Tese: um texto próprio
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Tese: um texto próprio
Tese: um texto próprio 25 25 Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIV, no 142, 25-37 Tese: um texto próprio* Vera Lúcia Colucci busca por um mestrado ou um doutorado pode significar uma oportunidade para o exercício de conhecimento autônomo e criativo, mesmo que este exercício se obrigue às marcas da academia. Realizar um trabalho de dissertação ou tese pode significar uma oportunidade renovada de dar sentido a algo que interroga a pessoa no plano dos desejos inconscientes. Para muitos pós-graduandos a elaboração de uma dissertação é a primeira experiência de construir um texto próprio sobre um assunto de própria escolha. Uma dissertação e uma tese são trabalhos que devem obedecer a uma arquitetura escritiva, e no caso do doutoramento, espera-se que seja original. O orientando fará escolhas: escolherá o tema, o orientador, formulará o problema e o objeto, decidirá a metodologia. Estes são movimentos que têm a ver com a pessoa enquanto sujeito de desejo e é aí que pode se dar uma experiência de grande prazer e de sofrimento. Este artigo é um exercício exploratório sobre contribuições que a psicanálise pode oferecer a questões que a experiência de fazer uma tese coloca para a pessoa enquanto sujeito de desejo. Palavras-chave: Tese, orientando-orientador, transferência, objeto reencontrado, escrito criativo A T * he pursuit of a master’s or doctor’s degree may mean an opportunity to exercise autonomous and creative knowledge, even though this exercise Texto apresentado em 19/8/1999 em palestra no Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Pulsional Revista de Psicanálise 26 must comply with the rules of academic production. Writing an article or a thesis may be a renewed opportunity to give meaning to something that questions the author on the plane of unconscious desires. For many graduate and post-graduate students, the process of writing a dissertation is their first experience in authoring a text on a topic of their own interest. Dissertations and theses imply projects that must obey the architecture of writing and, for doctorate theses, there is the additional requirement that they be original. Especially, candidates must make choices in terms of topic and adviser, but the problem, object and methodology must also be dealt with. All such steps are related to the person as a subject of desire, and it is in this character that the process may be the source of either great pleasure or great suffering, or both. This article is an exploratory exercise into the contributions that psychoanalysis can offer to questions that arise for persons as subjects of desire, as they prepare and write academic theses. Key words: Thesis, advisor-candidate relationship, transference, object reencountered, creative writing ampinas é uma cidade onde todo mundo faz tese. Ou se está fazendo, ou se acabou de fazer, ou se está pensando seriamente em fazer... Há sempre uma segunda-feira para se iniciar um projeto e, aqui, este projeto é tese... Claro, estou falando particularmente do grupo social que chegou à Universidade. É possível que a existência de um centro como a Unicamp marque esta cidade como um organizador de relações sociais que atravessa o seu cotidiano, tornando-se um elemento de conversa, mesmo quando é feita para se jogar fora – a conversa, e não a tese – quando esta é realmente enfrentada e concluída.. C Foi assim que logo ao chegar aqui em Campinas me deparei com pessoas de minhas relações que, de passagem, me diziam de suas angústias por não conseguirem sentar-se na cadeira para escrever... e isso é literalmente assim, bem sabemos. Uma delas veio me visitar, mas logo tinha de sair... ir para casa para trabalhar... pois o curso de pós e o trabalho em seu projeto de tese estavam a exigir-lhe muito. Todavia, ela mesma contava que seu nível de ansiedade estava impedindo-a de trabalhar, pois eram muitas coisas com que tinha que lidar ao mesmo tempo. Era o manejo do computador, o domínio da literatura sobre o assunto a ser tratado, assim como o próprio fato de estar voltando à vida Tese: um texto próprio acadêmica depois de muitos anos de dedicação intensa a outro projeto de vida. Está claro para todos nós que em estado de alta tensão e ansiedade nenhum pensamento pode se articular. Nem sequer uma leitura parece possível, mesmo no caso dessa atividade que é bastante afeita a funcionar como fuga, como modo de postergar a escrita. Outra amiga me conta de passagem que acabara de ser pressionada pelo orientador pois seu prazo estava se esgotando e isso a levaria a perder a bolsa de auxílio econômico, coisa por si grave, tanto no aspecto moral/ético quanto no propriamente econômico. Esta amiga também não conseguia sentar-se para produzir qualquer coisa: resolvia ir ao supermercado, levar filho à casa de amigos dele, cachorros ao veterinário, mas tese que é bom, nada. Mas ao conversar sobre seu tema vejo o quanto minha amiga se interessa por ele. De tão imbricado com seu cotidiano profissional, sua fala passava de um assunto para outro – do problema levantado na tese às observações de sua prática – numa só corrente de pensamento e de problematização. Penso então que seria uma pena ela perder este bonde de seu desejo. Sua implicação existencial com o projeto tese é tal que este a moveu de seu país de origem, vindo morar aqui e, por fim, neste mesmo tempo estabeleceram-se coisas da importância de um casamento, um filho e a construção de uma casa. Nestes casos a tese se torna quase um elemento a mais, de relativa importân- 27 cia, tais são as definições em processo. Mas vejam que falei de relativa, pois, tomado em si, o trabalho de escrita e o desenvolvimento de um problema com certeza guardam todo seu valor e, longe de tirar-lhe importância, todo esse conjunto de definições de vida só faz confirmar a importância do movimento inicial que gerou o primeiro passo, no sentido de se inscrever num programa de pós-graduação. A ambas as amigas me ofereci para estar ouvindo-as nessas dificuldades. Eu estava convencida de que poderia ajudálas a sair dos impasses caso viessem e se sentassem na cadeira de meu escritório. Eu estava convencida de que elas poderiam ter reavivado o próprio desejo que um dia definiram como sendo o de realizar um trabalho intelectual em torno de um problema que lhes fizera sentido. Se lhes conto tudo isso é para introduzi-los de modo mais vivo ao que penso sobre alguns impasses que estão em jogo no processo de realização de um trabalho de tese. Quanto ao que se passou com a primeira amiga, sua ação imediata foi organizar todo seu material de trabalho: entre suas várias atividades e compromissos de cursos, determinou quais deveria priorizar para, então, dedicar-se a um trabalho por vez. Todavia, sair das questões pelas quais se embrenhara não é uma tarefa que se possa realizar em tempo curto. Os caminhos para dar conta de um projeto de revisão de vida, em que a pós é apenas 28 o eixo vivo em torno do qual se processa essa reestruturação, implicam em uma passagem de uma posição subjetiva a outra. Essa transformação nem sempre é uma tarefa que se possa concluir em tempo curto e sem se abrir para as indagações próprias a um processo de análise pessoal. Quanto à segunda amiga, foram cerca de três encontros em que ela foi falando sobre qual era a questão que queria desenvolver em seu trabalho, como havia surgido a questão. E, assim falando, ia reconectando o problema da tese com suas inquietações surgidas quando ainda era estudante na universidade, e até mesmo antes. Suas próprias experiências pessoais podiam mostrar que as questões de abordagem do outro frente a uma queixa de dor ou mal-estar eram lidas de modo singular e não segundo a ortodoxia curativa, oficial, digamos assim. Ela é médica. Ao ir falando reencontrou também seus mestres inspiradores: um professor, um curador popular e sua avó. Todos eles foram pessoas admiradas e se tornaram importantes em sua vida, com efeitos decisivos para suas identificações, ao mesmo tempo que instigantes de sua curiosidade. Esta amiga, com a ajuda de outras tantas pessoas que a acompanham interessadamente, retomou seu trabalho e está cumprindo seus prazos. Antes, porém, dos encontros com estas duas pessoas que possibilitaram minha reaproximação com este assunto, pude acompanhar pacientes que me procuravam como psicanalista e que es- Pulsional Revista de Psicanálise tavam realizando suas teses. Vou falar de dois deles, dada a concomitância dos tempos de elaboração da tese e análise. Ambos vinham de outros Estados do Brasil e ambos da área de Exatas. Um deles, que chamarei de “A.”, vinha de devastadora experiência de separação em seu casamento, sendo que a possibilidade de ingressar num programa de pós-graduação se constituía numa saída honrosa, digamos. Este programa lhe permitia deixar sua cidade e meio social e ainda galgar um grau, o que significava para ele tingir com outras tintas sua experiência que fora de grande humilhação, e assim poder elaborá-la, acrescentando alguns créditos narcísicos àquilo que estava sendo para ele uma prova de exclusão e rebaixamento. “A.”, ao procurar um encontro comigo, vinha buscar um linimento para continuar sua vida. Vinha também para procurar entender esta coisa não digerível por ele que era a mulher ter pedido a separação. Tudo o que queria era poder recompor seus estilhaços para voltar a sua região como quem deu a volta por cima. E aí entrava a execução do trabalho de tese, a obtenção de seu título. Esta era a trilha por onde deslizava o sentido da tese e pós-graduação. Para esta pessoa, porém, a execução de um trabalho próprio não era um problema. Trabalhava com afinco, sem grande paixão pelo que ia construindo, e portanto sem grandes impasses na elaboração do trabalho. Suas dificuldades iam aparecer lá nas relações com o orientador, com colegas e com a pró- Tese: um texto próprio pria apreensão e domínio da cidade. Mas embora não tratassem diretamente sobre o fazer da tese e as construções de seu trabalho, era evidente que suas sessões eram fundamentais para a manutenção de seu ritmo de trabalho, para a manutenção de seu projeto de reerguimento narcísico. Sua namorada, porém, de quem eu apenas podia saber por referências dele mesmo, “não trabalhava”. Tendo sido ela quem veio primeiro para São Paulo, trouxe-o nas asas da paixão... O projeto dela era ele, que como na quadrilha de Drummond, o dele era outro. Bem, cito esse casal para que de algum modo possamos marcar que aquilo que vem a ser bastidores para o orientador está atravessado por outros tantos projetos e teses existenciais. Muitas vezes o abandono, a desistência do projeto tese vem do fracasso desses outros campos em que fervilham com mais intensidade as questões do ser desses sujeitos. Penso que o sistema de vinculação do pós-graduando o implicará subjetivamente de modo mais ou menos intenso no que diz respeito à escolha do tema da tese e seu modo de desenvolvê-lo. Nestes últimos casos que acabo de relatar, o orientando entra no projeto de tese do orientador, e junto com outros tantos colegas, de níveis e procedências variadas, participa de uma parte do assunto. Talvez seja até uma característica do particular campo de trabalho ao qual se dedicavam. Pelo que pude perceber, há um trabalho braçal bastante 29 grande de elaboração de cálculos e de escolha de modos de fazê-los, mas de rara criação de significados. Todavia, certamente, a criação de sentido também terá a ver, e muito, com a mobilização do sujeito em questão para entregar-se e se dar conta do que lhe interroga, do que o inquieta. O último caso que quero trazer é também de alguém de Exatas, que tinha no projeto de tese todo seu investimento de vida. Nada era mais importante para ele, que chamarei de “B”, do que a realização de seu trabalho. Torturava-se com suas dúvidas quanto à competência intelectual, avaliando-se segundo o critério de que o saber era o conhecimento acumulado pela memória. Assustava-se bastante porque quando ia ler sobre um assunto este lhe parecia como novo, embora já o tivesse estudado muito como matéria básica de sua graduação. Já não confiava até em sua capacidade de realização de “suas contas”, como as chamava. Assustava-se porque fora sua garra para o estudo o que sempre o animara na vida. Não vira casamento, filhos que nasciam e cresciam a sua volta. Era só estudar, estudar e estudar. Reconhecia que nem sempre isso significava aprender, saber, mas ele estava sempre lá, estudando. E agora este sistema falhava: não estava mais conseguindo ficar diante dos livros. Mesmo que estivesse tudo favorável para que o fizesse, ficando por exemplo protegido das solicitações da vida familiar, sabia que na verdade seu estudo não passava de 30 uma encenação: não se detinha mais para estudar como antes. Tendo sido muito pobre em criança, participou do sustento da família desde muito cedo vendendo doces em estação rodoviária de sua pequena cidade. Passou também uma juventude de exclusão social. Malvisto ao freqüentar o clube da cidade e querer namorar a menina rica do lugar, resolveu um dia que ia sair da cidade e estudar. E assim fez. Era bom em matemática... passou num concurso para emprego público, onde trabalhava de dia e no restante do tempo estudava. O sofrimento deste homem era muito grande e ele veio me procurar, coisa que jamais pensara fazer, quando já estava quase a ponto de “cometer uma loucura”, como dizia, e deixar tudo. Aterrorizava-se com essa possibilidade pois já fizera isso uma vez quando há alguns anos antes viera sozinho para SP, sem a família, e abandonara seu programa de pós. Mas agora não queria repetir este procedimento, pois seria decretar sua falência. Então, deixou-se cair em análise (Nem toda falência é desastrosa!...). Bem, para abreviar, esta pessoa terminou seu trabalho de tese como resultado de todo seu empenho, com nota 9 vírgula alguma coisa, mas ainda reclamando de que não fora 10... Certamente, algum tempo mais de análise não lhe faria mal, liberando-o talvez dessa convicção de que é aí, nesse patamar, que pode se reconhecer como sendo ele mesmo. Livrar-se dos desíg- Pulsional Revista de Psicanálise nios marcados por sua mãe, mulher muito forte, severa e ambiciosa, sem perigo de cair no destino de seu pai, homem fraco, sem projeção e sem sucesso. Se falo de “B.” aqui, bem como das outras pessoas, é porque todas elas me deram a oportunidade para começar a pensar na questão da realização da tese, da construção desse trabalho, com maior riqueza de detalhes e possibilidades do que seria pensar apenas sobre meu próprio mestrado. NA ESCOLHA, UMA DECISÃO Os nomes orientador/orientando guardam algo de um par em que um dos elementos é o que age – orientador: o sufixo “-or”, do latim ore, ofício, profissão, agente, instrumento de ação – e o outro, o que recebe a ação, o orientando. Trata-se de uma nomenclatura que, bem sabemos, não retrata bem a experiência de ocupar estas posições. Todo orientador já foi orientando um dia e ascendeu a esta posição mais como parte de sua carreira acadêmica do que necessariamente por seu talento ou escolha. Trata-se de uma posição difícil, por vezes objeto de demandas acima, muito acima, daquelas que exerce corriqueiramente como professor. O professor deve dar conta de um saber organizado e o melhor deles ainda deixará muitas questões a serem respondidas. Tocará a seus alunos, criará paixões por saber, mas não estará tão implicado no percurso subjetivo do outro quanto o orientador. Com este o Tese: um texto próprio orientando formará um par que terá uma tese como produto. O orientando, por sua vez, deve formular uma questão sobre a prática ou a teoria, que deverá ser desenvolvida segundo os padrões acadêmicos. E é aí que tudo acontece. A formulação do problema, a constituição do objeto de estudo e a própria metodologia são escolhas que implicam o sujeito. São atos que devem estar assentados sobre o desejo, ou nada acontece. O orientando escolhe o problema de tese e o orientador quase na mesma toada. Ou seja, é necessário que haja transferência para o começo de toda esta história. Trata-se da transferência que está presente em qualquer relação social, e que diz respeito àquilo que produz as condições para a autorização para que alguém nos influencie, interfira em nossos pensamentos (o caráter de sugestionabilidade da transferência), tornando uma interferência desejada. É uma escolha onde há confiança, respeito, exposição e entrega – componentes presentes à constituição de qualquer parceria para fundar algo, fazer evoluir um projeto. A escolha pelo orientador é uma escolha de cumplicidade nesta busca de sentido para algo que interroga o orientando. Ela será amorosa, porém sempre vigilante, delicada. Mesmo quando a possibilidade de escolha não é dada formalmente, a construção da relação será atravessada pela transferência e pelo estilo de um e de outro parceiro. 31 Qual a natureza da transferência de que falo? Podemos dizer que por vezes há uma pré-escolha, em que o orientando prefigura o orientador a partir de seu próprio estilo de produção e do problema que vai ser desenvolvido na tese. Será alguém com quem possa “trabalhar”, isto é, que possa acolher e decifrar seu interesse. Alguém que supostamente sabe daquilo que ele quer saber. Ou, por outro lado, a escolha poderá recair sobre aquele orientador que vai incomodar o menos possível em sua própria exploração (e que também não vai competir, controlar, imiscuir-se em demasia). Nestes casos o orientando define que seu caminho tem que ser feito sozinho e tem que ignorar o parceiro. É importante saber que isso acontece. Diria que é sábio poder ausentar-se do lugar de orientação estritamente falando. Haverá outros casos em que a solicitação pela orientação será tão intensa que dela será preciso ausentarse também para que, criando o vazio, possa surgir um resultado qualquer, mas próprio. Tenho grande tentação de dizer que o orientador precisa escutar o orientando para poder situá-lo em relação a seu objeto tese, podendo então orientá-lo, acompanhando a trilha do próprio desejo do orientando. Porém, não posso deixar de reconhecer que talvez seja pedir demais a quem exerça esta função. As dificuldades em sustentar este lugar já aparecem nas queixas de orientandos de que o orientador deixou para ler na 32 última hora embora a cobrança para entrega do trabalho fosse bastante severa, ou casos em que o orientador perde o trabalho do orientando, esquece encontro marcado etc. Enfim, numerosos sinais de recusa dos encargos da função, que devem até ser acolhidos com muita tolerância pois são, por vezes, movimentos de acomodação absolutamente necessários. O orientador, como um dos pólos do par, estará sujeito às contratransferências, ou seja, às suas reações à pessoa do orientando e mais particularmente à transferência dele. O espaço intersubjetivo que se cria contará com as transferências e contratransferências de ambos os parceiros. Ao orientador a escolha se abre para a formulação do estilo de orientação, já que a entrada nesse lugar de orientador é uma função que deve assumir no decorrer de sua carreira acadêmica. O estilo será o que lhe seja de maior conveniência, entendendo-se isso de maneira ampla. Do lado da positividade, tem algo de paternidade, de mestria, de acompanhante. Qualquer que seja esta variação, uma vez assumida, a orientação terá dois momentos públicos: a qualificação e a defesa da tese. São momentos em que se torna visível a participação do orientador, onde sua orientação também é posta em avaliação. Nestes momentos se destitui de seu lugar de saber e ouvirá de outros estranhos ao par inicial, comentários sobre o produto. As mesas de qualificação e defesa, sua montagem e acon- Pulsional Revista de Psicanálise tecimento são aqui um caso à parte. Estes momentos marcam, entretanto, o rito de passagem para o orientando, momento em que é atribuído o título. Teríamos que pensar como anda este rito, já que é um acontecimento acompanhado de valor, de reconhecimento social. Para a construção de estilo de orientação vão contar as figuras de identificação do orientador. Desde as primeiras marcas impressas pelos primeiros “orientadores”, pai/mãe, até as de professores ou figuras que foram importantes ao longo de sua vida. E aqui caberia todo um desenvolvimento dos conceitos de identificação, de Ideal do Eu e de transferência, nos quais não vou me deter por ora. Acredito, entretanto, que a ação do orientador poderá implicar muitas vezes em colocar prazo, telefonar para o orientando cobrando compromissos de trabalho, indicar ou interditar leituras, mas também acolher garatujas e balbucios. Genericamente se poderia dizer que as cobranças, sendo na linha de manterem o desejo vivo, e dentro de um quadro de transferência positiva, não produzirão resistências... Por outro lado, todo escrito será bemvindo, mesmo que seja jogado fora, porque, de qualquer modo, o seu destino é sempre a sua própria superação. A escolha do orientador implica numa autorização para os atos que façam fluir o desejo de saber, mesmo que para isso tenha que lutar com resistências e limitações. Tese: um texto próprio O engajamento do orientador é fazer com que o orientando mantenha vivo o desejo de realização da tese, e isso deve seguir os parâmetros institucionais de prazo e forma. O “a mais” será dado pelas descobertas que acontecem no decorrer do processo (que nem sempre recebem registro, mas podem ser justamente aquele resto que vai manter o candeeiro aceso) e talvez pela qualidade do trabalho apresentado. Mesmo quando o orientador pretenda evitar “sofrer” sua implicação na função de orientador, armando esquemas de engajamento burocrático, no sentido em que pretende se ater apenas aos prazos e resultados, na verdade estará repetindo o que sempre se tentou fazer e que por longo tempo foi dominante na epistemologia científica, que é afastar o sujeito do objeto do conhecimento acreditando que ao afastar a subjetividade afastará também toda fonte de erros e enganos. A esperança neste caso é de manter a sua função e o trabalho higienizados, isto é, livre das febres e contaminações do desejo. Mas não é porque não se queira saber deles que os teremos dominados, como bem mostrou Freud, mas correndo o risco de sabê-los, de considerá-los como existentes, é que se pode encontrar meios de convivência com a sua verdade. O TEXTO PRÓPRIO Há casos em que a busca por um mestrado ou um doutorado, além de cumprir uma exigência de maior capacitação 33 para o mercado significa, ao mesmo tempo, uma oportunidade para o exercício do pensamento autônomo, mesmo que este exercício traga as marcas da academia. Para a grande maioria dos pós-graduandos a elaboração de uma tese talvez seja a primeira experiência de construir um texto próprio. O orientando deve formular uma questão sobre a prática ou a teoria, que deverá ser desenvolvida segundo os padrões acadêmicos. A formulação do problema, a constituição do objeto de estudo e a própria metodologia escolhida serão narrados sob a forma de tese acadêmica. Ricardo Piglia, escritor argentino que estuda a relação entre psicanálise e literatura, escreveu o artigo “Melodrama do inconsciente” (1998: 110-114). Dele trago alguns extratos que nos permitem pensar sobre o aspecto enigmático da criação de palavras. Diz ele: A relação entre psicanálise e literatura é, sem dúvida, tensa e conflituosa. Em primeiro lugar, os escritores sempre sentiram que a psicanálise falava de algo que eles já conheciam e sobre o que era melhor guardar silêncio. Faulkner, Nabokov, Borges (entre outros) observam que o psicanalista quer interferir naquilo que os escritores, desde Homero, têm convocado com essa rotina cerimoniosa com que se convocam as musas, em relações muito frágeis e sempre tocadas pela graça... Trata-se de uma relação impossível de se estabelecer deliberadamente, uma situação de espera sutil. Piglia está falando aqui da convocação 34 do sujeito a um lugar extraordinário, tirando-o de sua experiência quotidiana. E mais adiante prossegue: ... Em literatura, tende-se a ver a tragédia como um gênero que estabeleceu uma tensão entre o herói e a palavra dos deuses, do oráculo, dos mortos, umas palavras vindas do outro lado, dirigida ao sujeito, mas enigmático: é claro para os demais, mas ele não o entende... A tragédia, como forma, é essa tensão entre a palavra superior e um herói que tem uma relação pessoal com essa palavra. E é desse instrumento narrativo, o da tragédia, que Freud se serve, nos diz Piglia, para construir sua narrativa científica. A construção de um trabalho de tese deve ser tomada em toda sua complexidade. A pergunta que dá partida para a elaboração de uma tese se origina muitas vezes de um sentido que falta: por que é mesmo que tal coisa é assim? E se nos comprometemos com esta pergunta, não nos resta outra alternativa senão ir atrás dela. Uma tese, quando criativa e transformadora, pode ser uma dessas oportunidades para construir um novo sentido. Freqüentemente, fazer uma tese é um trabalho que envolve grandes investimentos em termos de tempo e espaço que ela ocupa na vida de uma pessoa. A escolha do tema, o modo de produzi-lo, a escolha do orientador são momentos pontuais que demonstram a implicação do sujeito de desejo. São Pulsional Revista de Psicanálise escolhas feitas pelo que tem a ver com a pessoa, e aí é a sua singularidade que governa e transparece. Então, o que é que torna próprio um texto? É este apelo enigmático do oráculo, dos mortos, umas palavras vindas do outro lado, dirigidas ao sujeito mas que ele não entende... Lacan diria que se trata do significante da falta que faz mover o sujeito em busca de um sentido. Há uma inscrição logo à entrada da exposição de Dali, atualmente no MASP (julho, 1998) que diz: “Ninguém faz vários quadros mas somente um, que se persegue durante toda a vida através de diferentes telas, que são como imagens do filme da imaginação”. Esta afirmação deve ser verdade para qualquer expressão criativa, mesmo quando se trata de uma narrativa científica. Freud tem pelo menos dois textos em que estuda os temas que nos interessam e que vale a pena tomar para nossas reflexões: “Delírios e sonhos na ‘Gradiva’ de Jensen” (1907 [1906]) e “Escritores criativos e devaneios” (1908 [1907]). Lembrar que escrevera em 1900 A interpretação dos sonhos, em 1901 “Psicopatologia da vida cotidiana” e, em 1905, “Os chistes e sua relação com o inconsciente”. O artigo sobre o livro Gradiva foi o primeiro estudo em que Freud se utiliza de uma obra literária para demonstrar as leis da psicanálise. Jensen é um escritor alemão de pouca expressão em sua época, contemporâneo a Freud. Seu texto, mais tarde, será apontado como precursor do surrealismo pela revista Littérature, em Tese: um texto próprio 1919, fundada por André Breton e outros, pois antecipa estratégias que serão amplamente buscadas como fontes para a criação da obra artística, entre elas a valorização do sonho como fonte de inspiração. O termo “Gradiva” batizará algumas das iniciativas dos Surrealistas, como o nome dado à Galeria de André Breton, em 1937, palco de muitos acontecimentos artísticos da época. Este nome servirá de referência para indicar o estranho, o maravilhoso que atrai e que é misterioso, desconhecido, mas que “brilha ao avançar”. Isto é, aquilo que se revela no transcurso da busca. Do Surrealismo interessa-me aqui a valorização da descoberta que se apóia no “objeto encontrado”, ou seja, o objeto que faz despertar a atração irresistível do nunca visto. Trata-se, para os surrealistas, de um objeto (geralmente artesanal, fora de moda) cuja necessidade prática não é evidente e cuja origem é impenetrável. O impulso por possui-lo é de caráter passional e capaz de fornecer uma solução surpresa a um problema até aí insolúvel. A psicanálise dirá que esse objeto é um objeto reencontrado, pois algo dele tem a ver com as marcas do primeiro objeto de satisfação, que é mítico, que foi perdido e que deixou a marca da falta. É esta falta que gera o desejo e faz movimentar a busca. Freud nos fala, no texto da “Gradiva”, de um duplo grupo de determinantes das fantasias e ações do personagem Hanold, que derivam de duas fontes diferentes. Uma delas era manifesta para 35 Hanold, a outra vai sendo revelada ao longo da narrativa com a decisiva ajuda de Zoe/Gradiva. Uma delas procedia em sua totalidade do círculo de idéias da ciência arqueológica, a outra surgia das lembranças infantis reprimidas que se tinham tornado ativas e das pulsões a elas ligadas (...) A motivação científica servia de pretexto para a motivação inconsciente, estando a ciência inteiramente a serviço da fantasia e do delírio. Entretanto não se deve esquecer que os determinantes inconscientes nada conseguem realizar sem satisfazer simultaneamente os determinantes científicos conscientes (1907: 58). O segundo artigo, “Escritores criativos e devaneios” (1908), foi originalmente uma conferência pronunciada em fins de 1907, nos salões de um editor e livreiro que era membro também da Sociedade Psicanalítica de Viena, onde Freud faz interessante exame da fantasia e seu papel na criação. Freud vai dizer que o escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério, no qual investe grande quantidade de emoção e sabe que, apesar disso, se trata de um jogo imaginativo. O brincar da criança é determinado por desejos, e assim é com o escritor. Uma poderosa experiência no presente pode despertar lembranças de uma experiência anterior (geralmente da infância), a qual dá o mote para o desejo que se realiza na obra de criação. O passado, o presente e o futuro estão entrelaçados pelo fio do desejo que os une (p. 153). 36 E aqui creio que vale a pena relembrar algumas idéias sobre a questão do sujeito do conhecimento que foram trabalhadas por Lacan, com a ajuda da lingüística e da antropologia. Para isso recorro ao texto “O piropo: psicanálise e linguagem”, capítulo do livro Percurso de Lacan, uma introdução, de Jacques-Alain Miller (1987) e algumas das idéias de Anika Lemaire em “Jacques Lacan, uma introdução” (1979). Lacan vai retomar a questão da introdução do sujeito na ciência realizada por Descartes. Este filósofo do século XVII procura estabelecer a garantia de um pensamento verdadeiro através do trabalho com as dúvidas, com o objetivo de reduzir toda a possibilidade de se cair em premissas falsas, enganosas. O sujeito que pensa é o reduto final onde Descartes encontra a garantia de verdade livre de qualquer engano: penso, logo existo. Mas a premissa “eu penso” só pode surgir articulada ao sujeito que pensa o pensar, o que permite então que se fale de um sujeito dividido, aquele que a lingüística vai apontar como o sujeito do enunciado e o da enunciação. Cada palavra pode ser tomada em sua estrutura de significado e significante, e então tornada um verdadeiro tesouro de significados que surgirão a partir da singularidade de cada pessoa e suas experiências subjetivas. De tal modo é assim que há um intervalo entre o falar e o querer dizer. Significante e significado não são paralelos, homólogos, e o efeito de significado é Pulsional Revista de Psicanálise criado pelas permutações, pelos jogos dos significantes. O sentido surge fundamentalmente da substituição de um significante por outro. Só há um novo significado quando há um novo significante. Deve-se atentar para o fato de que o original de uma descoberta é a substituição significante. Basta, para dizê-lo simplesmente, uma palavra no lugar de outra para que tenhamos novo sentido. Este “basta” doura um pouco a pílula pois a barra que separa significado de significante é passível de ser mantida qual uma atadura fazendo congelar a significação ao significante – são as resistências de que nos fala Freud ou a força da insistência do desejo, em Lacan... Dar livre curso a essas invenções significantes, libertando-se de uma relação significado/significante preestabelecida, é o que fazem os escritores e poetas, como também um analisante quando pode se entregar à associação livre. E assim é também com qualquer texto ao qual se esteja pessoalmente dedicado, como é o caso de uma tese. Os lingüistas mostram que todas as palavras nascem de uma experiência subjetiva e que sempre há uma distância entre falar e querer dizer, pois embora haja uma grande quantidade de palavras em uma língua, ao mesmo tempo sempre poderão nos faltar palavras para o que queremos dizer, ou a palavra que temos não diz exatamente o que queremos. A experiência da criação pode ser muito angustiante nos momentos de Tese: um texto próprio encontro com um vazio de significante, quando há algo por ser dito mas que fica como se não tomasse forma, não se consubstanciasse. É o momento do afastamento em tensão – afastar-se para dar chance de que, por outros caminhos, se possa chegar lá. Lá onde? Ao ainda não articulado, não dito por aquele singular sujeito. É por isso que a experiência de criação é tão próxima da loucura, pois é onde ficam suspensas as palavras e se é exposto ao real indizível. O sujeito que fala não é amo e senhor do que diz. Na medida em que fala, em que pensa que utiliza a língua, é a língua que, na realidade, o utiliza: na medida em que fala ou escreve diz sempre mais do que quer e, ao mesmo tempo, diz sempre outra coisa. (...) A metáfora e a metonímia não deixam de entrecruzar no discurso, e quando falamos somos sempre levados além de nós mesmos... (1987: 33). Trata-se da experiência da idéia que toma vida própria, sendo que os caminhos são dados ao fluir dela. Na medida em que falamos, somos de fato falados, e isto não é outra coisa senão o inconsciente. Não há linguagem, estritamente falando, que se produza sem que o sujeito esteja já aí. Artigo recebido em dezembro/2000 Tradução e revisão final recebida em janeiro/2001 37 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS A LEXANDRIAN , Sarane. O surrealismo. Trad. Adelaide Penha e Costa. São Paulo: Verbo/Edusp, 1976. Ilust. Coleção artes plásticas, p. 280. CHALMERS, Vera Maria. A máquina sonhar. In Almanaque, Cadernos de Literatura e Ensaio. n o 12, São Paulo: Brasiliense, 1981. FREUD, Sigmund [1907/1906]. Delírios e sonhos da “Gradiva” de Jensen. E.S.B. Rio de Janeiro: Imago, 1980. vol. IX, pp. 17-96. ____ [1908/1907]. Escritores criativos e devaneios. E.S.B. Op. cit. vol. IX, pp. 149-162. LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. 3 a ed. Lisboa: Moraes, 1976. 707 págs. LEMAIRE, Anika. Jacques Lacan, uma introdução. Rio de Janeiro: Campus, 1979. 317 págs. MILLER, Jacques-Alain. O piropo: psicanálise e linguagem. 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