma vez, sob condição de que não nos enganássemos
sobre o «projeto». Realmente, houve e há os projetos científico,
político, técnico, ético etc. Isto é, projeções de fins e de meios
coordenados a esses fins. Mas também sempre houve mais e outra
coisa além disso. Sem dúvida, se posso dizê-lo, sempre, ou na
maioria da vezes, houve o «jeto» puro e simples – ou então, absoluto
– no próprio projeto e, em resumo, do próprio projeto. Quero dizer
que o científico ou o militante dedicando-se a uma pesquisa ou a uma
ação (é a mesma coisa) atribui também, ao mesmo tempo, a seu
próprio «dedicar-se» um valor absoluto, aqui e agora imediatamente
e absolutamente válido ou validável – em Kant, isso se chama uma
dignidade - «Würde». É o valor que não depende de nenhuma
projeção, mas da força da avaliação de que o «sujeito» ele mesmo
está em seu «projeto», mas não em razão do «pro» da projeção: em
razão do «se lançar» dentro, e mais até do «ser lançado» dentro.
Se não há essa auto-avaliação absoluta e instantânea, é muito
simples: é o suicídio (instantâneo ou muito prolongado na resignação
terrível de uma vida inteira). É por isso, aliás, que foi possível dizer
que o suicídio é o único problema. Mas a raridade do suicídio é
também, em um sentido, a única resposta...
O pensamento e a obra (novamente, distintas da filosofia e da arte
como atividades específicas, finalizadas – o pensamento sempre
aberto pelo impensável e a obra pela ociosidade) são o que, na
história, supera imediatamente a história.
Isso não quer dizer que tudo se torna igual, exposto e simplesmente
simultâneo. Isso quer dizer que os fins projetados devem ser, eles
próprios, desvinculados do «fim último» ao qual estavam ligados por
algumas representações. Não só desvinculados desse fim último, mas
desvinculados, além disso, deles mesmos: não aderindo cada um a si
perto, tampouco o fecham, embora pareçam representar seu «
fechamento» perfeito (e opressivo). O ápice da meditação religiosa
de ordem superior. A co-presença não tem representação: decorre do
contato e da lateralidade mais que da visão e da frontalidade. O outro
não é somente o outro frente a frente, é também aquele do lado a
lado, no qual é possível ignorar-se ...
e a disposição operante (não falo aqui de filosofia nem de arte por
razões precisas que seria necessário considerar em outro lugar).
As disposições trágica, dialética e mística têm em comum persistir
numa última relação – ainda que seja inteiramente negativa ou
_ Vivemos, certamente, uma oscilação maior dos paradigmas, isto
é, das culturas, dos equilíbrios entre culturas e internas a cada
cultura. A mudança não é menor que aquela que acompanha o
nascimento da cidade grega ou o do Estado moderno, ou então que a
mudança que se produziu em torno do budismo assim como aquela
de que resultou o cristianismo. E como essas mudanças, essa
oscilação traz em si a imprevisibilidade de seu futuro, sem a qual ela
não seria mudança.
JLN
Nunca uma época foi tão privada de representação de um princípio,
de um pólo ou de um objetivo (seja ele divino, imperial, humano,
natural, científico, artístico). Nunca, sem dúvida, uma época
restringiu tanto sua conduta a uma espécie de sobrevivência difícil,
estreita, inquieta, à qual as maiores perspectivas de domínio e de
engenhosidade não fornecem nem princípios nem objetivos. Isso, de
fato, está em marcha desde a primeira «guerra mundial» - mas hoje
isso se torna evidente. Todas as referências disponíveis pertencem à
esfera do passado, têm pelo menos um quê de «já visto, já dito». Não
é mais possível dizer «amanhã será...». «No future». Mas também não
há mais lugar para uma escatologia: não há presente abrindo-se para
a eternidade. Não há mais tempo orientado e produtivo, não há mais
presente aberto para o absoluto – e sempre o tempo, o tempo que se
escoa em todos os sentidos ao mesmo tempo, para trás como para a
frente, e de lado. Isso não é uma «revolução», justamente: é uma
mutação, uma metamorfose, uma cesura também, um abalo, um
tremor de (a) terra. Não tenho nenhum ponto de vista superior para
afirmá-lo: mas a afirmação se impõe porque todo o resto se esquiva
na inconsistência das formas gastas.
Para concluir, não é uma afirmação que se apóie num saber, nem em
resultados de uma análise, nem em recursos de uma filosofia. É uma
afirmação que é afirmada em mim, sobre mim, e mesmo contra mim,
pela força de uma imposição externa.
_ Se existe algum sentido em querer espacializar o sentido do
sentido considerando-o como co-presença, comunidade de entes,
relações, é necessário pensar, simultaneamente, que o sentido possível
da relação que cada um, cada singularidade mantém hoje com o
mundo é uma relação”de um entre outros”: uma relação de inclusão e
de imersão ?
JCR
JLN _ Sim, com certeza. Se o sentido está na circulação em todos os
sentidos do envio ao outro, ao alhures, ao fora – e ao nada – que
constitui o sentido em geral, então, de maneira estritamente
correlativa, cada centro de envio, cada ponto de emissão envia a
todos os outros. Mas esse envio não se dá a apreender nem a acolher
por ele mesmo. «Um entre outros»: eu não domino o «entre» nem o
«um» que nele se imergem e que, ao mesmo tempo, dele se
distinguem.
BASEADO NUMA CORRESPONDÊNCIA POR E - MAIL COM JC ROYOUX
Fazer ser ou deixar ser implica, necessariamente, que isso seja
tomado na co-presença, que não é apenas a dos humanos, mas a de
sentido quanto todas juntas – tanto, ou seja, tão pouco. A copresença não deve constituir uma nova assunção, uma representação
disposição mística. A essas três disposições, que sempre se compõem
mais ou menos entre elas de modos variáveis, podem ser
acrescentadas duas outras que são diferentes: a disposição pensante
paradigma do tempo e da história, marcado pela antecipação e pela
projeção, correlativa, desde o século XIX, ao ascendente intelectual,
político e moral das filosofias da História, ao paradigma da inclusão
e da imersão ?
do mundo, o mundo de um instante.
sentido separado, ausente, como queiram. Na verdade, nenhuma
filosofia «fecha» o sentido, e as religiões, caso sejam olhadas de
Aqui se apresenta o nó inevitável das grandes disposições possíveis
para tal acesso: a disposição trágica, a disposição dialética, a
_ Ao ouvi-lo, parece que, para você, há fundamentos para se
considerar que estamos em via de viver a passagem de um certo
JCR
aliás, aqui esses dois termos se alternam. Ser ou fazer ser – o que?
um instante de presença, isto é, de exposição ao mundo. Um instante
todas as coisas do mundo. O «sentido» da co-presença não está senão
na co-presença. É por isso que cada presença singular tem nela tanto
se acaba. Ou melhor, ele não o compreende. Mas não é o simples
absurdo (não é a liquidação do sentido). É o acesso ao sentido do
insensato ou do além do sentido.
… Como suscitaria ele suas roupas, seu transporte, suas imagens?…
como a um «bem» apropriável, mas se desvinculando dessa apropriação e não tendo valor senão enquanto um produzir o ser – ou o fazer;
pensamentos do sentido sempre comportaram, de maneira essencial,
uma dimensão muito diferente: a de um sentido sem fim, de um
está sempre num abandono, num desapego que convém designar
como desapego do sentido dele mesmo. Ele compreende que ele não
anoréxica, suceda ao frenesi de pregação da proteção ao consumidor
JCR _ Será que as disposições de que você fala fazem apelo a
dispositivos especiais? Seria possível entender o sentido do mundo que
você tenta nomear como a construção de dispositivos suscetíveis de
permitirem algumas disposições ?
JLN _ Não sei. Não creio que se possa programar tais dispositivos:
creio que é o contrário que sempre se produz. Disposições suscitam
dispositivos, não o contrário, ou muito raramente. Um tipo de fé
ergue basílicas, outro, ermidas; um tipo de política constrói palácios
e um outro, quartéis. As disposições de que falo são, por outro lado,
D AVID E LBAZ
DAVID ELBAZ É ASTROFÍSICO NO SERVIÇO DE ASTROFÍSICA DO CEA DE SACLAY , RESPONSÁVEL
PELO LABORATÓRIO DE COSMOLOGIA E EVOLUÇÃO DAS GALÁXIAS . EM ESPECIAL , É O
COMENTARISTA PRINCIPAL E O CO - AUTOR DO ROTEIRO DE L ’ ASTRONOME ET L ’ INDIEN ,
DOCUMENTÁRIO DE SYLVIE BLUM E CARMEN CASTILLO
- 2002 - 52 MN -
CO - PRODUÇÃO ARTE
FRANCE / EX NIHILO .
TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI
PARIS
_
28 DE JUNHO DE 2004
O
VLT – Very Large Telescope (ou Telescópio Muito Grande) – está
situado numa altitude de 2600 m, a 130 km ao sul da cidade de
Antofagasta, no Norte do Chile, no deserto do Atacama. É constituído
de quatro telescópios de 8,20 m de diâmetro, aos quais se juntam três
aquelas que também, para nós, se fecharam ou se isolaram… Como
nomear a ou as disposições que estão por vir?… Por exemplo, seria
telescópios auxiliares móveis de 1,80 m. O VLT pertence ao ESO
(European Southern Observatory, ou Observatório Europeu Austral),
possível imaginar que uma disposição ascética, contida, até
um consórcio de 11 países europeus.
13
O VLT é um conjunto de quatro telescópios de oito metros de
bilhões de anos, o vazio vai dilatar completamente o universo e
de uma estrela, uma estrela nascida no coração de uma galáxia que
diâmetro cada um, o que representa o maior tamanho que se pode
poderia até deslocar as moléculas e os átomos. Enfim, trata-se de um
necessita, ela própria, de um universo ainda mais vasto para existir...
obter para um espelho monolítico. Ao combinar seus quatro
telescópios, o VLT torna-se o maior telescópio do mundo. Dado que
cenário possível segundo o estado de nossos conhecimentos atuais;
amanhã, certamente, haverá informações que nos permitirão
Sentimo-nos bem próximos, portanto, desse universo de dimensões
inumanas.
a luz se comporta como uma onda, é possível utilizar suas
compreendê-lo de outra forma. Por outro lado, não estamos
interferências (do mesmo modo como ondas sobre a água interferem,
convencidos de que se trate realmente de uma energia do vazio. Fala-
produzindo saliências e reentrâncias) para chegar a informações que,
de outro modo, não seriam acessíveis – nesse caso, detalhes muito
se também de uma teoria da quinta-essência, do quinto elemento.
Como uma volta às teorias de Aristóteles que recusavam a existência
precisos sobre regiões do céu. No momento atual, utiliza-se essa
técnica para olhar estrelas em fase de nascimento ou estrelas em
do vazio e faziam apelo a uma quinta-essência, o éter. Reencontramse as idéias da Antigüidade e tem-se um pouco a sensação de um anel
torno das quais orbitam planetas, o que necessita uma enorme
que se fecha: o atomismo perdendo seu poder, volta-se a uma teoria
precisão e da qual o VLT é a primeira etapa. A combinação de quatro
espelhos desse tamanho confere ao VLT uma precisão equivalente à
mais ou menos alquímica da energia do vazio. Hoje, vivemos num
mundo em que há duas ou três vezes mais energia no vazio que na
que teria um telescópio equipado com um espelho de mais de 100
metros de diâmetro. As primeiras imagens de interferometria acabam
matéria. Um total de 90% dessa matéria é chamada “matéria negra”,
porque não se conhece sua natureza e porque não irradia luz. Hoje,
de sair. Desse modo, reconciliam-se quatro pontos de vista diferentes
para compreender o universo, não basta mais um só olhar. É preciso
em um só olhar, um olhar obtido graças ao computador. Há muito
tempo já se renunciou à observação visual: como é fraca demais para
adotar um olhar com facetas multicoloridas, ou comprimentos de
ondas, e múltiplas escalas. Tomemos, por exemplo, duas galáxias que
o olho, a luz dos objetos celestes é recolhida com a ajuda de câmeras
nas quais se acumula. Um trabalho de análise informática possibilita,
parecem estar isoladas numa imagem óptica. Uma outra imagem, no
domínio das ondas rádio e que permite detectar o gás de hidrogênio,
pouco por toda parte dentro de um metauniverso, como as bolhas de
uma taça de champanha. Alguns desses universos abortariam numa
em seguida, reconstituir uma imagem adaptada ao olhar humano,
mostra um ponto de matéria que liga essas duas galáxias e descobre-
uma imagem com cores artificiais que, no entanto, parecem bem
reais. Com as interferências, o que se inventa nas telas não são mais
imagens, mas a música da luz, porque a precisão espacial é obtida
se que elas já iniciaram um processo de fusão que as levará, no
futuro, a formarem apenas uma única galáxia. Pode-se também
perceber indiretamente a presença de buracos negros, invisíveis no
fração infinitamente curta de segundo e outros funcionariam e
dariam origem a universos como o nosso. Desse modo, poderia haver,
graças à natureza temporal das ondas luminosas.
domínio óptico, mas que assinalam sua presença por uma radiação
Depois que a astronomia se tornou astrofísica, isto é, depois que se
descobriu que a física dos astros é a mesma que aquela que se
observa na Terra, graças à decomposição da luz branca em diferentes
cores, percebeu-se que se podia decodificar a mensagem da luz e
chegar a medir a distância que nos separa dos corpos celestes. Na
prática, mede-se o tempo que a luz levou para chegar até nós e não
se descansou enquanto se procuravam os objetos mais distantes, não
para cobrir a maior região possível do céu, mas para recuar o mais
longe possível no tempo. Esses grandes telescópios são um tanto
paradoxais, pois equivalem a abrir o máximo possível os olhos para
ver um ponto que, afinal de contas, é muito, muito pequeno mesmo.
Como se fosse mergulhado no céu um laser cuja extremidade fosse
tão profunda quanto é grande o tamanho do telescópio. Temos os
olhos maiores que a barriga, porque tentamos enxergar além mesmo
dos limites de nosso entendimento para ver se vamos compreender o
que for visto. E, com cada uma das quatro lentes do VLT, chega-se a
encontrar pontos de luz que contêm, sozinhos, centenas de bilhões
de estrelas... Galáxias vistas numa etapa que corresponde à sua
primeira infância, fetos de galáxias. E tudo leva a crer que esses fetos
de galáxias são equivalentes ao que devia ser nossa galáxia quando
estava em fase de nascimento. Portanto, abrem-se os olhos o máximo
possível para recuar à fase de infância, e tenta-se ver como nasceram
os grânulos de matéria que estão presentes no universo. Mas, nessa
pesquisa, somos rapidamente limitados pelo fato de que as galáxias
que estão situadas entre nós e as galáxias ainda mais distantes
formam uma parede que nos impede de ir além. A isso se acrescenta
o fato de que recebemos apenas algumas partículas de luz das
galáxias mais distantes de nós. Essas duas razões fazem com que,
antes da existência dos telescópios com diâmetro de oito metros,
fosse impossível atingir tais distâncias. Estávamos limitados a ver o
universo tal como era quando o sol nasceu, há quase cinco bilhões
de anos. O VLT permite-nos estender nosso olhar até os primeiros
momentos que sucederam ao Big Bang, ou seja, 10 bilhões de anos
antes do nascimento do sol, um momento muito próximo do
aparecimento da primeira luz, quando se saiu da noite do universo.
O céu aparece-nos como uma superfície de duas dimensões, mesmo
quando se aponta um telescópio para ele. É necessário desenvolver
todo um trabalho de imaginação e de teoria para estender os astros
num universo de três dimensões, onde as estrelas e as galáxias
assumem suas verdadeiras distâncias. Por outro lado, durante muito
tempo se pensou que o mundo era constituído por superfícies
imbricadas umas nas outras, com todas as estrelas dispostas numa
única esfera, chamada esfera das estrelas fixas. O trabalho do
astrofísico é paradoxal, porque se adota um olhar mecanizado sobre
o céu, sem ter necessidade, aliás, de reconhecer suas constelações, a
fim de ver cada vez mais longe, até o ponto em que atingimos os
limites de nosso saber e em relação ao qual se deve, verdadeiramente,
fazer um esforço para se convencer daquilo que se vê. Nosso olhar
sobre o céu depende da teoria que nos permitiu desenvolvê-lo; ele é,
pois, condicionado e, às vezes, serve apenas para validar ou não o
que havia sido previsto.
Há alguns anos, graças aos grandes telescópios, é possível detectar
estrelas que morrem a distâncias importantes. Em geral, são pares de
estrelas, porque mais da metade vive em pares. Quando estão
demasiado próximas uma da outra, produz-se um estado de fusão:
uma estrela começa a devorar a outra e, ao fazê-lo, torna-se de tal
forma maciça que acaba por explodir sob a forma de uma supernova.
Graças a essas mortes de estrelas, percebeu-se que a aceleração do
universo era cada vez mais rápida. Teve-se um choque
compreender que essa aceleração era provocada por algo que
uma energia do vazio e que a época do nascimento do sol é
em que o vazio começou a prevalecer sobre a matéria. Em
ao se
parece
aquela
alguns
de raios X, quando devoram matéria.
Isso implica a coordenação de vários instrumentos: um telescópio no
solo como o VLT, um outro telescópio no céu, a bordo de um satélite
e adaptado a raios-X para detectar a presença de buracos negros, ou
adaptado à luz infra-vermelha para atravessar os casulos de poeira
nos quais nascem as estrelas. O rigor experimental tem um preço.
Implica num lento caminhar na trilha do conhecimento e que pode
parecer distante de nossas preocupações espirituais, mas a ciência
alimenta-se dessa capacidade do homem para imaginar muito além
do que ele pode construir de forma sólida. Afinal, ela não faz senão
consolidar, verificar experimentalmente uma idéia nascida no cérebro
de alguém. E essa idéia está impregnada de nossa cultura, de nossos
mitos fundadores...
Embora não tenha o mesmo poder de consolo para a alma humana
quanto uma concepção mística, a ciência é também fonte de
sabedoria porque nos ensina a arte de viver no cotidiano em relação
com um mundo misterioso. Impõe-nos ainda um outro amor que não
aquele do conhecimento, o amor da busca de conhecimento e dessa
tensão, que nos faz viver, entre o que se sabe e o que se ignora.
O procedimento científico é uma ética da relação cotidiana com o
desconhecido. Vivido como tal, ele só pode ser fonte de tolerância em
relação ao outro com suas diferenças, quaisquer que sejam suas
crenças.
A idéia do filme L’astronome et l’indien1 era iniciar um diálogo com
os índios que vivem na região do deserto do Atacama, no norte do
Chile, fiadores de uma tradição e que vêem construir-se à sua frente
um instrumento tecnológico num local antigo e sagrado que se torna
hipermoderno. Com a ciência, são dois olhares que não podem ser
traduzidos um no outro e que não deixam alternativa senão a
aceitação mútua no respeito da coerência de cada um. Durante nosso
primeiro encontro, esses índios indicaram-me que conheciam as
razões de nossa presença em seu solo, onde a abóboda celeste é a
mais acessível do mundo, mas queriam que eu respondesse a uma
pergunta antes de aceitar o diálogo: em quê nosso procedimento
científico iria trazer algo para a humanidade. Respondi-lhes com a
ajuda de uma imagem. O olhar da ciência e o de sua tradição
representam duas visões bem distintas do mundo. O dos índios não
pode ser demonstrado cientificamente e o da ciência visa
essencialmente a compreender, sem necessariamente trazer aplicação
prática útil para os homens. Entretanto, é importante, a meu ver,
conservar cada uma em seu próprio contexto, o qual lhe dá sentido.
Do mesmo modo, cada um de nossos dois olhos vê o mundo com
uma perspectiva diferente, o que nos permite ter acesso à terceira
dimensão através de sua combinação. Se tentássemos fazer os dois
olhares se fundirem como se fossem um só, então nunca saberíamos
que o mundo possui essa terceira dimensão. Através desse diálogo e
dessa relação, é essa dimensão desconhecida que se oferece a nós.
Infelizmente, o problema que se coloca para a cultura indígena é o do
desaparecimento de sua memória, o que parece inevitável.
Entretanto, resta aos homens a possibilidade de, pela via do diálogo,
se reconciliarem consigo mesmos, com essa parte de mistério que
reside no fundo de nós.
A simples luz de um astro, quando é decodificada sob a forma de
todas as suas cores que nos informam sobre a presença de carbono,
de ferro ou de oxigênio, nos ensina que os átomos que nos
constituem nasceram no coração de uma estrela. Foi preciso um
universo inteiro para que existíssemos. Dizia-se, antigamente, que a
gente era apenas um grão de areia perdido no infinito; agora se sabe
que, para que esse grão de areia exista, são-lhe necessários silício,
carbono, oxigênio, ferro, muitos elementos que nascem no coração
14
Quando se decodificou a linguagem da luz, descobriu-se que as
estruturas do universo – das estrelas aos zilhões de galáxias –
nasceram da coagulação de estruturas menores. Recuando no tempo
e, portanto, descendo nas escalas de grandeza que progressivamente
construíram o universo que nos cerca, intervêm, no final da cadeia,
estruturas extremamente pequenas denominadas, segundo a teoria
atual, flutuações quânticas do vazio. Atingem-se os limites de nossa
imaginação, mesmo da dos astrofísicos, quando se pensa que a Via
Láctea, com seus bilhões de estrelas, teria nascido de um ponto
infinitamente pequeno.
Existem teorias que tratam do nascimento do próprio universo e,
dentre elas, a do universo como “bolhas de champanha”, de Andrei
Lindé. Segundo esta teoria, múltiplos universos-bolhas nasceriam um
alhures, universos paralelos com sua própria história e sua própria
medida do tempo – fala-se de sua flecha do tempo. Constata-se aqui
que a ciência, às vezes, supera os próprios limites da ficção científica.
Um dia, durante uma discussão, Lindé me confessou ter-se dedicado
à ciência mais por amor pelo que ela não pode explicar do que o
contrário. São os fenômenos inexplicáveis que mais o interessam,
mas a falta de referenciais nesse domínio o levou a tentar afastar os
limites da ciência, de modo que ela acabasse encontrando esses
fenômenos.
Lindé desenvolveu a idéia de que um ponto e um universo são duas
coisas que podem se encontrar. Se você imaginar um universo vazio
e nele colocar apenas um elétron, portanto, uma carga negativa, a
presença do elétron se fará sentir em todo esse universo. Se for
colocado um outro corpo, positivo desta vez, em qualquer ponto
desse universo, ele sentirá a atração do elétron. Não coloquemos esse
corpo positivo: compreende-se, então, que o elétron enche todo o
universo com sua carga. Você coloca o menor ponto possível: ele
preenche tudo. Ora, imaginemos que podemos ver esse universo de
fora – é contraditório, mas imaginemos isso – e que não temos o
sentido das grandezas; então, só veremos desse universo a carga do
elétron. Donde a equação possível entre tal elétron e o universo. O
princípio do ponto que se torna um universo abriu-lhe o caminho
para sua teoria das flutuações quânticas, segundo a qual cada uma se
tornou um universo. A idéia que consiste em fazer inchar o universo
a ponto de fazê-lo explodir e que de um ponto fechado sobre si
mesmo pode nascer um mundo não era neutra na mente de um ser
que vivia no universo fechado da antiga União Soviética. De fato,
graças a suas pesquisas, sua reputação permitiu-lhe sair de seu país
e ir para os Estados Unidos. Seu universo pessoal viveu sua própria
inflação quântica... Perguntei-me depois se essa teoria teria podido
nascer num outro contexto. Da mesma maneira, pode-se perguntar-se
se as teorias atuais refletem igualmente o contexto em que vivemos.
Que significação atribuir à mais recente descoberta de que o universo
contém mais energia no vazio do que na matéria?
As grandes tradições propõem uma concepção cíclica do tempo. A
noção de ciclo é associada à geometria do círculo, a forma perfeita
por excelência, por ser simétrica e nenhum ponto possuir uma
distância do centro diferente da distância dos outros. O quadrado é
insuportável. Como aceitar essa forma cujos lados correspondem ao
tamanho de uma unidade mas a diagonal tem um tamanho irracional,
porque, para escrever ÷2, o número de algarismos após a vírgula é
infinito. Pitágoras quase se suicidou por causa disso!
Os primeiros que falaram de uma história do mundo foram os que, ao
mesmo tempo, disseram que essa história era ligada a um Deus, que
havia uma criação. Até o fim da Idade Média, a idéia da existência de
outros universos era algo inimaginável, mas, no entanto, germinou
na mente de pensadores como, de modo particular, Giordano Bruno.
Na época, o universo era limitado ao sistema solar. Bruno havia
imaginado que havia outros sóis, que o universo era infinito e que as
estrelas eram separadas pelo vazio, uma descrição muito próxima do
que se pensa hoje. Depois que Galileu apontou sua luneta para o céu,
nosso olhar sobre o mundo ficou completamente conturbado.
Durante mais de dois mil anos, a teoria alquimista de Aristóteles
havia imperado no panteão das teorias do universo. Ora, essa teoria
anunciava que só podia existir um centro – o da Terra – dado que os
objetos mais pesados eram atraídos para baixo, o que era definido
por esse único centro. Quando Galileu descobriu outras luas em
órbita em torno de Júpiter, revelou-se a existência de pelo menos um
segundo centro no universo, desmoronando toda a teoria aristotélica.
Outras observações tomaram parte nesse desmoronamento, dentre as
quais a observação de uma supernova, feita pelo astrônomo
dinamarquês Tycho Brahé. A luz da supernova, equivalente à de uma
galáxia inteira irradiada por uma estrela no momento de sua explosão
final, proveniente de uma distância superior àquela da lua,
demonstrava que o mundo supra-lunar não era o mundo perfeito,
eterno e sem mudanças que havia sido proposto por Aristóteles. Um
mundo com múltiplos centros ou sem centro acabava de aparecer e,
com ele, a possibilidade do infinito. O que não deixou de acontecer
com Newton. Não satisfeito com supor um espaço infinito, Newton
introduziu também o infinito em suas equações matemáticas ao
descrever o movimento dos astros e as forças que se exercem sobre
eles. Newton e Leibniz introduziram, juntos, uma noção que abriu a
porta para o mundo moderno em que vivemos, um mundo que se
basta a si mesmo. Ambos eram crentes e introduziram, sem ter
consciência disso, um atributo divino em suas equações quando
definiram o cálculo diferencial, isto é, os infinitamente pequenos. O
infinitamente pequeno é, em matemática, um número que não pode
ser escrito com a ajuda de algarismos, mas que é menor que qualquer
número que se possa imaginar. Tão pequeno, que é infinitamente
pequeno. No entanto, dividindo esse infinito, Newton definiu o
movimento, a velocidade, uma distância infinitamente curta dividida
por uma duração também infinitamente curta. Um século depois,
Laplace pronunciaria sua famosa frase em resposta a Napoleão:
“Deus é uma hipóteses de que não precisei”, porque o absoluto,
representado pelo infinito, havia entrado nas equações e até havia
sido dividido nessas mesmas equações.
veremos que o potássio e o sódio fluem constantemente para dentro
e para fora de uma membrana, conforme são disparados impulsos
C ECIL B ALMOND
elétricos. Estes milhões de segundos de troca, todo o tempo, é a
marca registrada das estruturas naturais. Elas evoluem para
CECIL BALMOND INTERESSA - SE PELA EXPLORAÇÃO DA FORMA , O QUE O LEVOU A VENCER
GRANDES COMPETIÇÕES , COMO A DO VICTORIA & ALBERT MUSEUM E O IMPERIAL WAR
MUSEUM COM DANIEL LIBESKIND , O PRÉDIO DO YOKOHAMA FERRY TERMINAL COM FOREIGN
OFFICE ARCHITECTS E O PRÉDIO CCTV HEADQUARTERS EM BEIJING COM REM KOOLHAAS .
CECIL DEU AULAS EM YALE E HARVARD , DESENVOLVENDO UM PROGRAMA RADICAL SOBRE A
GERAÇÃO DA FORMA . ATUALMENTE ELE É PROFESSOR DOCENTE DE ARQUITETURA NA PENN
DESIGN . PUBLICOU NUMBER 9
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THE SEARCH FOR THE SIGMA CODE E INFORMAL ( NÚMERO
9 - A BUSCA PELO CÓDIGO SIGMA ) - 2004 – UMA MONOGRAFIA SOBRE PROJETOS SEMINAIS .
ELE É DIRETOR ASSISTENTE DA ARUP
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LONDRES
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TRADUÇÃO DE GAVIN ADAMS
LONDON
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16 DE AGOSTO DE 2004
M
estivessem. Mas então, no passado, as galáxias deviam estar mais
próximas umas das outras, a tal ponto que, numa época que remonta
inha teoria e abordagem emergiram de uma reação instintiva ao
conceito da industrialização mecânica e ao ethos da eficiência, um
subproduto do modernismo e do minimalismo. Eu rejeitei estes
conceitos categoricamente. Eu comecei a duvidar da sabedoria do
grande Plano, do grande P. Eu permiti que noções mais fluidas
fossem incorporadas, de simultaneidade e invenção. Gradualmente,
tudo isso cristalizou, no começo dos anos 90, em um processo de
pensamento: o que aconteceria se tomássemos uma condição local
como ponto de partida, uma narrativa local e um movimento local?
Estas idéias, ao se propagarem, fazem emergir a complexidade,
devido à superposição. Bem diferente de um pensamento hierárquico
linear. Eu permito que a simultaneidade adentre o discurso. O que é
local poderia ser um motivo geométrico ou uma idéia espacial - uma
notação, uma pontuação, uma tradução.
a vários bilhões de anos, deviam se tocar. Uma época em que o
universo era tão denso e tão quente que deve ter explodido sob o
Poderia
efeito dessa acumulação de energia. A detecção da marca residual
dessa época remota em que o universo tinha uma temperatura de
imediatamente a justaposições e hibridizações, devido à
superposição que ocorre ao longo de seu curso. Se estes não são
mais de mil graus foi medida depois, confirmando
indiscutivelmente, o universo tinha uma história.
impulsos distintos, eles poderiam ser a mesma idéia replicada,
invertida ou transformada, ou então algo acontece com eles, mas
Os limites do universo foram afastados em teoria. Para que a prática,
a observação, encontrasse a teoria, foi necessário esperar os
primeiros grandes telescópios. Em 1946, Edwin Hubble não só
descobriu que vivemos numa galáxia constituída de bilhões de
estrelas, mas também que havia no universo outras galáxias
semelhantes à Via Láctea. Mais ainda, Hubble observou que todas as
galáxias mais se afastavam de nós quanto mais distantes de nós
que,
O fato do universo ter uma história é uma descoberta bastante
recente, embora todas as grandes tradições possuam um mito
fundador que narra o nascimento do universo. Chegar à conclusão de
que o próprio universo possui uma história através de um
procedimento objetivo e racional é bem intrigante. O universo
também foi pequeno um dia. Depois viveu uma fase de adolescência,
uma fase adulta e amanhã, quando for velho, talvez ele seja frio, suas
estrelas apagadas e talvez o vazio prevaleça de tal forma sobre a
matéria que o mundo será “cheio de vazio”... Ou, talvez, ao
contrário, ele renasça das cinzas, visto que tudo começou um dia, há
14 bilhões de anos, a partir de uma bolha de vazio...
O astrônomo, ao alongar seu olhar com a ajuda do telescópio, afastou
para mais longe os limites do desconhecido no espaço até a época em
que o universo inteiro estava concentrado sobre si mesmo. Ao fazer
isso, afastou o último limite atrás do qual os antigos colocavam o
mundo divino até a época da origem do mundo. A dimensão
temporal substituiu, assim, a do espaço. Por outro lado, o deus da
religião é chamado de eterno e não de além-da-lua. Com a questão do
tempo, chega-se o mais perto possível do complexo faustiano do
científico. Nos dois extremos da paleta dos objetos que compõem o
mundo da física moderna, encontram-se dois seres físicos de
características paradoxais em sua relação com o tempo: a partícula
sem massa de luz – o fóton – e o objeto mais denso e maciço – o
buraco negro. O fóton, por se deslocar na velocidade última, mais
precisamente, a velocidade da luz. O buraco negro, por ser muito
denso. Segundo a teoria da relatividade restrita, o tempo se escoa
diferentemente para duas pessoas em movimento, uma em relação à
outra. Segundo a teoria da relatividade geral, o tempo se escoa
diferentemente em função da massa de um objeto. Que se esteja
“sentado” sobre um fóton ou dentro de um buraco negro, duas
posições nada confortáveis, quando se mede um tempo decorrido por
menor que seja, tal duração corresponde a um tempo longo como a
eternidade para aqueles que estão do lado de fora. Em outros termos,
o fóton e o buraco negro vivem, cada um deles, um instante eterno...
O encontro dos extremos é também o universo que teria nascido de
um ponto.
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX E M . OHANIAN .
1 Documentário de Sylvie Blum e Carmen Castillo (França, 2002 - 52mn.). Escrito em
colaboração com David Elbaz. Co-produção: ARTE França, Ex Nihilo. Apresentado no
canal ARTE, no programa “L’Aventure Humaine”, em 26/04/2003.
haver
uma
série
de
impulsos
locais,
que
levam
cada uma deles se espalha, corre e colide, justapõem-se, formam
híbridos. O que se tornou híbrido ou justaposto, pode ser visto, numa
escala maior, como uma nova condição local. Neste modo de
organização, a natureza começa estruturar-se a partir de um fluxo
quântico. Não houve nenhum grande plano que tenha formado a
molécula do DNA antes dos elétrons saltarem e procurarem conexões,
as coisas aconteceram reativamente. Se voltarmos à estrutura do
átomo, à estrutura da molécula, à estrutura do composto, à estrutura
de um ser humano, estas regras informais, estas categorizações do
local, do híbrido e do justaposto funcionam operam.
Deixemos que aconteça uma surpresa que coagule e forme um tipo
de equilíbrio. Este equilíbrio permanece como transiente, até que
uma desestabilização ocorra e outra ordem seja procurada. Assim,
meu modelo é fundamentalmente dependente do tempo. O que digo
conceitualmente como uma idéia para a organização, se aplica
também à arquitetura, de certo modo. E é também relevante às
estruturas das condições de campo como a economia, a epidemia,
modelos societários, estas coisas que são parte de um processo vivo.
Eu sempre me perguntei o porquê do fato das previsões da ONU em
relação à sociedade, às pragas, à AIDS, seja lá o que for, sempre se
tornam obsoletas dentro de um ano ou dois.
A Segunda Lei da Termodinâmica é uma idéia fatalística, em que tudo
se acaba. Claro que é verdade, se a tomamos como a lei de uma
condição fechada. E se nada de novo acontece para desestabilizar o
status quo. Mas acidentes acontecem, as idéias criativas acabam
adentrando o quadro de referência, e as conseqüências são realmente
imprevisíveis - elas seguem uma extrapolação não-linear, o que não é
uma situação confortável que se encaixe em nossas previsões
lineares. Se eu vejo que uma forma provoca algo, então traço o Plano,
o grande P. - com algumas condições -, defino um limite à sua volta,
e, dentro de um ano, o plano ainda estaria correto, se eu não deixasse
nada mais acontecer dentro da condição fechada. Mas se um único
parâmetro fosse mudado, então as previsões não se realizariam. No
momento em que eu permito à condição real do mundo adentrar a
equação, a imprevisibilidade entra em jogo e nosso Plano está
arruinado. Precisamos ajustar-nos e mudar. Os economistas sabem
disso há muito tempo. Imagine prever o mercado de ações
corretamente por um ano.
Estas idéias são relacionadas à teoria do caos e à teoria da
complexidade. Eu estou convencido de que o mundo não é simples,
que é fundamentalmente não-linear. Eu tenho uma posição diferente
de certo vanguardismo na arquitetura, eu rejeito formas biomórficas.
O que eu rejeito é uma cópia literal da natureza, mas não uma
natureza que faz evoluir formas em que esteja envolvida uma
atmosfera contínua, de perpétua mudança. O desenvolvimento de um
ovo de sapo em um lago está sujeito a certas condições. A salinidade
pode matar uma população, se a acidez for apenas fracionalmente
diferente do que é necessário, e assim, a constante troca de
informações se dá continuamente. Dentro de nossos próprios corpos,
a troca que se dá no momento em que falo, dentro das sinapses de
nosso cérebro, é fenomenal. Se estudarmos uma pequena sinapse,
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acomodar completa flexibilidade, que é uma conseqüência da menor
das adjacências e dimensões. A arquitetura não pode ser assim tão
dinamicamente móvel. É impossível porque é uma forma macro
estática. O edifício tem que ter certeza estática. Para ser interessante,
no entanto, uma peça arquitetônica tem que ter certa
improbabilidade dinâmica que nos envolva, que nos deixe intrigados.
É como o filme Seven Minutes Before : se você passa sete telas, algo
mais acontece enquanto estrutura. Quando penetramos uma boa
arquitetura, algo acontece que está além do próprio edifício.
Por exemplo, a transferência do peso da cúpula sobre a praça, em
Hagia Sophia de Istambul, é belamente realizada, a vastidão, cria
mais que literalidade. O espaço voa. Na década de 1930 houve uma
moda de arquitetura que copiava a natureza diretamente - eu sempre
desconfiei disso. Eu procuro como a natureza forma variedade, e
quais são seus princípios de organização em unidades, em múltiplos
e como estes se propagam. Eu estou mais interessado nos conceitos
estruturais inatos da natureza do que ela em sua literalidade. Meu
trabalho tem sido dirigido à idéia de que edifícios são construtos
artificiais de uma mente humana, e portanto devem ser
completamente artificiais.
A mais antiga linguagem intelectual inventada são os números. Eu
entendia os números como mônadas, como entidades, como as
mônadas de Leibniz. Eles são coisas, sem emoção, sem psicologia e
sem fisiologia. O que são? Símbolos, mas também um quantum.
Interesso-me pelas qualidades que advém de um quantum. Interessome em como o universo começou e como a idéia de unidade cresceu
a partir de processos que disparam processos semelhantes. Não é a
literalidade que me interessa, mas a maneira como a diversidade e
suas seqüências ocorrem, uma intriga real e o mistério a partir de
simples impulsos. Ao encontrar uma forma, eu quero descobrir como
usar pontos de partida artificiais para fazer com que algo aconteça,
de tal modo que os espaços nos engajem de forma diferente, e que
sejam interessantes de percorrer. Eu entendo a estrutura como
pontuação e ritmo, um condutor espacial e uma metáfora.
O desafio para mim é encontrar respostas cartesianas para as formas
que crescem e são propagadas para fora destes processos. Ao invés
de definir um limite e trabalhar “de fora para dentro”, eu estou
interessado em um início para dentro, uma interiorização que se
move para fora. Eu acho que Borromini realizou isso pela primeira
vez em arquitetura. Eu não desenho margens externas, não
estabeleço definições. Eu não tenho nada a mostrar, exceto que eu
comecei com uma força motiva, e uma série de improvisações que de
algum modo trabalham juntas para produzir um resultado e um
significado.
Daniel Libeskind convidou-me para trabalhar consigo no cenário para
São Francisco, a grande ópera de Messian. Olhamos a partitura. Eu a
vi deslizando em blocos, muito incomum. Era difícil refletir isso em
um tipo emocional de cenário. A música era abstrata, e decidimos
desenhar um cenário que nada tivesse a ver com a ópera. Os cantores
serviriam como o meio conectivo, entre uma camada abstrata e outra.
Libeskind propôs 49 cubos que giravam e moviam-se. Eu propus que
ao invés de um movimento arbitrário, uma matriz de sete por sete
números fornecesse uma estrutura para suas rotações e iluminação.
Ocorreu-me que precisávamos de um motor completamente abstrato.
Os números seriam usados para a escolha de seqüências, a
iluminação e até os movimentos dos cantores poderiam ser
abstraídos da matriz de números. Para a audiência, tudo pareceria
acontecer uma só vez, mas a premissa era que, ao longo das cinco
horas de duração da ópera, a compreensão aumentaria, de modo que
o espectador começasse a ser informado, através de um processo de
evidência, de que existia uma outra lógica oculta em ação no que
parecia primeiramente como disfuncional ou caótico ou aleatório.
Um exemplo deste processo em um trabalho meu mais recente foi o
Serpentine Gallery Pavilion, em Londres. Ninguém entendeu
exatamente como foi feito. Mas a forma foi concebida conectando
uma metade de um lado de um quadrado a um terço do comprimento
do lado adjacente e repetindo este algoritmo muitas vezes. Apenas
duas frações 1/2 --> 1/3 guiavam toda a composição. Não se trata de
matemática. Trata-se de um sistema de proporcionamento. Se
começamos com um quadrado, e formos de ponto mediano a ponto
mediano, e continuarmos este processo, obtém-se um quadrado
dentro do quadrado, um plano para um campanário. É arquitetura
clássica, um sistema fechado, um Plano. Pode-se prever a cada vez o
que vai acontecer. Mas a regra 1/2 --> 1/3 é imprevisível e tem
linhas que se cruzam no espaço. A questão era: como quebrar a
tirania do quadrado, da margem? Minha resposta foi: se você vai de
metade a um terço, e repeti-lo, você é obrigado a sair da delimitação
inicial para produzir o quadrado seguinte. Se todas estas linhas do
traçado inicial forem estendidas, um motivo arquitetônico acontece.
Isso é materializado em uma chapa de aço e então dobrada em forma
de caixa. O padrão foi coberto alternadamente com vidro e alumínio
para obter um efeito de tabuleiro de xadrez. É como um jogo de
criança, de realizar a forma, mas tudo começou com a premissa de
sair da margem inicial.
Isso também aconteceu no projeto Villa Bordeaux. Rem Koolhaas
é que não temos acesso àquilo de que temos uma imagem, e àquilo
particular, cuja origem se encontra em Aristóteles (e que suscitou
quis que eu tentasse fazer com que “a caixa voasse”. A solução foi
a que nossos sentidos nos dão acesso, esse mundo em que estamos
muitas críticas ao longo dos séculos): o lugar é um puro receptáculo.
quebrar com a configuração tradicional da mesa - os quatro suportes
simétricos debaixo de uma carga suspensa. Eu prolonguei duas das
fisicamente imersos, o mundo das substâncias, um mundo que não
pode ter representação global. Nesse mundo de contingência e de
Quanto ao “teatro”, é um verdadeiro teatro, um semi-círculo, às
vezes um círculo inteiro. No centro, encontra-se seu utilizador. Este,
colunas além das margens das arestas da caixa. Esta condição
acidente, de incerteza, preciso encontrar um instrumento universal
o sujeito, o destinatário do teatro, o “eu”, é o compartimento vazio
extrema desprendeu a massa; e a caixa voa - ela não é diretamente
que me permita orientar-me no pensamento, traçar caminhos para
que faz a máquina girar - tal configuração é válida para todos os
apoiada por baixo de sua carga.
meu uso, é uma questão de sobrevivência. É preciso fabricar-me um
“instrumento universal”. É uma construção que faz apelo a essa
“instrumentos universais”: eles são destinados ao uso de um único,
eles lhe permitem orientar-se na prática, ao sabor das circunstâncias.
Para mim isso é informal. Com informal eu faço um trocadilho em
inglês. Eu sou formal em meu método e informal na abordagem, que
é também uma provocação direta à teoria de Bataille, de L’informe.
Eu sou contra a noção romântica de beleza como caos, entropia. Para
mim, o informal é a criação de um argumento sobre uma outra forma
de buscar a síntese. Se estabelecermos delimitações rígidas,
trabalhamos dentro delas, mas se começarmos de uma posição
interior e trabalharmos na direção do exterior, a resposta é mais um
experimento, menos redutora. É a inversão do processo de criação de
forma que tem sido usada ao longo de mais de dois mil anos de
arquitetura. O método ou abordagem é mais ampla que a arquitetura,
é claro; ela pode levar a soluções em música ou em termos de luz.
Era interessante para mim quando as pessoas planejavam uma
exposição de meu trabalho sobre o informal. A mulher que
trabalhava comigo disse que ela achava uma relevância na
abordagem informal local versus a tradição formal como aquela entre
a medicina alternativa x medicina institucional. A idéia pessoal, o
local, é o indivíduo, é como você poderia levar seus próprios poderes
em conta e fazer com que algo aconteça. A mensagem é de
potencialização, habilitação. Qualquer um pode fazê-lo. Por exemplo:
aptidão particular que é o ingenium: a capacidade para inventar e
para pôr em relação sincrônica elementos heterogêneos. Essas
questões tornam-se extremamente agudas nos anos 1530 pelo retorno
Procura-se continuamente o instrumento universal, aquele de que a
bússola (então uma invenção recente) é o paradigma: o
maciço, na cultura do Renascimento, dos “tópicos”, dos sistemas de
“cosmolábio”, o “timão”, a “bússola” são, aliás, títulos de repertórios
classificações universais que permitem organizar tudo a que se tem
acesso e orientar-se. Como se orientar no pensamento? A que
de invenções. Indicam a pretensão do engenheiro de fornecer esse
instrumento que vai permitir fazer tudo: orientar-se, traçar um plano,
“instrumento” útil em todos os casos de figuras vou me fiar para me
situar e para construir meu caminho? Esse instrumento universal por
estabelecer uma ordem de batalha, desenhar um retrato, arrumar um
excelência é um sistema tópico, um sistema de lugares, de
jardim... e cozinhar ovos. A técnica é a única forma de universalidade
à qual nós, mortais, podemos ter acesso. Nisso está a diferença em
classificações, de arrumações, de gavetas dispostas metodicamente e
espacializado. Muitos especialistas da tópica, filólogos, dialéticos,
relação ao mundo medieval. É um mundo que não é dominado, que
não tem uma ordem posta pelo divino (é paradoxal numa cultura
tentaram, então, construir fisicamente esses tópicos, sob a forma, por
exemplo, de “móveis universais” ou de combinações de armários e de
essencialmente cristã, mas não nos esqueçamos de que o século é
sacolas de couro onde se pudesse, como numa “memória” externa,
depositar o material de uma história natural, por exemplo,
combinando uma trama ordenadora de categorias lógicas. Quanto
maior a capacidade do sistema tópico para integrar elementos, mais
fácil é sua utilização, mais ele é utilizável em configurações
diferentes, mais fácil é sua mobilização – portanto, é mais “portátil”.
no projeto na galeria Serpentine a regra simples 1/2 --> 1/3 permite
A partir dos anos 1530, elaboram-se tópicos universais, isto é,
a qualquer um entender a idéia e tentar outra relação, como 1/2 -->
utilizáveis em múltiplas oportunidades (como um “canivete suíço”
1/8. Isso tira o mistério de um grande gênio que já viu tudo e diz
como é que vai ser. Eu digo - o que pode ser?
para retomar, mais ou menos, uma metáfora da época) que se
chamam “teatros universais”: são sistemas de classificação que
podem “servir para tudo”. O monge florentino, que tenta classificar
O universo, o cosmos, é mais um inspiração para mim do que a
os milhares de sementes a partir da tabela dos lugares comuns da
natureza no sentido de plantas e animais. Desde que era menino eu
Suma Teológica, de São Tomás de Aquino, é um exemplo muito bom
sou fascinado pela cosmologia e li tudo sobre ela. Há algo especial
sobre o processo de evolução, as estratégias de evolução, o
disso, pois utiliza como fichário uma simples disposição tópica (o
“índice”), extraída de um livro que nada tem a ver com seu projeto.
hidrogênio formando-se em elementos como o carbono - a base da
vida e dos elementos mais elevados. Fascinam-me as soluções
propostas por Kepler, Newton e Einstein, sobre os modelos para
nosso universo. Não se trata apenas das estruturas, mas da
retroalimentação e da interação entre os diferentes elementos na
estrutura. Eu acho que a parte fundamental de uma nova
interrogação acerca do espaço é usar o princípio da retroalimentação.
Isso faz com que respostas surpreendentes aflorem a partir de inícios
desconexos.
O que deve ser bem compreendido é a indiferença de todo dispositivo
tópico em relação ao que ele organiza. O levar em conta a estrutura
como estrutura de organização, de classificação, prevalece
absolutamente sobre o conteúdo. Um sistema realmente universal
deve, justamente, ser indiferente ao que é classificado. É o contrário
do cosmograma medieval, pois este dava acesso à ordem do mundo,
revelava sua verdade, garantida pela presença divina.
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER
P ATRICIA F ALGUIÈRES
PATRICIA FALGUIÈRES , HISTORIADORA E FILÓSOFA . E PROFESSORA DE HISTÓRIA DA CULTURA
DO RENASCIMENTO NA ECOLE DES HAUTES ETUDES EN SCIENCES SOCIALES . PUBLICOU LES
CHAMBRES DES MERVEILLES , PARIS , BAYARD
- 2003 -
E NUMEROSOS ARTIGOS SOBRE A HIS -
TÓRIA DA ARTE E DAS TÉCNICAS DO RENASCIMENTO , BEM COMO SOBRE A ARTE E OS ARTIS -
Por volta da metade do século XVI, renuncia-se a revelar uma
imagem verdadeira da ordem do mundo, volta-se para o “provável”:
fabrica-se um “instrumento universal” como um sistema de medidas
técnicas. Entre a maioria de seus conceptualizadores (não todos; há,
por exemplo, uma forte corrente de cabalismo cristão), esses
instrumentos recusam qualquer dimensão metafísica. O modelo da
máquina como combinação autônoma de forças e de movimentos é,
aqui, absolutamente fundamental. Um gênero literário aparece nos
anos 1570, os “teatros de máquinas”. A segunda metade do século
XVI assiste a um extraordinário investimento coletivo na técnica e na
idéia da técnica: é ela que permite resolver, de modo prático e
específico, cada problema num mundo do qual não se tem
representação completa. Em tal contexto, um bom exemplo de
“instrumento universal” é a tábua de logaritmos inventada por
Napier bem no fim do século XVI. A ambição de totalidade não está
mais na imagem do mundo e, sim, na coerência da “máquina”, que
não é necessariamente material mas pode ser um dispositivo
conceitual. É esta virada que deve ser bem compreendida.
TAS CONTEMPORÂNEOS .
TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI
PARIS
_
30 DE AGOSTO DE 2004
J
EAN - CHRISTOPHE ROYOUX _ O que se chama theatrum mundi no
século XVI ? Será possível considerá-lo como cosmograma ?
_ Deve-se retomar o corpus aristotélico que
continua sendo a base e o substrato da cultura do século XVI. Na
compreensão do mundo dada pelo corpus aristotélico, há a divisão
absolutamente fundamental entre o mundo “supraceleste” e o mundo
“sublunar”. Não há ordem verdadeiramente inteligível senão além da
lua. Aí se pode contemplar, isto é, imaginar a mecânica celeste, os
movimentos dos planetas, perfeitamente geométricos, incorruptíveis
e eternos, dos quais se pode dar uma representação gráfica sob a
forma de afrescos, de esferas armilares, porque, justamente, não se
pode vê-los, não se tem acesso a eles, não são acessíveis a nossos
sentidos. Em contrapartida, nós, pobres seres humanos, só temos
acesso ao mundo sublunar, o mundo da geração e da corrupção, do
acidente. No mundo “sob a lua”, tudo nasce, cresce e morre. Nele, a
matéria só conhece movimentos erráticos, é o lugar das catástrofes
naturais, das erupções vulcânicas, dos terremotos, dos abortos, da
geração de animais monstruosos. É um mundo essencialmente
trágico do qual não se pode apresentar representação global. É o
mundo do acaso que supera nossa vontade de domínio. O paradoxo
PATRICIA FALGUIÈRES
Um bom “instrumento universal” deve apresentar uma combinação
infalível de seqüências encadeadas. Quando Giulio Camillo, em 1530,
propõe seu “teatro da memória” na corte de Francisco I, o sistema é
extraordinariamente complicado. Ele fabrica uma máquina de
madeira; uns dizem que se trata de um anfiteatro e outros, que era
uma espécie de tambor com várias faces que se fazia girar. A
reconstituição de Frances Yates é a mais provável: uma espécie de
fichário gigante sob a forma de anfiteatro (o “tesouro de textos” que
ele propõe “memorizar” é distribuído nas subdivisões do teatro) e
que se ativa em vários eixos: vertical, horizontal, em diagonal. Giulio
Camillo deu provas de ingenium ao conseguir encontrar princípios de
encadeamentos perfeitamente justificados (foram emprestados da
mitologia e da simbologia) de alto a baixo, da direita à esquerda e em
diagonal. O sistema é delirante, evidentemente, é uma espécie de
jogos de palavras cruzadas ou de sistema de tarôs monstruosos.
Na arte da memória, que é uma forma particular de tópica, um objeto
é um “lugar”. É necessário um certo número de objetos ou de
imagens de objetos para constituir os lugares nos quais vai ser
guardado aquilo que se quer recordar. O importante é que o lugar
supõe uma exterioridade inteiramente categorial entre o que ele é e o
que ele classifica. É onde se encontra a relação técnica dos modernos
com o mundo. Contrariamente a uma abordagem metafísica que
suporia uma relação necessária entre o continente e o conteúdo - uma
identidade de substância, pelo menos um princípio de continuidade um “lugar”, topos, locus, é exterior ao que ele contém. É um puro
receptáculo. É necessário admitir essa forma de espacialidade
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dilacerado pelas guerras de religião e de que a religião não é mais um
fator de ordem), um mundo ao qual se renuncia a dar uma
representação global: não se tem acesso à totalidade. Além do mais,
as grandes descobertas intercontinentais, as explorações
confirmariam o caráter inacessível do todo. A técnica, os dispositivos
técnicos, que supõem um arranjo “horizontal”, “laico”, das
categorias, permitem então constituir um plano de imanência. O
exercício do pensamento é concebido – na tradição do organon
aristotélico que contém a preocupação humanista do uso, da
finalidade – como a aplicação “técnica”, diagramática, das categorias
e dos conceitos. A qualidade de um raciocínio só pode ser julgada
pelo resultado obtido. Há aí uma abordagem muito técnica do
trabalho da mente. Em compensação, nos outros textos que estudo, a
palavra “cosmos” não é tão empregada assim. Neles, se está muito
longe da preocupação com o todo que traz o neoplatonismo (cujo
impacto sobre o Renascimento é preciso relativizar). O pensamento,
para os humanistas e para os filólogos do Renascimento, é sempre
orientado para a prática, para o usus. Aristóteles ainda fornece
amplamente o substrato filosófico dessa preocupação com o uso.
Os conceitos e as categorias são o equivalente do andaime que nos
possibilita construir os edifícios; portanto, têm realmente uma função
utilitária. Uma vez acabado o edifício, retira-se o andaime e a
estrutura que permitiu construí-lo desaparece. O uso prevalece sobre
a representação. A technê (de onde vem nosso termo “técnica”) é
traduzida em latim pela palavra ars: todas as artes - a de governar, a
de navegar, a de inventar máquinas, a de curar etc. – são
“habilidades dotadas de método”, são competências que pressupõem
naquele que as pratica uma reflexão sobre os princípios de sua
prática, são habilidades que enfrentam as forças contingentes do
mundo sublunar, isto é, o acidente, a possibilidade do fracasso. A
partir da metade do século XVI, há uma reflexão intensa sobre a
técnica e as técnicas. É nesse momento que os “homens da arte” –
engenheiros, escultores ou oleiros – “redigem em arte”, dotam sua
prática de uma reflexão sobre seus princípios, reivindicam um
“método”, ou seja, se põem a escrever livros. Não nos esqueçamos de
que é a esse movimento fundamental da cultura que se deve o
aparecimento da literatura artística moderna, isto é, os livros
redigidos pelos artistas: Cellini, Palissy, Vasari... Isto é capital: a
aptidão para formular seu método é que distingue uma arte de uma
simples prática “operária”.
JCR _ Seria possível considerar o nascimento dos jardins botânicos
dentro dos mesmos modelos ?
_ Sim, absolutamente. Os jardins botânicos foram concebidos para
resolver, justamente, um problema de classificação que nasceu do
confronto dos velhos corpus de plantas designadas por nomes do
vernáculo com, de um lado, as novas plantas desconhecidas que os
exploradores traziam das Índias e de outros lugares e, de outro lado,
aquelas cuja descrição, geralmente enigmática, se lia em textos
latinos e gregos. É porque se tenta organizar a coexistência de todos
esses objetos, que pertenciam a registros diferentes do saber, que se
inventam os jardins botânicos. Tem-se aí um bom exemplo da
utilidade dos sistemas tópicos. Para conceber a instituição do jardim
botânico, é preciso ser capaz da seguinte operação que é, ao mesmo
tempo, conceitual e prática: criar gêneros e espécies, pelo menos
classes, para aí localizar objetos de que não se sabe muita coisa. É
nisso que consiste a plasticidade dos sistemas tópicos: pode-se
atribuir um lugar provisório a uma coisa da qual se ignora quase
tudo. Trata-se de dar um lugar a algo que não tem lugar preciso,
identificável, justificável, na ordem do mundo. Ao contrário do que
dizem muitos historiadores, os primeiros jardins botânicos, em
Pádua, em Louvain, em Pisa, não são representações do universo,
cosmogramas; eles são sistemas tópicos, isto é, instrumentos
universais que servem para orientar num universo incerto, do qual
não se conhecem os limites nem as propriedades. Está-se muito longe
de Linné.
PF
JCR
_ Então se deveria considerar que cada forma de taxinomia, de
classificação, é um cosmograma em si mesmo, que não é uma
dos meteoritos e das flores prodigiosas, autômatos e modelos
inícios de uma nova Era Dourada. O jardim botânico poderia ser o
representação do cosmos, mas um instrumento potencial de
reduzidos de máquinas. E, simbolizando o todo, esses
“instrumentos” que fornecem a chave de leitura do quarto de
espaço para tal reconciliação do mundo.
construção do mundo como totalidade ?
maravilhas: bússolas, quadrantes, setores, esquadros de todos os
PF
_ Absolutamente. Mas ele nunca é totalizante, nunca inclui tudo.
A palavra teatro tem uma acepção lógica: é a totalidade dos casos de
uma série dada. O teatro pode ser especializado (é o caso do jardim
botânico), mas também pode aspirar a uma certa universalidade – é
o caso, por exemplo, dos móveis-cofres universais que eram
tipos etc. Um móvel-cofre universal pode também, no cerne da
coleção, representar, de forma sintética, o princípio de toda a
coleção: nele se encontra, em miniatura, o que está guardado nos
armários, nos bufetes e em outros compartimentos desse “teatro
universal” que é o quarto das maravilhas.
tabernáculos, legíveis em todas as faces, ricos do maior número
possível de compartimentos e de gavetas para se guardar o maior
número possível de objetos. Não são representações (embora sejam
ricos de imagens), mas tentativas de se dar forma à idéia de
instrumento universal, são “máquinas universais” destinadas à
educação dos príncipes. Trata-se de acumular, sob a forma mais
sintética possível, todos os “instrumentos” que o engenho humano
pode imaginar. Esses objetos não eram senão puro prestígio...
Destinavam-se a lembrar ao príncipe tudo o que está “a seu alcance”,
“sob sua mão”, aquilo com que pode contar para exercer sua arte
própria, a arte de governar. Encontravam-se, pois, nessas espécies de
pirâmides de madeira preciosa – meio tabernáculos, meio armários
“Henri II” – os instrumentos da escrita, maquetes de arquitetura, de
máquinas, de poços de mina, de tesouras e de serras em miniatura,
pequenos brinquedos etc. Tudo isso arrumado de modo a formar uma
tópica universal. É evidente que o príncipe só “utilizava”, de forma
lúdica, uma ínfima parte disso, um pouco como, em nossos dias, a
maior parte dentre nós utiliza apenas uma parte ínfima das
potencialidades
de
um
computador.
Porém,
apesar
disso,
reivindicamos uma idéia total da máquina, exigimos ter uma
representação completa de tudo o que ela pode fazer. No século XVI,
considera-se a máquina como um dispositivo do qual se deve
apresentar todas as configurações imagináveis. Daí o aparecimento
JCR
PF
_ Acaba no fim do século XVI e no início do século XVII, no
contexto da reconquista religiosa, a contra-reforma católica que não
se adapta muito a essa espécie de laicismo pragmático, a essa
É uma combinação de séries. Ele funciona pela organização
diagramática de conceitos e de categorias. Não é esse, absolutamente,
o caso de um Wunderkammer. Reunir um quarto de maravilhas é um
exercício tão aleatório quanto as oportunidades de encontrar esse ou
aquele objeto material, é um celeiro, um tesouro, uma coleção
submetida aos acasos da coleta empírica. Nada aí é previsível. Há
portanto, a priori, uma contradição lógica entre esse tipo de coleção
e a construção de um sistema tópico, o qual supõe uma predisposição
de lugares onde se poderá recolher aquilo que chega. Mas ambos os
fenômenos são contemporâneos. A metade do século XVI é obcecada
pela busca do instrumento universal e pela preocupação com o
método. O “método”, em sentido estrito, é a “via”, o “caminho” que
se deve seguir para se chegar a algum lugar.
Os Wunderkammer nasceram do encontro da vontade dos príncipes,
que queriam dar uma espécie de ancoragem simbólica à sua
soberania, e da vontade dos especialistas da tópica, da classificação.
Estas pessoas vão propor seus serviços aos príncipes para,
efetivamente, classificar seu patrimônio simbólico; entretanto,
propõem algo mais que uma simples organização – aspiram à
sistematização, ao método. E vão fabricar, com as relíquias dos
tesouros principescos, uma forma inédita de instrumento universal,
uma espécie de bússola da arte de governar, uma cartografia da
genealogia do príncipe, de suas afiliações, de seus poderes. Assim, os
quartos das maravilhas aparecem nos anos de 1560 como uma versão
particular do instrumento universal – um canivete suíço para uso da
realeza. Não é a mais satisfatória no plano conceitual: reunir uma
coleção é necessariamente um exercício empírico. A verdadeira
technè não pertence ao registro da empiria: a meio caminho entre a
teoria e a empiria, ela é uma aptidão para refletir sobre os princípios
de sua habilidade, uma aptidão para formulá-los como método. É a
aptidão para inventar mecanismos e soluções universais, a qual
indica o ingenium: o engenho está, pois, inteiramente do lado não do
colecionador, que é o receptor empírico do dispositivo, mas do lado
do dialético, que imagina o ordenamento da coleção e a concebe
como um instrumento (um “espelho”) a serviço do exercício do
poder. O Wunderkammer organiza, portanto, o confronto dos objetos
naturais e artificiais, dos objetos encontrados na natureza e das
máquinas inventadas pela arte humana. Ele confronta inventividade
natural e inventividade humana. Nele se encontrarão, então, além
as coisas reais do mundo. Mas todas as espécies de uma família de
plantas ou animais, se agrupadas, poderiam proporcionar um retorno
ao eidos. Isso significa que se o jardineiro e botanista iluminados
pudessem coletar em um leito uma família inteira de plantas, o que
fariam seria coletar o completo pensamento de Deus. Ao olhar para
epistemológica instaurada por Galileu. O fato de que a “verdadeira
cada leito, e em seguida para o jardim inteiro, poderia-se então viajar
pela mente de Deus, e conhecer a Natureza em sua completude
ciência” se distingue claramente da técnica. A “verdadeira ciência”,
para Galileu, está ligada aos números, a essas verdades incorruptíveis
e eternas que não são acessíveis aos sentidos. Com Galileu, dá-se a
expulsão do sujeito empírico, sensual, da experiência. A verdadeira
ciência se constrói contra os erros da percepção. O lugar da
matemática na nova configuração muda completamente: os técnicos
do século XVI reivindicavam uma matemática do uso e da prática,
uma matemática que eles classificavam de “mista” pelo fato de que
se aplicava a corpos sensíveis e se reconhecia uma finalidade prática:
medir, mensurar, desenhar engrenagens... Com Galileu, isso é muito
diferente. A matemática reintegra o campo da teoria pura. Não deixa
mais lugar algum para o uso nem para a evidência sensorial. Enfim,
last but not least, é a representação do espaço que muda
completamente: a idéia do lugar como receptáculo... perde a solidez
na espacialidade homogênea e infinita da nova ciência.
original.
Este otimismo cristão estava estritamente ligado a uma agenda
médica prática. A tradição médica grega de Hipócrates sugeria que as
doenças localizavam-se em lugares particulares, e que os remédios
necessários para curá-las seriam também encontrados lá. Na versão
cristã da teoria de Hipócrates, Deus havia criado o homem no Jardim
original com todos os alimentos e remédios necessários para mantêlo eternamente em boa saúde. Mas quando Adão e Eva foram
expulsos, estes remédios e doenças foram espalhados pelo mundo.
Médicos do século XVI e XVII tinham esperanças que, com a
descoberta da América, África e Ásia, todos estes remédios dispersos
pudessem ser reunidos em um só lugar, as plantas curativas do Velho
Mundo reconciliadas com aquelas do Novo Mundo. Assim, o jardim
seria não apenas um guia de contemplação espiritual, ou de êxtase
religioso, mas poderia de fato servir de base para uma nova fundação
da medicina. E, é claro, o século XVI conheceu muitas epidemias
terríveis, e assim havia um desejo real por novas drogas. Imaginava-
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX .
se que a nova praga da sífilis, em particular, como uma doença do
Novo Mundo, necessitava de remédios americanos. Então, lado a
lado com a filosofia e a religião temos este negócio prático de tentar
criar um jardim completo farmacêutico.
R ICHARD DRAYTON
RICHARD DRAYTON É PROFESSOR EM HISTÓRIA IMPERIAL E EXTRA - EUROPÉIA DESDE 1500 NA
_ Um teatro universal não tem outra existência que não a gráfica
ou conceitual.
PF
palavra latina para travesseiro - e cada um dos leitos deveria abrigar
uma família natural inteira de plantas. Mas, por que uma família de
plantas? Aqui vemos o enrosco das imaginações grega e cristã acerca
racionalidade técnica (os jesuítas vão recuperá-la em proveito de
finalidades muito restritas). Mas o fenômeno principal é a ruptura
volumes ilustrados onde o “inventor” apresenta todos os usos
possíveis de suas invenções, todas as variantes que sua imaginação
fértil pode declinar ao infinito, às vezes ao preço de efeitos
verdadeiramente burlescos, como os “abridores de latas” para
fortalezas e os “pés-de-cabra” destinados aos militares e desenhados,
com uma verve digna de Glenn Baxter, pelo engenheiro de Henri III,
Augustin Ramelli.
_ Os quartos das maravilhas seriam a continuação lógica desses
teatros universais ou se trata de algo diferente? Nesses quartos, tem-se
a impressão de que o heterogêneo e o sem classificação são a regra.
quarto é dividido em leitos chamados pulvilli (singular pulvillus), da
origem, o mundo era o eidos, a perfeita idéia da forma; mas como a
forma entrou na Matéria, estas eram imperfeitamente expressas como
_ Quando acaba tudo isso ?
de um gênero editorial novo, os “teatros de máquinas” – imensos
JCR
apenas são divididos em quatro, como os continentes, mas cada
da natureza. A filosofia grega da natureza imaginava que, em sua
fabricados em Augsburgo, perto do fim do século XVI.
Trata-se de móveis de prestígio, muito luxuosos. São obras-primas de
marcenaria, destinados a príncipes, e que funcionam um pouco como
O que temos em Leiden e Oxford são jardins botânicos que não
UNIVERSITY OF CAMBRIDGE . É AUTOR DE NATURE ’ S GOVERNMENT : SCIENCE , IMPERIAL
BRITAIN , AND THE IMPROVEMENT OF THE WORLD
- 2000 -
TRADUÇÃO DE GAVIN ADAMS
MONTPELLIER
_
24 DE AGOSTO DE 2004
J
EAN - CHRISTOPHE ROYOUX _ Como podemos pensar o jardim
botânico como cosmograma ?
RICHARD DRAYTON _ Quando pensamos nas origens do jardim
botânico europeu, devemos sempre começar com seu arquétipo
judaico-cristão: a idéia de um paraíso original onde toda a criação foi
organizada por Deus. O Jardim do Éden significou não apenas um
lugar, mas uma idéia de três momentos da história cósmica - primeiro
a Criação, depois a Dispersão, quando Adão e Eva foram expulsos do
Éden, e a Redenção, onde todos os afluentes dispersos da criação,
junto com as tribos humanas, são reunificados e reconciliados em um
só centro. Os neoplatonistas cristãos, que inventaram o jardim
botânico na Renascença européia, imaginavam-se participando deste
último gesto.
O primeiro jardim botânico emergiu em meados do século XVI em
Pádua e Pisa, na Itália, e então durante a década 1580 a 1590, surgiu
também em Leiden na Holanda, em Montpellier (distante apenas
alguns metros de onde falamos agora) na França, e em Oxford no
início do século seguinte. Nestes jardins podemos observar o impacto
convergente do simbolismo judaico-cristão, vários tipos de idéias
mágicas microcósmicas/macrocósmicas de correspondência, além da
necessidade prática dos médicos de aprender a extrair significado das
plantas curativas. Em Leiden ou Oxford, o que se tem é literalmente
uma tentativa de se recriar o jardim do Éden dentro do espaço
fechado do jardim botânico: o hortus conclusis do jardim botânico
sendo uma espécie de microcosmo de todo o mundo.
A invenção do jardim botânico ocorreu no século após a descoberta
da América. E o que é interessante é que temos estes jardins
divididos em quatro partes, para representar os quatro continentes do
mundo: a Europa, Ásia, África, e América. Eles surgem logo após a
Reforma Protestante, um período carregado de entusiasmo religioso,
tanto otimista quanto pessimista. Muitas pessoas acreditavam que o
mundo pudesse estar chegando ao fim, ou que esta época de religião
reformada, do conhecimento grego e latino redescoberto, a
descoberta de novos mundos na América e na Ásia, poderiam ser os
17
Uma terceira camada de influência tem a ver com o poder e o
Império. É interessante notar o estreito relacionamento entre o poder
real e o patronato destes jardins cosmogramas. A teoria medieval da
monarquia sugeria que os reis haviam sido colocados no mundo por
Deus para trazer paz, justiça, ordem e fartura a seu reino: é a idéia
do Defensor Pacis. Os príncipes das cidades italianas e os reis da
Europa responderam com vigor à idéia do jardim botânico como
microcosmo, já que suas soberanias eram fundadas em um reclamo
similar: o de ser representante de uma ordem que era essencialmente
de origem divina. Pessoas como o imperador Hasburgo na Áustria, e
os soberanos de todas as nações européias, eram patronos generosos
e importantes destas tentativas de criação de um mundo dentro de
um jardim, pois tais coleções poderiam fazer afirmações sobre as
origens e sentido da soberania humana. A fundação do primeiro
jardim botânico da França, em Montpellier em 1593, foi diretamente
ligada à tentativa de apresentar Henrique IV como legítimo monarca
da França, como alguém com legitimidade proto-imperial. Era
literalmente um símbolo da encarnação de uma responsabilidade
Imperial, no sentido romano do termo.
Podemos juntar este senso medieval de Império como reinado ou arte
de governar ao nosso senso moderno de Império, como um arrojo
para fora da Europa em direção ao mundo. Uma interessante via de
acesso a isso é uma figura chamada Charles L’Écluse (conhecido por
seu nome latino Clusius), que é inicialmente apoiado pelo imperador
Habsburgo. Foi Clusius que primeiro agrupou os novos mundos da
Ásia e da América, e a enxergar as plantas do mundo como um todo.
Foi Clusius que reuniu os pensamentos de Garcia d’Orta, o médico
português que publicara um livro em Goa em 1563 em que declarava
que as plantas da Índia não podiam ser contidas dentro das
categorias de Dioscorides (sobre a qual baseava-se a botânica
européia), e combinou-os com as novidades que Joseph Acosta e
Nicolas Monardes haviam descoberto nas Américas. Clusius concorda
que as plantas do Novo Mundo são fundamentalmente diferentes das
européias, e dá o passo seguinte ao argumentar que a maneira pela
qual os europeus pensam sobre suas plantas deveria portanto ser reimaginada. Esta imaginação da natureza do mundo em sua
diversidade e unidade está acontecendo ao final do século XVI sob o
patronato de pessoas como o Imperador Habsburgo e Henrique IV na
França. Os soberanos imperiais da Renascença procuraram
demonstrar sua legitimidade em parte através da reconciliação da
diversidade do mundo em seus jardins.
Uma camada adicional de sentido rodeia o jardim - a idéia de um
espaço estético onde o Homem pudesse vir a estar em comunhão com
esta dimensão da vontade divina -, que é o senso estético, é beleza,
é superfície, é cor, perfume, textura. Vemos em Clusius, por exemplo,
uma tentativa de coletar plantas que são boas não apenas para a
medicina, ou representativas de famílias, mas também aquelas que
são estranhas e diferentes ao olhar -cactos com suas cores
espinhosas, flores de pétalas brilhantes, frutas de gosto e cheiro
diferentes.
Bolsa de Valores para o Império’ [‘a great Exchange House for the
Empire’]. A Exchange House em Londres, relembremos, era naquela
época um mercado comercial onde mercadorias eram negociadas.
Banks queria que Kew fizesse para o mundo natural o que a City [o
incluir a mais rica coleção de espécimes-tipo do mundo. O trágico
paradoxo, não obstante, é que os mesmos processos imperiais que
geravam esta acumulação da variedade da Natureza em Kew, levou,
ao compasso do corte das florestas e da introdução de plantações de
do jardim: o jardim como ornamento, o jardim como espaço médico,
o jardim como espaço científico e assim por diante. Mas a idéia de
um jardim botânico contendo todas as plantas do mundo era
rapidamente reconhecida como utópica. Havia simplesmente plantas
demais no mundo.
distrito financeiro] de Londres fazia para a economia do mundo. Em
particular, ele procurou o intercâmbio de cultivos de importância
econômica entre as Índias Ocidentais (Caribe) e Orientais. Assim, a
fruta-pão e condimentos indonésios seriam trazidos às Índias
Ocidentais, e o jacarandá e o cacto Nopal com o inseto cochonilha
seriam levadas do Novo Mundo e introduzidas na Índia Britânica. Ao
valor econômico, à extinção de milhares de espécies por todo o
mundo. Kew, de certo modo, é um monumento à enorme onda de
destruição, algo como as coleções antropológicas que os europeus
formaram de culturas indígenas do globo.
No início do século XVII, as pessoas ainda esperavam coletar toda a
criação dentro do espaço fechado do jardim. Mas, em algumas
décadas, mais e mais plantas chegavam à Europa a partir do resto do
mundo em verdadeira torrente - das Índias Orientais, Java, África
mesmo tempo tentou abrir uma rota Norte-Sul de troca de plantas
ornamentais. África do Sul, Austrália, Nova Zelândia e Chile
proveram as plantas que podiam ser cultivadas a céu aberto, fora das
estufas.
RD _ No momento preparo uma história do Caribe, intitulada O
Caribe e a construção do Novo Mundo. Eu começo com a geografia e
a geologia, levando a história desde os primeiros jatos vulcânicos
Estes quatro tipos de objetivos foram reconciliados por algum tempo.
Mas eventualmente emergiram as tensões entre as diferentes idéias
Ocidental, do Caribe - as pessoas começaram a perceber que isso
seria um pouco mais difícil que haviam julgado. Havia plantas
demais, muitas das quais eram difíceis de manter vivas a bordo de
um navio ou já na Europa. Então, no lugar de plantas vivas (o hortus
vivus), observamos uma guinada em direção à preservação de
plantas em um hortus siccus (‘jardim seco’) ou herbário, onde se
guardam exemplos de plantas coladas em folhas de papel ou livros,
que podiam ser facilmente guardados e organizados.
A alternativa ao herbário como um espaço que pudesse conter o
mundo, era o jardim da filosofia. No século XVII, a classificação
sistemática das plantas do mundo amadureceu em John Ray e
Tournefort. As novas plantas que chegavam do resto do mundo, ao
compasso da expansão comercial e colonial da Europa, não poderia
ser contida nos termos das categorias científicas européias. Ray
escreve na Historia plantarum sobre as plantas da Índia e sua
estranheza: ‘Quis crederit in una provincia malabara....’, ‘Quem
poderia crer que nesta província de Malabar, que não é um grande
lugar, podem ser encontrados 300 tipos distintos de plantas?’ Da
mesma forma que Copérnico argüiu que o cosmos não podia ser
entendido através das categorias ptolemaicas da astronomia helênica,
também os botanistas argumentaram que as famílias eurocêntricas de
Dioscorides (que havia identificado apenas 500 tipos de plantas) não
poderia fazer sentido das plantas do mundo. Então vemos, ao início
do século XVIII, uma re-imaginação da flora do mundo, e é sobre isso
que se apóia o trabalho de Lineu, Adanson, e até Jussieu, e também
nossa versão moderna do Reino Vegetal.
JCR
_ E em relação aos jardins de Kew Gardens na Inglaterra ?
_ Kew surgiu após esta dramática história renascentista do jardim
botânico. O jardim de Kew começou em fins do século XVII como um
jardim particular, de propriedade de um aristocrata chamado Capel,
RD
que foi então içado à órbita da família real britânica, que vivia perto
de Richmond. Kew não foi um jardim importante até a geração
seguinte. Sua ascensão está associada à ideologia política que
Banks lançou os fundamentos de um jardim mundial que foi levado
ao seu ápice em meados do século XIX. Em 1840, Kew passou de
propriedade pessoal da Coroa a parte do Estado. Financiamentos
públicos de vulto foram mobilizados para a construção de museus e
das grandes estufas, como a Great Palm House of Kew. (Este é um dos
edifícios mais maravilhosos do mundo, um monumento à tecnologia
da Revolução Industrial. Se observarmos atentamente, é quase como
um barco virado, com sua quilha e costelas feitas de aço - e o homem
que a desenhou tinha de fato experimentado o uso de aço para tais
propósitos). Ao mesmo tempo, em meados do século XIX,
observamos que, o que eram conexões informais e soltas entre Kew e
o Império Britânico na era de Banks, foram substituídas por uma
integração direta e estreita de interesses científicos de botanistas
britânicos e o império britânico em franca expansão. Conexões
oficiais foram forjadas entre o Real Jardim Botânico em Kew e as
instâncias administrativas do Império, tais como o Colonial Office, o
India Office e governos coloniais, o que levou a um fluxo contínuo de
novo material. Tanto assim que o Diretor de Kew, ao final do século
XIX, reclamou ao governo, que perguntava por quê este pedia tanto
mais espaço para os herbários. Ao que o diretor respondeu que não
podia controlar a expansão de sua coleção de plantas porque ele não
podia controlar a expansão do Império Britânico.
O que temos então no espaço do Real Jardim Botânico de Kew é um
microcosmo daquele momento de globalização que estava sendo
construído ao redor do Império Britânico. O mundo de plantas que foi
coletado em Kew era realmente representativo das partes do mundo
ao alcance da influência britânica. Como é o caso de todas as formas
de universalismo e de todas as formas de ‘globalização’, se olharmos
muito de perto, elas são habitadas por espécies de provincianismo.
Podemos identificar versões americanas, francesas e britânicas da
globalização, cada uma delas presumindo ser o mundo como um
todo, mas que na verdade fazem a inflexão da estranheza do mundo
ao redor de sua experiência particular e local. Poderíamos chamar
descendia do Imperialismo medieval: a idéia da monarquia
Esclarecida. No século XVIII, os monarcas, príncipes e aristocratas
procuraram demonstrar sua virtude através do patronato das ciências
em geral, e dos jardins botânicos em particular. George III ascende ao
trono em 1760, e tinha pretensões de apresentar-se como uma espécie
isso da ilusão “Nós somos o Mundo” (‘We are the World’).
de monarca esclarecido ao público britânico. O ano de 1763, no
esteio da Guerra dos Sete Anos, marca também o começo da grande
era da autoconfiança imperial britânica. Foi neste período que a Índia
representar o mundo do que qualquer coisa anterior. Em 1846, a GrãBretanha foi a primeira nação no globo a essencialmente depender do
mundo para sua alimentação. É um momento muito interessante na
e o Canadá tornaram-se parte do Império, e foi também quando o
navegador James Cook lança-se ao Pacífico, trazendo a bordo Joseph
Banks. Quando Banks retornou em 1771-2, George III trouxe-o para
seu círculo, e com o tempo fez dele gerente efetivo do jardim
história da globalização, pois eles revogaram as leis que protegiam os
fazendeiros britânicos por meio de taxas de importação. O corolário
de revogação das Leis do Milho (Corn Laws) era a integração do
trabalho e mercadorias mundiais ao redor e através da Grã-Bretanha.
botânico que o rei e sua mãe construíam em Kew. Foi Banks quem
transformou Kew em um centro para as plantas do mundo.
‘As planícies da América do Norte e da Alemanha’, como escreveu o
economista W.S. Jevens, ‘são nossos celeiros. O Canadá e a Rússia
são nossas florestas madeireiras, Portugal nos supre de vinho, e a
China e Índia são nossos jardins de cultivo de chá’, e, é claro,
Nas décadas de 1770 e 1780, Banks tornou-se o centro da vida
científica e política, e conseguiu transformar o Império Britânico em
uma fundação para a coleta de plantas para o jardim de Kew. Banks
tornou-se presidente da Royal Society (que é a instituição científica
chave britânica), e mantinha estreitos laços com a Marinha Real, a
Companhia das Índias Orientais, a West India Planters, e com a
Câmara do Comércio (Board of Trade, um ancestral do Colonial
Office). Plantas começaram a chegar de todos os cantos do mundo
para o jardim do rei. Em 1772, um homem chamado Masson foi
enviado para a África do Sul para coletar, no Cabo da Boa Esperança,
plantas que pudessem ser cultivadas ao ar livre na Europa.
O que emergiu em Kew, um pouco antes do Jardin du Roi em Paris,
sob a direção de Buffon e Thouin, era o que poderíamos chamar de
um centro de coleta e comparação. Isso é essencialmente um centro
em que a acumulação de observações e de espécimes apóiam
momentos instáveis de insight comparativo e classificatório. Há uma
instabilidade inerente às categorias históricas naturais ao ponto de
ser preciso depender de uma identificação altamente artificial de
critérios particulares para a criação de categorias, e para o
mapeamento de padrões. O ‘cosmograma’ depende sempre de uma
perspectiva particular, e pode subitamente aparecer como apenas um
truque da luz.
Banks, no entanto, queria mais que uma representação científica do
mundo: ele pretendia usar seu ‘mundo em um jardim’ para mudar
este mundo. Ele expressou sua ambição em relação a Kew em
linguagem econômica: ele desejava que Kew se tornasse ‘uma grande
Não obstante, neste momento do século XIX, a Grã-Bretanha era
realmente a nação mais globalizada do mundo. Assim, podemos
argumentar que este jardim ‘Cosmograma’ chegava mais perto de
imaginava-se, todo mundo então compraria os manufaturados
britânicos. Nas décadas de 1840 e 1850 vemos a Marinha Real, junto
com mercadores britânicos, forçando os sul-americanos e africanos e
asiáticos a abrir suas economias. Assim, nesta grande era de Kew,
vemos não apenas mais e mais colônias adicionadas ao Império
Britânico, mas também temos vastas áreas do mundo como a
América Latina e a China, em que exercia-se uma dominação
informal, e como resultado, uma penetração informal do
conhecimento científico. As Guerras do Ópio, em que a Grã-Bretanha
forçou os chineses a comprar seu ópio, foram imediatamente
seguidas da chegada de coletores de plantas, e foi neste momento que
as grandes coleções de plantas chinesas em Kew e do Jardim Botânico
de Edimburgo são iniciadas. Ao mesmo tempo, Kew ajudou a
transformar as plantas do mundo em fontes de riqueza britânica.
Houve uma deliberada apropriação de capital genético do império
informal britânico para o uso de plantadores nas colônias britânicas.
A cinchona (fonte de quinino) e a borracha foram arrancadas da
América do Sul e transferidas para a Índia e o sudoeste da Ásia.
O ‘jardim cosmograma’ em Kew foi portanto mais do que meramente
a mais completa coleção das plantas do mundo. Era a encarnação
botânica do universo de relações de poder que cercavam o Império
Britânico. Seus espaços ornamentais - as Casas Tropical e Temperada,
cachos de cedros indianos e pinhos norte-americanos proporcionaram um espetáculo do mundo reconciliado em um só
lugar para o público britânico. Seus herbários e museus vieram a
18
JCR
_ Qual é sua pesquisa corrente ?
que, em algum lugar do Pacífico, fizeram surgir a Placa Caribenha.
Esta placa move-se em direção ao Leste, gerando o arco das Grandes
Antilhas, e, mais tarde, em sua franja ocidental, a conexão das
Américas através do Panamá. Então volto-me à história humana, que
é essencialmente uma questão da convergência de quatro diásporas
diferentes, quatro direções migratórias. A primeira delas é a Diáspora
Ameríndia, que não é simplesmente a história dos Arawak e dos
Carib, à qual é normalmente reduzida. Trata-se de um drama
complexo, de sete mil anos de duração, envolvendo migrações
paralelas e competitivas de diferentes partes da região do Orinoco, no
norte da América do Sul, em direção ao arquipélago. Esta Diáspora
Ameríndia então colidiu com as Diásporas Européia e Africana dos
séculos XVI, XVII e XVIII, e por último com a Asiática no século XIX.
O que vemos criado no espaço do Caribe são as primeiras sociedades
no mundo em que estes diferentes afluentes da vida cultural humana
foram reconciliadas. O Caribe foi a primeira cultura realmente global,
o primeiro espaço em que todos os ancestrais reclamam
envolvimento. O Caribe foi um cadinho onde muito da experiência
moderna emergiu pela primeira vez. Nele, as ideologias e instituições
do colonialismo europeu cristalizaram-se primeiro, e então foram
exportadas para outros lugares das Américas e do mundo em geral. O
Caribe foi o cadinho onde a toxina do racismo se precipitou primeiro,
mas também foi o primeiro lugar a gerar seu antídoto, tanto que em
seus espaços, as pessoas primeiro aprenderam a conviver com outros
de comunidades culturais radicalmente distantes e distintas.
A importante idéia da Transculturação emergiu primeiro como uma
prática, e depois como teoria, com o espaço da região. A
transculturação foi um conceito inventado pelo antropólogo Fernando
Ortiz, que procurou discordar da antropologia de Malinowsky, que
imaginava que a Europa poderia mudar o mundo sem que ela mesma
fosse transformada. Contra a aculturação de Malinowsky, Ortiz
argumentou que, em um encontro cultural, todos os participantes são
transformados. Assim, em vez de termos a cultura A (que podemos
chamar de Europa) transformando a cultura B (talvez a África) na
cultura C, Ortiz sugere que quando A colide com B, o que surge é um
sistema complexo de interações culturais entre A e B. B transforma A,
mas elementos dos dois sobrevivem inalterados como parte de uma
cultura comum. Eu não creio que tenhamos ainda, particularmente
quando pensamos na Europa, aceitado o quanto que a expansão
imperial e a Globalização significou em termos de transculturação.
Esta idéia de transculturação como tema central na história do
mundo, é o coração do livro.
Ao colocar a ‘transculturação’ à frente, não se trata de trilhar um
caminho fácil em direção a um frágil multiculturalismo. Isso envolve
um repensar radical do modo como relatamos histórias como
historiadores, e talvez repensar o que o mundo moderno realmente
significa. Em termos de lógica matemática, o que temos no Caribe
não é apenas a história de uma intersecção, mas do que está fora
dessa intersecção, e que preserva sua separação mesmo no espaço da
intersecção. As coisas não se derretem em uma só mistura
indeterminada; os personagens ancestrais ascendem e caem frente a
cada geração. Existe um processo incompleto de assimilação, de
catálise, de ruptura e de integração, e é isso que imprime dinamismo
ao processo: o fato de que há sempre uma parte subordinada da
interação que a cada novo momento pode encontrar seu caminho à
frente do palco. A presunção no pensamento judaico-cristão é que
existe algo chamado conversão, que demanda uma escolha do tipo
um-ou-outro, que demanda uma jornada de mão única em direção ao
bem, ou ao moderno. Pois então, no pensamento filosófico e histórico
ocidental, talvez seja difícil pensar sobre formas plurais de lealdade
cultural, e sobre a possibilidade e sentido da reversão da ‘conversão’,
de acordos temporários sendo renegociados, de tradições ancestrais
re-emergindo. A história do Caribe, em que todas as culturas do
mundo são levadas a uma crise e a momentos de integração, talvez
nos ajude a pensar mais dinamicamente sobre transformação e
agência históricas. O ponto não é substituir um eurocentrismo falido
por um ‘caribocentrismo’, mas sim repensar as narrativas da
modernização, com suas histórias simplistas de como o passado
necessariamente fez o presente.
Você havia perguntado antes sobre a ligação entre o trabalho sobre
Kew e minha nova pesquisa. As duas refletem minha experiência
pessoal. Eu nasci no Caribe, e meu interesse sobre imperialismo e
sobre aquelas formas de ciência que traficaram com o colonialismo e
o imperialismo, foi desenhado precisamente pelos mesmos tipos de
interesses filosóficos e intelectuais que estão desenhando este projeto
sobre o Caribe.
JCR
_ Isso era bem claro a respeito das plantas, mas o que aconteceu
desgasta. Em termos gerais, a biomassa se conserva, mas não é
ilimitada. Pode ser alterada em suas transformações e o homem é
responsável por essa questão.
no processo cultural da transculturação ?
RD
_ Ocorre uma espécie de submersão das tradições subordinadas
Porque, a partir do momento em que se considera o planeta como um
no momento do encontro, de modo que somente uma ou outra
tradição é visível. Quando as condições históricas mudam e as
relações de poder são reequilibradas, outras tradições alcançam o
topo. Eu suponho que uma das coisas para se ter em mente aqui é
que hibridismo é interessante, pois ele representa uma maneira de
entender uma dinâmica de poder e de criar espaços para
possibilidades culturais alternativas, que jazem sob a realidade
cultural dominante. De certo modo, ela nos leva em direção a uma
forma quase política de prática onde podemos procurar - em termos
de nossa própria função intelectual e em termos de nossa função
social - criar espaço para as tradições subordinadas que operam
dentro da cidade global, e dentro de qualquer simulacro do
cosmograma.
Em qualquer tentativa de criar um modelo universal existe uma
variedade de modos de subordinação que estão em jogo. Atentar para
o hibridismo e a diversidade tem que significar algo mais que
simplesmente falar sobre um tipo de feira multicultural. Eu me
interesso muito em realocar o significado do que eu penso serem as
tradições subordinadas das Antilhas. Uma delas é a realidade
geográfica, que recebe muito pouca atenção. Eu me interesso em
trazer novamente à superfície este tipo de contexto físico estrutural
que está moldando este espaço como um espaço de encontro e um
espaço de diferença.
A privilegiada ‘narrativa-mestra’ da história caribenha teve duas
versões. Há a versão anterior a 1960, que é essencialmente a história
do heróico descobridor e colonizador europeu que trouxe a
civilização para o novo mundo. E existe a história pós-colonial do
Caribe como um teatro em que a história de escravidão e do
colonialismo é transformada simplesmente em um prelúdio para a
política nacionalista contemporânea. Ambas as histórias podem ser
desestabilizadas se atentarmos mais ao significado da história
lugar fechado, um lugar cercado para sempre, designa-se o homem,
enquanto único ser consciente, como único responsável pelo resto
G ILLES C LÉMENT
dos seres vivos. O resto dos seres vivos faz o que tem de fazer, mas
não sabe que o faz. Nós, porém, conhecemos os mecanismos do ser
GILLES CLÉMENT É PAISAGISTA , PROFESSOR NA ESCOLA NACIONAL SUPERIOR DE PAISAGEM DE
vivo, sabemos que nossos gestos se fazem em detrimento de um
sistema qualitativo, que destroem uma porção de coisas – e que, no
VERSALHES EM 1943 , FUNDADOR DA AGÊNCIA ACANTHE EM 1985 . É TAMBÉM O AUTOR DA
- PARIS XV E - E O CURADOR DA EXPOSIÇÃO JARDIN
- 1999-2000 - DENTRE SUAS OBRAS , DESTACAM - SE LE
ET TONKA , PARIS , 1991 E MANIFESTE DU TIERS - PAYSAGE ,
CONCEPÇÃO DO PARQUE ANDRÉ CITROËN
PLANÉTAIRE , LA VILLETTE , PARIS
JARDIN EN MOUVEMENT , SENS
SUJET - OBJET , PARIS
- 2004 -
PARIS
_
28 DE JUNHO DE 2004
O
JARDIM PLANETÁRIO
Quando era jovem, interessava-me pela diversidade que existia no
lado de fora do espaço regulado do jardim tradicional, no lado de fora
da cerca. Funcionava sem os cuidados de ninguém, mas eu não tinha
as chaves para compreender isso. Mais tarde, durante meus estudos,
tive a explicação científica do que havia pressentido: as coisas são
ligadas entre si, uma forma de complicação que o jardim tendia a
esconder. O jardim subtrai, elimina, oferece formas simples de leitura
e geometrias cômodas. Na natureza, eu via complexidade. Um lagarto
que caça uma mosca cria um vínculo de predação, mas a própria
mosca está ligada à planta, sua larva come vegetal e, depois, um
pássaro vem comê-la – e, muito depressa, isso se torna extremamente
complicado.
A ecologia científica esclareceu-me sobre o que era apenas um
dentro das formas de vida ameríndias. O fato de que não há
comunidades significativas de pessoas que hoje chamam a si próprias
Mais tarde, graças à minha própria experiência de jardineiro, comecei
a refletir, num contexto mais amplo, sobre essa noção de jardim. Meu
de ameríndias não significa que esta presença pré-colombiana não
possua uma força civilizatória penetrante.
jardim era, de um lado, um catálogo de elementos planetários
longínquos, aqui reunidos pela mistura planetária; mas também, pela
Eu estou tentando sugerir que o que temos neste espaço alocado,
alienado e separado das Antilhas, é um lugar que não é mais especial
que nenhum outro no mundo, onde algo chamado de lar foi criado
por pessoas que lá viviam. As várias novas tradições que entraram
neste espaço não apagavam simplesmente o que acontecera antes e
construíam sobre as ruínas, mas sim existiram dentro de uma
dinâmica comunhão com estas tradições ancestrais anteriores e
dentro deste espaço de encontro europeu, africano e asiático. Todas
as opções políticas férteis para as Antilhas repousam sobre o manter
aberta esta visão de comunidade, de diversidade, de multiplicidade
compreendida não como uma caldeirão onde tudo é assimilado e
dissolvido, mas onde há uma complicada conversação orquestral em
curso. Temos razões contemporâneas e históricas para atentar para as
vozes que têm ficado em segundo plano e em silêncio.
própria presença do jardineiro, era algo diferente de um pedaço de
natureza funcionando sozinho.
_ Para o bem e para o mal, o Caribe está plenamente implicado
nas cidades globais. Estas comunidades eram proto-cidades globais
em si. Estas eram as primeiras comunidades no mundo, a partir do
fim do século XVII e início do XVIII, em que observamos
características da cidade global. Lá temos populações, por volta de
1680, que dependiam da importação para sua subsistência, que
dependiam de mercados de longa distância para seus produtos de
exportação para sua sobrevivência, onde encontramos trabalhadores
alienados de suas ferramentas, densidades populacionais de
duzentas, trezentas ou quatrocentas pessoas por quilometro
quadrado, onde as populações eram extremamente diversificadas em
termos de sua origem geográfica, vivendo em convergência um com
o outro e funcionando através de dialetos e falas crioulas. É possível
argumentar, de fato, que a sociedade industrial tem seus começos
nestes espaços caribenhos, já que é na produção de açúcar que
observamos primeiro a integração da produção fabril de capital
intensivo com grandes unidades de produção. Estes espaços é que
sempre foram modernos, antes que grande parte da Europa o fosse.
Eram ilhas, mas elas sempre foram ligadas, nestes séculos XVII e
XVIII em diante, a Amsterdã, Londres, Nantes, Bordeaux, e Bristol, e
através destas com Hamburgo, Lubeck e a Europa Central. Temos
uma espécie de economia de comércio global, uma cidade global
sendo criada ao longo destas linhas, afluentes, e redes de troca. A
cidade global, portanto, como um espaço específico parece-me ser
sempre suplementada por, se não desestabilizada, por estas conexões
globais que são inerentemente deslocalizadas.
RD
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER
JCR
_ Então esse jardim planetário é finito ?
_ Pode-se pensar que sim. E as tentativas para escapar disso são
interessantes: não se vai a Marte a troco de nada! Vai-se a Marte
porque se trata de escalas e que, talvez, em um dado momento, será
necessário deixar a Terra, que não será mais suportável.
GC
pressentimento. Na época, quando nos falavam dos mecanismos do
ecossistema, falavam de nicho ecológico, de biótopo, não de jardim.
funcionam ou poderiam funcionar ?
se tomou a decisão de se suicidar, de condenar a espécie humana
num sistema de predação extrema. É uma decisão interessante que
não é formulada: ela é consciente para alguns, inconsciente para
outros, mas é partilhada: todos consentem em morrer.
TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI
Ameríndia e às maneiras como estas tradições de europeus e
africanos foram postas em contato uma com a outra, e incluídas
JCR _ Você acha que é possível encontrar idéias de práticas que sejam
úteis reter, para melhor compreensão de como as Cidades Globais
final, nos destruímos a nós mesmos. Sabe-se com certeza, com um
requinte de detalhes científicos tal, que isso só pode querer dizer que
Foi no meu terreno que compreendi isso. Ali, vi o que significava a
diversidade presente, considerada em si mesma, sem a destruir, e
comecei a orientar em seu proveito as fantásticas energias locais.
Tomei a decisão de não fazer como então se fazia, isto é, ir
sistematicamente contra, mas de fazer o máximo possível com. Em
todos os jardins, incessantemente se é contra alguma coisa que está
acontecendo: corta-se, poda-se, põe-se veneno, rega-se quando está
seco, drena-se quando está muito úmido: não se aceita a situação.
Gasta-se, então, uma energia contrária fabulosa, está-se na labuta, na
dor agradável. Eu não queria fazer um trabalho que pudesse tornar
detestável algo tão harmonioso e agradável. O jardim em movimento
é a teorização de uma prática que consiste em seguir o deslocamento
físico das espécies no terreno. Percebi que uma das maneiras de não
ir contra era acompanhar a peregrinação. Isso induz um modo de
jardinagem absolutamente novo, revolucionário, poderiam dizer. O
desenho do jardim acima do terreno torna-se impossível, desenha-se
o jardim diretamente no terreno. É o jardineiro que se torna o
conceptualizador conceitualizador do jardim, coisa a que não estava
acostumado.
Quando chega a esse espaço uma coisinha de nada que vem de longe,
uma planta exótica, será que se deve lutar contra porque é a planta
exógena que vem destruir a situação inicial? Minha tendência foi
dizer: há aí uma boa intenção e vamos conservá-la! Evidentemente,
é necessário um princípio de gestão: quando há invasões, eu as
regulo um pouquinho, e é isso que faz com que ele seja um jardim,
embora seja um jardim que funciona bastante por sua própria conta.
Tudo está na demografia: é um problema fundamental de que nunca
se ouve falar de forma realmente séria. O Plano Mansholt, o plano
crescimento zero, foi tratado com desprezo; antinômico demais em
relação à vida, contrário demais à dinâmica biológica, porque todo
ser tem por objetivo perpetuar-se tornando-se mais numeroso. Mas a
vida em sua globalidade não funciona exatamente assim; ela evolui
transformando-se e tornando-se mais complexa, o que não quer dizer
aumentando quantitativamente. Porém, não sabemos fazer isso, o
que faz com que evoluamos transformando-nos muito pouco e
multiplicando-nos muito. É um erro biológico absoluto. As plantas e
os animais têm reguladores que os punem imediatamente e os
recolocam num circuito muito mais viável. É muito raro haver
invasões. E nós somos o grande invasor.
A opção do jardim planetário é uma alternativa ao desaparecimento
da vida humana na Terra. Porque o jardineiro não pode matar a vida
da qual depende e todos os seus gestos são orientados para a
conservação da vida. Ele é verdadeiramente o consumidor consciente
que organiza o espaço. Isto é, não vai utilizar produtos que destruam
a qualidade do solo, do ar e da água – os principais substratos; não
vai utilizar os produtos que vão matar os animais, seus aliados, nem,
evidentemente, as plantas (eventualmente parasitas, bastante
simbiônticos), seres com os quais é preciso viver. Ele vai fazer de
modo que toda essa diversidade coexista. O jardineiro é o gestor do
jardim planetário. E eu, em minha utopia, imagino que o jardineiro é
a população humana em sua totalidade. É necessário propor esse
sonho para que o planeta dure – pois um jardim dura! Nele, as coisas
se reciclam, não se perdem, a energia é recuperada, as qualidades são
mantidas. Quando se faz um jardim biológico, como se diz hoje, fazse um jardim que mantém a vida – senão se faz um jardim letal, que
mata a vida. É isso que se vê com mais freqüência: jardineiros como
militares armados – eles usam venenos violentos... Ataca-se a
natureza para conservar uma certa idéia da limpeza, uma estética
gelada que nada tem a ver com a vida que corresponde a um
esquema cultural do que é necessário ter em seu meio ambiente a fim
de, por assim dizer, estar bem. É dramático. Culturalmente, fomos
atingidos, perdemos nossos referenciais. Se você compreende que o
fato de jogar um copo de água sanitária na pia do banheiro tem uma
incidência sobre o que se passa no esgoto, nos rios e nos oceanos,
então, evidentemente, você muda de atitude para participar da
manutenção da qualidade do “motor”, o que permite a vida.
Faço a apologia do jardim; portanto, do jardineiro; portanto, do
homem amigo da natureza. Eu gostaria que o homem compreendesse
que ele se ameaça sozinho. E que o jardim mais elementar traz o
indivíduo para mais perto das questões de bom senso, de
simplicidade e de serenidade. Que ele ensina o que dizem algumas
filosofias, a saber, que o fim não tem importância. O que conta é o
fato de estar nessa ação.
Outros parâmetros importantes levaram-me a propor a idéia de
jardim planetário: o fato de que, quando viajo, encontro por toda
parte as marcas dessa mistura planetária; o fato de que – e o homem
acelera o fenômeno – há hoje plantas ou animais que se encontram e
que não foram feitos para se encontrar. Isso coloca os problemas
ecológicos que são conhecidos, mas, enfim, possibilita a existência
dos híbridos, de seres novos, de configurações novas, de paisagens
novas. Pois isso é o que já acontece no jardim, do lado de dentro da
cerca.
JCR _ Você faz a apologia da diversidade. Por que se deveria ser um
admirador da diversidade ?
O último ponto importante foi a consciência da “finitude ecológica”,
um aporte científico crucial do século XX. Os cientistas da ecologia
descobrem e lançam: estamos numa situação definida, há uma
finitude, os seres, a biomassa constituem um sistema finito. O jardim
planetário – nova cerca – se desenha nos limites da biosfera. Porque,
é evidente, a vida não ultrapassa esses limites. Então, eis-nos em um
novo jardim que conserva sua antiga definição de espaço cercado.
Esse jardim se mantém por si mesmo e também se transforma, se
comportamento, devido a uma configuração diferente, uma
justaposição de seres que se organizaram de outro modo no espaço.
GC
_ A diversidade não é a neurose da acumulação, é o
deslumbramento da novidade constante. A diversidade não está
apenas nas diferenças morfológicas das espécies, está na
multiplicidade dos arranjos e dos comportamentos. É um dos
ensinamentos do jardim: há plantas e animais que não se comportam
da mesma maneira de um ano para o outro. Não só uma figura nova
e um ser novo participam da diversidade, mas também um novo
_ Mas será necessário recusar a diversidade que vem da
intervenção humana ?
JCR
_ Ao contrário, pode-se criar inteiramente uma diversidade: é o
jardim! O jardim é o único território de encontro entre o homem e a
natureza em que o sonho (a utopia) é permitido. Há as reservas
GC
... /... segue na página 22
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20
SEVEN MINUTES BEFORE, 2004
7
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C O U R T E S Y M E L I K O H A N I A N /G A L E R I E C H A N T A L C R O U S E L
COLLECTION FNAC, PARIS
VIEW AT SAO PAULO BIENNAL
21
-
PHOTO /EDOUARD FRAIPONT
naturais onde não se pode fazer nada, há as cidades onde a natureza
não existe... Essa utopia só pode se realizar no jardim: há jardins com
árvores kitsch, nas quais loucos enxertaram três flores, cinco frutos –
é genial! Que isso seja viável ou não tem pouca importância. É essa
espécie de amizade, de conivência com os seres de natureza que
fazem com que o homem tenha um lugar nele. Ele é “na” natureza.
Porque o homem não seria um ser biológico! Seu espírito é,
provavelmente, o produto de um sistema biológico. Aquilo que é
chamado de artifício poderia ser olhado como fato natural.
Por que persistir em colocar a natureza de um lado e o homem de
outro? A expressão meio ambiente, que é recente, diz também isto:
ao lado, nos arredores. Mas isso é perigoso porque significa,
obrigatoriamente, nos excluir, enquanto seres humanos, do conjunto
da natureza.
_ Então, a destruição da natureza é também algo que se insere no
fato biológico ?
JCR
GC _ É claro que sim, mas isso aparece como uma aberração do fato
biológico, um câncer. Uma cidade pode ser olhada como uma
alteração da pele da terra. Mas nem todas as cidades – não os ksours,
do sul do Marrocos, que são de terra, portanto solúveis e, portanto,
menos perigosos para a pele da terra.
_ Haverá uma lógica do jardim planetário em ir se expatriar fora
da terra, colonizar os planetas ?
JCR
GC _ O que é nefasto para mim é a alteração do motor; não é propagar
a vida, é suprimi-la. Portanto, se a vida é propagada de modo
artificial, se o OGM é feito – não para o comércio, mas visando a
diversificar ou a melhorar as condições da vida –, então não sou
filosoficamente contra. Eu, que sou meio parente de um mundo
ecologista, tenho algumas dificuldades para fazer passar essa idéia –
e, de modo algum, se está de acordo a respeito desses pontos. O que
é perigoso é suprimir as possibilidades de funcionamento do motor
da vida que funciona graças à qualidade dos substratos. Se os
substratos forem atingidos, então se atinge a própria vida: há
desaparecimentos irreversíveis de espécies, há poluições
irreversíveis...
À medida que ocorrem os movimentos do planeta, sua respiração, o
deslocamento dos continentes, os organismos (dos quais fazemos
parte) se reajustam, encontram soluções. Em relação aos grandes
incêndios ou aos ciclones, a natureza encontrou soluções. Na ilha
Maurício, uma árvore floresce somente após um ciclone: sua
perenidade no tempo está condicionada à existência dos ciclones,
assim como outras estão condicionadas ao fogo. Isso é muito
perturbador, mostra que a vida tem ressaltos, maneiras de responder
às pressões do meio.
conservação de si mesmo: é uma prática de si. Fale-nos dessa ética
da jardinagem.
Isso é mais difícil, estou muito envolvido... O jardineiro é um filósofo
no sentido de que é um sábio pragmático obrigado à observação do
ser vivo, mas seu modo de ação é de tal forma fino e complicado que
ele tem também algo do mágico, do xamã. O preceito essencial é
fazer “o máximo possível com e o mínimo possível contra”. No fato
de observar para compreender, há uma atitude de verdadeira
sabedoria: atitude geral que consiste em fazer economias, economias
de tempo através do aumento do conhecimento. Ir rumo ao nãotrabalho, aprender o não-fazer como se aprende o fazer seria uma
coisa importante, mas difícil de obter. Não estamos nesse
mecanismo, pelo contrário: nós nos especializamos para ser o mais
performático. Estamos na acumulação e, por essa razão, na
acumulação do dejeto. Sufocamos sob nossos dejetos. Seria
necessário subvalorizar o trabalho, deslocar os valores. Cada cultura
tem essa noção de limiar vazio, depurado, como a do nantai, no
Japão, ou a dos Marae sagrados. Se o paraíso é um jardim, é porque
nele se passa essa questão de não trabalho laborioso. A questão da
felicidade, bem como a da liberdade, também se passam no jardim.
Uma verdadeira política em matéria de jardim deveria imaginar uma
parte de território na qual não se decide nada. O que chamo de A
terceira paisagem. Pode ser um fragmento indeterminado do jardim
planetário, o lugar de acolhida máxima da diversidade. Na gestão
territorial, torna-se urgente, para mim, haver decisões sobre o nãofazer. As terras não cultivadas, embora respondam a estratégias
estritamente econômicas, têm, entretanto, muito boas conseqüências.
São praias de invenção em que a natureza funciona por si mesma e
para si mesma. No entanto, associar paisagem e patrimônio é a pior
coisa. É nisso que os integrantes do Partido Verde não
compreenderam o que era a ecologia. Uma visão conservadora em
matéria ecológica é aberrante, é necessário evoluir. A estabilidade é
terrivelmente exigente. É preciso lutar continuamente para
permanecer estável, é a fabricação do inferno. A natureza ensina-nos
a idéia do fluxo. Se alguém quiser ter a certeza de se afogar, a única
coisa a fazer é nadar contra a corrente. A ecologia é um elogio do
movimento; um movimento que evolui por si mesmo, que não tem
fim nem finalidade, no qual somos envolvidos e do qual somos partes
interessadas.
Um jardim bem sucedido é uma visão do universo: um cosmograma.
Os jardins são cosmogramas; a paisagem é um palimpsesto, a história
de uma superposição. O jardim é uma obra única, a expressão
acabada, numa determinada época, da posição do homem em relação
à natureza. Se não fosse um cosmograma, então o jardim não
passaria de um arranjo ornamental.
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX .
O planeta teve fases de quase extinção da vida, momentos de grande
pobreza e sabe-se que, hoje, estamos num pico de diversidade porque
há muitíssimo tempo não houve imensos cataclismos, porque o clima
é bastante constante há vários milhares de anos e também porque a
fragmentação planetária é muito acentuada. Não estamos numa
situação de pangéia, isto é, de continente único mas, antes, de
multiplicidade que continua a derivar. Porém, um dia tudo isso
acabará mudando: já houve quatro ou cinco pangéias ( continentes
únicos) na história do planeta. Então, por que não haver mais uma?
Toda vez que a gente se encontra numa situação de pangéia, há uma
diminuição do número de espécies, ao passo que há um aumento
toda vez que há uma fragmentação e criação de isolados. Atualmente,
o fato de que o homem remexa o planeta como numa grande lavadora
e faça com que seres se encontrem como se estivessem no mesmo
continente, recria as condições virtuais da pangéia. As espécies
entram, então, em concorrência: algumas desaparecem e outras
resistem. O verdadeiro perigo é a redução de qualidade das condições
da vida, o fato de que a água, o ar, a terra não sejam mais vitais
biologicamente e, sim, se transformem em venenos.
E DOUARDO V IVEIROS
DE
C ASTRO
EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO , ANTROPÓLOGO , PROFESSOR NO MUSEU NACIONAL DO RIO DE
JANEIRO DESDE 1978 . REALIZOU SUAS PESQUISAS DE CAMPO ENTRE OS YAWALAPÍTI , OS
KULINA E OS ARAWETÉ , NA AMAZÔNIA BRASILEIRA . ENTRE SUAS PUBLICAÇÕES , DESTACAM SE FROM THE ENEMY ’ S POINT OF VIEW
SOCIETY
-
CHICAGO , 1992
-
:
HUMANITY AND DIVINITY IN AN AMAZONIAN
E A INCONSTÂNCIA DA ALMA SELVAGEM
SÃO PAULO , 2002 .
TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI
RIO DE JANEIRO
JCR
-
_
08 DE AGOSTO DE 2004
_ Será que ainda tem sentido falar de jardim quando ele se situa
na escala do planeta ?
GC _ Claro que sim, pois o jardineiro é que faz o jardim. Um jardim
não é o que se pode ver nas exposições de jardins, onde só há objetos
inanimados e algumas plantas dispostas com arte. Não, o jardim
envolve cotidianamente o jardineiro.
É muito importante compreender que não há escala. Não há jardins
pequenos: há jardinagem, há o ato de jardinar. Isso pode ser feito
num vaso ou numa área de 5 milhões de hectares. Mas a questão do
jardim planetário se coloca em diversos níveis, o da ação local bem
como o da decisão política. Para mim, Jaime Lerner – que fez sua
cidade, Curitiba, no Brasil, passar de 300 mil habitantes a 3 milhões
em alguns anos – é um jardineiro planetário, porque soube gerenciar
a questão política da inflação da cidade organizando-a
ecologicamente. Exatamente como aquele que, no outro lado da
questão, se encontra com o ancinho nas mãos. Este tem, aliás, a
chance de resolver algo que nenhuma outra ação pode resolver de
modo semelhante.
A vantagem dos etnólogos em relação, por exemplo, aos filósofos,
é que, quando se colocam uma questão, eles podem sempre
perguntar às pessoas [que eles estudam] o que pensam a respeito.
Para os filósofos de modo geral, é importante, ao contrário, que eles
mesmos encontrem a resposta. Os etnólogos não podem colocar suas
palavras na boca dos outros. E a Antropologia se coloca algumas
questões que não são exclusivamente antropológicas mas, de fato,
metafísicas. Questões fundadoras de nosso modo de ser, de nossa
sensibilidade cultural ocidental, como a das relações entre o que é o
próprio homem e o que é, ao contrário, uma propriedade do existente
em geral: a famosa questão da relação entre a natureza e a cultura. A
oposição natureza/cultura é uma maneira, para a Antropologia, de
colocar a questão das diferenças entre os humanos e os não-humanos
e, a partir disso, ver todos os tipos de coisas. Diante dessa oposição,
a Antropologia sempre tropeça em paradoxos e impasses. A
Antropologia sabe muito bem que a natureza faz parte da cultura,
Finalmente, a idéia do jardim planetário é uma valorização do ato de
isto é, que cada cultura tem a natureza que merece, que soube
definir; mas, ao mesmo tempo, precisa pôr essa cultura, da qual a
jardinar não só como conservação da natureza, mas também como
natureza é apenas um aspecto, em algum lugar. Então, é obrigada a
22
reinventar uma outra natureza que esteja «acima», que possa conter,
ao mesmo tempo, a cultura e a natureza dessa cultura e assim por
diante, ad infinitum. A esse respeito, sempre se está ameaçado pela
regressão infinita, um pecado mortal aos olhos dos filósofos. Esse
tipo de impasses, esse tipo de aporias cria a fissura epistemológica
mais tenaz entre os relativistas – isto é, os que pensam que cada
cultura é um mundo em si – e os universalistas – isto é, os que
pensam que cada cultura é apenas uma emanação de uma natureza
humana universal que, ela própria, faz parte da natureza sem
adjetivos. Os relativistas pensam que cada cultura define sua
natureza de uma forma incomensurável, umas em relação às outras;
os universalistas, por sua vez, pensam que as culturas são,
justamente, aquilo que precisa ser comparado pelo viés dessa
natureza comum. É um diálogo de surdos, porque essas pessoas (os
relativistas e os universalistas) não têm, a meu ver, o mesmo conceito
de natureza nem o mesmo conceito de cultura.
Minha idéia, enquanto etnólogo, é tentar responder a tal questão não
recorrendo a essa ou àquela corrente filosófica, a essa ou àquela
forma de definir a Antropologia [tanto a Antropologia quanto a
natureza e a cultura], mas perguntando aos indígenas particularmente aos índios da Amazônia, que estudo - o que pensam
a respeito do assunto. Ao invés de utilizá-los para responder às
questões que nos colocamos a respeito da oposição natureza/cultura,
isto é, a questão (bem específica) do universal e do particular, tratase, ao contrário, de ver como a colocariam se tivessem que se colocar
tal questão. Pode-se imaginar que essa oposição – que de modo
algum é arbitrária quando se pensa, por exemplo, no fato de que
Lévi-Strauss construiu sua antropologia em torno da oposição
natureza/cultura, admitindo a possibilidade de encontrá-la na
mitologia dos ameríndios – não é completamente estranha, senão
quanto à forma, pelo menos quanto ao conteúdo, ao pensamento
daquelas pessoas. Lévi-Strauss teve uma intuição certa da
centralidade desse tipo de questões para o pensamento ameríndio.
Penso que ele estava no caminho correto, a não ser pelo fato de sua
resposta se parecer mais com a de um filósofo europeu do século
XVIII do que com a resposta que um índio daria. Tudo o que faço é
tentar não responder por, nem no lugar de, mas, sim, diante dos
índios, pensando nos índios. Evidentemente, é uma resposta
hipotética, uma experiência de pensamento, é uma «metafísica
experimental», como definiria Bruno Latour. E uma das
particularidades desse pensamento dos índios é, exatamente, a de
que só existe um ponto de vista, aquele de todo ser consciente. Todo
sujeito vê o mundo da mesma maneira: esta é a intuição que me
guiou. Inversamente, a coisa mais difundida no mundo atual é pensar
que a natureza é apreendida, percebida, concebida de forma diferente
a partir de diferentes pontos de vista, sejam os de indivíduos
enquanto focos de subjetividade, sejam os de culturas enquanto
coletivos de significação, ou sejam os da humanidade enquanto
ponto de vista zoológico específico sobre o mundo, diferente do
ponto de vista dos crocodilos, dos micróbios etc.
Há sempre a idéia de que se olha algo que é maior que o olhar, o qual
só chega a capturar uma pequena parte desse algo. É o modelo da
cidade que é olhada sob diversos ângulos: cada ponto de vista
permite-nos contemplar algumas ruas, algumas direções. Chama-se
esse Objeto, com «O» maiúsculo, exterior, «natureza» e chama-se
«cultura» o sujeito, a alma etc., qualquer que seja a forma de definilo. O lugar do universal encontra-se do lado externo. O real, em sua
universalidade, é indiferente à representação, é totalmente neutro. Ao
contrário, o ponto de vista é subjetivo, representativo, fragmentário,
parcial, limitado. A partir dessa dicotomia, tudo o que a Antropologia
teria que fazer seria comparar para conciliar os pontos de vista e
encontrar o maior denominador comum. A ciência humana seria isto:
a pesquisa do maior denominador comum – as estruturas
elementares, a gramática universal, o simbólico, o Édipo. Para
continuar com essa alegoria aritmética, prefiro, antes, encontrar o
mínimo múltiplo comum – o que permite multiplicar as coisas ao
invés de dividi-las para achar o que têm em comum e que é,
necessariamente, mais pobre que aquilo que se encontra em cada
cultura particular. Quando se comparam as culturas para descobrir o
que têm em comum, observa-se que o que têm em comum é
obrigatoriamente menos rico que aquilo que constitui sua
especificidade, pois as zonas de superposição são necessariamente
mais restritas. Isso corresponde à idéia de que a natureza humana
deve ser menor, em termos de extensão, de riqueza, que as culturas,
pois a natureza é apenas aquilo que temos em comum, o que supõe
uma concepção da Relação (com R maiúsculo) como o que é
partilhado pelos termos em relação, o que eles têm “em comum”.
Uma relação social seria constituída apenas por nossos pontos em
comum: somos todos homens, somos todos democratas etc. É por
meio dessa comunidade que nos comunicaríamos. No entanto, penso
que há outras formas de conceber as relações. Os índios da América
têm, por exemplo, uma metafísica da relação que é completamente
distinta da nossa. Não é porque se tem algo em comum que se
comunica, mas porque, sendo diferente, tem-se interesse em ter uma
relação com outra coisa que não nós mesmos. Porém, estou me
antecipando. A vulgata metafísica ocidental consiste na idéia de que
não existe senão uma única natureza externa, e várias culturas,
várias subjetividades que giram em torno dessa natureza. Esta
funciona, assim, como sobrenatureza, é um correlativo de Deus.
Deus se ausentou mas, em seu lugar, deixou-nos uma Natureza que
modo verdadeiro de se ver, pois é o modo como todos os seres vivos
No que diz respeito à existência dos outros, é preciso fazer uma
está aí para que as coisas possam se manter juntas. Senão, tudo seria
se vêem. Não há, tampouco, garantias de que as outras espécies nos
vêem como nós nos vemos. Pelo contrário, temos boas razões, prova-
demonstração. A idéia da evidência do eu e da não evidência dos
outros, que está às portas de nossa metafísica moderna, é exatamente
velmente, de acreditar que não nos vêem como nos vemos, dado que
o oposto daquela dos índios na qual, justamente, é eu que está em
nós também não as vemos como elas se vêem. De fato, vemos os porcos do mato como animais, como porcos, e não como pessoas.
dúvida. Nunca se tem certeza de quem se é, porque os outros podem
ter uma idéia muito diferente sobre isso e conseguir impô-la a nós: a
Pensamos que os porcos do mato pensam que são gente, quando não
onça que encontrei na floresta tinha razão, era ela o humano, eu não
o são. Sabemos que eles são porcos do mato. Mas os próprios porcos
do mato pensam a mesma coisa de nós, pensam que realmente são
era senão sua presa animal. Eu era uma anta ou um veado, talvez um
porco... Então, para mim acabou. Os outros, em contrapartida, são
pessoas. Isso produz, portanto, uma espécie de preocupação identitária muito intensa; não basta «se ver» como humano, pois todo
um dado evidente. O problema para os índios não é a ausência ou a
falta de comunicação. Ao contrário, há um excesso de comunicação.
mundo, literalmente, faz isso: a humanidade de conteúdo torna
Se os animais são humanos, se as coisas podem abrigar formas
muito problemática a humanidade de forma. Inversamente, imaginar
o mundo sob o ângulo da teoria freudiana, por exemplo, em que o
internas humanóides, se o trovão é uma pessoa, então tudo
comunica. Portanto, quando se come alguma coisa – o que é que se
homem primitivo projeta sua humanidade sobre as forças naturais e
humaniza o cosmos, tornando-o menos ameaçador, produz uma teo-
está comendo exatamente? É necessário fazer todo tipo de acrobacia
xamânica para des-subjetivar a carne que se come, para nos fazer
ria muito segura de si mesma (o homem teórico) a respeito dos
esquecer o fato de que o humano está em toda parte. Viver é matar
outros (primitivos ou coisas) e, afinal, muito reconfortante. O princípio de realidade: há um certo prazer em se deixar guiar por ele, não
outros humanos necessariamente, ainda que seja uma plantinha. A
questão central é como não deixar o outro nos comer.
apenas mundo diabólico e múltiplo, mundo das aparências e dos
simulacros. Para que haja um fiador do sentido, é preciso uma só
natureza que não é senão uma espécie de travesti de Deus, é o Deus
moderno.
Ora, quando se interroga a mitologia ameríndia, precisamente aquela
que Lévi-Strauss utilizava para ilustrar a oposição natureza/cultura,
percebe-se, em primeiro lugar, que o que dizem todos os mitos é que,
outrora, todos os animais eram humanos, todas as coisas eram seres
humanos, ou, de modo mais exato, pessoas: os animais, as plantas,
os artefatos, os fenômenos meteorológicos, os acidentes
geográficos... O que narram os mitos é o processo pelo qual as coisas
que eram humanas deixaram de o ser, perderam sua condição
humana. Se as questões forem colocadas dessa maneira,
compreende-se que representam exatamente o oposto de nossa
mitologia. Para nós, o fundo comum entre nós e o crocodilo ou a onça
é a animalidade, não a humanidade. Os humanos são uma espécie
animal entre outras, mas com alguma coisa mais: a alma, a cultura,
o espírito, a linguagem, a Regra, o simbólico, o ser-aí etc. Então, o
que dizem os mitos é o oposto. Em vez da teoria evolucionista que
pretende que «os humanos são animais que ganharam alguma coisa»,
para os ameríndios, os animais são humanos que perderam alguma
coisa. O ser humano é a forma geral do ser vivo, e até mais, a forma
geral do ser: pressuposto radical do humano. A humanidade é o
fundo universal do Ser. Tudo é humano. Evidentemente, isso caminha
junto com uma idéia que os índios formulam quando tentam
é? No que se refere aos índios, penso que o contrário é que é verdadeiro: quando se humaniza tudo, tudo se torna muito perigoso porque tudo é humano. E, afinal de contas, pode ser que a única coisa
não humana sejamos nós. O mundo “encantado” é um mundo arriscado, imprevisto, metafisicamente falando. Não existem só fadas
boas nos contos de fadas.
JCR
_ O que aconteceria se a gente comesse ser humano?
EVDC
_ Para os índios, a grande maioria das doenças que os afligem
são doenças provocadas por vingança dos animais comidos. Quando
se come o corpo de um animal sem os cuidados necessários para não
Quando a humanidade se torna a base universal, então sua forma se
ofender seu espírito, o espírito pode se vingar e nos devorar (por
dentro, numa espécie de «endocanibalismo» bastante aterrador). É
suaviza. Inversamente, nós ocidentais pensamos com um insolente à
preciso, portanto, ser sempre muito cauteloso quando se trata de
expressá-la numa linguagem que possamos entender: todos os
vontade que, enquanto espécie, os humanos se destacam dessa base.
animais e todas as coisas têm almas, são pessoas. Uma onça, por
Somos sempre a espécie, o povo, a raça, o indivíduo eleito de alguma
divindade ou transcendência, racial, pessoal, cultural, política,
histórica.
comer. É um ato metafísico muito delicado. A «abertura», a «clareira»
humana começa pela boca – mas não falo da linguagem...
exemplo, é mais que uma simples onça; quando está sozinha na
floresta, tira sua «roupa» animal e se mostra como humana. Todos os
animais têm uma alma que é antropomorfa: seu corpo, na realidade,
é apenas uma espécie de roupa que esconde uma forma
fundamentalmente humana. Em contrapartida, nós ocidentais
pensamos usar roupas que escondem uma forma essencialmente
animal. Sabemos que, quando estamos nus, somos todos animais.Os
instintos, por trás das camadas desse verniz que é a cultura, nos dão
um fundo animal, primata, mamífero etc. Os índios vêem as coisas de
modo oposto: por trás dos corpos animais, é um fundo
essencialmente humano que se acha escondido pelas “roupas”. A
mitologia diz não só que o fundo comum é humano, mas também
que a humanidade não é a exceção e, sim, a regra. Nós não somos
uma espécie escolhida por Deus no final da criação mas, ao contrário,
a condição de partida. Inversamente, para nós ocidentais, tudo é, em
princípio, não-humano, tudo é coisa, tudo é objeto até nova ordem,
isto é, exceto se houver fortes razões para acreditar que estamos
lidando com uma pessoa.
A segunda concepção muito interessante, que se encontra um pouco
por toda parte na América indígena, é a idéia de que cada espécie não
só é humana «no fundo» (em outros termos, cada espécie era, no
início, «humana»), como também se vê a si mesma como humana.
Cada espécie se vê como encarnando a autêntica humanidade tanto
em sua forma corporal, como também em seus hábitos. O que as
onças comem é visto por elas como alimento humano. Por exemplo,
quando lambe o sangue de uma presa abatida na floresta, a onça não
vê esse líquido como sangue cru, mas como cerveja feita de
mandioca fermentada. Como os humanos não bebem sangue mas
cerveja de mandioca, as onças, sendo humanas em seu próprio
departamento e de seu ponto de vista, vêem, percebem literalmente
esse líquido que lambem quando ele escorre do corpo de sua presa
como sendo uma boa cerveja de mandioca, servida numa cabaça
muito limpa e decorada. Em outras palavras, cada espécie se vê sob
a espécie da cultura. Ela se vê como humana e vê o que faz, seu
comportamento, seu etograma, como sendo um etograma cultural.
JCR _ Então o homem, por sua forma e pelo que faz, é 100 %
humano...
E V D C _ É um problema, justamente. Se cada espécie se vê como
humana, isso não quer dizer que ela veja as outras espécies como
humanas. Vemos as onças como animais selvagens, como feras; as
onças, em contrapartida, se vêem como humanas mas não nos vêem
como humanos. Vêem-nos como porcos do mato, pois nos comem.
Os porcos do mato, por sua vez, também não nos vêem como
humanos; vêem a eles como humanos e a nós como onças, ou como
espíritos canibais, porque nós os comemos... Portanto, cada espécie
se vê a si mesma como humana e as outras espécies como não
humanas: seja como espécies de presas, seja como espécies de
predadores, isso depende da posição de cada entidade na cadeia
trófica. Portanto, tudo se passa se houvesse uma única grande cadeia
trófica que vai dos espíritos canibais às presas mais ínfimas que não
são predadores de nada. Dado que cada espécie se encontra em
algum lugar nesse continuum, porque sempre se come algo diferente
de si e se é comido por uma outra espécie, sempre se está entre duas
posições – a de predador e a de presa.
Quando se aplica essa idéia a nós mesmos, surgem dois problemas.
O primeiro é que, evidentemente, a gente se vê como humanos – precisamente como fazem todas as espécies. Não há, pois, garantias de
que o modo como nos vemos (isto é, enquanto humanos) seja o
Para os índios, inversamente, tudo é humano, ainda que a espécie
humana seja privilegiada à medida que somos nós, os humanos, que
estamos falando. Os índios não professam uma teoria irênica da
conciliação de todos os seres vivos em que tudo seria bom, belo e
verdadeiro porque humano. Ao contrário, se tudo é humano, então
tudo é perigoso. Como sabemos, a única coisa verdadeiramente
perigosa no mundo são os homens – os objetos não fazem mal (não
por maldade, em todo caso). Os índios pensam também que, se uma
coisa ou um animal é apenas isso, então eles não colocam problemas.
Uma verdadeira onça não ataca os homens. Se ataca um homem,
então não se trata de uma onça comum, mas de um homem
disfarçado de onça, isto é, a onça em seu “momento” de homem.
Porque os homens matam os homens e assim por diante. Também
não se pode dizer que os índios são relativistas simplesmente porque
dizem que cada espécie vê as coisas de uma certa maneira. Os
urubus, por exemplo, vêem os vermes que pululam numa carniça na
floresta como peixe assado porque comem esses bichinhos. Seria
possível imaginar que a moral dessa história é a de que todos os
modos de ver o mundo se equivalem, que tudo é relativo: os urubus
vêem as coisas de uma certa maneira, nós, os verdadeiros humanos,
de outra... Não se teria que escolher uma boa descrição da
«realidade». De fato, não é nada disso. Os índios não dizem que cada
espécie vê as coisas de uma maneira diferente. Ao contrário, o que
dizem é que, se os urubus vêem apenas peixe assado, é exatamente
porque eles são como nós que não comemos senão peixe assado.
Portanto, se os urubus comem algo, isso deve ser para eles,
obrigatoriamente, peixe assado. Cada espécie vê as coisas da mesma
maneira. As coisas é que mudam.
Os espíritos animais possuem tudo o que caracteriza qualquer cultura
indígena, o xamanismo e todas as instituições sociais. Os urubus, as
onças, todos os animais têm as mesmas instituições que os humanos.
Moram no mesmo tipo de casas, comem o mesmo tipo de coisas,
casam-se com alguém da mesma espécie, têm o mesmo tipo de
doenças, e assim por diante. Não há, pois, várias maneiras de ver, há
somente uma. Todo mundo vê da mesma forma. O que varia é o
próprio mundo, e não o modo de vê-lo. Para nós, são as “visões do
mundo” que diferem, mas o mundo permanece igual a si mesmo.
Para os índios, a maneira de ver é sempre a mesma, ainda que passe
de uma espécie para outra: o que muda é o próprio mundo. Tem-se,
então, esta dupla inversão. De um lado, tudo é humano, embora cada
espécie não o seja do mesmo modo (exatamente como nós ocidentais
sabemos que, em sendo uma espécie animal, não somos animais
idênticos aos crocodilos). A humanidade é universal, o espírito é
universal, não o corpo. Para nós, é o corpo que é universal no sentido
em que somos todos feitos da mesma substância – os átomos, o
carbono, o DNA etc. O espírito, ao contrário, é sempre o lugar da
diferença, da singularidade, da particularidade da cultura – o espírito
coletivo – ou o espírito individual – o sujeito. É sempre quanto ao
espírito que nos distinguimos. Do ponto de vista físico, todos nos
comunicamos; porém, do ponto de vista metafísico, estamos todos
separados. O grande problema para a ciência social espontânea do
ocidente é como comunicar, pois não comunicamos ao nível do
espírito, mas ao nível do corpo. O espírito é sempre solepsista. Donde
essa série de intervenções que são o contrato social, o simbólico, a
linguagem. É necessário deduzir um edifício conceitual gigantesco
que explica como se pode comunicar, fazer coletivamente. Depois de
Descartes, a única coisa de cuja existência se pode ter certeza é o eu.
23
A idéia de humanidade universal produz uma outra inversão. Se o
espírito – ou, em outros termos, tudo o que é ou pode se tornar
sujeito – se vê como sujeito e essa percepção constitui a base
universal das coisas, então quem se é de fato? Os índios não vêem as
onças como pessoas, eles não têm alucinações. O que eles dizem é
que as onças têm alucinações, que elas se vêem como seres
humanos; mas então, talvez nós também tenhamos alucinações. Eu
sou um ser humano, então vejo as coisas como elas são para mim.
Como peixe assado porque, para mim, o peixe é o peixe. E sei que
aquilo que vemos como vermes, os urubus vêem como peixe assado.
Ora, não sou um urubu; então, se começo a ver os vermes na carniça
como peixe assado, isso quer que estou me tornando um urubu. Em
outras palavras, o espírito do urubu capturou meu espírito e começa
a me transformar em urubu. Evidentemente, isso quer dizer que
estou muito doente, porque um homem deve continuar sendo um
homem.
É muito importante ver as coisas como um urubu ou um humano
porque isso define de que gênero se trata. Eu sou um humano, devo
ver as coisas como um humano as vê, não como as vê uma onça. Os
xamãs têm o poder de ver como as diferentes espécies vêem, mas é
necessário que voltem dessa viagem para contar a história. Se vêem
as coisas como as onças as vêem e se ficam presos nessa visão, isso
quer dizer que se tornaram onças e que não poderão voltar para
contar a história: em resumo, trata-se de um xamã inútil e perigoso,
um xamã «de mão única» que, evidentemente, deve ser eliminado. Os
verdadeiros xamãs são espécies de andrógenos, são seres que, em vez
de «terem» vários sexos, «são» várias espécies. Um xamã pode ver o
mundo como uma onça, como um porco do mato e também, é claro,
como ser humano. Um humano normal não pode fazer isso, exceto
em sonho ou quando toma drogas. Se começa a ver as coisas como
as vê uma espécie animal qualquer, isso é um sinal evidente de que
está muito doente e deve ser tratado precisamente por um xamã que,
ele sim, pode passar de um lado para o outro sem perder sua alma;
literalmente, sem perder sua humanidade. Então, se é no plano físico
que nos comunicamos e no metafísico que nos separamos, para os
índios se dá o oposto – é no plano metafísico que eles comunicam
porque tudo é espírito, tudo é alma, sujeito; é necessário, pois, que
seja no plano físico, no sentido de corporeidade, que as espécies se
distingam. O corpo das espécies, típico, específico, as características
de cada espécie são apenas uma aparência. De fato, é sua maneira de
ser no mundo, é o modo pelo qual o espírito universal se
particulariza ou se «especifica». Se os urubus vêem os vermes como
peixe assado, é porque os urubus habitam um corpo de urubu. O
corpo é um instrumento e não um disfarce, não é uma fantasia, uma
aparência de que alguém se reveste. Evidentemente, essa aparência
animal é uma capa, mas é como um disfarce, uma aparência falsa de
uma essência verdadeira; ao contrário, é um instrumento que
especifica o espírito universal que, em si, é indeterminado. Portanto,
a anatomia, o comportamento, a etologia de cada espécie é muito
importante para os índios. O que explica, por exemplo, porque os
índios são obcecados por mudanças corporais exatamente como nós
somos obcecados pelas mudanças espirituais.
Para nós, a educação é um processo eminentemente espiritual.
Educação, formação, conversão religiosa, são processos que se dão
no nível do espírito. As mudanças no plano do corpo não são
importantes; não têm, digamos assim, valor jurídico-metafísico
discriminante, embora, hoje, tudo esteja mudando. Digamos que, no
regime da modernidade clássica, o corpo não tem sentido. Não se tem
o direito de discriminar uma pessoa por causa de seu corpo, sua cor,
chama «pão francês»…). Para os índios, é o contrário: «O que faz a
mantivéssemos fixa a perna correspondente à natureza e fizéssemos
seu sexo. O corpo não conta justamente porque não permite
função de pão para você?» Se você fosse um urubu, diria que são os
estabelecer diferenças significativas. Distingue-se uma ação como
passível de punição ou não passível de punição no plano da
vermes. Portanto, não são os sinônimos que devem ser encontrados,
mas os homônimos é que devem ser separados. As «palavras»
a da cultura descrever o círculo dos pontos de vista sobre esse centro
que está aí, imóvel, em torno do qual gira a visão infinitamente
consciência, do espírito, da intenção. Entre um homem e um
mudam, mas as coisas são as mesmas. Para os índios, é a natureza
diversificada – como o círculo é composto de infinidade de pontos –
em torno da perna fixa da natureza. À primeira vista, os índios
chimpanzé, por exemplo, há menos de 2 % de diferenças «genéticas»
que muda, como se a gente tivesse um mundo onde todos falassem a
parecem fazer o contrário. É a cultura que é fixa, no sentido de que
em termos de cromossomos; portanto, praticamente não há distância
corporal. Em contrapartida, a diferença jurídico-moral entre um
mesma língua mas para se referir a coisas completamente diferentes,
ao passo que, para nós, todos falam línguas diferentes mas, no fundo,
há apenas uma cultura e que o que varia são os corpos que
incorporam essa cultura, que dão a essa cultura expressões
homem e um chimpanzé é incomparavelmente maior que entre esse
mesmo chimpanzé e, digamos, um lagarto. Não importa o que ele
para dizer as mesmas coisas. Somos todos humanos, temos todos os
mesmos desejos, as mesmas esperanças – os mesmos “problemas”. A
diferenciadas. Evidentemente, eu poderia acrescentar que não se
faça, não se pode pôr um chimpanzé na cadeia exatamente porque
questão é, pois, traduzir. Para nós, isso é fácil porque já sabemos
pode fazer as duas pernas avançarem ao mesmo tempo, senão o
compasso cai. Portanto, os índios não são relativistas. Porém, não se
não é no plano das semelhanças corporais mas, sim, no das
diferenças espirituais, pensamos nós, que essas coisas acontecem. O
qual é a referência. Sabemos que um índio deve pensar como nós,
basta simplesmente encontrar a palavra adequada. Para os índios,
deve esquecer que, de fato, essa perna fixa, seja a da natureza ou a
da cultura, se move sobre si mesma. Afinal, não é fixa. No ponto em
chimpanzé, do mesmo modo que o lagarto, «não sabe» o que faz. Nós
sabemos e nós podemos ser incriminados. Um louco não o pode.
nunca se pode ter certeza de que se está falando da mesma coisa. Se
um urubu lhe oferece algo para comer, é necessário, talvez, que você
que as duas pernas se encontram, se situaria a separação entre
natureza e cultura. É o momento “imediativo” da natureza e da
Toda a metafísica, toda a responsabilidade (é a mesma coisa) passa
se diga que aquele peixe não é o seu, que é talvez outra coisa, que é
cultura, é o ponto de origem e o distanciamento entre o que é
pelo espírito. As mudanças culturais também, para nós, são sempre
uma questão do espírito. A conversão, mudar de modo de ver, mudar
preciso, sobretudo, prestar atenção. Os problemas que essa
metafísica se coloca são muito diferentes dos nossos, não são
corporal e o que é espiritual. Nesse nível, tudo se encontra, não se
o conteúdo do espírito – é o modelo da cultura para nós. Um índio
não deixa de ser um índio quando se põe a “pensar como um
problemas de falta de relação ou de ausência de comunicação. O
problema não é o de uma humanidade isolada no mundo, «espaço
pode dizer que um é móvel e o outro é imóvel, que um é fixo e o
outro varia. Na realidade e ao mesmo tempo, aqui tudo é fixo e
móvel. Natureza e cultura, universalidade e relatividade, são sempre
branco”. Para o índio, é no nível do corpo que as mudanças contam.
infinito que nos assusta». O mundo, ao contrário, é povoado demais
resultados, nunca condições. É sempre depois do ponto considerado,
É por causa disso que os índios concentram-se nos sinais de
mudanças corporais – as mudanças de regime alimentar, as relações
sexuais com não índios etc. – como signos e como indutores de
por outras espécies de humanos, sempre houve muita gente no
mundo. Não é um deserto antropológico como é para nós. Estender a
categoria da humanidade foi uma conquista para nós, é necessário
nas extremidades das pontas do compasso que os pólos se opõem e
“aculturação”. Quando se vai a uma sociedade tradicional ameríndia,
fazer passar o outro por um exame muito detalhado para que ele
melanésia, uma coisa que acontece com todo antropólogo é ter
possa ser admitido. «Será que os negros são humanos, os índios, as
problemas para aprender a língua. Passados seis meses, a gente vai
se queixar junto aos amigos indígenas dizendo: «escuta, sua língua é
terrivelmente difícil, não consigo compreendê-la, esforço-me, mas é
mulheres?» É preciso convencer os homens brancos de que as
mulheres, os negros são também humanos. Enquanto que para os
índios isso é evidente, é um dado, porque tudo é humano, isso não é
um trabalho muito lento, não avança». Então as pessoas respondem:
um problema. Há aquela história famosa contada por Lévi-Strauss e
«é preciso que você coma nossa comida para aprender nossa língua».
que, aliás, é suposta provar o etnocentrismo de todas as culturas e
No fim de duas semanas, o etnólogo diz: «não faço outra coisa a não
ser comer da sua cozinha e as coisas continuam iguais.» A resposta
é: «Então é preciso dormir com nossas mulheres.» O tipo (admitamos
que considero um condensador meta-reflexivo do Equívoco. Os
espanhóis, no século XVI, quando se encontraram diante dos índios
das Antilhas, enviavam comissões de inquéritos, padres, para saber
que ele seguiu o conselho) volta depois de alguns meses: «Continua
se os índios tinham uma alma, se eram realmente humanos ou
tudo igual.» Desanimadas, as pessoas dizem então: «nesse caso, você
animais com aparência humana. Eram eles pessoas que poderiam ser
precisa tomar um de nossos alucinógenos, isso vai funcionar.» A essa
altura, é preciso realmente ser idiota para que isso não funcione...
cristianizadas ou não? Seria possível mudar seus espíritos (convertêlos), se é que tinham um espírito? Ao mesmo tempo, diz Lévi-Strauss
relatando as palavras de um cronista da época, os índios tomavam os
corpos dos espanhóis que conseguiam matar nas batalhas e os
imergiam para observar se esses cadáveres apodreciam ou não.
Porque a questão dos índios era: «Será que essas pessoas são pessoas
ou fantasmas?». Lévi-Strauss toma essa dupla dúvida, essa dupla
suspeita em relação ao outro, como um sinal de igualdade dizendo:
«Vocês vêem, todo mundo pensa que o outro não é humano.» De fato,
os espanhóis se perguntavam se os índios eram humanos ou animais,
ao passo que os índios se perguntavam se os espanhóis eram
humanos ou espíritos. Os espanhóis se interrogavam no nível da
alma; os índios colocavam a questão no nível do corpo. É um
equívoco clássico, no sentido em que a definição de humanidade era
a mesma embora a exigência de humanidade fosse a mesma: na
verdade, os dois lados queriam saber se o outro era humano. Mas os
critérios de humanidade não eram os mesmos. Para os espanhóis, ser
humano era ter uma alma como nós; para os índios, era ter um corpo
como eles. É um equívoco do mesmo tipo que o do mito do herói
esfomeado que chega à aldeia.
Isso quer dizer que, para nós, a linguagem é uma faculdade
eminentemente cerebral; portanto, espiritual. Para os índios, ao
contrário, é algo que se passa no nível dos hábitos corporais. Ocorre
como o sexo, como as substâncias corporais, como a alimentação –
são coisas que se passam no nível do corpo. O corpo funciona, pois,
como elemento de diferenciação; é no âmbito do processo corporal
que as coisas ocorrem. O xamanismo indígena é organizado em torno
da idéia de metamorfose corporal e não, absolutamente, no plano da
noção de possessão espiritual. Para nós no mundo antigo, domina a
idéia da conversão, da possessão como modelo de mudança. Guardase a mesma forma corporal, mas algo mudou porque se tem um outro
espírito dentro, uma divindade, o demônio, o diabo. Alguma
subjetividade poderosa capturou nossa aparência e se serve dela
como seu instrumento. Somos marionetes dessa outra subjetividade
que nos capturou. O xamanismo ameríndio é, ao contrário,
maciçamente organizado em torno da noção da metamorfose
corporal. Isso quer dizer “vestir” o hábito da onça e poder comportarse como uma onça – por exemplo, caminhar sem fazer barulho, subir
nas árvores, comer carne humana. A possibilidade de trocá-lo está
sempre presente no mundo ameríndio. É sempre um perigo. Para nós,
muito evidentemente, é impossível. As espécies são fechadas no nível
ontológico. Mas mudar de opinião, de mentalidade, é o centro em
torno do qual se organizam nossas relações – a mudança de opinião.
Evidentemente, a pedagogia ocidental tem um forte investimento no
corpo, mas seu objetivo é sempre «elevar» (em todos os sentidos do
termo) o espírito. O corpo é um instrumento para chegar ao espírito.
É algo que se submete, que se treina para que o espírito possa se
desabrochar. Não é o corpo pelo corpo. Entre os índios, a linguagem,
que para nós é uma faculdade do espírito, é uma faculdade do corpo,
é algo que se tem enquanto materialidade encarnada. «Pensar
diferentemente», isto não existe. Os urubus pensam como nós. É
precisamente porque eles pensam como nós, que se tem todos os
tipos de equívocos terríveis. Há mitos muito divertidos (ou muito
inquietantes, depende) que são encontrados em toda parte na
América indígena, onde o herói está perdido na floresta e morrendo
de fome. Vai dar numa aldeia desconhecida, muito bonita, cheia de
belas mulheres e de belos homens que o acolhem de modo
absolutamente hospitaleiro dizendo-lhe: “você deve estar esgotado,
sente-se aqui, eu vou lhe trazer um prato de batatas doces bem
assadas”. O herói agradece, mas trazem-lhe, de fato, um prato cheio
de cérebros humanos ou algo nojento. O homem diz então: «Mas isso
não são batatas doces, imaginem!». E o herói passa a concluir que, se
seus anfitriões tomam os cérebros por batatas doces, então não são
seres humanos; são pessoas perigosas.
O mito é apenas isto: o périplo de um homem que vai de aldeia a
aldeia e, a cada vez, cai num equívoco em que coisas diferentes são
chamadas pelo mesmo nome. As pessoas não o enganam, você
tampouco se engana, são as pessoas que se enganam entre si. É o
equívoco como modelo. Se cada cultura vê as coisas de modo
diferente, o problema é encontrar sinônimos para as mesmas coisas.
«Como se chama nosso pão em português?» (no Rio, exatamente, se
_ Que conclusões tira você dessa reviravolta em relação à nossa
metafísica ?
JCR
EVDC _ Caso se parta de nossa metafísica, uma das maneiras
possíveis – talvez a mais cômoda embora não a mais sofisticada (é
uma lítotes) – de discernir o que dizem os índios é começar por
inverter nossa metafísica, como dizia Marx a respeito da de Hegel
(embora, de modo algum, no mesmo sentido – a inversão, quero
dizer). Essa inversão é uma perspectiva, não é uma inversão
absoluta. Ela tem antes de tudo, para mim, uma finalidade
terapêutica; lembrando Montesquieu, digamos que ela me permite
imaginar como se pode não ser europeu.
Há o ponto de vista ocidental e há o dos índios, talvez só haja esses
dois. Ou talvez haja três, quatro, ou mil – mas são sempre pontos de
vista que estão aí e que, finalmente, como você diz, se equivalem.
Não se tem que escolher. É exatamente o que estou em via de não
dizer, no sentido de que é a noção de ponto de vista que depende de
nosso ponto de vista. Minha questão é: qual é o ponto de vista dos
índios sobre o ponto de vista? Não é saber qual é o ponto de vista dos
índios sobre o mundo, porque isso já seria dirigir a resposta. Porque
isso já supõe que o ponto de vista é uma coisa, o mundo uma outra,
que o mundo é exterior ao ponto de vista e que é necessário que se
deixe o mundo quieto (isto é, nas mãos dos cientistas duros) para
fazer variar o ponto de vista (questão para os cientistas moles). É
necessário dar ênfase ao mundo e deixar o ponto de vista variar; de
qualquer modo, isso não tem importância, o mundo é mais
importante que todos os nossos «pontos de vista». Porém,
evidentemente, as coisas não são bem assim. Em vez de fazer isso,
vamos perguntar aos índios qual é seu ponto de vista sobre o ponto
de vista, isto é, como se colocaria a questão do ponto de vista
segundo o ponto de vista (no sentido ingênuo do termo) dos índios?
Minha metáfora é a das pernas de um compasso. Para que uma perna
possa se deslocar, é preciso que a outra esteja fixa. É como se
24
nunca antes, onde não há esse distanciamento. O que procuro fazer
é colocar-me no nível em que o distanciamento começa a se
estabelecer para ver o que dele resulta.
Para ser relativista, é preciso ter sempre um universalista ao lado
para marcar o contraste - e vice-versa, é claro -, a fim de que questão
do relativismo possa ter sentido. Os índios se colocam de uma
maneira perfeitamente transversal em relação a essa alternativa. Não
são relativistas, pois dizem que só existe uma forma de se ver o
mundo. Os índios dizem que as onças são humanas, que eles próprios são humanos, mas que eles e as onças não podem ser humanos
ao mesmo tempo. Se sou humano, então, neste momento, a onça é
somente uma onça. Se uma onça é um humano, neste caso, então, eu
não seria mais humano. Não se trata absolutamente de derramar essa
qualidade de humanidade de modo indiferente sobre a totalidade da
criação mas, sim, de dizer que essa posição é universal; porém, de
uma universalidade sempre relativa. Um universalismo relativo à
espécie.
JCR _ Relativo, portanto, no sentido em que não se sabe o que,
finalmente, é o humano. Não se pode qualificá-lo. Desse ponto de
vista, é uma qualidade nominal.
EVDC _ Exatamente. Mas, por outro lado, isso impõe aos humanos, a
nós, uma tarefa pesada, no sentido de que é necessário se fazer
humano. Todo o aparelho social, todo o trabalho das sociedades
ameríndias
amazonenses
é
produzir
humanos,
corpos
verdadeiramente humanos. Vêem-se, pois, paradoxos absolutamente
característicos desse tipo de metafísica e que são diferentes de nossos
paradoxos. Os índios se fazem corpos humanos com pedaços de
corpos de animais. Eles se colocam penas, marcas, desenhos de
formas, manchas de sucuris etc., para se fazerem um verdadeiro
corpo humano! Todas essas marcas, todas essas decorações
teriomórficas que são colocadas sobre o corpo são uma maneira de
humanizá-lo. Você não é um verdadeiro humano, ou você é menos
que um humano, se seu corpo não é diferenciado. Porque, afinal, o
corpo humano enquanto tal é demasiado genérico, os animais
também se tomam por humanos. Os animais também têm um corpo,
no sentido de que têm braços, pernas, um nariz, uma boca, um
fígado, pulmões, exatamente como nós. Ter um corpo humano não é
um grande trunfo; o que é necessário é marcar, definir esse corpo
genérico. E é nesse sentido que, numa sociedade indígena, a
educação em seu sentido genérico é sempre uma disciplina corporal.
É pelo corpo que as coisas passam. A iniciação, a educação, são
processos de intervenção sobre o corpo e não uma intervenção direta
sobre o espírito.
JCR _ Seria importante que você explicasse melhor em quê o fato de se
revestir de atributos animais faz com que, enquanto corpo humano
genérico, a pessoa se torne mais humana.
EVDC _ O corpo humano enquanto tal não tem instrumentos de
autoparticularização. É demasiado genérico no sentido de que é, de
fato, a forma de todas as almas. As almas das onças vêem outras
onças como corpos humanos. O corpo humano é, pois, uma espécie
de corpo da alma. Para se fazer um verdadeiro corpo, é necessário
tomar emprestado onde há onde há verdadeiros corpos. Ora, onde
existe isso? Entre os animais. Portanto, tomam-se partes dos animais,
próteses animais, e se cobre com elas para se tornar um humano –
este é o paradoxo característico. Nós temos outros paradoxos. Por
exemplo, escravizamos pessoas com a intenção de libertá-las. Eles
têm outros paradoxos.
JCR _ Por que, então, é importante se distinguir enquanto corpo
humano genérico ?
EVDC _ Porque, não o fazendo, seria possível ser transformado, ser
tomado por um outro. Quando nasce uma criança, a primeira coisa
que se faz é ver se é humana ou não. É preciso olhar o bebê e ver se,
realmente, é um filho de humano, ou se é um espírito, ou talvez o
filhote de um animal que teria deitado com uma mulher, mesmo em
sonho, e que teria feito um monstro. Portanto, a primeira coisa é
decidir se o bebê é um humano em potencial ou se já é um animal.
Caso tenha um defeito físico, é jogado fora porque é, de fato, um
animal. Se tem a aparência de um ser humano, é conservado mas, em
seguida, é necessário tomar todos os tipos de medidas para que ele
não seja capturado, seqüestrado por outros sujeitos (isto é, sujeitos
diferentes). Porque, em princípio, toda vez que nasce um humano, os
animais e os espíritos em geral ficam muito enciumados. Querem a
criança para eles, querem capturá-la. É necessário, pois, proteger a
criança. Ela é frágil porque sua humanidade é frágil, não é
simplesmente seu corpo que é frágil, mas seu estatuto ontológico é
muito frágil. É um corpo, digamos assim, com um pé na humanidade
e o outro no além. Deve-se, pois, tomar todas as providências para
que ela seja, de forma clara, definida como um humano. Para isso, é
preciso raspar-lhe o cabelo, pintá-la, furá-la, moldá-la para que se
torne humana como nós. Tudo comunica; portanto, é preciso
diferenciar. É preciso distinguir.
JCR _ Essa diferenciação passa pelo se revestir de atributos animais
porque eles são, por excelência, as marcas do corpo. Os animais são,
de certa forma, desviados de sua identidade. Assim, dos seres
constituídos de pedaços, literalmente se fazem monstros.
EVDC _ Realmente. Pega-se um pedaço de onça, um pedaço de sucuri,
e se faz uma criança que tem vários corpos; ela é, portanto,
humanizada por excesso e não por falta.
JCR
_ Será isso que você chama de multinaturalismo ?
EVDC _ A palavra multinaturalismo é uma provocação – embora seja
totalmente séria. Era uma brincadeira com meus colegas norteamericanos que gostavam do «multiculturalismo». Isso supõe, de
fato, um «mononaturalismo» que possa servir de pivô em torno do
qual se movem as culturas. E se fosse o contrário? Se houvesse um
multinaturalismo e não um monoculturalismo? Pensei que era
exatamente isso que os índios pareciam fazer quando dizem que os
urubus bebem cerveja, comem peixe assado, como nós e os porcos
do mato. Exceto que o que o urubu chama de cerveja não é o que
chamamos cerveja, e não é o que os porcos do mato chamam de
cerveja. Se todo mundo bebe cerveja, ela não é a mesma para todo
mundo.
JCR _ Na realidade, então, se trata de uma espécie de nominalismo
generalizado...
EVDC _ De certa forma sim, mas é mais que isso, pois não se trata de
uma questão de convenção, de designação, de flatus voci. Trata-se
principalmente de um relacionismo generalizado, no sentido de que
«humano» não é o nome de uma substância no sentido aristotélico do
termo, mas é o nome de uma relação, de uma certa posição em
relação a outras posições possíveis. “Humano” é sempre a posição do
sujeito, no sentido lingüístico da palavra, é ele que diz «eu».
Portanto, se se imagina uma onça dizendo “eu”, essa onça é
imaginada como humana, imediatamente. A humanidade não é uma
propriedade de algumas coisas em contraste com outras, mas uma
diferença de posição, não de substância. Nós fazemos uma espécie de
inspeção metafísica; olhamos, por exemplo, quatro objetos e
concluímos que alguns têm a propriedade de ser humano e os outros
não, segundo certos critérios fáceis de se enumerar. Essa propriedade
é fixa. O que imagino que os índios diriam é o contrário. O humano
não é uma questão de ser ou não ser; é estar ou não estar em posição
de humano. A humanidade é muito mais um pronome do que um
nome. A humanidade somos «nós».
A possibilidade de se colocar a si mesmo enquanto enunciador é
universal. Não é, pois, uma qualidade mas, sim, um dado. É um
princípio. Em termos de economia cognitiva, isso é muito importante
– não se trata de afirmar que os índios dizem que todos os animais
são humanos como um naturalista europeu poderia dizer. Não é uma
definição podendo ser compreendida como uma extensão. Porque
todas as espécies podem ser consideradas como humanas num
momento ou noutro. Nada impede que um xamã tenha um sonho em
que formigas lhe falem. Aí ele dirá que as formigas são humanos, e
isso se torna perfeitamente aceitável porque não há objeções, em
princípio, em termos de ontologia fundamental, que digam que as
formigas não podem ser seres humanos, porque “humano” quer dizer
isso ou aquilo. Tudo é humanizável. Nem tudo é humano, mas tudo
tem a possibilidade de se tornar humano, porque tudo pode ser
pensado em termos de auto-reflexão. É isto o animismo indígena. É
estender a tudo a possibilidade de reflexão. Se tudo é humano, é
perigoso, porque as coisas não são aquilo que aparentam. As
aparências podem esconder profundezas desconhecidas. Portanto,
tudo é perigoso e fascinante nesse mundo.
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX .
sociedade industrial o tempo era dinheiro, e tudo era otimizado,
agora está ainda mais otimizado. Isso pode ser visto nos mercados
P EKKA HIMANEN
financeiros, onde o PIB (Produto Interno Bruto) do Reino Unido ou
da França se movem em direção a metas mais otimizada todos os
PEKKA HIMANEN , DIRETOR DO BERKELEY CENTER FOR INFORMATION SOCIETY , É UM DOS MAIS
CONHECIDOS PESQUISADORES DA ERA DA INFORMAÇÃO . SEU LIVRO MAIS CONHECIDO É THE
HACKER ETHIC , RANDOM HOUSE
- 2001 -
HIMANEN FOI TAMBÉM CO - AUTOR , COM MANUEL
CASTELLS , DO LIVRO THE INFORMATION SOCIETY AND THE WELFARE STATE , OXFORD UNI VERSITY PRESS
- 2002 -
WWW . PEKKAHIMANEN . ORG
TRADUÇÃO DE GAVIN ADAMS
HELSINKI
_
28 DE AGOSTO DE 2004
A
sociedade de redes está em uma fase de desenvolvimento, após
a sociedade industrial. A sociedade de redes é global por natureza. O
que chamamos de mundo global está baseado na infraestrutura
tecnológica da sociedade de redes, que começou a emergir na década
de 1970. A infraestrutura tecnológica desta sociedade diferente não
foi desenvolvida por corporações ou por governos, mas sim por um
grupo de indivíduos que juntaram suas forças e batizaram a si
próprios de hackers. Eles criaram a Internet, a World Wide Web e
muitos dos softwares usados para manter a sociedade de redes
funcionando, como o sistema operacional Linux. Quando chamaram
a si mesmos de hackers, eles não queriam dizer criminosos da
computação, que é o que a palavra significa hoje para as pessoas.
Naquele tempo, ser um hacker significava ser um entusiasta, gostar
do que fazia e querer compartilhar isso com os outros. Havia um
desejo de pertencer a uma comunidade maior que compartilhasse da
mesma paixão. É uma comunidade enriquecedora onde o dinheiro
não é o motor – mas, sim a paixão criativa e o fazer juntos. Os
hackers vêm principalmente do mundo universitário e da
comunidade científica, da ciência da computação. Eles dividem suas
criações abertamente com os outros. Abertura quer dizer que
qualquer um está livre para criticar ou desenvolver qualquer coisa. É
uma comunidade auto-selecionada no mesmo sentido que são as
comunidades científicas ou artísticas, na sua maioria. Não há
estrutura formal.
O vínculo entre a ética hacker e a sociedade de redes advém do fato
de que a ética hacker é uma ética de trabalho criativo. É uma ética de
trabalho-inovação. Isso poderia ser uma expressão alternativa para a
ética-hacker, de modo que, o que acabo de descrever sobre a paixão
criativa e a comunidade de pesquisa no mundo hacker, também se
aplica a outros tipos de trabalhos. Temos toda sorte de trabalhos
criativos, de pesquisa à arte, mídia, medicina, todas elas baseadas em
inovações de pessoas com este tipo de ética de trabalho. A ética
hacker original era bem diferente do rígido espírito capitalista. Ela
tinha um núcleo de valores diferentes. Atualmente, estamos
testemunhando uma batalha entre duas culturas diferentes da
sociedade de redes, uma delas sendo a continuação do velho espírito
capitalista, e a outra sendo a ética hacker original. Para mim, é
importante não enfatizar como a comunidade hacker é diferente de
outras comunidades. A razão pela qual eu escolhi descrever esta ética
de trabalho é que eles foram os primeiros a se dar conta deste novo
tipo de trabalho. Outra razão é que eles construíram a infraestrutura
material para a sociedade de redes e foram eles a ponta de lança para
o surgimento da sociedade de redes. Eu acho que é apropriado usálos como exemplo, e sua expressão, para capturar algo que é ainda
mais verdadeiro em termos mais gerais. Em muitas economias
avançadas, a classe criativa já perfaz um terço da força de trabalho,
pessoas cujo trabalho é a inovação ou a criação de algo novo em
todos os campos da vida. As economias estão cada vez mais baseadas
no trabalho-inovação. A chamada ética protestante do trabalho,
descrita por Max Weber, não limitou-se aos países protestantes, era a
ética do trabalho Industrial. Segundo esta ética, você encara o seu
trabalho como um dever, em que cada um deve realizar a parte que
lhe cabe e onde o sofrimento é até nobre. Isso fazia muito sentido
quando muito do trabalho era rotineiro. Fazia sentido
economicamente ensinar este novo tipo de ética de trabalho. Na
sociedade de redes, até mesmo as companhias estão mudando, pois
este tipo de cultura do trabalho não é inovador o suficiente para que
as companhias permaneçam à frente na competição global.
_ Então, o que você chama de uma ética hacker é uma maneira
de radicalizar o capitalismo em vez de desafiá-lo ?
JCR
PH _ Eu quero estabelecer uma diferença entre a ética de trabalho e
o que eu chamo de ética do dinheiro. No nível da ética de trabalho,
eu creio que a sociedade capitalista de redes está mudando em
direção à ética hacker, que também é baseada na criatividade, em
compartilhar a paixão e assim por diante, mas no nível do dinheiro,
há um conflito. A visão de mundo da ética de trabalho hacker possui
valores muito diferentes.
Por exemplo, o conceito de tempo é bem diferente na sociedade
industrial onde tivemos o Taylorismo, e todos os outros tipos de
dias, a todo segundo, a toda fração de segundo. Temos uma
sociedade onde a economia é extremamente veloz, que também se
reflete na vida de trabalho das pessoas. O tipo de experiência que têm
em suas vidas-trabalho é mais e mais uma luta de sobrevivência,
apesar de todo o desenvolvimento tecnológico e econômico.
Tentamos sobreviver, agitados, todos os compromissos e projetos do
dia. Este é o dia de trabalho moderno, e ele se espalha para nosso
tempo de lazer. Nosso tempo de lazer é otimizado: não mais jogamos
despreocupadamente uma partida de tênis, mas praticamos nosso
backhand ou temos algum tipo de tabela de horário tanto para comer
quanto para trabalhar. A otimização é a tendência dominante, e é
acelerada na sociedade de redes. Mas esta nova tecnologia também
apresenta um desafio ao conceito de tempo, porque não apenas
permite que se façam coisas mais rapidamente, mas também está
tornando possível fazer coisas em tempo não sincrônico, de modo
que não precisamos trabalhar todos no mesmo ritmo. Em princípio,
ela dá mais liberdade às pessoas na escolha de seus estilos de vida,
para combinar as vidas de trabalho e de lazer, juntas. Então temos
projetos de despertar como The Clock of the Long Now [O Relógio do
Longo Agora], onde temos a idéia de construir um relógio que desafia
a maneira como ele nos domina.
JCR _ É uma maneira de desafiar o tempo presente e ampliá-lo expandir o tempo, até certo ponto, se estende em direção a um futuro
muito amplo e um antes muito amplo. Então talvez seja possível dizer
que é uma visão aberta do tempo, que faz do tempo ser mais como um
espaço ?
_ The Clock of the Long Now dá um toque a cada ano. Dá uma
badalada a cada século, e o cuco sai a cada milênio. A ligação com
os hackers é que ele transcende a perspectiva de tempo rotineira,
mais imediata. Começamos a pensar em uma perspectiva muito mais
longa. A razão para construí-lo foi criar uma imagem simbólica para
promover uma nova perspectiva de tempo em nossas vidas.
PH
Na década de 1960, a idéia de que poderíamos criar uma rede global
que aproximasse o mundo era uma destas idéias que não fazia
sentido, pois não podíamos visualizar nenhum resultado no trimestre
corrente da economia, nem mesmo depois de alguns anos. O mundo
da computação hacker baseia-se neste tipo de idéias tecnológicas de
longo prazo. Em outras esferas hacker, como a medicina, temos
razões de longo prazo que estão realmente a produzir ações
concretas. Por exemplo, a tentativa de entender o DNA para
reprogramá-lo e erradicar o câncer em 25 anos, ou coisas assim. É um
tipo de perspectiva de longo prazo e de um estilo de vida mais
relaxado que muda nossa perspectiva do tempo. A ética de trabalho
industrial trouxe um estilo de vida mecanizante sem espontaneidade
na vida, nenhum aspecto lúdico. Trabalhamos 50 semanas por ano;
temos duas semanas de feriado e um par de horas de lazer quando
vamos ao Shopping Center. Este não pode ser o nível mais alto de
desenvolvimento humano, ou a razão pela qual o mundo global se
desenvolve. Em certo sentido, esta nova visão de tempo torna
possível manter horas livres, pois o que fazemos é baseado na meta
do projeto e menos no tempo usado para sua realização. Temos novos
interesses na sociedade hacker. Um dos mais importantes é o meioambiente, e é isso também que faz com que o conceito de tempo seja
tão crítico. Pois, se começamos com o conceito capitalista de tempo,
já estamos na pista errada em termos da compreensão de questões
ambientais, que são sempre questões de longo prazo.
O movimento ambientalista é um movimento hacker. Trata-se de
indivíduos juntando seus recursos, compartilhando abertamente em
um nível global, como o movimento hacker. Há um vínculo muito
forte entre os dois movimentos.
JCR _ É possível dizer que os hackers, como uma classe criativa de
indivíduos altamente bem formados, compõem uma nova classe
social ?
PH _ Classe está errado pelas seguintes razões. Primeiramente, estas
pessoas, engenheiros de computação, artistas, cientistas, pessoas
trabalhando na mídia, na medicina e em muitas outras áreas, não
sentem que formam uma comunidade com interesses similares para
defenderem. Os hackers estão em toda a parte, desde o mais baixo até
mesmo no topo. Portanto, eles não formam uma classe. Mais
importante, eu não acho que eles sejam a elite de nossa sociedade.
Muitos destes hackers estão de fato desafiando a estrutura de poder
em nosso tempo. Se observarmos o mundo da computação, e vermos
o movimento de software de código aberto (open source), ele desafia
toda a indústria da tecnologia da informação, como quando Linus
Torvalds trabalha com o sistema operacional Linux. A indústria da
informática do momento, construída por Bill Gates e pela Microsoft,
está baseada na idéia de fechar informação e dominar todo o
maneiras de otimizar nosso tempo. Mas a velocidade das coisas era
ainda relativamente limitada, do nosso ponto de vista. Na sociedade
desenvolvimento, de modo que todo tipo de informação pode ter
dono. Eles tentaram estender todos os tipo de patentes e copyrights,
cada vez mais. Esta é a idéia dominante da indústria da tecnologia da
de redes, com a nova infraestrutura tecnológica, temos praticamente
um mundo de ação em tempo real, de modo que a tecnologia não
informação. O sistema operacional Linux é um sistema de software
de código aberto, o que significa que todos estão livres para usá-lo e
mais apenas flui, ela aumenta nossa velocidade ainda mais. Se na
desenvolvê-lo. A informação não é mais propriedade de alguém ou
25
fechada para outros. Isso causou muita tensão no mundo da
global. Isto é parte do argumento de Manuel Castells a respeito do
se move numa superfície plana, ou numa oblíqua, ou numa outra
informática. Na medicina e na biotecnologia, hoje também temos um
por que a União Soviética ruiu. Uma sociedade fechada era incapaz
com arestas?”
movimento de fonte aberta.
de transformar-se em uma sociedade de redes. Até a década de 1960,
ela tinha o mesmo nível dos Estados Unidos na ciência da
Atualmente, a abordagem do movimento já é mais reconhecida. Não
Quando o mapa de genoma humano foi criado, houve uma grande
competição. A competição se deu entre uma companhia comercial,
que queria fechar toda a informação, e um projeto público. O projeto
público estava atrás do comercial. Mas havia um hacker que começou
a organizar o projeto público para alcançar o projeto comercial, e no
fim eles terminaram antes do projeto comercial.
computação, sem mencionar a Física, Matemática e assim por diante,
nas tecnologias chave, nas áreas científicas chave da mesma forma
que nos Estados Unidos, mas a informação era um segredo fechado
dentro de seus LABS militares secretos, e não se espalhou à sociedade
como um todo, e então começou a ficar para trás dos Estados Unidos.
O papel da inovação, e do fato que ela requer um fluxo aberto de
há nada de surpreendente em ver pessoas comuns dançando. Robert
Wilson usa qualquer pessoa; adora usar pessoas surdas, cegas,
gordas, baixas, altas... Isso não tem nada de novo. É o que chamam
somático. Na época em que fundaram o Judson Theatre em Nova
York e seguiram suas pesquisas, eu estava começando a me perguntar
como vincular o movimento aos sentimentos e de onde vem a
expressividade ou o impulso da arte. Onde você dança, por que você
Eu acho que assistiremos ao surgimento do bio-hacker, que aprenderá
o DNA como se aprende as linguagens de programação. Isso desafiará
informação, que encoraja novas maneiras de pensar, está em conflito
com as sociedades fechadas de nosso mundo.
a idéia de tentar ser dono de toda a informação genética dos seres
vivos. Mas eu acho também que o movimento de ética hacker inclui
dança e para quem? Ficaria a platéia simplesmente sentada,
esperando ser entretida, ou avaliaria o espetáculo, daria opiniões, ou
Quando meu livro foi publicado em 2001, o debate sobre a sociedade
o intelectualizaria, ou apenas iria embora, tomava um café e esquecia
de redes focava na tecnologia e na economia. Não havia muito
interesse na dimensão social do desenvolvimento. A economia
tudo? Ou teria a natureza da performance a ver com o que afeta
minha vida? Como vou trabalhar estas coisas, que sentimentos me
‘pontocom’ era uma visão simplista do mundo. Questões sociais
globais que tem a ver com questões de sistemas de informação
transmitem?
artistas - digamos, por exemplo, o que acontece com a música.
Existem cinco companhias que hoje dominam a indústria musical, e
eles estão processando todo mundo todo o tempo por compartilhar
música com os outros, então há uma grande tentativa das grandes
companhias de tentar fechar o conteúdo musical e possuí-lo de forma
cada vez mais fechada, mas existem muitos artistas que formam um
tipo de novo movimento de software de código aberto, que querem
compartilhar suas coisas mais livremente com os outros.
A idéia de software de código aberto não é que não possamos cobrar
pelo compartilhamento, mas o ponto é mantê-lo aberto, de modo que
algumas outras companhias também possam fazer dinheiro com ele.
Eles estão fazendo dinheiro mas não estão fechando o processo de
desenvolvimento a outros. Já existe uma atitude que diz estarmos
prontos para viver em um nível bem baixo de riqueza material,
contanto que possamos devotar nossas vidas a fazer o que sentimos
ser importante, então neste período temos ao fundo o espírito da
ética hacker.
A ética hacker se aplica também, em meu ponto de vista, ao
movimento anti-globalização. Se observarmos os tipos de grupos,
eles são indivíduos que realmente se preocupam e se apaixonam por
uma questão. Eles querem juntar forças com outros que
compartilhem todas as idéias abertamente uns com os com outros.
Eles se organizam como o mundo hacker.
É importante notarmos que há uma série de desenvolvimentos
acontecendo nos chamados países em desenvolvimento. Se
observarmos quem está desenvolvendo o sistema Linux, verificamos
que há muitas pessoas que o desenvolvem fora dos países ocidentais.
Os lugares aos quais está se espalhando mais rapidamente são
claramente os países não ocidentais. A razão é que os países em
desenvolvimento permanecem estruturalmente subordinados
enquanto o conhecimento de ponta for fechado a eles pela autoridade
principal do mundo. Comprar o Microsoft Windows não os ajuda.
Eles não aprendem nada sobre a criação de tecnologia desta maneira,
e tornam-se subordinados a essa companhia norte-americana. Muitos
países, portanto, estão pensando que o que eles precisam é adaptar
soluções de de software de código aberto, onde eles também
aprendem como construir esse tipo de sistema.
Em Berkeley, realizamos muitas análises de diferentes países e como
eles se encontram na sociedade de redes. Um destes países, Gana,
tem a apenas algumas dúzias de pessoas que tem um alto nível de
habilidades de programação. Não existem departamentos de ciência
da computação em nenhum lugar do país. A educação de ciência da
computação nas universidades é de nível muito baixo. A única
maneira de expandir o conhecimento em um país como esse, é
conectar-se a uma grande comunidade hacker na Internet. O que
aconteceu, em parte, foi que eles estão aprendendo ao tomar parte
nas abordagens de de software de código aberto. Esta é uma maneira
de reduzir o hiato de conhecimento e expandir o grupo de pessoas
que têm acesso à tecnologia.
A ética hacker tornou possível um “movimento global anti-global”.
Mas a ética hacker não é um movimento político. Existem os hackers
políticos, mas nem todos os hackers são políticos. Não há uma
agenda política ou uma visão que todos os hackers compartilhem,
mas a ética hacker original da década de 1960, quando todo o
desenvolvimento começou, era uma visão de um mundo mais aberto.
Era a visão de um mundo em que a ganância econômica não vem à
frente de valores sociais, um mundo onde a abertura tem um valor
maior do que fazer dinheiro. Isso leva a uma visão global, pois se
observarmos o que realmente aconteceu, veremos que os países em
desenvolvimento continuam a ser marginalizados, e continuam a
sofrer muito. Um bilhão de pessoas vivem com um dólar ou menos;
um bilhão de pessoas sofre de desnutrição e assim por diante; 30,000
pessoas morrem todos os dias de doenças facilmente preveníveis, de
doenças para as quais há remédios. Isso também evoca o fechamento
da informação. Aqui temos um exemplo concreto do que significa
fechar a informação à maioria do mundo. Isso significa
conseqüências na vida real.
A tendência da ética hacker é ser comunicativa. A Internet criou um
fórum global de comunicação entre culturas. A ética hacker baseia-se
na idéia de liberdade - liberdade da pessoa, liberdade de informação.
Ela não é compatível com a idéia de uma sociedade fechada. Eu acho
que as sociedades fechadas vão entrar em colapso com a tendência
abertos ou fechados em relação a países desenvolvidos e em
desenvolvimento, além de questões como o comércio livre e o hiato
do conhecimento, são agora tópicos centrais em andamento.
Descobri que, do ponto de vista filosófico, os trajes da dança
moderna não são diferentes daqueles do balé. Em vez da malha com
saiote curto, usa-se um vestido longo e fica-se descalço. Ao invés de
utilizar modelos de tradição clássica, usam-se modelos de movimento
Eu creio que duas coisas mudaram nosso entendimento da sociedade
global de redes, não tanto no nível teórico, mas no nível prático. Uma
delas foram as demonstrações anti-globalização muito visíveis, nos
de outra pessoa. Nesse processo de começar do zero, surgiu um novo
leque de perguntas: por que, nos tempos mais antigos, as pessoas
dançavam? Quais são as origens da dança? Durante muitos anos, fui
EUA e em outros lugares; a outra foram os ataques ao World Trade
a todos os festivais indígenas norte-americanos que pude e também
Center. Estes eventos tornaram claro que o desenvolvimento global
fui a Bali. Vaguei pelo mundo vendo como as pessoas dançavam,
não pode ser apenas econômico e tecnológico, mas precisa também
ser social. Eu penso que a percepção de que isso é o caso é muito
maior do que o que foi antes.
buscando algo que me levasse às raízes da dança. Concluí que, de
início, a dança era parte da vida das pessoas. Quando você observa
os indígenas e seus rituais, todo mundo sabe exatamente o que está
Eu diria que o hacker de computadores e os grupos anti-globalização
não estão trabalhando mais juntos hoje do que antes, mas ficou mais
claro a todos em toda esta ação que existe uma dimensão social
crítica, então as conseqüências sociais globais de uma ação de cada
um são mais fortes. Não é coincidência que o movimento começou
ou foi especialmente forte na Califórnia e na baía de São Francisco,
pois lá é também o centro da informática capitalista, Silicon Valley, e
também era o lugar do “anti-” nos Estados Unidos. Todos os tipos de
movimentos de contestação começaram ou tornaram-se significantes
na Califórnia, desde os hippies até o movimento gay e de liberdade
de expressão. Culturalmente, é o tipo de ambiente em que se pode
esperar que algo desta natureza aconteça.
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER
acontecendo e por que está fazendo. Fiquei impressionada com uma
dança do milho em que uma mãe dançava com seu filho. A mãe tinha
o bebê nos braços e o bebê estava recebendo um código: sabia, por
experiência, o que aquela dança significava; naquela tribo, crianças
de quatro anos dançavam com pessoas de noventa. A natureza de
uma performance é unir o público e os performers numa criação
mútua que terá um impacto em suas vidas e lhes trará uma
experiência.
À medida que comecei a investigar como o movimento está
conectado aos sentimentos, percebi que sem expressividade ou
impulso artístico, você definha. Comecei a questionar o que traria à
tona os sentimentos dos seres humanos. Quando você se move e esse
movimento gera um sentimento específico, você diz “Me sinto triste
porque...”, “Me sinto irritado porque...”, “Me sinto romântico
porque...”, “Me sinto carinhoso porque...” O “porque” o vincula a
sua história pessoal, que é seu mito pessoal. Quando se usa a palavra
“porque”, lida-se com um mito, com uma história pessoal.
Foi assim que começamos a desenvolver importantes rituais de
transformação. Combinei movimento com desenho, com trabalho
vocal, com palavras: uma abordagem completa. A dança é um ritual
e nisto, sua intenção é a de transformar o medo da morte em
aceitação da morte como parte da natureza.
ANNA H ALPRIN
ANNA HALPRIN É PIONEIRA DE LONGA DATA E INOVADORA DO
“ NOVO
TEATRO ”. LIDEROU A
EVOLUÇÃO DA PERFORMANCE COMBINANDO A IMPROVISAÇÃO , A PARTICIPAÇÃO DO PÚBLICO ,
TEATRO AMBIENTAL E DE RUA , E A CRIATIVIDADE COLETIVA . ELA FOI INDICADA PELA DANCE
HERITAGE COALITION COMO TESOURO INSUBSTITUÍVEL DA DANÇA NA AMÉRICA DO NORTE .
TRADUÇÃO DE JÔ AMADO
SÃO FRANCISCO
_
28 DE JULHO DE 2004
A
primeira parte de meu trabalho, o período vanguardista, tratava
de apagar fronteiras. Do jeito que eu o via, minha primeira tarefa
consistia em redefinir a dança: começar do zero e eliminar os trajes
da dança moderna enraizados em nossa cultura. Estudei movimento
porque estava interessada na natureza da performance, em identificar
sua essência. Utilizei o movimento como base, tentando redefini-lo e,
ao longo do processo, o dançarino e quem tenha vocação para
dançar. Para me libertar da couraça, tive que voltar aos primórdios do
movimento, começando pelo interior mais profundo: o corpo interior,
a estrutura óssea e o sistema nervoso, os órgãos e os músculos. No
processo de estudar como o corpo se movimenta, encontrei uma
maneira científica de objetificá-lo. Devia me perguntar: “Como você
se move? O que você faz quando se move? Quais são as tarefas do
movimento?” Então, comecei a observar o movimento do cotidiano,
começando pelo mais simples. Isto é, perceber como surgem os
movimentos que visam a uma tarefa. Quando você se movimenta,
você carrega coisas, empurra ou levanta coisas. Meu vocabulário de
movimento consiste no que chamo posições de ouro: estar deitado,
sentado, em pé ou se movendo pelo espaço. Não tomava por base
apenas meu movimento, e sim, o de todo mundo. Ao fazê-lo, você se
movimenta no tempo, no espaço e com uma certa força. O espaço, o
tempo e a força eram os elementos com que eu trabalhava, os
instrumentos que davam forma ao movimento e que me levaram a
criar movimentos que se inspiravam em ambientes determinados.
Numa dessas experiências, perguntei: “O que acontece quando você
26
Meu genro, um norte-americano de origem indígena, costumava
dizer: “Nunca pensei que a dança fosse considerada bonita. Achava
que fazia parte da vida cotidiana.” As pessoas dançam porque
através da dança alcançam um poder superior, um espírito para além
das palavras, para além da informação que a mente passa ao corpo.
Na dança, o corpo informa a mente. Os indígenas norte-americanos
usavam a dança para lidar com coisas concretas – nascimento, morte,
iniciação da juventude, cura de doenças. Todos os momentos
importantes na vida das pessoas se transformavam por meio da
dança. Eu me perguntava se a dança, ao invés de uma imitação,
poderia novamente ter esse poder de transformação. Conseguiria a
dança resolver e curar conflitos em nossa própria cultura, em termos
de nossos próprios pontos de vista científicos e filosóficos?
Investigando e estudando os ingredientes dos rituais – de qualquer
ritual – me levou a compreender que o ritual é inerente ao processo
da dança.
O espetáculo Parade and Changes é do período de meu trabalho em
que eu estava tentando romper com todos os tabus que me
ocorressem. Por isso, o uso da nudez é uma maneira de dizer:
“Fazemos parte da natureza e nossos corpos são lindos.” Por que
temos que os cobrir? Parade and Changes tinha uma trilha sonora
fascinante. Tínhamos um músico que tinha partituras distintas para
espetáculos diferentes. Os dançarinos, o escultor, o rapaz da
iluminação, cada um tinha sua função, sua ação específica. Você
podia misturar as partituras como quisesse. Às vezes, o escultor subia
no andaime de onde estavam penduradas as luzes e quando estava lá
em cima tornava-se um dançarino. Acabamos nos tornando
multidisciplinares, o que é um nível da holística, ou o que é
conhecido por teatro holístico. Um aspecto da holística estava na
parte objetiva, na estrutura do teatro. Outro era o interno: integrar a
vida pessoal de alguém com suas emoções e sua capacidade de se
mover como uma pessoa por inteiro. A dança se tornou um ritual ao
integrar todos esses aspectos. Não separamos os artistas: todo mundo
colaborava e nos interligávamos todos, constituindo um único corpo
e usando todos os processos artísticos.
Durante a crise de Aids, aqui em São Francisco, as pessoas
começaram a praticar rituais. Não se davam conta, mas dançavam
qualquer direção. Você pode passar dos recursos à música sem a
exercer sua criatividade. Depende de sua habilidade em construir sua
sobre suas vidas pessoais. Foi nessa época que criei o espetáculo
partitura e a isso eu chamo improvisação. Uma partitura tem uma
experiência de modo a criar uma empatia com os outros, de maneira
Carry Me Home, em 1989. Tinha trabalhado com um grupo de
rapazes e seus parceiros, que tinham Aids. Um dia, um desses jovens
atividade definida: o que você vai fazer e onde vai fazer. Acontece
num espaço, envolve tempo e pessoas. Se você tiver esses quatro
a atingir uma qualidade universal. Depende de seu talento, como
profissional e como artista, de ser capaz de dar forma à sua
chegou para mim e disse: “Estou indo para casa.” Já estava ficando
elementos, já criou alguma coisa. Uma partitura é uma atividade no
experiência de maneira a ter impacto sobre os outros.
debilitado e muito magro. Estava escrito em seu rosto que ia para
espaço, com visão. Quanto tempo e quantas pessoas você tem?
casa para morrer. Conversamos, choramos e nos despedimos. Então,
quando ele saiu, ficamos ali sentados, atordoados, pensando “Quem
Algumas partituras são muito abertas; outras, fechadas.
Nos Estados Unidos, temos uma situação única. Temos uma cultura
muito diversificada. Temos todas as nacionalidades em que você
Em Ten Myths, havia 10 partituras distintas e os artistas não
possa pensar, todas as religiões. Somos tão diversificados em nossa
ensaiavam. Eu queria saber quais eram os padrões de grupos de
pessoas quando se juntavam. Toda vez que eu montava uma
cultura que temos uma necessidade irresistível de encontrar traços
comuns, mantendo na íntegra nossa diversidade. Tenho minhas
nascera de um fato tão concreto.
estrutura, o grupo a desfazia e criava outra, diferente. As pessoas
encontram um ritmo comum. Espalham-se e rompem com a partitura
próprias conexões ancestrais e é importante que elas façam parte de
quem eu sou. São minhas origens. Todos nós temos conexões
Quando eu era pequena, senti um anti-semitismo muito forte, o que
num belíssimo e excitante caos porque muitas coisas acontecem
ancestrais de países e culturas diferentes. Também na música há uma
me provocou muita raiva e tristeza, e uma empatia para com as
pessoas que não tinham privilégios. Ser aberto e interagir com uma
simultaneamente. Depois o refazem através de passagens,
serpenteando, em linhas retas ou em círculos. Comecei a juntar todos
consciência planetária, trazendo novos sons para que não fiquemos
escutando para sempre música clássica européia. Yoyo Ma apresentou
pessoa, ou com sua experiência, sugere uma história pessoal. Os
povos indígenas não se interessam muito por isso. Se interessam mais
esses recursos, fazendo-os refletir em meus próprios trabalhos. Ao
fazê-lo, o espectador pode identificar e enfatizar, pois esses são
uma série de programas sobre música étnica. Uma pessoa como Yoyo
Ma tem enorme influência e, com certeza, lidera esse movimento.
pelas curas, pela comunidade. Foi por isso que em seguida fui para
padrões que nos codificaram enquanto grupos. Quando os pioneiros
São coisas que começam a chegar a nossos ouvidos, sons a que não
Planetary Dance e para Circle the Earth. Qual é a natureza do ser
humano? Você começa por ser um bebê que só pensa no leite e na
eram atacados pelos índios norte-americanos faziam um círculo. As
aves migratórias voam em V porque dessa forma o impacto com o
estamos acostumados: sons turcos, afegãos, iranianos, africanos.
Acho que estão ganhando valor, criando mais consciência e mais
mamãe, num completo auto-envolvimento, para depois ter
consciência da existência de mãe e pai. Gradativamente, vai-se
vento torna o vôo mais fácil. Quando o líder se cansa, vai para trás e
outro toma a dianteira. Estudei esses padrões com seres humanos e
aceitação das diferenças. Para sobreviver, temos que encontrar nossa
humanidade comum, temos que ser capazes de aceitar as diferenças
tomando consciência da existência de outras pessoas e aprendendo a
comecei a utilizá-los em meu trabalho. Percebi que o público
pelo que temos em comum. Essa é a atual pedra de toque em tudo o
se relacionar com a família. Em seguida, se relaciona com outras
famílias, depois com uma cidadezinha, ou uma comunidade. No
realmente gostava de fazer aquelas coisas e então tentei apresentar o
mesmo trabalho de maneiras distintas. Quando há a possibilidade de
que faço.
mundo atual, a comunicação criou a oportunidade para que você se
relacione com outras famílias, em outras comunidades. Embora eu
incorporar o espectador ao artista, por que não fazê-lo? Esse é outro
recurso que amplia as possibilidades. Quando eu tinha que estar num
não tivesse consciência disso, eu participava do movimento hippie.
teatro, procurava encontrar os momentos em que o público se
Foi um período de experimentação inspirador, embora não tenha sido
somava aos artistas. Mas foi de uma maneira quase acidental que
o tipo de clima que me seduzisse. Criava uma energia forte e todo
mundo gostava. Costumávamos praticar o que chamavam straight
theatre. Também trabalhei com grupos de rock, tentando estimular as
comecei a utilizar a participação dos espectadores. Meu trabalho
provocava tanta agitação no público que as pessoas berravam,
gritavam, atiravam objetos! Quando apresentávamos Exposizione, em
pessoas a dançarem porque, como não havia cadeiras, dançavam
Roma (1967), um homem veio pelo corredor, ficou de frente para
sozinhas. Elas não se relacionavam umas com as outras. Janis Joplin
todo mundo e disse: “Foi para isto que Colombo descobriu a
queria fazer uma experiência para ver o que aconteceria se
incentivássemos as pessoas a se relacionarem entre si.
América?” Foi maravilhoso. Eu era tão ingênua, em meu mundinho
particular, fazendo minhas coisinhas! Não tinha a menor noção do
que fazia o público ficar tão excitado. Mas decidi que era uma imensa
fonte de energia livre e comecei a preparar partituras só para o
público.
será o próximo?”. Foi um ritual. Transformou a capacidade de todos
de encarar a morte e encontrar uma espécie de paz. Com Carry Me
Home, todo mundo pôde sentir, identificar-se, interagir porque
Eu faço um círculo quando quero simbolizar a unidade. Quando
fizemos Circle the Earth, trabalhávamos a questão do câncer de
mama e a violência nas escolas; era necessário que houvesse uma
maneira de juntar todas as partes, para criar uma mensagem positiva,
de esperança, pois havia muito desespero. Na época, eu dava aulas
de dança comunitária e vinham dançar semanalmente de 60 a 100
pessoas. Ficava olhando a maneira como se movimentavam,
enquanto grupo grande. Fazia parte de nossa tradição fazer
experiências com grupos grandes. Fazíamos muitas manifestações.
Para sugerir um sentido de esperança, cheguei à idéia do círculo,
onde a voz de cada pessoa emitia uma mensagem sobre o que ela
pensava que seria o melhor mundo possível para viver. Agora, com
estas guerras horríveis, a gente começa a pensar sobre o que está
acontecendo à terra, ao ar e à água. Todos nós respiramos o mesmo
ar e bebemos da mesma água. No ar, não existem fronteiras. O que
está em risco, agora, é a vida no planeta.
Durante a Guerra Fria, havia um medo disseminado de que os russos
nos bombardeassem. As pessoas se juntavam, em grupos, e assistiam
a uns vídeos horríveis sobre o que aconteceria se fôssemos
bombardeados. Não dava para ver esses vídeos sozinho. Em
conseqüência desse tipo de medo, nasceu um desejo intenso de
trabalhar com grupos grandes. Em Planetary Dance, juntávamos, em
média, umas 300 pessoas, de todas as idades e com as mais diversas
aptidões físicas. Uma consciência planetária significa pensar de
maneira holística. Muitas das pessoas que participavam da dança
vinham de diferentes lugares do mundo. Levei esse processo da
dança planetária à Suíça, Alemanha e Austrália – e também foi
apresentado em Israel, no Egito e no Japão. Os participantes
devolviam informações sobre como se passara com suas
comunidades e quais eram as questões em suas comunidades e
começávamos a sentir que aquele espetáculo de dança não era só
nosso, não era só daqui. Estava acontecendo em 36 países e cada
grupo levantava um tema diferente, no contexto do qual inseria a
dança.
A música é sempre importante, mas em Planetary Dance é
fundamental. Planetary Dance tem uma partitura fechada porque seu
roteiro é muito preciso quanto ao que deve ser feito, mas não
exatamente quanto à forma de fazê-lo. Uma vez, nos apresentamos
na praia e não tínhamos músicos; então, apanhamos alguns gravetos
e uns pedaços de pau, um grupo se ofereceu para fazer o papel de
bateristas e foi tocando. Não imaginávamos que seria possível fazer
aquilo sem o estímulo exterior da batida, que mantém todo mundo
junto. O batuque mantém a batida e cada batida é uma oração feita
a Terra. Tínhamos bateristas excelentes, os melhores do ramo. Muitas
vezes traziam alunos seus – uma vez tivemos 100 bateristas. Era uma
energia muito forte.
Em Intensive Care, ao invés de unir espectadores e artistas, tentei
fundi-los entre si, trabalhando como se fossem um só corpo. Imaginei
que se fizéssemos essa dança numa cadeira com rodinhas, isso
sugeriria uma sensação de armadilha. Queria fazê-lo com mais de
uma pessoa, pois seria mais envolvente, do ponto de vista visual.
Queria fazê-lo com quatro pessoas. As cadeiras determinaram o
espaço. O tempo estava em aberto até que o explorássemos e
acabamos fazendo uma estrutura de 45 minutos. Eu queria que as
pessoas usassem partes diferentes do corpo. Uma delas usaria
somente a cabeça, outra, somente os braços, outra, as pernas e a
quarta usaria o tronco; queria que fossem um único corpo, mas com
quatro respostas pessoais distintas. Foi trabalhada uma partitura, mas
eu nunca disse a qualquer uma dessas pessoas o que deveriam fazer
com as pernas, a cabeça, o tronco ou os braços. Fizemos uma
pesquisa antes de começar, coletando respostas à pergunta: “Qual é
sua experiência pessoal com a morte? Escreva o que você sente a
respeito da morte.”
Certo dia, eu estava no estúdio e ia ensinar a diferença entre uma
partitura aberta e uma fechada. As pessoas acham, em geral, que
uma partitura fechada não é muito boa, enquanto as abertas são
consideradas melhores. Mas isso não é verdade; uma partitura
fechada pode ser muito importante. Estava pensando em como iria
fazer a apresentação quando vi uns urubus voando, naquele vôo
concêntrico. Deveria haver algum animal morto por ali. “Essa seria
uma boa partitura fechada”, pensei. Para mostrar o que queria dizer
com uma partitura fechada, disse a todo mundo que se movimentasse
de maneira uniforme, como os urubus, para ficarem todos no mesmo
ritmo. Percebi que ficavam cansados de correr numa única direção
porque uma perna agüentava mais peso do que a outra; então, disselhes para tomarem a direção oposta. Começou pouco a pouco. Você
não pode correr sem motivação. Então pensei que se estivessem
correndo para alguém, além de si próprios – e eles sentiam que
alguma coisa, externa, dependia de sua capacidade de correr de
maneira adequada – aumentaria a motivação. No final, diriam uns
aos outros para quem tinham dançado. Houve um ano em que um
homem disse que iria dançar para seu irmão John. Notei que dançou
com muito sentimento. Era africano. Percebi que ficava repetindo um
mesmo gesto. No final, veio falar comigo e contou que tivera um
irmão gêmeo chamado John. “John”, disse, “foi assassinado e eu não
consigo pronunciar o nome dele. Hoje foi a primeira vez em dez anos
que disse o nome dele em voz alta.” As pessoas sempre dançam em
nome de coisas ou pessoas que são muito importantes para elas e é
isso que mantém aceso o espírito da corrida.
A partitura é um processo de comunicação. Se você considerar um
O fator determinante em tudo aquilo em que eu quis progredir foi o
círculo como o nosso e chamá-lo RSVP, é uma partitura. Mas a
partitura surge da coleta de vários recursos. Recursos são idéias. Você
junta tudo numa melodia, toca e, em seguida, avalia o resultado
obtido. Deu certo ou não deu? Esse processo pode ocorrer em
de ser capaz de ter um processo de trabalho criativo, junto com a
experiência da arte – e da vida. Minha intenção sempre foi libertar a
criatividade. Se você conseguir objetivar algo e oferecê-lo para que o
participante o possa sentir subjetivamente, então a comunidade pode
27
Em dança, o “agora” é particularmente crucial porque tudo voa. Você
faz um movimento e, quando se dá conta, já se foi. Não deixa uma
imagem no espaço, como um desenho, ou uma pintura. Uso imagens
para que você possa criar um vínculo visual condensado que possa
exteriorizar uma experiência muito íntima. Para apresentar alguma
coisa, você tem que re-criar o “agora”. Você não pode ilustrar
movimento de um modo meramente mental. Há o aspecto físico, o
aspecto emocional, o aspecto associativo, ou de imagem, e a conexão
espiritual. Isso é estar no “agora” e é a essência da apresentação de
uma performance.
Como estou com 84 anos, seria difícil para mim, nos dias de hoje,
opinar sobre o que é vanguarda – e por vanguarda refiro-me a algo
de novo, que nunca tenha visto. Acho que atualmente, o problema
reside em como torná-la – a palavra preferida na Califórnia – útil.
Lembro-me de uma história sobre Isaac Stern. Durante a primeira
guerra com o Iraque, os mísseis estavam apontados para Jerusalém e
todo mundo carregava máscaras anti-gás. Stern estava tocando com a
Sinfônica de Jerusalém e todo mundo tinha as máscaras debaixo das
cadeiras. Então ouviu-se uma sirene de alarme – era só um teste – e
todo mundo pegou as máscaras e as colocou. Lentamente, os músicos
da orquestra deixaram o palco para colocarem suas máscaras, mas
Isaac Stern ficou. Não pôs a máscara; continuou tocando seu violino.
Foi um momento emocionante – vê-lo sozinho, no palco, tocando sua
música. Esqueci se era Brahms ou Bach, mas mais tarde ele foi
entrevistado e lhe perguntaram o que havia achado daquela
experiência. “Foi a primeira vez em minha vida que achei minha
música útil e isso foi sensacional”, disse ele. É isso que procuro, mais
do que definir o que é vanguarda.
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER
S ASKIA S ASSEN
SASKIA SASSEN É PROFESSORA TITULAR DE SOCIOLOGIA NA UNIVERSITY OF CHICAGO , E
PROFESSORA VISITANTE DA LONDON SCHOOL OF ECONOMICS . SEU LIVRO THE GLOBAL CITY
FOI RELANÇADO EM NOVA EDIÇÃO ATUALIZADA EM 2001 . SEUS LIVRO MAIS RECENTES SÃO O
GLOBAL NETWORKS , LINKED CITIES , ROUTLEDGE
- 2002 -
E CO - EDITOU SOCIO - DIGITAL
FORMATIONS : NEW ARCHITECTURES FOR GLOBAL ORDER , PRINCETON UNIVERSITY PRESS
-
2004 - CITIES IN A WORLD ECONOMY - CIDADES EM UMA ECONOMIA MUNDIAL - FOI
PUBLICADO EM PORTUGUÊS PELA EDITORA STUDIO NOBEL
-
SÃO PAULO
-
TRADUÇÃO DE GAVIN ADAMS
LONDON
_
18 DE AGOSTO DE 2004
A
globalização econômica corporativa é um sistema de poder que
usa algumas das velhas capacidades derivadas do estado nacional,
mas mobiliza-as de forma nova. Nesta nova mobilização, o que
poderia ter sido dirigido às economias nacionais e interesses
nacionais muda sua orientação em direção aos interesses globais
mais estreitos de atores particulares. Não há uma ruptura total com o
estado nacional, de jeito nenhum. Mas de fato sinaliza a formação de
um tipo de espaço institucionalizado que desfaz os limites do sistema
inter-estatal.
Um dos aspectos que observo são os ativistas contestatórios. Existem
formas de ativismo global que capacitam pessoas dentro de um
âmbito local e talvez imobilizadas a experimentar a si próprias como
sistema, uma democracia imperfeita é fundadora. Começando na
amalgamada de trabalho em posição de desvantagem (aquela mistura
parte da rede global, ou de um domínio público que existe em outra
França no século XIX, instrumentos legais tornaram-se poderosas
de cidadãos reduzidos à minoria, imigrantes e refugiados). Esta força
escala, diferente daquela da localidade em que trabalham. Como
parte de uma rede maior, ativistas de direitos humanos ou
ferramentas no esforço de assegurar um campo de ação seguro para
o poder - tanto do Estado como de atores privados. Mas na França
de trabalho tem como um dos seus locais de trabalho os setores
globalizados; no sentido de que está estruturalmente conectada ao
ambientalistas, que podem estar obcecados pelo torturador em sua
testemunhamos lutas que freqüentemente restabelecem o equilíbrio.
capital global, ainda que os trabalhadores pareçam não ter a ver
cadeia local, ou com a floresta perto de sua cidade, ou com o
A Grã-Bretanha, muito “civilizada”, foi na verdade muito brutal no
ainda com o que pensamos ser a economia global. Ambos são
suprimento de água em sua região, podem começar experimentar a si
próprios como parte de um esforço global maior sem abrir mão de
século XIX : através de uma intervenção legal atrás da outra, ela
construiu um trabalhador como um sujeito de poucos direitos ou
internacionais, mas há muito de nacional nisto também.
suas características locais. É esta combinação que é crítica para
totalmente destituído deles. O abuso foi tão extremo que o Trabalho
minha discussão sobre cosmopolitanismo, ou melhor, contra a
difundida presunção que se é global decorre que seja também
se revoltou. Ironicamente, através das reformas que conseguiu, este
permitiu ao capitalismo sobreviver através de pequena humanização.
cosmopolita. Assim, falo sobre formas não-cosmopolitas de
Nos Estados Unidos, como na Grã-Bretanha, o indivíduo sem
globalidade. As novas tecnologias da informação, desenhadas para
eliminar distâncias, para produzir a compressão espaço-temporal,
propriedade foi construído como uma persona desprovida direitos.
Em contraste, a propriedade traz direitos. A esfera do mercado, que é
podem ter na realidade também o efeito de revalorizar a localidade e
atores locais. Eu contesto esta confluência do global com o
supostamente neutra, é, desde o início, uma esfera política.
suburbano. Estes locais de trabalho reduzem-nos à condição de
trabalho, eles desestruturam tudo que os imigrantes possam ser,
Uma das razões pelas quais puderam ocorrer vitórias daqueles em
posição de desvantagem, no final do século XIX, é que o nacional
tanto em termos da produção das capacidades especializadas de que
o capital global precisa, quanto em termos de sua produtividade
estava se tornando cada vez mais estreito, e, desta forma, a luta dos
trabalhadores pôde atingir o poder nacional. Hoje, tanto o capital
política: em transformar tanto o capital em uma força social quanto
capacitando a força amalgamada de trabalho em posição de
quanto aqueles em posição de desvantagem tomaram proporções
desvantagem emergir como força social.
cosmopolita. Financistas são globalistas não-cosmopolitas, e eu
argumento que a maioria dos ativistas ambientalistas ou de direitos
humanos, aqueles que estão de fato a se envolver na ação, também
são globalistas não-cosmopolitas. Eu quero chegar a uma
multivalência, tanto da globalização quanto do que significa ser um
globalista não-cosmopolita - reinventar o local como alterglobalização. Em um domínio muito diferente, eu diria que haverá
um um verdadeiro empuxo em direção à relocalização de diferentes
mercados, tirando-os do mercado supranacional e tornando-os locais,
mas inseridos no horizonte global, ou, pelo menos, redes
transnacionais. Não precisamos da produção padronizada das
multinacionais, que podem vender-lhe a mesma produção não
importa onde você esteja.
Não há nenhuma agenda política compartilhada ou conspiração na
atual globalização econômica corporativa. Não há necessidade delas.
A questão é, melhor dizendo, a sistematicidade do modelo neoliberal,
o quão profundamente ela se tornou parte da estrutura básica e da
ideologia - “o Mercado sabe mais”, o que quer que isso signifique. A
extensão da idéia de mercado a um âmbito crescente de domínios é
uma forma de autoridade. Isso faz do mercado um componente de
cada vez mais presente nas esferas da vida social. Isto é
sistematicidade. Mas será a idéia do global o suficiente para tudo
alcançar? A autoridade dos mercados certamente se espalhou para
mais partes do mundo. Mas o poder nunca é absoluto, nunca é
completamente aceito.
Vemos a emergência de vários tipos de questões contestando vários
aspectos do poder, do sistema - pessoas trabalhando contra o
mercado como concebido pela Organização Mundial do Comércio e o
FMI, contra as minas terrestres, contra o tráfico humano, contra a
destruição ambiental. Estas centenas de atores contestadores em
diferentes localidades acabaram por produzir um tipo de efeito
sintético - elas constituem a multidão. Uma questão crítica é então
entender as muitas arquiteturas políticas informais através das quais
a multidão se constitui. Existe o fazer, poesis, nestas arquiteturas
políticas informais. Existem várias maneiras diferentes de fazer sendo
construídas de baixo para cima, e existem diferentes terrenos em que
novos tipos de sujeitos políticos e lutas estão emergindo. Uma cidade
pode conter centenas de terrenos para ação política. Tudo isso
começa a introduzir uma textura, uma estruturação para a noção de
multidão. O que me interessa é o uso destas arquiteturas políticas
específicas, diversas, dentro da multidão. Este é um tipo de política
global em fase de construção que tem, como componente crítico,
multidões que podem ser globais mesmo que não sejam móveis.
Hoje observamos uma negociação informal de múltiplas escalas: não
mais se trata do global e do local, ou do nacional versus o global.
Estas escalas mutuamente exclusivas, que nós herdamos, pertencem
ao nacional. As escalas do nacional - que ainda prevalecem - são
constituídas hierarquicamente e formalmente, tanto em termo
institucionais quanto em termos geográficos. Embora este
escalonamento ainda prevaleça, ele está sendo desestabilizado. O
estado-nação não irá desaparecer, mas este sistema hierárquico de
escalas está instável.
O tipo de poder que os Estados Unidos construiu para si e que
mobiliza globalmente, e que mostra-se insustentável. Os Estados
Unidos têm exercido o pleno potencial do presente da pior maneira
possível. Hoje o Iraque nos mostra seus limites, o começo do fim do
presente. A guerra norteamericana no Iraque e a guerra contra os
direitos civis em seu próprio território, ambas estão tornando
evidente o caráter degradado do poder americano (US); neste
processo, mesmo quando os Estados Unidos exercitam seu poder ao
máximo - contra civis iraquianos, contra os cidadãos reduzidos à
minoria nos próprios EUA - neste exato gesto está a perder
autoridade.
Muito foi dito do crescente déficit de democracia causado pela
globalização ou pelo sistema supranacioanal da União Européia. Mas
as origens deste déficit vão muito além estas representações comuns.
Nos Estados Unidos, a coisa começa com a lei em si. O poder como
uma condição legal, é, sem dúvida, mais brutal nos Estados Unidos
que na Europa. A maneira como o privado e o público foram
construídos, tudo isso é parte da formação do capitalismo. Neste
globais, ainda que, em relação ao trabalho organizado, este processo
tenha apenas começado.
A cidade global permite à força amalgamada de trabalho em posição
de desvantagem, capacita-a, a emergir como uma força social.
Podemos ter muitos imigrantes trabalhando em uma grande fazenda
coorporativa, mas em tal situação que eles não podem emergir como
força social. A mesma coisa acontece com o local de trabalho
reduzindo-os a trabalhadores. A cidade global é um espaço produtivo,
Quero elaborar neste particular usando Henri Lefebvre e Max Weber,
para colocar a questão em contexto histórico. Lefebvre demonstra
Hoje, aqueles em posição de desvantagem podem deixar o âmbito do
que há produtividade do espaço, do próprio ambiente. Weber verifica
nacional. Mesmo que não deixem o país. Novas tecnologias, o
que as cidades medievais capacitaram os burgueses a emergir como
imaginário acerca da globalização, todos permitem novas formas de
força social, como atores políticos. Na década de 1950, Lefebvre
investiga as cidades industriais de seu tempo, e argumenta que o
burguês não mais precisa da cidade. Estas não são mais cidades para
geografia para o trabalho político. Muitos atores localizados, que
nunca viajam, que não são parte das novas mobilidades, começam a
experimentar-se a si mesmos pertencendo, participando de redes
globais. As novas tecnologias permitem conectividade horizontal,
os burgueses, mas sim as cidades das classes trabalhadoras
descentralizada, simultânea - uma conectividade internacional onde
como sujeito político, como uma força social - a cidade onde os
trabalhadores podem reinvindicar os aparatos de consumo coletivo,
não há hierarquia. Isso é bem diferente da forma de conectividade da
organizadas, onde a classe trabalhadora pode emergir como ator,
Internacional Socialista, com sua estrutura central de organização. E
também não é internacional no sentido da Internacional Socialista.
Atores políticos informais, o movimento alter-globalização, os vários
de transporte público a saúde e habitação. As cidades não
desempenharam sempre este papel. No ápice do capitalismo
tipos de ativismo acerca dos direitos humanos, o meio ambiente, a
fábricas; áreas que não eram cidades - como o norte da França.
justiça social, todos estes produzem de facto, ainda que por vezes
sem querer, uma presença face-a-face os outros - não apenas face-aface o poder ou a mídia global, mas face-a-face entre si. Este
reconhecimento é crítico; ela dá estruturação à multidão. É por isso
que os fóruns de Porto Alegre e Mumbai são esforços enormemente
importantes.
Você me pergunta sobre imigração e globalização. A maioria das
grandes migrações (e não de movimentos idiossincráticos como o
meu...eu sou nômade) estão incrustadas em sistemas transnacionais:
impérios coloniais no caso da Europa (por exemplo, os argelinos à
França), impérios neocoloniais no caso dos Estados Unidos,
constituídos através de investimento em agrobusiness (México) e em
manufaturas no estrangeiro, no Haiti, ou de operações militares
(Vietnã, Filipinas, Coréia do Sul), e assim por diante. Uma vez que o
fluxo de uma migração é iniciado, uma nova fase adentra o processo:
ela se torna uma cadeia de imigração, ela se auto-alimenta.
A questão, portanto, é se e como a proliferação de sistemas globais
ao longo dos últimos 20 anos afetou as características da migração.
Na minha leitura das evidências, três características se destacam mesmo que cada fluxo migratório seja distinto em seus detalhes
empíricos. Uma destas é que a multiplicação de sistemas globais de
toda sorte também multiplica as pontes que conectam o potencial
particular das “áreas de envio” com as áreas potenciais de
recebimento: temos uma multiplicação dos fluxos migratórios.
Segundo, o enorme aumento do tráfico ilegal que se tornou um
negócio global, usando a infraestrutura da globalização. Isso significa
a criação de fluxos migratórios que podem não estar incrustados em
sistemas mais antigos , mais arbitrários (ainda que não
completamente desligados das geografias imperiais mais antigas). A
terceira é a formação de mercados de trabalho globais e cadeias de
amparo - globalizando toda uma rede de trabalhadores de serviços
pessoais, tais como enfermeiros, babás, faxineiros, trabalhadores do
sexo. Todas estas três características, mas especialmente a terceira,
encontram sua mais aguda expressão nas cidades globais.
Buenos Aires ou Manila, por exemplo, na verdade não têm
imigrantes; elas recebem profissionais, trabalhadores da construção
provenientes da Bolívia e Paraguai. Em Nova Iorque, Paris, Frankfurt,
Londres, Amsterdã, Toronto, e Sydney, temos uma enorme mistura de
forças de trabalho basicamente constituídas através de imigrantes,
refugiados, os que procuram asilo e cidadãos reduzidos à minoria
(como porto-riquenhos e os negros de Nova Iorque, os cidadãos do
Maghreb em Paris etc.). Em muitas outras cidades do Norte global,
incluindo Tóquio, a migração marca presença significativa, e
desestabiliza, altera, transforma: trata-se de uma dinâmica de
trabalho dentro destas cidades.
industrial, os lugares cruciais de luta eram as minas, as grandes
Eu lanço o olhar sobre a cidade global, e verifico que elas não são
mais as cidades da classe trabalhadora organizada ou da velha noção
da burguesia que encontra na cidade o lugar de sua autorepresentação e projeção de seu poder (incluindo o poder
civilizatório). Eu vejo nas cidades globais o espaço que capacita dois
outros tipos de atores sociais. As cidades globais são o espaço onde
aterrisa esta categoria progressivamente elusiva, privatizada e
digitalizada a que chamamos capital global, e, por um momento em
sua complexa trajetória, se torna homens e mulheres. Estes são
homens e mulheres que desejam tudo e tudo conseguem. Desta
forma, eles projetam seus trabalhos diários e estilos de vida na
cidade. Isso toma muito espaço, e desta forma invadem o espaço
residencial de outras pessoas (o processo de gentrification), invadem
a área do trabalho de outras pessoas (novos e glamorosos edifícios de
escritórios tomando o lugar de economias urbanas mais antigas). É
através desta projeção e invasão que a concretude da vida cotidiana
de lares de alto salário e firmas de altos lucros revela-se uma força
social. Nestes termos ela pode ser confrontada diretamente. A outra
força social que emerge do fato da força amalgamada de trabalho (e
assim “desorganizada” em oposição, por exemplo, ao “trabalho
organizado”) é parte de setores econômicos da cidade globalizada, e,
não importa o quão contingente e transitório, também projeta seu
trabalho e estratégias de sobrevivência no espaço urbano:
comunidades imigrantes, o “banlieue” em Paris, áreas comerciais de
baixo custo, restaurantes baratos, camelôs e assim por diante. Isso,
eu argumentaria, é também um tipo de estruturação da multidão. Eu
uso o termo força social para captar ambos os atores emergentes, pois
eles não são classes, ainda não. O que temos é um processo muito
mais desorganizado, localizado e concreto que os significados mais
complexos que Marx atribuiu à classe social. Também não há
programa comum. Esta são forças sociais emergentes. Mas um efeito
é o fazer do capital global concreto, não uma categoria global
espectral. E isso dá à força amalgamada de trabalho em posição de
desvantagem um contorno político, além do sujeito trabalhador. Isso,
por sua vez, capacita vários tipos de prática política - da teatralização
do político como nos desfiles de imigrantes, ou na organização de
faxineiros através do movimento de sucesso Justice for Janitors
(Justiça para os Faxineiros).
Se eles são estrangeiros ou nativos do lugar é uma questão quase
secundária na formação desta força amalgamada de trabalho. Muitos
imigrantes de terceira geração e cidadãos reduzidos à minoria são
parte desta força social emergente. Cidadãos reduzidos à minoria,
neste contexto, têm a opção de experimentar a si próprios dentro de
algo próximo da diaspóra, já que podem deixar o pertencimento
subjetivo da entidade coletiva do estado nacional. Aqui eu não quero
A cidade global é uma espécie de zona de fronteira, no sentido de
uma cidade do “Velho Oeste” - para usar uma imagem histórica. É um
lugar onde dois tipos diferentes de sujeitos, atores, encontram-se sem
regras estabelecidas de engajamento. Numa cidade do Velho Oeste, os
dizer somente os economicamente em desvantagem: eles podem ser
cidadãos de renda média reduzidos à minoria, ou podem ser
anarquistas, ou gay, lésbicas e homossexuais que se sentem
alienados, ou ainda qualquer tipo de pessoa ou identidade que não se
sente parte do “nós” nacional. O que começa acontecer é que toda a
colonizadores com os indígenas. Na Cidade Global, o encontro entre
o capital corporativo global como força social, e a vasta força
noção relacionada à diáspora emerge como um instrumento, uma
instrumentalidade, uma maneira de identificar um novo tipo de
28
sujeito político. A Cidade Global conecta todos estas lutas e
identidades subalternas, uma mistura de pessoas que
majoritariamente não trocam nada entre si, que na maioria das vezes
nem se fala, mas que emergem como uma força social amalgamada.
A mesma mistura em um tipo diferente de lugar - a universidade, o
A cidade global é um dos lugares críticos onde o capital corporativo
global se faz presente na vida cotidiana das pessoas. O capital global
também se faz presente nos centro bancários no estrangeiro e nas
zonas de processamento de exportações, e em outros tais lugares,
mas não da maneira complexa e multifacetada com que o faz em uma
composto, pois eles e nós também estamos nos movendo, a partir de
um senso de política negra que foi definido através da oposição entre
o Leste e o Oeste, para um novo senso que flui, que gera uma nova
geometria do poder, que é definida pelo eixo de conflitos geopolíticos
que corre não do Leste para o Oeste, como ocorrera na dispersão
hotel, o hospital, o subúrbio - não estaria necessariamente capacitada
a emergir como força social, pois sua posição sistêmica econômica
não residiria lá.
cidade global. A cidade global é um ambiente extremo, um lugar
brutal, não importa quão glamorosa seja a arquitetura. É por isso que
ela é o lugar da política, da emergência de novas forças sociais
estratégias.
original, mas do Norte para o Sul e então de volta.
Existem muitas globalizações. Cada uma tem uma geografia e
arquitetura particularizadas. Quando o assunto é a globalização
econômica corporativa, eu argumento que o lado organizacional é
bem diferente do lado do consumo. A maior parte da atenção recai
sobre as multinacionais do consumo: McDonald’s, Nike e assim por
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER
se com a violência, sofrimento e caos que se diz representar a África.
E eu acho que o problema não é exclusivo da experiência afroamericana, mas se manifesta com especial intensidade para eles.
diante. O projeto das firmas de consumo se resume a quanto mais
consumidores pelo mundo venham a usar ou comer seus produtos,
melhor. Em contraste, o lado organizacional não precisa chegar a
todos os lugares e alcançar tantos consumidores quanto possível. O
lado organizacional é estratégico: ele provê os serviços de operação
global das firmas e mercados, tanto aquelas que vendem para
consumidores quanto aquelas que vendem para outras firmas. O lado
organizacional vende para outras firmas. Ele se faz visível apenas
quando realmente precisa, não faz propaganda nos mercados
consumidores, só faz propaganda para outras firmas. A rede de
cidades globais é uma geografia estratégica para o lado
organizacional do capital global. As cidades globais possuem uma
mistura de recursos úteis na produção de capacidades especializadas
para o capital global. Eu quero enfatizar que o capital global precisa
ser feito, produzido, exige serviços, exige serviços legais e de
contabilidade etc. A cidade global representa este momento único de
alta legibilidade onde as capacidades das firmas globais e mercados
globais precisam ser globais, serem produzidas, inventadas, feitas.
A função econômica chave da cidade global é que ela serve como
uma espécie de Vale do Silício para a invenção e produção de
capacidades para operações globais, operações que em larga medida
são eletrônicas. Eu gosto desta justaposição de redes eletrônicas
globais com as enormes concentrações de materialidades (edifícios,
infraestrutura, o fato de profissionais e executivos precisarem de
casa, comida... a materialidade de tudo isso).
Em um nível bastante geral podemos enxergar todas estas cidades
como similares em suas funções de cidades globais. Mas existem
também histórias profundas que só alcançamos se escavarmos à
procura de aspectos específicos da história econômica de cada uma
delas. A primeira coisa que fiz em Chicago foi olhar para esta cidade
global através destas lentes. Eu tomei a geografia global das filiais de
firmas de finanças, propaganda, jurídicas e de contabilidade com
sede em Chicago. Eu então comparei essa geografia global de filiais
àquela geografia das firmas com sede em Nova Iorque e Londres,
nestas mesmas áreas da indústria de serviços. Elas são geografias
diferentes, e nestas geografias podemos ver como ao longo do tempo
Chicago desenvolveu tipos especializados de contabilidade e de
serviços jurídicos, finanças e propaganda relacionados à grande
história agro-industrial. Mesmo se hoje parte disso se foi, os serviços
imateriais ainda refletem este ângulo, pois assim é que foram
inventados, foi assim que nasceram.
Estes setores especializados e seus profissionais podem representar
apenas 30% da cidade, mas eles são a “vanguarda” da economia
global quando esta aterrisa. Pode ser que elas envolvam apenas uma
minoria de lugares na cidade, uma minoria de pessoas, uma minoria
de firmas, mas sabemos que as vanguardas não precisam ser
maiorias.
Em minha pesquisa tentei entender de forma detalhada o porquê das
firmas financeiras globais precisarem de centros, já que elas operam
em larga medida eletronicamente. Por que estas vastas concentrações
de recursos precisam de um tipo de materialidade? É uma ironia que
esta economia digital global necessite de tais concentrações. Em
nenhum lugar isto é tão evidente quanto em finanças globais, a mais
eletrônica e a mais global das indústrias. Existe uma tensão real, uma
tensão estrutural, entre a materialidade profunda e as capacidades
abstratas que normalmente são chamadas de sem-lugar. As novas
tecnologias fizeram muita diferença na constituição das finanças.
Mas elas neutralizaram apenas parcialmente a importância dos
centros financeiros. Operar em diferentes países adiciona à incerteza
dos mercados, adiciona risco. A velocidade aumentada das redes
eletrônicas acentuam esta incerteza e risco ainda mais. Os principais
centros financeiros funcionam como comunidades abrigadas em um
ninho, onde sistemas tácitos de confiança funcionam como uma
espécie de lubrificante, facilitando o comércio instantâneo de vastas
quantidades de capital. A variedade de peritos que se juntam em tais
centros fazem com estes se tornem lugares estratégicos onde
seqüências múltiplas de informação global interagem em conjunto.
O centro financeiro capacita uma espécie de produção coletivizada do
conhecimento, crucial frente à incerteza e ao risco. Em Global City eu
desenvolvo todos estas questões. O ponto principal aqui é que a
híper-mobilidade do capital realmente mobiliza comunidades de
prática específicas a um lugar (mesmo que momentaneamente) e
também mobiliza a fixação de capital. E é aí que a cidade global
entra.
Neste cenário, os afro-americanos podem não mais querer continuar
a se identificar com a África. As pessoas de cor no mundo superdesenvolvido, aqueles de nós que estamos dentro de cidadelas, das
fortalezas do super-desenvolvimento, podem não querer identificar-
Nós, que seríamos os europeus negros do século XXI, também nos
deparamos com escolhas históricas. Precisamos pensar muito, como
Du Bois pensara, se este precioso presente que foi legado ao futuro as lutas afro-americanas pela liberdade - seja algo que possamos ou
P
AUL
G
E
ILROY &
G
DOUARD
LISSANT
PAUL GILROY É O ATUAL CHEFE DO DEPARTAMENTO DE ESTUDOS AFRO - AMERICANOS DA YALE
UNIVERSITY . PROJETOS AUTORIAS CORRENTES INCLUEM CONSIDERAÇÕES ACERCA DA MELAN COLIA DA GRÃ - BRETANHA PÓS - COLONIAL E UM LEVANTAMENTO DAS MÚSICAS NEGRAS DO
NOVO MUNDO NO SÉCULO XX . ÉAUTOR DO INFLUENTE TÍTULO BLACK ATLANTIC . MODERNITY
AND DOUBLE CONSCIOUSNESS , VERSO
- 1993 - .
SEU ÚLTIMO LIVRO INTITULA - SE AGAINST
RACE : IMAGINING POLITICAL CULTURE BEYOND THE COLOR LINE , HARVARD UNIVERSITY
PRESS
- 2000 -
EDOUARD GLISSANT , NASCIDO EM SAINTE - MARIE
- MARTINICA - É “ UM DOS MAIORES
ESCRITORES CONTEMPORÂNEOS SOBRE O UNIVERSAL ”. DESEMPENHA UM PAPEL DA MAIOR
IMPORTÂNCIA NO RENASCIMENTO CULTURAL NEGRO-AFRICANO - CONGRESSOS DOS
ESCRITORES E DOS ARTISTAS NEGROS DE PARIS , EM 1956 , E DE ROMA , EM 1959 . DESDE
1995 , É “ DISTINGUISHED PROFESSOR OF FRENCH ” NA CITY UNIVERSITY OF NEW YORK - CUNY
- DE SUA VASTA PRODUÇÃO POÉTICA E LITERÁRIA , DEVEM SER DESTACADOS TRÊS ENSAIOS
MAIORES - LE DISCOURS ANTILLAIS - 1981 - POÉTIQUE DE LA RELATION - POÉTIQUE III 1990 E TRAITÉ DU TOUT - MONDE - POÉTIQUE IV - 1997 - PUBLICADOS PELA EDITORA
GALLIMARD . SEU ÚLTIMO ENSAIO , LA COHÉ DU LAMANTIN - POÉTIQUE V - DEVE SER
PUBLICADO NO INÍCIO DE 2005 .
TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI
-
GAVIN ADAMS
BERLIN
A
TLÂNTICO NEGRO
/
_
17 DE SETEMBRO DE 2004
BLACK ATLANTIC
_ Parece apropriado começar com uma consideração
acerca do valor e da utilidade da dupla-consciência. Isto, é claro, era
a problemática de W. E. B. Du Bois, extraída de Hegel e refinada
PAUL GILROY
durante sua estada aqui na Alemanha. Foi moldada, eu creio, pelas
suas leituras de escritos filosóficos e por sua visão da questão de
assimilação como esta emergira durante o século XIX, quando
estudou em Berlim. Mas sua visão era adaptada para as condições
americanas, nas quais os afro-americanos pela primeira vez buscaram
e tomaram posse de sua cidadania dentro de uma revolução
inacabada. Sua visão profundamente hegeliana apresentava a
consciência negra americana da liberdade como uma força histórica
mundial. Era um presente dos descendentes de escravos para o
mundo, um complexo cultural tão profundo e perturbador que os
qualificava como uma das grandes forças civilizadoras da história
humana.
Muito do que Du Bois previu um século atrás, é claro, provou ser
exato. A América Negra presenteou o mundo com uma nova
concepção de liberdade. Esta e outras concepções de liberdade foram
exportadas e alteraram a paisagem moral de nosso planeta de
maneiras significativas. Mas tenho pensado recentemente se devemos
considerar a possibilidade de deixar o conceito de dupla-consciência
onde a encontramos - no século XIX. Por várias razões, não me parece
muito útil transplantarmos esta idéia para os dias de hoje. Outra
maneira de colocar este problema histórico e conceitual é perguntar
o quê Du Bois diria de Condoleeza Rice e Colin Powell. Estes não
parecem dotados de uma segunda visão, ou então lamentavelmente
incapacitados pelas suas duplicidades internas das maneiras que ele
previra. De fato, Condaleeza Rice é apresentada como a encarnação
do sucesso do Movimento dos Direitos Civis, talvez também o ponto
terminal da dupla-consciência de Dubois. Mirando-a sob esta luz
contemporânea, então, é tentador responder, “Então, não há
garantias nos mecanismos de dupla-consciência”. É claro, hoje, os
afro-americanos deparam-se com uma escolha histórica diferente
sobre a que lugar pertencem e sobre o que eles pretendem ser. Muitos
deles consideram a chamada guerra contra o terror como uma
maneira de finalmente adquirir ou “operacionalizar” o tão adiado
ingresso na comunidade nacional. O próprio Du Bois considerava a
Grande Guerra de 1914-18, a entrada dos Estados Unidos nessa
guerra, precisamente da mesma maneira.
É claro, hoje a decisão histórica e o compromisso dos afro-americanos
produzirá efeitos muito além de suas fronteiras. E eu tenho um
problema com isso, no sentindo de que sua ligação com sua nação
arrisca a reduzir o debate sobre a política de raças no mundo às suas
brigas familiares e ao romance de suas famílias. O problema é
29
que queiramos usar. Para colocar de maneira mais cuidadosa, será
que este é útil, e, como deveria ser usado? Devemos nós, por
exemplo, em nome do progresso, abraçar a exportação de sistemas
raciais americanos, seja como políticas tecnológicas para a resolução
de problemas raciais pela via governamental, seja como receita para
que os movimentos social e cultural possam derrotar o racismo?
Parece-me que fazer esta escolha implica em custos que precisamos
reconhecer, e minha resposta a estas questões é, eu acho agora, Não.
Eu creio que é importante reconhecer que a história dos Estados
Unidos no campo da política racial não precisa representar nosso
futuro.
Quando eu era criança, no final da década de 1960, quando chegou o
terror de grande violência e ressentimento contra os imigrantes e seus
filhos, me diziam todo o tempo que os Estados Unidos significavam o
futuro, um futuro que era nosso.Isso era plausível apenas porque três
semanas depois do político inglês ter profetizado uma guerra de raças
no Reino Unido, Martin Luther King foi executado, assassinado.
Então esta profecia de guerra racial, sua imagem dos Estados Unidos
como nosso futuro recebeu um choque, esta energia extra, como um
resultado daquele assassinato. Não precisamos agora, creio, da
história dos negros americanos, não importa quão triunfante, para
especificar o mundo da negritude, com o qual somos comprometidos.
E eu sei que negros europeus, como muitos europeus, têm uma
ambivalência sintomática e profunda em relação aos Estados Unidos.
Eles podem não gostar da liderança política do momento, e, no
entanto, há algo de fascinante e excitante sobre seus estilos, seu
ritmo, seus hábitos culturais, que acabam por anexar-se como índices
de liberdade, especialmente na cultura do consumo, que gera
imagens poderosas, algumas poderosas seduções em liberdade e
autonomia.
Mas talvez agora possamos pensar no deslocamento dos Estados
Unidos da posição em que Hegel os colocou há tempos como a terra
do futuro. Será que eles representam, deveriam representar o futuro
de todo mundo na Terra quando se trata de raça? O futuro racial, essa
assimilação, essa segregação, e esta libertação não precisa ser nossa.
Eu acho que podemos ser, eu creio que devemos ser, compelidos a ser
mais imaginativos do que isso. E eu acho que a meditação sobre o
Atlântico Negro pode assistir-nos. Primeiramente, pode ajudar a
separar a história nacional do movimento afro-americano de
libertação da escravidão de outras narrativas que precisamos contar.
Histórias de libertação da supremacia branca em outros lugares,
especialmente do poder colonial, histórias de pan-pensamento, de
diferenças dentro de nosso coletivo, medidas, avaliadas, pesadas
contra a diferença entre nosso coletivo e outras formações similares
no mundo; histórias de transcultura, narrativas de movimentos antiescravagistas de anti-colonialistas que não foram centradas nos
aforismos raciais norte-americanos. Por exemplo, uma leitura do
movimento abolicionista mundial pode servir para isso. E, ao
desenvolvermos nosso senso Norte-Sul do que está em jogo na
política de raça, precisamos começar a engajar a história da África do
Sul, do Brasil, de outros lugares que podem nos ser úteis no
reconhecimento de nossas esperanças e aspirações futuras. Como
poderíamos começar a construir uma rede de comunicação que
facilite uma variedade diferente de conversação mundialmente sobre
estes assuntos, e que contribuição poderia a própria Europa fazer às
tarefas políticas envolvidas na construção de uma democracia que
não seja uma amena codificação de cores? O Atlântico Negro quebra
o padrão, como eu disse, em que as contingências dos Estados Unidos
tornam-se amplamente entendidas como intrínsecas ao
funcionamento geral da divisão racial. E aqui encontramos mais um
problema substantivo: devem os Estados Unidos ser o centro global
da política racial da mesma forma como é o centro de tantas outras
coisas? Uma fonte singular de códigos e significado que dá vida à raça
em todo lugar, ou, como prefiro, devemos ver isso como nada mais
que um outro lugar pós-colonial, um lugar a mais, onde a lei racial,
onde o absolutismo étnico e a segregação governam a operação de
uma economia fraturada e uma comunidade política cindida? Como
pesaremos estas histórias norte-americanas de raça e relações contra
exemplos tirados de outros lugares, onde o racismo e a hierarquia
racial trabalham de maneira diversa? Será que esta versão de política
racializada representa o futuro do resto das pessoas na Terra? É claro,
o povo norte-americano tende muito mais do que os Europeus a ter
aceitado que a raça é parte do funcionamento de sua cultura política.
Eu até concordo que os europeus têm muito a aprender desta
lado sem se interpenetrarem. Apesar da onda dos termos
“multiculturalismo” ou “melting-pot”, trata-se de um país onde as
comunidades se encontram às cegas, uma ignorando a outra. Há ali
– para nós, comunidades de descendência africana nas Américas –
aceitação de raça, contanto que, é claro, isso envolva um
reconhecimento do estrago infligido pelo racismo e não se torne uma
resignação sem mais dos efeitos da hierarquia racial. Mas meu ponto
essencial permanece que, aceitando a saliência dos processos
políticos e sociais que os Estados Unidos conhecem e aceitam como
algo de particular a fazer. Não acredito em missões nem em modelos.
Estamos num universo em que ninguém tem o direito de se colocar
como modelo para outras pessoas, mas creio que os sofrimentos
incríveis pelos quais passaram os descendentes africanos nas
Américas dão-lhes o direito de afirmar sua experiência de
um fenômeno natural chamado “raça”, não faz absolutamente nada
para confrontar as múltiplas mistificações infligidas pelo racismo,
seja na política norte-americana, seja em outro lugar. A fluidez do
crioulização, particularmente na América do Sul e no Caribe, uma
experiência que não foi a mesma que a dos africanos nos Estados
Unidos. O que é interessante é que, no momento em que os navios
Atlântico Negro, a resistência contra o poder disciplinador de todos
os estados nacionais, promovem noções alternativas de cultura que
quebram os laços da geo-piedade e soberania territorial de maneiras
que são consistentes com nossa história conturbada. E isso, como
negreiros chegam ao Caribe e seu carregamento é despachado para o
Brasil e para a América do Norte, o sul dos Estados Unidos
escravagista é também arquipelágico. Quando digo a cidadãos da
Luisiana: “Vocês partilham a mesma história que os antilhanos, o
começara a dizer ontem, importa muito no contexto da guerra ao
terror e o conflito de civilizações, que a promoveu; estas
sistema de plantations, a escravidão, as línguas crioulas, a
arquitetura colonial, os linchamentos de negros etc.”, isso os deixa
circunstâncias requererão um compromisso sincero das minorias
raciais nos Estados Unidos com o esquema de dominação imperial
consciente de seu país. Não obstante, a tradição de pensamento
dissidente sobre o qual o Atlântico Negro repousa, agora pede algo a
mais de todos os negros que se estabeleceram nas cidadelas do super-
muito irritados, mas é, no entanto, a realidade da qual se deve partir.
Mas, se há choques, por exemplo, entre porto-riquenhos ou
caribenhos e negros norte-americanos, eles decorrem do fato de que,
apesar de suas histórias semelhantes, há essa ausência de
crioulização. O pensamento arquipelágico é um pensamento
desenvolvimento do que o continuar a espiar ansiosamente um
mundo dividido através das rachaduras de nossos estados nacionais
disperso, ágil, prudente e em harmonia com a fragilidade e as
ameaças do mundo atual. Ao contrário, o pensamento continental é
recentemente fortificados. Pode ser que venhamos a ser solicitados a
entender a raça e sua lógica política distinta de maneira diferente,
como resultado das demandas de uma perspectiva planetária,
reconfigurada pelo desejo de segurança, se não de invulnerabilidade,
assim como daquela “unipolaridade” e poder militar de amplo
um pensamento da potência, do poder e dos sistemas. A Europa
regeu o mundo com sistemas de pensamento. E o pensamento dos
Estados Unidos é, claramente, um pensamento continental. Já o
pensamento do resto dos continentes americanos é um pensamento
arquipelágico, um pensamento do tremor que eclode em todos os
alcance.
horizontes e que nos afasta das imposições dos pensamentos de
Du Bois viveu uma vida longa e complexa. Ele mudou seus
compromissos políticos, ele repetidamente mudou suas táticas
políticas. Ao final de seus dias, seus compromissos com a paz e com
o internacionalismo o levaram a um profundo e extenso conflito com
seu próprio governo, sobre a guerra da Coréia, sobre o Plano
Marshall, sobre a formação da OTAN, e muitos outras questões
domésticas, no esteio das lutas civis e políticas afro-americanas que
tornavam a emergir. Talvez devêssemos ler estas partes de sua vida
como um argumento final sobre a dupla-consciência ou talvez mesmo
um repúdio a esta idéia. Devemos nos lembrar que ele viveu grande
parte da última década de sua vida sem passaporte, que ele acabou
por tornar-se membro do Partido Comunista aos 93 anos de idade,
que ele renunciou à sua cidadania americana, e que ele embarcou em
uma vida de exílio como um cidadão de Gana. Ele encontrou nestas
escolhas traiçoeiras um meio de ativar seus compromissos
germânicos de longa data e laços com a cidadania mundial, de um
lado, e a história mundial, no outro. Quais são, somos obrigados a
perguntar, os relatos não nacionais destes desenvolvimentos, o que
seriam os gestos contemporâneos analógicos àqueles gestos de Du
Bois, e como nossa exposição a uma cultura política da diáspora nos
ajuda a preencher algo como esta agenda desconfortável.
sistemas. O tremor é a qualidade mesma daquilo que se opõe ao
brutal pensamento unívoco do eu contra o outro, ou do eu fora do
outro, ou do eu acima do outro. O mundo se criouliza – isso quer
dizer que ele se torna complexo e se interpenetra a ponto de se tornar
inextricável, fazendo o intercâmbio de seus costumes e de suas
culturas, o que ainda ontem se chamava de suas identidades, em
grande parte massacradas. O pensamento arquipelágico caminha
segundo redes que se atraem e que não abandonam longe do mundo
nenhum dado do mundo. A crioulização no Caribe, como no Brasil,
foi acelerada pela deportação dos povos africanos que,
fundamentalmente, contribuíram para radicalizar as oposições e as
simbioses, as tentativas de alinhamento. Os povos deportados, depois
semeados por uma área enorme entre o norte e o sul dos dois
continentes americanos, descobrem de forma dolorosa as marcas de
suas culturas abandonadas, ao mesmo tempo em que têm uma
disponibilidade natural para as outras culturas, criando o inesperado.
O jazz é um tremor. Foi primeiro, nos Estados Unidos, uma música
arquipelágica antes de se continentalizar. Para mim, o Caribe é,
primeiro, o ciclone que nos devasta, um redemoinho, uma
embriaguez do pensamento ou do juízo, a necessidade do encontro e
da afinação das vozes. O Caribe foi modelado com o sofrimento
crioulização seja trivializada dentro da linguagem multicultural que
se apropria indevidamente dela, que permite que ela escape por entre
nossos dedos. E eu vejo também um grande valor e uma grande
energia envolvida no trabalho de construir geopolíticas diferentes. Ao
mesmo tempo, eu venho de um arquipélago - a Inglaterra - que
brutalmente e sem piedade colocou-se como o meridiano, o lugar
onde os hemisférios se dividem, e, sem querer soar como os
anarquistas do romance de Conrad, The Secret Agent, que tentam
sem sucesso, em má fé, detonar o meridiano, a ruptura daquela
oposição está em jogo para mim. Eu não posso aceitar a oposição
arquipélago/continental como um modelo explicativo desta reterritorialização da crioulidade (creolité). A reescrita da pluralidade
como crioulização é a questão, mas não está claro ainda para mim
quais são as maneiras em que a desprovincialização da Europa fará
uso da história do Caribe, do Caribe expandido, que se estende desde
a Nova Escócia até a Bahia.
_ De modo geral, estou de acordo. No lugar de
uma geopolítica, eu me empenharia em construir uma “geopoética”.
EDOUARD GLISSANT
Porque uma geopoética pode abranger o mundo. Uma geopolítica
pode destruir o mundo. Mas a Inglaterra é um continente, é a Irlanda
e tudo quanto são ilhas, arquipélagos. E a Irlanda é uma vítima da
Inglaterra. A Inglaterra é um continente. Um continente não é apenas
uma realidade física; é também uma vocação. Acho que aquilo que
eu disse sobre a fragilidade é real. O pensamento arquipélico é
adequado porque se aplica ao inextricável atual do mundo e porque
não é todo-poderoso, pois os arquipélagos nunca são todo-poderosos.
Os continentes que aparecem nos arquipélagos é que são todopoderosos: a Austrália, na Oceania, o Japão... tornam-se continentes,
mas o que está em volta deles são arquipélagos pobres e ameaçados.
O pensamento continental é poderoso e magnífico, suntuoso, dá-nos
coisas maravilhosas, mas é também mortal. E também mata ao seu
redor. Os fundamentalistas, tanto de um lado ou como do outro,
fundamentalistas religiosos ou fundamentalistas intelectuais, são
instrumentos de assassinatos, de um lado e do outro. São sistemas de
pensamento que são emanações do que chamo de pensamento
continental. O pensamento arquipelágico nunca é imperial. Quando
se torna imperial, é porque se continentalizou. Não foi para mostrar
erudição que citei o mar Egeu, Esparta e Atenas. O mar Egeu significa
os filósofos pré-socráticos, o mundo cheio de tramas que se tenta
compreender, enquanto Esparta e Atenas já são o sistema platônico
ou o sistema lacedemônio militar. E devemos estar atentos em relação
a isso. E o que digo é que os Estados Unidos têm esse aspecto de
pensamento continental e não apenas imperialista. Tudo o que os
dirigentes, ou os subdirigentes, ou os sub-subdirigentes podem dizer
é: “Os Estados Unidos, the greatest nation of the world.” Mas não, as
maiores nações do mundo são as nações que consentem em sua
própria diversidade. Não são as nações militares, pois as nações
militares passam. Elas não duram. É como se, há dez anos, se
dissesse que a União Soviética era a maior potência do mundo. Isso
passa, desmorona. Não dura. Mas a grandeza da diversidade
consentida é algo que permanece.
EDOUARD GLISSANT
negro, mas também com o sofrimento indígena – a metade da
população de Trinidad é indígena, a outra metade é negra –, o
sofrimento foi repartido. Nessa região do mundo, nós não temos o
É o oceano que os navios negreiros atravessavam, marcando sua
viagem com cadáveres de escravos que jogavam no mar. Para mim, o
direito de ignorar essa interpenetração. A compaixão só é eficaz e
justa quando se inspira, sem limites, no pensamento do Todo, no
pensamento do mundo todo. Ouvimos essa música, essa tempestade
contínua que trama para nós a Relação. A deportação dos africanos
de Paul Gilroy, Black Atlantic [Atlântico Negro], constitui um modelo
americano específico de pensamento sobre a raça, um modelo onde
uma gota de sangue negro que te faz negro, à negritude - se você é
branco ou negro, pensado não como uma categoria estável, mas
como uma que se transforma e que seja múltipla. Eu me pergunto por
desde o início do século XVI, a dos hindus a partir do século XIX, a
vinda incessante de colonos europeus e de comerciantes da Ásia e do
Oriente Médio, a violenta oposição das condições sociais regidas pelo
mesmo sem as aspas?
_ Para mim, o termo importante na expressão
“Atlântico Negro” não é “negro” mas, sim, “Atlântico”. Se a palavra
“Atlântico” é forte, é porque designa o caminho do tráfico dos negros.
oceano Atlântico é uma obsessão e, talvez, também uma neurose. A
República Dominicana, a Martinica, Guadalupe eram os lugares onde
os navios aportavam, onde separavam as mães de seus filhos e os
irmãos de seus irmãos. O mar do Caribe foi o principal ponto de
chegada do tráfico de negros, o lugar a partir de onde os escravagistas
distribuíam pelas Américas seu gado humano. Havia carregamentos
que saíam para a Luisiana, para a Virgínia ou para as Carolinas. Eu
caracterizaria o Caribe através de duas palavras: a de “arquipélago”
e a de “crioulização”. Creio que a forma mais humana, mais densa e
mais intensa da metamorfose – e a metamorfose é uma das grandes
ambições da humanidade – é a crioulização. E o trunfo privilegiado
da crioulização é o arquipélago. Durante muito tempo, o arquipélago
foi ignorado ou destruído pela corrente conquistadora dos
pensamentos do Uno. No entanto, os arquipélagos quase sempre
precederam os continentes. Na história antiga, os arquipélagos do
mar Egeu anunciavam as vitoriosas continentais que são Esparta e
Atenas. O arquipélago do Caribe, que é como um prefácio das
Américas, recebeu primeiro o eco desses continentes vencidos que
são as Américas. Vencidos pela conquista de Cortez, pela conquista
de Pizarro e vencidos pelos emigrantes do Mayflower. Os arauaques
e os caraíbas viviam como nômades nas ilhas, deslocavam-se de ilha
em ilha, por três ou quatro anos, quando o Ocidente vindo do Leste
caiu sobre eles. A crioulização nasceu dessa derrota. Não são as
vitórias que suscitam o grande pensamento épico, são as derrotas,
ou, pelo menos, as vitórias duvidosas. As grandes derrotas sempre
deram origem a grandes livros épicos. E a crioulização não só é o
bem mais precioso do Caribe, como também é o único futuro
duradouro do continente americano que não deverá sua vida futura à
sua massa nem a seu poder, mas à sua diversidade consentida. Os
Estados Unidos constituem um grande país-cadinho mas não ainda
um país crioulizado. As comunidades e as etnias nele vivem lado a
escravagismo desde o início de suas colônias, introduziram
elementos de complexidade, de vertigem social e cultural que
constituem a particularidade daquilo que nas Américas foi chamado
de a “neo-América”. É a América do Caribe e do Brasil, que se pode
apor à “mesoamérica” - a América dos ameríndios, dos astecas, dos
incas ou dos sioux. A “neo ou a euro-América”, do Mayflower, do
Canadá e dos Estados Unidos – e mesmo um pouco do Chile e da
Argentina, que se vangloriam de ser muito europeus – é feita da
interpenetração dessas diferentes dimensões. No México, como nos
Estados Unidos, a mesoamérica sofre a opressão da neo-América, da
América Crioula. Essa perturbação deve ser planejada com cuidado.
Nós, caribenhos, habitamos cada vez menos os topos das ilhas e
vamos cada vez mais para o interior. Nós, “arquipelágicos”, entramos
nos continentes. O Caribe é como um círculo, que se expande até o
continente, e como um eco, vindo do continente até as ilhas. O
pensamento global do Caribe veio das ilhas menores e mais frágeis,
mais ameaçadas, pois elas tinham necessidade de conceber o
conjunto para poderem se conceber a si mesmas. Em seu isolamento,
o sistema das plantations possibilitou uma mistura, uma crioulização
em que se encontraram e se combateram brancos e negros, princípio
geral de emergência da vida social em toda a região Sul da América.
Daí, o pensamento da crioulização escapa para alcançar o Mundo.
PAUL GILROY _ Eu me comovi muito com a maneira pela qual Edouard
Glissant mobilizou o que penso, dentro de meus conceitos, como uma
ecologia do pertencimento que se torna uma força crítica. Eu
concordo inteiramente com ele,quando diz que crioulização do
planeta é a questão para nós, e de quão importante é impedir que a
30
MULHER
_ Eu penso até que ponto o título desta conferência e do livro
que esta conferência não usa um conceito como “Atlântico híbrido”
ou “Atlântico Crioulo”, por que se mantém este termo negritude
PAUL GILROY
_ Para mim esta palavra está lá como um significante
vazio, porque o racismo a produz. E enquanto viger a transcendência
das ordens raciais, ela precisa estar lá desta forma. Não porque eu
quero fazer da negritude uma categoria ontológica, mas era fácil para
as pessoas como nós imaginar que, ao colocar nossas aspas ao redor,
realizamos algum trabalho no mundo, especialmente aqueles de nós
que aspiram a uma “ontologia histórica”. Esta negritude é parte do
nominalismo, mas é uma dinâmica nominalista, nós a
compreendemos a sua vida. Então enquanto houver a supremacia
branca no mundo, esta palavra precisa estar lá (para mim). Quando
a supremacia branca se for, quando pudermos imaginar o fim da
supremacia branca, e quando nós cultivarmos o hábito de imaginar o
seu fim, então poderemos descartar aquela negritude. Esta negritude
descartará a si própria.
_ Eu sou português, e eu aprecio muito os dois discursos, as
duas idéias de crioulização e da dupla-consciência. Mas a noção de
HOMEM
hibridismo tem sido usada como uma arma pelo regime colonial, pelo
regime fascista, para legitimar a colonização portuguesa depois do
fim de todos os “colonialismos”; então eu não me sinto sempre
confortável com esta “bondade” per se, eu tenho sentimentos
desencontrados em relação a isto, as coisas podem ser mais
complexas.
_ Em minha exposição, eu disse que o mundo é
inextricável. Não se pode obter uma foto nítida do que se passa no
EDOUARD GLISSANT
mundo. Creio, entretanto, que se tem, hoje, duas concepções
principais da identidade – e é o que desenvolvo em meus textos. Tem-
se a concepção da identidade de raiz única, para retomar uma
das idéias através das religiões – e sua maciça reorientação nas
Estados Unidos da seguinte forma: “Nós preferimos não ter o acordo
imagem de Deleuze e Guattari, a qual mata todas as outras raízes ao
cabeças dos povos – constitui o primeiro grande exemplo de
comercial mundial que vocês nos oferecem.” Isto é muito
seu redor. É aquela em que o Ocidente se formou e impôs ao mundo.
Quando falo do Ocidente, falo tanto da cristandade, da judaicidade
globalização.
significativo.
A maioria das relações comerciais não existiria, dos tempos da Rota
JEAN - CHRISTOPHE ROYOUX
da Seda até hoje, sem a globalização das trocas comerciais. A
ascensão do poder econômico na China, na Índia e no Brasil se dá
Toni Negri descrevem como processos globais e denominam o novo
como do islã que, para mim, faz parte dele. E há uma segunda
concepção da identidade: a identidade de raiz múltipla. É o que se
chama um rizoma. É uma raiz que vai ao encontro de outras raízes e
não as mata. Ao contrário, elas se fortalecem mutuamente. É possível
ter, hoje, o sentimento de que podemos começar a abandonar nossas
idéias de identidades de “raiz única” para tentar entrar na realidade
das raízes múltiplas do mundo. Todas as catástrofes que se vêem no
mundo atual correspondem à recusa histérica a abandonar a
identidade de raiz única, enquanto todos os povos – cuja identidade
hoje está ameaçada, como os ciganos da Iugoslávia – admitem que é
possível mudar estabelecendo trocas com o outro sem se perder nem
porque essas nações se tornaram comercialmente bem-sucedidas e,
em conseqüência disso, milhões de pessoas saem do limiar da
pobreza. Este fenômeno é hoje bastante amplificado devido à
revolução das comunicações, que redefine e cria um novo sentido de
espaço global – e, por isso, qualquer tipo de grupo, religioso ou não,
pode ter sua diáspora organizada.
Em suas raízes, a história da globalização é a história das
se desnaturar. Bem sei que o mundo é imprevisível. Mas a
comunicações globais. A explosão das comunicações está vinculada
à revolução da Internet. A interconexão das comunicações globais
crioulização é nossa única chance. Se mudarmos nosso imaginário,
teremos uma chance de mudar o mundo.
com a Internet e com os satélites cria uma extraordinária força de
BASEADO EM UMA CONFERENCIA “ PERSPEKTIVEN AUF DEN BLACK ATLANTIC ”, HAUS DER
KULTUREN DER WELT , BERLIN , 17 DE SETEMBRO DE 2004 .
energia. Reorganizou tudo. A explosão dos mercados financeiros,
especialmente nas décadas de 70 e de 80, não poderia ter ocorrido
sem aquelas luzinhas piscando que se vêem no noticiário
diariamente. Toda a explosão dos fluxos globais, tanto comerciais
DAVID HELD É PROFESSOR TITULAR DE CIÊNCIA POLÍTICA DA LONDON SCHOOL OF ECONOMICS .
SEUS INTERESSES DE PESQUISA MAIS IMPORTANTES INCLUEM AS RECONFIGURAÇÕES DA
DEMOCRACIA
NOS
NÍVEIS
TRANSNACIONAL
GLOBALIZAÇÃO E DA GOVERNANÇA GLOBAL .
É
E
INTERNACIONAL ,
ALÉM
DO
ESTUDO
DA
FUNDADOR DO WWW . OPENDEMOCRACY . NET
TRADUÇÃO DE JÔ AMADO
LONDON
_
17 DE AGOSTO DE 2004
A cho que a globalização é, antes de tudo, sobre relações de
espaço. Não há nada de muito misterioso nisso. Podemos
compreendê-la em várias dimensões. Envolve processos que
aproximam as relações humanas, um número crescente de conexões
e redes através do espaço e, na realidade eu também diria, do tempo.
Em sua forma mais estereotipada – os mercados financeiros
comerciais, as transações comerciais e as corporações globais –, a
globalização conquistou o espaço e tornou o tempo insignificante.
Vivemos no início da era global. Foram necessários 300 anos para que
o Estado-nação se tornasse a forma dominante da política e da
unidade política não só na Europa, mas também pelo mundo afora.
Vivemos, agora, num novo domínio, o global, mas ainda temos o
mecanismo conceitual de Estado em nossas cabeças. Portanto,
pensamos em termos locais e nacionais, mas os recursos que
controlam a maioria de nossas principais necessidades, enquanto
raça humana – a saúde, o bem-estar, o meio ambiente, o comércio,
enfim, tudo que nos afeta –, são globais.
Em Global Transformation, um livro que escrevi com alguns colegas,
abordamos a história da Globalização e seu impacto sobre diversas
dimensões: a econômica, a comercial, a financeira, a empresarial, a
da cultura e das comunicações, a da guerra e da política, a do direito,
a ambiental etc. Cada uma delas discute diferentes áreas dentro do
espaço da globalização; seria um erro ler a história do meio ambiente
a partir da história das finanças, ou a das finanças a partir de uma
perspectiva global. Têm lógicas e narrativas diversas e histórias
espacialmente distintas, assim como momentos e dinâmicas
diferentes, mas o que torna original a atual fase de nossas vidas é a
confluência da mudança através de todas essas dimensões.
A atual mobilidade das pessoas pelo mundo inteiro, e mesmo nos
Estados Unidos, é um sinal de que elas querem conhecer lugares
atraentes e diferentes. De inúmeras maneiras, o estreitamento das
relações humanas através do espaço nos liberta da opressão e
limitação tradicionais do referencial local, criando a possibilidade de
intermediar, de trocar. Isto não é novo. Já vem acontecendo há muito
tempo. A maioria das culturas é cosmopolita e não apenas étnica, ou
nacional.
A propagação da humanidade, desde as primeiras migrações, foi
complexa na forma, na cor e no etnicismo. Tal como Paul Gilroy
descreve em seu livro Black Atlantic, o período colonial sugere o
fenômeno das diásporas e a história multidimensional da
globalização. Basta pensar nas invasões mongóis através da Europa,
na extraordinária incursão dos mongóis através de um imenso
espaço. Na realidade, entretanto, algumas das primeiras grandes
formas de globalização estão relacionadas com o advento das
religiões mundiais, que tornam bastante insignificantes os fenômenos
da cultura popular. Imagine-se a propagação do judaísmo, do
cristianismo e do islamismo pelo mundo inteiro... Esta propagação
Império ?
DH
_ Não tenho muita paciência com isso. Os impérios foram
fenômenos históricos muito específicos, dos romanos até os ingleses.
O poder atua em planos distintos, é multidimensional. Tome o
argumento de que os Estados Unidos são um império e o analise de
três maneiras: o poder militar, o poder econômico e o poder de
comunicação de massa e cultural. No plano militar, é inquestionável
que o mundo é unipolar. Os Estados Unidos detêm um comando
avassalador do mundo, assim como recursos para um poder
destrutivo, mas até no plano militar já não podem usar essa força
para garantir a vitória da forma que um Estado-nação poderia fazer
há 50 ou 60 anos, como na I e II Guerras Mundiais. O sistema entreguerras permitiu um novo conceito de vitória e de inimigo. Hoje,
apesar de seu domínio militar, os Estados Unidos podem ser
encurralados, e vulneráveis, no Afeganistão e no Iraque. Não basta a
foi, em grande parte, fruto dessa explosão.
potência militar para conseguir o controle sequer do campo de
batalha. Em segundo lugar, no plano econômico, os Estados Unidos
As principais tendências da globalização abrangem também a
não são um império. Até 40 ou 50 anos atrás, tinham uma economia
relativamente autárquica, mas atualmente ela é bastante fluida e
expansão dos mercados globais de mercadorias e serviços, a criação
aberta. É verdade que os Estados Unidos exercem uma influência
de governos multiestratificados com o fim da guerra fria, a difusão de
valores democráticos, a internacionalização da segurança e a
emergência de novas epidemias.
predominante sobre a economia mundial, mas esta é cada vez mais
multipolar. Note-se a ascensão da União Européia, da China etc. No
Os impérios dos séculos XVIII e XIX – principalmente o império
britânico, que foi o maior de todos – desmoronaram, lentamente, ao
caótico. Parece um tabuleiro de xadrez multidimensional. Com os
quanto financeiros, a que assistimos nos últimos vinte, trinta anos,
D AVID H ELD
_ O que você acha daquilo que pessoas como
longo do século XX. Em parte, foram derrotados; mas também em
conseqüência da I Guerra Mundial, que deixou a Europa muito
abalada e sem condições de cuidar de seu império decadente. A
independência da Índia ganhou força com a I Guerra Mundial, pois
os ingleses já não conseguiam se concentrar no governo da colônia.
Mas o que também ocorreu no século XX, principalmente a partir de
1945, foi a ascensão dos movimentos de libertação nacional. Era o
período pós-colonial. A ideologia do império morrera. A ela sucedia,
absoluta, a ideologia da autodeterminação e da democracia.
É impossível fazer ressurgir um império territorial na era pósimpério. Nunca um império conseguiu se expandir exclusivamente
pela força militar. Todos necessitaram de uma mistura de poder
militar, econômico, social e cultural, assim como da integração das
elites nacionais. Os romanos já sabiam disso. Praticamente não
existia uma integração horizontal no império romano, exceto entre as
elites de todos os territórios conquistados e que eram integrados ao
império romano. Os ingleses o fizeram levando para a Índia os
sistemas de ensino público, nas escolas e nas universidades, e
preparando as jovens elites indianas na tradição humanista britânica.
Hoje, no entanto, os norte-americanos chegam a Bagdá e não
compreendem por que estão ali, ou o que estão fazendo ali – e não
conseguem controlar o país.
O impressionante sobre a globalização é que, atualmente, é possível
exercer o poder sem controle territorial. O poder dos grandes
impérios dos séculos XIX e XX era exercido mediante o controle do
território. O grande erro que os norte-americanos cometem
atualmente é o de tentar reinventar a questão do império a partir do
território. Isto é impossível nos dias de hoje e é por essa razão que
eles vêm fracassando. Embora muitas redes globais de comunicação
e muitos processos operem, cada vez mais, de forma extra-territorial,
isto não significa que a questão territorial tenha deixado de ser
importante. Uma das conseqüências da superposição dos limites
entre a política e a cultura em Estados-nação é a difusão, em
diferentes domínios e em diferentes níveis, de movimentos subnacionais, como os que existem no Canadá, na Espanha e até na GrãBretanha. Também ocorre a reintegração de relações espaciais em
âmbitos maiores, como a União Européia, o Tratado de Câmbio Livre
da América do Norte e o Mercosul. A recombinação de relações
espaciais se dá em planos distintos, assim como a subversão do
espaço nas diversas redes de comunicação e nas formas.
O poder é a capacidade de fazer com que algo aconteça, ou não. No
atual contexto global e nos mercados da economia e das finanças
globais, são as regras que determinam o resultado da distribuição. O
poder toma a forma de todos os acordos de governança que criam as
regras para o intercâmbio da distribuição. Alguns deles são
maciçamente impostos pelos Estados Unidos e pelo mundo ocidental,
que ainda detêm uma influência desproporcional em todas as
organizações governamentais internacionais, como o Fundo
Monetário Internacional, o Banco Mundial ou a Organização Mundial
do Comércio. No âmbito comercial, são os Estados Unidos e o mundo
ocidental que determinam a natureza desses acordos. Daqui a 30 ou
50 anos, entretanto, o mundo não será o de agora. A ascensão da
China, da Índia, do Brasil e da África do Sul representa um desafio
crescente ao antigo regime mundial. Atualmente, os excluídos têm
condições de desafiar aquelas estruturas através de sua visibilidade.
Essas potências emergentes fizeram recentemente em Cancún algo
que nunca haviam feito antes. Dirigiram-se à União Européia e aos
31
plano da economia, o mundo é multirregional e multipolar. No plano
da cultura e das comunicações, o fenômeno é mais difuso e mais
impérios clássicos não era assim; tinham que controlar uma
capacidade hierárquica porque controlavam tudo isso através dos
territórios, o que já não ocorre.
Não estou romantizando o período do Estado-nação. Foi a Europa, no
século XX – a Europa, e não o mundo islâmico –, que levou o mundo
ao abismo por quase duas vezes, nas duas guerras mundiais, a
Europa, esse sustentáculo do Iluminismo. Nada há o que comemorar
no Estado-nação, ou no Estado-nação europeu. A economia mundial
vem criando maciçamente novas oportunidades para as pessoas. Não
é apenas negativo, não é apenas perda de empregos. Num mercado
aberto, também são criadas possibilidades para as pessoas do mundo
inteiro, para que estas utilizem os recursos e capacidades de que
dispõem. Chama-se a isso vantagem comparativa, para seus próprios
fins. E se as regras fossem justas, o que não são, poderia ser ainda
melhor.
Então, o que fez a globalização nos últimos 20 ou 30 anos? Expandiu
maciçamente o comércio global, quadruplicou as transações
comerciais do mundo em desenvolvimento para o mundo
desenvolvido, redefiniu a divisão de trabalho e permitiu que centenas
de milhões de pessoas, na Índia e na China, saíssem do limiar de
pobreza. Criou oportunidades, mas, mas...se não passa de apenas
mais uma faceta do mercado manipulado pela agenda política do
consenso de Washington – a liberalização do comércio, a
liberalização dos mercados de capital, privatizações etc., vinculadas,
agora, por meio das novas doutrinas de segurança de Washington –,
se assume essa forma e lhe é dada essa força, então também se torna
um projeto potencialmente hegemônico e destrutivo, tanto para o
meio ambiente, quanto para a maneira pela qual vivem as pessoas.
Criou a primeira catástrofe sistêmica: o aquecimento global.
Havíamos conhecido anteriormente catástrofes ecológicas, como a
peste bubônica, os flagelos da peste, a dizimação da população
indígena da América do Norte e do Sul, e não porque a tecnologia dos
ocidentais fosse superior, o que era, mas porque eles traziam os vírus
do banal resfriado, da gripe e da sífilis, com os quais impregnavam
as populações locais, as quais não tinham sistemas imunológicos
capazes de lhes resistirem. Mas, agora, trata-se de uma forma de
degradação ecológica supra-regional.
Penso que o maior desafio do mundo moderno é o de educar a região
central dos Estados Unidos! Sem uma mudança na política norteamericana, seria muito difícil deter o aquecimento global. Vivemos
numa era muito estranha: um momento de atividade global crescente
e, ao mesmo tempo, com um sistema político territorialmente
orientado. A maior democracia do mundo – não em termos de
população, mas em termos de poder – vota em candidatos que só são
responsáveis perante seus próprios cidadãos e, entretanto, somos
todos depositários e dependentes do resultado das eleições norteamericanas. De certa maneira, deveria tratar-se de uma eleição
mundial. Mas é uma eleição local, nacional. Temos, portanto, um
sistema de responsabilidades que é nacionalmente vinculado e um
sistema de atividades globais crescentes que transcendem esses
limites, o que cria uma crise de responsabilidade. Os líderes políticos
dos Estados Unidos só são responsáveis perante seus cidadãos, e não
para o resto do mundo, e não há meios pelos quais o presidente
norte-americano venha a tomar as medidas cabíveis para deter o
aquecimento global.
É evidente que os meios de comunicação norte-americanos estão
concentrados em poucas e poderosas corporações, mas as tecnologias
atualmente existentes permitem que seja ignorada essa mídia
nossa era global, a única que pode lidar adequadamente com a
dominante, utilizando-as de uma forma independente. Este fenômeno
interconexão de nossos destinos e riquezas através de todas essas
é universal e particular e cria, simultaneamente, perspectivas abertas
que permitem uma redefinição do particular. Hollywood é um
dimensões. Teríamos instituições políticas à altura de fazê-lo no curto
prazo? Seus adversários dizem que esta é uma outra forma de
excelente
universalismo, outra igreja. O mundo não precisa de mais igrejas.
exemplo.
Los
Angeles
é
o
centro
da
indústria
cinematográfica norte-americana, mas também é a cidade da mais
vibrante atividade de rádio e imprensa, com jornais em todas as
línguas do mundo. Precisamente as mesmas tecnologias são
utilizadas para editar jornais, produzir programas de televisão ou
rodar filmes em espanhol, italiano etc. O problema crucial, no
entanto, é: como criar uma responsabilidade sistêmica, uma
responsabilidade global?
E eu respondo: a filosofia política cosmopolita, por meio de seu
reconhecimento de igual valor para cada ser humano, com sua
prioridade de valores por consentimento, é a única filosofia política
que tenta criar uma maneira não-coercitiva para que as pessoas
possam tocar suas vidas, porém dentro dos limites da interligação. A
democracia é a única via para nos tornarmos cosmopolitas. Aceito
que seja uma igreja, outra forma de uma filosofia universal, mas,
A globalização trata fundamentalmente, como todas as experiências
pelo menos, uma igreja democrática. Não é manipulada pelo
humanas de intercâmbio,
possibilidades e perdas.
mercado, nem pelo G1. Está vinculada a uma aspiração fundamental,
que não é trans-histórica, que emergiu num determinado momento
de
oportunidades
e
riscos,
de
A questão fundamental do século XX não envolve apenas a expansão
da economia global. Envolve a capacidade dos seres humanos
aprenderem com o Holocausto. A criação de novas regras
internacionais – sistemas legais, direitos humanos ou, por exemplo,
o Tribunal Penal Internacional – gerou constrangimentos e impôs
limites aos sistemas de soberania dos Estados. A soberania deixou de
ser um poder concreto. Os direitos são, de certa forma, determinados
por um punhado de valores que são cosmopolitas e globais,
implantados, agora, no regime de direitos humanos. Esses valores,
como infelizmente sabemos, têm uma eficiência restrita. São
limitados em muitos lugares do mundo, mas constituem nosso único
grande tema. São o grande tema que sobrou para a espécie humana
e, de certa forma, nos vinculam como povos com algo em comum.
Penso que a globalização dos padrões legais no que se refere aos
direitos humanos, assim como as restrições ao poder político,
representam temas imensamente progressistas que surgiram a partir
das estruturas que alteraram o direito internacional na segunda
metade do século XX. O verdadeiro desafio reside em criar sistemas
mais amplos de responsabilidade no mundo inteiro. Se Bush se
reeleger, isso será extremamente prejudicial para o sistema
multilateral do mundo. Muitos dos prejuízos que ele causou ainda
podem ter conserto, mas depois de oito anos será muito mais sério.
A grande pergunta é: como podemos nós, enquanto humanidade,
reinventar conceitos de responsabilidade, de transparência e de
democracia que correspondam à nossa era global? Seria necessário
um sistema de governança cosmopolita para abranger o local, o
nacional, o regional e o global.
Afastamo-nos cada vez mais de um mundo de comunidades
nacionais, no qual as nações decidem seu próprio destino, e
caminhamos para o que chamo comunidades sobrepostas do destino,
nas quais o destino e a riqueza dos povos estão cada vez mais
interligados – não apenas pelos eventuais grandes dramas, como o 11
de setembro e suas conseqüências em termos de segurança. O ato de
ir à loja da esquina comprar uma mercadoria está vinculado a um
sistema de distribuição espalhado pelos quatro cantos do mundo.
Significaria essa interligação de destino e riqueza, em suas várias
dimensões da atividade humana, que ficaremos todos cosmopolitas?
Seremos capazes de reconhecer nossa interconexão e partilhar mais
valores em comum? As respostas estão em aberto. Pode ocorrer que
essa ordem global crescente venha a ser determinada em sua forma e
regras, em última instância, pelas forças do mercado global. A
ascensão do G1 poderá torná-lo um novo tipo de império. Vejo com
ceticismo ambas as hipóteses, embora possam vir a ocorrer. O mundo
se tornou mais complexo, com um maior número de níveis, e o
controle não pode ser exercido como era nos tempos da Índia
colonial.
Defendo a velha tradição cosmopolita do Iluminismo, que obedece a
alguns princípios: igual compromisso entre custo e valor; igual valor
moral para todos os seres humanos; o conceito de que todo ser
humano é capaz de ações empreendedoras, de escolher seu modo de
vida e, ao fazê-lo, agir de forma responsável enquanto seu agente; e
que deveríamos viver em sistemas políticos interligados por
consentimento, e não por coação. Os pontos em questão são: a
justiça social, o desenvolvimento sustentável e o meio ambiente. A
ignorância desses temas fundamentais abre espaço para a ação de
outros; estes valores são interdependentes.
Acredito que a globalização implantou alguns desses valores em
nossos atuais temas. Em certos aspectos, a globalização é aberta e
progressista. Com as lições tiradas do holocausto, o direito
internacional implantou valores cosmopolitas no centro de nossos
sistemas legais internacionais. Não partimos de zero, como nômades
cosmopolitas. Começamos como cidadãos cosmopolitas vinculados a
um sistema de leis e acordos que, formalmente, já são cosmopolitas.
O problema está em saber se tal sistema se pode tornar cosmopolita
num sentido mais profundo e levar essas novas formas de poder
global a assumirem a responsabilidade...
na Europa, e mais além, mas que agora está interligando cada ser
humano que aspira a viver uma vida com opções.
JCR
_ Mas deve se admitir que essa filosofia é originária do Ocidente.
DH
_ O que significa “ocidental”? Do ponto de vista filosófico, é um
erro considerável associar a origem de alguma coisa com sua
validade, pois em nada a desqualifica o fato de ser chinesa, indiana
ou ocidental. Devemos separar as origens das idéias. É claro que em
grande parte é verdade que a origem da democracia, tal como a
conhecemos, assim como dos direitos humanos, está nos países
ocidentais. Assim mesmo, devemos tomar cuidado, pois tudo isso
vem lá de trás, do Mediterrâneo, através da efervescência das
culturas árabes e Platão e Aristóteles chegam ao Renascimento
através do idioma árabe. Há muitas democracias. Se Amartya Sen
aqui estivesse – um dos grandes pensadores do desenvolvimento e
um dos grandes economistas da atualidade – diria que não. “No
Ocidente, vocês pensam que essas idéias são ocidentais, mas eu
poderia mostrar tradições indianas em que elas estão, sob outras
formas”, diria ele. É complexo, portanto, e as culturas mais tolerantes
do mundo são as islâmicas. O sul da Espanha foi uma região islâmica
por muito tempo e, ali, judeus e cristãos viviam em paz, lado a lado.
Não podemos dizer a um islamita fundamentalista que coloca uma
bomba em algum lugar que aquela é uma expressão de legitimar a
diferença! O islã está repleto de pessoas que lutam para que sua
religião seja compatível com a decência humana, com igual valor
moral para todos, mais aberta a uma cultura democrática, com
liberdade de expressão, com mais autonomia para as mulheres – não
é uma cultura de bombas. Essas são lutas do islamismo, e não
somente do cristianismo ocidental. Há algo que deve ser dito ao
ativista da bomba, aos jovens revoltados, sejam eles judeus, em
Israel, ou combatentes islâmicos, ou fundamentalistas cristãos nos
Estados Unidos: não quero seu fundamentalismo tradicional porque
ele não permite reconhecer as diferenças, ou os valores que
necessariamente diferenciam os direitos que todo mundo tem a uma
vida digna e existe uma única filosofia que permite, de modo nãocoercitivo, a mediação dessas diferenças, que é a cultura democrática
cosmopolita.
A filosofia política cosmopolita consiste num diálogo, e não num
monólogo; fundamentalmente, preocupa-se em assumir valores que
reconheçam a autonomia de cada ser humano. Não é uma filosofia
imperialista. Não tem ambições territoriais. O cosmopolitismo aspira
a encontrar meios de interconectar comunidades sobrepostas pelo
destino. Não compreendemos a natureza do poder político através do
Iluminismo, nos séculos XVIII e XIX. No princípio, pensávamos que
o poder político era forjado e formado por Deus, depois pensamos
que seria pelo proletariado, em seguida as pessoas procuraram temas
individuais. Não existem temas singulares e nunca existirão;
existimos nós, com opiniões distintas, em combinações e
comunidades distintas, milhares de ativistas de direitos humanos e
organizações, na África do Sul, na América Latina, na China, lutando
diariamente para que suas vidas tenham direitos e para propagar
essas noções de responsabilidade a outros domínios da vida.
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER
B RUNO LATOUR
BRUNO LATOUR É PROFESSOR NA ESCOLA DE MINAS , CENTRO DE SOCIOLOGIA DA INOVAÇÃO .
SEU PRIMEIRO LIVRO , LA VIE DE LABORATOIRE
- 1979 -
DESCREVE O FUNCIONAMENTO COTI -
DIANO DE UM LABORATÓRIO CALIFORNIANO UTILIZANDO MÉTODOS ETNOGRÁFICOS . DENTRE
Recuemos ao tempo das guerras religiosas na Europa, no final da
SEUS INÚMEROS LIVROS , DESTACAM - SE : NOUS N ’ AVONS JAMAIS ÉTÉ MODERNES
Idade Média. Os grandes paladinos do poder político secular,
Maquiavel, Hobbes, Locke etc., eram grandes personalidades
românticas e utópicas em seu tempo e adotaram o conceito da
política separada da igreja, idéia que se tornara dominante por muito
tempo. Atualmente, o cosmopolitismo é a filosofia política e moral de
D ’ ANTHROPOLOGIE SYMÉTRIQUE
- ESSAI
- 1991 - E POLITIQUES DE LA NATURE - COMMENT FAIRE
ENTRER LES SCIENCES EN DÉMOCRATIE . FOI CURADOR DA EXPOSIÇÃO I CONOCLASH , JUNTA MENTE COM PETER WEIBLE , NO ZKM DE KARLSRUHE . PREPARA , NO MESMO LOCAL , UMA
OUTRA EXPOSIÇÃO COM O TÍTULO DE RENDRE LES CHOSES PUBLIQUES .
PARIS
N
_
12 DE OUTUBRO DE 2004
AO HA GLOBO TERRESTRE
JEAN - CHRISTOPHE ROYOUX
_ Seria possível você resumir o que está em
jogo no debate em que esteve envolvido recentemente e que opõe os
defensores do cosmopolitanismo a essa outra concepção cosmopolítica
que insiste na multiplicação das naturezas e, portanto, dos mundos ?
BRUNO LATOUR
_ Há dois pontos de partida importantes. O primeiro é,
certamente, o fato de que se passou, se é que se pode falar assim, do
tempo do tempo ao tempo do espaço. É evidente que, caso se
continue sendo modernista, nada disso tem importância: a história
continua. Porém, a meu ver, durante todo o período em que
pensávamos que éramos modernos, vivíamos no tempo do tempo, o
tempo da sucessão, dos estágios que se superam e se subsumem uns
nos outros, como diria o velho Hegel. A partir do momento em que a
ecologia se tornou essencial, nós nos encontramos no tempo das
simultaneidades e não mais no das sucessões; em outros termos, no
tempo do espaço. A questão da coabitação tornou-se, então, a
questão fundamental. Mas o segundo elemento a se levar em conta é
que não há mais lugares onde absorver a coabitação como havia um
tempo (revolucionário ou decadente, mas sempre aí) para absorver a
sucessão. A coabitação tinha, desde o século XVII, um lugar natural:
o «grande Globo» do modernismo, para falar como Peter Sloterdijk.
Qualquer coisa de extraordinário que acontecesse aos modernos,
tudo se situava no grande Globo, já presente, da Natureza. Era
possível situar, de modo enciclopédico e umas em relação às outras,
todas as diferenças. As diferenças de subjetividade, as diferenças
políticas, as diferenças de religiões, as diferenças de ideologias já
coabitavam na natureza. Todas eram, pois, superficiais em relação à
grande unidade, a essa grande universalização «da» Natureza. Ora,
no decorrer da década de 70, no momento em que se produziu a
parada do tempo da sucessão – com a multiplicidade das crises
ecológicas, com a proliferação das ciências, com a emergência das
controvérsias internas às ciências – ocorreu, simultaneamente, o
momento da incerteza quanto à unidade dessa natureza.
À primeira fila dos porta-vozes da natureza chegaram representantes
que eram portadores de discórdias em seu próprio terreno – tanto os
ecologistas quanto os políticos. Quando se começa a ter disputas
sobre os vírus, as células-tronco, os OGM, as reservas petrolíferas, o
aquecimento global, os cânceres, a poluição etc., e quando esses
novos representantes da natureza são, eles mesmos, submetidos a
pressões econômicas ou políticas, a desordem é completa. A
unificação da natureza não é mais suficiente para obter uma versão
estável do que é um cérebro, um fígado, um carro, uma doença. No
fundo, não há mais Globo, no sentido de Sloterdijk, onde todas essas
diferenças poderiam ser situadas. Estamos diante de construções de
mundos mais ou menos incompatíveis. Cada uma pode visar à
unidade, mas elas não a atingiram na primeira tentativa. Não se pode
simplificar a questão da unidade considerando que o problema já está
resolvido. A partir disso, os cosmopolitanos retomam a grande
tradição estóica, depois kantiana, que consiste em dizer: «nós,
habitantes das grandes cidades, os cosmopolitas em sentido próprio,
nós sabemos que as diferenças que nos separam são menos
importantes do que aquilo que nos une». Reivindicam um mundo
cujo equivalente, de certa forma, seria a UNESCO e que consiste em
dizer: «todos os representantes dos diferentes saberes, das religiões,
das nacionalidades, podem sentar-se em torno de uma mesa comum,
sob o mesmo teto». É uma maneira aparentemente educada, mas, de
fato, extremamente grosseira de conceber as diferenças.
Quando Isabelle Stengers reatualiza o termo «cosmopolítico», tratase, para ela, de tomar distância em relação a essa versão humanista
da política. É, aliás, uma versão que os próprios antropólogos
empregam facilmente quando falam de «cosmologias diferentes», em
que a palavra cosmologia perdeu, de certa forma, o caráter perigoso
de seu plural. Em geral, a visão modernista consiste em dizer que há
um Cosmos interpretado por cosmologias que representam variações
culturais diversas da natureza única. A variação é, então, novamente
superficial, pois decorre da representação humana e não do próprio
Cosmos.
A cosmopolítica hard, se ouso falar assim, em contraste com o
cosmopolitanismo soft, consiste em dizer o contrário: não há
unidade; no entanto, é necessário coabitar sem poder se decidir pelas
antigas facilidades da sucessão. Se nunca se foi moderno, a questão
da coabitação volta a se tornar crucial. Não há um fundo já
estabelecido que seria a natureza. Portanto, a questão é saber o que
se faz com todos os elementos que podiam ser rejeitados no tempo
da sucessão, em particular os deuses. Os primeiros pensam que os
deuses são representações; os outros, como Tobbie Nathan,
perguntam-se: o que fazer com os deuses quando eles estão em
guerra? O que é a política, se é preciso fazê-la com seres que
chegaram a um conflito tal e que têm vontades de unidade tão
contraditórias?
JCR _ O que o leva a dizer que se está no tempo do espaço, da
coabitação e não mais no tempo do tempo ?
TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI
32
BL _ Foi a ecologia que nos ensinou isso. Vê-se, aliás, que os últimos
modernistas consideram que a ecologia não é muito importante. O
retorno da ecologia significa incluir novamente o que havia sido
terceirizado. É o momento em que volta o que havia sido considerado
atividade secundária. Eu fui muito influenciado pelos parques do
tinha dele nos séculos XVII – XVIII. Nossa tarefa, agora, é reconstituir
um habitat que esteja à altura do número de elementos diversos a
reunir exatamente quando não há mais Globo. Os modernistas
nostálgicos vão dizer, é claro, que é necessário voltar ao Globo, sem
perceberem que é precisamente a partir do momento em que as
Quênia que pertencem, tipicamente, a uma cosmopolítica: é preciso
levar em conta, ao mesmo tempo, o desenvolvimento da população
queniana, dos leões, dos vegetais, dos pássaros, dos turistas
japoneses, dos credores do Banco Mundial, dos doadores das ONG,
sem poder retirar nenhum desses «sujeitos». Estamos tratando de
diferenças de mundos.
fotografias retrabalhadas da NASA nos permitem ver o mundo como
unificado que se perdeu o olhar de Deus que era inteiramente
partilhado ainda por Descartes, Newton, Rousseau, Marx e os
cibernéticos, e que nós temos que lidar somente com pontos de vista
Penso que as crises ecológicas e as outras, digamos, o que foi
chamado de fim da História (que foi um diagnóstico bastante correto
quanto ao fato de que o tempo da sucessão era substituído por ou
convertido em um outro tempo, o tempo do espaço); essas crises,
portanto, nos fizeram entrar sem dificuldades na segunda
globalização sem global e sem globo. Isso não quer dizer que a
história parava. Mas uma quantidade impressionante de coisas não
podiam mais ser eliminadas. Não era mais possível se livrar do que
se considerava atividades secundárias.
JCR _ Fica claro que o termo pós-moderno não lhe parece adequado
para designar esse tempo do espaço.
_O pós-modernismo é uma noção muito fluida que revelou, como
sintoma, a suspensão do tempo da sucessão. O que era muito útil.
BL
Mas ele não aceitou, absolutamente, a dimensão realista de tal
suspensão: a volta da objetividade que a acompanha, isto é, a
amplitude das tarefas políticas, científicas, artísticas, intelectuais que
acompanham a reconstrução de um mundo que não é mais unificado
de imediato e que, é claro, não é mais simplesmente diverso.
_ A querela sobre o universal estaria no centro dessa oposição
entre cosmopolitanismo e cosmopolítica? A disputa de interesses seria
JCR
uma redefinição do universal ?
BL _ Não. Penso que o universal, enquanto horizonte comum, é
partilhado pelos dois lados. Nós herdamos o universal, é claro.
Porém, a questão fundamental é saber se ele já está realizado ou não.
O que é irritante naquilo que Isabelle Stengers chama de «caráter
intolerante do universal» é, precisamente, que ele é considerado
como um dado. O trabalhado já está realizado. A questão que divide
os cosmopolitas não é a recusa do universal como horizonte mas,
sim, a questão de saber como se pode levar a sério qualquer
mensuração das tarefas vindouras para atingir o universal.
Trata-se de chegar a criar o espaço onde todos os cosmos partilham
uma mesma sociedade sem ter os mesmos corpos, a mesma
concepção de natureza – sendo, portanto, multinaturalista no sentido
técnico conferido a essa palavra por Viveiros de Castro. O espaço
político-artístico-intelectual, que permite fazer essas diferenças
coabitarem, ainda precisa ser inventado. Tomemos os chineses, não
os verdadeiros chineses mas aqueles que os franceses aprendem a
respeitar graças a François Jullien. Segundo ele, os chineses não são
diferentes e, sim, são indiferentes às nossas diferenças. Trata-se de
um bom exemplo de cosmopolítica! Se é preciso coabitar com
pessoas que são indiferentes às nossas diferenças, isso não é a
mesma coisa que dever considerá-los como humanos que têm, como
todos os outros, assento na UNESCO simplesmente sob um ângulo
um pouco em decalagem em relação aos demais. O trabalho da
política seria conter no mesmo envelope artificial, na mesma Biosfera
2, espécies tão diferentes como chineses, índios da Amazônia,
católicos romanos etc. Isso vai muito além do simples relativismo. A
política é a arte de fazer coabitarem juntas, nessa imensa estufa que
é o «parque humano», para retomar a expressão de Sloterdijk,
espécies que têm exigências de sobrevivência muito diferentes, que
requerem um regime muito particular de cuidados e de técnicas. É
fazer com que as questões de solo e de sangue, que desempenharam
um papel tão nefasto na história política, voltem não mais enquanto
obsessão reacionária, mas enquanto questão ecológica de base para
realizar «a atmosfera do bom governo», a ecologia do bom governo.
Como mostrou o antropólogo Philippe Descola, a própria natureza
deu uma virada. Os naturalistas que acreditavam que a natureza nos
unificava através da parte «material» de nosso ser, ao passo que a
parte «espiritual» seria variável, confirmaram não ser senão uma das
quatro maneiras possíveis de representar a relação do homem com a
natureza na história da Humanidade.
_ Exatamente no momento em que se fala mais do que nunca de
mundialização e de globalização é que aparece a constatação do
deslocamento do cosmo como unidade natural. Isso não é paradoxal ?
JCR
situados.
Não há globo terrestre. Ele constituiu uma idéia geográfica muito
poderosa no momento em que foi calculado. Porque isso é antes de
tudo um espaço de cálculo. Segundo as relações de latitude e de
longitude, qualquer diferença é presumida como tendo seu lugar.
Mas, agora, a questão é: «em que lugar colocam vocês as
controvérsias científicas a respeito dos próprios fatos, por exemplo?
Em que lugar colocam vocês as controvérsias religiosas, as paixões
políticas?» Não há lugar predeterminado para tais diferenças. É essa
a grande distância que se instaurou definitivamente com o Globo
metafísico que, do século XVII até o pós-II Guerra Mundial, foi o
horizonte comum dos modernistas.
medidas mensurantes e experiências de coabitação. Nada no início é
comensurável nem incomensurável. É o que chamo de princípio de
irreduções.
JCR _ Então o exercício político por excelência seria uma invenção
desses «cuidados» ?
_ É o que diz Sloterdijk em sua grande metáfora dos envelopes, da
estufa, do parque, mas há muitos meios de dizer isso. Eu o diria de
BL
preferência nos termos de John Dewey e dos pragmáticos norteamericanos, mas isso dá no mesmo. Trata-se, de uma certa forma, de
materializar novamente o discurso político.
A comissão de inquérito que se instala em torno de um gigantesco
quebra-cabeça reunido num hall para compreender o que aconteceu
à nave Columbia é um ser jurídico-político absolutamente estranho.
Essa reunião em volta de uma coisa não é realmente um Parlamento,
mas tem todas as suas características. Se você pensar nas associações
que se criaram em torno da questão da AIDS, terá um outro exemplo
de inventividade política a partir de um vírus, ele mesmo disputado,
traçado, testado por biólogos. Trata-se de objetos cheios de risco. Não
faltam exemplos dessas combinações, dessas assembléias esquisitas
em torno de objetos híbridos.
É evidente que a própria bola, o objeto geográfico, o globo terrestre
flutua em algum lugar na atmosfera. Mas não unifica mais nada. Sua
unidade não permite nada a ninguém. Ela não torna compatíveis os
JCR _ Será que isso quer dizer que há uma dificuldade, ou até uma
impossibilidade, para se imaginar algo que seria o elo comum entre
todos esses «cuidados»? O que você descreve consiste, a cada vez, em
fanáticos que se fazem explodir nas ruas de Bagdá, as zebras que
correm no Quênia, ou os pedólogos que trabalham sobre as
minhocas. A idéia dos modernistas é esta: há objetos de um lado e
representações do outro, e as diferenças de representações, afinal,
representações mentais precisas, localizadas, contextualizadas. Passase de uma representação mental a outra sem ter verdadeiramente a
possibilidade de fazer a ligação entre elas.
não contam muito, pois o próprio objeto sempre acabará unificandoos, num momento ou noutro, sem que se saiba aliás, com muita
exatidão, através de que operação o objeto unificador virá a fazer
calarem as representações. Essa idéia poderosa dos modernistas, que
tem uma eficácia política extraordinária, pois unifica tudo por
antecipação, não existe. Se ainda se vivesse sob a abóbada do Globo,
evidentemente não haveria grandes problemas. O tempo da sucessão
continuaria a fazer sua obra: em algum momento, as diferenças de
interpretação iriam atenuando-se ou fariam emergir, por trás de suas
interpretações, o objeto indiscutível que não se submete a nenhuma
interpretação, que nos livra de todas elas. É a idéia política (insisto,
é uma idéia política e não científica), partilhada tanto à esquerda
quanto à direita, segundo a qual a verdade científica acaba se
impondo por si mesma.
Existe, é claro, o inverso dessa posição sob a forma de um elogio das
multiplicidades, das diferenças, dos pontos de vista: é o pósmodernismo mais simplista. Mas é apenas o inverso da mesma
posição. Ora, se hoje o Globo desapareceu, é porque, entre
muitíssimas outras razões, as ciências da terra, há trinta anos,
renovaram inteiramente esse objeto que se encontra engajado numa
quantidade enorme de disciplinas diferentes. Atualmente, é preciso
fazer manter-se junto o que nos dizem os cartógrafos, os geógrafos,
a física do solo, os astrônomos e seus modelos; ora, cada um já tinha,
em sua própria disciplina, muita dificuldade para ser unificado. É
preciso não se enganar a respeito dessa questão de pontos de vista
múltiplos. O objeto «globo terrestre», como o corpo humano, tem
muitas interpretações diferentes porque é um objeto muito complexo
que não que não é absolutamente unificado. A multiplicidade dos
pontos de vista não decorre de uma fragilidade de nossas
interpretações sucessivas, mas da riqueza do próprio objeto. É por
ser muito complexo que ele gera tantos pontos de vista sobre si. Essa
complexidade é um elogio ao objeto e não um elogio às
subjetividades que o olham de fora. O fim da controvérsia, o
momento da reunificação não pode mais vir da emergência repentina
do objeto, ao lado das interpretações, a qual faria calarem as
interpretações.
O grande Globo metafísico, ao contrário, correspondia à idéia de que
alguém, um Soberano, iria vir a qualquer momento fazer calar a multiplicidade de vozes. Donde a importância, em todas as arquiteturas
dos palácios, da figura do domo. A natureza é um modelo de silêncio
e de consentimento político organizado a partir de uma arquitetura
muito particular, como mostra o famoso projeto do túmulo de
Newton por Boullée. Essa assembléia desapareceu. Então, em que
assembléia estamos nós agora? É o que precisamos descobrir.
A questão não é a incomensurabilidade dos pontos de vista, o que só
levaria, no fundo, a um relativismo ingênuo. Esquece-se disso com
freqüência, mas na palavra ‘incomensurável’ existe a palavra
‘medida’; ora, antes da instalação dos instrumentos e das cadeias de
medida, tudo, por definição, é incomensurável, mas não depois. A
BL _ É estranho mas não é um paradoxo: antes, tinha-se o globo e não
a globalização, agora se tem a globalização mas não se tem mais
senão blogs! O globo existia, com a geometria de Mercator, quando a
globalização mal começava. Quando se começou a ver imagens da
terra, tomadas por satélite a partir da estratosfera, perdeu-se o Globo
– é o tema do livro Sphère 2 de Sloterdijk – que tinha a vantagem de
unificar tudo, como as grandes arquiteturas de Boullée no século
XVIII. O satélite deu-nos um ponto de vista situado, um ponto de
vista particular. Em outros termos, o global tornou-se, hoje, um
comensurabilidade é o objeto da metrologia que é a ciência daquilo
que permite justamente tornar comuns as medidas, a capacidade de
partilhar as medidas. Para retomar a metáfora de Sloterdijk, um
coqueiro nas estufas do Jardin des Plantes não é, no início, nem
comensurável nem incomensurável com Paris. Isso requer,
simplesmente, um cuidado especial que torna explícita uma
multiplicidade de experiências sobre o que são coabitações aceitáveis
ou não. Não se trata, pois, justamente, de se comprazer nos pontos
de vista incomensuráveis, mas de pagar o preço da definição de uma
objeto de disputa entre pontos de vista. Perdeu a evidência que se
medida comum. Eu diria que sou mais relacionista que relativista. Há
33
BL _ O que você chama «fazer a ligação» pode ser, talvez, o cuidado.
A noção de caso separado e incomensurável por ele mesmo vem de
alguma forma da própria idéia de universal desenvolvida pelo
modernismo. Mas não é absolutamente evidente que a modernização
seja a única forma de fazer política. Há muitas outras tradições, como
a chinesa, da qual fala François Jullien. Penso também em todas as
grandes noções desenvolvidas por Dewey e que, precisamente,
implicam a noção de ad hoc. Há, com certeza, muitas outras
casuísticas. É uma evidência empírica: não temos a mesma ligação
com os objetos conforme se fale do Iraque, da AIDS ou da poluição –
as reações, as atitudes, os modos de indignação e as eventualidades
de solução são completamente diferentes. Mas essas diferenças não
são levadas em conta por uma definição generalista da paixão
política.
Nada disso é novo mas, para ser mais preciso, é: de novo presente. O
afresco de Lorenzetti em Siena sobre o bom e o mau governo é um
perfeito cosmograma. Por um lado, há emblemas magníficos, mas há
também, o que se esquece com muita freqüência, paisagens, cidades,
comércios, danças, assassinatos. De certo modo, é uma pesquisa
experimental cautelosa sobre os acordos e os desacordos possíveis
entre os seres que têm exigências contraditórias mas que não sabem
a que grau de contradição devem chegar.
É isso que se chama diplomacia. O diplomata não sabe o que é
incomensurável, sem isso não haveria diplomacia pensável. Ele
explora tipos de decalagens entre o incomensurável e o mensurável,
de modo que é absolutamente possível mudar durante o processo o
que é incomensurável, inaceitável, insuportável. A política é o
domínio da compossibilidade. Isso é evidente desde que se passou do
mundo do tempo ao mundo do espaço. Mas não se sabe o que é
coabitar. Somos muito mal preparados para essa questão pela cultura
política que adquirimos durante o tempo da sucessão quando, por
exemplo, se presumia que a luta de classes faria desaparecer a
religião, a ideologia etc. Antes, a política era fácil pois, de direita
como de esquerda, era sempre, no fundo, revolucionária. Ela
declarava obsoleto tudo o que não podia absorver. Mas, quando você
não pode mais se livrar de nada, nem de uma única espécie animal,
nem de uma cultura estrangeira, nem de nenhuma religião e quando
tudo voltou a tornar contemporâneo, é necessário pensar as
condições da coabitação. A acusação de reacionário ou de
progressista cai muito freqüentemente no vazio por causa disso. Os
modernos nunca foram contemporâneos deles mesmos. Tornar-se
contemporâneo de um mundo onde tudo é contemporâneo não é a
mesma coisa que estar na vanguarda de um mundo modernizador em
que uma parte é considerada hipercontemporânea e a outra,
arcaica...
Um
cosmograma
é
uma
seleção
transversal
de
diferenças
representadas ou retomadas pela idéia de um mundo «bom». Em
minha opinião, só se pode falar de cosmograma a partir do momento
em que se trata de fazer um mundo bom comum. É uma exigência
que se herda quando se foi moderno em algum momento. A idéia da
coabitação supõe que é importante fazer um mundo, ir rumo a um
horizonte futuro. Minha maneira de herdar do Iluminismo é
considerar que a questão do mundo bom comum é ainda muito
importante em oposição à simples aceitação das diferenças puras, a
qual consiste numa forma de simplificar a coabitação.
Em outros termos, formar o mundo bom comum é colocar a questão
prática do cosmograma, é interessar-se pelas diferenças que buscam
o que elas têm em comum. Os cosmogramas equivalem a questões
práticas de arquitetos, de engenheiros, questões de cuidados. É a
questão de saber qual é o mundo que é compossível, tendo presente
que não se pode calcular, que se vai reunir. O cosmograma só tem
Inicialmente não se tratava, para mim, de elaborar uma teoria da
globalização político-econômica ou um resumo da função
uma filosofia do espaço. Que sentido você dá a esse privilégio
concedido ao espaço? De que forma é ele uma característica essencial
sentido quando a questão do mundo que deve ser feito, quando o
preço da composição não é simplificada. Para mim, o cosmograma
cosmológica do pensamento. Eu queria descrever o que chamava
relações fortes entre as pessoas e a construção do espaço de
aos nossos tempos de hoje ?
não designa uma bolha: é um conceito político que retoma a questão
da composição. É um elemento que habita a metalinguagem daqueles
ressonância em que vivem os enamorados e os criadores. O ponto de
partida de minha análise era a suposição da existência de uma
que descrevem o que é se reunir quando a natureza desapareceu.
natureza psicanalítica relativamente próxima a algumas das idéias
propostas por Jacques Lacan. Para se poder falar do que realmente
Para voltar ao início, a definição mesma do espaço é a série de
simultaneidades. Caso você faça com que alguns seres explicitem a
lista dos outros seres com quem eles podem ou não podem viver,
você define um cosmograma, uma série de simultaneidades e,
portanto, um espaço. O problema é que, agora que o tempo do tempo
acabou, não se sabe mais em que espaço a gente se encontra. Sabese que não se está mais no tempo do tempo, mas isso não esclarece
muito sobre o tipo de espaço que se habita. O desaparecimento do
Globo metafísico suprimiu também a noção de escala. Também a
escala deve ser inventada. Pode-se classificar os seres por ordem de
importância. O grande erro dos ecologistas foi ter acreditado que,
fazendo apelo à Natureza, com um N maiúsculo, se iria classificar os
seres por ordem de importância. Isso foi um desastre porque, o Globo
não existindo mais, a Natureza é o ser político mais contestado que
existe, ou seja, tudo, tudo exceto um princípio de classificação
indiscutível dos seres.
são os seres humanos, é preciso penetrar naquela camada ilusória do
individualismo metafísico e psicológico do pensamento cotidiano.
Para compreender a dinâmica do espaço de um casal, é necessário
compreender que os seres humanos estão sempre, por assim dizer,
imbricados uns nos outros. A hipótese de que partia em meu trabalho
era a de que as almas são entidades possuídas e possuidoras. A esfera
existencial primordial se cria a cada momento em que o espaço
interpsíquico se concretiza. Ser possuído significa ter a capacidade de
receber visitantes sutis. A psique tem esse estranho dom de ouvir o
que dizem os outros e a audição é a porta de acesso à possessão pelo
outro. Para Lacan, seria mais a visão no espelho de sua própria
silhueta que está na origem da ilusão que a criança faz de si mesma.
Em conseqüência disto, viveríamos permanentemente um duplo
encantamento: o dos que nos falam – pois ouvir é abrir-se ao encanto
pela voz do outro – e o da confusão constitutiva do eu, que ocorre no
Sei que isso choca muita gente, políticos e cientistas, porque eles
permanecem no tempo do tempo do tempo e não vêem como se
adequar ao tempo do espaço. Em termos gerais, a querela gira em
torno da noção de progresso. Contrariamente ao que os
pesquisadores cientistas continuam acreditando, as ciências
dispensarão muito bem a noção de progresso que só apareceu em
alguns momentos do século XIX e no século XX, durante o pósguerra.. Há muitas outras maneiras de satisfazer a capacidade de
invenção e de exploração dos cientistas e dos engenheiros. Pode-se,
por exemplo, reutilizar a noção numa perspectiva não moderna para
momento em que, para meu próprio bem, me confundo com essa
bela e coerente entidade que reflete minha imagem no espelho; essa
maravilhosa ilusão ortopédica que cria a possibilidade de me
transformar de ser dividido em imagem completa. Se consultasse
minha intuição primária no que se refere à minha condição de ser
vivo projetado num mundo incerto, a informação talvez fosse a de
que sou algo inteiramente dividido e fragmentado – e a única questão
que sobraria seria a de saber em quantos fragmentos. Aliás, a idéia
de Lacan do nascimento da coerência individual a partir da ilusão
icônica que projeta minha imagem no espelho é insustentável, do
ponto de vista da evolução psíquica, pois cada indivíduo recebe
falar da capacidade de coabitar com seres cada vez mais numerosos
e cujas capacidades de preocupação e o cuidado que é necessário
informações sobre sua unidade e sua coerência, enquanto ser vivo, a
partir de outras fontes anteriores à da imagem no espelho.
tomar para fazê-los coabitar aumentam. Isso também é progredir - na
pesquisa, na atenção, no cuidado. É necessário colocar na questão da
coabitação a mesma energia que foi colocada na noção de progresso,
tal como fora compreendida no tempo da sucessão. Embora as duas
noções pareçam ser muito diferentes – uma ‘progressista’ e a outra
‘reacionária’ – eu creio que fazer manterem-se juntos seres
contraditórios continua sendo um horizonte que pode permitir definir
uma flecha do tempo. Uma flecha do tempo que vai rumo ao espaço
da coabitação e não mais rumo ao tempo da sucessão.
P ETER S LOTERDJIK
SLOTERDIJK ,
FILÓSOFO ,
NASCIDO
EM
1947 , É REITOR DA HOCHSCHULE FÜR
GESTALTUNG DE KARLSRUHE . PUBLICOU MUITAS OBRAS , ENTRE AS QUAIS A IMPORTANTE
TRILOGIA BULLES , SPHÈRES I , GLOBES , SPHÈRES II , ÉCUMES , SPHÈRES III , ORIGINALMENTE
PELA EDITORA SURHKAMPF , FRANKFURT , MAIN , NO FINAL DA DÉCADA DE 90 .
TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI
WIEN
J
acasalamentos. Esse livro deveria ter sido escrito numa espécie de
língua estrangeira, pois estou convencido de que nenhuma das
chamadas línguas maternas permite um discurso suficientemente
radical sobre a relação profunda de que nascemos. A voz pela qual
posso contar minha arqui-história, aquela que precedeu a aquisição
da linguagem, não é exatamente a língua materna. Por quê? Porque a
língua que sua mãe lhe ensina é aquela que torna impossível sua
relação com ela. A língua materna é a língua mutilada que separa o
vocabulário trágico da relação profunda. Em minha opinião, também
seria necessário insistir intensamente nesse domínio oculto porque as
raízes da ilusão individualista se escondem nas lacunas da língua
materna. A esferologia, enquanto crítica radical do individualismo,
constitui um esforço para construir uma linguagem que possa
preencher as lacunas das chamadas línguas naturais.
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX .
PETER
A microesferologia começa como teoria do espaço animado
partilhado; fala da possessão recíproca que cria um espaço bipolar ou
pluripolar que, diariamente, chamamos o casal (ou o grupo
primário). O primeiro volume de Sphères (Esferas), intitulado Bulles
(Bolhas), é, portanto, uma teoria geral das estruturas que permitem
_
16 DE OUTUBRO DE 2004
EAN - CHRISTOPHE ROYOUX
_ Existe algum vínculo entre a evidência
contemporânea da globalização e sua teoria das esferas? A questão do
globo e do global corresponderia afinal, em nosso contexto atual, ao
momento político dessa ciência que você chama esferologia ?
_ O vínculo existe, mas é, antes de tudo, de
natureza mais indireta. Em minha opinião, a atual globalização –
PETER SLOTERDJIK
eletrônica e telemática – já representa a terceira onda da verdadeira
globalização; é a última etapa de um processo que começou na época
da cosmologia filosófica, dos gregos, e seus atuais vetores são a
velocidade da circulação e a telecomunicação ultra-rápida.
Paralelamente, ela representa o produto de uma decepção radical,
através da qual os seres humanos tiveram que abandonar o privilégio
de viver num autêntico cosmos – ou seja, um mundo fechado e
acolhedor. O cosmos, tal como os gregos o concebiam, era a
totalidade do que existia imaginada sob a forma de uma grande bola
perfeitamente simétrica. Aristóteles e seus sucessores foram os
responsáveis por essa idéia do cosmos composto por esferas celestes
concêntricas, de diâmetros cada vez maiores e que, em sua maioria,
seriam constituídas por uma matéria hipotética que era chamada éter.
É evidente que, para nós, esse modelo passou a ser irrelevante.
A “atmosfera” que envolve a bola em que vivemos é a única das
esferas cósmicas de que falavam os Antigos que guardou algum
significado para os modernos. Essa palavra (literalmente, “bola de
vapor”) designa a camada gasosa que envolve a Terra sólida e faz
com que sejamos todos “alunos do ar”, para retomar a bela expressão
de Johann Gottfried Herder. Segundo esse pensador, partilhamos com
todos os outros seres vivos o destino de sermos criados pelo ar. O ar
é o senhor absoluto que nos dá um ensinamento constitutivo e
infinitamente discreto. Nunca fala, mas tudo concede e torna
possíveis as coisas. Aliás, os povos antigos possuíam teologias do
vento que, às vezes, se revelaram mais inteligentes do que a
meteorologia moderna. Era um tesouro que permitia aos seres
humanos se conscientizarem de que sempre estão imersos em alguma
coisa quase imperceptível e, no entanto, absolutamente real, e que
esse espaço de imersão domina as mudanças de nossos estados de
espírito – até as alterações mais íntimas. A aeração é o segredo
profundo da existência.
Seria necessário voltar a contar toda a história de nossa relação,
fundamentalmente modificada, com esse invólucro atmosférico. Para
começar, escolhi a mais insuportável das histórias: a da guerra do
gás, iniciada em abril de 1915 durante a I Guerra Mundial. Sabe-se
que, no front de Ypres, as tropas alemãs empregaram pela primeira
vez uma artilharia de gás clorado contra as posições francesas. Foi
uma ruptura histórica, pois abriu caminho para a manipulação
destrutiva do meio ambiente. A verdadeira descoberta do meio
ambiente ocorreu nas trincheiras da I Guerra Mundial, com a guerra
do gás. Esse tipo de guerra não mata por meio de tiros diretos, mas
destruindo o meio ambiente de que o inimigo necessita para
sobreviver. A arte de matar a partir do meio ambiente é uma das
idéias brilhantes da civilização moderna. Contém o núcleo do terror
contemporâneo: não mais atacar o corpo do adversário isolado, mas
o corpo em seu Umwelt (no invólucro do mundo).
JCR
_ Então, sua trilogia das esferas deve ser lida, antes de tudo, como
34
PS _ Para Kant, o espaço é definido como a condição de possibilidade
do ser – o conjunto dos corpos –, o que também implica sempre a
faculdade de separá-los. A principal virtude do espaço é seu poder de
criar uma distância entre os corpos. Ora, os modernos meios de
transporte têm por principal virtude eliminar as distâncias, inclusive
os oceanos que Deus, em sua sabedoria, criou entre as tribos da raça
humana. Os meios de comunicação de massa são ainda mais
eficientes que os meios de transporte rápidos, pois têm o poder de
reunir os sistemas nervosos dos habitantes num espaço coerente.
Têm a capacidade de sincronizar as consciências numa semi-esfera
muito grande, uma coisa prodigiosa, quando se pensa que desde a
Antiguidade essa capacidade se limitava ao alcance da voz humana.
Com o advento da imprensa escrita, observa-se o fenômeno de uma
sincronização concreta das consciências distribuídas no espaço. Com
as telecomunicações, já nem é preciso viajar pessoalmente para se
estar em contato com alguém da outra margem. Praticamente todas
as margens se tornaram disponíveis e acessíveis de modo
instantâneo. A telecomunicação é a faculdade racional de freqüentar
qualquer lugar do mundo. Tudo isso contribui para uma
neutralização do espaço.
JCR _ Vivemos hoje, como nunca antes, a hora do espaço –
principalmente graças aos fenômenos que você descreve, como a
telepresença e as telecomunicações. E, no entanto, você fala do
desaparecimento do espaço. Não seria isso um paradoxo ?
PS _ Acho que não. O espaço de que hoje tanto se fala já é o espaço
neutralizado e homogeneizado. Dominar o espaço significa eliminar
sua função separadora e utilizar exclusivamente sua condutividade.
Mudar o curso do mundo significa, na realidade, mudar
principalmente o funcionamento de seus elementos separadores. Para
os Antigos, viver no mundo físico significava esbarrar nas coisas que
nos separam. Um corpo é sempre um objeto situado a meio-caminho
de outro corpo e nos tempos antigos isso significava, principalmente,
submeter-se à predominância de corpos-obstáculos. Ora, as
modernas telecomunicações possuem essa faculdade mágica de
eliminar os obstáculos ou, mais precisamente, superar ou contornar
os corpos separadores que existem entre você e eu.
Quem sabe contornar os obstáculos entra para o tempo histórico.
Poderia dizer-se que a História consiste na totalidade de operações
que tinham que ser feitas para vencer o efeito separador dos corpos.
É o que Marx e Engels notaram no Manifesto Comunista, ao dizerem
que “tudo o que é sólido se desmancha no ar”. Conseqüentemente, a
História deveria parar a partir do momento em que não existissem
mais obstáculos cruciais a transpor. Esse é um dos motivos pelos
quais alguns pensadores sérios do século XIX propuseram interpretar
a era atual como um tempo pós-histórico, um tempo em que o projeto
da História terminou, na medida em que todos os obstáculos que
impediam que o mundo fosse conectado em rede foram, por
princípio, eliminados.
É importante que fique bem claro o sentido da palavra “História”. Se
qualquer coisa que acontece em qualquer lugar, em qualquer época,
deve ser chamada um acontecimento “histórico”, então, com certeza,
jamais saímos do reino da História, pois o homem sempre vive no
ritmo dos acontecimentos, sejam eles seriais ou catastróficos. Mas se
tomarmos uma definição mais restrita do termo “História”, será
inevitavelmente necessário falar de um fim da História.
Considerando-se – como eu proponho – que a História real é o
processo no qual foi criado o sistema mundial, então não há senão
um único episódio realmente histórico: é o trajeto que tem início em
meados do século XV, com a conquista do oceano pelos navegadores
portugueses e a primeira viagem de Cristóvão Colombo, para ter seu
ponto culminante em meados do século XX, com a criação de um
sistema mundial pós-colonial tendo como referência, de um lado, a
emergência de um sistema monetário global – pense nos famosos
acordos de Bretton Woods, redigidos em 1944 – e, de outro, o
processo de descolonização da década de 50. O último capítulo dessa
série de acontecimentos concretizou-se em 1974, com a saída dos
portugueses de suas possessões ultramarinas após a famosa
Revolução dos Cravos. Portanto, a História, no sentido exato do
termo, vai de 1492 a 1974. Uma questão, na verdade, bastante
ibérica, pois os portugueses foram os primeiros a tornar os oceanos
navegáveis e os últimos a deixar suas colônias.
JCR _ Em outras palavras, você diz que a perfeição da globalização
moderna, no século XX, equivale ao fim da História.
_ Pode se definir o fim da História por dois critérios: o primeiro
diz respeito ao conteúdo e duração do processo, enquanto o segundo
analisa seu estilo de ação. O conteúdo da História, portanto, como
PS
acabamos de dizer, é a criação do sistema mundial – e seu fim
substancial seria atingido, conseqüentemente, no momento em que
esse sistema tivesse sido estabelecido. Quem poderia negar que isso
é um fato consumado? Por outro lado, do ponto de vista da teoria da
ação, a História seria a fase bem-sucedida do unilateralismo. O estilo
de ação unilateral é o modus operandi adotado pelos europeus do
período crítico: digamos, de Cristóvão Colombo a Adolf Hitler. Os
aventureiros da globalização terrestre foram testemunhas, entre 1492
e 1945, dessa inquietante capacidade que possuíam os europeus de
produzir idéias e homens impregnados com as tintas do
unilateralismo. Atualmente, fomos expulsos desse paraíso dos
JCR _ Na tradição fenomenológica, especialmente com Husserl, aquilo
que você chama co-pertencimento, ou reciprocidade de pertencimento
entre o ser vivo e seu ambiente, chama-se “mundo”. Seria esse
“mundo” da tradição fenomenológica o que você chama “esfera”?
conquistadores em que era prometida a salvação a quem agisse
primeiro. O que chamamos História corresponde exatamente a esse
período em que o êxito se obtinha sem que fossem questionados os
meios ou a reação das vítimas. Se a História terminou, é porque
entramos numa época dominada pela descoberta dos efeitos
secundários e retroativos. O futuro pertence à preocupação com
Seriam esses termos equivalentes um ao outro ?
relações mútuas e reciprocidades. Um mundo em rede é
necessariamente estruturado pela lógica da multipolaridade e por um
feed-back mais ou menos imediato para cada iniciativa tomada. A
principal prova para validar a tese segundo a qual a História, em sua
definição exata, já deu o que tinha que dar, consiste no fato de que,
desde o fim da II Guerra Mundial, só se julga o passado.
JCR
_ E o que vem depois da História ?
_ Ao encerramento da História, segue-se o que existia antes da
História, o reino das séries e das rotinas interrompido por micro e
PS
macrocatástrofes. Entra-se para o domínio daquilo que os
historiadores de longo curso sempre consideraram seu verdadeiro
objetivo. Portanto, não há uma única História que conta o advento do
sistema mundial e a etapa bem-sucedida do unilateralismo.
Paralelamente a essa grande narrativa, temos, evidentemente, a outra
maneira de administrar as questões temporais estudando as irmãs
gêmeas que são as séries e as catástrofes. Num momento em que o
historicismo forçado do século XX deu o que tinha a dar, há a
liberdade de redescobrir que a existência humana, assim como a
maioria dos processos que nos dizem respeito, está enraizada numa
espacialidade insuperável. Era minha ambição elaborar os elementos
de um vocabulário do espaço suficientemente complexo para
descrever o espaço sistêmico e o espaço existencial. O espaço
sistêmico é aquele criado pelas operações dos grandes sistemas
políticos, administrativos, econômicos etc. Os espaços existenciais,
por seu lado, são as esferas que só existem na medida em que são
ativadas por seus habitantes. O espaço interpessoal é criado pelas
ressonâncias de que eu falava inicialmente, em termos de possessões
recíprocas.
_ Poderia dizer, então, que essa esferologia que você vem tentando
criar equivale a uma revisão do conceito de espaço capaz de abrir a
JCR
possibilidade de uma relação mais satisfatória com a totalidade aos
seres humanos ?
_ Entre os estudiosos atuais dos meios de comunicação circula
uma frase que resume a sabedoria dessa nova disciplina: “O formato
PS
é a mensagem.” Não é, portanto, o meio que é a mensagem, como
pensava McLuhan, e sim o formato. Na terminologia dos radialistas,
um formato é um tipo de programa. Num plano mais geral, um
formato é um padrão, uma dimensão, uma escala. O principal erro da
fenomenologia foi mergulhar o indivíduo de uma maneira demasiado
direta numa piscina universal chamada “mundo”. Ora, o mundo é um
formato impossível. Se o homem é um peixinho, ter o mundo como
piscina é simplesmente superdimensionado. “Ser no mundo”, como
dizia Heidegger, é, com certeza, uma fórmula estimulante quando se
trata de exprimir o caráter extático de nosso ser em relação às coisas.
É uma fórmula preciosa para expressar que o fato de estar num
movimento de extraversão em relação às coisas precede sempre nossa
reflexividade – é esse o pathos filosófico da fórmula “ser no mundo”.
Mas eu queria mostrar que o mesmo êxtase se reproduz numa escala
menor a partir do momento em que um recém-nascido entre em
contato com um brinquedo que alguém pendura em frente de seus
olhos, no berço. O brinquedo já possui essa capacidade de envolver
num êxtase existencial o recém-nascido. E basta isso para garantir
uma primeira abertura em direção ao mundo. A abertura também é,
simultaneamente, uma concentração e essa concentração possui,
necessariamente, as qualidades de um relativo fechamento –
fechamento que prevê uma reabertura. O “ser-numa-esfera” é
relações de envenenamento mútuo entre as pessoas, embora uma
toxicologia política deva, em certa medida, tomar o lugar da política
clássica: os toxipolíticos de amanhã terão reconhecido a necessidade
de deixar o espaço comum ficar no estado em que se gostaria de
encontrá-lo – como consta dessa mensagem profética que se encontra
nos banheiros de trem da “Eurocity”. Provavelmente foi algum genial
ferroviário alemão que inventou o texto dessa alocução. Será
necessário transferi-la para a Declaração dos Direitos Humanos. A
sabedoria dos banheiros públicos alcança, finalmente, seu espaço
político.
JCR _ Trata-se, em resumo, de um postulado ecológico. Então você
considera a ecologia o pensamento fundamental do século XXI ?
_ Em primeiro lugar, é preciso chegar a um acordo sobre a noção
de oikos, que significa a casa, em grego. A beleza do conceito de casa
reside no fato de que ele pode articular a idéia de um pertencimento
PS
recíproco entre o local e o morador. Essa “casa” é precursora do
conceito de meio ambiente dos biólogos modernos que elaboraram o
teorema criado por Jakob von Uexküll no início do século XX – e
segundo o qual os organismos e seu meio ambiente se pertencem
mutuamente, por assim dizer. A ecologia moderna seria,
conseqüentemente, uma ciência de domesticação geral. Mas como
essa maneira de pensar contém um grande potencial de naturalismo
redutor, é preciso utilizá-lo sempre com muita prudência.
fingem praticar a psicanálise justamente para não falar “disso”. Seria
possível dizer que colocam a terapia a serviço da doença – como se
coloca, às vezes, a pesquisa a serviço da recusa de encontrar. Esse é,
aliás, o cerne da polêmica que Lacan lançou contra a americanização
da psicanálise. Para ele, o americanismo psicológico remete à vontade
de nunca aprender a linguagem da pré-subjetividade – essa
imbricação primordial entre o psiquismo do outro e o meu – erigindo
o eu como um bloco indivisível em seu próprio espaço. “I need my
own space.”
relação entre conteúdo e recipiente – o que leva a pensar que, afinal,
deveríamos reconstituir a segurança existencial de nossa vida prénatal por outros meios. Por que, então, a moderna conquista da
autonomia se tornou atualmente um peso, uma humilhação ?
essa meia abertura pode se exprimir de maneira mais convincente,
em minha opinião, num discurso esferológico do que numa
linguagem fenomenológica – na qual se fala de forma demasiado
rápida dessa coisa superdimensionada que seria o “mundo”.
JCR _ Em outras palavras, uma esfera é um mundo relativo e jamais
se vive no mundo absoluto.
ilhas são autênticos modelos de mundos no mundo. São atalhos do
mundo, como dizia Bernardin de Saint-Pierre, o ensaísta francês do
século XIX. Para mim, os seres humanos são, antes de tudo e
necessariamente, habitantes de ilhas.
expressar a idéia de que todos os homens não só nasceram livres e
iguais, mas também são condenados a cuidar do espaço em que
vivem e garantir a capacidade de respirar e de conviver em seu meio
ambiente. É uma definição que não só diz respeito ao chamado
espaço privado, como ao espaço público. Existem, atualmente,
vontade de não aprender essa infra-linguagem. Às vezes, as pessoas
verdade, os seres humanos não são existências nuas num êxtase
global. Em torno de nós, dispomos sempre de vários objetos,
referências que se divisam num horizonte, mas a abertura do
horizonte também não deveria nunca esconder a possibilidade de um
fechamento relativo. O horizonte é um círculo aberto que me garante
que vivo numa espécie de interior extático. É um baú semi-aberto. E
em busca de sua libertação, atualmente vivemos numa época em que
uma consciência mais ou menos satisfeita e luxuosa está em vias de
aprender a arte de organizar seu espaço. O homem moderno é uma
espécie de “curador” – um termo que, na verdade, não existe em
qualquer país, tornou-se – ou foi forçada a se tornar – uma espécie
de comissário, responsável por seu lugar. A Declaração dos Direitos
Humanos deveria ser reformulada, em termos topológicos, para
suficientemente radical, teríamos condições de contar nossa própria
história ab ovo. Seria possível articular a presença perdida de alguma
coisa que não era uma pessoa, nem simplesmente um órgão – esse
gêmeo que nos acompanhou até o momento do nascimento e nos
deixou por motivos ignorados. O moderno autonomismo, essa atitude
quase kantiana que se tornou a atitude de todo mundo, estimula a
JCR _ De certa maneira, você diz que as esferas cósmicas se
evaporaram. Conseqüentemente, seria necessário reconstituir uma
PS _ Uma esfera é um mundo formatado por seus habitantes. É por
esse motivo que, em meu livro, falo extensivamente das ilhas. As
metaprofissão que todo mundo é obrigado a exercer. A inocência do
habitat tradicional perdeu-se de uma vez por todas. Após a destruição
concreta de tantas coisas e a prova da destrutibilidade de qualquer
coisa, cada pessoa, de qualquer apartamento, de qualquer cidade, de
que possibilitava nossa autonomia. Kant, que evitava o conceito de
maternidade, recusou veementemente a idéia de um ventre divino
dentro do qual nos encontraríamos durante toda nossa existência – e
essa rejeição foi o gesto primordial da modernidade. É precisamente
essa a vontade de negar qualquer relação entre conteúdo e recipiente.
Infelizmente, esse gesto salutar implica a necessidade de não
aprender essa infra-linguagem que tornaria expressiva a continuidade
de nosso saber existencial. Se fôssemos dotados de uma língua
exatamente esse movimento. É o eks-tase formatado graças ao qual é
possível estar fora de seu eu, mas nunca, imediatamente, no Todo. Na
PS _ Se o século XIX e a primeira metade do século XX foram,
principalmente, uma época de narrativas sobre a consciência infeliz
francês –, ou seja, uma pessoa responsável pela exposição do espaço
em que ela própria vive. Cada pessoa se tornou um curador de
museu. Criar sua própria instalação consiste, por assim dizer, numa
tranqüilizar-se imaginando um invólucro divino em sua volta. Por
outro lado, alguns pensadores, entre os quais e principalmente Kant,
acharam aquilo tão desanimador que quiseram eliminar a idéia de
um Deus espacializado que teria a capacidade de nos envolver. Para
Kant, essa perda do invólucro divino transformou-se numa condição
JCR
_ Aquilo que você descreve como advento do espaço, após o fim da
História, caracteriza-se por um espaço impossível de ser concebido
como uma esfera global comum. O espaço da globalização já não
funciona como um cosmos. Parece-me que a tese central de sua idéia
é a de dizer que o cosmos, enquanto monosfera – ou seja, enquanto
espaço passível de criar uma moradia para o gênero humano em sua
globalidade –, desapareceu ou se transformou de tal maneira que já
não pode preencher a função de inclusão total.
PS
_ Se assim não fosse, Heidegger não teria tido condições de propor
sua famosa fórmula do “ser no mundo”. “Ser no mundo” significa
precisamente ter perdido a última garantia de um enraizamento, é o
estado de um apátrida ontológico. Para Heidegger, os habitantes do
mundo moderno perderam, com certeza, a pátria cósmica.
Simultaneamente, é um diagnóstico sobre o destino do monoteísmo.
Em sentido estrito, o monoteísmo é um monosferismo. É impossível
ser monoteísta sem postular, de alguma maneira, que existe um
ponto central a partir do qual se produz a emanação de todo o espaço
divino. Um monoteísmo forte não só dispõe do reino moral, mas
também do mundo físico – quer englobar o natural e o espiritual.
Exige um Deus suficientemente forte para ser onipresente e
onipenetrante, na natureza e nas consciências. Esse Deus poderoso
seria construído, necessariamente, como uma esfera envolvente no
centro da qual impera um direito de ingerência universal.
A metafísica européia tinha a pretensão louca e inevitável de impor a
coincidência e a co-extensão da teologia e da cosmologia. Um único
gesto pretendia criar as duas esferas máximas de maneira
concêntrica, Deus e o mundo. Nunca compreenderam que esse
ambicioso projeto era fadado ao fracasso por motivos internos:
retrospectivamente, percebe-se que a teologia era simplesmente
demasiado fraca para integrar a teoria do mundo na teoria de Deus.
Atualmente, o que sobrou foi um monoteísmo frágil, que poderia ser
comparado a um satélite de televisão que abrange a Terra inteira, com
um único programa moral e pretensamente válido para todos os seres
humanos – mas, definitivamente, não aceito por todos.
Os motivos para tal situação nos remetem à demolição da imagem
das esferas celestes envolventes. Essa representação tinha,
evidentemente, um valor edificante para todos os que procuravam
35
_ No livro Sphères III (Esferas III), descrevo uma espécie de
curriculum vitae do homem solteiro moderno, o qual demonstra uma
PS
vontade de morar sozinho em seu apartamento. Com bastante
freqüência não se trata de uma situação involuntária, e sim de uma
solidão desejada. Tento mostrar como a forma dominante da maneira
moderna de residir corresponde a uma forma de subjetividade em
que o indivíduo aprendeu a criar um casal consigo mesmo. Deixa de
ser necessário um Outro real para formar o casal. A estrutura do casal
é tão ampla e flexível que não existem normas capazes de definir
quantas pessoas reais são necessárias para formá-lo. Pode ser
formado por duas, naturalmente, mas também pode ser formado por
várias. Às vezes, é formado por relações paradoxais com parceiros
ausentes, como provam as relações dos místicos com Deus ou casais
de enamorados que estão separados. Até existe a relação diádica
entre a alma do nacionalista e sua nação, parceira impossível e
pseudo-concreta na medida em que o nacionalista ferrenho pode
imaginar ser o filho predileto de uma mãe que pede e aceita o
sacrifício de seus filhos. A estrutura diádica é tão forte e rica em suas
variações que tolera todo tipo de relações simétricas e assimétricas.
Entretanto, o que parece ainda mais absurdo, a relação de casal pode
ser criada pelo indivíduo solitário, numa relação consigo mesmo. É
preciso constatar que a individualidade moderna, apoiada num
complexo ambiente de mídia que permite auto-referências múltiplas
e permanentes, já foi elaborada de forma a que o indivíduo encarne
uma relação do sujeito manifesto – que eu sou – e do sujeito latente
– que eu também sou. Esse indivíduo revelado que é o resumo de
meu passado pode construir uma relação viva, e até apaixonante,
com o individum absconditum, o indivíduo por vir, que contém o
somatório de minhas possibilidades existenciais futuras. Por esse
motivo, o indivíduo-casal encarna o egoísta prudente que sempre
prossegue sua busca pelo tempo que ainda não perdeu.
Com a celebração do mundo moderno, esse modo de vida se tornará
uma tentação para praticamente todo mundo – e isso porque
desapareceu a grande megasfera do monoteísmo, que oferecia a todos
um pretexto ideal para se consagrar ao Outro. Assim como também
praticamente se dissolveram os sucedâneos do Outro da monosfera
divina,
que
eram
os
totalitarismos,
nacionalistas
ou
internacionalistas. Para descrever a atual situação, proponho a
metáfora da espuma, palavra que por sua própria natureza
polivalente traduz muito bem essa composição multicelular das
grandes estruturas que, embora bastante amorfas, correspondem às
paisagens povoadas de nossa época e, principalmente, às
aglomerações urbanas, que parecem ser autênticas espumas
compostas por células individualistas, assim como composições
formadas por residências para várias pessoas. Gostaria de salientar
que, para mim, a residência enquanto tal é o átomo da espuma social.
Tudo isto é dito na perspectiva de uma crítica intransigente do
individualismo.
_ Existe alguma relação entre o que você acaba de dizer e aquela
outra idéia sua, de que a estação espacial seria o modelo do futuro
JCR
recipiente, da futura residência ?
PS
_ Atualmente, ninguém pode dizer se a estação espacial será o
queriam tornar o cosmos habitável criando uma equação entre a casa
e o universo. Se a casa é o cosmos e o cosmos é a casa do homem,
tinha objetivos. As pessoas se juntavam e ficavam por ali fazendo
pressupor uma natureza externa, jamais conseguiremos assumir
plena responsabilidade pelo meio ambiente. Até hoje, ainda não
então a noção de habitat venceu todas as forças do caos que haviam
subvertido a antiga ordem das coisas. O universo pré-filosófico era
não existia o conceito de líder nas comunas hippies. Era uma coisa
anárquica. E havia problemas sérios com drogas. As pessoas ficavam
compreenderam
natureza.
uma coisa muito mais ameaçada por forças caóticas do que o cosmos
doidonas, sem fazer nada. No entanto, este grupo específico queria
Normalmente, não existe motivo para tratar dessa confusão. No
bem organizado dos filósofos pós-Platão. Após a época de Platão e
Aristóteles, o mundo tornou-se um jardim bem-cuidado na frente de
fazer algo. Romperam com a comuna e partiram para o Novo México.
futuro do gênero humano. Mas ela representa um modelo do “ser no
mundo” condenado à artificialidade. Enquanto continuarmos a
que
o
meio
ambiente
não
é
a
passado, tratava-se de qui pro quo mais ou menos inocente. Natureza
e meio ambiente são falsos sinônimos, mas no mundo prétecnológico esse equívoco não incomodava ninguém. Ora, nesse
contexto, a estação espacial significa a inocência perdida. Representa
o caso crítico da gestão total do meio ambiente por seus habitantes.
Aqui, não é mais possível contar com uma determinada natureza; é
preciso reconstruí-la nos mínimos detalhes e qualquer erro pode ser
fatal. No vazio cósmico, não dá para enganar com um meio ambiente
uma mansão de um aristocrata que, jovialmente, olha de cima de seu
terraço para a totalidade das coisas.
JCR
_ Como você representaria o momento de implosão, ou de
explosão, desse cosmos que antigamente formava o habitat comum
dos homens? Como se dá a passagem do cosmos à espuma global ?
PS
_ Não se trata de uma explosão nem de uma implosão, e sim de
coisas que não as levavam a lugar algum. Não tinham uma liderança,
Desenvolveram vários projetos ecológicos pelo mundo afora.
Uma das coisas que os interessava era o que chamavam ecotécnicas,
um processo que negava a onda da volta à natureza. Para descobrir
como a tecnologia pode contribuir para a ecologia, e não agir contra
ela, desenvolveram todo tipo de pesquisas. Tinham um barco de
pesquisa que fez a volta ao mundo realizando coisas úteis – e outras
não tão úteis.
artificial, enquanto a velha natureza terrestre perdoava praticamente
tudo e apenas ela guardava o segredo de seu equilíbrio. Os seres
uma compressão. De novo, o formato é a mensagem. Se um pequeno
mundo – um apartamento, por exemplo – pode ser suficiente para
humanos eram dispensados de tratar disso pela maior parte do
sustentar a hipótese de que vivo num mundo, é tão mais necessário
tempo. Com a estação espacial, a permissividade é inaceitável: ela
encarna a intolerância em relação aos erros das gestões climáticas,
– tanto para os aborígines, quanto para grande parte da população
branca, mas o pasto estava tão ruim que era difícil garantir a
que eu me inche de maneira metafísica para viver no todo. A
passagem torna-se possível porque, para o homem moderno, o
subsistência. No século passado, a criação de ovelhas devastou as
atmosféricas, metabólicas etc. Num elemento absolutamente
artificial, os mínimos erros deixam de ser perdoáveis.
simbolismo cósmico perdeu sua qualidade imunológica. A antiga
cosmologia era a parte central de um sistema imunológico simbólico.
se retirar o gado da terra enquanto se tentava melhorá-la. O que o
grupo tentou fazer, de uma forma muito prática, foi melhorar a
Com a elaboração dos novos sistemas jurídicos e sociais,
qualidade do pasto e a ecologia local e, ao mesmo tempo, criar uma
estação de gado. Também tinham um projeto paralelo de plantar
JCR
_ Em seu livro, há inúmeras alusões ao trabalho do arquiteto
Buckminster Fuller. Você se interessa por essas transposições da Terra,
no âmbito da construção, sob a forma das famosas abóbadas
geodésicas? Mais genericamente, que interesse você tem pela volta
dessa tendência, atualmente muito acentuada, do biomorfismo na
arquitetura ?
PS
_ O que me apaixona em Buckminster Fuller é seu conceito de
uma estática radicalmente nova, e não tanto a forma concreta pela
qual foram construídas suas obras. Suas abóbadas, no entanto, são
contribuições formidáveis e partilham, com as cúpulas tradicionais,
do fascínio pelo espaço curvo. Desde a Antiguidade, a construção de
principalmente sob a forma de seguros sociais e com a construção do
Estado de bem-estar social, as pessoas realmente se exoneraram do
mundo superior. Este já não é necessário enquanto sistema
imunológico coletivo e as pessoas renunciam à imunidade imaginária
Visitei a estação de gado na Austrália. O gado era o alimento básico
regiões mais remotas e os campos de pasto. Não tinham condições de
sementes para a melhoria do pasto, utilizando sementes nativas ao
invés das importadas. Acreditavam que a arte e a ciência trabalham
de vista operacional. Se o modernismo clássico ainda visava à
juntas. Eu os conheci num centro de arte e espetáculos, em Londres.
Ali também funcionava a sede do Instituto de Ecotécnicas, o ramo de
ecologia com que trabalhavam.
imunização pelo coletivo – Estado-nação, proletariado solidário e
combativo, a comunidade dos sábios – a ênfase dos pós-modernos
Também participei de um projeto deles chamado A Caravana dos
também passou para o lado dos indivíduos, se comparada à
construção dos sistemas imunológicos.
Sonhos. Partia da idéia de que as cidades norte-americanas perderam
seus corações. Quando os bancos fecham, às 5 horas da tarde, todo
em troca de um sistema de segurança extremamente eficaz, do ponto
mundo vai para suas casas, nos subúrbios, e a cidade morre.
uma cúpula sempre representou a disciplina de coroação da
O único coletivismo que ainda nos diz respeito de maneira
Trabalhei nesse projeto de regeneração com Ed Bass, que acabou
arquitetura. Com ela, começa a odisséia do inverossímil transformado
em construção. A prova de uma cúpula é que ela se apóia nela
substancial nos dias de hoje são os grupos que trabalham os
sendo um dos fundadores da Biosfera 2. Fort Worth, a cidade natal de
Ed Bass, no Estado do Texas, era um exemplo clássico dessas cidades
sem vida. Então, Ed disse: “Vamos colocar um centro de artes com
espetáculos de todo o mundo n a área central da cidade e criar
motivos para que as pessoas voltem à cidade. Quando tivermos
montado o centro de artes, começarei a fazer apartamentos para
realmente reconstruir, a zona central da cidade.” A Caravana dos
Sonhos estreou em Fort Worth em 1984. Era um lugar maravilhoso,
com uma casa noturna onde se tocava jazz e blues e que integrou por
completo as populações negra e branca da cidade. Havia um
teatrinho fabuloso onde Melissa Finley – que, na época, era uma
dançarina muito famosa no mundo inteiro – abriu o centro de artes e
espetáculos.
mesma. A abóbada geodésica, enquanto tal, representa por sua forma
mais uma concessão ao antigo monosferismo – e isso não tem grande
interesse para uma teoria da época atual. Confesso, aliás, que sou um
grande admirador das cúpulas, ainda que essa forma já não traduza
as intenções mais avançadas da arquitetura contemporânea. A cúpula
clássica representava o principal símbolo de vontade da arquitetura
se apropriar do círculo, assim como da altura. Forçava o céu a entrar
na casa. Era precisamente essa a função da cúpula tradicional:
pretendia-se interiorizar o céu, transformá-lo em guarda-chuva para
passear sob sua proteção. Tal como suaves dosséis, essas cúpulas
improvisadas – se assim podemos dizer – eram, com certeza, as
construções mais sutis que o espírito humano soube conceber em
termos de arquitetura temporal. E Fuller, em sua abordagem dos
temas da arquitetura, nunca se afastou muito desse símbolo da
suavidade controlada que representa o dossel. No entanto, sua maior
contribuição para com a gramática das formas arquitetônicas não
são, em minha opinião, as abóbadas e suas cúpulas, e sim aquelas
estruturas ultra-sofisticadas que ele chama tension integrity
structures ou tensegrities – estruturas que substituíram a pressão
estática pela tensão entre os elementos do corpo construído. Com
essas formas, entramos na quarta dimensão da construção.
É claro que o biomorfismo em arquitetura é uma coisa notável.
Porém, traduz principalmente o fato de que os matemáticos
modernos reencontraram as formas orgânicas. Portanto, é bom evitar
conclusões equivocadas em relação a esse fenômeno. Trata-se mais
de um triunfo da matemática sobre a forma natural e é preciso se
prevenir contra as conotações reacionárias dessa tendência
arquitetônica. Não se trata, de forma alguma, de uma volta à
natureza; trata-se, sim, de uma brincadeira insolente que
matemáticos, com a ajuda do computador, se permitem fazer às
custas da forma orgânica. Na perspectiva de uma futura política da
natureza, o biomorfismo arquitetônico deve ser interpretado como
um símbolo, já que a técnica adquiriu os conhecimentos necessários
para se declarar responsável para com as formas orgânicas.
JCR
_ Então a natureza acabou, assim como a História ?
_ A antiga natureza servia de teatro para a História. Para montar
uma peça de história, era necessário pressupor que os bastidores
naturais eram estáveis. Agora, a peça e o âmago da cena são uma
única coisa. A irresponsabilidade para com a natureza-bastidor nos
foi subtraída. A natureza já não é o âmago nem um pretexto.
PS
_ Resumindo, aquilo a que você está tentando dar nome seria, de
certa maneira, a passagem de uma cosmografia do globo terrestre para
os cosmogramas de pequenos mundos? E, para finalizar, a conquista
do mundo como cosmos global leva à sua explosão numa imensidão
de células cosmogramáticas ?
JCR
PS _ Sim, admitindo-se a profunda ironia que consiste em utilizar a
palavra cosmos – primeiramente, no plural, e em seguida, em escala
individualizada... Um cosmos é sempre uma construção
simplificadora a serviço de uma coletividade política; traduz sempre
a necessidade de simplificação dos espíritos que nele vivem. Essa
grande manobra de simplificação teve início com os gregos, que
problemas ambientais em grande escala – o clima, em sua dinâmica
caótica, os recursos de água, as fontes de energia. Mas isso já não
gera uma comunidade substancial e, sim, apenas uma comunidade de
pessoas preocupadas.
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX .
J ANE P OYNTER
JANE POYNTER É UMA DAS FUNDADORAS DO PARAGON SPACE DEVELOPMENT CORPORATION .
ELA VIVEU POR DOIS ANOS NA BIOSPHERE 2 .
TRADUÇÃO DE JÔ AMADO
TUCSON
B
IOSPHERE 2
:
THE EXPERIENCE OF
_
26 DE JULHO DE 2004
“BEING”
O projeto Biosfera 2 não pretendia ser apenas um instrumento
científico, ou um empreendimento de engenharia, mas também um
depoimento artístico: um símbolo, um ícone artístico para a ciência.
Seu principal arquiteto foi aluno de Frank Lloyd Wright. Nele, a
forma segue a função e a função segue a forma.
Basicamente, Biosfera 2 é uma estufa com cerca de 12,5 m2. O que a
torna diferente é que foi construída hermeticamente fechada por cima
e por baixo. Nesse recinto encontravam-se sete biomas, ou
comunidades ecológicas: uma mini-floresta tropical, uma minisavana, um pequeno deserto, um brejo e um mini-oceano – na
verdade, um imenso aquário. Também a compunha o que
chamávamos biomas antropogênicos: a agricultura, o “terreno” e a
cidade. Eram esses os sete biomas. Havia duas principais linhas de
trabalho: uma relacionada com o espaço exterior, com a vida nesse
espaço, projetando um sistema de apoio vital para o espaço; a outra
relacionada com ecologia e o planeta Terra: fazer uma mini-réplica –
um tubo de ensaio vedado, uma ferramenta para os ecologistas – que
permitisse estudar os ciclos da vida.
Os fundadores eram pessoas interessantes. Começaram sua trajetória
rumo à Biosfera 2 na década de 60. Algumas das pessoas centrais do
grupo vinham de Haight Ashbury, do movimento hippie, onde tinham
uma comuna que fazia Teatro de Guerrilha. John Allen, uma das
figuras principais, era formado pela Faculdade de Minas do Estado do
Colorado e pela Faculdade de Administração de Harvard. Era
brilhante, tinha uma memória de elefante. Um dos problemas com o
movimento hippie era o fato de que não tinha uma finalidade, não
36
No topo, havia uma Abóbada Geodésica, projetada por Buckminster
Fuller, com 350 espécies distintas de cacto. Estavam ali representados
quatro desertos diferentes. O lugar transmitia uma sensação de
desespero, com a evolução divergente e convergente daquela coleção
de plantas. Você via plantas que evoluíam em lugares completamente
diferentes da Terra, mas evoluíam mutuamente, para ter exatamente
as mesmas estratégias e parecerem semelhantes. Ao mesmo tempo,
você via plantas daquele mesmo deserto que originariamente eram da
mesma espécie e depois haviam evoluído para se tornarem
completamente diferentes. Era fantástico. Por algum tempo, fui o
curador daquela abóbada. Havia uma conferência, anualmente, para
a qual traziam pessoas dos meios mais variados: artistas, músicos,
pintores e cientistas incrivelmente avançados. Minha lembrança
preferida desses tempos é a de Buckminister Fuller sentado, tendo
um debate acalorado com Ornette Coleman.
Em 1982, foi realizada a Conferência Galáctica. Quando terminou a
apresentação, estava lançada a noção de biosfera no grupo, mas
àquela altura a idéia era muito mais maluca do que a Biosfera 2.
Queriam construir um Castelo Espacial Gerard O’Neal, no qual havia
a biosfera dentro de uma nave espacial, o que, em termos financeiros,
era totalmente fora de questão. Foi daí que nasceu o projeto de
construir uma biosfera num recinto fechado. Desde o início, havia a
idéia da relevância do espaço.
Os objetivos de uso do espaço eram os de projetar, construir e operar
uma biosfera que poderia ser utilizada para viver por um longo
período no espaço. Marte ainda estava distante cerca de 20 anos, mas
era uma meta tangível em termos espaciais. A experiência de viver no
espaço tornou-se um objetivo concreto da biosfera. Naquela época, a
Nasa usava o termo biorregenerável para se referir a substâncias de
base biológica e recicláveis, mas a maior parte de seu trabalho era
com sistemas físico-químicos, decompondo a matéria viva em suas
partículas mais ínfimas e utilizando soluções físico-químicas para
cada uma dessas minúsculas estruturas vitais vitais. O que
pretendíamos, na Biosfera 2, era ter um sistema reciclável de base
inteiramente biológica. A razão para isso era que, se você estivesse
apenas visitando Marte, então não seria necessário um sistema
biorregenerável, mas se ficasse vivendo por muito tempo num
planeta distante da Terra, seria extremamente dispendioso ficar
trazendo bens consumíveis. Por que, então, não fazer logo um
sistema biológico? Dessa forma, tudo seria reciclado – a
compostagem, o ar e a água produzida pelas plantas –, pois seria
auto-sustentável. Era essa a idéia. Naquela época, a ecologia já
manipulava bem os sistemas.
Ao se observar um ecossistema, notam-se fluxos constantes. Há
sempre um rio atravessando o sistema. Existe o ar da biosfera 1, essa
enorme atmosfera que interage continuamente com o ecossistema.
Precisávamos de um sistema ecológico restrito, onde fosse
efetivamente possível acompanhar cada molécula – o que teríamos
que fazer quando tivéssemos problemas com o oxigênio. Provamos
que era possível fazê-lo; conseguíamos, de fato, ver onde estava o
oxigênio e o carbono naquele ecossistema. Havia um meio de se
compreender o que ocorria dentro daqueles ecossistemas. Era
possível acompanhar não só a energia – numa base massa-fluxo –,
como também todas as moléculas por esse sistema.
O local escolhido para a construção foi o Arizona, onde não ocorrem
terremotos e há bastante sol. De 1984 a 1991, desenhamos e
construímos simultaneamente. Em 1991, fomos os oito para dentro:
começava nossa primeira missão de dois anos. Vivíamos encerrados
lá dentro, quatro homens e quatro mulheres; reciclávamos todo nosso
ar e nossa água, cultivávamos o que comíamos e, basicamente,
tínhamos uma mini-biosfera. A grande pergunta era: “Será que vai
dar certo?” Seria possível criar uma biosfera – com proporções de
massa-terra e massa-planta completamente diferentes – e mantê-la
por longos períodos de tempo com seres humanos morando lá
dentro? E, mais importante, continuará existindo sem desmoronar
por algum motivo que não compreendemos ou não conseguimos
evitar? Foi isso que tentamos fazer.
O principal objetivo dessa primeira experiência de dois anos era
responder à pergunta: “Será possível? Poderá ser construída uma
biosfera artificial? Ou se transformará num limo verde por razões que
desconhecemos?” Algumas pessoas diziam: “Vocês vão morrer todos
com alguma infecção horrível.” Especificamente, queríamos saber se
alguma coisa não funcionava, por quê e, nesse caso, como superar a
dificuldade. Após dois anos, tivemos alguns problemas sérios, mas
conhecíamos os problemas e, o que era o incentivo maior, sabíamos
como superá-los.
As noites de quinta-feira eram dedicadas à filosofia. Às vezes
estudávamos coisas de ecologia, outras vezes, de arte. Havia teatro
Somos treinados para pensar especificamente, num raciocínio
simplista. Existe uma certa verdade no fato de que se você é um
aos sábados e domingos de manhã. O teatro não consistia em montar
uma peça; era apenas uma maneira de explorar a psicologia e era
cientista simplista, pensa de maneira cada vez mais profunda sobre
um número de coisas cada vez menor. John Allen tinha um enorme
muito eficaz.
desprezo pela ciência simplista, mas ignorava o fato de que foi a
ciência simplista que nos deu a Biosfera 2. Era necessário pensar em
Quando saímos, havia cinco meses de pesquisas e relatórios
atualizados sobre animais, plantas e bactérias naquele espaço. Em
seguida, uma outra missão de sete pessoas ficou lá dentro por oito
meses. Depois, a Universidade de Columbia assumiu o projeto e fez
um intercâmbio global de pesquisa durante vários anos. Pesquisaram
biomas, examinaram o que ocorre com vários níveis de dióxido de
carbono etc. Atualmente, o local está abandonado porque a
Universidade de Columbia saiu e ainda estão pensando o que fazer
com esse incrível recinto.
Em termos conceituais, se você pensa em biosfera, pode defini-la de
várias maneiras. No dicionário, a definição de biosfera é a esfera de
vida em torno da Terra. Vamos ver o próximo passo: o que constitui
a biosfera 1? Bem, é um sistema materialmente fechado; muito pouca
matéria sai ou entra, mas, do ponto de vista energético, é aberto.
Recebe sua energia principalmente do sol. Podemos acrescentar que
também é aberto do ponto de vista informacional. Alguém pode
dizer: “Quer dizer que se você encerrar uma réplica de uma floresta
tropical num recinto, isso é uma biosfera? Se você pegar uma jarra de
água de um lago e a encerrar num recinto, isso é uma biosfera?”
Essas são questões a debater. John Allen, o auto-nomeado líder do
grupo, definia da seguinte maneira: “O que define uma biosfera é a
unidade biônica; tem que ter vários biomas, ou seja, zonas
ecológicas.” Quando você olha para o planeta Terra, percebe que é
diferente de um lago porque tem uma porção de unidades ecológicas
dessemelhantes, muito distintas. Na Biosfera 2, dizíamos: que
biomas devemos incluir? Todos? Já existia uma biosfera artificial;
portanto, dizíamos que não seria prático incluir cada bioma existente
no planeta. O importante é incluirmos aqueles que têm um maior
grau de diversidade. Segundo o pensamento ecológico daquela época,
diversidade significava equilíbrio. Concluímos que deveríamos ter
uma quantidade considerável de diversidade. Optamos pelos sistemas
Nos primeiros dois anos, faltaram-nos alimentos, mas na segunda
missão humana tivemos o suficiente. Os alimentos eram suficientes,
mais diversos e mais produtivos que existem na Terra. A maioria
deles está situada na região tropical e subtropical. Por isso, acabaram
mas a quantidade de calorias era baixa. Nossos níveis de oxigênio
também ficaram baixos e, por uma série de motivos, não nos
sendo biomas subtropicais: a floresta e os desertos, os biomas mais
diversos que existem em termos de espécies.
estávamos adaptando bem. Tudo isso afeta nossa estrutura
psicológica, mas, por outro lado, tínhamos todos um bom astral,
éramos todos anglo-saxões. O fato de que o nível do oxigênio tivesse
sido insuficiente nos primeiros dois anos significava um problema
sério. Tinha que se saber, com precisão, quanto oxigênio existia na
biosfera e para onde fora. Por meio de uma análise isotópica,
descobrimos a resposta: tinha sido colocado no solo um excesso de
carbono orgânico, na forma da compostagem. Quando os micróbios
decompunham a compostagem, aspiravam oxigênio da atmosfera e,
ao mesmo tempo, devolviam à atmosfera dióxido de carbono. Se você
encerra vida em ecossistemas relativamente complexos, isto pode
ocorrer, caso haja uma limitação de certos nutrientes –
especificamente, carbono e nitrogênio – tal como a Terra tem seus
recursos limitados. Também como na Terra, é necessário um
suprimento constante de energia.
Aconteceu uma porção de coisas interessantes, curiosas, psicológicas.
Tínhamos imagens vivas do passado; comigo, chegaram a acontecer
devaneios sobre minha infância. Sente-se o sabor daquela
experiência, é quase uma alucinação. É sabido que as pessoas
passam por esse tipo de experiência na Antártida, no inverno.
Uma das grandes dificuldades que tive – e penso que a maioria dos
outros também – foi a de que, de repente, a vida era ser. Até o
momento de entrarmos e vedar a porta, vivíamos indo para algum
lugar. Quando construíamos a Biosfera 2, tínhamos sempre esse
objetivo na cabeça, mas agora a vida era ser. Fico me perguntando se
seria esse o motivo que provocou, naquela época, o desmoronamento
que ocorreu na Biosfera 2. Além do problema do oxigênio, de repente
estávamos todos ávidos por opiniões.
Ficamos na Biosfera 2 por dois anos. De repente, com sete outras
pessoas, você fazia de 12 metros quadrados o seu mundo. Todos
sentimos grande dificuldade em nos adaptar. Foi a coisa mais difícil
de toda a missão. No mundo ocidental, sempre que sentimos algum
desconforto, fazemos alguma coisa. Na Biosfera 2, isso não era
possível.
Encaramos a situação de uma maneira interessante. No início da
década de 90, a Internet estava nascendo, mas já tinha feito
progressos, e conseguíamos enviar mensagens eletrônicas e telefonar.
Participei de uma apresentação musical com uns músicos alemães.
Três vezes por ano, tínhamos um festival de arte inter-biosférico. Uns
pintavam, outros tocavam piano ou escreviam poesia. Fizemos uma
adaptação por via eletrônica.
É difícil contar toda a história da Biosfera 2 em uma única frase.
Quando as coisas começaram a dar errado, não foi por causa da
ciência, ou da tecnologia; foram as relações humanas que se
abalaram. Há aí um paradoxo inexplicável. De um lado, a concepção
da Biosfera 2; aquele núcleo de pessoas era extremamente aberto.
Tínhamos orgulho de não pensarmos em termos lineares, em
pensarmos do lado de fora. O projeto da biosfera uniu pessoas muito
diversas, mas aquele núcleo era incrivelmente independente.
A construção da Biosfera 2 foi um empreendimento de engenharia.
Engenharia ecológica. Era preciso ciência para fazê-lo, mas a
construção da Biosfera 2 não foi ciência; foi um esforço de
engenharia. Uma vez terminada, a pergunta era: como vamos fazer
ciência com isto? Um dos maiores problemas é que, do ponto de vista
científico, não havia muito dinheiro.
No início, os ecologistas – principalmente, os ecologistas de sistemas
– iam todos à Biosfera 2. Alguns dos fundadores da ecologia de
sistemas, como os Odums, eram muito amigos da Biosfera 2.
Achavam que a Biosfera 2 era o máximo porque transmitia o modo
de pensar de sistemas holísticos. Um equipamento para ecologia de
sistemas. De outro lado, os cientistas simplistas diziam que, do ponto
de vista da ciência, a Biosfera 2 era uma completa perda de tempo.
Tinham um argumento válido. Não é possível fazer uma comparação
direta entre os dados que se obtém da Biosfera 2 com dados obtidos
da Biosfera 1, pois, enquanto sistemas, são muito distintos. Os
resultados foram superficiais porque não lhes dedicamos o tempo
necessário. Quando se faz uma experiência de observação científica,
deve sempre ser coletada mais de uma espécie do que se está
testando; de outra forma, os resultados são insignificantes em termos
estatísticos.
O pensamento relacional e o holístico são distintos. Entretanto, para
pensar de um modo holístico, você tem que raciocinar em termos
relacionais. Ser um pensador relacional não significa,
necessariamente, ver o quadro por inteiro; mas quando se observa
uma biosfera, é necessário pensar em como interagem as partes. Um
dos grandes debates que surgiram enquanto construíamos a Biosfera
2 foi o seguinte: “Dividimos os ecossistemas para que fiquem
arquitetonicamente separados?” Acho que teria sido inteligente
projetar a Biosfera 2 com a possibilidade de que as biosferas
pudessem existir como biomas separados, ou como uma única grande
biosfera.
Também éramos uma comunidade. Na verdade, uma comunidade
Quando se observa uma biosfera, ou até um ecossistema, pensa-se
em ciclos. Na Biosfera 2, você tinha o ciclo da água. Lá dentro,
intencional. Havia um certo vínculo com o movimento hippie e as
bebíamos as mesmas moléculas da água e usávamos as mesmas
comunidades da década de 60. A certa altura, até nos acusaram de
sermos uma seita. Adotamos nomes diferentes; quando morávamos
lá, meu nome era Arlequim. Tínhamos algo que chamávamos darma.
moléculas de oxigênio e de carbono repetidamente. Tudo fazia parte
de um ciclo. Fazia com que você pensasse tanto em termos holísticos
quanto relacionais.
37
termos holísticos, mas também simplistas.
Um dos grandes problemas do mundo de hoje é que ele é muito
compartimentado. E nós queríamos juntar todos aqueles
compartimentos e fazer um mundo.
O recinto fechado chamado Biosfera 2, em especial os biomas
antropogênicos da agricultura e do habitat, seria um treinamento
excelente para aspirantes a astronauta num ambiente de base
espacial. Você não pode coletar dados da Biosfera 2 e concluir que se
tal coisa surgiu neste ecossistema da maneira x, y ou z, então irá
necessariamente ocorrer na floresta tropical da Terra. Não
necessariamente, pois são muito diferentes. Porém, o que você pode
é desenvolver ferramentas holísticas para compreender como
funciona a totalidade do sistema em seu nível superior.
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER
T ACITA D EAN
TACITA DEAN NASCEU EM CANTERBURY EM 1965 E VIVE EM BERLIM . ELA ESTUDOU PINTURA
E HOJE TRABALHA COM VÁRIOS MEIOS . ELA É MAIS CONHECIDA POR SEUS INSTIGANTES
FILMES DE 16 MM , EM QUE QUALIDADES ESPECÍFICAS ASSOCIADAS À ATIVIDADE DO CINEASTA
SÃO DE IMPORTÂNCIA CENTRAL . ELA É REPRESENTADA PELA MARIAN GOODMAN GALLERY ,
PARIS
-
NOVA IORQUE E FRITH STREET GALLERY , LONDRES . DEAN FOI INDICADA PARA O
TURNER PRIZE DE 1998 . ENTRE 2000 E 2002 RECEBEU A BOLSA DAAD
AKADEMISCHER AUSTAUSCHDIENST
-
-
DEUTSCHER
EM BERLIM . O PROJETO DISCUTIDO NESTE LIVRO FOI O
MILLENIUM SCULPTURE PROJECT , NO MILLENIUM DOME , LONDRES , REINO UNIDO , 1999 .
TRADUÇÃO DE GAVIN ADAMS
LONDON
_ 19
DE AGOSTO DE 2004
J
EAN - CHRISTOPHE ROYOUX _ Você pode descrever a origem de projeto
Sexta-feira/Sábado ?
_ Esta obra foi comissionada para o que se chamou o
North Meadow Project, que era um pedaço de terra ao lado da
Millennium Dome [Cúpula do Milênio], perto do rio Tâmisa, para
onde alguns artistas foram convidados a realizar trabalhos sitespecific. Naquele terreno existia um velho duto de ventilação
vitoriano que era usado para alimentar de ar o túnel de Blackwell,
que corre por baixo do Tâmisa. Este duto de ventilação tem oito lados
e encontra-se exatamente na linha do Meridiano, que é a Longitude
Zero. É claro que a sua localização é arbitrária até certo ponto, mas
TACITA DEAN
o mundo tem sido dividido assim por muitos anos com a Longitude
Zero em Greenwich, que nos dá Hora Meridiana de Greenwich.
GLAZER _ É algo bem imperialista dizer que a Inglaterra
determina o tempo de todo o mundo.
KATE
TACITA DEAN _ É verdade, mas também por que que temos que discar
1 para falar com os Estados Unidos? É a mesma coisa, eu tenho que
concordar com você. Mas se tomamos a coisa desta forma,
descartamos todo um sistema. A Longitude Zero tem que estar em
algum lugar. Remover a Longitude Zero de Greenwich seria uma coisa
profundamente radical de fazer a toda a estrutura de como
descrevemos o mundo. Em todo o mundo, as pessoas usam a Hora
Meridiana de Greenwich para estabelecer seu zero, e assim saber
onde estão. O intervalo entre a Hora Meridiana de Greenwich e a hora
local a bordo de um navio permite às pessoas estabelecerem sua
longitude e assim localizar-se no mar. Temos que codificar o tempo
de alguma forma, pois do contrário ficaríamos loucos. Eu não creio
que as pessoas percebem como nosso mundo está assim arranjado,
de forma a permitir saber a hora.
Eu decidi situar meu trabalho neste duto de ar. Eu dividi o mundo em
oito partes, como os oito lados do duto e transformei o espaço em
uma espécie de relógio de tempo. Usando os 360 graus da
circunferência do globo, eu dividi o mundo em oito partes, o que
significa segmentos de 45 graus. Como conseqüência, obtive oito
linhas de longitude ao redor do mundo a intervalos de 45 graus, e por
causa da localização deste duto particular, que estava na transição
entre a terra e o rio Tâmisa, muito perto do mar, eu decidi escolher
lugares onde a linha de 45 graus atravessava no globo terrestre tanto
na terra quanto no mar, isto é portos, cais etc. Então se pensamos
Greenwich como o Zero, a 45 graus para o Oeste corre uma linha que
_ A partir de Sexta-feira/Sábado você produziu um jukebox
[vitrola automática onde se pode escolher o disco a ser tocado] Como
perpassa uma pequena cidade no Brasil chamada Ubatuba, e a 90
graus uma linha corta a cidade de Nova Orleans; a 135 graus oeste, a
relacionamento entre terra e mar. Ouvimos gaivotas em Greenwich, e
percebemos o mar no Alaska e em Bangladesh, assim como em
JCR
linha atravessa a minúscula aldeia chamada Hoonah no Alaska, e a
180, Fiji. Akashi no Japão fica 135 graus a Leste; já 90 graus a leste
Akashi, por causa do mercado de peixes.
era dividido ? Você tinha oito lugares ?
Eu me sinto muito atraída por filmes, e o filme é sempre sobre o
tempo, a transcrição física do tempo - é uma coisa física. Eu acho que
TD
temos conexões aqui. Se eu estivesse trabalhando com mídia digital
eu usaria satélites; é a mesma coisa. Ser capaz de navegar, ser capaz
de calcular a sua posição em relação ao sol, vai se tornar uma arte
morta, mas o sistema analógico ainda nos acompanha. É como
precisar de papel e caneta quando o computador trava. Hoje, o código
Morse não está mais em funcionamento, assim como o filme também
passará. Não é ensinado a ninguém. Eu fico triste por causa de coisas
como esta. Muito do que eu faço é relacionado a estes rasgos de
memórias. A maior parte do tempo, eu faço trabalhos que poderiam
ser vistos simplesmente como nostálgicos - no sentido de buscarem
aprisionar as coisas antes que desapareçam.
um grande objeto que tivesse uma qualidade analógica. Eu acabei
usando CDs, que não são analógicos, mas foi o mais próximo do
analógico que consegui chegar. Eu tinha 192 horas de som, de
maneira que eu tive que eu mesma inventar a máquina, usando 3
unidades de CD já existentes. Parece uma máquina do tempo bizarra.
Era um console com botões grandes, um dizendo “Tempo” e o outro
temos Dakar em Bangladesh; 45 graus a leste temos Aden no Iêmen,
que é uma longitude interessante, por que até onde me recordo
existem muitos lugares instáveis, ao longo de toda a linha. Alguns
lugares eram bem óbvios, como aquela que corta Nova Orleans
exatamente a 90 graus. Já Hoonah não tinha habitantes - mas não
havia nenhuma categoria imposta como essa.
Este projeto envolvia uma visita a todos esses lugares e a gravação do
som local nestes locais, do meio-dia de sexta-feira a meio-dia de
sábado, na transição da sexta para sábado de 1999 a 2000. Eu não
podia dar conta de todas as viagens sozinha. Eu fui a apenas cinco
dos oito lugares, e eu envolvi outras pessoas para a gravação nos
lugares onde eu não poderia estar. Em cada uma destas locações,
encontramos o lugar certo que seria bom para o som. O som é
incrivelmente informativo quando é descolado de sua imagem. De
certo modo, é um retorno à minha obra mais antiga, Foley Artist::
som sem imagem. É uma coisa incrivelmente radical. Eu acredito
muito no rádio. O rádio funciona desta forma. A imaginação do
ouvinte participa da criação. Cada ouvinte cria imagens diferentes,
pois não existe um lugar genérico. As pessoas não percebem o poder
do som. Quando gravamos, um dia encoberto gera um som diferente
de um dia ensolarado. Podemos realmente ler as diferenças através
do som.
Uma das linhas cortava esta minúscula ilha de Hoonah. O problema
era que a ilha abrigava uma população de ursos, e não tínhamos
qualquer treinamento para lidar com eles. Era muito perigoso, e no
fim tivemos que encontrar um novo lugar para gravar. Escolhemos o
Dixie D’s Snack Bar. O som era meio baixo, mas tínhamos que achar
algum lugar longe desta fábrica de enlatados que emitia ruídos sem
parar.
No Iêmen escolhemos este mercado, que era cercado por montanhas.
Era realmente belo. Você ouve os cachorros, os bodes e galinhas.
Gravamos do telhado. Ouvimos o chamado matutino para as preces e
então os cachorros e os corvos todos reverberando. Minha hora
favorita de gravação é quatro da manhã no Iêmen, um país para onde
as pessoas não podem mais viajar com facilidade, então é ainda mais
inacessível.
Sexta-feira/Sábado tem a ver com a qualidade do som de cada um
destes lugares naquele período de tempo. Às vezes ouvimos coisas
que significam o tempo, como sinos. As gravações foram etiquetadas
à mão com os horários, como 12-2, ou 2-4 etc. Na exposição do
projeto para a Millennium Dome , a idéia era arranjá-las de tal
maneira que o som de cada locação tocasse em correta relação com
os outros lugares. Por exemplo, meio-dia em Greenwich correspondia
à meia-noite em Fiji. Você poderia passear por Sexta-feira/Sábado e
obter o tempo mundial através do som. Enquanto Fiji ficava
silenciosa durante a noite, em Greenwich era pleno dia, e era muito
barulhento. Alto-falantes estavam posicionados em cada um dos
lados do duto, onde escrevi o nome do lugar onde foi gravado o som
em cada uma das locações - por exemplo, lemos Meeting Hut para Fiji
ou Dixie D’s Snack Bar para o Alaska. Um relógio atômico
sincronizava a coisa toda, de modo a durar 365 dias totalmente em
sincronia. Então meio-dia no som correspondia sempre ao meio-dia
real em Greenwich, e meia-noite era sempre meia-noite. É um relógio
que registra através do som, um relógio amorfo, de certo modo.
Coloquei pequenos bancos em cada um dos oito lados do duto. As
pessoas podiam sentar-se e olhar e ouvir.
Longitude á a única maneira de indicar precisamente onde você está.
Longitude é somente descritível através do tempo. Lugar e tempo
estão completamente interconectados. A única maneira de localizarse no mar antes do satélite e do GPS era através da Hora Meridiana
de Greenwich contada a bordo. Originalmente, ninguém conseguia
contar o tempo corretamente a bordo, por causa do movimento do
mar e das flutuações da pressão barométrica. Harrison inventou o
primeiro relógio a fazer isso, que mais tarde se tornou o cronômetro.
O cronômetro foi o mais importante instrumento para um marinheiro
a bordo. Se ocorresse um erro, este erro tinha que ser mantido o
tempo todo; de outra forma nunca se saberia onde estava. O
cronômetro conta a Hora Meridiana de Greenwich a bordo de um
navio. Os marinheiros conseguiam estabelecer sua posição exata
através do intervalo obtido na comparação entre a hora local e a Hora
Meridiana de Greenwich. Antes do cronômetro, os marinheiros
costumavam sofrer da “loucura do tempo”. Eu me interessei muito
pela loucura do tempo através de meu trabalho com Donald
Crowhurst. A loucura do tempo ocorre quando não podemos
localizar-nos no tempo ou quando perdemos a noção de tempo, e
portanto perdemos a noção de lugar. Eu acho que é uma coisa
terrivelmente profunda.
É claro que isso era uma maneira analógica de enxergar o mundo,
que hoje é digitalizado e controlado por satélite. É extremamente
importante, então, pois alguns segundos de erro em seu cronômetro
no Equador pode significar várias milhas fora da rota. Então os
navegantes sempre se perdiam, pois não podiam localizar-se bem. A
longitude tem a ver com o mar. Todo o projeto foi a respeito do
No momento, estou filmando homens idosos antes que morram. Isso
é o que parece estar em curso no momento. Isso é o novo filme, é
sobre o que os dois últimos filmes eram. O que me interessa muito
são os anacronismos e a obsolescência. Coisas que não mais se
situam confortavelmente em seu próprio tempo. O Teignmouth
Electron não pode mais velejar, e os espelhos de som perderam sua
função, e assim por diante. Eles foram visões do futuro, mas
tornaram-se obsoletos muito rapidamente.
_ A conexão entre o tempo e o mundo como forma, como um
círculo ou esfera, está sempre presente em seu trabalho: a idéia de
ciclos ou de ciclo. A Torre de Berlim é sobre a esfera em rotação no
espaço.
JCR
TD _ Sim, a Fernsehturm: é aquela esfera no espaço que foi
construída quando havia Berlim Oriental. A torre é a mais incrível
cápsula do tempo. Ela aprisionava o tempo histórico, aprisionava a
República Democrática Alemã (RDA): podemos senti-lo lá em cima.
Breve não mais sentiremos nem o cheiro da RDA lá em cima. Quando
fui até lá, era ainda bem forte. NA RDA, era permitido permanecer
somente uma hora lá em cima. Uma só rotação e aí o visitante tinha
que sair. Uma rotação inteira de 360o durava uma hora. Uma das
primeiras coisas que fizeram quando o Muro veio abaixo foi dar mais
velocidade à rotação. Agora, a rotação é duas vezes mais veloz - dura
meia hora - e você pode ficar lá o tempo que quiser. É por isso que
eu intitulei meu texto sobre o filme de Backwards into the Future,
porque é muito como o que Berlim está passando, de certo modo.
JC R _ Sexta-feira/Sábado é um cosmograma. É circular, não
progressivo. Não há hierarquia entre os lugares. Os lugares são
arbitrários e não cidades poderosas. Elas são apenas pequenos lugares
no mundo, pouco conhecidas. Há um senso de um mundo com o qual
não estamos acostumados a ter contato, em uma escala expandida.
Talvez o mais expandido que pôde ser realizado. O que poderia ser
maior do que isso ?
TD _ O universo... eu sei que a própria fisicalidade do globo está na
construção do Fernsehturm. De alguma forma parece que retorna ao
otimismo da década de 1960. O otimismo que imaginou a corrida de
iates ao redor do mundo em 1968, ou que construiu o Fernsehturm,
aquele período de ingenuidade quando ainda se acreditava que
haveria cidades no espaço, como toda a fantasia de Kubrick no filme
2001.
JCR
_ Você fala de progresso, mas a idéia do ciclo, da esfera, é uma
forma anti-progresso: algo que retorna com o tempo. Talvez seja falar
da mudança em uma certa crença no progresso em direção a algo que
não é mais atingível.
TD
_ Que coisa engraçada, acabei de rememorar um coisa, de
repente. Quando eu era bem pequena, tivemos que fazer um desenho
sobre o ano 2000. Eu devia ter uns nove anos, e eu me lembro agora
que eu fiz um mundo regressivo: cavalos, carroças etc.; como se o
futuro fosse ser igual ao passado.
JCR
_ Sexta-feira/Sábado também é um deslocamento de um meio
para outro, de um século para outro, o deslocamento entre o século
anterior e este.
TD
_ É isso que é tão bonito. Foi de sexta-feira para sábado. E é
aproximadamente o tanto de significado que a obra contém, na
verdade. É claro, ela é bem simbólica. Você lembra todas aquelas
pessoas que diziam que o século não começaria antes do fim do ano
2000, de 2000 a 2001... mas não há nada mais simbólico que assistir
aos números mudarem, assistir o 99 virar 00... dois zeros. É tudo
numerológico... é só números... números grandes.
JCR
TD
_ Você fez algo específico a respeito disso...
_ Sim, eu e adoro tudo isso. Tinha o 20 de fevereiro de 2002,
20.02.2002. Eu só anotei o fato, e consegui que quatro jornais
publicassem a data em cima de seus logotipos, de modo a assinalar
o dia. Eu me inspirei em Marcel Broodthaers, pois tinha visitado seu
estúdio em Dusseldorf, e ele havia escrito estes números estranhos,
que eram 21 12 02. Eu na verdade sou um tipo de romântica.
20.02.2002 é uma data palíndromo. Eu amo a idéia destas coisas que
aparecem um dia e depois não aparecem mais por cem anos.
38
_ Bem, na verdade era muito difícil naquele tempo de fazer um
jukebox. Eu não queria apenas uma máquina digital. Eu queria fazer
“Lugar”, além de um botão para começar e outro para parar. Era
realmente importante que fosse uma coisa física, que pudéssemos
realmente ver a seleção da hora que você havia escolhido tocar.
Todos os CDs eram numerados e tinham nomes, por exemplo, “Iêmen
9 horas a 10 horas.” Cada CD durava uma hora, e havia 192 deles: 24
horas x 8 lugares. Você então podia ir a qualquer hora das 24 em
qualquer uma dos oito lugares.
JCR _ Em Sexta-feira/Sábado o tempo estava totalmente em sincronia
todo o tempo. A jukebox desorganiza o tempo.
TD
_ Aqui, as pessoas controlavam o tempo. Elas se tornam Deus.
BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER
MELIK OHANIAN
A G R A D E C E E S P E C I A L M E N T E A O S A U T O R E S P O R S U A S PA R T I C I PA Ç Õ E S ,
AO CRITICO JEAN -CHRISTOPHE ROYOUX POR SUA COLABORAÇÃO E A TODOS QUE CONTRIBUÍRAM
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