Tese: um texto próprio

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Tese: um texto próprio
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Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIV, no 142, 25-37
Tese: um texto próprio*
Vera Lúcia Colucci
busca por um mestrado ou um doutorado pode significar uma oportunidade para o exercício de conhecimento autônomo e criativo, mesmo
que este exercício se obrigue às marcas da academia. Realizar um trabalho de
dissertação ou tese pode significar uma oportunidade renovada de dar sentido
a algo que interroga a pessoa no plano dos desejos inconscientes.
Para muitos pós-graduandos a elaboração de uma dissertação é a primeira
experiência de construir um texto próprio sobre um assunto de própria escolha.
Uma dissertação e uma tese são trabalhos que devem obedecer a uma arquitetura
escritiva, e no caso do doutoramento, espera-se que seja original. O orientando
fará escolhas: escolherá o tema, o orientador, formulará o problema e o objeto,
decidirá a metodologia. Estes são movimentos que têm a ver com a pessoa
enquanto sujeito de desejo e é aí que pode se dar uma experiência de grande
prazer e de sofrimento.
Este artigo é um exercício exploratório sobre contribuições que a psicanálise
pode oferecer a questões que a experiência de fazer uma tese coloca para a
pessoa enquanto sujeito de desejo.
Palavras-chave: Tese, orientando-orientador, transferência, objeto reencontrado,
escrito criativo
A
T
*
he pursuit of a master’s or doctor’s degree may mean an opportunity to
exercise autonomous and creative knowledge, even though this exercise
Texto apresentado em 19/8/1999 em palestra no Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
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must comply with the rules of academic production. Writing an article or a thesis
may be a renewed opportunity to give meaning to something that questions the
author on the plane of unconscious desires.
For many graduate and post-graduate students, the process of writing a
dissertation is their first experience in authoring a text on a topic of their own
interest. Dissertations and theses imply projects that must obey the architecture
of writing and, for doctorate theses, there is the additional requirement that
they be original. Especially, candidates must make choices in terms of topic
and adviser, but the problem, object and methodology must also be dealt with.
All such steps are related to the person as a subject of desire, and it is in this
character that the process may be the source of either great pleasure or great
suffering, or both.
This article is an exploratory exercise into the contributions that psychoanalysis
can offer to questions that arise for persons as subjects of desire, as they prepare and write academic theses.
Key words: Thesis, advisor-candidate relationship, transference, object reencountered, creative writing
ampinas é uma cidade onde todo
mundo faz tese.
Ou se está fazendo, ou se acabou de fazer, ou se está pensando seriamente em
fazer...
Há sempre uma segunda-feira para se
iniciar um projeto e, aqui, este projeto
é tese... Claro, estou falando particularmente do grupo social que chegou à
Universidade.
É possível que a existência de um centro como a Unicamp marque esta cidade como um organizador de relações
sociais que atravessa o seu cotidiano,
tornando-se um elemento de conversa,
mesmo quando é feita para se jogar
fora – a conversa, e não a tese – quando esta é realmente enfrentada e concluída..
C
Foi assim que logo ao chegar aqui em
Campinas me deparei com pessoas de
minhas relações que, de passagem, me
diziam de suas angústias por não conseguirem sentar-se na cadeira para
escrever... e isso é literalmente assim,
bem sabemos.
Uma delas veio me visitar, mas logo tinha de sair... ir para casa para
trabalhar... pois o curso de pós e o trabalho em seu projeto de tese estavam a
exigir-lhe muito. Todavia, ela mesma
contava que seu nível de ansiedade estava impedindo-a de trabalhar, pois eram
muitas coisas com que tinha que lidar
ao mesmo tempo. Era o manejo do computador, o domínio da literatura sobre o
assunto a ser tratado, assim como o próprio fato de estar voltando à vida
Tese: um texto próprio
acadêmica depois de muitos anos de dedicação intensa a outro projeto de vida.
Está claro para todos nós que em estado de alta tensão e ansiedade nenhum
pensamento pode se articular. Nem sequer uma leitura parece possível, mesmo
no caso dessa atividade que é bastante
afeita a funcionar como fuga, como
modo de postergar a escrita.
Outra amiga me conta de passagem que
acabara de ser pressionada pelo orientador pois seu prazo estava se
esgotando e isso a levaria a perder a bolsa de auxílio econômico, coisa por si
grave, tanto no aspecto moral/ético
quanto no propriamente econômico.
Esta amiga também não conseguia sentar-se para produzir qualquer coisa:
resolvia ir ao supermercado, levar filho
à casa de amigos dele, cachorros ao veterinário, mas tese que é bom, nada.
Mas ao conversar sobre seu tema vejo
o quanto minha amiga se interessa por
ele. De tão imbricado com seu cotidiano profissional, sua fala passava de um
assunto para outro – do problema levantado na tese às observações de sua
prática – numa só corrente de pensamento e de problematização.
Penso então que seria uma pena ela perder este bonde de seu desejo. Sua implicação existencial com o projeto tese
é tal que este a moveu de seu país de
origem, vindo morar aqui e, por fim,
neste mesmo tempo estabeleceram-se
coisas da importância de um casamento, um filho e a construção de uma casa.
Nestes casos a tese se torna quase um
elemento a mais, de relativa importân-
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cia, tais são as definições em processo.
Mas vejam que falei de relativa, pois, tomado em si, o trabalho de escrita e o
desenvolvimento de um problema com
certeza guardam todo seu valor e, longe de tirar-lhe importância, todo esse
conjunto de definições de vida só faz
confirmar a importância do movimento
inicial que gerou o primeiro passo, no
sentido de se inscrever num programa
de pós-graduação.
A ambas as amigas me ofereci para estar ouvindo-as nessas dificuldades. Eu
estava convencida de que poderia ajudálas a sair dos impasses caso viessem e
se sentassem na cadeira de meu escritório. Eu estava convencida de que elas
poderiam ter reavivado o próprio desejo que um dia definiram como sendo o
de realizar um trabalho intelectual em
torno de um problema que lhes fizera
sentido.
Se lhes conto tudo isso é para introduzi-los de modo mais vivo ao que penso
sobre alguns impasses que estão em
jogo no processo de realização de um
trabalho de tese.
Quanto ao que se passou com a primeira
amiga, sua ação imediata foi organizar
todo seu material de trabalho: entre suas
várias atividades e compromissos de
cursos, determinou quais deveria priorizar para, então, dedicar-se a um
trabalho por vez.
Todavia, sair das questões pelas quais
se embrenhara não é uma tarefa que se
possa realizar em tempo curto. Os caminhos para dar conta de um projeto de
revisão de vida, em que a pós é apenas
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o eixo vivo em torno do qual se processa
essa reestruturação, implicam em uma
passagem de uma posição subjetiva a
outra. Essa transformação nem sempre
é uma tarefa que se possa concluir em
tempo curto e sem se abrir para as indagações próprias a um processo de
análise pessoal.
Quanto à segunda amiga, foram cerca
de três encontros em que ela foi falando sobre qual era a questão que queria
desenvolver em seu trabalho, como havia surgido a questão. E, assim falando,
ia reconectando o problema da tese com
suas inquietações surgidas quando ainda era estudante na universidade, e até
mesmo antes. Suas próprias experiências pessoais podiam mostrar que as
questões de abordagem do outro frente
a uma queixa de dor ou mal-estar eram
lidas de modo singular e não segundo a
ortodoxia curativa, oficial, digamos assim. Ela é médica.
Ao ir falando reencontrou também seus
mestres inspiradores: um professor, um
curador popular e sua avó. Todos eles
foram pessoas admiradas e se tornaram
importantes em sua vida, com efeitos
decisivos para suas identificações, ao
mesmo tempo que instigantes de sua
curiosidade. Esta amiga, com a ajuda de
outras tantas pessoas que a acompanham interessadamente, retomou seu
trabalho e está cumprindo seus prazos.
Antes, porém, dos encontros com estas duas pessoas que possibilitaram
minha reaproximação com este assunto, pude acompanhar pacientes que me
procuravam como psicanalista e que es-
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tavam realizando suas teses. Vou falar
de dois deles, dada a concomitância dos
tempos de elaboração da tese e análise.
Ambos vinham de outros Estados do
Brasil e ambos da área de Exatas.
Um deles, que chamarei de “A.”, vinha
de devastadora experiência de separação
em seu casamento, sendo que a possibilidade de ingressar num programa de
pós-graduação se constituía numa saída honrosa, digamos. Este programa lhe
permitia deixar sua cidade e meio social e ainda galgar um grau, o que significava para ele tingir com outras tintas
sua experiência que fora de grande humilhação, e assim poder elaborá-la,
acrescentando alguns créditos narcísicos àquilo que estava sendo para ele uma
prova de exclusão e rebaixamento.
“A.”, ao procurar um encontro comigo,
vinha buscar um linimento para continuar sua vida. Vinha também para
procurar entender esta coisa não digerível por ele que era a mulher ter pedido
a separação. Tudo o que queria era poder recompor seus estilhaços para voltar
a sua região como quem deu a volta por
cima. E aí entrava a execução do trabalho de tese, a obtenção de seu título.
Esta era a trilha por onde deslizava o
sentido da tese e pós-graduação.
Para esta pessoa, porém, a execução
de um trabalho próprio não era um problema. Trabalhava com afinco, sem
grande paixão pelo que ia construindo,
e portanto sem grandes impasses na
elaboração do trabalho. Suas dificuldades iam aparecer lá nas relações com o
orientador, com colegas e com a pró-
Tese: um texto próprio
pria apreensão e domínio da cidade.
Mas embora não tratassem diretamente
sobre o fazer da tese e as construções
de seu trabalho, era evidente que suas
sessões eram fundamentais para a manutenção de seu ritmo de trabalho, para
a manutenção de seu projeto de reerguimento narcísico.
Sua namorada, porém, de quem eu apenas podia saber por referências dele
mesmo, “não trabalhava”. Tendo sido
ela quem veio primeiro para São Paulo,
trouxe-o nas asas da paixão... O projeto dela era ele, que como na quadrilha
de Drummond, o dele era outro.
Bem, cito esse casal para que de algum
modo possamos marcar que aquilo que
vem a ser bastidores para o orientador
está atravessado por outros tantos
projetos e teses existenciais. Muitas vezes o abandono, a desistência do projeto tese vem do fracasso desses outros
campos em que fervilham com mais intensidade as questões do ser desses sujeitos.
Penso que o sistema de vinculação do
pós-graduando o implicará subjetivamente de modo mais ou menos intenso
no que diz respeito à escolha do tema
da tese e seu modo de desenvolvê-lo.
Nestes últimos casos que acabo de relatar, o orientando entra no projeto de
tese do orientador, e junto com outros
tantos colegas, de níveis e procedências variadas, participa de uma parte do
assunto. Talvez seja até uma característica do particular campo de trabalho ao
qual se dedicavam. Pelo que pude perceber, há um trabalho braçal bastante
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grande de elaboração de cálculos e de
escolha de modos de fazê-los, mas de
rara criação de significados.
Todavia, certamente, a criação de sentido também terá a ver, e muito, com a
mobilização do sujeito em questão para
entregar-se e se dar conta do que lhe interroga, do que o inquieta.
O último caso que quero trazer é também de alguém de Exatas, que tinha no
projeto de tese todo seu investimento de
vida. Nada era mais importante para ele,
que chamarei de “B”, do que a realização de seu trabalho. Torturava-se com
suas dúvidas quanto à competência intelectual, avaliando-se segundo o critério
de que o saber era o conhecimento acumulado pela memória. Assustava-se
bastante porque quando ia ler sobre um
assunto este lhe parecia como novo,
embora já o tivesse estudado muito
como matéria básica de sua graduação.
Já não confiava até em sua capacidade
de realização de “suas contas”, como as
chamava.
Assustava-se porque fora sua garra para
o estudo o que sempre o animara na
vida. Não vira casamento, filhos que
nasciam e cresciam a sua volta. Era só
estudar, estudar e estudar. Reconhecia
que nem sempre isso significava aprender, saber, mas ele estava sempre lá,
estudando. E agora este sistema falhava: não estava mais conseguindo ficar
diante dos livros. Mesmo que estivesse
tudo favorável para que o fizesse, ficando por exemplo protegido das
solicitações da vida familiar, sabia que
na verdade seu estudo não passava de
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uma encenação: não se detinha mais para
estudar como antes.
Tendo sido muito pobre em criança, participou do sustento da família desde
muito cedo vendendo doces em estação
rodoviária de sua pequena cidade. Passou também uma juventude de exclusão
social. Malvisto ao freqüentar o clube da
cidade e querer namorar a menina rica
do lugar, resolveu um dia que ia sair da
cidade e estudar. E assim fez. Era bom
em matemática... passou num concurso para emprego público, onde
trabalhava de dia e no restante do tempo estudava.
O sofrimento deste homem era muito
grande e ele veio me procurar, coisa que
jamais pensara fazer, quando já estava
quase a ponto de “cometer uma loucura”, como dizia, e deixar tudo.
Aterrorizava-se com essa possibilidade
pois já fizera isso uma vez quando há
alguns anos antes viera sozinho para SP,
sem a família, e abandonara seu programa de pós. Mas agora não queria repetir
este procedimento, pois seria decretar
sua falência. Então, deixou-se cair em
análise (Nem toda falência é desastrosa!...).
Bem, para abreviar, esta pessoa terminou seu trabalho de tese como resultado
de todo seu empenho, com nota 9 vírgula alguma coisa, mas ainda
reclamando de que não fora 10... Certamente, algum tempo mais de análise
não lhe faria mal, liberando-o talvez dessa convicção de que é aí, nesse
patamar, que pode se reconhecer como
sendo ele mesmo. Livrar-se dos desíg-
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nios marcados por sua mãe, mulher
muito forte, severa e ambiciosa, sem
perigo de cair no destino de seu pai, homem fraco, sem projeção e sem
sucesso.
Se falo de “B.” aqui, bem como das outras pessoas, é porque todas elas me
deram a oportunidade para começar a
pensar na questão da realização da
tese, da construção desse trabalho, com
maior riqueza de detalhes e possibilidades do que seria pensar apenas sobre
meu próprio mestrado.
NA ESCOLHA, UMA DECISÃO
Os nomes orientador/orientando guardam algo de um par em que um dos
elementos é o que age – orientador: o
sufixo “-or”, do latim ore, ofício, profissão, agente, instrumento de ação – e
o outro, o que recebe a ação, o orientando. Trata-se de uma nomenclatura
que, bem sabemos, não retrata bem a
experiência de ocupar estas posições.
Todo orientador já foi orientando um dia
e ascendeu a esta posição mais como
parte de sua carreira acadêmica do que
necessariamente por seu talento ou escolha. Trata-se de uma posição difícil,
por vezes objeto de demandas acima,
muito acima, daquelas que exerce corriqueiramente como professor.
O professor deve dar conta de um saber organizado e o melhor deles ainda
deixará muitas questões a serem respondidas. Tocará a seus alunos, criará
paixões por saber, mas não estará tão
implicado no percurso subjetivo do outro quanto o orientador. Com este o
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orientando formará um par que terá uma
tese como produto.
O orientando, por sua vez, deve formular uma questão sobre a prática ou a
teoria, que deverá ser desenvolvida segundo os padrões acadêmicos. E é aí
que tudo acontece.
A formulação do problema, a constituição do objeto de estudo e a própria
metodologia são escolhas que implicam
o sujeito. São atos que devem estar assentados sobre o desejo, ou nada
acontece.
O orientando escolhe o problema de
tese e o orientador quase na mesma
toada. Ou seja, é necessário que haja
transferência para o começo de toda esta
história. Trata-se da transferência que
está presente em qualquer relação social, e que diz respeito àquilo que produz as condições para a autorização para
que alguém nos influencie, interfira em
nossos pensamentos (o caráter de sugestionabilidade da transferência), tornando uma interferência desejada.
É uma escolha onde há confiança, respeito, exposição e entrega – componentes presentes à constituição de qualquer
parceria para fundar algo, fazer evoluir
um projeto.
A escolha pelo orientador é uma escolha de cumplicidade nesta busca de
sentido para algo que interroga o orientando. Ela será amorosa, porém sempre
vigilante, delicada. Mesmo quando a
possibilidade de escolha não é dada formalmente, a construção da relação será
atravessada pela transferência e pelo estilo de um e de outro parceiro.
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Qual a natureza da transferência de que
falo?
Podemos dizer que por vezes há uma
pré-escolha, em que o orientando
prefigura o orientador a partir de seu
próprio estilo de produção e do problema que vai ser desenvolvido na tese.
Será alguém com quem possa “trabalhar”, isto é, que possa acolher e decifrar seu interesse. Alguém que supostamente sabe daquilo que ele quer saber.
Ou, por outro lado, a escolha poderá
recair sobre aquele orientador que vai
incomodar o menos possível em sua
própria exploração (e que também não
vai competir, controlar, imiscuir-se em
demasia). Nestes casos o orientando
define que seu caminho tem que ser
feito sozinho e tem que ignorar o parceiro. É importante saber que isso
acontece. Diria que é sábio poder ausentar-se do lugar de orientação estritamente falando. Haverá outros casos em
que a solicitação pela orientação será tão
intensa que dela será preciso ausentarse também para que, criando o vazio,
possa surgir um resultado qualquer, mas
próprio.
Tenho grande tentação de dizer que o
orientador precisa escutar o orientando
para poder situá-lo em relação a seu objeto tese, podendo então orientá-lo,
acompanhando a trilha do próprio desejo do orientando. Porém, não posso
deixar de reconhecer que talvez seja pedir demais a quem exerça esta função.
As dificuldades em sustentar este lugar
já aparecem nas queixas de orientandos
de que o orientador deixou para ler na
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última hora embora a cobrança para entrega do trabalho fosse bastante severa,
ou casos em que o orientador perde o
trabalho do orientando, esquece encontro marcado etc. Enfim, numerosos
sinais de recusa dos encargos da função, que devem até ser acolhidos com
muita tolerância pois são, por vezes,
movimentos de acomodação absolutamente necessários.
O orientador, como um dos pólos do
par, estará sujeito às contratransferências, ou seja, às suas reações à pessoa
do orientando e mais particularmente à
transferência dele. O espaço intersubjetivo que se cria contará com as
transferências e contratransferências de
ambos os parceiros.
Ao orientador a escolha se abre para a
formulação do estilo de orientação, já que
a entrada nesse lugar de orientador é
uma função que deve assumir no decorrer de sua carreira acadêmica. O estilo
será o que lhe seja de maior conveniência, entendendo-se isso de maneira
ampla. Do lado da positividade, tem algo
de paternidade, de mestria, de acompanhante.
Qualquer que seja esta variação, uma
vez assumida, a orientação terá dois
momentos públicos: a qualificação e a
defesa da tese. São momentos em que se
torna visível a participação do orientador, onde sua orientação também é posta
em avaliação. Nestes momentos se destitui de seu lugar de saber e ouvirá de
outros estranhos ao par inicial, comentários sobre o produto. As mesas de qualificação e defesa, sua montagem e acon-
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tecimento são aqui um caso à parte.
Estes momentos marcam, entretanto, o
rito de passagem para o orientando,
momento em que é atribuído o título.
Teríamos que pensar como anda este
rito, já que é um acontecimento acompanhado de valor, de reconhecimento
social.
Para a construção de estilo de orientação vão contar as figuras de identificação do orientador. Desde as primeiras
marcas impressas pelos primeiros
“orientadores”, pai/mãe, até as de professores ou figuras que foram importantes ao longo de sua vida. E aqui caberia
todo um desenvolvimento dos conceitos de identificação, de Ideal do Eu e de
transferência, nos quais não vou me deter por ora.
Acredito, entretanto, que a ação do
orientador poderá implicar muitas vezes
em colocar prazo, telefonar para o orientando cobrando compromissos de
trabalho, indicar ou interditar leituras,
mas também acolher garatujas e balbucios. Genericamente se poderia dizer
que as cobranças, sendo na linha de
manterem o desejo vivo, e dentro de um
quadro de transferência positiva, não
produzirão resistências...
Por outro lado, todo escrito será bemvindo, mesmo que seja jogado fora, porque, de qualquer modo, o seu destino é
sempre a sua própria superação.
A escolha do orientador implica numa
autorização para os atos que façam fluir
o desejo de saber, mesmo que para isso
tenha que lutar com resistências e limitações.
Tese: um texto próprio
O engajamento do orientador é fazer
com que o orientando mantenha vivo o
desejo de realização da tese, e isso deve
seguir os parâmetros institucionais de
prazo e forma. O “a mais” será dado
pelas descobertas que acontecem no decorrer do processo (que nem sempre
recebem registro, mas podem ser justamente aquele resto que vai manter o
candeeiro aceso) e talvez pela qualidade do trabalho apresentado.
Mesmo quando o orientador pretenda
evitar “sofrer” sua implicação na função
de orientador, armando esquemas de
engajamento burocrático, no sentido em
que pretende se ater apenas aos prazos
e resultados, na verdade estará repetindo o que sempre se tentou fazer e que
por longo tempo foi dominante na epistemologia científica, que é afastar o
sujeito do objeto do conhecimento acreditando que ao afastar a subjetividade
afastará também toda fonte de erros e
enganos.
A esperança neste caso é de manter a
sua função e o trabalho higienizados,
isto é, livre das febres e contaminações
do desejo. Mas não é porque não se
queira saber deles que os teremos dominados, como bem mostrou Freud,
mas correndo o risco de sabê-los, de
considerá-los como existentes, é que se
pode encontrar meios de convivência
com a sua verdade.
O TEXTO PRÓPRIO
Há casos em que a busca por um mestrado ou um doutorado, além de cumprir uma exigência de maior capacitação
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para o mercado significa, ao mesmo
tempo, uma oportunidade para o exercício do pensamento autônomo, mesmo
que este exercício traga as marcas da
academia.
Para a grande maioria dos pós-graduandos a elaboração de uma tese talvez seja
a primeira experiência de construir um
texto próprio. O orientando deve formular uma questão sobre a prática ou a
teoria, que deverá ser desenvolvida segundo os padrões acadêmicos. A
formulação do problema, a constituição
do objeto de estudo e a própria metodologia escolhida serão narrados sob a
forma de tese acadêmica.
Ricardo Piglia, escritor argentino que
estuda a relação entre psicanálise e literatura, escreveu o artigo “Melodrama do
inconsciente” (1998: 110-114). Dele trago alguns extratos que nos permitem
pensar sobre o aspecto enigmático da
criação de palavras. Diz ele:
A relação entre psicanálise e literatura é,
sem dúvida, tensa e conflituosa. Em primeiro lugar, os escritores sempre sentiram
que a psicanálise falava de algo que eles
já conheciam e sobre o que era melhor
guardar silêncio. Faulkner, Nabokov, Borges (entre outros) observam que o
psicanalista quer interferir naquilo que os
escritores, desde Homero, têm convocado
com essa rotina cerimoniosa com que se
convocam as musas, em relações muito
frágeis e sempre tocadas pela graça... Trata-se de uma relação impossível de se
estabelecer deliberadamente, uma situação
de espera sutil.
Piglia está falando aqui da convocação
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do sujeito a um lugar extraordinário, tirando-o de sua experiência quotidiana.
E mais adiante prossegue:
... Em literatura, tende-se a ver a tragédia
como um gênero que estabeleceu uma tensão entre o herói e a palavra dos deuses,
do oráculo, dos mortos, umas palavras
vindas do outro lado, dirigida ao sujeito,
mas enigmático: é claro para os demais,
mas ele não o entende... A tragédia, como
forma, é essa tensão entre a palavra superior e um herói que tem uma relação
pessoal com essa palavra.
E é desse instrumento narrativo, o da
tragédia, que Freud se serve, nos diz Piglia, para construir sua narrativa
científica.
A construção de um trabalho de tese
deve ser tomada em toda sua complexidade.
A pergunta que dá partida para a elaboração de uma tese se origina muitas
vezes de um sentido que falta: por que
é mesmo que tal coisa é assim? E se nos
comprometemos com esta pergunta,
não nos resta outra alternativa senão ir
atrás dela. Uma tese, quando criativa e
transformadora, pode ser uma dessas
oportunidades para construir um novo
sentido.
Freqüentemente, fazer uma tese é um
trabalho que envolve grandes investimentos em termos de tempo e espaço
que ela ocupa na vida de uma pessoa.
A escolha do tema, o modo de produzi-lo, a escolha do orientador são
momentos pontuais que demonstram a
implicação do sujeito de desejo. São
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escolhas feitas pelo que tem a ver com
a pessoa, e aí é a sua singularidade que
governa e transparece.
Então, o que é que torna próprio um texto? É este apelo enigmático do oráculo,
dos mortos, umas palavras vindas do
outro lado, dirigidas ao sujeito mas que
ele não entende... Lacan diria que se trata do significante da falta que faz mover
o sujeito em busca de um sentido.
Há uma inscrição logo à entrada da exposição de Dali, atualmente no MASP
(julho, 1998) que diz: “Ninguém faz vários quadros mas somente um, que se
persegue durante toda a vida através de
diferentes telas, que são como imagens
do filme da imaginação”. Esta afirmação deve ser verdade para qualquer
expressão criativa, mesmo quando se
trata de uma narrativa científica.
Freud tem pelo menos dois textos em
que estuda os temas que nos interessam
e que vale a pena tomar para nossas reflexões: “Delírios e sonhos na ‘Gradiva’
de Jensen” (1907 [1906]) e “Escritores
criativos e devaneios” (1908 [1907]).
Lembrar que escrevera em 1900 A interpretação dos sonhos, em 1901
“Psicopatologia da vida cotidiana” e, em
1905, “Os chistes e sua relação com o
inconsciente”.
O artigo sobre o livro Gradiva foi o primeiro estudo em que Freud se utiliza de
uma obra literária para demonstrar as leis
da psicanálise. Jensen é um escritor alemão de pouca expressão em sua época,
contemporâneo a Freud. Seu texto, mais
tarde, será apontado como precursor do
surrealismo pela revista Littérature, em
Tese: um texto próprio
1919, fundada por André Breton e outros, pois antecipa estratégias que serão
amplamente buscadas como fontes para
a criação da obra artística, entre elas a
valorização do sonho como fonte de inspiração. O termo “Gradiva” batizará
algumas das iniciativas dos Surrealistas,
como o nome dado à Galeria de André
Breton, em 1937, palco de muitos acontecimentos artísticos da época. Este
nome servirá de referência para indicar
o estranho, o maravilhoso que atrai e
que é misterioso, desconhecido, mas
que “brilha ao avançar”. Isto é, aquilo
que se revela no transcurso da busca.
Do Surrealismo interessa-me aqui a valorização da descoberta que se apóia no
“objeto encontrado”, ou seja, o objeto
que faz despertar a atração irresistível
do nunca visto. Trata-se, para os surrealistas, de um objeto (geralmente
artesanal, fora de moda) cuja necessidade prática não é evidente e cuja
origem é impenetrável. O impulso por
possui-lo é de caráter passional e capaz
de fornecer uma solução surpresa a um
problema até aí insolúvel.
A psicanálise dirá que esse objeto é um
objeto reencontrado, pois algo dele tem
a ver com as marcas do primeiro objeto de satisfação, que é mítico, que foi
perdido e que deixou a marca da falta.
É esta falta que gera o desejo e faz movimentar a busca.
Freud nos fala, no texto da “Gradiva”,
de um duplo grupo de determinantes
das fantasias e ações do personagem
Hanold, que derivam de duas fontes diferentes. Uma delas era manifesta para
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Hanold, a outra vai sendo revelada ao
longo da narrativa com a decisiva ajuda
de Zoe/Gradiva.
Uma delas procedia em sua totalidade do
círculo de idéias da ciência arqueológica,
a outra surgia das lembranças infantis reprimidas que se tinham tornado ativas e
das pulsões a elas ligadas (...)
A motivação científica servia de pretexto
para a motivação inconsciente, estando a
ciência inteiramente a serviço da fantasia
e do delírio. Entretanto não se deve esquecer que os determinantes inconscientes
nada conseguem realizar sem satisfazer simultaneamente
os
determinantes
científicos conscientes (1907: 58).
O segundo artigo, “Escritores criativos
e devaneios” (1908), foi originalmente
uma conferência pronunciada em fins de
1907, nos salões de um editor e livreiro
que era membro também da Sociedade
Psicanalítica de Viena, onde Freud faz
interessante exame da fantasia e seu papel na criação.
Freud vai dizer que o escritor criativo
faz o mesmo que a criança que brinca.
Cria um mundo de fantasia que ele leva
muito a sério, no qual investe grande
quantidade de emoção e sabe que, apesar disso, se trata de um jogo imaginativo. O brincar da criança é determinado
por desejos, e assim é com o escritor.
Uma poderosa experiência no presente
pode despertar lembranças de uma experiência anterior (geralmente da infância), a
qual dá o mote para o desejo que se realiza na obra de criação. O passado, o
presente e o futuro estão entrelaçados
pelo fio do desejo que os une (p. 153).
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E aqui creio que vale a pena relembrar
algumas idéias sobre a questão do sujeito do conhecimento que foram
trabalhadas por Lacan, com a ajuda da
lingüística e da antropologia. Para isso
recorro ao texto “O piropo: psicanálise
e linguagem”, capítulo do livro Percurso de Lacan, uma introdução, de
Jacques-Alain Miller (1987) e algumas
das idéias de Anika Lemaire em “Jacques Lacan, uma introdução” (1979).
Lacan vai retomar a questão da introdução do sujeito na ciência realizada por
Descartes. Este filósofo do século XVII
procura estabelecer a garantia de um
pensamento verdadeiro através do trabalho com as dúvidas, com o objetivo
de reduzir toda a possibilidade de se cair
em premissas falsas, enganosas.
O sujeito que pensa é o reduto final onde
Descartes encontra a garantia de verdade livre de qualquer engano: penso, logo
existo.
Mas a premissa “eu penso” só pode surgir articulada ao sujeito que pensa o
pensar, o que permite então que se fale
de um sujeito dividido, aquele que a lingüística vai apontar como o sujeito do
enunciado e o da enunciação.
Cada palavra pode ser tomada em sua
estrutura de significado e significante, e
então tornada um verdadeiro tesouro de
significados que surgirão a partir da singularidade de cada pessoa e suas
experiências subjetivas.
De tal modo é assim que há um intervalo entre o falar e o querer dizer. Significante e significado não são paralelos,
homólogos, e o efeito de significado é
Pulsional Revista de Psicanálise
criado pelas permutações, pelos jogos
dos significantes. O sentido surge fundamentalmente da substituição de um
significante por outro.
Só há um novo significado quando há
um novo significante.
Deve-se atentar para o fato de que o
original de uma descoberta é a substituição significante. Basta, para dizê-lo
simplesmente, uma palavra no lugar de
outra para que tenhamos novo sentido.
Este “basta” doura um pouco a pílula
pois a barra que separa significado de significante é passível de ser mantida qual
uma atadura fazendo congelar a significação ao significante – são as resistências de que nos fala Freud ou a força
da insistência do desejo, em Lacan...
Dar livre curso a essas invenções significantes, libertando-se de uma relação significado/significante preestabelecida, é o que fazem os escritores e
poetas, como também um analisante
quando pode se entregar à associação
livre.
E assim é também com qualquer texto
ao qual se esteja pessoalmente dedicado,
como é o caso de uma tese. Os lingüistas mostram que todas as palavras
nascem de uma experiência subjetiva e
que sempre há uma distância entre falar e querer dizer, pois embora haja uma
grande quantidade de palavras em uma
língua, ao mesmo tempo sempre poderão nos faltar palavras para o que queremos dizer, ou a palavra que temos não
diz exatamente o que queremos.
A experiência da criação pode ser muito angustiante nos momentos de
Tese: um texto próprio
encontro com um vazio de significante, quando há algo por ser dito mas que
fica como se não tomasse forma, não
se consubstanciasse.
É o momento do afastamento em tensão – afastar-se para dar chance de que,
por outros caminhos, se possa chegar
lá. Lá onde? Ao ainda não articulado,
não dito por aquele singular sujeito. É
por isso que a experiência de criação é
tão próxima da loucura, pois é onde ficam suspensas as palavras e se é
exposto ao real indizível.
O sujeito que fala não é amo e senhor do
que diz. Na medida em que fala, em que
pensa que utiliza a língua, é a língua que,
na realidade, o utiliza: na medida em que
fala ou escreve diz sempre mais do que
quer e, ao mesmo tempo, diz sempre outra
coisa. (...) A metáfora e a metonímia não
deixam de entrecruzar no discurso, e quando falamos somos sempre levados além de
nós mesmos... (1987: 33).
Trata-se da experiência da idéia que
toma vida própria, sendo que os caminhos são dados ao fluir dela.
Na medida em que falamos, somos de
fato falados, e isto não é outra coisa senão o inconsciente. Não há linguagem,
estritamente falando, que se produza
sem que o sujeito esteja já aí. „
Artigo recebido em dezembro/2000
Tradução e revisão final recebida em janeiro/2001
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