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U M P R O J E T O D E M E L I K O H A N I A N & J E A N - C H R I S T O P H E R O Y O U X C O S M O G R A M S É U M A E X T E N S Ã O D E S E V E N M I N U T E S B E F O R E , U M A I N S T A L A Ç Ã O D E M E L I K O H A N I A N SUMÀRIO ANDRÉ GAUDREAULT 04 CHARLES MUSSER JOHN TRESH 11 05 JEAN-LUC NANCY RICHARD DRAYTON 17 ANNA HALPRIN BEATRIZ COLOMINA 12 DAVID ELBAZ 19 GILLES CLÉMENT 26 SASKIA SASSEN 32 BRUNO LATOUR 13 07 MEDARD GABEL 09 PATRICIA FALGUIÈRES 16 ROBERT WHITMAN 15 CECIL BALMOND EDOUARDO VIVEIROS DE CASTRO 27 08 22 PEKKA HIMANEN PAUL GILROY & EDOUARD GLISSANT PETER SLOTERDIJK 34 29 36 JANE POYNTER 25 DAVID HELD 31 TACITA DEAN 37 INTRODUÇÃO C osmograms é um ensaio em pelo menos três sentidos distintos. Primeiramente, é um A extensão infinita do mundo além dos limites da Terra é uma das especificidades essenciais ensaio de interpretação de uma proposta cinematográfica inédita, Seven Minutes Before, 2004, realizada pelo artista Melik Ohanian no âmbito da participação francesa na do momento histórico em que vivemos. Os termos da mundialização e da globalização, que se difundiram desde a metade da década de 90, designam essa nova realidade de abertura XXVI Bienal de Artes de São Paulo. No entanto, quase não se fala sobre o filme ao longo dessas páginas. Não se trata, pois, de um catálogo mas de uma espécie de atlas que reúne práticas, apresentações de obras de outros artistas, pensamentos e idéias passíveis de situarem numa perspectiva mais ampla um filme de 17 minutos projetado simultaneamente em sete telas, de forma real, sem corte e sem montagem, sete trajetórias sincronizadas de um mesmo percurso que culmina numa explosão em algum estúdio solto do Vercors. infinita do mundo. Mas também aí a conseqüência é, no mínimo, paradoxal. Porque quanto mais se abre, mais o mundo se criouliza e se dispersa, mais sua unidade abstrata se desagrega enquanto esfera autônoma unificada. Como se uma das conseqüências fundamentais da reversão do tempo em espaço fosse a passagem de uma unidade presumida e fabricada pelo continuum da História à constatação não hierarquizada da pluralidade dos mundos. O mundo não pode mais ser concebido como uma natureza única e estabilizada sobre a qual concepções e representações venham fazer valer seu direito. É muito mais o próprio mundo que, segundo a cultura à qual pertencemos, já é sempre um outro mundo. Quanto mais o espaço se estende como um horizonte ilimitado, mais a humanidade que o povoa se subdivide. Nomear o mundo hoje é, de imediato, se situar na escala do diverso no movimento mesmo que constitui o esforço de globalização. Paradoxo: o título do filme insiste na idéia de um desenvolvimento temporal, mas o resultado parece privilegiar a construção de um espaço. Se, de um modo ou de outro, toda forma de gravação é uma combinação de espaço e de tempo, é a aparente inversão das prioridades, a importância que se dá ao espaço em relação ao tempo – característica maior do cinema de exposição – que se enfatiza aqui. Todo o propósito do livro é ampliar, explorar e expor uma ruptura na modernidade baseada nessa hipótese. Talvez estejamos em vias de compreender que o verdadeiro progresso não se representa mais, necessariamente, sob a forma de uma escala graduada e vetorizada segundo a medida do tempo. A questão moderna por excelência – que história se deve contar? – se encontraria hoje abafada, recuada, invertida, para redescobrir, em todas as escalas, a preocupação com o onde eu moro e como morar. A característica mais simples de um cosmograma é ser uma forma que reúne: um conjunto, uma coleção, uma construção ordenada. Um cosmograma funciona como aquilo que Tacita Dean diz sobre cronômetros nos navios: permite saber onde se está. A ausência de cosmograma equivaleria a essa “doença do tempo” que faz os navegadores se perderem nos oceanos. Tudo aqui nos fala, pois, de espaço: mas de qual espaço se trata? O arranjo simultâneo, e até a simples justaposição de acontecimentos ou de realidades diferentes, revelou ser, muito cedo, uma particularidade própria do cinema. Instrumentos como o kinetoscope ou o mutoscope, a prática do que se denominou “os exibidores” são marcas concretas disso, muito antes que a invenção dos diferentes procedimentos de montagem imobilizasse, através da institucionalização das imagens em série, um sentido único para os textos. Documentando certas formas ainda não instituídas da projeção no cinema dos primeiros tempos, interessando-se por alguns dispositivos, por alguns objetos que se situam entre diferentes gêneros, criou-se, ao longo do livro, um começo de genealogia que, indo além de sua heterogeneidade histórica e formal, tenta reconstruir essa história marginalizada e pouco levada em conta, tal como foi iniciada principalmente pelas exposições mundiais da segunda metade do século XX. A insistência no mundo enquanto objeto específico e a insistência na exposição que é seu corolário necessário – por diferença e oposição à projeção – fizeram, de fato, das Exposições Mundiais, um lugar de invenção privilegiado para os dispositivos cinematográficos não-convencionais. Portanto, é o próprio livro que, finalmente, é um objeto paradoxal; todos os seus elementos remetem ao Todo, todos os seus discursos, suas abordagens, suas práticas são outras tantas perspectivas para o dizer ou o desdizer; ele é também, ao mesmo tempo, a evidência de um objeto heterogêneo, explodido, falando várias línguas simultaneamente. Nisso, ao menos, ele pode ser lido como uma ontologia do espaço-mundo contemporâneo. Cosmograms tenta, pois, traçar uma linha ligando uma obra de arte a um conjunto de idéias e de objetos que apresentam, por voltas insuspeitadas, muitos pontos comuns. É um espelho que reflete num filme que lhe serve de suporte um conjunto de discursos suscetíveis de o situarem num contexto mais amplo. O livro tende a reproduzir, a partir de uma matéria discursiva polifônica, o que é a experiência do filme. É a tentativa de fazer existir, não através da escritura mas, sim, do ordenamento dos próprios textos, uma experiência não diretiva de leitura, importada de um outro suporte. Nesse sentido, Cosmograms é um ensaio de tradução. Essas três maneiras de ser um ensaio – um ensaio crítico de interpretação: de que nos fala essa obra?, um ensaio sobre o conceito de mundo, um ensaio de tradução de um filme em um livro – nos remetem, todas elas, à mesma idéia central de que nossas ações seriam, daqui por diante, menos guiadas por um sentido projetado da História do que por nossa responsabilidade em relação ao espaço. Para além da montagem, se trataria de inventar outras formas de ligações, uma estética da coabitação onde cada um se tornaria responsável pelo meio ambiente que cria. Todos os textos reunidos aqui foram realizados com base em entrevistas revistas e corrigidas com os autores. JEAN - CHRISTOPHE ROYOUX - TRADUÇÃO DE IRACI D . POLETI JEAN - CHRISTOPHE ROYOUX VIVE EM PARIS . É CRÍTICO DE ARTE E CURADOR DE EXPOSIÇÃO . NO INÍCIO DA DÉCADA DE 90 , “ CINEMA CRIOU A EXPRESSÃO DE EXPOSIÇÃO ”; DESDE ENTÃO , NÃO DEIXOU DE SE INTERROGAR SOBRE O SIGNIFICADO E AS REPERCUSSÕES HISTÓRICAS DE TAL TRANSFORMAÇÃO DA FORMA CINEMATOGRÁFICA . É TAMBÉM DIRETOR DE FILMES OU DE DISPOSITIVOS FÍLMICOS DE CARÁTER DOCUMENTÁRIO . PRODUCTION COSMOGRAMS A VERSÃO BRASILEIRA DE COSMOGRAMS TEM COORDENAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO N O B R A S I L D A E X O E X P E R I M E N T A L O R G ., S Ã O P A U L O A REALIZAÇÃO DE COSMOGRAMS FOI POSSÍVEL GRAÇAS AO APOIO ESPECIAL DE P.CHARPENEL - - M &J G E N S O L L E N JC.LEMAITRE - J &M S A L O M O N AGRADECIMENTOS - AGRADECIMENTOS ESPECIAIS AOS AUTORES E A TERRELL LAMB CECILE ZOONENS KATE GLAZER EMMA - SPARY - TELMA BALIELLO CONCEPÇÃO GRÁFICA MELIK OHANIAN TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AOS AUTORES E KRISTALE COMPANY © 2005 BRIAN HOLMES VANESSA BERGONZOLI CLAUDE - LEBLANC HELMUT BATTISTA & DENISE MILFONT I M P R E S S O E M S Ã O P A U L O , B R A S I L , M A R Ç O 2005 - EXPERIMENTAL.ORG - SAO PAULO - - TERRE PARKER DOMINIQUE MARCHAIS CAROLINE FERREIRA ALEXANDRE - - LEMONIER VERONIQUE FAYARD - - CAPACETE - AND - AFAA - JACQUES PEIGNÉ HAROLD CHARRE - KATE MULLIGAN SHARON NOLAN / ENTRETENIMENTOS GREGORY DOUEST-LASNE JEAN MARC LAFORET JEAN PAUL REBAUD A REPRESENTAÇÃO FRANCESA NA XXVI BIENAL DE SÃO PAULO TEM O APOIO DE DE LA CULTURE - ASSOCIATION FRANÇAISE D’ACTION ARTISTIQUE. - - LIGIA - EXO NATHALIE VIOT DAP - - MINISTÈRE ruído do trem rodando, do barulho das rodas, recriando as condições da época da viagem por estradas de ferro. A NDRÉ G AUDREAULT ANDRÉ GAUDREAULT É PROFESSOR NO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DA ARTE E DE ESTUDOS CINEMATOGRÁFICOS DA UNIVERSIDADE DE MONTREAL . ESPECIALISTA SOBRE O CINEMA DOS PRIMEIROS TEMPOS . DENTRE SUAS OBRAS , DESTACAM - SE LE RÉCIT CINÉMATOGRAPHIQUE - 1991 - COM F . JOST , PATHÉ , 1900 , E FRAGMENTS D ’ UNE FILMOGRAPHIE ANALYTIQUE DU CINÉMA DES PREMIERS TEMPS - 1993 - TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI PARIS _ 01 DE AGOSTO DE 2004 O dispositivo de Melik Ohanian parece conter, de modo alegórico, a tensão que se encontra na história do cinema, especialmente em seu início, entre atração e narração. O paradigma da atração, que é de ordem “pontual”, consiste na afirmação do dispositivo cinematográfico como fator de artifício e do espetacular para deixar o público admirado e interpelar o olhar do espectador. Por outro lado, o paradigma da narração, que é de ordem “vetorial”, dá bastante primazia à história contada. Com Ohanian, está-se em presença de sete imagens pouco “narrativizadas”, especialmente porque as chamadas imagens são fruto de intervenções que se situam no plano do “profílmico” (em termos do “arranjo” do dispositivo de encenação) mais do que no plano do “filmográfico” (em relação às intervenções sobre o enquadramento e a seqüência) - assim, por exemplo, não há realmente montagem no interior de cada uma das tomadas e, a priori, o conteúdo do que aí se mostra é relativamente simples, mais descritivo do que narrativo). Por outro lado, há o aspecto de pura atração da explosão que vem pontuar o fluxo narrativo e que, por seu caráter homogêneo - porque haverá uma harmonização das sete telas pelo ruído e pelos efeitos espaciais da explosão, eu imagino -, unifica a narração das sete telas, ao mesmo tempo em que a faz bifurcar. Está-se, pois, diante de uma tensão atração/narração. E, se desenvolvo longamente a metáfora que tomo emprestada de um dispositivo da arqueologia do cinema eu preferiria, na realidade, falar de arqueologia da imagem, porque, justamente, é necessário evitar estudar os dispositivos ditos précinematográficos como “pré”-cinematográficos, senão se nega seu valor próprio - penso imediatamente no panorama. O panorama, um dispositivo que data de 1790, foi aperfeiçoado na Inglaterra por Robert Barker e teve uma popularidade bastante grande, em especial na década 1830-1840, principalmente com Daguerre (sob a forma do Diorama) que, como se sabe, é também um dos inventores da fotografia. Geralmente, os panoramas do começo eram circulares: os “visitantes” eram colocados no centro do dispositivo, sobre uma espécie de plataforma, fazendo com que tivessem, assim, a impressão de estar imersos “na” imagem. Trata-se um pouco da prefiguração da imersão do espectador obtida recentemente com algumas tecnologias novas. Um dos primeiros reflexos dos “panoramistas” foi utilizar o dispositivo para fazê-lo mostrar um evento único, um gênero de punctum temporis, em certo sentido, um momento pontual da história (na maioria das vezes, a História com H maiúsculo, aliás – representações de batalhas, de conquistas, de vitórias etc.). Entretanto e de forma muito rápida, tendeu-se a não respeitar a “unitemporalidade” e a fazer figurarem aí momentos diversificados de uma mesma série de descrição de acontecimentos. Desse modo, freqüentemente os panoramas integravam, num só quadro, uma variedade de segmentos temporais através de uma representação unificada. Tal representação pertencia, então, tanto à esfera da narração quanto à da atração. No caso do dispositivo de Melik Ohanian, é um pouco como se esse princípio fosse retomado, mas a partir de um corte no espaço. No espaço do lugar de representação e, ao mesmo tempo, no espaço de cada uma das telas, enquanto o panorama homogeneizava a diversidade na representação “fabuladora” de um único momento. Por exemplo, no caso de uma batalha qualquer, poderia haver, num canto, um dos momentos iniciais da conquista pelos ingleses dessa ou daquela parte do território; num outro canto, um plano mais próximo de um personagem representado no momento da reação que terá tido uma vez tal conquista plenamente realizada etc. Em casos desse tipo, há uma certa aposta, considerando-se a homogeneização da representação visual. Penso que há um parentesco profundo – involuntário, imagino – entre essa forma de construção de momentos compósitos e o que entrevejo no projeto de Melik Ohanian. É como se, nas duas extremidades da cadeia da história do cinema, houvesse essa recorrência da prática do panorama. Houve também o “panorama desfilante” (cf. a imagem que desfila em cada uma das telas de Ohanian). Em vários panoramistas, havia essa vontade de “imobilizar” a imagem. Na seqüência, pode-se pensar nos famosos “Hale’s Tour” norte-americanos (início do século XX), salas de projeção nas quais o espectador se sentava no espaço de um cenário que reproduzia um compartimento de trem. Projetavam-se aí imagens panorâmicas que desfilavam como se o espectador estivesse no trem. O dispositivo era concebido para reproduzir as sensações do Observa-se também, no dispositivo de Ohanian (pelo menos tal como posso imaginá-lo), que a presença simultânea de sete telas torna caduco qualquer recurso à montagem alternada. O dispositivo, que Penso que a diferença essencial entre a imersão e a identificaçãoprojeção é que, no primeiro caso, o espectador perde suas referências. De uma certa maneira, pode-se pensar que o cinema narrativo clássico permite também uma certa forma de imersão, porque há vários modos de perder suas referências. Na época do panorama, estava-se no interior da cabina, da plataforma. Com o nos mostra de modo simultâneo sete histórias singulares, esvazia qualquer veleidade de fragmentação linear de tipo montagem cinema narrativo clássico, pode-se dizer que, de certa maneira, a imersão, que pode ser total (mas isso não é necessário), se deve ao alternada. Sem dúvida, pelo fato de só disporem de uma única tela – mais ainda, de uma tela de tamanho restrito -, é que os “cinematografistas” (é assim que os primeiros diretores de filmes se designavam a si próprios) desenvolveram certas técnicas, fato de que a adesão do espectador aos mundos da ficção projetada é muito forte. Pode até acontecer, em alguns casos, que se perca momentaneamente a consciência do lugar exato em que se encontra especialmente a fragmentação do espaço e do tempo em vista de recompor um todo unificado. Pode-se presumir que, se tivesse sido possível dispor de telas simultâneas, não teria havido, aparentemente, necessidade de se recorrer de forma tão intensa à montagem alternada. de fato. Toda a arquitetura das salas funciona nesse sentido, nem que seja só pela disposição das cadeiras, o grau de escuridão prescrito, o silêncio que deve ser mantido. Aliás, no início do cinema, antes que os códigos da montagem Uma retomada da história das primeiras projeções de imagens animadas permite compreender melhor tudo o que o cinema perdeu – ganhando talvez outra coisa, é claro – com a homogeneização das práticas à qual levou a virada da década de 10. Antes de 1908, grosso alternada estivessem completamente desenvolvidos e passassem a dominar, houve diversas tentativas de expressão da simultaneidade temporal através do intérprete, por meio de “expedientes” da mesma modo, os filmes não eram alugados, eram vendidos. Portanto, é na oficina de cada um dos “exibidores” (como se dizia na época) que se exercia o único controle sobre a representação: na realidade, era o ordem, diria eu, que aqueles que se encontram em Ohanian. Tanto pela apresentação de ações simultâneas em cenários divididos, quanto também pela segmentação da tela em espaços fragmentados. Tomemos como exemplo um filme norte-americano de 1907, College “exibidor de imagens animadas” quem decidia sobre a maneira como ele ia mostrar o filme. E os “fabricantes de imagens animadas” perdiam, por sua vez, qualquer controle sobre a cadeia de exibição. A institucionalização do cinema iria, na seqüência, possibilitar aos Chums (Porter), em que há uma cena que mostra dois enamorados conversando ao telefone. Um aparece à esquerda da tela, o outro à direita e, entre os dois, vê-se a cidade que os separa. Tem-se, então, “fabricantes” que se tornassem “produtores”, que retomassem o controle, o que faz, por exemplo, com que, quando apresenta um filme hoje numa sala, você o apresenta, em princípio, da mesma três fragmentos simultâneos que são representados numa única e mesma tela. Há coabitação, num mesmo espaço - o espaço “da tela” - de três espaços diferentes, espaços “da relação tempo-espaço da narrativa proposta pelo filme”. Outro exemplo: The Story the maneira como é mostrado na sala vizinha. Em geral, existe apenas uma versão “autorizada” e é esta que você deve apresentar. Depois de 1908 – 1910, o que se vende não é uma película, não é uma cópia; é muito mais um direito de projeção e o comprador de tal direito é Biograph Told (Biograph, 1903). Um indivíduo encontra-se em seu escritório, no trabalho, e está bolinando a secretária; o telefone toca, ele responde e a imagem da pessoa que chama, sua mulher, se obrigado a devolver, em seguida, a cópia alugada a quem a “emprestou” a ele. Aí está a diferença – uma diferença essencial – entre a exibição cinematográfica de ontem e a exploração sobrepõe à primeira imagem. Há, portanto, superposição completa de um espaço B (particularmente carregado, pois a parede do fundo é recoberta de papel florido) – o de sua mulher – sobre um espaço A – o do escritório onde se encontra o marido. O que não deixa de provocar uma certa dificuldade de leitura para um espectador que cinematográfica de hoje. Na época da cinematografia-atração, é como se houvesse duas indústrias paralelas que estavam lado a lado e que existiam em paralelo uma à outra: a dos fabricantes de imagens animadas e a dos exibidores de imagens animadas, que também representavam uma “indústria” – mais próxima do artesanato –, a da não pára de se surpreender por se achar, assim, inopinadamente, diante de uma imagem embaralhada. Trata-se, desse modo, de dois exploração das imagens. Em outros termos, na época da cinematografia-atração, eram exploradores de imagens que momentos simultâneos que são representados um sobre o outro (no ponto em que o dispositivo de Melik Ohanian prevê um corte de sete espaços diferentes). A superposição provoca uma ilegibilidade de um limiar que só o cinema dos primeiros tempos (ou a “cinematografiaatração”) podia se permitir. O mais cômico no filme da Biograph é mostravam os filmes, enquanto hoje são exploradores de salas que os mostram. Naquela época, as imagens animadas eram, com freqüência, apresentadas em versões que poderiam ser classificadas como “não autorizadas”! De fato, era o exibidor que decidia tudo sobre a composição de seu programa e sobre a maneira como seriam que, em seguida, o marido leva sua mulher para assistir a um espetáculo de vaudeville. Na cena anterior (a da sobreposição das apresentadas as imagens que o compunham. O exibidor tinha uma função verdadeiramente “editorial”. Podia mostrar três imagens duas imagens), se havia visto que, no momento mesmo em que o marido tinha começado a bolinar a secretária, um empregado do escritório se pusera a virar a manivela de um aparelho de imagens o biograph, precisamente – e que ele havia gravado toda cena que o casal terá o “prazer” de descobrir junto, pois um dos números do Lumière, uma imagem Pathé, uma imagem Edison, na ordem por ele decidida. Podia intervir na composição de uma imagem e, por exemplo, mudar a arrumação das cenas que a composição alinhava. Podia retirar uma cena, acrescentar uma outra tirada de outro conjunto e fazer uma mistura dos gêneros. Era como ele queria. Além espetáculo de vaudeville, naquela noite, consiste exatamente numa projeção cinematográfica... disso, era o exibidor quem decidia sobre o acompanhamento sonoro e musical das imagens, bem como sobre seu acompanhamento Pode-se conceber o período que antecede a institucionalização do cinema como uma espécie de laboratório. Procurou-se expressar a simultaneidade temporal de diferentes maneiras, tentando, às vezes, superar os limites próprios do dispositivo cinematográfico, um verbal, por alguém bom de lábia, que fazia comentários em voz alta durante a projeção. Disso se pode concluir facilmente que não houve duas sessões no mundo que tenham sido semelhantes de uma sala para outra. Naquela época, o espetáculo cinematográfico durava de vinte a quarenta minutos, às vezes até uma hora, e era dispositivo monocular que apresenta, portanto, um único espaço. Para encenar essa eclosão do espaço homogêneo, a técnica que prevaleceu foi a montagem alternada. Foi dessa forma, pois, que se procurou expressar a simultaneidade dos diversos elementos de um mesmo espaço-tempo da história proposta. Pode-se sentir autorizado, aliás, a falar de “relação espaço-tempo do desenvolvimento da história” no caso do dispositivo de Melik Ohanian, à medida que ele apresenta um espaço global que é construído de modo a desenvolver uma “narratividade” mínima que, logo, vai culminar num momento chave (um clímax) que refletirá em cada uma das sete “histórias” individuais mostradas nas sete telas. Entretanto, a grande diferença em relação ao dispositivo que está sendo instalado no âmbito da exposição é que, justamente, as sete imagens em simultaneidade não se combinam segundo um princípio de causa e efeito. A heterogeneidade de cada uma é privilegiada. Estamos, aqui, mais próximos do dispositivo da câmera de controle, necessariamente composto de dez, quinze ou trinta imagens, montadas segundo a ordem prevista pelo exibidor. É claro que, de tudo isso, nada era imposto pelos fabricantes de imagens. Portanto, entidades locais é que decidiam sobre o espetáculo. Como eu disse acima, o exibidor podia igualmente se permitir intervir no interior da própria imagem. Caso comprasse uma imagem de doze cenas – doze “quadros”, como se dizia na época – ele poderia muito bem inverter a ordem de tais quadros ou, ainda, fazer uma miscelânea de duas versões do filme. Existe, aliás, ao menos um caso documentado de um exibidor que, aparentemente, gostou de oferecer aos seus espectadores uma versão bastante original da Paixão, pois ela alternava sistematicamente os quadros rodados por Pathé e os rodados por Gaumont! Na época, a exibição das imagens animadas era um pouco como um albergue onde só tem o que cada um leva! Desse modo, a Paixão do Cristo “fabricada” por Pathé por volta de 1904 abrangia cerca de trinta quadros, que eram postos à venda segundo a ordem cronológica da história narrada. Entretanto, com sete câmeras colocadas de maneira aleatória em sete direções distintas em torno de um eixo. É como se existisse um espaço homogêneo, construído a partir de um tipo de eclosão do ponto de vista em sete movimentos de câmeras, as sete colocadas em ângulos também se punha à venda um jogo de mais ou menos vinte imagens e um outro, igualmente bom, de cerca de doze imagens! E mais, cada uma dessas imagens era vendida separadamente... diferentes, e que vão desembocar no mesmo ponto. Isso se situa bem na visão que temos hoje do que é o espaço eclodido, do que é uma temporalidade fragmentada. Corresponde à não-obrigação que temos de nos submeter a um único ponto de vista, às veleidades contemporâneas de abrir perspectivas. Desse modo, o dispositivo põe em cena um espaço mais favorável à imersão do sujeito espectador, que é “tomado” “no meio” de sete câmeras. O termo “exibidor”, que gosto de utilizar, é o que se empregava na época, principalmente em Méliès. Em 1907, em seu famoso texto para o Annuaire de la photographie [Anuário da Fotografia] (para uma reedição bastante recente do referido texto, ver “Georges Méliès. Propos sur les vues animées”, Les dossiers de la cinémathèque, La Cinémathèque québécoise, Montréal, 1982, n° 10, p. 7-16), ele escreveu: “Muitas vezes ouvi, nas salas de exibição, as reflexões mais 04 disparatadas”; ou ainda: “Chego enfim à quarta categoria das imagens cinematográficas. Esta foi denominada pelos exibidores ‘imagens para transformações’...” Utiliza-se pois, realmente, o termo na época, um termo que exploro deliberadamente nos discursos que uma lupa todas as exposições internacionais que se realizaram a partir de 1887, parece-me que se recolheria um grande número de amostras desse tipo de coisa. Se recorro a uma lembrança de juventude, posso, por exemplo, citar o caso da exposição faço sobre a cinematografia-atração a fim de evitar que se pense que aqueles que mostravam imagens animadas no início do século XX eram exploradores de salas, como já disse acima. Até mais ou menos 1906, havia um mínimo de salas dedicadas ao cinema (apenas uma ou duas em algumas das maiores cidades do mundo ocidental). As internacional de Montréal, em 1967, e do pavilhão da Companhia Telefônica Bell que, com sua tela circular, antecipava as salas IMAX. As exposições internacionais são, realmente, o contexto ideal para experiências espetaculares do gênero, pois exigem um financiamento ad hoc imponente (com freqüência, são tecnologias pesadas demais imagens eram apresentadas principalmente por exibidores ambulantes, em salas da municipalidade, em salões de festas, em teatros, em barracas de feira etc. para serem facilmente generalizadas e comercializadas). Um outro exemplo, o “cinerama” de Grimoin-Sanson, previsto (digo “previsto” porque ele, afinal, não terá sido explorado nenhuma vez...) para a CHARLES MUSSER É PROFESSOR TITULAR DE ESTUDOS AMERICANOS , CINEMA E TEATRO NA Exposição Internacional de Paris, de 1900, e que consistia em um dispositivo com projetores múltiplos, num cenário simulando um balão. Os espectadores deveriam colocar-se no cesto do similar do balão e dez aparelhos deveriam projetar imagens que cercariam o TRADUÇÃO DE JÔ AMADO No início, quando se ia ver imagens animadas, o que importava era ver imagens que se mexiam. Simplesmente, e o assunto tinha pouca importância. Penso em Méliès que, por ocasião da primeira sessão de cinematógrafo à qual assistira, havia ficado extasiado ao ver que as folhas mexiam (particularmente na imagem intitulada Le Repas de bébé [Lumière, 1895]). Méliès e os outros espectadores da época estavam habituados a não ver essas folhas mexerem, pois, no dispositivo cênico (teatral ou outro), eram desenhadas numa tela de espectador (como no pavilhão de Bell, em 1967) e lhe dariam a impressão de subir pelos ares. As telas formavam uma espécie de rotunda completa e permitiam uma imersão total num espaço panorâmico homogêneo. A história do cinema mostra uma série de tentativas para tornar a imersão sempre maior. fundo. A utilização que se faz hoje do termo “dispositivo” deve muito à teoria psicanalítica, mas também ao estudo de Jean-Louis Baudry sobre o dispositivo. Trata-se de uma noção que rapidamente chamou a atenção. No tempo da cinematografia-atração, a sala improvisada em que se projetavam imagens punha em evidência justamente os diversos elementos constitutivos do referido dispositivo. Ainda não havia salas especializadas e o dispositivo de projeção estava, assim, exposto à vista dos espectadores durante a representação. O aparelho de projeção era colocado no centro da assembléia e constituía, tanto quanto as próprias imagens, o objeto de atração. Olhavam-se a imagem e o “bicho luminoso”, tão “atraente” quanto o que o referido aparelho apresentava. É praticamente a mesma coisa que vive o espectador hoje quando vai a uma sala IMAX (ou, pelo menos a algumas dentre elas), nas quais, uma vez acabada a projeção, convida-se para sair pelo alto da sala a fim de se poder admirar a “máquina de imagens”. Por sua vez, a máquina de imagens dos irmãos Lumière era constituída segundo o princípio do dispositivo da lanterna mágica, que todo mundo conhecia na época. Para uma projeção de imagens animadas, utilizava-se então uma verdadeira lanterna mágica e substituía-se o passador de imagens normal pelo Cinematógrafo. Nos dois casos (projeção de lanterna mágica e projeção de cinematógrafo), observemos isso, são imagens fixas que passam no “passador de imagens”. A particularidade desse passador de imagens muito especial que é o cinematógrafo é o fato de chegar a substituir as imagens fixas umas pelas outras numa cadência bastante rápida para que o espectador tenha a ilusão de que as imagens são animadas (mas, nós sabemos bem disso, essas imagens não são verdadeiramente animadas!). Por outro lado, como antecipou uma de minhas colaboradoras (Karine Martinez), a expressão “imagens animadas” é, provavelmente, percebida no começo como um oximoro. Porque uma imagem, no início (em todo caso, antes da invenção do Kinetograph Edison e do Cinematógrafo Lumière), já é sempre da ordem do fixo. Uma vez passado o efeito de novelty, uma vez que o dispositivo torna-se familiar, o interesse do espectador se dirige para o que é mostrado na tela, para o conteúdo da imagem. É mais ou menos nessa época (entre 1903 e 1906), que se começa a retirar o aparelho de base da vista do espectador, colocando-o numa cabina situada no fundo da sala. Esconde-se, pois, o “bicho” atrás de uma parede e ele é enjaulado. Além disso, começa-se, com o mesmo movimento, a dispor as cadeiras em semi-círculo, de forma a fazer os olhares convergirem para a tela. Procede-se, então, a uma espécie de organização do olhar – ele é dirigido, é “domado”, graças à disposição das cadeiras e à sua fixação (sua ancoragem no solo). No início, como as cadeiras não eram fixadas ao piso, a disposição dos espectadores podia ser aleatória, e havia uma participação efetiva do público. Estava-se mais na ordem da celebração, da partilha, do que na da experiência isolada que o cinema institucional iria propiciar mais tarde. O dispositivo cinematográfico conheceu, evidentemente, algumas tentativas visando à sua mutação. Tomemos, a título de exemplo, o procedimento do tríptico segundo Abel Gance (a famosa “polivisão”), experimentado por seu Napoléon (1927). Trata-se aqui muito mais de um desses casos de espécie, relativamente visionários (este “anuncia”, em parte, o cinemascópio), que não têm, necessariamente, descendência direta. No caso do dispositivo imaginado por Gance, o que é notável é que ele tenha planejado ultrapassar os limites do quadro não se limitando apenas à ampliação da visão. De fato, não só as três telas projetam, à maneira do cinemascópio, uma só imagem, como também há, por momentos, montagem entre as imagens da tela central e aquelas mostradas pelas telas laterais. As telas se respondem, assim, uma à outra, e permitem a “expressão” de uma variedade de pontos de vista. A história do cinema está cheia de tentativas do gênero. Caso se examinasse com A idéia que percorre todas as pesquisas que fazemos sobre o cinema dos primeiros tempos é a de tentar mostrar em que pontos se tem, na origem, dois sistemas em funcionamento, dois sistemas que não têm o mesmo “princípio primeiro”, dois sistemas que são concorrentes um do outro e que não levam, absolutamente, ao mesmo lugar. Isso pode ser constatado no simples plano da cronologia. Um primeiro período se esboça e vai até 1907 – 1908, o da cinematografia-atração. Nesse período, o cinema responde a imperativos muito variados que não são de ordem “puramente” cinematográfica. Certas especificidades cinematográficas realmente estão em via de se implantarem, particularmente com Méliès e seus efeitos especiais, mas o cinematógrafo é considerado um aparelho de reprodução. É um dispositivo do qual se serve primeiro e antes de tudo com a idéia de reproduzir espetáculos que se fazem sobre “outras” cenas que não aquela do cinema. Antes da institucionalização (um fenômeno que se produz entre, digamos, 1908 e 1915), o aparelho cinematográfico era, portanto, antes de tudo, um aparelho de gravação. Na época, se existe arte em algum lugar, é diante da câmera, não na câmera. Pedese a um artista pintor para pintar cenários que serão colocados diante da câmera; toma-se um artista de teatro e se pede a ele que represente “artisticamente” diante da câmera etc. A arte do cinema não está (ainda) no cinema. Não há aspecto artístico no próprio cinema. O cinematógrafo serve primeiro e antes de tudo para diferentes participantes de séries culturais em voga na época (fotografia, espetáculo cênico, espetáculos mágicos, lanterna mágica etc.). São, pois, esses participantes de séries culturais já estabelecidas que se apropriam do cinematógrafo para responder a imperativos que, de uma certa forma, não pertencem ao cinema. Normalmente, esses participantes são fiéis à sua própria série cultural. Com o cinematógrafo, Lumière faz fotografia animada, Méliès faz sketches mágicos filmados etc. No período seguinte (1907-1915), vê-se emergir uma indústria cinematográfica que tende a se separar pouco a pouco dessas outras séries culturais que, num primeiro momento, acolheram o cinematógrafo. Desenvolve-se, então, um discurso de autonomia do cinema, a partir, principalmente, da tribuna dos jornais corporativos (Moving Picture World, Ciné-Journal etc.). C HARLES M USSER YALE UNIVERSITY . ESCREVEU EXTENSAMENTE SOBRE OS PRIMEIROS ANOS DO CINEMA , INCLUINDO O LIVRO THE EMERGENCE OF CINEMA NOVA YORK E PARIS _ - 1990 - 16 DE JULHO E 01 DE AGOSTO DE 2004 E m Seven Minutes Before, o filme em telas múltiplas que Melik Ohanian apresentou no pavilhão francês da Bienal de São Paulo, há um único momento em que se juntam os sete temas do filme. De certa maneira, o que ocorre no filme é uma reorganização da forma pela qual o tempo se desdobra. Ao invés de cortes interligados, o filme é projetado simultaneamente em sete partes, em telas distintas. Assim, Ohanian oferece uma forma de organizar e representar o espaço-tempo muito diferente daquela que se vê em alguns cinemas – até num filme de Quentin Tarantino – embora talvez partilhe alguns dos mesmos impulsos. O filme Napoleon (1927), de Abel Gance, poderia ser considerado um óbvio precursor, pois o diretor não se limitou a separar as telas: a certa altura, passavam-se cenas de ações diferentes nas três telas – um tríptico de imagens sincronizadas. É freqüente que o espaço e o tempo surjam em primeiro e segundo planos. O filme, ou obra de arte, pode priorizar um ou o outro, mas o espectador pode desviar sua atenção e centrá-la naquilo que o cineasta pode parecer não enfatizar. Imagine as tomadas panorâmicas de antigamente, que muitas vezes eram voltadas para o espetáculo do espaço. Muitas vezes, as alterações da iluminação tinham o objetivo de sugerir o passar do tempo. Uma vez estabelecido o espetáculo do espaço, o tour de force, a atração de uma impossível – mas crível – mudança temporal passaria para primeiro plano. Quando a expressão panorama foi empregada pela primeira vez no cinema, esse efeito de movimento através do espaço freqüentemente era obtido colocando-se a câmera num trem, ou num barco deslizando pela água. Ainda em 1896, a American Mutoscope Company instalou uma câmera num veículo sobre trilhos que circulava pela cidade. Essa penetração de espaço, a sensação de estar submerso, baseava-se num desdobrar da temporalidade. Muitas vezes eram chamados “passeios fantasmas”. À medida que perdia força essa sensação inicial de passeios fantasmas, surgiram esforços crescentes no sentido de criar documentários narrados, nos quais o espectador fosse um passageiro em viagem. Havia a idéia de que o espectador, sentado na sala de espetáculos, viajava pelo espaço e pelo tempo – sua cadeira se tornava o assento num trem ou o banco de um barco. Alguns cinematografistas do início recusaram-se a seguir o movimento. É o caso de Méliès, o que, aliás, explica seu fracasso a partir de 1908. Ele quis continuar a fazer seus filmes como os fazia antes, numa via que estava prestes a se tornar uma alternativa. Mas o cinema não se faz sem dinheiro... E qualquer via alternativa que não seguisse a música do tempo corria o risco de perder espectadores e, portanto, de encontrar alguns problemas financeiros. No início da década de 10, havia menos oportunidades para as formas alternativas. A própria idéia ou definição de “panorama” mudou muito cedo. Aquilo que agora chamamos “tomada panorâmica” foi muito difícil de conseguir. Implica um movimento rotativo da câmera, normalmente apoiada num tripé. O primeiro filme de Edison em que isso foi feito foi Return of the Life Boat (1897). Nesse filme de uma única tomada, um bote salva-vidas chega a terra e, quando está para sair do enquadramento da câmera, o cinegrafista retoma a cena para mantê-la enquadrada. Definitivamente, o resultado chama a atenção para o espaço fora do enquadramento, dando ênfase ao espaço fora Nos jornais especialmente destinados aos participantes da então nascente indústria do cinema, que foram publicados a partir de 1907, encontram-se textos sobre o que deve ser e o que não deve ser o da tela, mas também centra a atenção do espectador na natureza incontrolável da ação que se passa, do tempo. cinema, assinados por diferentes participantes culturais. Alguns deles declararam guerra às práticas alternativas. Depois de 1907-1908, o cinema começa a ser visto como uma prática cultural autônoma. Procura-se, então, dar autonomia ao cinema e a legitimá-lo. Cada vez Em nada surpreende que os fabricantes de equipamento tenham aperfeiçoado rapidamente a tecnologia necessária para produzir mais novos apostadores investem no mundo da cinematografia, livres de qualquer vínculo com as séries culturais concorrentes. Foi isso, provavelmente, que fez a fortuna de Pathé, que foi uma das principais forças a levar o cinema para a via industrial e que, ao contrário de Edison, Lumière e Méliès por exemplo, não tinha compromissos com alguma série cultural concorrente do cinema. Para ele, o cinema devia, primeiro e antes de tudo, ter um futuro comercial. Para Charles Pathé, o cinema era um comércio que devia encontrar seu nicho, criar seu próprio público e ocupar seus próprios segmentos de mercado... BASEADO EM ENTREVISTA COM JC ROYOUX - TEXTO REVISTO PELO AUTOR , EM COLABORAÇÃO COM PIERRE CHEMARTIN . 05 panorâmicas mais suaves; e, por volta de 1899 ou 1900, as empresas cinematográficas já produziam extensas tomadas panorâmicas da trágica inundação de Galveston, assim como longas panorâmicas, em câmera lenta, das cataratas de Niagara ou paisagens de cidades importantes. A técnica da panorâmica – na qual a câmera se move, lenta e continuamente, sobre um tripé – era importante porque aquele movimento, suave e aparentemente frágil, sugere uma suspensão do tempo, como se pode ver nos filmes Circular Panorama of the American Falls (Edison, 1900) e Circular Panorama of Atlantic City, N.J. (Edison, 1900). A atenção do espectador deixou de se fixar nas paradas e re-inícios que ressaltavam uma passagem urgente, e cautelosa, do tempo. O espectador podia transcender o tempo. É interessante notar que alguns desses filmes, particularmente PanAmerican Exposition by Night (Edison, 1901), são contínuos, “panoramas” sem descontinuidade, que começam a ser rodados à luz do dia e, quando terminam (num tempo de menos de um minuto de projeção), já é noite escura, com as luzes elétricas da exposição proporcionando o espetáculo visual. Em geral, no entanto, essas surgem. As preocupações de Griffith são semelhantes, ainda que articuladas de modo muito distinto. Era o cineasta (Griffith) que, que visitava, John C. Rice podia ser visto beijando May Irwin em uma sala e beijando Ada Lewis (que fazia o papel de Lydia Languish) em tomadas panorâmicas com a câmera num tripé abordavam a temporalidade de uma maneira diferente: poderíamos dizer que o enquanto narrador fictício, mudava rapidamente de um espaço para outro. Ele foi o máximo expoente da edição paralela. Muitas vezes, outra. Via-se, portanto, John C. Rice representando num espaço e John C. Rice fazendo algo semelhante – mas sem qualquer relação – espetáculo do espaço era muito mais importante que o do tempo. Na realidade, o esforço para integrar tais cenas numa narrativa contínua isso significava o movimento entre espaços numa temporalidade condensada e intensa. O resgate do último minuto salienta o tempo, em outro. Enquanto forma de diversão teatral, uma das coisas que o cinema conseguia fazer era enfatizar o espaço: o desempenho do criava, muitas vezes, uma separação significativa. The Execution of Czologosz (Edison, 1901) e The Country Doctor (Biograph, 1909), por exemplo, começam com longas, extensas panorâmicas; só após as panorâmicas é que a narrativa (e o fator tempo) surgem em cena. mas também o espaço. Essa pequena porção de espaço é coberta pelo pequeno tempo que resta. Mas nem todos os seus filmes usam o espaço e o tempo dessa maneira. Em Intolerance (1916), Griffith ia e vinha entre períodos de tempo absolutamente diferentes. Embora a separação do tempo fosse dramática, ainda havia uma evolução firme da narrativa em cada um dos fios do enredo. No final, essa separação mesmo ator ocorrendo simultaneamente em dois espaços distintos. No entanto, os aspectos “simultâneos” ou temporais parecem tão importantes quanto os espaciais. Até então, isso nunca fora possível. Quando essas panorâmicas longas e suaves se tornaram populares, ocorreram outras tentativas semelhantes de submergir o espectador no espaço. Em “Ballon Cinéorama”, apresentado na Exposição de Paris de 1900, o auditório era submerso num mundo com uma visão de 360 graus. Jacques Deslandes e Jacques Richard citam o fato numa passagem de sua Histoire comparée du cinéma. No início do cinema, pelo menos nos tempos de Lumière, colocava-se o rolo de filme e ele rodava até o final. Era muito linear e forte, em sua temporalidade, mas também valorizava os espaços em que a ação decorria. Basta ver os títulos: Employees Leaving the Factory (1895) ou The Train at La Ciotat (1895). Mesmo quando não era mencionado nos títulos, o tempo ocupava um lugar central no filme. Com o Vitascope de Edison constitui um filme, mas não uma narrativa. Consiste em várias narrativas que sugerem uma narrativa maior. Existe uma progressão, mas é mais emocional e conceitual do que narrativo. A narrativa dos dias de hoje é mais esperançosa; sempre termina com a alegre sugestão de que a história sempre caminha rumo à felicidade geral. Esses períodos de tempo distintos são, naturalmente, vinculados a espaços distintos – e a geografias distintas. O que quero sugerir é que poderíamos comparar Ohanian e Griffith vendo-os completamente diferentes, mas eles têm muito em comum no impulso de mostrar espaços distintos, telas distintas, ações distintas. – que foi a primeira experiência bem-sucedida de projeção de imagens filmadas nos Estados Unidos – os filmes passaram a ser Também podemos analisar o período anterior a Griffith, quando as relações entre espaço e tempo se davam de modo muito diferente. exibidos num enorme rolo e as pessoas viam as mesmas imagens até oito vezes. O filme tinha que passar muitas vezes seguidas porque chegava a levar três minutos para se mudar uma bobina – 15 segundos de projeção para três minutos de escuridão era algo que não funcionava. Esse é um dos motivos pelos quais em Nova York e Boston passaram a usar dois projetores. Enquanto repassavam o filme já exibido, iam mudando a bobina no outro projetor. Houve esforços no sentido de conectar espaços e, dessa forma, narrativizá-los, mas não de uma maneira rapidamente identificável. Um exemplo: por ocasião do lançamento do iate Meteor do príncipe Guilherme, da Alemanha, os cinegrafistas de Edison o filmaram em duas tomadas diferentes, no estaleiro. Havia, portanto, dois filmes sobre o lançamento do Meteor ao mar: Christening and Launching Kaiser Wilhelm’s Yacht “Meteor” e Kaiser Wilhelm’s Yacht “Meteor” Entering the Water (ambos produzidos em 25 de fevereiro de 1902). Edison vendeu as duas versões em separado. Os exibidores podiam mostrar o “Meteor” sendo lançado ao mar de um ângulo e, depois, de outro. De certa forma, isso é muito normal para nós, nos dias de hoje, porque vemos pela televisão um jogador chutar em gol e, em seguida, em câmera lenta, o mesmo jogador chutar em gol de um ângulo diferente. Inicialmente, relacionavam-se duas tomadas no espaço quando, em geral, as tomadas não se relacionavam no espaço. Essa Os temas apresentados no Vitascope de Edison variavam. Podia ser uma dançarina, como Annabelle Whitford, que fez Serpentine Dance e Butterfly Dance. Se a projeção fosse de boa qualidade, quase parecia que ela dançava continuamente, como se fosse um filme de uma única tomada e o roteiro unido e linear. Nem dava para notar quando o filme terminava ou começava; podia ser repassado continuamente. O tempo era infinito, mas com sua repetição potencialmente interminável, também parecia suspenso. O espaço, sim, era potencialmente estável e supremo. Entretanto, voltando à questão do primeiro e segundo planos e de onde o espectador centra sua atenção, percebe-se que nesses primeiros filmes de Edison o espaço é pouco desenvolvido. Quase esquemático. Annabelle dança contra um fundo preto. Além dela, dá para ver, no máximo, o assoalho e um corrimão, de um dos lados. Outros filmes sugerem o espaço de uma barbearia ou de uma oficina de ferreiro. A partir do momento em que conseguiram uma câmera portátil, os cinegrafistas de Edison passaram a filmar cenas de rua e outros locais. Aqui, o espaço ficou muito mais demarcado, mas persiste a interrogação de até que ponto essa especificidade do tempo pode ter dado impulso a uma temporalidade mais definida, mais desenvolvida e linear. Esses primeiros filmes assemelhavam-se, muitas vezes, a quadros em movimento. É evidente que o principal motivo para as pessoas irem ao cinema era a animação, o movimento, e, conseqüentemente, o decorrer do tempo, ainda que este estivesse centrado no micro-nível de observar um movimento real, como o ferreiro malhando repetidamente a bigorna, tal como o faz na vida real.Mesmo antes do cinema, sempre houve um interesse em achar formas de fazer as imagens ganharem movimento. O cinema apenas padronizou a maneira pela qual o movimento ocorre na tela, a continuidade por meio de fotogramas sucessivos, aquilo que chamamos a “moderna imagem em movimento”. Mas havia outras maneiras de dar movimento às imagens e as pessoas o viam na tela. Isso também implicava fazer o tempo da tela mais análogo à nossa experiência de tempo no mundo real – para torná-lo mais convincente e intercomunicável. Se existia uma gangorra – ou talvez se pudesse dizer uma tensão criativa – entre o espaço e o tempo, também havia outra espécie de dialética entre os vários tipos de atrações isoladas e o decorrer da narrativa. Mesmo antes do cinema, já havia “cinemas de atração”, momentos de espetáculo sem narrativa, de surpresa e assombro, projetados numa tela ou representados num palco; há, atualmente, uma espécie de cinema que os recria. O cinema propriamente dito era novo, espantoso, mas com uma noção mais ampla da prática da tela, ou de surpresa teatral. Paralelamente, aconteciam saraus de leitura, de noite, sobre viagens, nos quais as pessoas se moviam no espaço e no tempo. Havia também longas narrativas, como as fotonovelas de Alexander Black. É tentador ver o filme em telas múltiplas de Melik Ohanian como radicalmente oposto ao cinema comercial e às figuras que Griffith considerava centrais para sua formação. No entanto, Ohanian tem mais em comum com Griffith do que se pode pensar. Ambos se interessam em mostrar espaços múltiplos que se desdobram simultaneamente. Com Ohanian, o espectador tem a liberdade de olhar para uma ou para outra tela – ou para várias ao mesmo tempo. Tem a liberdade de explorar os diferentes enredos de imagens que relação construiu o espaço de uma maneira nova para os espectadores. Sabotou a idéia de uma progressão da narrativa, mas também sua temporalidade, de certa forma confusa. Provavelmente, as câmeras não começavam a gravação simultaneamente, ou não filmavam de forma contínua. O mais provável é que parassem, para continuar de novo, e por isso a relação entre o filme A e o filme B constituía um verdadeiro desafio para um espectador que realmente quisesse explorar as relações espaço-tempo. Para eles, seria quase impossível começar e terminar ao mesmo tempo. Também era improvável que o filme fosse rodado numa única tomada contínua. A filmagem poderia começar e, quando ficasse evidente que o barco não seria lançado à água imediatamente, seria suspensa para ser retomada mais tarde. Ao contrário do espectador, que acompanha o evento desde a filmagem do ponto A, prosseguindo continuamente até o ponto C; e, no segundo filme, começando no ponto A1 e prosseguindo até C1. Cada filme passava por etapas – começoparada-retomada (tipicamente, por meio de cortes bruscos) – e, por fim, terminava em momentos distintos. Poderia parecer que esses filmes antecipavam o tempo e, no entanto, parte da excitação era mostrar um evento de duas diferentes perspectivas, de duas posições geograficamente distintas. Dá para imaginar um artista querendo mostrar os dois filmes simultaneamente, um ao lado do outro – numa espécie de díptico. Há uma outra maneira pela qual é possível pensar como o cinema cria conjunções espaciais e temporais. O cinema foi absolutamente radical, no sentido de que tornou possível que coisas relacionadas ocorressem em espaços não relacionados. Imaginemos o filme mais popular de Edison, The May Irwin Kiss (1986), no qual Irwin beija John C. Rice. Ele se inspira na penúltima cena de uma comédia musical, The Widow Jones (1895), na qual o beijo sela o noivado de Jones (Irwin) e Billy Bikes (Rice). John C. Rice, como Bikes, ganha a viúva, uma herdeira, e sua fortuna. Esse filme apareceu primeiro num jornal, a análise cronológico-fotográfica de um beijo. Algumas semanas depois, foi projetado na tela no Koster and Bial’s Music Hall, pelo sistema dos rolos de bobina contínuos. Naquela semana, portanto, o beijo podia ser visto repetidamente no Koster and Bial’s Music Hall e, simultaneamente, em outra sala, em outro espaço, John C. Rice e May Irwin se beijavam, mas ao vivo. Na semana seguinte estreou em Boston o segundo Vitascope e o grande sucesso voltou a ser The May Irwin Kiss. Dois artistas, absolutamente identificáveis, beijavam-se, num close up, ao mesmo tempo e em diferentes lugares do país. Nesse meio tempo, The May Irwin Kiss tornou Rice muito famoso e ele começou, imediatamente, a ensaiar o papel de Capitão Absolute, na peça The Rivals, do século XVIII, de Richard Sheridan. Ocorreram, então, coisas muito engraçadas que não vou detalhar, mas, em Talvez valesse a pena deixar de lado como o tempo e o espaço se entrelaçavam no início do cinema e discutir, ao invés disso, os métodos de exibição daquela época, que podem repercutir na abordagem de Ohanian. Bem no começo da exibição cinematográfica, ocorreu uma situação em que imagens múltiplas eram mostradas simultaneamente, com o kinetoscope1 e, depois, o mutoscope2. Eram máquinas em que se observavam as imagens por orifícios (peephole machines) enquanto rodava a bobina do filme. Em alguns lugares havia várias dessas máquinas e os usuários viam todas elas, passando de uma à seguinte. Em 1894-1895, esses kinetoscopes mostravam, em geral, filmes de dançarinos de várias regiões do mundo. Embora todos pudessem ter sido filmados nos estúdios Black Maria, de Edison, podiam ser vistos dançarinos turcos, ingleses, índios norte-americanos, um dançarino mexicano que lançava facas etc. De certa forma, os dançarinos representavam as diferentes culturas do mundo, diferentes espaços geográficos. É evidente que se podem perceber paralelos potenciais entre os primeiros kinetoscopes e as sete telas usadas por Ohanian. O passo para o cinema, que somente exigia um projetor, foi um passo na direção de uma maneira mais eficiente de exibir filmes. Conseqüentemente, o cinema afastou-se da idéia de exibir imagens múltiplas simultaneamente, embora não da mesma pessoa. Um exibidor só precisava de um ou dois projetores, o que tornava a exibição do filme muito mais barata. Outra coisa que merece ser abordada é a maneira pela qual a exibição em telas múltiplas de Ohanian retoma a idéia do processo de exibição como parte central do processo de criação. No início do cinema, os exibidores compravam filmes de diferentes produtoras e também utilizavam a lanterna mágica. Assim, cada exibidor tinha sua programação específica; embora, em 1898, praticamente todos os exibidores mostrassem filmes sobre a guerra hispano-americana, todos os programas eram diferentes. O exibidor reivindicava uma certa autoria. A programação e a edição eram subordinadas à empresa de exibição. Nos primeiros anos do século XX, o que aconteceu foi que a responsabilidade pela edição passou rapidamente das mãos do exibidor para o controle do produtor. As unidades de programação tornaram-se cada vez maiores e o papel do exibidor cada vez menos criativo e mais o de dono de uma casa de espetáculos. De início, o exibidor era o autor. Naquela época, os filmes eram feitos de seqüências curtas e era possível organizá-los por serem curtos. Eram elaborados em blocos e esses blocos podiam ganhar a forma de frases. Havia uma liberdade muito maior para os organizar devido ao formato pré-realizado. Na época, o cinema era uma extensão da lanterna mágica. Nos espetáculos de lanterna mágica, ocorria uma tensão criativa entre mostrar paisagens variadas – que é o que se fazia inicialmente – e programas mais longos. A empresa de Edison, que foi a pioneira do cinema nos Estados Unidos – e talvez no mundo –, tinha interesse em produzir equipamentos. Edison vendia esses equipamentos e também vendia filmes, avulso, para exibição. O comprador podia exibir os filmes como desejasse. Não era incomum que exibidores cortassem pedaços de filme de que não tivessem gostado. Concretamente, até a década de 1960, quando a censura de fato acabou nos Estados Unidos, cada Estado censurava os filmes à sua maneira. O sonho de uma exibição padronizada, em que tudo fosse idêntico e simultâneo em todo o país, só chegou com a televisão. Em 1897, quando apareceu o primeiro Vitascope, havia cerca de 60 projetores nos Estados Unidos. Provavelmente eram usados de formas diferentes. Alguns deles tinham obturadores, enquanto outros, não; alguns eram rolos contínuos, outros não. Às vezes exibiam um filme em transição, de um espetáculo de vaudeville para outro, e às vezes os exibiam em conjunto. Lyman Howe, que começou a exibir filmes em dezembro de 1896, se interessava, inicialmente, em criar seqüências de narração. No final de 1896, ele tinha cinco filmes diferentes de um incêndio, incluindo os bombeiros saindo do quartel, a corrida para chegar ao incêndio, a retirada de cavalos que se encontravam no prédio em fogo e o salvamento. Com esses cinco filmes, ele contava a história do incêndio. Outros exibidores mostravam esses mesmos filmes em formatos variados, descaracterizando a narrativa e enfatizando um espetáculo de acontecimentos. resumo, o Capitão Abolute acaba conquistando a mão de Lydia BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER Languish, que é uma jovem herdeira. Quando a companhia de teatro fez uma tournée pela Costa Leste dos Estados Unidos, em cada cidade 1 N.T.: Palavra de origem grega: kinetos (movimento) e skopos (observar, ou alvo). 06 B EATRIZ C OLOMINA BEATRIZ COLOMINA É PROFESSORA TITULAR DE ARQUITETURA NA PRINCETON UNIVERSITY . ELA É AUTORA DO LIVRO PRIVACY AND PUBLICITY : MODERN ARCHITECTURE AS MASS MEDIA - 1994 - E A EDITORA DE LIVROS COMO SEXUALITY AND SPACE - 1992 - , E COLD WAR HOTHOUSES : INVENTING POSTWAR CULTURE FROM COCKPIT TO PLAYBOY - 2004 - posteriormente, se tornou um lugar-comum muito útil para quem trabalha em publicidade – a capacidade que temos de absorver mais e um computador. O computador era um Ramac, uma nova versão da IBM que respondia a perguntas sobre a vida nos Estados Unidos. imagens do que pensamos ser possível. Charles e Ray Eames queriam Havia um universo de 3.000 perguntas possíveis – tais como que o espectador sentisse que ainda faltava alguma coisa. Essa era “Quantos carros existem nos Estados Unidos?” – que as pessoas uma das facetas muito importantes de sua maneira de compreender podiam escolher por meio de cartões magnéticos. Havia, portanto, comunicação. Quando se chegava ao ponto em que uma pessoa estava submersa em mais informações do que podia absorver, uma parte de seu cérebro começava a fazer conexões. Havia mais imagens três arquiteturas que, na época, nada tinham de tradicional. A entrada para o local do domo era uma experiência completamente diferente daquela de entrar num prédio público tradicional; o filme e mais telas do que se podia ver num dado momento, pois as telas em telas múltiplas também era uma experiência original de espaço; e não só eram imensas, como estavam suspensas de uma cúpula geodésica muito alta, projetada por Buckminster Fuller. Reduzido a o computador, um novo tipo de experiência espacial. A multiarquitetura, e uma colagem de novas concepções de espaço uma figura diminuta, era quase impossível ao espectador ver todas as coexistiam, assim, no mesmo espaço físico. É muito significativo o telas de uma vez, pois o ângulo de visão não o permitia, o que também foi proposital. fato de que os Eames não eram apenas cineastas, mas também arquitetos que davam um depoimento que passava despercebido para a maioria dos arquitetos daquela época. TRADUÇÃO DE JÔ AMADO NOVA YORK _ 18 DE JULHO DE 2004 C harles e Ray Eames encontraram-se envolvidos no planejamento de uma grande exposição norte-americana em Moscou, em 1959. Pretendia-se que esta exposição fosse a contrapartida de uma outra que os russos organizariam, no mesmo ano, em Nova York. A primeira coisa que perceberam foi que, mesmo na ampla área que lhes fora reservada para a exposição, não iriam dispor de espaço suficiente. O filme, portanto, foi concebido, desde o início, como uma forma de ampliar o espaço destinado à exposição.Primeiro passo: dois arquitetos concebendo um filme como meio de ganhar mais espaço para aquilo que pretendiam comunicar. Foi então que surgiu a idéia de um filme projetado em telas múltiplas, uma noção que ainda não tinham desenvolvido mas que exerceu muita influência na década de 60, com as experiências feitas por artistas com multimídia e expanded cinema1. O interessante é que os o casal Eames foi o primeiro a fazê-lo. Não havia precedentes na arquitetura nem na arte. Os Eames já haviam feito experiências com telas múltiplas para espetáculos de slides, utilizando um complexo sistema pelo qual os vários projetores eram interconectados. Tiveram que mandar um técnico, na véspera de uma conferência, para garantir que todo o equipamento estivesse perfeitamente instalado e no lugar apropriado. Tanto o performance, quanto os aspectos técnicos, eram muito importantes para eles. Encontrei em seus arquivos um documento de duas páginas com instruções pormenorizadas sobre o funcionamento do equipamento. Também em Moscou, trabalhariam com a mesma precisão. O filme, cujo título era Glimpses of the USA, foi projetado em sete telas gigantescas, de 20 por 30 polegadas (de 50 por 60 centímetros), com o formato de televisores. Tinham os cantos arredondados, o que é interessante, pois a televisão comercial fora inaugurada, nos Estados Unidos, apenas na década anterior. O filme consistia de milhares de imagens – algumas em still, outras em movimento – projetadas simultaneamente por sete rolos. A câmera praticamente não se movia. Todas as imagens foram reunidas e montadas a partir de slides que os próprios Eames haviam tirado ou obtido de várias outras fontes, como as revistas National Geographic, Life, Vogue etc., assim como de fotografias conseguidas com a Nasa. Algumas das imagens eram de filmes, como as de Billy Wilder e Marilyn Monroe em Some Like it Hot, outras, de espetáculos de jazz e alguns clips de movimentação em fábricas. A imagem de cada um dos sete projetores era diferente, mas sempre relacionada com um mesmo tema comum. Um exemplo: o filme começa com estrelas em todas as telas e o narrador diz que as estrelas no céu são as mesmas nos Estados Unidos e na Rússia. E termina com pessoas se beijando e dizendo boa-noite. O que eles pretendiam dizer é que todos nós partilhamos do mesmo cosmos e temos emoções semelhantes. Tratava-se de um apelo à paz, diante da corrida armamentista. Se, de certa forma, somos todos uma família, não devemos nos matar uns aos outros. É interessante que o trabalho fotográfico intitulado The Family of Man, de Edward Steichen, também foi apresentado durante a exposição norte-americana em Moscou. Dá para se refletir sobre a relação entre a coleção de imagens em três dimensões de The Family of Man e dispostas de modo circular – que fora apresentada pela primeira vez em 1955, no Museu de Arte Moderna de Nova York – e o arranjo com as telas múltiplas utilizado por Glimpses of the USA. O filme foi organizado como um dia na vida norte-americana. Começa com um dia de trabalho. Das estrelas, à noite, ao amanhecer em várias paisagens através do país e, em seguida, pessoas tomando o café da manhã e saindo, para a escola ou para o trabalho, até o final do dia. Isto leva 9 minutos. Seguem-se 3 minutos sobre um dia de final de semana nos Estados Unidos, com imagens de pessoas cortando a grama de seus jardins, ou cortando o cabelo, saindo para a missa, passeando de barco, visitando museus, fazendo um piquenique no parque, indo ao circo, a vida noturna, cinemas, jazz..., até se beijarem dando boa-noite. Um imenso número de imagens – 2.200 – foi projetado em apenas 12 minutos, algo sem precedentes. Os Eames haviam feito uma pesquisa científica sobre a capacidade das pessoas absorverem imagens. Tinham consciência daquilo que, Em relação ao projeto Cosmogram, outro fator muito importante é o Sputnik. A intenção dos russos, com o intercâmbio das exposições, Naquela época, a maioria dos intelectuais norte-americanos era mostrar aos norte-americanos seus progressos em ciência e tecnologia. Na verdade, os Estados Unidos deveriam ter levado seus considerava os computadores coisas assustadoras. Mas Charles e Ray Eames os adotaram. Acabaram trabalhando para a IBM, foguetes para mostrar aos russos, mas recearam fazê-lo porque disseminando a mensagem de que os computadores eram excelentes avaliaram que estavam perdendo a guerra espacial, uma vez que o Sputnik estava em órbita e os norte-americanos haviam tido várias e que arquitetos e projetistas deveriam utilizá-los em seu trabalho. Não deixa de ser significativo que o filme para telas múltiplas que os experiências catastróficas. O surpreendente, entretanto – e não sei se Eames fizeram para o pavilhão da IBM na Feira Mundial de Nova isto foi consciente –, é que a forma pela qual o filme foi estruturado tem tudo a ver com a idéia do Sputnik. O filme é como um olho, no York, em 1964, chamava-se I THINK [EU PENSO] e seu objetivo era o de convencer as pessoas de que os computadores pensavam, da céu, que nos observa. Enquanto os norte-americanos se sentiam apavorados com a idéia de um olho que os observava, o filme mesma forma que o cérebro de uma pessoa organiza pedaços e segmentos de uma informação. reproduz o que fazia o Sputnik, pois atua como um mecanismo de vigilância que, progressivamente, nos observa com uma lente zoom. Os Eames queriam envolver todos os sentidos, e não apenas o da visão. Em 1952, num evento de multimídia que apresentaram na O espectador começa por ver as constelações no céu, depois vistas Universidade da Geórgia, na cidade de Atenas, sentiam-se cheiros aéreas, depois está à porta das casas e, em seguida, dentro das casas, vendo as pessoas tomarem o café e se beijando: uma cena íntima da durante a projeção de um filme. As imagens mostravam alguém fazendo pão e os cheiros entravam pelo sistema de ar condicionado vida privada projetada nas telas mais públicas possíveis. da sala. Imagens de fábricas barulhentas faziam-se acompanhar por uma trilha sonora tão forte que o espectador sentia as vibrações. Portanto, de certa maneira, eles contrabalançam o medo de um olho Todo seu corpo era envolvido. Ao contrário do que ocorre num no céu – não escondendo mas, sim, mostrando o que os russos poderiam ver em sua imaginação, ou seja: como vivemos bem, como somos felizes, quantas piscinas temos etc. A idéia de centrar a atenção na vida doméstica, ao invés de foguetes, foi muito inteligente. Na exposição soviética em Nova York, no entanto, os russos exibiram o Sputnik propriamente dito, entre outros êxitos tecnológicos. Os Eames tentaram diminuir a importância do Sputnik, mas, ironicamente, representaram o Sputnik de uma maneira mais interessante: as conseqüências concretas que ele teria na era espacial. Os russos ainda estavam concentrados no objeto; os Eames, no que esse objeto significava em termos da nova realidade espacial de nossas vidas. cinema tradicional, na exposição de Moscou o espectador fazia parte A narrativa do filme é igualmente muito proselitista. Consciente, ou inconscientemente, eles compreendiam perfeitamente qual era a missão do governo dos Estados Unidos. É um pouco assustador o fato de que, para evitar a censura, os Eames chegaram a Moscou com o filme somente na véspera da apresentação, quando o trabalho que haviam produzido estava em plena sintonia com aquilo que o governo norte-americano tentava projetar para o mundo. A narrativa destacava a incrível abundância nos Estados Unidos, o que lembrava o espectador dos tempos difíceis por que passara a população de Moscou para conseguir um pedaço de pão. Quando eram mostradas fábricas, por exemplo, o narrador dizia: “Aqui são as fábricas e aqui os estacionamentos para os operários” – o que pressupunha que todo trabalhador norte-americano tinha um carro e, em grande parte, era verdade. Nas imagens aéreas de áreas suburbanas, mostravam-se piscinas em todas as casas, o que não era verdade. E aqui, casas com todo tipo imaginável de eletrodomésticos, supermercados com estacionamentos para os fregueses etc. Com a chegada do Sputnik, a noção de espaço ganha uma dimensão global, o que já ocorria com a geração anterior de arquitetos. Le Corbusier trabalhara na Argélia, na Índia, no Japão, na Argentina, nos Estados Unidos... Os arquitetos modernos já eram arquitetos globais, mas ainda tinham os pés no chão. A idéia que Mies e Le Corbusier tinham de um espaço universal ocupado por todo mundo é uma visão horizontal do mundo e da paisagem. Um momento interessante do trabalho de Buckminster Fuller é aquele em que substitui a visão horizontal por casas espaciais, ou casas planetárias, em que a visão é para cima. Isto também pode ser encontrado num trabalho de Alison e Peter Smithson de 1956, The House of the Future, em que a casa se fecha totalmente ao mundo exterior. É uma casa vazia, sem janelas para fora. Há um jardim, no centro, com vista para o céu e, assim, a relação das pessoas com o mundo exterior não se dá com o que está do lado de fora mas, sim, com o que está lá em cima. Trata-se de uma transformação da compreensão de espaço, o que é muito adequado ao projeto Cosmograms. Para aquela geração de arquitetos da década de 50, a noção de espaço era planetária. No momento em que se olhava para o céu, a ordem espacial mudava. de uma multidão, em pé ou em movimento. A incapacidade de absorver tudo induz a uma resposta emocional. E a emoção fazia parte da experiência do filme com telas múltiplas. Um outro aspecto que é relevante nos filmes para telas múltiplas é a obsessão que os Eames têm, e sempre tiveram, com o circo. Na verdade, quando estavam sem dinheiro, ainda na década de 40, tentaram trabalhar num circo. Queriam ser palhaços e conseguiram o emprego. Se não tivesse coincidido com a oferta do contrato para fazerem mobiliários de madeira compensada, os Eames teriam sido palhaços de circo. E continuaram próximos ao mundo do circo. Fizeram parte da diretoria do Ringling Brothers Circus, tiraram milhares de fotografias e fizeram filmes sobre o circo. A idéia de um espetáculo com muitos cheiros e ruídos, no qual existem três círculos concêntricos e o espectador não consegue acompanhar tudo simultaneamente tem uma relação profunda com o que eles tentaram trazer para a experiência com telas múltiplas, esta atualizada e de acordo com a nova era tecnológica. O que pode ser uma outra maneira de dizer que o fato de existir a nova tecnologia não significa que deva ser abandonada a experiência corporal. Isto sempre foi importante para eles. E a arquitetura sempre envolve todos os sentidos. E por que o formato da tela? E por que sete? Estas são perguntas sobre as quais é possível especular, mas não exatamente responder. O que é nitidamente inovador nesse filme é a idéia de que um espaço fechado não significa simplesmente paredes. O espectador não precisa de tijolos; ele está encerrado por imagens. Estas imagens definem um novo tipo de espaço, o que não era acessível à geração precedente de arquitetos. No entanto, ainda em 1920, num artigo publicado pela revista L’Esprit Nouveau, Formation de l’optique moderne, Le Corbusier menciona o Times Square com seus outdoors criando uma nova forma de visão. As idéias de Le Corbusier eram tão avançadas para sua época que ele percebia essa nova realidade em que as imagens criam espaço – e não, os edifícios, que passam para segundo plano. Mas não trabalhou essa percepção em sua arquitetura com a mesma intensidade com que o fizeram gerações posteriores. As imagens são a nova arquitetura. É esta a característica dos Eames. Eles entenderam que a matéria-prima de seu ofício deixara de ser o concreto, o aço ou o vidro, como fora para a geração precedente de arquitetos, e sua matéria-prima passou a ser imagens, dispersas em publicidade, filmes, publicações e nas ruas. Não porque tenham desenhado a cadeira, mas por terem desenhado a imagem da cadeira, o layout do anúncio da cadeira, o contexto em que a cadeira seria acessível – por exemplo, aquela cadeira cor de laranja, em fibra de vidro! Nesse momento, mudou o papel do arquiteto. Tornaram-se profissionais da mídia. A idéia de fazer o filme surgiu após Buckminster Fuller ter decidido Atualmente, encontramo-nos cada vez mais cercados por imagens. Basta pensar na recente adoção de telas individuais, nos aviões, na fazer o grande domo - geodésico. Num mesmo espaço, acabariam coexistindo, simultaneamente, três coisas: uma forma de arquitetura e engenharia muito inovadora, um filme projetado em telas múltiplas parte de trás das cadeiras. Os aviões ficaram repletos e insuportáveis. Mas essas telinhas criam uma parede virtual que preserva um pequeno espaço, permitindo ao passageiro alguma privacidade em 07 meio a um tremendo congestionamento, um espaço particular com cadeira/cama, mesa, TV e uma vista da paisagem de sua escolha. Há muito tempo que a tecnologia vem sendo utilizada dessa forma. Quando cheguei a Nova York, em 1980, espantou-me a capacidade das pessoas de se isolarem, no metrô, com o recém-criado walkman. Todo mundo tinha um aparelhinho daqueles. Até com o som era possível criar aquele espaço de privacidade no meio da confusão metropolitana. Os filmes para telas múltiplas dos Eames criaram um novo tipo de espaço público, no qual uma multidão de pessoas juntas podia sentir o filme – não como cinema tradicional, mas como um para projetos do E.A.T. Embora a maioria delas nunca se tenha concretizado, acho isso importante. Existiam entraves de ordem R OBERT W HITMAN social e democrática para que artistas pudessem usar tecnologia para participar das comunidades de uma maneira mais aberta. Uma coisa ROBERT WHITMAN , NASCIDO EM 1935 , É ARTISTA . VIVE E TRABALHA EM WARWICK , NOVA YORK . É UM DOS PRIMEIROS ARTISTAS DE PERFORMANCE MULTIMÍDIA DO PÓS - SEGUNDA GUERRA MUNDIAL . EM 1966 , FOI UM DOS QUATRO CO - FUNDADORES ROBERT RAUSCHENBERG - - ESPECIALMENTE , COM DO GRUPO EXPERIMENTS IN ART AND TECHNOLOGY - EAT - O DIA ART FONDATION DEDICOU - LHE UMA GRANDE EXPOSIÇÃO EM NOVA YORK , EM 2003 . “doméstico”. Para eles, o sentido de um bem-estar emocional coletivo era muito importante. Uma cadeira Eames, assim como a casa ou as discrição, desde que previamente autorizado. Você não tem o direito de tirar uma foto de uma pessoa sentada num restaurante e colocar NOVA YORK _ 26 DE JULHO DE 2004 N o final da década de 50, vários artistas começaram a empregar estantes em compensado, é uma imagem que envolve quem a vê; cria engenheiros. Sei que John Cage e David Tudor já tinham uma relação com engenheiros de som. Billy Kluver tinha um contato com uma um espaço. A arquitetura sempre interage com o corpo e a saúde. Vem do tempo dos gregos. Se o corpo da década de 20 é exercitado, instituição de arte sueca chamada Filkingan cujo principal interesse era ligado à música. Essa instituição fez um convite para que saudável, o da década de 50 é diferente, traumatizado. Na década de 20, a preocupação era com a tuberculose; na década de 50, com participássemos de espetáculos com arte e engenharia. Quando se doenças mentais. Era impossível voltar da guerra e retomar a vida fotografia e vídeo, é que elas permitem que o artista use as pessoas. Às vezes, eu próprio me sinto culpado, pois sou contrário à situação política que isso cria, na qual o artista usa as pessoas, fotografandoas de uma maneira quase fascista. É difícil utilizar imagens com TRADUÇÃO DE JÔ AMADO espetáculo envolvente e acolhedor. Isso também tem uma relação com a mentalidade do pós-guerra. Os Eames traziam o espectador para sua “casa”, para seu espaço preocupante com as máquinas tecnológicas, principalmente em desfez essa relação entre suecos e norte-americanos, decidimos seguir em frente e criamos o 9 Evenings Theatre and Engineering, em normal. Fundamentalmente, a guerra destruía as pessoas, mesmo que não fossem fisicamente feridas. Todos os projetos feitos pelos Eames para a organização de espaço – a casa de cartas, os brinquedos, as meados da década de 60, e que foi montado no espetáculo do Armory, em Nova York. Participaram Dave Tudor, John Cage, Bob estantes de armazenamento, que são facilmente montáveis – podem trabalhava sozinho, de forma independente. Participava um artista sueco, Oyvind Fahlstrom. Essas apresentações foram o primeiro Rauschenberg, eu próprio, Yvonne Rainer, Steve Paxton etc. Eu isso num painel, junto com um monte de porcaria. Isso não se faz! Fora do E.A.T., eu queria fazer coisas de 25 dólares, ao invés de mil dólares e aí fiz um trabalho que foi um passeio. Não era muito confortável porque as pessoas tinham que circular, mas eu já tinha uma intenção bem clara antes de fazê-lo. Na verdade, foram dois trabalhos. Um deles foi em fevereiro de 1971, num cais abandonado à beira do rio. A noite estava espetacular, muito clara e fria. O céu estava limpo. No meio do cais havia uma gigantesca pilha de entulho e, quando você entrava no cais, era possível ver uma luz intensa vinda do céu e entrando pelos buracos no telhado. Havia aquela pilha de entulho gozada e fantasmagórica, estava muito frio e as pessoas viam formas vagas de carros, de uma janela ou de uma porta. Lá no final do cais, você enxergava a outra margem do rio, do lado de Nova Jérsei. O rio refletia as luzes de Nova York e de Nova Jérsei. No chão enfim, controlar o mundo em que viviam. Enquanto consumidores, eram responsáveis por seu espaço. Conseguir controlar uma parte de seu espaço, num mundo que corria o risco de explodir, era uma esforço coletivo de um grupo de engenheiros. do cais havia milhares de pedaços de mármore, cascalho das construções, corrimões de mármore, janelas e esquadrias, tudo de Meu trabalho consistia em várias projeções de diferentes tipos. Eu o mármore. Foi fantástico: todos aqueles pedaços de mármore, brancos, criando uma atmosfera fantasmagórica na noite. Atravessava-se para experiência terapêutica. pensava como uma espécie de cinema drive-in, mas eram as imagens que faziam o drive-in, e não as pessoas. Como o espaço era enorme, Esse espaço controlável envolvia a pessoa, protegendo-a, dava a podiam entrar carros e os filmes eram projetados nas paredes. inteiramente cúbica e, em seguida, a uma outra sala que só tinha pequenas prateleiras. Todos esses espaços eram muito bonitos. impressão de que existia um mundo à sua volta que lhe era íntimo, que interagia com ela. Isto era ainda mais evidente no filme que os Eames fizeram para o pavilhão da IBM, em 1964, em que as telas Comprei filme e rodei alguma coisa; o vídeo era feito a partir de lugares distantes. Os espectadores viam a luz e a projeção, mas não Passando por outra sala e através de uma janela, chegava-se ao telhado. Do telhado, passava-se por outra janela para um dos dois viam de onde ela vinha. Tínhamos alguns projetores e um vídeo da idade das cavernas, em preto e branco, pré-histórico. A altura da tela terminais de estrada de ferro, um pouco como um anfiteatro. As ser compreendidos como um tipo de terapia. As pessoas conseguiam, assumiam o formato oval do pavilhão, projetado pelo escritório de Eero Saarinen. A pessoa era incluída no espaço. Ou no filme que fizeram para a Feira Mundial de Seattle, em 1962, The House of Science, em que o espaço circular era contornado por telas múltiplas e o espectador assistia sentado no chão. Também as formas, daqueles tempos, eram orgânicas. Os Eames substituíram o aço e as velhas tecnologias por materiais aconchegantes, como tecido, lã e madeira compensada, bem como as novas tecnologias de cadeiras coloridas em material plástico, que transmitiam uma sensação de felicidade típica das décadas de 50 e de 60. Paradoxalmente, essa idéia de felicidade também tinha algo de sinistro, como uma arma de outro tipo. Era outra maneira de dizer: “Nós somos felizes e vocês não são. Temos tudo isto e ainda sorrimos!” O intenso bombardeio de imagens em Glimpses of the USA funciona como um enorme sorriso de auto-complacência. O sorriso como uma arma. Em seu livro Sociodynamique de la culture, de 1967, Abraham Moles fala sobre como se tornou impossível acumular sabedoria do jeito que o faziam os eruditos de séculos atrás. Atualmente, somos bombardeados com toda essa parafernália que cria um mosaico cultural, do qual todo mundo acaba tendo uma compreensão distinta. Os Eames trabalharam muito com a noção de que um discurso linear não era mais possível, talvez por sermos bombardeados com imagens demais, informações demais, idéias demais. Portanto, deve ser criada uma trilha específica selecionando-se esse material. Charles e Ray Eames não queriam comunicar uma mensagem que fosse boa para todo mundo. Isto remete à cultura do consumo. Os consumidores podem fazer suas opções, reorganizar o meio em que vivem, criar seu próprio conhecimento. Portanto, não se trata de comunicar uma mensagem, mas de construí-la, criá-la, tal como um cardápio chinês, uma diversidade de possibilidades na qual a pessoa pode construir seu próprio meio ambiente. BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO COM KATE GLAZER 1 N.T.: Com as inovações tecnológicas no campo da cinematografia, o vídeo passou a ser considerado um meio de comunicação artístico; o expanded cinema seria um destes novos tratamentos da imagem. Gene Youngblood foi um de seus criadores. era de cerca de 2,5 metros. Os assuntos eram muito simples. Eu usava imagens que eram distorcidas por espelhos flexíveis. Uma dessas imagens era de uma pessoa com uma lente na mão; a lente se dirigia para o que ele apontava. Atualmente, é muito fácil fazer esse tipo de coisa. A tecnologia de hoje é brilhante. Meu médico me mostrou um equipamento que usam e que é extremamente avançado, se comparado com aquelas coisas primitivas daquele tempo. o outro lado do cais, subia-se uma escada, passava-se a uma sala pessoas chegavam a esse mezanino e era ali que se projetavam as imagens. Meu interesse nessa relação era o de tentar levar o espetáculo para um espaço mais amplo. O projeto para desenvolver aplicativos de informática na zona rural da Índia é um exemplo do que quero dizer por espaço mais amplo. Em termos diretos, nada tinha a ver com arte. De uma maneira geral, eu achava que era legal usar qualquer imagem que pudesse fazer e, desde o início, estava particularmente interessado em usar um tipo específico de arquitetura em meus trabalhos. Ou fazer arquitetura para cada obra, ou usar um espaço com características muito especiais, que se adequasse à imagem que eu tentava fazer. Imagino isso como se fosse a natureza. Você dá um tempo, tem uma idéia, ela evolui lentamente e então o espaço deve ser de uma determinada maneira. Com o filme e a projeção, você pode manter acumulado um pequeno catálogo de imagens que pode utilizar no espetáculo. As imagens irão mudar o espaço, seu aspecto, sua sensibilidade, sua natureza. Elas têm outro tipo de conteúdo de memórias, mas um outro aspecto do trabalho com filme e projeção é a forma pela qual o tempo é mensurado e esse é um dos elementos que utilizo. Eu o penso da mesma forma que os músicos pensam o tempo. Você tem um certo ritmo e uma determinada idéia e, mais tarde, uma outra idéia repercute na primeira e assim sucessivamente. Portanto, é possível fazer essas coisas com projeção, assim como ao vivo. Integrando um todo. Às vezes, pode parecer desarticulado; às vezes, demasiado suave, o que também é legal. Depende da natureza do trabalho. Para o projeto da Índia, Billy Kluver foi convidado a fazer uma proposta para desenvolver material educacional para aldeias indianas. Era um projeto do E.A.T. Sem entrar em detalhes, dá para imaginar os aspectos políticos e incomuns do projeto, pois a maioria das fundações – em especial, as norte-americanas – é vista com bastante ceticismo devido ao uso que a CIA fez de fundações. Pode haver pessoas decentes fazendo coisas decentes, mas foram bastante desacreditadas. Colaborando com a proposta que foi elaborada, tínhamos uma equipe que incluía um colega ou uma pessoa ou um rapaz com conhecimentos de hardware e um psicólogo. A proposta foi desenvolvida em torno de uma cooperativa de laticínios. O pessoal da cooperativa fazia duas visitas diárias a duas diferentes aldeias para lidar com o leite de búfalo. Isso permitia que fossem enviadas as fitas às aldeias, obter de cada aldeia o retorno sobre o material que continham as fitas e levá-las de volta para revisar, editar, alterar ou adicionar material para que se tornassem mais inteligíveis para as pessoas a quem se destinavam. Era uma oportunidade de obter um retorno significativo da comunidade sobre que material interessava e qual não interessava. Era um projeto maravilhoso. No princípio, o espetáculo parecia mais natural que as outras coisas, o que eu não compreendia. Quando era criança, um dos trabalhos que mais me excitaram e emocionaram foi quando vi um grande palhaço norte-americano, Emmet Kelly, fazendo uma imagem. Fiquei atordoado. Olhei em volta e não conseguia acreditar que as pessoas ali presentes não sentissem o que eu sentia. É o mesmo com o cinema mudo. Parece normal você ver coisas teatrais cuja única linguagem é a visual, como com Buster Keaton. Essas pessoas delimitam uma área de representação e teatro que foi completamente esquecida pelos chamados dramaturgos – com exceção de Beckett e mais alguns. Mas os dramaturgos “profissionais” já o ignoravam completamente e agora, com o cinema sonoro, continuam ignorando. Parte do meu papel era dizer “Tudo bem, mas não mandem este pessoal para as escolas de cinema de Nova York ou da Califórnia porque ali podem acabar com o que eles ainda possam ter em termos de desenvolver sua cultura.” As pessoas que estão no poder sempre querem ensinar a fazer as coisas da maneira “certa”, mas não compreendem que se você toma um produto que tenha sido culturalmente poluído por outra coisa, aquela maneira pode não funcionar. Talvez fiquem assustados com os Muppets, quem sabe? Mas isso não se faz, as coisas têm que vir da própria cultura dos povos. Meu objetivo era tentar limitar a poluição cultural. A poluição cultural seria a idéia de desenvolver uma imagem, ou uma técnica de edição, que não seja natural para uma pessoa nascida naquela aldeia. Limitar essa poluição é apenas uma maneira de deixar que o material seja criado fora da comunidade que o está utilizando. Com a globalização, é impossível evitar muita coisa, mas é muito melhor deixar as coisas acontecerem de uma forma natural. Basta ver o que está acontecendo agora com essa nossa espécie de globalização que mata o resto do mundo. Depois de 9 Evenings, o grupo Experiências com Arte e Tecnologia (E.A.T.) evoluiu bastante. Juntei-me ao E.A.T. porque detestava a idéia de que a relação era somente com artistas e tecnologia, e não com a sociedade como um todo. Já pude observar pessoas que se preocupam com o chamado desenvolvimento do mundo artístico; continuam fazendo tudo o que faziam antes. Não arriscam a oportunidade de serem apanhados por uma onda e transportados para uma praia, em outro lugar. Eu sempre procuro outra oportunidade. Tentei integrar imagens da comunidade por meio de minha estética. Meu envolvimento foi no sentido de tentar empurrar meu trabalho para dentro de áreas que sejam mais abrangentes. Em 1970, Billy, Julie Martin e eu elaboramos cerca de 50 propostas 08 No âmbito do E.A.T., também trabalhei com espelhos esféricos e suas propriedades. Já fizera experiências com eles antes de usá-los no projeto de Osaka. No pavilhão de Osaka, utilizamos um espelho esférico de 210 graus. Era feito dentro de uma abóbada geodésica – imaginada por um artista, Buckminster Fuller –, mas a abóbada em si nada tinha a ver com o espelho. A abóbada era uma concha que lhe dava apoio. É aí que acho que está uma grande idéia do que mundo funcionar. Numa semana, o tema poderia ser alimentação e a TRADUÇÃO DE JÔ AMADO equipe, ou o indivíduo que vencesse – que podia ser de Paris, de significa trabalhar em colaboração. Os técnicos que construíram a abóbada estavam habituados a fazer aqueles grandes satélites meteorológicos. Mas como fazê-la? Pensou-se, então, numa estrutura FILADELFIA _ 23 DE JULHO DE 2004 Moscou, da Tanzânia ou de Beijing – teria que mostrar como era possível alimentar toda a população do mundo. Alimentando-a, não haveria fome no mundo por dez anos. A segunda rodada era ganha não tinham muita familiaridade com portas giratórias e a coisa não iria funcionar. Alguém decidiu, então, que dentro da abóbada haveria A organização World Game foi criada por um grupo eclético de pessoas, das mais variadas origens. Eu trabalhara com Buckminster Fuller no departamento de Projetos e Planejamento na Universidade uma pressão negativa que sugaria o espelho para dentro da do Sul de Illinois, onde ele morava. O departamento gravitava em torno dele e de suas filosofias, teorias e métodos. Outras das pessoas potável para todos. A terceira rodada seria vencida pela equipe ou inflável. Até aquele momento, a única maneira de manter a pressão era por meio de uma porta giratória, mas naquela época os japoneses pela equipe ou indivíduo que conseguisse demonstrar a possibilidade de fazer a mesma coisa em sete ou oito anos, ou, como alternativa, eliminar a desnutrição e a fome, ou ainda possibilitar o acesso a água envolvidas tinham uma formação que ia de planejamento urbano a indivíduo que demonstrasse que tudo aquilo poderia ser feito em seis anos e ser muito mais barato usando-se uma tecnologia diferente. Você via a você próprio e todo mundo suspenso no espaço, de cabeça para baixo, mas ninguém via essa mesma imagem total. Essa é outra literatura inglesa, passando por arquitetura. Em certo momento, até tivemos trabalhando conosco uma pessoa formada em Teatro Na semana seguinte, o tema seria energia, depois assistência médica, idéia que já venho trabalhando há muito tempo. Não existe nada escrito que diga que todo mundo deve ver a mesma coisa ao mesmo Experimental porque havíamos compreendido que a oficina do jogo construção – e foi essa a solução. tempo. O artista teria que compreender que aquilo que faz pode ser do mundo tinha muito a ver com teatro e nossos conhecimentos de teatro eram aceitáveis, na melhor das hipóteses. visto de maneiras diferentes em lugares diferentes, o que acho ótimo. depois educação, depois meio ambiente e, eventualmente, se poderia voltar ao tema da alimentação. O objetivo de tudo isso era desenvolver estratégias cada vez mais irresistíveis, tão atraentes que acabassem sendo adotadas. Um pequeno grupo de pessoas da cidade David Tudor projetou um ambicioso sistema de som que permitia que os sons fossem produzidos dentro da abóbada. O som podia Aquilo que viria a ser legalmente o World Game Institute foi criado em 1972. De início, chamava-se Earth M.D., nome que foi dado por de Genebra, na Suíça, participou do jogo de logística e colocou em envelopes as soluções para erradicar a varíola. Realizaram uma aumentar ou diminuir, ou ocorrer à volta da abóbada, e podiam existir dois sons que se interpenetravam – era um sistema acústico Howard Brown e por mim. Foi criado sem Fuller. Ele estava em Carbondale e o Earth M.D. foi fundado em New Haven, Estado de pesquisa para descobrir quantas vacinas, médicos, enfermeiros, técnicos de saúde e helicópteros seriam necessários para levar a cura muito complexo. Fujiko Nakaya, um artista japonês, elaborou um Connecticut. Seis meses depois, Fuller me visitou; estava se mudando às regiões mais remotas, assim como quanto seria necessário para o sistema de névoa e toda a construção ficava coberta pela névoa. Foi um projeto em que realmente houve colaboração e, de certa maneira, para Filadélfia e queria saber se eu queria voltar a trabalhar com ele. Acabamos entrando num acordo e nos transformamos no World fazer. Seria algo como 300 milhões de dólares. Enquanto faziam o levantamento final da pesquisa, constataram que os Estados Unidos pode ser chamado de obra de arte. Game Institute. Elaboramos um sistema de programação artística. Vários artistas De início, o jogo do mundo que desenvolvemos era relativamente simples – para as pessoas aprenderem sobre o mundo, de certa e a Europa Ocidental gastam quase 200 milhões de dólares por ano tentando impedir a entrada do vírus da varíola em suas fronteiras. chegavam e desenvolviam um programa, ou tocavam um programa. David Tudor tocou. Pauline Oliveros, que é uma compositora, também tocou. Tínhamos uma dançarina japonesa, pois também tentávamos integrar a participação da comunidade artística japonesa. Trabalhar com a comunidade também fazia parte integral das apresentações com telefone que fiz. Havia um vínculo com o E.A.T., mas era independente. Usava tecnologias muito mais abrangentes, forma, um jogo de trocas – mas tornou-se uma ferramenta muito sofisticada. A simulação evoluiu, tornando-se um jogo de economia sócio-política que envolvia a solução de problemas e o levantamento de necessidades de uma determinada área – e não mais fichas e pauzinhos. Naquela época, achávamos que a ameaça mais séria à existência da usava o que estava ali, na sociedade. A primeira vez que o coloquei humanidade era a guerra termonuclear entre russos e norte- em prática foi em 1970. Depois, em Nova York, Houston, americanos. Queríamos, então, explicitar isso, mas sempre num Minneapolis... A última vez foi em Leeds, na Inglaterra, em 2002, com telefones celulares. Peguei um mapa e marquei lugares de onde as pessoas ligavam, de cabines públicas. Ligavam para a central, onde eu estava, eu atendia e gravava a conversa. Depois, ligava o gravador de volta e dava algumas pistas para que chegassem aos lugares marcados. Os diálogos eram mais ou menos assim: “Estou na esquina das ruas tal e tal e há um prédio do outro lado da rua e uma mulher passeando com o cachorro etc.”, numa descrição do local em que estava a pessoa. “Há um guardanapo branco no chão” e aí, de repente, você tem a imagem da mulher passeando com o cachorro em um lugar e um guardanapo branco no chão em outro. “Está chovendo e estou com frio.” Eu ficava extasiado com a idéia dessas coisas sendo combinadas. Quando descreviam alguma coisa, comunicavam como se fosse uma imagem e você arquivava uma coleção delas. Você escutava uma por uma, mas estava tudo gravado. O que eu gosto é de escutar no rádio, numa emissão pública, mas neste caso, na praça central da cidade, existiam aqueles alto-falantes potentes e as gravações eram emitidas por eles. Foi maravilhoso. Afinal, uma rádio não é apenas uma coisa tecnológica; também é cultural e social. É muito mais abrangente e muito mais interessante que um monte de tubos. Se fosse num programa de rádio ao vivo teria sido espetacular. contexto que abrangesse o restante dos problemas do mundo, tais como o meio ambiente, a destruição da floresta tropical, a diminuição da camada de ozônio ou o analfabetismo de 900 milhões de pessoas. Substituímos pela guerra nuclear a destruição do planeta e o prejuízo ao bem-estar de bilhões de pessoas que não têm acesso a água potável, a assistência médica e a educação. As gravações eram relacionadas a um local específico, feitas com pessoas daquela cidade. As pessoas tinham uma relação de mais informação, mais específica, de maior sensibilidade com o lugar e passavam uma experiência que eu não teria podido ter por mim mesmo. Traziam-me, realmente, algo de novo. Funciona de uma maneira que eu gosto porque as pessoas que participavam estavam se divertindo. E você acaba tendo um belo mapa de um lugar específico, feito pela justaposição de relações aleatórias entre todos aqueles locais marcados e os locais de onde as pessoas me telefonavam. E o mapa ainda contém imagens culturais porque a linguagem das pessoas é sensacional, assim como aquilo que vêm. Num caso desses, trabalho como uma espécie de editor. BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER M EDARD G ABEL MEDARD GABEL É EX - DIRETOR EXECUTIVO DO WORLD GAME INSTITUTE INC ., UMA ORGANIZAÇÃO SEM FINS LUCRATIVOS PARA A PESQUISA , PLANEJAMENTO E EDUCAÇÃO , QUE POR ELE FOI INICIADA EM PARCERIA COM BUCKMINSTER FULLER . DESENVOLVEU INÚMEROS PRODUTOS , INCLUINDO O WORLD GAME WORKSHOP , UMA SIMULAÇÃO GLOBAL QUE FUNCIONA EM CIMA DE UM MAPA GIGANTE DO MUNDO , DO TAMANHO DE UMA QUADRA DE BASQUETE . ELE É O CEO DA BIGPICTURESMALLWORLD INC ., CUJA MISSÃO É TRANSFORMAR O EXCESSO DE INFORMAÇÃO EM CONHECIMENTO SENSATO QUE LEVE À AÇÃO EFETIVA : WWW . BIGPICTURESMALLWORLD . COM Fuller era conhecido como arquiteto, mas não se formara em arquitetura. Na verdade, apesar de ter 46 diplomas honorários, foi expulso de Harvard duas vezes. Tinha uma visão abrangente, em perspectiva, do mundo. Pelos padrões tradicionais, um arquiteto é contratado por um cliente. Fuller entendia que isso não bastava para que fizesse arquitetura; achava que você podia ser um arquiteto que se antecipa no tempo, que você podia ter o mundo como seu cliente. Num passo seguinte, Fuller diferenciava o cliente ideal de um arquiteto, que queria um planejamento global eficaz, e o indivíduo que queria uma casa ou a empresa que queria um edifício, ou uma fábrica, ou um planejamento urbano ou regional. E como procurar um cliente que é a totalidade da humanidade, os 100% dos seres humanos do planeta, ao invés de procurar pessoas ricas que possam pagar pelos seus serviços? Ele achava que se fosse esperar que um eventual governo das Nações Unidas o contratasse para esclarecer alguns desses problemas, já estaria morto. Entendia que tinha um direito moral de olhar para o mundo e seus problemas a partir de uma perspectiva global, desenvolvendo soluções para esse cliente – o mundo e a humanidade. Entendia que tinha um direito moral de descobrir soluções desde que não violasse os direitos dos outros, ou aquilo que se chamam os graus de liberdade. Em algumas de suas conferências, Fuller explicava, bem-humorado, que se ele estivesse na calçada conversando com você e visse um piano despencando de um arranha-céu sobre sua cabeça, sentia-se no direito de empurrá-lo para longe. Embora fosse rude empurrá-lo, quando o piano se esmagasse no chão você diria: “Opa, obrigado.” Ou também poderia ficar furioso e dizer: “Por que você me empurrou? Eu estava tentando me suicidar.” E ele responderia: “Ora, você deveria ter dito. Você ainda tem o direito de se suicidar, se quiser. Mas não o faça de uma maneira tão desastrada, no meio da multidão.” Ele achava que tinha o direito de intervir desde que não violasse os direitos da humanidade. Esse era um dos princípios éticos do seu trabalho – resolver o problema de uma maneira que respeitasse o ambiente, a integridade dos direitos individuais e seus graus de liberdade. E ele trabalhava bem isso. O primeiro jogo do mundo foi apresentado, mas não construído. Fuller foi escolhido para ser o arquiteto da Feira Mundial de Montreal, em 1967. Foi selecionado porque já havia sido antes o arquiteto de outros pavilhões dos Estados Unidos. Quem o contratou foi a United States Information Agency (USIA). Fuller bolou uma enorme abóbada geodésica com mais de 80 metros de diâmetro. Há quem pense que foi sua obra-prima. Ele fora contratado para fazer apenas a concha acústica do edifício, mas, sendo do jeito que era, também propôs um conteúdo para o edifício. Esse conteúdo, em suas palavras, era um grande jogo logístico. Era um espaço no qual jogariam pessoas do mundo inteiro, tentando descobrir como fazer o 09 Perceberam, assim, que tinham em mãos um argumento muito forte – uma ótima análise custo-benefício, em termos econômicos. Procuraram, então, responsáveis europeus e norte-americanos e disseram: “Olhe, nós não queremos caridade, não queremos que façam um gesto nobre de altruísmo e nos digam ‘Pegue aqui os 300 milhões de dólares e suma’. O que queremos é que vocês invistam 300 milhões de dólares neste programa e lhes propomos um retorno de 5, 10, 20 bilhões de dólares nos próximos 10, 15, 20 anos. Vocês não vão perder e nós vamos ganhar, todos vamos ganhar. Vocês vão lucrar com isso, o mundo vai lucrar com isso e a varíola será erradicada.” Fuller e o pessoal, inclusive eu próprio, tínhamos a convicção de que era possível utilizar argumentos irresistíveis, economicamente irresistíveis, para livrar o mundo do analfabetismo, da fome, da água poluída, da desnutrição, da falta de assistência médica. É possível usar tal tipo de argumento para todas essas coisas. Buckminster Fuller inventou o jogo do mundo observando o mundo como um todo e com a convicção de que os recursos e tecnologia são suficientes para todos nós. Foi isso que o fez começar a pensar sobre o que deveríamos fazer para que o mundo trabalhasse para o bem de todos no planeta. Aprendeu a ter essa perspectiva planetária quando estava na Marinha. Via os estrategistas militares do Pentágono, em Washington, ou os do Kremlin, em Moscou, olhando para o mundo de uma perspectiva global, mas também como uma situação de um jogo. Como podemos testar nossas idéias antes de implementá-las? Ele achava que a idéia de “jogos de guerra”, enquanto ferramenta de planejamento, poderia ter algum mérito. Os objetivos dos jogos de guerra daquela época eram relativamente diabólicos, como dizia Fuller: tratava-se de destruir um número cada vez maior de pessoas, de um modo bastante preciso e num ritmo cada vez mais rápido. Mas Fuller achava que aquela ferramenta dos “jogos de guerra” podia ser utilizada de outras maneiras. Ao invés de se ter um jogo de guerra mundial, Fuller sugeria que se tivesse “um jogo de paz mundial”. Ele combinava suas experiências na Marinha com tecnologia e com recursos, às quais qualquer pessoa poderia ter acesso por meio da inserção dessa ferramenta dos “jogos de guerra” na criação do jogo da paz mundial. O objetivo desse jogo da paz era o de adotar uma atitude como “Será possível?” para, em seguida, se testarem as hipóteses. Será possível cuidar de 100% da humanidade, num padrão de vida mais alto do que o que temos atualmente, utilizando a tecnologia e os recursos de que dispomos? Se for possível, como fazêlo? O jogo da paz mundial pretendia testar várias estratégias, teorias e tecnologias para ver se funcionavam. Esses eram os valores básicos subjacentes à idéia do jogo da paz mundial – que, mais tarde, seria abreviado para world game (jogo do mundo). O jogo também pretendia ser uma ferramenta que nos ajudasse a identificar, definir e resolver problemas locais e globais num contexto global. Essa ferramenta possuía um outro aspecto revolucionário: ao invés de ser apenas para jogos de guerra para uma elite composta pelo Pentágono e pelo Kremlin e mais alguns generais e almirantes, o jogo do mundo destinava-se a toda e qualquer pessoa. Pretendia criar um espaço ao qual você ou eu, ou colegiais parisienses, ou estudantes da Universidade de Iowa, ou da África, ou da China, pudéssemos ir e ajudar a descobrir o que era necessário para termos um mundo melhor. Visava propor estratégias concretas para os setores de alimentação, vestuário, habitação e educação para, em seguida, os testar. Será que funciona? Fuller supunha que, à medida que um maior número de pessoas começasse a participar do jogo, elas criariam um número cada vez maior de estratégias viáveis e irrecusáveis no sentido de melhorar o mundo. Não era apenas um exercício acadêmico. Fuller percebeu que, ao simular o mundo a partir de fatos e números concretos – a mesma informação manipulada pelos especialistas em planejamento – o jogo conseguiria minar a estrutura de poder. Era a mesma informação que eles “antecipatório” referia-se a lidar com o tempo de forma que se tivesse espalhadas e bem à vontade, enquanto na China ficavam espremidas. utilizavam, mas olhava o mundo a partir de uma perspectiva global, certeza de resolver o problema para hoje e para amanhã, para as Era uma experiência em densidade populacional. holística. gerações futuras. Se os jogadores começassem a bolar argumentos irrecusáveis para combater a fome, a desnutrição, o analfabetismo e a falta de A outra parte de seu pensamento tinha a ver com projetos: a mostrando a seqüência histórica em que o homem surgiu no mundo. integração da arte e da ciência, uma integração lógica das coisas. Se No ano 3.000 antes de Cristo o mundo tinha de 50 a 60 milhões de assistência médica, o mundo teria que os aceitar. O que o jogo do mundo pretendia era mostrar que a cooperação para tornar o mundo você é um bom cientista e um bom artista, você junta as coisas de uma maneira criativa e contribuindo com novas formas de resolver pessoas. Introduzíamos, então, uma linha do tempo: aparecia projetado num telão o mundo de 3.000 A.C. e sua população e as melhor, para resolver os problemas daquele “pessoalzinho dali”, era problemas, de olhar o mundo. Era isso, em parte, o que Fuller queria pessoas iam entrando para o planisfério. Todas tinham na mão uma no interesse de todos, ainda que nem todos compreendessem que tinham interesses comuns. Pela simulação, você tinha uma visão do dizer com “projeto-ciência”. Devemos olhar o mundo de uma maneira diferente daquela pela qual o olhamos hoje, que nos trouxe até onde folha de papel e um cartão, em cima do qual constava quem eram – China, Índia, África etc. – e no canto superior direito a respectiva todo, de como tudo era interligado. Portanto, ajudar outros povos nada tem de altruísmo ou de caridade; é em seu próprio interesse. estamos; temos que pensar para fora dessa caixa. data. Explicávamos-lhes que quando surgisse a data que lhes Fuller previa que, com essas estratégias, na medida em que Ele imaginava uma ética do planejamento, que seria um conceito de constituíssem argumentos fortes em termos econômicos, e não mais com menos. Uma solução seria melhor se você resolvesse um uma peça de teatro mostrando o crescimento populacional. No ano 3.000 A.C., há uma única pessoa no mapa; passam-se mil anos e apenas morais, todo mundo sairia ganhando. Não era algo como: “Eu ganho, você perde”, ou “Você ganha, eu perco”, mas, sim, “Ambos problema com menos recursos, ou com menos energia, ou com menos tempo gasto. Era isso que ele sempre procurava fazer. E foi daí entra outra pessoa; passam-se mais mil, e mais duas pessoas entram. São saltos bruscos e no ano 1.000 depois de Cristo já entra um ganhamos”. E, portanto, há um motivo para continuarmos. Esses, de certa maneira, são os princípios filosóficos e a história inicial do que que veio a abóbada geodésica. Era uma forma de encerrar enormes volumes de espaço utilizando o mínimo de material. Portanto, era bocado mais de gente. O tempo vai passando, os séculos XV, XVI, viria a ser o jogo do mundo. melhor do que algo que pudesse encerrar o mesmo espaço com dez vezes mais material. Também isso remete à sua perspectiva global de pessoas no mapa. E da década de 60 até nossos dias, mais umas 50 entram no mapa. Percebe-se, então, essa corrida de último minuto pessoas pelo mundo afora – sobre seus recursos, seus problemas, que não podemos dar casa a toda a humanidade e fazer tudo o que é necessário, se gastamos material como se gasta atualmente. Se para o planisfério e você observa o crescimento populacional, sua densidade e sua distribuição de maneira experimental. Não é um suas opções e sobre o que cada um pode fazer para resolver os problemas do mundo. Uma dessas ferramentas, educacional, é uma queremos proporcionar habitação para o mundo – casas como as que existem nos Estados Unidos, ou talvez na França – vamos precisar de raciocínio intelectual do tipo “A população mundial duplicou desde a simulação desenvolvida pelo World Game Institute pouco após a morte de Fuller, mas baseada em suas percepções. Tratava-se de um muito mais material para criar habitações na África, na Índia ou na qual as 50 pessoas entram para o mapa nos últimos 30 segundos da China, utilizando nossa tecnologia. Ele se interessava em saber como mapa gigante, do tamanho de uma quadra de basquete – cerca de 20 era possível fazer muito com pouco, de modo a se poder cuidar de metros por 10. Nele eram colocadas pessoas comuns, como colegiais, todo mundo no planeta. linha de tempo, você compreende de uma maneira completamente diferente. Você compreende com o corpo, assim como com seu coração e sua mente. A oficina do jogo do mundo pretendia universitários, empresários, ou mesmo dirigentes políticos, que ficavam responsáveis pelo mundo. Uns ficavam responsáveis pela O mapa propriamente dito foi feito pelo Departamento de Cartografia mundial, tornando-as acessíveis às pessoas de uma forma África, outros pela China, ou pela Índia, Sudeste Asiático, América do Norte ou Europa. O mundo era dividido em dez grandes regiões. do Departamento de Defesa norte-americano. Fizemos o primeiro em 1981 e, nos 10 ou 15 anos seguintes, fizemos mais uns quinze. Fuller experimental e não apenas intelectual. Haveria cem pessoas nesse mapa gigante, cada uma desempenharia morreu em 1983. Esse foi um dos últimos projetos em que trabalhou. o papel de 1% da humanidade (63 milhões de pessoas, em termos Criou um planisfério diferente de qualquer outro porque era o mapa A primeira apresentação que fizemos com o planisfério foi na Universidade do Colorado, em Boulder, durante uma conferência atuais), as quais conduziriam o mundo a um futuro de dez, vinte, trinta anos, lidando com os problemas que o afetam atualmente. mais preciso do mundo. Como era geômetra, Fuller descobria como tirar informação de uma esfera, tornando-a plana e sem qualquer sobre geopolítica. A segunda foi durante a conferência anual da Sociedade do Futuro do Mundo. Na época, Ronald Reagan era o Permitia que essas pessoas aprendessem uma enormidade sobre o mundo, sobre seus problemas e como resolvê-los num prazo curto de tempo. Aquela oficina do jogo do mundo levava cerca de três horas e meia. Fuller achava que, antes de fazer qualquer coisa, as pessoas devem ter conhecimento dos problemas e dos sistemas em que estão implantados. distorção aparente. No planisfério de Mercator (1578), a Groenlândia tem quase o mesmo tamanho da América do Sul. No de Fuller, a Groenlândia tem 1/10 do tamanho da América do Sul. No planisfério de Mercator, não existem os pólos, Norte e Sul. No de Fuller estão lá, assim como a Antártida, que representa um patrimônio muito valioso dos bens da Terra. Sua inexistência num mapa significa, no mínimo, uma distorção. O planisfério de Peters é outro festival de distorções. A forma da África não é aquela. Peters deve ter pensado que, como no planisfério de Mercator a área total estava distorcida, então iria corrigi-la, mas também a distorceu e não é aquele o planeta em que vivemos. O planisfério de Fuller também tem a vantagem de que você pode dobrá-lo e voltar a criar um globo. Era muito preciso porque os militares tinham ajudado nas informações e queriam ter os mapas mais precisos do mundo. Esses mapas foram usados por pilotos de grandes aviões a jato, para navegação. Constavam do planisfério todas as cidades do mundo com mais de 5 mil habitantes, assim como as que tivessem aeroportos. Era incrivelmente pormenorizado. Olhando para esse mapa de pé, é como se você estivesse quase 5 mil quilômetros acima da superfície da Terra. O ônibus espacial entra em órbita à altura de seu calcanhar. Seu pé tem quase 500 quilômetros de comprimento. As cordilheiras mais altas do planeta, como o Himalaia, são do tamanho de uma moeda. presidente dos Estados Unidos e estávamos no apogeu da Guerra Fria. Algumas pessoas discutiam “racionalmente” o holocausto termonuclear. A idéia de vencer uma guerra nuclear era loucura total, mas os russos e os norte-americanos estavam construindo 50 mil armas nucleares. Foi o que se soube naquela época e ninguém tinha conhecimento disso. Um pequeno escritório de consultoria em Washington, o Center for Defense Information, dirigido por exoficiais da Marinha norte-americana que eram pacifistas, divulgou essa informação e nós pensamos: “Vamos mostrar o que isso poderia vir a ser no mapa gigante.” Calculamos as dimensões da área territorial que, em média, a explosão de uma arma nuclear deixaria inabitável para os seres vivos pela escala do planisfério. Constatouse que seria o equivalente ao tamanho de uma moeda de 10 centavos. Compramos 50 mil fichinhas fosforescentes desse tamanho, de um colorido laranja vivo. Durante a oficina do jogo do mundo, a determinada altura colocamos todas as 50 mil fichinhas no mapa. Pensando em termos matemáticos, se você multiplicar por 50 mil a área daquele pequeno círculo, você terá condições de pavimentar toda a massa de terra do planeta. Se você fosse colocando as fichinhas uma a uma, seria uma coisa; mas nós não o fizemos: despejamos todas elas de dentro de recipientes enormes. Foi uma experiência incrivelmente dramática, muito forte. Despejávamos as fichinhas no planisfério e percebíamos imediatamente como ficaria o mundo se persistisse sistematicamente aquela insanidade e fossem utilizadas todas aquelas armas. As pessoas ficavam estupefatas, em silêncio, e algumas choraram. O que fizemos, em seguida, foi deixar perdurar aquele silêncio. Então aconteceu uma coisa curiosa: em cada apresentação que fazíamos – e fizemos algumas centenas – as pessoas começavam a catar as fichinhas do chão sem que ninguém lhes dissesse para fazê-lo. Alguém iria lá e pegava uma, ou a chutava com raiva, e aí iria todo mundo e jogavam as fichinhas de volta para os recipientes. Nós usávamos essa experiência para alertá-los: “O que vocês acabaram de fazer é o que é necessário fazer no mundo real.” E, em geral, quando terminava a oficina do jogo do mundo, dizíamos: “Vocês acabaram de participar deste jogo do mundo, mas o verdadeiro jogo do mundo está lá fora e vocês têm que ir lá fazer o que acabaram de fazer aqui.” O jogo utiliza várias ferramentas. Um de seus objetivos é educar as No início, as informações que coletamos para viabilizar o jogo do mundo foram obtidas dos anuários estatísticos das Nações Unidas. Um dos aspectos pouco conhecidos da ONU reside na enorme quantidade de informações que detém. Dados sobre saúde, da Organização Mundial da Saúde. A FAO tem as melhores estatísticas sobre agricultura, alimentação, pesca ou fertilizantes. As estatísticas sobre energia vieram de Nova York, assim como sobre população. A área cultural era com a Unesco. Coletávamos informação sobre todo o mundo sistematicamente, junto ao Banco Mundial e a todas as agências da ONU. Uma das coisas que rapidamente descobrimos foi que as informações de todas aquelas agências eram incompatíveis. O World Game Institute criou uma ferramenta chamada Gerente de Informação Global, cujo objetivo era reunir toda a informação em único lugar e, eventualmente, mostrar as incoerências. Outra das idéias de Fuller era a de que a maneira de olhar o mundo está vinculada a sistemas: ele planejava ferramentas intelectuais, conceituais, que ajudavam a raciocinar sobre o planeta. A noção de sistemas não pretende meramente registrar uma deficiência de energia nos Estados Unidos ou a falta de energia elétrica nos países em desenvolvimento. Se um problema específico está inserido no sistema energético e se o sistema energético faz parte de um sistema econômico, então você deve analisar o sistema por inteiro porque, ao examinar as partes em seu conjunto, talvez você comece a compreender que o sistema ecológico e ambiental pode ajudar a resolver esse problema de energia. Você poderá notar que existe um grande desperdício saindo do sistema energético e sendo jogado no meio ambiente. E que, se você reduzir esse desperdício, poderá ganhar em eficiência: você poderá resolver seus problemas de energia. Examinando os problemas ambientais de uma maneira holística, você também poderá ver que, das fontes de energia fundamentais – o sol, o vento, as marés, a água, todos os ciclos e sistemas que nos proporciona o meio ambiente –, também é possível obter fontes de energia limpas e renováveis. Fuller propunha que se examinassem os grandes sistemas, e não os problemas isolados. Também propunha que se visualizasse “o grande quadro”; não apenas grandes sistemas, mas também em termos de tempo. Não queria resolver os problemas do aqui e agora porque, até elaborar uma solução, já seria amanhã e o problema seria diferente e maior – haveria mais gente no mundo, por exemplo. A solução, portanto, não está em resolver o problema com que você lida hoje, mas também os problemas de amanhã, de forma a eliminar as causas do problema, e não apenas seus sintomas, o que envolve pensar por antecipação. Fuller chamava uma parte do que fazia no jogo do mundo “projeto-ciência abrangente antecipatório”. A perspectiva do sistema inteiro era abrangente; o Bem no início do jogo do mundo, enchíamos o mapa de gente, correspondia no telão, se dirigissem para o planisfério. Era, portanto, XVII, XVIII, XIX e XX. Quando se chega a 1960, já há umas 50 década de 60”. E daí? Mas se você participa dessa experiência, na contribuir com informações importantes, tais como a da população Uma das coisas interessantes sobre essa perspectiva é que, quando você olha o mapa de pé, você vê toda a Terra, você vê através das fronteiras e dos obstáculos, através da geografia do mundo, vê como somos um único planeta. O astronauta Buzz Aldrin, segundo homem a pisar na Lua, disse-me que ficar em pé olhando aquele planisfério fora a melhor experiência que já tivera desde que voltara da Lua. Quando você está ali, a Lua não está a seus pés, ou a seus ombros, ou à sua frente; ela está a pouco mais de 2 mil metros acima da superfície da Terra, à altura de um edifício de 70 andares. O sol está a 40 quilômetros de distância. Em perspectiva, é muito interessante. Voltando à moedinha que representa as montanhas mais altas: pegando a mesma moeda e deslocando-a para os oceanos, ela representaria a média, em profundidade, de um oceano. Se você pega duas moedas e coloca uma na parte superior do planisfério e a outra no “chão”, entre as duas moedas se encontrará 99,99% de toda a vida existente em nosso planeta e tudo aquilo em que ela se apóia, ou seja, a biosfera. O problema, aqui, é que 90% de toda a vida e de tudo o que a apóia é da espessura da tinta com que o planisfério foi impresso. Uma coisa extremamente fina transformou um pedaço de rocha sem vida numa casa próspera e aconchegante para todos nós, criaturas biológicas. É essa folha incrivelmente fina e delicada que envolve nosso planeta. O planisfério, portanto, era um instrumento muito útil e poderoso para transmitir todo tipo de informações sobre o mundo e sobre a relação dos vários países e continentes entre si e o curto espaço de interligação que existe entre nós todos. Usávamos o mapa de maneiras muito interessantes. Colocávamos pessoas no mapa: a China e a Ásia Oriental tinham 23 pessoas e só 5 para a América do Norte porque a China e a Ásia Oriental representam 23% da população mundial e os Estados Unidos somente 5%. Nos Estados Unidos, as pessoas ficavam mais 10 Após uma dessas apresentações, uma atriz bastante conhecida, Ellen Burstyn, que ganhara o Oscar, disse-me que o que estávamos fazendo era teatro de vanguarda. No início, ninguém tinha consciência de que estávamos nos envolvendo em algo que, de certa forma, era teatral. Despejar as fichinhas no planisfério, por exemplo, foi um ato teatral incrivelmente forte e melodramático. As pessoas da platéia seriam os atores. Para nós, essa era uma perspectiva interessante. Também tínhamos consciência de que se chamássemos a experiência de teatro de vanguarda ninguém viria. Estávamos montando cerca de cem oficinas por ano, envolvendo milhares de pessoas e, por isso, não podíamos passar a chamar a experiência de teatro de vanguarda; chamávamos uma simulação do mundo e de seus recursos e problemas. Atualmente, o pessoal de uma sociedade sem fins lucrativos, a o.s. Earth, assumiu o projeto do jogo do mundo. Deixaram de usar o planisfério. Creio que devido aos custos de ter que transportá-lo e montá-lo nos lugares onde se apresentam. O jogo demonstrou a necessidade de mudanças fundamentais para o mundo e, na realidade, demonstrou dramaticamente essa necessidade de transformações, permitindo que as pessoas passassem pela particularmente útil. Existem muitas críticas das noções de “cosmos” e de “cosmologia”, e com razão. Existe sempre um risco, com tais palavras, de que a definição se torne muito vaga. Em sua Crítica da dos quais existiam no tempo de Bacon, mas, em sua maioria, só seriam descobertos muito depois: máquinas que produzem luz, máquinas voadoras, engenhos de guerra, geladeiras, ou seja, uma experiência de perceber que tais transformações eram necessárias em nome do próprio ser humano. Cada oficina do jogo era diferente porque os participantes eram diferentes. Às vezes, pessoas encarregadas de dirigir os Estados Unidos, ou a África, ou a Europa, assumiam a liderança e operavam transformações mais ou menos Razão Pura, Kant passa várias páginas discutindo as Idéias cosmológicas; explica que não é possível existir uma ciência do cosmos enquanto um todo. Quando se questiona o princípio ou o fim do universo, a imortalidade ou a redenção da alma, entra-se no reino da especulação; é impossível a existência de respostas seguras, pois relação, no estilo de Jules Verne, de todas as tecnologias que, posteriormente, seriam inventadas por uma sociedade tecnocrática. O que se percebe pela mistura com imagens bíblicas e uma retórica profundamente religiosa é que, para Bacon, esse ícone da revolução científica, a ciência não se opunha à religião, mas a reformava a radicais – formando organizações políticas ou econômicas unificadas da Europa, Rússia e África, por exemplo, ou da China e América não há experiência empírica em que se possa basear uma opinião. É evidente que o conceito de cosmologia é fundamental para a partir de dentro. A observação empírica do mundo é uma forma de adorar a Deus por meio da valorização de sua obra. O Latina. Havia uma variedade de maneiras de buscar solução para os problemas do mundo que refletia as distintas ideologias políticas dos participantes do jogo. Se achassem que deveria ocorrer uma transformação, ela ocorria; se não achassem, não ocorria. Quem antropologia e para a história das idéias, assim como leva à questão da hermenêutica – a dependência da parte em relação ao “todo”. Portanto, as críticas à noção de cosmologia normalmente se alinham com as críticas da idéia de cultura e com o projeto de interpretação. desenvolvimento de novas técnicas de agricultura é uma forma de melhor desempenhar a caridade, aumentando a fertilidade da terra para que um maior número de pessoas possa partilhar as bênçãos de Deus. realmente deveria participar desse jogo do mundo seriam os representantes das grandes empresas, responsáveis pela maior parte Tentar compreender a cosmologia de um povo, num local e numa época distintos, implica adotar a posição de ir além do que se ouve e da destruição. São exatamente essas as pessoas a quem o jogo é dirigido. De que adiantaria irmos falar com organizações ambientalistas sobre coisas que já conhecem perfeitamente? Você tem que se dirigir às pessoas que, realmente, têm algo a ganhar. se vê e tentar apreender percepções, as categorias de compreensão destes “outros”. Mesmo que alguém tente “voltar às raízes”, tornarse parte da sociedade em questão e até se transformar – submetendose aos rituais necessários para se tornar um membro daquela BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER sociedade –, haverá sempre mil maneiras de provar que não o conseguiu. Resumindo, portanto, é praticamente impossível desvendar o que se passava na cabeça de um hipotético interlocutor, ou descrever sua visão do mundo, ou cosmologia, como uma espécie de reconstrução imaginária. J OHN T RESH JOHN TRESH , ESTUDOU ANTROPOLOGIA E HISTÓRIA DA CIÊNCIA , É UM FELLOW DA HUMANITIES INSTITUTE DA UNIVERSITY OF CHICAGO . ESCREVEU UM LIVRO INTITULADO MECHANICAL ROMANTICISM : REBUILDING THE COSMOS IN THE FRENCH INDUSTRIAL REVOLUTION . TRADUÇÃO DE JÔ AMADO exemplo, é emblemático de uma certa versão do tema romântico, la vie religieuse. As festividades anuais estabelecem tais pontos de referência para reivindicar pertencer a um determinado grupo. E é precisamente isso que faz um cosmograma: coloca essa totalidade numa forma concreta, como ponto de partida para novas interpretações e ações – relações sociais, com outras culturas, com convidando o espectador a se identificar com ele, a chegar aos limites da razão, a mergulhar num mundo dinâmico e natural. Em outras telas de Friedrich, vêem-se cruzes, templos, ruínas de cemitérios, que sugerem uma espécie de sensibilidade humana numa relação específica com a natureza, com a história da humanidade, com a entidades naturais, com animais ou plantas – e também estabelece divindade. Porém, sempre isolada – e, em alguns casos, até como uma relação entre esferas ou níveis ontológicos distintos – o mundo terreno, o mundo espiritual, Deus e os ancestrais, os pontos em que se cruzam. É muito mais concreto do que uma cosmologia. Uma cosmologia não pode ser vista: a “visão do mundo” está encerrada na negação – da ciência e da mecânica. diferentes – não é um padrão mental monolítico que determina seu pensamento e sua ação. Portanto, um cosmograma sugere uma cosmologia como parte de práticas comuns, uma representação feita por quem tem uma visão do mundo daquela visão do mundo. ensina estudos religiosos, usou-o quando falava sobre o Tabernáculo, o templo construído por Moisés que é citado no final de xodo, o segundo livro da Bíblia. O Tabernáculo é uma representação da totalidade do cosmos – dos poderes de Deus, de sua relação com os homens e do lugar destes na relação com o restante da natureza. Na época, eu estudava mudanças em representações do cosmos que ocorreram na França no início da revolução industrial. Vinha usando o termo “cosmógrafo”, mas este o restringia à escrita. Procurava um termo que não somente abrangesse a escrita, mas também imagens, objetos, formas arquitetônicas, gestos rituais, “ações”. Decidi olhar o texto que Damrosch havia discutido. Aquela passagem do xodo é um pormenorizado manual sobre como construir o templo dos hebreus. O papel que desempenha na narrativa da Bíblia é o de reconstituir os vínculos e a aliança entre Deus, os homens e a natureza, vínculos que antes já haviam sido rompidos – o pecado original, o dilúvio, a torre de Babel.O tabernáculo é um templo com o projeto arquitetônico, o material utilizado – e até as cores – escolhidos por Deus. Adapta-se à vida religiosa de um povo nômade: é portátil. Como uma tenda, pode ser desmontado e reconstruído e é feito a partir das tecnologias que os hebreus dominavam naquela época: trabalhos de metal, tecelagem, desenho, tintura, trabalhos de madeira – e, a tudo isto, Deus chama pelo nome. No centro há um altar, a Arca da Aliança, e dentro, as tábuas da Lei, uma relação de todos os membros de todas as tribos e todas as recomendações sobre ética e alimentação: listas dos vários tipos de ações, dos vários tipos de povos, de plantas e de animais. Em outras palavras, o texto do xodo é um cosmograma que contém o projeto do lugar santo que iria encarnar as relações entre os homens, Deus e a natureza. Também consiste numa maneira interessante de refletir sobre o modo de trabalho empregado e o papel da tecnologia. O resultado de tal construção foi que, no sétimo dia, telas de Caspar David Friedrich são exemplos clássicos de simbólicos que Durkheim analisa em seu Les formes elémentaires de primeira vez que ouvi o termo “cosmograma” foi numa conferência, na Universidade de Columbia. David Damrosch, que A de Laplace, eram cosmogramas dessa linha de raciocínio, escritos em linguagem matemática. É aqui que se dá a grande polarização entre uma visão mecânica do mundo e o romantismo, muitas vezes considerado como uma reação à industrialização e à mecanização. As E é aqui que entra a noção de cosmograma. Sempre existem alguns pontos de referência fundamentais que permitem às pessoas chegarem a um acordo – de certa forma, como os ritos e objetos 24 DE JUNHO DE 2004 _ águas da objetividade, se tornara dominante – e os Principia Mathematica, de Newton, depois atualizados pela Mécanique Celeste, cosmogramas que se adaptam a tal visão, estabelecendo um vínculo simbólico entre o interior e o exterior, entre a luz (tanto enquanto realidade, quanto metáfora) e o ato de enxergar, mas de uma maneira individualista, isolada da sociedade e da tecnologia. O famoso quadro do homem visto de trás e olhando para a tempestade no mar, por cabeça das pessoas. Também permite uma abordagem mais simples: a pessoa pode se relacionar com um cosmograma de maneiras PARIS Por volta de 1800, a percepção da natureza como uma grande máquina, um relógio que conhecemos como o grande divisor de No entanto, essa polarização não é tão clara. Na primeira metade do século XIX é possível encontrar vários projetos de reforma que poderiam ser chamados “romantismo mecânico” e nos quais se podem ver tecnologias, máquinas industriais e a vapor, os primeiros passos da eletricidade e máquinas modernas para observação científica, como o daguerreótipo, como meios de recriar a totalidade humana e natural, superando as divisões sociais, culturais e Meu interesse, assim como o de outras pessoas que estudam a intelectuais, para reunificar o mundo. Em meados do século XIX, Auguste Comte partiria da rejeição a quaisquer referências a espíritos invisíveis, à metafísica, às coisas que não podem ser vistas. Porém, história da ciência, é estudar a ciência ocidental tal como os antropólogos fazem com uma cultura estrangeira, compreender como diferentes tipos de atividades e de práticas se encaixam numa na última parte de seu trabalho, Comte passaria a encarar a ciência como um instrumento para construir uma sociedade global completamente unificada, tomando por modelo a igreja católica. Essa percepção absoluta do universo e como essa percepção muda com novas descobertas, invenções, mudanças políticas ou contato com outras tradições. Para compreendermos a cosmologia ocidental, a é a Religião da Humanidade. A sociologia não é, de forma alguma, o estudo meramente teórico e desinteressado da sociedade; pelo contrário, conclama à transformação da sociedade, à sua forma como funciona, também é importante diferenciar o cosmograma da cosmologia, pois atualmente já existe uma disciplina científica especializada, chamada “cosmologia”, que estuda a história reconstrução, partindo-se do modelo explícito da igreja católica, num mundo unificado em que não existem mais Deus nem fé que não tenha sido posta à prova – tal como existiu um Deus na Idade Média do universo físico. É interessante observar a conexão entre astronomia e teologia que, em algum ponto do passado, se separaram. Portanto, tentar apreender a “cosmologia” do Ocidente que foi, finalmente, destruído de uma vez por todas com a Revolução. A diferença está em que as crenças não são mais estabelecidas através da autoridade, mas através da razão e da observação. moderno implica problemas complicados; e só é possível ter uma visão de conjunto refletindo sobre como a ciência e a tecnologia se adaptaram a outros padrões de que dispomos para que o universo fizesse sentido. Pesquisadores de campo coletaram muitos cosmogramas, tais como símbolos religiosos e objetos de outras culturas. Há muito tempo, a antropologia se interessa pela religião, o que não é estranho, pois o advento da antropologia, no século XIX, coincidiu com o declínio da religião. Mas as religiões “deles” se contrapõem, muitas vezes, à “nossa” ciência. Em termos de um estudo do mundo ocidental, poderíamos pensar em cosmogramas fora do padrão religioso daquele do Tabernáculo. Muitas vezes se diz que ocorreu uma grande ruptura entre o conhecimento da natureza e o restante da sociedade e que isto teria tido início com a revolução científica e se teria completado no século XIX. Então, a ciência teria tomado o lugar da religião. Mas ao observar os cosmogramas a partir de alguns marcos de nossa Em 1849, com Catéchisme positiviste, Auguste Comte criou os novos ritos para a era positiva da humanidade. Criou uma série de cosmogramas que tinham por objetivo descrever a sociedade em sua totalidade, dividida em suas distintas classes e funções, nos moldes de todas as diversas ciências pelas quais se conhecem todos os fenômenos naturais, os vários segmentos biológicos, físicos e astronômicos da realidade, toda a história da espécie humana. Mas iria mais longe: o que ele construiu foi uma espécie de tabernáculo, uma nova arca da aliança. Comte regrediu, atualizou e reavaliou o imaginário cristão, porém com novos objetivos, uma vez que queria restaurar a unidade cosmológica num mundo sem transcendência. O calendário positivista – gravado na parede norte da Biblioteca de Sainte-Geneviève – é um imenso cosmograma. Assim como durante a Revolução Francesa, quando se decide recriar a sociedade, é necessário começar do zero. O calendário positivista dá novos nomes aos dias da semana. Atribui a cada mês uma etapa essencial no e depois que os sacerdotes haviam cumprido os necessários rituais na ordem adequada – Deus apareceu aos hebreus e, na forma de uma nuvem, ocupou toda a tenda. Tratava-se de uma máquina para fazer Deus aparecer. O fundamental é que o vínculo com Deus se tornou possível por meio de uma construção descrita de maneira extremamente pormenorizada e técnica; e, nessa construção, há lugar New Atlantis, um famoso texto de Francis Bacon, do início do século desenvolvimento da sociedade humana até aquela data: do politeísmo, do fetichismo, do monoteísmo, do feudalismo, da metafísica até o estado “normal”, trata-se de um processo cumulativo XVII, também conhecido como fundador do método científico e da observação empírica da natureza, é outro cosmograma e, na de construção, ao contrário do estado “patológico” de eras antigas. Há, por exemplo, um dia de homenagem à mulher, quando todo realidade, utiliza e atualiza alguns aspectos do Tabernáculo do xodo. É a história de um grupo de marinheiros, todos bons cristãos, que se perdem no mar e acabam sendo levados a uma ilha desconhecida. mundo é lembrado da contribuição que deram as mulheres à história da humanidade. Para Comte, a mulher representa a emoção, o lado afetivo da humanidade. Portanto, essa organização do tempo, esse para toda a sociedade e para toda a natureza. O importante – e é por isso que difere da cosmologia – é que falamos de um texto que resultou numa prática concreta e organizou objetos, tecendo-os entre si num inventário completo ou num mapa do mundo. São saudados por representantes da “Casa de Salomão”, o qual usa roupas de linho de cor vermelha, azul e violeta, justamente as cores do Tabernáculo, e é carregado numa padiola decorada de cristal e modo de procurar um novo foco de atenção e essa redistribuição social de crédito também participam numa psicologia e numa ética. Na realidade, é uma parcela da natureza da pessoa que é chamada e ouro e com uma imagem de um anjo, tal como assento de misericórdia de Moisés. Ele fala sobre os tesouros existentes no templo – a “Casa de Salomão” –, sobre inventos de todo tipo, alguns homenageada nessa festa, a força ativa da afetividade é convocada para reforçar a unidade do cosmos que o sistema descreve e cria. As festas lembram aos homens a história da sociedade, dando história, é possível ter um quadro diferente. quando as pessoas terminaram o trabalho e entraram no santuário – É a materialidade do cosmograma que o torna um objeto 11 visibilidade às relações sociais do presente. O calendário, tal como a lidamos com símbolos mas, sim, com as coisas como elas são. de um sujeito – e na idéia do «kosmotheoros», de um sujeito capaz ciência aplicada da sociologia, é uma tecnologia para curar a Atribuímos às ciências a faculdade de se desvincularem de todas as de uma distância, no fundo infinita, pois possibilita a apreensão do sociedade contemporânea, para trazê-la de volta a um estado “normal”. questões sociais e éticas. Podemos ter uma compreensão de como funcionam alguns domínios do conhecimento, tais como o mundo sob todas as suas faces. O mundo, ao contrário, é sempre a perspectiva – pelo menos a perspectiva, para permanecer na ordem conhecimento das estrelas, das propriedades de certas plantas, de do ver. Estas preocupações de Comte podem parecer estranhas à luz do que normalmente se considera o positivismo – em especial nos países de língua inglesa, nos quais, em geral, significa confiar na observação e na lógica empíricas, rejeitando tudo o que sejam valores, fé, ou emoção no reino do conhecimento. Penso que esse equívoco a respeito do positivismo vai de mãos dadas com um equívoco maior da sociedade ocidental que ainda carregamos. Existe uma corrente de pensamento muito disseminada que sustenta, de certa forma, que se o homem domina os segredos do átomo, o código genético e os Deus, da magia etc.; mas não sabemos como tornar explícitos os vínculos entre esses domínios distintos. A história da ciência e os estudos científicos começam a mostrar como as ciências se baseiam sempre em circunstâncias sociais específicas que só posteriormente serão esquecidas ou apagadas. O que esses pesquisadores vêm tentando fazer – e tenho a felicidade de estar entre eles – é reconstituir todos esses vínculos, essas situações sociais que tornam possível um “conhecimento autônomo” num dado momento. JCR _ Você diz: «m mundo é um meio no qual se está». A ecologia seria, para você, o paradigma do pensamento do ou sobre o mundo ? JLN _ Eu fabriquei a palavra «ecotecnia», que não soa muito bem, para dizer que o «oikos», o lugar familiar, o lugar de vida, não é mais «natural», nem «familiar», nem dotado de suas próprias regras («oikonomia»), mas, sim, é inextricavelmente imbricado com a «tecnia», a transformação de todos os lugares e a dissipação dos fins claramente princípios que combinam e recombinam a matéria, então nosso conhecimento é forte porque se separou totalmente das questões da Portanto, a tarefa consiste em relacionar todos os diversos cosmogramas que se encontram em circulação num determinado atribuídos e, mais ainda, do «fim supremo» da humanidade ou do mundo. Havia lugares como a floresta, o mar, a praia, o campo, a moral, da política – e fala-se sobre pesquisa científica como se esta lugar, num determinado tempo, e descobrir como são utilizados, clareira (alusão a Heidegger!), ou ainda, sem dúvida, a ágora, a praça fosse desvinculada de questões políticas ou éticas. Apesar de argumentos infindáveis e de exemplos em contrário, ainda persiste como agem entre si, como contêm, substituem, ou trabalham em concordância – ou hostilidade – uns com os outros. Então será da aldeia, a igreja, o hospício, o castelo, a fazenda, o quarto, e também os desertos, as montanhas, as terras desconhecidas, as terras essa noção de uma “ciência pura” que transcende completamente todas as relações humanas. No entanto, se não quisermos cair em possível comparar esta partícula de tempo com episódios passados ou futuros. Indo mais longe, o horizonte está sempre ali, no que Lévi- proibidas, os túmulos, e tudo isso se transforma em pólos de redes, em nós e cruzamentos de vias de circulação e de comunicação. Onde todo tipo de contradições e auto-decepções, devemos reconhecer que Strauss chamou “antropologia” por oposição à etnografia: a havia paisagens e países, há, cada vez mais, tecidos e fluxos. Quanto ainda nos encontramos naquela situação fundamental de ter que juntar tudo num único mundo. No início da industrialização, as comparação entre cosmogramas de mundos muito diferentes, tanto no espaço quanto no tempo. Num outro plano, especialmente numa à «dissipação dos fins», é um desenvolvimento do que precede: aos lugares correspondiam fins determinados – à igreja, a oração; ao mar, pessoas o reconheciam: Comte, o Sacerdote da Humanidade, ou o grande naturalista e cosmógrafo Alexander von Humboldt, ou o exposição de arte internacional, devemos perguntar: “Que tipo de cosmograma é possível conseguir a partir de todos estes a pesca; ao deserto, o retiro etc. Porém, hoje, os fins imbricam-se indefinidamente uns nos outros: por exemplo, pesca-se para comer astrônomo François Arago, tentando unir o conhecimento sobre a cosmogramas locais, tão diferentes, às vezes até contraditórios?” Não peixe, mas, para se poder pescar, é necessário preservar as espécies natureza de suas sociedades, suas orientações éticas, sua ordem social, em uma única representação. Tal como os cosmologistas de sei o suficiente do idioma grego para dizer se existe um plural para a palavra cosmos. Mas cosmograma, decididamente, pode ser – ou até criá-los em viveiros – assim como as possibilidades de pesca, as rotas marítimas, o manejo dos equipamentos de pesca, seu Dogon, os manipuladores de marionetes de Bali ou os xamãs de Jivaro. conjugado no plural. controle etc. São necessárias convenções internacionais, protocolos sobre a natureza, a estrutura e o tamanho dos equipamentos, sobre a BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX . circulação dos navios. É preciso regulamentar o comércio. Para isso, Seria possível se perguntar quais são os limites do conceito de são necessários engenheiros, contadores, inspetores, gestores. Escolas, instituições, sistemas de formação. A cada um desses cargos cosmograma. Para além dos exemplos citados, haveria uma espécie de cosmograma ideal? E, tentando utilizar o conceito no presente, que tipos de representação seriam adequados ao mundo esquisito e complexo em que vivemos? Aqui, não posso deixar de pensar na relação entre este projeto de pavilhão e o atlas Mnemosyne, de Aby Warburg, uma coleção de imagens que sugere o espectro de polaridades e fantasmas que habitam a mente do homem moderno, à medida que este adapta tradições antigas a um novo momento – tal como uma maneira, diz ele a certa altura, de acertar as contas e se recuperar da esquizofrenia de nossa cultura. Existe, inevitavelmente, uma continuação com alguns projetos do Iluminismo, como a Enciclopédia – que d’Alembert chamou de mappemonde: os cosmogramas podem ser inventários de tudo o que existe e existiu; podem voltar atrás em toda a história da humanidade; como nos romances de Balzac, podem descrever uma história natural da sociedade. Mas os românticos, com sua obsessão pelo fragmento, nos conduzem a perguntar se há alguma coisa que pode não ser considerada um cosmograma. O fragmento nos remete à totalidade; qualquer objeto que possamos encontrar é produto de uma infinidade de relações que se espalham muito além deste instante no espaço e no tempo. Muitas vezes, existe num cosmograma um objetivo que vai muito além da mera descrição ou representação: pode ser uma redescrição, no condicional ou no futuro – não o mundo tal como é, mas como poderia ser. Pode existir uma intenção utópica, o objetivo de projetar novas possibilidades para um mundo que parecia fixo. Um exemplo recente é o dos romances de Philip K. Dick, que mapeiam pontos em que a ontologia comum escorrega, em que existem fendas na realidade, fora da qual pode emergir um mundo novo e mais completo. Neste sentido, os cosmogramas têm uma relação com o tempo como têm os ritos de passagem de todas as sociedades: o tempo liminar, no qual são suspensas as relações comuns, em que há, muitas vezes, uma recriação simbólica do mundo e da sociedade, ao mesmo tempo em que há a formação de uma comunidade fora das estruturas sociais comuns. Após a seqüência ritual, os participantes voltam a um mundo transformado, com as estruturas redefinidas, o cosmos refeito: então, o espaço de possibilidades se fecha de novo. Os cosmogramas costumam guiar essa recriação e restabilização do mundo. Podem sugerir estruturas permanentes, assim como podem confirmar sua fluidez e eventualidade. Também é importante o fato de qualquer cosmograma sempre tentar re-situar as preocupações e ansiedades de uma pessoa numa estrutura mais ampla que a individual, o grupo social, a nação ou o presente. Essa dimensão de realidade é sempre acessível: somos sempre parte de um sistema mais amplo, mas nem sempre temos consciência disso. Os cosmogramas implicam uma ecologia. Não apenas no sentido empregado pelos ecologistas, mas com o sentido que lhe dá Gregory Bateson em seu livro Steps to an Ecology of Mind. Bateson tem uma perspectiva antiessencialista que pressupõe a interdependência de todos os seres, vinculando a ecologia, em sua acepção biológica, à cibernética e ao que poderíamos chamar a história natural das idéias. Não menos importante é avaliar os cosmogramas, comparando-os entre si. Precisamos superar a idéia de que nossa sociedade não necessita tais representações – que, com a ciência moderna, já não corresponde um conjunto de funções criadas, e assim por diante. A tal ponto, que a finalidade «comer peixe» se perde, de certo modo, J EAN - LUC N ANCY JEAN - LUC NANCY , NASCIDO EM 1940 , PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UNIVERSIDADE MARC BLOCH DE ESTRASBURGO , É PROFESSOR CONVIDADO NA UNIVERSIDADE DE BERLIM E NA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA . PUBLICOU INÚMERAS OBRAS QUE ESTÃO TRADUZIDAS EM MUITAS LÍNGUAS . DENTRE ELAS : LE SENS DU MONDE OU LA MONDIALISATION - 2002 -, - 1993 - E LA CRÉATION DU MONDE AMBAS PELA EDITORA GALILÉE , PARIS . TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI WEB _ NOVEMBRO DE 2004 J EAN - CHRISTOPHE ROYOUX _ Seu livro, Le sens du monde [O sentido do mundo], parece-me que se articula em torno de duas questões: a constatação do fim (particularmente, do fim do mundo concebido como universo ou como “reunião em um”) e o tema da vinda sem fim (o desaparecimento do sentido como pro-jeto). Perda da unidade e da unificação de um lado; perda da significação como destinação, de outro. Em sua opinião, o que, fundamentalmente, torna a unidade do mundo impossível de ser apresentada? Isso implica sua eclosão em múltiplos mundos plurais e singulares (cosmogramas?) que não mais teriam a ambição nem os meios de constituir uma representação do cosmos ? JEAN - LUC NANCY _ O que torna a unidade do mundo impossível de ser apresentada é, de maneira muito paradoxal, sua unificação, porque a unidade do mundo nunca fora senão a unidade projetada sobre ele por esse por aquele pensamento, por essa ou por aquele cultura. E a representação de um «kosmotheoros» capaz da visão total do mundo era, cada vez que ocorria, tributária de uma cultura, embora nem sempre fosse a mesma e embora houvesse várias culturas alimentando a representação de um olho divino universal. Tal representação implica um pressuposto: que o mundo pode ser disposto como um objeto, como um panorama ou como um cenário integralmente visível para um espectador ideal ou absoluto. E isto é exatamente o que, sem dúvida, o mundo contemporâneo nos obriga a descartar: aprendemos, hoje, que o mundo não é um objeto nem um espetáculo. Um mundo que posso me representar em sua integralidade de mundo não é mais um mundo: é um universo, é um cosmos, é uma criação, nos sentidos mais tradicionais desses termos. Compreendemos, hoje, que um mundo é, ao contrário, um meio no qual se está e que só pode ser apreendido do interior. Está-se num mundo, e não diante dele. Do mesmo modo, pode-se dizer que nunca se vê um mundo: está-se nele, habita-se o mundo, explora-se o mundo, alguém se acha ou se perde nele... – inúmeros conceitos que estão muito longe de ser da mesma natureza que a do «ver», que implica distância, afastamento 12 nessa malha estreita de outros conjuntos de meios - e - fins. E, para «acabar» criam-se aquaculturas ou, então, fabricam-se caranguejos artificiais, outras finalidades. Em poucas palavras, seria possível dizer: os fins intermediários cancerizam os fins finais. Aliás, a palavra «câncer» indica uma nova abertura de finalidades... Como se sabe, hoje o câncer prolifera e torna necessárias muitas intervenções sobre os ecossistemas, ao mesmo tempo em que suscita pesquisas e invenções terapêuticas, comportamentos e legislações etc., etc. Produz-se uma intermediação generalizada e sem fim nos dois sentidos da palavra «fim» em francês. _ Haveria algum acontecimento na história que poderia ser indicado como data dessa mudança de sentido da palavra “mundo”, como data do início desse fim marcado pela unificação ? JCR JLN _ Sim, creio que o que nos ensinou isso e nos marcou (com e sem «s», em dois sentidos portanto) foi a primeira guerra chamada «mundial»: porque esse epíteto, muito abusivo para a aurora da «globalização» atual, deve ter surgido (desconheço, de fato, quando e como essa denominação se impôs, em concorrência com a de «grande guerra», que é mais européia e mais arcaica; trata-se de uma pesquisa a ser feita) do sentimento de uma perturbação simultânea das relações entre Estados (primeira guerra excluída da definição estrita da guerra, como Carl Schmitt a analisou: guerra se pretendendo «punitiva» em relação a um mau governo, não em relação a um povo etc.), das relações entre continentes (os norteamericanos na Europa), das técnicas (aviação militar, gás de combate etc.), das ordens de grandeza (número de combatentes, de mortos, amplitude dos meios), dos vínculos entre a guerra (as frentes) e a sociedade (nunca antes tão estreitos e intrincados), da própria consciência dos povos em relação à guerra, em relação a si mesmos etc (a «der des der», a necessidade de superar os ódios nacionais: depois da guerra, busca de encontros franco-alemães) etc. Não se acabaria de analisar os elementos de gênese do «mundo mundial» na história desse conflito. Segue-se a isso, justamente, também uma perturbação das visões do «mundo»: muito tempo após a convocação francesa de 1789 a uma universalidade democrática, apelo que permaneceu ligado às individualidades nacionais, é uma outra universalidade que desponta, não mais a de repúblicas iguais, mas a de um todo internacional ou transnacional confusamente percebido e no qual se descobre também que se tornou capaz de um desastre inimaginável até então (já um pouco pressentido, em 1870, dada a crueldade do combate moderno). _ Em que medida aquilo que se designa como mundialização ou globalização seria o sinal de uma divergência fundamental em relação à idéia de Cosmos ou de Universo ? JCR _ À medida que «mundialização» designa o paradoxo de um mundo que perde sua situação cosmológica bem marcada, que se sente lançado no indefinido de uma expansão percebida também como errância. Ele constitui mundo sem se reunir em uni-versum. JLN A partir dessa perturbação ou dessa dissipação tendencial das consistências nacionais ou culturais («França», «Alemanha», inadequada, arruinada, desmoronada – ao absoluto do sentido, a um acontecimento supremo que não se realiza. É muito delicado dizer «Europa», «Estados Unidos da América», no lugar onde um «Universo» poderia ainda estender suas esferas acima ou além dos isso porque nunca é simplesmente verdadeiro a respeito de nenhuma povos e dos Estados, de repente a topologia se embaralha, tudo se mistura e vem constituir «mundo». _ Seria possível tematizar essa mudança de representação ou de concepção do mundo como a passagem do universo ao «pluriverso»? Em que sentido, exatamente, se poderia dizer que o mundo de hoje constitui um não-cosmos ao invés de um cosmos ? JCR JLN _ Essa passagem parece-me demasiado simples. «Pluriverso» quereria dizer que em vez de se orientar para o uno, ou de se inclinar em direção ao uno, se orientaria para o múltiplo. Mas, então, não se «orientaria» mais, não haveria mais «versus». Creio que a substituição do singular pelo plural não é suficiente. Porque a unidade insiste, mas de outro modo. Não se livra tão facilmente do uno. Realmente, o uno é sua própria negação, como diz Hegel, mas essa negação não ocorre sem conseqüência. Ela trabalha a pluralidade: isto quer dizer que é necessário aprender a se referir a essa negação. Um mundo é sempre uma postulação de unidade: o mundo, o nosso – este mundo de que, em resumo, não paramos de confirmar a unidade e mesmo a unicidade recuando cada vez mais os limites de nossa exploração do universo sem aí encontrar outros «mundos» de significação, mas apenas outros mundos físico-químicos, geográficos, geológicos, e não mundos metafísicos, este mundo, portanto, exige sua unidade.. Mas como? Não mais a partir do mundo da unidade apresentável: ao contrário, sobre o modo da negação de tal apresentabilidade. Ora, isso nos leva a pensar: o que é feito de uma unidade que se retira ou que se subtrai a si mesma? Pode-se dizer que o mundo é acósmico no sentido em que não é mais «ordenado a» por uma potência superior a ele, fundadora, criadora ou teleológica. Por causa disso, tampouco é «cósmico» no sentido em que essa palavra grega implicava uma idéia de beleza harmoniosa: ele não nos apresenta mais uma imagem bem composta, semelhante a essas esferas encaixadas cuja música era tida como devendo encantar os ouvidos dos anjos. O esquema cosmológico, hoje, é o de uma expansão indefinida de um dado finito (o que implica também a possibilidade, senão a necessidade, de uma implosão, de um fim do mundo). Uma expansão, um espaçamento indefinido do próprio espaço. O mundo se afasta de si: eu não quero mais solicitar de maneira metafórica o que os astrofísicos trabalham e calculam, mas qualquer que seja a relação com seu saber, creio que é interessante dizer as coisas dessa forma. O mundo se afasta dele mesmo: ele se separa de sua própria unidade, de sua centralidade e, portanto, também de sua finalidade. _ Em que medida um mundo que não constitui mais Universo, que não é mais representável como a unidade do diverso – como Cosmos, Globo ou Esfera – pode ele, entretanto, ser o lugar do sentido? Para dizê-lo de uma forma pouco feliz, que paradigma poderia vir a substituir a renúncia a todas as intenções? Se a idéia de fim, se o fim como pro-jeto é indissociável da construção de uma história, como nomear o que vem em vez da e no lugar da história ? JCR _ Acontece que a representação do «sentido» como realização de uma significação última não é senão um aspecto muito limitado das possibilidades do pensamento. Acabamos acostumando-nos a uma representação muito estreita, aquela, por exemplo, de uma causa que explica os efeitos (por que existe água? porque houve tal combinação de átomos…), ou então um fim (por quê a água? para facilitar as trocas químicas na mobilidade do elemento...), e transpusemos isso ora para o conceito global de uma «natureza», ora para o de um «deus», ora para o de um «homem» e de sua «história», de sua «racionalidade» e de sua «prosperidade» ou então de sua «liberdade». Mas estamos, agora, no fim dessas construções de visões ou de concepções do mundo. Então, podemos descobrir que os grandes JLN grande disposição e não quero, aqui, falar apenas de grandes pensamentos (desse modo, Hegel nunca é redutível ao hegelianismo etc.), mas também das disposições íntimas e silenciosas, e mesmo mudas (incapazes de falar), de todos os homens em sua relação a menos consciente, a mais aparentemente imediata à sua vida, à sua morte, aos seus trabalhos, aos seus dias, aos seus amores. Cada disposição representada (isto é, discorrida, articulada de uma maneira ou de outra) sempre comporta nela, sob ela ou além dela uma disposição mais secreta – e talvez esta não se deixe reduzir em relação ao absoluto. Talvez ela também seja capaz de se apreender a si mesma como o absoluto, o que é completamente diferente. Isto é, de apreender seu próprio afastamento, a distensão que a tende (a morte, o amor, o sentido, o impossível...) como absoluto, insuperável e destacado do todo: absoluto espaçamento, vazio de uma abertura que não abre para nada, mas que se abre. E esse «abrir-se» seria a única – absolutamente a única – forma de «autoconstituição» sempre possível (não há «fundar-se», «engendrar-se», «realizar-se» etc. – mas há um «abrir-se», e ele abre antes de tudo o «se»). Esta seria a «espacialidade do sentido»: ele se abre. O sentido é envio a ... : e este envio é para acabar «em nada», isto é, ele é infinito. E é aí que eu faria intervirem as disposições pensante e operante: elas são as disposições, ou elas compõem a dupla disposição do «abrirse». Pensar, operar: deixar a abertura se abrir, o espaçamento se espaçar. O espaçamento da abertura seria exatamente o que substitui o projeto – mas, ainda uma vez, sob condição de que não nos enganássemos sobre o «projeto». Realmente, houve e há os projetos científico, político, técnico, ético etc. Isto é, projeções de fins e de meios coordenados a esses fins. Mas também sempre houve mais e outra coisa além disso. Sem dúvida, se posso dizê-lo, sempre, ou na maioria da vezes, houve o «jeto» puro e simples – ou então, absoluto – no próprio projeto e, em resumo, do próprio projeto. Quero dizer que o científico ou o militante dedicando-se a uma pesquisa ou a uma ação (é a mesma coisa) atribui também, ao mesmo tempo, a seu próprio «dedicar-se» um valor absoluto, aqui e agora imediatamente e absolutamente válido ou validável – em Kant, isso se chama uma dignidade - «Würde». É o valor que não depende de nenhuma projeção, mas da força da avaliação de que o «sujeito» ele mesmo está em seu «projeto», mas não em razão do «pro» da projeção: em razão do «se lançar» dentro, e mais até do «ser lançado» dentro. Se não há essa auto-avaliação absoluta e instantânea, é muito simples: é o suicídio (instantâneo ou muito prolongado na resignação terrível de uma vida inteira). É por isso, aliás, que foi possível dizer que o suicídio é o único problema. Mas a raridade do suicídio é também, em um sentido, a única resposta... O pensamento e a obra (novamente, distintas da filosofia e da arte como atividades específicas, finalizadas – o pensamento sempre aberto pelo impensável e a obra pela ociosidade) são o que, na história, supera imediatamente a história. Isso não quer dizer que tudo se torna igual, exposto e simplesmente simultâneo. Isso quer dizer que os fins projetados devem ser, eles próprios, desvinculados do «fim último» ao qual estavam ligados por algumas representações. Não só desvinculados desse fim último, mas desvinculados, além disso, deles mesmos: não aderindo cada um a si perto, tampouco o fecham, embora pareçam representar seu « fechamento» perfeito (e opressivo). O ápice da meditação religiosa de ordem superior. A co-presença não tem representação: decorre do contato e da lateralidade mais que da visão e da frontalidade. O outro não é somente o outro frente a frente, é também aquele do lado a lado, no qual é possível ignorar-se ... e a disposição operante (não falo aqui de filosofia nem de arte por razões precisas que seria necessário considerar em outro lugar). As disposições trágica, dialética e mística têm em comum persistir numa última relação – ainda que seja inteiramente negativa ou _ Vivemos, certamente, uma oscilação maior dos paradigmas, isto é, das culturas, dos equilíbrios entre culturas e internas a cada cultura. A mudança não é menor que aquela que acompanha o nascimento da cidade grega ou o do Estado moderno, ou então que a mudança que se produziu em torno do budismo assim como aquela de que resultou o cristianismo. E como essas mudanças, essa oscilação traz em si a imprevisibilidade de seu futuro, sem a qual ela não seria mudança. JLN Nunca uma época foi tão privada de representação de um princípio, de um pólo ou de um objetivo (seja ele divino, imperial, humano, natural, científico, artístico). Nunca, sem dúvida, uma época restringiu tanto sua conduta a uma espécie de sobrevivência difícil, estreita, inquieta, à qual as maiores perspectivas de domínio e de engenhosidade não fornecem nem princípios nem objetivos. Isso, de fato, está em marcha desde a primeira «guerra mundial» - mas hoje isso se torna evidente. Todas as referências disponíveis pertencem à esfera do passado, têm pelo menos um quê de «já visto, já dito». Não é mais possível dizer «amanhã será...». «No future». Mas também não há mais lugar para uma escatologia: não há presente abrindo-se para a eternidade. Não há mais tempo orientado e produtivo, não há mais presente aberto para o absoluto – e sempre o tempo, o tempo que se escoa em todos os sentidos ao mesmo tempo, para trás como para a frente, e de lado. Isso não é uma «revolução», justamente: é uma mutação, uma metamorfose, uma cesura também, um abalo, um tremor de (a) terra. Não tenho nenhum ponto de vista superior para afirmá-lo: mas a afirmação se impõe porque todo o resto se esquiva na inconsistência das formas gastas. Para concluir, não é uma afirmação que se apóie num saber, nem em resultados de uma análise, nem em recursos de uma filosofia. É uma afirmação que é afirmada em mim, sobre mim, e mesmo contra mim, pela força de uma imposição externa. _ Se existe algum sentido em querer espacializar o sentido do sentido considerando-o como co-presença, comunidade de entes, relações, é necessário pensar, simultaneamente, que o sentido possível da relação que cada um, cada singularidade mantém hoje com o mundo é uma relação”de um entre outros”: uma relação de inclusão e de imersão ? JCR JLN _ Sim, com certeza. Se o sentido está na circulação em todos os sentidos do envio ao outro, ao alhures, ao fora – e ao nada – que constitui o sentido em geral, então, de maneira estritamente correlativa, cada centro de envio, cada ponto de emissão envia a todos os outros. Mas esse envio não se dá a apreender nem a acolher por ele mesmo. «Um entre outros»: eu não domino o «entre» nem o «um» que nele se imergem e que, ao mesmo tempo, dele se distinguem. BASEADO NUMA CORRESPONDÊNCIA POR E - MAIL COM JC ROYOUX Fazer ser ou deixar ser implica, necessariamente, que isso seja tomado na co-presença, que não é apenas a dos humanos, mas a de sentido quanto todas juntas – tanto, ou seja, tão pouco. A copresença não deve constituir uma nova assunção, uma representação disposição mística. A essas três disposições, que sempre se compõem mais ou menos entre elas de modos variáveis, podem ser acrescentadas duas outras que são diferentes: a disposição pensante paradigma do tempo e da história, marcado pela antecipação e pela projeção, correlativa, desde o século XIX, ao ascendente intelectual, político e moral das filosofias da História, ao paradigma da inclusão e da imersão ? do mundo, o mundo de um instante. sentido separado, ausente, como queiram. Na verdade, nenhuma filosofia «fecha» o sentido, e as religiões, caso sejam olhadas de Aqui se apresenta o nó inevitável das grandes disposições possíveis para tal acesso: a disposição trágica, a disposição dialética, a _ Ao ouvi-lo, parece que, para você, há fundamentos para se considerar que estamos em via de viver a passagem de um certo JCR aliás, aqui esses dois termos se alternam. Ser ou fazer ser – o que? um instante de presença, isto é, de exposição ao mundo. Um instante todas as coisas do mundo. O «sentido» da co-presença não está senão na co-presença. É por isso que cada presença singular tem nela tanto se acaba. Ou melhor, ele não o compreende. Mas não é o simples absurdo (não é a liquidação do sentido). É o acesso ao sentido do insensato ou do além do sentido. … Como suscitaria ele suas roupas, seu transporte, suas imagens?… como a um «bem» apropriável, mas se desvinculando dessa apropriação e não tendo valor senão enquanto um produzir o ser – ou o fazer; pensamentos do sentido sempre comportaram, de maneira essencial, uma dimensão muito diferente: a de um sentido sem fim, de um está sempre num abandono, num desapego que convém designar como desapego do sentido dele mesmo. Ele compreende que ele não anoréxica, suceda ao frenesi de pregação da proteção ao consumidor JCR _ Será que as disposições de que você fala fazem apelo a dispositivos especiais? Seria possível entender o sentido do mundo que você tenta nomear como a construção de dispositivos suscetíveis de permitirem algumas disposições ? JLN _ Não sei. Não creio que se possa programar tais dispositivos: creio que é o contrário que sempre se produz. Disposições suscitam dispositivos, não o contrário, ou muito raramente. Um tipo de fé ergue basílicas, outro, ermidas; um tipo de política constrói palácios e um outro, quartéis. As disposições de que falo são, por outro lado, D AVID E LBAZ DAVID ELBAZ É ASTROFÍSICO NO SERVIÇO DE ASTROFÍSICA DO CEA DE SACLAY , RESPONSÁVEL PELO LABORATÓRIO DE COSMOLOGIA E EVOLUÇÃO DAS GALÁXIAS . EM ESPECIAL , É O COMENTARISTA PRINCIPAL E O CO - AUTOR DO ROTEIRO DE L ’ ASTRONOME ET L ’ INDIEN , DOCUMENTÁRIO DE SYLVIE BLUM E CARMEN CASTILLO - 2002 - 52 MN - CO - PRODUÇÃO ARTE FRANCE / EX NIHILO . TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI PARIS _ 28 DE JUNHO DE 2004 O VLT – Very Large Telescope (ou Telescópio Muito Grande) – está situado numa altitude de 2600 m, a 130 km ao sul da cidade de Antofagasta, no Norte do Chile, no deserto do Atacama. É constituído de quatro telescópios de 8,20 m de diâmetro, aos quais se juntam três aquelas que também, para nós, se fecharam ou se isolaram… Como nomear a ou as disposições que estão por vir?… Por exemplo, seria telescópios auxiliares móveis de 1,80 m. O VLT pertence ao ESO (European Southern Observatory, ou Observatório Europeu Austral), possível imaginar que uma disposição ascética, contida, até um consórcio de 11 países europeus. 13 O VLT é um conjunto de quatro telescópios de oito metros de bilhões de anos, o vazio vai dilatar completamente o universo e de uma estrela, uma estrela nascida no coração de uma galáxia que diâmetro cada um, o que representa o maior tamanho que se pode poderia até deslocar as moléculas e os átomos. Enfim, trata-se de um necessita, ela própria, de um universo ainda mais vasto para existir... obter para um espelho monolítico. Ao combinar seus quatro telescópios, o VLT torna-se o maior telescópio do mundo. Dado que cenário possível segundo o estado de nossos conhecimentos atuais; amanhã, certamente, haverá informações que nos permitirão Sentimo-nos bem próximos, portanto, desse universo de dimensões inumanas. a luz se comporta como uma onda, é possível utilizar suas compreendê-lo de outra forma. Por outro lado, não estamos interferências (do mesmo modo como ondas sobre a água interferem, convencidos de que se trate realmente de uma energia do vazio. Fala- produzindo saliências e reentrâncias) para chegar a informações que, de outro modo, não seriam acessíveis – nesse caso, detalhes muito se também de uma teoria da quinta-essência, do quinto elemento. Como uma volta às teorias de Aristóteles que recusavam a existência precisos sobre regiões do céu. No momento atual, utiliza-se essa técnica para olhar estrelas em fase de nascimento ou estrelas em do vazio e faziam apelo a uma quinta-essência, o éter. Reencontramse as idéias da Antigüidade e tem-se um pouco a sensação de um anel torno das quais orbitam planetas, o que necessita uma enorme que se fecha: o atomismo perdendo seu poder, volta-se a uma teoria precisão e da qual o VLT é a primeira etapa. A combinação de quatro espelhos desse tamanho confere ao VLT uma precisão equivalente à mais ou menos alquímica da energia do vazio. Hoje, vivemos num mundo em que há duas ou três vezes mais energia no vazio que na que teria um telescópio equipado com um espelho de mais de 100 metros de diâmetro. As primeiras imagens de interferometria acabam matéria. Um total de 90% dessa matéria é chamada “matéria negra”, porque não se conhece sua natureza e porque não irradia luz. Hoje, de sair. Desse modo, reconciliam-se quatro pontos de vista diferentes para compreender o universo, não basta mais um só olhar. É preciso em um só olhar, um olhar obtido graças ao computador. Há muito tempo já se renunciou à observação visual: como é fraca demais para adotar um olhar com facetas multicoloridas, ou comprimentos de ondas, e múltiplas escalas. Tomemos, por exemplo, duas galáxias que o olho, a luz dos objetos celestes é recolhida com a ajuda de câmeras nas quais se acumula. Um trabalho de análise informática possibilita, parecem estar isoladas numa imagem óptica. Uma outra imagem, no domínio das ondas rádio e que permite detectar o gás de hidrogênio, pouco por toda parte dentro de um metauniverso, como as bolhas de uma taça de champanha. Alguns desses universos abortariam numa em seguida, reconstituir uma imagem adaptada ao olhar humano, mostra um ponto de matéria que liga essas duas galáxias e descobre- uma imagem com cores artificiais que, no entanto, parecem bem reais. Com as interferências, o que se inventa nas telas não são mais imagens, mas a música da luz, porque a precisão espacial é obtida se que elas já iniciaram um processo de fusão que as levará, no futuro, a formarem apenas uma única galáxia. Pode-se também perceber indiretamente a presença de buracos negros, invisíveis no fração infinitamente curta de segundo e outros funcionariam e dariam origem a universos como o nosso. Desse modo, poderia haver, graças à natureza temporal das ondas luminosas. domínio óptico, mas que assinalam sua presença por uma radiação Depois que a astronomia se tornou astrofísica, isto é, depois que se descobriu que a física dos astros é a mesma que aquela que se observa na Terra, graças à decomposição da luz branca em diferentes cores, percebeu-se que se podia decodificar a mensagem da luz e chegar a medir a distância que nos separa dos corpos celestes. Na prática, mede-se o tempo que a luz levou para chegar até nós e não se descansou enquanto se procuravam os objetos mais distantes, não para cobrir a maior região possível do céu, mas para recuar o mais longe possível no tempo. Esses grandes telescópios são um tanto paradoxais, pois equivalem a abrir o máximo possível os olhos para ver um ponto que, afinal de contas, é muito, muito pequeno mesmo. Como se fosse mergulhado no céu um laser cuja extremidade fosse tão profunda quanto é grande o tamanho do telescópio. Temos os olhos maiores que a barriga, porque tentamos enxergar além mesmo dos limites de nosso entendimento para ver se vamos compreender o que for visto. E, com cada uma das quatro lentes do VLT, chega-se a encontrar pontos de luz que contêm, sozinhos, centenas de bilhões de estrelas... Galáxias vistas numa etapa que corresponde à sua primeira infância, fetos de galáxias. E tudo leva a crer que esses fetos de galáxias são equivalentes ao que devia ser nossa galáxia quando estava em fase de nascimento. Portanto, abrem-se os olhos o máximo possível para recuar à fase de infância, e tenta-se ver como nasceram os grânulos de matéria que estão presentes no universo. Mas, nessa pesquisa, somos rapidamente limitados pelo fato de que as galáxias que estão situadas entre nós e as galáxias ainda mais distantes formam uma parede que nos impede de ir além. A isso se acrescenta o fato de que recebemos apenas algumas partículas de luz das galáxias mais distantes de nós. Essas duas razões fazem com que, antes da existência dos telescópios com diâmetro de oito metros, fosse impossível atingir tais distâncias. Estávamos limitados a ver o universo tal como era quando o sol nasceu, há quase cinco bilhões de anos. O VLT permite-nos estender nosso olhar até os primeiros momentos que sucederam ao Big Bang, ou seja, 10 bilhões de anos antes do nascimento do sol, um momento muito próximo do aparecimento da primeira luz, quando se saiu da noite do universo. O céu aparece-nos como uma superfície de duas dimensões, mesmo quando se aponta um telescópio para ele. É necessário desenvolver todo um trabalho de imaginação e de teoria para estender os astros num universo de três dimensões, onde as estrelas e as galáxias assumem suas verdadeiras distâncias. Por outro lado, durante muito tempo se pensou que o mundo era constituído por superfícies imbricadas umas nas outras, com todas as estrelas dispostas numa única esfera, chamada esfera das estrelas fixas. O trabalho do astrofísico é paradoxal, porque se adota um olhar mecanizado sobre o céu, sem ter necessidade, aliás, de reconhecer suas constelações, a fim de ver cada vez mais longe, até o ponto em que atingimos os limites de nosso saber e em relação ao qual se deve, verdadeiramente, fazer um esforço para se convencer daquilo que se vê. Nosso olhar sobre o céu depende da teoria que nos permitiu desenvolvê-lo; ele é, pois, condicionado e, às vezes, serve apenas para validar ou não o que havia sido previsto. Há alguns anos, graças aos grandes telescópios, é possível detectar estrelas que morrem a distâncias importantes. Em geral, são pares de estrelas, porque mais da metade vive em pares. Quando estão demasiado próximas uma da outra, produz-se um estado de fusão: uma estrela começa a devorar a outra e, ao fazê-lo, torna-se de tal forma maciça que acaba por explodir sob a forma de uma supernova. Graças a essas mortes de estrelas, percebeu-se que a aceleração do universo era cada vez mais rápida. Teve-se um choque compreender que essa aceleração era provocada por algo que uma energia do vazio e que a época do nascimento do sol é em que o vazio começou a prevalecer sobre a matéria. Em ao se parece aquela alguns de raios X, quando devoram matéria. Isso implica a coordenação de vários instrumentos: um telescópio no solo como o VLT, um outro telescópio no céu, a bordo de um satélite e adaptado a raios-X para detectar a presença de buracos negros, ou adaptado à luz infra-vermelha para atravessar os casulos de poeira nos quais nascem as estrelas. O rigor experimental tem um preço. Implica num lento caminhar na trilha do conhecimento e que pode parecer distante de nossas preocupações espirituais, mas a ciência alimenta-se dessa capacidade do homem para imaginar muito além do que ele pode construir de forma sólida. Afinal, ela não faz senão consolidar, verificar experimentalmente uma idéia nascida no cérebro de alguém. E essa idéia está impregnada de nossa cultura, de nossos mitos fundadores... Embora não tenha o mesmo poder de consolo para a alma humana quanto uma concepção mística, a ciência é também fonte de sabedoria porque nos ensina a arte de viver no cotidiano em relação com um mundo misterioso. Impõe-nos ainda um outro amor que não aquele do conhecimento, o amor da busca de conhecimento e dessa tensão, que nos faz viver, entre o que se sabe e o que se ignora. O procedimento científico é uma ética da relação cotidiana com o desconhecido. Vivido como tal, ele só pode ser fonte de tolerância em relação ao outro com suas diferenças, quaisquer que sejam suas crenças. A idéia do filme L’astronome et l’indien1 era iniciar um diálogo com os índios que vivem na região do deserto do Atacama, no norte do Chile, fiadores de uma tradição e que vêem construir-se à sua frente um instrumento tecnológico num local antigo e sagrado que se torna hipermoderno. Com a ciência, são dois olhares que não podem ser traduzidos um no outro e que não deixam alternativa senão a aceitação mútua no respeito da coerência de cada um. Durante nosso primeiro encontro, esses índios indicaram-me que conheciam as razões de nossa presença em seu solo, onde a abóboda celeste é a mais acessível do mundo, mas queriam que eu respondesse a uma pergunta antes de aceitar o diálogo: em quê nosso procedimento científico iria trazer algo para a humanidade. Respondi-lhes com a ajuda de uma imagem. O olhar da ciência e o de sua tradição representam duas visões bem distintas do mundo. O dos índios não pode ser demonstrado cientificamente e o da ciência visa essencialmente a compreender, sem necessariamente trazer aplicação prática útil para os homens. Entretanto, é importante, a meu ver, conservar cada uma em seu próprio contexto, o qual lhe dá sentido. Do mesmo modo, cada um de nossos dois olhos vê o mundo com uma perspectiva diferente, o que nos permite ter acesso à terceira dimensão através de sua combinação. Se tentássemos fazer os dois olhares se fundirem como se fossem um só, então nunca saberíamos que o mundo possui essa terceira dimensão. Através desse diálogo e dessa relação, é essa dimensão desconhecida que se oferece a nós. Infelizmente, o problema que se coloca para a cultura indígena é o do desaparecimento de sua memória, o que parece inevitável. Entretanto, resta aos homens a possibilidade de, pela via do diálogo, se reconciliarem consigo mesmos, com essa parte de mistério que reside no fundo de nós. A simples luz de um astro, quando é decodificada sob a forma de todas as suas cores que nos informam sobre a presença de carbono, de ferro ou de oxigênio, nos ensina que os átomos que nos constituem nasceram no coração de uma estrela. Foi preciso um universo inteiro para que existíssemos. Dizia-se, antigamente, que a gente era apenas um grão de areia perdido no infinito; agora se sabe que, para que esse grão de areia exista, são-lhe necessários silício, carbono, oxigênio, ferro, muitos elementos que nascem no coração 14 Quando se decodificou a linguagem da luz, descobriu-se que as estruturas do universo – das estrelas aos zilhões de galáxias – nasceram da coagulação de estruturas menores. Recuando no tempo e, portanto, descendo nas escalas de grandeza que progressivamente construíram o universo que nos cerca, intervêm, no final da cadeia, estruturas extremamente pequenas denominadas, segundo a teoria atual, flutuações quânticas do vazio. Atingem-se os limites de nossa imaginação, mesmo da dos astrofísicos, quando se pensa que a Via Láctea, com seus bilhões de estrelas, teria nascido de um ponto infinitamente pequeno. Existem teorias que tratam do nascimento do próprio universo e, dentre elas, a do universo como “bolhas de champanha”, de Andrei Lindé. Segundo esta teoria, múltiplos universos-bolhas nasceriam um alhures, universos paralelos com sua própria história e sua própria medida do tempo – fala-se de sua flecha do tempo. Constata-se aqui que a ciência, às vezes, supera os próprios limites da ficção científica. Um dia, durante uma discussão, Lindé me confessou ter-se dedicado à ciência mais por amor pelo que ela não pode explicar do que o contrário. São os fenômenos inexplicáveis que mais o interessam, mas a falta de referenciais nesse domínio o levou a tentar afastar os limites da ciência, de modo que ela acabasse encontrando esses fenômenos. Lindé desenvolveu a idéia de que um ponto e um universo são duas coisas que podem se encontrar. Se você imaginar um universo vazio e nele colocar apenas um elétron, portanto, uma carga negativa, a presença do elétron se fará sentir em todo esse universo. Se for colocado um outro corpo, positivo desta vez, em qualquer ponto desse universo, ele sentirá a atração do elétron. Não coloquemos esse corpo positivo: compreende-se, então, que o elétron enche todo o universo com sua carga. Você coloca o menor ponto possível: ele preenche tudo. Ora, imaginemos que podemos ver esse universo de fora – é contraditório, mas imaginemos isso – e que não temos o sentido das grandezas; então, só veremos desse universo a carga do elétron. Donde a equação possível entre tal elétron e o universo. O princípio do ponto que se torna um universo abriu-lhe o caminho para sua teoria das flutuações quânticas, segundo a qual cada uma se tornou um universo. A idéia que consiste em fazer inchar o universo a ponto de fazê-lo explodir e que de um ponto fechado sobre si mesmo pode nascer um mundo não era neutra na mente de um ser que vivia no universo fechado da antiga União Soviética. De fato, graças a suas pesquisas, sua reputação permitiu-lhe sair de seu país e ir para os Estados Unidos. Seu universo pessoal viveu sua própria inflação quântica... Perguntei-me depois se essa teoria teria podido nascer num outro contexto. Da mesma maneira, pode-se perguntar-se se as teorias atuais refletem igualmente o contexto em que vivemos. Que significação atribuir à mais recente descoberta de que o universo contém mais energia no vazio do que na matéria? As grandes tradições propõem uma concepção cíclica do tempo. A noção de ciclo é associada à geometria do círculo, a forma perfeita por excelência, por ser simétrica e nenhum ponto possuir uma distância do centro diferente da distância dos outros. O quadrado é insuportável. Como aceitar essa forma cujos lados correspondem ao tamanho de uma unidade mas a diagonal tem um tamanho irracional, porque, para escrever ÷2, o número de algarismos após a vírgula é infinito. Pitágoras quase se suicidou por causa disso! Os primeiros que falaram de uma história do mundo foram os que, ao mesmo tempo, disseram que essa história era ligada a um Deus, que havia uma criação. Até o fim da Idade Média, a idéia da existência de outros universos era algo inimaginável, mas, no entanto, germinou na mente de pensadores como, de modo particular, Giordano Bruno. Na época, o universo era limitado ao sistema solar. Bruno havia imaginado que havia outros sóis, que o universo era infinito e que as estrelas eram separadas pelo vazio, uma descrição muito próxima do que se pensa hoje. Depois que Galileu apontou sua luneta para o céu, nosso olhar sobre o mundo ficou completamente conturbado. Durante mais de dois mil anos, a teoria alquimista de Aristóteles havia imperado no panteão das teorias do universo. Ora, essa teoria anunciava que só podia existir um centro – o da Terra – dado que os objetos mais pesados eram atraídos para baixo, o que era definido por esse único centro. Quando Galileu descobriu outras luas em órbita em torno de Júpiter, revelou-se a existência de pelo menos um segundo centro no universo, desmoronando toda a teoria aristotélica. Outras observações tomaram parte nesse desmoronamento, dentre as quais a observação de uma supernova, feita pelo astrônomo dinamarquês Tycho Brahé. A luz da supernova, equivalente à de uma galáxia inteira irradiada por uma estrela no momento de sua explosão final, proveniente de uma distância superior àquela da lua, demonstrava que o mundo supra-lunar não era o mundo perfeito, eterno e sem mudanças que havia sido proposto por Aristóteles. Um mundo com múltiplos centros ou sem centro acabava de aparecer e, com ele, a possibilidade do infinito. O que não deixou de acontecer com Newton. Não satisfeito com supor um espaço infinito, Newton introduziu também o infinito em suas equações matemáticas ao descrever o movimento dos astros e as forças que se exercem sobre eles. Newton e Leibniz introduziram, juntos, uma noção que abriu a porta para o mundo moderno em que vivemos, um mundo que se basta a si mesmo. Ambos eram crentes e introduziram, sem ter consciência disso, um atributo divino em suas equações quando definiram o cálculo diferencial, isto é, os infinitamente pequenos. O infinitamente pequeno é, em matemática, um número que não pode ser escrito com a ajuda de algarismos, mas que é menor que qualquer número que se possa imaginar. Tão pequeno, que é infinitamente pequeno. No entanto, dividindo esse infinito, Newton definiu o movimento, a velocidade, uma distância infinitamente curta dividida por uma duração também infinitamente curta. Um século depois, Laplace pronunciaria sua famosa frase em resposta a Napoleão: “Deus é uma hipóteses de que não precisei”, porque o absoluto, representado pelo infinito, havia entrado nas equações e até havia sido dividido nessas mesmas equações. veremos que o potássio e o sódio fluem constantemente para dentro e para fora de uma membrana, conforme são disparados impulsos C ECIL B ALMOND elétricos. Estes milhões de segundos de troca, todo o tempo, é a marca registrada das estruturas naturais. Elas evoluem para CECIL BALMOND INTERESSA - SE PELA EXPLORAÇÃO DA FORMA , O QUE O LEVOU A VENCER GRANDES COMPETIÇÕES , COMO A DO VICTORIA & ALBERT MUSEUM E O IMPERIAL WAR MUSEUM COM DANIEL LIBESKIND , O PRÉDIO DO YOKOHAMA FERRY TERMINAL COM FOREIGN OFFICE ARCHITECTS E O PRÉDIO CCTV HEADQUARTERS EM BEIJING COM REM KOOLHAAS . CECIL DEU AULAS EM YALE E HARVARD , DESENVOLVENDO UM PROGRAMA RADICAL SOBRE A GERAÇÃO DA FORMA . ATUALMENTE ELE É PROFESSOR DOCENTE DE ARQUITETURA NA PENN DESIGN . PUBLICOU NUMBER 9 - THE SEARCH FOR THE SIGMA CODE E INFORMAL ( NÚMERO 9 - A BUSCA PELO CÓDIGO SIGMA ) - 2004 – UMA MONOGRAFIA SOBRE PROJETOS SEMINAIS . ELE É DIRETOR ASSISTENTE DA ARUP - LONDRES - TRADUÇÃO DE GAVIN ADAMS LONDON _ 16 DE AGOSTO DE 2004 M estivessem. Mas então, no passado, as galáxias deviam estar mais próximas umas das outras, a tal ponto que, numa época que remonta inha teoria e abordagem emergiram de uma reação instintiva ao conceito da industrialização mecânica e ao ethos da eficiência, um subproduto do modernismo e do minimalismo. Eu rejeitei estes conceitos categoricamente. Eu comecei a duvidar da sabedoria do grande Plano, do grande P. Eu permiti que noções mais fluidas fossem incorporadas, de simultaneidade e invenção. Gradualmente, tudo isso cristalizou, no começo dos anos 90, em um processo de pensamento: o que aconteceria se tomássemos uma condição local como ponto de partida, uma narrativa local e um movimento local? Estas idéias, ao se propagarem, fazem emergir a complexidade, devido à superposição. Bem diferente de um pensamento hierárquico linear. Eu permito que a simultaneidade adentre o discurso. O que é local poderia ser um motivo geométrico ou uma idéia espacial - uma notação, uma pontuação, uma tradução. a vários bilhões de anos, deviam se tocar. Uma época em que o universo era tão denso e tão quente que deve ter explodido sob o Poderia efeito dessa acumulação de energia. A detecção da marca residual dessa época remota em que o universo tinha uma temperatura de imediatamente a justaposições e hibridizações, devido à superposição que ocorre ao longo de seu curso. Se estes não são mais de mil graus foi medida depois, confirmando indiscutivelmente, o universo tinha uma história. impulsos distintos, eles poderiam ser a mesma idéia replicada, invertida ou transformada, ou então algo acontece com eles, mas Os limites do universo foram afastados em teoria. Para que a prática, a observação, encontrasse a teoria, foi necessário esperar os primeiros grandes telescópios. Em 1946, Edwin Hubble não só descobriu que vivemos numa galáxia constituída de bilhões de estrelas, mas também que havia no universo outras galáxias semelhantes à Via Láctea. Mais ainda, Hubble observou que todas as galáxias mais se afastavam de nós quanto mais distantes de nós que, O fato do universo ter uma história é uma descoberta bastante recente, embora todas as grandes tradições possuam um mito fundador que narra o nascimento do universo. Chegar à conclusão de que o próprio universo possui uma história através de um procedimento objetivo e racional é bem intrigante. O universo também foi pequeno um dia. Depois viveu uma fase de adolescência, uma fase adulta e amanhã, quando for velho, talvez ele seja frio, suas estrelas apagadas e talvez o vazio prevaleça de tal forma sobre a matéria que o mundo será “cheio de vazio”... Ou, talvez, ao contrário, ele renasça das cinzas, visto que tudo começou um dia, há 14 bilhões de anos, a partir de uma bolha de vazio... O astrônomo, ao alongar seu olhar com a ajuda do telescópio, afastou para mais longe os limites do desconhecido no espaço até a época em que o universo inteiro estava concentrado sobre si mesmo. Ao fazer isso, afastou o último limite atrás do qual os antigos colocavam o mundo divino até a época da origem do mundo. A dimensão temporal substituiu, assim, a do espaço. Por outro lado, o deus da religião é chamado de eterno e não de além-da-lua. Com a questão do tempo, chega-se o mais perto possível do complexo faustiano do científico. Nos dois extremos da paleta dos objetos que compõem o mundo da física moderna, encontram-se dois seres físicos de características paradoxais em sua relação com o tempo: a partícula sem massa de luz – o fóton – e o objeto mais denso e maciço – o buraco negro. O fóton, por se deslocar na velocidade última, mais precisamente, a velocidade da luz. O buraco negro, por ser muito denso. Segundo a teoria da relatividade restrita, o tempo se escoa diferentemente para duas pessoas em movimento, uma em relação à outra. Segundo a teoria da relatividade geral, o tempo se escoa diferentemente em função da massa de um objeto. Que se esteja “sentado” sobre um fóton ou dentro de um buraco negro, duas posições nada confortáveis, quando se mede um tempo decorrido por menor que seja, tal duração corresponde a um tempo longo como a eternidade para aqueles que estão do lado de fora. Em outros termos, o fóton e o buraco negro vivem, cada um deles, um instante eterno... O encontro dos extremos é também o universo que teria nascido de um ponto. BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX E M . OHANIAN . 1 Documentário de Sylvie Blum e Carmen Castillo (França, 2002 - 52mn.). Escrito em colaboração com David Elbaz. Co-produção: ARTE França, Ex Nihilo. Apresentado no canal ARTE, no programa “L’Aventure Humaine”, em 26/04/2003. haver uma série de impulsos locais, que levam cada uma deles se espalha, corre e colide, justapõem-se, formam híbridos. O que se tornou híbrido ou justaposto, pode ser visto, numa escala maior, como uma nova condição local. Neste modo de organização, a natureza começa estruturar-se a partir de um fluxo quântico. Não houve nenhum grande plano que tenha formado a molécula do DNA antes dos elétrons saltarem e procurarem conexões, as coisas aconteceram reativamente. Se voltarmos à estrutura do átomo, à estrutura da molécula, à estrutura do composto, à estrutura de um ser humano, estas regras informais, estas categorizações do local, do híbrido e do justaposto funcionam operam. Deixemos que aconteça uma surpresa que coagule e forme um tipo de equilíbrio. Este equilíbrio permanece como transiente, até que uma desestabilização ocorra e outra ordem seja procurada. Assim, meu modelo é fundamentalmente dependente do tempo. O que digo conceitualmente como uma idéia para a organização, se aplica também à arquitetura, de certo modo. E é também relevante às estruturas das condições de campo como a economia, a epidemia, modelos societários, estas coisas que são parte de um processo vivo. Eu sempre me perguntei o porquê do fato das previsões da ONU em relação à sociedade, às pragas, à AIDS, seja lá o que for, sempre se tornam obsoletas dentro de um ano ou dois. A Segunda Lei da Termodinâmica é uma idéia fatalística, em que tudo se acaba. Claro que é verdade, se a tomamos como a lei de uma condição fechada. E se nada de novo acontece para desestabilizar o status quo. Mas acidentes acontecem, as idéias criativas acabam adentrando o quadro de referência, e as conseqüências são realmente imprevisíveis - elas seguem uma extrapolação não-linear, o que não é uma situação confortável que se encaixe em nossas previsões lineares. Se eu vejo que uma forma provoca algo, então traço o Plano, o grande P. - com algumas condições -, defino um limite à sua volta, e, dentro de um ano, o plano ainda estaria correto, se eu não deixasse nada mais acontecer dentro da condição fechada. Mas se um único parâmetro fosse mudado, então as previsões não se realizariam. No momento em que eu permito à condição real do mundo adentrar a equação, a imprevisibilidade entra em jogo e nosso Plano está arruinado. Precisamos ajustar-nos e mudar. Os economistas sabem disso há muito tempo. Imagine prever o mercado de ações corretamente por um ano. Estas idéias são relacionadas à teoria do caos e à teoria da complexidade. Eu estou convencido de que o mundo não é simples, que é fundamentalmente não-linear. Eu tenho uma posição diferente de certo vanguardismo na arquitetura, eu rejeito formas biomórficas. O que eu rejeito é uma cópia literal da natureza, mas não uma natureza que faz evoluir formas em que esteja envolvida uma atmosfera contínua, de perpétua mudança. O desenvolvimento de um ovo de sapo em um lago está sujeito a certas condições. A salinidade pode matar uma população, se a acidez for apenas fracionalmente diferente do que é necessário, e assim, a constante troca de informações se dá continuamente. Dentro de nossos próprios corpos, a troca que se dá no momento em que falo, dentro das sinapses de nosso cérebro, é fenomenal. Se estudarmos uma pequena sinapse, 15 acomodar completa flexibilidade, que é uma conseqüência da menor das adjacências e dimensões. A arquitetura não pode ser assim tão dinamicamente móvel. É impossível porque é uma forma macro estática. O edifício tem que ter certeza estática. Para ser interessante, no entanto, uma peça arquitetônica tem que ter certa improbabilidade dinâmica que nos envolva, que nos deixe intrigados. É como o filme Seven Minutes Before : se você passa sete telas, algo mais acontece enquanto estrutura. Quando penetramos uma boa arquitetura, algo acontece que está além do próprio edifício. Por exemplo, a transferência do peso da cúpula sobre a praça, em Hagia Sophia de Istambul, é belamente realizada, a vastidão, cria mais que literalidade. O espaço voa. Na década de 1930 houve uma moda de arquitetura que copiava a natureza diretamente - eu sempre desconfiei disso. Eu procuro como a natureza forma variedade, e quais são seus princípios de organização em unidades, em múltiplos e como estes se propagam. Eu estou mais interessado nos conceitos estruturais inatos da natureza do que ela em sua literalidade. Meu trabalho tem sido dirigido à idéia de que edifícios são construtos artificiais de uma mente humana, e portanto devem ser completamente artificiais. A mais antiga linguagem intelectual inventada são os números. Eu entendia os números como mônadas, como entidades, como as mônadas de Leibniz. Eles são coisas, sem emoção, sem psicologia e sem fisiologia. O que são? Símbolos, mas também um quantum. Interesso-me pelas qualidades que advém de um quantum. Interessome em como o universo começou e como a idéia de unidade cresceu a partir de processos que disparam processos semelhantes. Não é a literalidade que me interessa, mas a maneira como a diversidade e suas seqüências ocorrem, uma intriga real e o mistério a partir de simples impulsos. Ao encontrar uma forma, eu quero descobrir como usar pontos de partida artificiais para fazer com que algo aconteça, de tal modo que os espaços nos engajem de forma diferente, e que sejam interessantes de percorrer. Eu entendo a estrutura como pontuação e ritmo, um condutor espacial e uma metáfora. O desafio para mim é encontrar respostas cartesianas para as formas que crescem e são propagadas para fora destes processos. Ao invés de definir um limite e trabalhar “de fora para dentro”, eu estou interessado em um início para dentro, uma interiorização que se move para fora. Eu acho que Borromini realizou isso pela primeira vez em arquitetura. Eu não desenho margens externas, não estabeleço definições. Eu não tenho nada a mostrar, exceto que eu comecei com uma força motiva, e uma série de improvisações que de algum modo trabalham juntas para produzir um resultado e um significado. Daniel Libeskind convidou-me para trabalhar consigo no cenário para São Francisco, a grande ópera de Messian. Olhamos a partitura. Eu a vi deslizando em blocos, muito incomum. Era difícil refletir isso em um tipo emocional de cenário. A música era abstrata, e decidimos desenhar um cenário que nada tivesse a ver com a ópera. Os cantores serviriam como o meio conectivo, entre uma camada abstrata e outra. Libeskind propôs 49 cubos que giravam e moviam-se. Eu propus que ao invés de um movimento arbitrário, uma matriz de sete por sete números fornecesse uma estrutura para suas rotações e iluminação. Ocorreu-me que precisávamos de um motor completamente abstrato. Os números seriam usados para a escolha de seqüências, a iluminação e até os movimentos dos cantores poderiam ser abstraídos da matriz de números. Para a audiência, tudo pareceria acontecer uma só vez, mas a premissa era que, ao longo das cinco horas de duração da ópera, a compreensão aumentaria, de modo que o espectador começasse a ser informado, através de um processo de evidência, de que existia uma outra lógica oculta em ação no que parecia primeiramente como disfuncional ou caótico ou aleatório. Um exemplo deste processo em um trabalho meu mais recente foi o Serpentine Gallery Pavilion, em Londres. Ninguém entendeu exatamente como foi feito. Mas a forma foi concebida conectando uma metade de um lado de um quadrado a um terço do comprimento do lado adjacente e repetindo este algoritmo muitas vezes. Apenas duas frações 1/2 --> 1/3 guiavam toda a composição. Não se trata de matemática. Trata-se de um sistema de proporcionamento. Se começamos com um quadrado, e formos de ponto mediano a ponto mediano, e continuarmos este processo, obtém-se um quadrado dentro do quadrado, um plano para um campanário. É arquitetura clássica, um sistema fechado, um Plano. Pode-se prever a cada vez o que vai acontecer. Mas a regra 1/2 --> 1/3 é imprevisível e tem linhas que se cruzam no espaço. A questão era: como quebrar a tirania do quadrado, da margem? Minha resposta foi: se você vai de metade a um terço, e repeti-lo, você é obrigado a sair da delimitação inicial para produzir o quadrado seguinte. Se todas estas linhas do traçado inicial forem estendidas, um motivo arquitetônico acontece. Isso é materializado em uma chapa de aço e então dobrada em forma de caixa. O padrão foi coberto alternadamente com vidro e alumínio para obter um efeito de tabuleiro de xadrez. É como um jogo de criança, de realizar a forma, mas tudo começou com a premissa de sair da margem inicial. Isso também aconteceu no projeto Villa Bordeaux. Rem Koolhaas é que não temos acesso àquilo de que temos uma imagem, e àquilo particular, cuja origem se encontra em Aristóteles (e que suscitou quis que eu tentasse fazer com que “a caixa voasse”. A solução foi a que nossos sentidos nos dão acesso, esse mundo em que estamos muitas críticas ao longo dos séculos): o lugar é um puro receptáculo. quebrar com a configuração tradicional da mesa - os quatro suportes simétricos debaixo de uma carga suspensa. Eu prolonguei duas das fisicamente imersos, o mundo das substâncias, um mundo que não pode ter representação global. Nesse mundo de contingência e de Quanto ao “teatro”, é um verdadeiro teatro, um semi-círculo, às vezes um círculo inteiro. No centro, encontra-se seu utilizador. Este, colunas além das margens das arestas da caixa. Esta condição acidente, de incerteza, preciso encontrar um instrumento universal o sujeito, o destinatário do teatro, o “eu”, é o compartimento vazio extrema desprendeu a massa; e a caixa voa - ela não é diretamente que me permita orientar-me no pensamento, traçar caminhos para que faz a máquina girar - tal configuração é válida para todos os apoiada por baixo de sua carga. meu uso, é uma questão de sobrevivência. É preciso fabricar-me um “instrumento universal”. É uma construção que faz apelo a essa “instrumentos universais”: eles são destinados ao uso de um único, eles lhe permitem orientar-se na prática, ao sabor das circunstâncias. Para mim isso é informal. Com informal eu faço um trocadilho em inglês. Eu sou formal em meu método e informal na abordagem, que é também uma provocação direta à teoria de Bataille, de L’informe. Eu sou contra a noção romântica de beleza como caos, entropia. Para mim, o informal é a criação de um argumento sobre uma outra forma de buscar a síntese. Se estabelecermos delimitações rígidas, trabalhamos dentro delas, mas se começarmos de uma posição interior e trabalharmos na direção do exterior, a resposta é mais um experimento, menos redutora. É a inversão do processo de criação de forma que tem sido usada ao longo de mais de dois mil anos de arquitetura. O método ou abordagem é mais ampla que a arquitetura, é claro; ela pode levar a soluções em música ou em termos de luz. Era interessante para mim quando as pessoas planejavam uma exposição de meu trabalho sobre o informal. A mulher que trabalhava comigo disse que ela achava uma relevância na abordagem informal local versus a tradição formal como aquela entre a medicina alternativa x medicina institucional. A idéia pessoal, o local, é o indivíduo, é como você poderia levar seus próprios poderes em conta e fazer com que algo aconteça. A mensagem é de potencialização, habilitação. Qualquer um pode fazê-lo. Por exemplo: aptidão particular que é o ingenium: a capacidade para inventar e para pôr em relação sincrônica elementos heterogêneos. Essas questões tornam-se extremamente agudas nos anos 1530 pelo retorno Procura-se continuamente o instrumento universal, aquele de que a bússola (então uma invenção recente) é o paradigma: o maciço, na cultura do Renascimento, dos “tópicos”, dos sistemas de “cosmolábio”, o “timão”, a “bússola” são, aliás, títulos de repertórios classificações universais que permitem organizar tudo a que se tem acesso e orientar-se. Como se orientar no pensamento? A que de invenções. Indicam a pretensão do engenheiro de fornecer esse instrumento que vai permitir fazer tudo: orientar-se, traçar um plano, “instrumento” útil em todos os casos de figuras vou me fiar para me situar e para construir meu caminho? Esse instrumento universal por estabelecer uma ordem de batalha, desenhar um retrato, arrumar um excelência é um sistema tópico, um sistema de lugares, de jardim... e cozinhar ovos. A técnica é a única forma de universalidade à qual nós, mortais, podemos ter acesso. Nisso está a diferença em classificações, de arrumações, de gavetas dispostas metodicamente e espacializado. Muitos especialistas da tópica, filólogos, dialéticos, relação ao mundo medieval. É um mundo que não é dominado, que não tem uma ordem posta pelo divino (é paradoxal numa cultura tentaram, então, construir fisicamente esses tópicos, sob a forma, por exemplo, de “móveis universais” ou de combinações de armários e de essencialmente cristã, mas não nos esqueçamos de que o século é sacolas de couro onde se pudesse, como numa “memória” externa, depositar o material de uma história natural, por exemplo, combinando uma trama ordenadora de categorias lógicas. Quanto maior a capacidade do sistema tópico para integrar elementos, mais fácil é sua utilização, mais ele é utilizável em configurações diferentes, mais fácil é sua mobilização – portanto, é mais “portátil”. no projeto na galeria Serpentine a regra simples 1/2 --> 1/3 permite A partir dos anos 1530, elaboram-se tópicos universais, isto é, a qualquer um entender a idéia e tentar outra relação, como 1/2 --> utilizáveis em múltiplas oportunidades (como um “canivete suíço” 1/8. Isso tira o mistério de um grande gênio que já viu tudo e diz como é que vai ser. Eu digo - o que pode ser? para retomar, mais ou menos, uma metáfora da época) que se chamam “teatros universais”: são sistemas de classificação que podem “servir para tudo”. O monge florentino, que tenta classificar O universo, o cosmos, é mais um inspiração para mim do que a os milhares de sementes a partir da tabela dos lugares comuns da natureza no sentido de plantas e animais. Desde que era menino eu Suma Teológica, de São Tomás de Aquino, é um exemplo muito bom sou fascinado pela cosmologia e li tudo sobre ela. Há algo especial sobre o processo de evolução, as estratégias de evolução, o disso, pois utiliza como fichário uma simples disposição tópica (o “índice”), extraída de um livro que nada tem a ver com seu projeto. hidrogênio formando-se em elementos como o carbono - a base da vida e dos elementos mais elevados. Fascinam-me as soluções propostas por Kepler, Newton e Einstein, sobre os modelos para nosso universo. Não se trata apenas das estruturas, mas da retroalimentação e da interação entre os diferentes elementos na estrutura. Eu acho que a parte fundamental de uma nova interrogação acerca do espaço é usar o princípio da retroalimentação. Isso faz com que respostas surpreendentes aflorem a partir de inícios desconexos. O que deve ser bem compreendido é a indiferença de todo dispositivo tópico em relação ao que ele organiza. O levar em conta a estrutura como estrutura de organização, de classificação, prevalece absolutamente sobre o conteúdo. Um sistema realmente universal deve, justamente, ser indiferente ao que é classificado. É o contrário do cosmograma medieval, pois este dava acesso à ordem do mundo, revelava sua verdade, garantida pela presença divina. BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER P ATRICIA F ALGUIÈRES PATRICIA FALGUIÈRES , HISTORIADORA E FILÓSOFA . E PROFESSORA DE HISTÓRIA DA CULTURA DO RENASCIMENTO NA ECOLE DES HAUTES ETUDES EN SCIENCES SOCIALES . PUBLICOU LES CHAMBRES DES MERVEILLES , PARIS , BAYARD - 2003 - E NUMEROSOS ARTIGOS SOBRE A HIS - TÓRIA DA ARTE E DAS TÉCNICAS DO RENASCIMENTO , BEM COMO SOBRE A ARTE E OS ARTIS - Por volta da metade do século XVI, renuncia-se a revelar uma imagem verdadeira da ordem do mundo, volta-se para o “provável”: fabrica-se um “instrumento universal” como um sistema de medidas técnicas. Entre a maioria de seus conceptualizadores (não todos; há, por exemplo, uma forte corrente de cabalismo cristão), esses instrumentos recusam qualquer dimensão metafísica. O modelo da máquina como combinação autônoma de forças e de movimentos é, aqui, absolutamente fundamental. Um gênero literário aparece nos anos 1570, os “teatros de máquinas”. A segunda metade do século XVI assiste a um extraordinário investimento coletivo na técnica e na idéia da técnica: é ela que permite resolver, de modo prático e específico, cada problema num mundo do qual não se tem representação completa. Em tal contexto, um bom exemplo de “instrumento universal” é a tábua de logaritmos inventada por Napier bem no fim do século XVI. A ambição de totalidade não está mais na imagem do mundo e, sim, na coerência da “máquina”, que não é necessariamente material mas pode ser um dispositivo conceitual. É esta virada que deve ser bem compreendida. TAS CONTEMPORÂNEOS . TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI PARIS _ 30 DE AGOSTO DE 2004 J EAN - CHRISTOPHE ROYOUX _ O que se chama theatrum mundi no século XVI ? Será possível considerá-lo como cosmograma ? _ Deve-se retomar o corpus aristotélico que continua sendo a base e o substrato da cultura do século XVI. Na compreensão do mundo dada pelo corpus aristotélico, há a divisão absolutamente fundamental entre o mundo “supraceleste” e o mundo “sublunar”. Não há ordem verdadeiramente inteligível senão além da lua. Aí se pode contemplar, isto é, imaginar a mecânica celeste, os movimentos dos planetas, perfeitamente geométricos, incorruptíveis e eternos, dos quais se pode dar uma representação gráfica sob a forma de afrescos, de esferas armilares, porque, justamente, não se pode vê-los, não se tem acesso a eles, não são acessíveis a nossos sentidos. Em contrapartida, nós, pobres seres humanos, só temos acesso ao mundo sublunar, o mundo da geração e da corrupção, do acidente. No mundo “sob a lua”, tudo nasce, cresce e morre. Nele, a matéria só conhece movimentos erráticos, é o lugar das catástrofes naturais, das erupções vulcânicas, dos terremotos, dos abortos, da geração de animais monstruosos. É um mundo essencialmente trágico do qual não se pode apresentar representação global. É o mundo do acaso que supera nossa vontade de domínio. O paradoxo PATRICIA FALGUIÈRES Um bom “instrumento universal” deve apresentar uma combinação infalível de seqüências encadeadas. Quando Giulio Camillo, em 1530, propõe seu “teatro da memória” na corte de Francisco I, o sistema é extraordinariamente complicado. Ele fabrica uma máquina de madeira; uns dizem que se trata de um anfiteatro e outros, que era uma espécie de tambor com várias faces que se fazia girar. A reconstituição de Frances Yates é a mais provável: uma espécie de fichário gigante sob a forma de anfiteatro (o “tesouro de textos” que ele propõe “memorizar” é distribuído nas subdivisões do teatro) e que se ativa em vários eixos: vertical, horizontal, em diagonal. Giulio Camillo deu provas de ingenium ao conseguir encontrar princípios de encadeamentos perfeitamente justificados (foram emprestados da mitologia e da simbologia) de alto a baixo, da direita à esquerda e em diagonal. O sistema é delirante, evidentemente, é uma espécie de jogos de palavras cruzadas ou de sistema de tarôs monstruosos. Na arte da memória, que é uma forma particular de tópica, um objeto é um “lugar”. É necessário um certo número de objetos ou de imagens de objetos para constituir os lugares nos quais vai ser guardado aquilo que se quer recordar. O importante é que o lugar supõe uma exterioridade inteiramente categorial entre o que ele é e o que ele classifica. É onde se encontra a relação técnica dos modernos com o mundo. Contrariamente a uma abordagem metafísica que suporia uma relação necessária entre o continente e o conteúdo - uma identidade de substância, pelo menos um princípio de continuidade um “lugar”, topos, locus, é exterior ao que ele contém. É um puro receptáculo. É necessário admitir essa forma de espacialidade 16 dilacerado pelas guerras de religião e de que a religião não é mais um fator de ordem), um mundo ao qual se renuncia a dar uma representação global: não se tem acesso à totalidade. Além do mais, as grandes descobertas intercontinentais, as explorações confirmariam o caráter inacessível do todo. A técnica, os dispositivos técnicos, que supõem um arranjo “horizontal”, “laico”, das categorias, permitem então constituir um plano de imanência. O exercício do pensamento é concebido – na tradição do organon aristotélico que contém a preocupação humanista do uso, da finalidade – como a aplicação “técnica”, diagramática, das categorias e dos conceitos. A qualidade de um raciocínio só pode ser julgada pelo resultado obtido. Há aí uma abordagem muito técnica do trabalho da mente. Em compensação, nos outros textos que estudo, a palavra “cosmos” não é tão empregada assim. Neles, se está muito longe da preocupação com o todo que traz o neoplatonismo (cujo impacto sobre o Renascimento é preciso relativizar). O pensamento, para os humanistas e para os filólogos do Renascimento, é sempre orientado para a prática, para o usus. Aristóteles ainda fornece amplamente o substrato filosófico dessa preocupação com o uso. Os conceitos e as categorias são o equivalente do andaime que nos possibilita construir os edifícios; portanto, têm realmente uma função utilitária. Uma vez acabado o edifício, retira-se o andaime e a estrutura que permitiu construí-lo desaparece. O uso prevalece sobre a representação. A technê (de onde vem nosso termo “técnica”) é traduzida em latim pela palavra ars: todas as artes - a de governar, a de navegar, a de inventar máquinas, a de curar etc. – são “habilidades dotadas de método”, são competências que pressupõem naquele que as pratica uma reflexão sobre os princípios de sua prática, são habilidades que enfrentam as forças contingentes do mundo sublunar, isto é, o acidente, a possibilidade do fracasso. A partir da metade do século XVI, há uma reflexão intensa sobre a técnica e as técnicas. É nesse momento que os “homens da arte” – engenheiros, escultores ou oleiros – “redigem em arte”, dotam sua prática de uma reflexão sobre seus princípios, reivindicam um “método”, ou seja, se põem a escrever livros. Não nos esqueçamos de que é a esse movimento fundamental da cultura que se deve o aparecimento da literatura artística moderna, isto é, os livros redigidos pelos artistas: Cellini, Palissy, Vasari... Isto é capital: a aptidão para formular seu método é que distingue uma arte de uma simples prática “operária”. JCR _ Seria possível considerar o nascimento dos jardins botânicos dentro dos mesmos modelos ? _ Sim, absolutamente. Os jardins botânicos foram concebidos para resolver, justamente, um problema de classificação que nasceu do confronto dos velhos corpus de plantas designadas por nomes do vernáculo com, de um lado, as novas plantas desconhecidas que os exploradores traziam das Índias e de outros lugares e, de outro lado, aquelas cuja descrição, geralmente enigmática, se lia em textos latinos e gregos. É porque se tenta organizar a coexistência de todos esses objetos, que pertenciam a registros diferentes do saber, que se inventam os jardins botânicos. Tem-se aí um bom exemplo da utilidade dos sistemas tópicos. Para conceber a instituição do jardim botânico, é preciso ser capaz da seguinte operação que é, ao mesmo tempo, conceitual e prática: criar gêneros e espécies, pelo menos classes, para aí localizar objetos de que não se sabe muita coisa. É nisso que consiste a plasticidade dos sistemas tópicos: pode-se atribuir um lugar provisório a uma coisa da qual se ignora quase tudo. Trata-se de dar um lugar a algo que não tem lugar preciso, identificável, justificável, na ordem do mundo. Ao contrário do que dizem muitos historiadores, os primeiros jardins botânicos, em Pádua, em Louvain, em Pisa, não são representações do universo, cosmogramas; eles são sistemas tópicos, isto é, instrumentos universais que servem para orientar num universo incerto, do qual não se conhecem os limites nem as propriedades. Está-se muito longe de Linné. PF JCR _ Então se deveria considerar que cada forma de taxinomia, de classificação, é um cosmograma em si mesmo, que não é uma dos meteoritos e das flores prodigiosas, autômatos e modelos inícios de uma nova Era Dourada. O jardim botânico poderia ser o representação do cosmos, mas um instrumento potencial de reduzidos de máquinas. E, simbolizando o todo, esses “instrumentos” que fornecem a chave de leitura do quarto de espaço para tal reconciliação do mundo. construção do mundo como totalidade ? maravilhas: bússolas, quadrantes, setores, esquadros de todos os PF _ Absolutamente. Mas ele nunca é totalizante, nunca inclui tudo. A palavra teatro tem uma acepção lógica: é a totalidade dos casos de uma série dada. O teatro pode ser especializado (é o caso do jardim botânico), mas também pode aspirar a uma certa universalidade – é o caso, por exemplo, dos móveis-cofres universais que eram tipos etc. Um móvel-cofre universal pode também, no cerne da coleção, representar, de forma sintética, o princípio de toda a coleção: nele se encontra, em miniatura, o que está guardado nos armários, nos bufetes e em outros compartimentos desse “teatro universal” que é o quarto das maravilhas. tabernáculos, legíveis em todas as faces, ricos do maior número possível de compartimentos e de gavetas para se guardar o maior número possível de objetos. Não são representações (embora sejam ricos de imagens), mas tentativas de se dar forma à idéia de instrumento universal, são “máquinas universais” destinadas à educação dos príncipes. Trata-se de acumular, sob a forma mais sintética possível, todos os “instrumentos” que o engenho humano pode imaginar. Esses objetos não eram senão puro prestígio... Destinavam-se a lembrar ao príncipe tudo o que está “a seu alcance”, “sob sua mão”, aquilo com que pode contar para exercer sua arte própria, a arte de governar. Encontravam-se, pois, nessas espécies de pirâmides de madeira preciosa – meio tabernáculos, meio armários “Henri II” – os instrumentos da escrita, maquetes de arquitetura, de máquinas, de poços de mina, de tesouras e de serras em miniatura, pequenos brinquedos etc. Tudo isso arrumado de modo a formar uma tópica universal. É evidente que o príncipe só “utilizava”, de forma lúdica, uma ínfima parte disso, um pouco como, em nossos dias, a maior parte dentre nós utiliza apenas uma parte ínfima das potencialidades de um computador. Porém, apesar disso, reivindicamos uma idéia total da máquina, exigimos ter uma representação completa de tudo o que ela pode fazer. No século XVI, considera-se a máquina como um dispositivo do qual se deve apresentar todas as configurações imagináveis. Daí o aparecimento JCR PF _ Acaba no fim do século XVI e no início do século XVII, no contexto da reconquista religiosa, a contra-reforma católica que não se adapta muito a essa espécie de laicismo pragmático, a essa É uma combinação de séries. Ele funciona pela organização diagramática de conceitos e de categorias. Não é esse, absolutamente, o caso de um Wunderkammer. Reunir um quarto de maravilhas é um exercício tão aleatório quanto as oportunidades de encontrar esse ou aquele objeto material, é um celeiro, um tesouro, uma coleção submetida aos acasos da coleta empírica. Nada aí é previsível. Há portanto, a priori, uma contradição lógica entre esse tipo de coleção e a construção de um sistema tópico, o qual supõe uma predisposição de lugares onde se poderá recolher aquilo que chega. Mas ambos os fenômenos são contemporâneos. A metade do século XVI é obcecada pela busca do instrumento universal e pela preocupação com o método. O “método”, em sentido estrito, é a “via”, o “caminho” que se deve seguir para se chegar a algum lugar. Os Wunderkammer nasceram do encontro da vontade dos príncipes, que queriam dar uma espécie de ancoragem simbólica à sua soberania, e da vontade dos especialistas da tópica, da classificação. Estas pessoas vão propor seus serviços aos príncipes para, efetivamente, classificar seu patrimônio simbólico; entretanto, propõem algo mais que uma simples organização – aspiram à sistematização, ao método. E vão fabricar, com as relíquias dos tesouros principescos, uma forma inédita de instrumento universal, uma espécie de bússola da arte de governar, uma cartografia da genealogia do príncipe, de suas afiliações, de seus poderes. Assim, os quartos das maravilhas aparecem nos anos de 1560 como uma versão particular do instrumento universal – um canivete suíço para uso da realeza. Não é a mais satisfatória no plano conceitual: reunir uma coleção é necessariamente um exercício empírico. A verdadeira technè não pertence ao registro da empiria: a meio caminho entre a teoria e a empiria, ela é uma aptidão para refletir sobre os princípios de sua habilidade, uma aptidão para formulá-los como método. É a aptidão para inventar mecanismos e soluções universais, a qual indica o ingenium: o engenho está, pois, inteiramente do lado não do colecionador, que é o receptor empírico do dispositivo, mas do lado do dialético, que imagina o ordenamento da coleção e a concebe como um instrumento (um “espelho”) a serviço do exercício do poder. O Wunderkammer organiza, portanto, o confronto dos objetos naturais e artificiais, dos objetos encontrados na natureza e das máquinas inventadas pela arte humana. Ele confronta inventividade natural e inventividade humana. Nele se encontrarão, então, além as coisas reais do mundo. Mas todas as espécies de uma família de plantas ou animais, se agrupadas, poderiam proporcionar um retorno ao eidos. Isso significa que se o jardineiro e botanista iluminados pudessem coletar em um leito uma família inteira de plantas, o que fariam seria coletar o completo pensamento de Deus. Ao olhar para epistemológica instaurada por Galileu. O fato de que a “verdadeira cada leito, e em seguida para o jardim inteiro, poderia-se então viajar pela mente de Deus, e conhecer a Natureza em sua completude ciência” se distingue claramente da técnica. A “verdadeira ciência”, para Galileu, está ligada aos números, a essas verdades incorruptíveis e eternas que não são acessíveis aos sentidos. Com Galileu, dá-se a expulsão do sujeito empírico, sensual, da experiência. A verdadeira ciência se constrói contra os erros da percepção. O lugar da matemática na nova configuração muda completamente: os técnicos do século XVI reivindicavam uma matemática do uso e da prática, uma matemática que eles classificavam de “mista” pelo fato de que se aplicava a corpos sensíveis e se reconhecia uma finalidade prática: medir, mensurar, desenhar engrenagens... Com Galileu, isso é muito diferente. A matemática reintegra o campo da teoria pura. Não deixa mais lugar algum para o uso nem para a evidência sensorial. Enfim, last but not least, é a representação do espaço que muda completamente: a idéia do lugar como receptáculo... perde a solidez na espacialidade homogênea e infinita da nova ciência. original. Este otimismo cristão estava estritamente ligado a uma agenda médica prática. A tradição médica grega de Hipócrates sugeria que as doenças localizavam-se em lugares particulares, e que os remédios necessários para curá-las seriam também encontrados lá. Na versão cristã da teoria de Hipócrates, Deus havia criado o homem no Jardim original com todos os alimentos e remédios necessários para mantêlo eternamente em boa saúde. Mas quando Adão e Eva foram expulsos, estes remédios e doenças foram espalhados pelo mundo. Médicos do século XVI e XVII tinham esperanças que, com a descoberta da América, África e Ásia, todos estes remédios dispersos pudessem ser reunidos em um só lugar, as plantas curativas do Velho Mundo reconciliadas com aquelas do Novo Mundo. Assim, o jardim seria não apenas um guia de contemplação espiritual, ou de êxtase religioso, mas poderia de fato servir de base para uma nova fundação da medicina. E, é claro, o século XVI conheceu muitas epidemias terríveis, e assim havia um desejo real por novas drogas. Imaginava- BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX . se que a nova praga da sífilis, em particular, como uma doença do Novo Mundo, necessitava de remédios americanos. Então, lado a lado com a filosofia e a religião temos este negócio prático de tentar criar um jardim completo farmacêutico. R ICHARD DRAYTON RICHARD DRAYTON É PROFESSOR EM HISTÓRIA IMPERIAL E EXTRA - EUROPÉIA DESDE 1500 NA _ Um teatro universal não tem outra existência que não a gráfica ou conceitual. PF palavra latina para travesseiro - e cada um dos leitos deveria abrigar uma família natural inteira de plantas. Mas, por que uma família de plantas? Aqui vemos o enrosco das imaginações grega e cristã acerca racionalidade técnica (os jesuítas vão recuperá-la em proveito de finalidades muito restritas). Mas o fenômeno principal é a ruptura volumes ilustrados onde o “inventor” apresenta todos os usos possíveis de suas invenções, todas as variantes que sua imaginação fértil pode declinar ao infinito, às vezes ao preço de efeitos verdadeiramente burlescos, como os “abridores de latas” para fortalezas e os “pés-de-cabra” destinados aos militares e desenhados, com uma verve digna de Glenn Baxter, pelo engenheiro de Henri III, Augustin Ramelli. _ Os quartos das maravilhas seriam a continuação lógica desses teatros universais ou se trata de algo diferente? Nesses quartos, tem-se a impressão de que o heterogêneo e o sem classificação são a regra. quarto é dividido em leitos chamados pulvilli (singular pulvillus), da origem, o mundo era o eidos, a perfeita idéia da forma; mas como a forma entrou na Matéria, estas eram imperfeitamente expressas como _ Quando acaba tudo isso ? de um gênero editorial novo, os “teatros de máquinas” – imensos JCR apenas são divididos em quatro, como os continentes, mas cada da natureza. A filosofia grega da natureza imaginava que, em sua fabricados em Augsburgo, perto do fim do século XVI. Trata-se de móveis de prestígio, muito luxuosos. São obras-primas de marcenaria, destinados a príncipes, e que funcionam um pouco como O que temos em Leiden e Oxford são jardins botânicos que não UNIVERSITY OF CAMBRIDGE . É AUTOR DE NATURE ’ S GOVERNMENT : SCIENCE , IMPERIAL BRITAIN , AND THE IMPROVEMENT OF THE WORLD - 2000 - TRADUÇÃO DE GAVIN ADAMS MONTPELLIER _ 24 DE AGOSTO DE 2004 J EAN - CHRISTOPHE ROYOUX _ Como podemos pensar o jardim botânico como cosmograma ? RICHARD DRAYTON _ Quando pensamos nas origens do jardim botânico europeu, devemos sempre começar com seu arquétipo judaico-cristão: a idéia de um paraíso original onde toda a criação foi organizada por Deus. O Jardim do Éden significou não apenas um lugar, mas uma idéia de três momentos da história cósmica - primeiro a Criação, depois a Dispersão, quando Adão e Eva foram expulsos do Éden, e a Redenção, onde todos os afluentes dispersos da criação, junto com as tribos humanas, são reunificados e reconciliados em um só centro. Os neoplatonistas cristãos, que inventaram o jardim botânico na Renascença européia, imaginavam-se participando deste último gesto. O primeiro jardim botânico emergiu em meados do século XVI em Pádua e Pisa, na Itália, e então durante a década 1580 a 1590, surgiu também em Leiden na Holanda, em Montpellier (distante apenas alguns metros de onde falamos agora) na França, e em Oxford no início do século seguinte. Nestes jardins podemos observar o impacto convergente do simbolismo judaico-cristão, vários tipos de idéias mágicas microcósmicas/macrocósmicas de correspondência, além da necessidade prática dos médicos de aprender a extrair significado das plantas curativas. Em Leiden ou Oxford, o que se tem é literalmente uma tentativa de se recriar o jardim do Éden dentro do espaço fechado do jardim botânico: o hortus conclusis do jardim botânico sendo uma espécie de microcosmo de todo o mundo. A invenção do jardim botânico ocorreu no século após a descoberta da América. E o que é interessante é que temos estes jardins divididos em quatro partes, para representar os quatro continentes do mundo: a Europa, Ásia, África, e América. Eles surgem logo após a Reforma Protestante, um período carregado de entusiasmo religioso, tanto otimista quanto pessimista. Muitas pessoas acreditavam que o mundo pudesse estar chegando ao fim, ou que esta época de religião reformada, do conhecimento grego e latino redescoberto, a descoberta de novos mundos na América e na Ásia, poderiam ser os 17 Uma terceira camada de influência tem a ver com o poder e o Império. É interessante notar o estreito relacionamento entre o poder real e o patronato destes jardins cosmogramas. A teoria medieval da monarquia sugeria que os reis haviam sido colocados no mundo por Deus para trazer paz, justiça, ordem e fartura a seu reino: é a idéia do Defensor Pacis. Os príncipes das cidades italianas e os reis da Europa responderam com vigor à idéia do jardim botânico como microcosmo, já que suas soberanias eram fundadas em um reclamo similar: o de ser representante de uma ordem que era essencialmente de origem divina. Pessoas como o imperador Hasburgo na Áustria, e os soberanos de todas as nações européias, eram patronos generosos e importantes destas tentativas de criação de um mundo dentro de um jardim, pois tais coleções poderiam fazer afirmações sobre as origens e sentido da soberania humana. A fundação do primeiro jardim botânico da França, em Montpellier em 1593, foi diretamente ligada à tentativa de apresentar Henrique IV como legítimo monarca da França, como alguém com legitimidade proto-imperial. Era literalmente um símbolo da encarnação de uma responsabilidade Imperial, no sentido romano do termo. Podemos juntar este senso medieval de Império como reinado ou arte de governar ao nosso senso moderno de Império, como um arrojo para fora da Europa em direção ao mundo. Uma interessante via de acesso a isso é uma figura chamada Charles L’Écluse (conhecido por seu nome latino Clusius), que é inicialmente apoiado pelo imperador Habsburgo. Foi Clusius que primeiro agrupou os novos mundos da Ásia e da América, e a enxergar as plantas do mundo como um todo. Foi Clusius que reuniu os pensamentos de Garcia d’Orta, o médico português que publicara um livro em Goa em 1563 em que declarava que as plantas da Índia não podiam ser contidas dentro das categorias de Dioscorides (sobre a qual baseava-se a botânica européia), e combinou-os com as novidades que Joseph Acosta e Nicolas Monardes haviam descoberto nas Américas. Clusius concorda que as plantas do Novo Mundo são fundamentalmente diferentes das européias, e dá o passo seguinte ao argumentar que a maneira pela qual os europeus pensam sobre suas plantas deveria portanto ser reimaginada. Esta imaginação da natureza do mundo em sua diversidade e unidade está acontecendo ao final do século XVI sob o patronato de pessoas como o Imperador Habsburgo e Henrique IV na França. Os soberanos imperiais da Renascença procuraram demonstrar sua legitimidade em parte através da reconciliação da diversidade do mundo em seus jardins. Uma camada adicional de sentido rodeia o jardim - a idéia de um espaço estético onde o Homem pudesse vir a estar em comunhão com esta dimensão da vontade divina -, que é o senso estético, é beleza, é superfície, é cor, perfume, textura. Vemos em Clusius, por exemplo, uma tentativa de coletar plantas que são boas não apenas para a medicina, ou representativas de famílias, mas também aquelas que são estranhas e diferentes ao olhar -cactos com suas cores espinhosas, flores de pétalas brilhantes, frutas de gosto e cheiro diferentes. Bolsa de Valores para o Império’ [‘a great Exchange House for the Empire’]. A Exchange House em Londres, relembremos, era naquela época um mercado comercial onde mercadorias eram negociadas. Banks queria que Kew fizesse para o mundo natural o que a City [o incluir a mais rica coleção de espécimes-tipo do mundo. O trágico paradoxo, não obstante, é que os mesmos processos imperiais que geravam esta acumulação da variedade da Natureza em Kew, levou, ao compasso do corte das florestas e da introdução de plantações de do jardim: o jardim como ornamento, o jardim como espaço médico, o jardim como espaço científico e assim por diante. Mas a idéia de um jardim botânico contendo todas as plantas do mundo era rapidamente reconhecida como utópica. Havia simplesmente plantas demais no mundo. distrito financeiro] de Londres fazia para a economia do mundo. Em particular, ele procurou o intercâmbio de cultivos de importância econômica entre as Índias Ocidentais (Caribe) e Orientais. Assim, a fruta-pão e condimentos indonésios seriam trazidos às Índias Ocidentais, e o jacarandá e o cacto Nopal com o inseto cochonilha seriam levadas do Novo Mundo e introduzidas na Índia Britânica. Ao valor econômico, à extinção de milhares de espécies por todo o mundo. Kew, de certo modo, é um monumento à enorme onda de destruição, algo como as coleções antropológicas que os europeus formaram de culturas indígenas do globo. No início do século XVII, as pessoas ainda esperavam coletar toda a criação dentro do espaço fechado do jardim. Mas, em algumas décadas, mais e mais plantas chegavam à Europa a partir do resto do mundo em verdadeira torrente - das Índias Orientais, Java, África mesmo tempo tentou abrir uma rota Norte-Sul de troca de plantas ornamentais. África do Sul, Austrália, Nova Zelândia e Chile proveram as plantas que podiam ser cultivadas a céu aberto, fora das estufas. RD _ No momento preparo uma história do Caribe, intitulada O Caribe e a construção do Novo Mundo. Eu começo com a geografia e a geologia, levando a história desde os primeiros jatos vulcânicos Estes quatro tipos de objetivos foram reconciliados por algum tempo. Mas eventualmente emergiram as tensões entre as diferentes idéias Ocidental, do Caribe - as pessoas começaram a perceber que isso seria um pouco mais difícil que haviam julgado. Havia plantas demais, muitas das quais eram difíceis de manter vivas a bordo de um navio ou já na Europa. Então, no lugar de plantas vivas (o hortus vivus), observamos uma guinada em direção à preservação de plantas em um hortus siccus (‘jardim seco’) ou herbário, onde se guardam exemplos de plantas coladas em folhas de papel ou livros, que podiam ser facilmente guardados e organizados. A alternativa ao herbário como um espaço que pudesse conter o mundo, era o jardim da filosofia. No século XVII, a classificação sistemática das plantas do mundo amadureceu em John Ray e Tournefort. As novas plantas que chegavam do resto do mundo, ao compasso da expansão comercial e colonial da Europa, não poderia ser contida nos termos das categorias científicas européias. Ray escreve na Historia plantarum sobre as plantas da Índia e sua estranheza: ‘Quis crederit in una provincia malabara....’, ‘Quem poderia crer que nesta província de Malabar, que não é um grande lugar, podem ser encontrados 300 tipos distintos de plantas?’ Da mesma forma que Copérnico argüiu que o cosmos não podia ser entendido através das categorias ptolemaicas da astronomia helênica, também os botanistas argumentaram que as famílias eurocêntricas de Dioscorides (que havia identificado apenas 500 tipos de plantas) não poderia fazer sentido das plantas do mundo. Então vemos, ao início do século XVIII, uma re-imaginação da flora do mundo, e é sobre isso que se apóia o trabalho de Lineu, Adanson, e até Jussieu, e também nossa versão moderna do Reino Vegetal. JCR _ E em relação aos jardins de Kew Gardens na Inglaterra ? _ Kew surgiu após esta dramática história renascentista do jardim botânico. O jardim de Kew começou em fins do século XVII como um jardim particular, de propriedade de um aristocrata chamado Capel, RD que foi então içado à órbita da família real britânica, que vivia perto de Richmond. Kew não foi um jardim importante até a geração seguinte. Sua ascensão está associada à ideologia política que Banks lançou os fundamentos de um jardim mundial que foi levado ao seu ápice em meados do século XIX. Em 1840, Kew passou de propriedade pessoal da Coroa a parte do Estado. Financiamentos públicos de vulto foram mobilizados para a construção de museus e das grandes estufas, como a Great Palm House of Kew. (Este é um dos edifícios mais maravilhosos do mundo, um monumento à tecnologia da Revolução Industrial. Se observarmos atentamente, é quase como um barco virado, com sua quilha e costelas feitas de aço - e o homem que a desenhou tinha de fato experimentado o uso de aço para tais propósitos). Ao mesmo tempo, em meados do século XIX, observamos que, o que eram conexões informais e soltas entre Kew e o Império Britânico na era de Banks, foram substituídas por uma integração direta e estreita de interesses científicos de botanistas britânicos e o império britânico em franca expansão. Conexões oficiais foram forjadas entre o Real Jardim Botânico em Kew e as instâncias administrativas do Império, tais como o Colonial Office, o India Office e governos coloniais, o que levou a um fluxo contínuo de novo material. Tanto assim que o Diretor de Kew, ao final do século XIX, reclamou ao governo, que perguntava por quê este pedia tanto mais espaço para os herbários. Ao que o diretor respondeu que não podia controlar a expansão de sua coleção de plantas porque ele não podia controlar a expansão do Império Britânico. O que temos então no espaço do Real Jardim Botânico de Kew é um microcosmo daquele momento de globalização que estava sendo construído ao redor do Império Britânico. O mundo de plantas que foi coletado em Kew era realmente representativo das partes do mundo ao alcance da influência britânica. Como é o caso de todas as formas de universalismo e de todas as formas de ‘globalização’, se olharmos muito de perto, elas são habitadas por espécies de provincianismo. Podemos identificar versões americanas, francesas e britânicas da globalização, cada uma delas presumindo ser o mundo como um todo, mas que na verdade fazem a inflexão da estranheza do mundo ao redor de sua experiência particular e local. Poderíamos chamar descendia do Imperialismo medieval: a idéia da monarquia Esclarecida. No século XVIII, os monarcas, príncipes e aristocratas procuraram demonstrar sua virtude através do patronato das ciências em geral, e dos jardins botânicos em particular. George III ascende ao trono em 1760, e tinha pretensões de apresentar-se como uma espécie isso da ilusão “Nós somos o Mundo” (‘We are the World’). de monarca esclarecido ao público britânico. O ano de 1763, no esteio da Guerra dos Sete Anos, marca também o começo da grande era da autoconfiança imperial britânica. Foi neste período que a Índia representar o mundo do que qualquer coisa anterior. Em 1846, a GrãBretanha foi a primeira nação no globo a essencialmente depender do mundo para sua alimentação. É um momento muito interessante na e o Canadá tornaram-se parte do Império, e foi também quando o navegador James Cook lança-se ao Pacífico, trazendo a bordo Joseph Banks. Quando Banks retornou em 1771-2, George III trouxe-o para seu círculo, e com o tempo fez dele gerente efetivo do jardim história da globalização, pois eles revogaram as leis que protegiam os fazendeiros britânicos por meio de taxas de importação. O corolário de revogação das Leis do Milho (Corn Laws) era a integração do trabalho e mercadorias mundiais ao redor e através da Grã-Bretanha. botânico que o rei e sua mãe construíam em Kew. Foi Banks quem transformou Kew em um centro para as plantas do mundo. ‘As planícies da América do Norte e da Alemanha’, como escreveu o economista W.S. Jevens, ‘são nossos celeiros. O Canadá e a Rússia são nossas florestas madeireiras, Portugal nos supre de vinho, e a China e Índia são nossos jardins de cultivo de chá’, e, é claro, Nas décadas de 1770 e 1780, Banks tornou-se o centro da vida científica e política, e conseguiu transformar o Império Britânico em uma fundação para a coleta de plantas para o jardim de Kew. Banks tornou-se presidente da Royal Society (que é a instituição científica chave britânica), e mantinha estreitos laços com a Marinha Real, a Companhia das Índias Orientais, a West India Planters, e com a Câmara do Comércio (Board of Trade, um ancestral do Colonial Office). Plantas começaram a chegar de todos os cantos do mundo para o jardim do rei. Em 1772, um homem chamado Masson foi enviado para a África do Sul para coletar, no Cabo da Boa Esperança, plantas que pudessem ser cultivadas ao ar livre na Europa. O que emergiu em Kew, um pouco antes do Jardin du Roi em Paris, sob a direção de Buffon e Thouin, era o que poderíamos chamar de um centro de coleta e comparação. Isso é essencialmente um centro em que a acumulação de observações e de espécimes apóiam momentos instáveis de insight comparativo e classificatório. Há uma instabilidade inerente às categorias históricas naturais ao ponto de ser preciso depender de uma identificação altamente artificial de critérios particulares para a criação de categorias, e para o mapeamento de padrões. O ‘cosmograma’ depende sempre de uma perspectiva particular, e pode subitamente aparecer como apenas um truque da luz. Banks, no entanto, queria mais que uma representação científica do mundo: ele pretendia usar seu ‘mundo em um jardim’ para mudar este mundo. Ele expressou sua ambição em relação a Kew em linguagem econômica: ele desejava que Kew se tornasse ‘uma grande Não obstante, neste momento do século XIX, a Grã-Bretanha era realmente a nação mais globalizada do mundo. Assim, podemos argumentar que este jardim ‘Cosmograma’ chegava mais perto de imaginava-se, todo mundo então compraria os manufaturados britânicos. Nas décadas de 1840 e 1850 vemos a Marinha Real, junto com mercadores britânicos, forçando os sul-americanos e africanos e asiáticos a abrir suas economias. Assim, nesta grande era de Kew, vemos não apenas mais e mais colônias adicionadas ao Império Britânico, mas também temos vastas áreas do mundo como a América Latina e a China, em que exercia-se uma dominação informal, e como resultado, uma penetração informal do conhecimento científico. As Guerras do Ópio, em que a Grã-Bretanha forçou os chineses a comprar seu ópio, foram imediatamente seguidas da chegada de coletores de plantas, e foi neste momento que as grandes coleções de plantas chinesas em Kew e do Jardim Botânico de Edimburgo são iniciadas. Ao mesmo tempo, Kew ajudou a transformar as plantas do mundo em fontes de riqueza britânica. Houve uma deliberada apropriação de capital genético do império informal britânico para o uso de plantadores nas colônias britânicas. A cinchona (fonte de quinino) e a borracha foram arrancadas da América do Sul e transferidas para a Índia e o sudoeste da Ásia. O ‘jardim cosmograma’ em Kew foi portanto mais do que meramente a mais completa coleção das plantas do mundo. Era a encarnação botânica do universo de relações de poder que cercavam o Império Britânico. Seus espaços ornamentais - as Casas Tropical e Temperada, cachos de cedros indianos e pinhos norte-americanos proporcionaram um espetáculo do mundo reconciliado em um só lugar para o público britânico. Seus herbários e museus vieram a 18 JCR _ Qual é sua pesquisa corrente ? que, em algum lugar do Pacífico, fizeram surgir a Placa Caribenha. Esta placa move-se em direção ao Leste, gerando o arco das Grandes Antilhas, e, mais tarde, em sua franja ocidental, a conexão das Américas através do Panamá. Então volto-me à história humana, que é essencialmente uma questão da convergência de quatro diásporas diferentes, quatro direções migratórias. A primeira delas é a Diáspora Ameríndia, que não é simplesmente a história dos Arawak e dos Carib, à qual é normalmente reduzida. Trata-se de um drama complexo, de sete mil anos de duração, envolvendo migrações paralelas e competitivas de diferentes partes da região do Orinoco, no norte da América do Sul, em direção ao arquipélago. Esta Diáspora Ameríndia então colidiu com as Diásporas Européia e Africana dos séculos XVI, XVII e XVIII, e por último com a Asiática no século XIX. O que vemos criado no espaço do Caribe são as primeiras sociedades no mundo em que estes diferentes afluentes da vida cultural humana foram reconciliadas. O Caribe foi a primeira cultura realmente global, o primeiro espaço em que todos os ancestrais reclamam envolvimento. O Caribe foi um cadinho onde muito da experiência moderna emergiu pela primeira vez. Nele, as ideologias e instituições do colonialismo europeu cristalizaram-se primeiro, e então foram exportadas para outros lugares das Américas e do mundo em geral. O Caribe foi o cadinho onde a toxina do racismo se precipitou primeiro, mas também foi o primeiro lugar a gerar seu antídoto, tanto que em seus espaços, as pessoas primeiro aprenderam a conviver com outros de comunidades culturais radicalmente distantes e distintas. A importante idéia da Transculturação emergiu primeiro como uma prática, e depois como teoria, com o espaço da região. A transculturação foi um conceito inventado pelo antropólogo Fernando Ortiz, que procurou discordar da antropologia de Malinowsky, que imaginava que a Europa poderia mudar o mundo sem que ela mesma fosse transformada. Contra a aculturação de Malinowsky, Ortiz argumentou que, em um encontro cultural, todos os participantes são transformados. Assim, em vez de termos a cultura A (que podemos chamar de Europa) transformando a cultura B (talvez a África) na cultura C, Ortiz sugere que quando A colide com B, o que surge é um sistema complexo de interações culturais entre A e B. B transforma A, mas elementos dos dois sobrevivem inalterados como parte de uma cultura comum. Eu não creio que tenhamos ainda, particularmente quando pensamos na Europa, aceitado o quanto que a expansão imperial e a Globalização significou em termos de transculturação. Esta idéia de transculturação como tema central na história do mundo, é o coração do livro. Ao colocar a ‘transculturação’ à frente, não se trata de trilhar um caminho fácil em direção a um frágil multiculturalismo. Isso envolve um repensar radical do modo como relatamos histórias como historiadores, e talvez repensar o que o mundo moderno realmente significa. Em termos de lógica matemática, o que temos no Caribe não é apenas a história de uma intersecção, mas do que está fora dessa intersecção, e que preserva sua separação mesmo no espaço da intersecção. As coisas não se derretem em uma só mistura indeterminada; os personagens ancestrais ascendem e caem frente a cada geração. Existe um processo incompleto de assimilação, de catálise, de ruptura e de integração, e é isso que imprime dinamismo ao processo: o fato de que há sempre uma parte subordinada da interação que a cada novo momento pode encontrar seu caminho à frente do palco. A presunção no pensamento judaico-cristão é que existe algo chamado conversão, que demanda uma escolha do tipo um-ou-outro, que demanda uma jornada de mão única em direção ao bem, ou ao moderno. Pois então, no pensamento filosófico e histórico ocidental, talvez seja difícil pensar sobre formas plurais de lealdade cultural, e sobre a possibilidade e sentido da reversão da ‘conversão’, de acordos temporários sendo renegociados, de tradições ancestrais re-emergindo. A história do Caribe, em que todas as culturas do mundo são levadas a uma crise e a momentos de integração, talvez nos ajude a pensar mais dinamicamente sobre transformação e agência históricas. O ponto não é substituir um eurocentrismo falido por um ‘caribocentrismo’, mas sim repensar as narrativas da modernização, com suas histórias simplistas de como o passado necessariamente fez o presente. Você havia perguntado antes sobre a ligação entre o trabalho sobre Kew e minha nova pesquisa. As duas refletem minha experiência pessoal. Eu nasci no Caribe, e meu interesse sobre imperialismo e sobre aquelas formas de ciência que traficaram com o colonialismo e o imperialismo, foi desenhado precisamente pelos mesmos tipos de interesses filosóficos e intelectuais que estão desenhando este projeto sobre o Caribe. JCR _ Isso era bem claro a respeito das plantas, mas o que aconteceu desgasta. Em termos gerais, a biomassa se conserva, mas não é ilimitada. Pode ser alterada em suas transformações e o homem é responsável por essa questão. no processo cultural da transculturação ? RD _ Ocorre uma espécie de submersão das tradições subordinadas Porque, a partir do momento em que se considera o planeta como um no momento do encontro, de modo que somente uma ou outra tradição é visível. Quando as condições históricas mudam e as relações de poder são reequilibradas, outras tradições alcançam o topo. Eu suponho que uma das coisas para se ter em mente aqui é que hibridismo é interessante, pois ele representa uma maneira de entender uma dinâmica de poder e de criar espaços para possibilidades culturais alternativas, que jazem sob a realidade cultural dominante. De certo modo, ela nos leva em direção a uma forma quase política de prática onde podemos procurar - em termos de nossa própria função intelectual e em termos de nossa função social - criar espaço para as tradições subordinadas que operam dentro da cidade global, e dentro de qualquer simulacro do cosmograma. Em qualquer tentativa de criar um modelo universal existe uma variedade de modos de subordinação que estão em jogo. Atentar para o hibridismo e a diversidade tem que significar algo mais que simplesmente falar sobre um tipo de feira multicultural. Eu me interesso muito em realocar o significado do que eu penso serem as tradições subordinadas das Antilhas. Uma delas é a realidade geográfica, que recebe muito pouca atenção. Eu me interesso em trazer novamente à superfície este tipo de contexto físico estrutural que está moldando este espaço como um espaço de encontro e um espaço de diferença. A privilegiada ‘narrativa-mestra’ da história caribenha teve duas versões. Há a versão anterior a 1960, que é essencialmente a história do heróico descobridor e colonizador europeu que trouxe a civilização para o novo mundo. E existe a história pós-colonial do Caribe como um teatro em que a história de escravidão e do colonialismo é transformada simplesmente em um prelúdio para a política nacionalista contemporânea. Ambas as histórias podem ser desestabilizadas se atentarmos mais ao significado da história lugar fechado, um lugar cercado para sempre, designa-se o homem, enquanto único ser consciente, como único responsável pelo resto G ILLES C LÉMENT dos seres vivos. O resto dos seres vivos faz o que tem de fazer, mas não sabe que o faz. Nós, porém, conhecemos os mecanismos do ser GILLES CLÉMENT É PAISAGISTA , PROFESSOR NA ESCOLA NACIONAL SUPERIOR DE PAISAGEM DE vivo, sabemos que nossos gestos se fazem em detrimento de um sistema qualitativo, que destroem uma porção de coisas – e que, no VERSALHES EM 1943 , FUNDADOR DA AGÊNCIA ACANTHE EM 1985 . É TAMBÉM O AUTOR DA - PARIS XV E - E O CURADOR DA EXPOSIÇÃO JARDIN - 1999-2000 - DENTRE SUAS OBRAS , DESTACAM - SE LE ET TONKA , PARIS , 1991 E MANIFESTE DU TIERS - PAYSAGE , CONCEPÇÃO DO PARQUE ANDRÉ CITROËN PLANÉTAIRE , LA VILLETTE , PARIS JARDIN EN MOUVEMENT , SENS SUJET - OBJET , PARIS - 2004 - PARIS _ 28 DE JUNHO DE 2004 O JARDIM PLANETÁRIO Quando era jovem, interessava-me pela diversidade que existia no lado de fora do espaço regulado do jardim tradicional, no lado de fora da cerca. Funcionava sem os cuidados de ninguém, mas eu não tinha as chaves para compreender isso. Mais tarde, durante meus estudos, tive a explicação científica do que havia pressentido: as coisas são ligadas entre si, uma forma de complicação que o jardim tendia a esconder. O jardim subtrai, elimina, oferece formas simples de leitura e geometrias cômodas. Na natureza, eu via complexidade. Um lagarto que caça uma mosca cria um vínculo de predação, mas a própria mosca está ligada à planta, sua larva come vegetal e, depois, um pássaro vem comê-la – e, muito depressa, isso se torna extremamente complicado. A ecologia científica esclareceu-me sobre o que era apenas um dentro das formas de vida ameríndias. O fato de que não há comunidades significativas de pessoas que hoje chamam a si próprias Mais tarde, graças à minha própria experiência de jardineiro, comecei a refletir, num contexto mais amplo, sobre essa noção de jardim. Meu de ameríndias não significa que esta presença pré-colombiana não possua uma força civilizatória penetrante. jardim era, de um lado, um catálogo de elementos planetários longínquos, aqui reunidos pela mistura planetária; mas também, pela Eu estou tentando sugerir que o que temos neste espaço alocado, alienado e separado das Antilhas, é um lugar que não é mais especial que nenhum outro no mundo, onde algo chamado de lar foi criado por pessoas que lá viviam. As várias novas tradições que entraram neste espaço não apagavam simplesmente o que acontecera antes e construíam sobre as ruínas, mas sim existiram dentro de uma dinâmica comunhão com estas tradições ancestrais anteriores e dentro deste espaço de encontro europeu, africano e asiático. Todas as opções políticas férteis para as Antilhas repousam sobre o manter aberta esta visão de comunidade, de diversidade, de multiplicidade compreendida não como uma caldeirão onde tudo é assimilado e dissolvido, mas onde há uma complicada conversação orquestral em curso. Temos razões contemporâneas e históricas para atentar para as vozes que têm ficado em segundo plano e em silêncio. própria presença do jardineiro, era algo diferente de um pedaço de natureza funcionando sozinho. _ Para o bem e para o mal, o Caribe está plenamente implicado nas cidades globais. Estas comunidades eram proto-cidades globais em si. Estas eram as primeiras comunidades no mundo, a partir do fim do século XVII e início do XVIII, em que observamos características da cidade global. Lá temos populações, por volta de 1680, que dependiam da importação para sua subsistência, que dependiam de mercados de longa distância para seus produtos de exportação para sua sobrevivência, onde encontramos trabalhadores alienados de suas ferramentas, densidades populacionais de duzentas, trezentas ou quatrocentas pessoas por quilometro quadrado, onde as populações eram extremamente diversificadas em termos de sua origem geográfica, vivendo em convergência um com o outro e funcionando através de dialetos e falas crioulas. É possível argumentar, de fato, que a sociedade industrial tem seus começos nestes espaços caribenhos, já que é na produção de açúcar que observamos primeiro a integração da produção fabril de capital intensivo com grandes unidades de produção. Estes espaços é que sempre foram modernos, antes que grande parte da Europa o fosse. Eram ilhas, mas elas sempre foram ligadas, nestes séculos XVII e XVIII em diante, a Amsterdã, Londres, Nantes, Bordeaux, e Bristol, e através destas com Hamburgo, Lubeck e a Europa Central. Temos uma espécie de economia de comércio global, uma cidade global sendo criada ao longo destas linhas, afluentes, e redes de troca. A cidade global, portanto, como um espaço específico parece-me ser sempre suplementada por, se não desestabilizada, por estas conexões globais que são inerentemente deslocalizadas. RD BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER JCR _ Então esse jardim planetário é finito ? _ Pode-se pensar que sim. E as tentativas para escapar disso são interessantes: não se vai a Marte a troco de nada! Vai-se a Marte porque se trata de escalas e que, talvez, em um dado momento, será necessário deixar a Terra, que não será mais suportável. GC pressentimento. Na época, quando nos falavam dos mecanismos do ecossistema, falavam de nicho ecológico, de biótopo, não de jardim. funcionam ou poderiam funcionar ? se tomou a decisão de se suicidar, de condenar a espécie humana num sistema de predação extrema. É uma decisão interessante que não é formulada: ela é consciente para alguns, inconsciente para outros, mas é partilhada: todos consentem em morrer. TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI Ameríndia e às maneiras como estas tradições de europeus e africanos foram postas em contato uma com a outra, e incluídas JCR _ Você acha que é possível encontrar idéias de práticas que sejam úteis reter, para melhor compreensão de como as Cidades Globais final, nos destruímos a nós mesmos. Sabe-se com certeza, com um requinte de detalhes científicos tal, que isso só pode querer dizer que Foi no meu terreno que compreendi isso. Ali, vi o que significava a diversidade presente, considerada em si mesma, sem a destruir, e comecei a orientar em seu proveito as fantásticas energias locais. Tomei a decisão de não fazer como então se fazia, isto é, ir sistematicamente contra, mas de fazer o máximo possível com. Em todos os jardins, incessantemente se é contra alguma coisa que está acontecendo: corta-se, poda-se, põe-se veneno, rega-se quando está seco, drena-se quando está muito úmido: não se aceita a situação. Gasta-se, então, uma energia contrária fabulosa, está-se na labuta, na dor agradável. Eu não queria fazer um trabalho que pudesse tornar detestável algo tão harmonioso e agradável. O jardim em movimento é a teorização de uma prática que consiste em seguir o deslocamento físico das espécies no terreno. Percebi que uma das maneiras de não ir contra era acompanhar a peregrinação. Isso induz um modo de jardinagem absolutamente novo, revolucionário, poderiam dizer. O desenho do jardim acima do terreno torna-se impossível, desenha-se o jardim diretamente no terreno. É o jardineiro que se torna o conceptualizador conceitualizador do jardim, coisa a que não estava acostumado. Quando chega a esse espaço uma coisinha de nada que vem de longe, uma planta exótica, será que se deve lutar contra porque é a planta exógena que vem destruir a situação inicial? Minha tendência foi dizer: há aí uma boa intenção e vamos conservá-la! Evidentemente, é necessário um princípio de gestão: quando há invasões, eu as regulo um pouquinho, e é isso que faz com que ele seja um jardim, embora seja um jardim que funciona bastante por sua própria conta. Tudo está na demografia: é um problema fundamental de que nunca se ouve falar de forma realmente séria. O Plano Mansholt, o plano crescimento zero, foi tratado com desprezo; antinômico demais em relação à vida, contrário demais à dinâmica biológica, porque todo ser tem por objetivo perpetuar-se tornando-se mais numeroso. Mas a vida em sua globalidade não funciona exatamente assim; ela evolui transformando-se e tornando-se mais complexa, o que não quer dizer aumentando quantitativamente. Porém, não sabemos fazer isso, o que faz com que evoluamos transformando-nos muito pouco e multiplicando-nos muito. É um erro biológico absoluto. As plantas e os animais têm reguladores que os punem imediatamente e os recolocam num circuito muito mais viável. É muito raro haver invasões. E nós somos o grande invasor. A opção do jardim planetário é uma alternativa ao desaparecimento da vida humana na Terra. Porque o jardineiro não pode matar a vida da qual depende e todos os seus gestos são orientados para a conservação da vida. Ele é verdadeiramente o consumidor consciente que organiza o espaço. Isto é, não vai utilizar produtos que destruam a qualidade do solo, do ar e da água – os principais substratos; não vai utilizar os produtos que vão matar os animais, seus aliados, nem, evidentemente, as plantas (eventualmente parasitas, bastante simbiônticos), seres com os quais é preciso viver. Ele vai fazer de modo que toda essa diversidade coexista. O jardineiro é o gestor do jardim planetário. E eu, em minha utopia, imagino que o jardineiro é a população humana em sua totalidade. É necessário propor esse sonho para que o planeta dure – pois um jardim dura! Nele, as coisas se reciclam, não se perdem, a energia é recuperada, as qualidades são mantidas. Quando se faz um jardim biológico, como se diz hoje, fazse um jardim que mantém a vida – senão se faz um jardim letal, que mata a vida. É isso que se vê com mais freqüência: jardineiros como militares armados – eles usam venenos violentos... Ataca-se a natureza para conservar uma certa idéia da limpeza, uma estética gelada que nada tem a ver com a vida que corresponde a um esquema cultural do que é necessário ter em seu meio ambiente a fim de, por assim dizer, estar bem. É dramático. Culturalmente, fomos atingidos, perdemos nossos referenciais. Se você compreende que o fato de jogar um copo de água sanitária na pia do banheiro tem uma incidência sobre o que se passa no esgoto, nos rios e nos oceanos, então, evidentemente, você muda de atitude para participar da manutenção da qualidade do “motor”, o que permite a vida. Faço a apologia do jardim; portanto, do jardineiro; portanto, do homem amigo da natureza. Eu gostaria que o homem compreendesse que ele se ameaça sozinho. E que o jardim mais elementar traz o indivíduo para mais perto das questões de bom senso, de simplicidade e de serenidade. Que ele ensina o que dizem algumas filosofias, a saber, que o fim não tem importância. O que conta é o fato de estar nessa ação. Outros parâmetros importantes levaram-me a propor a idéia de jardim planetário: o fato de que, quando viajo, encontro por toda parte as marcas dessa mistura planetária; o fato de que – e o homem acelera o fenômeno – há hoje plantas ou animais que se encontram e que não foram feitos para se encontrar. Isso coloca os problemas ecológicos que são conhecidos, mas, enfim, possibilita a existência dos híbridos, de seres novos, de configurações novas, de paisagens novas. Pois isso é o que já acontece no jardim, do lado de dentro da cerca. JCR _ Você faz a apologia da diversidade. Por que se deveria ser um admirador da diversidade ? O último ponto importante foi a consciência da “finitude ecológica”, um aporte científico crucial do século XX. Os cientistas da ecologia descobrem e lançam: estamos numa situação definida, há uma finitude, os seres, a biomassa constituem um sistema finito. O jardim planetário – nova cerca – se desenha nos limites da biosfera. Porque, é evidente, a vida não ultrapassa esses limites. Então, eis-nos em um novo jardim que conserva sua antiga definição de espaço cercado. Esse jardim se mantém por si mesmo e também se transforma, se comportamento, devido a uma configuração diferente, uma justaposição de seres que se organizaram de outro modo no espaço. GC _ A diversidade não é a neurose da acumulação, é o deslumbramento da novidade constante. A diversidade não está apenas nas diferenças morfológicas das espécies, está na multiplicidade dos arranjos e dos comportamentos. É um dos ensinamentos do jardim: há plantas e animais que não se comportam da mesma maneira de um ano para o outro. Não só uma figura nova e um ser novo participam da diversidade, mas também um novo _ Mas será necessário recusar a diversidade que vem da intervenção humana ? JCR _ Ao contrário, pode-se criar inteiramente uma diversidade: é o jardim! O jardim é o único território de encontro entre o homem e a natureza em que o sonho (a utopia) é permitido. Há as reservas GC ... /... segue na página 22 19 20 SEVEN MINUTES BEFORE, 2004 7 7 SCREENS VIDEO INSTALLATION X 21 MN, DIGITAL BETA ON DVD SURROUND SOUND C O U R T E S Y M E L I K O H A N I A N /G A L E R I E C H A N T A L C R O U S E L COLLECTION FNAC, PARIS VIEW AT SAO PAULO BIENNAL 21 - PHOTO /EDOUARD FRAIPONT naturais onde não se pode fazer nada, há as cidades onde a natureza não existe... Essa utopia só pode se realizar no jardim: há jardins com árvores kitsch, nas quais loucos enxertaram três flores, cinco frutos – é genial! Que isso seja viável ou não tem pouca importância. É essa espécie de amizade, de conivência com os seres de natureza que fazem com que o homem tenha um lugar nele. Ele é “na” natureza. Porque o homem não seria um ser biológico! Seu espírito é, provavelmente, o produto de um sistema biológico. Aquilo que é chamado de artifício poderia ser olhado como fato natural. Por que persistir em colocar a natureza de um lado e o homem de outro? A expressão meio ambiente, que é recente, diz também isto: ao lado, nos arredores. Mas isso é perigoso porque significa, obrigatoriamente, nos excluir, enquanto seres humanos, do conjunto da natureza. _ Então, a destruição da natureza é também algo que se insere no fato biológico ? JCR GC _ É claro que sim, mas isso aparece como uma aberração do fato biológico, um câncer. Uma cidade pode ser olhada como uma alteração da pele da terra. Mas nem todas as cidades – não os ksours, do sul do Marrocos, que são de terra, portanto solúveis e, portanto, menos perigosos para a pele da terra. _ Haverá uma lógica do jardim planetário em ir se expatriar fora da terra, colonizar os planetas ? JCR GC _ O que é nefasto para mim é a alteração do motor; não é propagar a vida, é suprimi-la. Portanto, se a vida é propagada de modo artificial, se o OGM é feito – não para o comércio, mas visando a diversificar ou a melhorar as condições da vida –, então não sou filosoficamente contra. Eu, que sou meio parente de um mundo ecologista, tenho algumas dificuldades para fazer passar essa idéia – e, de modo algum, se está de acordo a respeito desses pontos. O que é perigoso é suprimir as possibilidades de funcionamento do motor da vida que funciona graças à qualidade dos substratos. Se os substratos forem atingidos, então se atinge a própria vida: há desaparecimentos irreversíveis de espécies, há poluições irreversíveis... À medida que ocorrem os movimentos do planeta, sua respiração, o deslocamento dos continentes, os organismos (dos quais fazemos parte) se reajustam, encontram soluções. Em relação aos grandes incêndios ou aos ciclones, a natureza encontrou soluções. Na ilha Maurício, uma árvore floresce somente após um ciclone: sua perenidade no tempo está condicionada à existência dos ciclones, assim como outras estão condicionadas ao fogo. Isso é muito perturbador, mostra que a vida tem ressaltos, maneiras de responder às pressões do meio. conservação de si mesmo: é uma prática de si. Fale-nos dessa ética da jardinagem. Isso é mais difícil, estou muito envolvido... O jardineiro é um filósofo no sentido de que é um sábio pragmático obrigado à observação do ser vivo, mas seu modo de ação é de tal forma fino e complicado que ele tem também algo do mágico, do xamã. O preceito essencial é fazer “o máximo possível com e o mínimo possível contra”. No fato de observar para compreender, há uma atitude de verdadeira sabedoria: atitude geral que consiste em fazer economias, economias de tempo através do aumento do conhecimento. Ir rumo ao nãotrabalho, aprender o não-fazer como se aprende o fazer seria uma coisa importante, mas difícil de obter. Não estamos nesse mecanismo, pelo contrário: nós nos especializamos para ser o mais performático. Estamos na acumulação e, por essa razão, na acumulação do dejeto. Sufocamos sob nossos dejetos. Seria necessário subvalorizar o trabalho, deslocar os valores. Cada cultura tem essa noção de limiar vazio, depurado, como a do nantai, no Japão, ou a dos Marae sagrados. Se o paraíso é um jardim, é porque nele se passa essa questão de não trabalho laborioso. A questão da felicidade, bem como a da liberdade, também se passam no jardim. Uma verdadeira política em matéria de jardim deveria imaginar uma parte de território na qual não se decide nada. O que chamo de A terceira paisagem. Pode ser um fragmento indeterminado do jardim planetário, o lugar de acolhida máxima da diversidade. Na gestão territorial, torna-se urgente, para mim, haver decisões sobre o nãofazer. As terras não cultivadas, embora respondam a estratégias estritamente econômicas, têm, entretanto, muito boas conseqüências. São praias de invenção em que a natureza funciona por si mesma e para si mesma. No entanto, associar paisagem e patrimônio é a pior coisa. É nisso que os integrantes do Partido Verde não compreenderam o que era a ecologia. Uma visão conservadora em matéria ecológica é aberrante, é necessário evoluir. A estabilidade é terrivelmente exigente. É preciso lutar continuamente para permanecer estável, é a fabricação do inferno. A natureza ensina-nos a idéia do fluxo. Se alguém quiser ter a certeza de se afogar, a única coisa a fazer é nadar contra a corrente. A ecologia é um elogio do movimento; um movimento que evolui por si mesmo, que não tem fim nem finalidade, no qual somos envolvidos e do qual somos partes interessadas. Um jardim bem sucedido é uma visão do universo: um cosmograma. Os jardins são cosmogramas; a paisagem é um palimpsesto, a história de uma superposição. O jardim é uma obra única, a expressão acabada, numa determinada época, da posição do homem em relação à natureza. Se não fosse um cosmograma, então o jardim não passaria de um arranjo ornamental. BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX . O planeta teve fases de quase extinção da vida, momentos de grande pobreza e sabe-se que, hoje, estamos num pico de diversidade porque há muitíssimo tempo não houve imensos cataclismos, porque o clima é bastante constante há vários milhares de anos e também porque a fragmentação planetária é muito acentuada. Não estamos numa situação de pangéia, isto é, de continente único mas, antes, de multiplicidade que continua a derivar. Porém, um dia tudo isso acabará mudando: já houve quatro ou cinco pangéias ( continentes únicos) na história do planeta. Então, por que não haver mais uma? Toda vez que a gente se encontra numa situação de pangéia, há uma diminuição do número de espécies, ao passo que há um aumento toda vez que há uma fragmentação e criação de isolados. Atualmente, o fato de que o homem remexa o planeta como numa grande lavadora e faça com que seres se encontrem como se estivessem no mesmo continente, recria as condições virtuais da pangéia. As espécies entram, então, em concorrência: algumas desaparecem e outras resistem. O verdadeiro perigo é a redução de qualidade das condições da vida, o fato de que a água, o ar, a terra não sejam mais vitais biologicamente e, sim, se transformem em venenos. E DOUARDO V IVEIROS DE C ASTRO EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO , ANTROPÓLOGO , PROFESSOR NO MUSEU NACIONAL DO RIO DE JANEIRO DESDE 1978 . REALIZOU SUAS PESQUISAS DE CAMPO ENTRE OS YAWALAPÍTI , OS KULINA E OS ARAWETÉ , NA AMAZÔNIA BRASILEIRA . ENTRE SUAS PUBLICAÇÕES , DESTACAM SE FROM THE ENEMY ’ S POINT OF VIEW SOCIETY - CHICAGO , 1992 - : HUMANITY AND DIVINITY IN AN AMAZONIAN E A INCONSTÂNCIA DA ALMA SELVAGEM SÃO PAULO , 2002 . TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI RIO DE JANEIRO JCR - _ 08 DE AGOSTO DE 2004 _ Será que ainda tem sentido falar de jardim quando ele se situa na escala do planeta ? GC _ Claro que sim, pois o jardineiro é que faz o jardim. Um jardim não é o que se pode ver nas exposições de jardins, onde só há objetos inanimados e algumas plantas dispostas com arte. Não, o jardim envolve cotidianamente o jardineiro. É muito importante compreender que não há escala. Não há jardins pequenos: há jardinagem, há o ato de jardinar. Isso pode ser feito num vaso ou numa área de 5 milhões de hectares. Mas a questão do jardim planetário se coloca em diversos níveis, o da ação local bem como o da decisão política. Para mim, Jaime Lerner – que fez sua cidade, Curitiba, no Brasil, passar de 300 mil habitantes a 3 milhões em alguns anos – é um jardineiro planetário, porque soube gerenciar a questão política da inflação da cidade organizando-a ecologicamente. Exatamente como aquele que, no outro lado da questão, se encontra com o ancinho nas mãos. Este tem, aliás, a chance de resolver algo que nenhuma outra ação pode resolver de modo semelhante. A vantagem dos etnólogos em relação, por exemplo, aos filósofos, é que, quando se colocam uma questão, eles podem sempre perguntar às pessoas [que eles estudam] o que pensam a respeito. Para os filósofos de modo geral, é importante, ao contrário, que eles mesmos encontrem a resposta. Os etnólogos não podem colocar suas palavras na boca dos outros. E a Antropologia se coloca algumas questões que não são exclusivamente antropológicas mas, de fato, metafísicas. Questões fundadoras de nosso modo de ser, de nossa sensibilidade cultural ocidental, como a das relações entre o que é o próprio homem e o que é, ao contrário, uma propriedade do existente em geral: a famosa questão da relação entre a natureza e a cultura. A oposição natureza/cultura é uma maneira, para a Antropologia, de colocar a questão das diferenças entre os humanos e os não-humanos e, a partir disso, ver todos os tipos de coisas. Diante dessa oposição, a Antropologia sempre tropeça em paradoxos e impasses. A Antropologia sabe muito bem que a natureza faz parte da cultura, Finalmente, a idéia do jardim planetário é uma valorização do ato de isto é, que cada cultura tem a natureza que merece, que soube definir; mas, ao mesmo tempo, precisa pôr essa cultura, da qual a jardinar não só como conservação da natureza, mas também como natureza é apenas um aspecto, em algum lugar. Então, é obrigada a 22 reinventar uma outra natureza que esteja «acima», que possa conter, ao mesmo tempo, a cultura e a natureza dessa cultura e assim por diante, ad infinitum. A esse respeito, sempre se está ameaçado pela regressão infinita, um pecado mortal aos olhos dos filósofos. Esse tipo de impasses, esse tipo de aporias cria a fissura epistemológica mais tenaz entre os relativistas – isto é, os que pensam que cada cultura é um mundo em si – e os universalistas – isto é, os que pensam que cada cultura é apenas uma emanação de uma natureza humana universal que, ela própria, faz parte da natureza sem adjetivos. Os relativistas pensam que cada cultura define sua natureza de uma forma incomensurável, umas em relação às outras; os universalistas, por sua vez, pensam que as culturas são, justamente, aquilo que precisa ser comparado pelo viés dessa natureza comum. É um diálogo de surdos, porque essas pessoas (os relativistas e os universalistas) não têm, a meu ver, o mesmo conceito de natureza nem o mesmo conceito de cultura. Minha idéia, enquanto etnólogo, é tentar responder a tal questão não recorrendo a essa ou àquela corrente filosófica, a essa ou àquela forma de definir a Antropologia [tanto a Antropologia quanto a natureza e a cultura], mas perguntando aos indígenas particularmente aos índios da Amazônia, que estudo - o que pensam a respeito do assunto. Ao invés de utilizá-los para responder às questões que nos colocamos a respeito da oposição natureza/cultura, isto é, a questão (bem específica) do universal e do particular, tratase, ao contrário, de ver como a colocariam se tivessem que se colocar tal questão. Pode-se imaginar que essa oposição – que de modo algum é arbitrária quando se pensa, por exemplo, no fato de que Lévi-Strauss construiu sua antropologia em torno da oposição natureza/cultura, admitindo a possibilidade de encontrá-la na mitologia dos ameríndios – não é completamente estranha, senão quanto à forma, pelo menos quanto ao conteúdo, ao pensamento daquelas pessoas. Lévi-Strauss teve uma intuição certa da centralidade desse tipo de questões para o pensamento ameríndio. Penso que ele estava no caminho correto, a não ser pelo fato de sua resposta se parecer mais com a de um filósofo europeu do século XVIII do que com a resposta que um índio daria. Tudo o que faço é tentar não responder por, nem no lugar de, mas, sim, diante dos índios, pensando nos índios. Evidentemente, é uma resposta hipotética, uma experiência de pensamento, é uma «metafísica experimental», como definiria Bruno Latour. E uma das particularidades desse pensamento dos índios é, exatamente, a de que só existe um ponto de vista, aquele de todo ser consciente. Todo sujeito vê o mundo da mesma maneira: esta é a intuição que me guiou. Inversamente, a coisa mais difundida no mundo atual é pensar que a natureza é apreendida, percebida, concebida de forma diferente a partir de diferentes pontos de vista, sejam os de indivíduos enquanto focos de subjetividade, sejam os de culturas enquanto coletivos de significação, ou sejam os da humanidade enquanto ponto de vista zoológico específico sobre o mundo, diferente do ponto de vista dos crocodilos, dos micróbios etc. Há sempre a idéia de que se olha algo que é maior que o olhar, o qual só chega a capturar uma pequena parte desse algo. É o modelo da cidade que é olhada sob diversos ângulos: cada ponto de vista permite-nos contemplar algumas ruas, algumas direções. Chama-se esse Objeto, com «O» maiúsculo, exterior, «natureza» e chama-se «cultura» o sujeito, a alma etc., qualquer que seja a forma de definilo. O lugar do universal encontra-se do lado externo. O real, em sua universalidade, é indiferente à representação, é totalmente neutro. Ao contrário, o ponto de vista é subjetivo, representativo, fragmentário, parcial, limitado. A partir dessa dicotomia, tudo o que a Antropologia teria que fazer seria comparar para conciliar os pontos de vista e encontrar o maior denominador comum. A ciência humana seria isto: a pesquisa do maior denominador comum – as estruturas elementares, a gramática universal, o simbólico, o Édipo. Para continuar com essa alegoria aritmética, prefiro, antes, encontrar o mínimo múltiplo comum – o que permite multiplicar as coisas ao invés de dividi-las para achar o que têm em comum e que é, necessariamente, mais pobre que aquilo que se encontra em cada cultura particular. Quando se comparam as culturas para descobrir o que têm em comum, observa-se que o que têm em comum é obrigatoriamente menos rico que aquilo que constitui sua especificidade, pois as zonas de superposição são necessariamente mais restritas. Isso corresponde à idéia de que a natureza humana deve ser menor, em termos de extensão, de riqueza, que as culturas, pois a natureza é apenas aquilo que temos em comum, o que supõe uma concepção da Relação (com R maiúsculo) como o que é partilhado pelos termos em relação, o que eles têm “em comum”. Uma relação social seria constituída apenas por nossos pontos em comum: somos todos homens, somos todos democratas etc. É por meio dessa comunidade que nos comunicaríamos. No entanto, penso que há outras formas de conceber as relações. Os índios da América têm, por exemplo, uma metafísica da relação que é completamente distinta da nossa. Não é porque se tem algo em comum que se comunica, mas porque, sendo diferente, tem-se interesse em ter uma relação com outra coisa que não nós mesmos. Porém, estou me antecipando. A vulgata metafísica ocidental consiste na idéia de que não existe senão uma única natureza externa, e várias culturas, várias subjetividades que giram em torno dessa natureza. Esta funciona, assim, como sobrenatureza, é um correlativo de Deus. Deus se ausentou mas, em seu lugar, deixou-nos uma Natureza que modo verdadeiro de se ver, pois é o modo como todos os seres vivos No que diz respeito à existência dos outros, é preciso fazer uma está aí para que as coisas possam se manter juntas. Senão, tudo seria se vêem. Não há, tampouco, garantias de que as outras espécies nos vêem como nós nos vemos. Pelo contrário, temos boas razões, prova- demonstração. A idéia da evidência do eu e da não evidência dos outros, que está às portas de nossa metafísica moderna, é exatamente velmente, de acreditar que não nos vêem como nos vemos, dado que o oposto daquela dos índios na qual, justamente, é eu que está em nós também não as vemos como elas se vêem. De fato, vemos os porcos do mato como animais, como porcos, e não como pessoas. dúvida. Nunca se tem certeza de quem se é, porque os outros podem ter uma idéia muito diferente sobre isso e conseguir impô-la a nós: a Pensamos que os porcos do mato pensam que são gente, quando não onça que encontrei na floresta tinha razão, era ela o humano, eu não o são. Sabemos que eles são porcos do mato. Mas os próprios porcos do mato pensam a mesma coisa de nós, pensam que realmente são era senão sua presa animal. Eu era uma anta ou um veado, talvez um porco... Então, para mim acabou. Os outros, em contrapartida, são pessoas. Isso produz, portanto, uma espécie de preocupação identitária muito intensa; não basta «se ver» como humano, pois todo um dado evidente. O problema para os índios não é a ausência ou a falta de comunicação. Ao contrário, há um excesso de comunicação. mundo, literalmente, faz isso: a humanidade de conteúdo torna Se os animais são humanos, se as coisas podem abrigar formas muito problemática a humanidade de forma. Inversamente, imaginar o mundo sob o ângulo da teoria freudiana, por exemplo, em que o internas humanóides, se o trovão é uma pessoa, então tudo comunica. Portanto, quando se come alguma coisa – o que é que se homem primitivo projeta sua humanidade sobre as forças naturais e humaniza o cosmos, tornando-o menos ameaçador, produz uma teo- está comendo exatamente? É necessário fazer todo tipo de acrobacia xamânica para des-subjetivar a carne que se come, para nos fazer ria muito segura de si mesma (o homem teórico) a respeito dos esquecer o fato de que o humano está em toda parte. Viver é matar outros (primitivos ou coisas) e, afinal, muito reconfortante. O princípio de realidade: há um certo prazer em se deixar guiar por ele, não outros humanos necessariamente, ainda que seja uma plantinha. A questão central é como não deixar o outro nos comer. apenas mundo diabólico e múltiplo, mundo das aparências e dos simulacros. Para que haja um fiador do sentido, é preciso uma só natureza que não é senão uma espécie de travesti de Deus, é o Deus moderno. Ora, quando se interroga a mitologia ameríndia, precisamente aquela que Lévi-Strauss utilizava para ilustrar a oposição natureza/cultura, percebe-se, em primeiro lugar, que o que dizem todos os mitos é que, outrora, todos os animais eram humanos, todas as coisas eram seres humanos, ou, de modo mais exato, pessoas: os animais, as plantas, os artefatos, os fenômenos meteorológicos, os acidentes geográficos... O que narram os mitos é o processo pelo qual as coisas que eram humanas deixaram de o ser, perderam sua condição humana. Se as questões forem colocadas dessa maneira, compreende-se que representam exatamente o oposto de nossa mitologia. Para nós, o fundo comum entre nós e o crocodilo ou a onça é a animalidade, não a humanidade. Os humanos são uma espécie animal entre outras, mas com alguma coisa mais: a alma, a cultura, o espírito, a linguagem, a Regra, o simbólico, o ser-aí etc. Então, o que dizem os mitos é o oposto. Em vez da teoria evolucionista que pretende que «os humanos são animais que ganharam alguma coisa», para os ameríndios, os animais são humanos que perderam alguma coisa. O ser humano é a forma geral do ser vivo, e até mais, a forma geral do ser: pressuposto radical do humano. A humanidade é o fundo universal do Ser. Tudo é humano. Evidentemente, isso caminha junto com uma idéia que os índios formulam quando tentam é? No que se refere aos índios, penso que o contrário é que é verdadeiro: quando se humaniza tudo, tudo se torna muito perigoso porque tudo é humano. E, afinal de contas, pode ser que a única coisa não humana sejamos nós. O mundo “encantado” é um mundo arriscado, imprevisto, metafisicamente falando. Não existem só fadas boas nos contos de fadas. JCR _ O que aconteceria se a gente comesse ser humano? EVDC _ Para os índios, a grande maioria das doenças que os afligem são doenças provocadas por vingança dos animais comidos. Quando se come o corpo de um animal sem os cuidados necessários para não Quando a humanidade se torna a base universal, então sua forma se ofender seu espírito, o espírito pode se vingar e nos devorar (por dentro, numa espécie de «endocanibalismo» bastante aterrador). É suaviza. Inversamente, nós ocidentais pensamos com um insolente à preciso, portanto, ser sempre muito cauteloso quando se trata de expressá-la numa linguagem que possamos entender: todos os vontade que, enquanto espécie, os humanos se destacam dessa base. animais e todas as coisas têm almas, são pessoas. Uma onça, por Somos sempre a espécie, o povo, a raça, o indivíduo eleito de alguma divindade ou transcendência, racial, pessoal, cultural, política, histórica. comer. É um ato metafísico muito delicado. A «abertura», a «clareira» humana começa pela boca – mas não falo da linguagem... exemplo, é mais que uma simples onça; quando está sozinha na floresta, tira sua «roupa» animal e se mostra como humana. Todos os animais têm uma alma que é antropomorfa: seu corpo, na realidade, é apenas uma espécie de roupa que esconde uma forma fundamentalmente humana. Em contrapartida, nós ocidentais pensamos usar roupas que escondem uma forma essencialmente animal. Sabemos que, quando estamos nus, somos todos animais.Os instintos, por trás das camadas desse verniz que é a cultura, nos dão um fundo animal, primata, mamífero etc. Os índios vêem as coisas de modo oposto: por trás dos corpos animais, é um fundo essencialmente humano que se acha escondido pelas “roupas”. A mitologia diz não só que o fundo comum é humano, mas também que a humanidade não é a exceção e, sim, a regra. Nós não somos uma espécie escolhida por Deus no final da criação mas, ao contrário, a condição de partida. Inversamente, para nós ocidentais, tudo é, em princípio, não-humano, tudo é coisa, tudo é objeto até nova ordem, isto é, exceto se houver fortes razões para acreditar que estamos lidando com uma pessoa. A segunda concepção muito interessante, que se encontra um pouco por toda parte na América indígena, é a idéia de que cada espécie não só é humana «no fundo» (em outros termos, cada espécie era, no início, «humana»), como também se vê a si mesma como humana. Cada espécie se vê como encarnando a autêntica humanidade tanto em sua forma corporal, como também em seus hábitos. O que as onças comem é visto por elas como alimento humano. Por exemplo, quando lambe o sangue de uma presa abatida na floresta, a onça não vê esse líquido como sangue cru, mas como cerveja feita de mandioca fermentada. Como os humanos não bebem sangue mas cerveja de mandioca, as onças, sendo humanas em seu próprio departamento e de seu ponto de vista, vêem, percebem literalmente esse líquido que lambem quando ele escorre do corpo de sua presa como sendo uma boa cerveja de mandioca, servida numa cabaça muito limpa e decorada. Em outras palavras, cada espécie se vê sob a espécie da cultura. Ela se vê como humana e vê o que faz, seu comportamento, seu etograma, como sendo um etograma cultural. JCR _ Então o homem, por sua forma e pelo que faz, é 100 % humano... E V D C _ É um problema, justamente. Se cada espécie se vê como humana, isso não quer dizer que ela veja as outras espécies como humanas. Vemos as onças como animais selvagens, como feras; as onças, em contrapartida, se vêem como humanas mas não nos vêem como humanos. Vêem-nos como porcos do mato, pois nos comem. Os porcos do mato, por sua vez, também não nos vêem como humanos; vêem a eles como humanos e a nós como onças, ou como espíritos canibais, porque nós os comemos... Portanto, cada espécie se vê a si mesma como humana e as outras espécies como não humanas: seja como espécies de presas, seja como espécies de predadores, isso depende da posição de cada entidade na cadeia trófica. Portanto, tudo se passa se houvesse uma única grande cadeia trófica que vai dos espíritos canibais às presas mais ínfimas que não são predadores de nada. Dado que cada espécie se encontra em algum lugar nesse continuum, porque sempre se come algo diferente de si e se é comido por uma outra espécie, sempre se está entre duas posições – a de predador e a de presa. Quando se aplica essa idéia a nós mesmos, surgem dois problemas. O primeiro é que, evidentemente, a gente se vê como humanos – precisamente como fazem todas as espécies. Não há, pois, garantias de que o modo como nos vemos (isto é, enquanto humanos) seja o Para os índios, inversamente, tudo é humano, ainda que a espécie humana seja privilegiada à medida que somos nós, os humanos, que estamos falando. Os índios não professam uma teoria irênica da conciliação de todos os seres vivos em que tudo seria bom, belo e verdadeiro porque humano. Ao contrário, se tudo é humano, então tudo é perigoso. Como sabemos, a única coisa verdadeiramente perigosa no mundo são os homens – os objetos não fazem mal (não por maldade, em todo caso). Os índios pensam também que, se uma coisa ou um animal é apenas isso, então eles não colocam problemas. Uma verdadeira onça não ataca os homens. Se ataca um homem, então não se trata de uma onça comum, mas de um homem disfarçado de onça, isto é, a onça em seu “momento” de homem. Porque os homens matam os homens e assim por diante. Também não se pode dizer que os índios são relativistas simplesmente porque dizem que cada espécie vê as coisas de uma certa maneira. Os urubus, por exemplo, vêem os vermes que pululam numa carniça na floresta como peixe assado porque comem esses bichinhos. Seria possível imaginar que a moral dessa história é a de que todos os modos de ver o mundo se equivalem, que tudo é relativo: os urubus vêem as coisas de uma certa maneira, nós, os verdadeiros humanos, de outra... Não se teria que escolher uma boa descrição da «realidade». De fato, não é nada disso. Os índios não dizem que cada espécie vê as coisas de uma maneira diferente. Ao contrário, o que dizem é que, se os urubus vêem apenas peixe assado, é exatamente porque eles são como nós que não comemos senão peixe assado. Portanto, se os urubus comem algo, isso deve ser para eles, obrigatoriamente, peixe assado. Cada espécie vê as coisas da mesma maneira. As coisas é que mudam. Os espíritos animais possuem tudo o que caracteriza qualquer cultura indígena, o xamanismo e todas as instituições sociais. Os urubus, as onças, todos os animais têm as mesmas instituições que os humanos. Moram no mesmo tipo de casas, comem o mesmo tipo de coisas, casam-se com alguém da mesma espécie, têm o mesmo tipo de doenças, e assim por diante. Não há, pois, várias maneiras de ver, há somente uma. Todo mundo vê da mesma forma. O que varia é o próprio mundo, e não o modo de vê-lo. Para nós, são as “visões do mundo” que diferem, mas o mundo permanece igual a si mesmo. Para os índios, a maneira de ver é sempre a mesma, ainda que passe de uma espécie para outra: o que muda é o próprio mundo. Tem-se, então, esta dupla inversão. De um lado, tudo é humano, embora cada espécie não o seja do mesmo modo (exatamente como nós ocidentais sabemos que, em sendo uma espécie animal, não somos animais idênticos aos crocodilos). A humanidade é universal, o espírito é universal, não o corpo. Para nós, é o corpo que é universal no sentido em que somos todos feitos da mesma substância – os átomos, o carbono, o DNA etc. O espírito, ao contrário, é sempre o lugar da diferença, da singularidade, da particularidade da cultura – o espírito coletivo – ou o espírito individual – o sujeito. É sempre quanto ao espírito que nos distinguimos. Do ponto de vista físico, todos nos comunicamos; porém, do ponto de vista metafísico, estamos todos separados. O grande problema para a ciência social espontânea do ocidente é como comunicar, pois não comunicamos ao nível do espírito, mas ao nível do corpo. O espírito é sempre solepsista. Donde essa série de intervenções que são o contrato social, o simbólico, a linguagem. É necessário deduzir um edifício conceitual gigantesco que explica como se pode comunicar, fazer coletivamente. Depois de Descartes, a única coisa de cuja existência se pode ter certeza é o eu. 23 A idéia de humanidade universal produz uma outra inversão. Se o espírito – ou, em outros termos, tudo o que é ou pode se tornar sujeito – se vê como sujeito e essa percepção constitui a base universal das coisas, então quem se é de fato? Os índios não vêem as onças como pessoas, eles não têm alucinações. O que eles dizem é que as onças têm alucinações, que elas se vêem como seres humanos; mas então, talvez nós também tenhamos alucinações. Eu sou um ser humano, então vejo as coisas como elas são para mim. Como peixe assado porque, para mim, o peixe é o peixe. E sei que aquilo que vemos como vermes, os urubus vêem como peixe assado. Ora, não sou um urubu; então, se começo a ver os vermes na carniça como peixe assado, isso quer que estou me tornando um urubu. Em outras palavras, o espírito do urubu capturou meu espírito e começa a me transformar em urubu. Evidentemente, isso quer dizer que estou muito doente, porque um homem deve continuar sendo um homem. É muito importante ver as coisas como um urubu ou um humano porque isso define de que gênero se trata. Eu sou um humano, devo ver as coisas como um humano as vê, não como as vê uma onça. Os xamãs têm o poder de ver como as diferentes espécies vêem, mas é necessário que voltem dessa viagem para contar a história. Se vêem as coisas como as onças as vêem e se ficam presos nessa visão, isso quer dizer que se tornaram onças e que não poderão voltar para contar a história: em resumo, trata-se de um xamã inútil e perigoso, um xamã «de mão única» que, evidentemente, deve ser eliminado. Os verdadeiros xamãs são espécies de andrógenos, são seres que, em vez de «terem» vários sexos, «são» várias espécies. Um xamã pode ver o mundo como uma onça, como um porco do mato e também, é claro, como ser humano. Um humano normal não pode fazer isso, exceto em sonho ou quando toma drogas. Se começa a ver as coisas como as vê uma espécie animal qualquer, isso é um sinal evidente de que está muito doente e deve ser tratado precisamente por um xamã que, ele sim, pode passar de um lado para o outro sem perder sua alma; literalmente, sem perder sua humanidade. Então, se é no plano físico que nos comunicamos e no metafísico que nos separamos, para os índios se dá o oposto – é no plano metafísico que eles comunicam porque tudo é espírito, tudo é alma, sujeito; é necessário, pois, que seja no plano físico, no sentido de corporeidade, que as espécies se distingam. O corpo das espécies, típico, específico, as características de cada espécie são apenas uma aparência. De fato, é sua maneira de ser no mundo, é o modo pelo qual o espírito universal se particulariza ou se «especifica». Se os urubus vêem os vermes como peixe assado, é porque os urubus habitam um corpo de urubu. O corpo é um instrumento e não um disfarce, não é uma fantasia, uma aparência de que alguém se reveste. Evidentemente, essa aparência animal é uma capa, mas é como um disfarce, uma aparência falsa de uma essência verdadeira; ao contrário, é um instrumento que especifica o espírito universal que, em si, é indeterminado. Portanto, a anatomia, o comportamento, a etologia de cada espécie é muito importante para os índios. O que explica, por exemplo, porque os índios são obcecados por mudanças corporais exatamente como nós somos obcecados pelas mudanças espirituais. Para nós, a educação é um processo eminentemente espiritual. Educação, formação, conversão religiosa, são processos que se dão no nível do espírito. As mudanças no plano do corpo não são importantes; não têm, digamos assim, valor jurídico-metafísico discriminante, embora, hoje, tudo esteja mudando. Digamos que, no regime da modernidade clássica, o corpo não tem sentido. Não se tem o direito de discriminar uma pessoa por causa de seu corpo, sua cor, chama «pão francês»…). Para os índios, é o contrário: «O que faz a mantivéssemos fixa a perna correspondente à natureza e fizéssemos seu sexo. O corpo não conta justamente porque não permite função de pão para você?» Se você fosse um urubu, diria que são os estabelecer diferenças significativas. Distingue-se uma ação como passível de punição ou não passível de punição no plano da vermes. Portanto, não são os sinônimos que devem ser encontrados, mas os homônimos é que devem ser separados. As «palavras» a da cultura descrever o círculo dos pontos de vista sobre esse centro que está aí, imóvel, em torno do qual gira a visão infinitamente consciência, do espírito, da intenção. Entre um homem e um mudam, mas as coisas são as mesmas. Para os índios, é a natureza diversificada – como o círculo é composto de infinidade de pontos – em torno da perna fixa da natureza. À primeira vista, os índios chimpanzé, por exemplo, há menos de 2 % de diferenças «genéticas» que muda, como se a gente tivesse um mundo onde todos falassem a parecem fazer o contrário. É a cultura que é fixa, no sentido de que em termos de cromossomos; portanto, praticamente não há distância corporal. Em contrapartida, a diferença jurídico-moral entre um mesma língua mas para se referir a coisas completamente diferentes, ao passo que, para nós, todos falam línguas diferentes mas, no fundo, há apenas uma cultura e que o que varia são os corpos que incorporam essa cultura, que dão a essa cultura expressões homem e um chimpanzé é incomparavelmente maior que entre esse mesmo chimpanzé e, digamos, um lagarto. Não importa o que ele para dizer as mesmas coisas. Somos todos humanos, temos todos os mesmos desejos, as mesmas esperanças – os mesmos “problemas”. A diferenciadas. Evidentemente, eu poderia acrescentar que não se faça, não se pode pôr um chimpanzé na cadeia exatamente porque questão é, pois, traduzir. Para nós, isso é fácil porque já sabemos pode fazer as duas pernas avançarem ao mesmo tempo, senão o compasso cai. Portanto, os índios não são relativistas. Porém, não se não é no plano das semelhanças corporais mas, sim, no das diferenças espirituais, pensamos nós, que essas coisas acontecem. O qual é a referência. Sabemos que um índio deve pensar como nós, basta simplesmente encontrar a palavra adequada. Para os índios, deve esquecer que, de fato, essa perna fixa, seja a da natureza ou a da cultura, se move sobre si mesma. Afinal, não é fixa. No ponto em chimpanzé, do mesmo modo que o lagarto, «não sabe» o que faz. Nós sabemos e nós podemos ser incriminados. Um louco não o pode. nunca se pode ter certeza de que se está falando da mesma coisa. Se um urubu lhe oferece algo para comer, é necessário, talvez, que você que as duas pernas se encontram, se situaria a separação entre natureza e cultura. É o momento “imediativo” da natureza e da Toda a metafísica, toda a responsabilidade (é a mesma coisa) passa se diga que aquele peixe não é o seu, que é talvez outra coisa, que é cultura, é o ponto de origem e o distanciamento entre o que é pelo espírito. As mudanças culturais também, para nós, são sempre uma questão do espírito. A conversão, mudar de modo de ver, mudar preciso, sobretudo, prestar atenção. Os problemas que essa metafísica se coloca são muito diferentes dos nossos, não são corporal e o que é espiritual. Nesse nível, tudo se encontra, não se o conteúdo do espírito – é o modelo da cultura para nós. Um índio não deixa de ser um índio quando se põe a “pensar como um problemas de falta de relação ou de ausência de comunicação. O problema não é o de uma humanidade isolada no mundo, «espaço pode dizer que um é móvel e o outro é imóvel, que um é fixo e o outro varia. Na realidade e ao mesmo tempo, aqui tudo é fixo e móvel. Natureza e cultura, universalidade e relatividade, são sempre branco”. Para o índio, é no nível do corpo que as mudanças contam. infinito que nos assusta». O mundo, ao contrário, é povoado demais resultados, nunca condições. É sempre depois do ponto considerado, É por causa disso que os índios concentram-se nos sinais de mudanças corporais – as mudanças de regime alimentar, as relações sexuais com não índios etc. – como signos e como indutores de por outras espécies de humanos, sempre houve muita gente no mundo. Não é um deserto antropológico como é para nós. Estender a categoria da humanidade foi uma conquista para nós, é necessário nas extremidades das pontas do compasso que os pólos se opõem e “aculturação”. Quando se vai a uma sociedade tradicional ameríndia, fazer passar o outro por um exame muito detalhado para que ele melanésia, uma coisa que acontece com todo antropólogo é ter possa ser admitido. «Será que os negros são humanos, os índios, as problemas para aprender a língua. Passados seis meses, a gente vai se queixar junto aos amigos indígenas dizendo: «escuta, sua língua é terrivelmente difícil, não consigo compreendê-la, esforço-me, mas é mulheres?» É preciso convencer os homens brancos de que as mulheres, os negros são também humanos. Enquanto que para os índios isso é evidente, é um dado, porque tudo é humano, isso não é um trabalho muito lento, não avança». Então as pessoas respondem: um problema. Há aquela história famosa contada por Lévi-Strauss e «é preciso que você coma nossa comida para aprender nossa língua». que, aliás, é suposta provar o etnocentrismo de todas as culturas e No fim de duas semanas, o etnólogo diz: «não faço outra coisa a não ser comer da sua cozinha e as coisas continuam iguais.» A resposta é: «Então é preciso dormir com nossas mulheres.» O tipo (admitamos que considero um condensador meta-reflexivo do Equívoco. Os espanhóis, no século XVI, quando se encontraram diante dos índios das Antilhas, enviavam comissões de inquéritos, padres, para saber que ele seguiu o conselho) volta depois de alguns meses: «Continua se os índios tinham uma alma, se eram realmente humanos ou tudo igual.» Desanimadas, as pessoas dizem então: «nesse caso, você animais com aparência humana. Eram eles pessoas que poderiam ser precisa tomar um de nossos alucinógenos, isso vai funcionar.» A essa altura, é preciso realmente ser idiota para que isso não funcione... cristianizadas ou não? Seria possível mudar seus espíritos (convertêlos), se é que tinham um espírito? Ao mesmo tempo, diz Lévi-Strauss relatando as palavras de um cronista da época, os índios tomavam os corpos dos espanhóis que conseguiam matar nas batalhas e os imergiam para observar se esses cadáveres apodreciam ou não. Porque a questão dos índios era: «Será que essas pessoas são pessoas ou fantasmas?». Lévi-Strauss toma essa dupla dúvida, essa dupla suspeita em relação ao outro, como um sinal de igualdade dizendo: «Vocês vêem, todo mundo pensa que o outro não é humano.» De fato, os espanhóis se perguntavam se os índios eram humanos ou animais, ao passo que os índios se perguntavam se os espanhóis eram humanos ou espíritos. Os espanhóis se interrogavam no nível da alma; os índios colocavam a questão no nível do corpo. É um equívoco clássico, no sentido em que a definição de humanidade era a mesma embora a exigência de humanidade fosse a mesma: na verdade, os dois lados queriam saber se o outro era humano. Mas os critérios de humanidade não eram os mesmos. Para os espanhóis, ser humano era ter uma alma como nós; para os índios, era ter um corpo como eles. É um equívoco do mesmo tipo que o do mito do herói esfomeado que chega à aldeia. Isso quer dizer que, para nós, a linguagem é uma faculdade eminentemente cerebral; portanto, espiritual. Para os índios, ao contrário, é algo que se passa no nível dos hábitos corporais. Ocorre como o sexo, como as substâncias corporais, como a alimentação – são coisas que se passam no nível do corpo. O corpo funciona, pois, como elemento de diferenciação; é no âmbito do processo corporal que as coisas ocorrem. O xamanismo indígena é organizado em torno da idéia de metamorfose corporal e não, absolutamente, no plano da noção de possessão espiritual. Para nós no mundo antigo, domina a idéia da conversão, da possessão como modelo de mudança. Guardase a mesma forma corporal, mas algo mudou porque se tem um outro espírito dentro, uma divindade, o demônio, o diabo. Alguma subjetividade poderosa capturou nossa aparência e se serve dela como seu instrumento. Somos marionetes dessa outra subjetividade que nos capturou. O xamanismo ameríndio é, ao contrário, maciçamente organizado em torno da noção da metamorfose corporal. Isso quer dizer “vestir” o hábito da onça e poder comportarse como uma onça – por exemplo, caminhar sem fazer barulho, subir nas árvores, comer carne humana. A possibilidade de trocá-lo está sempre presente no mundo ameríndio. É sempre um perigo. Para nós, muito evidentemente, é impossível. As espécies são fechadas no nível ontológico. Mas mudar de opinião, de mentalidade, é o centro em torno do qual se organizam nossas relações – a mudança de opinião. Evidentemente, a pedagogia ocidental tem um forte investimento no corpo, mas seu objetivo é sempre «elevar» (em todos os sentidos do termo) o espírito. O corpo é um instrumento para chegar ao espírito. É algo que se submete, que se treina para que o espírito possa se desabrochar. Não é o corpo pelo corpo. Entre os índios, a linguagem, que para nós é uma faculdade do espírito, é uma faculdade do corpo, é algo que se tem enquanto materialidade encarnada. «Pensar diferentemente», isto não existe. Os urubus pensam como nós. É precisamente porque eles pensam como nós, que se tem todos os tipos de equívocos terríveis. Há mitos muito divertidos (ou muito inquietantes, depende) que são encontrados em toda parte na América indígena, onde o herói está perdido na floresta e morrendo de fome. Vai dar numa aldeia desconhecida, muito bonita, cheia de belas mulheres e de belos homens que o acolhem de modo absolutamente hospitaleiro dizendo-lhe: “você deve estar esgotado, sente-se aqui, eu vou lhe trazer um prato de batatas doces bem assadas”. O herói agradece, mas trazem-lhe, de fato, um prato cheio de cérebros humanos ou algo nojento. O homem diz então: «Mas isso não são batatas doces, imaginem!». E o herói passa a concluir que, se seus anfitriões tomam os cérebros por batatas doces, então não são seres humanos; são pessoas perigosas. O mito é apenas isto: o périplo de um homem que vai de aldeia a aldeia e, a cada vez, cai num equívoco em que coisas diferentes são chamadas pelo mesmo nome. As pessoas não o enganam, você tampouco se engana, são as pessoas que se enganam entre si. É o equívoco como modelo. Se cada cultura vê as coisas de modo diferente, o problema é encontrar sinônimos para as mesmas coisas. «Como se chama nosso pão em português?» (no Rio, exatamente, se _ Que conclusões tira você dessa reviravolta em relação à nossa metafísica ? JCR EVDC _ Caso se parta de nossa metafísica, uma das maneiras possíveis – talvez a mais cômoda embora não a mais sofisticada (é uma lítotes) – de discernir o que dizem os índios é começar por inverter nossa metafísica, como dizia Marx a respeito da de Hegel (embora, de modo algum, no mesmo sentido – a inversão, quero dizer). Essa inversão é uma perspectiva, não é uma inversão absoluta. Ela tem antes de tudo, para mim, uma finalidade terapêutica; lembrando Montesquieu, digamos que ela me permite imaginar como se pode não ser europeu. Há o ponto de vista ocidental e há o dos índios, talvez só haja esses dois. Ou talvez haja três, quatro, ou mil – mas são sempre pontos de vista que estão aí e que, finalmente, como você diz, se equivalem. Não se tem que escolher. É exatamente o que estou em via de não dizer, no sentido de que é a noção de ponto de vista que depende de nosso ponto de vista. Minha questão é: qual é o ponto de vista dos índios sobre o ponto de vista? Não é saber qual é o ponto de vista dos índios sobre o mundo, porque isso já seria dirigir a resposta. Porque isso já supõe que o ponto de vista é uma coisa, o mundo uma outra, que o mundo é exterior ao ponto de vista e que é necessário que se deixe o mundo quieto (isto é, nas mãos dos cientistas duros) para fazer variar o ponto de vista (questão para os cientistas moles). É necessário dar ênfase ao mundo e deixar o ponto de vista variar; de qualquer modo, isso não tem importância, o mundo é mais importante que todos os nossos «pontos de vista». Porém, evidentemente, as coisas não são bem assim. Em vez de fazer isso, vamos perguntar aos índios qual é seu ponto de vista sobre o ponto de vista, isto é, como se colocaria a questão do ponto de vista segundo o ponto de vista (no sentido ingênuo do termo) dos índios? Minha metáfora é a das pernas de um compasso. Para que uma perna possa se deslocar, é preciso que a outra esteja fixa. É como se 24 nunca antes, onde não há esse distanciamento. O que procuro fazer é colocar-me no nível em que o distanciamento começa a se estabelecer para ver o que dele resulta. Para ser relativista, é preciso ter sempre um universalista ao lado para marcar o contraste - e vice-versa, é claro -, a fim de que questão do relativismo possa ter sentido. Os índios se colocam de uma maneira perfeitamente transversal em relação a essa alternativa. Não são relativistas, pois dizem que só existe uma forma de se ver o mundo. Os índios dizem que as onças são humanas, que eles próprios são humanos, mas que eles e as onças não podem ser humanos ao mesmo tempo. Se sou humano, então, neste momento, a onça é somente uma onça. Se uma onça é um humano, neste caso, então, eu não seria mais humano. Não se trata absolutamente de derramar essa qualidade de humanidade de modo indiferente sobre a totalidade da criação mas, sim, de dizer que essa posição é universal; porém, de uma universalidade sempre relativa. Um universalismo relativo à espécie. JCR _ Relativo, portanto, no sentido em que não se sabe o que, finalmente, é o humano. Não se pode qualificá-lo. Desse ponto de vista, é uma qualidade nominal. EVDC _ Exatamente. Mas, por outro lado, isso impõe aos humanos, a nós, uma tarefa pesada, no sentido de que é necessário se fazer humano. Todo o aparelho social, todo o trabalho das sociedades ameríndias amazonenses é produzir humanos, corpos verdadeiramente humanos. Vêem-se, pois, paradoxos absolutamente característicos desse tipo de metafísica e que são diferentes de nossos paradoxos. Os índios se fazem corpos humanos com pedaços de corpos de animais. Eles se colocam penas, marcas, desenhos de formas, manchas de sucuris etc., para se fazerem um verdadeiro corpo humano! Todas essas marcas, todas essas decorações teriomórficas que são colocadas sobre o corpo são uma maneira de humanizá-lo. Você não é um verdadeiro humano, ou você é menos que um humano, se seu corpo não é diferenciado. Porque, afinal, o corpo humano enquanto tal é demasiado genérico, os animais também se tomam por humanos. Os animais também têm um corpo, no sentido de que têm braços, pernas, um nariz, uma boca, um fígado, pulmões, exatamente como nós. Ter um corpo humano não é um grande trunfo; o que é necessário é marcar, definir esse corpo genérico. E é nesse sentido que, numa sociedade indígena, a educação em seu sentido genérico é sempre uma disciplina corporal. É pelo corpo que as coisas passam. A iniciação, a educação, são processos de intervenção sobre o corpo e não uma intervenção direta sobre o espírito. JCR _ Seria importante que você explicasse melhor em quê o fato de se revestir de atributos animais faz com que, enquanto corpo humano genérico, a pessoa se torne mais humana. EVDC _ O corpo humano enquanto tal não tem instrumentos de autoparticularização. É demasiado genérico no sentido de que é, de fato, a forma de todas as almas. As almas das onças vêem outras onças como corpos humanos. O corpo humano é, pois, uma espécie de corpo da alma. Para se fazer um verdadeiro corpo, é necessário tomar emprestado onde há onde há verdadeiros corpos. Ora, onde existe isso? Entre os animais. Portanto, tomam-se partes dos animais, próteses animais, e se cobre com elas para se tornar um humano – este é o paradoxo característico. Nós temos outros paradoxos. Por exemplo, escravizamos pessoas com a intenção de libertá-las. Eles têm outros paradoxos. JCR _ Por que, então, é importante se distinguir enquanto corpo humano genérico ? EVDC _ Porque, não o fazendo, seria possível ser transformado, ser tomado por um outro. Quando nasce uma criança, a primeira coisa que se faz é ver se é humana ou não. É preciso olhar o bebê e ver se, realmente, é um filho de humano, ou se é um espírito, ou talvez o filhote de um animal que teria deitado com uma mulher, mesmo em sonho, e que teria feito um monstro. Portanto, a primeira coisa é decidir se o bebê é um humano em potencial ou se já é um animal. Caso tenha um defeito físico, é jogado fora porque é, de fato, um animal. Se tem a aparência de um ser humano, é conservado mas, em seguida, é necessário tomar todos os tipos de medidas para que ele não seja capturado, seqüestrado por outros sujeitos (isto é, sujeitos diferentes). Porque, em princípio, toda vez que nasce um humano, os animais e os espíritos em geral ficam muito enciumados. Querem a criança para eles, querem capturá-la. É necessário, pois, proteger a criança. Ela é frágil porque sua humanidade é frágil, não é simplesmente seu corpo que é frágil, mas seu estatuto ontológico é muito frágil. É um corpo, digamos assim, com um pé na humanidade e o outro no além. Deve-se, pois, tomar todas as providências para que ela seja, de forma clara, definida como um humano. Para isso, é preciso raspar-lhe o cabelo, pintá-la, furá-la, moldá-la para que se torne humana como nós. Tudo comunica; portanto, é preciso diferenciar. É preciso distinguir. JCR _ Essa diferenciação passa pelo se revestir de atributos animais porque eles são, por excelência, as marcas do corpo. Os animais são, de certa forma, desviados de sua identidade. Assim, dos seres constituídos de pedaços, literalmente se fazem monstros. EVDC _ Realmente. Pega-se um pedaço de onça, um pedaço de sucuri, e se faz uma criança que tem vários corpos; ela é, portanto, humanizada por excesso e não por falta. JCR _ Será isso que você chama de multinaturalismo ? EVDC _ A palavra multinaturalismo é uma provocação – embora seja totalmente séria. Era uma brincadeira com meus colegas norteamericanos que gostavam do «multiculturalismo». Isso supõe, de fato, um «mononaturalismo» que possa servir de pivô em torno do qual se movem as culturas. E se fosse o contrário? Se houvesse um multinaturalismo e não um monoculturalismo? Pensei que era exatamente isso que os índios pareciam fazer quando dizem que os urubus bebem cerveja, comem peixe assado, como nós e os porcos do mato. Exceto que o que o urubu chama de cerveja não é o que chamamos cerveja, e não é o que os porcos do mato chamam de cerveja. Se todo mundo bebe cerveja, ela não é a mesma para todo mundo. JCR _ Na realidade, então, se trata de uma espécie de nominalismo generalizado... EVDC _ De certa forma sim, mas é mais que isso, pois não se trata de uma questão de convenção, de designação, de flatus voci. Trata-se principalmente de um relacionismo generalizado, no sentido de que «humano» não é o nome de uma substância no sentido aristotélico do termo, mas é o nome de uma relação, de uma certa posição em relação a outras posições possíveis. “Humano” é sempre a posição do sujeito, no sentido lingüístico da palavra, é ele que diz «eu». Portanto, se se imagina uma onça dizendo “eu”, essa onça é imaginada como humana, imediatamente. A humanidade não é uma propriedade de algumas coisas em contraste com outras, mas uma diferença de posição, não de substância. Nós fazemos uma espécie de inspeção metafísica; olhamos, por exemplo, quatro objetos e concluímos que alguns têm a propriedade de ser humano e os outros não, segundo certos critérios fáceis de se enumerar. Essa propriedade é fixa. O que imagino que os índios diriam é o contrário. O humano não é uma questão de ser ou não ser; é estar ou não estar em posição de humano. A humanidade é muito mais um pronome do que um nome. A humanidade somos «nós». A possibilidade de se colocar a si mesmo enquanto enunciador é universal. Não é, pois, uma qualidade mas, sim, um dado. É um princípio. Em termos de economia cognitiva, isso é muito importante – não se trata de afirmar que os índios dizem que todos os animais são humanos como um naturalista europeu poderia dizer. Não é uma definição podendo ser compreendida como uma extensão. Porque todas as espécies podem ser consideradas como humanas num momento ou noutro. Nada impede que um xamã tenha um sonho em que formigas lhe falem. Aí ele dirá que as formigas são humanos, e isso se torna perfeitamente aceitável porque não há objeções, em princípio, em termos de ontologia fundamental, que digam que as formigas não podem ser seres humanos, porque “humano” quer dizer isso ou aquilo. Tudo é humanizável. Nem tudo é humano, mas tudo tem a possibilidade de se tornar humano, porque tudo pode ser pensado em termos de auto-reflexão. É isto o animismo indígena. É estender a tudo a possibilidade de reflexão. Se tudo é humano, é perigoso, porque as coisas não são aquilo que aparentam. As aparências podem esconder profundezas desconhecidas. Portanto, tudo é perigoso e fascinante nesse mundo. BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX . sociedade industrial o tempo era dinheiro, e tudo era otimizado, agora está ainda mais otimizado. Isso pode ser visto nos mercados P EKKA HIMANEN financeiros, onde o PIB (Produto Interno Bruto) do Reino Unido ou da França se movem em direção a metas mais otimizada todos os PEKKA HIMANEN , DIRETOR DO BERKELEY CENTER FOR INFORMATION SOCIETY , É UM DOS MAIS CONHECIDOS PESQUISADORES DA ERA DA INFORMAÇÃO . SEU LIVRO MAIS CONHECIDO É THE HACKER ETHIC , RANDOM HOUSE - 2001 - HIMANEN FOI TAMBÉM CO - AUTOR , COM MANUEL CASTELLS , DO LIVRO THE INFORMATION SOCIETY AND THE WELFARE STATE , OXFORD UNI VERSITY PRESS - 2002 - WWW . PEKKAHIMANEN . ORG TRADUÇÃO DE GAVIN ADAMS HELSINKI _ 28 DE AGOSTO DE 2004 A sociedade de redes está em uma fase de desenvolvimento, após a sociedade industrial. A sociedade de redes é global por natureza. O que chamamos de mundo global está baseado na infraestrutura tecnológica da sociedade de redes, que começou a emergir na década de 1970. A infraestrutura tecnológica desta sociedade diferente não foi desenvolvida por corporações ou por governos, mas sim por um grupo de indivíduos que juntaram suas forças e batizaram a si próprios de hackers. Eles criaram a Internet, a World Wide Web e muitos dos softwares usados para manter a sociedade de redes funcionando, como o sistema operacional Linux. Quando chamaram a si mesmos de hackers, eles não queriam dizer criminosos da computação, que é o que a palavra significa hoje para as pessoas. Naquele tempo, ser um hacker significava ser um entusiasta, gostar do que fazia e querer compartilhar isso com os outros. Havia um desejo de pertencer a uma comunidade maior que compartilhasse da mesma paixão. É uma comunidade enriquecedora onde o dinheiro não é o motor – mas, sim a paixão criativa e o fazer juntos. Os hackers vêm principalmente do mundo universitário e da comunidade científica, da ciência da computação. Eles dividem suas criações abertamente com os outros. Abertura quer dizer que qualquer um está livre para criticar ou desenvolver qualquer coisa. É uma comunidade auto-selecionada no mesmo sentido que são as comunidades científicas ou artísticas, na sua maioria. Não há estrutura formal. O vínculo entre a ética hacker e a sociedade de redes advém do fato de que a ética hacker é uma ética de trabalho criativo. É uma ética de trabalho-inovação. Isso poderia ser uma expressão alternativa para a ética-hacker, de modo que, o que acabo de descrever sobre a paixão criativa e a comunidade de pesquisa no mundo hacker, também se aplica a outros tipos de trabalhos. Temos toda sorte de trabalhos criativos, de pesquisa à arte, mídia, medicina, todas elas baseadas em inovações de pessoas com este tipo de ética de trabalho. A ética hacker original era bem diferente do rígido espírito capitalista. Ela tinha um núcleo de valores diferentes. Atualmente, estamos testemunhando uma batalha entre duas culturas diferentes da sociedade de redes, uma delas sendo a continuação do velho espírito capitalista, e a outra sendo a ética hacker original. Para mim, é importante não enfatizar como a comunidade hacker é diferente de outras comunidades. A razão pela qual eu escolhi descrever esta ética de trabalho é que eles foram os primeiros a se dar conta deste novo tipo de trabalho. Outra razão é que eles construíram a infraestrutura material para a sociedade de redes e foram eles a ponta de lança para o surgimento da sociedade de redes. Eu acho que é apropriado usálos como exemplo, e sua expressão, para capturar algo que é ainda mais verdadeiro em termos mais gerais. Em muitas economias avançadas, a classe criativa já perfaz um terço da força de trabalho, pessoas cujo trabalho é a inovação ou a criação de algo novo em todos os campos da vida. As economias estão cada vez mais baseadas no trabalho-inovação. A chamada ética protestante do trabalho, descrita por Max Weber, não limitou-se aos países protestantes, era a ética do trabalho Industrial. Segundo esta ética, você encara o seu trabalho como um dever, em que cada um deve realizar a parte que lhe cabe e onde o sofrimento é até nobre. Isso fazia muito sentido quando muito do trabalho era rotineiro. Fazia sentido economicamente ensinar este novo tipo de ética de trabalho. Na sociedade de redes, até mesmo as companhias estão mudando, pois este tipo de cultura do trabalho não é inovador o suficiente para que as companhias permaneçam à frente na competição global. _ Então, o que você chama de uma ética hacker é uma maneira de radicalizar o capitalismo em vez de desafiá-lo ? JCR PH _ Eu quero estabelecer uma diferença entre a ética de trabalho e o que eu chamo de ética do dinheiro. No nível da ética de trabalho, eu creio que a sociedade capitalista de redes está mudando em direção à ética hacker, que também é baseada na criatividade, em compartilhar a paixão e assim por diante, mas no nível do dinheiro, há um conflito. A visão de mundo da ética de trabalho hacker possui valores muito diferentes. Por exemplo, o conceito de tempo é bem diferente na sociedade industrial onde tivemos o Taylorismo, e todos os outros tipos de dias, a todo segundo, a toda fração de segundo. Temos uma sociedade onde a economia é extremamente veloz, que também se reflete na vida de trabalho das pessoas. O tipo de experiência que têm em suas vidas-trabalho é mais e mais uma luta de sobrevivência, apesar de todo o desenvolvimento tecnológico e econômico. Tentamos sobreviver, agitados, todos os compromissos e projetos do dia. Este é o dia de trabalho moderno, e ele se espalha para nosso tempo de lazer. Nosso tempo de lazer é otimizado: não mais jogamos despreocupadamente uma partida de tênis, mas praticamos nosso backhand ou temos algum tipo de tabela de horário tanto para comer quanto para trabalhar. A otimização é a tendência dominante, e é acelerada na sociedade de redes. Mas esta nova tecnologia também apresenta um desafio ao conceito de tempo, porque não apenas permite que se façam coisas mais rapidamente, mas também está tornando possível fazer coisas em tempo não sincrônico, de modo que não precisamos trabalhar todos no mesmo ritmo. Em princípio, ela dá mais liberdade às pessoas na escolha de seus estilos de vida, para combinar as vidas de trabalho e de lazer, juntas. Então temos projetos de despertar como The Clock of the Long Now [O Relógio do Longo Agora], onde temos a idéia de construir um relógio que desafia a maneira como ele nos domina. JCR _ É uma maneira de desafiar o tempo presente e ampliá-lo expandir o tempo, até certo ponto, se estende em direção a um futuro muito amplo e um antes muito amplo. Então talvez seja possível dizer que é uma visão aberta do tempo, que faz do tempo ser mais como um espaço ? _ The Clock of the Long Now dá um toque a cada ano. Dá uma badalada a cada século, e o cuco sai a cada milênio. A ligação com os hackers é que ele transcende a perspectiva de tempo rotineira, mais imediata. Começamos a pensar em uma perspectiva muito mais longa. A razão para construí-lo foi criar uma imagem simbólica para promover uma nova perspectiva de tempo em nossas vidas. PH Na década de 1960, a idéia de que poderíamos criar uma rede global que aproximasse o mundo era uma destas idéias que não fazia sentido, pois não podíamos visualizar nenhum resultado no trimestre corrente da economia, nem mesmo depois de alguns anos. O mundo da computação hacker baseia-se neste tipo de idéias tecnológicas de longo prazo. Em outras esferas hacker, como a medicina, temos razões de longo prazo que estão realmente a produzir ações concretas. Por exemplo, a tentativa de entender o DNA para reprogramá-lo e erradicar o câncer em 25 anos, ou coisas assim. É um tipo de perspectiva de longo prazo e de um estilo de vida mais relaxado que muda nossa perspectiva do tempo. A ética de trabalho industrial trouxe um estilo de vida mecanizante sem espontaneidade na vida, nenhum aspecto lúdico. Trabalhamos 50 semanas por ano; temos duas semanas de feriado e um par de horas de lazer quando vamos ao Shopping Center. Este não pode ser o nível mais alto de desenvolvimento humano, ou a razão pela qual o mundo global se desenvolve. Em certo sentido, esta nova visão de tempo torna possível manter horas livres, pois o que fazemos é baseado na meta do projeto e menos no tempo usado para sua realização. Temos novos interesses na sociedade hacker. Um dos mais importantes é o meioambiente, e é isso também que faz com que o conceito de tempo seja tão crítico. Pois, se começamos com o conceito capitalista de tempo, já estamos na pista errada em termos da compreensão de questões ambientais, que são sempre questões de longo prazo. O movimento ambientalista é um movimento hacker. Trata-se de indivíduos juntando seus recursos, compartilhando abertamente em um nível global, como o movimento hacker. Há um vínculo muito forte entre os dois movimentos. JCR _ É possível dizer que os hackers, como uma classe criativa de indivíduos altamente bem formados, compõem uma nova classe social ? PH _ Classe está errado pelas seguintes razões. Primeiramente, estas pessoas, engenheiros de computação, artistas, cientistas, pessoas trabalhando na mídia, na medicina e em muitas outras áreas, não sentem que formam uma comunidade com interesses similares para defenderem. Os hackers estão em toda a parte, desde o mais baixo até mesmo no topo. Portanto, eles não formam uma classe. Mais importante, eu não acho que eles sejam a elite de nossa sociedade. Muitos destes hackers estão de fato desafiando a estrutura de poder em nosso tempo. Se observarmos o mundo da computação, e vermos o movimento de software de código aberto (open source), ele desafia toda a indústria da tecnologia da informação, como quando Linus Torvalds trabalha com o sistema operacional Linux. A indústria da informática do momento, construída por Bill Gates e pela Microsoft, está baseada na idéia de fechar informação e dominar todo o maneiras de otimizar nosso tempo. Mas a velocidade das coisas era ainda relativamente limitada, do nosso ponto de vista. Na sociedade desenvolvimento, de modo que todo tipo de informação pode ter dono. Eles tentaram estender todos os tipo de patentes e copyrights, cada vez mais. Esta é a idéia dominante da indústria da tecnologia da de redes, com a nova infraestrutura tecnológica, temos praticamente um mundo de ação em tempo real, de modo que a tecnologia não informação. O sistema operacional Linux é um sistema de software de código aberto, o que significa que todos estão livres para usá-lo e mais apenas flui, ela aumenta nossa velocidade ainda mais. Se na desenvolvê-lo. A informação não é mais propriedade de alguém ou 25 fechada para outros. Isso causou muita tensão no mundo da global. Isto é parte do argumento de Manuel Castells a respeito do se move numa superfície plana, ou numa oblíqua, ou numa outra informática. Na medicina e na biotecnologia, hoje também temos um por que a União Soviética ruiu. Uma sociedade fechada era incapaz com arestas?” movimento de fonte aberta. de transformar-se em uma sociedade de redes. Até a década de 1960, ela tinha o mesmo nível dos Estados Unidos na ciência da Atualmente, a abordagem do movimento já é mais reconhecida. Não Quando o mapa de genoma humano foi criado, houve uma grande competição. A competição se deu entre uma companhia comercial, que queria fechar toda a informação, e um projeto público. O projeto público estava atrás do comercial. Mas havia um hacker que começou a organizar o projeto público para alcançar o projeto comercial, e no fim eles terminaram antes do projeto comercial. computação, sem mencionar a Física, Matemática e assim por diante, nas tecnologias chave, nas áreas científicas chave da mesma forma que nos Estados Unidos, mas a informação era um segredo fechado dentro de seus LABS militares secretos, e não se espalhou à sociedade como um todo, e então começou a ficar para trás dos Estados Unidos. O papel da inovação, e do fato que ela requer um fluxo aberto de há nada de surpreendente em ver pessoas comuns dançando. Robert Wilson usa qualquer pessoa; adora usar pessoas surdas, cegas, gordas, baixas, altas... Isso não tem nada de novo. É o que chamam somático. Na época em que fundaram o Judson Theatre em Nova York e seguiram suas pesquisas, eu estava começando a me perguntar como vincular o movimento aos sentimentos e de onde vem a expressividade ou o impulso da arte. Onde você dança, por que você Eu acho que assistiremos ao surgimento do bio-hacker, que aprenderá o DNA como se aprende as linguagens de programação. Isso desafiará informação, que encoraja novas maneiras de pensar, está em conflito com as sociedades fechadas de nosso mundo. a idéia de tentar ser dono de toda a informação genética dos seres vivos. Mas eu acho também que o movimento de ética hacker inclui dança e para quem? Ficaria a platéia simplesmente sentada, esperando ser entretida, ou avaliaria o espetáculo, daria opiniões, ou Quando meu livro foi publicado em 2001, o debate sobre a sociedade o intelectualizaria, ou apenas iria embora, tomava um café e esquecia de redes focava na tecnologia e na economia. Não havia muito interesse na dimensão social do desenvolvimento. A economia tudo? Ou teria a natureza da performance a ver com o que afeta minha vida? Como vou trabalhar estas coisas, que sentimentos me ‘pontocom’ era uma visão simplista do mundo. Questões sociais globais que tem a ver com questões de sistemas de informação transmitem? artistas - digamos, por exemplo, o que acontece com a música. Existem cinco companhias que hoje dominam a indústria musical, e eles estão processando todo mundo todo o tempo por compartilhar música com os outros, então há uma grande tentativa das grandes companhias de tentar fechar o conteúdo musical e possuí-lo de forma cada vez mais fechada, mas existem muitos artistas que formam um tipo de novo movimento de software de código aberto, que querem compartilhar suas coisas mais livremente com os outros. A idéia de software de código aberto não é que não possamos cobrar pelo compartilhamento, mas o ponto é mantê-lo aberto, de modo que algumas outras companhias também possam fazer dinheiro com ele. Eles estão fazendo dinheiro mas não estão fechando o processo de desenvolvimento a outros. Já existe uma atitude que diz estarmos prontos para viver em um nível bem baixo de riqueza material, contanto que possamos devotar nossas vidas a fazer o que sentimos ser importante, então neste período temos ao fundo o espírito da ética hacker. A ética hacker se aplica também, em meu ponto de vista, ao movimento anti-globalização. Se observarmos os tipos de grupos, eles são indivíduos que realmente se preocupam e se apaixonam por uma questão. Eles querem juntar forças com outros que compartilhem todas as idéias abertamente uns com os com outros. Eles se organizam como o mundo hacker. É importante notarmos que há uma série de desenvolvimentos acontecendo nos chamados países em desenvolvimento. Se observarmos quem está desenvolvendo o sistema Linux, verificamos que há muitas pessoas que o desenvolvem fora dos países ocidentais. Os lugares aos quais está se espalhando mais rapidamente são claramente os países não ocidentais. A razão é que os países em desenvolvimento permanecem estruturalmente subordinados enquanto o conhecimento de ponta for fechado a eles pela autoridade principal do mundo. Comprar o Microsoft Windows não os ajuda. Eles não aprendem nada sobre a criação de tecnologia desta maneira, e tornam-se subordinados a essa companhia norte-americana. Muitos países, portanto, estão pensando que o que eles precisam é adaptar soluções de de software de código aberto, onde eles também aprendem como construir esse tipo de sistema. Em Berkeley, realizamos muitas análises de diferentes países e como eles se encontram na sociedade de redes. Um destes países, Gana, tem a apenas algumas dúzias de pessoas que tem um alto nível de habilidades de programação. Não existem departamentos de ciência da computação em nenhum lugar do país. A educação de ciência da computação nas universidades é de nível muito baixo. A única maneira de expandir o conhecimento em um país como esse, é conectar-se a uma grande comunidade hacker na Internet. O que aconteceu, em parte, foi que eles estão aprendendo ao tomar parte nas abordagens de de software de código aberto. Esta é uma maneira de reduzir o hiato de conhecimento e expandir o grupo de pessoas que têm acesso à tecnologia. A ética hacker tornou possível um “movimento global anti-global”. Mas a ética hacker não é um movimento político. Existem os hackers políticos, mas nem todos os hackers são políticos. Não há uma agenda política ou uma visão que todos os hackers compartilhem, mas a ética hacker original da década de 1960, quando todo o desenvolvimento começou, era uma visão de um mundo mais aberto. Era a visão de um mundo em que a ganância econômica não vem à frente de valores sociais, um mundo onde a abertura tem um valor maior do que fazer dinheiro. Isso leva a uma visão global, pois se observarmos o que realmente aconteceu, veremos que os países em desenvolvimento continuam a ser marginalizados, e continuam a sofrer muito. Um bilhão de pessoas vivem com um dólar ou menos; um bilhão de pessoas sofre de desnutrição e assim por diante; 30,000 pessoas morrem todos os dias de doenças facilmente preveníveis, de doenças para as quais há remédios. Isso também evoca o fechamento da informação. Aqui temos um exemplo concreto do que significa fechar a informação à maioria do mundo. Isso significa conseqüências na vida real. A tendência da ética hacker é ser comunicativa. A Internet criou um fórum global de comunicação entre culturas. A ética hacker baseia-se na idéia de liberdade - liberdade da pessoa, liberdade de informação. Ela não é compatível com a idéia de uma sociedade fechada. Eu acho que as sociedades fechadas vão entrar em colapso com a tendência abertos ou fechados em relação a países desenvolvidos e em desenvolvimento, além de questões como o comércio livre e o hiato do conhecimento, são agora tópicos centrais em andamento. Descobri que, do ponto de vista filosófico, os trajes da dança moderna não são diferentes daqueles do balé. Em vez da malha com saiote curto, usa-se um vestido longo e fica-se descalço. Ao invés de utilizar modelos de tradição clássica, usam-se modelos de movimento Eu creio que duas coisas mudaram nosso entendimento da sociedade global de redes, não tanto no nível teórico, mas no nível prático. Uma delas foram as demonstrações anti-globalização muito visíveis, nos de outra pessoa. Nesse processo de começar do zero, surgiu um novo leque de perguntas: por que, nos tempos mais antigos, as pessoas dançavam? Quais são as origens da dança? Durante muitos anos, fui EUA e em outros lugares; a outra foram os ataques ao World Trade a todos os festivais indígenas norte-americanos que pude e também Center. Estes eventos tornaram claro que o desenvolvimento global fui a Bali. Vaguei pelo mundo vendo como as pessoas dançavam, não pode ser apenas econômico e tecnológico, mas precisa também ser social. Eu penso que a percepção de que isso é o caso é muito maior do que o que foi antes. buscando algo que me levasse às raízes da dança. Concluí que, de início, a dança era parte da vida das pessoas. Quando você observa os indígenas e seus rituais, todo mundo sabe exatamente o que está Eu diria que o hacker de computadores e os grupos anti-globalização não estão trabalhando mais juntos hoje do que antes, mas ficou mais claro a todos em toda esta ação que existe uma dimensão social crítica, então as conseqüências sociais globais de uma ação de cada um são mais fortes. Não é coincidência que o movimento começou ou foi especialmente forte na Califórnia e na baía de São Francisco, pois lá é também o centro da informática capitalista, Silicon Valley, e também era o lugar do “anti-” nos Estados Unidos. Todos os tipos de movimentos de contestação começaram ou tornaram-se significantes na Califórnia, desde os hippies até o movimento gay e de liberdade de expressão. Culturalmente, é o tipo de ambiente em que se pode esperar que algo desta natureza aconteça. BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER acontecendo e por que está fazendo. Fiquei impressionada com uma dança do milho em que uma mãe dançava com seu filho. A mãe tinha o bebê nos braços e o bebê estava recebendo um código: sabia, por experiência, o que aquela dança significava; naquela tribo, crianças de quatro anos dançavam com pessoas de noventa. A natureza de uma performance é unir o público e os performers numa criação mútua que terá um impacto em suas vidas e lhes trará uma experiência. À medida que comecei a investigar como o movimento está conectado aos sentimentos, percebi que sem expressividade ou impulso artístico, você definha. Comecei a questionar o que traria à tona os sentimentos dos seres humanos. Quando você se move e esse movimento gera um sentimento específico, você diz “Me sinto triste porque...”, “Me sinto irritado porque...”, “Me sinto romântico porque...”, “Me sinto carinhoso porque...” O “porque” o vincula a sua história pessoal, que é seu mito pessoal. Quando se usa a palavra “porque”, lida-se com um mito, com uma história pessoal. Foi assim que começamos a desenvolver importantes rituais de transformação. Combinei movimento com desenho, com trabalho vocal, com palavras: uma abordagem completa. A dança é um ritual e nisto, sua intenção é a de transformar o medo da morte em aceitação da morte como parte da natureza. ANNA H ALPRIN ANNA HALPRIN É PIONEIRA DE LONGA DATA E INOVADORA DO “ NOVO TEATRO ”. LIDEROU A EVOLUÇÃO DA PERFORMANCE COMBINANDO A IMPROVISAÇÃO , A PARTICIPAÇÃO DO PÚBLICO , TEATRO AMBIENTAL E DE RUA , E A CRIATIVIDADE COLETIVA . ELA FOI INDICADA PELA DANCE HERITAGE COALITION COMO TESOURO INSUBSTITUÍVEL DA DANÇA NA AMÉRICA DO NORTE . TRADUÇÃO DE JÔ AMADO SÃO FRANCISCO _ 28 DE JULHO DE 2004 A primeira parte de meu trabalho, o período vanguardista, tratava de apagar fronteiras. Do jeito que eu o via, minha primeira tarefa consistia em redefinir a dança: começar do zero e eliminar os trajes da dança moderna enraizados em nossa cultura. Estudei movimento porque estava interessada na natureza da performance, em identificar sua essência. Utilizei o movimento como base, tentando redefini-lo e, ao longo do processo, o dançarino e quem tenha vocação para dançar. Para me libertar da couraça, tive que voltar aos primórdios do movimento, começando pelo interior mais profundo: o corpo interior, a estrutura óssea e o sistema nervoso, os órgãos e os músculos. No processo de estudar como o corpo se movimenta, encontrei uma maneira científica de objetificá-lo. Devia me perguntar: “Como você se move? O que você faz quando se move? Quais são as tarefas do movimento?” Então, comecei a observar o movimento do cotidiano, começando pelo mais simples. Isto é, perceber como surgem os movimentos que visam a uma tarefa. Quando você se movimenta, você carrega coisas, empurra ou levanta coisas. Meu vocabulário de movimento consiste no que chamo posições de ouro: estar deitado, sentado, em pé ou se movendo pelo espaço. Não tomava por base apenas meu movimento, e sim, o de todo mundo. Ao fazê-lo, você se movimenta no tempo, no espaço e com uma certa força. O espaço, o tempo e a força eram os elementos com que eu trabalhava, os instrumentos que davam forma ao movimento e que me levaram a criar movimentos que se inspiravam em ambientes determinados. Numa dessas experiências, perguntei: “O que acontece quando você 26 Meu genro, um norte-americano de origem indígena, costumava dizer: “Nunca pensei que a dança fosse considerada bonita. Achava que fazia parte da vida cotidiana.” As pessoas dançam porque através da dança alcançam um poder superior, um espírito para além das palavras, para além da informação que a mente passa ao corpo. Na dança, o corpo informa a mente. Os indígenas norte-americanos usavam a dança para lidar com coisas concretas – nascimento, morte, iniciação da juventude, cura de doenças. Todos os momentos importantes na vida das pessoas se transformavam por meio da dança. Eu me perguntava se a dança, ao invés de uma imitação, poderia novamente ter esse poder de transformação. Conseguiria a dança resolver e curar conflitos em nossa própria cultura, em termos de nossos próprios pontos de vista científicos e filosóficos? Investigando e estudando os ingredientes dos rituais – de qualquer ritual – me levou a compreender que o ritual é inerente ao processo da dança. O espetáculo Parade and Changes é do período de meu trabalho em que eu estava tentando romper com todos os tabus que me ocorressem. Por isso, o uso da nudez é uma maneira de dizer: “Fazemos parte da natureza e nossos corpos são lindos.” Por que temos que os cobrir? Parade and Changes tinha uma trilha sonora fascinante. Tínhamos um músico que tinha partituras distintas para espetáculos diferentes. Os dançarinos, o escultor, o rapaz da iluminação, cada um tinha sua função, sua ação específica. Você podia misturar as partituras como quisesse. Às vezes, o escultor subia no andaime de onde estavam penduradas as luzes e quando estava lá em cima tornava-se um dançarino. Acabamos nos tornando multidisciplinares, o que é um nível da holística, ou o que é conhecido por teatro holístico. Um aspecto da holística estava na parte objetiva, na estrutura do teatro. Outro era o interno: integrar a vida pessoal de alguém com suas emoções e sua capacidade de se mover como uma pessoa por inteiro. A dança se tornou um ritual ao integrar todos esses aspectos. Não separamos os artistas: todo mundo colaborava e nos interligávamos todos, constituindo um único corpo e usando todos os processos artísticos. Durante a crise de Aids, aqui em São Francisco, as pessoas começaram a praticar rituais. Não se davam conta, mas dançavam qualquer direção. Você pode passar dos recursos à música sem a exercer sua criatividade. Depende de sua habilidade em construir sua sobre suas vidas pessoais. Foi nessa época que criei o espetáculo partitura e a isso eu chamo improvisação. Uma partitura tem uma experiência de modo a criar uma empatia com os outros, de maneira Carry Me Home, em 1989. Tinha trabalhado com um grupo de rapazes e seus parceiros, que tinham Aids. Um dia, um desses jovens atividade definida: o que você vai fazer e onde vai fazer. Acontece num espaço, envolve tempo e pessoas. Se você tiver esses quatro a atingir uma qualidade universal. Depende de seu talento, como profissional e como artista, de ser capaz de dar forma à sua chegou para mim e disse: “Estou indo para casa.” Já estava ficando elementos, já criou alguma coisa. Uma partitura é uma atividade no experiência de maneira a ter impacto sobre os outros. debilitado e muito magro. Estava escrito em seu rosto que ia para espaço, com visão. Quanto tempo e quantas pessoas você tem? casa para morrer. Conversamos, choramos e nos despedimos. Então, quando ele saiu, ficamos ali sentados, atordoados, pensando “Quem Algumas partituras são muito abertas; outras, fechadas. Nos Estados Unidos, temos uma situação única. Temos uma cultura muito diversificada. Temos todas as nacionalidades em que você Em Ten Myths, havia 10 partituras distintas e os artistas não possa pensar, todas as religiões. Somos tão diversificados em nossa ensaiavam. Eu queria saber quais eram os padrões de grupos de pessoas quando se juntavam. Toda vez que eu montava uma cultura que temos uma necessidade irresistível de encontrar traços comuns, mantendo na íntegra nossa diversidade. Tenho minhas nascera de um fato tão concreto. estrutura, o grupo a desfazia e criava outra, diferente. As pessoas encontram um ritmo comum. Espalham-se e rompem com a partitura próprias conexões ancestrais e é importante que elas façam parte de quem eu sou. São minhas origens. Todos nós temos conexões Quando eu era pequena, senti um anti-semitismo muito forte, o que num belíssimo e excitante caos porque muitas coisas acontecem ancestrais de países e culturas diferentes. Também na música há uma me provocou muita raiva e tristeza, e uma empatia para com as pessoas que não tinham privilégios. Ser aberto e interagir com uma simultaneamente. Depois o refazem através de passagens, serpenteando, em linhas retas ou em círculos. Comecei a juntar todos consciência planetária, trazendo novos sons para que não fiquemos escutando para sempre música clássica européia. Yoyo Ma apresentou pessoa, ou com sua experiência, sugere uma história pessoal. Os povos indígenas não se interessam muito por isso. Se interessam mais esses recursos, fazendo-os refletir em meus próprios trabalhos. Ao fazê-lo, o espectador pode identificar e enfatizar, pois esses são uma série de programas sobre música étnica. Uma pessoa como Yoyo Ma tem enorme influência e, com certeza, lidera esse movimento. pelas curas, pela comunidade. Foi por isso que em seguida fui para padrões que nos codificaram enquanto grupos. Quando os pioneiros São coisas que começam a chegar a nossos ouvidos, sons a que não Planetary Dance e para Circle the Earth. Qual é a natureza do ser humano? Você começa por ser um bebê que só pensa no leite e na eram atacados pelos índios norte-americanos faziam um círculo. As aves migratórias voam em V porque dessa forma o impacto com o estamos acostumados: sons turcos, afegãos, iranianos, africanos. Acho que estão ganhando valor, criando mais consciência e mais mamãe, num completo auto-envolvimento, para depois ter consciência da existência de mãe e pai. Gradativamente, vai-se vento torna o vôo mais fácil. Quando o líder se cansa, vai para trás e outro toma a dianteira. Estudei esses padrões com seres humanos e aceitação das diferenças. Para sobreviver, temos que encontrar nossa humanidade comum, temos que ser capazes de aceitar as diferenças tomando consciência da existência de outras pessoas e aprendendo a comecei a utilizá-los em meu trabalho. Percebi que o público pelo que temos em comum. Essa é a atual pedra de toque em tudo o se relacionar com a família. Em seguida, se relaciona com outras famílias, depois com uma cidadezinha, ou uma comunidade. No realmente gostava de fazer aquelas coisas e então tentei apresentar o mesmo trabalho de maneiras distintas. Quando há a possibilidade de que faço. mundo atual, a comunicação criou a oportunidade para que você se relacione com outras famílias, em outras comunidades. Embora eu incorporar o espectador ao artista, por que não fazê-lo? Esse é outro recurso que amplia as possibilidades. Quando eu tinha que estar num não tivesse consciência disso, eu participava do movimento hippie. teatro, procurava encontrar os momentos em que o público se Foi um período de experimentação inspirador, embora não tenha sido somava aos artistas. Mas foi de uma maneira quase acidental que o tipo de clima que me seduzisse. Criava uma energia forte e todo mundo gostava. Costumávamos praticar o que chamavam straight theatre. Também trabalhei com grupos de rock, tentando estimular as comecei a utilizar a participação dos espectadores. Meu trabalho provocava tanta agitação no público que as pessoas berravam, gritavam, atiravam objetos! Quando apresentávamos Exposizione, em pessoas a dançarem porque, como não havia cadeiras, dançavam Roma (1967), um homem veio pelo corredor, ficou de frente para sozinhas. Elas não se relacionavam umas com as outras. Janis Joplin todo mundo e disse: “Foi para isto que Colombo descobriu a queria fazer uma experiência para ver o que aconteceria se incentivássemos as pessoas a se relacionarem entre si. América?” Foi maravilhoso. Eu era tão ingênua, em meu mundinho particular, fazendo minhas coisinhas! Não tinha a menor noção do que fazia o público ficar tão excitado. Mas decidi que era uma imensa fonte de energia livre e comecei a preparar partituras só para o público. será o próximo?”. Foi um ritual. Transformou a capacidade de todos de encarar a morte e encontrar uma espécie de paz. Com Carry Me Home, todo mundo pôde sentir, identificar-se, interagir porque Eu faço um círculo quando quero simbolizar a unidade. Quando fizemos Circle the Earth, trabalhávamos a questão do câncer de mama e a violência nas escolas; era necessário que houvesse uma maneira de juntar todas as partes, para criar uma mensagem positiva, de esperança, pois havia muito desespero. Na época, eu dava aulas de dança comunitária e vinham dançar semanalmente de 60 a 100 pessoas. Ficava olhando a maneira como se movimentavam, enquanto grupo grande. Fazia parte de nossa tradição fazer experiências com grupos grandes. Fazíamos muitas manifestações. Para sugerir um sentido de esperança, cheguei à idéia do círculo, onde a voz de cada pessoa emitia uma mensagem sobre o que ela pensava que seria o melhor mundo possível para viver. Agora, com estas guerras horríveis, a gente começa a pensar sobre o que está acontecendo à terra, ao ar e à água. Todos nós respiramos o mesmo ar e bebemos da mesma água. No ar, não existem fronteiras. O que está em risco, agora, é a vida no planeta. Durante a Guerra Fria, havia um medo disseminado de que os russos nos bombardeassem. As pessoas se juntavam, em grupos, e assistiam a uns vídeos horríveis sobre o que aconteceria se fôssemos bombardeados. Não dava para ver esses vídeos sozinho. Em conseqüência desse tipo de medo, nasceu um desejo intenso de trabalhar com grupos grandes. Em Planetary Dance, juntávamos, em média, umas 300 pessoas, de todas as idades e com as mais diversas aptidões físicas. Uma consciência planetária significa pensar de maneira holística. Muitas das pessoas que participavam da dança vinham de diferentes lugares do mundo. Levei esse processo da dança planetária à Suíça, Alemanha e Austrália – e também foi apresentado em Israel, no Egito e no Japão. Os participantes devolviam informações sobre como se passara com suas comunidades e quais eram as questões em suas comunidades e começávamos a sentir que aquele espetáculo de dança não era só nosso, não era só daqui. Estava acontecendo em 36 países e cada grupo levantava um tema diferente, no contexto do qual inseria a dança. A música é sempre importante, mas em Planetary Dance é fundamental. Planetary Dance tem uma partitura fechada porque seu roteiro é muito preciso quanto ao que deve ser feito, mas não exatamente quanto à forma de fazê-lo. Uma vez, nos apresentamos na praia e não tínhamos músicos; então, apanhamos alguns gravetos e uns pedaços de pau, um grupo se ofereceu para fazer o papel de bateristas e foi tocando. Não imaginávamos que seria possível fazer aquilo sem o estímulo exterior da batida, que mantém todo mundo junto. O batuque mantém a batida e cada batida é uma oração feita a Terra. Tínhamos bateristas excelentes, os melhores do ramo. Muitas vezes traziam alunos seus – uma vez tivemos 100 bateristas. Era uma energia muito forte. Em Intensive Care, ao invés de unir espectadores e artistas, tentei fundi-los entre si, trabalhando como se fossem um só corpo. Imaginei que se fizéssemos essa dança numa cadeira com rodinhas, isso sugeriria uma sensação de armadilha. Queria fazê-lo com mais de uma pessoa, pois seria mais envolvente, do ponto de vista visual. Queria fazê-lo com quatro pessoas. As cadeiras determinaram o espaço. O tempo estava em aberto até que o explorássemos e acabamos fazendo uma estrutura de 45 minutos. Eu queria que as pessoas usassem partes diferentes do corpo. Uma delas usaria somente a cabeça, outra, somente os braços, outra, as pernas e a quarta usaria o tronco; queria que fossem um único corpo, mas com quatro respostas pessoais distintas. Foi trabalhada uma partitura, mas eu nunca disse a qualquer uma dessas pessoas o que deveriam fazer com as pernas, a cabeça, o tronco ou os braços. Fizemos uma pesquisa antes de começar, coletando respostas à pergunta: “Qual é sua experiência pessoal com a morte? Escreva o que você sente a respeito da morte.” Certo dia, eu estava no estúdio e ia ensinar a diferença entre uma partitura aberta e uma fechada. As pessoas acham, em geral, que uma partitura fechada não é muito boa, enquanto as abertas são consideradas melhores. Mas isso não é verdade; uma partitura fechada pode ser muito importante. Estava pensando em como iria fazer a apresentação quando vi uns urubus voando, naquele vôo concêntrico. Deveria haver algum animal morto por ali. “Essa seria uma boa partitura fechada”, pensei. Para mostrar o que queria dizer com uma partitura fechada, disse a todo mundo que se movimentasse de maneira uniforme, como os urubus, para ficarem todos no mesmo ritmo. Percebi que ficavam cansados de correr numa única direção porque uma perna agüentava mais peso do que a outra; então, disselhes para tomarem a direção oposta. Começou pouco a pouco. Você não pode correr sem motivação. Então pensei que se estivessem correndo para alguém, além de si próprios – e eles sentiam que alguma coisa, externa, dependia de sua capacidade de correr de maneira adequada – aumentaria a motivação. No final, diriam uns aos outros para quem tinham dançado. Houve um ano em que um homem disse que iria dançar para seu irmão John. Notei que dançou com muito sentimento. Era africano. Percebi que ficava repetindo um mesmo gesto. No final, veio falar comigo e contou que tivera um irmão gêmeo chamado John. “John”, disse, “foi assassinado e eu não consigo pronunciar o nome dele. Hoje foi a primeira vez em dez anos que disse o nome dele em voz alta.” As pessoas sempre dançam em nome de coisas ou pessoas que são muito importantes para elas e é isso que mantém aceso o espírito da corrida. A partitura é um processo de comunicação. Se você considerar um O fator determinante em tudo aquilo em que eu quis progredir foi o círculo como o nosso e chamá-lo RSVP, é uma partitura. Mas a partitura surge da coleta de vários recursos. Recursos são idéias. Você junta tudo numa melodia, toca e, em seguida, avalia o resultado obtido. Deu certo ou não deu? Esse processo pode ocorrer em de ser capaz de ter um processo de trabalho criativo, junto com a experiência da arte – e da vida. Minha intenção sempre foi libertar a criatividade. Se você conseguir objetivar algo e oferecê-lo para que o participante o possa sentir subjetivamente, então a comunidade pode 27 Em dança, o “agora” é particularmente crucial porque tudo voa. Você faz um movimento e, quando se dá conta, já se foi. Não deixa uma imagem no espaço, como um desenho, ou uma pintura. Uso imagens para que você possa criar um vínculo visual condensado que possa exteriorizar uma experiência muito íntima. Para apresentar alguma coisa, você tem que re-criar o “agora”. Você não pode ilustrar movimento de um modo meramente mental. Há o aspecto físico, o aspecto emocional, o aspecto associativo, ou de imagem, e a conexão espiritual. Isso é estar no “agora” e é a essência da apresentação de uma performance. Como estou com 84 anos, seria difícil para mim, nos dias de hoje, opinar sobre o que é vanguarda – e por vanguarda refiro-me a algo de novo, que nunca tenha visto. Acho que atualmente, o problema reside em como torná-la – a palavra preferida na Califórnia – útil. Lembro-me de uma história sobre Isaac Stern. Durante a primeira guerra com o Iraque, os mísseis estavam apontados para Jerusalém e todo mundo carregava máscaras anti-gás. Stern estava tocando com a Sinfônica de Jerusalém e todo mundo tinha as máscaras debaixo das cadeiras. Então ouviu-se uma sirene de alarme – era só um teste – e todo mundo pegou as máscaras e as colocou. Lentamente, os músicos da orquestra deixaram o palco para colocarem suas máscaras, mas Isaac Stern ficou. Não pôs a máscara; continuou tocando seu violino. Foi um momento emocionante – vê-lo sozinho, no palco, tocando sua música. Esqueci se era Brahms ou Bach, mas mais tarde ele foi entrevistado e lhe perguntaram o que havia achado daquela experiência. “Foi a primeira vez em minha vida que achei minha música útil e isso foi sensacional”, disse ele. É isso que procuro, mais do que definir o que é vanguarda. BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER S ASKIA S ASSEN SASKIA SASSEN É PROFESSORA TITULAR DE SOCIOLOGIA NA UNIVERSITY OF CHICAGO , E PROFESSORA VISITANTE DA LONDON SCHOOL OF ECONOMICS . SEU LIVRO THE GLOBAL CITY FOI RELANÇADO EM NOVA EDIÇÃO ATUALIZADA EM 2001 . SEUS LIVRO MAIS RECENTES SÃO O GLOBAL NETWORKS , LINKED CITIES , ROUTLEDGE - 2002 - E CO - EDITOU SOCIO - DIGITAL FORMATIONS : NEW ARCHITECTURES FOR GLOBAL ORDER , PRINCETON UNIVERSITY PRESS - 2004 - CITIES IN A WORLD ECONOMY - CIDADES EM UMA ECONOMIA MUNDIAL - FOI PUBLICADO EM PORTUGUÊS PELA EDITORA STUDIO NOBEL - SÃO PAULO - TRADUÇÃO DE GAVIN ADAMS LONDON _ 18 DE AGOSTO DE 2004 A globalização econômica corporativa é um sistema de poder que usa algumas das velhas capacidades derivadas do estado nacional, mas mobiliza-as de forma nova. Nesta nova mobilização, o que poderia ter sido dirigido às economias nacionais e interesses nacionais muda sua orientação em direção aos interesses globais mais estreitos de atores particulares. Não há uma ruptura total com o estado nacional, de jeito nenhum. Mas de fato sinaliza a formação de um tipo de espaço institucionalizado que desfaz os limites do sistema inter-estatal. Um dos aspectos que observo são os ativistas contestatórios. Existem formas de ativismo global que capacitam pessoas dentro de um âmbito local e talvez imobilizadas a experimentar a si próprias como sistema, uma democracia imperfeita é fundadora. Começando na amalgamada de trabalho em posição de desvantagem (aquela mistura parte da rede global, ou de um domínio público que existe em outra França no século XIX, instrumentos legais tornaram-se poderosas de cidadãos reduzidos à minoria, imigrantes e refugiados). Esta força escala, diferente daquela da localidade em que trabalham. Como parte de uma rede maior, ativistas de direitos humanos ou ferramentas no esforço de assegurar um campo de ação seguro para o poder - tanto do Estado como de atores privados. Mas na França de trabalho tem como um dos seus locais de trabalho os setores globalizados; no sentido de que está estruturalmente conectada ao ambientalistas, que podem estar obcecados pelo torturador em sua testemunhamos lutas que freqüentemente restabelecem o equilíbrio. capital global, ainda que os trabalhadores pareçam não ter a ver cadeia local, ou com a floresta perto de sua cidade, ou com o A Grã-Bretanha, muito “civilizada”, foi na verdade muito brutal no ainda com o que pensamos ser a economia global. Ambos são suprimento de água em sua região, podem começar experimentar a si próprios como parte de um esforço global maior sem abrir mão de século XIX : através de uma intervenção legal atrás da outra, ela construiu um trabalhador como um sujeito de poucos direitos ou internacionais, mas há muito de nacional nisto também. suas características locais. É esta combinação que é crítica para totalmente destituído deles. O abuso foi tão extremo que o Trabalho minha discussão sobre cosmopolitanismo, ou melhor, contra a difundida presunção que se é global decorre que seja também se revoltou. Ironicamente, através das reformas que conseguiu, este permitiu ao capitalismo sobreviver através de pequena humanização. cosmopolita. Assim, falo sobre formas não-cosmopolitas de Nos Estados Unidos, como na Grã-Bretanha, o indivíduo sem globalidade. As novas tecnologias da informação, desenhadas para eliminar distâncias, para produzir a compressão espaço-temporal, propriedade foi construído como uma persona desprovida direitos. Em contraste, a propriedade traz direitos. A esfera do mercado, que é podem ter na realidade também o efeito de revalorizar a localidade e atores locais. Eu contesto esta confluência do global com o supostamente neutra, é, desde o início, uma esfera política. suburbano. Estes locais de trabalho reduzem-nos à condição de trabalho, eles desestruturam tudo que os imigrantes possam ser, Uma das razões pelas quais puderam ocorrer vitórias daqueles em posição de desvantagem, no final do século XIX, é que o nacional tanto em termos da produção das capacidades especializadas de que o capital global precisa, quanto em termos de sua produtividade estava se tornando cada vez mais estreito, e, desta forma, a luta dos trabalhadores pôde atingir o poder nacional. Hoje, tanto o capital política: em transformar tanto o capital em uma força social quanto capacitando a força amalgamada de trabalho em posição de quanto aqueles em posição de desvantagem tomaram proporções desvantagem emergir como força social. cosmopolita. Financistas são globalistas não-cosmopolitas, e eu argumento que a maioria dos ativistas ambientalistas ou de direitos humanos, aqueles que estão de fato a se envolver na ação, também são globalistas não-cosmopolitas. Eu quero chegar a uma multivalência, tanto da globalização quanto do que significa ser um globalista não-cosmopolita - reinventar o local como alterglobalização. Em um domínio muito diferente, eu diria que haverá um um verdadeiro empuxo em direção à relocalização de diferentes mercados, tirando-os do mercado supranacional e tornando-os locais, mas inseridos no horizonte global, ou, pelo menos, redes transnacionais. Não precisamos da produção padronizada das multinacionais, que podem vender-lhe a mesma produção não importa onde você esteja. Não há nenhuma agenda política compartilhada ou conspiração na atual globalização econômica corporativa. Não há necessidade delas. A questão é, melhor dizendo, a sistematicidade do modelo neoliberal, o quão profundamente ela se tornou parte da estrutura básica e da ideologia - “o Mercado sabe mais”, o que quer que isso signifique. A extensão da idéia de mercado a um âmbito crescente de domínios é uma forma de autoridade. Isso faz do mercado um componente de cada vez mais presente nas esferas da vida social. Isto é sistematicidade. Mas será a idéia do global o suficiente para tudo alcançar? A autoridade dos mercados certamente se espalhou para mais partes do mundo. Mas o poder nunca é absoluto, nunca é completamente aceito. Vemos a emergência de vários tipos de questões contestando vários aspectos do poder, do sistema - pessoas trabalhando contra o mercado como concebido pela Organização Mundial do Comércio e o FMI, contra as minas terrestres, contra o tráfico humano, contra a destruição ambiental. Estas centenas de atores contestadores em diferentes localidades acabaram por produzir um tipo de efeito sintético - elas constituem a multidão. Uma questão crítica é então entender as muitas arquiteturas políticas informais através das quais a multidão se constitui. Existe o fazer, poesis, nestas arquiteturas políticas informais. Existem várias maneiras diferentes de fazer sendo construídas de baixo para cima, e existem diferentes terrenos em que novos tipos de sujeitos políticos e lutas estão emergindo. Uma cidade pode conter centenas de terrenos para ação política. Tudo isso começa a introduzir uma textura, uma estruturação para a noção de multidão. O que me interessa é o uso destas arquiteturas políticas específicas, diversas, dentro da multidão. Este é um tipo de política global em fase de construção que tem, como componente crítico, multidões que podem ser globais mesmo que não sejam móveis. Hoje observamos uma negociação informal de múltiplas escalas: não mais se trata do global e do local, ou do nacional versus o global. Estas escalas mutuamente exclusivas, que nós herdamos, pertencem ao nacional. As escalas do nacional - que ainda prevalecem - são constituídas hierarquicamente e formalmente, tanto em termo institucionais quanto em termos geográficos. Embora este escalonamento ainda prevaleça, ele está sendo desestabilizado. O estado-nação não irá desaparecer, mas este sistema hierárquico de escalas está instável. O tipo de poder que os Estados Unidos construiu para si e que mobiliza globalmente, e que mostra-se insustentável. Os Estados Unidos têm exercido o pleno potencial do presente da pior maneira possível. Hoje o Iraque nos mostra seus limites, o começo do fim do presente. A guerra norteamericana no Iraque e a guerra contra os direitos civis em seu próprio território, ambas estão tornando evidente o caráter degradado do poder americano (US); neste processo, mesmo quando os Estados Unidos exercitam seu poder ao máximo - contra civis iraquianos, contra os cidadãos reduzidos à minoria nos próprios EUA - neste exato gesto está a perder autoridade. Muito foi dito do crescente déficit de democracia causado pela globalização ou pelo sistema supranacioanal da União Européia. Mas as origens deste déficit vão muito além estas representações comuns. Nos Estados Unidos, a coisa começa com a lei em si. O poder como uma condição legal, é, sem dúvida, mais brutal nos Estados Unidos que na Europa. A maneira como o privado e o público foram construídos, tudo isso é parte da formação do capitalismo. Neste globais, ainda que, em relação ao trabalho organizado, este processo tenha apenas começado. A cidade global permite à força amalgamada de trabalho em posição de desvantagem, capacita-a, a emergir como uma força social. Podemos ter muitos imigrantes trabalhando em uma grande fazenda coorporativa, mas em tal situação que eles não podem emergir como força social. A mesma coisa acontece com o local de trabalho reduzindo-os a trabalhadores. A cidade global é um espaço produtivo, Quero elaborar neste particular usando Henri Lefebvre e Max Weber, para colocar a questão em contexto histórico. Lefebvre demonstra Hoje, aqueles em posição de desvantagem podem deixar o âmbito do que há produtividade do espaço, do próprio ambiente. Weber verifica nacional. Mesmo que não deixem o país. Novas tecnologias, o que as cidades medievais capacitaram os burgueses a emergir como imaginário acerca da globalização, todos permitem novas formas de força social, como atores políticos. Na década de 1950, Lefebvre investiga as cidades industriais de seu tempo, e argumenta que o burguês não mais precisa da cidade. Estas não são mais cidades para geografia para o trabalho político. Muitos atores localizados, que nunca viajam, que não são parte das novas mobilidades, começam a experimentar-se a si mesmos pertencendo, participando de redes globais. As novas tecnologias permitem conectividade horizontal, os burgueses, mas sim as cidades das classes trabalhadoras descentralizada, simultânea - uma conectividade internacional onde como sujeito político, como uma força social - a cidade onde os trabalhadores podem reinvindicar os aparatos de consumo coletivo, não há hierarquia. Isso é bem diferente da forma de conectividade da organizadas, onde a classe trabalhadora pode emergir como ator, Internacional Socialista, com sua estrutura central de organização. E também não é internacional no sentido da Internacional Socialista. Atores políticos informais, o movimento alter-globalização, os vários de transporte público a saúde e habitação. As cidades não desempenharam sempre este papel. No ápice do capitalismo tipos de ativismo acerca dos direitos humanos, o meio ambiente, a fábricas; áreas que não eram cidades - como o norte da França. justiça social, todos estes produzem de facto, ainda que por vezes sem querer, uma presença face-a-face os outros - não apenas face-aface o poder ou a mídia global, mas face-a-face entre si. Este reconhecimento é crítico; ela dá estruturação à multidão. É por isso que os fóruns de Porto Alegre e Mumbai são esforços enormemente importantes. Você me pergunta sobre imigração e globalização. A maioria das grandes migrações (e não de movimentos idiossincráticos como o meu...eu sou nômade) estão incrustadas em sistemas transnacionais: impérios coloniais no caso da Europa (por exemplo, os argelinos à França), impérios neocoloniais no caso dos Estados Unidos, constituídos através de investimento em agrobusiness (México) e em manufaturas no estrangeiro, no Haiti, ou de operações militares (Vietnã, Filipinas, Coréia do Sul), e assim por diante. Uma vez que o fluxo de uma migração é iniciado, uma nova fase adentra o processo: ela se torna uma cadeia de imigração, ela se auto-alimenta. A questão, portanto, é se e como a proliferação de sistemas globais ao longo dos últimos 20 anos afetou as características da migração. Na minha leitura das evidências, três características se destacam mesmo que cada fluxo migratório seja distinto em seus detalhes empíricos. Uma destas é que a multiplicação de sistemas globais de toda sorte também multiplica as pontes que conectam o potencial particular das “áreas de envio” com as áreas potenciais de recebimento: temos uma multiplicação dos fluxos migratórios. Segundo, o enorme aumento do tráfico ilegal que se tornou um negócio global, usando a infraestrutura da globalização. Isso significa a criação de fluxos migratórios que podem não estar incrustados em sistemas mais antigos , mais arbitrários (ainda que não completamente desligados das geografias imperiais mais antigas). A terceira é a formação de mercados de trabalho globais e cadeias de amparo - globalizando toda uma rede de trabalhadores de serviços pessoais, tais como enfermeiros, babás, faxineiros, trabalhadores do sexo. Todas estas três características, mas especialmente a terceira, encontram sua mais aguda expressão nas cidades globais. Buenos Aires ou Manila, por exemplo, na verdade não têm imigrantes; elas recebem profissionais, trabalhadores da construção provenientes da Bolívia e Paraguai. Em Nova Iorque, Paris, Frankfurt, Londres, Amsterdã, Toronto, e Sydney, temos uma enorme mistura de forças de trabalho basicamente constituídas através de imigrantes, refugiados, os que procuram asilo e cidadãos reduzidos à minoria (como porto-riquenhos e os negros de Nova Iorque, os cidadãos do Maghreb em Paris etc.). Em muitas outras cidades do Norte global, incluindo Tóquio, a migração marca presença significativa, e desestabiliza, altera, transforma: trata-se de uma dinâmica de trabalho dentro destas cidades. industrial, os lugares cruciais de luta eram as minas, as grandes Eu lanço o olhar sobre a cidade global, e verifico que elas não são mais as cidades da classe trabalhadora organizada ou da velha noção da burguesia que encontra na cidade o lugar de sua autorepresentação e projeção de seu poder (incluindo o poder civilizatório). Eu vejo nas cidades globais o espaço que capacita dois outros tipos de atores sociais. As cidades globais são o espaço onde aterrisa esta categoria progressivamente elusiva, privatizada e digitalizada a que chamamos capital global, e, por um momento em sua complexa trajetória, se torna homens e mulheres. Estes são homens e mulheres que desejam tudo e tudo conseguem. Desta forma, eles projetam seus trabalhos diários e estilos de vida na cidade. Isso toma muito espaço, e desta forma invadem o espaço residencial de outras pessoas (o processo de gentrification), invadem a área do trabalho de outras pessoas (novos e glamorosos edifícios de escritórios tomando o lugar de economias urbanas mais antigas). É através desta projeção e invasão que a concretude da vida cotidiana de lares de alto salário e firmas de altos lucros revela-se uma força social. Nestes termos ela pode ser confrontada diretamente. A outra força social que emerge do fato da força amalgamada de trabalho (e assim “desorganizada” em oposição, por exemplo, ao “trabalho organizado”) é parte de setores econômicos da cidade globalizada, e, não importa o quão contingente e transitório, também projeta seu trabalho e estratégias de sobrevivência no espaço urbano: comunidades imigrantes, o “banlieue” em Paris, áreas comerciais de baixo custo, restaurantes baratos, camelôs e assim por diante. Isso, eu argumentaria, é também um tipo de estruturação da multidão. Eu uso o termo força social para captar ambos os atores emergentes, pois eles não são classes, ainda não. O que temos é um processo muito mais desorganizado, localizado e concreto que os significados mais complexos que Marx atribuiu à classe social. Também não há programa comum. Esta são forças sociais emergentes. Mas um efeito é o fazer do capital global concreto, não uma categoria global espectral. E isso dá à força amalgamada de trabalho em posição de desvantagem um contorno político, além do sujeito trabalhador. Isso, por sua vez, capacita vários tipos de prática política - da teatralização do político como nos desfiles de imigrantes, ou na organização de faxineiros através do movimento de sucesso Justice for Janitors (Justiça para os Faxineiros). Se eles são estrangeiros ou nativos do lugar é uma questão quase secundária na formação desta força amalgamada de trabalho. Muitos imigrantes de terceira geração e cidadãos reduzidos à minoria são parte desta força social emergente. Cidadãos reduzidos à minoria, neste contexto, têm a opção de experimentar a si próprios dentro de algo próximo da diaspóra, já que podem deixar o pertencimento subjetivo da entidade coletiva do estado nacional. Aqui eu não quero A cidade global é uma espécie de zona de fronteira, no sentido de uma cidade do “Velho Oeste” - para usar uma imagem histórica. É um lugar onde dois tipos diferentes de sujeitos, atores, encontram-se sem regras estabelecidas de engajamento. Numa cidade do Velho Oeste, os dizer somente os economicamente em desvantagem: eles podem ser cidadãos de renda média reduzidos à minoria, ou podem ser anarquistas, ou gay, lésbicas e homossexuais que se sentem alienados, ou ainda qualquer tipo de pessoa ou identidade que não se sente parte do “nós” nacional. O que começa acontecer é que toda a colonizadores com os indígenas. Na Cidade Global, o encontro entre o capital corporativo global como força social, e a vasta força noção relacionada à diáspora emerge como um instrumento, uma instrumentalidade, uma maneira de identificar um novo tipo de 28 sujeito político. A Cidade Global conecta todos estas lutas e identidades subalternas, uma mistura de pessoas que majoritariamente não trocam nada entre si, que na maioria das vezes nem se fala, mas que emergem como uma força social amalgamada. A mesma mistura em um tipo diferente de lugar - a universidade, o A cidade global é um dos lugares críticos onde o capital corporativo global se faz presente na vida cotidiana das pessoas. O capital global também se faz presente nos centro bancários no estrangeiro e nas zonas de processamento de exportações, e em outros tais lugares, mas não da maneira complexa e multifacetada com que o faz em uma composto, pois eles e nós também estamos nos movendo, a partir de um senso de política negra que foi definido através da oposição entre o Leste e o Oeste, para um novo senso que flui, que gera uma nova geometria do poder, que é definida pelo eixo de conflitos geopolíticos que corre não do Leste para o Oeste, como ocorrera na dispersão hotel, o hospital, o subúrbio - não estaria necessariamente capacitada a emergir como força social, pois sua posição sistêmica econômica não residiria lá. cidade global. A cidade global é um ambiente extremo, um lugar brutal, não importa quão glamorosa seja a arquitetura. É por isso que ela é o lugar da política, da emergência de novas forças sociais estratégias. original, mas do Norte para o Sul e então de volta. Existem muitas globalizações. Cada uma tem uma geografia e arquitetura particularizadas. Quando o assunto é a globalização econômica corporativa, eu argumento que o lado organizacional é bem diferente do lado do consumo. A maior parte da atenção recai sobre as multinacionais do consumo: McDonald’s, Nike e assim por BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER se com a violência, sofrimento e caos que se diz representar a África. E eu acho que o problema não é exclusivo da experiência afroamericana, mas se manifesta com especial intensidade para eles. diante. O projeto das firmas de consumo se resume a quanto mais consumidores pelo mundo venham a usar ou comer seus produtos, melhor. Em contraste, o lado organizacional não precisa chegar a todos os lugares e alcançar tantos consumidores quanto possível. O lado organizacional é estratégico: ele provê os serviços de operação global das firmas e mercados, tanto aquelas que vendem para consumidores quanto aquelas que vendem para outras firmas. O lado organizacional vende para outras firmas. Ele se faz visível apenas quando realmente precisa, não faz propaganda nos mercados consumidores, só faz propaganda para outras firmas. A rede de cidades globais é uma geografia estratégica para o lado organizacional do capital global. As cidades globais possuem uma mistura de recursos úteis na produção de capacidades especializadas para o capital global. Eu quero enfatizar que o capital global precisa ser feito, produzido, exige serviços, exige serviços legais e de contabilidade etc. A cidade global representa este momento único de alta legibilidade onde as capacidades das firmas globais e mercados globais precisam ser globais, serem produzidas, inventadas, feitas. A função econômica chave da cidade global é que ela serve como uma espécie de Vale do Silício para a invenção e produção de capacidades para operações globais, operações que em larga medida são eletrônicas. Eu gosto desta justaposição de redes eletrônicas globais com as enormes concentrações de materialidades (edifícios, infraestrutura, o fato de profissionais e executivos precisarem de casa, comida... a materialidade de tudo isso). Em um nível bastante geral podemos enxergar todas estas cidades como similares em suas funções de cidades globais. Mas existem também histórias profundas que só alcançamos se escavarmos à procura de aspectos específicos da história econômica de cada uma delas. A primeira coisa que fiz em Chicago foi olhar para esta cidade global através destas lentes. Eu tomei a geografia global das filiais de firmas de finanças, propaganda, jurídicas e de contabilidade com sede em Chicago. Eu então comparei essa geografia global de filiais àquela geografia das firmas com sede em Nova Iorque e Londres, nestas mesmas áreas da indústria de serviços. Elas são geografias diferentes, e nestas geografias podemos ver como ao longo do tempo Chicago desenvolveu tipos especializados de contabilidade e de serviços jurídicos, finanças e propaganda relacionados à grande história agro-industrial. Mesmo se hoje parte disso se foi, os serviços imateriais ainda refletem este ângulo, pois assim é que foram inventados, foi assim que nasceram. Estes setores especializados e seus profissionais podem representar apenas 30% da cidade, mas eles são a “vanguarda” da economia global quando esta aterrisa. Pode ser que elas envolvam apenas uma minoria de lugares na cidade, uma minoria de pessoas, uma minoria de firmas, mas sabemos que as vanguardas não precisam ser maiorias. Em minha pesquisa tentei entender de forma detalhada o porquê das firmas financeiras globais precisarem de centros, já que elas operam em larga medida eletronicamente. Por que estas vastas concentrações de recursos precisam de um tipo de materialidade? É uma ironia que esta economia digital global necessite de tais concentrações. Em nenhum lugar isto é tão evidente quanto em finanças globais, a mais eletrônica e a mais global das indústrias. Existe uma tensão real, uma tensão estrutural, entre a materialidade profunda e as capacidades abstratas que normalmente são chamadas de sem-lugar. As novas tecnologias fizeram muita diferença na constituição das finanças. Mas elas neutralizaram apenas parcialmente a importância dos centros financeiros. Operar em diferentes países adiciona à incerteza dos mercados, adiciona risco. A velocidade aumentada das redes eletrônicas acentuam esta incerteza e risco ainda mais. Os principais centros financeiros funcionam como comunidades abrigadas em um ninho, onde sistemas tácitos de confiança funcionam como uma espécie de lubrificante, facilitando o comércio instantâneo de vastas quantidades de capital. A variedade de peritos que se juntam em tais centros fazem com estes se tornem lugares estratégicos onde seqüências múltiplas de informação global interagem em conjunto. O centro financeiro capacita uma espécie de produção coletivizada do conhecimento, crucial frente à incerteza e ao risco. Em Global City eu desenvolvo todos estas questões. O ponto principal aqui é que a híper-mobilidade do capital realmente mobiliza comunidades de prática específicas a um lugar (mesmo que momentaneamente) e também mobiliza a fixação de capital. E é aí que a cidade global entra. Neste cenário, os afro-americanos podem não mais querer continuar a se identificar com a África. As pessoas de cor no mundo superdesenvolvido, aqueles de nós que estamos dentro de cidadelas, das fortalezas do super-desenvolvimento, podem não querer identificar- Nós, que seríamos os europeus negros do século XXI, também nos deparamos com escolhas históricas. Precisamos pensar muito, como Du Bois pensara, se este precioso presente que foi legado ao futuro as lutas afro-americanas pela liberdade - seja algo que possamos ou P AUL G E ILROY & G DOUARD LISSANT PAUL GILROY É O ATUAL CHEFE DO DEPARTAMENTO DE ESTUDOS AFRO - AMERICANOS DA YALE UNIVERSITY . PROJETOS AUTORIAS CORRENTES INCLUEM CONSIDERAÇÕES ACERCA DA MELAN COLIA DA GRÃ - BRETANHA PÓS - COLONIAL E UM LEVANTAMENTO DAS MÚSICAS NEGRAS DO NOVO MUNDO NO SÉCULO XX . ÉAUTOR DO INFLUENTE TÍTULO BLACK ATLANTIC . MODERNITY AND DOUBLE CONSCIOUSNESS , VERSO - 1993 - . SEU ÚLTIMO LIVRO INTITULA - SE AGAINST RACE : IMAGINING POLITICAL CULTURE BEYOND THE COLOR LINE , HARVARD UNIVERSITY PRESS - 2000 - EDOUARD GLISSANT , NASCIDO EM SAINTE - MARIE - MARTINICA - É “ UM DOS MAIORES ESCRITORES CONTEMPORÂNEOS SOBRE O UNIVERSAL ”. DESEMPENHA UM PAPEL DA MAIOR IMPORTÂNCIA NO RENASCIMENTO CULTURAL NEGRO-AFRICANO - CONGRESSOS DOS ESCRITORES E DOS ARTISTAS NEGROS DE PARIS , EM 1956 , E DE ROMA , EM 1959 . DESDE 1995 , É “ DISTINGUISHED PROFESSOR OF FRENCH ” NA CITY UNIVERSITY OF NEW YORK - CUNY - DE SUA VASTA PRODUÇÃO POÉTICA E LITERÁRIA , DEVEM SER DESTACADOS TRÊS ENSAIOS MAIORES - LE DISCOURS ANTILLAIS - 1981 - POÉTIQUE DE LA RELATION - POÉTIQUE III 1990 E TRAITÉ DU TOUT - MONDE - POÉTIQUE IV - 1997 - PUBLICADOS PELA EDITORA GALLIMARD . SEU ÚLTIMO ENSAIO , LA COHÉ DU LAMANTIN - POÉTIQUE V - DEVE SER PUBLICADO NO INÍCIO DE 2005 . TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI - GAVIN ADAMS BERLIN A TLÂNTICO NEGRO / _ 17 DE SETEMBRO DE 2004 BLACK ATLANTIC _ Parece apropriado começar com uma consideração acerca do valor e da utilidade da dupla-consciência. Isto, é claro, era a problemática de W. E. B. Du Bois, extraída de Hegel e refinada PAUL GILROY durante sua estada aqui na Alemanha. Foi moldada, eu creio, pelas suas leituras de escritos filosóficos e por sua visão da questão de assimilação como esta emergira durante o século XIX, quando estudou em Berlim. Mas sua visão era adaptada para as condições americanas, nas quais os afro-americanos pela primeira vez buscaram e tomaram posse de sua cidadania dentro de uma revolução inacabada. Sua visão profundamente hegeliana apresentava a consciência negra americana da liberdade como uma força histórica mundial. Era um presente dos descendentes de escravos para o mundo, um complexo cultural tão profundo e perturbador que os qualificava como uma das grandes forças civilizadoras da história humana. Muito do que Du Bois previu um século atrás, é claro, provou ser exato. A América Negra presenteou o mundo com uma nova concepção de liberdade. Esta e outras concepções de liberdade foram exportadas e alteraram a paisagem moral de nosso planeta de maneiras significativas. Mas tenho pensado recentemente se devemos considerar a possibilidade de deixar o conceito de dupla-consciência onde a encontramos - no século XIX. Por várias razões, não me parece muito útil transplantarmos esta idéia para os dias de hoje. Outra maneira de colocar este problema histórico e conceitual é perguntar o quê Du Bois diria de Condoleeza Rice e Colin Powell. Estes não parecem dotados de uma segunda visão, ou então lamentavelmente incapacitados pelas suas duplicidades internas das maneiras que ele previra. De fato, Condaleeza Rice é apresentada como a encarnação do sucesso do Movimento dos Direitos Civis, talvez também o ponto terminal da dupla-consciência de Dubois. Mirando-a sob esta luz contemporânea, então, é tentador responder, “Então, não há garantias nos mecanismos de dupla-consciência”. É claro, hoje, os afro-americanos deparam-se com uma escolha histórica diferente sobre a que lugar pertencem e sobre o que eles pretendem ser. Muitos deles consideram a chamada guerra contra o terror como uma maneira de finalmente adquirir ou “operacionalizar” o tão adiado ingresso na comunidade nacional. O próprio Du Bois considerava a Grande Guerra de 1914-18, a entrada dos Estados Unidos nessa guerra, precisamente da mesma maneira. É claro, hoje a decisão histórica e o compromisso dos afro-americanos produzirá efeitos muito além de suas fronteiras. E eu tenho um problema com isso, no sentindo de que sua ligação com sua nação arrisca a reduzir o debate sobre a política de raças no mundo às suas brigas familiares e ao romance de suas famílias. O problema é 29 que queiramos usar. Para colocar de maneira mais cuidadosa, será que este é útil, e, como deveria ser usado? Devemos nós, por exemplo, em nome do progresso, abraçar a exportação de sistemas raciais americanos, seja como políticas tecnológicas para a resolução de problemas raciais pela via governamental, seja como receita para que os movimentos social e cultural possam derrotar o racismo? Parece-me que fazer esta escolha implica em custos que precisamos reconhecer, e minha resposta a estas questões é, eu acho agora, Não. Eu creio que é importante reconhecer que a história dos Estados Unidos no campo da política racial não precisa representar nosso futuro. Quando eu era criança, no final da década de 1960, quando chegou o terror de grande violência e ressentimento contra os imigrantes e seus filhos, me diziam todo o tempo que os Estados Unidos significavam o futuro, um futuro que era nosso.Isso era plausível apenas porque três semanas depois do político inglês ter profetizado uma guerra de raças no Reino Unido, Martin Luther King foi executado, assassinado. Então esta profecia de guerra racial, sua imagem dos Estados Unidos como nosso futuro recebeu um choque, esta energia extra, como um resultado daquele assassinato. Não precisamos agora, creio, da história dos negros americanos, não importa quão triunfante, para especificar o mundo da negritude, com o qual somos comprometidos. E eu sei que negros europeus, como muitos europeus, têm uma ambivalência sintomática e profunda em relação aos Estados Unidos. Eles podem não gostar da liderança política do momento, e, no entanto, há algo de fascinante e excitante sobre seus estilos, seu ritmo, seus hábitos culturais, que acabam por anexar-se como índices de liberdade, especialmente na cultura do consumo, que gera imagens poderosas, algumas poderosas seduções em liberdade e autonomia. Mas talvez agora possamos pensar no deslocamento dos Estados Unidos da posição em que Hegel os colocou há tempos como a terra do futuro. Será que eles representam, deveriam representar o futuro de todo mundo na Terra quando se trata de raça? O futuro racial, essa assimilação, essa segregação, e esta libertação não precisa ser nossa. Eu acho que podemos ser, eu creio que devemos ser, compelidos a ser mais imaginativos do que isso. E eu acho que a meditação sobre o Atlântico Negro pode assistir-nos. Primeiramente, pode ajudar a separar a história nacional do movimento afro-americano de libertação da escravidão de outras narrativas que precisamos contar. Histórias de libertação da supremacia branca em outros lugares, especialmente do poder colonial, histórias de pan-pensamento, de diferenças dentro de nosso coletivo, medidas, avaliadas, pesadas contra a diferença entre nosso coletivo e outras formações similares no mundo; histórias de transcultura, narrativas de movimentos antiescravagistas de anti-colonialistas que não foram centradas nos aforismos raciais norte-americanos. Por exemplo, uma leitura do movimento abolicionista mundial pode servir para isso. E, ao desenvolvermos nosso senso Norte-Sul do que está em jogo na política de raça, precisamos começar a engajar a história da África do Sul, do Brasil, de outros lugares que podem nos ser úteis no reconhecimento de nossas esperanças e aspirações futuras. Como poderíamos começar a construir uma rede de comunicação que facilite uma variedade diferente de conversação mundialmente sobre estes assuntos, e que contribuição poderia a própria Europa fazer às tarefas políticas envolvidas na construção de uma democracia que não seja uma amena codificação de cores? O Atlântico Negro quebra o padrão, como eu disse, em que as contingências dos Estados Unidos tornam-se amplamente entendidas como intrínsecas ao funcionamento geral da divisão racial. E aqui encontramos mais um problema substantivo: devem os Estados Unidos ser o centro global da política racial da mesma forma como é o centro de tantas outras coisas? Uma fonte singular de códigos e significado que dá vida à raça em todo lugar, ou, como prefiro, devemos ver isso como nada mais que um outro lugar pós-colonial, um lugar a mais, onde a lei racial, onde o absolutismo étnico e a segregação governam a operação de uma economia fraturada e uma comunidade política cindida? Como pesaremos estas histórias norte-americanas de raça e relações contra exemplos tirados de outros lugares, onde o racismo e a hierarquia racial trabalham de maneira diversa? Será que esta versão de política racializada representa o futuro do resto das pessoas na Terra? É claro, o povo norte-americano tende muito mais do que os Europeus a ter aceitado que a raça é parte do funcionamento de sua cultura política. Eu até concordo que os europeus têm muito a aprender desta lado sem se interpenetrarem. Apesar da onda dos termos “multiculturalismo” ou “melting-pot”, trata-se de um país onde as comunidades se encontram às cegas, uma ignorando a outra. Há ali – para nós, comunidades de descendência africana nas Américas – aceitação de raça, contanto que, é claro, isso envolva um reconhecimento do estrago infligido pelo racismo e não se torne uma resignação sem mais dos efeitos da hierarquia racial. Mas meu ponto essencial permanece que, aceitando a saliência dos processos políticos e sociais que os Estados Unidos conhecem e aceitam como algo de particular a fazer. Não acredito em missões nem em modelos. Estamos num universo em que ninguém tem o direito de se colocar como modelo para outras pessoas, mas creio que os sofrimentos incríveis pelos quais passaram os descendentes africanos nas Américas dão-lhes o direito de afirmar sua experiência de um fenômeno natural chamado “raça”, não faz absolutamente nada para confrontar as múltiplas mistificações infligidas pelo racismo, seja na política norte-americana, seja em outro lugar. A fluidez do crioulização, particularmente na América do Sul e no Caribe, uma experiência que não foi a mesma que a dos africanos nos Estados Unidos. O que é interessante é que, no momento em que os navios Atlântico Negro, a resistência contra o poder disciplinador de todos os estados nacionais, promovem noções alternativas de cultura que quebram os laços da geo-piedade e soberania territorial de maneiras que são consistentes com nossa história conturbada. E isso, como negreiros chegam ao Caribe e seu carregamento é despachado para o Brasil e para a América do Norte, o sul dos Estados Unidos escravagista é também arquipelágico. Quando digo a cidadãos da Luisiana: “Vocês partilham a mesma história que os antilhanos, o começara a dizer ontem, importa muito no contexto da guerra ao terror e o conflito de civilizações, que a promoveu; estas sistema de plantations, a escravidão, as línguas crioulas, a arquitetura colonial, os linchamentos de negros etc.”, isso os deixa circunstâncias requererão um compromisso sincero das minorias raciais nos Estados Unidos com o esquema de dominação imperial consciente de seu país. Não obstante, a tradição de pensamento dissidente sobre o qual o Atlântico Negro repousa, agora pede algo a mais de todos os negros que se estabeleceram nas cidadelas do super- muito irritados, mas é, no entanto, a realidade da qual se deve partir. Mas, se há choques, por exemplo, entre porto-riquenhos ou caribenhos e negros norte-americanos, eles decorrem do fato de que, apesar de suas histórias semelhantes, há essa ausência de crioulização. O pensamento arquipelágico é um pensamento desenvolvimento do que o continuar a espiar ansiosamente um mundo dividido através das rachaduras de nossos estados nacionais disperso, ágil, prudente e em harmonia com a fragilidade e as ameaças do mundo atual. Ao contrário, o pensamento continental é recentemente fortificados. Pode ser que venhamos a ser solicitados a entender a raça e sua lógica política distinta de maneira diferente, como resultado das demandas de uma perspectiva planetária, reconfigurada pelo desejo de segurança, se não de invulnerabilidade, assim como daquela “unipolaridade” e poder militar de amplo um pensamento da potência, do poder e dos sistemas. A Europa regeu o mundo com sistemas de pensamento. E o pensamento dos Estados Unidos é, claramente, um pensamento continental. Já o pensamento do resto dos continentes americanos é um pensamento arquipelágico, um pensamento do tremor que eclode em todos os alcance. horizontes e que nos afasta das imposições dos pensamentos de Du Bois viveu uma vida longa e complexa. Ele mudou seus compromissos políticos, ele repetidamente mudou suas táticas políticas. Ao final de seus dias, seus compromissos com a paz e com o internacionalismo o levaram a um profundo e extenso conflito com seu próprio governo, sobre a guerra da Coréia, sobre o Plano Marshall, sobre a formação da OTAN, e muitos outras questões domésticas, no esteio das lutas civis e políticas afro-americanas que tornavam a emergir. Talvez devêssemos ler estas partes de sua vida como um argumento final sobre a dupla-consciência ou talvez mesmo um repúdio a esta idéia. Devemos nos lembrar que ele viveu grande parte da última década de sua vida sem passaporte, que ele acabou por tornar-se membro do Partido Comunista aos 93 anos de idade, que ele renunciou à sua cidadania americana, e que ele embarcou em uma vida de exílio como um cidadão de Gana. Ele encontrou nestas escolhas traiçoeiras um meio de ativar seus compromissos germânicos de longa data e laços com a cidadania mundial, de um lado, e a história mundial, no outro. Quais são, somos obrigados a perguntar, os relatos não nacionais destes desenvolvimentos, o que seriam os gestos contemporâneos analógicos àqueles gestos de Du Bois, e como nossa exposição a uma cultura política da diáspora nos ajuda a preencher algo como esta agenda desconfortável. sistemas. O tremor é a qualidade mesma daquilo que se opõe ao brutal pensamento unívoco do eu contra o outro, ou do eu fora do outro, ou do eu acima do outro. O mundo se criouliza – isso quer dizer que ele se torna complexo e se interpenetra a ponto de se tornar inextricável, fazendo o intercâmbio de seus costumes e de suas culturas, o que ainda ontem se chamava de suas identidades, em grande parte massacradas. O pensamento arquipelágico caminha segundo redes que se atraem e que não abandonam longe do mundo nenhum dado do mundo. A crioulização no Caribe, como no Brasil, foi acelerada pela deportação dos povos africanos que, fundamentalmente, contribuíram para radicalizar as oposições e as simbioses, as tentativas de alinhamento. Os povos deportados, depois semeados por uma área enorme entre o norte e o sul dos dois continentes americanos, descobrem de forma dolorosa as marcas de suas culturas abandonadas, ao mesmo tempo em que têm uma disponibilidade natural para as outras culturas, criando o inesperado. O jazz é um tremor. Foi primeiro, nos Estados Unidos, uma música arquipelágica antes de se continentalizar. Para mim, o Caribe é, primeiro, o ciclone que nos devasta, um redemoinho, uma embriaguez do pensamento ou do juízo, a necessidade do encontro e da afinação das vozes. O Caribe foi modelado com o sofrimento crioulização seja trivializada dentro da linguagem multicultural que se apropria indevidamente dela, que permite que ela escape por entre nossos dedos. E eu vejo também um grande valor e uma grande energia envolvida no trabalho de construir geopolíticas diferentes. Ao mesmo tempo, eu venho de um arquipélago - a Inglaterra - que brutalmente e sem piedade colocou-se como o meridiano, o lugar onde os hemisférios se dividem, e, sem querer soar como os anarquistas do romance de Conrad, The Secret Agent, que tentam sem sucesso, em má fé, detonar o meridiano, a ruptura daquela oposição está em jogo para mim. Eu não posso aceitar a oposição arquipélago/continental como um modelo explicativo desta reterritorialização da crioulidade (creolité). A reescrita da pluralidade como crioulização é a questão, mas não está claro ainda para mim quais são as maneiras em que a desprovincialização da Europa fará uso da história do Caribe, do Caribe expandido, que se estende desde a Nova Escócia até a Bahia. _ De modo geral, estou de acordo. No lugar de uma geopolítica, eu me empenharia em construir uma “geopoética”. EDOUARD GLISSANT Porque uma geopoética pode abranger o mundo. Uma geopolítica pode destruir o mundo. Mas a Inglaterra é um continente, é a Irlanda e tudo quanto são ilhas, arquipélagos. E a Irlanda é uma vítima da Inglaterra. A Inglaterra é um continente. Um continente não é apenas uma realidade física; é também uma vocação. Acho que aquilo que eu disse sobre a fragilidade é real. O pensamento arquipélico é adequado porque se aplica ao inextricável atual do mundo e porque não é todo-poderoso, pois os arquipélagos nunca são todo-poderosos. Os continentes que aparecem nos arquipélagos é que são todopoderosos: a Austrália, na Oceania, o Japão... tornam-se continentes, mas o que está em volta deles são arquipélagos pobres e ameaçados. O pensamento continental é poderoso e magnífico, suntuoso, dá-nos coisas maravilhosas, mas é também mortal. E também mata ao seu redor. Os fundamentalistas, tanto de um lado ou como do outro, fundamentalistas religiosos ou fundamentalistas intelectuais, são instrumentos de assassinatos, de um lado e do outro. São sistemas de pensamento que são emanações do que chamo de pensamento continental. O pensamento arquipelágico nunca é imperial. Quando se torna imperial, é porque se continentalizou. Não foi para mostrar erudição que citei o mar Egeu, Esparta e Atenas. O mar Egeu significa os filósofos pré-socráticos, o mundo cheio de tramas que se tenta compreender, enquanto Esparta e Atenas já são o sistema platônico ou o sistema lacedemônio militar. E devemos estar atentos em relação a isso. E o que digo é que os Estados Unidos têm esse aspecto de pensamento continental e não apenas imperialista. Tudo o que os dirigentes, ou os subdirigentes, ou os sub-subdirigentes podem dizer é: “Os Estados Unidos, the greatest nation of the world.” Mas não, as maiores nações do mundo são as nações que consentem em sua própria diversidade. Não são as nações militares, pois as nações militares passam. Elas não duram. É como se, há dez anos, se dissesse que a União Soviética era a maior potência do mundo. Isso passa, desmorona. Não dura. Mas a grandeza da diversidade consentida é algo que permanece. EDOUARD GLISSANT negro, mas também com o sofrimento indígena – a metade da população de Trinidad é indígena, a outra metade é negra –, o sofrimento foi repartido. Nessa região do mundo, nós não temos o É o oceano que os navios negreiros atravessavam, marcando sua viagem com cadáveres de escravos que jogavam no mar. Para mim, o direito de ignorar essa interpenetração. A compaixão só é eficaz e justa quando se inspira, sem limites, no pensamento do Todo, no pensamento do mundo todo. Ouvimos essa música, essa tempestade contínua que trama para nós a Relação. A deportação dos africanos de Paul Gilroy, Black Atlantic [Atlântico Negro], constitui um modelo americano específico de pensamento sobre a raça, um modelo onde uma gota de sangue negro que te faz negro, à negritude - se você é branco ou negro, pensado não como uma categoria estável, mas como uma que se transforma e que seja múltipla. Eu me pergunto por desde o início do século XVI, a dos hindus a partir do século XIX, a vinda incessante de colonos europeus e de comerciantes da Ásia e do Oriente Médio, a violenta oposição das condições sociais regidas pelo mesmo sem as aspas? _ Para mim, o termo importante na expressão “Atlântico Negro” não é “negro” mas, sim, “Atlântico”. Se a palavra “Atlântico” é forte, é porque designa o caminho do tráfico dos negros. oceano Atlântico é uma obsessão e, talvez, também uma neurose. A República Dominicana, a Martinica, Guadalupe eram os lugares onde os navios aportavam, onde separavam as mães de seus filhos e os irmãos de seus irmãos. O mar do Caribe foi o principal ponto de chegada do tráfico de negros, o lugar a partir de onde os escravagistas distribuíam pelas Américas seu gado humano. Havia carregamentos que saíam para a Luisiana, para a Virgínia ou para as Carolinas. Eu caracterizaria o Caribe através de duas palavras: a de “arquipélago” e a de “crioulização”. Creio que a forma mais humana, mais densa e mais intensa da metamorfose – e a metamorfose é uma das grandes ambições da humanidade – é a crioulização. E o trunfo privilegiado da crioulização é o arquipélago. Durante muito tempo, o arquipélago foi ignorado ou destruído pela corrente conquistadora dos pensamentos do Uno. No entanto, os arquipélagos quase sempre precederam os continentes. Na história antiga, os arquipélagos do mar Egeu anunciavam as vitoriosas continentais que são Esparta e Atenas. O arquipélago do Caribe, que é como um prefácio das Américas, recebeu primeiro o eco desses continentes vencidos que são as Américas. Vencidos pela conquista de Cortez, pela conquista de Pizarro e vencidos pelos emigrantes do Mayflower. Os arauaques e os caraíbas viviam como nômades nas ilhas, deslocavam-se de ilha em ilha, por três ou quatro anos, quando o Ocidente vindo do Leste caiu sobre eles. A crioulização nasceu dessa derrota. Não são as vitórias que suscitam o grande pensamento épico, são as derrotas, ou, pelo menos, as vitórias duvidosas. As grandes derrotas sempre deram origem a grandes livros épicos. E a crioulização não só é o bem mais precioso do Caribe, como também é o único futuro duradouro do continente americano que não deverá sua vida futura à sua massa nem a seu poder, mas à sua diversidade consentida. Os Estados Unidos constituem um grande país-cadinho mas não ainda um país crioulizado. As comunidades e as etnias nele vivem lado a escravagismo desde o início de suas colônias, introduziram elementos de complexidade, de vertigem social e cultural que constituem a particularidade daquilo que nas Américas foi chamado de a “neo-América”. É a América do Caribe e do Brasil, que se pode apor à “mesoamérica” - a América dos ameríndios, dos astecas, dos incas ou dos sioux. A “neo ou a euro-América”, do Mayflower, do Canadá e dos Estados Unidos – e mesmo um pouco do Chile e da Argentina, que se vangloriam de ser muito europeus – é feita da interpenetração dessas diferentes dimensões. No México, como nos Estados Unidos, a mesoamérica sofre a opressão da neo-América, da América Crioula. Essa perturbação deve ser planejada com cuidado. Nós, caribenhos, habitamos cada vez menos os topos das ilhas e vamos cada vez mais para o interior. Nós, “arquipelágicos”, entramos nos continentes. O Caribe é como um círculo, que se expande até o continente, e como um eco, vindo do continente até as ilhas. O pensamento global do Caribe veio das ilhas menores e mais frágeis, mais ameaçadas, pois elas tinham necessidade de conceber o conjunto para poderem se conceber a si mesmas. Em seu isolamento, o sistema das plantations possibilitou uma mistura, uma crioulização em que se encontraram e se combateram brancos e negros, princípio geral de emergência da vida social em toda a região Sul da América. Daí, o pensamento da crioulização escapa para alcançar o Mundo. PAUL GILROY _ Eu me comovi muito com a maneira pela qual Edouard Glissant mobilizou o que penso, dentro de meus conceitos, como uma ecologia do pertencimento que se torna uma força crítica. Eu concordo inteiramente com ele,quando diz que crioulização do planeta é a questão para nós, e de quão importante é impedir que a 30 MULHER _ Eu penso até que ponto o título desta conferência e do livro que esta conferência não usa um conceito como “Atlântico híbrido” ou “Atlântico Crioulo”, por que se mantém este termo negritude PAUL GILROY _ Para mim esta palavra está lá como um significante vazio, porque o racismo a produz. E enquanto viger a transcendência das ordens raciais, ela precisa estar lá desta forma. Não porque eu quero fazer da negritude uma categoria ontológica, mas era fácil para as pessoas como nós imaginar que, ao colocar nossas aspas ao redor, realizamos algum trabalho no mundo, especialmente aqueles de nós que aspiram a uma “ontologia histórica”. Esta negritude é parte do nominalismo, mas é uma dinâmica nominalista, nós a compreendemos a sua vida. Então enquanto houver a supremacia branca no mundo, esta palavra precisa estar lá (para mim). Quando a supremacia branca se for, quando pudermos imaginar o fim da supremacia branca, e quando nós cultivarmos o hábito de imaginar o seu fim, então poderemos descartar aquela negritude. Esta negritude descartará a si própria. _ Eu sou português, e eu aprecio muito os dois discursos, as duas idéias de crioulização e da dupla-consciência. Mas a noção de HOMEM hibridismo tem sido usada como uma arma pelo regime colonial, pelo regime fascista, para legitimar a colonização portuguesa depois do fim de todos os “colonialismos”; então eu não me sinto sempre confortável com esta “bondade” per se, eu tenho sentimentos desencontrados em relação a isto, as coisas podem ser mais complexas. _ Em minha exposição, eu disse que o mundo é inextricável. Não se pode obter uma foto nítida do que se passa no EDOUARD GLISSANT mundo. Creio, entretanto, que se tem, hoje, duas concepções principais da identidade – e é o que desenvolvo em meus textos. Tem- se a concepção da identidade de raiz única, para retomar uma das idéias através das religiões – e sua maciça reorientação nas Estados Unidos da seguinte forma: “Nós preferimos não ter o acordo imagem de Deleuze e Guattari, a qual mata todas as outras raízes ao cabeças dos povos – constitui o primeiro grande exemplo de comercial mundial que vocês nos oferecem.” Isto é muito seu redor. É aquela em que o Ocidente se formou e impôs ao mundo. Quando falo do Ocidente, falo tanto da cristandade, da judaicidade globalização. significativo. A maioria das relações comerciais não existiria, dos tempos da Rota JEAN - CHRISTOPHE ROYOUX da Seda até hoje, sem a globalização das trocas comerciais. A ascensão do poder econômico na China, na Índia e no Brasil se dá Toni Negri descrevem como processos globais e denominam o novo como do islã que, para mim, faz parte dele. E há uma segunda concepção da identidade: a identidade de raiz múltipla. É o que se chama um rizoma. É uma raiz que vai ao encontro de outras raízes e não as mata. Ao contrário, elas se fortalecem mutuamente. É possível ter, hoje, o sentimento de que podemos começar a abandonar nossas idéias de identidades de “raiz única” para tentar entrar na realidade das raízes múltiplas do mundo. Todas as catástrofes que se vêem no mundo atual correspondem à recusa histérica a abandonar a identidade de raiz única, enquanto todos os povos – cuja identidade hoje está ameaçada, como os ciganos da Iugoslávia – admitem que é possível mudar estabelecendo trocas com o outro sem se perder nem porque essas nações se tornaram comercialmente bem-sucedidas e, em conseqüência disso, milhões de pessoas saem do limiar da pobreza. Este fenômeno é hoje bastante amplificado devido à revolução das comunicações, que redefine e cria um novo sentido de espaço global – e, por isso, qualquer tipo de grupo, religioso ou não, pode ter sua diáspora organizada. Em suas raízes, a história da globalização é a história das se desnaturar. Bem sei que o mundo é imprevisível. Mas a comunicações globais. A explosão das comunicações está vinculada à revolução da Internet. A interconexão das comunicações globais crioulização é nossa única chance. Se mudarmos nosso imaginário, teremos uma chance de mudar o mundo. com a Internet e com os satélites cria uma extraordinária força de BASEADO EM UMA CONFERENCIA “ PERSPEKTIVEN AUF DEN BLACK ATLANTIC ”, HAUS DER KULTUREN DER WELT , BERLIN , 17 DE SETEMBRO DE 2004 . energia. Reorganizou tudo. A explosão dos mercados financeiros, especialmente nas décadas de 70 e de 80, não poderia ter ocorrido sem aquelas luzinhas piscando que se vêem no noticiário diariamente. Toda a explosão dos fluxos globais, tanto comerciais DAVID HELD É PROFESSOR TITULAR DE CIÊNCIA POLÍTICA DA LONDON SCHOOL OF ECONOMICS . SEUS INTERESSES DE PESQUISA MAIS IMPORTANTES INCLUEM AS RECONFIGURAÇÕES DA DEMOCRACIA NOS NÍVEIS TRANSNACIONAL GLOBALIZAÇÃO E DA GOVERNANÇA GLOBAL . É E INTERNACIONAL , ALÉM DO ESTUDO DA FUNDADOR DO WWW . OPENDEMOCRACY . NET TRADUÇÃO DE JÔ AMADO LONDON _ 17 DE AGOSTO DE 2004 A cho que a globalização é, antes de tudo, sobre relações de espaço. Não há nada de muito misterioso nisso. Podemos compreendê-la em várias dimensões. Envolve processos que aproximam as relações humanas, um número crescente de conexões e redes através do espaço e, na realidade eu também diria, do tempo. Em sua forma mais estereotipada – os mercados financeiros comerciais, as transações comerciais e as corporações globais –, a globalização conquistou o espaço e tornou o tempo insignificante. Vivemos no início da era global. Foram necessários 300 anos para que o Estado-nação se tornasse a forma dominante da política e da unidade política não só na Europa, mas também pelo mundo afora. Vivemos, agora, num novo domínio, o global, mas ainda temos o mecanismo conceitual de Estado em nossas cabeças. Portanto, pensamos em termos locais e nacionais, mas os recursos que controlam a maioria de nossas principais necessidades, enquanto raça humana – a saúde, o bem-estar, o meio ambiente, o comércio, enfim, tudo que nos afeta –, são globais. Em Global Transformation, um livro que escrevi com alguns colegas, abordamos a história da Globalização e seu impacto sobre diversas dimensões: a econômica, a comercial, a financeira, a empresarial, a da cultura e das comunicações, a da guerra e da política, a do direito, a ambiental etc. Cada uma delas discute diferentes áreas dentro do espaço da globalização; seria um erro ler a história do meio ambiente a partir da história das finanças, ou a das finanças a partir de uma perspectiva global. Têm lógicas e narrativas diversas e histórias espacialmente distintas, assim como momentos e dinâmicas diferentes, mas o que torna original a atual fase de nossas vidas é a confluência da mudança através de todas essas dimensões. A atual mobilidade das pessoas pelo mundo inteiro, e mesmo nos Estados Unidos, é um sinal de que elas querem conhecer lugares atraentes e diferentes. De inúmeras maneiras, o estreitamento das relações humanas através do espaço nos liberta da opressão e limitação tradicionais do referencial local, criando a possibilidade de intermediar, de trocar. Isto não é novo. Já vem acontecendo há muito tempo. A maioria das culturas é cosmopolita e não apenas étnica, ou nacional. A propagação da humanidade, desde as primeiras migrações, foi complexa na forma, na cor e no etnicismo. Tal como Paul Gilroy descreve em seu livro Black Atlantic, o período colonial sugere o fenômeno das diásporas e a história multidimensional da globalização. Basta pensar nas invasões mongóis através da Europa, na extraordinária incursão dos mongóis através de um imenso espaço. Na realidade, entretanto, algumas das primeiras grandes formas de globalização estão relacionadas com o advento das religiões mundiais, que tornam bastante insignificantes os fenômenos da cultura popular. Imagine-se a propagação do judaísmo, do cristianismo e do islamismo pelo mundo inteiro... Esta propagação Império ? DH _ Não tenho muita paciência com isso. Os impérios foram fenômenos históricos muito específicos, dos romanos até os ingleses. O poder atua em planos distintos, é multidimensional. Tome o argumento de que os Estados Unidos são um império e o analise de três maneiras: o poder militar, o poder econômico e o poder de comunicação de massa e cultural. No plano militar, é inquestionável que o mundo é unipolar. Os Estados Unidos detêm um comando avassalador do mundo, assim como recursos para um poder destrutivo, mas até no plano militar já não podem usar essa força para garantir a vitória da forma que um Estado-nação poderia fazer há 50 ou 60 anos, como na I e II Guerras Mundiais. O sistema entreguerras permitiu um novo conceito de vitória e de inimigo. Hoje, apesar de seu domínio militar, os Estados Unidos podem ser encurralados, e vulneráveis, no Afeganistão e no Iraque. Não basta a foi, em grande parte, fruto dessa explosão. potência militar para conseguir o controle sequer do campo de batalha. Em segundo lugar, no plano econômico, os Estados Unidos As principais tendências da globalização abrangem também a não são um império. Até 40 ou 50 anos atrás, tinham uma economia relativamente autárquica, mas atualmente ela é bastante fluida e expansão dos mercados globais de mercadorias e serviços, a criação aberta. É verdade que os Estados Unidos exercem uma influência de governos multiestratificados com o fim da guerra fria, a difusão de valores democráticos, a internacionalização da segurança e a emergência de novas epidemias. predominante sobre a economia mundial, mas esta é cada vez mais multipolar. Note-se a ascensão da União Européia, da China etc. No Os impérios dos séculos XVIII e XIX – principalmente o império britânico, que foi o maior de todos – desmoronaram, lentamente, ao caótico. Parece um tabuleiro de xadrez multidimensional. Com os quanto financeiros, a que assistimos nos últimos vinte, trinta anos, D AVID H ELD _ O que você acha daquilo que pessoas como longo do século XX. Em parte, foram derrotados; mas também em conseqüência da I Guerra Mundial, que deixou a Europa muito abalada e sem condições de cuidar de seu império decadente. A independência da Índia ganhou força com a I Guerra Mundial, pois os ingleses já não conseguiam se concentrar no governo da colônia. Mas o que também ocorreu no século XX, principalmente a partir de 1945, foi a ascensão dos movimentos de libertação nacional. Era o período pós-colonial. A ideologia do império morrera. A ela sucedia, absoluta, a ideologia da autodeterminação e da democracia. É impossível fazer ressurgir um império territorial na era pósimpério. Nunca um império conseguiu se expandir exclusivamente pela força militar. Todos necessitaram de uma mistura de poder militar, econômico, social e cultural, assim como da integração das elites nacionais. Os romanos já sabiam disso. Praticamente não existia uma integração horizontal no império romano, exceto entre as elites de todos os territórios conquistados e que eram integrados ao império romano. Os ingleses o fizeram levando para a Índia os sistemas de ensino público, nas escolas e nas universidades, e preparando as jovens elites indianas na tradição humanista britânica. Hoje, no entanto, os norte-americanos chegam a Bagdá e não compreendem por que estão ali, ou o que estão fazendo ali – e não conseguem controlar o país. O impressionante sobre a globalização é que, atualmente, é possível exercer o poder sem controle territorial. O poder dos grandes impérios dos séculos XIX e XX era exercido mediante o controle do território. O grande erro que os norte-americanos cometem atualmente é o de tentar reinventar a questão do império a partir do território. Isto é impossível nos dias de hoje e é por essa razão que eles vêm fracassando. Embora muitas redes globais de comunicação e muitos processos operem, cada vez mais, de forma extra-territorial, isto não significa que a questão territorial tenha deixado de ser importante. Uma das conseqüências da superposição dos limites entre a política e a cultura em Estados-nação é a difusão, em diferentes domínios e em diferentes níveis, de movimentos subnacionais, como os que existem no Canadá, na Espanha e até na GrãBretanha. Também ocorre a reintegração de relações espaciais em âmbitos maiores, como a União Européia, o Tratado de Câmbio Livre da América do Norte e o Mercosul. A recombinação de relações espaciais se dá em planos distintos, assim como a subversão do espaço nas diversas redes de comunicação e nas formas. O poder é a capacidade de fazer com que algo aconteça, ou não. No atual contexto global e nos mercados da economia e das finanças globais, são as regras que determinam o resultado da distribuição. O poder toma a forma de todos os acordos de governança que criam as regras para o intercâmbio da distribuição. Alguns deles são maciçamente impostos pelos Estados Unidos e pelo mundo ocidental, que ainda detêm uma influência desproporcional em todas as organizações governamentais internacionais, como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial ou a Organização Mundial do Comércio. No âmbito comercial, são os Estados Unidos e o mundo ocidental que determinam a natureza desses acordos. Daqui a 30 ou 50 anos, entretanto, o mundo não será o de agora. A ascensão da China, da Índia, do Brasil e da África do Sul representa um desafio crescente ao antigo regime mundial. Atualmente, os excluídos têm condições de desafiar aquelas estruturas através de sua visibilidade. Essas potências emergentes fizeram recentemente em Cancún algo que nunca haviam feito antes. Dirigiram-se à União Européia e aos 31 plano da economia, o mundo é multirregional e multipolar. No plano da cultura e das comunicações, o fenômeno é mais difuso e mais impérios clássicos não era assim; tinham que controlar uma capacidade hierárquica porque controlavam tudo isso através dos territórios, o que já não ocorre. Não estou romantizando o período do Estado-nação. Foi a Europa, no século XX – a Europa, e não o mundo islâmico –, que levou o mundo ao abismo por quase duas vezes, nas duas guerras mundiais, a Europa, esse sustentáculo do Iluminismo. Nada há o que comemorar no Estado-nação, ou no Estado-nação europeu. A economia mundial vem criando maciçamente novas oportunidades para as pessoas. Não é apenas negativo, não é apenas perda de empregos. Num mercado aberto, também são criadas possibilidades para as pessoas do mundo inteiro, para que estas utilizem os recursos e capacidades de que dispõem. Chama-se a isso vantagem comparativa, para seus próprios fins. E se as regras fossem justas, o que não são, poderia ser ainda melhor. Então, o que fez a globalização nos últimos 20 ou 30 anos? Expandiu maciçamente o comércio global, quadruplicou as transações comerciais do mundo em desenvolvimento para o mundo desenvolvido, redefiniu a divisão de trabalho e permitiu que centenas de milhões de pessoas, na Índia e na China, saíssem do limiar de pobreza. Criou oportunidades, mas, mas...se não passa de apenas mais uma faceta do mercado manipulado pela agenda política do consenso de Washington – a liberalização do comércio, a liberalização dos mercados de capital, privatizações etc., vinculadas, agora, por meio das novas doutrinas de segurança de Washington –, se assume essa forma e lhe é dada essa força, então também se torna um projeto potencialmente hegemônico e destrutivo, tanto para o meio ambiente, quanto para a maneira pela qual vivem as pessoas. Criou a primeira catástrofe sistêmica: o aquecimento global. Havíamos conhecido anteriormente catástrofes ecológicas, como a peste bubônica, os flagelos da peste, a dizimação da população indígena da América do Norte e do Sul, e não porque a tecnologia dos ocidentais fosse superior, o que era, mas porque eles traziam os vírus do banal resfriado, da gripe e da sífilis, com os quais impregnavam as populações locais, as quais não tinham sistemas imunológicos capazes de lhes resistirem. Mas, agora, trata-se de uma forma de degradação ecológica supra-regional. Penso que o maior desafio do mundo moderno é o de educar a região central dos Estados Unidos! Sem uma mudança na política norteamericana, seria muito difícil deter o aquecimento global. Vivemos numa era muito estranha: um momento de atividade global crescente e, ao mesmo tempo, com um sistema político territorialmente orientado. A maior democracia do mundo – não em termos de população, mas em termos de poder – vota em candidatos que só são responsáveis perante seus próprios cidadãos e, entretanto, somos todos depositários e dependentes do resultado das eleições norteamericanas. De certa maneira, deveria tratar-se de uma eleição mundial. Mas é uma eleição local, nacional. Temos, portanto, um sistema de responsabilidades que é nacionalmente vinculado e um sistema de atividades globais crescentes que transcendem esses limites, o que cria uma crise de responsabilidade. Os líderes políticos dos Estados Unidos só são responsáveis perante seus cidadãos, e não para o resto do mundo, e não há meios pelos quais o presidente norte-americano venha a tomar as medidas cabíveis para deter o aquecimento global. É evidente que os meios de comunicação norte-americanos estão concentrados em poucas e poderosas corporações, mas as tecnologias atualmente existentes permitem que seja ignorada essa mídia nossa era global, a única que pode lidar adequadamente com a dominante, utilizando-as de uma forma independente. Este fenômeno interconexão de nossos destinos e riquezas através de todas essas é universal e particular e cria, simultaneamente, perspectivas abertas que permitem uma redefinição do particular. Hollywood é um dimensões. Teríamos instituições políticas à altura de fazê-lo no curto prazo? Seus adversários dizem que esta é uma outra forma de excelente universalismo, outra igreja. O mundo não precisa de mais igrejas. exemplo. Los Angeles é o centro da indústria cinematográfica norte-americana, mas também é a cidade da mais vibrante atividade de rádio e imprensa, com jornais em todas as línguas do mundo. Precisamente as mesmas tecnologias são utilizadas para editar jornais, produzir programas de televisão ou rodar filmes em espanhol, italiano etc. O problema crucial, no entanto, é: como criar uma responsabilidade sistêmica, uma responsabilidade global? E eu respondo: a filosofia política cosmopolita, por meio de seu reconhecimento de igual valor para cada ser humano, com sua prioridade de valores por consentimento, é a única filosofia política que tenta criar uma maneira não-coercitiva para que as pessoas possam tocar suas vidas, porém dentro dos limites da interligação. A democracia é a única via para nos tornarmos cosmopolitas. Aceito que seja uma igreja, outra forma de uma filosofia universal, mas, A globalização trata fundamentalmente, como todas as experiências pelo menos, uma igreja democrática. Não é manipulada pelo humanas de intercâmbio, possibilidades e perdas. mercado, nem pelo G1. Está vinculada a uma aspiração fundamental, que não é trans-histórica, que emergiu num determinado momento de oportunidades e riscos, de A questão fundamental do século XX não envolve apenas a expansão da economia global. Envolve a capacidade dos seres humanos aprenderem com o Holocausto. A criação de novas regras internacionais – sistemas legais, direitos humanos ou, por exemplo, o Tribunal Penal Internacional – gerou constrangimentos e impôs limites aos sistemas de soberania dos Estados. A soberania deixou de ser um poder concreto. Os direitos são, de certa forma, determinados por um punhado de valores que são cosmopolitas e globais, implantados, agora, no regime de direitos humanos. Esses valores, como infelizmente sabemos, têm uma eficiência restrita. São limitados em muitos lugares do mundo, mas constituem nosso único grande tema. São o grande tema que sobrou para a espécie humana e, de certa forma, nos vinculam como povos com algo em comum. Penso que a globalização dos padrões legais no que se refere aos direitos humanos, assim como as restrições ao poder político, representam temas imensamente progressistas que surgiram a partir das estruturas que alteraram o direito internacional na segunda metade do século XX. O verdadeiro desafio reside em criar sistemas mais amplos de responsabilidade no mundo inteiro. Se Bush se reeleger, isso será extremamente prejudicial para o sistema multilateral do mundo. Muitos dos prejuízos que ele causou ainda podem ter conserto, mas depois de oito anos será muito mais sério. A grande pergunta é: como podemos nós, enquanto humanidade, reinventar conceitos de responsabilidade, de transparência e de democracia que correspondam à nossa era global? Seria necessário um sistema de governança cosmopolita para abranger o local, o nacional, o regional e o global. Afastamo-nos cada vez mais de um mundo de comunidades nacionais, no qual as nações decidem seu próprio destino, e caminhamos para o que chamo comunidades sobrepostas do destino, nas quais o destino e a riqueza dos povos estão cada vez mais interligados – não apenas pelos eventuais grandes dramas, como o 11 de setembro e suas conseqüências em termos de segurança. O ato de ir à loja da esquina comprar uma mercadoria está vinculado a um sistema de distribuição espalhado pelos quatro cantos do mundo. Significaria essa interligação de destino e riqueza, em suas várias dimensões da atividade humana, que ficaremos todos cosmopolitas? Seremos capazes de reconhecer nossa interconexão e partilhar mais valores em comum? As respostas estão em aberto. Pode ocorrer que essa ordem global crescente venha a ser determinada em sua forma e regras, em última instância, pelas forças do mercado global. A ascensão do G1 poderá torná-lo um novo tipo de império. Vejo com ceticismo ambas as hipóteses, embora possam vir a ocorrer. O mundo se tornou mais complexo, com um maior número de níveis, e o controle não pode ser exercido como era nos tempos da Índia colonial. Defendo a velha tradição cosmopolita do Iluminismo, que obedece a alguns princípios: igual compromisso entre custo e valor; igual valor moral para todos os seres humanos; o conceito de que todo ser humano é capaz de ações empreendedoras, de escolher seu modo de vida e, ao fazê-lo, agir de forma responsável enquanto seu agente; e que deveríamos viver em sistemas políticos interligados por consentimento, e não por coação. Os pontos em questão são: a justiça social, o desenvolvimento sustentável e o meio ambiente. A ignorância desses temas fundamentais abre espaço para a ação de outros; estes valores são interdependentes. Acredito que a globalização implantou alguns desses valores em nossos atuais temas. Em certos aspectos, a globalização é aberta e progressista. Com as lições tiradas do holocausto, o direito internacional implantou valores cosmopolitas no centro de nossos sistemas legais internacionais. Não partimos de zero, como nômades cosmopolitas. Começamos como cidadãos cosmopolitas vinculados a um sistema de leis e acordos que, formalmente, já são cosmopolitas. O problema está em saber se tal sistema se pode tornar cosmopolita num sentido mais profundo e levar essas novas formas de poder global a assumirem a responsabilidade... na Europa, e mais além, mas que agora está interligando cada ser humano que aspira a viver uma vida com opções. JCR _ Mas deve se admitir que essa filosofia é originária do Ocidente. DH _ O que significa “ocidental”? Do ponto de vista filosófico, é um erro considerável associar a origem de alguma coisa com sua validade, pois em nada a desqualifica o fato de ser chinesa, indiana ou ocidental. Devemos separar as origens das idéias. É claro que em grande parte é verdade que a origem da democracia, tal como a conhecemos, assim como dos direitos humanos, está nos países ocidentais. Assim mesmo, devemos tomar cuidado, pois tudo isso vem lá de trás, do Mediterrâneo, através da efervescência das culturas árabes e Platão e Aristóteles chegam ao Renascimento através do idioma árabe. Há muitas democracias. Se Amartya Sen aqui estivesse – um dos grandes pensadores do desenvolvimento e um dos grandes economistas da atualidade – diria que não. “No Ocidente, vocês pensam que essas idéias são ocidentais, mas eu poderia mostrar tradições indianas em que elas estão, sob outras formas”, diria ele. É complexo, portanto, e as culturas mais tolerantes do mundo são as islâmicas. O sul da Espanha foi uma região islâmica por muito tempo e, ali, judeus e cristãos viviam em paz, lado a lado. Não podemos dizer a um islamita fundamentalista que coloca uma bomba em algum lugar que aquela é uma expressão de legitimar a diferença! O islã está repleto de pessoas que lutam para que sua religião seja compatível com a decência humana, com igual valor moral para todos, mais aberta a uma cultura democrática, com liberdade de expressão, com mais autonomia para as mulheres – não é uma cultura de bombas. Essas são lutas do islamismo, e não somente do cristianismo ocidental. Há algo que deve ser dito ao ativista da bomba, aos jovens revoltados, sejam eles judeus, em Israel, ou combatentes islâmicos, ou fundamentalistas cristãos nos Estados Unidos: não quero seu fundamentalismo tradicional porque ele não permite reconhecer as diferenças, ou os valores que necessariamente diferenciam os direitos que todo mundo tem a uma vida digna e existe uma única filosofia que permite, de modo nãocoercitivo, a mediação dessas diferenças, que é a cultura democrática cosmopolita. A filosofia política cosmopolita consiste num diálogo, e não num monólogo; fundamentalmente, preocupa-se em assumir valores que reconheçam a autonomia de cada ser humano. Não é uma filosofia imperialista. Não tem ambições territoriais. O cosmopolitismo aspira a encontrar meios de interconectar comunidades sobrepostas pelo destino. Não compreendemos a natureza do poder político através do Iluminismo, nos séculos XVIII e XIX. No princípio, pensávamos que o poder político era forjado e formado por Deus, depois pensamos que seria pelo proletariado, em seguida as pessoas procuraram temas individuais. Não existem temas singulares e nunca existirão; existimos nós, com opiniões distintas, em combinações e comunidades distintas, milhares de ativistas de direitos humanos e organizações, na África do Sul, na América Latina, na China, lutando diariamente para que suas vidas tenham direitos e para propagar essas noções de responsabilidade a outros domínios da vida. BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER B RUNO LATOUR BRUNO LATOUR É PROFESSOR NA ESCOLA DE MINAS , CENTRO DE SOCIOLOGIA DA INOVAÇÃO . SEU PRIMEIRO LIVRO , LA VIE DE LABORATOIRE - 1979 - DESCREVE O FUNCIONAMENTO COTI - DIANO DE UM LABORATÓRIO CALIFORNIANO UTILIZANDO MÉTODOS ETNOGRÁFICOS . DENTRE Recuemos ao tempo das guerras religiosas na Europa, no final da SEUS INÚMEROS LIVROS , DESTACAM - SE : NOUS N ’ AVONS JAMAIS ÉTÉ MODERNES Idade Média. Os grandes paladinos do poder político secular, Maquiavel, Hobbes, Locke etc., eram grandes personalidades românticas e utópicas em seu tempo e adotaram o conceito da política separada da igreja, idéia que se tornara dominante por muito tempo. Atualmente, o cosmopolitismo é a filosofia política e moral de D ’ ANTHROPOLOGIE SYMÉTRIQUE - ESSAI - 1991 - E POLITIQUES DE LA NATURE - COMMENT FAIRE ENTRER LES SCIENCES EN DÉMOCRATIE . FOI CURADOR DA EXPOSIÇÃO I CONOCLASH , JUNTA MENTE COM PETER WEIBLE , NO ZKM DE KARLSRUHE . PREPARA , NO MESMO LOCAL , UMA OUTRA EXPOSIÇÃO COM O TÍTULO DE RENDRE LES CHOSES PUBLIQUES . PARIS N _ 12 DE OUTUBRO DE 2004 AO HA GLOBO TERRESTRE JEAN - CHRISTOPHE ROYOUX _ Seria possível você resumir o que está em jogo no debate em que esteve envolvido recentemente e que opõe os defensores do cosmopolitanismo a essa outra concepção cosmopolítica que insiste na multiplicação das naturezas e, portanto, dos mundos ? BRUNO LATOUR _ Há dois pontos de partida importantes. O primeiro é, certamente, o fato de que se passou, se é que se pode falar assim, do tempo do tempo ao tempo do espaço. É evidente que, caso se continue sendo modernista, nada disso tem importância: a história continua. Porém, a meu ver, durante todo o período em que pensávamos que éramos modernos, vivíamos no tempo do tempo, o tempo da sucessão, dos estágios que se superam e se subsumem uns nos outros, como diria o velho Hegel. A partir do momento em que a ecologia se tornou essencial, nós nos encontramos no tempo das simultaneidades e não mais no das sucessões; em outros termos, no tempo do espaço. A questão da coabitação tornou-se, então, a questão fundamental. Mas o segundo elemento a se levar em conta é que não há mais lugares onde absorver a coabitação como havia um tempo (revolucionário ou decadente, mas sempre aí) para absorver a sucessão. A coabitação tinha, desde o século XVII, um lugar natural: o «grande Globo» do modernismo, para falar como Peter Sloterdijk. Qualquer coisa de extraordinário que acontecesse aos modernos, tudo se situava no grande Globo, já presente, da Natureza. Era possível situar, de modo enciclopédico e umas em relação às outras, todas as diferenças. As diferenças de subjetividade, as diferenças políticas, as diferenças de religiões, as diferenças de ideologias já coabitavam na natureza. Todas eram, pois, superficiais em relação à grande unidade, a essa grande universalização «da» Natureza. Ora, no decorrer da década de 70, no momento em que se produziu a parada do tempo da sucessão – com a multiplicidade das crises ecológicas, com a proliferação das ciências, com a emergência das controvérsias internas às ciências – ocorreu, simultaneamente, o momento da incerteza quanto à unidade dessa natureza. À primeira fila dos porta-vozes da natureza chegaram representantes que eram portadores de discórdias em seu próprio terreno – tanto os ecologistas quanto os políticos. Quando se começa a ter disputas sobre os vírus, as células-tronco, os OGM, as reservas petrolíferas, o aquecimento global, os cânceres, a poluição etc., e quando esses novos representantes da natureza são, eles mesmos, submetidos a pressões econômicas ou políticas, a desordem é completa. A unificação da natureza não é mais suficiente para obter uma versão estável do que é um cérebro, um fígado, um carro, uma doença. No fundo, não há mais Globo, no sentido de Sloterdijk, onde todas essas diferenças poderiam ser situadas. Estamos diante de construções de mundos mais ou menos incompatíveis. Cada uma pode visar à unidade, mas elas não a atingiram na primeira tentativa. Não se pode simplificar a questão da unidade considerando que o problema já está resolvido. A partir disso, os cosmopolitanos retomam a grande tradição estóica, depois kantiana, que consiste em dizer: «nós, habitantes das grandes cidades, os cosmopolitas em sentido próprio, nós sabemos que as diferenças que nos separam são menos importantes do que aquilo que nos une». Reivindicam um mundo cujo equivalente, de certa forma, seria a UNESCO e que consiste em dizer: «todos os representantes dos diferentes saberes, das religiões, das nacionalidades, podem sentar-se em torno de uma mesa comum, sob o mesmo teto». É uma maneira aparentemente educada, mas, de fato, extremamente grosseira de conceber as diferenças. Quando Isabelle Stengers reatualiza o termo «cosmopolítico», tratase, para ela, de tomar distância em relação a essa versão humanista da política. É, aliás, uma versão que os próprios antropólogos empregam facilmente quando falam de «cosmologias diferentes», em que a palavra cosmologia perdeu, de certa forma, o caráter perigoso de seu plural. Em geral, a visão modernista consiste em dizer que há um Cosmos interpretado por cosmologias que representam variações culturais diversas da natureza única. A variação é, então, novamente superficial, pois decorre da representação humana e não do próprio Cosmos. A cosmopolítica hard, se ouso falar assim, em contraste com o cosmopolitanismo soft, consiste em dizer o contrário: não há unidade; no entanto, é necessário coabitar sem poder se decidir pelas antigas facilidades da sucessão. Se nunca se foi moderno, a questão da coabitação volta a se tornar crucial. Não há um fundo já estabelecido que seria a natureza. Portanto, a questão é saber o que se faz com todos os elementos que podiam ser rejeitados no tempo da sucessão, em particular os deuses. Os primeiros pensam que os deuses são representações; os outros, como Tobbie Nathan, perguntam-se: o que fazer com os deuses quando eles estão em guerra? O que é a política, se é preciso fazê-la com seres que chegaram a um conflito tal e que têm vontades de unidade tão contraditórias? JCR _ O que o leva a dizer que se está no tempo do espaço, da coabitação e não mais no tempo do tempo ? TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI 32 BL _ Foi a ecologia que nos ensinou isso. Vê-se, aliás, que os últimos modernistas consideram que a ecologia não é muito importante. O retorno da ecologia significa incluir novamente o que havia sido terceirizado. É o momento em que volta o que havia sido considerado atividade secundária. Eu fui muito influenciado pelos parques do tinha dele nos séculos XVII – XVIII. Nossa tarefa, agora, é reconstituir um habitat que esteja à altura do número de elementos diversos a reunir exatamente quando não há mais Globo. Os modernistas nostálgicos vão dizer, é claro, que é necessário voltar ao Globo, sem perceberem que é precisamente a partir do momento em que as Quênia que pertencem, tipicamente, a uma cosmopolítica: é preciso levar em conta, ao mesmo tempo, o desenvolvimento da população queniana, dos leões, dos vegetais, dos pássaros, dos turistas japoneses, dos credores do Banco Mundial, dos doadores das ONG, sem poder retirar nenhum desses «sujeitos». Estamos tratando de diferenças de mundos. fotografias retrabalhadas da NASA nos permitem ver o mundo como unificado que se perdeu o olhar de Deus que era inteiramente partilhado ainda por Descartes, Newton, Rousseau, Marx e os cibernéticos, e que nós temos que lidar somente com pontos de vista Penso que as crises ecológicas e as outras, digamos, o que foi chamado de fim da História (que foi um diagnóstico bastante correto quanto ao fato de que o tempo da sucessão era substituído por ou convertido em um outro tempo, o tempo do espaço); essas crises, portanto, nos fizeram entrar sem dificuldades na segunda globalização sem global e sem globo. Isso não quer dizer que a história parava. Mas uma quantidade impressionante de coisas não podiam mais ser eliminadas. Não era mais possível se livrar do que se considerava atividades secundárias. JCR _ Fica claro que o termo pós-moderno não lhe parece adequado para designar esse tempo do espaço. _O pós-modernismo é uma noção muito fluida que revelou, como sintoma, a suspensão do tempo da sucessão. O que era muito útil. BL Mas ele não aceitou, absolutamente, a dimensão realista de tal suspensão: a volta da objetividade que a acompanha, isto é, a amplitude das tarefas políticas, científicas, artísticas, intelectuais que acompanham a reconstrução de um mundo que não é mais unificado de imediato e que, é claro, não é mais simplesmente diverso. _ A querela sobre o universal estaria no centro dessa oposição entre cosmopolitanismo e cosmopolítica? A disputa de interesses seria JCR uma redefinição do universal ? BL _ Não. Penso que o universal, enquanto horizonte comum, é partilhado pelos dois lados. Nós herdamos o universal, é claro. Porém, a questão fundamental é saber se ele já está realizado ou não. O que é irritante naquilo que Isabelle Stengers chama de «caráter intolerante do universal» é, precisamente, que ele é considerado como um dado. O trabalhado já está realizado. A questão que divide os cosmopolitas não é a recusa do universal como horizonte mas, sim, a questão de saber como se pode levar a sério qualquer mensuração das tarefas vindouras para atingir o universal. Trata-se de chegar a criar o espaço onde todos os cosmos partilham uma mesma sociedade sem ter os mesmos corpos, a mesma concepção de natureza – sendo, portanto, multinaturalista no sentido técnico conferido a essa palavra por Viveiros de Castro. O espaço político-artístico-intelectual, que permite fazer essas diferenças coabitarem, ainda precisa ser inventado. Tomemos os chineses, não os verdadeiros chineses mas aqueles que os franceses aprendem a respeitar graças a François Jullien. Segundo ele, os chineses não são diferentes e, sim, são indiferentes às nossas diferenças. Trata-se de um bom exemplo de cosmopolítica! Se é preciso coabitar com pessoas que são indiferentes às nossas diferenças, isso não é a mesma coisa que dever considerá-los como humanos que têm, como todos os outros, assento na UNESCO simplesmente sob um ângulo um pouco em decalagem em relação aos demais. O trabalho da política seria conter no mesmo envelope artificial, na mesma Biosfera 2, espécies tão diferentes como chineses, índios da Amazônia, católicos romanos etc. Isso vai muito além do simples relativismo. A política é a arte de fazer coabitarem juntas, nessa imensa estufa que é o «parque humano», para retomar a expressão de Sloterdijk, espécies que têm exigências de sobrevivência muito diferentes, que requerem um regime muito particular de cuidados e de técnicas. É fazer com que as questões de solo e de sangue, que desempenharam um papel tão nefasto na história política, voltem não mais enquanto obsessão reacionária, mas enquanto questão ecológica de base para realizar «a atmosfera do bom governo», a ecologia do bom governo. Como mostrou o antropólogo Philippe Descola, a própria natureza deu uma virada. Os naturalistas que acreditavam que a natureza nos unificava através da parte «material» de nosso ser, ao passo que a parte «espiritual» seria variável, confirmaram não ser senão uma das quatro maneiras possíveis de representar a relação do homem com a natureza na história da Humanidade. _ Exatamente no momento em que se fala mais do que nunca de mundialização e de globalização é que aparece a constatação do deslocamento do cosmo como unidade natural. Isso não é paradoxal ? JCR situados. Não há globo terrestre. Ele constituiu uma idéia geográfica muito poderosa no momento em que foi calculado. Porque isso é antes de tudo um espaço de cálculo. Segundo as relações de latitude e de longitude, qualquer diferença é presumida como tendo seu lugar. Mas, agora, a questão é: «em que lugar colocam vocês as controvérsias científicas a respeito dos próprios fatos, por exemplo? Em que lugar colocam vocês as controvérsias religiosas, as paixões políticas?» Não há lugar predeterminado para tais diferenças. É essa a grande distância que se instaurou definitivamente com o Globo metafísico que, do século XVII até o pós-II Guerra Mundial, foi o horizonte comum dos modernistas. medidas mensurantes e experiências de coabitação. Nada no início é comensurável nem incomensurável. É o que chamo de princípio de irreduções. JCR _ Então o exercício político por excelência seria uma invenção desses «cuidados» ? _ É o que diz Sloterdijk em sua grande metáfora dos envelopes, da estufa, do parque, mas há muitos meios de dizer isso. Eu o diria de BL preferência nos termos de John Dewey e dos pragmáticos norteamericanos, mas isso dá no mesmo. Trata-se, de uma certa forma, de materializar novamente o discurso político. A comissão de inquérito que se instala em torno de um gigantesco quebra-cabeça reunido num hall para compreender o que aconteceu à nave Columbia é um ser jurídico-político absolutamente estranho. Essa reunião em volta de uma coisa não é realmente um Parlamento, mas tem todas as suas características. Se você pensar nas associações que se criaram em torno da questão da AIDS, terá um outro exemplo de inventividade política a partir de um vírus, ele mesmo disputado, traçado, testado por biólogos. Trata-se de objetos cheios de risco. Não faltam exemplos dessas combinações, dessas assembléias esquisitas em torno de objetos híbridos. É evidente que a própria bola, o objeto geográfico, o globo terrestre flutua em algum lugar na atmosfera. Mas não unifica mais nada. Sua unidade não permite nada a ninguém. Ela não torna compatíveis os JCR _ Será que isso quer dizer que há uma dificuldade, ou até uma impossibilidade, para se imaginar algo que seria o elo comum entre todos esses «cuidados»? O que você descreve consiste, a cada vez, em fanáticos que se fazem explodir nas ruas de Bagdá, as zebras que correm no Quênia, ou os pedólogos que trabalham sobre as minhocas. A idéia dos modernistas é esta: há objetos de um lado e representações do outro, e as diferenças de representações, afinal, representações mentais precisas, localizadas, contextualizadas. Passase de uma representação mental a outra sem ter verdadeiramente a possibilidade de fazer a ligação entre elas. não contam muito, pois o próprio objeto sempre acabará unificandoos, num momento ou noutro, sem que se saiba aliás, com muita exatidão, através de que operação o objeto unificador virá a fazer calarem as representações. Essa idéia poderosa dos modernistas, que tem uma eficácia política extraordinária, pois unifica tudo por antecipação, não existe. Se ainda se vivesse sob a abóbada do Globo, evidentemente não haveria grandes problemas. O tempo da sucessão continuaria a fazer sua obra: em algum momento, as diferenças de interpretação iriam atenuando-se ou fariam emergir, por trás de suas interpretações, o objeto indiscutível que não se submete a nenhuma interpretação, que nos livra de todas elas. É a idéia política (insisto, é uma idéia política e não científica), partilhada tanto à esquerda quanto à direita, segundo a qual a verdade científica acaba se impondo por si mesma. Existe, é claro, o inverso dessa posição sob a forma de um elogio das multiplicidades, das diferenças, dos pontos de vista: é o pósmodernismo mais simplista. Mas é apenas o inverso da mesma posição. Ora, se hoje o Globo desapareceu, é porque, entre muitíssimas outras razões, as ciências da terra, há trinta anos, renovaram inteiramente esse objeto que se encontra engajado numa quantidade enorme de disciplinas diferentes. Atualmente, é preciso fazer manter-se junto o que nos dizem os cartógrafos, os geógrafos, a física do solo, os astrônomos e seus modelos; ora, cada um já tinha, em sua própria disciplina, muita dificuldade para ser unificado. É preciso não se enganar a respeito dessa questão de pontos de vista múltiplos. O objeto «globo terrestre», como o corpo humano, tem muitas interpretações diferentes porque é um objeto muito complexo que não que não é absolutamente unificado. A multiplicidade dos pontos de vista não decorre de uma fragilidade de nossas interpretações sucessivas, mas da riqueza do próprio objeto. É por ser muito complexo que ele gera tantos pontos de vista sobre si. Essa complexidade é um elogio ao objeto e não um elogio às subjetividades que o olham de fora. O fim da controvérsia, o momento da reunificação não pode mais vir da emergência repentina do objeto, ao lado das interpretações, a qual faria calarem as interpretações. O grande Globo metafísico, ao contrário, correspondia à idéia de que alguém, um Soberano, iria vir a qualquer momento fazer calar a multiplicidade de vozes. Donde a importância, em todas as arquiteturas dos palácios, da figura do domo. A natureza é um modelo de silêncio e de consentimento político organizado a partir de uma arquitetura muito particular, como mostra o famoso projeto do túmulo de Newton por Boullée. Essa assembléia desapareceu. Então, em que assembléia estamos nós agora? É o que precisamos descobrir. A questão não é a incomensurabilidade dos pontos de vista, o que só levaria, no fundo, a um relativismo ingênuo. Esquece-se disso com freqüência, mas na palavra ‘incomensurável’ existe a palavra ‘medida’; ora, antes da instalação dos instrumentos e das cadeias de medida, tudo, por definição, é incomensurável, mas não depois. A BL _ É estranho mas não é um paradoxo: antes, tinha-se o globo e não a globalização, agora se tem a globalização mas não se tem mais senão blogs! O globo existia, com a geometria de Mercator, quando a globalização mal começava. Quando se começou a ver imagens da terra, tomadas por satélite a partir da estratosfera, perdeu-se o Globo – é o tema do livro Sphère 2 de Sloterdijk – que tinha a vantagem de unificar tudo, como as grandes arquiteturas de Boullée no século XVIII. O satélite deu-nos um ponto de vista situado, um ponto de vista particular. Em outros termos, o global tornou-se, hoje, um comensurabilidade é o objeto da metrologia que é a ciência daquilo que permite justamente tornar comuns as medidas, a capacidade de partilhar as medidas. Para retomar a metáfora de Sloterdijk, um coqueiro nas estufas do Jardin des Plantes não é, no início, nem comensurável nem incomensurável com Paris. Isso requer, simplesmente, um cuidado especial que torna explícita uma multiplicidade de experiências sobre o que são coabitações aceitáveis ou não. Não se trata, pois, justamente, de se comprazer nos pontos de vista incomensuráveis, mas de pagar o preço da definição de uma objeto de disputa entre pontos de vista. Perdeu a evidência que se medida comum. Eu diria que sou mais relacionista que relativista. Há 33 BL _ O que você chama «fazer a ligação» pode ser, talvez, o cuidado. A noção de caso separado e incomensurável por ele mesmo vem de alguma forma da própria idéia de universal desenvolvida pelo modernismo. Mas não é absolutamente evidente que a modernização seja a única forma de fazer política. Há muitas outras tradições, como a chinesa, da qual fala François Jullien. Penso também em todas as grandes noções desenvolvidas por Dewey e que, precisamente, implicam a noção de ad hoc. Há, com certeza, muitas outras casuísticas. É uma evidência empírica: não temos a mesma ligação com os objetos conforme se fale do Iraque, da AIDS ou da poluição – as reações, as atitudes, os modos de indignação e as eventualidades de solução são completamente diferentes. Mas essas diferenças não são levadas em conta por uma definição generalista da paixão política. Nada disso é novo mas, para ser mais preciso, é: de novo presente. O afresco de Lorenzetti em Siena sobre o bom e o mau governo é um perfeito cosmograma. Por um lado, há emblemas magníficos, mas há também, o que se esquece com muita freqüência, paisagens, cidades, comércios, danças, assassinatos. De certo modo, é uma pesquisa experimental cautelosa sobre os acordos e os desacordos possíveis entre os seres que têm exigências contraditórias mas que não sabem a que grau de contradição devem chegar. É isso que se chama diplomacia. O diplomata não sabe o que é incomensurável, sem isso não haveria diplomacia pensável. Ele explora tipos de decalagens entre o incomensurável e o mensurável, de modo que é absolutamente possível mudar durante o processo o que é incomensurável, inaceitável, insuportável. A política é o domínio da compossibilidade. Isso é evidente desde que se passou do mundo do tempo ao mundo do espaço. Mas não se sabe o que é coabitar. Somos muito mal preparados para essa questão pela cultura política que adquirimos durante o tempo da sucessão quando, por exemplo, se presumia que a luta de classes faria desaparecer a religião, a ideologia etc. Antes, a política era fácil pois, de direita como de esquerda, era sempre, no fundo, revolucionária. Ela declarava obsoleto tudo o que não podia absorver. Mas, quando você não pode mais se livrar de nada, nem de uma única espécie animal, nem de uma cultura estrangeira, nem de nenhuma religião e quando tudo voltou a tornar contemporâneo, é necessário pensar as condições da coabitação. A acusação de reacionário ou de progressista cai muito freqüentemente no vazio por causa disso. Os modernos nunca foram contemporâneos deles mesmos. Tornar-se contemporâneo de um mundo onde tudo é contemporâneo não é a mesma coisa que estar na vanguarda de um mundo modernizador em que uma parte é considerada hipercontemporânea e a outra, arcaica... Um cosmograma é uma seleção transversal de diferenças representadas ou retomadas pela idéia de um mundo «bom». Em minha opinião, só se pode falar de cosmograma a partir do momento em que se trata de fazer um mundo bom comum. É uma exigência que se herda quando se foi moderno em algum momento. A idéia da coabitação supõe que é importante fazer um mundo, ir rumo a um horizonte futuro. Minha maneira de herdar do Iluminismo é considerar que a questão do mundo bom comum é ainda muito importante em oposição à simples aceitação das diferenças puras, a qual consiste numa forma de simplificar a coabitação. Em outros termos, formar o mundo bom comum é colocar a questão prática do cosmograma, é interessar-se pelas diferenças que buscam o que elas têm em comum. Os cosmogramas equivalem a questões práticas de arquitetos, de engenheiros, questões de cuidados. É a questão de saber qual é o mundo que é compossível, tendo presente que não se pode calcular, que se vai reunir. O cosmograma só tem Inicialmente não se tratava, para mim, de elaborar uma teoria da globalização político-econômica ou um resumo da função uma filosofia do espaço. Que sentido você dá a esse privilégio concedido ao espaço? De que forma é ele uma característica essencial sentido quando a questão do mundo que deve ser feito, quando o preço da composição não é simplificada. Para mim, o cosmograma cosmológica do pensamento. Eu queria descrever o que chamava relações fortes entre as pessoas e a construção do espaço de aos nossos tempos de hoje ? não designa uma bolha: é um conceito político que retoma a questão da composição. É um elemento que habita a metalinguagem daqueles ressonância em que vivem os enamorados e os criadores. O ponto de partida de minha análise era a suposição da existência de uma que descrevem o que é se reunir quando a natureza desapareceu. natureza psicanalítica relativamente próxima a algumas das idéias propostas por Jacques Lacan. Para se poder falar do que realmente Para voltar ao início, a definição mesma do espaço é a série de simultaneidades. Caso você faça com que alguns seres explicitem a lista dos outros seres com quem eles podem ou não podem viver, você define um cosmograma, uma série de simultaneidades e, portanto, um espaço. O problema é que, agora que o tempo do tempo acabou, não se sabe mais em que espaço a gente se encontra. Sabese que não se está mais no tempo do tempo, mas isso não esclarece muito sobre o tipo de espaço que se habita. O desaparecimento do Globo metafísico suprimiu também a noção de escala. Também a escala deve ser inventada. Pode-se classificar os seres por ordem de importância. O grande erro dos ecologistas foi ter acreditado que, fazendo apelo à Natureza, com um N maiúsculo, se iria classificar os seres por ordem de importância. Isso foi um desastre porque, o Globo não existindo mais, a Natureza é o ser político mais contestado que existe, ou seja, tudo, tudo exceto um princípio de classificação indiscutível dos seres. são os seres humanos, é preciso penetrar naquela camada ilusória do individualismo metafísico e psicológico do pensamento cotidiano. Para compreender a dinâmica do espaço de um casal, é necessário compreender que os seres humanos estão sempre, por assim dizer, imbricados uns nos outros. A hipótese de que partia em meu trabalho era a de que as almas são entidades possuídas e possuidoras. A esfera existencial primordial se cria a cada momento em que o espaço interpsíquico se concretiza. Ser possuído significa ter a capacidade de receber visitantes sutis. A psique tem esse estranho dom de ouvir o que dizem os outros e a audição é a porta de acesso à possessão pelo outro. Para Lacan, seria mais a visão no espelho de sua própria silhueta que está na origem da ilusão que a criança faz de si mesma. Em conseqüência disto, viveríamos permanentemente um duplo encantamento: o dos que nos falam – pois ouvir é abrir-se ao encanto pela voz do outro – e o da confusão constitutiva do eu, que ocorre no Sei que isso choca muita gente, políticos e cientistas, porque eles permanecem no tempo do tempo do tempo e não vêem como se adequar ao tempo do espaço. Em termos gerais, a querela gira em torno da noção de progresso. Contrariamente ao que os pesquisadores cientistas continuam acreditando, as ciências dispensarão muito bem a noção de progresso que só apareceu em alguns momentos do século XIX e no século XX, durante o pósguerra.. Há muitas outras maneiras de satisfazer a capacidade de invenção e de exploração dos cientistas e dos engenheiros. Pode-se, por exemplo, reutilizar a noção numa perspectiva não moderna para momento em que, para meu próprio bem, me confundo com essa bela e coerente entidade que reflete minha imagem no espelho; essa maravilhosa ilusão ortopédica que cria a possibilidade de me transformar de ser dividido em imagem completa. Se consultasse minha intuição primária no que se refere à minha condição de ser vivo projetado num mundo incerto, a informação talvez fosse a de que sou algo inteiramente dividido e fragmentado – e a única questão que sobraria seria a de saber em quantos fragmentos. Aliás, a idéia de Lacan do nascimento da coerência individual a partir da ilusão icônica que projeta minha imagem no espelho é insustentável, do ponto de vista da evolução psíquica, pois cada indivíduo recebe falar da capacidade de coabitar com seres cada vez mais numerosos e cujas capacidades de preocupação e o cuidado que é necessário informações sobre sua unidade e sua coerência, enquanto ser vivo, a partir de outras fontes anteriores à da imagem no espelho. tomar para fazê-los coabitar aumentam. Isso também é progredir - na pesquisa, na atenção, no cuidado. É necessário colocar na questão da coabitação a mesma energia que foi colocada na noção de progresso, tal como fora compreendida no tempo da sucessão. Embora as duas noções pareçam ser muito diferentes – uma ‘progressista’ e a outra ‘reacionária’ – eu creio que fazer manterem-se juntos seres contraditórios continua sendo um horizonte que pode permitir definir uma flecha do tempo. Uma flecha do tempo que vai rumo ao espaço da coabitação e não mais rumo ao tempo da sucessão. P ETER S LOTERDJIK SLOTERDIJK , FILÓSOFO , NASCIDO EM 1947 , É REITOR DA HOCHSCHULE FÜR GESTALTUNG DE KARLSRUHE . PUBLICOU MUITAS OBRAS , ENTRE AS QUAIS A IMPORTANTE TRILOGIA BULLES , SPHÈRES I , GLOBES , SPHÈRES II , ÉCUMES , SPHÈRES III , ORIGINALMENTE PELA EDITORA SURHKAMPF , FRANKFURT , MAIN , NO FINAL DA DÉCADA DE 90 . TRADUÇÃO DE IRACI D .POLETI WIEN J acasalamentos. Esse livro deveria ter sido escrito numa espécie de língua estrangeira, pois estou convencido de que nenhuma das chamadas línguas maternas permite um discurso suficientemente radical sobre a relação profunda de que nascemos. A voz pela qual posso contar minha arqui-história, aquela que precedeu a aquisição da linguagem, não é exatamente a língua materna. Por quê? Porque a língua que sua mãe lhe ensina é aquela que torna impossível sua relação com ela. A língua materna é a língua mutilada que separa o vocabulário trágico da relação profunda. Em minha opinião, também seria necessário insistir intensamente nesse domínio oculto porque as raízes da ilusão individualista se escondem nas lacunas da língua materna. A esferologia, enquanto crítica radical do individualismo, constitui um esforço para construir uma linguagem que possa preencher as lacunas das chamadas línguas naturais. BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX . PETER A microesferologia começa como teoria do espaço animado partilhado; fala da possessão recíproca que cria um espaço bipolar ou pluripolar que, diariamente, chamamos o casal (ou o grupo primário). O primeiro volume de Sphères (Esferas), intitulado Bulles (Bolhas), é, portanto, uma teoria geral das estruturas que permitem _ 16 DE OUTUBRO DE 2004 EAN - CHRISTOPHE ROYOUX _ Existe algum vínculo entre a evidência contemporânea da globalização e sua teoria das esferas? A questão do globo e do global corresponderia afinal, em nosso contexto atual, ao momento político dessa ciência que você chama esferologia ? _ O vínculo existe, mas é, antes de tudo, de natureza mais indireta. Em minha opinião, a atual globalização – PETER SLOTERDJIK eletrônica e telemática – já representa a terceira onda da verdadeira globalização; é a última etapa de um processo que começou na época da cosmologia filosófica, dos gregos, e seus atuais vetores são a velocidade da circulação e a telecomunicação ultra-rápida. Paralelamente, ela representa o produto de uma decepção radical, através da qual os seres humanos tiveram que abandonar o privilégio de viver num autêntico cosmos – ou seja, um mundo fechado e acolhedor. O cosmos, tal como os gregos o concebiam, era a totalidade do que existia imaginada sob a forma de uma grande bola perfeitamente simétrica. Aristóteles e seus sucessores foram os responsáveis por essa idéia do cosmos composto por esferas celestes concêntricas, de diâmetros cada vez maiores e que, em sua maioria, seriam constituídas por uma matéria hipotética que era chamada éter. É evidente que, para nós, esse modelo passou a ser irrelevante. A “atmosfera” que envolve a bola em que vivemos é a única das esferas cósmicas de que falavam os Antigos que guardou algum significado para os modernos. Essa palavra (literalmente, “bola de vapor”) designa a camada gasosa que envolve a Terra sólida e faz com que sejamos todos “alunos do ar”, para retomar a bela expressão de Johann Gottfried Herder. Segundo esse pensador, partilhamos com todos os outros seres vivos o destino de sermos criados pelo ar. O ar é o senhor absoluto que nos dá um ensinamento constitutivo e infinitamente discreto. Nunca fala, mas tudo concede e torna possíveis as coisas. Aliás, os povos antigos possuíam teologias do vento que, às vezes, se revelaram mais inteligentes do que a meteorologia moderna. Era um tesouro que permitia aos seres humanos se conscientizarem de que sempre estão imersos em alguma coisa quase imperceptível e, no entanto, absolutamente real, e que esse espaço de imersão domina as mudanças de nossos estados de espírito – até as alterações mais íntimas. A aeração é o segredo profundo da existência. Seria necessário voltar a contar toda a história de nossa relação, fundamentalmente modificada, com esse invólucro atmosférico. Para começar, escolhi a mais insuportável das histórias: a da guerra do gás, iniciada em abril de 1915 durante a I Guerra Mundial. Sabe-se que, no front de Ypres, as tropas alemãs empregaram pela primeira vez uma artilharia de gás clorado contra as posições francesas. Foi uma ruptura histórica, pois abriu caminho para a manipulação destrutiva do meio ambiente. A verdadeira descoberta do meio ambiente ocorreu nas trincheiras da I Guerra Mundial, com a guerra do gás. Esse tipo de guerra não mata por meio de tiros diretos, mas destruindo o meio ambiente de que o inimigo necessita para sobreviver. A arte de matar a partir do meio ambiente é uma das idéias brilhantes da civilização moderna. Contém o núcleo do terror contemporâneo: não mais atacar o corpo do adversário isolado, mas o corpo em seu Umwelt (no invólucro do mundo). JCR _ Então, sua trilogia das esferas deve ser lida, antes de tudo, como 34 PS _ Para Kant, o espaço é definido como a condição de possibilidade do ser – o conjunto dos corpos –, o que também implica sempre a faculdade de separá-los. A principal virtude do espaço é seu poder de criar uma distância entre os corpos. Ora, os modernos meios de transporte têm por principal virtude eliminar as distâncias, inclusive os oceanos que Deus, em sua sabedoria, criou entre as tribos da raça humana. Os meios de comunicação de massa são ainda mais eficientes que os meios de transporte rápidos, pois têm o poder de reunir os sistemas nervosos dos habitantes num espaço coerente. Têm a capacidade de sincronizar as consciências numa semi-esfera muito grande, uma coisa prodigiosa, quando se pensa que desde a Antiguidade essa capacidade se limitava ao alcance da voz humana. Com o advento da imprensa escrita, observa-se o fenômeno de uma sincronização concreta das consciências distribuídas no espaço. Com as telecomunicações, já nem é preciso viajar pessoalmente para se estar em contato com alguém da outra margem. Praticamente todas as margens se tornaram disponíveis e acessíveis de modo instantâneo. A telecomunicação é a faculdade racional de freqüentar qualquer lugar do mundo. Tudo isso contribui para uma neutralização do espaço. JCR _ Vivemos hoje, como nunca antes, a hora do espaço – principalmente graças aos fenômenos que você descreve, como a telepresença e as telecomunicações. E, no entanto, você fala do desaparecimento do espaço. Não seria isso um paradoxo ? PS _ Acho que não. O espaço de que hoje tanto se fala já é o espaço neutralizado e homogeneizado. Dominar o espaço significa eliminar sua função separadora e utilizar exclusivamente sua condutividade. Mudar o curso do mundo significa, na realidade, mudar principalmente o funcionamento de seus elementos separadores. Para os Antigos, viver no mundo físico significava esbarrar nas coisas que nos separam. Um corpo é sempre um objeto situado a meio-caminho de outro corpo e nos tempos antigos isso significava, principalmente, submeter-se à predominância de corpos-obstáculos. Ora, as modernas telecomunicações possuem essa faculdade mágica de eliminar os obstáculos ou, mais precisamente, superar ou contornar os corpos separadores que existem entre você e eu. Quem sabe contornar os obstáculos entra para o tempo histórico. Poderia dizer-se que a História consiste na totalidade de operações que tinham que ser feitas para vencer o efeito separador dos corpos. É o que Marx e Engels notaram no Manifesto Comunista, ao dizerem que “tudo o que é sólido se desmancha no ar”. Conseqüentemente, a História deveria parar a partir do momento em que não existissem mais obstáculos cruciais a transpor. Esse é um dos motivos pelos quais alguns pensadores sérios do século XIX propuseram interpretar a era atual como um tempo pós-histórico, um tempo em que o projeto da História terminou, na medida em que todos os obstáculos que impediam que o mundo fosse conectado em rede foram, por princípio, eliminados. É importante que fique bem claro o sentido da palavra “História”. Se qualquer coisa que acontece em qualquer lugar, em qualquer época, deve ser chamada um acontecimento “histórico”, então, com certeza, jamais saímos do reino da História, pois o homem sempre vive no ritmo dos acontecimentos, sejam eles seriais ou catastróficos. Mas se tomarmos uma definição mais restrita do termo “História”, será inevitavelmente necessário falar de um fim da História. Considerando-se – como eu proponho – que a História real é o processo no qual foi criado o sistema mundial, então não há senão um único episódio realmente histórico: é o trajeto que tem início em meados do século XV, com a conquista do oceano pelos navegadores portugueses e a primeira viagem de Cristóvão Colombo, para ter seu ponto culminante em meados do século XX, com a criação de um sistema mundial pós-colonial tendo como referência, de um lado, a emergência de um sistema monetário global – pense nos famosos acordos de Bretton Woods, redigidos em 1944 – e, de outro, o processo de descolonização da década de 50. O último capítulo dessa série de acontecimentos concretizou-se em 1974, com a saída dos portugueses de suas possessões ultramarinas após a famosa Revolução dos Cravos. Portanto, a História, no sentido exato do termo, vai de 1492 a 1974. Uma questão, na verdade, bastante ibérica, pois os portugueses foram os primeiros a tornar os oceanos navegáveis e os últimos a deixar suas colônias. JCR _ Em outras palavras, você diz que a perfeição da globalização moderna, no século XX, equivale ao fim da História. _ Pode se definir o fim da História por dois critérios: o primeiro diz respeito ao conteúdo e duração do processo, enquanto o segundo analisa seu estilo de ação. O conteúdo da História, portanto, como PS acabamos de dizer, é a criação do sistema mundial – e seu fim substancial seria atingido, conseqüentemente, no momento em que esse sistema tivesse sido estabelecido. Quem poderia negar que isso é um fato consumado? Por outro lado, do ponto de vista da teoria da ação, a História seria a fase bem-sucedida do unilateralismo. O estilo de ação unilateral é o modus operandi adotado pelos europeus do período crítico: digamos, de Cristóvão Colombo a Adolf Hitler. Os aventureiros da globalização terrestre foram testemunhas, entre 1492 e 1945, dessa inquietante capacidade que possuíam os europeus de produzir idéias e homens impregnados com as tintas do unilateralismo. Atualmente, fomos expulsos desse paraíso dos JCR _ Na tradição fenomenológica, especialmente com Husserl, aquilo que você chama co-pertencimento, ou reciprocidade de pertencimento entre o ser vivo e seu ambiente, chama-se “mundo”. Seria esse “mundo” da tradição fenomenológica o que você chama “esfera”? conquistadores em que era prometida a salvação a quem agisse primeiro. O que chamamos História corresponde exatamente a esse período em que o êxito se obtinha sem que fossem questionados os meios ou a reação das vítimas. Se a História terminou, é porque entramos numa época dominada pela descoberta dos efeitos secundários e retroativos. O futuro pertence à preocupação com Seriam esses termos equivalentes um ao outro ? relações mútuas e reciprocidades. Um mundo em rede é necessariamente estruturado pela lógica da multipolaridade e por um feed-back mais ou menos imediato para cada iniciativa tomada. A principal prova para validar a tese segundo a qual a História, em sua definição exata, já deu o que tinha que dar, consiste no fato de que, desde o fim da II Guerra Mundial, só se julga o passado. JCR _ E o que vem depois da História ? _ Ao encerramento da História, segue-se o que existia antes da História, o reino das séries e das rotinas interrompido por micro e PS macrocatástrofes. Entra-se para o domínio daquilo que os historiadores de longo curso sempre consideraram seu verdadeiro objetivo. Portanto, não há uma única História que conta o advento do sistema mundial e a etapa bem-sucedida do unilateralismo. Paralelamente a essa grande narrativa, temos, evidentemente, a outra maneira de administrar as questões temporais estudando as irmãs gêmeas que são as séries e as catástrofes. Num momento em que o historicismo forçado do século XX deu o que tinha a dar, há a liberdade de redescobrir que a existência humana, assim como a maioria dos processos que nos dizem respeito, está enraizada numa espacialidade insuperável. Era minha ambição elaborar os elementos de um vocabulário do espaço suficientemente complexo para descrever o espaço sistêmico e o espaço existencial. O espaço sistêmico é aquele criado pelas operações dos grandes sistemas políticos, administrativos, econômicos etc. Os espaços existenciais, por seu lado, são as esferas que só existem na medida em que são ativadas por seus habitantes. O espaço interpessoal é criado pelas ressonâncias de que eu falava inicialmente, em termos de possessões recíprocas. _ Poderia dizer, então, que essa esferologia que você vem tentando criar equivale a uma revisão do conceito de espaço capaz de abrir a JCR possibilidade de uma relação mais satisfatória com a totalidade aos seres humanos ? _ Entre os estudiosos atuais dos meios de comunicação circula uma frase que resume a sabedoria dessa nova disciplina: “O formato PS é a mensagem.” Não é, portanto, o meio que é a mensagem, como pensava McLuhan, e sim o formato. Na terminologia dos radialistas, um formato é um tipo de programa. Num plano mais geral, um formato é um padrão, uma dimensão, uma escala. O principal erro da fenomenologia foi mergulhar o indivíduo de uma maneira demasiado direta numa piscina universal chamada “mundo”. Ora, o mundo é um formato impossível. Se o homem é um peixinho, ter o mundo como piscina é simplesmente superdimensionado. “Ser no mundo”, como dizia Heidegger, é, com certeza, uma fórmula estimulante quando se trata de exprimir o caráter extático de nosso ser em relação às coisas. É uma fórmula preciosa para expressar que o fato de estar num movimento de extraversão em relação às coisas precede sempre nossa reflexividade – é esse o pathos filosófico da fórmula “ser no mundo”. Mas eu queria mostrar que o mesmo êxtase se reproduz numa escala menor a partir do momento em que um recém-nascido entre em contato com um brinquedo que alguém pendura em frente de seus olhos, no berço. O brinquedo já possui essa capacidade de envolver num êxtase existencial o recém-nascido. E basta isso para garantir uma primeira abertura em direção ao mundo. A abertura também é, simultaneamente, uma concentração e essa concentração possui, necessariamente, as qualidades de um relativo fechamento – fechamento que prevê uma reabertura. O “ser-numa-esfera” é relações de envenenamento mútuo entre as pessoas, embora uma toxicologia política deva, em certa medida, tomar o lugar da política clássica: os toxipolíticos de amanhã terão reconhecido a necessidade de deixar o espaço comum ficar no estado em que se gostaria de encontrá-lo – como consta dessa mensagem profética que se encontra nos banheiros de trem da “Eurocity”. Provavelmente foi algum genial ferroviário alemão que inventou o texto dessa alocução. Será necessário transferi-la para a Declaração dos Direitos Humanos. A sabedoria dos banheiros públicos alcança, finalmente, seu espaço político. JCR _ Trata-se, em resumo, de um postulado ecológico. Então você considera a ecologia o pensamento fundamental do século XXI ? _ Em primeiro lugar, é preciso chegar a um acordo sobre a noção de oikos, que significa a casa, em grego. A beleza do conceito de casa reside no fato de que ele pode articular a idéia de um pertencimento PS recíproco entre o local e o morador. Essa “casa” é precursora do conceito de meio ambiente dos biólogos modernos que elaboraram o teorema criado por Jakob von Uexküll no início do século XX – e segundo o qual os organismos e seu meio ambiente se pertencem mutuamente, por assim dizer. A ecologia moderna seria, conseqüentemente, uma ciência de domesticação geral. Mas como essa maneira de pensar contém um grande potencial de naturalismo redutor, é preciso utilizá-lo sempre com muita prudência. fingem praticar a psicanálise justamente para não falar “disso”. Seria possível dizer que colocam a terapia a serviço da doença – como se coloca, às vezes, a pesquisa a serviço da recusa de encontrar. Esse é, aliás, o cerne da polêmica que Lacan lançou contra a americanização da psicanálise. Para ele, o americanismo psicológico remete à vontade de nunca aprender a linguagem da pré-subjetividade – essa imbricação primordial entre o psiquismo do outro e o meu – erigindo o eu como um bloco indivisível em seu próprio espaço. “I need my own space.” relação entre conteúdo e recipiente – o que leva a pensar que, afinal, deveríamos reconstituir a segurança existencial de nossa vida prénatal por outros meios. Por que, então, a moderna conquista da autonomia se tornou atualmente um peso, uma humilhação ? essa meia abertura pode se exprimir de maneira mais convincente, em minha opinião, num discurso esferológico do que numa linguagem fenomenológica – na qual se fala de forma demasiado rápida dessa coisa superdimensionada que seria o “mundo”. JCR _ Em outras palavras, uma esfera é um mundo relativo e jamais se vive no mundo absoluto. ilhas são autênticos modelos de mundos no mundo. São atalhos do mundo, como dizia Bernardin de Saint-Pierre, o ensaísta francês do século XIX. Para mim, os seres humanos são, antes de tudo e necessariamente, habitantes de ilhas. expressar a idéia de que todos os homens não só nasceram livres e iguais, mas também são condenados a cuidar do espaço em que vivem e garantir a capacidade de respirar e de conviver em seu meio ambiente. É uma definição que não só diz respeito ao chamado espaço privado, como ao espaço público. Existem, atualmente, vontade de não aprender essa infra-linguagem. Às vezes, as pessoas verdade, os seres humanos não são existências nuas num êxtase global. Em torno de nós, dispomos sempre de vários objetos, referências que se divisam num horizonte, mas a abertura do horizonte também não deveria nunca esconder a possibilidade de um fechamento relativo. O horizonte é um círculo aberto que me garante que vivo numa espécie de interior extático. É um baú semi-aberto. E em busca de sua libertação, atualmente vivemos numa época em que uma consciência mais ou menos satisfeita e luxuosa está em vias de aprender a arte de organizar seu espaço. O homem moderno é uma espécie de “curador” – um termo que, na verdade, não existe em qualquer país, tornou-se – ou foi forçada a se tornar – uma espécie de comissário, responsável por seu lugar. A Declaração dos Direitos Humanos deveria ser reformulada, em termos topológicos, para suficientemente radical, teríamos condições de contar nossa própria história ab ovo. Seria possível articular a presença perdida de alguma coisa que não era uma pessoa, nem simplesmente um órgão – esse gêmeo que nos acompanhou até o momento do nascimento e nos deixou por motivos ignorados. O moderno autonomismo, essa atitude quase kantiana que se tornou a atitude de todo mundo, estimula a JCR _ De certa maneira, você diz que as esferas cósmicas se evaporaram. Conseqüentemente, seria necessário reconstituir uma PS _ Uma esfera é um mundo formatado por seus habitantes. É por esse motivo que, em meu livro, falo extensivamente das ilhas. As metaprofissão que todo mundo é obrigado a exercer. A inocência do habitat tradicional perdeu-se de uma vez por todas. Após a destruição concreta de tantas coisas e a prova da destrutibilidade de qualquer coisa, cada pessoa, de qualquer apartamento, de qualquer cidade, de que possibilitava nossa autonomia. Kant, que evitava o conceito de maternidade, recusou veementemente a idéia de um ventre divino dentro do qual nos encontraríamos durante toda nossa existência – e essa rejeição foi o gesto primordial da modernidade. É precisamente essa a vontade de negar qualquer relação entre conteúdo e recipiente. Infelizmente, esse gesto salutar implica a necessidade de não aprender essa infra-linguagem que tornaria expressiva a continuidade de nosso saber existencial. Se fôssemos dotados de uma língua exatamente esse movimento. É o eks-tase formatado graças ao qual é possível estar fora de seu eu, mas nunca, imediatamente, no Todo. Na PS _ Se o século XIX e a primeira metade do século XX foram, principalmente, uma época de narrativas sobre a consciência infeliz francês –, ou seja, uma pessoa responsável pela exposição do espaço em que ela própria vive. Cada pessoa se tornou um curador de museu. Criar sua própria instalação consiste, por assim dizer, numa tranqüilizar-se imaginando um invólucro divino em sua volta. Por outro lado, alguns pensadores, entre os quais e principalmente Kant, acharam aquilo tão desanimador que quiseram eliminar a idéia de um Deus espacializado que teria a capacidade de nos envolver. Para Kant, essa perda do invólucro divino transformou-se numa condição JCR _ Aquilo que você descreve como advento do espaço, após o fim da História, caracteriza-se por um espaço impossível de ser concebido como uma esfera global comum. O espaço da globalização já não funciona como um cosmos. Parece-me que a tese central de sua idéia é a de dizer que o cosmos, enquanto monosfera – ou seja, enquanto espaço passível de criar uma moradia para o gênero humano em sua globalidade –, desapareceu ou se transformou de tal maneira que já não pode preencher a função de inclusão total. PS _ Se assim não fosse, Heidegger não teria tido condições de propor sua famosa fórmula do “ser no mundo”. “Ser no mundo” significa precisamente ter perdido a última garantia de um enraizamento, é o estado de um apátrida ontológico. Para Heidegger, os habitantes do mundo moderno perderam, com certeza, a pátria cósmica. Simultaneamente, é um diagnóstico sobre o destino do monoteísmo. Em sentido estrito, o monoteísmo é um monosferismo. É impossível ser monoteísta sem postular, de alguma maneira, que existe um ponto central a partir do qual se produz a emanação de todo o espaço divino. Um monoteísmo forte não só dispõe do reino moral, mas também do mundo físico – quer englobar o natural e o espiritual. Exige um Deus suficientemente forte para ser onipresente e onipenetrante, na natureza e nas consciências. Esse Deus poderoso seria construído, necessariamente, como uma esfera envolvente no centro da qual impera um direito de ingerência universal. A metafísica européia tinha a pretensão louca e inevitável de impor a coincidência e a co-extensão da teologia e da cosmologia. Um único gesto pretendia criar as duas esferas máximas de maneira concêntrica, Deus e o mundo. Nunca compreenderam que esse ambicioso projeto era fadado ao fracasso por motivos internos: retrospectivamente, percebe-se que a teologia era simplesmente demasiado fraca para integrar a teoria do mundo na teoria de Deus. Atualmente, o que sobrou foi um monoteísmo frágil, que poderia ser comparado a um satélite de televisão que abrange a Terra inteira, com um único programa moral e pretensamente válido para todos os seres humanos – mas, definitivamente, não aceito por todos. Os motivos para tal situação nos remetem à demolição da imagem das esferas celestes envolventes. Essa representação tinha, evidentemente, um valor edificante para todos os que procuravam 35 _ No livro Sphères III (Esferas III), descrevo uma espécie de curriculum vitae do homem solteiro moderno, o qual demonstra uma PS vontade de morar sozinho em seu apartamento. Com bastante freqüência não se trata de uma situação involuntária, e sim de uma solidão desejada. Tento mostrar como a forma dominante da maneira moderna de residir corresponde a uma forma de subjetividade em que o indivíduo aprendeu a criar um casal consigo mesmo. Deixa de ser necessário um Outro real para formar o casal. A estrutura do casal é tão ampla e flexível que não existem normas capazes de definir quantas pessoas reais são necessárias para formá-lo. Pode ser formado por duas, naturalmente, mas também pode ser formado por várias. Às vezes, é formado por relações paradoxais com parceiros ausentes, como provam as relações dos místicos com Deus ou casais de enamorados que estão separados. Até existe a relação diádica entre a alma do nacionalista e sua nação, parceira impossível e pseudo-concreta na medida em que o nacionalista ferrenho pode imaginar ser o filho predileto de uma mãe que pede e aceita o sacrifício de seus filhos. A estrutura diádica é tão forte e rica em suas variações que tolera todo tipo de relações simétricas e assimétricas. Entretanto, o que parece ainda mais absurdo, a relação de casal pode ser criada pelo indivíduo solitário, numa relação consigo mesmo. É preciso constatar que a individualidade moderna, apoiada num complexo ambiente de mídia que permite auto-referências múltiplas e permanentes, já foi elaborada de forma a que o indivíduo encarne uma relação do sujeito manifesto – que eu sou – e do sujeito latente – que eu também sou. Esse indivíduo revelado que é o resumo de meu passado pode construir uma relação viva, e até apaixonante, com o individum absconditum, o indivíduo por vir, que contém o somatório de minhas possibilidades existenciais futuras. Por esse motivo, o indivíduo-casal encarna o egoísta prudente que sempre prossegue sua busca pelo tempo que ainda não perdeu. Com a celebração do mundo moderno, esse modo de vida se tornará uma tentação para praticamente todo mundo – e isso porque desapareceu a grande megasfera do monoteísmo, que oferecia a todos um pretexto ideal para se consagrar ao Outro. Assim como também praticamente se dissolveram os sucedâneos do Outro da monosfera divina, que eram os totalitarismos, nacionalistas ou internacionalistas. Para descrever a atual situação, proponho a metáfora da espuma, palavra que por sua própria natureza polivalente traduz muito bem essa composição multicelular das grandes estruturas que, embora bastante amorfas, correspondem às paisagens povoadas de nossa época e, principalmente, às aglomerações urbanas, que parecem ser autênticas espumas compostas por células individualistas, assim como composições formadas por residências para várias pessoas. Gostaria de salientar que, para mim, a residência enquanto tal é o átomo da espuma social. Tudo isto é dito na perspectiva de uma crítica intransigente do individualismo. _ Existe alguma relação entre o que você acaba de dizer e aquela outra idéia sua, de que a estação espacial seria o modelo do futuro JCR recipiente, da futura residência ? PS _ Atualmente, ninguém pode dizer se a estação espacial será o queriam tornar o cosmos habitável criando uma equação entre a casa e o universo. Se a casa é o cosmos e o cosmos é a casa do homem, tinha objetivos. As pessoas se juntavam e ficavam por ali fazendo pressupor uma natureza externa, jamais conseguiremos assumir plena responsabilidade pelo meio ambiente. Até hoje, ainda não então a noção de habitat venceu todas as forças do caos que haviam subvertido a antiga ordem das coisas. O universo pré-filosófico era não existia o conceito de líder nas comunas hippies. Era uma coisa anárquica. E havia problemas sérios com drogas. As pessoas ficavam compreenderam natureza. uma coisa muito mais ameaçada por forças caóticas do que o cosmos doidonas, sem fazer nada. No entanto, este grupo específico queria Normalmente, não existe motivo para tratar dessa confusão. No bem organizado dos filósofos pós-Platão. Após a época de Platão e Aristóteles, o mundo tornou-se um jardim bem-cuidado na frente de fazer algo. Romperam com a comuna e partiram para o Novo México. futuro do gênero humano. Mas ela representa um modelo do “ser no mundo” condenado à artificialidade. Enquanto continuarmos a que o meio ambiente não é a passado, tratava-se de qui pro quo mais ou menos inocente. Natureza e meio ambiente são falsos sinônimos, mas no mundo prétecnológico esse equívoco não incomodava ninguém. Ora, nesse contexto, a estação espacial significa a inocência perdida. Representa o caso crítico da gestão total do meio ambiente por seus habitantes. Aqui, não é mais possível contar com uma determinada natureza; é preciso reconstruí-la nos mínimos detalhes e qualquer erro pode ser fatal. No vazio cósmico, não dá para enganar com um meio ambiente uma mansão de um aristocrata que, jovialmente, olha de cima de seu terraço para a totalidade das coisas. JCR _ Como você representaria o momento de implosão, ou de explosão, desse cosmos que antigamente formava o habitat comum dos homens? Como se dá a passagem do cosmos à espuma global ? PS _ Não se trata de uma explosão nem de uma implosão, e sim de coisas que não as levavam a lugar algum. Não tinham uma liderança, Desenvolveram vários projetos ecológicos pelo mundo afora. Uma das coisas que os interessava era o que chamavam ecotécnicas, um processo que negava a onda da volta à natureza. Para descobrir como a tecnologia pode contribuir para a ecologia, e não agir contra ela, desenvolveram todo tipo de pesquisas. Tinham um barco de pesquisa que fez a volta ao mundo realizando coisas úteis – e outras não tão úteis. artificial, enquanto a velha natureza terrestre perdoava praticamente tudo e apenas ela guardava o segredo de seu equilíbrio. Os seres uma compressão. De novo, o formato é a mensagem. Se um pequeno mundo – um apartamento, por exemplo – pode ser suficiente para humanos eram dispensados de tratar disso pela maior parte do sustentar a hipótese de que vivo num mundo, é tão mais necessário tempo. Com a estação espacial, a permissividade é inaceitável: ela encarna a intolerância em relação aos erros das gestões climáticas, – tanto para os aborígines, quanto para grande parte da população branca, mas o pasto estava tão ruim que era difícil garantir a que eu me inche de maneira metafísica para viver no todo. A passagem torna-se possível porque, para o homem moderno, o subsistência. No século passado, a criação de ovelhas devastou as atmosféricas, metabólicas etc. Num elemento absolutamente artificial, os mínimos erros deixam de ser perdoáveis. simbolismo cósmico perdeu sua qualidade imunológica. A antiga cosmologia era a parte central de um sistema imunológico simbólico. se retirar o gado da terra enquanto se tentava melhorá-la. O que o grupo tentou fazer, de uma forma muito prática, foi melhorar a Com a elaboração dos novos sistemas jurídicos e sociais, qualidade do pasto e a ecologia local e, ao mesmo tempo, criar uma estação de gado. Também tinham um projeto paralelo de plantar JCR _ Em seu livro, há inúmeras alusões ao trabalho do arquiteto Buckminster Fuller. Você se interessa por essas transposições da Terra, no âmbito da construção, sob a forma das famosas abóbadas geodésicas? Mais genericamente, que interesse você tem pela volta dessa tendência, atualmente muito acentuada, do biomorfismo na arquitetura ? PS _ O que me apaixona em Buckminster Fuller é seu conceito de uma estática radicalmente nova, e não tanto a forma concreta pela qual foram construídas suas obras. Suas abóbadas, no entanto, são contribuições formidáveis e partilham, com as cúpulas tradicionais, do fascínio pelo espaço curvo. Desde a Antiguidade, a construção de principalmente sob a forma de seguros sociais e com a construção do Estado de bem-estar social, as pessoas realmente se exoneraram do mundo superior. Este já não é necessário enquanto sistema imunológico coletivo e as pessoas renunciam à imunidade imaginária Visitei a estação de gado na Austrália. O gado era o alimento básico regiões mais remotas e os campos de pasto. Não tinham condições de sementes para a melhoria do pasto, utilizando sementes nativas ao invés das importadas. Acreditavam que a arte e a ciência trabalham de vista operacional. Se o modernismo clássico ainda visava à juntas. Eu os conheci num centro de arte e espetáculos, em Londres. Ali também funcionava a sede do Instituto de Ecotécnicas, o ramo de ecologia com que trabalhavam. imunização pelo coletivo – Estado-nação, proletariado solidário e combativo, a comunidade dos sábios – a ênfase dos pós-modernos Também participei de um projeto deles chamado A Caravana dos também passou para o lado dos indivíduos, se comparada à construção dos sistemas imunológicos. Sonhos. Partia da idéia de que as cidades norte-americanas perderam seus corações. Quando os bancos fecham, às 5 horas da tarde, todo em troca de um sistema de segurança extremamente eficaz, do ponto mundo vai para suas casas, nos subúrbios, e a cidade morre. uma cúpula sempre representou a disciplina de coroação da O único coletivismo que ainda nos diz respeito de maneira Trabalhei nesse projeto de regeneração com Ed Bass, que acabou arquitetura. Com ela, começa a odisséia do inverossímil transformado em construção. A prova de uma cúpula é que ela se apóia nela substancial nos dias de hoje são os grupos que trabalham os sendo um dos fundadores da Biosfera 2. Fort Worth, a cidade natal de Ed Bass, no Estado do Texas, era um exemplo clássico dessas cidades sem vida. Então, Ed disse: “Vamos colocar um centro de artes com espetáculos de todo o mundo n a área central da cidade e criar motivos para que as pessoas voltem à cidade. Quando tivermos montado o centro de artes, começarei a fazer apartamentos para realmente reconstruir, a zona central da cidade.” A Caravana dos Sonhos estreou em Fort Worth em 1984. Era um lugar maravilhoso, com uma casa noturna onde se tocava jazz e blues e que integrou por completo as populações negra e branca da cidade. Havia um teatrinho fabuloso onde Melissa Finley – que, na época, era uma dançarina muito famosa no mundo inteiro – abriu o centro de artes e espetáculos. mesma. A abóbada geodésica, enquanto tal, representa por sua forma mais uma concessão ao antigo monosferismo – e isso não tem grande interesse para uma teoria da época atual. Confesso, aliás, que sou um grande admirador das cúpulas, ainda que essa forma já não traduza as intenções mais avançadas da arquitetura contemporânea. A cúpula clássica representava o principal símbolo de vontade da arquitetura se apropriar do círculo, assim como da altura. Forçava o céu a entrar na casa. Era precisamente essa a função da cúpula tradicional: pretendia-se interiorizar o céu, transformá-lo em guarda-chuva para passear sob sua proteção. Tal como suaves dosséis, essas cúpulas improvisadas – se assim podemos dizer – eram, com certeza, as construções mais sutis que o espírito humano soube conceber em termos de arquitetura temporal. E Fuller, em sua abordagem dos temas da arquitetura, nunca se afastou muito desse símbolo da suavidade controlada que representa o dossel. No entanto, sua maior contribuição para com a gramática das formas arquitetônicas não são, em minha opinião, as abóbadas e suas cúpulas, e sim aquelas estruturas ultra-sofisticadas que ele chama tension integrity structures ou tensegrities – estruturas que substituíram a pressão estática pela tensão entre os elementos do corpo construído. Com essas formas, entramos na quarta dimensão da construção. É claro que o biomorfismo em arquitetura é uma coisa notável. Porém, traduz principalmente o fato de que os matemáticos modernos reencontraram as formas orgânicas. Portanto, é bom evitar conclusões equivocadas em relação a esse fenômeno. Trata-se mais de um triunfo da matemática sobre a forma natural e é preciso se prevenir contra as conotações reacionárias dessa tendência arquitetônica. Não se trata, de forma alguma, de uma volta à natureza; trata-se, sim, de uma brincadeira insolente que matemáticos, com a ajuda do computador, se permitem fazer às custas da forma orgânica. Na perspectiva de uma futura política da natureza, o biomorfismo arquitetônico deve ser interpretado como um símbolo, já que a técnica adquiriu os conhecimentos necessários para se declarar responsável para com as formas orgânicas. JCR _ Então a natureza acabou, assim como a História ? _ A antiga natureza servia de teatro para a História. Para montar uma peça de história, era necessário pressupor que os bastidores naturais eram estáveis. Agora, a peça e o âmago da cena são uma única coisa. A irresponsabilidade para com a natureza-bastidor nos foi subtraída. A natureza já não é o âmago nem um pretexto. PS _ Resumindo, aquilo a que você está tentando dar nome seria, de certa maneira, a passagem de uma cosmografia do globo terrestre para os cosmogramas de pequenos mundos? E, para finalizar, a conquista do mundo como cosmos global leva à sua explosão numa imensidão de células cosmogramáticas ? JCR PS _ Sim, admitindo-se a profunda ironia que consiste em utilizar a palavra cosmos – primeiramente, no plural, e em seguida, em escala individualizada... Um cosmos é sempre uma construção simplificadora a serviço de uma coletividade política; traduz sempre a necessidade de simplificação dos espíritos que nele vivem. Essa grande manobra de simplificação teve início com os gregos, que problemas ambientais em grande escala – o clima, em sua dinâmica caótica, os recursos de água, as fontes de energia. Mas isso já não gera uma comunidade substancial e, sim, apenas uma comunidade de pessoas preocupadas. BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX . J ANE P OYNTER JANE POYNTER É UMA DAS FUNDADORAS DO PARAGON SPACE DEVELOPMENT CORPORATION . ELA VIVEU POR DOIS ANOS NA BIOSPHERE 2 . TRADUÇÃO DE JÔ AMADO TUCSON B IOSPHERE 2 : THE EXPERIENCE OF _ 26 DE JULHO DE 2004 “BEING” O projeto Biosfera 2 não pretendia ser apenas um instrumento científico, ou um empreendimento de engenharia, mas também um depoimento artístico: um símbolo, um ícone artístico para a ciência. Seu principal arquiteto foi aluno de Frank Lloyd Wright. Nele, a forma segue a função e a função segue a forma. Basicamente, Biosfera 2 é uma estufa com cerca de 12,5 m2. O que a torna diferente é que foi construída hermeticamente fechada por cima e por baixo. Nesse recinto encontravam-se sete biomas, ou comunidades ecológicas: uma mini-floresta tropical, uma minisavana, um pequeno deserto, um brejo e um mini-oceano – na verdade, um imenso aquário. Também a compunha o que chamávamos biomas antropogênicos: a agricultura, o “terreno” e a cidade. Eram esses os sete biomas. Havia duas principais linhas de trabalho: uma relacionada com o espaço exterior, com a vida nesse espaço, projetando um sistema de apoio vital para o espaço; a outra relacionada com ecologia e o planeta Terra: fazer uma mini-réplica – um tubo de ensaio vedado, uma ferramenta para os ecologistas – que permitisse estudar os ciclos da vida. Os fundadores eram pessoas interessantes. Começaram sua trajetória rumo à Biosfera 2 na década de 60. Algumas das pessoas centrais do grupo vinham de Haight Ashbury, do movimento hippie, onde tinham uma comuna que fazia Teatro de Guerrilha. John Allen, uma das figuras principais, era formado pela Faculdade de Minas do Estado do Colorado e pela Faculdade de Administração de Harvard. Era brilhante, tinha uma memória de elefante. Um dos problemas com o movimento hippie era o fato de que não tinha uma finalidade, não 36 No topo, havia uma Abóbada Geodésica, projetada por Buckminster Fuller, com 350 espécies distintas de cacto. Estavam ali representados quatro desertos diferentes. O lugar transmitia uma sensação de desespero, com a evolução divergente e convergente daquela coleção de plantas. Você via plantas que evoluíam em lugares completamente diferentes da Terra, mas evoluíam mutuamente, para ter exatamente as mesmas estratégias e parecerem semelhantes. Ao mesmo tempo, você via plantas daquele mesmo deserto que originariamente eram da mesma espécie e depois haviam evoluído para se tornarem completamente diferentes. Era fantástico. Por algum tempo, fui o curador daquela abóbada. Havia uma conferência, anualmente, para a qual traziam pessoas dos meios mais variados: artistas, músicos, pintores e cientistas incrivelmente avançados. Minha lembrança preferida desses tempos é a de Buckminister Fuller sentado, tendo um debate acalorado com Ornette Coleman. Em 1982, foi realizada a Conferência Galáctica. Quando terminou a apresentação, estava lançada a noção de biosfera no grupo, mas àquela altura a idéia era muito mais maluca do que a Biosfera 2. Queriam construir um Castelo Espacial Gerard O’Neal, no qual havia a biosfera dentro de uma nave espacial, o que, em termos financeiros, era totalmente fora de questão. Foi daí que nasceu o projeto de construir uma biosfera num recinto fechado. Desde o início, havia a idéia da relevância do espaço. Os objetivos de uso do espaço eram os de projetar, construir e operar uma biosfera que poderia ser utilizada para viver por um longo período no espaço. Marte ainda estava distante cerca de 20 anos, mas era uma meta tangível em termos espaciais. A experiência de viver no espaço tornou-se um objetivo concreto da biosfera. Naquela época, a Nasa usava o termo biorregenerável para se referir a substâncias de base biológica e recicláveis, mas a maior parte de seu trabalho era com sistemas físico-químicos, decompondo a matéria viva em suas partículas mais ínfimas e utilizando soluções físico-químicas para cada uma dessas minúsculas estruturas vitais vitais. O que pretendíamos, na Biosfera 2, era ter um sistema reciclável de base inteiramente biológica. A razão para isso era que, se você estivesse apenas visitando Marte, então não seria necessário um sistema biorregenerável, mas se ficasse vivendo por muito tempo num planeta distante da Terra, seria extremamente dispendioso ficar trazendo bens consumíveis. Por que, então, não fazer logo um sistema biológico? Dessa forma, tudo seria reciclado – a compostagem, o ar e a água produzida pelas plantas –, pois seria auto-sustentável. Era essa a idéia. Naquela época, a ecologia já manipulava bem os sistemas. Ao se observar um ecossistema, notam-se fluxos constantes. Há sempre um rio atravessando o sistema. Existe o ar da biosfera 1, essa enorme atmosfera que interage continuamente com o ecossistema. Precisávamos de um sistema ecológico restrito, onde fosse efetivamente possível acompanhar cada molécula – o que teríamos que fazer quando tivéssemos problemas com o oxigênio. Provamos que era possível fazê-lo; conseguíamos, de fato, ver onde estava o oxigênio e o carbono naquele ecossistema. Havia um meio de se compreender o que ocorria dentro daqueles ecossistemas. Era possível acompanhar não só a energia – numa base massa-fluxo –, como também todas as moléculas por esse sistema. O local escolhido para a construção foi o Arizona, onde não ocorrem terremotos e há bastante sol. De 1984 a 1991, desenhamos e construímos simultaneamente. Em 1991, fomos os oito para dentro: começava nossa primeira missão de dois anos. Vivíamos encerrados lá dentro, quatro homens e quatro mulheres; reciclávamos todo nosso ar e nossa água, cultivávamos o que comíamos e, basicamente, tínhamos uma mini-biosfera. A grande pergunta era: “Será que vai dar certo?” Seria possível criar uma biosfera – com proporções de massa-terra e massa-planta completamente diferentes – e mantê-la por longos períodos de tempo com seres humanos morando lá dentro? E, mais importante, continuará existindo sem desmoronar por algum motivo que não compreendemos ou não conseguimos evitar? Foi isso que tentamos fazer. O principal objetivo dessa primeira experiência de dois anos era responder à pergunta: “Será possível? Poderá ser construída uma biosfera artificial? Ou se transformará num limo verde por razões que desconhecemos?” Algumas pessoas diziam: “Vocês vão morrer todos com alguma infecção horrível.” Especificamente, queríamos saber se alguma coisa não funcionava, por quê e, nesse caso, como superar a dificuldade. Após dois anos, tivemos alguns problemas sérios, mas conhecíamos os problemas e, o que era o incentivo maior, sabíamos como superá-los. As noites de quinta-feira eram dedicadas à filosofia. Às vezes estudávamos coisas de ecologia, outras vezes, de arte. Havia teatro Somos treinados para pensar especificamente, num raciocínio simplista. Existe uma certa verdade no fato de que se você é um aos sábados e domingos de manhã. O teatro não consistia em montar uma peça; era apenas uma maneira de explorar a psicologia e era cientista simplista, pensa de maneira cada vez mais profunda sobre um número de coisas cada vez menor. John Allen tinha um enorme muito eficaz. desprezo pela ciência simplista, mas ignorava o fato de que foi a ciência simplista que nos deu a Biosfera 2. Era necessário pensar em Quando saímos, havia cinco meses de pesquisas e relatórios atualizados sobre animais, plantas e bactérias naquele espaço. Em seguida, uma outra missão de sete pessoas ficou lá dentro por oito meses. Depois, a Universidade de Columbia assumiu o projeto e fez um intercâmbio global de pesquisa durante vários anos. Pesquisaram biomas, examinaram o que ocorre com vários níveis de dióxido de carbono etc. Atualmente, o local está abandonado porque a Universidade de Columbia saiu e ainda estão pensando o que fazer com esse incrível recinto. Em termos conceituais, se você pensa em biosfera, pode defini-la de várias maneiras. No dicionário, a definição de biosfera é a esfera de vida em torno da Terra. Vamos ver o próximo passo: o que constitui a biosfera 1? Bem, é um sistema materialmente fechado; muito pouca matéria sai ou entra, mas, do ponto de vista energético, é aberto. Recebe sua energia principalmente do sol. Podemos acrescentar que também é aberto do ponto de vista informacional. Alguém pode dizer: “Quer dizer que se você encerrar uma réplica de uma floresta tropical num recinto, isso é uma biosfera? Se você pegar uma jarra de água de um lago e a encerrar num recinto, isso é uma biosfera?” Essas são questões a debater. John Allen, o auto-nomeado líder do grupo, definia da seguinte maneira: “O que define uma biosfera é a unidade biônica; tem que ter vários biomas, ou seja, zonas ecológicas.” Quando você olha para o planeta Terra, percebe que é diferente de um lago porque tem uma porção de unidades ecológicas dessemelhantes, muito distintas. Na Biosfera 2, dizíamos: que biomas devemos incluir? Todos? Já existia uma biosfera artificial; portanto, dizíamos que não seria prático incluir cada bioma existente no planeta. O importante é incluirmos aqueles que têm um maior grau de diversidade. Segundo o pensamento ecológico daquela época, diversidade significava equilíbrio. Concluímos que deveríamos ter uma quantidade considerável de diversidade. Optamos pelos sistemas Nos primeiros dois anos, faltaram-nos alimentos, mas na segunda missão humana tivemos o suficiente. Os alimentos eram suficientes, mais diversos e mais produtivos que existem na Terra. A maioria deles está situada na região tropical e subtropical. Por isso, acabaram mas a quantidade de calorias era baixa. Nossos níveis de oxigênio também ficaram baixos e, por uma série de motivos, não nos sendo biomas subtropicais: a floresta e os desertos, os biomas mais diversos que existem em termos de espécies. estávamos adaptando bem. Tudo isso afeta nossa estrutura psicológica, mas, por outro lado, tínhamos todos um bom astral, éramos todos anglo-saxões. O fato de que o nível do oxigênio tivesse sido insuficiente nos primeiros dois anos significava um problema sério. Tinha que se saber, com precisão, quanto oxigênio existia na biosfera e para onde fora. Por meio de uma análise isotópica, descobrimos a resposta: tinha sido colocado no solo um excesso de carbono orgânico, na forma da compostagem. Quando os micróbios decompunham a compostagem, aspiravam oxigênio da atmosfera e, ao mesmo tempo, devolviam à atmosfera dióxido de carbono. Se você encerra vida em ecossistemas relativamente complexos, isto pode ocorrer, caso haja uma limitação de certos nutrientes – especificamente, carbono e nitrogênio – tal como a Terra tem seus recursos limitados. Também como na Terra, é necessário um suprimento constante de energia. Aconteceu uma porção de coisas interessantes, curiosas, psicológicas. Tínhamos imagens vivas do passado; comigo, chegaram a acontecer devaneios sobre minha infância. Sente-se o sabor daquela experiência, é quase uma alucinação. É sabido que as pessoas passam por esse tipo de experiência na Antártida, no inverno. Uma das grandes dificuldades que tive – e penso que a maioria dos outros também – foi a de que, de repente, a vida era ser. Até o momento de entrarmos e vedar a porta, vivíamos indo para algum lugar. Quando construíamos a Biosfera 2, tínhamos sempre esse objetivo na cabeça, mas agora a vida era ser. Fico me perguntando se seria esse o motivo que provocou, naquela época, o desmoronamento que ocorreu na Biosfera 2. Além do problema do oxigênio, de repente estávamos todos ávidos por opiniões. Ficamos na Biosfera 2 por dois anos. De repente, com sete outras pessoas, você fazia de 12 metros quadrados o seu mundo. Todos sentimos grande dificuldade em nos adaptar. Foi a coisa mais difícil de toda a missão. No mundo ocidental, sempre que sentimos algum desconforto, fazemos alguma coisa. Na Biosfera 2, isso não era possível. Encaramos a situação de uma maneira interessante. No início da década de 90, a Internet estava nascendo, mas já tinha feito progressos, e conseguíamos enviar mensagens eletrônicas e telefonar. Participei de uma apresentação musical com uns músicos alemães. Três vezes por ano, tínhamos um festival de arte inter-biosférico. Uns pintavam, outros tocavam piano ou escreviam poesia. Fizemos uma adaptação por via eletrônica. É difícil contar toda a história da Biosfera 2 em uma única frase. Quando as coisas começaram a dar errado, não foi por causa da ciência, ou da tecnologia; foram as relações humanas que se abalaram. Há aí um paradoxo inexplicável. De um lado, a concepção da Biosfera 2; aquele núcleo de pessoas era extremamente aberto. Tínhamos orgulho de não pensarmos em termos lineares, em pensarmos do lado de fora. O projeto da biosfera uniu pessoas muito diversas, mas aquele núcleo era incrivelmente independente. A construção da Biosfera 2 foi um empreendimento de engenharia. Engenharia ecológica. Era preciso ciência para fazê-lo, mas a construção da Biosfera 2 não foi ciência; foi um esforço de engenharia. Uma vez terminada, a pergunta era: como vamos fazer ciência com isto? Um dos maiores problemas é que, do ponto de vista científico, não havia muito dinheiro. No início, os ecologistas – principalmente, os ecologistas de sistemas – iam todos à Biosfera 2. Alguns dos fundadores da ecologia de sistemas, como os Odums, eram muito amigos da Biosfera 2. Achavam que a Biosfera 2 era o máximo porque transmitia o modo de pensar de sistemas holísticos. Um equipamento para ecologia de sistemas. De outro lado, os cientistas simplistas diziam que, do ponto de vista da ciência, a Biosfera 2 era uma completa perda de tempo. Tinham um argumento válido. Não é possível fazer uma comparação direta entre os dados que se obtém da Biosfera 2 com dados obtidos da Biosfera 1, pois, enquanto sistemas, são muito distintos. Os resultados foram superficiais porque não lhes dedicamos o tempo necessário. Quando se faz uma experiência de observação científica, deve sempre ser coletada mais de uma espécie do que se está testando; de outra forma, os resultados são insignificantes em termos estatísticos. O pensamento relacional e o holístico são distintos. Entretanto, para pensar de um modo holístico, você tem que raciocinar em termos relacionais. Ser um pensador relacional não significa, necessariamente, ver o quadro por inteiro; mas quando se observa uma biosfera, é necessário pensar em como interagem as partes. Um dos grandes debates que surgiram enquanto construíamos a Biosfera 2 foi o seguinte: “Dividimos os ecossistemas para que fiquem arquitetonicamente separados?” Acho que teria sido inteligente projetar a Biosfera 2 com a possibilidade de que as biosferas pudessem existir como biomas separados, ou como uma única grande biosfera. Também éramos uma comunidade. Na verdade, uma comunidade Quando se observa uma biosfera, ou até um ecossistema, pensa-se em ciclos. Na Biosfera 2, você tinha o ciclo da água. Lá dentro, intencional. Havia um certo vínculo com o movimento hippie e as bebíamos as mesmas moléculas da água e usávamos as mesmas comunidades da década de 60. A certa altura, até nos acusaram de sermos uma seita. Adotamos nomes diferentes; quando morávamos lá, meu nome era Arlequim. Tínhamos algo que chamávamos darma. moléculas de oxigênio e de carbono repetidamente. Tudo fazia parte de um ciclo. Fazia com que você pensasse tanto em termos holísticos quanto relacionais. 37 termos holísticos, mas também simplistas. Um dos grandes problemas do mundo de hoje é que ele é muito compartimentado. E nós queríamos juntar todos aqueles compartimentos e fazer um mundo. O recinto fechado chamado Biosfera 2, em especial os biomas antropogênicos da agricultura e do habitat, seria um treinamento excelente para aspirantes a astronauta num ambiente de base espacial. Você não pode coletar dados da Biosfera 2 e concluir que se tal coisa surgiu neste ecossistema da maneira x, y ou z, então irá necessariamente ocorrer na floresta tropical da Terra. Não necessariamente, pois são muito diferentes. Porém, o que você pode é desenvolver ferramentas holísticas para compreender como funciona a totalidade do sistema em seu nível superior. BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER T ACITA D EAN TACITA DEAN NASCEU EM CANTERBURY EM 1965 E VIVE EM BERLIM . ELA ESTUDOU PINTURA E HOJE TRABALHA COM VÁRIOS MEIOS . ELA É MAIS CONHECIDA POR SEUS INSTIGANTES FILMES DE 16 MM , EM QUE QUALIDADES ESPECÍFICAS ASSOCIADAS À ATIVIDADE DO CINEASTA SÃO DE IMPORTÂNCIA CENTRAL . ELA É REPRESENTADA PELA MARIAN GOODMAN GALLERY , PARIS - NOVA IORQUE E FRITH STREET GALLERY , LONDRES . DEAN FOI INDICADA PARA O TURNER PRIZE DE 1998 . ENTRE 2000 E 2002 RECEBEU A BOLSA DAAD AKADEMISCHER AUSTAUSCHDIENST - - DEUTSCHER EM BERLIM . O PROJETO DISCUTIDO NESTE LIVRO FOI O MILLENIUM SCULPTURE PROJECT , NO MILLENIUM DOME , LONDRES , REINO UNIDO , 1999 . TRADUÇÃO DE GAVIN ADAMS LONDON _ 19 DE AGOSTO DE 2004 J EAN - CHRISTOPHE ROYOUX _ Você pode descrever a origem de projeto Sexta-feira/Sábado ? _ Esta obra foi comissionada para o que se chamou o North Meadow Project, que era um pedaço de terra ao lado da Millennium Dome [Cúpula do Milênio], perto do rio Tâmisa, para onde alguns artistas foram convidados a realizar trabalhos sitespecific. Naquele terreno existia um velho duto de ventilação vitoriano que era usado para alimentar de ar o túnel de Blackwell, que corre por baixo do Tâmisa. Este duto de ventilação tem oito lados e encontra-se exatamente na linha do Meridiano, que é a Longitude Zero. É claro que a sua localização é arbitrária até certo ponto, mas TACITA DEAN o mundo tem sido dividido assim por muitos anos com a Longitude Zero em Greenwich, que nos dá Hora Meridiana de Greenwich. GLAZER _ É algo bem imperialista dizer que a Inglaterra determina o tempo de todo o mundo. KATE TACITA DEAN _ É verdade, mas também por que que temos que discar 1 para falar com os Estados Unidos? É a mesma coisa, eu tenho que concordar com você. Mas se tomamos a coisa desta forma, descartamos todo um sistema. A Longitude Zero tem que estar em algum lugar. Remover a Longitude Zero de Greenwich seria uma coisa profundamente radical de fazer a toda a estrutura de como descrevemos o mundo. Em todo o mundo, as pessoas usam a Hora Meridiana de Greenwich para estabelecer seu zero, e assim saber onde estão. O intervalo entre a Hora Meridiana de Greenwich e a hora local a bordo de um navio permite às pessoas estabelecerem sua longitude e assim localizar-se no mar. Temos que codificar o tempo de alguma forma, pois do contrário ficaríamos loucos. Eu não creio que as pessoas percebem como nosso mundo está assim arranjado, de forma a permitir saber a hora. Eu decidi situar meu trabalho neste duto de ar. Eu dividi o mundo em oito partes, como os oito lados do duto e transformei o espaço em uma espécie de relógio de tempo. Usando os 360 graus da circunferência do globo, eu dividi o mundo em oito partes, o que significa segmentos de 45 graus. Como conseqüência, obtive oito linhas de longitude ao redor do mundo a intervalos de 45 graus, e por causa da localização deste duto particular, que estava na transição entre a terra e o rio Tâmisa, muito perto do mar, eu decidi escolher lugares onde a linha de 45 graus atravessava no globo terrestre tanto na terra quanto no mar, isto é portos, cais etc. Então se pensamos Greenwich como o Zero, a 45 graus para o Oeste corre uma linha que _ A partir de Sexta-feira/Sábado você produziu um jukebox [vitrola automática onde se pode escolher o disco a ser tocado] Como perpassa uma pequena cidade no Brasil chamada Ubatuba, e a 90 graus uma linha corta a cidade de Nova Orleans; a 135 graus oeste, a relacionamento entre terra e mar. Ouvimos gaivotas em Greenwich, e percebemos o mar no Alaska e em Bangladesh, assim como em JCR linha atravessa a minúscula aldeia chamada Hoonah no Alaska, e a 180, Fiji. Akashi no Japão fica 135 graus a Leste; já 90 graus a leste Akashi, por causa do mercado de peixes. era dividido ? Você tinha oito lugares ? Eu me sinto muito atraída por filmes, e o filme é sempre sobre o tempo, a transcrição física do tempo - é uma coisa física. Eu acho que TD temos conexões aqui. Se eu estivesse trabalhando com mídia digital eu usaria satélites; é a mesma coisa. Ser capaz de navegar, ser capaz de calcular a sua posição em relação ao sol, vai se tornar uma arte morta, mas o sistema analógico ainda nos acompanha. É como precisar de papel e caneta quando o computador trava. Hoje, o código Morse não está mais em funcionamento, assim como o filme também passará. Não é ensinado a ninguém. Eu fico triste por causa de coisas como esta. Muito do que eu faço é relacionado a estes rasgos de memórias. A maior parte do tempo, eu faço trabalhos que poderiam ser vistos simplesmente como nostálgicos - no sentido de buscarem aprisionar as coisas antes que desapareçam. um grande objeto que tivesse uma qualidade analógica. Eu acabei usando CDs, que não são analógicos, mas foi o mais próximo do analógico que consegui chegar. Eu tinha 192 horas de som, de maneira que eu tive que eu mesma inventar a máquina, usando 3 unidades de CD já existentes. Parece uma máquina do tempo bizarra. Era um console com botões grandes, um dizendo “Tempo” e o outro temos Dakar em Bangladesh; 45 graus a leste temos Aden no Iêmen, que é uma longitude interessante, por que até onde me recordo existem muitos lugares instáveis, ao longo de toda a linha. Alguns lugares eram bem óbvios, como aquela que corta Nova Orleans exatamente a 90 graus. Já Hoonah não tinha habitantes - mas não havia nenhuma categoria imposta como essa. Este projeto envolvia uma visita a todos esses lugares e a gravação do som local nestes locais, do meio-dia de sexta-feira a meio-dia de sábado, na transição da sexta para sábado de 1999 a 2000. Eu não podia dar conta de todas as viagens sozinha. Eu fui a apenas cinco dos oito lugares, e eu envolvi outras pessoas para a gravação nos lugares onde eu não poderia estar. Em cada uma destas locações, encontramos o lugar certo que seria bom para o som. O som é incrivelmente informativo quando é descolado de sua imagem. De certo modo, é um retorno à minha obra mais antiga, Foley Artist:: som sem imagem. É uma coisa incrivelmente radical. Eu acredito muito no rádio. O rádio funciona desta forma. A imaginação do ouvinte participa da criação. Cada ouvinte cria imagens diferentes, pois não existe um lugar genérico. As pessoas não percebem o poder do som. Quando gravamos, um dia encoberto gera um som diferente de um dia ensolarado. Podemos realmente ler as diferenças através do som. Uma das linhas cortava esta minúscula ilha de Hoonah. O problema era que a ilha abrigava uma população de ursos, e não tínhamos qualquer treinamento para lidar com eles. Era muito perigoso, e no fim tivemos que encontrar um novo lugar para gravar. Escolhemos o Dixie D’s Snack Bar. O som era meio baixo, mas tínhamos que achar algum lugar longe desta fábrica de enlatados que emitia ruídos sem parar. No Iêmen escolhemos este mercado, que era cercado por montanhas. Era realmente belo. Você ouve os cachorros, os bodes e galinhas. Gravamos do telhado. Ouvimos o chamado matutino para as preces e então os cachorros e os corvos todos reverberando. Minha hora favorita de gravação é quatro da manhã no Iêmen, um país para onde as pessoas não podem mais viajar com facilidade, então é ainda mais inacessível. Sexta-feira/Sábado tem a ver com a qualidade do som de cada um destes lugares naquele período de tempo. Às vezes ouvimos coisas que significam o tempo, como sinos. As gravações foram etiquetadas à mão com os horários, como 12-2, ou 2-4 etc. Na exposição do projeto para a Millennium Dome , a idéia era arranjá-las de tal maneira que o som de cada locação tocasse em correta relação com os outros lugares. Por exemplo, meio-dia em Greenwich correspondia à meia-noite em Fiji. Você poderia passear por Sexta-feira/Sábado e obter o tempo mundial através do som. Enquanto Fiji ficava silenciosa durante a noite, em Greenwich era pleno dia, e era muito barulhento. Alto-falantes estavam posicionados em cada um dos lados do duto, onde escrevi o nome do lugar onde foi gravado o som em cada uma das locações - por exemplo, lemos Meeting Hut para Fiji ou Dixie D’s Snack Bar para o Alaska. Um relógio atômico sincronizava a coisa toda, de modo a durar 365 dias totalmente em sincronia. Então meio-dia no som correspondia sempre ao meio-dia real em Greenwich, e meia-noite era sempre meia-noite. É um relógio que registra através do som, um relógio amorfo, de certo modo. Coloquei pequenos bancos em cada um dos oito lados do duto. As pessoas podiam sentar-se e olhar e ouvir. Longitude á a única maneira de indicar precisamente onde você está. Longitude é somente descritível através do tempo. Lugar e tempo estão completamente interconectados. A única maneira de localizarse no mar antes do satélite e do GPS era através da Hora Meridiana de Greenwich contada a bordo. Originalmente, ninguém conseguia contar o tempo corretamente a bordo, por causa do movimento do mar e das flutuações da pressão barométrica. Harrison inventou o primeiro relógio a fazer isso, que mais tarde se tornou o cronômetro. O cronômetro foi o mais importante instrumento para um marinheiro a bordo. Se ocorresse um erro, este erro tinha que ser mantido o tempo todo; de outra forma nunca se saberia onde estava. O cronômetro conta a Hora Meridiana de Greenwich a bordo de um navio. Os marinheiros conseguiam estabelecer sua posição exata através do intervalo obtido na comparação entre a hora local e a Hora Meridiana de Greenwich. Antes do cronômetro, os marinheiros costumavam sofrer da “loucura do tempo”. Eu me interessei muito pela loucura do tempo através de meu trabalho com Donald Crowhurst. A loucura do tempo ocorre quando não podemos localizar-nos no tempo ou quando perdemos a noção de tempo, e portanto perdemos a noção de lugar. Eu acho que é uma coisa terrivelmente profunda. É claro que isso era uma maneira analógica de enxergar o mundo, que hoje é digitalizado e controlado por satélite. É extremamente importante, então, pois alguns segundos de erro em seu cronômetro no Equador pode significar várias milhas fora da rota. Então os navegantes sempre se perdiam, pois não podiam localizar-se bem. A longitude tem a ver com o mar. Todo o projeto foi a respeito do No momento, estou filmando homens idosos antes que morram. Isso é o que parece estar em curso no momento. Isso é o novo filme, é sobre o que os dois últimos filmes eram. O que me interessa muito são os anacronismos e a obsolescência. Coisas que não mais se situam confortavelmente em seu próprio tempo. O Teignmouth Electron não pode mais velejar, e os espelhos de som perderam sua função, e assim por diante. Eles foram visões do futuro, mas tornaram-se obsoletos muito rapidamente. _ A conexão entre o tempo e o mundo como forma, como um círculo ou esfera, está sempre presente em seu trabalho: a idéia de ciclos ou de ciclo. A Torre de Berlim é sobre a esfera em rotação no espaço. JCR TD _ Sim, a Fernsehturm: é aquela esfera no espaço que foi construída quando havia Berlim Oriental. A torre é a mais incrível cápsula do tempo. Ela aprisionava o tempo histórico, aprisionava a República Democrática Alemã (RDA): podemos senti-lo lá em cima. Breve não mais sentiremos nem o cheiro da RDA lá em cima. Quando fui até lá, era ainda bem forte. NA RDA, era permitido permanecer somente uma hora lá em cima. Uma só rotação e aí o visitante tinha que sair. Uma rotação inteira de 360o durava uma hora. Uma das primeiras coisas que fizeram quando o Muro veio abaixo foi dar mais velocidade à rotação. Agora, a rotação é duas vezes mais veloz - dura meia hora - e você pode ficar lá o tempo que quiser. É por isso que eu intitulei meu texto sobre o filme de Backwards into the Future, porque é muito como o que Berlim está passando, de certo modo. JC R _ Sexta-feira/Sábado é um cosmograma. É circular, não progressivo. Não há hierarquia entre os lugares. Os lugares são arbitrários e não cidades poderosas. Elas são apenas pequenos lugares no mundo, pouco conhecidas. Há um senso de um mundo com o qual não estamos acostumados a ter contato, em uma escala expandida. Talvez o mais expandido que pôde ser realizado. O que poderia ser maior do que isso ? TD _ O universo... eu sei que a própria fisicalidade do globo está na construção do Fernsehturm. De alguma forma parece que retorna ao otimismo da década de 1960. O otimismo que imaginou a corrida de iates ao redor do mundo em 1968, ou que construiu o Fernsehturm, aquele período de ingenuidade quando ainda se acreditava que haveria cidades no espaço, como toda a fantasia de Kubrick no filme 2001. JCR _ Você fala de progresso, mas a idéia do ciclo, da esfera, é uma forma anti-progresso: algo que retorna com o tempo. Talvez seja falar da mudança em uma certa crença no progresso em direção a algo que não é mais atingível. TD _ Que coisa engraçada, acabei de rememorar um coisa, de repente. Quando eu era bem pequena, tivemos que fazer um desenho sobre o ano 2000. Eu devia ter uns nove anos, e eu me lembro agora que eu fiz um mundo regressivo: cavalos, carroças etc.; como se o futuro fosse ser igual ao passado. JCR _ Sexta-feira/Sábado também é um deslocamento de um meio para outro, de um século para outro, o deslocamento entre o século anterior e este. TD _ É isso que é tão bonito. Foi de sexta-feira para sábado. E é aproximadamente o tanto de significado que a obra contém, na verdade. É claro, ela é bem simbólica. Você lembra todas aquelas pessoas que diziam que o século não começaria antes do fim do ano 2000, de 2000 a 2001... mas não há nada mais simbólico que assistir aos números mudarem, assistir o 99 virar 00... dois zeros. É tudo numerológico... é só números... números grandes. JCR TD _ Você fez algo específico a respeito disso... _ Sim, eu e adoro tudo isso. Tinha o 20 de fevereiro de 2002, 20.02.2002. Eu só anotei o fato, e consegui que quatro jornais publicassem a data em cima de seus logotipos, de modo a assinalar o dia. Eu me inspirei em Marcel Broodthaers, pois tinha visitado seu estúdio em Dusseldorf, e ele havia escrito estes números estranhos, que eram 21 12 02. Eu na verdade sou um tipo de romântica. 20.02.2002 é uma data palíndromo. Eu amo a idéia destas coisas que aparecem um dia e depois não aparecem mais por cem anos. 38 _ Bem, na verdade era muito difícil naquele tempo de fazer um jukebox. Eu não queria apenas uma máquina digital. Eu queria fazer “Lugar”, além de um botão para começar e outro para parar. Era realmente importante que fosse uma coisa física, que pudéssemos realmente ver a seleção da hora que você havia escolhido tocar. Todos os CDs eram numerados e tinham nomes, por exemplo, “Iêmen 9 horas a 10 horas.” Cada CD durava uma hora, e havia 192 deles: 24 horas x 8 lugares. Você então podia ir a qualquer hora das 24 em qualquer uma dos oito lugares. JCR _ Em Sexta-feira/Sábado o tempo estava totalmente em sincronia todo o tempo. A jukebox desorganiza o tempo. TD _ Aqui, as pessoas controlavam o tempo. Elas se tornam Deus. BASEADO EM UMA ENTREVISTA COM JC ROYOUX , E REESCRITO POR KATE GLAZER MELIK OHANIAN A G R A D E C E E S P E C I A L M E N T E A O S A U T O R E S P O R S U A S PA R T I C I PA Ç Õ E S , AO CRITICO JEAN -CHRISTOPHE ROYOUX POR SUA COLABORAÇÃO E A TODOS QUE CONTRIBUÍRAM TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AOS AUTORES E KRISTALE COMPANY © 2005 PRODUCTION COPYRIGHT © 2005