Um estudo autobiográfico, Inibições, sintomas e ansiedade, A
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Um estudo autobiográfico, Inibições, sintomas e ansiedade, A
Um estudo autobiográfico, Inibições, sintomas e ansiedade, A questão da análise leiga e outros trabalhos VOLUME XX (1925-1926) Dr. Sigmund Freud UM ESTUDO AUTOBIOGRÁFICO (1925 [1924]) NOTA DO EDITOR INGLÊS SELBSTDARSTELLUNG (a) EDIÇÕES ALEMÃS: 1925 Em Grote’s Die Dedizin der Gegenwart in Selbstdarstellungen, 4, 1-52 (Leipzig: Meiner.) 1928 G.S., 11, 9-82. 1934 Sob a forma de livro, com o título Selbstarstellung. Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag. 52 Pp. 1936 2ª ed. Viena: Internationaler Psychoanalytischer Verlag. 107 Pp. Com novas notas de rodapé e outro assunto adicional incluindo ‘Nachschrift 1935’, (ver adiante). 1946 Londres: Imago Publishing Co. Reimpressão da anterior com ilustrações diferentes. 107 Pp. 1948 G.W., 14, 33-96, com as novas notas de rodapé da 2ª ed., mas sem o outro assunto adicional. (Quanto a ‘Nachschrif 1935’, ver adiante.) 1935 ‘Nachschrift 1935’. Almanach 1936, 9-14. 1936 Em Selbstdarstelung, 2ª ed. (ver acima), 102-7. 1946 Na reimpressão de Londres da anterior. 1950 G.W., 16, 31-4. (b) TRADUÇÃO INGLESA: An Autobiographical Study 1927 Em The Problem of Lay-Analyses. Nova Iorque: Brentano. Pp. 189-316.(Trad. de James Strachey.) 1935 Londres: Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis, 137 Pp. Mesma tradução, revista a partir da 2ª ed. alemã, com novas notas de rodapé e outro assunto adicional, incluindo ‘Postscript (1935)’. Autobiography 1935 Nova Iorque: Norton. 153 Pp. Como a anterior, mas com título diferente. A presente tradução inglesa é uma versão modificada da publicação em 1935. Como Freud explica em seu Pós-Escrito,ver em ([1]), a tradução inglesa dessa obra, quando publicada pela primeira vez nos Estados Unidos. em 1927, foi incluída no mesmo volume que seu exame da ‘análise leiga’; mas o Estudo Autobiográfico não foi mencionado nem na página de rosto nem na capa externa do livro. Quando, oito anos depois, um novo editor norte-americano se encarregou da obra, sugeriu a Freud que ela devia ser revista e atualizada. Assim o novo material apareceu em inglês antes de sua publicação em alemão. O Volume XI dos Gesammelte Schriften, publicado em 1928, naturalmente só traz o texto da primeira edição. O Volume XIV das Gesammelte Werke, publicado em 1948, apresenta uma reprodução fotográfica daquela versão, juntamente com as novas notas de rodapé que foram acrescentadas à segunda edição. Infelizmente, contudo, desprezou-se o fato de que considerável número de modificações e acréscimos tinham sido feitos no verdadeiro texto da obra. Estes, conseqüentemente, não foram incluídos nas Gesammelte Werke, embora naturalmente sejam encontrados nas edições do livro lançadas separadamente (1936 e 1946). Essas omissões são observadas na tradução inglesa que se segue. Soubemos por Ernest Jones (1957, 123) que a obra principal foi escrita em agosto e setembro de 1924, havendo na realidade surgido em fevereiro de 1925; o Pós-Escrito foi concluído por volta de maio de 1935. Esta obra é geralmente, e de maneira bastante desorientadora, mencionada como ‘Autobiografia’ de Freud. O título da série para a qual originalmente constitui contribuição - Die Medizin der Gegenwart in selbstdarstellungen (que poderia ser traduzido por ‘Medicina Contemporânea em Auto-Retratos’) - revela com bastante clareza que o objetivo de seus organizadores ( foi publicada em quatro volumes, 1923-5, com colaborações de cerca de vinte e sete autoridades médicas de renome ) era apresentar um relato da história recente da ciência médica feito por aqueles que haviam desempenhado um papel de destaque na sua elaboração. Assim o estudo de Freud é essencialmente um relato de sua participação pessoal no desenvolvimento da psicanálise. Como ele próprio ressalta no parágrafo inicial, ele estava inevitavelmente revendo muito do que já tinha sido tratado em seu artigo ‘A História do Movimento Psicanalítico’ (1914d), cerca de dez anos antes. Não obstante, como um confronto entre as duas obras revelará, sua disposição de ânimo então era bem diferente. As controvérsias que haviam impregnado de exacerbação o artigo mais antigo tornaram-se agora insignificantes e ele pôde apresentar um relato frio e inteiramente objetivo da evolução dos seus pontos de vista científicos. Aqueles que desejam a história de sua vida pessoal devem, mais uma vez, ser encaminhados aos três volumes da biografia de Ernest Jones. UM ESTUDO AUTOBIOGRÁFICO I Vários dos colaboradores desta série de ‘Estudos Autobiográficos’ começaram expressando suas apreensões pelas dificuldades inusitadas da tarefa que empreenderam. As dificuldades no meu caso são, assim penso, ainda maiores pois mais de uma vez publiquei artigos nos mesmos moldes que o presente, artigos que pela natureza do assunto têm tratado mais de considerações pessoais do que é habitual ou do que de outra forma teria sido necessário. Apresentei meu primeiro relato do desenvolvimento e do tema da psicanálise em cinco lições que pronunciei em 1909 na Clark University, em Worcester, Mass., para onde fora convidado a fim de assistir às comemorações do vigésimo aniversário de fundação daquela entidade. Só recentemente cedi à tentação de prestar uma contribuição de natureza semelhante a uma publicação coletiva norte-americana que aborda os primeiros anos do século XX, visto que seus editores haviam demonstrado seu reconhecimento quanto à importância da psicanálise, dedicando-lhe um capítulo especial. Entre essas duas datas surgiu um artigo, ‘A História do Movimento Psicanalítico’ [1914d], que, de fato, encerra a essência de tudo que posso dizer sobre a presente ocasião. Visto que não devo contradizer-me e como não tenho nenhum desejo de repetir a mim mesmo exatamente, devo esforçar-me por construir uma narrativa na qual atitudes subjetivas e objetivas, interesses biográficos e históricos, se combinem em uma nova proporção. Nasci a 6 de maio de 1856, em Freiberg, na Morávia, pequena cidade situada onde agora é a Tchecoslováquia. Meus pais eram judeus e eu próprio continuei judeu. Tenho razões para crer que a família de meu pai residiu por muito tempo no Reno (em Colônia), que ela, como resultado de uma perseguição aos judeus durante o século XIV ou XV, fugiu para o leste, e que, no curso do século XIX, migrou de volta da Lituânia, passando pela Galícia, até a Áustria alemã. Quando eu era uma criança de quatro anos fui para Viena e ali recebi toda minha educação. No ‘Gymnasium’ [escola secundária] fui o primeiro de minha turma durante sete anos e desfrutava ali de privilégios especiais, e quase nunca tive de ser examinado em aula. Embora vivêssemos em circunstâncias muito limitadas, meu pai insistiu que, na minha escolha de uma profissão, devia seguir somente minhas próprias inclinações. Nem naquela época, nem mesmo depois, senti qualquer predileção particular pela carreira de médico Fui, antes, levado por uma espécie de curiosidade, que era, contudo, dirigida mais para as preocupações humanas do que para os objetivos naturais; eu nem tinha apreendido a importância da observação como um dos melhores meios de gratificá-la. Meu profundo interesse pela história da Bíblia (quase logo depois de ter aprendido a arte da leitura) teve, conforme reconheci muito mais tarde, efeito duradouro sobre a orientação do meu interesse.Sob a influência de uma amizade formada na escola com um menino mais velho que eu, e que veio a ser conhecido político, desenvolvi, como ele, o desejo de estudar direito e de dedicar-me a atividade sociais. Ao mesmo tempo, as teorias de Darwin, que eram então de interesse atual, atraíramme fortemente, pois ofereciam esperanças de extraordinário progresso em nossa compreensão do mundo; e foi ouvindo o belo ensaio de Goethe sobre a Natureza, lido em voz alta numa conferência popular pelo professor Carl Brühlpouco antes de eu ter deixado a escola, que resolvi tornar-me estudante de medicina. Quando em 1873, ingressei na universidade, experimentei desapontamentos consideráveis. Antes de tudo, verifiquei que se esperava que eu me sentisse inferior e estranho porque era judeu. Recusei-me de maneira absoluta a fazer a primeira dessas coisas. Jamais fui capaz de compreender por que devo sentir-me envergonhado da minha ascendência ou, como as pessoas começavam a dizer, da minha ‘raça’. Suportei, sem grande pesar, minha não aceitação na comunidade, pois parecia-me que apesar dessa exclusão, um dinâmico companheiro de trabalho não poderia deixar de encontrar algum recanto no meio da humanidade. Essas primeiras impressões na universidade, contudo, tiveram uma conseqüência que depois viria a ser importante, porquanto numa idade prematura familiarizei-me com o destino de estar na Oposição e de ser posto sob o anátema da ‘maioria compacta’.Estavam assim lançados os fundamentos para um certo grau de independência de julgamento. Fui compelido, além disso, durante meus primeiros anos de universidade, a fazer a descoberta de que as peculiaridades e limitações de meus dons me negavam todo sucesso em muitos dos campos da ciência nos quais minha jovem ansiedade me fizera mergulhar. Assim aprendi a verdade da advertência de Mefistófeles: Vergebens, dass ihr ringsum wissenschaftlich schweift,Ein jeder lernt nur, was er lernen kann. Por fim, no laboratório de fisiologia de Ernst Brücke encontrei tranqüilidade e satisfação plena - e também homens que pude respeitar e tomar como meus modelos: o próprio grande Brücke e seus assistentes, Sigmund Exner e Ernst Fleischl von Marxow. Com o segundo, um homem brilhante, tive o privilégio de manter relações de amizade.Brücker confiou-me um problema para solucionar na histologia do sistema nervoso; consegui resolvê-lo para sua satisfação e levar o trabalho mais adiante por conta própria. Trabalhei nesse instituto, com breves interrupções, de 1876 a 1882, e geralmente se julgava que eu estava destinado a preencher a vaga de professor assistente que viesse a ocorrer ali.Os vários ramos da medicina propriamente dita, afora a psiquiatria, não exerciam qualquer atração sobre mim. Eu era realmente negligente em meus estudos médicos e somente em 1881, um tanto tardiamente, recebi o grau de doutor em medicina. O momento decisivo ocorreu em 1882, quando meu professor, por quem sentia a mais alta estima, corrigiu a imprevidência generosa de meu paiaconselhando-me vivamente, em vista de minha precária situação financeira, a abandonar minha carreira teórica. Segui seu conselho, abandonei o laboratório de fisiologia e ingressei no Hospital Geral como Aspirant [assistente clínico]. Logo depois fui promovido a Sekundararzt [médico estagiário ou interno], e trabalhei em vários departamentos do hospital, entre outros por mais de seis meses sob a orientação de Meynert,cujo trabalho e personalidade muito me haviam impressionado quando eu ainda era estudante. Num certo sentido, não obstante, permaneci fiel à linha de trabalho na qual originalmente me iniciara. O assunto que Brücke propusera para minhas pesquisas fora a medula espinhal de um dos peixes mais inferiores (Ammocoetes Petromyzon) e prossegui então até o sistema nervoso central. Justamente nessa época, as descobertas de Fleichsig sobre a não-simultaneidade da formação das bainhas de mielina lançavam luz reveladora sobre o curso intrincado de seus tratos. O fato de eu ter começado por escolher as medulas oblongas como assunto único e exclusivo do meu trabalho foi outro sinal da continuidade de meu desenvolvimento. Em completo contraste com o caráter difuso de meus estudos durante os primeiros anos de universidade, estava agora desenvolvendo uma inclinação para concentrar meus trabalhos exclusivamente em um único assunto ou problema. Essa inclinação tem persistido e desde então me levou a ser acusado de unilateralidade. Tornei-me tão atuante no Instituto de Anatomia Cerebral quanto o havia sido no de fisiologia. Alguns breves artigos sobre o curso dos tratos e das origens nucleares na medula oblonga datam desses anos de hospital, havendo Edinger tomado conhecimento de meus achados até certo ponto. Um belo dia Meynert, que me dera acesso ao laboratório mesmo durante as ocasiões em que eu na realidade não trabalhava sob sua orientação, propôs que eu devia dedicar-me inteiramente à anatomia do cérebro e prometeu passar-me suas atividades como conferencista, visto sentir-se velho demais para lidar com os métodos mais novos. Declinei dessa oferta, alarmado com a magnitude da tarefa; é possível também que eu já tivesse adivinhado que esse grande homem de modo algum se encontrasse favoravelmente inclinado a meu respeito.Do ponto de vista material, a anatomia do cérebro certamente não era melhor que a fisiologia, e, tendo em vista considerações pecuniárias, comecei a estudar as doenças nervosas. Havia naquela época, em Viena, poucos especialistas nesse ramo de medicina, o material para seu estudo estava distribuído por grande número de diferentes departamentos do hospital, não havia oportunidade satisfatória para aprender a matéria, e se era forçado a ser professor de si mesmo. Até mesmo Nothnagel que fora nomeado pouco tempo antes, por causa do seu livro sobre localização cerebral, não isolou a neuropatologia das outras subdivisões da medicina. A distância brilhava o grande nome de Charcot assim, formei um plano de em primeiro lugar obter uma designação como conferencista universitário [Dozent] sobre doenças nervosas, em Viena, e então dirigir-me a Paris para continuar meus estudos. No curso dos anos seguintes, enquanto continuava a trabalhar como médico estagiário, publiquei grande número de observações clínicas sobre doenças orgânicas do sistema nervoso. Gradativamente familiarizei-me com o terreno; fui capaz de situar o local de uma lesão na medula oblonga de maneira tão exata que o anatomista patológico não teve mais informação alguma a acrescentar, fui a primeira pessoa em Viena a encaminhar um caso para autópsia com um diagnóstico de polineurite aguda. A fama de meus diagnósticos e de sua confirmação post-mortem trouxe-me uma afluência de médicos norte-americanos, perante os quais pronunciei conferências sobre os pacientes do meu departamento numa espécie de pidgin-English.* Sobre as neuroses eu nada compreendia. Em certa ocasião, apresentei ao meu auditório um neurótico que sofria de dor de cabeça persistente como um caso de meningite crônica localizada; todos se levantaram imediatamente, revoltados, e me abandonaram, e minhas atividades prematuras como professor chegaram ao fim. À guisa de desculpas, posso acrescentar que isso aconteceu numa época em que maiores autoridades do que eu, em Viena, tinham o hábito de diagnosticar a neurastenia como tumor cerebral. Na primavera de 1885, fui nomeado conferencista [Dozent] de neuropatologia com base em minhas publicações histológicas e clínicas. Logo depois, como resultado de caloroso testemunho de Brücke, foi-me concedida umabolsa de estudos de considerável valor..No outono do mesmo ano empreendi a viagem até Paris. Tornei-me aluno [élève] na Salpêtrière, mas, como um dos numerosos alunos estrangeiros, dispensavam-me inicialmente pouca atenção. Certo dia, ouvi Charcot externar o pesar de que desde a guerra não tinha tido mais notícias do tradutor alemão de suas conferências, prosseguiu dizendo que ficaria satisfeito se alguém se encarregasse de verter o novo volume de suas conferências para o alemão. Escrevi-lhe oferecendo meus préstimos; ainda me recordo de uma frase da carta, no sentido de que eu sofria apenas de ‘l’aphasie motrice‘ e não de ‘l’aphasie sensorielle du français‘. Charcot aceitou a oferta, fui admitido no círculo de seus conhecidos pessoais, e a partir dessa época tomei parte integral em tudo que se passava na clínica. No momento em que escrevo estas linhas, grande número de trabalhos e artigos de jornais me chegam da França, dando provas de violenta objeção à aceitação da psicanálise e fazendo freqüentemente as asserções mais inexatas no tocante a minhas relações com a escola francesa. Li, por exemplo, que fiz uso de minha visita a Paris para familiarizar-me com as teorias de Pierre Janet e então fugir com o tesouro. Gostaria, portanto, de dizer explicitamente que durante toda a minha estada na Salpêtrière o nome de Janet nem sequer foi mencionado. O que mais me impressionou enquanto privei com Charcot foram suas últimas investigações acerca da histeria, algumas delas levadas a efeito sob meus próprios olhos. Ele provara, por exemplo, a autenticidade das manifestações histéricas e de sua obediência a leis (‘introite et hic dii sunt’) a ocorrência freqüente de histeria em homens, a produção de paralisias e contraturas histéricas por sugestão hipnótica e o fato de que tais produtos artificiais revelam, até em seus menores detalhes, as mesmas características que os acessos espontâneos, que eram muitas vezes provocados traumaticamente. Muitas das demonstrações de Charcot começaram por provocar em mim e em outros visitantes um sentimento de assombro e uma inclinação para o ceticismo, que tentávamos justificar recorrendo a uma das teorias do dia. Ele se mostrava sempre amistoso e paciente ao lidar com tais dúvidas, mas era também muito resoluto; foi numa dessas discussões que (falando de teoria) ele observou: ‘Ça n’empêche pas d’exister‘ um mot que deixou indelével marca em meu espírito. Sem dúvida, nem tudo o que Charcot nos ensinou naquela época é válido hoje: parte se tornou duvidoso, parte deixou definitivamente de resistir ao teste do tempo. Mas sobrou muita coisa que encontrou lugar permanente no acervo da ciência. Antes de partir de Paris, examinei com o grande homem um plano para um estudo comparativo das paralisias histéricas e orgânicas. Desejava estabelecer a tese de que na histeria as paralisias e anestesias das várias partes do corpo se acham demarcadas de acordo com a idéia popular dos seus limites e não em conformidade com fatos anatômicos. Ele concordou com esse ponto de vista, mas foi fácil ver que na realidade não teve qualquer interesse especial em penetrar mais profundamente na psicologia das neuroses.Quando tudo já havia sido dito e feito, foi a partir da anatomia patológica que seu trabalho havia começado. Antes de retornar a Viena, passei algumas semanas em Berlim, a fim de adquirir um pouco de conhecimentos sobre os distúrbios gerais da infância. Kassowitz que estava à frente de um instituto público de Viena para tratamento de doenças infantis, prometera encarregar-me de um departamento para doenças nervosas de crianças. Em Berlim, recebi assistência e uma amistosa recepção de Baginsky. No curso dos poucos anos seguintes publiquei, do Instituto Kassowitz, várias monografias de considerável vulto sobre paralisias cerebrais unilaterais e bilaterais em crianças. E por esse motivo, numa data ulterior (em 1897), Nothnagel me fez responsável pelo tratamento do mesmo assunto em seu grande Handbuch der allgemeninen und speziellen Therapie. No outono de 1886, fixei-me em Viena como médico e casei-me com a moça que ficara à minha espera numa distante cidade há mais de quatro anos. Posso agora retornar um pouco ao passado e explicar como foi a culpa de minha fiancée por eu ainda não ser famoso naquela jovem idade. Um interesse secundário, embora profundo, levara-me em 1884, a obter da Merck uma pequena quantidade do então pouco conhecido alcalóide cocaína e estudar sua ação fisiológica. Quando me achava no meio dessa tarefa, surgiu a oportunidade de uma viagem a fim de visitar minha fiancée, de quem eu estava afastado há dois anos. Rapidamente encerrei minha pesquisa da cocaína e contentei-me, em minha monografia sobre o assunto [1884e], em profetizar que logo seriam descobertos outros usos para ela. Sugeri, contudo, a meu amigo Königstein o oftalmologista, que ele devia investigar a questão de saber até que ponto as propriedades anestesiantes da cocaína eram aplicáveis em doenças dos olhos. Quando voltei de minhas férias, verifiquei que não fora ele, mas outro dos meus amigos, Carl Koller (então em Nova Iorque), com o qual eu também falara sobre a cocaína, quem fizera os experimentos decisivos em olhos de animais e os demonstrara no Congresso Oftalmológico de Heildelberg. Koller, portanto é, considerado, com justiça, o descobridor da anestesia local pela cocaína, que se tornou tão importante na cirurgia secundária; mas não guardo nenhum rancor de minha fiancée pela interrupção. Voltarei agora ao ano de 1886, época em que me estabeleci em Viena como especialista em doenças nervosas. Cabia-me apresentar um relatório perante a ‘Gesellschaft derAerzte’ [Sociedade de Medicina] sobre o que vira e aprendera com Charcot. Tive, porém, má recepção. Pessoas de autoridade, como o presidente (Bamberger, o médico), declararam que o que eu disse era inacreditável. Meynert desafiou-me a encontrar alguns casos em Viena semelhantes àqueles que eu descrevera e a apresentálos perante a sociedade. Tentei fazê-lo; mas os médicos mais antigos, em cujos departamentos encontrei casos dessa natureza, recusaram-se a permitir-me observá-los ou a trabalhar neles. Um deles, velho cirurgião, na realidade irrompeu com a exclamação: ‘Mas, meu caro senhor, como pode dizer tal tolice? Hysteron (sic) significa o útero. Assim como pode um homem ser histérico?’ Objetei em vão que o que desejava não era ter meu diagnóstico aprovado, mas ter o caso posto à minha disposição. Por fim, fora do hospital, deparei-me com umcaso de hemianestesia histérica clássica em um homem, e demonstrei-o perante a ‘Gesellschaft der Aerzte’ [1886s]. Dessa vez fui aplaudido, mas não adquiriram mais interesse por mim. A impressão de que as altas autoridades haviam rejeitado minhas inovações permaneceu inabalável; e, com minha histeria em homem e minha produção de paralisias histéricas por sugestão, vime forçado a ingressar na Oposição. Como logo depois fui excluído do laboratório de anatomia cerebral e como durante intermináveis trimestres não tive onde pronunciar minhas conferências, afastei-me da vida acadêmica e deixei de freqüentar as sociedades eruditas. Faz uma geração inteira desde que visitei a ‘Gesellschaft der Aerzte’. Qualquer um que deseje ganhar para subsistência com o tratamento de pacientes nervosos deve ser claramente capaz de fazer algo para ajudá-los. Meu arsenal terapêutico continha apenas duas armas, a eletroterapia e o hipnotismo; receitar uma visita a um estabelecimento hidropático após uma única consulta era uma fonte insuficiente de renda. Meu conhecimento de eletroterapia provinha do manual de W. Erb [1882], o qual proporcionava instruções detalhadas para o tratamento de todos os sintomas de doenças nervosas. Infelizmente, logo fui impelido a ver que seguir essas instruções não era absolutamente de qualquer valia e que o que eu tomara por um compêndio de observações exatas era meramente a construção de fantasia. Foi penosa a compreensão de que a obra do maior nome da neuropatologia alemã não tinha maior relação com a realidade do que um livro de sonhos ‘egípcio’ vendido em livrarias baratas, mas ajudou-me a livrar-me de outro fragmento de inocente fé na autoridade, da qual eu ainda não estava livre. Assim, pus de lado meu aparelho elétrico, mesmo antes de Moebius haver salvo a situação, explicando que os êxitos do tratamento elétrico em distúrbios nervosos (até onde havia algum) eram o efeito de sugestão por parte do médico. Com o hipnotismo o caso foi melhor. Enquanto ainda estudante, assistira a uma exibição pública apresentada por Hansen o ‘magnetista’ e notara que um dos pacientes em quem se fizera a experiência se tornara mortalmentepálido no início da rigidez cataléptica, e assim havia permanecido enquanto aquela condição havia durado. Isso me convenceu firmemente da autenticidade dos fenômenos da hipnose. Apoio científico foi logo depois dado a esse ponto de vista por Heidenhain, mas não impediu os professores de psiquiatria de declararem por muito tempo que o hipnotismo era não somente fraudulento como também perigoso, e de considerarem os hipnotizadores com desprezo. Em Paris vira o hipnotismo usado livremente como um método para produzir sintomas em pacientes, então removendo-os novamente. E agora nos chegava a notícia de que surgira uma escola em Nancy que fazia uso extenso e marcantemente bem-sucedido da sugestão, com ou sem hipnotismo, para fins terapêuticos. Ocorreu assim, como algo natural, que, nos primeiros anos de minha atividade como médico, meu principal instrumento de trabalho, afora os métodos psicoterapêuticos aleatórios e não sistemáticos, tenha sido a sugestão hipnótica. Isso implicou, naturalmente, em eu ter abandonado o tratamento de doenças nervosas orgânicas; mas isso foi de pequena importância, pois, por um lado, as perspectivas no tratamento de tais desordens em nenhum caso jamais eram promissoras, enquanto que, por outro lado, na clínica particular de um médico exercendo suas atividades numa grande cidade, a quantidade de tais pacientes era nada em comparação com as multidões de neuróticos, cujo número parecia ainda maior pelo modo como eles corriam, com seus males não solucionados, de um médico a outro. E, independente disso, havia algo de positivamente sedutor em trabalhar com o hipnotismo. Pela primeira vez havia um sentimento de haver superado o próprio desamparo, e era altamente lisonjeiro desfrutar da reputação de ser fazedor de milagres. Só depois é que iria descobrir os processos do método. No momento havia apenas dois pontos passíveis de queixa: em primeiro lugar, que eu não era capaz de hipnotizar todos os pacientes, e, em segundo, que fui incapaz de pôr os pacientes individuais num estado tão profundo de hipnose como teria desejado. Com a idéia de aperfeiçoar minha técnica hipnótica, empreendi uma viagem a Nancy, no verão de 1889, e passei ali várias semanas. Testemunhei o comovente espetáculo do velho Liébeault trabalhando entre as mulheres e crianças pobres das classes trabalhadoras. Eu era um espectador dos assombrosos experimentos de Bernheim em seus pacientes do hospital, e tive a mais profunda impressão da possibilidade de que poderia haver poderosos processos mentais que, não obstante, permaneciam escondidos da consciência dos homens. Pensando que seria instrutivo, persuadi uma de minhas pacientes a acompanhar-me até Nancy. Essa paciente era uma histérica altamente dotada, uma mulher bem-nascida, que me fora confiadaporque ninguém sabia o que fazer com ela. Pela influência hipnótica eu lhe tornara possível levar uma existência tolerável, e sempre fui capaz de tirá-la da miséria de sua condição. Mas ela sempre recaía após breve tempo, e em minha ignorância eu atribuía isso ao fato de que sua hipnose jamais alcançara a fase de sonambulismo com amnésia. Bernheim tentou então várias vezes provocar isso, mas ele também fracassou. Admitiu-me que seus grandes êxitos terapêuticos por meio da sugestão eram alcançados apenas em sua clínica hospitalar, e não com seus pacientes particulares. Tive muitas conversas estimulantes com ele, e comprometi-me a traduzir para o alemão umas duas obras sobre a sugestão e seus efeitos terapêuticos. Durante o período de 1886 a 1891, realizei poucos trabalhos científicos e não publiquei quase nada. Estava ocupado em estabelecer-me em minha nova profissão e em assegurar minha própria existência material, bem como a de uma família que aumentava rapidamente. Em 1891 apareceu o primeiro dos meus estudos sobre as paralisias cerebrais de crianças, escrito em colaboração com meu amigo e assistente, o Dr. Oskar Rie [Freud, 1891a]. Um convite que recebi no mesmo ano, para colaborar em uma enciclopédia de medicina levou-me a investigar a teoria da afasia. Esta na época estava dominada pelos pontos de vista de Wernicke e Lichtheim, que davam ênfase exclusivamente à localização. O fruto dessa indagação foi um pequeno livro crítico e especulativo, Zur Auffassung der Aphasien [1891b]. Agora, no entanto, devo revelar como aconteceu o fato de a pesquisa científica mais uma vez terse tornado o principal interesse de minha vida. II Devo complementar o que acabo de dizer, explicando que bem desde o início fiz uso da hipnose de outra maneira, independentemente da sugestão hipnótica. Empreguei-a para fazer perguntas ao paciente sobre a origem de seus sintomas, que em seu estado de vigília ele podia descrever só muito imperfeitamente, ou de modo algum. Não somente esse método pareceu mais eficaz do que meras ordens ou proibições sugestivas, como também satisfazia a curiosidade do médico, que, afinal de contas, tinha o direito de aprender algo sobre a origem da manifestação que ele vinha lutando para eliminar pelo processo monótono da sugestão. A maneira pela qual cheguei a esse outro processo ocorreu como se segue. Enquanto ainda trabalhava no laboratório de Brücke, eu travara conhecimento com o Dr. Josef Breuer que era um dos médicos de família mais respeitados de Viena, mas que também possuía um passado científico, visto que produzira vários trabalhos de valor permanente sobre a fisiologia da respiração e sobre o órgão do equilíbrio. Era um homem de notável inteligência e quatorze anos mais velho que eu. Nossas relações logo se tornaram mais estreitas e ele se tornou meu amigo, ajudando-me em minhas difíceis circunstâncias. Adquirimos o hábito de partilhar todos os nossos interesses científicos. Nessa relação só eu naturalmente tive a ganhar. O desenvolvimento da psicanálise, depois, veio a custar-me sua amizade. Não me foi fácil pagar tal preço, mas não pude fugir a isso. Mesmo antes de dirigir-me a Paris, Breuer me havia falado sobre um caso de histeria que, entre 1880 e 1882, ele havia tratado de maneira peculiar, o qual lhe permitira penetrar profundamente na acusação e no significado dos sintomas histéricos, isto, portanto, ocorreu numa época em que os trabalhos de Janet ainda pertenciam ao futuro. Ele por várias vezes me leu trechos da história clínica, e tive a impressão de que isto contribuía mais no sentido de uma compreensão das neuroses do que qualquer observação prévia. Tomei a determinação de informar Charcot a respeito dessas descobertas quando cheguei a Paris, e na realidade o fiz. Mas o grande homem não teve qualquer interesse pelo meu primeiro esboço do assunto, de modo que nunca mais voltei ao mesmo e deixei que fugisse de minha mente Quando do meu retorno a Viena, recorri mais uma vez à observação de Breuer e fiz com que ele me contasse mais alguma coisa sobre o caso. Apaciente tinha sido uma jovem de educação e dons incomuns, que adoecera enquanto cuidava do pai, pelo qual era devotamente afeiçoada. Quando Breuer se encarregou do caso, este apresentou um quadro variado de paralisias com contraturas, inibições e estados de confusão mental. Uma observação fortuita revelou ao médico da paciente que ela podia ser aliviada desses estados nebulosos de consciência se fosse induzida a expressar em palavras a fantasia emotiva pela qual se achava no momento dominada. A partir dessa descoberta, Breuer chegou a um novo método de tratamento. Ele a levava a uma hipnose profunda e fazia-a dizer-lhe, de cada vez, o que era lhe oprimia a mente. Depois de os ataques de confusão depressiva terem sido separados dessa forma, empregou o mesmo processo para eliminar suas inibições e distúrbios físicos. Em seu estado de vigília a moça não podia descrever mais do que outros pacientes como seus sintomas haviam surgido, assim como não podia descobrir ligação alguma entre eles e quaisquer experiências de sua vida. Na hipnose ela de pronto descobria a ligação que faltava. Aconteceu que todos os seus sintomas voltavam a fatos comovedores que experimentara enquanto cuidava do pai; isto é, seus sintomas tinham um significado e eram resíduos ou reminiscências daquelas situações emocionais. Verificou-se na maioria dos casos que tinha havido algum pensamento ou impulso que ela tivera de suprimir enquanto se encontrava à cabeceira de enfermo, e que, em lugar dele, como substituto do mesmo, surgira depois o sintoma. Mas em geral o sintoma não era o precipitado de uma única cena ‘traumática’ dessa natureza, mas o resultado de uma soma de grande número de situações semelhantes. Quando a paciente se recordava de uma situação dessa espécie de forma alucinatória, sob a hipnose, e levava até sua conclusão, com uma expressão livre de emoção, o ato mental que ela havia originalmente suprimido, o sintoma era eliminado e não voltava. Por esse processo Breuer conseguiu, após longos e penosos esforços, aliviar a paciente de seus sintomas. A paciente se recuperara e continuara bem, e de fato tornara-se capaz de executar trabalhos de importância. Mas na fase final desse tratamento hipnótico permaneceu um véu de obscuridade, que Breuer jamais levantou para mim, e não pude compreender por que mantivera por tanto tempo em segredo o que me parecia uma descoberta inestimável, em vez de com ela tornar a ciência mais rica. A questão imediata, contudo, é se era possível generalizar a partir do que ele encontrara em um caso isolado. O estado de coisas que ele descobrira pareceu-me ser de natureza tão fundamental que não pude crer que pudesse deixar de estar presente em qualquer caso de histeria, caso se tivesse provado ter ele ocorrido num caso isolado. Mas a dúvida só podia serresolvida pela experiência. Comecei então a repetir as pesquisas de Breuer com meus próprios pacientes e afinal, especialmente depois que minha visita a Bernheim, em 1889, me havia ensinado as limitações da sugestão hipnótica, não trabalhei em outra coisa. Após observar durante vários anos que seus achados eram invariavelmente confirmados em cada caso de histeria acessível a tal tratamento, e depois de haver acumulado considerável quantidade de material sob a forma de observações análogas às dele, propus-lhe que devíamos lançar uma publicação conjunta. De início ele objetou com vee- mência, mas por fim cedeu, especialmente tendo em vista que, nesse meio tempo, as obras de Janet haviam previsto alguns dos seus resultados, tais como o rastreamento de sintomas histéricos em fatos da vida do paciente e sua eliminação por meio da reprodução hipnótica in statu nascendi. Em 1893 lançamos uma comunicação preliminar, ‘Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos’, e em 1895 seguiu-se nosso livro, Estudos sobre a Histeria. Se o relato apresentado por mim até agora levou o leitor a esperar que os Estudos sobre a Histeria devem, em todos os pontos essenciais de seu conteúdo material, ser produto da mente de Breuer, é precisamente isto que sempre tenho sustentado, e aqui tem sido meu objetivo repetir isto. No tocante à teoria formulada no livro, fui em parte responsável, mas em uma medida que hoje não é mais possível determinar. Essa teoria foi de qualquer maneira despretensiosa e quase não ultrapassou a descrição direta das observações. Não procurou estabelecer a natureza da histeria mas apenas lançar luz sobre a origem de seus sintomas. Assim, dava ênfase à significação da vida das emoções e à importância de estabelecer distinção entre os atos mentais inconscientes e os conscientes (ou, antes, capazes de ser conscientes); introduziu um fator dinâmico, supondo que um sintoma surge através do represamento de um afeto, e um fator econômico, considerando aquele mesmo sintoma como o produto da transformação de uma quantidade de energia que de outra maneira teria sido empregada de alguma outra forma. (Esse segundo processo foi descrito como conversão.) Breuer referiu-se ao nosso método como catártico; explicou-se sua finalidade terapêutica como sendo a de proporcionar que a cota de afeto utilizada para manter o sintoma, que se desencaminhara e que, por assim dizer, se tinha tornado estrangulada ali, fosse dirigida para a trilha normal ao longo da qual pudesse obter descarga(ou abreação). Os resultados práticos do processo catártico foram excelentes. Seus defeitos, que se tornaram evidentes depois, eram os de todas as formas de tratamento hipnótico. Ainda existe grande número de psicoterapeutas que não foi além da catarse como Breuer a compreendia e que ainda fala em seu favor. Seu valor como método resumido foi revelado novamente por Simmel [1918] em seu tratamento das neuroses de guerra no exército alemão, durante a primeira guerra mundial. A teoria da catarse não tinha muito a dizer sobre o tema da sexualidade. Nos casos clínicos com que contribuí para os Estudos, os papéis sexuais desempenhavam certa função, mas quase não se prestou mais atenção a eles do que a outras excitações emocionais. Breuer escreveu sobre a moça, que desde então se tornou famosa como sua primeira paciente, que sua faceta sexual era extraordinariamente não desenvolvida. Teria sido difícil adivinhar pelos Estudos sobre a Histeria a importância que tem a sexualidade na etiologia das neuroses. A fase de desenvolvimento que então se seguiu, a transição da catarse para a psicanálise propriamente dita, já foi descrita por mim várias vezes com tantos pormenores que julgo difícil formular quaisquer fatos novos. O evento que constituiu a abertura desse período foi o afastamento de Breuer do nosso trabalho comum, de modo que me tornei o único administrador do seu legado. Tinham-se verificado divergências de opiniões entre nós numa fase bem inicial, mas não haviam constituído uma base para nosso afastamento. Ao responder à pergunta sobre quando é que um processo mental se torna patogênico - isto é, quando é que se torna impossível lidar com ele normalmente - , Breuer preferiu o que poderia ser chamado de teoria fisiológica: julgava ele que os processos que não podiam encontrar um resultado normal eram aqueles que se haviam originado durante estados mentais ‘hipnóides’ inusitados. Isto provocou a questão ulterior da origem desses estados hipnóides. Eu, por outro lado, estava inclinado a suspeitar da existência de uma ação mútua de forças e da atuação de intenções e propósitos como os que devem ser observados na vida normal. Era assim um caso de ‘histeria hipnóide’ versus ‘neuroses de defesa’. Mas divergências como essa quase não o teriam afastado do assunto, se não tivesse havido outros fatores em ação. Um desses foi indubitavelmente que seu trabalho como clínico e médico de família tomava grande parte de seu tempo, e ele não podia, como eu, devotar todas as suas forças ao trabalho da catarse. Além disso, viu-se atingido pela recepção que nosso livro obtivera tanto em Viena como na Alemanha. Sua autoconfiança e poderes de resistência não estavam desenvolvidos tão plenamente quanto o resto de sua organização mental. Quando, por exemplo, os Estudos foram alvo do mau acolhimento por parte de Strümpell fui capaz de rir pela falta de compreensão que sua crítica demonstrava, mas Breuer sentiu-se magoado e tornou-se desencorajado. Mas o que contribuiu principalmente para sua decisão foi que meu próprio trabalho ulterior conduzia a uma direção com a qual ele achava impossível reconciliar-se. A teoria que havíamos tentado construir nos Estudos continuou, como já disse, muito incompleta; em particular, quase não tínhamos tocado no problema da etiologia, na questão do terreno onde o processo patogênico lança raízes. Aprendi então por experiência própria, a qual aumentava rapidamente, que não era qualquer espécie de excitação emocional que estava em ação por trás dos fenômenos da neurose, mas habitualmente uma excitação de natureza sexual, quer fosse um conflito sexual comum, quer o efeito de experiências sexuais anteriores. Eu não estava preparado para essa conclusão e minhas expectativas não desempenharam papel algum nela, pois eu havia começado minha investigação de neuróticos de maneira bem insuspeitável. Enquanto escrevia minha ‘A História do Movimento Psicanalítico’ em 1914, vinham-me à mente algumas observações que me tinham sido feitas por Breuer, Charcot e Chrobak, as quais poderiam ter-me conduzido mais cedo a essa descoberta. Mas na ocasião em que as ouvi não compreendi o que essas autoridades queriam dizer; na realidade haviam-me dito mais do que elas próprias sabiam ou estavam preparadas para defender. O que ouvi delas permaneceu em estado latente e inativo dentro de mim, até que a oportunidade de meus experimentos catárticos o trouxe à luz como uma descoberta aparentemente original. Também não estava cônscio de que ao derivar a histeria da sexualidade eu estava voltado aos próprios inícios da medicina e acompanhando um pensamento de Platão. Só depois é que vim a saber disso por um ensaio de Havelock Ellis. Sob a influência de minha surpreendente descoberta, dei então um passo importante. Fui além do domínio da histeria e comecei a investigar a vidasexual dos chamados neurastênicos, que costumavam visitar-me em grande número durante minhas horas de consulta. Essa experiência custoume, é verdade, minha popularidade como médico, mas trouxe-me convicções que hoje em dia, quase trinta anos depois, não perderam nada de sua força. Havia muitos equívocos e mistérios a serem superados, mas, uma vez isto feito, veio a ocorrer que em todos esses pacientes graves irregularidades da função sexual se encontravam presentes. Considerando quão extremamente difundidas se acham, por um lado, essas irregularidades e, por outro, a neurastenia, uma freqüente coincidência entre as duas não teria comprovado grande coisa; mas havia algo mais nela do que um único fato insignificante. Uma observação mais detida sugeriu-me que era possível escolher, dentre a confusão dos quadros clínicos encobertos pela designação de neurastenia, dois tipos fundamentalmente diferentes, que podem surgir em qualquer grau de mistura mas que, não obstante, iriam ser observados em suas formas puras. Em um dos tipos a manifestação central era o ataque de ansiedade com seus equivalentes, formas rudimentares e sintomas substitutivos crônicos; em conseqüência, dei-lhe a denominação de neurose de angústia, limitando o termo neurastenia ao outro tipo. Agora era fácil estabelecer o fato de que cada um desses tipos tinha uma anormalidade diferente da vida sexual como seu fator etiológico correspondente: no primeiro, coitus interruptus, a excitação não consumada e a abstinência sexual, e no segundo, masturbação excessiva e emissões noturnas numerosas demais. Em alguns casos especialmente instrutivos, que haviam revelado surpreendentes alterações no quadro clínico de um tipo para o outro, pôde ser provado que se havia verificado uma mudança correspondente no regime sexual subjacente. Se fosse possível pôr termo à irregularidade e permitir que seu lugar fosse ocupado pela atividade sexual normal, uma surpreendente melhoria da condição seria a recompensa. Fui, assim, levado a considerar as neuroses como sendo, sem exceção, perturbações da função sexual, sendo as denominadas ‘neuroses atuais‘ a expressão tóxica direta de tais perturbações e as psiconeuroses sua expressão mental. Minha consciência médica sentia-se satisfeita por eu haver chegado a essa conclusão. Esperei ter preenchido uma lacuna na ciência médica, a qual, ao lidar com uma função de tão grande importância biológica, deixara de levar em conta quaisquer danos além daqueles causados pela infecção ou por lesões anatômicas grosseiras. O aspecto médico do assunto era, além disso, apoiado pelo fato de que a sexualidade não era algo puramente mental. Possuía também uma faceta somática sendo também possível atribuir-lheprocessos químicos especiais, e atribuir a excitação sexual à presença de algumas substâncias específicas, embora desconhecidas no momento. Deve também ter havido alguma boa razão pela qual as verdadeiras neuroses espontâneas não se assemelhavam a nenhum grupo de doenças mais estreitamente do que as manifestações de intoxicação e abstinência, que são produzidas pela administração ou privação de certa substâncias tóxicas, ou do que o bócio exoftálmico, que, conforme se sabe, depende do produto da glândula tireóide. Desde aquela época não tive oportunidade de voltar à pesquisa das ‘neuroses atuais’ nem essa parte do meu trabalho foi continuada por outro. Se hoje lanço um olhar retrospectivo aos meus primeiros achados , eles me surpreendem como sendo os primeiros delineamentos toscos daquilo que é provavelmente um assunto muito mais complicado. Mas no todo ainda me parecem válidos, Teria ficado muito satisfeito se tivesse sido capaz, posteriormente, de proceder a um exame psicanalítico de mais alguns casos de neurastenia juvenil, mas infelizmente não surgiu a ocasião. A fim de evitar concepções errôneas, gostaria de esclarecer que estou longe de negar a existência de conflitos mentais e de complexos neuróticos na neurastenia. Tudo que estou afirmando é que os sintomas desses pacientes não são mentalmente determinados ou removíveis pela análise, mas devem ser considerados como conseqüências tóxicas diretas de processos químicos sexuais perturbados. Durante os anos que se seguiram à publicação dos Estudos, tendo chegado a essas conclusões sobre o papel desempenhado pela sexualidade na etiologia das neuroses, li alguns artigos sobre o assunto perante várias sociedades médicas, mas só me defrontei com incredulidade e contradição. Breuer fez o que pôde, por mais algum tempo, para lançar na balança o grande peso de sua influência pessoal a meu favor, mas nada conseguiu, sendo fácil constatar que também ele se esquivou de reconhecer a etiologia sexual das neuroses. Ele poderia ter-me esmagado ou pelo menos me desconcertado, apontando sua própria primeira paciente, em cujo caso os fatores sexuais ostensivamente não haviam de forma alguma desempenhado qualquer papel.Mas nunca o fez, e não pude compreender por que agiu dessa forma, até que vim a interpretar o caso corretamente e a reconstituir, a partir de algumas observações que fizera, a conclusão de seu tratamento desse mesmo caso. Depois que o trabalho de catarse parecia estar concluído, a moça subitamente desenvolvera uma condição de ‘amor transferencial’ ele não havia feito a ligação disso com sua doença e então se afastara desalentado. Evidentemente foi-lhe penoso ser lembrado desse aparente contretemps. Sua atitude em relação a mim oscilou por algum tempo entre admiração e crítica acerba; depois surgiram dificuldades acidentais, como nunca deixam de surgir numa situação tensa, e nos afastamos. Outro resultado de eu haver empreendido o estudo de perturbações nervosas em geral foi que alterei a técnica da catarse. Abandonei o hipnotismo e procurei substituí-lo por algum outro método, porque estava ansioso por não ficar ficar restringido ao tratamento de condições histeriformes. Uma maior experiência também dera lugar a duas graves dúvidas em minha mente quanto ao emprego do hipnotismo, mesmo como um meio para a catarse. A primeira foi que até mesmo os resultados mais brilhantes estavam sujeitos a ser de súbito eliminados, se minha relação pessoal com o paciente viesse a ser perturbada. Era verdade que seriam restabelecidos se uma reconciliação pudesse ser efetuada, mas tal ocorrência demonstrou que a relação emocional pessoal entre médico e paciente era, afinal de contas, mais forte que todo o processo catártico, e foi precisamente esse fator que escapava a todos os esforços de controle. E certo dia tive a experiência que me indicou, sob a luz mais crua, o que eu há muito tinha suspeitado. Essa experiência ocorreu com uma de minhas pacientes mais dóceis, com a qual o hipnotismo me permitia obter os resultados mais maravilhosos e com quem estava comprometido a minorar os sofrimentos, fazendo remontar seus ataques de dor a suas origens. Certa ocasião, ao despertar, lançou os braços em torno do meu pescoço. A entrada inesperada de um empregado nos livrou de uma discussão penosa, mas a partir daquela ocasião houve um entendimento tácito de que o tratamento hipnótico devia ser interrompido. Fui bastante modesto em não atribuir o fato aos meus próprios atrativos pessoais irresistíveis, e senti que então havia apreendido a natureza do misterioso elemento que se achava em ação por trás do hipnotismo. A fim de excluí-lo, ou de qualquer maneira isolá-lo, foi necessário abandonar o hipnotismo. Mas o hipnotismo fora de imensa ajuda no tratamento catártico, ampliando o campo de consciência da paciente e pondo ao seu alcance conhecimentos que não possuía em sua vida de vigília. Não pareceu ser tarefa fácil encontrar um substituto para os mesmos. Enquanto me encontrava nesse estado de perplexidade, veio em meu auxílio a lembrança de uma experiência que muitas vezes testemunhei quando estava com Bernheim. Quando o paciente despertava do seu estado de sonambulismo parecia haver perdido toda recordação do que tinha acontecido enquanto se encontrava naquele estado. Mas Bernheim afirmava que a lembrança se achava presente da mesma maneira; e se insistia para que o paciente se recordasse, se afirmava que o paciente sabia de tudo e que tinha apenas de falar, e se ao mesmo tempo punha a mão na testa do paciente, então as lembranças esquecidas de fato voltavam, de início de forma hesitante, mas finalmente numa torrente e com clareza completa. Determinei que agiria da mesma forma . Meus pacientes, refleti, devem de fato ‘saber’ todas as coisas que até então só tinham sido tornadas acessíveis a eles na hipnose; e garantias e encorajamento da minha parte, auxiliados talvez pelo toque da minha mão, teriam, pensei, o poder de forçar os fatos e ligações esquecidos na consciência. Sem dúvida, isto parecia um processo mais laborioso do que levar os pacientes à hipnose, mas poderia resultar como sendo altamente instrutivo. Assim, abandonei o hipnotismo, conservando apenas meu hábito de exigir do paciente que ficasse deitado num sofá enquanto eu ficava sentado ao lado dele, vendo-o, mas sem que eu fosse visto. III Minhas expectativas foram correspondidas; livrei-me do hipnotismo. Mas, justamente com a mudança de técnica, o trabalho de catarse assumiu novo aspecto. A hipnose interceptara da visão uma ação recíproca de forças que surgiam agora à vista e cuja compreensão proporcionava um fundamento sólido à minha teoria. Como ocorrera que os pacientes se haviam esquecido de tantos dos fatos de suas vidas externas e internas mas podiam, não obstante, recordá-los se uma técnica específica fosse aplicada? A observação forneceu uma resposta exaustiva a essa pergunta. Tudo que tinha sido esquecido de alguma forma ou de outra fora aflitivo; fora ou alarmante ou penoso ou vergonhoso pelos padrões da personalidade do indivíduo. Foi impossível não concluir que isto foi precisamente assim porque fora esquecido - isto é, porque não tinha permanecido consciente. A fim de torná-lo consciente novamente apesar disto, foi necessário superar algo que lutava contra alguma coisa no paciente, foi necessário envidar esforços da parte do próprio paciente a fim de compeli-lo a recordar-se. A dose de esforço do médico variava em diferentes casos; aumentava em proporção direta com a dificuldade do que tinha de ser lembrado. O dispêndio de força por parte do médico era evidentemente a medida de uma resistência por parte do paciente. Bastou traduzir em palavras o que eu próprio havia observado e fiquei de posse da teoria da repressão. Então foi fácil reconstituir o processo patogênico. Fiquemos em um exemplo simples no qual um impulso específico surgira na mente do indivíduo mas se defrontava com a oposição de outros impulsos poderosos. Devíamos ter esperado o conflito mental que então apareceu para obedecer ao seguinte curso. As duas dinâmicas - para nossa finalidade atuais denominemo-las ‘o instinto’ e ‘a resistência’ lutavam uma com a outra à plena luz da consciência, até que o instinto era repudiado e a catexia de energia era retirada de sua impulsão. Isto teria sido a solução normal. Em uma neurose, contudo (por motivos que eram ainda desconhecidos), o conflito encontrou um resultado diferente. O ego recuou, por assim dizer, na sua primeira colisão com o impulso instintual objetável; impediu o impulso de ter acesso à consciência e à descarga motora direta, mas ao mesmo tempo o impulso reteve sua catexia integral de energia. Denominei esse processo de repressão; era uma novidade e nada semelhante a ele jamais fora reconhecido na vida mental. Era obviamente um mecanismo primário de defesa, comparável a uma tentativa de fuga, e era apenas um percurso do julgamento de condenação normal desenvolvido depois. O primeiro ato de repressão envolvia outras conseqüências. Em primeiro lugar, o ego era obrigado a proteger-se contra a constante ameaça de uma renovada investida por parte do impulso reprimido, fazendo um dispêndio permanente de energia, uma anticatexia, e assim se empobrecia. Por outro lado, o impulso reprimido, que era agora inconsciente, era capaz de encontrar meios de descarga e de satisfação substituída por caminhos indiretos e de assim levar toda a finalidade de repressão a nada. No caso da histeria de conversão, o caminho indireto levava à inervação somática; o impulso reprimido irrompia em um ponto ou outro e produzia sintomas. Os sintomas eram assim resultado de uma conciliação, pois embora fossem satisfações substitutivas eram distorcidos e desviados de sua finalidade devido à resistência do ego. A teoria da repressão tornou-se a pedra angular da nossa compreensão das neuroses. Um ponto de vista diferente teve então de ser adotado no tocante à tarefa da terapia. Seu objetivo não era mais ‘abreagir’ um afeto que se desencaminhara, mas revelar repressões e substituí-las por atos de julgamento que podiam resultar quer na aceitação, quer na condenação do que fora anteriormente repudiado. Demonstrei meu reconhecimento da nova situação não denominando mais meu método de pesquisa e de tratamento de catarse, mas de psicanálise. É possível considerar a repressão como um centro e reunir todos os elementos da teoria psicanalítica em relação a ele. Mas antes de proceder dessa forma tenho outro comentário a tecer, de natureza polêmica. De acordo com o ponto de vista de Janet, uma mulher histérica era uma criatura infeliz que, por causa de uma fraqueza de constituição, era incapaz de manter reunidos seus atos mentais e por esse motivo ela foi vítima de uma divisão (splitting) da mente e de uma restrição do campo de sua consciência. O resultado de pesquisas psicanalíticas, por outro lado, revelou que essas manifestações eram a decorrência de fatores dinâmicos - de conflito mental e de repressão. Essa distinção parece-me bastante exagerada para pôr termo à cansativa repetição do ponto de vista de que qualquer coisa de valor na psicanálise é simplesmente tomada de empréstimo às idéias de Janet. O leitor terá aprendido pelo meu relato que historicamente e psicanálise é de todo independente das descobertas de Janet, do mesmo modo que em seu conteúdo diverge delas e vai muito além da mesmas. As obras de Janet jamais teriam tido as implicações que tornaram a psicanálise de tal importância para as ciências mentais e que fizeram com que ela atraísse tal interesse universal. Sempre tratei o próprio Janet com respeito, visto que suas descobertascoincidiram em considerável medida com as de Breuer, que foram feitas antes, mas que vieram a lume depois das dele. Quando, porém, no curso do tempo a psicanálise se tornou objeto de debates na França, Janet portou-se mal, mostrou ignorância dos fatos e utilizou feios argumentos. E finalmente revelou-se aos meus olhos, e destruiu o valor de seu próprio trabalho, declarando que quando falara de atos mentais ‘inconscientes’ nada quisera dizer com essa frase - não havia passado de uma façon de parler. Mas o estudo das repressões patogênicas e de outras manifestações que ainda têm de ser mencionadas compeliu a psicanálise a adotar o conceito do ‘inconsciente’ de maneira séria. A psicanálise considerava tudo de ordem mental como sendo, em primeiro lugar, inconsciente; a qualidade ulterior de ‘consciência’ também pode estar presente ou ainda pode estar ausente. Isto naturalmente provocou uma negação por parte dos filósofos, para os quais ‘consciente’ e ‘mental’ eram idênticos, e que protestaram que não podiam conceber um absurdo como o ‘mental inconsciente’. Isto, contudo, não pôde ser evitado, e essa idiossincrasia dos filósofos não merece outra coisa senão ser posta de lado com um dar de ombros. A experiência (adquirida de material patológico, que os filósofos ignoravam) da freqüência e do poder de impulsos dos quais nada se sabia diretamente, e cuja existência teve de ser inferida como algum fato do mundo externo, não deixou qualquer alternativa em aberto. Pode-se frisar, incidentalmente, que isso era o mesmo que alguém tratar de sua vida mental como sempre se tratara de outras pessoas. Não se hesitou em atribuir processos mentais a outras pessoas, embora não se tivesse qualquer consciência imediata dos mesmos e somente se pudesse inferi-los de suas palavras e ações. Mas o que permanecia válido para outros indivíduos devia ser aplicável a si próprio. Qualquer um que tentasse levar o argumento mais para frente e concluir do mesmo que os próprios conceitos ocultos de alguém pertenciam realmente a uma segunda consciência, defrontar-se-ia com o conceito de uma ‘consciência inconsciente’ - e isso dificilmente seria preferível à suposição de um ‘mental inconsciente’. Se, por outro lado, alguém declarasse, como alguns outros filósofos, que se estava preparando para levar em conta as manifestações patológicas, mas que os processos subjacentes aos mesmos não devem ser descritos como mentais mas como ‘psicóides’, a diferença de opinião degeneraria numa disputa estéril quanto a palavras, embora mesmo assim a conveniência decidisse favoravelmente por manter a expressão ‘mental inconsciente’. A outra questão quanto ànatureza final desse inconsciente não é mais sensível ou lucrativa do que a mais antiga quanto à natureza do consciente. Seria mais difícil explicar concisamente como veio a acontecer que a psicanálise fizesse outra distinção no inconsciente e o separasse em um pré-consciente e em um inconsciente propriamente ditos. Basta dizer que pareceu ser um caminho natural complementar da experiência com hipóteses que estavam destinadas a facilitar o manuseio do material, e que estavam relacionadas com assuntos que poderiam não ser objeto de observação imediata. O mesmíssimo método é adotado pelas ciências mais antigas. A subdivisão do inconsciente faz parte de uma tentativa de retratar o aparelho da mente como sendo constituído de grande número de instâncias ou sistemas, cujas relações mútuas são expressas em termos espaciais, sem contudo implicarem qualquer ligação com a verdadeira anatomia do cérebro. (Descrevia esse ponto como o método topográfico de abordagem.) Idéias como estas fazem parte de uma superestrutura especulativa da psicanálise, podendo qualquer parcela da mesma ser abandonada ou modificada, sem perda ou pesar, momento em que a sua insuficiência tenha sido provada. Mas resta ainda muita coisa a ser descrita que está mais perto da verdadeira experiência. Já mencionei que minha investigação das causas precipitantes e subjacentes das neuroses levou-me cada vez com maior freqüência a conflitos entre os impulsos sexuais do indivíduo e suas resistências à sexualidade. Em minha busca das situações patogênicas, nas quais as repressões de sexualidade se haviam estabelecido e nas quais os sintomas, como substitutos do que foi reprimido, tinham tido sua origem, fui levado cada vez mais de volta à vida do paciente e terminei chegando aos primeiros anos de sua infância. O que os poetas e os estudiosos da natureza humana sempre haviam assegurado veio a ser verdade: as impressões daquele período inicial de vida, embora estivessem na sua maior parte enterradas na amnésia, deixaram vestígios indeléveis no crescimento do indivíduo e, em particular, fundamentaram a disposição para qualquer distúrbio nervoso que viesse a sobrevir. Mas visto que essas experiências da infância sempre se preocuparam com as excitações sexuais e a reação contra elas, encontrei-me diante do fato da sexualidade infantil - mais uma vez uma novidade e uma contradição de um dos mais acentuados preconceitos humanos. A infância era encarada como ‘inocente’ e isenta dos intensos desejos do sexo, e não se pensava que a luta contra o domínio da ‘sexualidade’ começasse antes da agitada idade da puberdade. Tais atividades sexuais ocasionais, conforme tinha sido impossível desprezar nas crianças, eram postas de lado como indícios de degenerescência ou de depravação prematura, ou como curiosa aberração da natureza. Poucos dos achados da psicanálise tiveram tanta contestação universal ou despertaram tamanha explosão de indignação como a afirmativa de que a função sexual se inicia no começo da vida e revela sua presença por importantes indícios mesmo na infância. E contudo nenhum outro achado da análise pode ser demonstrado de maneira tão fácil e completa. Antes de avançar ainda mais na questão da sexualidade infantil, devo mencionar um erro no qual incidi por algum tempo e que bem poderia ter tido conseqüências fatais para todo o meu trabalho. Sob a influência do método técnico que empreguei naquela época, a maioria dos meus pacientes reproduzia de sua infância cenas nas quais eram sexualmente seduzidos por algum adulto. Com pacientes do sexo feminino o papel do sedutor era quase sempre atribuído ao pai delas. Eu acreditava nessas histórias e, em conseqüência, supunha que havia descoberto as raízes da neurose subseqüente nessas experiências de sedução sexual na infância. Minha confiança foi fortalecida por alguns casos nos quais as relações dessa natureza com um pai, tio ou irmão haviam continuado até uma idade em que se devia confiar na lembrança. Se o leitor sentir-se inclinado a balançar a cabeça pela minha credulidade, não poderei de todo censurá-lo, embora possa alegar que isto ocorreu numa época em que intencionalmente conservava minha faculdade crítica em suspenso, a fim de preservar uma atitude não tendenciosa e receptiva em relação às muitas novidades que despertavam minha atenção diariamente. Quando, contudo, fui finalmente obrigado a reconhecer que essas cenas de sedução jamais tinham ocorrido e que eram apenas fantasias que minhas pacientes haviam inventado ou que eu próprio talvez houvesse forçado nelas, fiquei por algum tempo inteiramente perplexo. De igual modo, minha confiança em minha técnica e nos seus resultados sofreu rude golpe; não se podia discutir que eu havia chegado a essas cenas por um método técnico que eu considerava correto, e seu tema estava indubitavelmente relacionado com os sintomas dos quais partira minha pesquisa.Quando me havia refeito, fui capaz de tirar as conclusões certas da minha descoberta: a saber, que os sintomas neuróticos não estavam diretamente relacionados com fatos reais, mas com fantasias impregnadas de desejos, e que, no tocante à neurose, a realidade psíquica era de maior importância que a realidade material. Mesmo agora não creio que forcei as fantasias de sedução aos meus pacientes, que as ‘sugeri’. Eu tinha de fato tropeçado pela primeira vez no complexo de Édipo, que depois iria assumir importância tão esmagadora, mas que eu ainda não reconhecia sob seu disfarce de fantasia. Além disso, a sedução durante a infância retinha certa parcela, embora mais humilde, na etiologia das neuroses. Mas os sedutores vieram a ser, em geral, crianças mais velhas. Ver-se-á, então, que meu erro foi o mesmo que seria cometido por alguém que acreditasse que a história lendária dos primeiros reis de Roma (segundo narrada por Lívio) era uma verdade histórica em vez daquilo que de fato ela é - uma reação contra a lembrança de tempos e circunstâncias que foram insignificantes e ocasionalmente, talvez, inglórias. Quando o erro foi esclarecido, o caminho para o estudo da vida sexual das crianças estava desvendado. Tornou-se assim possível aplicar a psicanálise a outro campo da ciência e utilizar seus dados como meio de descobrir um novo conhecimento biológico. A função sexual, conforme verifiquei, encontra-se em existência desde o próprio início da vida do indivíduo, embora no começo esteja ligada a outras funções vitais e não se torne independente delas senão depois; ela tem de passar por um longo e complicado processo de desenvolvimento antes de tornar-se aquilo com que estamos familiarizados como sendo a vida sexual normal do adulto. Começa por manifestar-se na atividade de todo um grande número de instintos componentes. Estes estão na dependência de zonas erógenas do corpo; alguns deles surgem em pares de impulsos opostos (como o sadismo e o masoquismo ou os impulsos de olhar e de ser olhado); atuam independentemente uns dos outros numa busca de prazer e encontram seu objetivo, na maior parte, no corpo do próprio indivíduo. Assim, de início a função sexual é não centralizada e predominantemente auto-erótica. Depois, começam a surgir sínteses nela; uma primeira fase de organização é alcançada sob o domínio dos componentes orais, e segue-se uma fase anal-sádica, e só depois de a terceira fase ter sido finalmente alcançada é que a função sexual começa a servir aos fins de reprodução. No curso desse processo de desenvolvimento, grande número de elementos dos vários instintos componentes vêm a ser inúteis para essa última finalidade e são, portanto, deixados de lado ou utilizados para outros fins, enquanto outros são desviados de seus objetivos e levados para a organização genital. Dei o nome de libido à energia dos instintos sexuais e somente a essa forma de energia. Fui depois impelido a supor que a libido nem sempre passa pelo seu recomendado curso de desenvolvimento de maneira suave. Como resultado quer da excessiva força de certos componentes, quer de experiências que implicam uma satisfação prematura, fixações da libido podem ocorrer em vários pontos no curso de seu desenvolvimento. Se subseqüentemente verificar-se uma repressão, a libido reflui a esses pontos (um processo descrito como regressão), sendo a partir deles que a energia irrompe sob a forma de um sintoma. Depois tornou-se ainda claro que a localização do ponto de fixação é que determina a escolha da neurose, isto é, a forma pela qual a doença subseqüente vem a surgir. O processo de chegar a um objeto, que desempenha papel tão importante na vida mental, ocorre juntamente com a organização da libido. Após a fase do auto-erotismo, o primeiro objeto de amor no caso de ambos os sexos é a mãe, afigurando-se provável que, de início, uma criança não distingue o órgão de nutrição da mãe do seu próprio corpo. Depois, mas ainda nos primeiros anos da infância, a relação conhecida como complexo de Édipo se torna estabelecida: os meninos concentram seus desejos sexuais na mãe e desenvolvem impulsos hostis contra o pai, como sendo rival, enquanto adotam atitude análoga. Todas as diferentes variações e conseqüências do complexo de Édipo são importantes, e a constituição inatamente bissexual dos seres humanos faz-se sentir e aumenta o número de tendências simultaneamente ativas. Para as crianças não ficam claras durante muito tempo as diferenças entre os sexos, e durante esse período de pesquisas sexuais produzem teorias sexuais típicas que, estando circunscritas pelo fato de não estar completo o próprio desenvolvimento físico de seus autores, constituem uma mescla de verdade e erro, e deixam de solucionar os problemas da vida sexual (o enigma da Esfinge - isto é, a questão de onde vêm os bebês). Vemos, então, que a primeira escolha de objeto de uma criança é incestuosa. Todo o curso do desenvolvimento que descrevi é percorrido rapidamente, porquanto a feição mais notável da vida sexual do homem é seu desencadeamento bifásico, seu desencadeamento em duas ondas, com um intervalo entre elas, que atinge um primeiro clímax no quarto ou quinto ano da vida de uma criança. Mas a partir daí essa eflorescência prematura da sexualidade desaparece; os impulsos sexuais que mostraram tanta vivacidade são superados pela repressão, e segue-se um período de latência, que dura até a puberdade e durante o qual as formações reativas de moralidade vergonha e repulsa são estruturadas. De todas as criaturas vivas somente o homem parece revelar esse desencadeamento bifásico do crescimento sexual, e talvez seja ele o determinante biológico de uma predisposição a neuroses. Na puberdade, os impulsos e as relações de objeto dos primeiros anos de uma criança se tornam reanimados e entre eles os laços emocionais do seu complexo de Édipo. Na vida sexual da puberdade, verifica-se uma luta entre os anseios dos primeiros anos e as inibições do período de latência. Antes de seu desenvolvimento sexual infantil, estabelece-se certa organização genital, mas somente os órgãos genitais do indivíduo masculino desempenham nela seu papel, permanecendo os órgãos sexuais femininos não revelados. (Descrevi isso como o período de primazia fálica.) Nessa fase o contraste entre os sexos não se inicia em termos de ‘macho’ ou ‘fêmea’, mas de possuir um ‘pênis’ ou de ser ‘castrado’. O complexo de castração que surge nesse sentido é da mais profunda importância na formação tanto do caráter quanto das neuroses. A fim de tornar mais inteligível esse relato resumido de minhas descobertas sobre a vida sexual do homem, enfeixei conclusões às quais cheguei em datas diferentes e que incorporei, à guisa de suplemento ou correção, nas sucessivas edições de minha obra Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905d). Espero que tenha sido fácil apreender a natureza de minha ampliação (à qual se atribuiu tanta ênfase e que provocou tanta oposição) do conceito da sexualidade. Essa extensão é de natureza dúplice. Em primeiro lugar, a sexualidade está divorciada da sua ligação por demais estreita com os órgãos genitais, sendo considerada como uma função corpórea mais abrangente, tendo o prazer como a sua meta e só secundariamente vindo a servir às finalidades de reprodução. Em segundo lugar, os impulsos sexuais são considerados como incluindo todos aqueles impulsos meramente afetuosos e amistosos aos quais o uso aplica a palavra extremamente ambígua de ‘amor’. Não considero, contudo, que essas extensões sejam inovações, mas antes restaurações: significam a eliminação de limitações inoportunas do conceito ao qual nos permitimos ser conduzidos. O destacar a sexualidade dos órgãos genitais apresenta a vantagem de nos permitir levar as atividades sexuais da crianças e dos pervertidos para o mesmo âmbito que o dos adultos normais. As atividades sexuais das crianças até agora foram inteiramente desprezadas e, embora as dos pervertidos tenham sido reconhecidas, foram-no com indignação moral e sem compreensão. Encaradas do ponto de vista psicanalítico, mesmo as perversões mais excêntricas e repelentes são explicáveis como manifestações da primazia dos órgãos genitais e que se acham agora em busca do prazer por sua própria conta, como nos primeiros dias do desenvolvimento da libido. A mais importante dessas perversões, a homossexualidade, quase não merece esse nome. Ela pode ser remetida à bissexualidade constitucional de todos os seres humanos e aos efeitos secundários da primazia fálica. A psicanálise permite-nos apontar para um vestígio ou outro de uma escolha homossexual em todos os indivíduos. Se eu descrevi as crianças como ‘polimorficamente perversas’ estava apenas empregando uma terminologia que era geralmente corrente; não estava implícito qualquer julgamento moral. A psicanálise não se preocupa em absoluto com tais julgamentos de valor. A segunda da minhas alegadas extensões do conceito de sexualidade encontra sua justificativa no fato revelado pela pesquisa psicanalítica de que todos esses impulsos afetuosos foram originalmente de natureza sexual, mas se tornaram inibidos em sua finalidade ou sublimados. A maneira como os instintos sexuais podem assim ser influenciados e desviados lhes permite ser empregados para atividades culturais de toda espécie, para as quais, realmente, prestam as mais importantes contribuições. Minhas surpreendentes descobertas quanto à sexualidade das crianças foram efetuadas, no primeiro exemplo, mediante a análise de adultos. Mas depois (mais ou menos a partir de 1908) tornou-se possível confirmá-las plenamente e em todos os detalhes por observações diretas em crianças. Na realidade, é tão fácil alguém se convencer das atividades sexuais regulares, que não se pode deixar de perguntar, atônito, como a raça humana pode ter conseguido desprezar os fatos e manter por tanto tempo a lenda impregnada de desejo da assexualidade da infância. Essa surpreendente circunstância deve estar ligada à amnésia que, na maioria dos adultos, oculta sua própria infância. IV As teorias da resistência e da repressão, do inconsciente, da significância etiológica da vida sexual e da importância das experiências infantis - tudo isto forma os principais constituintes da estrutura teórica da psicanálise. Nestas páginas, infelizmente, pude apenas descrever os elementos separados e não suas interligações e sua relação uns com os outros. Mas sou obrigado agora a voltar às alterações que gradativamente se verificam na técnica do método analítico. Os meios que primeiramente adotei para superar a resistência do paciente, pela insistência e pelo estímulo, tiveram de ser indispensáveis para a finalidade de proporcionar-me um primeiro apanhado geral que era de se esperar. Mas em última análise veio a ser um esforço demasiado de ambos os lados, e além disso parecia aberto a certas críticas evidentes. Deu, portanto, lugar a outro que era, em certo sentido, seu oposto. Em vez de incitar o paciente a dizer algo sobre algum assunto específico, pedi-lhe então que se entregasse a um processo de associação livre - isto é, que dissesse o que lhe viesse à cabeça, enquanto deixasse de dar qualquer orientação consciente a seus pensamentos. Era essencial, contudo, que ele se obrigasse a informar literalmente tudo que ocorresse à sua autopercepção, e não desse margem a objeções críticas que procurassem pôr certas associações de lado, com base no fundamento de que não eram irrelevantes ou inteiramente destituídas de sentido. Não houve necessidade de repetir explicitamente a exigência de franqueza por parte do paciente ao relatar seus pensamentos, pois era precondição do tratamento analítico inteiro. Poderá parecer surpreendente que esse método de associação livre, levado a cabo sob a observação da regra fundamental da psicanálise, deva ter alcançado o que dele se esperava, a saber, o levar até a consciência o material reprimido que era retido por resistências. Devemos, contudo, ter em mente que a associação livre não é realmente livre. O paciente permanece sob a influência da situação analítica, muito embora não esteja dirigindo suas atividades mentais para um assunto específico. Seremos justificados ao presumir que nada lhe ocorrerá que não tenha alguma referência com essa situação. Sua resistência contra a reprodução do material reprimido será agora expressa de duas maneiras. Em primeiro lugar, será revelada por objeções críticas; e foi para lidar com tais objeções que a regra fundamental da psicanálise foi inventada. Mas se o paciente observar essa regra e assim superar suas reservas, a resistência encontrará outro meio de expressão. Tal regra a disporá de tal forma que o próprio material reprimido jamais ocorrerá ao paciente, mas somente algo que se aproxima dele de maneira alusiva;e quanto maior a resistência, mais remota da idéia real, da qual o analista se acha à procura, estará a associação substitutiva que o paciente tem de informar. O analista, que escuta serenamente, mas sem qualquer esforço constrangido, à torrente de associações e que, pela sua experiência, possui uma idéia geral do que esperar, pode fazer uso do material trazido à luz pelo paciente de acordo com duas possibilidades. Se a resistência for leve, ele será capaz, pelas alusões do paciente, de inferir o próprio material inconsciente; se a resistência for mais forte, ele será capaz de reconhecer seu caráter a partir das associações, quando parecerem tornar-se mais remotas do tópico em mão, e o explicará ao paciente. A descoberta da resistência, contudo constitui o primeiro passo no sentido de superá-la. Assim, o trabalho de análise implica uma arte de interpretação, cujo manuseio bem-sucedido pode exigir tato e prática, mas que não é difícil de adquirir. Mas não é apenas na poupança de trabalho que o método de associação livre possui vantagem sobre o anterior. Ele expõe o paciente à menor dose possível de compulsão, jamais permitindo que se perca contato com a situação corrente real, e garante em grande medida que nenhum fator da estrutura da neurose seja desprezado e que nada seja introduzido nela pelas expectativas do analista. Deixa-se ao paciente, em todos os pontos essenciais, que determine o curso da análise e o arranjo do material; qualquer manuseio sistemático de sintomas ou complexos específicos torna-se desse modo impossível. Em completo contraste com o que aconteceu com o hipnotismo e com o método de inicitação, o material inter-relacionado aparece em diferentes tempos e em pontos diferentes no tratamento. Portanto, para um espectador - embora de fato não deva haver nenhum - um tratamento analítico pareceria inteiramente obscuro. Outra vantagem do método é que jamais precisa ser decomposto. Deve, teoricamente, sempre ser possível ter uma associação, contanto que não se estabeleçam quaisquer condições quanto ao seu caráter. Contudo, há um único caso no qual de fato ocorre essa divisão com absoluta regularidade; por sua própria natureza sui generis, contudo, esse caso também pode ser interpretado. Chego agora à descrição de um fator que acrescenta uma feição essencial ao meu quadro de análise, e que pode reivindicar, tanto técnica quanto teoricamente, ser considerado como de importância primacial. Em todo tratamento analítico surge, sem interferência do médico, uma intensa relação emocional entre o paciente e o analista, que não deve ser explicada pela situação real. Pode ser de caráter positivo ou negativo, e pode variar entre os extremos de um amor apaixonado, inteiramente sensual, e a expressão infrene de desafio e ódio exacerbados. Essa transferência - para designá-la pelo seu nome abreviado - logo substitui na mente do paciente o desejo de ser curado, e, enquanto for afeiçoada e moderada, torna-se o agente da influência do médico e nem mais nem menos do que a mola mestra do trabalho conjunto de análise. Posteriormente, quando se tiver tornado arrebatada ou tiver sido convertida em hostilidade, torna-se o principal instrumento da resistência. Poderá então acontecer que paralise os poderes de associação do paciente e ponha em perigo o êxito do tratamento. Contudo, seria insensato fugir à mesma, pois uma análise sem transferência é uma impossibilidade. Não se deve supor, todavia, que a transferência seja criada pela análise e não ocorra independente dela. A transferência é meramente descoberta e isolada pela análise. Ela é um fenômeno universal da mente humana, decide o êxito de toda influência médica, e de fato domina o todo das relações de cada pessoa com seu ambiente humano. Podemos facilmente reconhecê-la como o mesmo fator dinâmico que os hipnotistas donominaram de ‘sugestionabilidade’, que é o agente do rapport hipnótico e cujo comportamento imprevisível levou também a dificuldades com o método catártico. Quando não existe nenhuma inclinação para uma transferência de emoção tal como esta, ou quando se torna completamente negativa, como acontece na demência precoce ou na paranóia, então também não há qualquer possibilidade de influenciar o paciente por meios psicológicos. É perfeitamente verdade que a psicanálise, como outros métodos psicoterapêuticos, emprega o instrumento da sugestão (ou transferência). Mas a diferença é esta: na análise não é permitido desempenhar o papel decisivo na determinação dos resultados terapêuticos. Utiliza-se, ao contrário, induzir o paciente a realizar um trabalho psíquico - a superação de suas resistências à transferência - que implica uma alteração permanente em sua economia mental. A transferência é tornada consciente para o paciente pelo analista, e é resolvida convencendo-o de que em sua atitude de transferência ele está reexperimentando relações emocionais que tiveram sua origem em suas primeiras ligações de objeto, durante o período reprimido de sua infância. Dessa forma, a transferência é transformada de arma mais forte da resistência em melhor instrumento do tratamento analítico. Não obstante, seu manuseio continua sendo o mais difícil, bem como a parte mais importante da técnica de análise. Com a ajuda do método de associação livre e da arte correlata de interpretação, a psicanálise conseguiu alcançar uma coisa que parecia não ser de importância prática alguma, mas que de fato conduziu necessariamente a uma atitude totalmente nova e a uma nova escala de valores no pensamento científico. Tornou-se possível provar que os sonhos têm um significado, e descobri-lo. Na Antigüidade clássica dava-se grande importância aos sonhos, como forma de prever o futuro; mas a ciência moderna nada quis com eles, passando-os à superstição, declarando-os processos puramente somáticos - uma espécie de crispação de uma mente que de outra forma está adormecida. Afigurava-se inteiramente inconcebível que qualquer um que houvesse realizado um trabalho científico sério pudesse aparecer como um ‘intérprete de sonhos’. Mas desprezando a excomunhão lançada contra os sonhos, tratando-os como sintomas neuróticos inexplicados, como idéias delirantes ou obsessivas, descurando de seu conteúdo aparente, e fazendo de suas imagens componentes isoladas temas para associação livre, a psicanálise chegou a uma conclusão diferente. As numerosas associações produzidas por aquele que sonhava levaram à descoberta de uma estrutura de pensamentos que não pode mais ser descrita como absurda ou confusa, que se classificava como um produto psíquico inteiramente válido, e do qual o sonho manifesto não passava de uma tradução distorcida, abreviada e mal compreendida, e na sua maior parte uma tradução em imagens. Esses pensamentos oníricos latentes encerravam o significado do sonho, enquanto seu conteúdo manifesto era simplesmente um simulacro, uma fachada, que poderia servir como ponto de partida para as associações, mas não para a interpretação. Surgiu uma série de perguntas a serem respondidas, sendo a mais importante delas sobre se a formação de sonhos tinha um motivo, em que condições se verificava, por quais métodos os pensamentos oníricos (que são invariavelmente plenos de sentido) se tornavam convertidos no sonho (que amiúde é destituído de sentido), e outras além disto. Tentei solucionar todos esses problemas em A Interpretação de Sonhos, que publiquei no ano de 1900. Só posso encontrar espaço aqui para o resumo mais breve de minha pesquisa. Quando os pensamentos oníricos latentes que são revelados pela análise de um sonho são examinados, verifica-se que um deles se destaca dentre os demais que são inteligíveis e bem conhecidos daquele que sonha. Esses últimos pensamentos são resíduos da vida de vigília (os resíduos diurnos, como são intitulados tecnicamente); mas verifica-se que o pensamento isolado é um impulso de desejo, muitas vezes de natureza repelente, que é estranho à vida de vigília daquele que sonha, sendo, em conseqüência, repudiado por ele com surpresa ou indignação. Esse impulso é o construtor real do sonho: proporciona a energia para sua produção e faz uso dos resíduos diurnos como material. O sonho que assim se origina representa uma situação para o impulso, é a realização do seu desejo. Não seria possível a esse processo verificar-se sem ser favorecido pela presença de algo da natureza de um estado de sono. A precondição mental necessária de sono é a concentração do ego sobre o desejo de dormir e a retirada da energia psíquica de todos os interesses da vida. Visto que ao mesmo tempo todas as trilhas de aproximação à mortalidade se acham bloqueadas, o ego é também capaz de reduzir o dispêndio [de energia] pelo qual em outras ocasiões mantém as repressões. O impulso inconsciente faz uso desse relaxamento noturno da repressão a fim de abrir seu caminho até a consciência com o sonho. A resistência repressiva do ego, contudo, não é abolida no sono, mas apenas reduzida. Parte dela permanece sob a forma de uma censura de sonhos e proíbe o impulso inconsciente de expressar-se nas formas que apropriadamente assumiria. Em conseqüência da severidade da censura de sonhos, os pensamentos oníricos latentes são obrigados a se submeter a serem alterados e amaciados a fim de tornarem o significado proibido do sonho irreconhecível. Esta é a explicação da distorção do sonho, que dá conta das características mais surpreendentes do sonho manifesto. Estamos, portanto, justificados em afirmar que um sonho é a realização (disfarçada) de um desejo (reprimido). Verse-á agora que os sonhos são interpretados como um sintoma neurótico: são conciliações entre as exigências de um impulso reprimido e a resistência de uma força censora no ego. Visto terem uma origem semelhante, são igualmente ininteligíveis e têm igual necessidade de interpretação. Não há qualquer dificuldade para descobrir a função geral do sonhar. Ela serve à finalidade de desviar, por uma espécie de ação calmante, os estímulos externos ou internos que tenderiam a despertar aquele que sonha, e assim de assegurar o sono contra interrupções. Os estímulos externos são desviados, recebendo uma nova interpretação e sendo entretecidos em alguma situação inócua; os estímulos internos, causados por exigências instintuais, recebem liberdade de atuação por aquele que dorme, sendo-lhes permitido encontrar satisfação na formação de sonhos, enquanto os pensamentos oníricos latentes submetem-se ao controle da censura. Mas se ameaçam irromper em liberdade e se o significado do sonho se torna por demais claro, o que sonha interrompe o sonho e desperta assustado. (Os sonhos dessa natureza são conhecidos como sonhos de ansiedade.) Uma falha semelhante na função do sonhar ocorre se um estímulo externo tornar-se demasiado forte para ser desviado. (Esta é a classe dos sonhos do despertar.) Dei a designação de elaboração onírica ao processo que, com a cooperação da censura, transforma os pensamentos latentes no conteúdo manifesto do sonho. Ele consiste em uma maneira peculiar de tratar o material pré-consciente do pensamento, de modo que suas partes componentes se tornam condensadas, sua ênfase psíquica torna-se deslocada, e o seu todo é traduzido em imagens visuais ou dramatizadas, e completado por uma elaboração secundária. A elaboração onírica constitui excelente exemplo dos processos que ocorrem nas camadas mais profundas e inconscientes da mente, que diferem consideravelmente dos processos normais familiares do pensamento. Exibe também grande número de características arcaicas, tais como o uso de um simbolismo (nesse caso de natureza predominantemente sexual), o qual desde então tem sido possível descobrir em outras esferas da atividade mental. Explicamos que o impulso instintual inconsciente do sonho liga-se a um resíduo diurno, com certo interesse da vida de vigília que não foi eliminado; ele dá assim ao sonho que constrói duplo valor para o trabalho de análise, pois por um lado um sonho que foi analisado revela-se como a realização de um desejo reprimido, mas por outro pode ser a continuação de alguma atividade pré-consciente do dia anterior, e poderá conter todas as espécies de assuntos e dar expressão a uma intenção, a uma advertência, a uma reflexão, ou mais uma vez à realização de um desejo. A análise explora o sonho em ambas as direções, como meio de obter conhecimento tanto do consciente do paciente quanto de seus processos inconscientes. Ela também se beneficia do fato de que os sonhos têm acesso ao material esquecido da infância e assim acontece que a amnésia infantil é, na sua maior parte, superada em relação com a interpretação de sonhos. Nesse sentido, os sonhos realizam uma parte do que era anteriormente tarefa do hipnotismo. Por outro lado, jamais sustentei a afirmação, tantas vezes a mim atribuída, de que a interpretação de sonhos revela que todos os sonhos têm um conteúdo sexual ou provêm de forças motoras sexuais. É fácil ver que a fome, a sede ou a necessidade de excretar podem produzir sonhos de satisfação tão bem quanto qualquer impulso sexual ou egoísta reprimido. O caso de criancinhas nos proporciona um teste convincente da validade da nossa teoria dos sonhos. Nelas os vários sistemas psíquicos ainda não se acham acentuadamente divididos e as repressões ainda não se tornaram profundas, de modo que amiúde nos deparamos com sonhos que nada mais são do que realizações indisfarçadas de impulsos impregnados de desejos que sobraram da vida de vigília. Sob a influência de necessidades imperativas, os adultos podem também produzir sonhos desse tipo infantil.Da mesma forma que a psicanálise faz uso da interpretação de sonhos, também se beneficia do estudo de numerosos pequenos deslizes e erros que as pessoas cometem - ações sintomáticas, como são denominadas. Pesquisei esse assunto em uma série de artigos que foram publicados pela primeira vez sob a forma de livro com o título de The Psychopathology of Every Day Life [Freud, 1901b]. Nessa obra amplamente difundida, ressaltei que esses fênomenos não são acidentais, que exigem mais do que explanações fisiológicas, que têm um significado e podem ser interpretados, e que há justificativas para inferir-se deles a presença de impulsos e intenções refreados ou reprimidos. Mas o que constitui a enorme importância da interpretação de sonhos, bem como desse segundo estudo, não é a assistência que dão ao trabalho de análise, mas um outro de seus atributos. Previamente, a psicanálise se interessara apenas em solucionar manifestações patológicas e, a fim de explicá-las, tinha muitas vezes sido impelida a fazer suposições cujo caráter abrangente era inteiramente desproporcional para a importância do material real em consideração. Quando, no entanto, se tratava de sonhos, não estava mais lidando com sintoma patológico, mas com uma manifestação da vida mental normal que poderia ocorrer em qualquer pessoa sã. Se os sonhos viessem a ser interpretados como sintomas, se sua explanação exigisse as mesmas suposições - a repressão de impulsos, formação substitutiva, formação de conciliação, a divisão do consciente e do inconsciente em vários sistemas psíquicos - , então a psicanálise não seria mais uma ciência auxiliar no campo da psicopatologia, mas antes o ponto de partida de uma ciência nova e mais profunda da mente, que seria igualmente indispensável para a compreensão do normal. Seus postulados e achados poderiam ser levados a outras regiões da ocorrência mental; estava aberto para ela um caminho que conduzia muito longe, até as esferas do interesse universal. V Devo interromper meu relato do crescimento interno da psicanálise e voltar-me para sua história externa. O que descrevi até agora sobre suas descobertas relacionou-se em sua maior parte com os resultados de meu próprio trabalho, mas também preenchi minha história com material proveniente de datas ulteriores e não estabeleci distinção entre minhas próprias contribuições e as de meus alunos e seguidores. Por mais de dez anos após meu afastamento de Breuer, não tive seguidores. Fiquei completamente isolado. Em Viena, fui evitado; no exterior, ninguém me deu atenção. Minha Interpretação de Sonhos, vinda a lume em 1900, mal foi objeto de críticas nas publicações técnicas. Em meu artigo ‘A História do Movimento Psicanalítico’ [1914d], mencionei como exemplo da atitude adotada por círculos psiquiátricos de Viena uma conversa com um assistente na clínica [na qual eu fazia palestras], que escrevera um livro sobre minhas teorias, mas que nunca havia lido minha Interpretação de Sonhos. Haviam-lhe dito na clínica que não valia a pena. O homem em questão, que depois veio a ser professor, chegou ao ponto de repudiar meu relato da conversa e de lançar dúvidas em geral sobre a exatidão de minha memória. Só posso dizer que sustento todas as palavras do relato que então fiz. Logo que percebi a natureza inevitável daquilo com que me defrontara, minha sensibilidade diminuiu grandemente. Além disso, meu isolamento gradativamente chegou ao fim. Para começar, um pequeno círculo de alunos reuniu-se em torno de mim em Viena; e então, depois de 1906, chegou a notícia de que os psiquiatras de Zurique, E. Bleuler seu assistente C. G. Jung e outros, estavam adquirindo vivo interesse pela psicanálise. Entramos em contato pessoal, e na Páscoa de 1908 os amigos da nascente ciência reuniram-se em Salzburg, concordaram com a realização regular de outros congressos informais semelhantes e adotaram providências para a publicação de um órgão que foi organizado por Jung e que recebeu o título de Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen [Anuário de Pesquisas Psicanalíticas e Psicopatológicas]. Veio a lume sob a minha direção e a de Bleuler, deixando de ser publicado no início da [primeira] guerra mundial. Ao mesmo tempo que os psiquiatras suíços ingressavam no movimento, o interesse pela psicanálise começou também a ser despertado em toda a Alemanha, tornando-se tema de grande número de comentários escritos e de vivos debates em congressos científicos. Mas sua acolhida em parte alguma foi amistosa ou mesmo benevolentemente neutra. Após travar o mais leve conhecimento com a psicanálise, a ciência alemã estava coesa para rejeitá-la. Mesmo hoje, é-me naturalmente impossível prever o julgamento final da posteridade sobre o valor da psicanálise para a psiquiatria, a psicologia e as ciências mentais em geral. Mas imagino que, quando a história da fase em que vivemos vier a ser escrita, a ciência alemã não terá motivo para orgulhar-se daqueles que a representaram. Não estou pensando no fato de que rejeitaram a psicanálise ou na forma incisiva como o fizeram; ambas essas coisas eram facilmente inteligíveis, eram de se esperar e, de qualquer maneira, não lançaram descrédito algum sobre o caráter dos adversários da análise. Mas pelo grau de arrogância que demonstraram, pelo seu desprezo sem consciência da lógica e pela aspereza e falta de gosto dos seus ataques, não poderia haver desculpa alguma. Poder-se-á dizer que é infantilidade de minha parte dar livre curso a tais sentimentos, depois de transcorridos quinze anos, nem o faria, a menos que tivesse algo mais a acrescentar. Anos depois, durante a grande guerra, quando uma coorte de inimigos fazia contra a nação alemã a acusação de barbarismo, acusação que resume tudo o que escrevi acima, ela não obstante feriu profundamente, de modo a sentir que minha própria experiência não me permitiria contradizê-la. Um dos meus antagonistas vangloriava-se de silenciar seus pacientes logo que começavam a falar sobre qualquer coisa de natureza sexual, e evidentemente pensava que essa técnica lhe dava o direito de julgar o papel desempenhado pela sexualidade na etiologia das neuroses. Fora as resistências emocionais, tão facilmente explicáveis pela teoria psicanalítica que era impossível ter sido conduzido erroneamente por elas, parecia-me que o principal obstáculo estava no fato de que meus adversários consideravam a psicanálise como um produto da minha imaginação especulativa, e não estavam dispostos a crer no trabalho longo, paciente e imparcial que fora dedicado à sua elaboração. Visto que na opinião deles a análise nada tinha a ver com a observação ou a experiência, acreditavam que eles próprios estavam justificados em rejeitarem-na sem experiência. Outros ainda, que não se sentiam tão fortemente convencidos disso, repetiam em sua resistência a manobra clássica de não olhar pelo microscópio a fim de evitar ver o que haviam negado. É notável, realmente, quão incorretamente as pessoas agem quando são obrigadas a formar um julgamento próprio sobre algum novo assunto. Durante anos foi-me dito por críticos ‘benevolentes’ - e ainda hoje ouço a mesma coisa - que a psicanálise está certa até tal e tal ponto, mas que aí ela começa a exagerar e a generalizar sem justificativa. E sei que, embora nada seja mais difícil do que decidir onde tal ponto se encontra, esses críticos, algumas semanas ou alguns dias antes, ignoravam inteiramente o assunto. O resultado da anátema oficial contra a psicanálise foi que os analistas começaram a ficar mais coesos. No segundo congresso, realizado em Nuremberg em 1910, constituíram-se, por proposta de Ferenczi, em uma ‘Associação Psicanalítica Internacional’, dividida em grande número de sociedades locais, mas com um presidente comum. A associação sobreviveu à primeira guerra mundial e ainda existe, consistindo hoje em sociedades ramificadas na Áustria, Alemanha, Hungria, Suíça, Grã-Bretanha, Holanda, Rússia e Índia, bem como duas nos Estados Unidos. Providenciei no sentido de que C. G. Jung fosse nomeado primeiro presidente, o que depois veio a ser uma medida muito infeliz. Ao mesmo tempo, foi iniciado um segundo periódico dedicado à psicanálise, o Zentralblatt für Psychoanalyse [Periódico Central de Psicanálise], organizado por Adler e Stekel, e pouco depois um terceiro, Imago, organizado por dois analistas não médicos, H. Sachs e O. Rank, e destinado a tratar da aplicação da psicanálise às ciências mentais. Logo depois Bleuler [1910]publicou um artigo em defesa da psicanálise. Embora fosse um alívio encontrar dessa vez honestidade e lógica direta tomando parte na pendência, não pude sentirme inteiramente satisfeito com o ensaio de Bleuler. Ele procurava com demasiada ansiedade uma aparência de imparcialidade; nem constitui uma questão de acaso ser a ele que nossa ciência deve o valioso conceito de ambivalência. Em artigos ulteriores, Bleuler adotou tal atitude crítica em relação à estrutura teórica da análise e rejeitou ou lançou dúvidas sobre tais pontos essenciais dela, que eu não podia deixar de perguntar a mim próprio com assombro o que poderia restar para ele admirar. Contudo, não somente externou ele subseqüentemente os fortes apelos em favor da (‘psicologia profunda’, como baseou nela seu estudo abrangente de esquizofrenia [Bleuler, 1911]. Não obstante, Bleuler não continuou por muito tempo membro da Associação Psicanalítica Internacional, exonerando-se da mesma como resultado de desentendimento com Jung, e perdeu-se o Burghölzli para a análise. A desaprovação oficial não pôde prejudicar a divulgação da psicanálise nem na Alemanha nem em outros países. Em outra parte [1914d] acompanhei as fases de seu crescimento e dei os nomes daqueles que foram seus primeiros representantes. Em 1909, G. Stanley Hall convidou Jung e a mim para irmos aos Estados Unidos visitar a Clark University, Worcester, Mass., da qual era ele presidente, e passar uma semana pronunciando conferências (em alemão) nas comemorações do vigésimo aniversário de fundação daquela entidade. Hall era, com justiça, estimado como psicólogo e educador, e introduzira a psicanálise em seus cursos vários anos antes; havia um certo quê de ‘fazedor de reis’ em relação a ele, um prazer em erigir autoridades e depois depô-las. Conhecemos também ali James J. Putnam o neurologista de Harvard, que apesar de sua idade era partidário entusiasta da psicanálise e que lançou todo o peso de uma personalidade que era universalmente respeitada em defesa do valor cultural da análise e da pureza de suas finalidades. Era um homem estimável, no qual, como reação contra uma predisposição à neurose obsessiva, predominava uma tendenciosidade ética, e a única coisa inquietante nele era sua inclinação para vincular a psicanálise a um sistema filosófico particular a para fazer dela serva de objetivos morais. Outro fato dessa época que me causou impressão duradoura foi um encontro com William James, o filósofo. Jamais me esquecerei de uma pequena cena que ocorreu quando passeávamos juntos. Ele parou de repente, entregou-me uma bolsa que carregava e pediu-me que continuasse a caminhar, dizendo que me alcançaria logo que se recuperasse de um acesso de angina do peito que estava justamente surgindo. Morreu dessa doença um ano depois, e sempre desejei que me mostrasse tão destemido quanto ele em face da morte que se aproximava. Naquela época eu contava apenas cinqüenta e três anos de idade. Sentia-me jovem e saudável, e minha curta visita ao novo mundo encorajava meu auto-respeito em todos os sentidos. Na Europa eu me sentia como um proscrito, mas ali me via acolhido pelos melhores como um igual. Quando subi ao estrado em Worcester para pronunciar minhas Cinco Lições de Psicanálise [1910a], isto pareceu a concretização de um incrível devaneio: a psicanálise não era mais um produto de delírio, tornara-se uma parte valiosa da realidade. Ela não perdeu terreno nos Estados Unidos desde a nossa visita, é extremamente popular entre o público leigo e reconhecida por grande número de psiquiatras oficiais como importante elemento nos estudos médicos. Infelizmente, contudo, muito sofreu por ter sido diluída. Além disso, muitos desmandos que não têm relação alguma com ela encontram guarida sob seu nome, havendo poucas oportunidades de qualquer formação completa na técnica ou na teoria. Também nos Estados Unidos ela entrou em conflito com o behaviorismo, uma teoria que é suficientemente ingênua para vangloriar-se de haver tornado todo o problema da psicologia inteiramente improcedente. Na Europa, durante os anos de 1911-13, ocorreram dois movimentos secessionistas da psicanálise, conduzidos por homens que haviam previamente desempenhado considerável papel na nova ciência, Alfred Adler e C. G. Jung. Ambos os movimentos pareceram altamente ameaçadores e rapidamente obtiveram grande número de adeptos, contudo, sua força estava não em seu próprio conteúdo, mas na atenção que ofereciam de estar libertados do que se julgava como os achados repelentes da psicanálise, muito embora seu material real não fosse mais rejeitado. Jung tentou dar aos fatos da análise uma nova interpretação de natureza abstrata, impessoal e não histórica, e assim esperava escapar da necessidade de reconhecer a importância da sexualidade infantil e do complexo edipiano bem como da necessidade de qualquer análise da infância. Adler parecia afastar-se ainda mais da psicanálise; repudiou inteiramente a importância da sexualidade, remeteu a formação tanto do caráter quanto das neuroses unicamente ao desejo dos homens pelo poder e à necessidade de compensarem suas inferioridades constitucionais, lançou todas as descobertas psicológicas aos ventos. Mas o que ele rejeitara forçou sua volta ao seu sistema fechado sob outras designações; o ‘protesto masculino’ dele não passa da repressão injustificavelmente sexualizada. A crítica com que os dois heréticos se defrontaram foi branda; eu apenas insisti que tanto Adler como Jung deixassem de descrever suas teorias como ‘psicanálise’. Após um espaço de dez anos pode-se afirmar que ambas as tentativas contra a psicanálise foram desfeitas sem provocar qualquer dano. Se uma comunidade basear-se no consenso sobre alguns pontos cardeais, é evidente que as pessoas que abandonaram esse terreno comum deixarão de pertencer ao mesmo. Contudo, a secessão de antigos discípulos muitas vezes tem sido trazida à baila contra mim como sinal de minha intolerância, ou tem sido considerada como prova de certa fatalidade especial que paira sobre mim. Constitui resposta suficiente ressaltar que em contraste com aqueles que me abandonaram, como Jung, Adler, Stekel e alguns outros, existe grande número de pessoas, como Abraham, Eitingon, Ferenczi, Rank, Jones, Brill, Sachs, Pfister, Van Emden, Reik e outros, que trabalham comigo há uns quinze anos em leal colaboração e, em sua maior parte, numa amizade sem desfalecimentos. Mencionei apenas os mais antigos dos meus discípulos, que já se projetaram por si mesmos na literatura da psicanálise; se omiti outros, isto não deve ser considerado como um descuido, e na realidade entre aqueles que são jovens e que se associaram a mim ultimamente encontram-se talentos nos quais se podem depositar grandes esperanças. Mas penso que posso afirmar em minha defesa que um homem intolerante, dominado por uma crença arrogante em sua própria infalibilidade, jamais teria sido capaz de conservar seu domínio sobre um número tão vasto de pessoas intelectualmente eminentes, mormente se tivesse a seu dispor tão poucas atrações práticas quanto eu possuía. A guerra mundial, que dissolveu tantas outras organizações, nada pôde fazer contra a nossa ‘Internacional’. A primeira reunião após o conflito realizou-se em 1920, em Haia, em terreno neutro. Era comovedor ver quão hospitaleiramente os holandeses davam as boas-vindas aos súditos famintos e empobrecidos dos Estados europeus; e creio que esta foi a primeira ocasião, em um mundo arruinado, que ingleses e alemães se sentaram à mesma mesa para o debate amigável de interesses científicos. Tanto na Alemanha como nos países da Europa ocidental a guerra havia, na realidade, provocado interesse pela psicanálise. A observação das neuroses de guerra havia finalmente aberto os olhos da profissão médica para a importância da psicogênese em perturbações neuróticas, e algumas das nossas perturbações psicológicas, tais como o ‘ganho proveniente da doença’ e a ‘fuga para a doença’, rapidamente se tornaram populares. O último congresso antes do colapso alemão, realizado em Budapeste em 1918, contou com representantes oficiais dos governos aliados das potências européias centrais, havendo concordado com a criação de centros psicanalíticos para o tratamento de neuroses de guerra. Mas esse ponto jamais foi alcançado. De maneira semelhante, também os planos abrangentes elaborados por um dos nossos principais membros, o Dr. Anton Von Freund para o estabelecimento, em Budapeste, de um centro para estudo analítico e tratamento malograram, como resultado das convulsões políticas que se seguiram logo depois, e da morte prematura do seu autor insubstituível. Em data ulterior algumas de suas idéias foram postas em execução por Max Eitingon, que em 1920 fundou uma clínica psicanalítica em Berlim. Durante o breve período do domínio bolchevique na Hungria,Ferenczi ainda foi capaz de levar a cabo um curso bem-sucedido de estudos como representante oficial da psicanálise na Universidade de Budapeste. Após a guerra nossos adversários tiveram o prazer de anunciar que os fatos haviam produzido um argumento conclusivo contra a validade das teses de análise. As neuroses de guerra, disseram eles, haviam provado que os fatores sexuais eram desnecessários à etiologia de distúrbios neuróticos. Mas seu triunfo foi frívolo e prematuro, pois, por um lado, ninguém tinha sido capaz de efetuar uma análise completa de um caso de neurose de guerra, de modo que, de fato, não se conhecia ao certo absolutamente nada quanto à motivação deles e nenhuma conclusão podia ser inferida dessa incerteza: ao passo que, por outro lado, a psicanálise de há muito havia chegado ao conceito do narcisismo e das neuroses narcísicas, nas quais a libido do paciente está vinculada ao seu próprio ego, em vez de vinculada a um objeto. Portanto, embora em outras ocasiões se tivesse feito a acusação contra a psicanálise de haver ela efetuado uma ampliação injustificável do conceito de sexualidade, esse crime, quando se tornou conveniente para fins controvertidos, foi esquecido e ficamos mais uma vez presos ao significado mais estreito do termo. Se se deixar de lado o período catártico preliminar, a história da psicanálise enquadra-se, do meu ponto de vista, em duas fases. Na primeira dessas fiquei sozinho e tive de fazer eu mesmo todo trabalho: isso ocorreu de 1895-6 até 1906 ou 1907. Na segunda fase, que durou desde então até o presente momento, quando uma grave doença me adverte do fim que se aproxima, posso pensar com espírito tranqüilo na cessação de meus próprios labores.Por esse mesmo motivo, contudo, é-me impossível neste Estudo Autobiográfico tratar tão plenamente do progresso da psicanálise durante a segunda fase como o fiz com sua gradativa ascensão durante a primeira, que dizia respeito apenas à minha própria atividade. Julgo que devo apenas ter a justificativa de mencionar aqui essas novas descobertas nas quais ainda desempenhei um papel proeminente, em particular, portanto, aquelas feitas na esfera do narcisismo, da teoria dos instintos, e da aplicação da psicanálise às psicoses. Devo começar dizendo que a crescente experiência revelava cada vez mais claramente que o complexo edipiano era o núcleo da neurose. Era ao mesmo tempo o clímax da vida sexual infantil e o ponto de junção do qual todos os seus desenvolvimentos ulteriores provieram. Mas em caso afirmativo, não era mais possível esperar que a análise descobrisse um fator que era específico na etiologia das neuroses. Deve ser verdade, como Jung expressou tão bem nos primeiros dias em que ainda era analista, que as neuroses não possuem conteúdo peculiar algum que pertença exclusivamente a elas, mas que os neuróticos sucumbem às mesmas dificuldades que são superadas com êxito por pessoas normais. Essa descoberta estava muito longe de ser um desapontamento. Estava em completa harmonia com outra: que a psicologia profunda revelada pela psicanálise era de fato a psicologia da mente normal. Nosso caminho tinha sido como o da química: as grandes diferenças qualitativas entre substâncias eram remetidas a variações quantitativas nas proporções em que os mesmos elementos eram combinados. No complexo edipiano viu-se que a libido estava ligada à imagem das figuras dos pais. Antes, porém, houve um período no qual não havia tais objetos. Seguiu-se a partir desse fato o conceito (de fundamental importância para a teoria da libido) de um estado no qual a libido do indivíduo preenchia seu próprio ego e tinha este por seu objeto. Esse estado poderia ser denominado de narcisismo ou amor próprio. A reflexão de um momento demonstrava que esse estado nunca cessa completamente. Durante toda a vida do objeto seu ego permanece como o grande reservatório de sua libido, do qual as catexias objetais são transmitidas e no qual a libido pode refluir novamente a partir dos objetos. Assim, a libido narcísica está sendo constantemente transformada em libido objetal, e vice-versa. Um excelente exemplo da extensão até a qual essa transformação pode ir é proporcionado pelo estado de estar apaixonado, quer de uma maneira sexual, quer sublimada, que vai ao ponto de envolver um sacrifício do eu (self). Ao passo que até agora, ao considerar-se o processo de repressão, somente se dispensou atenção ao que foi reprimido, essas idéias tornaram possível formar uma estimativa correta das forças de repressão também. Fora dito que a repressão era posta em ação pelos instintos de autopreservação que atuam no ego (os ‘instintos do ego’) e que fazia com que ela se relacionasse com os instintos libidinais. Mas visto que os instintos de autopreservação foram então reconhecidos como também sendo de natureza libidinal, como sendo libido narcísica, o processo de repressão foi encarado como um processo que ocorre dentro da própria libido; a libido narcísica opunha-se à libido objetal, o interesse da autopredefendia-se contra as exigências do amor objetal, e portanto contra as exigências da sexualidade no sentido mais estreito também. Não há necessidade mais premente na psicologia do que de uma teoria dos instintos firmemente alicerçada, sobre a qual talvez então fosse possível formular outros pontos. Contudo, nada disto existe, e a psicanálise é impelida a envidar esforços especulativos no sentido de tal teoria. Ela começou por traçar um contraste entre os instintos do ego (os instintos da autopreservação, a fome) e os instintos libidinais (o amor), mas depois o substituiu por um novo contraste entre a libido narcísica e a libido objetal. Isto claramente não foi a última palavra sobre o assunto; pareceu que considerações biológicas tornaram impossível continuar-se satisfeito com a existência de apenas uma única classe de instintos. Nas obras de meus anos mais recentes (Além do Princípio do Prazer [1910g], Psicologia de Grupo e a Análise do Ego [1921c] e O Ego e o Id [1923b]), dei livre rédea à inclinação, que reprimi por tanto tempo, para a especulação, e também considerei uma nova solução do problema dos instintos. Combinei os instintos para a autopreservação e para a preservação da espécie sob o conceito de Eros e contrastei com ele um instinto de morte ou destruição que atua em silêncio. O instinto, em geral, é considerado como uma espécie de elasticidade das coisas vivas, um impulso no sentido da restauração que outrora existiu, mas que foi conduzida a um fim por alguma perturbação externa. Esse caráter essencialmente conservador dos instintos é exemplificado pelos fenômenos da compulsão de repetição. O quadro que a vida nos apresenta é o resultado da ação simultânea e mutuamente oposta de Eros e do instinto de morte. Resta ver se essa interpretação virá a ser útil. Embora surgisse do desejo de fixar algumas idéias teóricas mais importantes da psicanálise, vai muito além da psicanálise. Já ouvi dizer várias vezes em tom de desprezo que é impossível aceitar seriamente uma ciência cujos conceitos mais gerais se ressentem de exatidão, como os da libido e do instinto na psicanálise. Mas essa censura repousa numa concepção totalmente errônea dos fatos. Conceitos básicos claros e definições vivamente traçadas somente são possíveis nas ciências mentais até o ponto em que as segundas procuram ajustar uma região de fatos no arcabouço de um sistema lógico. Nas ciências naturais, das quais a psicologia é uma delas, tais conceitos gerais nítidos são supérfluos e realidade impossíveis. A zoologia e a botânica não partiram de definições corretas e suficientes de um animal e de uma planta; até hoje a biologia foi incapaz de dar qualquer significado certo ao conceito da vida. A própria física, realmente, jamais teria feito qualquer progresso se tivesse tido de esperar até que os seus conceitos de matéria, força, gravitação, e assim por diante, houvessem alcançado o grau conveniente de clareza e precisão. As idéias básicas ou os conceitos mais gerais em qualquer das disciplinas da ciência sempre ficam determinados no início e somente são explicados, para começar, mediante referência ao domínio dos fenômenos de que se originaram; é somente por meio de uma análise progressiva do material de observação que podem ser tornados claros e podem encontrar um significado significativo e consistente. Sempre julguei grave injustiça que as pessoas se tenham recusado a tratar a psicanálise como qualquer outra ciência. Essa recusa encontrou expressão no levantamento das mais obstinadas objeções. A psicanálise era constantemente censurada pela sua falta de completamento e insuficiência; embora seja claro que uma ciência baseada na observação não tem nenhuma outra alternativa senão elaborar seus achados de forma fragmentária e solucionar seus problemas passo a passo. Além disso, quando me esforcei por obter para a função sexual o reconhecimento que por tanto tempo fora negado a ela, a teoria psicanalítica foi tachada de ‘pansexualismo’. E quando dei ênfase à importância, até então desprezada, do papel desempenhado pelas impressões acidentais dos primeiros anos da juventude, foi-me dito que a psicanálise negava os fatores constitucionais e hereditários - coisa que jamais sonhei em fazer. Era um caso de contradição a qualquer preço e por quaisquer métodos. Eu já fizera tentativas, em fases mais antigas do meu trabalho, para chegar a alguns pontos de vista mais gerais com base na observação psicanalítica. Em um curto ensaio, ‘Formulações sobre os Dois Princípios do Funcionamento Mental’[1911b], chamei a atenção (e não havia, naturalmente, nada de original nisso) para o domínio do princípio de prazer-desprazer na vida mental e para o seu deslocamento pelo que é denominado de princípio de realidade. Posteriormente [em 1915] fiz uma tentativa para produzir uma ‘Metapsicologia’. Com isso eu queria dizer um método de abordagem de acordo com o qual todo processo mental é considerado em relação com três coordenadas, as quais eu descrevi como dinâmica, topográfica e econômica, respectivamente; e isso me pareceu representar a maior meta que a psicologia poderia alcançar. A tentativa não passou de uma obra incompleta; após escrever dois ou três artigos - ‘Os Instintos e suas Vicissitudes’ [1915c], ‘Repressão’ [1915d], ‘O Inconsciente’ [1915e], ‘Luto e Melancolia’ [1917e] etc. - fiz uma interrupção, talvez acertadamente, visto que o tempo para afirmações dessa espécie ainda não havia chegado. Em meus mais recentes trabalhos especulativos entreguei-me à tarefa de dissecar nosso aparelho mental, com base no ponto de vista analítico dos fatos patológicos, e o dividi em um ego, um id e um superego. O superego é o herdeiro do complexo edipiano e representa os padrões éticos da humanidade. Não gostaria de dar a impressão de que durante esse último período de meu trabalho voltei as costas à observação de pacientes e me entreguei inteiramente à especulação. Ao contrário, sempre fiquei no mais íntimo contato com o material analítico e jamais deixei de trabalhar em pontos detalhados de importância clínica ou técnica. Mesmo quando me afastei da observação, evitei cuidadosamente qualquer contato com a filosofia propriamente dita. Essa evitação foi grandemente facilitada pela incapacidade constitucional. Sempre me mostrei receptivo às idéias de G. T. Fechner e segui esse pensador em muitos pontos importantes. O alto grau em que a psicanálise coincide com a filosofia de Schopenhauer - ele não somente afirma o domínio das emoções e a suprema importância da sexualidade, mas também estava até mesmo cônscio do mecanismo da repressão - não deve ser remetida à minha familiaridade com seus ensinamentos. Li Schopenhauer muito tarde em minha vida. Nietzsche, outro filósofo cujas conjecturas e intuições amiúde concordam, da forma mais surpreendente, com os laboriosos achados da psicanálise, por muito tempo foi evitado por mim, justamente por isso mesmo; eu estava menos preocupado com a questão da prioridade do que em manter minha mente desimpedida. As neuroses foram o primeiro tema de análise e por muito tempo constituíram o único ponto. Nenhum analista podia duvidar que a clínica estava errada por isolar esses distúrbios das psicoses e por vinculá-los às doenças orgânicas nervosas. A teoria das neuroses pertence à psiquiatria, sendo necessária uma introdução a ela. Parecia, contudo, que o estudo analítico das psicoses é impraticável devido à sua falta de resultados terapêuticos. Os pacientes mentais, em geral, não têm a capacidade de formar um transferência positiva, de modo que o principal instrumento da técnica analítica é inaplicável aos mesmos. A transferência amiúde não se acha tão inteiramente ausente, mas pode ser utilizada até certo ponto, havendo a análise alcançado inegáveis êxitos com depressões cíclicas, ligeiras modificações paranóides e esquizofrenias parciais. Pelo menos tem constituído benefício para a ciência o fato de que em muitos casos o diagnóstico possa oscilar por tempo bastante longo entre o assumir a presença de uma psiconeurose ou de uma demência precoce, pois as tentativas terapêuticas iniciadas em tais casos resultaram em valiosas descobertas antes que tivessem de ser interrompidas. Mas a principal consideração nesse sentido é que muitas coisas que nas neuroses tiveram de ser buscadas nas profundidades são encontradas nas psicoses da superfície, visíveis a todos. Por esse motivo, os melhores temas para a demonstração de muitas asserções da análise são proporcionados pela clínica psiquiátrica. Assim, estava destinado a acontecer, dentro de pouco tempo, que a análise encontrasse seu caminho até os objetos da observação psiquiátrica. Muito cedo fui capaz (1896) de estabelecer em um caso de demência paranóide a presença dos mesmos fatores etiológicos e dos mesmos complexos emocionais que nas neuroses. Jung [1907] explicou alguns dos estereótipos mais enigmáticos em dementes pondo-os em relação com históricos das vidas de pacientes; Bleuer [1906] demonstrou a existência em várias psicoses de mecanismos como aqueles que a análise havia descoberto em neuróticos. Desde então os analistas jamais reduziam seus esforços no sentido de chegarem a uma compreensão das psicoses. Especialmente desde que se tornou possível trabalhar com o conceito de narcisismo, conseguiram, ora aqui, ora ali, ter uma visão além da barreira. O máximo, sem dúvida, foi alcançado por Abraham [1912] em sua elucidação das melancolias. É verdade que nesse campo todos os nossos conhecimentos ainda não se transformaram em poder terapêutico, mas a simples vitória teórica não deve ser desprezada, e podemos concentrar-nos em esperar pela sua aplicação prática. Em última análise, mesmo os psiquiatras não podem resistir à força convincente de seu próprio material clínico. No momento, a psiquiatria alemã vem passando por uma espécie de ‘penetração pacífica’ por pontos de vista analíticos. Embora declarem continuamente que jamais serão psicanalistas, que não pertencem à escola ‘ortodoxa’ nem concordam com seus exageros,e em particular que não crêem no predomínio do fator sexual, a maioria dos estudiosos mais jovens lança mão de uma peça ou outra da teoria analítica e a aplica a seu próprio modo ao material. Todos os indícios apontam para a proximidade de posteriores desenvolvimentos na mesma direção. VI Agora contemplo a distância as reações sintomáticas que estão acompanhando a introdução da psicanálise na França, que por tanto tempo se mostrou refratária. Assemelha-se à reprodução de algo que já vivi antes, e contudo tem peculiaridades próprias. Objeções de incrível simplicidade são levantadas, como a de que a sensibilidade francesa é ofendida pelo pedantismo e crueza da terminologia psicanalítica. (Não se pode deixar de recordar o imortal Chevalier Riccaut de la Marlinière de Lessing.) Um outro comentário tem ressonância mais séria (um professor de psicologia da Sorbonne não a julgava abaixo dele): toda a forma de pensamento da psicanálise, assim declarou ele, é incompatível com o génie latin. Aqui os aliados anglo-saxões da França, que contam como partidários da análise, são explicitamente abandonados. Qualquer um, ouvindo a observação, suporia que a psicanálise tinha sido a filha predileta do génie teutonique e havia ficado apegada ao seu seio desde o momento do nascimento. Na França o interesse pela psicanálise começou entre os homens de letras. A fim de compreender isso, deve-se ter em mente que, desde a época em que foi escrita A Interpretação de Sonhos a psicanálise deixou de ser um assunto puramente médico. Entre seu surgimento na Alemanha e na França está a história de suas numerosas aplicações a departamentos de literatura e estética, à história das religiões e à pré-história, à mitologia, ao folclore, à educação, e assim por diante. Nenhuma dessas coisas tem muito a ver com a medicina; de fato, é somente através da psicanálise que estão ligadas a ela. Não me cabe, portanto, entrar em grandes detalhes quanto a elas nestas páginas. Não posso, contudo, silenciar inteiramente sobre elas, pois, por um lado, são essenciais a uma apreciação correta da natureza e do valor da psicanálise, e, por outro, comprometi-me, afinal de contas, a fazer um relato da obra principal da minha vida. Os primórdios da maioria dessas aplicações da psicanálise serão encontrados em minhas obras. Aqui e ali segui um pouco a trilha a fim de gratificar meus interesses não médicos. Posteriormente,outros (não somente médicos, mas também especialistas nos vários campos) seguiram as minhas pegadas e penetraram a fundo nos diferentes temas. Mas visto que meu programa me limita a mencionar minha própria parcela nessas aplicações da psicanálise, posso apenas apresentar um quadro bem inadequado de sua extensão e importância. Grande número de sugestões me ocorreu a partir do complexo de Édipo, cuja ubiqüidade gradativamente comecei a compreender. A escolha do poeta, ou sua invenção, de um assunto tão terrível parecia enigmática, assim como o efeito esmagador de seu tratamento dramático, e a natureza geral de tais tragédias do destino. Mas tudo isso se tornou inteligível quando se compreendeu que uma lei universal da vida mental havia sido captada aqui em todo seu significado emocional. O destino e o oráculo nada mais eram do que materializações de uma necessidade interna; e o fato de o herói pecar sem seu conhecimento e contra suas intenções era evidentemente uma depressão certa da natureza inconsciente de suas tendências criminosas. A partir da compreensão dessa tragédia do destino só restava um passo para compreender uma tregédia de caráter - Hamlet, objeto de admiração por trezentos anos, sem que seu significado tivesse sido descoberto ou os motivos de seu autor adivinhados. Mal poderia haver a possibilidade de que essa criação neurótica do poeta viesse a malograr, como seus inúmeros companheiros da vida real, sobre o complexo de Édipo, pois Hamlet viu-se defrontado com a tarefa de tirar vingança de outro pelos dois feitos que são o tema dos desejos de Édipo; e diante daquela tarefa seu braço ficou paralisado pelo seu próprio obscuro sentimento de culpa. Shakespeare escreveu Hamlet logo após a morte do pai. As sugestões feitas por mim para a análise dessa tragédia foram plenamente elaboradas depois por Ernest Jones [1910]. E o mesmo exemplo foi posteriormente utilizado por Otto Rank como o ponto de partida para sua investigação da escolha de material feita por dramaturgos. Em seu grande volume sobre o tema do incesto (Rank, 1912) ele foi capaz de revelar como com tanta freqüência escritores têm tomado por assunto os temas de situação de Édipo e traçado, nas diferentes literaturas do mundo, a maneira pela qual o material tem sido transformado, modificado e suavizado. Era tentador prosseguir dali uma tentativa de análise da criação poética e artística em geral. O domínio da imaginação logo foi visto como uma ‘reserva’ feita durante a penosa transição do princípio de prazer para o princípio de realidade a fim de proporcionar um substituto para as satisfações instintuais que tinham de ser abandonadas na vida real. O artista, como o neurótico, se afastara de uma realidade insatisfatória para esse mundo da imaginação; mas, diferentemente do neurótico, sabia encontrar o caminho de volta daquela e mais uma vez conseguir um firme apoio na realidade. Suas criações, obras de arte, eram as satisfações imaginárias de desejos inconscientes, da mesma forma que os sonhos; e, como estes, eram da natureza de conciliações, visto que também eram forçados a evitar qualquer conflito aberto com as forças de repressão. Mas diferiam dos produtos a-sociais, narcísicos do sonhar, na medida em que eram calculados para despertar interesse compreensivo em outras pessoas, e eram capazes de evocar e satisfazer aos mesmos impulsos inconscientes repletos de desejos também nelas. Além disso, faziam uso do prazer percentual da beleza formal como o que chamei de um ‘abono de incentivo’. O que a psicanálise era capaz de fazer era tomar das inter-relações entre as impressões da vida do artista, suas experiências fortuitas e suas obras, e a partir delas interpretar a constituição [mental] dele e os impulsos instintuais em ação nela - isto é, aquela parte dele que ele partilhava com todos os homens. Com esse objetivo em vista, por exemplo, fiz de Leonardo da Vinci o tema de um estudo [1910c], que sebaseia numa única lembrança da infância relacionado por ele e que viso principalmente a explicar seu quadro de ‘Sant’Ana com a madona e o menino’. Desde então meus amigos e meus alunos têm empreendido numerosas análises de artistas e suas obras. Não parece que a fruição de uma obra de arte seja estragada pelo conhecimento auferido de tal análise. O leigo talvez possa esperar demais da análise nesse sentido, pois deve-se admitir que ela não lança luz alguma sobre os dois problemas que provavelmente mais lhe interessam. Ela nada pode fazer quanto à elucidação da natureza do dom artístico, nem pode explicar os meios pelos quais o artista trabalha - a técnica artística. Fui capaz de demonstrar por um conto de W. Jensen intitulado Gradiva [1907a], o qual não possui qualquer mérito específico por si mesmo, que os sonhos inventados podem ser interpretados da mesma forma que os reais e que os mecanismos inconscientes familiares a nós na ‘elaboração onírica’ são assim também atuantes nos processos dos escritos imaginativos. Meu livro sobre Jokes and their Relation to the Unconscious [1905c] foi um tema secundário proveniente diretamente de A Interpretação de Sonhos. O único amigo meu interessado naquela época em meu trabalho observou-me que minhas interpretações de sonhos muitas vezes o impressionavam como sendo chistes. A fim de lançar alguma luz sobre essa impressão, comecei a pesquisar chistes e verifiquei que sua essência estava nos métodos técnicos neles empregados, e que esses eram os mesmos que os meios utilizados na ‘elaboração onírica’ - isto é, condensação, deslocamento, a representação de uma coisa pelo seu oposto ou por algo pequeno, e assim por diante. Isso conduziu a uma indagação econômica de origem do alto grau de prazer obtido ao ouvir-se um chiste. E a isso a resposta foi que tal se devia à suspensão momentânea do dispêndio de energia na maturidade da repressão, devido à atração exercida pelo oferecimento de um abono de prazer (prazer preliminar). Eu próprio atribuí um valor mais elevado a minhas contribuições à psicologia da religião, que começaram com o estabelecimento de marcante similitude entre as práticas religiosas ou ritual (1907b). Sem ainda compreender as ligações mais profundas, descrevi a neurose obsessiva como uma religião particular distorcida e a religião como uma espécie de neurose obsessiva universal. Posteriormente, em 1912, a indicação convincente de Jung das analogias de amplas conseqüências entre os produtos mentais dos neuróticos e dos povos primitivos levou-me a voltar minha atenção paraaquele assunto. Em quatro ensaios, enfeixados num livro com o título de Totem e tabu [1912-13], mostrei que o horror do incesto era ainda mais acentuado entre as raças primitivas do que entre as civilizadas e dera lugar a medidas muito especiais de defesa contra ele. Examinei as relações entre as proibições tabus (a forma mais antiga na qual as restrições morais fazem seu surgimento) e a ambivalência emocional, e descobri sob o esquema primitivo do universo conhecido como ‘animismo’ o princípio da superestimativa da importância da realidade psíquica - a crença ‘na onipotência dos pensamentos’ - que está na raiz da magia também. Desenvolvi a comparação com a neurose obsessiva em todos os pontos, e mostrei quantos dos postulados da vida mental primitiva ainda estão em vigor nessa notável doença. Antes de tudo, todavia, vi-me atraído pelo totemismo, o primeiro sistema de organização nas tribos primitivas, um sistema no qual os inícios da ordem social estão unidos com uma religião rudimentar e com o domínio implacável de um pequeno número de proibições tabus. O ser reverenciado é, em última análise, sempre um animal, do qual o clã também pode reivindicar ser descendente. Muito indícios apontavam para a conclusão de que toda raça, mesmo a mais altamente desenvolvida, havia outrora passado pela fase do totemismo. As principais fontes literárias de meus estudos nesse campo foram as conhecidas obras de J. G. Frazer (Totemism and Exogamy e The Golden Bough), um filão de valiosos fatos e opiniões. Mas Frazer pouco realizou no sentido de elucidar os problemas do totemismo: ele várias vezes alterara fundamentalmente seus pontos de vista sobre o assunto, e os outros etnólogos e pré-historiadores parecem estar em igual incerteza e discordância. Meu ponto de partida foi a impressionante correspondência entre as duas ordenações tabus do totemismo (não matar o totem e não ter relações sexuais com qualquer mulher do mesmo clã do totem) e os dois elementos do complexo de Édipo (livrarse do pai e tomar a mãe como esposa). Vi-me, portanto, tentado a equacionar o animal-totem com o pai; e, de fato, os próprios povos primitivos fazem isso explicitamente honrando-o como o ancestral do clã. A seguir vieram em meu auxílio dois fatos da psicanálise, uma feliz observação de uma criança feita por Ferenczi [1929a], que me permitiu referir-me a um ‘retorno infantil do totemismo’, e a análise de fobias animais iniciais nas crianças, que tantas vezes revelaram que o animal era um substituto do pai, um substituto para o qual o medo ao pai, oriundo do complexo de Édipo, foradeslocado. Não me faltava muito para reconhecer o assassinato do pai como o núcleo do totemismo e o ponto de partida na formação da religião. Esse elemento que faltava foi suprido quando me familiarizei com a obra de W. Robertson Smith, The Religion of the Semites. Seu autor (um homem de suma capacidade intelectual que era tanto médico como perito em pesquisas bíblicas) introduziu a chamada ‘refeição totem’ como parte essencial da religião totêmica. Uma vez por ano o animal totem, que em outras épocas era considerado como sagrado, era solenemente abatido na presença de todos os membros do clã, devorado e então objeto de lamentações. O pesar era seguido de um grande festival. Quando levei ainda mais em conta a conjectura de Darwin de que os homens originalmente viviam em hordas, cada um sob o domínio de um único macho poderoso, violento e ciumento, surgiu diante de mim, de todos esses componentes, a seguinte hipótese ou, melhor dizendo, visão. O pai da horda primitiva, visto que era um déspota absoluto, apoderara-se para si mesmo de todas as mulheres; seus filhos, sendo-lhe perigosos como rivais, tinham sido mortos ou afugentados. Um dia, contudo, os filhos se reuniram e se aliaram para dominar, matar e devorar o pai, que fora seu inimigo mas também seu ideal. Após o feito foram incapazes de assumir sua herança, visto que se atrapalhavam mutuamente. Sob a influência do fracasso e do remorso aprenderam a chegar a um acordo entre si; agruparam-se num clã de irmãos, mediante o auxílio dos ditames do totemismo, que visavam impedir a repetição de tal feito, e em conjunto passaram a abrir mão da posse das mulheres por cuja causa haviam matado o pai. Foram então impelidos a encontrar mulheres estranhas, sendo esta a origem da exogamia que se acha tão estreitamente vinculada ao totemismo. A refeição totem era festival que comemorava o temível feito que decorria do sentimento de culpa do homem (ou ‘pecado original’) e que foi começo, ao mesmo tempo, da organização social, da religião e de restrições éticas. Ora, se supusermos que tal possibilidade foi um fato histórico ou não, ela traz a formação da religião para o círculo do complexo do pai e a baseia na ambivalência que domina esse complexo. Depois que o animal totem deixou de servir como substituto para ele, o pai primitivo, ao mesmo tempo temido e odiado, reverenciado e invejado, tornou-se o protótipo do próprio Deus. A rebeldia do filho e sua afeição pelo pai lutavam uma contra a outra através de uma constante sucessão de conciliações, que procuravam, por um lado, reparar o ato do parricídio e, por outro, consolidar as vantagens que ocasionara. Esse ponto de vista da religião lança uma luz particularmente clara sobre a base psicológica do cristianismo, no qual, como sabemos, a cerimônia da refeição totem ainda sobrevive com apenas um pouco dedistorção, sob a forma de comunhão. Gostaria explicitamente de mencionar que essa última observação não foi feita por mim, mas se encontra nas obras de Robertson Smith e Frazer. Theodor Reik e G. Róheim, o etnólogo, seguiram a linha do raciocínio que desenvolvi em Totem e Tabu e, numa série de importantes trabalhos, ampliaram-na, aprofundaram-na ou corrigiram-na. Eu próprio voltei a ela mais de uma vez, no curso de minhas investigações do ‘sentimento de culpa inconsciente’ (que também desempenha papel muito importante entre os motivos do sofrimento neurótico) e em minhas tentativas para formar uma vinculação mais estreita entre a psicologia social e a psicologia do indivíduo. Além disso, fiz uso da idéia de uma herança arcaica proveniente da época da ‘horda primitiva’ do desenvolvimento da humanidade ao explicar a suscetibilidade à hipnose. Tenho tomado pouca parte direta em outras aplicações da psicanálise, embora sejam de interesse geral. É somente um passo das fantasias dos neuróticos individuais para as criações imaginosas de grupos e povos, como as encontramos em mitos, lendas e contos de fadas. A mitologia tornou-se o domínio especial do Otto Rank; a interpretação dos mitos, sua ligação com os complexos inconscientes familiares da primeira infância, a substituição das explanações astrais por uma descoberta dos motivos humanos, tudo isto em grande medida devido aos seus esforças analíticos. O tema do simbolismo, também, encontrou muitos estudiosos entre meus seguidores. O simbolismo trouxe para a psicanálise muitos inimigos; muitos indagadores com mentes indevidamente prosaicas jamais foram capazes de perdoar a esta o reconhecimento do simbolismo, que decorreu da interpretação dos sonhos. Mas a análise não tem culpa da descoberta do simbolismo, pois de há muito fora conhecida em outros domínios do pensamento ( tais como o folclore, lendas e mitos) e neles desempenha papel ainda maior do que na ‘linguagem dos sonhos’. Eu próprio em nada contribuí para a aplicação da análise à educação. Era natural, entretanto, que as descobertas analíticas devessem atrair atenção de educadores e fazê-los ver os problemas delas sob uma nova luz. O Dr. Oskar Pfister pastor protestante de Zurique, desbravou o caminho, como incansável pioneiro, seguindo essa trilha, e não achou que a prática da análise era incompatível com o fato de ele conservar sua religião, embora fosse verdadeque tal ocorresse de forma sublimada. Entre muitos outros que trabalharam ao lado dele posso mencionar Frau Dr. Hug-Hellmuth e o Dr. S. Bernfeld, ambos de Viena. A aplicação da análise à educação profilática de crianças saudáveis e à correção daquelas que, embora na realidade não fossem neuróticas, se desviaram do curso normal de desenvolvimento, levou a uma conseqüência que é de importância prática. Não é mais possível restringir a pratica da psicanálise a médicos e dela excluir os leigos. De fato, um médico que não tenha passado por uma formação especial é, apesar do seu diploma, um leigo em análise, e alguém que não seja médico mas que tenha sido adequadamente formado pode, com referência ocasional a um médico, levar a efeito o tratamento analítico não somente de crianças mas também de neuróticos. Por um processo de desenvolvimento contra o qual teria sido inútil lutar, o próprio termo ‘psicanálise’ tornou-se ambíguo. Embora fosse originalmente o nome de um método terapêutico específico, agora também se tornou a denominação de uma ciência - a ciência dos processos mentais inconscientes. Por si só, essa ciência é poucas vezes capaz de lidar com um problema de maneira completa, mas parece fadada a prestar valiosa ajuda nos mais variados campos do conhecimento. A esfera de aplicação da psicanálise estende-se até a da psicologia, com a qual forma um complemento do maior significado. Lançando um olhar retrospectivo, portanto, ao mosaico que são labores da minha vida, posso dizer que comecei muitas vezes e joguei fora muitas sugestões. Algo surgirá deles no futuro, embora eu mesmo não possa dizer se será muito ou pouco. Posso, contudo, expressar a esperança de que abri um caminho para importante progresso em nossos conhecimentos. PÓS-ESCRITO (1935) O organizador desta série de estudos autobiográficos não considerou, que eu saiba, a possibilidade de que após certo lapso de tempo uma continuação pudesse ser escrita a qualquer um deles, sendo possível que isso tenha ocorrido somente no caso presente. Estou empreendendo a tarefa visto que meu editor norte-americano deseja publicar o pequeno trabalho numa nova edição. Ele veio a lume pela primeira vez nos Estados Unidos em 1927 (editado por Brenato), sob o título de Um Estudo Autobiográfico, mas foi levianamente lançado no mesmo volume como outro ensaio meu que deu seu título, O Problema de Análises Leigas, a todo o livro, obscurecendo assim o presente trabalho. Dois temas ocupam essas páginas: a história da minha vida e a história da psicanálise. Elas se acham intimamente entrelaçadas. Esse Estudo Autobiográfico mostra como a psicanálise veio a ser todo o conteúdo de minha vida e com razão presume que minhas experiências pessoais não são de qualquer interesse ao se traçar um paralelo de minhas relações com aquela ciência. Pouco antes de haver escrito esse estudo, parecia que minha vida logo chegaria ao fim pelo retorno de uma doença maligna; mas a perícia cirúrgica salvou-me em 1923 e fui capaz de continuar com minha vida e meu trabalho, embora não ficasse mais imune à dor. No período de mais de dez anos que então transcorreu, jamais abandonei meu trabalho analítico e meus escritos - como se prova pela conclusão do décimo-segundo volume da edição alemã de minhas obras completas. Mas eu próprio acho que se verificou importante mudança. Fios que no curso do meu desenvolvimento se haviam enredado começavam então a separar-se; interesses que eu adquirira num estádio mais avançado da minha vida ficaram para trás, enquanto os mais antigos e originais se tornaram proeminentes mais uma vez. É verdade que nessa última década levei a cabo partes importantes de meu trabalho analítico, tais como a revisão do problema da ansiedade em meu livro Inibições, Sintomas e Ansiedade (1926d) ou a simples explicação do ‘fetichismo’ sexual que fui capaz de fazer um ano depois (1927e). Não obstante, seria verdade dizer que, desde que formulei minha hipótese de existência de duas classes de instintos (Eros e o instinto da morte) e desde que propus uma divisão da personalidademental em um ego, um superego e um id (1923b), não prestei outras contribuições decisivas à psicanálise: o que tenho escrito sobre o assunto desde então tem sido ou dispensável ou logo teria sido proporcionado por outrem. Essa circunstância está ligada com uma alteração em mim mesmo, com o que poderia ser descrito como uma fase de desenvolvimento regressivo. Meu interesse, após fazer um détour de uma vida inteira pelas ciências naturais, pela medicina e pela psicoterapia, voltou-se para os problemas culturais que há muito me haviam fascinado, quando eu era um jovem quase sem idade suficiente para pensar. No próprio clímax do meu trabalho psicanalítico, em 1912, já tentara, em Totem e Tabu, fazer uso dos achados recém-descobertos da análise a fim de investigar as origens da religião e da moralidade. Levei então esse trabalho mais um passo à frente em dois ensaios ulteriores, O futuro de uma Ilusão (1927c) e O Mal-Estar na Civilização (1930a).Percebi ainda mais claramente que os fatos da história, as interações entre a natureza humana, o desenvolvimento cultural e os precipitados das experiências primitivas (cujo exemplo mais proeminente é a religião) não passam de um reflexo dos conflitos dinâmicos entre o ego, o id e o superego que a psicanálise estuda no indivíduo - são os mesmíssimos processos repetidos numa fase mais ampla. Em O Futuro de uma Ilusão exprimi uma avaliação essencialmente negativa da religião. Depois, encontrei uma fórmula que lhe fazia melhor justiça: embora admitindo que sua força reside na verdade que ela contém, mostrei que a verdade não era uma verdade material mas histórica. [1939a, Ensaio III, Parte II (G).] Esses estudos, os quais, embora tendo origem na psicanálise, se estendem muito além dela, talvez tenham despertado maior simpatia por parte do público do que a própria psicanálise. Podem ter desempenhado certo papel na criação da ilusão efêmera de que eu me encontrava entre os escritores aos quais uma grande nação como a Alemanha estava pronta a ouvir. Thomas Mann, um dos reconhecidos porta-vozes do povo alemão, encontrou um lugar para mim na história do pensamento moderno. Pouco depois minha filha Anna, atuando como minha procuradora, recebeu uma homenagem cívica na Rathaus de Frankfurt-am-Main, ocasião em que me foi conferido o Prêmio Goethe de 1930. Isso foi o clímax de minha vida como cidadão. Pouco depois as fronteiras do nosso país se estreitaram e a nação não quis mais saber deE neste ponto seja-me permitido interromper estas notas autobiográficas. O público não tem o direito de saber mais sobre meus assuntos pessoais - minhas lutas, meus desapontamentos e meus êxitos. Seja como for, tenho sido mais acessível e franco em alguns dos meus escritos (tais como A Interpretação de Sonhos e The Psychopathology of Everyday Life) do que as pessoas que descrevem suas vidas em geral o são para seus contemporâneos ou para a posteridade. Poucos agradecimentos recebi nesse sentido e não posso recomendar a ninguém que siga meu exemplo. Devo acrescentar mais algumas palavras à história da psicanálise durante a última década. Não pode haver mais dúvida alguma de que ela continuará; comprovou sua capacidade de sobreviver e de desenvolver-se tanto como um ramo do conhecimento quanto como um método terapêutico. O número de seus partidários (organizadores na Associação Psicanalítica Internacional) aumentou de maneira considerável. Além de grupos locais mais antigos (em Viena, Berlim, Budapeste, Londres, Holanda, Suíça e Rússia) a partir de então se constituíram sociedades em Paris e Calcutá, duas no Japão, várias nos Estados Unidos e, em data bem recente, uma em Jerusalém, outra na África do Sul e duas na Escandinávia. Com seus próprios recursos essas sociedades locais apóiam (ou estão em vias de formar) institutos de formação, nos quais se ministra instrução na prática da psicanálise de conformidade com um plano uniforme, e clínicas para pacientes externos, nas quais experimentados analistas, bem como alunos, dão tratamento gratuito a pacientes de recursos limitados. De dois em dois anos os membros da Associação Psicanalítica Internacional realizam um congresso no qual se apresentam trabalhos científicos e se solucionam questões de administração. O décimo-terceiro desses congressos (aos quais não posso mais comparecer) foi realizado em Lucerna, em 1934. De um núcleo de interesses comuns a todos os membros da Associação, seus trabalhos se irradiam em muitas direções diferentes. alguns dão grande ênfase ao esclarecimento e aprofundamento dos nossos conhecimentos de psicologia, ao passo que outros se interessam por manter-se em contato com a medicina e a psiquiatria. Do ponto de vista prático, alguns analistas atribuíram-se a tarefa de fazer com que a psicanálise seja reconhecida nas universidades e incluída no currículo médico, ao passo que outros se contentam em permanecer fora dessas instituições, não permitindo que a psicanálise seja menos importante no campo da educação do que no da medicina. Ocorre de quando em quando que um profissional da análiseverifique estar isolado em uma tentativa de enfatizar algum ponto único dos achados ou pontos de vista da psicanálise, à custa de todos os demais. Não obstante, a impressão total é satisfatória - de trabalho científico sério executado em alto nível. INIBIÇÕES, SINTOMAS E ANSIEDADE(1926 [1925]) INTRODUÇÃO DO EDITOR INGLÊS HEMMUNG, SYMPTON UND ANGST (a) EDIÇÕES ALEMÃS: 1926 Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag. 136 Pp. 1928 G.S., 11, 23-115. 1931 Neurosenlehre und Technik, 205-99. 1948 G.W., 14, 113-205. (b) TRADUÇÕES INGLESAS: Inhibition, Symptom and Anxiety 1927 Stamford, Conn.: Instituto Psicanalítico. vi + 103 Pp. (Trad. supervisionada por L. Pierce Clark; pref. de S. Ferenczi.) Inhibitions, Symptoms and Anxiety 1935-6 Psychoanal. Quart., 4 (4), 616-25; 5 (1), 1-28; (2) 261-79; (3) 415-43. (Trad. de H. A. Bunker.) The Problem of Anxiety 1936 Nova Iorque: Psychoanalytic Quartely Press and W. W. Norton. vii + 165 Pp. (Reimpressão da anterior sob a forma de volume.) Inhibitions, Symptoms and Anxiety 1936 Londres: Hogarth Press e Instituto de Psicanálise. 179 Pp. (Trad. de Alix Strachey.) Um resumo do capítulo I do original apareceu na Neue Freie Presse de Viena, a 21 de fevereiro de 1926. Parte da primeira tradução norte-americana foi reimpressa nos Archives of Psychoanalysis, 1 (1927), 461-521. Todas as três traduções foram autorizadas por Freud e, como ressalta Ernest Jones (1957, 139-40), os tradutores das duas últimas prepararam seus trabalhos simultaneamente e ignorando inteiramente as atividades um do outro. A presente tradução é uma versão consideravelmente modificada da publicada em Londres em 1936.Sabemos por Ernest Jones que este livro foi escrito em julho de 1925 e revisto em dezembro do mesmo ano, tendo vindo a lume na terceira semana de fevereiro do ano seguinte. Os tópicos por ele tratados abrangem vasto campo, havendo indícios de Freud ter encontrado inusitada dificuldade em unificar o trabalho. Isto é revelado, por exemplo, na forma como o mesmo assunto surge para exame em mais de um ponto em termos muito semelhantes, na necessidade em que Freud se viu de ordenar grande número de questões isoladas em seus ‘Adendos’, e mesmo no próprio título do livro. Não obstante, é verdade que - apesar de tais importantes problemas secundários, como as diferentes classes de resistência, a distinção entre repressão e defesa, e as relações entre ansiedade, dor e luto - o problema da ansiedade constitui seu principal tema. Um exame da relação apresentada no Apêndice B ([1]) será suficiente para demonstrar como com tanta freqüência ele estava presente na mente de Freud do começo ao fim de seus estudos psicológicos. Embora sobre certos aspectos do assunto suas opiniões sofressem pequena modificação, sobre outros, conforme ele nos relata nestas páginas, elas foram consideravelmente modificadas. Talvez seja de interesse delinear, pelo menos toscamente, a história dessas alterações em dois ou três dos mais importantes temas em jogo. (a) A ANSIEDADE COMO LIBIDO TRANSFORMADA Foi no curso da investigação das neuroses ‘atuais’ que Freud pela primeira vez se defrontou com o problema da ansiedade, sendo que suas primeiras apreciações sobre ela serão encontradas em seu primeiro artigo sobre a neurose de angústia (1895b) e no memorando acerca do assunto que enviou a Fliess pouco depois, provavelmente no verão de 1894 (Freud, 1950a, Rascunho E). Naquela época ele ainda se encontrava em grande parte sob a influência de seus estudos neurológicos e imerso em sua tentativa de expressar os dados da psicologia em termos fisiológicos. Em particular, seguindo Fechner, aceitara como postulado fundamental o ‘princípio de constância’, de acordo com o qual havia uma tendência inerente ao sistema nervoso de reduzir, ou pelo menos de manter constante, o grau de excitação nele presente. Quando, portanto, fez a descoberta clínica de que em casos de neurose de angústia sempre era possível descobrir certa interferência com a descarga de tensão sexual, foi-lhe natural concluir que a excitação acumuladaescapava sob a forma transformada de ansiedade. Ele considerou isso como um processo puramente físico sem quaisquer determinantes psicológicos. Desde o início a ansiedade que ocorria em fobias ou em neuroses obsessivas levantava uma complicação, pois aqui a presença dos fatos psicológicos não podia ser excluída. Mas, no tocante ao surgimento da ansiedade, a explicação continuava a mesma. Nesses casos - nas psiconeuroses - a razão do acúmulo de excitação não descarregada era psicológica: repressão. Mas o que se seguiu foi o mesmo que nas neuroses ‘atuais’: a excitação acumulada (ou libido) foi transformada diretamente em ansiedade. Algumas citações indicarão com que lealdade Freud manteve esse ponto de vista. No ‘Rascunho E’ (c. 1894), mencionado acima, escreveu ele: ‘A ansiedade surge por uma transformação da tensão acumulada’. Em A Interpretação de Sonhos (1900a): ‘A ansiedade é um impulso libidinal que tem sua origem no inconsciente e é inibido pelo pré-consciente’. (Edição Standard Brasileira, Vol. IV, Pp. 358-60, IMAGO Editora, 1972.) Em Gradiva (1907a): ‘A Ansiedade em sonhos de ansiedade, como a ansiedade neurótica em geral,... decorre da libido pelo processo de repressão’. (Standard Ed., 9, 60-1.) No artigo metapsicológico sobre ‘Repressão’ (1915d): Após a repressão ‘a parcela quantitativa [do impulso instintual - isto é, sua energia] não desapareceu, mas foi transformada em ansiedade’. (Edição Standard Brasileira, Vol. VIV, p. 179, IMAGO Editora, 1974.) Finalmente, já em 1920, Freud acrescentou numa nota de rodapé à quarta edição dos Três Ensaios: ‘Um dos resultados mais importantes da pesquisa psicanalítica é essa descoberta de que a ansiedade neurótica se origina da libido, que é produto de uma transformação desta e que, assim, se relaciona com ela da mesma forma que o vinagre com o vinho’. (Edição Standard Brasileira, Vol. VIII, p. 231, IMAGO Editora, 1972.) É curioso observar, contudo, que numa fase bem inicial Freud parece haver sido assaltado por dúvidas sobre o assunto. Numa carta a Fliess de 14 de novembro de 1897 (Freud, 1950a, carta 75), ele observa, sem qualquer conexão aparente com o restante do que vem escrevendo: ‘Resolvi, então, de agora por diante considerar como fatores separados o que causa a libido e o que causa ansiedade’. Não se encontra em parte alguma qualquer outra prova dessa retratação isolada. Na obra que temos diante de nós Freud desiste da teoria que sustentara por tanto tempo. Ele não considerava mais a ansiedade como libido transformada, mas como uma reação sobre um modelo específico a situações de perigo. Mas mesmo aqui ainda sustentava [1] que era bem possível que no caso da neurose de angústia ‘o que encontra descarga na geração da ansiedade é precisamente o excedente da libido não utilizada’. Essa última relíquia da antiga teoria iria ser abadonada poucos anos depois.Num trecho perto dofinal de seu exame sobre ansiedade, na Conferência XXXII de suas New Introductory Lectures (1933a), escreveu que também na neurose de angústia o surgimento de ansiedade era uma reação a uma situação traumática: ‘não sustentaremos mais que é a própria libido que se transformou em ansiedade em tais casos.’ (b) ANSIEDADE REALÍSTICA E NEURÓTICA Apesar de sua teoria de que a ansiedade neurótica era simplesmente libido transformada, Freud desde o início se deu ao trabalho de insistir na estreita relação entre a ansiedade devida a perigos externos e a perigos instintuais. Em seu primeiro artigo sobre a neurose de angústia (1895b) escreveu: ‘A psique é dominada pelo afeto de ansiedade se sentir que é incapaz de lidar por meio de uma reação apropriada com uma tarefa (um perigo) que se aproxima de fora. Nas neuroses é dominada pela ansiedade se notar que é incapaz de atenuar uma excitação (sexual) que tenha surgido de dentro. Assim se comporta, como se estivesse projetando essa excitação para fora. O fato [ansiedade normal] e a neurose correspondente se acham em firme relação um com a outra: o primeiro é a reação a uma excitação exógena e a segunda a uma reação endógena análoga.’ Essa posição, especialmente em relação com fobias, foi aprimorada depois dos escritos de Freud - por exemplo, nos artigos metapsicológicos sobre ‘Repressão’ (1915d) e ‘O Inconsciente’ (1915e), Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, Pp. 178-81, 182-4 e 209-11, IMAGO Editora, 1974, e na conferência XXV das Conferências Introdutórias. Mas foi difícil conservar a uniformidade da ansiedade nos dois tipos de caso enquanto se insistia na derivação direta da ansiedade a partir da libido quanto às neuroses ‘atuais’. Com o abandono desse ponto de vista a nova distinção entre ansiedade automática e ansiedade como um sinal toda a situação foi esclarecida e deixou de haver qualquer motivo para se ver uma diferença genérica entre ansiedade neurótica e realística. (c) A SITUAÇÃO TRAUMÁTICA E AS SITUAÇÕES DE PERIGO As dificuldades deste livro aumentam quando se observa que a distinção entre a ansiedade como um sinal do perigo de abordagem desse trauma, embora já aflorada em vários pontos anteriores, só é confirmadano último capítulo. (Um relato ulterior e mais breve, apresentado na Conferência XXXII de New Introductory Lectures, talvez seja mais fácil de ser apreendido.) O determinante fundamental da ansiedade automática é a ocorrência de uma situação traumática; e a essência disto é uma experiência de desamparo por parte do ego face de um acúmulo de excitação, quer de origem externa quer interna, com que não se pode lidar ([1],[2]e [3]). A ansiedade ‘como um sinal’ é a resposta do ego à ameaça da ocorrência de uma situação traumática. Tal ameaça constitui uma situação de perigo. Os perigos internos modificam-se com o período de vida,ver em ([1]e [2]), mas possuem uma característica comum, a saber, envolver a separação ou perda de um objeto amado, ou uma perda de seu amor,ver em ([1]) - uma perda ou separação que poderá de várias maneiras conduzir a um acúmulo de desejos insatisfatórios e dessa maneira a uma situação de desamparo. Embora Freud não houvesse reunido antes todos esses fatores, cada um deles tem uma longa história prévia. A própria situação traumática é claramente o descendente direto do estado de tensão acumulada e não descarregada dos primeiros escritos de Freud sobre a ansiedade. Alguns dos relatos da mesma, aqui apresentados, podem ser citações de 1894 a 1895. Por exemplo, ‘sofrendo de uma dor que não pára ou experimentando um acúmulo de necessidades instintuais que não podem conter satisfação’, na [1], pode ser comparado com ‘um acúmulo psíquico de excitação... devido à descarga ficar retida’, segundo o ‘Rascunho E’ (Freud, 1950a). Nesse período inicial as excitações acumuladas, é verdade, eram julgadas quase invariavelmente libidinais, mas não de todo invariavelmente. Depois no mesmo ‘Rascunho E’ encontra-se uma frase que ressalta que a ansiedade pode ser ‘uma sensação de um acúmulo de outro estímulo endógeno - o estímulo no sentido de respirar...; a ansiedade pode, portanto, ser capaz de ser utilizada em relação com a tensão física acumulada em geral’. Além disso, no ‘Project’ de 1895 (Freud, 1950a, Parte I, Seção 1) Freud enumera as principais necessidades que dão lugar a estímulos endógenos que exigem descarga - ‘fome, respiração e sexualidade’, e em trecho posterior (Parte I, Seção 11) observa que em algumas condições essa descarga ‘exige uma alteração no mundo externo (por exemplo, o suprimento de nutrição ou a proximidade do objeto sexual)’ que ‘em fases iniciais o organismo humano é incapaz de alcançar’. A fim de ocasionar isto necessita-se de ‘ajuda estranha’, que a criança atrai pelos seus gritos. E aqui Freud expende comentários sobre o ‘desamparo original dos seres humanos’. Existe uma referência semelhante na Parte III, Seção 1, da mesma obra, à necessidade de ‘atrair a atenção de alguma personagem útil (que é, em geral, opróprio objeto desejado) para o anseio e aflição da criança’. Esses trechos parecem ser uma indicação prematura da situação de desamparo aqui descrita, ver em ([1] e [2]), em que a criança sente falta da mãe - situação que fora claramente mencionada na nota de rodapé aos Três Ensaios (1950d) na qual Freud explicava a ansiedade de uma criança no escuro como sendo devida à ‘ausência de alguém que amava’ (Edição Standard Brasileira, Vol. VII, p. 231, IMAGO Editora, 1972). Mas isso nos levou à questão dos vários perigos específicos que são capazes de precipitar uma situação traumática em diferentes épocas da vida. Estes, em breves linhas são os seguintes: o nascimento, a perda da mãe como um objeto, a perda do pênis, a perda do amor do objeto, a perda do amor do superego. A questão do nascimento é tratada na seção seguinte e acabamos de mencionar algumas primeiras referências à importância da separação da mãe. O perigo da castração com seus efeitos devastadores constitui sem dúvida o mais familiar de todos esses perigos. Mas vale a pena lembrar uma nota de rodapé acrescentada em 1923 ao caso clínico de ‘Little Hans’ (1909b), no qual Freud reprova a aplicação da expressão ‘complexo de castração’ às outras espécies de separação que a criança deve inevitavelmente experimentar (Standard Ed., 10, 8 n.) possivelmente podemos ver nessa passagem um primeiro indício do conceito de ansiedade devido à separação que aqui se torna proeminente. A ênfase dada ao perigo de perder o amor ao objeto amado é explicitamente relacionada ([1]) com as caracteristicas da sexualidade feminina, que só recentemente começaram a ocupar a mente de Freud. Finalmente, o perigo de perder o amor do superego nos leva de volta aos problemas, já há muito debatidos, do sentimento de culpa, que haviam sido reenunciados há pouco em O Ego e o Id (1923b). (d) A ANSIEDADE COMO UM SINAL Conforme aplicada ao desprazer em geral, esta era uma noção muito antiga de Freud. Na Seção 6 da Parte II do “Project” póstumo de 1895 (Freud, 1950a) existe um relato de um mecanismo pelo qual o ego restringe a geraçãode experiências dolorosas: ‘Dessa maneira, a liberação do desprazer fica restringida em quantidade, e seu início atua como um sinal ao ego a fim de fixar uma defesa normal em funcionamento.’ De maneira semelhante, em A Interpretação de Sonhos (1900a), Edição Standard Brasileira, Vol. V, p. 641, IMAGO Editora, 1972, fundamenta-se que o pensar deve visar ‘restringir o desenvolvimento do afeto na atividade do pensamento ao mínimo exigido para agir como sinal’. Em ‘O Inconsciente’ (1915e), Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, p. 210, IMAGO, 1974, a idéia já é aplicada à ansiedade. Examinando o surgimento de ‘idéias substitutivas’ na fobia, escreve Freud: ‘A excitação de qualquer ponto dessa estrutura externa, dada sua ligação com a idéia substitutiva, deve inevitavelmente dar lugar a um ligeiro desenvolvimento da ansiedade; isto passa a ser utilizado como um sinal para inibir... o progresso posterior do desenvolvimento da ansiedade.’ De maneira semelhante na Conferência XXV das Conferências Introdutórias, o estado de ‘ansiosa expectativa’ é descrito em um ou dois pontos como oferecendo um ‘sinal’ para impedir o irromper de grave ansiedade. A partir daí não se estava longe da iluminadora exposição destas páginas. Pode-se observar que no presente trabalho também o conceito é introduzido pela primeira vez como um sinal de ‘desprazer’,ver em ([1]) e só subseqüentemente como de ‘ansiedade’. (e) A ANSIEDADE E O NASCIMENTO Resta a questão do que é que determina a forma pela qual a ansiedade se manifesta. Isto também foi examinado por Freud em seus primeiros escritos. Para começar (sistematicamente com seu ponto de vista da ansiedade como libido transformada) ele considerava o mais impressionante de seus sintomas - a dispnéia e as palpitações - como elementos do ato da cópula, os quais, na ausência dos meios normais de descarga da excitação, surgiam de forma isolada e exagerada. Esse relato será encontrado no Rascunho E dos artigos de Fliess, mencionados acima, e que provavelmente datam de junho de 1894, e no final da Seção III do primeiro artigo sobre neurose de angústia (1895b), sendo repetido no caso clínico de ‘Dora’ (1950e) [1901], onde Freud escreveu: Afirmei, anos atrás, que a dispnéia e as palpitações que ocorrem na histeria e na neurose da angústia são apenas fragmentos soltos do ato de copulação.’ (Edição Standard Brasileira, Vol. VIII, p. 77, IMAGO Editora, 1972.) Não está claro como tudo isto se ajustou aos pontos de vista de Freud quanto à expressão da emoções em geral. Certamente parecem ter em última análise provindo de Darwin. Nos Estudos sobre a Histeria (1895d) ele citouduas vezes o volume de Darwin sobre o assunto (Darwin, 1872), e na segunda ocasião recordou que Darwin ensinara que a expressão das emoções ‘consiste em ações que originalmente possuíam um significado e serviam a uma finalidade’ (Edição Standard Brasileira, Vol. II, p. 231, IMAGO Editora, 1974). Num debate perante a Sociedade Psicanalítica de Viena em 1909, Freud, segundo Jones (1955, 494), havia afirmado que ‘todo afeto... é apenas uma reminiscência de um fato’. Muito depois da Conferência XXV das Conferências Introdutórias (1916-17), ele abordou esse ponto novamente e expressou a crença de que o ‘núcleo’ de um fato é ‘a repetição de alguma experiência significativa específica’. Recordou também a explicação que havia dado anteriormente sobre ataques histéricos (1909a, Standard Ed., 9, 232) como revivescências de fatos da infância, e acrescentou sua conclusão de que ‘um ataque histérico pode ser parecido com um afeto individual recém-construído, e um afeto normal com a expressão de uma histeria geral que se tornou uma herança’. Ele repete essa teoria, quase nos mesmos termos, na presente obra,ver em ([1],[2],[3] e [4]). Qualquer que seja o papel que essa teoria dos afetos tenha desempenhado na explicação anterior de Freud quanto à forma assumida pela ansiedade, ela o desempenhou de maneira essencial em sua nova explicação, a qual surgiu, aparentemente sem aviso, em uma nota de rodapé acrescentada à segunda edição de A Interpretação de Sonhos (Edição Standard Brasileira, Vol. V, p. 428, IMAGO Editora, 1972). No final de certa apreciação das fantasias sobre a vida no ventre, prosseguiu ele (e imprimiu a frase em tipo espaçado): ‘Além disso, o ato de nascer é a primeira experiência de ansiedade, sendo assim a fonte e o protótipo da sensação de ansiedade.’ A edição veio a lume em 1909, mas o prefácio traz a data ‘Verão de 1908’. Uma possível pista para o súbito surgimento, naquela ocasião, dessa idéia revolucionária encontra-se no fato de que Freud, não havia muito tempo, contribuíra com um prefácio (datado de ‘Março de 1908’) para o livro de Stekel sobre estados de ansiedade (Freud, 1908f). O prefácio, é verdade, não contém a mais leve idéia sobre a nova teoria, ao passo que o próprio livro de Stekel parece explicitamente aceitar a teoria anterior de Freud sobre a vinculação entre a ansiedade e a copulação. Não obstante, o interesse de Freud deve ter sido sem dúvida focalizado mais uma vez sobre o problema, e pode ser que nesse ponto uma antiga lembrançapossa ter sido revivida em relação a um fato descrito por ele posteriormente, no curso de sua apreciação da ansiedade nas Conferências Introdutórias. Essa lembrança dizia respeito ao que se pretendia ser uma anedota cômica - que lhe fora contada, quando era médico interno, por outro jovem colega - sobre como uma parteira havia declarado existir uma ligação entre o nascimento e o estar assustado. A lembrança deve ter remontado a mais ou menos 1884, embora Freud não pareça tê-la mencionado até essa conferência em 1917. Parece possível que a lembrança tivesse sido de fato evocada pela sua leitura do livro de Stekel e que tenha provocado o surgimento de nova teoria em 1908. A partir daí, essa teoria jamais foi abandonada. Ele lhe atribuiu especial proeminência no primeiro dos seus artigos sobre a psicologia do amor (1910h), Edição Standard Brasileira, Vol. XI, p. 156, IMAGO Editora, 1970. Embora não fosse publicado senão em 1910, sabemos que seus pontos principais foram apresentados à Sociedade Psicanalítica de Viena em maio de 1909; enquanto em novembro do mesmo ano as atas da sociedade (citadas por Jones, 1955, 494) informam ter ele observado que as crianças começam sua experiência de ansiedade no próprio ato do nascimento. Após a conferência de 1917, o assunto permaneceu inexplorado durante vários anos, até reaparecer subitamente no fim do antepenúltimo parágrafo de O Ego e o Id (1923b), onde Freud se referia ao nascimento como ‘o primeiro grande estado de ansiedade’. Isto nos leva à época da publicação do livro de Rank, The Trauma of Birth. A relação cronológica entre essa frase de Freud e a obra de Rank não é inteiramente clara. O Ego e o Id veio a lume em abril de 1923. A página de rosto do livro de Rank traz a data ‘1924’, mas em sua última página encontram-se as palavras ‘escrito em abril de 1923’; e a dedicatória declara que o livro foi ‘presenteado’ a Freud em 6 de maio de 1923 (aniversário de Freud). Embora Ernest Jones (1957, 60) afirme especificamente que Freud não o lera antes de sua publicação em dezembro de 1923, ele estava cônscio dos delineamentos gerais das idéias de Rank já em setembro de 1922 (ibid., 61), e isso sem dúvida é bastante para explicar a referência ao nascimento em O Ego e o Id. O livro de Rank representou muito mais do que uma adoção da explicação de Freud da forma assumida pela ansiedade. Argumentou ele que os ataques ulteriores de ansiedade eram tentativas de ‘ab-reagir’ o trauma do nascimento. Ele explicou todas as neuroses em moldes semelhantes, destronando incidentalmente o complexo de Édipo, e propôs uma técnica terapêutica reformada, baseada na superação do trauma do nascimento. As referências publicadas de Freud ao livro pareciam a princípio favoráveis. Mas a presente obra revela uma inversão completa e final dessa opinião. Sua rejeição dos pontos de vista de Rank, contudo, estimulou-o a uma reconsideração própria, e Inibições, Sintomas e Ansiedade foi o resultado. Trechos da primeira (1936) tradução londrina dessa obra foram incluídos em A General Selection from the Works of Sigmund Freud (1937, 275-291), de Rickman. INIBIÇÕES, SINTOMAS E ANSIEDADE I Na descrição das manifestações patológicas, o uso lingüístico permite-nos distinguir sintomas de inibições, sem, contudo, atribuir-se grande importância à distinção. Na realidade, dificilmente poderíamos pensar que valeria a pena diferenciar exatamente entre os dois, não fosse o fato de encontrarmos moléstias nas quais observamos a presença de inibições mas não de sintomas, e ficamos curiosos para saber a razão disso. Os dois conceitos não se encontram no mesmo plano. A inibição tem uma relação especial com a função, não tendo necessariamente uma implicação patológica. Podemos muito bem denominar de inibição a uma restrição normal de uma função. Um sintoma, por outro lado, realmente denota a presença de algum processo patológico. Assim, uma inibição pode ser também um sintoma. O uso lingüístico, portanto, emprega a palavra inibição quando há uma simples redução de função, e sintoma quando uma função passou por alguma modificação inusitada ou quando uma nova manifestação surgiu desta. Muito amiúde parece ser assunto bem arbitrário, quer ressaltemos o lado positivo de um processo patológico e chamemos o seu resultado de sintoma, quer ressaltemos seu lado negativo e intitulemos seu resultado de inibição. Mas tudo isso é realmente de pouco interesse e o problema, conforme o enunciamos, não nos leva muito longe. Visto que o conceito da inibição se acha tão intimamente associado com o da função, talvez fosse valioso examinar as várias funções do ego com vistas a descobrir as formas que qualquer perturbação dessas funções assume em cada uma das diferentes afecções neuróticas. Tomemos para um estudo comparativo dessa natureza a função sexual e as do comer, da locomoção e do trabalho profissional. (a) A função sexual está sujeita a grande número de perturbações, a maioria das quais exibe as características de inibições simples. Estas são classificadas em conjunto como impotência psíquica. O desempenho normal da função sexual só pode ocorrer como resultado de um processo muito complicado, podendo surgir distúrbios em qualquer ponto do mesmo. Nos homens as principais fases nas quais a inibição ocorre são reveladas por: um afastamento da libido no próprio início do processo (desprazer psíquico); ausência do preparo físico para ela (falta de ereção); abreviação do ato sexual(ejaculatio praecox), ocorrência que pode igualmente ser considerada como um sintoma; uma suspensão do ato antes de haver chegado à sua conclusão natural (ausência de ejaculação); ou o não surgimento do resultado psíquico (falta da sensação de prazer no orgasmo). A partir da função sexual, surgem outras perturbações que se tornam dependentes de condições especiais de natureza pervertida ou fetichista. Que existe uma relação entre a inibição e a ansiedade é algo evidente. Algumas inibições obviamente representam o abandono de uma função porque sua prática produziria ansiedade. Muitas mulheres manifestamente temem a função sexual. Classificamos essa ansiedade sob a histeria, do mesmo modo como fazemos em relação ao sintoma defensivo da repulsa que, surgindo originalmente como uma reação preterida à experiência de um ato sexual passivo, aparece depois, sempre que a idéia de tal ato é apresentada. Além disso, muitos atos obsessivos vêm a ser medidas de precaução e de segurança contra experiências sexuais, sendo assim de natureza fóbica. Isto não é muito ilustrativo. Podemos apenas observar que as perturbações da função sexual são acarretadas por grande variedade de meios. (1) A libido pode simplesmente ser afastada (isto parece produzir, com a maior rapidez, o que consideramos uma inibição pura e simples); (2) a função pode ser executada de forma menos perfeita; (3) pode ser prejudicada por ter condições ligadas a ela, ou modificada pelo desvio para outras finalidades; (4) pode ser impedida por medidas de segurança; (5) se não puder ser impedida desde o início, pode ser imediatamente interrompida pelo aparecimento da ansiedade; e (6) se for, não obstante, levada a efeito, poderá haver uma subseqüente reação de protesto contra ela e uma tentativa de desfazer o que foi feito. (b) A função da nutrição é, com a maior freqüência, perturbada por uma falta de inclinação para comer, acarretada por uma retirada da libido. Um aumento do desejo de comer também não constitui coisa incomum. A compulsão para comer é atribuída ao medo de morrer de fome, mas isto é um assunto pouco estudado. O sintoma de vômitos é conhecido por nós como uma defesa histérica contra o comer. A recusa de comer devido à ansiedade é concomitante de estados psicóticos (delírios de ser envenenado). (c) Em algumas condições neuróticas a locomoção é inibida por uma indisposição para andar ou por uma fraqueza no caminhar. Na histeria haverá uma paralisia do aparelho motor, ou essa função especial do aparelho será abolida (abasia). Especialmente características são as dificuldades maiores que surgem na locomoção devido à introdução de certas estipulações cuja inobservância resulta em ansiedade (fobia).(d) Na inibição no trabalho - fato com o qual tantas vezes temos de lidar como um sintoma isolado em nosso trabalho terapêutico - o indivíduo sente uma diminuição do seu prazer nele, ou se torna menos capaz de realizá-lo bem, ou então experimenta certas reações no tocante ao mesmo, como a fadiga, a tontura ou o enjôo, se for obrigado a prosseguir com o mesmo. Se for histérico, terá que desistir do trabalho devido ao aparecimento de paralisias orgânicas e funcionais que lhe tornam impossível continuar. Se for um neurótico obsessivo, será perpetuamente distraído de seu trabalho ou perderá tempo com o mesmo pela intromissão de delongas e repetições. Nosso estudo pode ser estendido também a outras funções; mas não haveria nada mais a aprender agindo-se dessa forma, pois não devemos penetrar abaixo da superfície das manifestações a nós apresentadas. Passemos então a descrever a inibição de forma a deixar muito pouca dúvida sobre o que se quer dizer com ela, e digamos que a inibição é a expressão de uma restrição de uma função do ego. Uma restrição dessa espécie pode ter causas muito diferentes. Alguns dos mecanismos em jogo nessa renúncia à função são bem conhecidos por nós, como o é certa finalidade geral que a rege. Essa finalidade é mais facilmente reconhecível nas inibições específicas. A análise revela que quando atividades como tocar piano, escrever ou mesmo andar ficam sujeitas a inibições neuróticas, isso ocorre porque os órgãos físicos postos em ação - os dedos ou as pernas - se tornaram erotizados de forma muito acentuada. Descobriu-se como ato geral que a função do ego de um órgão fica prejudicada se a sua erotogeneidade - sua significação sexual - for aumentada. Comporta-se, se me permitem uma analogia um tanto absurda, como uma empregada doméstica que se recusa a continuar cozinhando porque o patrão iniciou um caso amoroso com ela. Logo que o escrever, que faz com que um líquido flua de um tubo para um pedaço de papel branco, assume o significado da copulação, ou logo que o andar se torna um substituto simbólico do pisotear o corpo da mãe terra, tanto o escrever como o andar são paralisados porque representam a realização de um ato sexual proibido. O ego renuncia a essas funções, que se acham dentro de sua esfera, a fim de não ter de adotar novas medidas de repressão - a fim de evitar entrar em conflito com o id. Existem também claramente inibições que servem à finalidade de autopunição. Este é amiúde o caso em inibições de atividades profissionais. Não se permite ao ego levar a efeito essas atividades, porque trariam êxito e lucro, e isso são coisas que o severo superego proibiu. Assim o ego desiste também delas, a fim de evitar entrar em conflito com o superego.As inibições mais generalizadas do ego obedecem a um mecanismo diferente de natureza simples. Quando o ego se vê envolvido em uma tarefa psíquica particularmente difícil, como ocorre no luto, ou quando se verifica uma tremenda supressão de afeto, ou quando um fluxo contínuo de fantasias sexuais tem de ser mantido sob controle, ele perde uma quantidade tão grande de energia à sua disposição que tem de reduzir o dispêndio da mesma em muitos pontos ao mesmo tempo. Fica na posição de um especulador cujo dinheiro ficou retido em suas várias empresas. Deparou-se-me por acaso um exemplo instrutivo dessa espécie de inibição geral intensa, embora efêmera. O paciente, um neurótico obsessivo, era dominado por uma fadiga paralisante que durava um ou mais dias, sempre que acontecia algo que evidentemente devia tê-lo enfurecido. Temos aqui um ponto a partir do qual deve ser possível chegar a uma compreensão da condição geral que caracteriza estados de depressão, inclusive a mais grave de suas formas, a melancolia. No tocante às inibições, podemos então dizer, em conclusão, que são restrições da funções do ego que foram ou impostas como medida de precaução ou acarretadas como resultado de um empobrecimento de energia; e podemos ver sem dificuldade em que sentido uma inibição difere de um sintoma, porquanto um sintoma não pode mais ser descrito como um processo que ocorre dentro do ego ou que atua sobre ele. II As principais características dos sintomas já foram estudadas há muito e, espero, estabelecidas sem discussão. Um sintoma é um sinal e um substituto de uma satisfação instintual que permaneceu em estado jacente; é uma conseqüência do processo de repressão. A repressão se processa a partir do ego quando este - pode ser por ordem do superego - se recusa a associar-se com uma catexia instintual que foi provocada no id. O ego é capaz, por meio de repressão, de conservar a idéia que é o veículo do impulso repreensível a partir do tornar-se consciente. A análise revela que a idéia amiúde persiste como uma formação inconsciente. Até agora tudo se afigura claro, mas logo nos defrontaremos com dificuldades que até o momento não foram superadas. Até este momento nosso relato do que ocorre na repressão deu grande ênfase a esse ponto de exclusão a partir da consciência. Mas deixou outros pontos passíveis de incerteza. Uma questão que surgiu: o que aconteceu ao impulso instintual que fora ativado no id e que procurou satisfação? A reposta foi indireta. Devido ao processo de repressão, o prazer que se teria esperado da satisfação fora transformado em desprazer. Mas vimo-nos então em face do problema de como a satisfação de um instinto poderia produzir desprazer. Todo o assunto pode ser esclarecido, penso, se nos ativermos ao enunciado definitivo de que, como resultado da repressão, o pretendido curso do processo excitatório no id não ocorre de modo algum; o ego consegue inibi-lo ou defleti-lo. Se este for o caso, o problema de ‘transformação de afeto’ sob a repressão desaparece. Ao mesmo tempo, esse ponto de vista implica uma concessão ao ego para que ele possa exercer uma influência muito ampla sobre os processos no id, e teremos de descobrir de que forma ele é capaz de desenvolver tais poderes surpreendentes.Parece-me que o ego obtém essa influência em virtude de suas vinculações íntimas com o sistema perceptual - vinculações que, como sabemos, constituem sua essência e proporcionam a base de sua diferenciação do id. A função desse sistema, o qual denominamos de Pcpt-Cs., está ligada à manifestação da consciência. Ela recebe excitações não somente de fora, mas também de dentro, e se esforça, por meio das sensações de prazer e desprazer que a alcançam a partir desses pontos, para orientar o curso dos fatos mentais de conformidade com o princípio de prazer. Estamos muito inclinados a pensar no ego como impotente contra o id; mas, quando se opõe a um processo instintual no id, ele tem apenas de dar um ‘sinal de desprazer‘ a fim de alcançar seu objetivo com a ajuda daquela instituição quase onipotente, o princípio de prazer. Para considerarmos essa situação em si por um momento, podemos ilustrá-la mediante um exemplo de outro campo. Imaginemos um país no qual uma pequena facção é contrária a uma medida proposta, cuja aprovação contaria com o apoio das massas. Essa minoria obtém o controle da imprensa e com o auxílio desta manipula o árbitro supremo, a ‘opinião pública’, conseguindo assim que a medida não seja aprovada. Mas essa explicação provoca novos problemas. De onde provém a energia empregada para transmitir o sinal de desprazer? Aqui podemos ser auxiliados pela idéia de que uma defesa contra um processo interno importuno será plasmada sobre a defesa adotada contra um estímulo externo, e de que o ego debela os perigos internos e externos, de igual modo, ao longo de linhas idênticas. No caso de perigo externo, o organismo recorre a tentativas de fuga. A primeira coisa que ele faz é retirar a catexia de percepção do objeto perigoso; posteriormente, descobre que constitui um plano melhor realizar movimentos musculares de tal natureza que tornem a percepção do objeto perigoso impossível, mesmo na ausência de qualquer recusa para percebê-lo - que é um plano melhor afastar-se da esfera de perigo. A repressão é um equivalente a essa tentativa de fuga. O caso retira sua catexia (pré-consciente) do representante instintual que deve ser reprimido e utiliza essa catexia para a finalidade de liberar o desprazer (ansiedade). O problema de como surge a ansiedade em relação com a repressão pode não ser simples, mas podemoslegitimamente apegar-nos com firmeza à idéia de que o ego é a sede real da ansiedade, e abandonar nosso ponto de vista anterior de que a energia catexial do impulso reprimido é automaticamente transformada em ansiedade. Se eu me expressasse antes no segundo sentido, estaria dando uma descrição fenomenológica e não um relato metapsicológico do que ocorria. Isto nos leva a outra questão: como é possível, de um ponto de vista econômico, que um mero processo de retirada e descarga, como a retirada de uma catexia do ego pré-consciente, produza desprazer ou ansiedade, visto que, de acordo com nossas suposições, o desprazer e a ansiedade podem surgir somente como resultado de um aumento de catexia? A resposta é que essa seqüência causal não deve ser explicada de um ponto de vista econômico. A ansiedade não é criada novamente na repressão; é reproduzida como um estado afetivo de conformidade com uma imagem mnêmica já existente. Se formos adiante e indagarmos da origem dessa ansiedade - e dos afetos em geral - estaremos deixando o domínio da psicologia pura e penetrando na fronteira da fisiologia. Os estados afetivos têm-se incorporado na mente como precipitados de experiências traumáticas primevas, e quando ocorre uma situação semelhante são revividos como símbolos mnêmicos. Não penso haver laborado em erro ao aproximá-los do ataque histérico mais recente e individualmente adquirido, e em considerá-los como seus protótipos normais. No homem e nos animais superiores pareceria que o ato do nascimento, como a primeira experiência de ansiedade do indivíduo, imprimiu ao afeto de ansiedade certas formas características de expressão. Mas, embora reconhecendo essa vinculação, não devemos dar-lhe ênfase indevida nem desprezar o fato de que a necessidade biológica exige que uma situação de perigo deva ter um símbolo afetivo, de modo que um símbolo dessa espécie teria em qualquer caso de ser criado. Além disso, não penso que estejamos justificados ao presumir que, sempre que haja uma irrupção de ansiedade, algo como uma reprodução da situação de nascimento se passe na mente. Nem mesmo é certo que os ataques histéricos, embora originalmente fossem reproduções traumáticas dessa natureza, conservem esse caráter de modo permanente. Como revelei em outra parte, a maioria da repressões com as quais temos de lidar em nosso trabalho terapêutico são casos de pressão posterior.Pressupõem a atuação de repressões primitivas mais antigas que exercem atração sobre a situação mais recente. Muitíssimo pouco se sabe até agora sobre os antecedentes e as fases preliminares da repressão. Há o perigo de superestimar o papel desempenhado na repressão pelo superego. Não podemos no momento dizer se seria o surgimento do superego que proporciona a linha de demarcação entre a repressão primitiva e a pressão posterior. Seja como for, as primeiras irrupções de ansiedade, que são de natureza muito intensa, ocorrem antes de o superego tornar-se diferenciado. É altamente provável que as causas precipitantes imediatas das repressões primitivas sejam fatores quantitativos, tais como uma força excessiva e o rompimento do escudo protetor contra os estímulos. Essa menção do escudo protetor provoca algo que nos relembra o fato de que a repressão ocorre em duas situações diferentes - a saber, quando um impulso instintual indesejável é provocado por certa percepção externa e quando surge internamente sem qualquer provocação. Voltaremos a essa divergência mais adiante. Mas o escudo protetor existe apenas no tocante a estímulos externos, não quanto a exigências instintuais internas. Enquanto dirigirmos nossa atenção para a tentativa de fuga do ego, não chegaremos mais perto do tema da formação de sintomas. Um sistema surge de um impulso instintual que foi prejudicialmente afetado pela repressão. Se o ego, fazendo uso do sinal de desprazer, atingiu seu objetivo de suprimir inteiramente o impulso instintual, nada saberemos sobre como isso aconteceu. Podemos apenas descobrir algo a esse respeito pelos casos nos quais a repressão deve ser descrita como tendo, em maior ou menor grau, falhado. Nesse caso a posição, falando em geral, é que o impulso instintual encontrou um substituto apesar da repressão, mas um substituto muito mais reduzido, descolado e inibido, e que não é mais reconhecível como uma satisfação. E, quando o impulso substitutivo é levado a efeito, não há qualquer sensação de prazer; sua realização apresenta, ao contrário, a qualidade de uma compulsão. Ao rebaixar assim um processo de satisfação a um sintoma, a repressão exibe sua força sob outro aspecto. O processo substitutivo é impedido, se possível, de encontrar descarga pela motilidade; e mesmo se isso não puder ser feito, o processo é forçado a gastar-se ao efetuar alterações no próprio corpo do indivíduo, não lhe sendo permitido girar em torno do mundo externo. Ele não deve ser transformado em ação, pois, como sabemos, na repressão o ego está atuando sob a influência da realidade externa e, portanto, impede o processo substitutivo de exercer qualquer efeito sobre aquela realidade. Do mesmo modo que o ego controla o caminho para a ação, controla o acesso à consciência. Na repressão exerce sua força em ambas as direções,atuando de uma maneira sobre o próprio impulso instintual e de outra sobre o representante [psíquico] desse impulso. A essa altura, cabe perguntar como posso conciliar esse reconhecimento do poderio do ego com a descrição de sua posição que apresentei em O Ego e o Id. Nesse livro esbocei um quadro de sua relação dependente com o id e o superego, e revelei quão impotente e apreensivo ele era no tocante a ambos e com que esforço manteve sua exibição de superioridade sobre eles. Esse ponto de vista repercutiu amplamente na literatura psicanalítica. Muitos autores têm dado grande ênfase à fraqueza do ego em relação ao id e aos nossos elementos racionais em face das forças demoníacas dentro de nós, e exibem forte tendência para transformarem o que eu disse em pedra angular de uma Weltanschauung psicanalítica. Contudo, por certo o psicanalista, com seus conhecimentos da forma como a repressão atua, deve, justamente ele, ser impedido de adotar um ponto de vista tão extremo e unilateral. Devo confessar que não sou de modo algum parcial quanto à construção de Weltanschauungen. Tais atividades podem ser deixadas aos filósofos, que confessadamente acham impossível empreender sua viagem pela vida sem um Baedeker* dessa espécie para proporcionar-lhes informações sobre todos os assuntos. Aceitemos humildemente o desprezo com que nos olham, sobranceiros, do ponto de observação de suas necessidades superiores. Mas visto que nós não podemos também abrir mão de nosso orgulho narcísico, ficaremos reconfortados com o pensamento de que tais ‘Manuais para a Vida’ ficam logo desatualizados, de que é precisamente nosso trabalho míope, tacanho e insignificante que os obriga a aparecer em novas edições, e de que até mesmo os mais atualizados deles nada mais são do que tentativas para encontrar um substituto para o antigo, útil e todo-suficiente catecismo da Igreja. Somente uma pesquisa paciente e perseverante, na qual tudo esteja subordinado à única exigência da certeza, poderá gradativamente ocasionar uma transformação. O viajante surpreendido pela noite pode cantar alto no escuro para negar seus próprios temores; mas, apesar de tudo isto, não enxergará mais que um palmo adiante do nariz. III Voltando ao problema do ego. A contradição aparente deve-se ao fato de termos considerado as abstrações de maneira por demais rígida e de termos atendido exclusivamente ora a um lado, ora a outro daquilo que é de fato um complicado estado de coisas. Estávamos justificados, penso eu, em separar o ego do id, pois há certas considerações que necessitam dessa medida. Por outro lado, o ego é idêntico ao id, sendo apenas uma parte especialmente diferenciada do mesmo. Se considerarmos essa parte em si mesma em contraposição ao todo, ou se houver ocorrido uma verdadeira divisão entre os dois, a fragilidade do ego se torna evidente. Mas se o ego permanecer vinculado ao id e indistinguível dele, então ele exibe a sua força. O mesmo se aplica à relação entre o ego e o superego. Em muitas situações os dois se acham fundidos; e em geral só podemos distinguir um do outro quando há uma tensão ou conflito entre eles. Na repressão, o fato decisivo é que o ego é uma organização e o id não. O ego é, na realidade, a parte organizada do id. Estaríamos inteiramente errados se figurássemos o ego e o id como dois campos opostos e se supuséssemos que, quando o ego tenta suprimir uma parte do id por meio de repressão, o restante do id vai em socorro da parte que se acha em perigo e mede sua força com o ego. Isto poderá amiúde ser o que acontece, mas por certo não é a situação inicial na repressão. Em geral, o impulso inicial que irá ser reprimido permanece isolado. Embora o ato de repressão demonstre a força do ego, em um ponto específico ele revela a impotência do ego e quão impenetráveis à influência são os impulsos instintuais do id, pois o processo mental que se transformou em um sintoma devido à repressão mantém agora sua existência fora da organização do ego e independentemente dele. Na realidade, não é somente aquele processo, mas todos os seus derivados que usufruem, por assim dizer; desse mesmo privilégio de extraterritorialidade; e sempre que entram em contato associativo com uma parte da organização do ego, não é de modo algum certo que não atraiam essa parte para si próprio e assim se ampliem às expensas do ego. Uma analogia com a qual de há muito estamos familiarizados comparou um sintoma com um corpo estranho que vinha mantendo uma sucessão constante de estímulos e reações no tecido no qual estava encravado. De fato ocorrealgumas vezes que a luta defensiva contra um impulso instintual desagradável é eliminada com a formação de um sintoma. Até onde se pode verificar, isto é freqüentemente possível na conversão histérica. Mas em geral o resultado é diferente. O ato inicial da repressão é acompanhado por uma seqüência tediosa ou interminável na qual a luta contra o impulso instintual se prolonga até uma luta contra o sintoma. Nessa luta defensiva secundária o ego apresenta duas faces com expressões contraditórias. A única linha de comportamento que ele adota decorre do fato de que sua própria natureza o obriga a fazer o que deve ser considerado como uma tentativa de restauração ou de reconciliação. O ego é uma organização. Baseia-se na manutenção do livre intercâmbio e da possibilidade de influência recípocra entre todas as suas partes. Sua energia dessexualizada ainda revela traços de sua origem em seu impulso para agregar-se e unificar-se, e essa necessidade de síntese torna-se mais acentuada à proporção que a força do ego aumenta. Portanto, é natural que o ego deva tentar impedir que os sintomas permaneçam isolados e alheios utilizando todos os métodos possíveis para agregá-los a si de uma maneira ou de outra, e para incorporá-los em sua organização por meios desses vínculos. Como sabemos, uma tendência dessa natureza já se acha atuante na próprio ato da formação de um sintoma. Um exemplo clássico disto são aqueles sintomas histéricos que revelamos ser um meio termo entre a necessidade de satisfação e a necessidade de punição. Tais sintomas participam do ego desde o início, visto que atendem a uma exigência do superego, enquanto por outro lado representam posições ocupadas pelo reprimido e pontos nos quais uma irrupção foi feita por ele até a organização do ego. Constituem uma espécie de posto de fronteira com uma guarnição mista. (Se todos os sintomas histéricos primários são estruturados nesses moldes, valeria a pena examiná-los muito cuidadosamente.) O ego passa agora a comportar-se como se reconhecesse que o sintoma chegara para ficar e que a única coisa a fazer era aceitar a situação de bom grado, e tirar dela o máximo proveito possível. Ele faz uma adaptação ao sintoma - a essa peça do mundo interno que é estranha a ele - assim como normalmente faz em relação ao mundo externo real. Ele sempre pode encontrar grande número de oportunidades para fazer isto. A presença de um sintoma pode impor uma certa diminuição de capacidade, e isto pode serexplorado para apaziguar alguma exigência da parte do superego ou para recusar alguma reivindicação proveniente do mundo externo. Dessa forma, o sintoma gradativamente vem a ser representante de interesses importantes; verifica-se útil na afirmação da posição do eu (self) e se funde cada vez mais estreitamente com o ego, tornando-se cada vez mais indispensável a ele. Só muito raramente é que o processo físico de ‘cura’ em torno de um corpo estranho segue um curso como este. Há também o perigo de exagerar a importância de uma adaptação secundária dessa espécie a um sintoma, e de afirmar que o ego criou o sintoma simplesmente a fim de fruir suas vantagens. Seria igualmente verdadeiro dizer que um homem que perdera a perna na guerra fizera com que ela fosse arrancada a tiros, de modo que ele pudesse daí por diante viver de sua pensão, sem ter de executar mais nenhum trabalho. Nas neuroses obsessivas e na paranóia, as formas que os sintomas assumem tornam-se muito valiosas para o ego porque obtêm para este, não certas vantagens, mas uma satisfação narcísica sem a qual, de outra forma poderia passar. Os sistemas que o neurótico obsessivo constrói lisonjeiam seu amor próprio, fazendo-o sentir que ele é melhor que outras pessoas, porque é especialmente limpo ou especialmente consciencioso. As construções delirantes do paranóico oferecem aos seus agudos poderes perceptivos e imaginativos um campo de atividade que ele não poderia encontrar facilmente em outra parte. Tudo isto resulta no que nos é familiar como o ‘ganho (secundário) proveniente da doença’ que se segue a uma neurose. Essa recuperação vem em ajuda do ego no seu esforço para incorporar o sintoma, e aumenta a fixação deste último. Quando o analista tenta subseqüentemente ajudar o ego em sua luta contra o sintoma, verifica que esses laços conciliatórios entre o ego e o sintoma atuam do lado das resistências e que não são fáceis de afrouxar. As duas linhas de comportamento que o ego adota em relação ao sintoma estão, de fato, diretamente opostas uma à outra, pois a outra linha é de natureza menos amistosa, visto que continua na direção da repressão. Não obstante o ego, assim parece, não pode ser acusado de incoerência. Sendo de disposição pacífica, gostaria de incorporar o sintoma e torná-lo parte dele mesmo. É do próprio sintoma que provém o mal, pois o sintoma, sendo o verdadeiro substituto e derivativo do impulso reprimido, executa o papel do segundo; ele continuamente renova suas exigências de satisfação e assimobriga o ego, por sua vez, a dar o sinal de desprazer e a colocar-se em uma posição de defesa. A luta defensiva secundária contra o sintoma assume muitas formas. Trava-se em diferentes campos e faz uso de uma variedade de métodos. Não estaremos em condições de dizer muito sobre ela até que tenhamos feito uma indagação dos vários exemplos diferentes da formação de sintomas. Ao procedermos dessa forma teremos oportunidade de penetrar no problema da ansiedade - problema que de há muito avulta no segundo plano. O projeto mais sensato será começar pelos sintomas produzidos pela neurose histérica, visto não estarmos ainda em posição de considerar as condições nas quais os sintomas da neurose obsessiva, da paranóia e de outras neuroses são formados. IV Comecemos com uma fobia histérica infantil de animais - por exemplo, o caso do ‘Little Hans’ [1909b], cuja fobia por cavalos era indubitavelmente típica em todas as suas principais características. A primeira coisa que se torna evidente é que em um caso concreto de doença neurótica o estado de coisas é muito mais complexo do que se suporia enquanto se estivesse lidando com abstrações. Leva-se algum tempo para encontrar-se orientação e para resolver qual é o impulso reprimido, que sintoma substitutivo foi encontrado e onde está o motivo de repressão. ‘Little Hans’ recusava-se a sair à rua porque tinha medo de cavalos. Isto era a matéria-prima do caso. Que parte disto constituía o sintoma? Era ele ter medo? Era sua escolha de um objeto para seu temor? Era ter ele abandonado sua liberdade de movimento? Ou era mais de um desses fatores combinados? Qual foi a satisfação a que ele renunciou? E por que teve de renunciar a ela? A um primeiro vislumbre, somos tentados a responder que o caso não é assim tão obscuro. O inexplicável medo de ‘Little Hans’ por cavalos era o sintoma e sua incapacidade de sair à rua era uma inibição, uma restrição que o ego do menino impusera a si mesmo a fim de não despertar o sintoma de ansiedade. O segundo ponto é claramente correto e no exame que se segue não me preocuparei mais com essa inibição. Mas no tocante ao sintoma alegado, um conhecimento superficial do caso nem sequer revela sua verdadeira formulação, pois uma investigação posterior indica que aquilo de que o menino sofria não era um medo vago de cavalos, mas apreensão bem definida de que um cavalo ia mordê-lo. Essa idéia, na realidade, esforçava-se por retirar-se da consciência e ser substituída por uma fobia indefinida, na qual somente a ansiedade e seu objeto ainda apareciam. Talvez tenha sido essa idéia que tenha constituído o núcleo do sintoma do ‘Little Hans’? Não faremos qualquer progresso enquanto não tivermos passado em revista a situação psíquica do menino como um todo, quando ela veio à luz no curso do tratamento analítico. Ele se encontrava, à época, na atitude edipiana ciumenta e hostil em relação ao pai, a quem, não obstante - salvo até onde a mãe dele era a causa de desavença -, amava ternamente. Aqui, então, temos um conflito devido à ambivalência: um amor bem fundamentado e um ódio não menos justificável dirigidos para a mesmíssima pessoa. A fobia de ‘Little Hans’ deve ter sido uma tentativa de solucionar esse conflito. Conflitos dessa natureza devidos à ambivalência são muito freqüentes epodem ter outro resultado típico, no qual um dos dois sentimentos conflitantes (em geral o da afeição) se torna imensamente intensificado e o outro desaparece. O grau exagerado e o caráter compulsivo da afeição, por si sós, traem o fato de que não é a única presente, mas está continuamente alerta para manter o sentimento oposto sob supressão, permitindo-nos postular a atuação de um processo que denominamos de repressão por meio da formação reativa (no ego). Casos como o do ‘Little Hans’ não revelam quaisquer vestígios de uma formação reativa dessa natureza. Há formas claramente diferentes de saída de um conflito devido à ambivalência. Entrementes, fomos capazes de estabelecer outro ponto com certeza. O impulso instintual que sofreu repressão em ‘Little Hans’ foi um impulso hostil contra o pai. A prova disto foi obtida na análise do menino enquanto a idéia do cavalo que mordia estava sendo acompanhada. Ele vira um cavalo cair e também vira um companheiro de brinquedo, com quem brincava de cavalo, cair e ferir-se. A análise justificou a interferência de que ele tivera um impulso pleno de desejo de que o pai devia cair e ferir-se como seu companheiro e o cavalo haviam feito. Além disso, sua atitude em relação à partida de alguém em certa ocasião torna provável que o desejo de que o pai não atrapalhasse também encontrou expressão menos hesitantes. Mas um desejo dessa espécie equivale a uma intenção de alguém desvencilhar-se do pai - equivale ao impulso assassino do complexo de Édipo Até agora não parece haver quaisquer elos de ligação entre o impulso instintual reprimido de ‘Little Hans’ e o substituto dele que suspeitamos devesse ser visto em sua fobia por cavalos. Simplifiquemos sua situação psíquica, pondo de lado o fator infantil e a ambivalência. Imaginemos que ele é um jovem criado que está apaixonado pela dona da casa e que recebeu certas provas de simpatia desta. Ele odeia seu patrão, que é mais poderoso que ele, e gostaria de desembaraçar-se dele. Ser-lheia então evidentemente natural temer a vingança daquele e criar medo dele - da mesma forma ‘Little Hans’ criou uma fobia por cavalos. Não podemos, portanto, descrever o medo que faz parte dessa fobia como um sintoma. Se ‘Little Hans’, estando apaixonado pela mãe, mostrara medo do pai, não devemos ter direito algum de dizer que ele tinha uma neurose ou fobia. Sua reação emocional teria sido inteiramente compreensível. O que a transformou em uma neurose foi apenas uma coisa: a substituição do pai por um cavalo. É esse deslocamento, portanto, que tem o direito de ser denominado de sintoma, e que, incidentalmente, constitui o mecanismo alternativo que permite um conflito devido à ambivalência ser solucionado sem o auxílio da formação reativa. [Cf.[1].] Tal deslocamento é tornado possível ou facilitado na tenra idade de ‘Little Hans’ porque os traços inatos do pensamento totêmico podem ainda ser facilmente revividos. As crianças ainda não reconhecem nem, seja como for, dão exagerada ênfase ao abismo que separa os seres humanos do mundo animal. A seus olhos o homem adulto, o objeto de seu medo e de sua admiração, ainda pertence à mesma categoria que o grande animal que possui tantos atributos invejáveis, mas contra a qual elas foram advertidas porque ele pode tornar-se perigoso. Como vemos, o conflito devido à ambivalência não é tratado em relação à única e mesma pessoa: é contornado, por assim dizer, por um do par de impulsos conflitantes que são dirigidos para outra pessoa como um objeto substitutivo. Até agora tudo está claro. Mas a análise da fobia de ‘Hans’, tem sido um desapontamento completo sob um aspecto. A distorção que constitui a formação de sintomas não foi aplicada ao representante [psíquico] (o conteúdo ideativo) do impulso instintual que devia ser reprimido; foi aplicada a um representante bem diferente e que só correspondia a uma reação ao instinto desagradável. Estaria mais de acordo com nossas expectativas se ‘Little Hans’ tivesse desenvolvido, em vez de medo de cavalos, uma inclinação para maltratá-los e espancá-los, ou se ele tivesse expressado em termos claros o desejo de vê-los cair ou de serem feridos, ou mesmo de morrerem em convulsões (‘fazerem barulho com os pés’). Algo dessa espécie de fato surgiu em sua análise, mas de forma alguma ocupava lugar de relevo em sua neurose. E, o que é bastante curioso, se ele houvesse realmente produzido uma hostilidade dessa natureza, não contra o pai, mas contra cavalos, como seu principal sintoma, não devíamos ter dito que ele estava sofrendo de uma neurose. Deve haver algo de errado quer com nosso ponto de vista da repressão, quer com nossa definição de um sintoma. Uma coisa, naturalmente, nos impressiona de imediato; se ‘Little Hans’ realmente se houvesse comportado assim em relação aos cavalos, isto significaria que a repressão não havia de forma alguma alterado o caráter de seu próprio impulso instintual objetável e agressivo, mas somente o objeto para o qual estava dirigido.Sem dúvida, existem casos nos quais isto é tudo o que faz a repressão. Contudo, mais do que isto aconteceu no desenvolvimento da fobia de ‘Little Hans’ - o que pode ser percebido a partir de uma parte de outra análise. Como sabemos, ‘Little Hans’ alegava que aquilo que temia era que um cavalo o mordesse. Algum tempo depois fui capaz de saber algo a respeito da origem de outra fobia a animais. Nesse caso o animal temido era um lobo; ele também tinha o significado de um substituto do pai. Quando menino o paciente em questão - um russo que eu só analisei quando ele contava vinte e tantos anos - tivera um sonho (cujo significado foi revelado na análise) e, logo após isto, criara o temor de ser devorado por um lobo, como os sete cabritos do conto de fadas. No caso de ‘Little Hans’ o fato comprovado de que o pai costumava brincar de cavalo com ele sem dúvida determinou sua escolha de um cavalo como um animal causador de ansiedade. Da mesma forma, parecia pelo menos muito provável que o pai do meu paciente russo costumava, quando brincava com ele, fingir ser lobo e de brincadeira ameaçava devorá-lo. Desde então deparou-se-me um terceiro exemplo. O paciente foi um jovem norte-americano que me procurou para ser analisado. É bem verdade que ele não desenvolveu uma fobia a animais, mas é precisamente por causa dessa omissão que seu caso ajuda a lançar luz sobre os outros dois. Quando criança ele fora sexualmente excitado por uma fantástica história infantil, que lhe fora lida em voz alta, sobre um chefe árabe que perseguia um ‘homem feito de especiarias’ a fim de comê-lo. O menino identificou-se com essa pessoa comestível, tendo o chefe árabe sido facilmente reconhecível como um substituto do pai. Essa fantasia formou o primeiro substrato de suas fantasias auto-eróticas. A idéia de ser devorado pelo pai é típica do material infantil consagrado pelo tempo. Ela possui paralelos familiares na mitologia (por exemplo, o mito de Cronos) e no reino animal. Contudo, apesar dessa confirmação, a idéia nos é tão estranha que mal podemos dar crédito a sua existência em uma criança. Tampouco sabemos se realmente significa o que parece dizer, e não podemos compreender como pode ter-se tornado o tema de uma fobia. A observação analítica proporciona a informação necessária. Revela que a idéia de ser devorado pelo pai dá expressão, em uma forma que sofreu degradação regressiva, a um termo impulso passivo de ser armado por ele num sentido erótico genital. Uma investigação ulterior do caso clínico não deixa nenhuma dúvida quanto à exatidão dessa explanação. O impulso genital, é verdade, não trai dúvida alguma da sua terna finalidade, quando expresso na linguagem que pertence à fase transicional superada entre as organizações oral e sádica da libido. Além disso, trata-se simplesmente da questão da substituição do representante [psíquico] por uma forma regressiva do impulso genitalmente orientado no id? De forma alguma é fácil ter-se certeza disto. O caso clínico do ‘Wolf Man’ russo oferece um apoio bem definido ao segundo ponto de vista mais sério: pois a partir da época do sonho decisivo, o menino tornou-se travesso, atormentador e sádico, havendo logo depois desenvolvido uma neurose obsessiva regular. Seja como for, podemos ver que a repressão não é o único meio que o ego pode empregar com a finalidade de defesa contra um impulso instintual desagradável. Se ele conseguir fazer um instinto regredir, na realidade lhe terá causado mais dano do que se o fizesse progredir. Por vezes, realmente, depois de forçar um instinto a regredir dessa forma, passa a reprimi-lo. O caso ‘Wolf Man’ e o caso um pouco menos complicado de ‘Little Hans’ levantam grande número de outras considerações. Mas já fizemos duas descobertas inesperadas. Não pode haver dúvida alguma de que o impulso instintual que foi reprimido em ambas as fobias era hostil contra o pai. Podemos dizer que o impulso fora reprimido pelo processo de ser transformado em seu oposto.Em vez da agressividade por parte do paciente para com o pai, surgiu agressividade (sob a forma de vingança) por parte do pai para com o paciente. Visto que essa agressividade se acha, em qualquer caso, enraizada na fase sádica da libido, somente uma certa dose de degradação se faz necessária para reduzi-la à fase oral. Essa fase, enquanto apenas insinuada ao medo de ‘Little Hans’ de ser mordido foi ruidosamente exibida no terror do ‘Wolf Man’ de ser devorado. Mas, além disso, a análise demonstrou, sem qualquer sombra de dúvida, a presença de outro impulso instintual de natureza oposta que sucumbira à repressão. Este foi um suave impulso passivo dirigido ao pai; que já havia alcançado o nível genital (fálico) da organização libidinal. No tocante ao resultado do processo de repressão, esse impulso parece, realmente, ter sido o mais importante dos dois, havendo passado por uma regressão de alcance bem maior e tendo exercido influência decisiva sobre o conteúdo da fobia. Ao acompanharmos uma repressão instintual única, tivemos assim de reconhecer uma convergência de dois de tais processos. Os dois impulsos instintuais que foram dominados pela repressão - a agressividade sádica em relação ao pai e uma atitude passiva suave para com ele - formam um par de opostos. Além disso, uma apreciação completa do caso de ‘Little Hans’ revela que a formação de sua fobia tivera o efeito de abolir sua catexia objetal afetuosa também de sua mãe, embora o conteúdo real de sua fobia não traísse qualquer sinal disto. O processo de repressão tinha atacado quase todos os componentes do seu complexo edipiano tanto seus impulsos hostis quanto seus impulsos ternos para com a mãe. Em meu paciente russo esse estado de coisas era muito menos óbvio. Essas são complicações desagradáveis, considerando-se que somente passamos a estudar casos simples de formação de sintomas devidos à repressão, e com esse intento escolhemos as neuroses mais antigas e, ao que tudo indica, as mais manifestas da infância. Em vez de uma única repressão encontramos uma coleção delas e ainda por cima ficamos envolvidos com a regressão. Talvez tenhamos aumentado a confusão tratando os dois casos de fobia animal à nossa disposição - ‘Little Hans’ e o ‘Wolf Man’ - como se fossem fundidos no mesmo molde. Em verdade, ressaltam certas diferenças entre eles. Somente no tocante a ‘Little Hans’ é que podemos dizer com certeza que aquilo que sua fobia eliminou foram os dois principais impulsos do complexo edipiano - sua agressiv idade para com o pai e seu excesso de afeição pela mãe. Um terno sentimento pelo pai também se encontrava presente e desempenhou certo papel na repressão do sentimento oposto; mas não podemos nem provar que era bastante forte para atrair a repressão sobre si mesmo, nem que desapareceu depois. ‘Hans’ parece, de fato, ter sido um menino normal quanto àquilo que se denomina um complexo edipiano ‘positivo’. É possível que os fatores que não encontramos estivessem, na realidade, em ação nele, mas não podemos demonstrar sua existência. Mesmo a análise mais exaustiva apresenta lacunas em seus dados e é insuficientemente documentada. No caso do russo, a deficiência encontra-se em outra parte. Sua atitude para com objetos femininos foi perturbada por uma sedução antiga, e seu lado passivo feminino foi acentuadamente desenvolvido. A análise de seu sonho com o lobo revelou pouquíssima agressividade intencional para com o pai, mas apresentou prova inegável de que aquilo de que a repressão se apoderou foi sua terna atitude passiva para com o pai. Em seu caso, também, é possível que os outros fatores fossem igualmente atuantes; mas não estavam em evidência. Como se explica que, apesar dessas diferenças nos dois casos que quase chegam a uma antítese, o resultado final - uma fobia - seja aproximadamente o mesmo? Deve-se procurar a resposta em outro setor. Penso que será encontrada no segundo fato que surge de nosso breve exame comparativo. Parece-me que em ambos os casos podemos detectar qual foi a força motriz da repressão e podemos consubstanciar nosso ponto de vista sobre sua natureza a partir da linha de desenvolvimento que as duas crianças subseqüentemente seguiram. Essa força motriz era a mesma em ambas. Era o temor de castração iminente. ‘Little Hans’ desistiu de sua agressividade para com o pai temendo ser castrado. O medo de que um cavalo o mordesse pode, sem nenhuma força de expressão, receber o pleno sentido do temor de que um cavalo arrancasse fora com os dentes seus órgãos genitais - o órgão que o distinguia de uma fêmea. Como vemos, ambas as formas do complexo edipiano, a forma normal, ativa, e a invertida fracassaram através do complexo de castração. A idéia de ansiedade do menino russo de ser devorado por um lobo não encerrava, é verdade, qualquer sugestão de castração, pois a regressão oral pela qual passara a afastara para muito longe da fase fálica. Mas a análise de seu sonho torna supérflua uma prova ulterior. Constituiu um triunfo da repressão que a forma pela qual sua fobia foi expressa não devesse mais encerrar qualquer alusão à castração. Aqui, então, está o nosso inesperado achado: em ambos os pacientes a força motriz da repressão era o medo da castração. As idéias contidas na ansiedade deles - a de ser mordido por um cavalo e a de ser devorado por um lobo - eram substitutos, por distorção, da idéia de serem castrados pelo pai. Esta foi a idéia que sofreu repressão. No menino russo a idéia era a expressão de um desejo que não foi capaz de subsistir em face de sua revolta masculina; em ‘Little Hans’ foi a expressão de uma reação nele que transformara sua agressividade em seu oposto. Mas o afeto de ansiedade, que era a essência da fobia, proveio, não do processo de repressão, não das catexias libidinais dos impulsos reprimidos, mas do próprio agente repressor. A ansiedade pertencente às fobias a animais era um medo não transformado de castração. Era portanto um medo realístico o medo de um perigo que era realmente iminente ou que era julgado real. Foi a ansiedade que produziu a repressão e não, como eu anteriormente acreditava, a repressão que produziu a ansiedade. Não vale a pena negar o fato, embora não seja agradável relembrá-lo, de que em muitas ocasiões afirmei que na repressão o representante instintual é distorcido, deslocado, e assim por diante, enquanto a libido que pertence ao impulso sexual é transformada em ansiedade. Mas agora um exame das fobias, que deve ser o mais capaz de oferecer provas confirmatórias, deixa de sustentar minha asserção; parece, antes, contradizê-la diretamente. A ansiedade sentida em fobias a animais é o medo de castração do ego; enquanto a ansiedade sentida na agorafobia (um assunto que tem sido estudado menos completamente) parece ser seu medo de tentação sexual - um medo que, afinal de contas, deve estar vinculado em suas origens ao medo de castração. Até onde se pode observar no momento, a maioria das fobias remonta a uma ansiedade dessa espécie sentida pelo ego no tocante às exigências da libido. É sempre a atitude de ansiedade do ego que é a coisa primária e que põe em movimento a repressão. A ansiedade jamais surge da libido reprimida. Se eu me tivesse contentado antes em afirmar que, após a ocorrência da repressão, certa dose de ansiedade apareceu em lugar da manifestação da libido que era de se esperar, nada teria hoje a retratar. A descrição seria correta, existindo, indubitavelmente, uma correspondência da espécie afirmada entre a força do impulso que tem de ser reprimido e a intensidade da ansiedade resultante. Mas devo admitir que pensei que estava apresentando mais que uma mera descrição. Acreditei que mexera em um processo metapsicológico de transformação direta da libido em ansiedade. Agora não posso mais manter esse ponto de vista. E, realmente, verifiquei ser impossível na época explicar como uma transformação dessa natureza foi levada a efeito. Talvez se pergunte como cheguei a essa idéia de transformação no primeiro exemplo. Foi enquanto estudava as ‘neuroses atuais’ numa época em que a análise ainda estava muito longe de distinguir entre processos no ego e processos no id. Constatei que irrupções de ansiedade e um estado geral de preparo para a ansiedade eram produzidos por certas práticas sexuais tais como o coitus interruptus, a excitação sexual não descarregada ou a abstinência forçada - isto é, sempre que a excitação sexual era inibida, presa ou defletida em seu rumo à satisfação. Visto que a excitação sexual era uma expressão de impulsos sexuais libidinais, não parecia ser muito precipitado presumir que a libido era transformada em ansiedade por intermédio dessas perturbações. As observações que fiz na ocasião ainda são válidas. Além disso, não se pode negar que a libido que pertence aos processos do id está sujeita a perturbação por instigação da repressão. Talvez ainda seja verdade, portanto, que na repressão a ansiedade é produzida a partir da catexia libidinal dos impulsos instintuais. Mas como podemos reconciliar essa conclusão com nossa outra conclusão de que a ansiedade sentida em fobias é uma ansiedade do ego e que surge neste, e de que não parte da repressão mas, ao contrário, põe a repressão em movimento? Parece haver aqui uma contradição que de modo algum constitui um assunto simples de solucionar. Não será fácil reduzir as duas fontes de ansiedade a uma única. Podemos tentar fazê-lo supondo que, quando o coito é perturbado ou a excitação sexual interrompida ou a abstinência forçada, o ego fareja certos perigos aos quais reage com ansiedade. Mas isto não nos leva a parte alguma. Por outro lado, nossa análise das fobias parece não admitir qualquer correção. Non liquet. V Começamos por estudar a formação de sintomas e a luta secundária travada pelo ego contra os sintomas. Mas ao selecionarmos as fobias para essa finalidade fizemos claramente uma escolha. A ansiedade que predomina no quadro dessas desordens é agora vista como uma complicação que obscurece a situação. Existem muitas neuroses que não apresentam qualquer ansiedade. A verdadeira histeria de conversão é uma delas. Mesmo nos seus sintomas mais graves não se encontra qualquer mescla de ansiedade. Só esse fato já deve advertir-nos para não estabelecermos uma ligação muito estreita entre a ansiedade e a formação de sintomas. As fobias acham-se tão intimamente apresentadas com a histeria de conversão em todos os outros aspectos que me senti justificado em classificá-las juntamente com a segunda sob a denominação de ‘histeria de angústia’. Mas ninguém até agora foi capaz de dizer o que é que determina se qualquer caso determinado assumirá a forma de uma histeria de conversão ou de uma fobia - foi capaz, vale dizer, de estabelecer o que determina a geração da ansiedade na histeria. Os sintomas mais comuns da histeria de conversão - paralisias motoras, contraturas, ações ou descargas involuntárias, dores e alucinações - constituem processos catexiais que são permanentemente mantidos. Mas isto acarreta novas dificuldades. Na realidade não se sabe muita coisa acerca desses sintomas. A análise pode revelar qual o processo excitatório perturbado que os sintomas substituem. Em geral ocorre que eles têm seu quinhão nesse processo. É como se toda a energia do processo tivesse sido concentrada nessa única parte do mesmo. Por exemplo, verificar-se-á que as dores de que sofria um paciente estavam presentes na situação em que ocorreu a repressão; ou que a alucinação do paciente era, na época, uma percepção; ou que sua paralisia motora é uma defesa contra uma ação que devia ser levada a efeito naquela situação, mas que estava inibida; ou que sua contratura é, em geral, um deslocamento de uma pretendida inervação dos músculos em alguma outra parte do corpo; ou que suas convulsões são a expressão de uma explosão de afeto que foi retirada do controle normal do ego. A sensação de desprazer que acompanha o aparecimento dos sintomas varia em grau impressionante. Nos sintomas crônicos que foram deslocados para a motilidade, como paralisias e contraturas, ela se acha quase inteiramente ausente; o ego comporta-se em relação aos sintomas como se nada tivesse a ver com estes. Nos sintomas intermitentes e naqueles que dizem respeito à espera sensorial, as sensações de desprazer são, em geral, distintamente sentidas; e nos sintomas de dor podem atingir um grau extremo. O quadro apresentado é tão multiforme que é difícil descobrir o fator que permite todas essas variações e ainda uma explicação uniforme das mesmas. Há, além disso, pouco a ser verificado na histeria de conversão da luta do ego contra o sintoma após a sua formação. É somente quando a sensibilidade à dor em alguma parte do corpo constitui o sintoma, que este está em condições de desempenhar duplo papel. O sintoma da dor surgirá com não menor regularidade, sempre que a parte do corpo em causa seja tocada de fora, do que quando a situação patogênica que representa seja associativamente ativada de dentro, e o ego tomará precaução a fim de impedir que o sintoma seja despertado através de percepções externas. Não posso dizer por que a formação de sintomas em histeria de conversão deve ser uma coisa tão obscura, mas o fato nos oferece bom motivo para abandonarmos sem mais delongas um campo de indagação tão improdutivo. Passemos às neuroses obsessivas na esperança de aprendermos mais alguma coisa sobre a formação de sintomas. Os sintomas que fazem parte dessa neurose se enquadram, em geral, em dois grupos, cada um tendo uma tendência oposta. São ou proibições, precauções e expiação - isto é, negativos quanto à natureza - ou são, ao contrário, satisfações substitutivas que amiúde aparecem em disfarce simbólico. O grupo defensivo, negativo dos sintomas é o mais antigo dos dois, mas à medida que a doença se prolonga, as satisfações, que zombam de todas as medidas defensivas, levam vantagem. A formação de sintomas assinala um triunfo se consegue combinar a proibição com a satisfação, de modo que o que era originalmente uma ordem defensiva ou proibição adquire também a significância de uma satisfação; a fim de alcançar essa finalidade muitas vezes faz uso das trilhas associativas mais engenhosas. Tal realização demonstra a tendência do ego de sintetizar, a qual já observamos,ver em [[1]]. Em casos extremos o paciente consegue fazer com que a maioria de seus sintomas adquira, além do seu significado original, um significado diretamente contrário. Isto é um tributo do poder de ambivalência, o qual, por alguma razão desconhecida, desempenha papel tão relevante nas neuroses obsessivas. No exemplo mais tosco o sintoma é bifásico uma ação que executa uma certa injunção é imediatamente sucedida por outra ação que pára ou desfaz a primeira, mesmo que não vá até o ponto de levar a cabo seu oposto.De imediato surgem duas impressões desse breve exame dos sintomas obsessivos. A primeira é que uma luta incessante está sendo travada contra o reprimido, no qual as forças repressoras constantemente perdem terreno; a segunda é que o ego e o superego têm uma parcela especialmente grande na formação dos sintomas. A neurose obsessiva é, indubitavelmente, o tema mais interessante e compensador da pesquisa analítica. Deve-se confessar que, se nos esforçarmos por penetrar mais profundamente em sua natureza, teremos de confiar em admissões duvidosas e suposições não confirmadas. A neurose obsessiva tem origem, sem dúvida, na mesma situação que a histeria, a saber, a necessidade de desviar as exigências libidinais do complexo edipiano. Na realidade, toda neurose obsessiva parece ter um substrato de sintomas histéricos que se formaram em uma fase bem antiga. Mas subseqüentemente ela é plasmada em moldes bem diferentes devido a um fator constitucional. A organização genital da libido vem a ser débil e insuficientemente resistente, de modo que, quando o ego começa seus esforços defensivos, a primeira coisa que ele consegue fazer é lançar de volta a organização genital (da fase fálica), no todo ou em parte, ao nível anal-sádico mais antigo. Esse fato de regressão é decisivo para tudo o que se segue. Outra possibilidade tem de ser considerada. Talvez a regressão seja o resultado não de um fator constitucional mas de um fator tempo. Pode ser que a regressão possa ser tornada possível, não porque a organização genital da libido seja fraca demais, mas porque a oposição do ego começa cedo demais, enquanto a fase sádica se acha no seu apogeu. Não estou preparado para expressar uma opinião definitiva sobre esse ponto, mas posso dizer que a observação analítica não fala em favor de tal suposição. Antes revela que, na ocasião em que se entra em uma neurose obsessiva, a fase fálica já foi alcançada. Além disso, o início dessa neurose pertence a uma época da vida mais posterior do que a da histeria - ao segundo período da infância, após o período de latência ter-se estabelecido. Em uma paciente cujo caso fui capaz de estudar e que foi dominada por esse distúrbio em uma data muito tardia, tornou-se claro que a causa determinante de sua regressão e do surgimento de sua neurose obsessiva foi uma ocorrência real através da qual sua vida genital, que até então se mantivera intacta, perdeu todo seu valor.No tocante à explicação metapsicológica da regressão, estou inclinado a encontrá-la em uma ‘desfusão do instinto’, em um desligamento dos componentes eróticos que, com o início da fase genital, se juntaram às catexias destrutivas que pertenciam à fase sádica. Ao forçar a regressão, o ego lavra seu primeiro tento em sua luta defensiva contra as exigências da libido. (Nesse sentido é vantajoso estabelecer uma distinção entre a idéia mais geral de ‘defesa’ e ‘repressão’. A repressão é apenas um dos mecanismos de que a defesa faz uso.) Talvez seja nos casos obsessivos, mais do que nos normais ou nos histéricos, que podemos mais claramente reconhecer que a força motora da defesa é o complexo de castração, e que o que está sendo desviado são as tendências do complexo edipiano. No momento estamos tratando do início do período de latência, um período que se caracteriza pela dissolução do complexo de Édipo, pela criação ou consolidação do superego e pela edificação de barreiras éticas e estéticas no ego. Nas neuroses obsessivas esses processos são levados mais longe do que o normal. Além da destruição do complexo de Édipo verifica-se uma degradação regressiva da libido, o superego torna-se excepcionalmente severo e rude, e o ego, em obediência ao superego, produz fortes formações reativas de consciência, piedade e asseio. Implacável, embora nem sempre por isso bem-sucedida, a severidade se revela na condenação da tentação de continuar com a masturbação infantil inicial, que agora se liga a idéias (anal-sádicas) regressivas mas que, não obstante, representa a parte não subjugada da organização fálica. Há uma contradição inerente quanto a esse estado de coisas, no qual, precisamente no interesse da masculinidade (isto é, pelo medo da castração), toda atividade que pertence à masculinidade é paralisada. Mas também aqui a neurose obsessiva está apenas levando a efeito, de forma excessiva, o método normal de livrar-se do complexo de Édipo. Mais uma vez encontramos aqui a ilustração da verdade de que todo exagero contém a semente de sua própria perdição. Pois, à guisa de atos obsessivos, a masturbação que foi suprimida se aproxima cada vez mais da satisfação. As formações reativas no ego do neurótico obsessivo, que reconheço como exageros da formação normal do caráter, devem ser consideradas, penso eu, como ainda outro mecanismo de defesa e situadas as lado da regressão e da repressão. Elas parecem estar ausentes ou muito mais fracas na histeria. Lançando um olhar retrospectivo, podemos agora ter uma idéia do que é peculiar ao processo defensivo da histeria. Parece que nela o processo se limita somente à repressão. O ego afasta-se do impulso instintual desagradável, deixa-o seguir seu curso no inconsciente, e não toma mais qualquer parte em sua sorte. Esse ponto de vista não pode ser absolutamente correto, pois estamos familiarizados com o caso no qual um sintoma histérico é ao mesmo tempo a realização de uma penalidade imposta pelo superego, mas ele pode descrever uma característica geral do comportamento do ego na histeria. Podemos ou simplesmente aceitar como um fato que na neurose obsessiva surge um superego severo dessa espécie, ou considerar a regressão da libido como a característica fundamental da afecção e tentar relacionar a severidade do superego com isto. E realmente o superego, originando-se do id, não pode dissociar-se da regressão e desfusão do instinto que ali se verificaram. Não podemos surpreendernos se ele se tornar mais áspero, mais rude e mais atormentador do que onde o desenvolvimento tem sido normal. A principal tarefa durante o período de latência parece ser o desvio da tentação à masturbação. Essa luta produz uma série de sintomas que aparecem de maneira típica nos indivíduos mais diferentes e que, em geral, têm a natureza de um cerimonial. Muito é de lamentar que alguém ainda não os tenha reunido e analisado de maneira sistemática. Sendo os primeiros produtos da neurose, eles deviam ser aqueles mais capazes de lançar luz sobre os mecanismos empregados em sua formação de sintomas. Já exibem as características que surgirão de forma tão desastrosa se sobrevier uma doença grave. Tendem a tornar-se ligados a atividades (que depois seriam levadas a efeito quase automaticamente) como ir dormir, lavar-se, vestir-se e andar de um lado para o outro; e também tendem à repetição e ao desperdício de tempo. No momento não está de modo algum claro por que isto ocorre dessa maneira, mas a sublimação dos componentes erótico-anais desempenha nele papel inegável. O advento da puberdade abre um capítulo decisivo na história de uma neurose obsessiva. A organização genital interrompida na infância começa novamente com grande vigor. Mas, como sabemos, o desenvolvimento sexual na infância determina qual a direção que tomará esse novo início na puberdade. Não só os impulsos agressivos iniciais serão despertados de novo, mas também uma proporção maior ou menor dos novos impulsos libidinais - nos casos maus todos eles - terá de seguir o curso prescrito para eles pela regressão e surgirá como tendências agressivas e destrutivas. Em conseqüência de as tendências eróticas serem disfarçadas dessa forma e devido às poderosas formações reativas no ego, a luta contra a sexualidade doravante será levada adiante sob o estandarte de princípios éticos. O ego recuará com assombro das instigações à crueldade e à violência que entram na consciência a partir do id, não tendo qualquer idéia de que nelas ele está combatendo desejos eróticos, inclusive alguns em relação aos quais não teria aberto exceção alguma. O superego por demais rigoroso insiste ainda mais fortemente na supressão da sexualidade, visto esta ter assumido formas tão repelentes. Assim, na neurose obsessiva o conflito é agravado em duas direções: as forças defensivas se tornam mais intolerantes e as forças que devem ser desviadas se tornam mais intoleráveis. Ambos os efeitos se devem a um único fator, a saber, a regressão da libido. Muito do que se afirmou pode ser contestado com base no fundamento de que as idéias obsessivas desagradáveis são bem conscientes. Mas não resta dúvida de que, antes de se tornarem conscientes, passaram pelo processo de repressão. Na maioria delas a verdadeira enunciação do impulso instintual agressivo é totalmente desconhecida do ego, exigindo boa dose de trabalho analítico para torná-la consciente. O que de fato penetra na consciência é, em geral, somente um substituto distorcido que é ou de natureza vaga, semelhante aos sonhos e indeterminada, ou de tal forma caricaturado que se torna irreconhecível. Mesmo onde a repressão não usurpou o conteúdo do impulso agressivo, ela por certo livrou-se de seu caráter afetivo concomitante. Como resultado, a agressividade parece ao ego não uma impulsão mas, como os próprios pacientes dizem, apenas um ‘pensamento’ que não desperta qualquer sentimento. Mas o fato é que este não é o caso. O que acontece é que o afeto deixado de fora quando a idéia obsessiva é percebida aparece em um ponto diferente. O superego comporta-se como se a repressão não tivesse ocorrido e como se conhecesse a verdadeira enunciação e o pleno caráter afetivo do impulso agressivo, e trata o ego em conformidade com isso. O ego que, por um lado, sabe ser inocente, é obrigado, por outro lado, a ficar cônscio de um sentimento de culpa e a arcar com uma responsabilidade pela qual não pode responder. Esse estado de coisas não é, contudo, tão desorientador como pareceria à primeira vista.O comportamento do superego simplesmente revela que ele impediu a entrada ao id por meio da repressão, enquanto permaneceu plenamente acessível à influência do superego. Se se pergunta por que o ego não tenta também afastar-se da crítica atormentadora do superego, a resposta é que ele de fato consegue fazê-lo em grande número de casos. Existem neuroses obsessivas nas quais nenhum sentimento de culpa se acha presente. Neles, até onde se possa observar, o ego evitou tornar-se cônscio desse sentimento instituindo um novo conjunto de sintomas, penitências ou restrições de natureza autopunitiva. Esses sintomas, contudo, representam ao mesmo tempo uma satisfação de impulsos masoquistas que, por sua vez, foram reforçados pela regressão. A neurose obsessiva apresenta uma multiplicidade tão vasta de fenômenos que, apesar de todos os esforços envidados até agora, não se conseguiu fazer uma síntese coerente de todas as suas variações. Tudo que podemos fazer é colher certas correlações típicas, mas há sempre o risco de que tenhamos desprezado outras uniformidades de natureza não menos importantes. Já escrevi a tendência geral da formação de sintomas na neurose obsessiva. Ela irá dar lugar cada vez mais amplo à satisfação substitutiva às expensas da frustração. Os sintomas que outrora representavam uma restrição do ego vêm depois a representar também satisfações, graças à inclinação do ego para a síntese, sendo bem claro que esse segundo significado gradativamente se torne o mais importante dos dois. O resultado desse processo, que se aproxima cada vez mais de um fracasso completo da finalidade original de defesa, é um ego extremamente restringido, que fica reduzido a procurar satisfação nos sintomas. O deslocamento da distribuição das forças em favor da satisfação pode ter o temido resultado final de paralisar a vontade do ego, que em toda decisão que tem de fazer é quase tão fortemente impelido de um lado como do outro. O conflito superagudo entre o id e o superego, que tem dominado a doença bem desde o começo, pode assumir proporções tão amplas que o ego, incapaz de executar sua ação de mediador, nada poderá empreender que não seja atraído para a esfera daquele conflito. VI No curso dessas lutas defrontamo-nos com duas atividades do ego que formam sintomas e que merecem especial atenção porque são obviamente substitutas e, portanto, bem calculadas para ilustrarem sua finalidade e técnica. O fato de surgirem tais técnicas auxiliares e substitutivas pode servir como argumento de que a verdadeira repressão se deparou com dificuldades em seu funcionamento. Se se considerar o quanto que o ego é mais cenário de ação da formação de sintomas na neurose obsessiva do que na histeria e se considerar com que tenacidade o ego se apega a suas relações com a realidade e com a consciência, empregando todas as suas faculdades intelectuais para essa finalidade - e realmente como o próprio processo de pensar se torna hipercatexizado e erotizado -, então talvez se possa chegar a uma melhor compreensão dessas variações da repressão. As duas técnicas às quais me refiro estão desfazendo o que foi feito e isolado. A primeira delas tem ampla gama de aplicação e remonta a um ponto muito distante. É, por assim dizer, mágica negativa, e se esforça, por meio do simbolismo motor, por ‘dissipar com um sopro’ não meramente as conseqüências de algum evento (ou experiência ou impressão), mas o próprio evento. Escolhi a expressão ‘dissipar com um sopro’ de caso pensado, a fim de lembrar ao leitor o papel desempenhado por essa técnica não somente nas neuroses mas também nos atos mágicos, nos costumes e nas cerimônias religiosas. Na neurose obsessiva a técnica de desfazer o que foi feito é encontrada pela primeira vez nos sintomas ‘bifásicos’,ver em [[1]], nos quais uma ação é cancelada por uma segunda, do modo que é como se nenhuma ação tivesse ocorrido, ao passo que, na realidade, ambas ocorreram. A finalidade de desfazer é o segundo motivo subjacente dos cerimoniais obsessivos, sendo o primeiro tomar precauções a fim de impedir a ocorrência ou recorrência de algum evento específico. A diferença entre os dois é facilmente observada: as medidas precautórias são racionais, enquanto tentar livrar-se de algo ‘fazendo-o como se não tivesse acontecido’ é irracional e da natureza da magia. Naturalmente devese suspeitar que o segundo é o motivo mais antigo dos dois e decorre da atitude animista para com a vida. Esse esforço em desfazer dilui-se em comportamento normal no caso em que uma pessoa resolve considerar umevento como não tendo acontecido. Mas ao passo que ela não adotará quaisquer medidas diretas contra o evento e simplesmente não prestará mais atenção alguma a ele ou a suas conseqüências, a pessoa neurótica tentará tornar o próprio passado não existente. Tentará reprimi-lo por meios motores. A mesma finalidade talvez possa explicar a obsessão de repetir, com tanta freqüência encontrada nessa neurose e cuja execução serve a grande número de intenções contraditórias ao mesmo tempo. Quando não aconteceu na forma desejada, é desfeita, sendo repetida de uma maneira diferente; e logo todos os motivos que existem para que se demore em tais repetições entram também em ação. À medida que a neurose continua, amiúde verificamos que o esforço em desfazer uma experiência traumática constitui um motivo de primeiríssima importância na formação de sintomas. Assim, inesperadamente descobrimos uma nova técnica motora de defesa, ou (como podemos dizer nesse caso com menos exatidão) de repressão. A segunda dessas técnicas que estamos começando a descrever pela primeira vez, a do isolamento, é peculiar à neurose obsessiva. Ela também se verifica na esfera motora. Quando algo desagradável aconteceu ao paciente ou quando ele próprio fez algo que tem um significado para sua neurose, ele interpola um intervalo durante o qual nada mais deve acontecer - durante o qual não deve perceber nem fazer nada. Esse comportamento, que parece estranho à primeira vista, logo se observa como tendo relação com a repressão. Sabemos que na histeria é possível provocar uma experiência traumática a ser dominada pela amnésia. Na neurose obsessiva isto pode muitas vezes não ser alcançado: a experiência não é esquecida, mas em vez disso, é destituída de seu afeto, e suas conexões associativas são suprimidas ou interrompidas, de modo que permanece como isolada, não sendo reproduzida nos processos comuns do pensamento. O efeito desse isolamento é o mesmo que o efeito da repressão com amnésia. Essa técnica, então, é reproduzida nos isolamentos da neurose obsessiva, recebendo ao mesmo tempo reforço motor para finalidades mágicas. Os elementos que são mantidos à parte dessa forma são precisamente aqueles que são da mesma classe de forma associativa. O isolamento motor destina-se a assegurar uma interrupção da ligação no pensamento. O fenômeno normal de concentração proporciona um pretexto para essa espécie de procedimento neurótico: o que nos parece importante à guisa de uma impressão ou de um trabalho não deve sofrer ainterferência das reivindicações simultâneas de quaisquer outros processos ou atividades mentais. Mas até mesmo uma pessoa normal utiliza a concentração a fim de afastar não somente o que é irrelevante ou destituído de importância, mas também, antes de tudo, o que é inadequado porque é contraditório. Ela fica muito perturbada por aqueles elementos que em certa ocasião eram da mesma classe, mas que foram desintegrados no curso do desenvolvimento dessa pessoa - como, por exemplo, por manifestações da ambivalência do seu complexo paterno em sua relação com Deus, ou por impulsos vinculados a seus órgãos excretores em suas emoções de amor. Assim, no curso normal da coisas, o ego tem grande dose de trabalho de isolamento a executar em sua função de orientar a corrente de pensamento. E, como sabemos, somos obrigados, ao executar nossa técnica analítica, a treiná-lo para abandonar por enquanto essa função, eminentemente justificada como em geral ela é. Todos verificamos por experiência que é especialmente difícil para um neurótico obsessivo levar a efeito a regra fundamental da psicanálise. Seu ego é mais atento e faz isolamentos mais acentuados, provavelmente por causa do alto grau de tensão devido ao conflito que existe entre seu superego e seu id. Enquanto o neurótico está empenhado em pensar, seu ego tem de manter muita coisa afastada - a intrusão de fantasias inconscientes e a manifestação de tendências ambivalentes. Ele não deve relaxar, mas está constantemente preparado para uma luta. Ele fortifica essa compulsão a concentrar e a isolar mediante a ajuda dos atos mágicos de isolamento que, sob a forma de sintomas, se desenvolvem, passando a ser tão dignos de nota e a ter tanta importância prática para o paciente, mas que são, naturalmente, inúteis em si e que têm a natureza de cerimoniais. Mas nesse esforço para impedir associações e ligações de pensamento, o ego está obedecendo a uma das ordens mais antigas e fundamentais da neurose obsessiva, o tabu de tocar. Se perguntarmos a nós mesmos por que a evitação do tocar, do contato ou do contágio deve desempenhar papel relevante nessa neurose e deve tornar-se o tema de complicados sistemas, a resposta é que o toque e o contato físico são a finalidade imediata da catexias objetais agressivas e amorosas. Eros deseja o contato porque se esforça por tornar o ego e o objeto amado um só, por abrir todas as barreiras espaciais entre eles. Mas também a destrutividade, que (antes da invenção de armas de longo alcance) só poderia efetivar-se de perto, deve pressupor contato físico,em engalfinhamento. ‘Tocar’ uma mulher tornou-se um eufemismo para utilizá-la como um objeto sexual. Não ‘tocar’ os órgãos genitais é a expressão empregada para proibir a satisfação auto-erótica. Visto que a neurose obsessiva começa por perseguir o toque erótico e depois, após ter-se verificado a regressão, passa a perseguir o toque erótico à guisa de agressividade, depreende-se que nada é tão fortemente proscrito nessa doença como o tocar, nem tão bem adequado para tornar-se o ponto central de um sistema de proibições. Mas isolar é remover a possibilidade de contato; é um método de evitar que uma coisa seja tocada de qualquer maneira. E quando um neurótico isola uma impressão ou uma atividade interpolando um intervalo, ele está deixando que se compreenda simbolicamente que ele não permitirá que seus pensamentos sobre aquela impressão ou atividade entrem em contato associativo com outros pensamentos. Isto é até onde nos levam nossas investigações sobre a formação de sintomas. Quase não vale a pena resumi-las, pois os resultados que proporcionaram são escassos e incompletos, e quase nada nos revelam que já não saibamos. Seria infrutífero voltar nossa atenção para a formação de sintomas em outras perturbações além das fobias, histeria de conversão e neurose obsessiva, porquanto muito pouco se sabe a respeito das mesmas. Mas ao passarmos em revista essas três neuroses em conjunto somos levados a um problema muito sério, cuja consideração não pode ser mais postergada. Todas as três têm como resultado a destruição do complexo de Édipo; e em todas as três a força motora da oposição do ego é, acreditamos, o medo da castração. Contudo, é somente nas fobias que esse medo aflora e é reconhecido. O que lhe aconteceu nas outras duas neuroses? Como o ego poupou a si mesmo esse medo? O problema se agrava quando recordamos a possibilidade, já mencionada, de que a ansiedade surja diretamente, por uma espécie de fermentação, de uma catexia libidinal, cujos processos foram perturbados. Além disso, é absolutamente certo que o medo da castração é a única força motora da repressão (ou defesa)? Se pensarmos nas neuroses em mulheres estamos destinados a duvidar disso, pois embora possamos certamente estabelecer nelas a presença de um complexo de castração, dificilmente podemos falar com propriedade em ansiedade de castração onde a castração já se verificou. VII Voltemos novamente a fobias infantis de animais, pois, quando tudo tiver sido dito e feito, nós as compreenderemos melhor do que quaisquer outros casos. Nas fobias animais, então, o ego tem de opor uma catexia de objeto libidinal que provém do id - uma catexia que pertence ou ao complexo de Édipo positivo ou ao negativo - porque acredita que lhe ceder lugar acarretaria o perigo da castração. Essa questão já foi examinada, mas ainda permanece um ponto duvidoso a esclarecer. No caso de ‘Little Hans’ - isto é, no caso de um complexo de Édipo positivo - foi sua ternura pela mãe ou foi sua agressividade para com o pai que convocou a defesa pelo ego? Na prática não parece fazer diferença alguma, mormente quando cada conjunto de sentimentos implica o outro; mas a pergunta tem um interesse teórico, visto ser somente o sentimento de afeição pela Mãe que pode contar como um sentimento puramente erótico. O impulso agressivo flui principalmente do instinto destrutivo; sempre acreditamos que em uma neurose é contra as exigências da libido e não contra as de qualquer outro instinto que o ego se está defendendo. De fato, sabemos que depois de a fobia de ‘Hans’ ter sido formada, sua terna ligação com sua mãe pareceu desaparecer, havendo sido totalmente eliminada pela repressão, enquanto a formação do sintoma (a formação substitutiva) ocorreu em relação aos seus impulsos agressivos. No ‘Wolf Man’ a situação foi mais simples. O impulso que foi reprimido - sua atitude feminina em relação ao pai - foi genuinamente erótica; e foi em relação a esse impulso que a formação de seus sintomas se verificou. É quase humilhante que, após trabalharmos por tanto tempo, ainda estejamos tendo dificuldade para compreender os fatos mais fundamentais. Mas decidimos nada simplificar e nada ocultar. Se não conseguirmos ver as coisas claramente, pelo menos veremos claramente quais são as obscuridades. O que nos está prejudicando aqui é evidentemente algum obstáculo no desenvolvimento da nossa teoria dos instintos. Começamos por traçar a organização da libido através de suas fases sucessivas - desde a fase oral, através da anal-sádica, até a genital - e, ao fazê-lo, colocamos todos os componentes do instinto sexual no mesmo pé de igualdade. Depois pareceu que o sadismo era o representante de outro instinto, que estava oposto a Eros. Esse novo ponto de vista, de que os instintos se enquadram em dois grupos, parece explodir a construção mais antiga das fases sucessivas da organização libidinal. Mas não temos de explorar um novo terreno a fim de encontrarmos uma saída da dificuldade. A solução tem estado à mão por muito tempo e estáno fato de que aquilo com que nos preocupamos praticamente não são impulsos instintuais puros, mas misturas em várias proporções dos dois grupos de instintos. Se isto for assim, não há necessidade de rever nossa opinião quanto às organizações da libido. Uma catexia sádica de um objeto também pode legitimamente reivindicar tratamento como uma catexia libidinal; e um impulso agressivo contra o pai pode do mesmo modo ficar sujeito a repressão como um impulso terno para com a mãe. Não obstante, teremos em mente, para consideração futura, a possibilidade de que a repressão seja um processo que possui uma relação especial com a organização genital da libido e que o ego recorra a outros métodos de defesa quando tem de proteger-se contra a libido em outros níveis de organização. Continuando: um caso como o de ‘Little Hans’ não nos permite chegar a qualquer conclusão clara. É verdade que nele um impulso agressivo foi eliminado pela repressão, mas isto aconteceu após ter sido alcançada a organização genital. Dessa vez não perderemos de vista o papel desempenhado pela ansiedade. Dissemos que logo que o ego reconhece o perigo de castração dá o sinal de ansiedade e inibe através da instância do prazer-desprazer (de uma maneira que ainda não podemos compreender) o iminente processo catexial no id. Ao mesmo tempo forma-se a fobia. E agora a ansiedade de castração é dirigida para um objeto diferente e expressa de forma distorcida, de modo que o paciente teme, não ser castrado pelo pai, mas ser mordido por um cavalo ou devorado por um lobo. Essa formação substitutiva apresenta duas vantagens óbvias. Em primeiro lugar, evita um conflito devido à ambivalência (pois o pai foi um objeto amado, também) e, em segundo, permite ao ego deixar de gerar ansiedade, pois a ansiedade que pertence a uma fobia é condicional: ela só surge quando o objeto dela é percebido - é com razão, visto que é somente então que a situação de perigo se acha presente. Não é preciso ter medo de ser castrado por um pai que não se encontra ali. Por outro lado, uma pessoa não pode livrar-se de um pai; ele pode aparecer sempre que deseja. Mas se for substituído por um animal, tudo o que se tem de fazer é evitar a vista do mesmo - isto é, sua presença - a fim de ficar livre do perigo e da ansiedade. ‘Little Hans’, portanto, impôs uma restrição a seu ego. Ele produziu a inibição de não sair de casa, de modo a não encontrar qualquer cavalo. Para o jovem russo foi ainda mais fácil, pois quase não lhe era uma privação deixar de olhar mais para um livro de gravuras. Se sua travessa irmã não tivesse continuado a mostra-lhe o livro com a fotografia do lobo de pé, ele teria sido capaz de sentir-se livre do seu medo.Em ocasião anterior declarei que as fobias têm a natureza de uma projeção devido ao fato de que substituem um perigo interno instintual por outro externo e perceptual. A vantagem disto é que o indivíduo pode proteger-se contra um perigo externo, dele fugindo e evitando a percepção do mesmo, ao passo que é inútil fugir de perigos que surgem de dentro. Essa minha afirmação não foi incorreta, mas não penetrou a superfície das coisas, pois uma exigência instintual não é, afinal de contas, perigosa em si; somente vem a ser assim, visto que acarreta um perigo externo real, o perigo de castração. Dessa forma, o que acontece numa fobia, em último recurso, é substituído por outro. O ponto de vista que numa fobia o ego é capaz de fugir à ansiedade por meio de evitação ou de sintomas inibitórios ajusta-se muito bem à teoria de que a ansiedade é apenas um sinal afetivo e de que não ocorreu nenhuma alteração na situação econômica. A ansiedade sentida nas fobias de animais é, portanto, uma reação afetiva por parte do ego ao perigo; e o perigo que está sendo assinalado dessa forma é o perigo de castração. Essa ansiedade não difere em aspecto algum da ansiedade realística que o ego normalmente sente em situações de perigo, salvo que seu conteúdo permanece inconsciente e apenas se forma consciente sob a forma de uma distorção. O mesmo demonstrará ser verdade, penso eu, quanto a fobia de adultos, embora o material sobre o qual trabalham suas neuroses seja muito mais abundante e haja alguns adicionais na formação dos sintomas. Fundamentalmente, a posição é idêntica. O paciente agorafóbico impõe uma restrição a seu ego a fim de escapar a um certo perigo instintual - a saber, o perigo de ceder a seus desejos eróticos, pois se o fizesse, o perigo de ser castrado, ou algum perigo semelhante, mais uma vez seria evocado como se fosse em sua infância. Posso citar, à guisa de exemplo, o caso de um jovem que se tornou agorafóbico porque temia ceder às solicitações de prostitutas e delas contrair uma infecção sifilítica como castigo. Estou bem cônscio de que grande número de casos apresenta uma estrutura mais complicada e de que muitos outros impulsos instintuais reprimidos podem entrar numa fobia. Mas eles são apenas correntes tributárias que em sua maior parte se ajustaram à corrente principal da neurose numa fase ulterior. A sintomalogia da agorafobia torna-se complicada pelo fato deque o ego não se limita a fazer uma renúncia. A fim de furtar-se à situação de perigo faz mais: em geral efetua uma regressão temporal à infância (em casos extremos, a uma época em que o indivíduo se encontrava no ventre da mãe e se protegia contra os perigos que o ameaçam no presente). Tal regressão torna-se agora uma condição cuja realização isenta o ego de fazer uma renúncia. Por exemplo, um paciente agorafóbico pode ser capaz de caminhar na rua contanto que esteja acompanhado, como uma criancinha, por alguém que ele conhece e em quem confia; ou, pelo mesmo motivo, poderá ser capaz de sair sozinho, contanto que permaneça a uma certa distância de sua própria casa e não vá a lugares que não lhe sejam familiares ou onde as pessoas não o conheçam. O que essas estipulações são, isto dependerá, em cada caso, dos fatores infantis que o dominam através de sua neurose. A fobia de estar sozinho não é ambígua em seu significado, independentemente de qualquer regressão infantil: ela é, em última análise, um esforço para evitar a tentação de entregar-se à masturbação solitária. A regressão infantil naturalmente só pode ocorrer quando o indivíduo não é mais uma criança. Uma fobia geralmente se estabelece após um primeiro ataque de ansiedade ter sido experimentado em circunstâncias específicas, tais como na rua, em um trem ou em solidão. A partir desse ponto a ansiedade é mantida em interdição pela fobia, mas ressurge sempre que a condição não pode ser realizada. O mecanismo da fobia presta bons serviços como meio de defesa e tende a ser muito estável. Uma continuação da luta defensiva, sob a forma de uma luta contra o sintoma, ocorre com freqüência mas não invariavelmente. O que aprendemos sobre a ansiedade nas fobias é também aplicável a neuroses obsessivas. Nesse sentido não nos é difícil colocar as neuroses obsessivas em pé de igualdade com as fobias. Nas primeiras, a mola de toda a formação de sintomas ulteriores é claramente o medo que o ego tem de seu superego. A situação de perigo da qual o ego deve fugir é a hostilidade do superego. Não há aqui qualquer vestígio de projeção; o perigo está inteiramente internalizado. Mas se perguntarmos a nós mesmos o que é que o ego teme do superego, não podemos deixar de pensar que o castigo ameaçado pelo segundo deve ser uma extensão do castigo de castração. Da mesmaforma que o pai se tornou despersonalizado sob a forma do superego, o medo da castração, a qual se encontra nas mãos dele, se transformou numa ansiedade social ou moral indefinida. Mas essa ansiedade está oculta. O ego foge dela obedientemente, executando as ordens, precauções e penitências que lhe foram inculcadas. Se ele foi impedido de assim agir, é imediatamente dominado por um sentimento extremamente aflitivo de malestar, que pode ser considerado como um equivalente de ansiedade e que os próprios pacientes comparam com essa última. A conclusão a que chegamos, portanto, é esta. A ansiedade é uma reação a uma situação de perigo. Ela é remediada pelo ego que faz algo a fim de evitar essa situação ou para afastar-se dela. Pode-se dizer que se criam sintomas de modo a evitar a geração de ansiedade. Mas isto não atinge uma profundidade suficiente. Seria mais verdadeiro dizer que se criam sintomas a fim de evitar uma situação de perigo cuja presença foi assinalada pela geração de ansiedade. Nos casos que examinamos, o perigo em causa foi o de castração ou de algo remontável à castração. Se a ansiedade for uma reação do ego ao perigo, seremos tentados a considerar as neuroses traumáticas, as quais tão amiúde se seguem a uma fuga iminente da morte, como um resultado direto de um medo da morte (ou medo pela vida) e a afastar de nossas mentes a questão da castração e as relações dependentes do ego,ver em [[1] e [2]]. A maior parte daqueles que observaram as neuroses traumáticas que se verificaram durante a última guerra assumiram essa posição e triunfalmente anunciaram que estava prestes a chegar a prova de que uma ameaça ao instinto de autopreservação poderia por si só produzir uma neurose, sem qualquer mescla de fatores sexuais e sem exigir qualquer das complicadas hipóteses da psicanálise. De fato, deve-se lamentar muito que não haja uma única análise de valor de uma neurose traumática. E é de lamentar-se, não porque tal análise fosse contradizer a importância etiológica da sexualidade - pois qualquer contradição dessa natureza de há muito foi eliminada pela introdução do conceito de narcisismo,que põe a catexia libidinal do ego em harmonia com as catexias objetais e ressalta o caráter libidinal do instinto de autopreservação -, mas porque, na ausência de quaisquer análises dessa espécie, perdemos uma oportunidade preciosíssima de tirar conclusões decisivas sobre as relações entre a ansiedade e a formação de sintomas. Em vista de tudo o que sabemos acerca da estrutura das neuroses relativamente simples da vida cotidiana, parecia altamente improvável que uma neurose chegasse à existência apenas por causa da presença objetiva do perigo, sem qualquer participação dos níveis mais profundos do aparelho mental. Mas o inconsciente parece nada conter que pudesse dar qualquer conteúdo ao nosso conceito da aniquilamento da vida. A castração pode ser retratada com base na experiência diária das fezes que estão sendo separadas do corpo ou com base na perda do seio da mãe no desmame. Mas nada que se assemelhe à morte jamais pode ter sido experimentado; ou se tiver, como no desmaio, não deixou quaisquer vestígios observáveis atrás de si. Estou inclinado, portanto, a aderir ao ponto de vista de que o medo da morte deve ser considerado como análogo ao medo da castração e que a situação à qual o ego está reagindo é de ser abandonado pelo superego protetor - os poderes do destino -, de modo que ele não dispõe mais de qualquer salvaguarda contra todos os perigos que o cercam. Além disso, deve-se recordar que nas experiências que conduzem a uma neurose traumática o escudo protetor contra os estímulos externos é desfeito e quantidades excessivas de excitação incidem sobre o aparelho mental,ver em [[1]]; de forma que temos aqui uma segunda possibilidade - a de que a ansiedade está não apenas emitindo sinais como um afeto, mas também sendo recriada a partir das condições econômicas da situação. A afirmação que acabo de fazer, no sentido de que o ego foi preparado para esperar a castração, tendo sofrido perdas de objeto constantemente repetidas, coloca a questão da ansiedade sob nova luz. Até aqui consideramo-la como um final afetivo de perigo; mas agora, visto que o perigo é tão amiúde o de castração, ele nos parece uma reação a uma perda, uma separação. Mesmo se surgir grande número de considerações que vão contra esse ponto de vista, não podemos senão ficar surpreendidos por uma correlação muito notável. A primeira experiência de ansiedade pela qual passa um indivíduo (no caso de seres humanos, seja como for) é o nascimento, e, objetivamente falando, o nascimento é uma separação da mãe. Poderia sercomparado a uma castração da mãe (equiparando a criança a um pênis). Ora, seria muito satisfatório se a ansiedade, como símbolo de uma separação, devesse ser repetida em toda ocasião subseqüente na qual uma separação ocorresse. Mas infelizmente estamos impedidos de fazer uso dessa correlação pelo fato de que o nascimento não é experimentado subjetivamente como uma separação da mãe, visto que o feto, sendo uma criatura completamente narcísica, está totalmente alheio à sua existência como um objeto. Outro argumento adverso é que sabemos quais são as reações afetivas a uma separação: são a dor e o luto, e não a ansiedade. Incidentalmente, pode-se recordar que ao examinarmos a questão do luto também deixamos de descobrir por que deve ser uma coisa tão dolorosa. VIII É chegada a ocasião de fazer uma pausa e meditar. O que claramente desejamos é encontrar algo que nos diga o que é realmente a ansiedade, algum critério que nos permita distinguir dos falsos os verdadeiros enunciados a respeito dela. Mas isto não é fácil conseguir. A ansiedade não é assim um assunto tão simples. Até agora a nada chegamos, a não ser a pontos de vista contraditórias sobre ela, nenhum dos quais pode, diante de uma opinião destituída de preconceito, ter preferência sobre os outros. Proponho, portanto, adotar um procedimento diferente. Sugiro que se reúnam, de maneira bem imparcial, todos os fatos que sabemos sobre a ansiedade, sem esperar chegar a uma nova síntese. A ansiedade então é, em primeiro lugar, algo que se sente. Denominamo-la de estado afetivo, embora também ignoremos o que seja um afeto. Como um sentimento, a ansiedade tem um caráter muito acentuado de desprazer. Mas isto não é o todo de sua qualidade. Nem todo desprazer pode ser chamado de ansiedade, pois há outros sentimentos, tais como a tensão, a dor ou o luto, que têm o caráter de desprazer. Assim, a ansiedade deve ter outros traços distintivos além dessa qualidade de desprazer. Podemos conseguir compreender as diferenças entre esses vários afetos desagradáveis? Seja como for, podemos observar uma ou duas coisas sobre o sentimento de ansiedade. Seu caráter de desprazer parece ter um aspecto próprio - algo não muito óbvio, cuja presença é difícil de provar e que, contudo, ali se encontra com toda probabilidade. Mas além de ter essa característica especial difícil de isolar, observamos que a ansiedade se faz acompanhar de sensações físicas mais ou menos definidas que podem ser referidas a órgãos específicos do corpo. Como não estamos interessados aqui na filosofia da ansiedade, contentar-nos-emos em mencionar alguns representantes dessas sensações. Os mais claros e mais freqüentes são os ligados aos órgãos respiratórios e ao coração. Eles proporcionam provas de que as inervações motoras - isto é, processos de descarga desempenham seu papel no fenômeno geral da ansiedade. A análise dos estados de ansiedade, portanto, revela a existência de (1) um caráter específico de desprazer, (2) atos de descarga e (3) percepções desses atos. Os dois últimos pontos indicam ao mesmo tempo uma diferença entre estados de ansiedade e outros estados semelhantes, como os de luto edor. Os últimos não têm qualquer manifestação motora; ou se têm, a manifestação não constitui parte integrante de todo o estado, mas se distingue dela como sendo ou o resultado da mesma ou uma reação a ela. A ansiedade, portanto, é um estado especial de desprazer com atos de descarga ao longo de trilhas específicas. De conformidade com nossos pontos de vista gerais devemos estar inclinados a pensar que a ansiedade se acha baseada em um aumento de excitação que, por um lado, produz o caráter de desprazer e, por outro, encontra alívio através dos atos de descarga já mencionados. Mas um relato puramente fisiológico dessa natureza quase não nos satisfará. Somos tentados a presumir a presença de um fator histórico que une firmemente as sensações de ansiedade e suas inervações. Presumimos, em outras palavras, que um estado de ansiedade é a reprodução de alguma experiência que encerrava as condições necessárias para tal aumento de excitação e uma descarga por trilhas específicas, e que a partir dessa circunstância o desprazer da ansiedade recebe seu caráter específico. No homem, o nascimento proporciona uma experiência prototípica desse tipo, e ficamos inclinados, portanto, a considerar os estados de ansiedade como uma reprodução do trauma do nascimento. [Ver em [1]] Isto não implica que a ansiedade ocupa uma posição excepcional entre os estados afetivos. Na minha opinião, os outros afetos são também reproduções de experiências muito antigas, talvez mesmo pré-individuais, de importância vital; e devo estar inclinado e considerá-las como ataques histéricos universais, típicos e inatos, comparados com os ataques recentes e individualmente adquiridos que ocorrem em neuroses histéricas e cuja origem e significado como símbolos mnêmicos foram revelados pela análise. Seria muito conveniente, como é natural, sermos capazes de demonstrar a verdade desse ponto de vista em um grande número desses afetos - uma coisa que ainda está muito longe de ser o caso. A opinião de que a ansiedade remonta ao fato do nascimento levanta objeções imediatas que têm de ser atendidas. Pode-se argumentar que a ansiedade é uma reação que, com toda probabilidade, é comum a todoorganismo, certamente todo organismo de ordem superior, ao passo que o nascimento é experimentado apenas pelos mamíferos, sendo de duvidar se até mesmo em todos eles o nascimento tem o significado de um trauma. Portanto, pode haver ansiedade sem o protótipo de nascimento. Mas essa objeção leva-nos além da barreira que divide a psicologia da biologia. Pode ser que, precisamente porque a ansiedade tem uma função biológica indispensável a cumprir como reação a um estado de perigo, seja diferentemente engendrada em diferentes organismos. Não sabemos, além disso, se a ansiedade envolve as mesmas sensações e inervações nos organismos muito afastados do homem, como faz na próprio homem. Assim, não há aqui qualquer bom argumento contra o ponto de vista de que, no homem, a ansiedade seja moldada no processo do nascimento. Se a estrutura e a origem da ansiedade forem conforme o descrito, a pergunta que se segue é: qual a função da ansiedade e em que ocasiões se reproduz? A resposta parece ser óbvia e convincente: a ansiedade surgiu originalmente como uma reação a um estado de perigo e é reproduzida sempre que um estado dessa espécie se repete. Essa resposta, contudo, levanta outras considerações. As inervações envolvidas no estado original de ansiedade provavelmente tinham um significado e finalidade, da mesma forma que os movimentos musculares que acompanham um primeiro ataque histérico. A fim de compreender um ataque dessa natureza, tudo o que se tem a fazer é procurar a situação na qual os movimentos em questão formavam parte de uma ação apropriada e aconselhável. Dessa forma, no nascimento é provável que a inervação, ao ser dirigida para os órgãos respiratórios, esteja preparando o caminho para a atividade dos pulmões, e, ao acelerar as pulsações do coração, esteja ajudando a manter o sangue isento de substâncias tóxicas. Naturalmente, quando o estado de ansiedade é reproduzido depois como um afeto, faltar-lhe-á tal oportunidade, da mesma forma como às repetições de um ataque histérico. Quando o indivíduo é colocado numa nova posição de perigo, talvez lhe seja bem desaconselhável reagir com um estado de ansiedade (que é uma reação a um perigo anterior) em vez de iniciar uma reação apropriada ao perigo atual. Mas seu comportamento pode tornar-se adequado mais uma vez, se a situação de perigo for reconhecida à medida que se aproximar e se for assinalada por uma irrupção de ansiedade. Nesse caso ele pode imediatamente livrar-se da ansiedade, recorrendo a medidas mais adequadas. Assim, podemos ver que há duas formas como a ansiedade pode surgir: de uma maneira inadequada, quando tenha uma nova situação de perigo, ou de uma maneira conveniente, a fim de dar um sinal e impedir que tal situação ocorra.Mas o que é um ‘perigo’? No ato do mecanismo há um verdadeiro perigo para a vida. Sabemos o que isso significa objetivamente; mas num sentido psicológico nada nos diz absolutamente. O perigo do nascimento não tem ainda qualquer conteúdo psíquico. Não podemos possivelmente supor que o feto tenha qualquer espécie de conhecimento de que existe a possibilidade de sua vida ser destruída. Ele somente pode estar cônscio de alguma grande perturbação na economia de sua libido narcísica. Grandes somas de excitação nele se acumulam, dando margem a novas espécies de sentimentos de desprazer, e alguns órgãos adquirem maior catexia, prenunciando assim a catexia objetal que logo se estabelecerá. Que elementos em tudo isso são utilizados como sinal de uma ‘situação de perigo’? Infelizmente pouquíssimo se conhece acerca da composição mental de um recém-nascido para tornar possível uma resposta direta. Não posso sequer garantir a validade da descrição que acabo de apresentar. É fácil dizer que o bebê repetirá sua emoção de ansiedade em toda situação que recorde o evento do nascimento. O importante é saber o que recorda o evento e o que é recordado. Tudo o que podemos fazer é examinar as ocasiões nas quais crianças de colo ou um pouco mais velhas revelam disposição de produzir ansiedade. Em seu livro sobre o trauma do nascimento, Rank (1924) fez uma tentativa firme de estabelecer uma relação entre as primeiras fobias das crianças e as impressões nelas causadas pelo evento do nascimento. Mas não penso que ele tenha sido bemsucedido. Sua teoria está sujeita a duas objeções. Em primeiro lugar, ele presume que a criança recebeu na ocasião do nascimento certas impressões sensoriais, em particular de natureza visual, cuja renovação pode lembrar à sua memória o trauma do nascimento e assim evocar uma reação de ansiedade. Essa suposição é bem infundada e extremamente improvável. Não é crível que uma criança retenha coisas além de sensações tácteis e gerais relacionadas com o processo de nascimento. Se, posteriormente, as crianças revelam medo de animaizinhos que desaparecem em buracos ou deles saem, essa reação, de acordo com Rank, se deve ao fato de elas perceberem uma analogia. Mas é uma analogia da qual não podem estar cônscias. Em segundo lugar, ao considerar essas situações de ansiedade posteriores, Rank repisa, conforme melhor lhe convém, ora a lembrança que a criança tem de sua feliz existência intrauterina, ora sua lembrança de perturbação traumática que interrompeu aquela existência - o que deixa a porta aberta para a interpretação arbitrária. Existem, além disso, certos exemplos de ansiedade infantil que contrariam diretamente sua teoria. Quando, por exemplo, uma criança é deixada sozinha no escuro, seria de esperar-seque ela, de conformidade com seu ponto de vista, recebesse de bom grado o restabelecimento da situação intra-uterina: contudo é precisamente em tais ocasiões que a criança reage com ansiedade. E se isto for explicado afirmando-se que a criança está sendo lembrada da interrupção que o evento do nascimento causou em sua felicidade intra-uterina, torna-se impossível fechar os olhos por mais tempo ao caráter exagerado de tais explicações. Sou impelido à conclusão de que as primeiras fobias da infância não podem ser diretamente rastreadas em impressões do nascimento e que até agora não foram explicadas. Um certo preparo para a ansiedade se acha sem dúvida presente na criança de colo. Mas esse preparo para a ansiedade, em vez de estar em seu ponto máximo logo após o nascimento e então lentamente decrescer, não surge senão depois, à medida que se processa o desenvolvimento mental, e permanece durante um certo período da infância. Se essas primeiras fobias persistirem além de um certo período da infância, estamos inclinados a suspeitar da presença de uma perturbação neurótica, embora não seja absolutamente claro qual seja sua relação com as indubitáveis neuroses que surgem posteriormente na infância. Só algumas das manifestações de ansiedade nas crianças nos são compreensíveis, e devemos limitar nossa atenção às mesmas, Ocorrem, por exemplo, quando uma criança está sozinha, ou no escuro, ou quando se encontra com uma pessoa desconhecida em vez de uma com a qual ela está habituada - como a mãe dela. Esses três exemplos podem ser reduzidos a uma condição única - a saber, a de sentir falta de alguém que é amado e de quem se sente saudade. Mas aqui, penso eu, temos a chave de uma compreensão da ansiedade e de uma reconciliação das contradições que parecem assediá-la. A imagem mnêmica que a criança tem da pessoa pela qual ela sente anseio é sem dúvida intensamente catexizada, provavelmente de forma alucinatória inicialmente. Mas isto não tem qualquer efeito, parecendo agora que o anseio se transforma em ansiedade. Essa ansiedade tem toda a aparência de ser uma expressão do sentimento da criança em sua desorientação, como se em seu estado ainda muito pouco desenvolvido ela não soubesse como melhor lidar com sua catexia de anseio. Aqui a ansiedade aparece como una reação à perda sentida do objeto e lembramo-nos de imediato do fato de que também a ansiedade de castração constitui o medo de sermos separados deum objeto altamente valioso, e de que a mais antiga ansiedade - a ‘ansiedade primeva’ do nascimento - ocorre por ocasião de uma separação da mãe. Mas a reflexão de um momento nos leva além dessa questão da perda de objeto. A razão por que a criança de colo deseja perceber a presença de sua mãe é somente porque ela já sabe por experiência que esta satisfaz todas as suas necessidades sem delongas. A situação, portanto, que ela considera como um ‘perigo’ e contra a qual deseja ser protegida é a de não satisfação, de uma crescente tensão devida à necessidade, contra a qual ela é inerme. Penso que se adotarmos esse ponto de vista todos os fatos se enquadrarão nos seus lugares. A situação de não satisfação na qual as quantidades de estímulo se elevam a um grau desagradável sem que lhes seja possível ser dominadas psiquicamente ou descarregadas deve, para a criança, ser análoga à experiência de nascer - deve ser uma repetição da situação de perigo. O que ambas as situações têm em comum é a perturbação econômica provocada por um acúmulo de quantidades de estímulos que precisam ser eliminadas. Em ambos os casos a reação de ansiedade se estabelece. (Essa reação é ainda conveniente na criança de colo, pois a descarga, sendo dirigida para o aparelho respiratório e os músculos vocais, agora convoca a mãe para ela, logo que ativou os pulmões do recém-nascido para livrar-se dos estímulos internos.) É desnecessário supor que a criança traz mais alguma coisa com ela da época do seu nascimento do que essa maneira de indicar a presença do perigo. Quando a criança houver descoberto pela experiência que um objeto externo perceptível pode pôr termo à situação perigosa que lembra o nascimento, o conteúdo do perigo que ela teme é deslocado da situação econômica para a condição que determinou essa situação, a saber, a perda de objeto. É a ausência da mãe que agora constitui o perigo, e logo que surge esse perigo a criança dá o sinal de ansiedade, antes que a temida situação econômica se estabeleça. Essa mudança constitui o primeiro grande passo à frente na providência adotada pela criança para a sua autopreservação, representando ao mesmo tempo uma transição do novo aparecimento automático e involuntário da ansiedade para a reprodução intencional da ansiedade como um sinal de perigo. Nesses dois aspectos, como um fenômeno automático é um sinal de salvação, verifica-se que a ansiedade é um produto do desamparo mental da criança, o qual é um símile natural de seu desamparo biológico. A impressionante coincidência como a ansiedade do bebê recém-nascido e a ansiedade da criança de colo são condicionadas pela separação da mãe não precisa ser explicada em moldes psicológicos. Essas explicação podeser apresentada simples e suficientemente de forma biológica, porquanto, da mesma maneira que a mãe originalmente satisfez todas as necessidades do feto através do aparelho do próprio corpo dela, assim agora, após o nascimento daquele, ela continua a fazê-lo, embora parcialmente por outros meios. Há muito mais continuidade entre a vida intra-uterina e a primeira infância do que a impressionante censura do ato do nascimento nos teria feito acreditar. O que acontece é que a situação biológica da criança como feto é substituída para ela por uma relação de objeto psíquica quanto a sua mãe. Mas não nos devemos esquecer de que durante sua vida intra-uterina a mãe era um objeto para o feto, e que naquela ocasião não havia absolutamente objetos. É óbvio que nesse esquema de coisas não há lugar para a ab-reação do trauma do nascimento. Não podemos achar que a ansiedade tenha qualquer outra função, afora a de ser um sinal para a evitação de uma situação de perigo. O significado da perda de objeto como um determinante da ausência se estende consideravelmente além desse ponto, pois a transformação seguinte da ansiedade, a saber, a ansiedade de castração, que pertence à fase fálica, constitui também medo da separação e está assim ligada ao mesmo determinante. Nesse caso, o perigo de se separar dos seus órgãos genitais. Ferenczi [1925] traçou, de maneira bem correta, penso eu, uma nítida linha de ligação entre esse medo e os medos contidos nas situações mais antigas de perigo. O alto grau de valor narcísico que o pênis possui pode valer-se do fato de que o órgão é uma garantia para seu possuidor de que este pode ficar mais uma vez unido à mãe - isto é, a um substituto dela - no ato da copulação. O ficar privado disto equivale a uma renovada separação dela, e isto por sua vez significa ficar desamparadamente exposto a uma tensão desagradável, devido à necessidade instintual, como foi o caso no nascimento. Mas a necessidade cujo aumento se teme é agora uma necessidade específica que pertence à libido genital, e que não é mais indeterminada, como o foi no período da infância. Pode-se acrescentar que para um homem que seja impotente (isto é, que seja inibido pela ameaça de castração) o substituto da copulação é uma fantasia de retorno ao ventre da mãe. Seguindo a linha de pensamento de Ferenczi, podemos dizer que o homem em causa, havendo tentado provocar seu retorno ao ventre da mãe, utilizando o órgão genital dele para representá-lo, está agora [em sua fantasia] substituindo regressivamente aquele órgão por toda a sua pessoa. O progresso que a criança alcança em seu desenvolvimento - sua crescente independência, a divisão mais acentuada do seu aparelho mental em várias instâncias, o advento de novas necessidades não pode deixar de exercer influência sobre o conteúdo da situação de perigo. Já traçamos a mudança desse conteúdo a partir da perda da mãe como objeto até a castração. A mudança seguinte é causada pelo poder do superego. Com a despersonalização do agente parental a partir do qual se temia a castração, o perigo se torna menos definido. A ansiedade de castração se desenvolve em ansiedade moral - ansiedade social -, não sendo agora tão fácil saber o que é a ansiedade. A fórmula ‘separação e expulsão da horda’ só se aplica àquela porção ulterior do superego que se formou com base em protótipos sociais, não só ao núcleo do superego, que corresponde à instância parental introjetada. Expressando-o de modo mais geral, o que o ego considera como sendo o perigo e ao qual reage com um sinal de ansiedade consiste em o superego dever estar com raiva dele ou puni-lo ou deixar de amá-lo. A transformação final pela qual passa o medo do superego é, segundo me parece, o medo da morte (ou medo pela vida), que é um medo do superego projetado nos poderes do destino. Época houve em que atribuí certa importância ao ponto de vista de que aquilo que era utilizado como uma descarga de ansiedade era a catexia que fora retirada no processo de repressão. Hoje isto me parece quase de nenhuma importância. O motivo disto é que, embora antigamente acreditasse que a ansiedade, de maneira invariável, surgisse automaticamente por um processo econômico, minha presente concepção de ansiedade como um sinal emitido pelo ego a fim de tornar afetiva a instância do prazer-desprazer elimina a necessidade de considerar o fator econômico. Naturalmente nada há a dizer contra a idéia de que é precisamente a energia que foi liberada por haver sido retirada através da repressão que é utilizada pelo ego para provocar o afeto; porém não é mais de importância alguma qual a parcela de energia que é empregada para essa finalidade.Ver em [[1].] Essa nova visão das coisas exige o exame de outra asserção minha - a saber, que o ego é a sede real da ansiedade. Penso que essa proposição ainda éválida. Não existe razão alguma para atribuir qualquer manifestação de ansiedade ao superego; embora a expressão ‘ansiedade do id’ necessitasse de correção, isto seria antes quanto à forma do que quanto ao fundo. A ansiedade é um estado afetivo e como tal, naturalmente, só pode ser sentida pelo ego. O id pode ter ansiedade como o ego, pois não é uma organização e não pode fazer um julgamento sobre situações de perigo. Por outro lado, muitas vezes acontece ocorrer ou começar a ocorrer processos no id que fazem com que o ego produza ansiedade. Na realidade, é provável que as primeira repressões, bem como a maioria das ulteriores, sejam motivadas por uma ansiedade do ego dessa classe, no tocante a processos específicos do id. Aqui estamos mais uma vez fazendo uma distinção correta entre dois casos: o caso no qual ocorre algo no id que ativa uma das situações de perigo para o ego e que o induz a emitir o sinal de ansiedade para que a inibição se processe, e o caso no qual uma situação análoga ao trauma do nascimento se estabelece no id, seguindo-se uma reação automática de ansiedade. Os dois casos podem ser mais aproximados, se se ressaltar que o segundo corresponde à situação de perigo mais antiga e original, ao passo que o primeiro corresponde a qualquer um dos determinantes ulteriores de ansiedade que dela se tenha originado; ou, conforme aplicado a perturbação com que de fato nos defrontamos, que o segundo caso é atuante na etiologia das neuroses ‘atuais’, ao passo que o primeiro permanece típico para o das psiconeuroses. Vemos, então, que não se trata tanto de remontarmos aos nossos primeiros achados, mas de pôlos em harmonia com descobertas mais recentes. Constitui ainda um fato inegável que na abstinência sexual, na interferência imprópria no curso da excitação sexual, ou se esta for desviada de ser elaborada psiquicamente, a ansiedade surge diretamente da libido; em outras palavras, que o ego fica reduzido a um estado de desamparo em face de uma tensão excessiva devida à necessidade, como ocorreu na situação do nascimento, e que a ansiedade é então gerada. Mais uma vez aqui, embora o assunto seja de somenos importância é bem possível que o que encontra descarga na geração da ansiedade é precisamente o excedente da libido não utilizada. Como sabemos, uma psiconeurose está especialmente sujeita a desenvolver-se com base em uma neurose ‘atual’. Isto se afigura como se o ego tivesse tentando poupar-se à ansiedade, que ele aprendeu a manter em suspensão por algum tempo, e ligá-la pela formação de sintomas. A análise das neuroses de guerra traumáticas - expressão que,incidentalmente, abrange grande variedade de perturbações - provavelmente teria revelado que grande número delas possui algumas características das neuroses ‘atuais’, ver em [[1]] Ao descrever a evolução das várias situações de perigo a partir do seu protótipo, o ato do nascimento, não tive qualquer intenção de afirmar que cada determinante invalida completamente o precedente. É verdade que, à medida que continua o desenvolvimento do ego, as situações de perigo mais antigas tendem a perder sua força e a ser postas de lado, de modo que podemos dizer que cada período da vida do indivíduo tem seu determinante apropriado de ansiedade. Assim o perigo de desamparo psíquico é apropriado ao perigo de vida quando o ego do indivíduo é imaturo; o perigo da perda de objeto, até a primeira infância, quando ele ainda se acha na dependência de outros; o perigo de castração, até a fase fálica; e o medo do seu superego, até o período de latência. Não obstante, todas essas situações de perigo e determinantes de ansiedade podem resistir lado a lado e fazer com que o ego a elas reaja com ansiedade num período ulterior ao apropriado; ou, além disso, várias delas podem entrar em ação ao mesmo tempo. É possível, além disto, que haja uma relação razoavelmente estreita entre a situação de perigo que seja operativa e a forma assumida pela neurose resultante.Quando, numa parte anterior desta apreciação, verificamos que o perigo da castração era de importância em mais de uma doença, ficamos alerta contra uma superestimativa desse fator, visto que ele poderia não ser decisivo para o sexo feminino, que indubitavelmente está mais sujeito a neuroses do que os homens. [Ver [1].] Vemos agora que não há perigo algum em considerarmos a ansiedade de castração como a única força motora dos processos defensivos que conduzem à neurose. Indiquei alhures como meninazinhas, no curso do seu desenvolvimento, são levadas a fazer uma terna catexia objetal pelo seu complexo de castração. É precisamente nas mulheres que a situação de perigo da perda de objeto parece ter permanecido mais efetiva. Tudo que precisamos fazer é proceder a uma ligeira modificação em nossa descrição do seu determinante de ansiedade, no sentido de que não se trata mais de sentir a necessidade do próprio objeto ou de perdê-lo, mas de perder o amor do objeto. Visto não haver qualquer dúvida de que a histeria tem forte afinidade com a feminilidade, da mesma forma que a neurose obsessiva com a masculinidade, afigura-se provável que, como um determinante da ansiedade, a perda do amor desempenha o mesmíssimo papel na histeria que a ameaça da castração nas fobias e o medo do superego na neurose obsessiva. IX O que nos resta agora é considerar a relação entre a formação de sintomas e a geração de ansiedade. Parece haver duas opiniões amplamente sustentadas sobre esse assunto. Uma é que a ansiedade é um sintoma de neurose. A outra é que existe uma relação muito mais ampla entre as duas.De acordo com a segunda opinião, os sintomas só se formam a fim de evitar a ansiedade: reúnem a energia psíquica que de outra forma seria descarregada como ansiedade. Assim este seria o fenômeno fundamental e o principal problema da neurose. Que essa segunda opinião é pelo menos em parte verdadeira é demonstrado por alguns exemplos marcantes. Se um paciente agorafóbico que tenha sido acompanhado até a rua for ali deixado sozinho, ele produzirá um ataque de ansiedade. Ou se um neurótico obsessivo for impedido de lavar as mãos após haver tocado algo, ele se tornará preso de uma ansiedade quase insuportável. É claro, portanto, que a finalidade e o resultado da condição imposta de ser acompanhado na rua e que o ato obsessivo de lavar as mãos consistiam em prevenir irrupções de ansiedade dessa espécie. Nesse sentido, toda inibição que o ego impõe a si próprio pode ser denominada de sintoma. Visto que remetemos a geração da ansiedade a uma situação de perigo, preferiremos dizer que os sintomas são criados a fim de remover o ego de uma situação de perigo. Se se impedir que os sintomas sejam formados, o perigo de fato se concretiza; isto é, uma situação análoga ao nascimento se estabelece, na qual o ego fica desamparado em face de uma exigência instintual constantemente crescente - o determinante mais antigo e original da ansiedade. Assim, em nossa opinião, a relação entre a ansiedade e o sintoma é menos estreita do que se supunha, pois inserimos o fator da situação de perigo entre eles. Podemos também acrescentar que a geração de ansiedade põe a geração de sintomas em movimento e é, na realidade, um requisito prévio dela, pois se o ego não despertasse a instância de prazer-desprazer gerando ansiedade, não conseguiria a força para paralisar o processo que se está preparando no id e que ameaça com perigo. Há em tudo isso evidente inclinação para limitar ao mínimo a quantidade de ansiedade gerada e para empregá-la somente como sinal, porquanto agir de outra forma somente resultaria em sentir em outro lugar o desprazer que o processo instintual estava ameaçando produzir e que não constituiria um êxito do ponto de vista do princípio de prazer, embora seja um sucesso que ocorre bastante amiúde nas neuroses. A formação de sintomas, portanto, de fato põe termo à situação de perigo. Ela tem dois aspectos; um, oculto da visão, acarreta a alteração no id em virtude da qual o ego é afastado de perigo; o outro, apresentado abertamente, revela o que foi criado em lugar do processo instintual que foi afetado - a saber, a formação substitutiva. Seria, contudo, mais correto atribuir ao processo defensivo o que acabamos de dizer sobre a formação de sintomas e empregar a segunda expressão como sinônimo de formação de substitutos. Tornar-se-á então claro que o processo defensivo é análogo à fuga por meio da qual o ego se afasta de um perigo que o ameaça de fora. O processo defensivo é uma tentativa de fuga de um perigo instintual. Um exame dos pontos fracos dessa comparação tornará as coisas mais claras. Uma objeção a ela é que a perda de um objeto (ou perda do amor da parte do objeto) e a ameaça de castração são do mesmo modo perigos que provêm de fora como, digamos, seria um animal feroz; não são perigos instintuais. Não obstante, os dois casos não são os mesmos. Um lobo provavelmente nos atacaria independentemente do nosso comportamento em relação a ele; mas a pessoa amada não deixaria de nos amar nem seríamos ameaçados de castração se não alimentássemos certos sentimentos e intenções dentro de nós. Assim, tais impulsos instintuais são determinantes de perigos externos e dessa maneira se tornam perigosos em si; e podemos agora prosseguir contra o perigo externo adotando medidas contra os internos. Nas fobias de animais, o perigo parece ser ainda sentido inteiramente como externo, justamente como sofreu um deslocamento externo no sintoma. Nas neuroses obsessivas o perigo é muito mais internalizado. Aquela parcela de ansiedade referente ao superego que constitui a ansiedade social ainda representa um substituto interno de um perigo externo, enquanto a outra parcela - a ansiedade moral - já é inteiramente endopsíquica. Outra objeção é que, numa tentativa de fuga de um perigo externo iminente, tudo o que o indivíduo está fazendo é aumentar a distância entre ele próprio e o que o está ameaçando. Ele não se está preparando para defender-se contra ele ou tentando alterar algo a respeito dele, como seria o caso se ele atacasse o lobo com um cajado ou nele atirasse com uma arma. Mas o processo defensivo parece fazer algo mais do que corresponderia a uma tentativa de fuga. Trava debate com o problema do processo instintual ameaçador e de alguma forma suprime-o ou desvia-o de seus objetivos, e assim o torna inócuo. Essa objeção parece inatacável e deve receber a devida importância. Julgo provável que deve haver certos processos defensivos que podem verdadeiramente ser comparados com uma tentativa de fuga, embora em outros o ego assuma uma linha muito mais ativa de autoproteção e inicie vigorosas contramedidas. Mas talvez toda a analogia entre a defesa e a fuga seja inválida pelo fato de que tanto o ego como o instinto no id sejam partes da mesma organização, não entidades isoladas como o lobo e a criança, de modo que qualquer espécie de comportamento por parte do ego resultará também numa alteração do processo instintual. Esse estudo dos determinantes da ansiedade tem, por assim dizer, revelado o comportamento defensivo do ego transfigurado numa luz racional. Cada situação de perigo corresponde a um período particular de vida ou a uma fase particular de desenvolvimento do aparelho mental e parece ser justificável quanto a ele. Na primeira infância o indivíduo realmente não está preparado para dominar psiquicamente as grandes somas de excitação que o alcançam quer de fora, quer de dentro. Além disso, num certo período de vida seu interesse mais importante realmente é que as pessoas das quais ele depende não devem retirar seu carinho dele. Posteriormente, em sua meninice, quando sente que o pai é um poderoso rival no tocante à sua mãe, e se torna cônscio de suas próprias inclinações agressivas para com ele e de suas intenções sexuais em relação à mãe, realmente tem justificativa de ter medo do pai; e seu medo de ser punido por este pode encontrar expressão através de reforço filogenético no medo de ser castrado. Finalmente, quando trava relações sociais, realmente lhe é necessário temer seu superego, ter uma consciência; e a ausência desse fator daria margem a conflitos, perigos e assim por diante. Mas esse último ponto levanta um novo problema. Em vez do afeto da ansiedade tomemos, por um momento, outro - o do pesar, por exemplo. Parece perfeitamente normal que aos quatro anos de idade uma menina chore penosamente se a sua boneca quebrar-se; ou aos seis, se a governanta reprová-la; ou aos dezesseis, se for desprezada pelo namorado; ou aos vinte e cinco, talvez, se um filho dela morrer. Cada um desses determinantes de dor tem a sua própria época e cada um desaparece quando essa época terminar. Somente os determinantes finais e definitivos permanecem por toda a vida. Devemos julgar estranho se essa menina, depois de ter crescido, se tornado esposa e mãe, fosse chorar por algum objeto sem valor que tivesse sido danificado. Contudo, é assim que se comporta o neurótico. Embora todas as instâncias para a dominação dos estímulos de há muito se tenham desenvolvido dentro de amplos limites em seu aparelho mental, e embora esteja suficientemente crescido para satisfazer à maior parte de suas necessidades por si mesmo e há muito tenha aprendido que a castração não é mais praticada como castigo, ele não obstante se comporta como se as antigas situações de perigo ainda existissem e se apega a todos os antigos determinantes de ansiedade. Por que isto é assim exige uma resposta em tanto longa. Antes de tudo, devemos peneirar os fatos. Num grande número de casos os antigos determinantes da ansiedade realmente declinam, após terem produzido reações neuróticas. As fobias de crianças muito tenras, temores de ficarem sós ou no escuro ou com estranhos - fobias que podem quase ser chamadas de normais -, em geral desaparecem depois; a criança ‘sai delas crescendo’, como dizemos sobre algumas outras perturbações da infância. As fobias de animais, de ocorrência tão freqüente, sofrem o mesmo destino e muitas histerias de conversão dos primeiros anos não têm continuidade em anos posteriores da vida. Ações cerimoniais surgem com extrema freqüência no período de latência, mas somente uma percentagem muito pequena delas se desenvolve posteriormente numa neurose obsessiva completa. Em geral, até onde possamos dizer pelas nossas observações sobre crianças citadinas que pertencem a raças brancas e que vivem de acordo com padrões culturais razoavelmente elevados, as neuroses da infância têm a natureza de episódios regulares no desenvolvimento de uma criança, embora muito pouca atenção se dispense às mesmas. Sinais de neuroses infantis podem ser detectados em todos os neuróticos adultos sem exceção; mas de modo algum todas as crianças que revelam esses sinais se tornam neuróticas depois. Deve acontecer, portanto, que certos determinantes da ansiedade sejam abandonados e certas situações de perigo percam seu significado à medida que o indivíduo se torna mais maduro. Além disso, algumas dessas situações de perigo conseguem sobreviver, alcançando épocas posteriores, e modificam seus determinantes de ansiedade a fim de atualizá-los. Dessa forma, por exemplo, um homem pode reter seu medo de castração à guisa de uma sifilidofobia, após ter vindo a saber que não é mais habitual castrar as pessoas por se entregarem a seus desejos sexuais, mas que, por outro lado, graves doenças podem sobrevir a qualquer um que se entrega assim a seus instintos. Outros determinantes de ansiedade, como o medo do superego, estão destinados a não desaparecer absolutamente, mas a acompanhar as pessoas por toda sua vida. Nesse caso, o neurótico diferirá da pessoa normal devido ao fato de que suas reações aos perigos em questão serão indevidamente acentuadas. Finalmente, o ser adulto não oferece qualquer proteção absoluta contra um retorno da situação de ansiedade traumática original. Todo indivíduo tem, com toda probabilidade, um limite além do qual seu aparelho mental falha em sua função de dominar as quantidades de excitação que precisam ser eliminadas. Essas retificações secundárias não podem de forma alguma alterar o fato aqui em exame de que numerosíssimas pessoas continuam infantis em seu comportamento referente ao perigo, e não superam determinantes de ansiedade que ficaram ultrapassados. Negar isto seria negar a existência da neurose, pois são precisamente tais pessoas que denominamos de neuróticas. Mas como isto é possível? Por que nem todas as neuroses são episódios no desenvolvimento do indivíduo que terminam quando a fase seguinte é alcançada? De onde provém o elemento de persistência a essas reações ao perigo? Por que só o afeto de ansiedade parece desfrutar da vantagem sobre todos as outros afetos de evocação de reações que se distinguem das restantes por serem anormais e que, através de sua falta de propriedade, vão de encontro ao movimento da vida? Em outras palavras, mais uma vez chegamos desprevenidos ao enigma com o qual tantas vezes nos defrontamos: de onde provém a neurose - qual é a sua última, sua própria raison d’être peculiar? Após dez anos de labores psicanalíticos, continuamos exatamente no escuro quanto a esse problema, como estávamos no início. X A ansiedade é a reação ao perigo. Não se pode, afinal de contas, deixar de suspeitar que o motivo pelo qual o afeto de ansiedade ocupa uma posição sul generis na economia da mente tem algo a ver com a natureza essencial do perigo. Contudo, os perigos são o destino comum da humanidade; são os mesmos para todos. O que necessitamos e com o que não podemos mexer é algum fator que explicará por que algumas pessoas são capazes de sujeitar o afeto de ansiedade, apesar da sua qualidade peculiar, às elaborações normais da mente, ou que decide quem está condenado a fracassar naquela tarefa. Duas tentativas para encontrar um fator dessa espécie foram feitas, sendo natural que tais esforços encontrassem uma recepção acolhedora, visto que prometem ajudar a atender uma necessidade atormentadora. As duas tentativas em questão são mutuamente complementares; abordam o problema em extremidades opostas. A primeira foi feita por Alfred Adler há mais de dez anos. Sua asserção, reduzida a sua essência, era a de que as pessoas que fracassavam na tarefa a elas atribuída pelo perigo eram aquelas muito impedidas por alguma inferioridade orgânica. Se fosse verdade que simplex sigillum veri, devíamos acolher tal solução [Lösung] como uma libertação [Erlösung]. Mas ao contrário, nossos estudos críticos dos últimos dez anos efetivamente demonstraram a total impropriedade de tal explicação - explicação, além disso, que põe de lado toda a riqueza do material descoberto pela psicanálise. A segunda tentativa foi feita por Otto Rank em 1923 em seu livro The Trauma of Birth. [Ver Pp. 89 e 136 e seg.] Seria injusto pôr sua tentativa no mesmo nível que a de Adler, salvo nesse único ponto, o qual nos diz respeito aqui, pois permanece no terreno da psicanálise e persegue uma linha de pensamento psicanalítica, de modo que pode ser aceita como um esforço autêntico para solucionar os problemas da análise. Nesse assunto da relação do indivíduo com o perigo Rank afasta-se da questão do defeito orgânico do indivíduo e se concentra no grau variável de intensidade do perigo. O processo de nascimento é a primeira situação de perigo, e a convulsão econômica que ele produz torna-se o protótipo da reação de ansiedade. Já,ver em [[1]] traçamos a linha de desenvolvimento que liga essa primeira situação de perigo e determinante da ansiedade com todas as ulteriores, e vimos que todas conservam uma qualidade comum até onde significam, em certo sentido, uma separação da mãe - de início somente num sentido biológico, a seguir como uma perda direta do objeto e depois como uma perda do objeto incorrida indiretamente. A descoberta dessa extensa concatenação constitui indubitável mérito da construção de Rank. Agora, o trauma do nascimento se apodera de cada indivíduo com um grau diferente de intensidade e a violência da reação de ansiedade varia com a força do trauma, sendo a quantidade inicial da ansiedade gerada nele que, de acordo com Rank, decide se ele chegará a controlálo - se ele se tornará neurótico ou normal. Não nos cabe criticar aqui com riqueza de detalhes a hipótese de Rank. Temos apenas a considerar se ela ajuda a resolver nosso problema particular. A fórmula dele - de que se tornam neuróticas as pessoas nas quais o trauma do nascimento foi tão forte que jamais foram capazes inteiramente de ab-reagi-la - é altamente discutível de um ponto de vista teórico. Não sabemos ao certo o que se quer dizer por ab-reação do trauma. Tomada literalmente, implica que quanto mais freqüente e intensamente uma pessoa neurótica reproduzir o afeto de ansiedade, mais de perto ela se aproximará da saúde mental - uma conclusão insustentável. Foi por não ter coincidido com os fatos que abandonei a teoria da ab-reação, que desempenhara papel tão importante no método catártico. Dar tanta ênfase, também, à variabilidade com base no trauma do nascimento é não deixar lugar algum para as legítimas reivindicações da constituição hereditária como fator etiológico, pois essa variabilidade é um fator orgânico que atua de maneira acidental em relação com a constituição, dependendo ela própria de muitas influências que podem ser denominadas acidentais - como, por exemplo, na assistência oportuna por ocasião do parto. A teoria de Rank despreza inteiramente os fatores constitucionais bem como os filogenéticos. Se, contudo, tivéssemos de tentar encontrar um lugar para o fator constitucional restringindo o enunciado dele com a cláusula, digamos, de que aquilo que é realmente importante é a extensão na qual o indivíduo reage à intensidade variável do trauma do nascimento, estaríamos privando sua teoria de sua significação e estaríamos relegando o novo fator introduzido por ele a uma posição de importância secundária: o fator que decidiu se uma neurose devia sobrevir ou não estaria num campo diferente e, mais uma vez, desconhecido. Além disso, o fato de que, enquanto o homem partilha o processo de nascimento com os outros mamíferos, somente ele tem o privilégio em relação a eles de possuir uma disposição especial para a neurose dificilmente é favorável à teoria de Rank. Mas a principal objeção a ela é que flutua no ar em vez de estar baseada em observações confirmadas. Nenhum conjunto de prova foi coligido para indicar que o nascimento difícil e retardado coincide de fato com o desenvolvimento de uma neurose, ou mesmo que as crianças assim nascidas exibem os fenômenos da primeira apreensão infantil de forma mais acentuada e por um período mais longo do que outras crianças. Poder-se-ia retrucar que as dores do parto e os nascimentos induzidos, fáceis para a mãe, possivelmente podem envolver grave trauma para a criança. Mas podemos ainda ressaltar que os nascimentos que levam à asfixia estariam destinados a proporcionar claras provas dos resultados que supostamente devem seguir-se. Deve ser uma das vantagens da teoria etiológica de Rank o fato de que ela postula um fator cuja existência pode ser verificada pela observação. E enquanto tal tentativa de verificação não for feita, é impossível verificar o valor da teoria. Por outro lado, não posso identificar-me com o ponto de vista de que a teoria de Rank contradiz a importância etiológica dos instintos sexuais tal como até agora reconhecidos pela psicanálise, pois sua teoria só tem referência à relação do indivíduo com a situação de perigo, de modo que deixa perfeitamente aberto para nós a suposição de que, se uma pessoa não foi capaz de dominar seus primeiros perigos, ela está destinada a fracassar também em situações ulteriores envolvendo perigo sexual, e assim a ser impelida a uma neurose. Não acredito, portanto, que a tentativa de Rank tenha solucionado o problema da causação da neurose, nem creio que possamos até agora dizer o quanto ela, não obstante, tenha contribuído para tal solução. Se uma investigação dos efeitos do parto difícil sobre a disposição à neurose deve proporcionar resultados negativos, classificaremos de inferior o valor da contribuição dele. Deve-se temer que nossa necessidade de encontrar uma ‘causa última’ simples e tangível da doença neurótica permaneça insatisfeita. A solução ideal, pela qual os médicos ainda anseiam, seria descobrir certo bacilo que pudesse ser isolado e cultivado numa cultura pura e que, quando injetado em alguém, invariavelmente produzisse a mesma doença; ou, expressando-o de forma um tanto menos extravagante, demonstrar a existência de certas substâncias químicas cuja administração provocasse ou curasse neuroses específicas. Mas a probabilidade de uma solução dessa espécie parece pequena. A psicanálise leva a conclusões menos simples e satisfatórias. O que tenho a dizer nesse sentido de há muito é familiar e nada tenho de novo a acrescentar. Se o ego consegue proteger-se de um impulso instintual perigoso, através, por exemplo, do processo de repressão, ele por certo inibiu e prejudicou a parte específica do id em causa; mas ao mesmo tempo lhe deu certa independência e renunciou a um pouco de sua própria soberania. Isto é inevitável pela natureza da repressão, que é, fundamentalmente, uma tentativa de fuga. O reprimido é agora, por assim dizer, um fora-da-lei; fica excluído da grande organização do ego e está sujeito somente às leis que regem o domínio do inconsciente. Se, agora, a situação de perigo modificar-se de modo que o ego não tenha razão alguma de desviar-se de um novo impulso instintual análogo ao reprimido, a conseqüência da restrição do ego que ocorreu se tornará manifesta. O novo impulso prosseguirá seu curso sob uma influência automática ou, como eu preferiria dizer, sob a influência da compulsão à repetição. Ele seguirá a mesma trilha que o impulso mais antigo reprimido, como se a situação de perigo que tivesse sido superada ainda existisse. O fator de fixação na repressão, portanto, é a compulsão à repetição do id inconsciente - uma compulsão que em circunstâncias normais só é eliminada pela função livremente móvel do ego. O ego poderá ocasionalmente conseguir romper as barreiras da repressão que ele próprio erigiu e recuperar sua influência sobre o impulso instintual, e dirigir o curso do novo impulso de conformidade com a situação de perigo modificada. Mas de fato o ego muito raramente consegue fazer isto: ele não pode desfazer suas repressões. É possível que a maneira pela qual a luta vá ser travada dependa de relações quantitativas. Em alguns casos tem-se a impressão de que o resultado seja imposto: a atração regressiva exercida pelo impulso reprimido e a força da repressão não tem outra opção senão obedecer à compulsão à repetição. Em outros casos percebemos uma contribuição de outra atuação de forças: a atração exercida pelo protótipo reprimido é reforçada por uma repulsão proveniente da direção de dificuldades na vida real que atrapalham qualquer curso diferente que poderia ser seguido pelo novo impulso instintual. Que esse é um relato correto da fixação na repressão e da retenção das situações de perigo que não são mais situações dos dias atuais é confirmado pelo fato da terapia analítica - fato que é bastante modesto em si, mas que dificilmente pode ser superestimado de um ponto de vista teórico. Quando, na análise, demos ao ego assistência capaz de situá-lo em posição de levantar suas repressões, ele recupera seu poder sobre o id reprimido e pode permitir aos impulsos instintuais que sigam seu curso como se as antigas situações de perigo não existissem mais. O que podemos fazer dessa maneira coincide com o que pode ser alcançado em outros campos da medicina, pois em geral nossa terapia deve contentar-se em provocar mais rapidamente, de forma mais confiável e com menos dispêndio de energia do que seria o caso de outra forma, o bom resultado que em circunstâncias favoráveis teriam ocorrido por si. Vemos pelo que acaba de ser dito que as relações quantitativas - relações que não são diretamente observáveis mas que só podem ser inferidas - são o que determina se situações de perigo antigas serão preservadas, se repressões por parte do ego serão mantidas e se neuroses da infância encontrarão continuidade. Entre os fatores que desempenham seu papel na causação das neuroses e que criam as condições sob as quais as forças da mente são lançadas umas contra as outras, surgem três de forma proeminente: um fator biológico, um filogenético e um puramente psicológico. O fator biológico é o longo período de tempo durante o qual o jovem da espécie humana está em condições de desamparo e dependência. Sua existência intra-uterina parece ser curta em comparação com a da maior parte dos animais, sendo lançado ao mundo num estado menos acabado. Como resultado, a influência do mundo externo real sobre ele é intensificada e uma diferenciação inicial entre o ego e o id é promovida. Além disso, os perigos do mundo externo têm maior importância para ele, de modo que o valor do objeto que pode somente protegê-lo contra eles e tomar o lugar da sua antiga vida intra-uterina é enormemente aumentado. O fator biológico, então, estabelece as primeiras situações de perigo e cria a necessidade de ser amado que acompanhará a criança durante o resto de sua vida. A existência do segundo fator, o filogenético, baseia-se apenas em inferência. Fomos levados a presumir sua existência por uma marcante característica no desenvolvimento da libido. Verificamos que a vida sexual do homem, diferentemente da vida sexual da maioria dos animais de perto relacionada com ele, não realiza um progresso firme desde o nascimento à maturidade, mas, após uma eflorescência inicial até o quinto ano, sofre uma interrupção bem nítida, e então segue seu curso mais uma vez na puberdade, reatando os inícios interrompidos na primeira infância. Isto levou-nos a supor que algo momentoso deve ter ocorrido nas vicissitudes da espécie humana que deixou para trás essa interrupção no desenvolvimento sexual do indivíduo como um precipitado histórico. Esse fator deve seu significado patogênico ao fato de que a maioria das exigências instintuais dessa sexualidade infantil são tratadas pelo ego como perigos e desviados como tais, de modo que os impulsos sexuais ulteriores da puberdade, que no curso natural das coisas seriam egossintônicos, correm o risco de sucumbir à atração de seus protótipos infantis e de segui-los até a repressão. É aqui que nos defrontamos com a etiologia mais direta das neuroses. É fato curioso que o contato inicial com as exigências da sexualidade deve ter efeito sobre o ego semelhante ao produzido pelo contato prematuro com o mundo externo. O terceiro fator, o psicológico, reside em um defeito do nosso aparelho mental que tem a ver precisamente com sua diferenciação em um id e um ego, e que é portanto também atribuível, em última análise, à influência do mundo externo. Em vista dos perigos da realidade [externa], o ego é obrigado a resguardar-se contra certos impulsos instintuais no id e a tratá-los como perigos. Mas não pode protegerse dos perigos instintuais internos tão eficazmente quanto pode de alguma realidade que não é parte de si mesmo. Intimamente vinculado ao id como está, só pode desviar um perigo instintual restringindo sua própria organização e aquiescendo na formação de sintomas em troca de ter prejudicado o instinto. Se o instinto rejeitado renovar seu ataque, o ego é dominado por todas aquelas dificuldades que nos são conhecidas como males neuróticos. Além disso, creio, nosso conhecimento da natureza e da causas da neurose ainda não pode ir adiante. XI ADENDOS No curso deste exame vários temas tiveram que ser postos de lado antes que houvessem sido plenamente tratados. Reuni-os neste capítulo de modo que possam receber a atenção que merecem. A - MODIFICAÇÕES DE PONTOS DE VISTA ANTERIORES (a) Resistência e Anticatexia Importante elemento da teoria da repressão é a opinião de que a repressão não é um fato que ocorre uma vez, mas que exige um dispêndio permanente [de energia]. Se esse dispêndio viesse a cessar, o impulso reprimido, que está sendo alimentado todo o tempo a partir de suas fontes, na ocasião seguinte fluiria pelos canais dos quais havia sido expulso, e a repressão ou falharia em sua finalidade ou teria de ser repetida um número indefinido de vezes. Assim, é porque os instintos são contínuos em sua natureza que o ego tem de tornar segura sua ação defensiva por um dispêndio permanente [de energia]. Essa ação empreendida para proteger a repressão é observável no tratamento analítico como resistência. A resistência pressupõe a existência do que eu denominei de anticatexia. Uma anticatexia dessa espécie é claramente observada na neurose obsessiva. Ela aparece ali sob a forma de uma alteração do ego, como uma formação reativa no ego, e é efetuada pelo reforço da atitude que é o oposto da tendência instintual que tem de ser reprimida - como, por exemplo, na piedade, na consciência e no asseio. Essas formações reativas de neurose obsessiva são essencialmente exageros dos traços normais do caráter que se desenvolvem durante o período de latência. A presença de uma anticatexia na histeria é muito mais difícil de detectar, embora teoricamente seja igualmente indispensável. Na histeria, também, uma quantidade de alteração do ego através da formação reativa é inegável e em algumas circunstâncias se torna tão acentuada que se força à nossa atenção como o principal sintoma.O conflito devido à ambivalência, por exemplo, é transformado em histeria por esse meio. O ódio do paciente por uma pessoa a quem ele ama é mantido em baixo nível por uma quantidade reduzida de ternura e apreensão da parte dela. Mas a diferença entre as formações reativas na neurose obsessiva e na histeria é que na segunda não têm a universidade de um traço de caráter, mas estão confinadas a relações específicas. Uma histérica, por exemplo, pode ser especialmente afetuosa com seus próprios filhos, os quais no fundo ela odeia; mas por causa disso ela não será mais amorosa, em geral, do que outras mulheres ou mais afetuosa para com outras crianças. A formação reativa da histeria apega-se tenazmente a um objeto específico e jamais se difunde por uma disposição geral do ego, ao passo que o que é característico da neurose obsessiva é precisamente uma difusão dessa espécie - um afrouxamento de relações na escolha de objeto. Há outra espécie de anticatexia, contudo, que parece mais adequada ao caráter peculiar da histeria. Um impulso instintual reprimido pode ser ativado (novamente catexizado) a partir de duas direções: de dentro, através de reforço de suas fontes internas de excitação, e de fora, através da percepção de um objeto que ele deseja. A anticatexia histérica é principalmente dirigida para fora, contra percepções perigosas. Assume a forma de uma espécie especial de vigilância que, por meio de restrições do ego, causa situações a serem evitadas que ocasionariam tais percepções, ou, se de fato ocorrerem, consegue afastar delas a atenção do paciente. Alguns analistas franceses, em particular Laforgue [1926], recentemente deram a essa ação da histeria o nome especial de ‘escotomização’. Essa técnica de anticatexia é ainda mais perceptível nas fobias, cujo interesse se acha concentrado na remoção do paciente cada vez mais para longe da possibilidade da ocorrência da percepção temida. O fato de que a anticatexia tem uma direção oposta na histeria e nas fobias à que tem na neurose obsessiva - embora a distinção não seja absoluta - parece ser significativo. Sugere existir estreita relação entre a repressão e a anticatexia externa, por um lado, e entre a regressão e a anticatexia interna (isto é, alteração do ego através da formação reativa), por outro. A tarefa de defesa contra uma percepção perigosa é, incidentalmente, comum a todas as neuroses. Várias ordens e proibições na neurose obsessiva têm em vista o mesmo fim. Mostramos em ocasião anterior que a resistência que tem de ser superada na análise provém do ego, que se apega a suas anticatexias. É difícil para o ego dirigir sua atenção para percepções e idéias que ele então estabeleceu como norma evitar, ou reconhecer como pertencendo a si próprio impulsos que são o oposto completo daqueles que ele conhece como seus próprios. Nossa luta contra a resistência na análise baseia-se nesse ponto de vista dos fatos. Se a resistência for ela mesma inconsciente, como tão amiúde acontece devido à sua ligação com o material reprimido, nós a tornamos consciente. Se for consciente, ou quando se tiver tornado consciente, apresentamos argumentos lógicos contra ela; prometemos ao ego recompensas e vantagens se ele abandonar sua resistência. Não pode haver nenhuma dúvida ou erro sobre a existência dessa resistência por parte do ego. Mas temos de perguntar a nós mesmos se ela abrange todo o estado de coisas na análise, pois verificamos que mesmo após o ego haver resolvido abandonar suas resistências ele ainda tem dificuldades em desfazer as repressões; e denominamos o período de ardoroso esforço que se segue, depois de sua louvável decisão, de fase de ‘elaboração’. O fator dinâmico que torna uma elaboração desse tipo necessária e abrangente não está longe para se procurar. Pode ser que depois de a resistência do ego ter sido removida, o poder da compulsão à repetição - a atração exercida pelos protótipos inconscientes sobre o processo instintual reprimido - ainda tenha de ser superado. Nada há a dizer contra descrever esse fator como a resistência do inconsciente. Não há qualquer necessidade de se ficar desestimulado por causa dessas correções. Devem ser bem escolhidas se acrescentarem algo ao nosso conhecimento, e não constituem vergonha alguma para nós, na medida em que antes enriquecem do que invalidam nossos pontos de vista anteriores - limitando algum enunciado, talvez, que era por demais geral ou ampliando alguma idéia que foi muito estreitamente formulada. Não se deve supor que essas correções nos proporcionem um levantamento completo de todas as espécies de resistência encontradas na análise. A investigação ulterior do assunto revela que o analista tem de combater nada menos que cinco espécies de resistência, que emanam de três direções o ego, o id e o superego. O ego é a fonte de três, cada uma diferindo em sua natureza dinâmica. A primeira dessas três resistências do ego é a resistência da repressão, que já examinamos acima [[1]] e sobre as quais há o mínimo a ser acrescentado. A seguir vem a resistência da transferência, que é da mesma natureza mas que tem efeitos diferentes e muito mais claros na análise, visto que consegue estabelecer uma relação com a situação analítica ou com o próprio analista, reanimando assim uma repressão que deve somente ser relembrada. A terceira resistência, embora também uma resistência do ego, é de natureza inteiramente diferente. Ela advém do ganho proveniente da doença e se baseia numa assimilação do sintoma no ego. [Ver em [1]] Representa uma não disposição de renunciar a qualquer satisfação ou alívio que tenha sido obtido. A quarta variedade, que decorre do id, é a resistência que, como acabamos de ver, necessita de ‘elaboração’. A quinta, proveniente do superego e a última a ser descoberta, é também a mais obscura, embora nem sempre a menos poderosa. Parece originar-se do sentimento de culpa ou da necessidade de punição, opondo-se a todo movimento no sentido do êxito, inclusive, portanto, à recuperação do próprio paciente pela análise. (b) Ansiedade a Partir da Transformação da Libido A opinião sobre a ansiedade que formulei nestas páginas diverge um tanto da que até agora julguei correta. Anteriormente considerei a ansiedade como uma reação geral do ego sob condições de desprazer. Sempre procurei justificar seu aparecimento com base em fundamentos econômicos e presumi, alicerçado em minhas investigações das neuroses ‘atuais’, que a libido (excitação sexual) que era rejeitada ou não utilizada pelo ego encontrava descarga direta sob a forma de ansiedade. Não se pode negar que essas várias asserções não se ajustavam muito bem, ou, seja como for, não decorriam necessariamente umas das outras. Além disso, davam a impressão de haver uma vinculação especialmente estreita entre a ansiedade e a libido e isto não estava conforme ao caráter geral da ansiedade como uma reação ao desprazer. A objeção a esse ponto de vista surgiu por termos considerado o ego como a sede única da ansiedade. Foi um dos resultados da tentativa de uma divisão estrutural do aparelho mental que fiz em O Ego e o Id. Ao passo que o antigo ponto de vista tornava natural supor que a ansiedade decorria da libido pertencente aos impulsos instintuais reprimidos, o novo, pelo contrário, tornava o ego a fonte da ansiedade. Trata-se assim da ansiedade (do id) ou da ansiedade do ego. Visto que a energia que o ego emprega é dessexualizada, o novo ponto de vista também tendia a enfraquecer a estreita ligação entre a ansiedade e a libido. Espero haver pelo menos conseguido tornar clara a contradição e ter apresentado uma idéia nítida do ponto em dúvida. A asserção de Rank - que foi originalmente minha - de que a emoção da ansiedade é uma conseqüência do fato do nascimento e uma repetição da situação então experimentada, obrigou-me a rever mais uma vez o problema da ansiedade. Mas não pude fazer qualquer progresso com a idéia dele de que o nascimento é um trauma, estados de ansiedade, uma reação de descarga ao mesmo e todos os afetos de ansiedade subseqüentes uma tentativa de ‘ab-reagi-lo’ cada vez mais completamente. Fui obrigado a partir de volta da relação de ansiedade até a situação de perigo que estava por trás dele. A introdução desse elemento abriu novos aspectos da questão. O nascimento foi encarado como sendo o protótipo de todas as situações ulteriores de perigo que se apoderavam do indivíduo sob as novas condições decorrentes de um modo de vida modificado e um crescente desenvolvimento mental. Por outro lado, seu próprio significado foi reduzido a essa relação prototípica como perigo. A ansiedade sentida ao nascer tornou-se o protótipo de um estado afetivo que teve de sofrer as mesmas vicissitudes que os outros afetos. Ou o estado de ansiedade se reproduzia automaticamente em situações análogas à situação original e era assim uma forma inadequada de reação em vez de apropriada, como o fora na primeira situação de perigo, ou o ego adquiria poder sobre essa emoção, reproduzia-a por sua própria iniciativa e a empregava como uma advertência de perigo e como um meio de pôr o mecanismo de prazer-desprazer em movimento. Demos assim ao aspecto biológico do afeto de ansiedade sua devida importância, reconhecendo a ansiedade como a reação geral a situações de perigo, enquanto endossávamos o papel desempenhado pelo ego como a sede da ansiedade, atribuindo-lhe a função de produzir afeto de ansiedade de acordo com suas necessidades. Assim atribuímos duas modalidades de origem à ansiedade na vida posterior. Uma era involuntária, automática e sempre justificada sob fundamentos econômicos, e ocorria sempre que uma situação de perigo análoga ao nascimento se havia estabelecido. A outra era produzida pelo ego logo que uma situação dessa espécie simplesmente ameaçava ocorrer, a fim de exigir sua evitação. No segundo caso o ego sujeita-se à ansiedade como uma espécie de inoculação, submetendo-se a um ligeiro ataque da doença a fim de escapar a toda sua força. Ele vividamente imagina a situação de perigo, por assim dizer, com a finalidade inegável de restringir aquela experiência aflitiva a uma mera indicação, a um sinal. Já vimos com pormenores,ver em [[1] e [2]] como as várias situações de perigo surgem uma após a outra, conservando ao mesmo tempo uma vinculação genética. Talvez sejamos capazes de continuar um pouco além em nossa compreensão da ansiedade quando voltarmos para o problema da relação entre a ansiedade neurótica e a ansiedade realística,ver em [[1]] Nossa hipótese anterior de uma transformação direta da libido em ansiedade possui menos interesse para nós agora do que antes. Mas se a considerarmos, teremos de distinguir diferentes casos. No tocante à ansiedade evocada pelo ego como um sinal, ela não entra em consideração, nem, portanto, em qualquer daquelas situações de perigo que suscitam o ego a provocar repressão. A catexia libidinal do impulso sexual reprimido é empregada de outra forma que não a de ser transformada e descarregada como tal - como se verifica de maneira bem clara na histeria de conversão. Por outro lado, uma indagação ulterior da questão da situação de perigo trará à nossa atenção um exemplo da produção de ansiedade que, penso eu, tem de ser explicado de forma diferente,ver em [[1]]. (c) Repressão e Defesa No curso da apreciação do problema da ansiedade revivi um conceito ou, dizendo de maneira mais modesta, uma expressão, da qual fiz uso exclusivo trinta anos atrás quando comecei pela primeira vez a estudar o assunto, mas depois o abandonei. Refiro-me à expressão ‘processo defensivo’. Substituí- a depois pela palavra ‘repressão’, mas a relação entre as duas continuou incerta. Constituirá uma vantagem indubitável, penso eu, reverter ao antigo conceito de ‘defesa’, contanto que o empreguemos explicitamente como uma designação geral para todas as técnicas das quais o ego faz uso em conflitos que possam conduzir a uma neurose, ao passo que conservamos a palavra ‘repressão’ para o método especial de defesa com o qual a linha de abordagem adotada por nossas investigações nos tornou mais bem familiarizados no primeiro exemplo. Mesmo uma inovação puramente terminológica deve justificar sua adoção; ela deve refletir algum novo ponto de vista ou certa extensão de conhecimento. A revivescência do conceito da defesa e a restrição do de repressão levam em conta um fato de há muito conhecido, mas que recebeu importância adicional devido a algumas novas descobertas. Nossas primeiras observações de repressão e da formação de sintomas foram feitas em relação com a histeria. Verificamos que o conteúdo perceptual de experiências excitantes e o conteúdo ideativo de estruturas patogênicas de pensamento foram esquecidos e impedidos de ser reproduzidos na lembrança, e concluímos portanto que o manter-se afastado da consciência constitui uma característica principal da repressão histérica. Posteriormente, quando passamos a estudar as neuroses obsessivas, constatamos que naquela doença as ocorrências patogênicas não são esquecidas. Permanecem conscientes, mas são ‘isoladas’ de uma forma que até podemos apreender, de modo que se obtém o mesmo resultado que na amnésia histérica. Não obstante, a diferença é bastante grande para justificar a crença de que o processo pelo qual as exigências instintuais são postas de lado na neurose obsessiva não pode ser o mesmo que na histeria. Investigações ulteriores têm revelado que na neurose obsessiva uma regressão dos impulsos instintuais a uma fase libidinal mais antiga é provocada mediante a oposição do ego, e que essa regressão, embora não torne a repressão desnecessária, funciona claramente no mesmo sentido que a repressão. Também vimos que na neurose obsessiva a anticatexia, que também presumivelmente se acha na histeria, desempenha papel especialmente relevante na proteção do ego, efetuando nele uma alteração reativa. Nossa atenção, além disso, foi despertada para um processo de ‘isolamento’ (cuja técnica ainda não pode ser elucidada) que encontra manifestação sintomática direta e para um procedimento, que pode ser denominado mágico, de ‘desfazer’ o que foi feito - procedimento sobre cuja finalidade defensiva não pode haver qualquer dúvida, mas que não apresenta mais qualquer semelhança com o processo de ‘repressão’. Essas observações oferecem fundamentos bastante sólidos para a reintrodução do antigo conceito de defesa, que pode abranger todos os processos que tenham a mesma finalidade - a saber, a proteção do ego contra as exigências instintuais -, e para nele classificar a repressão como um caso especial. A importância dessa nomenclatura é realçada se considerarmos a possibilidade de que investigações ulteriores poderão revelar haver estreita ligação entre formas especiais de defesa e doenças específicas, como, por exemplo, entre repressão e histeria. Além disso, podemos antecipar a possível descoberta de ainda outra importante correlação. Pode muito bem acontecer que antes da sua acentuada clivagem em um ego e um id, e antes da formação de um superego, o aparelho mental faça uso de diferentes métodos de defesa dos quais ele se utilize após haver alcançado essas fases de organização. B - OBSERVAÇÕES SUPLEMENTARES SOBRE A ANSIEDADE O afeto da ansiedade apresenta uma ou duas características cujo estudo promete lançar mais luz sobre o assunto. A ansiedade [Angst] tem inegável relação com a expectativa: é ansiedade por algo. Tem uma qualidade de indefinição e falta de objeto. Em linguagem precisa empregamos a palavra ‘medo’ [Furcht] de preferência a ‘ansiedade’ [Angst] se tiver encontrado um objeto. Ademais, além de sua relação com o perigo, a ansiedade tem uma relação com a neurose que há muito estamos tentando elucidar. Surge a questão: por que todas as reações não são neuróticas - por que aceitamos tantas delas como normais? E finalmente o problema da diferença entre ansiedade realística e ansiedade neurótica aguarda um exame completo. Para começarmos com o último problema. O progresso que alcançamos é que fomos atrás de reações de ansiedade até situações de perigo. Se fizermos a mesma coisa com a ansiedade realística não teremos qualquer dificuldade para solucionar a questão. O verdadeiro perigo é um perigo que é conhecido, sendo a ansiedade realística a ansiedade por um perigo conhecido dessa espécie. A ansiedade neurótica é a ansiedade por um perigo desconhecido. O perigo neurótico é assim um perigo que tem ainda de ser descoberto. A análise tem revelado que se trata de um perigo instintual. Levando esse perigo que não é conhecido do ego até a consciência, o analista faz com que a ansiedade neurótica não seja diferente da ansiedade realística, de modo que com ela se pode lidar da mesma maneira. Existem duas reações ao perigo real. Uma reação afetiva, uma irrupção de ansiedade. A outra é uma ação protetora. O mesmo presumivelmente se aplicará ao perigo instintual. Sabemos como as duas reações podem cooperar de forma apropriada, uma dando o sinal para que a outra surja. Mas também sabemos que elas podem comportar-se de modo impróprio: a paralisia proveniente da ansiedade pode sobrevir, difundindo-se uma reação à custa da outra. Em alguns casos as características da ansiedade realística e da ansiedade neurótica se acham mescladas. O perigo é conhecido e real, mas a ansiedade referente a ele é supergrande, maior do que nos parece apropriado. É esse excedente de ansiedade que trai a presença de um elemento neurótico. Tais casos, contudo, não introduzem qualquer princípio novo, pois a análise revela que ao perigo real conhecido se acha ligado um perigo instintual desconhecido. Podemos descobrir ainda mais sobre isso se, não contentes em rastrearmos a ansiedade no perigo, prosseguirmos indagando qual é a essência e o significado de uma situação de perigo. Claramente, ela consiste na estimativa do paciente quanto à sua própria força em comparação com a magnitude do perigo e no seu relacionamento de desamparo em face desse perigo - desamparo físico se o perigo for real e desamparo psíquico se for instintual. Ao proceder assim o indivíduo será orientado pelas experiências reais que tiver tido. (Quer ele esteja certo ou errado em sua estimativa não importa quanto ao resultado.) Denominemos uma situação de desamparo dessa espécie, que ele realmente tenha experimentado, de situação traumática. Teremos então bons motivos para distinguir uma situação traumática de uma situação de perigo. O indivíduo terá alcançado importante progresso em sua capacidade de autopreservação se puder prever e esperar uma situação traumática dessa espécie que acarrete desamparo, em vez de simplesmente esperar que ela aconteça. Intitulemos uma situação que contenha o determinante de tal expectativa de uma situação de perigo. É nessa situação que o sinal de ansiedade é emitido. O sinal anuncia: ‘Estou esperando que uma situação de desamparo sobrevenha’ ou ‘A presente situação me faz lembrar uma das experiências traumáticas que tive antes. Portanto, preverei o trauma e me comportarei como se ele já tivesse chegado, enquanto ainda houver tempo para pô-lo de lado.’ A ansiedade, por conseguinte, é, por um lado, uma expectativa de um trauma e, por outro, uma repetição dele em forma atenuada. Assim os dois traços de ansiedade que notamos têm uma origem diferente. Sua vinculação com a expectativa pertence à situação de perigo, ao passo que sua indefinição e falta de objeto pertencem à situação traumática de desamparo - a situação que é prevista na situação de perigo. Seguindo essa seqüência, ansiedade-perigo-desamparo (trauma), podemos agora resumir o que se disse. Uma situação de perigo é uma situação reconhecida, lembrada e esperada de desamparo. A ansiedade é a reação original ao desamparo no trauma, sendo reproduzida depois da situação de perigo como um sinal em busca de ajuda. O ego, que experimentou o trauma passivamente, agora o repete ativamente, em versão enfraquecida, na esperança de ser ele próprio capaz de dirigir seu curso. É certo que as crianças se comportam dessa maneira em relação a toda impressão aflitiva que recebem, reproduzindo-a em suas brincadeiras. Ao passarem assim da passividade para a atividade tentam dominar suas experiências psiquicamente. Se isto é o que se quer dizer por ‘ab-reação de um trauma’ não podemos ter mais nada a incitar contra a expressão. [Ver [1].] Mas o que é de importância decisiva é o primeiro deslocamento da reação de ansiedade de sua origem na situação de desamparo para uma expectativa dessa situação - isto é, para a situação de perigo. Depois disso vêm os deslocamentos ulteriores, do perigo para o determinante do perigo - perda do objeto e das modificações dessa perda com as quais já nos familiarizamos. O resultado indesejável de ‘estragar’ uma criancinha é ampliar a importância do perigo de perder o objeto (sendo o objeto uma proteção contra toda situação de desamparo) em comparação com qualquer outro perigo. Ele portanto estimula o indivíduo a permanecer no estado de infância, cujo período de vida se caracteriza pelo desamparo motor e psíquico. Até agora não tivemos oportunidade alguma de considerar a ansiedade realística sob qualquer luz diferente da ansiedade neurótica. Sabemos qual a distinção. Um perigo real é aquele que ameaça uma pessoa a partir de um objeto externo, e um perigo neurótico é aquele que a ameaça a partir de uma exigência instintual. Até onde a exigência instintual é algo, também se pode admitir que a ansiedade neurótica da pessoa tenha uma base realística. Vimos que a razão pela qual parece haver uma vinculação especialmente estreita entre a ansiedade e a neurose é que o ego se defende contra um perigo instintual com a ajuda da reação de ansiedade, do mesmo modo que o faz contra um perigo real externo, mas que essa linha de atividade defensiva resulta numa neurose devido a uma imperfeição do aparelho mental. Chegamos também à conclusão de que uma exigência instintual freqüentemente só se torna um perigo (interno) porque sua satisfação provocaria um perigo externo - isto é, porque o perigo interno representa um perigo externo. Por outro lado, o perigo externo (real) deve também ter conseguido tornar-se internalizado, se se quiser que seja significativo para o ego. Ele deve ter sido reconhecido como relacionado com certa situação de desamparo que foi experimentada. O homem não parece ter sido dotado, ou ter sido dotado num grau muito pequeno, de reconhecimento instintual dos perigos que o ameaçam de fora. Criancinhas estão constantemente fazendo coisas que põem em perigo suas vidas, e eis precisamente por que não podem passar sem um objeto protetor. Em relação à situação traumática, na qual o paciente está desamparado, convergem perigos externos e internos, perigos reais e exigências instintuais. Quer o ego esteja sofrendo de uma dor que não pára ou experimentando um acúmulo de necessidades instintuais que não podem obter satisfação, a situação econômica é a mesma, e o desamparo motor do ego encontra expressão no desamparo psíquico. Nesse sentido as fobias desorientadoras da primeira infância merecem ser mencionadas mais uma vez. [Ver [1].] Fomos capazes de explicar algumas delas, tais como o medo de ficar sozinho ou no escuro ou com estranhos, como reações ao perigo de perder o objeto. Outras, como o medo de animaizinhos, trovoadas etc., talvez pudessem ser explicadas como traços vestigiais do preparo congênito para fazer face a perigos reais tão acentuadamente desenvolvidos em outros animais. No homem, só é apropriada aquela parte dessa herança arcaica que tem referência à perda do objeto. Se as fobias de infância se tornarem fixadas e ficarem mais fortes e persistirem até anos depois, a análise revela que o conteúdo delas se associou às exigências instintuais e veio também representar perigos internos. C - ANSIEDADE, DOR E LUTO Sabe-se tão pouco acerca da psicologia dos processos emocionais que as observações experimentais que estou prestes a fazer sobre o assunto podem reivindicar um julgamento muito suave. O problema diante de nós decorre da conclusão à qual chegamos de que ansiedade vem a ser uma reação ao perigo de uma perda de objeto. Agora já conhecemos uma reação à perda de um objeto, que é o luto. A questão portanto é: quando essa perda conduz à ansiedade e quando ao luto? Ao examinar o assunto do luto em ocasião anterior constatei que havia uma característica dele que continuava absolutamente sem explicação. Isto era seu estado de dor peculiar. [Cf. p. 132.] E contudo parece evidente por si mesmo que a separação de um objeto deve ser dolorosa. Assim o problema torna-se mais complicado: quando a separação de um objeto produz ansiedade, quando produz luto e quando produz, pode ser, somente dor? Digamos de imediato que não há qualquer perspectiva à vista para responder a essas perguntas. Devemos contentar-nos em traçar certas distinções e esboçar certas possibilidades. Nosso ponto de partida será novamente a única situação que acreditamos compreender - a situação da criancinha quando se lhe apresenta um estranho em vez de sua mãe. A primeira exibirá a ansiedade que atribuímos ao perigo de perda de objeto. Mas sua ansiedade é indubitavelmente mais complicada do que isto e merece um exame mais completo. Que ela tem ansiedade não resta a menor dúvida, mas a expressão de seu rosto e sua reação de chorar indicam que ela está também sentindo dor. Nela parecem estar reunidas certas coisas que depois serão separadas. Ela não pode ainda distinguir entre a ausência temporária e a perda permanente. Logo que perde a mãe de vista comporta-se como se nunca mais fosse vê-la novamente; e repetidas experiências consoladoras, ao contrário, são necessárias antes que ela aprenda que o desaparecimento da mãe é, em geral, seguido pelo seu reaparecimento. A mãe encoraja esse conhecimento, que é tão vital para a criança, fazendo aquela brincadeira tão conhecida de esconder dela o rosto com as mãos e depois, para sua alegria, de descobri-lo de novo. Nessas circunstâncias a criança pode, por assim dizer, sentir anseio desacompanhado de desespero. Em conseqüência da incompreensão dos fatos pela criança, a situação de sentir falta da mãe não é uma situação de perigo mais uma situação traumática. Ou, para dizê-lo mais corretamente, é uma situação traumática se acontecer que a criança na época esteja sentindo uma necessidade que sua mãe seja a pessoa a satisfazer. Transforma-se numa situação de perigo se essa necessidade não estiver presente no momento. Assim, o primeiro determinante da ansiedade, que o próprio ego introduz, é perda de percepção do objeto (que é equacionada com a perda do próprio objeto). Ainda não se trata de perda de amor. Posteriormente, a experiência ensina à criança que o objeto pode estar presente mas aborrecido com ela; e então a perda de amor a partir do objeto se torna um novo perigo e muito mais duradouro e determinante de ansiedade. A situação traumática de sentir falta da mãe difere num aspecto importante da situação traumática de nascimento. No nascimento não existia qualquer objeto e dessa forma não se podia sentir falta alguma deste. A ansiedade era a única reação que ocorria. Desde então, repetidas situações de satisfação criaram um objeto da mãe e esse objeto, sempre que a criança sente uma necessidade, recebe uma intensa catexia que pode ser descrita como de ‘anseio’. A dor é assim a reação real à perda de objeto, enquanto a ansiedade é a reação ao perigo que essa perda acarreta e, por um deslocamento ulterior, uma reação ao perigo da perda do próprio objeto. Sabemos também muito pouco sobre a dor. O único fato do qual temos certeza é que a dor ocorre em primeiro lugar e como uma coisa regular sempre que um estímulo que incide na periferia irrompe através dos dispositivos do escudo protetor contra estímulos e passa a atuar como um estímulo instintual contínuo, contra o qual a ação muscular, que é em geral efetiva porque afasta do estímulo o ponto que está sendo estimulado, é impotente. Se a dor provier não de uma parte da pele mas de um órgão interno, a situação é ainda a mesma. Tudo que aconteceu é que uma parte da periferia interna ocupou o lugar da periferia externa. A criança obviamente tem ocasião de sofrer experiências de dor dessa classe, que são independentes das necessidades de experiência da criança. Esse determinante da geração de dor parece, contudo, ter muito pouca semelhança com a perda de um objeto. E além disso, o elemento que é essencial à dor, o estímulo periférico, está de todo ausente da situação de anseio da criança. Contudo, não pode ser para nada que o uso comum da palavra tenha criado a idéia de dor interna mental e tenha tratado o sentimento de perda de objeto como equivalente à dor física. Quando há dor física, ocorre um alto grau do que pode ser denominado de catexia narcísica do ponto doloroso. Essa catexia continua a aumentar e tende, por assim dizer, a esvaziar o ego.Sabe-se que quando os órgãos internos nos transmitem dor recebemos representações espaciais e outras representações de partes do corpo que de maneira comum não são absolutamente representadas em ideação consciente. Ademais, o fato marcante de que, quando há um desvio psíquico ocasionado por algum outro interesse, mesmo as dores físicas mais intensas deixam de seguir (não devo dizer ‘permanecem inconscientes’ nesse caso) pode ser explicado por haver uma concentração de catexia no representante psíquico da parte do corpo que está emitindo dor. Penso ser aqui que encontraremos o ponto de analogia que tornou possível levar sensações de dor até a esfera mental, pois a intensa catexia de anseio que está concentrada no objeto do qual se sente falta ou que está perdido (uma catexia que aumenta com firmeza porque não pode ser apaziguada) cria as mesmas condições econômicas que são criadas pela catexia da dor que se acha concentrada na parte danificada do corpo. Assim, o fato da acusação periférica da dor física pode ser deixado de lado. A transição da dor física para a mental corresponde a uma mudança da catexia narcísica para a catexia de objeto. Uma representação de objeto que esteja altamente catexizada pela necessidade instintual desempenha o mesmo papel que uma parte do corpo catexizada por um aumento de estímulo. A natureza contínua do processo catexial e a impossibilidade de inibi-lo produzem o mesmo estado de desamparo mental. Se o sentimento de desprazer que então surge tem o caráter específico de dor (um caráter que não pode ser descrito mais exatamente) em vez de manifestar-se na forma reativa de ansiedade, plausivelmente podemos atribuir isso a um fator do qual ainda não fizemos suficientemente uso em nossas explicações - o alto nível de catexia e ‘ligação’ que predomina enquanto ocorrem esses processos queconduzem a um sentimento de desprazer. Conhecemos ainda outra reação emocional à perda de um objeto, que é o luto. Mas não temos mais qualquer dificuldade em explicá-la. O luto ocorre sob a influência do teste de realidade, pois a segunda função exige categoricamente da pessoa desolada que ela própria deva separar-se do objeto, visto que ele não mais existe. Ao luto é confiada a tarefa de efetuar essa retirada do objeto em todas aquelas situações nas quais ele foi o recipiente de elevado grau de catexia. Que essa situação deva ser dolorosa ajusta-se ao que acabamos de dizer, em vista da catexia de anseio, elevada e não passível de satisfação, que está concentrada no objeto pela pessoa desolada durante a reprodução das situações nas quais ela deve desfazer os laços que a ligam a ele. APÊNDICE A: REPRESSÃO E DEFESA O relato que Freud faz na [1] e [2] da história de seu uso dos dois termos talvez seja um pouco confusa, e seja como for merece ser ampliada. Ambos ocorreram muito livremente durante o período de Breuer. O primeiro aparecimento de ‘repressão (Verdrängung)’ foi na ‘Comunicação Preliminar’ (1893a), Edição Standard Brasileira, Vol, II, p. 51 IMAGO Editora, 1974, e o de ‘defesa (Abwehr)’ foi no primeiro artigo sobre ‘The Neuro-Psychoses of Defense (1894a). Nos Estudos sobre a Histeria (1895d), ‘repressão’ apareceu cerca de doze vezes e ‘defesa’ um pouco mais que isso. Parece ter havido certa discriminação, contudo, entre o emprego dos termos: ‘repressão’ parece ter descrito o processo real, e ‘defesa’ o motivo dele. Não obstante, no prefácio à primeira edição dos estudos (Edição Standard Brasileira, Vol. II, p. 37, IMAGO Editora, 1974) os autores parecem haver equacionado os dois conceitos, porquanto mencionaram sua opinião de que a ‘sexualidade parece desempenhar um papel principal... como motivo para “defesa” - isto é, para reprimir idéias da consciência’. E, ainda mais explicitamente, Freud, no primeiro parágrafo de seu segundo artigo sobre ‘The Neuro-Psychoses of Defense’ (1896b) aludiu ao ‘processo psíquico de “defesa” ou “repressão”’. Após o período de Breuer - isto é, mais ou menos a partir de 1897 - houve uma redução na freqüência do uso de ‘defesa’. Não foi abandonada inteiramente, contudo, e será encontrada várias vezes, por exemplo, no Capítulo VII da primeira edição de The Psychopathology of Everyday Life (1910b) e na Seção 7 do Capítulo VII do livro de chistes (1950c). Mas ‘repressão’ já estava começando a predominar, tendo sido quase exclusivamente empregada no caso clínico de ‘Dora’ (1950e) e nos Três Ensaios (1905d). E logo depois disto, chamou-se explicitamente a atenção para a mudança, num artigo sobre sexualidade das neuroses (1906a), datado de junho de 1905. No curso de um levantamento histórico de seus pontos de vista, e ao tratar do período pós-Breuer imediato, Freud teve ocasião de mencionar o conceito e escreveu: ‘... “repressão” (como eu começara a dizer, em vez de “defesa”)...’ (Edição Standard Brasileira, Vol. VII, p. 288, IMAGO Editora, 1972).A ligeira inexatidão que tinha começado a aparecer nessa frase tornou-se mais acentuada numa frase paralela em ‘A História do Movimento Psicanalítico’ (1914d), Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, p. 20, IMAGO Editora, 1974. Aqui Freud, mais uma vez escrevendo sobre o término do período de Breuer, observou: ‘encarava a própria divisão psíquica como o efeito de um processo de repulsão que naquela ocasião denominei de “defesa”, e depois, de “repressão”.’ Após 1905 a predominância de ‘repressão’ aumentou ainda mais, até que, por exemplo, na análise do ‘Rat Man’ (1909d), vamos encontrar (Standard Ed., 10, 196) Freud falando de ‘duas espécies de repressão’, utilizadas respectivamente em histeria e neurose obsessiva. Este é um exemplo especialmente simples onde, no esquema revisto sugerido no presente trabalho, ele teria falado de ‘duas espécies de defesa‘. Mas não foi muito antes da utilidade de ‘defesa’ como um termo mais abrangente que ‘repressão’ começou discretamente a surgir - particularmente nos artigos metapsicológicos. Assim, as ‘vicissitudes’ dos instintos, um dos quais somente é ‘repressão’, foram consideradas como ‘modalidades de defesa‘ contra eles (Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, Pp. 147, 153 e 170, IMAGO Editora, 1974), e, mais uma vez, ‘projeção’ foi mencionada como um ‘mecanismo’ ou ‘meio de defesa’ (ibid., 211 e 255). Somente dez anos depois, contudo, no presente trabalho, é que se reconheceu explicitamente a conveniência de distinguir entre o emprego dos dois termos. APÊNDICE B: LISTA DE ESCRITOS DE FREUD QUE TRATAM PREDOMINANTEMENTE OU EM GRANDE PARTE DA ANSIEDADE [O tópico da ansiedade ocorre em um número muito grande (talvez na maioria) dos escritos de Freud. A relação seguinte poderá, não obstante, ser de algum uso prático. A data no início de cada registro é a do ano no qual o trabalho em questão provavelmente foi escrito. A data no final é a de publicação, e sob essa data maiores pormenores da obra serão encontrados na Bibliografia e Índice de Autores. Os itens entre colchetes foram publicados postumamente.] [1893 Rascunho B. ‘The Aetiology of the Neuroses’, Seção II. (1950a)] [1894 Rascunho E. ‘How Anxiety Originates’. (1950a)] [1894 Rascunho F. ‘Collection III’, Nº 1. (1950 a)] [1895 (?) Rascunho J. (1950a)] 1894 ‘Obsessions and Phobias’, Seção II. (1895c) 1895 ‘On the grounds for Detaching a Particular Syndrome from Neurasthenia under the description “Anxiety Neurosis”.’ (1895b) 1895 ‘A Reply to Criticisms of my Paper on Anxiety Neurosis’. (1895f) 1909 ‘Analysis of a Phobia in a Five-Year-Old Boy’. (1909b) 1910 ‘Psicanálise “Silvestre”.’ (1910k) 1914 ‘From the History of an Infantile neurosis’. (1918b) 1917 Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, Conferência XXV. (1916-17) 1925 Inibições, Sintomas e Ansiedade. (1926d) 1932 New Introductory Lectures on Psycho-Analysis, Conferência XXXII (Primeira Parte). (1933a) A QUESTÃO DA ANÁLISE LEIGA: CONVERSAÇÕES COM UMA PESSOA IMPARCIAL (1926) NOTA DO EDITOR INGLÊS DIE FRAGE DER LAIENANALYSE Unterredungen mit einem Unparteiischen (a) EDIÇÕES ALEMÃS: 1926 Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 123 Pp. 1928 G.S., 11, 307-84. 1948 G.W., 14, 209-86. 1927 ‘Nachwort zur Frage der Laienanalyse‘, Int. Z. Psychoanal., 13 (3), 326-32 1928 G.S., 11, 385-94. 1948 G.W., 14, 287-96. (b) TRADUÇÕES INGLESAS: The Problem of Lay-Analyses 1927 Em The Problem of Lay-Analyses, Nova Iorque: Brentano. Pp. 25-186. (Trad. de A. P. Maerker-Branden; pref. de S. Ferenczi.) O volume abrange também An Autobiographical Study (ver acima, p. 14). The Question of Lay-Analysis: an Introduction to Psycho-Analysis 1947 Londres: Imago Publishing Co. vi + 81 Pp. (Trad. de N. Procter-Gregg; pref.de Ernest Jones.) 1950 Nova Iorque: Norton. 125 Pp. (Reimpressão da anterior.) 1927 ‘Concluding Remarks on the Question of Lay Analysis’ Int. J. Psycho-Anal., 8 (3), 392-8. (Trad. não especificada.) 1950 ‘Postcript to a Discussion on Lay Analysis’, C.P., 5, 205-14. (Trad. de James Strachey.) Um resumo do original alemão, sob o título ‘Psychoanalyse und Kurpfuscherei’ (‘Psicanálise e Charlatanismo’), foi incluído em Almanach 1927, 47-59, publicado em setembro de 1926 mais ou menos na mesma época que o próprio volume. A presente tradução inglesa da obra principal (com um subtítulo diferente) é um trabalho inteiramente novo de James Strachey; a tradução do ‘Pós-Escrito’ é uma reimpressão revista da publicada em 1950.Em fins da primavera de 1926 foi dado início a um processo, em Viena, contra Theodor Reik, proeminente membro não-médico da Sociedade Psicanalítica de Viena. Foi acusado, segundo informações prestadas por alguém que ele viera tratando analiticamente, de violação de uma antiga lei austríaca contra ‘charlatanismo’ - lei que tornava ilegal que uma pessoa sem um grau médico tratasse de pacientes. Freud de imediato interveio energicamente. Ele discutiu o caso privadamente com um funcionário de alta categoria, e passou a preparar o presente trabalho para publicação imediata. Começou a escrevê-lo no fim de junho, e antes do fim de julho ele estava em impressão, vindo a lume em setembro. Em parte, talvez, como resultado de sua intervenção, mas em parte porque as provas foram insatisfatórias, o promotor público encerrou o processo após uma investigação preliminar. (Ver o ‘Pós-Escrito’, [1].) O assunto, contudo, não parou aí. A publicação do trabalho de Freud situou em primeiro plano as acentuadas diferenças de opinião sobre a permissibilidade da psicanálise não-médica que existiam no âmbito das próprias sociedades psicanalíticas. Considerou-se aconselhável, portanto, ventilar a questão, e uma longa série de opiniões abalizadas (28 ao todo) de analistas de vários países foi publicada em 1927 nos dois periódicos oficiais - em alemão no Internationale Zeischrift (Partes 1, 2 e 3 do volume XIII) e em inglês no International Journal (Partes 2 e 3 do Volume VIII). A série foi concluída pelo próprio Freud num pós-escrito (impresso adiante, [1])no qual ele responde aos argumentos dos seus opositores e enunciou novamente seu próprio caso. Um relato bem completo dos pontos de vista de Freud sobre o assunto será encontrado no Capítulo IX (‘Lay-Analysis’) do terceiro volume da biografia de Freud por Ernest Jones (1957, 309 e segs.). Desde os primeiros tempos ele se apegou vigorosamente à opinião de que a psicanálise não devia ser considerada puramente como uma preocupação da profissão médica. Sua primeira expressão em letra de forma sobre o assunto parece ter sido em seu prefácio, de 1913, a um livro de Pfister (Freud 19143b); e em carta (citada por Jones, ibid., 323), escrita bem no fim de sua vida, em 1938, ele declarou que ‘Jamais repudiei esses pontos de vista e insisto neles ainda mais intensamente do que antes’. Mas foi no trabalho que se segue que discutiu o assunto mais de perto e plenamente. Independente, contudo, do exame da questão da análise leiga, Freud apresentou nas páginas seguintes o que foi talvez seu relato não técnico mais bem-sucedido da teoria e prática da psicanálise, escrito no seu estilo mais vivo e leve. A parte teórica, em particular, possui a vantagem sobre suas obras expositórias mais antigas de haver sido elaborada após a grande elucidação de seus pontos de vista sobre a estrutura da mente em O Ego e o Id (1923b). A QUESTÃO DA ANÁLISE LEIGA: CONVERSAÇÕES COM UMA PESSOA IMPARCIAL INTRODUÇÃO O título deste pequeno trabalho não é de pronto inteligível. Portanto, eu o explicarei. ‘Leigo’ = ‘Não-médico’; e a questão é se os não-médicos bem como os médicos devem ter permissão para praticar a análise. Essa questão tem suas limitações tanto no tempo como no espaço. No tempo, porque até agora ninguém se preocupou com quem pratica a análise. Na realidade, as pessoas se têm preocupado pouquíssimo com isto - a única coisa com a qual estavam concordes era o desejo de que ninguém devia praticá-la. Várias razões foram dadas para isto, mas se basearam na mesma falta de gosto fundamental. Assim, a exigência de que somente médicos devem analisar corresponde a uma atitude nova e aparentemente mais amistosa em relação à análise - se, isto é, ela puder escapar à desconfiança de ser, afinal de contas, apenas um derivado ligeiramente modificado da atitude mais antiga. Admite-se que em certas circunstâncias um tratamento analítico seja empreendido; mas, se for assim, somente os médicos devem empreendê-lo. O motivo dessa restrição torna-se assim um assunto de indagação. A questão está limitada no espaço porque não surge em todos os países com igual significado. Na Alemanha e nos Estados Unidos isto não passaria de uma discussão acadêmica, pois naqueles países qualquer paciente pode submeter-se a tratamento e por quem ele escolher, e qualquer um que ele escolha pode, como um ‘charlatão’, lidar com quaisquer pacientes, contanto somente que ele assuma a responsabilidade de suas ações. A lei não intervém até que seja chamada a sanar algum dano causado ao paciente. Mas na Áustria, na qual e para a qual escrevo, existe uma lei preventiva, que proíbe aos não-médicos empreenderem o tratamento de pacientes, sem aguardar o seu resultado. Dessa forma, aqui a questão de se leigos ( = não-médicos) podem tratar pacientes pela psicanálise tem um sentido prático. Logo que é levantada, contudo, parece ser solucionada pela letra da lei. Os neuróticos são pacientes, os leigos são não-médicos, a psicanálise é um método paramétodo para curar ou melhorar as perturbações nervosas, e todos esses tratamentos ficam reservados a médicos. Depreende-se que não se permite aos leigos praticar a análise em neuróticos, sendo puníveis se não obstante agirem dessa maneira. Sendo a posição tão simples, dificilmente alguém se aventura a chamar a si a questão da análise leiga. Ainda assim, há certas complicações, com as quais a lei não se preocupa, mas que não obstante exigem consideração. Talvez venha a acontecer que nesse caso os pacientes não sejam como outros, que os leigos não sejam realmente leigos, e que os médicos não tenham exatamente as mesmas qualidades que se teria o direito de esperar deles e nos quais suas alegações devem basear-se. Se isto puder ser provado, haverá fundamentos justificáveis para exigir que a lei não seja aplicada sem modificação ao caso perante nós. I Isto acontecer dependerá das pessoas que não são obrigadas a estar familiarizadas com as peculiaridades de um tratamento analítico. Constitui nossa tarefa dar informações sobre o assunto a essas pessoas imparciais, que presumimos estejam, no momento, ainda em ignorância. É de lamentar-se que não possamos permitir-lhes a presença como auditório, em um tratamento dessa espécie. Mas a ‘situação analítica’ não permite a presença de terceiros. Além disso, as diferentes sessões são de valor muito desigual. Um ouvinte não autorizado que por acaso presenciasse uma delas em geral não formaria qualquer impressão útil; ele correria o perigo de não compreender o que se estava passando entre o analista e o paciente, ou ficaria enfadado. Por bem ou por mal, portanto, ele deve contentar-se com nossas informações, que tentaremos tornar tão dignas de confiança quanto possível. Um paciente, então, pode estar sofrendo de flutuações em seus estados de ânimo que ele pode controlar, ou de um sentimento de desalento pelo qual sua energia se sente paralisada porque pensa ser incapaz de fazer algo adequadamente, ou de um constrangimento entre estranhos. Poderá perceber, sem compreender a razão disso, que tem dificuldades em executar seu trabalho profissional, ou na realidade qualquer decisão relativamente importante ou qualquer empreendimento. Ele poderá um dia ter sofrido de um ataque aflitivo - desconhecido em sua origem - de sentimentos de ansiedade, e desde então tornou-se incapaz, sem luta, de caminhar sozinho pela rua, ou de viajar de trem; talvez tenha tido de desistir de ambos inteiramente. Ou, coisa bem marcante, seus pensamentos poderão seguir seu próprio curso e se recusarem a ser dirigidos pela vontade do paciente. Eles perseguem problemas que lhes são inteiramente indiferentes, mas dos quais não pode livrar-se. Tarefas bem ridículas lhe são também impostas, tais como contar as janelas das frentes das casas. E quando tiver realizado ações simples como pôr uma carta no correio ou desligar um bico de gás, ele se encontra, um momento depois, a duvidar se realmente agiu assim. Isto poderá não ser mais do que aborrecimento e uma amolação. Mas seu estado se torna intolerável se súbito verificar ser incapaz de desviar a idéia de que empurrou uma criança para debaixo das rodas de um carro ou de que lançou um estranho da ponte dentro d’água, ou se tem de perguntar a si mesmo se não é o assassino que a polícia está à procura em relação a um crime que foi descoberto naquele dia. Isto é pura tolice, como ele próprio sabe; jamais cometeu dano algum contra alguém, mas se fosse realmente o assassino que está sendo procurado, seu sentimento - seu sentimento de culpa - não poderia ser mais forte.Ou ainda nosso paciente - e dessa vez vamos considerá-lo como mulher - pode sofrer de outra forma e em campo diferente. Ela é pianista, mas os dedos estão dominados pela cãibra e se recusam a servi-la. Ou quando pensa em ir a uma recepção ela de pronto se torna cônscia de um apelo da natureza cuja satisfação seria incompatível com uma reunião social. Ela desistiu, portanto, de freqüentar festas, bailes, teatros ou concertos. Ela se acha dominada por violentas dores de cabeça ou outras sensações dolorosas em ocasiões que são as mais inconvenientes. Poderá até ser incapaz de sustentar no estômago qualquer refeição que venha a ingerir - o que pode, em última análise, tornar-se perigoso. E, finalmente, constitui um fato lamentável que não possa tolerar quaisquer agitações, que afinal de contas são inevitáveis na vida. Em tais ocasiões ela sofre um desmaio, muitas vezes acompanhado por espasmos musculares que recordam estados patológicos sinistros. Outros pacientes, além disso, sofrem de perturbações num campo específico no qual a vida emocional converge com exigências de natureza corpórea. Se são homens, verificam ser incapazes de dar expressão física aos seus sentimentos mais ternos para com o sexo oposto, enquanto em relação aos objetos menos amados talvez possam ter todas as reações sob seu domínio. Ou seus sentimentos sensuais ligam-nos a pessoas que desprezam e das quais gostariam de livrar-se; ou esses mesmos sentimentos impõem exigências a eles cuja realização eles próprios acham repulsiva. Se são mulheres, sentem-se impedidas pela ansiedade ou repulsa ou por obstruções desconhecidas quanto ao atendimento das exigências da vida sexual; ou, se se entregaram ao amor, constatam ter-lhes sido negada a fruição que a natureza proporcionou como recompensa por tal atendimento. Todas essas pessoas reconhecem estar doentes e recorrem a médicos, por meio dos quais as pessoas esperam que perturbações nervosas como essas sejam eliminadas. Os médicos também formulam as categorias nas quais se acham divididos esses males. Eles os diagnosticam, cada um de acordo com seu próprio ponto de vista, sob nomes diferentes: neurastenia, psicastenia, fobias, neurose obsessiva, histeria. Examinam os órgãos que produzem os sintomas, o coração, o estômago, os intestinos, a genitália, e concluem que estão sãos. Recomendam interrupções no modo de vida habitual do paciente, exercícios de fortalecimento, tônicos, e por esses meios ocasionam melhorias habituais - ou absolutamente nenhum resultado. Eventualmente, os pacientes vêm a saber que há pessoas interessadas de modo bem especial no tratamento de tais males e iniciam com elas uma análise. Durante essa indagação sobre os sintomas dos neuróticos, a Pessoa Imparcial, que imagino estar presente, vem mostrando sinais de impaciência.Nesse ponto, contudo, ela se torna atenta e interessada. ‘Então agora’, diz ela ‘saberemos o que o analista faz com o paciente a quem o médico foi incapaz de ajudar’. Nada acontece entre eles, salvo que conversam entre si. O analista não faz uso de qualquer instrumento - nem mesmo para examinar o paciente - nem receita quaisquer remédios. Se mesmo for possível, deixa até o paciente em seu ambiente e no seu modo de vida habitual durante o tratamento. Essa não é uma condição necessária, naturalmente, e talvez nem sempre seja praticável. O analista concorda em fixar um horário com o paciente, faz com que ele fale, ouve o que ele diz, por sua vez conversa com ele e faz com que ele ouça. As feições da Pessoa Imparcial agora revelam sinais de alívio e relaxamento inegáveis, mas também traem claramente certo desprezo. É como se ela estivesse pensando: ‘Nada mais do que isto? Palavras, palavras, palavras, como diz o príncipe Hamlet.’ E sem dúvida ela também está pensando na fala zombeteira de Mefistófeles sobre com que conforto se pode ir passando com palavras - versos que nenhum alemão jamais esquecerá. ‘Assim é uma espécie de mágica’, comenta ela: ‘O senhor fala e dissipa seus males.’ Isto mesmo. Seria mágica se surtisse efeito um pouco mais rapidamente. Um atributo essencial de um mágico é a rapidez - poder-se-ia dizer a subitaneidade - do sucesso. Mas os tratamentos analíticos levam meses e mesmo anos: mágica tão lenta perde seu caráter miraculoso. E incidentalmente não desprezemos a palavra. Afinal de contas, ela é um instrumento poderoso; é o meio pelo qual transmitimos nossos sentimentos a outros, nosso método de influenciar outras pessoas. As palavras podem fazer um bem indizível e causar terríveis feridas. Sem dúvida ‘no começo foi a ação’ e a palavra veio depois; em certas circunstâncias ela significou um progresso da civilização quando os atos foram amaciados em palavras. Mas originalmente a palavra foi magia - um ato mágico; e conservou muito de seu antigo poder. A Pessoa Imparcial continua: ‘Suponhamos que o paciente não esteja mais bem preparado para compreender o tratamento analítico do que eu; então como o senhor vai fazê-lo acreditar na magia da palavra ou da fala que deve libertá-lo de seus sofrimentos?’Algum preparo deve naturalmente ser-lhe proporcionado, havendo uma maneira simples de fazê-lo. Convidá-lo a ser inteiramente sincero com o seu analista, nada refrear intencionalmente que lhe venha à cabeça, e portanto pôr de lado toda reserva que o possa impedir de informar sobre certos pensamentos ou lembranças. Cada um está cônscio de que existem certas coisas em si que não estaria absolutamente disposto a contar a outras pessoas ou que consideraria inteiramente fora de cogitação revelar. São elas suas ‘intimidades’. Essa pessoa também não tem qualquer idéia - e isto representa um grande progresso no autoconhecimento psicológico - de que há outras coisas que alguém não se importaria de admitir para consigo: coisas que alguém gosta de ocultar de si próprio e que por esse motivo interrompe e expulsa de seus pensamentos se, apesar de tudo, vierem à tona. Talvez ela própria observe que um problema psicológico muito marcante começa a aparecer nessa situação - um pensamento seu sendo mantido em segredo para seu próprio eu (self). É como se seu próprio eu (self) não fosse mais a unidade que ela sempre considerou que fosse, como se houvesse algo mais também nela que pudesse enfrentar esse eu (self). Ela pode tornar-se obscuramente cônscia de um contraste entre um eu (self) e uma vida mental no sentido mais lato. Se agora ela aceita a exigência feita pela análise de que dirá tudo, facilmente se tornará acessível a uma expectativa de que ter relações e trocas de pensamento com alguém sob condições inusitadas talvez possa também levar a resultados inusitados. ‘Compreendo’, diz nossa Pessoa Imparcial. ‘O senhor presume que todo neurótico tem algo que o oprime, algum segredo. E fazendo-o contar-lhe a respeito disto o senhor alivia sua opressão e lhe faz bem. Isto, naturalmente, é o princípio da confusão, que a Igreja Católica utiliza desde tempos imemoriais a fim de assegurar seu domínio sobre as mentes das pessoas.’ Devemos responder: ‘Sim e não!’ A confissão sem dúvida desempenha seu papel na análise como uma introdução a ela, poderíamos dizer. Mas está muito longe de constituir a essência da análise ou de explicar-lhe os efeitos. Na confissão o pecador conta o que sabe; na análise o neurótico tem mais a dizer. Nem ouvimos falar que confissão tenha desenvolvido força suficiente para eliminar sintomas patológicos reais. ‘Então, afinal de contas, eu não compreendo’, retruca nosso interlocutor. ‘O que possivelmente o senhor quer dizer por “dizendo mais do que ele sabe”? Mas posso muito bem acreditar que como analista o senhor consegue uma influência mais acentuada sobre seus pacientes do que um padre confessor sobre seus penitentes, visto que os contatos do senhor com ele são muito mais longos, mais intensos e também mais individuais, e visto que osenhor emprega essa maior influência para desviá-lo de seus pensamentos doentios, para que, pela conversa, ele se livre de seus temores, e assim por diante. Por certo seria estranho se fosse possível por tais meios controlar também fenômenos puramente mecânicos, tais como vômitos, diarréia e convulsões; mas sei que uma influência como esta é de fato bem possível se uma pessoa for levada a um estado de hipnose. Pelo trabalho que o senhor tem com o paciente provavelmente consegue provocar uma relação hipnótica dessa natureza com ele - uma ligação sugestiva com o senhor mesmo - muito embora o senhor talvez tenha essa intenção; e nesse caso os resultados miraculosos do seu tratamento são o efeito de sugestão hipnótica. Mas, que eu saiba, o tratamento hipnótico atua com muito maior rapidez do que a sua análise, a qual, conforme me diz, dura meses e anos.’ Nossa Pessoa Imparcial não pode nem ser tão ignorante nem tão perplexa como de início pensamos. Há sinais inegáveis de que ela está tentando compreender a psicanálise com a ajuda do seu conhecimento anterior, de que está tentando ligá-la com algo que já conhece. Encontra-se agora diante de nós a difícil tarefa de tornar-lhe claro que ela não será bem-sucedida nisto: que a análise é um procedimento sui generis, algo novo e especial, que só pode ser compreendida com o auxílio de novas compreensões internas (insights) - ou hipóteses, se isto soar melhor. Mas ela ainda está aguardando nossas respostas a suas últimas observações. O que se diz sobre a influência pessoal do analista certamente merece grande atenção. Uma influência existe e desempenha relevante papel na análise - mas não o mesmo papel que no hipnotismo. Deve ser possível convencê-lo de que as situações nos dois casos são bem diferentes. Talvez seja bastante ressaltar que não devemos utilizar essa influência pessoal, o fator de ‘sugestão’, para suprimir os sintomas da doença, como ocorre com a sugestão hipnótica. Ademais, seria um erro crer que esse fator é o veículo e promotor do tratamento em toda sua extensão. No seu início, sem dúvida. Mas depois ele se opõe às nossas intenções analíticas e nos força a adotar as contramedidas mais exageradas. E eu gostaria de mostrar por um exemplo quão longe estão da técnica da análise o desviar os pensamentos de um paciente e pela conversa afastá-lo dos problemas. Se um paciente nosso estiver sofrendo de um sentimento de culpa, como se ele houvesse perpetrado um crime grave, não recomendamos que ele despreze seus escrúpulos de consciência e não frise sua reconhecida inocência; ele próprio muitas vezes tentou fazê-lo sem êxito. O que fazemos é recordar-lhe que um sentimento tão forte e persistente deve, afinal de contas, estar baseado em algo real, que talvez possa ser possível descobrir.{#V20_P186} ‘Surpreender-me-ia’, comenta a Pessoa Imparcial, ‘se o senhor fosse capaz de aliviar seus pacientes concordando com o sentimento de culpa deles dessa maneira. Mas quais são suas intenções analíticas? e que faz o senhor com seus pacientes?’ II Se devo dizer algo de inteligível ao leitor, sem dúvida terei de dizer-lhe alguma coisa sobre uma teoria psicológica que não é conhecida ou que não é apreciada fora dos círculos analíticos. Será fácil deduzir dessa teoria o que desejamos de nossos pacientes e como obtê-lo. Eu lhe exporei isto dogmaticamente, como se fosse uma estrutura teórica completa. Mas não suponha ele que ela surgiu como essa estrutura, como um sistema filosófico. Nós a desenvolvemos lentamente, lutando com todos os pequenos detalhes da mesma, temo-la modificado sem cessar, mantendo um contato contínuo com a observação, até que ela finalmente adquiriu uma forma na qual parece ser suficiente para nossas finalidades. Apenas há poucos anos tive de revestir essa teoria em outros termos. Nem, naturalmente, posso garantir-lhe que a forma como ela é expressa hoje continue a ser defendida. A ciência, como se sabe, não é uma revelação; muito depois dos seus primórdios ainda lhe faltam os atributos de determinação, imutabilidade e infalibilidade pelos quais o pensamento humano tão profundamente anseia. Mas tal como ela é, é tudo que podemos ter. Se quiser ainda ter em mente que a nossa ciência é muito jovem, não chegando quase a ser tão velha quanto o século, e que ela se interessa pelo que seja talvez o material mais difícil que possa ser o assunto de pesquisa humana, facilmente será capaz de adotar a atitude correta no tocante à minha exposição. Mas interrompa-me sempre que se sentir inclinado, se não puder seguir-me ou se desejar outras explicações. ‘Eu o interrompi antes mesmo de haver começado. O senhor diz que pretende expor-me uma nova psicologia: mas devo ter pensado que a psicologia não era nenhuma nova ciência. Tem havido bastantes psicologias e psicólogos, e ouvi falar em grandes realizações nesse campo quando estava na faculdade.’ Não devo nem sonhar em discuti-las. Mas se o senhor examinar o assunto mais detidamente terá de classificar essas grandes realizações como pertencendo antes à fisiologia dos órgãos dos sentidos. A teoria da vida mental não poderia ser desenvolvida, porque estava inibida por uma única incompreensão essencial. O que ela abrange hoje, como é ensinada na faculdade? Independente dessas valiosas descobertas na fisiologia dos sentidos, grande número de classificações e definições de nossos processos mentais que, graças ao uso lingüístico, se tornou o patrimônio comum de toda pessoa educada. Isto não era suficiente para dar uma visão de nossa vida mental. O senhor não observou que todo filósofo, todo escritor de imaginação, todo historiador e todo biógrafo compõem sua própria psicologia para si, formulam suas próprias hipóteses específicas concernentes às interligações e finalidades dos atos mentais - tudo mais ou menos plausível e tudo igualmente indigno de confiança? Existe evidente falta de qualquer fundamento comum. E é por esse motivo também que no campo da psicologia não há, por assim dizer, qualquer respeito e qualquer autoridade, Nesse campo cada um pode ‘correr sem governo’ conforme lhe aprouver. Se o senhor levantar uma questão de física ou de química, qualquer pessoa sabedora de que não possui ‘conhecimento técnico’ algum calará a boca. Mas se o senhor aventurar-se numa asserção psicológica, deve estar preparado para fazer face a julgamento e contradição de todos os setores. Nesse campo, aparentemente, não existe ‘conhecimento técnico’ algum. Mas isto me surpreende como um título legal inadequado. Conta-se a história de uma pessoa a quem, ao candidatar-se a um emprego como ama de crianças, foi feita a pergunta se sabia cuidar de bebês. ‘Naturalmente’, retrucou ela, ‘ora, afinal de contas, eu própria já fui bebê.’ ‘E o senhor alega que descobriu esse “fundamento comum” da vida mental, que foi desprezado por todo psicólogo, a partir de observações de pessoas doentes?’ A fonte dos nossos achados não me parece privá-los do seu valor. A embriologia, para citar um exemplo, não mereceria ser digna de fé se não pudesse dar uma explicação clara da origem das deformações inatas. Já lhe falei de pessoas cujos pensamentos seguem seu próprio curso de modo que elas são obrigadas a preocupar-se com problemas aos quais são inteiramente indiferentes. Você pensa que a psicologia acadêmica jamais poderia prestar a menor contribuição no sentido de explicar uma anormalidade como essa? E, afinal de contas, todos temos a experiência, à noite, de os nossos pensamentos seguirem o seu próprio curso e criarem coisas que não compreendemos, que nos intrigam e que são suspeitamente rememorativas de produtos patológicos. Nossos sonhos, quero dizer. As pessoas comuns sempre têm firmemente acreditado que os sonhos têm um sentido e um valor - que significam alguma coisa. A psicologia acadêmica jamais foi capaz de nos informar qual é esse significado. Ela nada pode inferir dos sonhos. Se tentasse produzir explicações, estas seriam não-psicológicas como remontá-las a estímulos sensoriais ou a uma profundidade desigual de sono em diferentes partes do cérebro, e assim por diante. Mas é justo dizer que uma psicologia que não pode explicar os sonhos é também inútil para a compreensão da vida mental normal, e que ela não pode reivindicar a denominação de ciência. ‘O senhor está-se tornando agressivo; dessa forma evidentemente atingiu um ponto sensível. Ouvi dizer, é verdade, que na análise grande valor éatribuído aos sonhos, que eles são interpretados etc. Mas também soube que a interpretação dos sonhos é deixada ao capricho dos analistas, e que eles próprios jamais deixariam de discutir a maneira de interpretar os sonhos e a justificativa para tirar conclusões dos mesmos. Se isto for assim, o senhor não deve sublinhar de maneira tão acentuada a vantagem que a análise conquistou sobre a psicologia acadêmica.’ Existe realmente grande dose de verdade no que o senhor diz. É certo que a interpretação dos sonhos chegou a ter importância incomparável tanto para a teoria como para a prática da análise. Se pareço ser agressivo, isto é apenas uma maneira de defender-me. E ao pensar em todo o mal que alguns analistas têm causado com a interpretação de sonhos, quase perco a coragem e repito o pronunciamento pessimista do nosso grande satirista Nestroy, quando este diz que cada grande passo à frente é apenas a metade do que parece ser de início. Mas o senhor já verificou que os homens fazem tudo para confundir e distorcer aquilo de que lançam mão? Com a ajuda de um pouco de previsão e autodisciplina a maior parte dos perigos da interpretação de sonhos pode ser evitada com certeza. Mas o senhor há de concordar que nunca chegarei à minha exposição se nos deixarmos desviar dessa maneira. ‘Sim. Se bem compreendi, o senhor quis falar-me sobre o postulado fundamental da nova psicologia.’ Não foi com isso que eu desejava começar. Minha finalidade era deixá-lo ouvir falar sobre os quadros que formamos da estrutura do aparelho mental no curso dos nossos estudos analíticos. ‘O que o senhor quer dizer pelo “aparelho mental”? e de que, pergunto eu, é ele construído?’ Logo tornar-se-á claro o que é o aparelho mental; mas peço-lhe que não me pergunte de que material é ele construído. Isto não é assunto de interesse psicológico. A psicologia pode ser tão indiferente a ele como, por exemplo, a óptica pode ser para a questão de se as paredes de um telescópio são feitas de metal ou de papelão. Deixaremos inteiramente de lado a linha material de abordagem, mas não a espacial, pois imaginamos o aparelho desconhecido que serve às atividades da mente como sendo realmente um instrumento de várias partes (que denominamos de ‘instâncias’), cada uma das quais desempenha uma função particular e tem uma relação espacial fixa umas com asoutras: ficando compreendido que por relação espacial - ‘em frente de’ e ‘atrás’, ‘superficial’ e ‘profundo’ - simplesmente queremos dizer em primeiro lugar uma representação da sucessão regular das funções. Será que me fiz claro? ‘Quase que não. Talvez eu compreenda isto depois. Mas, em qualquer caso, eis aqui uma estranha anatomia de alma - uma coisa que, afinal de contas, absolutamente não existe mais para os cientistas.’ O que o senhor espera? É uma hipótese como tantas outras nas ciências: as mais antigas sempre foram um tanto toscas. ‘Aberta à revisão’, podemos dizer em tais casos. Parece-me aqui desnecessário recorrer ao ‘como se’ que se tornou tão popular. O valor de uma ‘ficção’ dessa espécie (como o filósofo Vaihinger a denominaria) depende de quanto se pode alcançar com sua ajuda. Mas prosseguindo. Pondo-nos a par dos conhecimentos cotidianos, reconhecemos nos seres humanos uma organização mental interpolada entre seus estímulos sensoriais e a percepção das suas necessidades somáticas, por um lado, e seus atos motores, por outro, e que serve de mediador entre eles com vistas a uma finalidade particular. Chamamos essa organização de seu ‘Ich‘ [‘ego’; literalmente, ‘eu’]. Ora, não há novidade alguma quanto a isso. Cada um de nós faz essa suposição sem ser filósofo, e alguns até mesmo apesar de serem filósofos. Mas isto, em nossa opinião, não esgota a descrição do aparelho mental. Além desse ‘eu’, reconhecemos outra região mental, mais impositiva e mais obscura que o ‘eu’, e a isto denominamos de ‘Es‘ [‘id’; literalmente, ‘it‘*]. A relação entre os dois deve ser nossa preocupação imediata. Provavelmente o senhor protestará por termos escolhido pronomes para descrevermos nossas duas instâncias ou províncias, em vez de dar-lhes nomes gregos bombásticos. Na psicanálise, contudo, gostamos de nos manter em contato com o modo popular de pensar e preferimos tornar seus conceitos cientificamente úteis de preferência a rejeitá-los. Não existe mérito algum nisto. Somos obrigados a assumir essa linha, pois nossas teorias devem ser compreendidas por nossos pacientes, que amiúde são muito inteligentes,mas nem sempre eruditos. O impessoal ‘it‘ está imediatamente ligado com certas formas de expressões empregadas pelas pessoas normais. ‘Isto (it) me trespassou’, dizem as pessoas; ‘havia alguma coisa em mim naquele momento mais forte do que eu.’ ‘C’était plus fort que moi.’ Em psicologia só podemos descrever as coisas com a ajuda de analogias. Nada existe de peculiar nisto; é também o caso alhures. Mas temos que estar constantemente a modificar essas analogias, pois nenhuma delas nos dura bastante. Em conseqüência, ao tentar tornar clara a relação entre o ego e o id, devo pedir-lhe que imagine o ego como uma espécie de fachada do id, como uma frontaria, como uma camada externa e cortical deste. Podemos apegar-nos a essa última analogia. Sabemos que as camadas corticais devem suas características peculiares à influência modificadora do meio externo com que confinam. Assim, supomos que o ego é a camada do aparelho mental (do id) que foi modificada pela influência do mundo externo (da realidade). Isto mostrará como na psicanálise adotamos maneiras especiais de contemplar as coisas seriamente. Para nós o ego é realmente algo superficial e o id algo mais profundo - contemplados de fora, naturalmente. O ego está entre a realidade e o id, que é aquilo verdadeiramente mental. ‘Ainda não farei pergunta alguma quanto a como tudo isto pode ser conhecido. Mas diga-me em primeiro lugar: o que o senhor ganha com a distinção entre um ego e um id? O que o leva a proceder assim?’ Sua pergunta indica-me o caminho certo a trilhar, pois a coisa importante e valiosa é saber que o ego e o id diferem grandemente um do outro em vários aspectos. As normas que regem o curso dos atos mentais são diferentes no ego e no id; o ego persegue diferentes finalidades e por outros métodos. Muito se poderia dizer sobre isto; mas talvez o senhor se contentará com uma nova analogia e com um exemplo. Pense na diferença entre o ‘front’ e ‘atrás das linhas’, como eram as coisas durante a guerra. Não nos surpreendíamos então que algumas coisas no front fossem diferentes do que eram atrás das linhas, e que muitas coisas que eram permitidas atrás das linhas tinham de ser proibidas no front. A influência determinante era, naturalmente, a proximidade do inimigo; no caso da vida mental é a proximidade do mundo externo. Época houve em que ‘fora’, ‘estranho’ e ‘hostil’ eram conceitos idênticos. E agora chegamos ao exemplo. No id não há conflitos; as contradições e antíteses persistem nele lado a lado indiferentemente, sendo freqüentemente ajustados pela formação de conciliações. Em circunstâncias semelhantes, o ego sente um conflito que deve ser resolvido; e a decisão está em um anseio de ser abandonado em favor do outro. O ego é uma organização caracterizada por uma tendência muito marcante no sentido da unificação, da síntese. Essa característica falta ao id; está, como poderíamos dizer, ‘toda em pedaços’; seus diferentes anseios perseguem suas próprias finalidades independentemente e sem levar em conta uns aos outros. ‘E se uma região mental tão importante “atrás das linhas” existe, como pode o senhor explicar ter sido ela desprezada até a ocasião da análise?’ Isto nos leva de volta a uma de suas perguntas anteriores,ver em [[1]]. A psicologia barrara seu próprio acesso à região do id, insistindo num postulado que é bastante plausível mas insustentável: a saber, que todos os atos mentais são conscientes para nós - que ser consciente é o critério do que é normal, e que, se há processos em nosso cérebro que não são conscientes, não merecem ser chamados de atos mentais e não são de qualquer interesse para a psicologia. ‘Mas eu devia ter pensado que isto era óbvio.’ Sim, e isto é que os psicólogos pensam. Não obstante, facilmente se pode mostrar ser falso - isto é, ser uma distinção inteiramente inapropriada. A auto-observação mais superficial revela que nos podem ocorrer idéias que não podem ter-se verificado sem preparação. Mas o senhor não experimenta nada dessas preliminares do seu pensamento, embora elas também devam, por certo, ter sido de natureza mental; tudo que lhe entra na consciência é o resultado pronto para usar. Ocasionalmente o senhor pode tornar consciente essas estruturas de pensamento preparatórias em retrospectiva, como uma reconstrução. ‘Provavelmente nossa atenção foi distraída, de modo que deixamos de notar os preparativos.’ Evasões! O senhor não pode dessa maneira chegar ao fato de que em sua pessoa podem ocorrer atos de natureza mental, e amiúde muito complicados, dos quais sua consciência nada sabe e o senhor também não. Ou o senhor está preparado para supor que uma dose maior ou menor de sua ‘atenção’ é bastante para transformar um ato não mental num mental? Mas de que vale discutir? Existem experimentos hipnóticos nos quais a existência da tais pensamentos não conscientes é irrefutavelmente demonstrada a qualquer um que deseja saber. ‘Não me retratarei, mas creio que finalmente o compreendo. O que o senhor chama de “ego” é consciência; e o seu “id” é o denominado subconsciente, sobre o qual as pessoas tanto falam hoje em dia. Mas por que o disfarce com os novos nomes?’ Não é disfarce. Os outros nomes não são de valia alguma. E não tente dar-me literatura em vez de ciência. Se alguém fala de subconsciência, não sei dizer se ele tem em mente o termo topograficamente - para indicar algo que está na mente abaixo da consciência - ou qualitativamente para indicar outra consciência, uma substância, por assim dizer. Essa pessoa provavelmente não está esclarecida sobre nada disso. A única antítese digna de confiança é entre o consciente e o inconsciente. Mas seria grave erro julgar que essa antítese coincide com a distinção entre o ego e id. Naturalmente seria magnífico se fosse tão simples assim: nossa teoria teria trânsito fácil. Mas as coisas não são tão simples. O verdadeiro é que tudo que acontece no id é e permanece inconsciente, e que os processos no id, e somente eles, podem tornar-se conscientes. Mas nem todos eles são, nem sempre, nem necessariamente; e grandes partes do ego podem continuar permanentemente inconscientes. O tornar-se consciente de um processo mental constitiu um caso complicado. Não posso deixar de dizer-lhe - mais uma vez, dogmaticamente - nossas hipóteses a respeito disto. O ego, como o senhor se recordará, é a camada externa, periférica do id. Ora, cremos que na superfície mais externa desse ego há uma instância dirigida imediatamente para o mundo externo, um sistema, um órgão, através de cuja excitação somente ocorre o fenômeno que denominamos de consciência. Esse órgão pode ser igualmente bem excitado de fora - recebendo assim ( com a ajuda dos órgãos do sentido) os estímulos do mundo exterior - e de dentro - tornando-se assim cônscio, em primeiro lugar, das sensações no id, e então também dos processos no ego. ‘Isto está ficando cada vez pior e eu o compreendo cada vez menos. Afinal de contas, aquilo para o que o senhor me convidou foi um debate da questão sobre se leigos (= não-médicos) devem empreender tratamentos analíticos. Qual é o ponto principal, então, de todas esses exames de teorias ousadas e obscuras que o senhor não me pode convencer que sejam justificadas?’ Sei que não posso convencê-lo. Isto está além de qualquer possibilidade e por esse motivo além de minha finalidade. Quando ministramos aos nossos alunos instrução teórica em psicanálise, podemos ver quão pouca impressão lhes estamos causando, para começar. Eles absorvem as teorias da análise tão friamente quanto outras abstrações com as quais são alimentados. Poucos deles talvez desejam ficar convencidos, mas não há qualquer vestígio de que estejam. Mas também exigimos que todo aquele que quiser praticar a análise em outras pessoas se submeta ele próprio a uma análise. É somente no curso dessa ‘auto-análise’ (como é confusamente denominada), quando eles realmente têm a experiência de que sua própria pessoa é afetada - ou antes, sua própria mente - pelos processos afirmados pela análise, que adquirem as convicções pelas quais são ulteriormente orientados como analistas.Como então poderia esperar convencê-lo, a Pessoa Imparcial, da correção das nossas teorias, quando só posso pôr diante do senhor um relato abreviado e portanto ininteligível das mesmas, sem confirmá-las pelas próprias experiências do senhor? Estou agindo com uma finalidade diferente. A questão em debate entre nós não é, no mínimo, se a análise é sensata ou insensata, se ela está certa em suas hipóteses ou se incidiu em erros grosseiros. Estou formulando nossas teorias perante o senhor visto que essa é a melhor maneira de tornar-lhe claro qual o âmbito de idéias abrangido pela análise, com base em quais hipóteses ela aborda um paciente e o que faz com ele. Dessa forma uma luz bem definida será lançada sobre a questão da análise leiga. E não fique alarmado. Se o senhor me acompanhou até este ponto já passou pelo pior. Tudo que se segue lhe será mais fácil. - Mas agora, com sua licença, farei uma pausa para tomar alento. III ‘Espero que o senhor queira dizer-me como, com base nas teorias da psicanálise, a origem de uma doença neurótica pode ser imaginada.’ Tentarei fazê-lo. Mas para esse fim devemos estudar nosso ego e nosso id de um novo ângulo, do ângulo dinâmico - vale dizer, levando em conta as forças em ação neles e entre eles. Até agora nos contentamos com uma descrição do aparelho mental. ‘Meu único temor é que ela possa tornar-se ininteligível novamente!’ Espero que não. Logo o senhor se orientará nela. Pois bem, presumimos que as forças que impulsionam o aparelho mental em atividade são produzidas nos órgãos corporais como uma expressão das necessidades somáticas principais. O senhor deve recordar-se das palavras do nosso poeta-filósofo: ‘A fome e o amor [são o que move o mundo].’ Incidentalmente, um par de forças formidáveis! Damos a essas necessidades corporais, até onde representam uma instigação à atividade mental, o nome de ‘Triebe‘ [instintos], uma palavra por cuja causa somos invejados por muitas línguas modernas. Bem, esses instintos enchem o id: toda a energia do id, expressando-o em breves palavras, se origina deles. Nem as forças do ego têm qualquer outra origem; provêm daquelas do id. O que, então, desejam esses instintos? Satisfação - isto é, o estabelecimento de situações nas quais as necessidades corporais possam ser extintas. Uma diminuição da tensão da necessidade é sentido pelo nosso órgão da consciência como agradável; um aumento dela logo é sentido como desprazer. Dessas oscilações surge a série de sentimentos de prazer-desprazer, de acordo com a qual todo o aparelho mental regula sua atividade. Nesse sentido falamos de uma ‘dominância do princípio de prazer’. Se as exigências instintuais do id não encontrarem satisfação alguma, surgem condições intoleráveis. A experiência logo revela que essas situações só podem ser estabelecidas mediante a ajuda do mundo externo. Nesse ponto a parte do id que está dirigida para o mundo externo - o ego - começa a funcionar. Se toda a força impulsora que põe o veículo em movimento for derivada do id, o ego, por assim dizer, se encarrega da direção, sem a qual meta alguma pode ser alcançada. Os instintos no id pressionam por satisfação imediata a todo custo, e dessa forma nada alcançam nem chegam mesmo a acarretar dano apreciável. Constitui tarefa do ego resguardar-se contra tais contratempos, para servir de medianeiro entre as reivindicações do id e as objeções do mundo externo. Ele leva a efeito sua atividade em duas direções. Por um lado, observa o mundo externo com o auxílio do seu órgão de sentido, o sistema de consciência, a fim de apanhar o momento favorável para satisfação sem dano; e , por outro, influencia o id, refreia suas ‘paixões’, induz seus instintos a adiar sua satisfação, e na realidade, se for reconhecida a necessidade, a modificar seus objetivos ou, em troca de alguma compreensão, a desistir deles. Até onde ele domestica os impulsos do id dessa forma, ele substitui o princípio de prazer, que anteriormente era o único decisivo, pelo que se conhece como o ‘princípio de realidade’, que, embora persiga os mesmos objetos finais, leva em conta as condições impostas pelo mundo externo real. Posteriormente, o ego aprende que existe ainda outra maneira de obter satisfação além da adaptação ao mundo externo que descrevi. É também possível intervir no mundo externo modificando-o, e nele estabelecer intencionalmente as condições que tornam possível a satisfação. Essa atividade então se torna a função mais elevada do ego; decisões quanto a quando é mais conveniente controlar as paixões e curvar-se diante da realidade, e quando é mais apropriado ficar ao lado delas e lutar contra o mundo externo - tais decisões compõem toda a essência da sabedoria mundial. ‘E o id atura ser dominado assim pelo ego, apesar de ser, se é que eu o compreendo bem, a parte mais forte?’ Sim, tudo correrá bem se o ego estiver de posse de toda a sua organização e eficiência, se tiver acesso a todas as partes do id e puder exercer sua influência sobre elas, pois não existe qualquer oposição natural entre o ego e o id; eles se pertencem, e em condições saudáveis não podem na prática ser distinguidos um do outro. ‘Isto parece muito bem, mas não posso ver como em tal relação ideal possa haver o menor lugar para uma perturbação patológica.’ O senhor tem razão. Enquanto o ego e suas relações com o id atenderem essas condições ideais, não haverá qualquer distúrbio neurótico. O ponto no qual a doença faz sua irrupção é inesperado, embora quem não esteja familiarizado com patologia geral fique surpreendido em encontrar uma confirmação do princípio de que são os desenvolvimentos e diferenciações mais importantes que trazem em si as sementes da doença, da falha de função. ‘O senhor está-se tornando erudito demais. Não posso acompanhá-lo.’ Devo retroagir um pouco mais. Um pequeno organismo vivo é uma coisa verdadeiramente infeliz e impotente, não é assim? comparado com o mundo externo intensamente poderoso, repleto como está de influências destrutivas. Um organismo primitivo, que não tenha desenvolvido uma organização apropriada do ego, encontra-se à mercê de todos esses ‘traumas’. Ele vive pela ‘cega’ satisfação de seus desejos instintuais e muitas vezes perece por causa disto. A diferenciação de um ego é, acima de tudo, um passo no sentido da autopreservação. Nada, é verdade, pode ser aprendido da sua destruição, mas se alguém sobreviveu com sorte a um trauma poderá observar a abordagem de situações semelhantes e dar sinal do perigo por uma repetição abreviada das impressões que experimentou em relação com o trauma - por um afeto de ansiedade. Essa reação à percepção do perigo introduz agora uma tentativa de fuga, que pode ter o efeito de poupar a vida até que se tenha tornado bastante forte para fazer face aos perigos do mundo externo de maneira mais ativa - mesmo agressivamente, talvez. ‘Tudo isto está muito longe do que o senhor prometeu relatar-me.’ O senhor não tem idéia alguma de como eu estou perto de cumprir minha promessa. Mesmo em organismos que depois se desenvolvem numa eficiente organização do ego, o ego deles é débil e pouco se diferencia, para começar, de seu id, durante seus primeiros anos de infância. Imagine agora o que acontecerá se esse ego impotente experimentar uma exigência instintual do id ao qual ele gostaria de opor resistência (porque sente que satisfazê-lo é perigoso e provocaria uma situação traumática, um choque com o mundo externo), mas que ele não pode controlar, porque ainda não possui bastante força para fazê-lo. Em tal caso o ego trata do perigo instintual como se ele fosse externo; faz uma tentativa de fuga, afasta-se dessa parte do id e o deixa entregue ao seu destino, depois de retirar dele todas as contribuições que em geral presta aos impulsos instintuais. O ego, como costumamos dizer, institui uma repressão desses impulsos instintuais. Por enquanto isto tem o efeito de desviar o perigo, mas não se pode confundir o interno e o externo impunemente. Não se pode fugir de si mesmo. Na repressão o ego está acompanhando o princípio de prazer, que em geral ele tem o hábito de corrigir, estando destinado a sofrer dano como vingança. Isto está no fato de o ego haver permanentemente estreitado sua esfera de influência. O impulso instintual reprimido agora está isolado, abandonado a si mesmo, inacessível, mas também não influenciável. Ele segue seu próprio caminho. Mesmo depois, em geral, quando o ego se tornou mais forte, ainda não pode suspender a repressão; sua síntese fica prejudicada, uma parte do id permanece terreno proibido ao ego. Nem o impulso instintual isolado permanece ocioso; ele compreende como ser compensado por lhe ser negada satisfação normal; produz derivados psíquicos que lhe tomam o lugar; vincula-se a outros processos que por influência dele também arranca do ego; e finalmente irrompe no ego e na consciência sob a forma de um substituto irreconhecivelmente distorcido, criando o que denominamos de um sintoma. De imediato a natureza de uma perturbação neurótica se torna clara para nós: por um lado, um ego que é inibido em sua síntese, que não tem qualquer influência sobre partes do id, que deve renunciar a algumas de suas atividades a fim de evitar novo choque com o que foi reprimido, e que se exaure no que, na maior parte, são atos vãos de defesa contra sintomas, os derivados dos impulsos reprimidos; por outro lado, um id no qual os instintos individuais se tornaram independentes, perseguem seus objetivos independentemente dos interesses da pessoa como um todo e doravante obedecem às leis somente da psicologia que domina nas profundezas do id. Se observarmos toda a situação chegaremos a uma fórmula simples quanto à origem de uma neurose: o ego faz uma tentativa de suprimir certas partes do id de maneira inapropriada; essa tentativa falhou e o id tirou sua vingança. Uma neurose é assim o resultado de um conflito entre o ego e o id, no qual o ego se envolveu porque, como revela uma investigação cuidadosa, ele deseja a todo custo reter sua adaptabilidade em relação com o mundo externo real. A divergência verifica-se entre o mundo externo e o id; e é porque o ego, leal a sua natureza mais íntima, toma o partido do mundo externo que ele se torna envolvido num conflito com seu id. Mas observe que o que cria o determinante da doença não é o fato desse conflito pois discordâncias dessa natureza entre a realidade e o id são inevitáveis, sendo uma das principais tarefas do ego servir de mediador nelas -, mas a circunstância de o ego haver feito uso do instrumento ineficiente de repressão para lidar com o conflito. Mas isto por sua vez se deve ao fato de que o ego, na ocasião em que se incumbiu da tarefa, era não desenvolvido e impotente. Todas as repressões decisivas se verificam na primeira infância. ‘Que assunto notável! Seguirei seu conselho e não farei críticas, visto que o senhor deseja apenas mostrar-me aquilo em que a psicanálise crê a propósito da origem da neurose, de modo que o senhor venha a dizer como ela se dispõe a combatê-la. Eu teria várias perguntas a fazer-lhe e depois as formularei. Mas no momento sinto-me tentado, dessa vez, a levar adiante a sua seqüência de pensamento e a aventurar-me numa teoria própria. O senhor expôs a relação entre o mundo externo, o ego e o id, e formulou como sendo determinante de uma neurose que o ego em sua dependência do mundo externo luta contra o id. Não é concebível o caso oposto de o ego, num conflito dessa espécie, permitir a si mesmo ser arrastado para fora pelo id e renunciar à sua consideração pelo mundo externo? O que acontece num caso como este? pelas minhas idéias leigas de natureza da insanidade diria que tal decisão por parte do ego poderia ser o determinante da insanidade. Afinal de contas, uma fuga da realidade dessa espécie parece ser a essência da’insanidade.Sim. Eu próprio pensei nessa possibilidade, e na realidade creio que ela atende aos fatos - embora para provar a verdadeira suspeita exigisse o exame de algumas considerações altamente complicadas. As neuroses e psicoses estão, como é evidente, intimamente relacionadas, mas devem, não obstante, diferir em algum aspecto decisivo. Isto bem poderia ser o partido tomado pelo ego num conflito dessa espécie. Em ambos os casos o id conservaria sua característica de cega inflexibilidade. ‘Muito bem, prossiga! Quais os indícios dados pela sua teoria sobre o tratamento das doenças?’ É fácil agora descrever nossa finalidade terapêutica. Tentamos restaurar o ego, livrá-lo de suas restrições, e dar-lhe de volta o domínio sobre o ego que ele perdeu devido às suas primeiras repressões. É para esse único fim que efetuamos a análise, toda nossa técnica está dirigida para essa finalidade. Temos de procurar as repressões que foram estabelecidas e instigar o ego a corrigi-las com nossa ajuda e a lidar com os conflitos melhor do que mediante uma tentativa de fuga. Visto que essas repressões pertencem bem aos primeiros anos da infância, o trabalho de análise nos leva também de volta àquele período. Nosso caminho a essas situações de conflito, que na maior parte foram esquecidas e que tentamos reviver na lembrança do paciente, nos é mostrado pelos seus sintomas, sonhos e associações livres. Estes devem, contudo, ser em primeiro lugar interpretados - traduzidos -, pois, sob a influência da psicologia do id, assumiram formas de expressão estranhas à nossa compreensão. Podemos presumir que quaisquer associações, pensamentos e lembranças que o paciente seja incapaz de comunicar-nos sem lutas internas estão de alguma maneira vinculados ao material reprimido ou são seus derivados. Ao estimular o paciente a desprezar suas resistências relatando essas coisas, estamos educando seu ego a superar sua inclinação no sentido de tentativas de fuga e a tolerar uma abordagem ao que é reprimido. No fim, se a situação da repressão puder ser reproduzida com êxito em sua memória, sua obediência será brilhantemente recompensada. Toda a diferença entre sua idade então e agora atua a seu favor, e a coisa da qual seu ego infantil fugiu aterrorizado muitas vezes parecerá ao seu ego adulto e fortalecido nada mais que uma brincadeira de criança. IV ‘Tudo o que o senhor me relatou até agora foi psicologia. Muitas vezes soou estranho, difícil ou obscuro; mas sempre foi - se é que posso dizê-lo assim - “puro”. Até agora muito pouco tenho sabido, sem dúvida, sobre psicanálise; mas não obstante chegou aos meus ouvidos o rumor de que o senhor se ocupa principalmente com coisas que não têm qualquer direito a esse predicado. O fato de o senhor não haver ainda aflorado nada dessa espécie faz-me sentir que está deliberadamente ocultando algo. E há outra dúvida que não posso reprimir. Afinal de contas, como o senhor mesmo diz, as neuroses são perturbações da vida mental. É possível, então, que coisas tão importantes não desempenhem absolutamente qualquer papel nessas perturbações profundas?” Então o senhor julga que uma consideração tanto do que é mais baixo quanto do que é mais alto tenha faltado às nossas apreciações até este momento? O motivo disto é que não consideramos absolutamente até agora, por esta vez, desempenhar eu próprio o papel de um interruptor que retém a marcha da conversa. Falei-lhe tanto de psicologia porque desejava que o senhor ficasse com a impressão aplicada - e, além disso, de uma psicologia que é desconhecida fora da análise. Um analista deve, portanto, antes de tudo, ter aprendido essa psicologia, essa psicologia profunda ou psicologia do inconsciente, ou pelo menos tanto dela quanto se conhece nos dias que correm. Necessitaremos disto como uma base para nossas conclusões ulteriores. Mas agora, que foi o senhor quis dizer com sua alusão a ‘pureza’? ‘Bem, geralmente se informa que nas análises os fatos mais íntimos - e os mais sórdidos - da vida sexual são trazidos à tona para apreciação em todos os seus detalhes. Se for assim - não fui capaz de depreender dos seus debates psicológicos que seja necessariamente assim - isto seria um forte argumento para que se restringisse esses tratamentos a médicos. Como se poderia sonhar em permitir tais perigosas liberdades a pessoa de cujo caráter não se tivesse qualquer garantia?’ É verdade que o médicos desfrutam de certos privilégios na esfera do sexo: é-lhes até mesmo permitido examinar os órgãos genitais das pessoas - embora isto não lhes fosse permitido no Oriente e embora alguns reformadores idealistas (o senhor sabe quem eu tenho em mente) tenham disputado esse privilégio. Mas o senhor quer saber em primeiro lugar se é assim em análise e por que deve ser assim. Sim, é assim. E deve ser assim, em primeiro lugar porque a análise está inteiramente fundamentada em completa franqueza. As circunstâncias financeiras, por exemplo, são discutidas com igual detalhe e imparcialidade: dizem-se coisas que são ocultadas de qualquer cidadão, mesmo se ele não for concorrente ou um coletor de impostos. Não discutirei - na realidade, eu próprio insistirei com energia que essa obrigação à imparcialidade também impõe grave responsabilidade moral ao analista. E deve ser assim, em segundo lugar, porque os fatores da vida sexual desempenham um papel extremamente importante, dominante e talvez mesmo específico entre as causas e fatores precipitantes das doenças neuróticas. Que mais pode a análise fazer se não manter-se perto do seu tema, do material apresentado pelo paciente? O analista jamais induz o paciente até o terreno do sexo. Ele não lhe diz antecipadamente: ‘Estaremos lidando com as intimidades de sua vida sexual!’ Ele lhe permite que comece o que tem a dizer onde lhe aprouver, e tranqüilamente aguarda até que o próprio paciente aborde fatos sexuais. Sempre costumava advertir meus alunos: ‘Nossos antagonistas nos disseram que nos defrontaremos com casos nos quais o fator do sexo não desempenha papel algum. Tenhamos o cuidado de não introduzi-lo em nossas análises e de assim estragar nossa oportunidade de encontrar tal caso.’ Mas até agora nenhum de nós teve essa boa sorte. Estou cônscio, naturalmente, de que nosso reconhecimento da sexualidade se tornou - quer confessadamente, quer não - o motivo mais forte da hostilidade de outras pessoas em relação à análise. Poderá isto abalar nossa confiança? Isto simplesmente nos revela como é neurótica toda nossa vida civilizada, visto que pessoas manifestamente normais não se comportam de forma muito diferente das neuróticas. Numa época em que a psicanálise foi solenemente levada a julgamento perante as sociedades cultas da Alemanha - hoje as coisas se tornaram inteiramente mais tranqüilas -, um dos oradores alegou possuir autoridade peculiar porque, assim disse ele, chegou mesmo a permitir que seus pacientes falassem: para finalidades de diagnósticos, claramente e para pôr à prova as asserções dos analistas. ‘Mas’, acrescentou ele, ‘se começarem a falar sobre assuntos sexuais fecho-lhes as bocas.’ Que pensa disto como um método de demonstração? A sociedade erudita aplaudiu o orador calorosamente em vez de sentir-se, com razão, envergonhada do seu relato. Só a triunfante certeza proporcionada pela consciência de preconceitos sustentados em comum pode explicar a falta de pensamento lógico do orador. Anos depois alguns daqueles que na épocatinham sido meus partidários cederam à necessidade de libertar a sociedade humana do julgo da sexualidade que a psicanálise estava procurando impor-lhe. Um deles explicou que o que é sexual não significa absolutamente sexualidade, mas algo mais, algo abstrato e místico. E outro chegou a declarar que a vida sexual é meramente uma das esferas na qual os seres humanos procuram por uma ação sua necessidade imperiosa de poder e dominação. Eles têm sido acolhidos com grandes aplausos, pelo menos no momento. ‘Aventurar-me-ei de certa maneira, dessa vez, a tomar partido neste ponto. Surpreendi-me como sendo extremamente ousado afirmar que a sexualidade não é necessidade natural e primitiva dos seres vivos, mas uma expressão de algo mais. Só se precisa considerar o exemplo dos animais.’ Isto não faz diferença alguma. Não há qualquer mistura, por mais absurda, que a sociedade de bom grado não esteja disposta a engolir se for anunciada como um antídoto à temida predominância da sexualidade. Confesso, além disso, que a aversão que o senhor mesmo tem traído de atribuir ao fator da sexualidade um papel tão relevante na causação da neurose - confesso que isto quase não me parece compatível com a sua tarefa como uma Pessoa Imparcial. O senhor não teme que essa antipatia possa interferir em fazer um julgamento justo? ‘Lamento ouvi-lo dizer isto. Sua confiança em mim parece estar abalada. Mas nesse caso por que não escolheu outro como sua Pessoa Imparcial?’ Porque essa outra pessoa não teria pensado em nada diferente do senhor. Mas se ela tivesse sido preparada desde o começo para reconhecer a importância da vida sexual, todos teriam exclamado: ‘Ora, essa não é nenhuma Pessoa Imparcial, é um dos seus partidários!’ Não, estou longe de abandonar a expectativa de ser capaz de influenciar suas opiniões. Devo admitir, contudo, que do meu ponto de vista essa situação é diferente daquela com a qual lidamos antes. No tocante aos nossos debates psicológicos, trata-se para mim de uma questão de indiferença se o senhor acredita ou não em mim, contanto somente que tenha a impressão de que aquilo que nos preocupa são problemas puramente psicológicos. Mas aqui, quanto à questão da sexualidade, deveria não obstante contentar-me se o senhor fosse acessível à compreensão de que seu motivo mais forte de contradição é precisamente a arraigada hostilidade de que partilha com tantas outras pessoas. ‘Mas afinal de contas não possuo a experiência que lhe deu inabalável certeza.’ Muito bem. Posso agora continuar com minha exposição. A vida sexual não é simplesmente algo apimentado; constitui também sério problema científico. Muito havia de novo a ser aprendido sobre ela, muitas coisas estranhas a serem explicadas. Acabo de dizer-lhe que a análise tem de remontar aos primeiros anos da infância do paciente, porque foi então que ocorreram as repressões decisivas, enquanto seu ego era débil. Mas certamente na infância não existe qualquer vida sexual? Com certeza ela só começa na puberdade? Pelo contrário. Temos de aprender que os impulsos instintuais sexuais acompanham a vida a partir do nascimento, sendo precisamente a fim de desviar esses instintos que o ego infantil institui repressões. Uma coincidência notável, não é? que as criancinhas já devem estar lutando contra a força da sexualidade, do mesmo modo como o orador da sociedade erudita iria fazer depois, e posteriormente ainda meus seguidores que estabeleceram suas próprias teorias. Como isto acorre? A explicação geral seria que nossa civilização se acha inteiramente estruturada às expensas da sexualidade; mas há muito mais a ser dito sobre o assunto. A descoberta da sexualidade infantil é uma daquelas da quais temos motivo de nos sentirmos envergonhados [por causa de sua evidência]. Alguns pediatras, assim parece, sempre tiveram conhecimento disto, e algumas enfermeiras de crianças. Homens hábeis, que se denominam a si próprios psicólogos de crianças, logo falaram em tons de censura de uma ‘profanação da inocência da infância’. Mais uma vez, o sentimento em vez do argumento! Fatos dessa espécie são de ocorrência cotidiana em entidades políticas. Um membro da oposição ergue-se e denuncia certo desacerto administrativo no serviço público, no exército, no judiciário e assim por diante. Diante disto outro membro, preferivelmente do governo, declara que tais afirmações constituem uma afronta ao sentimento de honra do organismo político, do exército, da dinastia, ou mesmo da nação. Não passam assim de inverdades. Sentimentos como estes não podem tolerar quaisquer afrontas. A vida sexual das crianças naturalmente é diferente da dos adultos. A função sexual, desde seus primórdios até a forma definitiva na qual nos é tão familiar, passa por um complicado processo de desenvolvimento. Desenvolve-se juntamente, a partir de numerosos instintos componentes, com diferentes finalidades e passa por várias fases de organização até que finalmente entra a serviço da reprodução. Nem todos os instintos componentes são igualmente úteis para o resultado final; devem ser desviados, remodelados e em parte suprimidos. Tal curso de desenvolvimento de grande alcance nem sempre é percorrido sem uma lacuna; ocorrem inibições no seu desenvolvimento, fixações parciais nas primeiras fases de desenvolvimento. Se depoissurgirem obstáculos ao exercício da função sexual, o anseio sexual - a libido, como o denominamos - é capaz de retornar a esses pontos mais antigos de fixação. O estado da sexualidade das crianças e de suas transformações até a maturidade também nos deu a chave de uma compreensão do que se conhece como as perversões sexuais, que as pessoas sempre costumavam descrever com todos os sinais indispensáveis de repulsa, mas cuja origem jamais foram capazes de explicar. Todo o tópico é de interesse incomum, mas para as finalidades de nossa conversa não faz muito sentido dizer-lhe mais a respeito do mesmo. A fim de nos orientarmos nele, carecemos de conhecimentos anatômicos e fisiológicos, não podendo todos eles, infelizmente, ser adquiridos em escolas de medicina. Mas uma familiaridade com a história da civilização e com a mitologia é igualmente indispensável. ‘Depois de tudo isto, ainda não posso formar um quadro da vida sexual das crianças.’ Então abordarei ainda mais o assunto; seja como for, não me é fácil afastar-me dele. Dir-lhe-ei, então, que o fato mais notável sobre a vida sexual da crianças, segundo me parece, passa por todo seu desenvolvimento mais amplo nos cinco primeiros anos de vida. A partir desse ponto até a puberdade estende-se o que se conhece como período de latência. Durante ele a sexualidade normalmente não avança mais; pelo contrário, os anseios sexuais diminuem de vigor e são abandonadas e esquecidas muitas coisas que a criança fazia e conhecia. Nesse período da vida, depois que a primeira eflorescência da sexualidade feneceu, surgem atitudes do ego como a vergonha, a repulsa e a moralidade, que estão destinadas a fazer frente à tempestade ulterior da puberdade e a alicerçar o caminho dos desejos sexuais que se vão despertando. Esse ‘desencadeamento bifásico’, como é denominado, da vida sexual muito tem a ver com a gênese das doenças neuróticas. Parece ocorrer somente nos seres humanos, e talvez seja um dos determinantes do privilégio humano de tornar-se neurótico. A pré-história da vida sexual foi tão desprezada antes da psicanálise como, em outro setor, os antecedentes da vida mental consciente. O senhor com razão suspeitará de que os dois estão intimamente ligados. Há muito a dizer, com relação ao que nossas expectativas não nos prepararam, sobre o conteúdo, manifestações e realizações desse período inicial da sexualidade. Por exemplo, o senhor sem dúvida ficará surpreendido em saber como amiúde meninos de pouca idade têm medo de ser devoradospelo pai. (E talvez também se surpreenda por eu incluir esse medo entre os fenômenos da vida sexual.) Mas gostaria de lembrar-lhe o conto mitológico, do qual é possível que ainda se recorde dos seus dias de escola, de como o deus Cronos engoliu os filhos. Como isto lhe deve ter soado estranho quando o ouviu pela primeira vez! Mas suponho que nenhum de nós pensou nisto naquela época. Hoje podemos também recordar grande número de contos de fadas nos quais aparece algum animal voraz como um lobo, e o reconheceremos como um disfarce do pai. Esta é a oportunidade de assegurar-lhe que foi somente através do conhecimento da sexualidade infantil que se tornou possível compreender a mitologia e o mundo dos contos de fadas. Aqui então algo foi alcançado como um subproduto de estudos analíticos. O senhor ficará não menos surpreendido em saber que as crianças do sexo masculino sofrem do medo de ser roubadas do seu órgão sexual pelo pai, de modo que esse medo de ser castrado exerce poderosíssima influência sobre o desenvolvimento do seu caráter e na decisão do rumo a ser seguido por sua sexualidade. E mais uma vez aqui a mitologia poderá dar-lhe a coragem de crer na psicanálise. O mesmo Cronos que devorou os filhos também emasculou seu pai Uranos, e depois ele próprio foi emasculado como vingança por seu filho Zeus, que fora salvo pela astúcia de sua mãe. Se o senhor se tiver sentido inclinado a supor que tudo o que a psicanálise informa sobre a sexualidade inicial das crianças provém da imaginação perturbada dos analistas, deve pelo menos admitir que sua imaginação criou o mesmo produto que as atividades imaginativas do homem primitivo, cujos mitos e contos de fadas são o precipitado. A alternativa mais amável, e provavelmente também o ponto de vista mais pertinente, seria que na vida mental das crianças, hoje em dia, podemos ainda detectar os mesmos fatores arcaicos que em geral outrora dominavam nos dias primevos da civilização humana. Em seu desenvolvimento mental, a criança estaria repetindo a história de sua raça de uma forma abreviada, do mesmo modo como a embriologia de há muito reconheceu ser este o caso do desenvolvimento somático. Outra característica da sexualidade infantil inicial é que o órgão sexual feminino propriamente dito ainda não desempenha nela qualquer papel: a criança ainda não o descobriu. A ênfase recai inteiramente no órgão masculino, todo o interesse da criança está dirigido para a questão de se ele se acha presente ou não. Sabemos menos acerca da vida sexual de meninas do que de meninos. Mas não é preciso envergonharmo-nos dessa distinção; afinal de contas, a vida sexual das mulheres adultas é um ‘continente negro’ paraa psicologia. Mas aprendemos que as meninas sentem profundamente falta de um órgão sexual que seja igual em valor ao masculino; elas se consideram por causa disso inferiores, e essa ‘inveja do pênis’ é a origem de todo um grande número de reações femininas características. Também é característico das crianças que suas duas necessidades excretórias sejam catexizadas [carregadas] de interesse sexual, que é mais uma vez obliterada na prática de fazer chistes. Para nós pode parecer um fato desagradável, mas leva muito tempo para que as crianças desenvolvam sentimentos de repugnância. Isto não é discutido nem mesmo por pessoas que de outra forma insistem sobre a pureza seráfica da mente da criança. Nada, contudo, merece mais atenção do que o fato de as crianças regularmente dirigirem seus desejos sexuais para os seus parentes mais próximos - em primeiro lugar, portanto, para o pai e a mãe, e depois para seus irmãos e irmãs. O primeiro objeto do amor de um menino é sua mãe, e de uma menina seu pai (exceto até onde uma disposição bissexual inata favorece a presença simultânea da atitude contrária). Sente-se o outro genitor como um rival perturbador, e não infreqüentemente é encarado com forte hostilidade. O senhor deve compreender-me bem. O que quero dizer não é que a criança deseja ser tratada por seu genitor predileto simplesmente com a espécie de afeição que nós adultos gostamos de considerar como a essência da relação pai-filho. Não, a análise não nos deixa dúvida alguma de que os desejos da criança se estendem, além de tal afeição, a tudo que compreendemos por satisfação sensual - até onde, vale dizer, o permitem os poderes de imaginação da criança. É fácil ver que a criança jamais adivinha os fatos reais das relações sexuais; ela os substitui por outras idéias oriundas de sua própria experiência e sentimentos. Em geral seus desejos culminam na intenção de dar à luz ou, de alguma maneira indefinível, de procriar um bebê. Também os meninos, em sua ignorância, não se excluem do desejo de dar à luz uma criança. Damos a toda essa estrutura mental a denominação de ‘complexo de Édipo’, segundo a conhecida lenda grega. Com o término do período sexual inicial ele deve normalmente ser abandonado, deve desintegrar-se radicalmente e ser transformado, estando os resultados dessa transformação destinados a importantes funções na vida mental ulterior. Mas em geral isso não se efetua de maneira bastante radical, caso em que a puberdade acarreta uma revivescência do complexo, que pode ter graves conseqüências. Estou surpreendido por o senhor ainda estar calado. Isto dificilmente quer dizer que consente. Ao afirmar que a primeira escolha de uma criança é, para empregar o termo técnico, uma escolha incestuosa, a análise sem dúvida mais uma vez fere os sentimentos mais sagrados da humanidade, epode muito bem estar preparada para uma quantidade correspondente de descrença, contradição e ataque. E estes ela tem recebido com abundância. Nada a tem danificado mais na abalizada opinião dos seus contemporâneos do que sua hipótese do complexo de Édipo como uma estrutura universalmente vinculada ao destino humano. O mito grego, incidentalmente, deve ter tido o mesmo significado; mas a maioria dos homens hoje em dia, eruditos igualmente, prefere crer que a Natureza estabeleceu em nós uma aversão inata como salvaguarda contra a possibilidade de incesto. Mas vamos em primeiro lugar convocar a história em nosso auxílio. Quando Caio Júlio César aportou no Egito, encontrou a jovem rainha Cleópatra (que logo iria tornar-se tão importante para ele) casada com o irmão dela ainda mais jovem, Ptolomeu. Numa dinastia egípcia nada havia de peculiar nisso; os Ptolomeus, que eram de origem grega, haviam simplesmente continuado com o costume que fora praticado por seus antecessores, os antigos faraós, por alguns milhares de anos. Isto, todavia, era meramente um incesto entre irmão e irmã, que mesmo na época atual não é julgado tão rigorosamente. Voltemos assim à nossa principal testemunha em assuntos concernentes aos tempos primevos - a mitologia. Ela nos informa que os mitos de cada povo, e não somente dos gregos, estão repletos de casos amorosos entre pais e filhas e mesmo entre mães e filhos. A cosmologia, não menos que a genealogia de raças reais, está fundamentada no incesto. Para que finalidade o senhor supõe que essas lendas foram criadas? Para estigmatizar deuses e reis como criminosos? para imputar-lhes a repulsa da raça humana? De preferência, por certo, porque os desejos incestuosos constituem um legado humano primordial e jamais foram plenamente superados, de modo que sua realização ainda era concedida aos deuses e aos seus descendentes quando a maioria dos seres humanos comuns já era obrigada a renunciar a tais desejos. Está em completa harmonia com essas lições da história e da mitologia o fato de encontrarmos desejos ainda presentes a atuantes na infância do indivíduo. ‘Eu poderia considerar erroneamente que o senhor tivesse tentado ocultar de mim tudo isso sobre a sexualidade infantil. Parece-me muitíssimo interessante, particularmente por causa de sua ligação com a pré-história humana.’ Temia que pudesse afastar-nos para muito longe de nossa finalidade. Mas talvez, afinal de contas, seja útil. ‘Agora me diga, então, que certeza pode o senhor oferecer para os seus achados analíticos sobre a vida sexual das crianças? Sua convicção baseia-se unicamente em pontos de concordância com a mitologia e a história?’Oh, de modo algum. Ela tem como base a observação direta. O que aconteceu foi isto. Tínhamos começado por inferir o conteúdo da infância sexual a partir da análise de adultos - isto é, cerca de vinte a quarenta anos depois. Posteriormente, procedemos a análises sobre as próprias crianças, e não deixou de ser uma grande vitória quando assim fomos capazes de confirmar nelas tudo que tínhamos podido adivinhar, apesar da quantidade do que havia ficado encoberto e distorcido no intervalo. ‘O quê? O senhor submeteu criancinhas à análise? crianças com menos de seis anos? isso pode ser feito? E não é muito arriscado para as crianças? Pode muito bem ser feito. Quase não se pode acreditar no que se passa numa criança de quatro ou cinco anos de idade. As crianças têm uma mente muito ativa nessa idade; seu período sexual prematuro é também um período de florescimento intelectual. Tenho a impressão de que com o início do período de latência elas se tornam mentalmente inibidas também, mais estúpidas. Também a partir dessa época muitas crianças perdem seu encanto físico. E, no tocante ao dano causado pela análise prematura, posso informar-lhe que a primeira criança na qual se aventurou o primeiro experimento, há quase vinte anos, desde então se desenvolveu num jovem saudável e capaz, que atravessou a puberdade de maneira irrepreensível, apesar de alguns graves traumas psíquicos. Talvez seja de se esperar que as coisas não sejam piores para as outras ‘vítimas’ da análise prematura. Muito daquilo que é de interesse está ligado a essas análises infantis; é possível que no futuro elas se tornem ainda mais importantes. Do ponto de vista da teoria, seu valor é indubitável, proporcionando informações destituídas de ambigüidade sobre problemas que permanecem insolúveis nas análises de adultos; e dessa forma protegem o analista de erros que poderiam ter para ele conseqüências graves. Surpreendemos os fatores que levam à formação de uma neurose enquanto se acham realmente em ação e não podemos então confundi-los. No interesse da criança, é verdade, a influência analítica deve ser combinada com medidas educacionais. A técnica ainda tem de receber sua confirmação. Mas o interesse prático é despertado pela observação de que grande número de nossas crianças passa por uma fase claramente neurótica no curso de seu desenvolvimento. Visto termos aprendido a observar com maior agudeza, somos tentados a afirmar que a neurose nas crianças não é a exceção mas a regra, como se ela quase não pudesse ser evitada na trilha desde a disposição inata da infância até a sociedade civilizada. Na maioria dos casos essa fase neurótica da infância é superada espontaneamente. Mas será que ela não pode também regularmente deixar seus vestígios no adulto saudável comum? Por outro lado, naqueles que se tornam neuróticos depois, nunca deixamos deencontrar elos com a doença na infância, embora na época não tenha sido necessário ser muito observável. De forma precisamente análoga os médicos hoje, creio, sustentam a opinião de que cada um de nós passou por uma investida de tuberculose em sua infância. É verdade que no caso das neuroses o fator de imunização não atua, mas somente o fator de predisposição. Voltemos a sua pergunta sobre a certeza. Ficamos de maneira geral bem convictos, pelo exame direto das crianças, de que tínhamos razão em nossa interpretação daquilo que os adultos nos relataram sobre sua infância. Em grande número de casos, contudo, outra espécie de confirmação tornou-se possível. O material da análise de alguns pacientes permitiu-nos reconstruir certos acontecimentos externos, certos eventos impressionantes de seus anos de infância, dos quais não conservaram qualquer lembrança consciente. Acidentes felizes, informações de pais ou de amas ofereceram depois provas irrefutáveis de que essas ocorrências realmente se verificaram. Isto, naturalmente, não aconteceu com freqüência, mas quando se verificou, foi com esmagadora impressão. A reconstrução correta, o senhor precisa saber, de tais experiências esquecidas da infância tem sempre grande efeito terapêutico, permitam ou não confirmação objetiva. Esses eventos devem sua importância, naturalmente, ao fato de terem ocorrido numa idade tão prematura, numa época em que podiam ainda produzir um efeito traumático sobre o ego frágil. ‘E que espécie de eventos podem ser esses, que têm de ser descobertos pela análise?’ De várias espécies. Primeiramente, impressões capazes de influenciar permanentemente a vida sexual que desabrocha da criança - tais como observações de atividades sexuais entre adultos, ou experiências sexuais suas com um adulto ou outra criança (fatos que não são raros); ou, ainda, o ouvir por acaso conversas, compreendidas na época ou retrospectivamente, das quais a criança pensou poder tirar conclusões sobre assuntos misteriosos ou fantásticos; ou, ainda, observações ou ações da própria criança que dão prova de atitudes significativas de efeito ou inimizade para com outras pessoas. É de especial importância numa análise induzir uma lembrança da atividade sexual esquecida do próprio paciente como criança e também da intervenção dos adultos que acabaram com a mesma. ‘Isso me dá a oportunidade de trazer à baila uma pergunta que há muito desejava formular. Qual é, então, a natureza dessa “atividade sexual” das crianças numa tenra idade, que, como o senhor diz, foi desprezada antes dos dias da análise?’ Constitui um fato estranho que a parte regular e essencial dessa atividade sexual não tenha sido desprezada. Ou antes, ela não é de forma alguma estranha, pois foi impossível desprezá-la. Os impulsos sexuais das crianças encontram suas principais expressões na autogratificação pela fricção de seus próprio órgãos genitais, ou, mais precisamente, da porção masculina deles. A distribuição extraordinariamente ampla dessa forma de ‘travessura’ infantil sempre foi conhecida dos adultos, e foi considerada como grave pecado e severamente punida. Mas por favor não me pergunte como as pessoas podiam reconciliar essas observações das inclinações imorais das crianças - porque as crianças o fazem, como elas próprias dizem, porque lhes dá prazer - com a teoria de sua pureza e nãosensualidade inatas. O senhor tem de fazer com que nossos adversários solucionem esse enigma. Nós temos um problema mais importante diante de nós. Que atitude devemos adotar em relação à atividade sexual da primeira infância? Sabemos a responsabilidade na qual estamos incorrendo se a suprimirmos; mas não nos aventuramos a deixá-la seguir seu curso sem restrição. Entre as raças num baixo nível de civilização, e entre as camadas inferiores das raças civilizadas, a sexualidade das crianças parece ter recebido livre rédea. Isso provavelmente oferece poderosa proteção contra o subseqüente desenvolvimento de neuroses no indivíduo. Mas isso ao mesmo tempo não envolve uma extraordinária perda de aptidão para realizações culturais? Muito há para sugerir que aqui estamos diante de uma nova Sila e Caríbdis. Mas se os interesses que são estimulados pelo estudo da vida sexual dos neuróticos criam uma atmosfera favorável ao estímulo da lascívia - isso é uma questão que eu me aventuro a deixar ao seu próprio julgamento. V ‘Creio que compreendo sua finalidade. O senhor deseja demonstrar-me que espécie de conhecimento se faz necessário a fim de praticar a análise, de modo que eu possa ser capaz de julgar se somente os médicos devem ter o direito de praticá-la. Bem, até agora surgiu muito pouco que tem a ver com a medicina: muito de psicologia e um pouco de biologia ou de ciência sexual. Mas talvez não tenhamos chegado ao fim?’ Certamente não. Ainda existem lacunas a ser preenchidas. Posso fazer um pedido? Quer descrever-me como o senhor imagina um tratamento analítico? - da mesma forma como se o senhor mesmo tivesse de proceder a um. ‘Uma bela idéia, sem dúvida! Não, não tenho a menor intenção de resolver nossa controvérsia por uma experiência dessa espécie. Mas apenas para ser agradável, farei o que o senhor pede - a responsabilidade será sua. Muito bem. Suporei que o paciente me procura e se queixa dos seus males. Prometo-lhe recuperação ou melhoria se ele seguir minhas instruções. Estimulo-o a dizer-me com toda franqueza tudo que ele sabe e que lhe ocorre, e que não se desvie dessa intenção mesmo se algumas coisas lhe sejam desagradáveis de dizer. Assimilei a regra de maneira apropriada?’ Assimilou. O senhor deve acrescentar: ‘mesmo se o que lhe ocorrer lhe parecer destituído de importância ou de sentido.’ ‘Acrescentarei isso. Logo ele começa a falar e eu a ouvir. E então? Infiro do que ele me diz a espécie de impressões, experiências e desejos que reprimiu porque se defrontou com eles numa época em que seu ego ainda estava fraco e tinha medo deles em vez de enfrentá-los. Quando ele tiver aprendido isso de mim, voltará às antigas situações e com minha ajuda ele se sai melhor. As limitações às quais seu ego estava vinculado então desaparecem, e ele fica curado. Está certo?’ Bravo! bravo! vejo mais uma vez que as pessoas serão capazes de acusar-me de eu haver transformado num analista alguém que não é médico. O senhor apreendeu tudo de maneira admirável. ‘Nada mais fiz senão repetir o que ouvi do senhor - como se fosse algo que eu tivesse aprendido de cor. Seja como for, não posso formar quadro algum de como deva fazê-lo e estou inteiramente desorientado para compreender por que uma tarefa como essa deva levar uma hora por dia durante tantos meses. Afinal de contas, uma pessoa comum em geral não teve tantas experiências assim, o que foi reprimido na infância é provavelmente o mesmo em cada caso.’Quando realmente se pratica a análise aprendem-se as espécies de coisas além disso. Por exemplo: o senhor não acharia absolutamente que fosse um assunto simples deduzir do que o paciente lhe conta as experiências que ele esqueceu e os impulsos instituais que reprimiu. Ele diz algo que no começo significa tão pouco para o senhor como para ele. O senhor terá de resolver contemplar o material que ele lhe entrega em obediência à regra de uma maneira bem especial: como se fosse minério, talvez, do qual seu teor de metal precioso tem de ser extraído por um processo específico. Estar-se-á também preparado para trabalhar muitas toneladas de minério que podem conter o pouco material valioso que se procura. Aqui devemos ter um primeiro motivo do prolongado caráter do tratamento. ‘Mas como se trabalha com essa matéria-prima - para manter seu símile?’ Presumindo-se que as observações e associações do paciente são apenas distorções do que se procura - alusões, por assim dizer, das quais se tem de adivinhar o que se acha oculto detrás delas. Numa palavra, esse material, quer consista em lembranças, associações ou sonhos, tem primeiramente de ser interpretado. O senhor fará isso, naturalmente, observando as expectativas que formou quando ouvia, graças ao seu conhecimento especial. “’Interpretar!” Que palavra sórdida! Não gosto do seu som; ele me rouba toda a certeza. Se tudo depender de minha interpretação, quem pode garantir que eu interpreto certo? Assim, afinal de contas, tudo é deixado ao meu capricho?’ Um momento! As coisas não são assim tão más. Por que o senhor escolhe excluir seus próprios processos mentais da norma da lei que reconhece nos de outras pessoas? Quando o senhor atingiu certo grau de autodisciplina e possui certo conhecimento à sua disposição, suas interpretações serão independentes de suas características pessoais e atingirão o alvo. Não estou afirmando que a personalidade do analista seja uma questão de indiferença para essa parte da tarefa dele. Uma espécie de agudeza em ouvir o que está inconsciente e reprimido, que não está na posse igualmente de todos, tem seu papel a desempenhar. E aqui, antes de tudo, somos levados à obrigação do analista de tornar-se capaz, por uma profunda análise dele próprio, da recepção sem preconceitos do material analítico. Algo, é verdade, ainda permanece de fora: alguma coisa comparável à ‘equação pessoal’ nas observações astronômicas. Esse fator individual sempre desempenhará um papel mais significativo na psicanálise do que alhures. Uma pessoa anormal pode tornar-se um médico cuidadoso; como analista ele será prejudicado pela sua própria anormalidade de ver os quadros da vida mental não distorcidos. Vistoser impossível demonstrar a qualquer um sua própria anormalidade, o consenso geral em questão de psicologia profunda será particularmente difícil de ser alcançado. Alguns psicólogos, na verdade, julgam que ele é inteiramente impossível e que todo tolo tem o igual direito de externar sua estultície como sabedoria. Confesso que sou mais otimista a respeito disso. Afinal de contas, nossas experiências revelam que acordos razoavelmente satisfatórios podem ser alcançados mesmo na psicologia. Todo campo de pesquisa tem sua dificuldade particular que devemos tentar eliminar. E, além disso, mesmo na arte interpretativa da análise muito existe que pode ser aprendido como qualquer outro material de estudo: por exemplo, em relação com o método peculiar de representação indireta através de símbolos. ‘Bem, não tenho mais qualquer desejo de empreender um tratamento analítico mesmo na minha imaginação. Quem pode dizer quais as outras surpresas que eu poderia encontrar?’ O senhor tem toda a razão em abandonar a idéia. Está vendo como se fariam necessárias muito mais formação e prática. Quando tiver achado uma interpretação certa, encontra-se à frente outra tarefa. O senhor tem de esperar o momento exato no qual pode comunicar sua interpretação ao paciente com alguma perspectiva de êxito. ‘Como se pode sempre reconhecer o momento certo?’ Isto é uma questão de tato, que pode tornar-se mais requintada com a experiência. O senhor estará cometendo grave erro se, num esforço talvez de encurtar a análise, lançar suas interpretações na cabeça do paciente logo que as houver encontrado. Dessa maneira o senhor obterá dele expressões de resistência, rejeição e indignação, mas não permitirá que seu ego domine seu material reprimido. A fórmula é: esperar até que o paciente tenha chegado tão perto do material reprimido que ele tenha apenas mais alguns passos na dianteira da interpretação que o senhor propuser. ‘Creio que nunca aprenderia a fazer isso. E se adotar essas precauções ao fazer minha interpretação, o que vem depois?’ Será então seu destino fazer uma descoberta para a qual não estava preparado. ‘E o que pode ser isso?’ Que o senhor se enganou com seu paciente; que não pode contar no mínimo com a colaboração e a condescendência dele; que ele está pronto a colocar toda dificuldade possível em seu trabalho comum - numa palavra, que ele não tem absolutamente qualquer desejo de ficar curado. ‘Ora veja só! Isso é a coisa mais louca que o senhor já me contou. E também não acredito nela. O paciente que está sofrendo tanto, que se queixatão comovedoramente de seu males, que está fazendo um sacrifício tão grande para o tratamento - o senhor diz que ele não tem qualquer desejo de ficar curado! Mas naturalmente o senhor não está dando um significado exato às suas palavras.’ Acalme-se! Realmente confirmo o que digo. O que falei foi a verdade - não toda a verdade, sem dúvida, mas uma parte muito digna de nota dela. O paciente deseja ser curado - mas ele também deseja não ser. Seu ego perdeu sua unidade, e por esse motivo sua vontade também não tem qualquer unidade. Se isto não fosse assim, ele não seria nenhum neurótico. “’Fosse eu sagaz, e não seria o Tell!” Os derivados do que é reprimido irromperam em seu ego e ali se estabeleceram; e o ego tem tão pouco controle sobre as tendências daquela fonte quanto sobre o que é realmente reprimido, e em geral nada sabe a respeito delas. Esses pacientes, na realidade, são de uma natureza peculiar e criam dificuldades com as quais não estamos habituados a lidar. Todas as nossas instituições sociais são estruturadas para pessoas com um ego unido e normal, que se pode classificar de bom ou mau, que ou cumpre sua função ou é inteiramente eliminado por uma influência esmagadora. Daí a alternativa jurídica: responsável ou irresponsável. Nenhuma dessas distinções se aplica a neuróticos. Deve-se admitir que há dificuldade em adaptar as exigências sociais a sua condição psicológica. Isto foi experimentado em larga escala durante a última guerra. Os neuróticos que burlavam o serviço militar eram simuladores ou não? Eram e não eram. Se eram tratados como simuladores e sua doença era tornada altamente incômoda, eles se recuperavam; se depois de serem ostensivamente restabelecidos eram enviados de volta às forças armadas, imediatamente se refugiavam mais uma vez na doença. Nada podia ser feito com eles. E o mesmo se aplica aos neuróticos na vida civil. Eles se queixam da doença mas a exploram com todas as suas forças; e se alguém tenta afastá-la deles, defendem-na como a proverbial leoa com seus filhotes. Contudo, não faria sentido algum recriminá-los por essa contradição. ‘O melhor plano, porém, não seria deixar de administrar a esses doentes tratamento, qualquer que fosse ele, mas deixá-los entregues à sua sorte? Não penso que valha a pena despender esforços tão grandes com cada um deles como o senhor me leva a supor que faz.’ Não posso aprovar sua sugestão. Indubitavelmente constitui uma atitude mais adequada aceitar as complicações da vida de preferência a lutar contra elas. Talvez seja verdade que nem todo neurótico que tratamos valha o sacrifício de uma análise, mas existem alguns indivíduos muito valiosostambém entre eles. Devemos fixar nós mesmos a meta de que o menor número possível de seres humanos ingresse na vida civilizada com tal aparelho mental defeituoso. E para essa finalidade devemos reunir muita experiência e aprender a compreender muitas coisas. Toda análise pode ser instrutiva e proporcionar-nos um acervo de nova compreensão inteiramente à parte do valor pessoal do paciente individual. ‘Mas se um impulso volitivo formou-se no paciente que deseja reter a doença, o primeiro deve ter suas razões e motivos e ser capaz, de alguma forma, de justificar-se. Mas é impossível compreender por que alguém deseja estar doente ou o que poderá obter disso.’ Oh, isso não é tão difícil de compreender. Penso nos neuróticos de guerra, que não têm de servir precisamente porque são doentes. Na vida civil a doença pode ser utilizada como uma tela para encobrir a incompetência na profissão de alguém ou na concorrência com outras pessoas, enquanto na família pode servir de meio para sacrificar os outros membros e extorquir provas do amor destes, ou para impor a vontade sobre eles. Tudo isso se acha razoavelmente perto da superfície; nós o resumimos na expressão ‘ganho proveniente da doença’. É curioso, contudo, que o paciente - isto é, seu ego - nada saiba de toda a concatenação desses motivos e das ações que eles envolvem. Combate-se a influência dessas tendências compelindo-se o ego a tomar conhecimento delas. Mas há outros motivos, que se acham situados ainda mais profundamente, para que alguém se apegue à doença, com os quais não é tão fácil lidar. Mas esses não podem ser compreendidos sem uma nova viagem pela teoria psicológica. ‘Queira continuar. Um pouco mais de teoria não fará diferença alguma agora.’ Quando lhe descrevi a relação entre o ego e o id, suprimi uma parte importante da teoria do aparelho mental, pois fomos obrigados a presumir que dentro do próprio ego uma instância específica tornou-se diferenciada, sendo ela designada como superego. Esse superego ocupa uma posição especial entre o ego e o id. Ele pertence ao ego e partilha do seu alto grau de organização psicológica; mas tem uma vinculação particularmente íntima com o id. É de fato um precipitado das primeiras catexias do objeto do id e é o herdeiro do complexo de Édipo após o seu falecimento. Esse superego pode confrontar-se com o ego e tratá-lo como um objeto; e ele muitas vezes o trata com grande aspereza. É tão importante para o ego continuar em boas relações com o superego como com o id. Desavenças entre o ego e o superego são de grande importância na vida mental. O senhor já terá adivinhado que o superego é o veículo do fenômeno que chamamos de consciência. A saúdemental muito depende de o superego ser normalmente desenvolvido - isto é, de haver-se tornado suficientemente impessoal. E é isso precisamente o que não ocorre nos neuróticos cujo complexo de Édipo não passou pelo processo correto de transformação. O superego deles ainda se confronta com seu ego como um pai rigoroso se defronta com um filho: e sua moralidade atua de maneira primitiva devido ao ego ser punido pelo superego. A doença é empregada como um instrumento para essa ‘autopunição’, e os neuróticos têm de comportar-se como se fossem governados por um sentimento de culpa que, a fim de ser satisfeito, precisa ser punido pela doença. ‘Isso realmente parece muito misterioso. A coisa mais estranha a respeito disso é que aparentemente mesmo essa poderosa força da consciência do paciente não alcança sua consciência.’ Sim, estamos apenas começando a apreciar a significação de todas essas circunstâncias importantes. Eis por que minha descrição estava destinada a ser tão obscura. Mas agora posso continuar. Descrevemos todas as forças que se opõem ao trabalho de recuperação como sendo as ‘resistências’ do paciente. O ganho proveniente da doença é uma dessas resistências. O ‘sentimento de culpa inconsciente’ representa a resistência do superego; é o fator mais poderoso, e o mais temido por nós. Encontramos ainda outras resistências durante o tratamento. Se o ego durante o período inicial estabeleceu uma repressão por medo, então este persiste e se manifesta como uma resistência se o ego se aproxima do material reprimido. E finalmente, como o senhor pode imaginar, é provável que haja dificuldades se se esperar que um processo instintual que tenha seguido um caminho específico durante décadas de súbito siga uma nova trilha que acabe de ser aberta para ele. Isso poderia ser denominado de resistência do id. A luta contra todas essas resistências constitui nosso principal trabalho durante um tratamento analítico; a tarefa de fazer interpretações não é nada em comparação com ela. Mas como resultado dessa luta e da superação das resistências, o ego do paciente fica tão alterado e fortalecido que podemos antecipar com tranqüilidade seu futuro comportamento quando o tratamento estiver terminado. Por outro lado, pode-se compreender agora por que são necessários tratamentos tão prolongados. A extensão do caminho de desenvolvimento e a riqueza do material não são os fatores decisivos. É mais uma questão de o caminho estar desimpedido. Um exército pode ficar retido durante semanas numa extensão de terreno que na época de paz um trem expresso percorre em poucas horas se o exército tiver de superar ali a resistência do inimigo. Essas batalhas exigem tempo também na vida mental. Infelizmente sou obrigado a dizer-lhe que todos os esforços no sentido de acelerar o tratamento analítico de formaapreciável até agora malograram. A melhor maneira de encurtá-lo parece ser levá-lo a efeito de acordo com as regras. ‘Se jamais senti desejo de caçar furtivamente em seu parque de caça e tentar analisar alguém, o que o senhor me diz sobre as resistências me teria curado disso. Mas o que dizer da influência pessoal especial que afinal de contas o senhor próprio admitiu? Isto não entra em ação contra as resistências?’ Foi bom o senhor me perguntar sobre isso. Essa influência pessoal é a nossa ama dinâmica mais poderosa. É o novo elemento que introduzimos na situação e por meio do qual a tornamos fluida. O teor intelectual de nossas explicações não pode fazê-lo, pois o paciente, que partilha de todos os preconceitos do mundo que o cerca, precisa acreditar em nós tão pouco quanto o fazem os nossos críticos científicos. O neurótico põe-se a trabalhar porque tem fé no analista e neste crê porque adquire uma atitude emocional especial para com a figura do analista. Também as crianças só acreditam nas pessoas às quais estão ligadas. Já lhe disse,ver em [[1]] que uso fazemos dessa influência ‘sugestiva’ particularmente grande. Não para suprimir os sintomas - isso distingue o método analítico de outros processos psicoterapêuticos -, mas como uma força motora a fim de induzir o paciente a superar suas resistências. ‘Muito bem, e se isso suceder, tudo então não correrá bem?’ Sim, deve. Mas surge uma complicação inesperada. Talvez constitua a maior surpresa do analista constatar que a relação emocional que o paciente adota para com ele é de natureza bem peculiar. O primeiro médico que tentou uma análise - não fui eu - defrontou-se com esse fenômeno e não soube o que fazer dele, pois essa relação emocional, para expressá-lo de maneira simples, é da natureza do apaixonar-se. Estranho, não é? Especialmente quando se leva em conta que o analista nada faz para provocá-la mas, pelo contrário, antes se mantém à distância do paciente, falando humanamente, e o cerca de certo grau de reserva - quando se aprende, além disso, que essa estranha relação de amor despreza tudo o mais que seja realmente propício e toda variação quanto a atração pessoal, idade, sexo ou classe. Esse amor é de natureza realmente compulsiva. Não que essa característica precise estar ausente do apaixonar-se espontâneo. Como se sabe, o contrário ocorre freqüentemente. Mas na situação analítica surge com inteira regularidade sem haver qualquer explanação racional para isso. Ter-se-ia pensado que a relação do paciente com o analista nada mais exigia senão certa dose de respeito, confiança, gratidão e simpatia humana. Em vez disso, existe esse apaixonar-se, que, ele próprio, dá a impressão de ser um fenômeno patológico.‘Eu teria pensado da mesma maneira que isso seria favorável às suas finalidades analíticas. Se alguém está apaixonado, ele é dócil, e tudo fará no mundo para o bem de outra pessoa.’ Sim. É favorável para começar. Mas quando esse apaixonar-se se tornou mais profundo, toda a sua natureza vem à luz, grande parte da qual é incompatível com a tarefa de análise. O amor do paciente não se satisfaz com ser obediente; torna-se exigente, exige satisfações afetuosas e sensuais, exclusivismo, torna-se ciumento e revela cada vez mais claramente seu lado oposto, sua disposição de tornar-se hostil e vingativo se não puder alcançar seus fins. Ao mesmo tempo, como todo o apaixonar-se, expulsa todo o outro material mental; extingue o interesse pelo tratamento e recuperação - em suma, não pode haver dúvida alguma de que tomou o lugar da neurose e que nosso trabalho teve o resultado de eliminar uma forma de doença por outra. ‘Isso realmente parece um caso perdido! O que pode ser feito quanto a isso? A análise teria de ser abandonada. Mas se, como o senhor diz, a mesma coisa acontece em todos os casos, seja como for seria impossível levar a efeito qualquer análise.’ Começaremos utilizando a situação a fim de aprendermos algo dela. O que aprendermos talvez poderá então ajudar-nos a dominá-la. Não constitui fato extremamente digno de nota que conseguimos transformar toda neurose, qualquer que seja seu conteúdo, numa condição de amor patológico? Nossa convicção de que uma parte da vida erótica que tenha sido anormalmente empregada se acha na base das neuroses deve ser inabalavelmente fortalecida por essa experiência. Com essa descoberta estamos mais uma vez numa posição firme e podemos aventurar-nos a tornar esse próprio amor objeto de análise. E podemos fazer outra observação. O amor analítico não se manifesta em todos os casos tão clara e ruidosamente como tentei descrevê-lo. Por que não? Logo poderemos ver. À medida que as facetas puramente sensuais e hostis do seu amor tentam revelar-se, a oposição do paciente a elas é despertada. Ele luta contra elas e tenta reprimi-las perante nossos próprios olhos. O paciente está repetindo com o analista, sob a forma de apaixonar-se, experiências mentais pelas quais já passou antes; ele transferiu para o analista atitudes mentais que estavam prontas nele e intimamente associadas com sua neurose. Ele também está repetindo diante dos nossos olhos suas antigas ações defensivas; ele gostaria mais de repetir em sua relação com o analista toda a história daquele período esquecido de sua vida. Assim, o que ele nos está mostrando é o núcleo da história íntima de sua vida: ele o está reproduzindo de forma tangível, como se ele realmente estivesse acontecendo, em vez de recordar-se dele. Dessa maneira, o enigma do amortransferencial é solucionado e a análise pode seguir seu caminho - com a ajuda da nova situação que lhe parecera uma grande ameaça. ‘Isso é muito engenhoso. E é tão fácil convencer o paciente de que ele não está apaixonado, mas somente obrigado a levar à cena uma revivescência de uma antiga peça?’ Tudo agora depende disso. E toda a habilidade para lidar com a ‘transferência’ é dedicada a ocasioná-la. Como o senhor está vendo, as exigências da técnica analítica alcançam seu máximo nesse ponto. Aqui se podem cometer os erros mais graves ou os maiores êxitos podem ser registrados. Seria estultície tentar fugir às dificuldades suprimindo-se ou negligenciando-se a transferência; qualquer outra coisa mais que se tivesse feito no tratamento não mereceria o nome de análise. Despachar o paciente logo que as inconveniências da sua neurose de transferência surgem não seria mais sensato, e além disso seria covardia. Seria como se alguém houvesse invocado espíritos e deles fugisse logo que aparecessem. Algumas vezes, é verdade, nada mais é possível. Existem casos nos quais não podemos dominar a transferência desencadeada e a análise tem de ser interrompida; mas devemos pelo menos ter lutado com os espíritos maus com o máximo de nossas forças. Ceder às exigências da transferência, atender aos desejos do paciente no sentido de satisfação afetuosa e sensual, é não só com justiça proibido por considerações morais como também é inteiramente ineficaz como um método técnico para alcançar a finalidade da análise. Um neurótico não pode ser curado por lhe ser permitido reproduzir estereótipos incorretos e inconscientes que nele estão à mão. Se nos empenharmos em conciliações com ele mediante a oferta de satisfações parciais em troca de sua colaboração ulterior na análise, devemos ter cuidado para não incidirmos na situação ridícula do clérigo que devia converter um agente de seguros enfermo. O doente continuou não convertido mas o clérigo despediu-se segurado. A única saída possível da situação de transferência é remontá-la ao passado do paciente, como ele realmente a experimentou ou como ele a imaginou através da atividade realizadora de desejos de sua imaginação. E isto exige do analista muita habilidade, paciência, calma e abnegação própria. ‘E onde o senhor supõe que o neurótico experimentou o protótipo do seu amor transferencial?’ Em sua infância: em geral, em sua relação com um dos seus pais. O senhor deve lembrar-se da importância que tivemos de atribuir a esses primeiros laços emocionais. Assim, aqui o círculo se fecha.‘O senhor finalmente acabou? Estou-me sentindo um pouco perplexo com tudo o que ouvi do senhor. Queira dizer-me apenas mais uma coisa: como e onde se pode aprender o que é necessário para praticar-se a análise?’ No momento existem dois institutos nos quais se ministra instrução sobre psicanálise. O primeiro foi fundado em Berlim pelo Dr. Max Eitingon, que é membro da Sociedade local. O segundo é mantido pela Sociedade Psicanalítica de Viena às suas próprias expensas e com considerável sacrifício. O papel desempenhado pelas autoridades limita-se, no presente, às muitas dificuldades que antepõem ao novo empreendimento. Um terceiro instituto de formação está sendo agora inaugurado em Londres pela Sociedade dessa cidade, sob a direção do Dr. Ernest Jones. Nesses institutos os próprios candidatos são submetidos à análise, recebem instrução teórica mediante conferências sobre todos os assuntos que são importantes para eles, e desfrutam da supervisão de analistas mais velhos e mais experimentados quando lhes é permitido fazer suas primeiras experiências com casos relativamente brandos. Calcula-se um período de cerca de dois anos para essa formação. Mesmo após esse período, naturalmente, o candidato é apenas um principiante e não ainda um mestre. O que ainda se necessita deve ser adquirido pela prática e por uma troca de idéias nas sociedades psicanalíticas nas quais membros jovens e velhos se reúnem. O preparo para a atividade analítica de modo algum é fácil e simples. O trabalho é árduo, grande a responsabilidade. Mas qualquer um que tenha sido analisado, que tenha dominado o que pode ser ensinado em nossos dias sobre a psicologia do inconsciente, que esteja familiarizado com a ciência da vida sexual, que tenha aprendido a delicada técnica da psicanálise, a arte da interpretação, de combater resistências e de lidar com a transferência - qualquer um que tenha realizado tudo isso não é mais um leigo no campo da psicanálise. Ele é capaz de empreender o tratamento de perturbações neuróticas e ainda poderá com o tempo alcançar nesse campo o que quer que se possa exigir dessa forma de terapia. VI ‘O senhor despendeu grande dose de esforço ao mostrar-me o que é a psicanálise e que espécie de conhecimento se faz necessário a fim de praticá-la com certa perspectiva de êxito. Muito bem. Ouvi-lo não pode ter-me causado mal algum. Mas não sei que influência o senhor espera que suas explicações tenham em meu julgamento. Vejo diante de mim um caso que nada tem de inusitado a esse respeito. As neuroses são uma espécie específica de doença e a análise é um método específico de tratá-las - um ramo especializado da medicina. Constitui regra em outros casos, bem como para um médico que tenha escolhido um ramo especial da medicina, não se satisfazer com a educação que é confirmada pelo seu diploma: particularmente se ele pretende fixar-se numa cidade razoavelmente grande, uma cidade que, somente ela, possa oferecer um meio de vida a especialistas. Qualquer um que deseje ser cirurgião tenta trabalhar por alguns anos numa clínica cirúrgica, e de forma semelhante o mesmo se verifica com oculistas, laringologistas, e assim por diante - para não dizer nada de psiquiatras, que talvez jamais sejam capazes de afastar-se de uma instituição ou um sanatório do Estado. E o mesmo acontecerá no caso de psicanalistas: qualquer um que se resolva em favor desse novo ramo especializado da medicina, quando concluídos seus estudos, fará os dois anos de especialização que o senhor mencionou num instituto de formação, se realmente este exigir tanto tempo. Ele também compreenderá depois que lhe será vantajoso manter contato com seus colegas numa sociedade psicanalítica, e tudo correrá bem. Não posso ver onde haja lugar nisso para a questão da análise leiga.’ Um médico que faz o que o senhor prometeu em seu nome será bem acolhido por todos nós. Quatro quintos daqueles que eu reconheço como meus alunos são, de qualquer maneira, médicos. Mas permita-me ressaltar-lhe como as relações de médicos com a análise se desenvolveram realmente e como provavelmente continuarão a desenvolver-se. Os médicos não têm qualquer reivindicação histórica pela posse única da análise. Pelo contrário, até recentemente fizemos face à mesma com tudo aquilo que pudesse prejudicá-la, desde o ridículo mais frívolo à calúnia mais grave. O senhor responderá com razão que isso pertence ao passado e não precisa afetar o futuro. Concordo, mas temo que o futuro será diferente do que o senhor previu. Permita-me dar à palavra ‘charlatão’ o significado que ela deve ter em vez do significado jurídico. De acordo com a lei, charlatão é qualquer um que trata pacientes sem possuir um diploma oficial que prove que ele é medico. Eu preferiria outra definição: charlatão é todo aquele que efetua um tratamento sem possuir o conhecimento e a capacidade necessários para tanto. Firmando-me nessa definição, aventuro-me a afirmar que - não somente nos países europeus - os médicos formam um contingente preponderante de charlatões na análise. Eles com grande freqüência praticam o tratamento analítico sem o terem aprendido e sem compreendê-lo. De nada vale o senhor argumentar que isso é inconsciente e que não pode acreditar que os médicos sejam capazes disso; que afinal de contas um médico sabe que um diploma de médico não é uma carta de corso e que um paciente não é um fora-da-lei; e que se deve sempre admitir que um médico está agindo de boa fé mesmo que talvez esteja laborando em erro. Os fatos ficam; esperaremos que possam ser explicados como o senhor pensa. Tentarei explicarlhe como se torna possível a um médico agir em relação com a psicanálise de uma forma que ele cuidadosamente evitaria em todos os outros campos. A primeira consideração é que na escola de medicina um médico recebe uma formação que é mais ou menos o oposto do que ele necessitaria como preparo para a psicanálise. Sua atenção foi dirigida para fatos objetivamente verificáveis de anatomia, de física e de química, de cuja apreciação correta e influência adequada depende o êxito do tratamento médico. O problema da vida é trazido para seu campo de visão até onde nos tenha sido explicado pelo jogo das forças que também podem ser observadas na natureza inanimada. Seu interesse não é despertado no lado mental dos fenômenos vitais; a medicina não se preocupa com o estudo das funções intelectuais superiores, que se situa na esfera de outra faculdade. Supõe-se que só a psiquiatria lide com as perturbações das funções mentais; mas sabemos de que maneira e com quais finalidades ela o faz. Ela procura os determinantes somáticos das perturbações mentais e os trata como outras causas de doença. A psiquiatria tem razão de agir dessa forma e a educação médica é claramente excelente. Se for descrita como unilateral, deve-se primeiro descobrir o ponto de vista a partir do qual se está transformando essa característica numa censura. Em si toda ciência é unilateral. Tem de ser assim, visto que ela se restringe a assuntos, pontos de vista e métodos específicos. É uma insensatez, na qual eu não tomaria parte, lançar uma ciência contra a outra. Afinal de contas, a física não diminui o valor da química; ela não pode ocupar seu lugar mas, por outro lado, não pode ser substituída por ela. A psicanálise é, por certo, bem particularmente unilateral, por ser a ciência doinconsciente mental. Não devemos, portanto, contestar às ciências médicas seu direito de serem unilaterais. Só encontraremos o ponto de vista que estamos procurando se passarmos da medicina científica para a terapêutica prática. Uma pessoa doente é um organismo complicado. Ela poderá lembrar-nos que até mesmo os fenômenos mentais, que são tão difíceis de apreender, não devem ser apagados do quadro da vida. Os neuróticos, realmente, constituem uma complicação indesejável, um estorvo tanto para a terapêutica como para a jurisprudência e o serviço militar. Mas existem e são uma preocupação particular da medicina. A educação médica, contudo, nada faz, literalmente nada, para compreendê-los e tratá-los. Em vista da estreita ligação entre as coisas que distinguimos como físicas e mentais, podemos antecipar o dia em que os caminhos do conhecimento e, esperemos, da influência serão desbravados, conduzindo da biologia e da química orgânicas para o campo de fenômenos neuróticos. Esse dia ainda parece distante, e no momento essas doenças nos são inacessíveis pela direção da medicina. Seria tolerável se a educação médica apenas deixasse de proporcionar aos médicos orientação no campo das neuroses. Mas ela faz mais do que isso: dá-lhes uma atitude falsa e prejudicial. Os médicos cujo interesse não foi despertado pelos fatores psíquicos da vida estão mais que prontos para formar uma estimativa deficiente dos mesmos e ridicularizá-los como não científicos. Por essa razão, são incapazes de aceitar algo de realmente sério que tenha a ver com eles e não reconhecem as obrigações provenientes deles. Portanto, caem na falta de respeito do leigo pela pesquisa psicológica e tornam sua própria tarefa fácil para eles próprios. - Sem dúvida os neuróticos têm de ser tratados, visto serem pessoas enfermas e procurarem o médico, devendo-se estar sempre pronto para fazer-se experiência com algo novo. Mas por que arcar com o fardo de uma preparação tediosa? Nós nos arranjaremos muito bem; quem pode dizer se o que ensinam nos institutos analíticos é de alguma valia? - Quanto menos tais médicos compreenderem do assunto, mais aventurosos se tornam. Só um homem que realmente sabe é modesto, pois ele sabe quão insuficiente é o seu conhecimento. A comparação que o senhor apresentou para tranqüilizar-me, entre a especialização na análise e em outros ramos da medicina, não é, então, aplicável. Para a cirurgia, a oftalmologia, e assim por diante, a própria escola de medicina oferece uma oportunidade de educação ulterior. Os institutos analíticos são em pequeno número, recentes e destituídos de autoridade. As escolas de medicina não os reconheceram e deles não tomam qualquer conhecimento. O jovem médico, que teve de confiar tanto em seus mestresque pouca ocasião teve de educar seu julgamento, prazerosamente aproveita o momento propício para desempenhar o papel de crítico por exceção num campo no qual ainda não há qualquer autoridade reconhecida. Existem também outras coisas que favorecem seu apreciamento como um charlatão analítico. Se ele tentasse efetuar operações na vista sem suficiente preparo, o fracasso de suas extrações de cataratas e iridectomias e a ausência de pacientes logo poriam termo à sua arriscada empresa. A prática de análise é relativamente segura para ele. O público é estragado pelo resultado médio bem-sucedido de operações na vista e espera do cirurgião a cura. Mas se um ‘especialista em nervos’ deixar de restaurar seus pacientes, ninguém fica surpreendido. As pessoas não foram inutilizadas por êxitos na terapia das neuroses; o especialista em nervos pelo menos ‘muito se preocupou com elas’. Realmente, não há muito que possa ser feito; a natureza deve ajudar, ou o tempo. Com as mulheres temos primeiro a menstruação, depois o casamento e posteriormente a menopausa. Finalmente a morte constitui uma verdadeira ajuda. Além disso, o que o analista médico tem feito com seu paciente neurótico é tão insignificante que nenhuma censura lhe pode ser feita. Ele não tem feito uso de quaisquer instrumentos ou medicamentos; ele tem apenas conversado com ele e tentado persuadi-lo ou dissuadi-lo de alguma coisa. Certamente isto não pode causar mal algum, especialmente se ele evita abordar assuntos aflitivos ou inquietantes. O analista médico, que tem evitado qualquer ensinamento rigoroso, sem dúvida não terá omitido a tentativa de aperfeiçoar a análise, de extrair-lhe as presas venenosas e de torná-la agradável para o paciente. E será prudente que ele pare por aí, pois se ele realmente se aventurar a invocar resistências e depois não souber fazer-lhes face, poderá realmente tornar-se impopular. A honestidade obriga-me a admitir que a atividade de um analista não formado causa menos mal aos seus pacientes do que a de um cirurgião inábil. O possível dano limita-se ao fato de o paciente ter sido levado a uma despesa inútil e de ter suas possibilidades de recuperação eliminadas ou diminuídas. Além disso, a reputação da terapia analítica foi reduzida. Tudo isso é muito indesejável, mas não tem comparação alguma com os perigos que advêm do bisturi de um charlatão cirúrgico. Segundo me parece, não se devem temer agravamentos severos ou permanentes de uma condição patológica, mesmo com um emprego não especializado da análise. Em confronto com os traumas da vida que provocaram a doença, um pouco de imperícia por parte do médico não tem qualquer importância. Simplesmente ocorre que a tentativa inadequada de curar não causou bem algum ao paciente.‘Ouvi seu relato sobre o charlatão médico na análise sem interrompê-lo, embora formasse a impressão de que o senhor se acha dominado por uma hostilidade contra a profissão médica, para cuja explicação histórica o senhor mesmo apontou o caminho. Mas admitirei uma única coisa: se as análises têm de ser levadas a efeito, isto deve ser efetuado por pessoas que foram formadas inteiramente para esse mister. E o senhor não pensa que com o tempo os médicos que se dediquem à análise tudo farão para obter essa formação?’ Temo que não. Enquanto a atitude da escola médica em relação ao instituto de formação analítica continuar inalterada, os médicos acharão a tentação de tornarem as coisas mais fáceis para eles próprios grande demais. ‘Mas parece que o senhor fica sistematicamente a fugir de qualquer pronunciamento direto sobre a questão da análise leiga. O que penso agora é que, em vista de ser impossível manter uma observação dos médicos que querem analisar, o senhor está propondo, como vingança, por assim dizer, puni-los, privando-os do monopólio da análise e abrindo de par em par as portas dessa atividade médica também a leigos.’ Não posso dizer se o senhor adivinhou meus motivos de maneira correta. Talvez eu possa mais adiante apresentar-lhe provas de uma atitude menos parcial. Mas ponho ênfase na exigência de quem ninguém deve praticar a análise se não tiver adquirido o direito de fazê-lo através de uma formação específica. Se essa pessoa é ou não um médico, a mim me parece sem importância. ‘Então que propostas definitivas tem a fazer?’ Ainda não fui até esse ponto e não poderei dizer se chegarei lá. Gostaria de examinar outra questão com o senhor, e antes de tudo aflorar um ponto especial. Diz-se que as autoridades, por instigação da profissão médica, desejam proibir inteiramente a prática da análise por leigos. Tal proibição também afetaria os membros não-médicos da Sociedade Psicanalítica, que têm desfrutado de excelente formação e se aperfeiçoado grandemente pela prática. Se a proibição fosse efetivada, nós nos encontraríamos numa posição na qual grande número de pessoas ficariam impedidas de executar uma atividade que podemos com segurança nos sentir convictos de que podem efetuar muito bem, ao passo que a mesma atividade está franqueada a outras pessoas para as quais não há qualquer garantia semelhante. Essa não é precisamente a espécie de resultado ao qual a legislação deva conduzir. Contudo, esse problema especial não é muito importante nem muito difícil de solucionar. Diz respeito apenas a um pequeno número de pessoas, que não pode ser seriamente prejudicado. Elas provavelmente emigrarão para aAlemanha, onde nenhuma legislação as impedirá de encontrar reconhecimento pela sua proficiência. Se se desejar poupá-las disto e abrandar a severidade da lei, isto facilmente pode ser feito com base em alguns precedentes bem conhecidos. Sob a monarquia austríaca com freqüência acontecia ser dada permissão a notórios charlatães, ad personam [pessoalmente], para levarem a efeito atividades médicas em certos campos, porque as pessoas estavam convencidas da verdadeira capacidade deles. Os interessados eram na sua maior parte curandeiros camponeses, e sua recomendação parece ter sido feita regularmente por um dos arquiduques que outrora eram tão numerosos; mas deve ser possível que isso também seja feito no caso de citadinos e com base em uma garantia diferente e meramente técnica. Essa proibição teria efeitos mais importantes sobre o instituto de formação analítica de Viena, que daí por diante seria incapaz de aceitar quaisquer candidatos, para formação, de círculos não médicos. Assim, mais uma vez em nosso país uma linha de atividade intelectual seria suprimida, a qual se permite que se desenvolva livremente em outras partes. Sou a última pessoa a reivindicar qualquer competência para julgar leis e regulamentos. Mas posso compreender que dar ênfase à nossa lei sobre charlatanismo não leva em direção à abordagem das condições na Alemanha a que tanto se visa hoje, e que a aplicação dessa lei ao caso da psicanálise traz em si algo de anacrônico, visto que na época de sua promulgação ainda não havia essa coisa que se chama análise e que a natureza peculiar das doenças neuróticas ainda não era reconhecida. Agora chego a uma questão cujo exame me parece mais importante. A prática da psicanálise é um assunto que deve, em geral, ficar sujeito à interferência oficial, ou seria mais conveniente deixá-lo seguir seu desenvolvimento natural? Certamente não chegarei a qualquer decisão sobre esse ponto aqui e agora, mas tomarei a liberdade de pôr o problema diante do senhor para sua consideração. Em nosso país desde antigamente um verdadeiro furor prohibendi [paixão por proibições] tem constituído a regra, uma tendência a manter as pessoas sob tutela, a interferir e a proibir, o que, como todos sabemos, não tem dado frutos particularmente bons. Em nossa nova Áustria republicana, parece, as coisas ainda não mudaram muito. Imagino que o senhor terá algo de importante a dizer para a solução do caso da psicanálise ora em consideração por nós; não sei se o senhor tem o desejo ou a influência com que oporse a essas tendências burocráticas. Seja como for, não lhe pouparei meus pensamentos desautorizados sobre o assunto. Em minha opinião, uma pletora de regularmentos e proibições prejudica a autoridade da lei. Pode-se observar que onde há somente poucas proibições elas são cuidadosamente observadas, mas onde alguém é acompanhado de proibições a cada passo, esse alguém se sente realmente tentado a desprezá-las. Além disso, não significa que alguém seja realmente um anarquista se estiver preparado para compreender que as leis e os regulamentos não podem, a partir de sua origem, alegar possuir o atributo de serem sagrados e não infringíveis, que são muitas vezes inadequadamente elaborados e ofendem nosso sentimento de justiça, ou o farão após certo tempo, e que, em vista da lerdeza das autoridades, amiúde não existe outro meio de corrigir tais leis impróprias senão violando-as ousadamente. Além disso, se se deseja manter o respeito pelas leis e regulamentos é aconselhável nada promulgar onde não pode facilmente ser mantida uma vigilância no sentido de serem obedecidos ou transgredidos. Grande parte do que citei acima sobre a prática da análise por médicos poderia ser repetido aqui no tocante à análise autêntica por leigos que a lei vem procurando suprimir. O curso de uma análise é muito modesto, não empregando nem medicamentos nem instrumentos, e consiste apenas em conversa e numa troca de informações; não será fácil provar que um leigo esteja praticando ‘análise’, se ele afirmar que está simplesmente dando estímulo e explicações e tentando estabelecer uma influência humana saudável sobre pessoas que estão à procura de assistência mental. Por certo não seria possível proibir isso meramente porque os médicos algumas vezes fazem a mesma coisa. Nos países de língua inglesa as práticas da Ciência Cristã tornaram-se muito difundidas: uma espécie de negação dialética dos males da vida, baseada num apelo às doutrinas da religião cristã. Não hesito em afirmar que esse procedimento representa uma aberração lamentável do espírito humano; mas quem nos Estados Unidos ou na Inglaterra sonharia em proibi-lo e torná-lo punível? As autoridades estão assim tão certas do caminho correto para a salvação que elas se aventuram a impedir que cada um tente ‘ser salvo segundo a sua própria maneira’. E admitindo-se que muitas pessoas, se entregues a si próprias, correm para o perigo e fracassam, não seria melhor que as autoridades marcassem cuidadosamente os limites das regiões que devem ser consideradas como proibidas, e quanto ao restante, até onde possível, permitir que os seres humanos sejam educados pela experiência e influência mútua? A psicanálise é algo tão novo no mundo, a massa da humanidade é tão pouco instruída sobre ela, a atitude da ciência oficial paracom ela é ainda tão vacilante, que me parece precipitado intervir em seu desenvolvimento com regulamentos legislativos. Deixemos que os próprios pacientes descubram que lhes é prejudicial procurar assistência mental junto a pessoas que não aprenderam a proporcioná-la. Se explicarmos isto a eles e os advertirmos contra tal fato, teremos poupado a nós mesmos a necessidade de proibi-lo. Nas principais estradas da Itália as torres de cabos de alta-tensão trazem a inscrição sucinta e impressionante: ‘Chi tocca, muore [Quem tocar, morre].’ Isso está perfeitamente calculado para regular o comportamento de transeuntes em relação a quaisquer fios que estejam pendentes. Os avisos alemães correspondentes exibem uma verbosidade desnecessária e ofensiva: ‘Das Berühren der Leitungsdrähte ist, weil lebensgefährlich, strengstens verboten [Tocar as linhas de transmissão é, por ser perigoso à vida, rigorosamente proibido].’ Qualquer um que tenha amor à vida fará a proibição para si mesmo; e qualquer um que deseja matar-se dessa maneira não pedirá permissão. ‘Mas há casos que podem ser citados como precedentes legais contra a permissão da análise leiga; quero dizer, a proibição de leigos praticarem o hipnotismo e a proibição recentemente baixada contra a realização de sessões espíritas ou a fundação de sociedades espíritas.’ Não posso dizer que seja admirador dessas medidas. A segunda é uma invasão indisfarçada de supervisão policial em detrimento da liberdade intelectual. Estou acima da suspeição de ter muita crença naquilo que se conhece como ‘fenômenos ocultos’ ou de sentir qualquer desejo de que sejam reconhecidos. Mas proibições como essas não sufocarão o interesse das pessoas por esse mundo supostamente misterioso. Poderão, pelo contrário, ter causado grande dano e ter fechado a porta a uma curiosidade imparcial que poderia haver chegado a um julgamento que nos teria libertado dessas possibilidades vexatórias. Mais uma vez, contudo, isso somente se aplica à Áustria. Em outros países, pesquisas ‘parapsíquicas’ não encontram quaisquer obstáculos legais. O caso do hipnotismo é algo diferente do da análise. O hipnotismo é a evocação de um estado mental anormal e é utilizado por leigos, nos dias que correm, somente com a finalidade de espetáculos públicos. Se a terapia hipnótica tivesse mantido seus inícios muito promissores, ter-se-ia chegado a uma posição semelhante à da análise. E incidentalmente a história do hipnotismo oferece um precedente para o da análise em outra direção. Quando eu era um jovem conferencista de neuropatologia, os médicos invectivavam ardorosamente o hipnotismo, declaravam que ele era um logro, um logro do demônio e um procedimento altamente perigoso. Hoje eles monopolizaram esse mesmo hipnotismo e dele fazem uso, sem hesitações, como um método de exame; para alguns especialistas de nervos ele ainda constitui seu principal instrumento terapêutico. Mas já lhe disse que não tenho qualquer intenção de fazer propostas que se baseiem na decisão quanto a se o controle legal ou o deixar que as coisas sigam o seu curso deva ser preferido em matéria de análise. Sei que isto é uma questão de princípio, sendo que sobre a resposta a ela as inclinações das pessoas de autoridade terão mais influência do que argumentos. Já estabeleci o que me parece falar em favor de uma política de laissez faire. Se a outra decisão for adotada - para uma política de intervenção ativa - então parece que em qualquer caso uma medida imperfeita e injusta de proibir implacavelmente a análise por não-médicos será um resultado insuficiente. Algo mais terá de ser considerado nesse caso: terão de ser lançadas condições sob as quais a prática da análise será permitida a todos aqueles que procurem dela fazer uso, terá de ser estabelecida uma autoridade da qual se possa aprender o que é a análise e que espécie de preparo se faz necessário para isso, e as possibilidades de instrução em análise terão de ser estimuladas. Devemos portanto, ou deixar as coisas em paz ou estabelecer ordem e clareza; não devemos precipitar-nos numa situação complicada com uma única proibição isolada proveniente mecanicamente de um regulamento que se tornou inadequado. VII ‘Sim, mas os médicos! os médicos! Não posso induzi-lo a penetrar no verdadeiro tema de nossas conversações. O senhor ainda continua a esquivar-se de mim. Trata-se de se devemos ou não dar aos médicos o direito de praticarem a análise - e isto em nada me afeta, depois de haverem preenchido certas condições. A maioria dos médicos não consiste em charlatães em análise como o senhor os representou. O senhor mesmo afirma que a grande maioria dos seus alunos e seguidores são médicos. Chegou ao meu conhecimento que eles estão longe de partilhar seu ponto de vista sobre a questão da análise leiga. Sem dúvida posso presumir que seu alunos concordam com suas exigências no sentido de suficiente preparo e assim por diante; e contudo esses alunos julgam coerente vedar a prática da análise a leigos. É isso mesmo? e em caso afirmativo, como o senhor o explica? Estou vendo que o senhor está bem informado. Sim, de fato. Nem todos, é verdade, mas boa proporção dos meus colegas não concorda comigo em relação a esse ponto, sendo favoráveis a que os médicos tenham o direito exclusivo ao tratamento analítico de neuróticos. Isto lhe mostrará que divergências de opinião são permitidas mesmo em nosso campo. O partido que eu tomo é bem conhecido e a contradição sobre o assunto da análise leiga não interfere em nossa boa compreensão. Como posso explicar-lhe a atitude desses meus alunos? Não sei ao certo; penso que deve ser a força do sentimento profissional. O curso do desenvolvimento deles tem sido diferente do meu, eles ainda não se sentem à vontade em seu isolamento dos colegas, gostariam de ser aceitos pela ‘profissão’ como tendo plenos direitos, e estão preparados, em troca, por essa tolerância, para fazer um sacrifício num ponto cuja importância vital não lhes é evidente. Talvez possa ser de outra forma; imputar motivos de concorrência a eles seria não somente acusá-los de sentimentos baixos, mas também atribuir-lhes uma estranha miopia. Estão sempre prontos a introduzir outros médicos na análise, e de um ponto de vista material deve ser-lhes indiferente ter de partilhar os pacientes disponíveis com colegas médicos ou com leigos. Mas algo diferente provavelmente desempenha seu papel. Esses meus alunos podem ser influenciados por certos fatores que garantem a um médico indubitável vantagem sobre um leigo na prática analítica. ‘Garantir-lhe uma vantagem? Aí está. Então finalmente o senhor está admitindo a vantagem? Isto deve resolver a questão.’Não me é difícil admiti-lo, o que poderá revelar-lhe que não tenho assim um preconceito tão arraigado como o senhor supõe. Deixei de mencionar essas coisas porque sua discussão mais uma vez tornaria necessárias considerações teóricas. ‘Em que está pensando agora?’ Primeiramente há a questão do diagnóstico. Quando se submete à análise um paciente que sofre do que se descreve como perturbações nervosas, deseja-se de antemão estar certo - até agora, naturalmente, conforme a certeza possa ser alcançada - de que ele se presta a essa espécie de tratamento, de que se pode ajudá-lo por esse método. Isso, contudo, é o caso apenas se ele realmente tiver uma neurose. ‘Eu teria pensado que isso seria reconhecível a partir dos fenômenos, dos sintomas dos quais ele se queixa.’ É aí que surge uma nova complicação. Ela nem sempre pode ser reconhecida como uma certeza absoluta. O paciente poderá exibir o quadro externo de uma neurose e, contudo, poderá ser algo mais - o início de uma doença mental incurável ou a fase preliminar de um processo destrutivo no cérebro. A distinção - o diagnóstico diferencial - nem sempre é fácil e nem pode ser feita imediatamente em cada fase. A responsabilidade de tal decisão só pode, naturalmente, ser empreendida por um médico. Como eu disse, nem sempre é fácil para ele. A doença pode ter uma aparência inocente por considerável tempo, até que por fim, afinal de contas, apresenta o seu mau caráter. Na realidade, constitui um dos temores comuns dos neuróticos que eles venham a tornar-se insanos. Contudo, se um médico se tiver enganado por algum tempo com um caso dessa espécie ou tiver estado incerto a respeito dele, nenhum mal foi provocado e nada de desnecessário foi feito. Nem realmente o tratamento analítico desse caso teria causado qualquer dano, embora tivesse sido exposto como um desperdício desnecessário. E além disso certamente haveria muitas pessoas que culpariam a análise pelo infeliz resultado. Injustamente, sem dúvida, mas tais ocasiões devem ser evitadas. ‘Mas isso parece um caso perdido. Atinge as raízes de tudo o que o senhor me disse sobre a natureza e a origem de uma neurose.’ De modo algum. Simplesmente conforma mais uma vez o fato de que os neuróticos são uma praga e um estorvo para todos os interessados - inclusive os analistas. Mas talvez eu elucide sua confusão se enunciar minha nova informação em termos mais corretos. Provavelmente seria mais correto dizer dos casos com os quais estamos agora lidando que eles desenvolveram realmente uma neurose, não sendo ela, no entanto, psicogênica mas somatogênica - que suas causas não são mentais, mas físicas. O senhor compreende?‘Sem dúvida, compreendo. Mas não posso harmonizar isso com a outra faceta, a psicológica.’ Isso pode ser resolvido, contudo, se se tiver em mente as complexidades da substância viva. Em que achamos a essência de uma neurose? No fato de que o ego, a organização superior do aparelho mental (elevada através da influência do mundo externo), não é capaz de cumprir com sua função de mediador entre o id e a realidade, de que na sua debilidade ela recua de certas partes instituais do id e, a fim de compensar isto, tem de aturar as conseqüências de sua renúncia sob a forma de restrições, sintomas e formações reativas malsucedidas. Uma debilidade do ego dessa espécie é encontrada em todos nós na infância e eis por que as experiências dos primeiros anos da infância são de importância tão grande para a vida ulterior. Sob o fardo extraordinário desse período da infância - temos em poucos anos de abarcar a enorme distância de desenvolvimento entre os homens primitivos da idade da pedra e os participantes da civilização contemporânea, e, ao mesmo tempo e em particular, temos de desviar os impulsos instituais do período sexual inicial -, sob esse fardo, portanto, nosso ego procura refúgio na repressão e fica exposto a uma neurose da infância, cujo precipitado ele carrega consigo até a maturidade como uma disposição a uma doença nervosa ulterior. Tudo agora depende de como o organismo em crescimento é tratado pelo destino. Se a vida tornar-se muito árdua, se o abismo entre reivindicações instituais e as exigências da realidade tornar-se grande demais, o ego poderá falhar em seus esforços para reconciliar os dois, e mais prontamente, quanto mais for inibido pela disposição trazida por ele na infância. O processo de repressão é então repetido, os instintos separam-se violentamente do domínio do ego, encontram suas satisfações substitutivas pelos caminhos da regressão e o pobre ego tornou-se desamparadamente neurótico. Apeguemo-nos firmemente apenas a isto: o ponto nodal e o pivô de toda a situação é a força relativa da organização do ego. Acharemos então fácil concluir nosso levantamento etiológico. Como o que pode ser denominado de causas normais da doença neurótica, já conhecemos a debilidade do ego infantil, a tarefa de lidar com os primeiros impulsos sexuais e os efeitos das experiências mais ou menos fortuitas da infância. Não é possível, contudo, que ainda outros fatores desempenhem seu papel, proveniente da época anterior ao início da vida da criança? Por exemplo, uma força e insubordinação inatas da vida instintual no id, que desde o começo atribuem ao ego tarefas por demais árduas para ele? Ou uma debilidade de desenvolvimento especial do ego devida a razões desconhecidas? Tais fatores devem, naturalmente,adquirir uma importância etiológica, em alguns casos transcendente. Invariavelmente temos de lidar com a força instintual do id; se ela se tiver desenvolvido de forma excessiva, as perspectivas de nossa terapia são precárias. Ainda sabemos muito pouco a respeito das causas da uma inibição de desenvolvimento do ego. Esses então seriam os casos de neurose com uma base essencialmente constitucional. Sem alguns de tais fatores favoráveis constitucionais e congênitos uma neurose, sem dúvida, dificilmente pode ocorrer. Mas se a relativa debilidade do ego for o fator decisivo para a gênese de uma neurose, também deve ser possível que uma doença física ulterior produza uma neurose, contanto que ela possa acarretar um enfraquecimento do ego. E isto, mais uma vez, é verificado muito amiúde. Uma perturbação física dessa espécie pode afetar a vida instintual no id e aumentar a força dos instintos além do limite até o qual o ego é capaz de lidar com eles. O modelo normal de tais processos talvez seja a alteração, nas mulheres, causada pelos distúrbios da menstruação e da menopausa. Ou ainda, uma doença somática geral, na realidade uma doença orgânica do órgão central nervoso, poderá atacar as condições nutritivas do aparelho mental e compeli-lo a reduzir seu funcionamento e paralisar suas operações mais delicadas, uma das quais é a manutenção da organização do ego. Em todos esses casos surge aproximadamente o mesmo quadro da neurose; esta tem sempre o mesmo mecanismo psicológico, mas, como vemos, uma etiologia mais variada e muitas vezes muito complexa. ‘O senhor agora está me agradando mais. Finalmente começou a falar como médico. E agora espero que o senhor admita que um assunto tão complicado como uma neurose só possa ser manejado por um médico.’ Temo que o senhor esteja indo além do alvo. O que vimos examinando era um ponto de patologia, aquilo em que estamos interessados na análise é um procedimento terapêutico. Admito - não, insisto - que em todo caso que esteja em consideração para análise o diagnóstico será estabelecido em primeiro lugar pelo médico. A maior parte das neuroses que nos ocupam é felizmente de natureza psicogênica e não dá motivo para suspeitas patológicas. Uma vez que o médico tenha firmado isto, pode confiantemente passar o tratamento a um analista leigo. Em nossas sociedades analíticas as coisas sempre foram arranjadas dessa maneira. Graças ao estreito contato entre os membros médicos e nãomédicos, erros tais que pudessem ser temidos foram inteiramente evitados. Há uma contingência ulterior, aliás, na qual o analista tem de pedir a ajuda do médico. No curso de um tratamento analítico, sintomas na maior parte das vezes físicos - poderão surgir, havendodúvida se devem ser considerados como pertencentes à neurose ou se devem ser relacionados como uma doença orgânica independente que interveio. A decisão sobre esse ponto deve, mais uma vez, ser deixada ao médico. ‘De modo que mesmo durante o curso de uma análise um analista leigo não pode passar sem um médico. Um novo argumento contra sua aptidão.’ Não. Nenhum argumento contra analistas leigos pode ser arquitetado a partir dessa possibilidade, pois em tais circunstâncias um analista médico não agiria de maneira diferente. ‘Não compreendo isso.’ Há uma regra técnica de que um analista, se surgirem sintomas dúbios como esse durante o tratamento, não os submeterá ao seu próprio julgamento mas os encaminhará a um médico que esteja ligado à análise - um médico consultor, talvez -, mesmo se o próprio analista for médico e até mesmo bem versado em seus conhecimentos médicos. ‘E por que se deve elaborar uma regra que me parece tão desnecessária?’ Não é desnecessária; de fato, existem várias razões para ela. Em primeiro lugar, não constitui um bom plano que uma combinação de tratamento orgânico e psíquico seja levada a efeito pela mesma pessoa. Em segundo lugar, a relação na transferência pode tornar desaconselhável ao analista examinar o paciente fisicamente. E em terceiro, o analista tem todos os motivos para duvidar se ele está desprovido de preconceitos, visto seus interesses estarem tão intensamente dirigidos para os fatores psíquicos. ‘Compreendo agora sua atitude para com a análise leiga de maneira bem clara. O senhor deliberou que deve haver analistas leigos. E visto que não pode contestar a impropriedade deles quanto à sua tarefa, está reunindo tudo o que pode para desculpá-los e tornar-lhes a vida mais fácil. Mas não posso nem de longe compreender por que deva haver analistas leigos, que, afinal de contas, podem apenas ser terapeutas de segunda classe. Estou pronto, no que me toca, a abrir uma exceção no caso dos poucos leigos que já foram formados como analistas; mas outras não devem ser criadas e os institutos de formação devem ser submetidos à obrigação de não aceitarem mais leigos para formação.’ Estou de acordo com o senhor, se puder ser demonstrado que todos os interesses em jogo serão atendidos por essa restrição. O senhor há de concordar que esses interesses são de três espécies: o dos pacientes, o dos médicos e - último em ordem mas não em importância - o da ciência, querealmente abrange os interesses de todos os futuros pacientes. Vamos examinar esses três pontos juntos? Para o paciente, portanto, é uma questão de indiferença se o analista for um médico ou não, contanto somente que o perigo de sua condição ser mal compreendida fique excluído pelo relatório médico necessário antes do início do tratamento e em algumas ocasiões possíveis durante o curso do mesmo. Para ele é incomparavelmente mais importante que o analista deva possuir qualidades pessoais que o tornem digno de confiança, e que ele deva ter adquirido o conhecimento e a compreensão, bem como a experiência, que, somente estes, possam tornar-lhe possível cumprir sua tarefa. Poder-se-ia pensar que a autoridade de um analista seria prejudicada se o paciente soubesse que ele não é médico e que não pode, em certas situações, passar sem o apoio de um médico. Naturalmente jamais deixamos de informar os pacientes sobre a qualificação de seu analista, e temos sido capazes de nos convencer de que os preconceitos profissionais não encontram eco neles, estando prontos para aceitar uma cura de qualquer direção da qual provenha - o que, incidentalmente, a profissão médica de há muito descobriu, para sua profunda mortificação. Nem os analistas leigos que praticam a análise em nossos dias são um bando casual de rebotalho, mas pessoas de educação acadêmica, doutores em filosofia, educadores, juntamente com algumas mulheres de grande experiência na vida e marcante personalidade. A análise, à qual todos os candidatos num instituto de formação analítica têm de submeter-se, é ao mesmo tempo o melhor meio de formar um opinião sobre sua aptidão pessoal para o desempenho de sua exigente profissão. Agora quanto ao interesse dos médicos. Não julgo que esse interesse possa lucrar com a incorporação da psicanálise à medicina. O currículo médico já dura cinco anos e os exames finais avançam até o sexto ano. De poucos em poucos anos são feitas novas exigências ao aluno, sem o cumprimento das quais o cadebal deste para o futuro teria que ser declarado insuficiente. O acesso à profissão médica é muito difícil e a clínica não é nem muito satisfatória nem muito remuneradora. Se alguém apoiar a exigência, por certo plenamente justificada, de que os médicos devem também familiarizar-se com a parte mental da doença, e se por causa disto se ampliar a instrução médica a ponto de abranger certo preparo para a análise, isto implica ulterior sobrecarga do currículo e um correspondente prolongamento do período letivo. Não sei se os médicos ficarão satisfeitos com essa conseqüência de sua reivindicação em relação à análise. Mas dificilmente se pode fugir a esse fato. E isto num período em que as condições da existência material se deterioram de tal forma para as classes das quais os médicos são recrutados,um período no qual a geração mais jovem se vê compelida a provar suas necessidades por si mesma com a maior brevidade possível na vida. Talvez, no entanto, o senhor escolha não sobrecarregar os estudos médicos com o preparo para a prática analítica, mas julgue mais conveniente que os futuros analistas sigam sua formação necessária somente após a conclusão dos seus estudos médicos. Talvez diga que a perda de tempo que isso implica não seja de importância prática alguma, visto que, afinal de contas, um jovem com menos de trinta anos de idade jamais gozará da confiança dos seus pacientes, a qual é um sine qua non para proporcionar assistência mental. Sem dúvida talvez se dissesse como resposta que um médico recémsaído da faculdade e que se dedique a doenças físicas não pode esperar ser tratado pelos seus pacientes também com grande respeito e que um jovem analista poderia muito bem preencher seu tempo trabalhando numa clínica psicanalítica para pacientes externos sob a supervisão de profissionais experimentados. Mas o que me parece mais importante é que com essa sua proposta o senhor está dando apoio a um desperdício de energia para o qual, nestes tempos difíceis, realmente não posso encontrar qualquer justificativa econômica. O tratamento analítico, é verdade, cruza o campo da educação médica, mas um não inclui o outro. Se - o que pode parecer fantástico hoje em dia - alguém tivesse de fundar uma faculdade de psicanálise, nesta teria de ser ensinado muito do que já é lecionado pela escola de medicina: juntamente com a psicologia profunda, que continua sempre como a principal disciplina, haveria uma introdução à biologia, o máximo possível de ciência da vida sexual e familiarização com a sintomatologia da psiquiatria. Por outro lado, a instrução analítica abrangeria ramos de conhecimento distantes da medicina e que o médico não encontra em sua clínica: a história da civilização, a mitologia, a psicologia da religião e a ciência da literatura. A menos que esteja bem familiarizado nessas matérias, um analista nada pode fazer de uma grande massa de seu material. À guisa de compensação, a grande massa do que é ensinado nas escolas de medicina não lhe é de utilidade alguma para suas finalidades. Um conhecimento de anatomia dos ossos tarsianos, da constituição dos carboidratos, do curso dos nervos cranianos, uma compreensão de tudo o que a medicina trouxe à luz sobre as causas excitantes bacilares da doença e os meios de combatê-las, sobre reações do soro e sobre neoplasmas - todo esse conhecimento, que é indubitavelmente do mais alto valor em si, não obstante não lhe é de nenhuma conseqüência; não lhe interessa; nem o ajuda diretamente a compreender uma neurose e a curá-la, nem contribuir para um aguçamento daquelas faculdades intelectuais às quaissua ocupação faz as maiores exigências. Não se pode objetar que o caso é o mesmo quando um médico segue algum outro ramo especial de medicina - a odontologia, por exemplo: nesse caso, também, ele poderá não precisar de parte daquilo em que precisa ser aprovado nos exames e muito terá que aprender além disso, em relação ao que sua escolaridade não o preparou. Mas os dois casos não podem ser colocados no mesmo pé de igualdade. Na odontologia os grandes princípios da patologia - as teorias da inflamação, da supuração, da necrose e do metabolismo dos órgãos corporais - ainda conservam sua importância. Mas a experiência de um analista está em outro mundo, com outros fenômenos e outras leis. Por mais que a filosofia possa ignorar o abismo entre o físico e o mental, ele ainda existe para a nossa experiência imediata e ainda mais para os nossos empreendimentos práticos. É injusto e inconveniente tentar compelir uma pessoa que deseja libertar alguém do tormento de uma fobia ou de uma obsessão a seguir a estrada indireta do currículo médico. Nem esse esforço terá qualquer êxito, a menos que resulte inteiramente na supressão da análise. Imagine uma paisagem na qual dois caminhos levam ao topo de uma colina de onde se descortina um panorama - um curto e reto, o outro longo, sinuoso e tortuoso. Tenta-se impedir o caminho curto mediante um aviso proibitório, talvez porque passa por alguns canteiros de flores que se deseja proteger. A única possibilidade que se tem de a proibição ser respeitada é se o caminho curto for íngreme e difícil, enquanto o mais longo for uma subida suave. Se, contudo, esse não for o caso, pode-se imaginar o uso da proibição e o destino dos canteiros! Temo que se conseguirá compelir os leigos a estudarem medicina tão pouco quanto serei capaz de induzir os médicos a aprenderem análise, pois o senhor conhece a natureza humana tão bem quanto eu. ‘Se o senhor tiver razão, de que o tratamento analítico não pode ser efetuado sem formação especial, mas que o currículo médico não pode suportar ainda mais o fardo de um preparo para ele, e que os conhecimentos médicos são, em grande medida, desnecessários para um analista, como chegaremos ao médico ideal que esteja à altura de todas as tarefas de sua vocação?’ Não posso prever a maneira de sair dessas dificuldades, nem é da minha alçada ressaltá-la. Compreendo apenas duas coisas - primeiro que a análise constitui um estorvo para o senhor e que a melhor coisa seria que ela não existisse, embora os neuróticos, sem dúvida, constituam também um estorvo; e em segundo lugar, que os interesses de todos os que se preocupam com esse assunto seriam por enquanto atendidos se os médicos pudessem resolver tolerar uma classe de terapeutas que os aliviariam do tédio de tratar asneuroses psicogênicas enormemente comuns, enquanto ficariam em permanente contato com eles em benefício dos pacientes. ‘Essa é a última palavra sobre o assunto? ou tem algo mais a dizer?’ Sim, realmente. Eu quis apresentar um terceiro interesse - o da ciência. O que tenho a dizer sobre isso pouco lhe interessará; mas, por comparação, é de toda a importância para mim. Pois não consideramos absolutamente conveniente para uma psicanálise ser devorada pela medicina e encontrar seu último lugar de repouso num livro de texto de psiquiatria sob a epígrafe ‘Métodos de Tratamento’, juntamente com procedimentos tais como sugestão hipnótica, auto-sugestão e persuasão, que, nascidas da nossa ignorância, têm de agradecer a indolência e a covardia da humanidade por seus efeitos efêmeros. Merece melhor destino e, pode-se esperar, o terá. Como uma ‘psicologia profunda’, uma teoria do inconsciente mental, pode tornar-se indispensável a todas as ciências que se interessam pela evolução da civilização humana e suas principais instituições como a arte, a religião e a ordem social. Em minha opinião ela já proporcionou a essas ciências considerável ajuda na solução de seus problemas. Mas essas são apenas pequenas contribuições em confronto com o que poderia ser alcançado se historiadores da civilização, psicólogos da religião, filósofos e assim por diante concordassem em manejar o novo instrumento de pesquisa que está a seu serviço. O emprego da análise para o tratamento das neuroses é somente uma das suas aplicações; o futuro talvez demonstre que não é o mais importante. Seja como for, seria errôneo sacrificar todas as outras aplicações a essa única, só porque diz respeito ao círculo de interesses médicos. Pois aqui uma perspectiva ulterior estende-se adiante, a qual não pode ser invadida com impunidade. Se os representantes das várias ciências mentais devem estudar a psicanálise a fim de ser capazes de aplicar seus métodos e ângulos de abordagem ao seu próprio material, não lhes será suficiente parar de repente nos achados que são formulados na literatura analítica. Eles devem aprender a análise da única maneira possível - submetendo-se eles próprios a uma análise. Os neuróticos que necessitam de análise contariam assim com a companhia de uma segunda classe de pessoas, que aceitam a análise por motivos intelectuais, mas que sem dúvida também acolherão o aumento da capacidade que incidentalmente alcancem. Para efetuar essa análise far-se-á necessário grande número de analistas, para os quais qualquer conhecimento médico terá particularmente pouca importância. Mas esses ‘analistas didatas’ - vamos chamá-los assim - precisarão ter tido uma educação especificamente cuidadosa. Se se quiser que ela nãofique tolhida, eles devem receber a oportunidade de colher experiência de casos instrutivos e informativos; e visto que pessoas saudáveis, às quais também falta o motivo da curiosidade, não se apresentam para análise, é mais uma vez somente com os neuróticos que será possível aos analistas didatas - sob cuidadosa supervisão - ser educados para a sua atividade nãomédica subseqüente. Tudo isso, contudo, requer certa dose de liberdade de movimento, não sendo compatível com restrições mesquinhas. Talvez o senhor não creia nesses interesses puramente teóricos da psicanálise ou não possa permitir-lhes que afetem a questão prática da análise leiga. Então deixe-me adverti-lo de que a psicanálise tem ainda outra esfera de aplicação, que se acha fora do âmbito da lei sobre charlatanismo e com relação à qual os médicos quase não farão reivindicação. Refiro-me à aplicação à educação de crianças. Se uma criança começa a mostrar sinais de um desenvolvimento indesejável, se se tornar malhumorada, indócil e desatenta, o pediatra e mesmo o médico da escola nada poderão fazer por ela, mesmo se a criança apresenta sintomas neuróticos claros, tais como nervoso, perda de apetite, vômitos ou insônia. Um tratamento que combine a influência analítica com medidas educacionais, levado a efeito por pessoas que não se envergonhem de interessar-se pelos assuntos próprios do mundo da criança, e que compreendam como orientar-se na vida mental de uma criança, pode ocasionar duas coisas ao mesmo tempo: a eliminação dos sintomas neuróticos e a reversão da mudança de caráter que havia começado. Nosso reconhecimento da importância dessas neuroses obscuras das crianças, como sendo o que alicerça a disposição para graves doenças mais adiante na vida, ressalta essas análises infantis como excelente método de profilaxia. A análise indubitavelmente ainda tem seus inimigos. Não sei se estes dispõem de meios ao seu alcance para paralisar as atividades desses analistas educacionais ou educadores analíticos. Não penso que seja muito provável; mas nunca se pode estar muito certo. Além disso, voltando à nossa questão do tratamento analítico dos neuróticos adultos, mesmo aí anda não esgotamos todas as linhas de abordagem. Nossa civilização nos impõe uma pressão quase intolerável e exige um corretivo. Será demasiado fantástico esperar que a psicanálise, apesar de suas finalidades, possa estar destinada à tarefa de preparar a humanidade para tal corretivo? Talvez mais uma vez um norte-americano tenha a idéia de gastar algum dinheiro para que os ‘assistentes sociais’ do seu país sejam formadosanaliticamente e para transformá-los num grupo de auxiliares a fim de combaterem as neuroses da civilização. ‘Ah! uma nova espécie de Exército da Salvação!’ Por que não? Nossa imaginação sempre obedece a padrões. A corrente daqueles ansiosos por aprender, que então fluirá para a Europa, será obrigada a passar por Viena, pois aqui o desenvolvimento da análise poderá ter sucumbido a um trauma prematuro de proibição. O senhor está sorrindo? Não estou dizendo isso como um suborno em seu apoio. De modo algum. Sei que o senhor não me conhece, nem posso garantir que isso me venha a acontecer. Mas de uma coisa eu sei. De forma alguma é tão importante qual a decisão que o senhor possa adotar no tocante à questão da análise leiga. Isso poderá ter um efeito local. Mas as coisas que realmente importam - as possibilidades na psicanálise de desenvolvimento interno - jamais poderão ser afetadas por regulamentos e proibições. PÓS-ESCRITO (1927) Logo após eu ter escrito o pequeno volume que constituiu o ponto de partida da presente apreciação, houve uma acusação de charlatanismo apresentada contra um membro não-médico de nossa Sociedade, o Dr. Theodor Reik, nos tribunais de Viena. Em geral se sabe, penso eu, que depois de todos os trâmites preliminares terem sido concluídos e grande número de pareceres técnicos terem sido recebidos, a acusação foi abandonada. Não creio que isso tenha sido resultado do meu livro. Sem dúvida o argumento da procuradoria foi muito fraco, e a pessoa que apresentou a acusação como a parte agravada demonstrou ser uma testemunha indigna de confiança. De modo que a anulação do processo contra o Dr. Reik provavelmente não deverá ser considerada como um julgamento ponderado dos tribunais de Viena sobre a questão geral da análise leiga. Quando tracei a figura da ‘Pessoa Imparcial’ que foi meu interlocutor em meu opúsculo, tive diante de minha mente um dos nossos altos funcionários. Este foi um homem com quem eu próprio conversara sobre o caso de Reik e a quem, a pedido dele, escrevera um parecer confidencial sobre o assunto. Eu sabia que não tinha conseguido convertê-lo aos meus pontos de vista, e foi por isso que fiz com que meu diálogo com a Pessoa Imparcial terminasse também sem acordo. Nem esperei que conseguisse êxito na obtenção de unanimidade da atitude dos próprios analistas em relação ao problema da análise leiga. Qualquer um que compare os pontos de vista expressos pela Sociedade Húngara nessa apreciação com os do grupo de Nova Iorque talvez conclua que meu livro não produziu efeito algum e que cada um persiste em sua opinião anterior. Mas também não creio nisso. Penso que muitos dos meus colegas modificaram seu extremo parti pris e que a maioria aceitou minha opinião de que o problema da análise leiga não deve ser solucionado nos mesmos moldes do uso tradicional, mas que decorre de uma nova situação e, portanto, exige novo julgamento. Além disso, a forma que dei a todo o exame parece que contou com aprovação. Minha tese principal foi no sentido de que a questão importante não é se um analista possui um diploma médico, mas se ele recebeu a formação especial necessária à prática da análise. Isto serviu de ponto de partida para uma discussão, que foi avidamente adotada, quanto a qual é a formação mais adequada para um analista. Meu ponto de vista foi eainda continua sendo o de que não é a formação prescrita pela universidade para futuros médicos. O que se conhece como educação médica parece-me uma maneira árdua e indireta de abordagem da profissão da análise. Sem dúvida ela oferece a um analista muito do que lhe é indispensável. Mas ela o sobrecarrega de muitas outras coisas que ele jamais utilizará, havendo o perigo de desviar seu interesse e todo seu modo de pensamento da compreensão dos fenômenos psíquicos. Um esquema de formação para analistas ainda tem de ser criado. Deve ele abranger elementos das ciências mentais, da psicologia, da história e do estudo da evolução. Há tanto a ser ensinado em tudo isso que é justificável omitir do currículo qualquer coisa que não tenha relação direta alguma com a prática da análise e somente sirva indiretamente (como qualquer outro estudo) de formação para o intelecto e para os poderes de observação. É fácil fazer face a essa sugestão objetandose que as escolas analíticas dessa natureza não existem e que eu estou simplesmente estabelecendo um ideal. Um ideal, sem dúvida. Mas um ideal que pode e deve ser concretizado. E em nossos institutos de formação, apesar de todas as suas insuficiências próprias de seus verdes anos, essa concretização já teve início. Não terá escapado aos meus leitores que naquilo que afirmei presumi como axiomático algo que é ainda violentamente debatido no exame. Presumi, vale dizer, que a psicanálise não é um ramo especializado da medicina. Não vejo como é possível discutir isso. A psicanálise é uma parte da psicologia; não da psicologia médica no velho sentido, não da psicologia de processos mórbidos, mas simplesmente da psicologia. Certamente não é o todo da psicologia, mas sua subestrutura e talvez mesmo todo o seu alicerce. A possibilidade de sua aplicação a finalidades médicas não nos deve desorientar. A eletricidade e a radiologia também têm sua aplicação médica, mas a ciência à qual ambas pertencem é, não obstante, a física. Nem a situação delas pode ser afetada por argumentos históricos. Toda a teoria da eletricidade teve sua origem numa observação de um preparado muscular nervoso; contudo, ninguém sonharia hoje em considerá-la como parte da fisiologia. Argumenta-se que a psicanálise foi, afinal de contas, descoberta por um médico no curso dos seus esforços para assistir seus pacientes. Mas isto claramente não está nem nesse ponto nem naquele. Além disso, o argumento histórico é uma faca de dois gumes. Poderíamos acompanhar a história e recordar a inamistosidade e mesmo a animosidade com que a profissão médica tratou a análise bem desde o começo. Isso pareceria implicar que ela não pode fazer quaisquer reivindicações à análise no momento atual. E embora eu não aceite essaimplicação, ainda sinto certas dúvidas quanto a se o presente cortejar da psicanálise pelos médicos está baseado, do ponto de vista da teoria da libido, na primeira ou na segunda subfases de Abraham - se desejam tomar posse de seu objeto com a finalidade de destruí-lo ou de preservá-lo. Gostaria de considerar o argumento histórico por mais um momento. Visto que é em mim pessoalmente que estamos interessados, posso lançar um pouco de luz, para qualquer um que esteja interessado, sobre meus próprios motivos. Após quarenta e um anos de atividade médica, meu autoconhecimento me diz que nunca fui realmente médico no sentido adequado. Tornei-me médico por ter sido compelido a desviar-me do meu propósito original; e o triunfo da minha vida está em eu haver, após uma viagem longa e indireta, encontrado meu caminho de volta à minha senda mais antiga. Não tenho conhecimento algum de haver tido qualquer anseio, na minha primeira infância, de ajudar a humanidade sofredora. Minha disposição sádica inata não foi muito forte, de modo que não tive qualquer necessidade de desenvolver essa disposição dos seus derivados. Nem jamais ‘brinquei de médico’; minha curiosidade infantil evidentemente escolheu outros caminhos. Em minha juventude senti uma necessidade absorvente de compreender algo dos enigmas do mundo em que vivemos e talvez mesmo de contribuir com alguma coisa para a solução dos mesmos. O meio mais esperançoso de alcançar esse fim pareceu ser matricular-me na faculdade de medicina; no entanto, mesmo após isto realizei experiências - sem êxito - com a zoologia e a química, até que afinal, sob a influência de Brücke, que teve mais influência sobre mim do que qualquer outra pessoa em toda minha vida, fixei-me em fisiologia, embora naqueles dias ela estivesse muito estreitamente restrita à histologia. Naquela ocasião já havia sido aprovado em todos os meus exames médicos, mas não adquiri qualquer interesse por coisa alguma que tivesse a ver com a medicina, até que o professor que eu tão profundamente respeitava advertiu-me de que em vista das minhas circunstâncias materiais precárias eu não poderia possivelmente seguir uma carreira teórica. Assim, passei da histologia do sistema nervoso para a neuropatologia e depois, incentivado por novas influências, comecei a interessar-me pelas neuroses. Quase não penso, contudo, que a minha falta de autêntico temperamento médico tenha causado grande dano aos meus pacientes, pois não é muito vantajoso para os pacientes se o interesse terapêutico do seu médico tiver uma ênfase emocional muito marcante. Eles são maisbem ajudados se ele executar sua tarefa friamente e obedecendo às regras tão de perto quanto possível. Sem dúvida o que acabo de dizer lança pouca luz sobre o problema da análise leiga; destinou-se apenas a apresentar minhas credenciais pessoais, como sendo eu próprio um partidário do valor inerente da psicanálise e da independência de sua aplicação em relação à medicina. Mas objetar-se-á, a esta altura, que se a psicanálise, considerada como uma ciência, for considerada uma subdivisão da medicina ou da psicologia, isto será uma questão puramente acadêmica e de nenhum interesse prático. O verdadeiro ponto em debate, dir-se-á, é diferente, a saber, a aplicação da análise ao tratamento de pacientes; até onde ela alega que faz isso, ela deve contentar-se, continuará o argumento, em ser aceita como um ramo especializado da medicina, como a radiologia, por exemplo, e em submeter-se às regras formuladas para todos os métodos terapêuticos. Reconheço que isto seja assim; admito-o. Só quero sentir-me seguro de que a terapia não destruirá a ciência. Infelizmente, as analogias só nos levam até certa distância; logo se alcança um ponto no qual os assuntos da comparação seguem caminhos divergentes. O caso da análise difere do da radiologia. Não é preciso que um físico tenha um paciente a fim de estudar as leis que regem os raios X. Mas o único tema da psicanálise são os processos mentais dos seres humanos e é somente nos seres humanos que ele pode ser estudado. Por motivos que podem facilmente ser compreendidos, os seres humanos neuróticos oferecem material muito mais instrutivo e acessível do que os normais, e sonegar esse material a qualquer um que deseje estudar e aplicar a análise é privá-lo de boa metade das suas possibilidades de formação. Não tenho, naturalmente, intenção alguma de pedir que os interesses de pacientes neuróticos sejam sacrificados àqueles de instrução e de pesquisa científica. O objetivo do meu pequeno volume sobre a questão da análise leiga foi precisamente demonstrar que, se certas precauções forem observadas, os dois interesses poderão facilmente ser harmonizados e que os interesses da medicina, conforme compreendidos de maneira correta, não serão os últimos a lucrar com tal solução. Eu mesmo formulei todas as precauções necessárias e posso afirmar com segurança que o debate nada acrescentou a esse ponto. Mas gostaria de acrescentar que a ênfase foi dada muitas vezes da maneira que não fazia justiça aos fatos. O que se disse sobre as dificuldades do diagnóstico diferencial e da incerteza, em muitos casos, de chegar a uma decisão sobre os sintomas somáticos situações, vale dizer, nas quais os conhecimentos médicos e a intervenção médica são necessários -, tudo isso é perfeitamente verdadeiro. Não obstante, o número de casos em que dúvidas dessa espéciejamais surgem de maneira alguma e que não se exige um médico é por certo incomparavelmente maior. Esses casos podem ser bem desinteressantes cientificamente, mas desempenham papel bastante importante na vida para justificarem as atividades de analistas, que são perfeitamente capazes para lidar com eles. Há algum tempo analisei um colega que dava provas de uma aversão particularmente forte à idéia de permitir que qualquer um se empenhasse numa atividade médica caso não fosse médico. Eu estava em condições de dizer-lhe: ‘Estamos agora trabalhando há mais de três meses. Em que ponto de nossa análise tive ocasião de fazer uso dos meus conhecimentos médicos?’ Ele admitiu que eu não tivera tal ocasião. Além disso, não atribuo grande importância ao argumento de que um analista leigo, porque ele deve estar preparado para consultar um médico, não tenha autoridade aos olhos dos seus pacientes e não seja tratado com mais respeito do que pessoas tais como endireitas* ou massagistas. Mais uma vez, a analogia é imperfeita - bem independente do fato de que o que rege os pacientes no reconhecimento, por parte destes, da autoridade é, em geral, a transferência emocional deles e que a posse de um diploma médico não os impressiona tanto como os médicos acreditam. Um analista leigo não terá dificuldade alguma em angariar tanto respeito como é devido a um assistente pastoral secular. Realmente, as palavras ‘assistente pastoral secular’ bem poderiam servir como uma fórmula geral para descrever a função que o analista, seja ele médico ou leigo, tem de realizar em relação ao público. Nossos amigos do clero protestante, e mais recentemente também entre o clero católico, são muitas vezes capazes de liberar seus paroquianos das inibições de sua vida cotidiana confirmando-lhes a fé depois de primeiro lhes haver oferecido um pouco de informação analítica sobre a natureza dos seus conflitos. Nossos antagonistas, os ‘psicólogos do indivíduo’ adlerianos, se esforçam por produzir um resultado semelhante em pessoas que se tenham tornado instáveis e deficientes, provocando-lhes o interesse pela comunidade social - após terem primeiro lançado alguma luz sobre um único recanto de sua vida mental e lhes terem revelado o papel desempenhado na doença deles pelos seus impulsos egoístas e suspeitosos. Ambos esses processos, que tiram sua força por estarem baseados na análise, têm seu lugar na psicoterapia. Nós que somos analistas pomos diante de nós como nosso objetivo a análise mais completa e mais profunda possível de quem quer que possa ser nosso paciente. Não procuramos levar-lhe alívio recebendo-o na comunidade católica, protestante ou socialista. Antes procuramos enriquecê-lo a partir de suas própria fontes internas, colocando à disposição do seu ego aquelas energias que, devido à repressão, se acham inacessivelmente confinadas em seuinconsciente, bem como aquelas que seu ego é obrigado a desperdiçar na tarefa infrutífera de manter essas repressões. Uma atividade como essa é trabalho pastoral no melhor sentido da palavra. Atribuímos a nós mesmos uma finalidade demasiado alta? A maioria dos nossos pacientes merece os cuidados que esse trabalho exige de nós? Não seria mais econômico escorar suas fraquezas de fora antes do que reconstruí-las de dentro? Não posso dizer; mas existe algo mais que eu realmente sei. Na psicanálise tem existido desde o início um laço inseparável entre cura e pesquisa. O conhecimento trouxe êxito terapêutico. Era impossível tratar um paciente sem aprender algo de novo; foi impossível conseguir nova percepção sem perceber seus resultados benéficos. Nosso método analítico é o único em que essa preciosa conjunção é assegurada. É somente pela execução do nosso trabalho pastoral analítico que podemos aprofundar nossa compreensão que desponta da mente humana. Essa perspectiva de ganho científico tem sido a feição mais orgulhosa e feliz do trabalho analítico. Devemos sacrificá-la a bem de quaisquer considerações de natureza prática? Algumas observações feitas no curso dessa apreciação levaram-me a suspeitar que, apesar de tudo, meu livro sobre análise leiga foi mal compreendido sob um aspecto. Os médicos se têm defendido de mim, como se eu houvesse declarado que eles eram em geral incompetentes para praticar a análise e como se eu tivesse afirmado como uma senha que reforços médicos deviam ser rejeitados. A idéia provavelmente surgiu de eu ter sido levado a declarar no curso de minhas observações (que tinham uma finalidade controversa em vista) que analistas médicos não formados eram ainda mais perigosos que os leigos. Talvez possa tornar clara minha verdadeira opinião sobre essa questão dando eco a uma observação cínica sobre as mulheres que certa vez apareceu em Simplicissimus. Um homem se queixava a outro das fraquezas e da natureza melindrosa do belo sexo. ‘Seja como for’, replicou seu companheiro, ‘as mulheres são a melhor coisa que temos dessa espécie’. Sou obrigado a admitir que, enquanto as escolas que desejamos para formação de analistas ainda não existirem, as pessoas que tenham tido uma educação preliminar em medicina constituem o melhor material para futuros analistas. Temos o direito de exigir, contudo, que elas não devem confundir sua educação preliminar com uma formação completa, que elas devem superar aunilateralidade que é estimulada pela instrução nas escolas de medicina e que devem resistir à tentação de flertar com a endocrinologia e o sistema nervoso autônomo, quando aquilo de que se necessita é de uma percepção de fatos psicológicos com a ajuda de uma estrutura de conceitos psicológicos. Também partilho do ponto de vista de que todos aqueles problemas que se relacionam com a ligação entre os fenômenos psíquicos e seus fundamentos orgânicos, anatômicos e químicos podem ser abordados somente por aqueles que tenham estudado ambos, isto é, por analistas médicos. Não se deve esquecer, contudo, que isso não é o todo da psicanálise, e que quanto ao seu outro aspecto nunca podemos passar sem cooperação de pessoas que tenham tido uma educação preliminar nas ciências mentais. Por motivos práticos temos tido o hábito - e isso é verdade, incidentalmente, também em relação às nossas publicações - de distinguir entre análise médica e aplicada. Mas essa não é uma distinção lógica. A verdadeira linha de divisão situa-se entre a análise científica e suas aplicações igualmente nos setores médico e não-médico. Nessas apreciações, a rejeição mais rude da análise leiga foi expressa por nossos colegas norteamericanos. Algumas palavras em resposta a eles, não serão, penso, fora de propósito. Dificilmente posso ser acusado de fazer mau uso da análise para finalidades controversas, se expressar a opinião de que a resistência por parte deles provém inteiramente de fatores práticos. Eles vêem como em seu próprio país os analistas leigos submetem a análise a todas as espécies de finalidades nocivas e ilegítimas e, em conseqüência, causam dano tanto aos seus pacientes como ao bom nome da análise. Não é, portanto, de se admirar que em sua indagação eles evitem o mais amplamente possível tais inescrupulosos fomentadores de discórdia e tentem impedir que quaisquer leigos tenham participação na análise. Mas esses fatos já são suficientes para reduzir o significado da posição norte-americana, pois a questão da análise leiga não deve ser resolvida somente com base em considerações práticas, e as condições locais nos Estados Unidos não podem ser a única influência determinante sobre nossos pontos de vista. A resolução aprovada por nossos colegas norte-americanos contra os analistas leigos, baseada como essencialmente está em razões práticas, parece-me, não obstante, pouco prática, pois não poderá afetar qualquer dos fatores que regem a situação. Ela é mais ou menos equivalente a uma tentativa de repressão. Se for impossível impedir os analistas leigos de exercerem suas atividades e se o público não apoiar a campanha contra eles, não seria mais aconselhável reconhecer o fato de sua existência oferecendo-lhes oportunidades de formação? Talvez não fosse possível, dessa maneira, alcançar certainfluência sobre eles? E, se lhes fosse oferecida como incentivo a possibilidade de receberem a aprovação da profissão médica e de serem convidados a cooperar, será que eles não teriam certo interesse em elevar seu próprio padrão ético e intelectual? VIENA, junho de 1927 PSICANÁLISE (1926) NOTA DO EDITOR INGLÊS (a) EDIÇÕES ALEMÃS: (1925 Provável data da composição.) 1934 G.S., 12, 372-80. 1934 Almanach 1935, 9-17. (Omitindo-se a Bibliografia.) 1935 Z. Psychoanal. Päd., 9 (2), 73-80. (Com inclusão da Bibliografia.) 1948 G.W., 14, 299-307. (b) TRADUÇÃO INGLESA: ‘Psychoanalysis: Freudian Scholl’ 1926 Em Encyclopaedia Britannica, 13ª ed., Novo Vol. 3, 253-5. (Trad. de James Strachey.) 1929 Em Encyclopaedia Britannica, 14ª ed., 18, 672-4. (Reimpressão da anterior.) A presente tradução é uma revisão daquela publicada pela primeira vez em 1926. O artigo é reimpresso aqui mediante entendimento com autores da Encyclopaedia Britannica. A Décima-Primeira Edição da Encyclopedia Britannica veio a lume em 1910-11. Não continha qualquer referência à psicanálise. Após a primeira guerra mundial, em 1922, surgiu o que se declarou ser a ‘Décima-Segunda Edição’. Esta consistia na antiga Décima-Primeira Edição juntamente com três ‘Novos Volumes’. Ainda não havia qualquer artigo sobre psicanálise. Logo depois resolveu-se lançar, em 1926, uma ‘Décima-Terceira Edição,’ que iria consistir novamente na antiga Décima-Primeira com o acréscimo, mais uma vez, de três ‘Novos Volumes Suplementares’ - mas diferentes daqueles que haviam integrado a ‘Décima-Segunda Edição’. Dessa vez um artigo sobre psicanálise foi julgado necessário, e solicitaram ao próprio Freud que colaborasse com o mesmo. Sem dúvida ele ficou satisfeito em aceitar o convite, visto que a Encyclopaedia Britannica ocupava um lugar predileto em seu coração. Enquanto preparava Totem e Tabu, escreveu a Ernest Jones (em 24 de fevereiro de 1912) dando uma lista de todas as autoridades que ele havia consultado, e concluía com evidente orgulho: ‘Estou agora até de posse da Encyclopaedia Britannica, 11ª ed., 1911.’ (Jones, 1953, 395.) E era uma obra que ele estava sempre ávido por consultar. Já, além disso, em 1924, ele havia contribuído com um longo capítulo sobre psicanálise para uma compilação em dois volumes que fora lançada pelos editores da Encyclopaedia Britannica sob o título These Eventful Years. Muito pouco tempo após a publicação da Décima-Terceira Edição, reconheceu-se a necessidade de produzir uma nova edição completa de toda obra. Houve um movimento para substituir o artigo de Freud por um diferente; mas, através dos esforços conjuntos de Ernest Jones e do próprio Freud, essa idéia foi eliminada, e o artigo foi mantido inalterado na DécimaQuarta Edição (1929) e em todas as subseqüentes. De fato, contudo, quando o original alemão veio à luz em 1934, viu-se que certo número de modificações pequenas, mas não destituídas de importância, tinham, desde o início, sido feitas na versão inglesa. O título do artigo, por exemplo, fora alterado de ‘Psicanálise’ para ‘Psicanálise: Escola Freudiana’ e uma referência pouco lisonjeira a Jung e Adler havia sido omitida. Subtítulos adicionais também tinham sido inseridos, o que não parece ajudar o encadeamento do argumento de Freud. Para finalidades atuais, o melhor plano pareceu remontar ao original alemão, conforme elaborado por Freud, sendo as divergências mais importantes da versão da Encyclopaedia Britannica indicadas em notas de rodapé. Aproveitou-se a oportunidade para rever a tradução e harmonizar alguns dos termos técnicos com o uso adotado em outras partes nesta edição. PSICANÁLISE Visto que a psicanálise não foi mencionada na décima-primeira edição da Encyclopaedia Britannica, é impossível restringir este relato aos seus progressos desde 1910. A parte mais importante e mais interessante de sua história está no período antes dessa data. PRÉ-HISTÓRIA Nos anos de 1880-2 um médico vienense, o Dr. Josef Breuer (1842-1925), descobriu um novo método por meio do qual aliviou uma moça, que vinha sofrendo de grave histeria, de seus muitos e variados sintomas. Ocorreu-lhe a idéia de que os sintomas estavam ligados a impressões que ela recebera durante um período de agitação enquanto cuidava do pai enfermo. Ele então induziu-a, enquanto ela se encontrava num estado de sonambulismo hipnótico, a procurar essas ligações em sua memória e a viver através das cenas ‘patogênicas’ mais uma vez, sem inibir, os afetos que surgiam no processo. Ele verificou que quando ela fizera isso, o sintoma em causa desapareceu para sempre. Isso ocorreu numa data anterior às investigações de Charcot e de Pierre Janet sobre a origem dos sintomas histéricos, e assim a descoberta de Breuer não foi de modo algum influenciada por eles. Mas ele não levou o assunto adiante na época e só uns dez anos depois é que o recomeçou em colaboração com Sigmund Freud. Em 1895 publicaram um livro, Estudos sobre a Histeria, no qual as descobertas de Breuer foram descritas e se fez uma tentativa para explicá-las pela teoria da ‘cartase‘. De acordo com essa hipótese, os sintomas histéricos se originam através da energia de um processo mental que é afastado da influência consciente e desviada para a inervação corporal (‘conversão‘). Um sintoma histérico seria assim um substituto de um ato mental omitido e uma reminiscência da ocasião que deve ter dado margem a esse fato. E, com base nesse ponto de vista, a recuperação seria o resultado da liberação do afeto que se extraviara e de sua descarga por um caminho normal (‘ab-reação‘). O tratamento catártico deu excelentes resultados terapêuticos, mas verificou-se que não eram permanentes e que não eram independentes da relação pessoal entre o paciente e o médico. Freud, que depois prosseguiu com essas investigações sozinho, fez uma alteração técnica das mesmas, substituindo a hipnose pelo método da associação livre. Ele inventou o termo ‘psicanálise’, que no curso do tempo veio a ter dois significados: (1) um método específico de tratar as perturbações nervosas e (2) a ciência dos processos mentais inconscientes, que também é apropriadamente descrita como ‘psicologia profunda’. TEMA DA PSICANÁLISE A psicanálise encontra apoio sempre crescente como método terapêutico, devido ao fato de que pode fazer mais pelos seus pacientes do que qualquer outro método de tratamento. O principal campo de sua aplicação são as neuroses mais brandas - histeria, fobias e estados obsessivos; e nas malformações do caráter e inibições ou anormalidades sexuais ela também pode trazer acentuadas melhorias ou mesmo recuperações. Sua influência sobre a demência precoce e a paranóia é duvidosa; por outro lado em circunstâncias favoráveis pode lidar com estados depressivos, mesmo se forem de tipo grave. Em cada caso, o tratamento exige muito, tanto do método como do paciente: o primeiro necessita de uma formação especial e deve dedicar longo período de tempo à exploração da mente do paciente, ao passo que o segundo deve fazer consideráveis sacrifícios, tanto materiais como mentais. Não obstante, todas as preocupações em jogo são, em geral, recompensadas pelos resultados. A psicanálise não atua como uma panacéia conveniente (‘cito, tute, jucunde‘) para perturbações psicológicas. Ao contrário, sua aplicação tem sido essencial para tornar claras pela primeira vez as dificuldades e as limitações no tratamento de tais distúrbios. No momento, só em Berlim e em Viena é que há instituições voluntárias que tornam o tratamento psicanalítico acessível às classes assalariadas. A influência terapêutica da psicanálise depende da substituição de atos mentais inconscientes por conscientes e vigora dentro dos limites desse fator. A substituição é efetivada superando-se as resistências internas na mente do paciente. O futuro provavelmente atribuirá muito maior importância à psicanálise como a ciência do inconsciente do que como um procedimento terapêutico. A psicanálise, no seu caráter de psicologia profunda, considera a vida mental de três pontos de vista: o dinâmico, o econômico e o topográfico. Do primeiro desses pontos de vista, o dinâmico, a psicanálise extrai todos os processos mentais (independentes da recepção de estímulos externos) da ação mútua de forças, que ajudam ou inibem umas às outras, se combinam, entram em conciliações umas com as outras etc. Todas essas forças são originalmente da natureza de instintos; assim, possuem uma origem orgânica. São caracterizadas por possuírem uma reserva de energia (somática) imensa (‘a compulsão à repetição‘); e são representadas mentalmente como imagens ou idéias com uma carga afetiva. Na psicanálise, não menos do que em outras ciências, a teoria dos instintos é um assunto obscuro. Uma análise empírica conduz à formulação de dois grupos de instintos: os denominados ‘instintos do ego’, que estão dirigidos para a autopreservação, e os ‘instintos do objeto’, que dizem respeito às relações com um objeto externo. Os instintos sociais não são considerados como elementares ou irredutíveis. A especulação teórica leva à suspeita de que há dois instintos fundamentais que jazem ocultos por detrás dos instintos do ego e dos instintos do objeto manifesto: a saber, (a) Eros, o instinto que luta sempre por uma união mais estreita, e (b) o insisto de destruição, que leva no sentido da destruição do que está vivo. Em psicanálise dá-se o nome de ‘libido‘ à manifestação da força de Eros. Do ponto de vista econômico, a psicanálise supõe que os representantes mentais dos instintos têm uma carga (catexia) de quantidades definidas de energia, sendo finalidade do aparelho mental impedir qualquer represamento dessas energias e manter o mais baixo possível o volume total das excitações com que ele se acha carregado. O curso dos processos mentais é automati-camente regulado pelo ‘princípio do prazer-desprazer‘; o desprazer está assim de certa forma relacionado com um aumento de excitação, e o prazer com uma redução. No curso do desenvolvimento, o princípio de prazer original passa por uma modificação com referência ao mundo externo, dando lugar ao ‘princípio de realidade‘, de conformidade com o qual o aparelho mental aprende a adiar o prazer da satisfação e a tolerar temporariamente sentimentos de desprazer. Topograficamente, a psicanálise considera o aparelho mental como um instrumento composto, esforçando-se por determinar em quais pontos dele ocorrem os vários processos mentais. De acordo com os pontos de vista psicanalíticos mais recentes, o aparelho mental compõe-se de um ‘id‘, que é o repositório dos impulsos instintuais, de um ‘ego‘, que é a parte mais superficial do id e aquela que foi modificada pela influência do mundo externo, e de um ‘superego‘, que se desenvolve do id, domina-o e representa as inibições do instinto que são características do homem. A qualidade da consciência, também, conta com uma referência topográfica, pois os processos no id são inteiramente inconscientes, ao passo que a consciência é a função da camada mais externa do ego, que se interessa pela percepção do mundo externo. A esta altura, duas observações talvez sejam cabíveis. Não se deve supor que estas idéias muito gerais sejam pressuposições das quais depende o trabalho da psicanálise. Pelo contrário, são suas conclusões mais recentes e estão ‘abertas à revisão’. A psicanálise está firmemente alicerçada na observação dos fatos da vida mental e por essa mesma razão sua superestrutura teórica ainda está incompleta e sujeita a constante alteração. Em segundo lugar, não existe motivo para surpresa que a psicanálise, que originalmente nada mais era que uma tentativa de explicar os fenômenos mentais patológicos, deva ter-se desenvolvido numa psicologia da vida mental normal. A justificativa disso surgiu com a descoberta de que os sonhos e os erros [‘parapraxias’, tais como lapsos de linguagem etc.] de homens normais têm o mesmo mecanismo que os sintomas neuróticos. A primeira tarefa da psicanálise foi a elucidação dos distúrbios neuróticos. A teoria analítica baseia-se em três pedras angulares: o reconhecimento da (1) ‘repressão‘, da (2) importância do instinto sexual e da (3) ‘transferência‘. (1) Há uma força na mente que exerce as funções de uma censura e que exclui da consciência e de qualquer influência sobre a ação todas as tendências que a desagradam. Tais tendências são descritas como ‘reprimidas’. Elas permanecem inconscientes e se alguém tentar levá-las para a consciência do paciente provoca-se uma ‘resistência‘.2 Esses impulsos instintuais reprimidos, contudo, nem sempre se tornaram impotentes. Em muitos casos conseguiram fazer sentir sua influência na mente por caminhos indiretos, e as satisfações indiretas ou substitutivas dos impulsos reprimidos assim alcançadas são o que constitui os sintomas neuróticos. (2) Por motivos culturais, a repressão mais intensa incide sobre os instintos sexuais; mas é precisamente em relação com eles que a repressão mais facilmente falha, de modo que se verifica que os sintomas neuróticos são satisfações substitutivas da sexualidade reprimida. A crença de que no homem a vida sexual começa apenas na puberdade é incorreta. Pelo contrário, sinais dela podem ser detectados desde o começo da existência extra-uterina; ela atinge um primeiro ponto culminante no ou antes do quinto ano (‘período primitivo’), depois do qual fica inibida ou interrompida (‘período de latência’) até a idade da puberdade, que é o segundo clímax do seu desenvolvimento. Esse desencadeamento bifásico do desenvolvimento sexual parece ser distintivo do gênero Homo. Todas as experiências durante o primeiro período da infância são da maior importância para o indivíduo e em combinação com sua constituição sexual herdada foram as disposições para o desenvolvimento subseqüente do caráter e da doença. É errôneo fazer a sexualidade coincidir com a ‘genitalidade’! Os instintos sexuais passam por um complicado curso de desenvolvimento, e só no fim deste é que a ‘primazia das zonas genitais’ é alcançada. Antes disso há grande número de organizações ‘pré-genitais’ da libido - pontos nos quais ela pode tornar-se ‘fixada’ e aos quais, no caso de subseqüente repressão, ela retornará (‘regressão‘). As fixações infantis da libido são o que determina a forma de qualquer neurose ulterior. Assim, as neuroses devem ser consideradas como inibições no desenvolvimento da libido. Não existem causas específicas de perturbações nervosas; a questão de se um conflito encontra uma solução saudável ou conduz a uma inibição neurótica de função depende de considerações quantitativas. O conflito mais importante com o qual se defende uma criancinha é sua relação com os pais, o ‘Complexo de Édipo‘; é ao tentar lidar com esse problema que aqueles destinados a sofrer de uma neurose habitualmente malogram. As reações contra as exigências instintuais do complexo de Édipo são a fonte das realizações mais preciosas e socialmente importantes da mente humana; e isto é válido não somente na vida dos indivíduos, como também provavelmente na história da espécie humana como um todo. O superego também, a instância moral que domina o ego, tem sua origem no processo de superação do complexo de Édipo. (3) Por ‘transferência‘ quer-se dizer uma peculiaridade marcante dos neuróticos. Eles desenvolvem para com seu médico relações emocionais, tanto de caráter afetuoso como hostil, que não se baseiam na situação real, mas que derivam de suas relações com os pais (o complexo de Édipo). A transferência é uma prova do fato de que os adultos não superaram sua antiga dependência infantil; ela coincide com a força que foi designada como ‘sugestão’; e é somente aprendendo a fazer uso dela que o médico fica capacitado a induzir o paciente a superar suas resistências internas e a eliminar suas repressões. Dessa forma, o tratamento analítico atua como uma segunda educação do adulto, como um corretivo da sua educação enquanto criança. Dentro desse estreito âmbito foi impossível mencionar muitos assuntos do maior interesse, tais como a ‘sublimação‘ dos instintos, o papel desempenhado pelo simbolismo, o problema da ‘ambivalência‘ etc. Nem houve espaço para aludir às aplicações da psicanálise - originadas, como vimos, na esfera da medicina - a outros setores do conhecimento (como a antropologia social, o estudo da religião, a história literária e a educação), onde sua influência vem constantemente aumentando. Basta dizer que a psicanálise, em seu caráter da psicologia dos atos mentais inconscientes mais profundos, promete tornarse o elo entre a psiquiatria e todos aqueles outros ramos da ciência mental. A HISTÓRIA EXTERNA DA PSICANÁLISE Os primórdios da psicanálise podem ser assinalados por duas datas: 1895, que viu a publicação dos Estudos sobre a Histeria de Breuer e Freud, e 1900, que testemunhou a da Interpretação de Sonhos, de Freud. De início, as novas descobertas não despertaram interesse algum quer na profissão médica, quer entre o público em geral. Em 1907 os psiquiatras suíços, sob a liderança de E. Bleuler e C. G. Jung, começaram a interessar-se pelo assunto; em 1908 realizou-se em Salzburgo uma primeira reunião dos partidários provenientes de grande número de diferentes países. Em 1909 Freud e Jung foram convidados para visitar os Estados Unidos por G. Stanley Hall a fim de pronunciarem uma série de conferências sobre psicanálise na Universidade de Clark, Worcester, Mass. A partir daquela época, o interesse cresceu rapidamente na Europa; expressou-se contudo, numa rejeição muito enérgica dos novos ensinamentos - uma rejeição que muitas vezes revelou uma coloração não-científica. As razões dessa hostilidade iriam ser encontradas, do ponto de vista médico, no fato de que a psicanálise dá ênfase a fatores psíquicos, e, do ponto de vista filosófico, na suposição do conceito da atividade mental inconsciente como sendo um postulado fundamental; mas a razão mais forte foi, indubitavelmente, a indisposição geral da humanidade em conceder ao fator da sexualidade a importância que lhe é atribuída pela psicanálise. Apesar dessa oposição generalizada, contudo, o movimento em prol da psicanálise não iria ser refreado. Seus partidários aglutinaram-se numa Associação Internacional, que atravessou incólume as provações da grande guerra, e na hora presente (1925) abrange grupos locais em Viena, Berlim, Budapeste, Londres, Suíça, Holanda, Moscou e Calcutá, bem como dois nos Estados Unidos. Há três periódicos que representam os pontos de vista dessas sociedades: o Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse, Imago (que se interessa pela aplicação da psicanálise a campos não-médicos de conhecimentos), e o International Journal of Psycho-Analysis. Durante os anos de 1911-13 dois ex-partidários, Alfred Adler, de Viena, e C. G. Jung, de Zurique, retiraram-se do movimento psicanalítico e fundaram suas escolas de pensamento, as quais, em vista da hostilidade geral à psicanálise, podiam estar certas de uma acolhida favorável, mas permaneceram cientificamente estéreis. Em 1921 o Dr. M. Eitingon fundou em Berlim a primeira clínica e escola de formação psicanalítica pública, logo acompanhada de uma segunda em Viena. BIBLIOGRAFIA Breuer e Freud, Studien über Hysterie (1895); Freud, Traumdeutung (1900); Zur Psychopathologie des Alltagslebens (1904); Drei Abhandlugen zur Sexualtheorie (1905); Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse (1916). As obras completas de Freud foram publicadas em alemão (Gesammelte Schriften) (1925) e em espanhol (Obras completas) (1923); a maior parte delas foi traduzida para o inglês e outras línguas. Breves relatos do tema e da história da psicanálise serão encontrados em: Freud, Über Psychoanalyse (as conferências pronunciadas em Worcester, EUA) (1909); Zur Geschichte der psychoanalytischen Bewegung (1914); Selbstdarstellung (na coleção de Grote, Die Medizin der Gegenwart in Selbstdarstellungen) (1925). Particularmente acessíveis aos leitores ingleses são: Ernest Jones, Papers on Psycho-Analysis, e A. A. Brill, Psychoanalysis. DISCURSO PERANTE A SOCIEDADE DOS BNAI BRITH (1941 [1926]) ANSPRACHE AN DIE MITGLIEDER DES VEREINS BNAI BRITH (a) EDIÇÃO ALEMÃ: 1941 G. W., 17, 51-3. (b) TRADUÇÃO INGLESA: ‘Adress to the Society of B’nai B’rith.’ A presente tradução, de James Strachey, parece ser a primeira para o inglês. Algumas frases dela foram apresentadas numa nota de rodapé na p.312 de The Origins of Psycho-Analysis (1954), a tradução inglesa de Freud, 1950a. Esse discurso foi lido em nome de Freud numa reunião dos B’nai B’rith realizada em 6 de maio de 1926, em honra ao seu septuagésimo aniversário. Fora precedido por um discurso laudatório feito pelo seu médico, o professor Ludwig Braun. Os B’nai B’rith (Filhos da Aliança) são uma ordem que representa os interesses judeus - culturais, intelectuais e caritativos. Originalmente fundada nos Estados Unidos em meados do século XIX, tem lojas filiadas em muitas partes do mundo. Como se verá adiante, Freud filiou-se ao grupo de Viena em 1895 e durante muitos anos foi freqüentador assíduo de suas reuniões, realizadas em terças-feiras alternadas. De tempos a tempos ele próprio pronunciou conferências ali, havendo os temas de algumas delas sido registrados: duas conferências sobre sonhos em dezembro de 1897 (Freud, 1950a, Carta 78); outra, não especificada, em março de 1900 (ibid., Carta 130); sobre La fécondité, de Zola, em 27 de abril de 1900 (Jones, 1953, 363); sobre La révolte des anges, de Anatole France (Sachs, 1945, 103); e a segunda parte de suas ‘Reflexões para os Tempos de Guerra e Morte’, em 1915 (Jones, 1955, 415). DISCURSO PERANTE A SOCIEDADE DOS BNAI BRITH Ilustríssimo Grão Presidente, ilustríssimos Presidentes, caros Irmãos, Agradeço-vos as honrarias que me prestastes hoje. Sabeis por que não podeis ouvir o som de minha própria voz. Ouvistes um dos meus amigos e alunos falar do meu trabalho científico; mas é difícil formar um julgamento sobre tais coisas e por muito tempo ainda ele não pode ser alcançado com segurança. Permiti-me acrescentar algo ao que foi dito por aquele que é tanto meu amigo como o médico que vela por mim. Gostaria de dizer-vos em breves palavras como me tornei um dos vossos e o que procurei de vós. Aconteceu que nos anos a partir de 1895 fiquei sujeito a duas poderosas impressões que se combinaram para produzir o mesmo efeito sobre mim. Por um lado, alcançara minha primeira compreensão interna (insight) das profundezas da vida dos instintos humanos; eu vira certas coisas que eram tranqüilizadoras e mesmo, de início, assustadoras. Por outro, a comunicação das minhas descobertas desagradáveis teve como resultado a ruptura da maior parte dos meus contatos humanos; senti-me como se fosse desprezado e universalmente evitado. Em minha solidão fui presa do anseio de encontrar um círculo de homens de escol de caráter elevado que me recebesse com espírito amistoso, apesar da minha temeridade. Vossa sociedade foi-me indicada como o lugar onde tais homens deviam ser encontrados. O fato de vós serdes judeus só me poderia ser agradável, pois eu próprio sou judeu, e sempre me parecera não somente indigno como positivamente insensato negar esse fato. O que me ligava ao povo judeu não era (envergonho-me de admitir) nem a fé nem o orgulho nacional, pois sempre fui um descrente e fui educado sem nenhuma religião, embora não sem respeito pelo que se denomina de padrões ‘éticos’ da civilização humana. Sempre que sentia inclinação pelo entusiasmo nacional esforçava-me por suprimi-lo como sendo prejudicial e errado, alarmado pelos exemplos de advertência dos povos entre os quais nós judeus vivemos. Mas restavam muitas outras coisas que tornavam a atração do mundo judeu e dos judeus irresistível - muitas forças emocionais obscuras, que eram mais poderosas quanto menos pudessem ser expressas em palavras, bem como uma nítida consciência de identidade interna, a reserva segura de uma construção mental comum. E além disso havia uma percepção de que era somente à minha natureza judaica que eu devia duas características que se haviam tornado indispensáveis para mim no difícil curso de minha vida. Por ser judeu encontrei-me livre de muitos preconceitos que restringiam outros no uso de seu intelecto, e como Judeu estava preparado para aliar-me à Oposição e passar sem consenso à ‘maioria compacta’. Assim foi que me tornei um dos vossos, tive minha parcela em vossos interesses humanitários e nacionais, angariei amigos entre vós e persuadi meus próprios e poucos amigos restantes a se filiarem à nossa sociedade. Não houve absolutamente qualquer dúvida em convencer-vos das minhas novas teorias; mas numa época em que ninguém na Europa me dava ouvidos e ainda não tinha nenhum discípulo mesmo em Viena, vós me concedestes vossa amável atenção. Vós fostes o meu primeiro auditório. Durante cerca de dois terços do longo período que decorreu desde meu ingresso persisti convosco de maneira conscienciosa, e encontrei refrigério e estímulo em minhas relações convosco. Vós tendes sido bastante amáveis hoje para não incriminar-me de que durante a última terça parte do tempo me mantive afastado de vós. Estive sobrecarregado de trabalho e as exigências ligadas ao mesmo pesaram sobre mim; o dia deixou de ser bastante longo para que eu freqüentasse vossas reuniões, e logo meu corpo começou a rebelar-se contra uma refeição tomada tarde da noite. Finalmente sobrevieram os anos de minha doença, o que me impede de estar entre vós até mesmo num dia como o de hoje. Não posso dizer se fui um autêntico Filho da Aliança no vosso sentido da palavra. Estou quase inclinado a duvidar disso; muitas circunstâncias excepcionais surgiram no meu caso. Mas de uma coisa posso assegurar-vos - que vós muito significastes para mim e muito fizestes por mim durante os anos nos quais fiz parte de vós. Peço-vos, portanto, que aceiteis meus calorosos agradecimentos tanto por esses anos como por hoje. Vosso em W. B. & E.Sigm. Freud BREVES ESCRITOS (1926) KARL ABRAHAM 1926 O Dr. Karl Abraham, presidente do grupo de Berlim, do qual foi o fundador, e presidente, na época, da Associação Psicanalítica Internacional, faleceu em Berlim em 25 de dezembro [1925]. Não havia alcançado a idade de cinqüenta anos quando sucumbiu a um mal interno contra o qual sua poderosa constituição tivera de lutar desde a primavera. No Congresso de Houburg ele parecera, para grande alegria de todos nós, ter-se recuperado, mas uma recaída nos trouxe penoso desapontamento. Enterramos com ele - integer vitae scelerisque purus - uma das esperanças mais firmes da nossa ciência, jovem como é e ainda tão implacavelmente agredida, e uma parte do seu futuro que agora, talvez, seja irrealizável. Dentre todos aqueles que me acompanhavam pelos sombrios caminhos da pesquisa psicanalítica, ele granjeou um lugar tão proeminente que somente um outro nome poderia ser posto ao lado dele. É provável que a confiança ilimitada de seus colegas e alunos o teria convocado para a liderança e sem dúvida ele teria sido um líder modelo na busca da verdade, não se deixando desencaminhar nem pelo louvor, nem pela censura dos muitos, nem pela sedutora ilusão de suas próprias fantasias. Escrevo estas linhas para os amigos e companheiros de trabalho que conheceram e valorizaram Abraham como eu. Eles acharão fácil compreender o que a perda desse amigo, muito mais jovem que eu, significa para mim; e me perdoarão se eu não fizer qualquer outra tentativa de expressar o que é tão difícil de traduzir em palavras. Um relato da personalidade científica de Abraham e uma apreciação do seu trabalho serão empreendidos para a nossa revista por outrem. A ROMAIN ROLLAND(1926) Viena IX, Bergasse, 19, 29 de janeiro de 1926. Inesquecível amigo! Com que dificuldades e sofrimentos você deve ter lutado para atingir o ponto culminante da humanidade como o seu! Muitos anos antes de vê-lo, eu o havia exaltado como um artista e um apóstolo do amor da humanidade. Eu próprio fui um discípulo do amor da humanidade, não por motivos sentimentais ou em busca de um ideal, mas por motivos desapaixonados e econômicos, porque, sendo os nossos instintos inatos e o mundo que nos cerca o que são, não poderia deixar de considerar esse amor como não menos essencial para a sobrevivência da raça humana do que tais coisas como a tecnologia. E quando finalmente vim a conhecê-lo pessoalmente, fiquei surpreendido em verificar que você pode apreciar a força e a energia tão altamente e que você mesmo encarna essa força de vontade. Que a próxima década não lhe traga outra coisa senão êxitos! Muito cordialmenteSigm. Freud, aetat, 70 NOTA PREAMBULAR A UM ARTIGO DE E. PICKWORTH FARROW (1926) Conheço o autor deste artigo como um homem de inteligência valiosa e independente. Provavelmente por ser um tanto voluntarioso deixou de manter boas relações com dois analistas com os quais fez a tentativa. Logo depois passou a fazer uma aplicação sistemática do método de auto-análise que eu próprio empreguei no passado para a análise de meus próprios sonhos. Seus achados merecem atenção precisamente por causa do caráter peculiar de sua personalidade e de sua técnica. O Futuro de uma Ilusão, O mal-estar na civilização e outros trabalhos VOLUME XXI (1927-1931) Dr. Sigmund Freud O FUTURO DE UMA ILUSÃO (1927) NOTA DO EDITOR INGLÊS DIE ZUKUNFT EINER ILLUSION (a) EDIÇÕES ALEMÃS: 1927 Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 91 págs. 1928 2ª ed. Mesmos editores. (Inalterada) 91 págs. 1943 G. W., 11,411-66. 1948 G. W., 14,325-380. (b) TRADUÇÃO INGLESA: The Future of an Illusion 1928 Londres: Hogarth Press e Instituto de Psicanálise. 98 págs. (Trad. de W.D. Robson-Scott.) A presente tradução inglesa baseia-se na que foi publicada em 1928. Este trabalho foi começado na primavera de 1927, terminado por volta de setembro e publicado em novembro do mesmo ano. No ‘Pós-Escrito’ que acrescentou em 1935 a seu Autobiographical Study, Freud mencionou ‘uma mudança significativa’ ocorrida em seus trabalhos durante a década anterior. ‘Meu interesse’, explicou, ‘após ter feito um longo détour pelas ciências naturais, medicina e psicoterapia, retornou aos problemas culturais que me haviam fascinado muito tempo antes, quando eu não passava de um jovem com idade apenas suficiente para pensar’(Standard Ed. 20,72). Naturalmente, ele havia abordado por diversas vezes esses problemas nos anos intermediários - especialmente em Totem e Tabu (1912-13), Edição Standard Brasileira, Vol. XIII, IMAGO Editora, 1974, mas foi com o Futuro de Uma Ilusão que ingressou na série de estudos que vieram a constuir seu interesse principal pelo resto da vida. Destes, os mais importantes foram O Mal-Estar na Civilização (1930a), que é o sucessor direto do presente trabalho, o exame de filosofias de vida, tema da última das New Introductory Lectures (1933a), Why War? (1933b), carta aberta dirigida a Einstein, e, finalmente, Moses and Monotheism (1933a), em que trabalhou de 1934 em diante. Em vista do amplo pronunciamento de Freud na [1] (‘Desprezo ter que distinguir entre cultura e civilização’) e de uma observação semelhante ao final de Why War?, parece desnecessário empenharnos no enfadonho problema da tradução correta da palavra alemã ‘Kultur‘. Via de regra, ainda que não invariavelmente, optamos por civilização para o substantivo e ‘cultural’ para o adjetivo. O FUTURO DE UMA ILUSÃO I Quando já se viveu por muito tempo numa civilização específica e com freqüência se tentou descobrir quais foram suas origens e ao longo de que caminho ela se desenvolveu, fica-se às vezes tentado a voltar o olhar para outra direção e indagar qual o destino que a espera e quais as tranformações que está fadada a experimentar. Logo, porém, se descobre que, desde o início, o valor de uma indagação desse tipo é diminuído por diversos fatores, sobretudo pelo fato de apenas poucas pessoas poderem abranger a atividade humana em toda a sua amplitude. A maioria das pessoas foi obrigada a restringir-se a somente um ou a alguns de seus campos. Entretanto, quanto menos um homem conhece a respeito do passado e do presente, mais inseguro terá de mostrar-se seu juízo sobre o futuro. E há ainda uma outra dificuldade: a de que precisamente num juízo desse tipo as expectativas subjetivas do indivíduo desempenham um papel difícil de avaliar, mostrando ser dependentes de fatores puramente pessoais de sua própria experiência, do maior ou menor otimismo de sua atitude para com a vida, tal como lhe foi ditada por seu temperamento ou por seu sucesso ou fracasso. Finalmente, faz-se sentir o fato curioso de que, em geral, as pessoas experimentam seu presente de forma ingênua, por assim dizer, sem serem capazes de fazer uma estimativa sobre seu conteúdo; têm primeiro de se colocar a certa distância dele: isto é, o presente tem de se tornar o passado para que possa produzir pontos de observação a partir dos quais elas julguem o futuro. Dessa maneira, qualquer pessoa que ceda à tentação de emitir uma opinião sobre o provável futuro de nossa civilização fará bem em se lembrar das dificuldades que acabei de assinalar, assim como da incerteza que, de modo bastante geral, se acha ligada a qualquer profecia. Disso decorre, no que me concerne, que devo efetuar uma retirada apressada perante tarefa tão grande, e com rapidez buscar a pequena nesga de território que até o presente tem reivindicado minha atenção, tão logo determinei sua posição no esquema geral das coisas. A civilização humana, expressão pela qual quero significar tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima de sua condição animal e difere da vida dos animais - e desprezo ter que distinguir entre cultura e civilização -, apresenta, como sabemos, dois aspectos ao observador. Por um lado, inclui todo o conhecimento e capacidade que o homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza e extrair a riqueza desta para a satisfação das necessidades humanas; por outro, inclui todos os regulamentos necessários para ajustar as relações dos homens uns com os outros e, especialmente, a distribuição da riqueza disponível. As duas tendências da civilização não são independentes uma da outra; em primeiro lugar, porque as relações mútuas dos homens são profundamente influenciadas pela quantidade de satisfação instintual que a riqueza existente torna possível; em segundo, porque, individualmente, um homem pode, ele próprio, vir a funcionar como riqueza em relação a outro homem, na medida em que a outra pessoa faz uso de sua capacidade de trabalho ou o escolha como objeto sexual; em terceiro, ademais, porque todo indivíduo é virtualmente inimigo da civilização, embora se suponha que esta constitui um objeto de interesse humano universal. É digno de nota que, por pouco que os homens sejam capazes de existir isoladamente, sintam, não obstante, como um pesado fardo os sacrifícios que a civilização deles espera, a fim de tornar possível a vida comunitária. A civilização, portanto, tem de ser defendida contra o indivíduo, e seus regulamentos, instituições e ordens dirigem-se a essa tarefa. Visam não apenas a efetuar uma certa distribuição da riqueza, mas também a manter essa distribuição; na verdade, têm de proteger contra os impulsos hostis dos homens tudo o que contribui para a conquista da natureza e a produção de riqueza. As criações humanas são facilmente destruídas, e a ciência e a tecnologia, que as construíram, também podem ser utilizadas para sua aniquilação. Fica-se assim com a impressão de que a civilização é algo que foi imposto a uma maioria resistente por uma minoria que compreendeu como obter a posse dos meios de poder e coerção. Evidentemente, é natural supor que essas dificuldades não são inerentes à natureza da própria civilização, mas determinadas pelas imperfeições das formas culturais que até agora se desenvolveram. E, de fato, não é difícil assinalar esses defeitos. Embora a humanidade tenha efetuado avanços contínuos em seu controle sobre a natureza, podendo esperar efetuar outros ainda maiores, não é possível estabelecer com certeza que um progresso semelhante tenha sido feito no trato dos assuntos humanos; e provavelmente em todos os períodos, tal como hoje novamente, muitas pessoas se perguntaram se vale realmente a pena defender a pouca civilização que foi assim adquirida. Pensar-se-ia ser possível um reordenamento das relações humanas, que removeria as fontes de insatisfação para com a civilização pela renúncia à coerção e à repressão dos instintos, de sorte que, imperturbados pela discórdia interna, os homens pudessem dedicar-se à aquisição da riqueza e à sua fruição. Essa seria a idade de ouro, mas é discutível se tal estado de coisas pode ser tornado realidade. Parece, antes, que toda civilização tem de se erigir sobre a coerção e a renúncia ao instinto; sequer parece certo se, caso cessasse a coerção, a maioria dos seres humanos estaria preparada para empreender o trabalho necessário à aquisição de novas riquezas. Acho que se tem de levar em conta o fato de estarem presentes em todos os homens tendências destrutivas e, portanto, anti-sociais e anticulturais, e que, num grande número de pessoas, essas tendências são suficientemente fortes para determinar o comportamento delas na sociedade humana. Esse fato psicológico tem importância decisiva para nosso julgamento da civilização humana. Onde, a princípio, poderíamos pensar que sua essência reside no controle da natureza para o fim de adquirir riqueza, e que os perigos que a ameaçam poderiam ser eliminados por meio de uma distribuição apropriada dessa riqueza entre os homens, parece agora que a ênfase se deslocou do material para o mental. A questão decisiva consiste em saber se, e até que ponto, é possível diminuir o ônus dos sacrifícios instintuais impostos aos homens, reconciliá-los com aqueles que necessariamente devem permanecer e fornecer-lhes uma compensação. É tão impossível passar sem o controle da massa por uma minoria, quanto dispensar a coerção no trabalho da civilização, já que as massas são preguiçosas e pouco inteligentes; não têm amor à renúncia instintual e não podem ser convencidas pelo argumento de sua inevitabilidade; os indivíduos que as compõem apóiam-se uns aos outros em dar rédea livre a sua indisciplina. Só através da influência de indivíduos que possam fornecer um exemplo e a quem reconheçam como líderes, as massas podem ser induzidas a efetuar o trabalho e a suportar as renúncias de que a existência depende. Tudo correrá bem se esses líderes forem pessoas com uma compreensão interna () superior das necessidades da vida, e que se tenham erguido à altura de dominar seus próprios desejos instintuais. Há, porém, o perigo de que, a fim de não perderem sua influência, possam ceder à massa mais do que esta a eles; por conseguinte, parece necessário que sejam independentes dela pela posse dos meios de poder à sua disposição. Expressando-o de modo sucinto, existem duas características humanas muito difundidas, responsáveis pelo fato de os regulamentos da civilização só poderem ser mantidos através de certo grau de coerção, a saber, que os homens não são espontaneamente amantes do trabalho e que os argumentos não têm valia alguma contra suas paixões. Conheço as objeções que serão levantadas contra essas afirmações. Dir-se-á que a característica das massas humanas aqui retratada, a qual se supõem provar que a coerção não pode ser dispensada no trabalho da civilização, constitui, ela própria, apenas o resultado de defeitos nos regulamentos culturais, falhas devido às quais os homens se tornaram amargurados, vingativos e inacessíveis. Gerações novas, que forem educadas com bondade, ensinadas a ter uma opinião elevada da razão, e que experimentarem os benefícios da civilização numa idade precoce, terão atitude diferente para com ela. Senti-la-ão como posse sua e estarão prontas, em seu benefício, a efetuar os sacrifícios referentes ao trabalho e à satisfação instintual que forem necessários para sua preservação. Estarão aptas a fazê-lo sem coerção e pouco diferirão de seus líderes. Se até agora nenhuma cultura produziu massas humanas de tal qualidade, isso se deve ao fato de nenhuma cultura haver ainda imaginado regulamentos que assim influenciem os homens, particularmente a partir da infância. Pode-se duvidar de que seja de algum modo possível, pelo menos até agora, no presente estágio de nosso controle sobre a natureza, estabelecer regulamentos culturais desse tipo. Pode-se perguntar de onde virão esses líderes superiores, inabaláveis e desinteressados, que deverão atuar como educadores das gerações futuras, e talvez seja alarmante pensar na imensa quantidade de coerção que inevitavelmente será exigida antes que tais intenções possam ser postas em prática. A grandiosidade do plano e sua importância para o futuro da civilização humana não podem ser discutidas. É algo firmemente baseado na descoberta psicológica segundo a qual o homem se acha aparelhado com as mais variadas disposições instintuais, cujo curso definitivo é determinado pelas experiências da primeira infância. Mas, pela mesma razão, as limitações da capacidade de educação do homem estabelecem limites à efetividade de uma transformação desse tipo em sua cultura. Pode-se perguntar se, e em que grau, seria possível a um ambiente cultural diferente passar sem as duas características das massas humanas que tornam tão difícil a orientação dos assuntos humanos. A experiência ainda não foi feita. Provavelmente uma certa percentagem da humanidade (devido a uma disposição patológica ou a um excesso de força instintual) permanecerá sempre associal; se, porém, fosse viável simplesmente reduzir a uma minoria a maioria que hoje é hostil à civilização, já muito teria sido realizado - talvez tudo o que pode ser realizado. Não gostaria de dar a impressão de me ter extraviado da linha estabelecida para minha investigação,ver em [[1]]. Permitam-me, portanto, fornecer a garantia expressa de que não tenho a menor intenção de formular juízos sobre o grande experimento em civilização que se encontra hoje em desenvolvimento no imenso país que se estende entre a Europa e a Ásia. Não possuo conhecimento especial nem capacidade de decidir sobre sua praticabilidade para testar a adequação dos métodos empregados ou medir a amplitude do inevitável hiato existente entre intenção e execução. O que lá está em preparo, mostra-se inacabado, tornando, portanto, baldada uma investigação para a qual nossa própria civilização, há longo tempo consolidada, nos fornece material. II Deslizamos, sem nos darmos conta, do campo econômico para o da psicologia. A princípio, ficamos tentados a procurar as vantagens da civilização na riqueza disponível e nos regulamentos para sua distribuição. Entretanto, com o reconhecimento de que toda civilização repousa numa compulsão a trabalhar e numa renúncia ao instinto, provocando, portanto, inevitavelmente, a oposição dos atingidos por essas exigências, tornou-se claro que a civilização não pode consistir, principal ou unicamente na própria riqueza, nos meios de adquiri-la e nas disposições para sua distribuição, de uma vez que essas coisas são ameaçadas pela rebeldia e pela mania destrutiva dos participantes da civilização. Junto com a riqueza deparamo-nos agora com os meios pelos quais a civilização pode ser defendida: medidas de coerção e outras, que se destinam a reconciliar os homens com ela e a recompensá-los por seus sacrifícios. Estas últimas podem ser descritas como as vantagens mentais da civilização. Em benefício de uma terminologia uniforme, descreveremos como ‘frustração’ o fato de um instinto não poder ser satisfeito, como ‘proibição’ o regulamento pelo qual essa frustração é estabelecida, e como ‘privação’ a condição produzida pela proibição. O primeiro passo consiste em distinguir entre privações que afetam a todos e privações que não afetam a todos, mas apenas a grupos, classes ou mesmo indivíduos isolados. As primeiras são as mais antigas; com as proibições que as estabeleceram, a civilização - quem sabe há quantos milhares de anos? - começou a separar o homem de sua condição animal primordial.Para nossa surpresa, descobrimos que essas privações ainda são operantes e ainda constituem o âmago da hostilidade para com a civilização. Os desejos instintuais que sob elas padecem, nascem de novo com cada criança; há uma classe de pessoas, os neuróticos, que reagem a essas frustrações através de um comportamento associal. Entre esses desejos instintuais encontram-se os do canibalismo, do incesto e da ânsia de matar. Soa estranho colocar lado a lado desejos que todos parecem unânimes em repudiar e desejos sobre os quais existe tão vívida disputa em nossa civilização quanto a sua permissão ou frustração; psicologicamente, porém, é justificável proceder assim. Tampouco, de modo algum é uniforme a atitude da civilização para com esses antigos desejos instintuais. Apenas o canibalismo parece ser universalmente proscrito e - para a opinião não psicanalítica - ter sido completamente dominado. A intensidade dos desejos incestuosos ainda pode ser detectada por detrás da proibição contra eles, e, sob certas condições, o matar ainda é praticado, e, na verdade, ordenado, por nossa civilização. É possível que ainda tenhamos pela frente desenvolvimentos culturais em que a satisfação de outros desejos, inteiramente permissíveis hoje, parecerá tão inaceitável quanto, atualmente, o canibalismo. Essas primeiras renúncias instintuais já envolvem um fator psicológico igualmente importante para todas as outras renúncias instintuais. Não é verdade que a mente humana não tenha passado por qualquer desenvolvimento desde os tempos primitivos e que, em contraste com os avanços da ciência e da tecnologia, seja hoje a mesma que era nos primórdios da história. Podemos assinalar de imediato um desses progressos mentais. Acha-se em consonância com o curso do desenvolvimento humano que a coerção externa se torne gradativamente internalizada, pois um agente mental especial, o superego do homem, a assume e a inclui entre seus mandamentos. Toda criança nos apresenta esse processo de transformação; é só por esse meio que ela se torna um ser moral e social. Esse fortalecimento do superego constitui uma vantagem cultural muito preciosa no campo psicológico. Aqueles em que se realizou são transformados de opositores em veículos da civilização. Quanto maior é o seu número numa unidade cultural, mais segura é a sua altura e mais ela pode passar sem medidas externas de coerção. Ora, o grau dessa internalização difere grandemente entre as diversas proibições instintuais. Com referência às primeiras exigências culturais, que já mencionei, a internalização parece ter sido amplamente conseguida, se não levarmos em conta a exceção desagradável dos neuróticos. Contudo, o caso se altera quando nos voltamos para as outras reivindicações instintuais. Aqui observamos com surpresa e preocupação que a maioria das pessoas obedece às proibições culturais nesses pontos apenas sob pressão da coerção externa, isto é, somente onde essa coerção pode fazer-se efetiva e enquanto deve ser temida. Isso também é verdade quanto ao que é conhecido como sendo as exigências morais da civilização, que, do mesmo modo, se aplicam a todos. A maioria das experiências que se tem da infidedignidade moral do homem ocorre nessa categoria. Há incontáveis pessoas civilizadas que se recusam a cometer assassinato ou a praticar incesto, mas que não se negam a satisfazer sua avareza, seus impulsos agressivos ou seus desejos sexuais, e que não hesitam em prejudicar outras pessoas por meio da mentira, da fraude e da calúnia, desde que possam permanecer impunes; isso, indubitavelmente, foi sempre assim através de muitas épocas da civilização. Se nos voltarmos para as restrições que só se aplicam a certas classes da sociedade, encontraremos um estado de coisas que é flagrante e que sempre foi reconhecido. É de esperar que essas classes subprivilegiadas invejem os privilégios das favorecidas e façam tudo o que podem para se liberarem de seu próprio excesso de privação. Onde isso não for possível, uma permanente parcela de descontentamento persistirá dentro da cultura interessada, o que pode conduzir a perigosas revoltas. Se, porém, uma cultura não foi além do ponto em que a satisfação de uma parte e de seus participantes depende da opressão da outra parte, parte esta talvez maior - e este é o caso em todas as culturas atuais-, é compreensível que as pessoas assim oprimidas desenvolvam uma intensa hostilidade para com uma cultura cuja existência elas tornam possível pelo seu trabalho, mas de cuja riqueza não possuem mais do que uma quota mínima. Em tais condições, não é de esperar uma internalização das proibições culturais entre as pessoas oprimidas. Pelo contrário, elas não estão preparadas para reconhecer essas proibições, têm a intenção de destruir a própria cultura e, se possível, até mesmo aniquilar os postulados em que se baseia. A hostilidade dessas classes para com civilização é tão evidente, que provocou a mais latente hostilidade dos estratos sociais mais passíveis de serem desprezados. Não é preciso dizer que uma civilização que deixa insatisfeito um número tão grande de seus participantes e os impulsiona à revolta, não tem nem merece a perspectiva de uma existência duradoura. O ponto até o qual os preceitos de uma civilização foram internalizados - ou, para expressá-lo de modo mais popular e não psicológico, o nível moral de seus participantes-, não constitui a única forma de riqueza mental que entra em consideração ao se avaliar o valor de uma civilização. Há, além disso, suas vantagens sob forma de ideais e criações artísticas, isto é, as satisfações que podem ser derivadas dessas fontes. As pessoas sempre estarão prontamente inclinadas a incluir entre os predicados psíquicos de uma cultura os seus ideais, ou seja, suas estimativas a respeito de que realizações são mais elevadas e em relação às quais se devem fazer esforços por atingir. Parece, a princípio, que esses ideais determinam as realizações da unidade cultural; contudo, o curso real dos acontecimentos parece indicar que os ideais se baseiam nas primeiras realizações que foram tornadas possíveis por uma combinação entre os dotes internos da cultura e as circunstâncias externas, e que essas primeiras realizações são então erigidas pelo ideal como algo a ser levado avante. A satisfação que o ideal oferece aos participantes da cultura é, portanto, de natureza narcísica; repousa em seu orgulho pelo que já foi alcançado com êxito. Tornar essa satisfação completa exige uma comparação com outras culturas que visaram a realizações diferentes e desenvolveram ideais distintos. É a partir da intensidade dessas diferenças que toda cultura reivindica o direito de olhar com desdém para o resto. Desse modo, os ideais culturais se tornam fonte de discórdia e inimizades entre unidades culturais diferentes, tal como se pode constatar claramente no caso das nações. A satisfação narcísica proporcionada pelo ideal cultural encontra-se também entre as forças que alcançam êxito no combate à hostilidade para com a cultura dentro da unidade cultural. Essa satisfação pode ser partilhada não apenas pelas classes favorecidas, que desfrutam dos benefícios da cultura, mas também pelas oprimidas, já que o direito a desprezar povos estrangeiros as compensa pelas injustiças que sofrem dentro de sua própria unidade. Não há dúvida de que alguém pode ter sido um plebeu infeliz, atormentado por dívidas e pelo serviço militar, mas, em compensação, não deixava de ser um cidadão romano, com sua própria quota na tarefa de governar outras nações e ditar suas leis. Essa identificação das classes oprimidas com a classe que as domina e explora é, contudo, apenas uma parte de um todo maior. Isso porque, por outro lado, as classes oprimidas podem estar emocionalmente ligadas a seus senhores; apesar de sua hostilidade para com eles, podem ver neles os seus ideais. A menos que tais relações de tipo fundamentalmente satisfatório subsistam, é impossível compreender como uma série de civilizações sobreviveu por tão longo tempo, malgrado a justificável hostilidade de grandes massas humanas. Um tipo diferente de satisfação é concedido aos participantes de uma unidade cultural pela arte, embora, via de regra, ela permaneça inacessível às massas, que se acham empenhadas num trabalho exaustivo, além de não terem desfrutado de qualquer educação pessoal. Como já descobrimos há muito tempo, a arte oferece satisfações substitutivas para as mais antigas e mais profundamente sentidas renúncias culturais, e, por esse motivo, ela serve, como nenhuma outra coisa, para reconciliar o homem com os sacrifícios que tem de fazer em benefício da civilização. Por outro lado, as criações da arte elevam seus sentimentos de identificação, de que toda unidade cultural carece tanto, proporcionando uma ocasião para a partilha de experiências emocionais altamente valorizadas. E quando essas criações retratam as realizações de sua cultura específica e lhe trazem à mente os ideais dela de maneira impressiva, contribuem também para sua satisfação narcísica. Nenhuma menção se fez ainda do que talvez constitua o item mais importante do inventário psíquico de uma civilização, item este que consiste, no sentido mais amplo, em suas idéias religiosas, ou, em outras palavras (que posteriormente serão justificadas), em suas ilusões. III Em que reside o valor peculiar das idéias religiosas? Já falamos da hostilidade para com a civilização, produzida pela pressão que esta exerce, pelas renúncias do instinto que exige. Se se imaginarem suspensas as suas proibições - se, então, se pudesse tomar a mulher que se quisesse como objeto sexual; se fosse possível matar sem hesitação o rival ao amor dela ou qualquer pessoa que se colocasse no caminho, e se, também, se pudesse levar consigo qualquer dos pertences de outro homem sem pedir licença-, quão esplêndida, que sucessão de satisfações seria a vida! É verdade que logo nos deparamos com a primeira dificuldade: todos os outros têm exatamente os mesmos desejos que eu, e não me tratarão com mais consideração do que eu os trato. Assim, na realidade, só uma única pessoa se poderia tornar irrestritamente feliz através de uma tal remoção das restrições da civilização, e essa pessoa seria um tirano, um ditador, que se tivesse apoderado de todos os meios de poder. E mesmo ele teria todos os motivos para desejar que os outros observassem pelo menos um mandamento cultural: ‘não matarás’. Mas quão ingrato, quão insensato, no fim das contas, é esforçar-se pela abolição da civilização! O que então restaria seria um estado de natureza, muito mais difícil de suportar. É verdade que a natureza não exigiria de nós quaisquer restrições dos instintos, deixar-nos-ia proceder como bem quiséssemos; contudo, ela possui seu próprio método, particularmente eficiente, de nos coibir. Ela nos destrói, fria, cruel e incansavelmente, segundo nos parece, e, possivelmente, através das próprias coisas que ocasionaram nossa satisfação. Foi precisamente por causa dos perigos com que a natureza nos ameaça que nos reunimos e criamos a civilização, a qual também, entre outras coisas, se destina a tornar possível nossa vida comunal, pois a principal missão da civilização, sua raison d’être real, é nos defender contra a natureza. Todos sabemos que, de diversas maneiras, a civilização já faz isso bastante bem, e é claro que, na medida em que o tempo passa, o fará muito melhor. Ninguém, no entanto, alimenta a ilusão de que a natureza já foi vencida, e poucos se atrevem a ter esperanças de que um dia ela se submeta inteiramente ao homem. Há os elementos, que parecem escarnecer de qualquer controle humano; a terra, que treme, se escancara e sepulta toda a vida humana e suas obras; a água, que inunda e afoga tudo num torvelinho; as tempestades, que arrastam tudo o que se lhes antepõe; as doenças, que só recentemente identificamos como sendo ataques oriundos de outros organismos, e, finalmente, o penoso enigma da morte, contra o qual remédio algum foi encontrado e provavelmente nunca será. É com essas forças que a natureza se ergue contra nós, majestosa, cruel e inexorável; uma vez mais nos traz à mente nossa fraqueza e desamparo, de que pensávamos ter fugido através do trabalho de civilização. Uma das poucas impressões gratificantes e exaltantes que a humanidade pode oferecer, ocorre quando, em face de uma catástrofe elementar, esquece as discordâncias de sua civilização, todas as suas dificuldades e animosidades internas, e se lembra da grande tarefa comum de se preservar contra o poder superior da natureza. Tal como para a humanidade em geral, também para o indivíduo a vida é difícil de suportar. A civilização de que participa impõe-lhe uma certa quantidade de privação, e outros homens lhe trazem outro tanto de sofrimento, seja apesar dos preceitos de sua civilização, seja por causa das imperfeições dela. A isso se acrescentam os danos que a natureza indomada - o que ele chama de Destino - lhe inflige. Poder-se-ia supor que essa condição das coisas resultaria num permanente estado de ansiosa expectativa presente nele e em grave prejuízo a seu narcisismo natural. Já sabemos como o indivíduo reage aos danos que a civilização e os outros homens lhe infligem: desenvolve um grau correspondente de resistência aos regulamentos da civilização e de hostilidade para com ela. Mas, como se defende ele contra os poderes superiores da natureza, do Destino, que o ameaçam da mesma forma que a tudo mais? A civilização o poupa dessa tarefa; ela a desempenha da mesma maneira para todos, igualmente, e é digno de nota que, nisso, quase todas as civilizações agem de modo semelhante. A civilização não se detém na tarefa de defender o homem contra a natureza, mas simplesmente a prossegue por outros meios. Trata-se de uma tarefa múltipla. A auto-estima do homem, seriamente ameaçada, exige consolação; a vida e o universo devem ser despidos de seus terrores; ademais, sua curiosidade, movida, é verdade, pelo mais forte interesse prático, pede uma resposta. Muito já se conseguiu com o primeiro passo: a humanização da natureza. De forças e destinos impessoais ninguém pode aproximar-se; permanecem eternamente distantes. Contudo, se nos elementos se enfurecerem paixões da mesma forma que em nossas próprias almas, se a própria morte não for algo espontâneo, mas o ato violento de uma Vontade maligna, se tudo na natureza forem Seres à nossa volta, do mesmo tipo que conhecemos em nossa própria sociedade, então poderemos respirar livremente, sentir-nos em casa no sobrenatural e lidar com nossa insensata ansiedade através de meios psíquicos. Talvez ainda nos achemos indefesos, mas não mais desamparadamente paralisados; pelo menos, podemos reagir. Talvez, na verdade, sequer nos achemos indefesos. Contra esses violentos superhomens externos podemos aplicar os mesmos métodos que empregamos em nossa própria sociedade; podemos tentar conjurá-los, apaziguá-los, suborná-los e, influenciando-os assim, despojá-los de uma parte de seu poder. Uma tal substituição da ciência natural pela psicologia não apenas proporciona alívio imediato, mas também aponta o caminho para um ulterior domínio da situação. Porque essa situação não é nova. Possui um protótipo infantil, de que, na realidade, é somente a continuação. Já uma vez antes, nos encontramos em semelhante estado de desamparo: como crianças de tenra idade, em relação a nossos pais. Tínhamos razões para temê-los, especialmente nosso pai; contudo, estávamos certos de sua proteção contra os perigos que conhecíamos. Assim, foi natural assemelhar as duas situações. Aqui, também, o desejar desempenhou seu papel, tal como faz na vida onírica. Aquele que dorme pode ser tomado por um pressentimento da morte, que ameaça colocá-lo no túmulo. A elaboração onírica, porém, sabe como selecionar uma condição que transformará mesmo esse temível evento uma realização de desejo: aquele que sonha vê-se a si mesmo numa antiga sepultura etrusca a que desceu, feliz por satisfazer seus interesses arqueológicos. Do mesmo modo, um homem transforma as forças da natureza não simplesmente em pessoas com quem pode associar-se como com seus iguais - pois isso não faria justiça à impressão esmagadora que essas forças causam nele -, mas lhes concede o caráter de um pai. Transforma-as em deuses, seguindo nisso, como já tentei demonstrar, não apenas um protótipo infantil, mas um protótipo filogenético. No decorrer do tempo, fizeram-se as primeiras observações de regularidade e conformidade à lei nos fenômenos naturais, e, com isso, as forças da natureza perderam seus traços humanos. O desamparo do homem, porém, permanece e, junto com ele, seu anseio pelo pai e pelos deuses. Estes mantêm sua tríplice missão: exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte,e compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impôs. Contudo, dentro dessas funções há um deslocamento gradual de ênfase. Observou-se que os fenômenos da natureza se desenvolviam automaticamente, de acordo com as necessidades internas. Indubitavelmente, os deuses eram os senhores da natureza; haviam-na disposto para ser como era e agora podiam deixá-la por sua própria conta. Apenas ocasionalmente, no que se conhece como milagres, intervinham eles em seu curso, como para tornar claro que não haviam abandonado nada de sua esfera original de poder. Com referência à distribuição dos destinos, persistia a desagradável suspeita de que a perplexidade e o desamparo da raça humana não podiam ser remediados. Era aqui que os deuses se mostravam aptos a falhar. Se eles próprios haviam criado o Destino, então seus desígnios deviam ser considerados inescrutáveis. Alvoreceu a noção, no povo mais bem dotado da Antiguidade, de que Moira [o Destino] alçava-se acima dos deuses e que mesmo estes tinham os seus próprios destinos. E quanto mais autônoma a natureza se tornava e quanto mais os deuses se retiravam dela, com mais seriedade todas as expectativas se dirigiram para a terceira função deles, ou seja, mais a moralidade tornou-se o seu verdadeiro domínio. Ficou sendo então tarefa dos deuses nivelar os defeitos e os males da civilização, assistir os sofrimentos que os homens infligem uns aos outros em sua vida em conjunto e vigiar o cumprimento dos preceitos da civilização, a que os homens obedecem de modo tão imperfeito. Esses próprios preceitos foram creditados com uma origem divina; foram elevados além da sociedade humana e estendidos à natureza e ao universo. Foi assim que se criou um cabedal de idéias, nascido da necessidade que tem o homem de tornar tolerável seu desamparo, e construído com o material das lembranças do desamparo de sua própria infância e da infância da raça humana. Pode-se perceber claramente que a posse dessas idéias o protege em dois sentidos: contra os perigos da natureza e do Destino, e contra os danos que o ameaçam por parte da própria sociedade humana. Reside aqui a essência da questão. A vida neste mundo serve a um propósito mais elevado; indubitavelmente, não é fácil adivinhar qual ele seja, mas decerto significa um aperfeiçoamento da natureza do homem. É provavelmente a parte espiritual deste, a alma, que, no decurso do tempo, tão lenta e relutantemente, se desprendeu do corpo, que constitui o objeto desta elevação e exaltação. Tudo o que acontece neste mundo constitui expressão das intenções de uma inteligência superior para conosco, inteligência que, ao final, embora seus caminhos e desvios sejam difíceis de acompanhar, ordena tudo para o melhor - isto é, torna-o desfrutável por nós. Sobre cada um de nós vela uma Providência benevolente que só aparentemente é severa e que não permitirá que nos tornemos um joguete das forças poderosas e impiedosas da natureza. A própria morte não é uma extinção, não constitui um retorno ao inanimado inorgânico, mas o começo de um novo tipo de existência que se acha no caminho da evolução para algo mais elevado. E, olhando na outra direção, essa visão anuncia que as mesmas leis morais que nossas civilizações estabeleceram, governam também o universo inteiro, com a única diferença de serem mantidas por uma corte suprema de justiça incomparavelmente mais poderosa e harmoniosa. Ao final, todo o bem é recompensado e todo o mal, punido, se não na realidade, sob esta forma de vida, pelo menos em existências posteriores que se iniciam após a morte. Assim, todos os terrores, sofrimentos e asperezas da vida estão destinados a se desfazer. A vida após a morte, que continua a vida sobre a terra exatamente como a parte invisível do espectro se une à parte visível, nos conduz à perfeição que talvez tenhamos deixado de atingir aqui. E a sabedoria superior que dirige esse curso das coisas, a bondade infinita que nela se expressa, a justiça que nela atinge seu objetivo, são os atributos dos seres divinos que também nos criaram, e ao mundo como um todo, ou melhor, de um ser divino no qual, em nossa civilização, todos os deuses da Antiguidade foram condensados. O povo que pela primeira vez alcançou êxito em concentrar assim os atributos divinos não ficou pouco orgulhoso de seu progresso. Descerrara à vista o pai que sempre se achara oculto por detrás de toda figura divina, como seu núcleo. Fundamentalmente, isso constituía um retorno aos primórdios históricos da idéia de Deus. Agora que este era uma figura isolada, as relações do homem com ele podiam recuperar a intimidade e a intensidade do relacionamento do filho com o pai. Mas, já que se fizera tanto pelo próprio pai, desejava-se obter uma recompensa, ou, pelo menos, ser o seu filho bem amado, o seu Povo Escolhido. Muito mais tarde, a piedosa América reivindicou ser o ‘Próprio País de Deus’, e, com referência a uma das formas pelas quais os homens adoram a divindade, essa reivindicação é indubitavelmente válida. As idéias religiosas acima resumidas naturalmente passaram por um longo processo de desenvolvimento, e diversas civilizações a elas aderiram em diversas fases. Isolei uma dessas fases que corresponde aproximadamente à forma final assumida por nossa atual civilização branca e cristã. É fácil perceber que nem todas as partes desse quadro concordam igualmente bem umas com as outras, que nem todas as perguntas que têm premência de resposta a recebem, e que é difícil pôr de lado a contradição da experiência cotidiana. Não obstante, tal como são, essas idéias - idéias religiosas no sentido mais amplo - são prezadas como o mais precioso bem da civilização, como a coisa mais preciosa que ela tem a oferecer a seus participantes. São muito mais altamente prezadas do que todos os artifícios para conquistar tesouros da terra, prover os homens com o sustento, evitar suas doenças, e assim por diante. As pessoas sentem que a vida não seria tolerável se não ligassem a essas idéias o valor que é para elas reivindicado. E é aqui que surge a questão: o que são essas idéias à luz da psicologia? De onde derivam a estima em que são tidas? E, para dar mais um tímido passo, qual é seu valor real? IV Uma investigação que progride como um monólogo, sem interrupção, não está inteiramente livre de perigos. Facilmente, fica-se tentado a pôr de lado pensamentos que nela ameaçam irromper, e, em troca, fica-se com uma sensação de incerteza que, no final, se tenta manter submissa por uma decisão radical. Imaginarei, portanto, que tenho um opositor que acompanha meus argumentos com desconfiança e, aqui e ali, permitirei que interponha algumas observações. Escuto-o dizer: ‘Você empregou repetidamente as expressões “a civilização cria essas idéias religiosas, “a civilização as coloca à disposição de seus participantes”. Há nisso algo que me soa estranho. Não posso dizer por que razão, mas não soa tão natural quanto dizer que a civilização dos produtos do trabalho, ou sobre os direitos referentes às mulheres e crianças’. Ainda assim, penso que se justifica expressar-me dessa maneira. Tentei demonstrar que as idéias religiosas surgiram da mesma necessidade de que se originaram todas as outras realizações da civilização, ou seja, da necessidade de defesa contra a força esmagadoramente superior da natureza. A isso acrescentou-se um segundo motivo: o impulso a retificar as deficiências da civilização, que se faziam sentir penosamente. Ademais, é especialmente apropriado dizer que a civilização fornece ao indivíduo essas idéias, porque ele já as encontra lá; são-lhe presenteadas já prontas, e ele não seria capaz de descobri-las por si mesmo. Aquilo em que ele está ingressando constitui a herança de muitas gerações, e ele a assume tal como faz com a tabuada de multiplicar, a geometria, e outras coisas semelhantes. Há, na realidade, uma diferença nisso, mas ela reside em outro lugar e ainda não posso examiná-la. A sensação de estranheza que você menciona, talvez se deva em parte ao fato de esse corpo de idéias religiosas ser geralmente apresentado como revelação divina. Contudo, essa própria apresentação faz parte do sistema religioso e ignora inteiramente o desenvolvimento histórico conhecido dessas idéias e suas diferenças em épocas e civilizações diferentes. ‘Temos aqui outro ponto, que me parece ser mais importante. Você argumenta que a humanização da natureza deriva da necessidade de pôr fim à perplexidade e ao desamparo do homem frente a suas forças temíveis, de entrar em relação com elas e, finalmente, de influenciá-las. Mas uma motivação desse tipo parece supérflua. O homem primitivo não tem escolha, não dispõe de outra maneira de pensar. É-lhe natural,algo inato, por assim dizer, projetar exteriormente sua existência para o mundo e encarar todo acontecimento que observa como manifestação de seres que, no fundo, são semelhantes a ele próprio. É seu único método de compreensão. E de modo algum trata-se de algo auto-evidente, mas, pelo contrário, de uma coincidência notável, que, cedendo assim à sua disposição natural, consegue satisfazer uma de suas maiores necessidades’. Não acho isso tão notável. Imagina você que o pensamento não possui motivos práticos, que é simplesmente a expressão de uma curiosidade desinteressada? Isso, certamente, é algo muito improvável. Acredito antes que, quando o homem personifica as forças da natureza, está mais uma vez seguindo um modelo infantil. Ele aprendeu, das pessoas de seu primeiro ambiente, que a maneira de influenciá-las é estabelecer um relacionamento com elas; assim, mais tarde, tendo o mesmo fim em vista, trata tudo o mais com que se depara da mesma maneira por que tratou aquelas pessoas. Assim, não contradigo sua observação descritiva; é, de fato, natural ao homem personificar tudo o que deseja compreender, a fim de, posteriormente, controlá-lo (a dominação psíquica como preparação para a dominação física), mas forneço, além disso, um motivo e uma gênese para essa peculiaridade do pensar humano. ‘Mas ainda há um terceiro ponto. Você tratou anteriormente da origem da religião, em seu livro Totem e Tabu [1912-13]. Lá, porém, ela aparecia sob uma luz diferente. Tudo era o relacionamento filhopai. Deus era o pai exaltado, e o anseio pelo pai constituía a raiz da necessidade de religião. Desde então, segundo parece, você descobriu o fator da fraqueza e do desamparo humanos, ao qual, na verdade, o principal papel na formação da religião é geralmente atribuído, e agora transpõe tudo que foi outrora o complexo paterno em função do desamparo. Posso lhe pedir que explique essa transformação?’ Com prazer. Estava esperando esse convite. Contudo, trata-se realmente de uma transformação? Em Totem e Tabu, não era meu propósito explicar a origem da religião, mas apenas do totemismo. Poderá você, segundo qualquer dos pontos de vista que lhe são conhecidos, explicar o fato de que a primeira forma pela qual a divindade protetora se revelou aos homens teve de ser a de um animal, que tenha havido uma proibição contra matar e comer esse animal, e que, não obstante, o costume solene tenha sido matá-lo e comê-lo comunalmente uma vez por ano? É exatamente isso que acontece no totemismo. E dificilmente tem propósito argumentar se o totemismo deve ser chamado de religião. Ele possui vinculações estreitas com as posteriores religiões de deuses. Os animais totêmicos tornam-se os animais sagrados dos deuses, e as mais antigas, mas fundamentais restrições morais - as proibições contra o assassinato e o incesto - originam-se do totemismo. Aceite você ou não as conclusões de Totem e Tabu, espero que admita que uma série de fatos notáveis e desvinculados são nele reunidos num todo coerente. A questão de saber por que, a longo prazo, o deus animal não bastou, e foi substituído por um deus humano, mal foi abordada em Totem e Tabu, e outros problemas concernentes à formação da religião não foram, de modo algum, mencionados no livro. Considera você uma limitação desse tipo a mesma coisa que uma negação? Meu trabalho constitui um bom exemplo do isolamento estrito da contribuição específica que o exame psicanalítico pode efetuar quanto à solução do problema da religião. Se agora estou tentando acrescentar a outra parte, menos profundamente oculta, acho que você não deveria me acusar de estar me contradizendo, tal como antes me acusou de ser unilateral. Naturalmente, é meu dever apontar os vínculos de união entre o que disse antes e o que apresento agora, entre os motivos manifestos, entre o complexo paterno e o desamparo e a necessidade de proteção do homem. Essas vinculações não são difíceis de encontrar. Consistem na relação do desamparo da criança com o desamparo do adulto, que a continua, de maneira que, como era de esperar, os motivos para a formação da religião que a psicanálise revela agora, mostram ser os mesmos que a contribuição infantil aos motivos manifestos.Transportemo-nos para a vida mental de uma criança. Você se recorda da escolha de objeto de acordo com o tipo anaclítico [ligação], de que fala a psicanálise? A libido segue aí os caminhos das necessidades narcísicas e liga-se aos objetos que asseguram a satisfação dessas necessidades. Desta maneira, a mãe, que satisfaz a fome da criança, torna-se seu primeiro objeto amoroso e, certamente, também sua primeira proteção contra todos os perigos indefinidos que a ameaçam no mundo externo - sua primeira proteção contra a ansiedade, podemos dizer. Nessa função [de proteção] a mãe é logo substituída pelo pai mais forte, que retém essa posição pelo resto da infância. Mas a atitude da criança para com o pai é matizada por uma ambivalência peculiar. O próprio pai constitui um perigo para a criança, talvez por causa do relacionamento anterior dela com a mãe. Assim, ela o teme tanto quanto anseia por ele e o admira. As indicações dessa ambivalência na atitude para com o pai estão profundamente impressas em toda religião, tal como foi demonstrado em Totem e Tabu. Quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos poderes superiores, empresta a esses poderes as características pertencentes à figura do pai; cria para si próprio os deuses a quem teme, a quem procura propiciar e a quem, não obstante, confia sua própria proteção. Assim, seu anseio por um pai constitui um motivo idêntico à sua necessidade de proteção contra as conseqüências de sua debilidade humana. É a defesa contra o desamparo infantil que empresta suas feições características à reação do adulto ao desamparo que ele tem de reconhecer - reação que é, exatamente, a formação da religião. Mas não é minha intenção levar mais adiante a investigação do desenvolvimento da idéia de Deus; aquilo em que aqui estamos interessados é o corpo acabado das idéias religiosas, tal como transmitido pela civilização ao indivíduo. V Retomemos o fio de nossa investigação. Qual é, então, a significação psicológica das idéias religiosas e sob que título devemos classificá-las? A pergunta de modo algum é fácil de ser imediatamente respondida. Após rejeitar uma série de formulações, nos fixaremos na que se segue. As idéias religiosas são ensinamentos e afirmações sobre fatos e condições da realidade externa (ou interna) que nos dizem algo que não descobrimos por nós mesmos e que reivindicam nossa crença. Visto nos fornecerem informações sobre o que é mais importante e interessante para nós na vida, elas são particular e altamente prezadas. Quem quer que nada conheça a respeito delas é muito ignorante, e todos que as tenham acrescentado a seu conhecimento podem considerar-se muito mais ricos. Existem, naturalmente, muitos ensinamentos desse tipo sobre as mais variadas coisas do mundo. Toda lição escolar está cheia deles. Consideremos a geografia. É-nos dito que a cidade de Constança fica sobre o Bodensee. Uma canção estudantil acrescenta: ‘se não acredita, vá lá e veja’. Suponhamos que eu estive lá e que pude confirmar que de fato aquela encantadora cidade fica à beira de uma vasta extensão de água, chamada de Bodensee por todos os que vivem em torno dela; então, me convenci totalmente da correção daquela afirmação geográfica. Com respeito a isso, recordo-me de outra experiência, bastante notável. Já era homem maduro quando pela primeira vez me encontrei sobre a colina da Acrópole, em Atenas, entre as ruínas do templo, contemplando o mar azul. Uma sensação de espanto mesclava-se à minha alegria. Ela parecia dizer: ‘Então é realmente verdade, tal como aprendemos na escola!’ Quão superficial e fraca deve ter sido a crença que então adquirira na verdade real do que ouvira, se agora podia ficar tão espantado! Não darei, porém, demasiada ênfase ao significado dessa experiência, pois meu espanto poderia ter tido outra explicação, que não me ocorreu na ocasião, e que é de natureza inteiramente subjetiva, nada tendo a ver com o caráter especial do lugar. Todo ensinamento como este, então, exige uma crença em seu conteúdo, mas não sem produzir fundamentos para sua reivindicação. Esses ensinamentos são apresentados como o resultado resumido de um processo mais extenso de pensamento, baseado na observação e, decerto, também em inferências. Se alguém desejar passar por esse processo, em vez de aceitar seu resultado, eles lhe mostrarão como fazê-lo. Ademais, é-nos dada sempre, em acréscimo, a fonte do conhecimento que é por eles transmitido, quando essa fonte não é auto-evidente, como no caso das afirmações geográficas. Por exemplo, a Terra tem a forma de uma esfera; as provas aduzidas para isso são o experimento do pêndulo de Foucault, o comportamento do horizonte e a possibilidade de circunavegá-la. Visto ser impraticável, como qualquer pessoa interessada percebe, enviar crianças em idade escolar numa viagem em redor do mundo, satisfazemo-nos em permitir que o que é ensinado na escola seja aceito com confiança; sabemos, no entanto, que a via para a aquisição de uma convicção pessoal permanece aberta. Tentemos aplicar o mesmo teste aos ensinamentos da religião. Quando indagamos em que se funda sua reivindicação a ser acreditada, deparamo-nos com três respostas, que se harmonizam de modo excepcionalmente mau umas com as outras. Em primeiro lugar, os ensinamentos merecem ser acreditados porque já o eram por nossos primitivos antepassados; em segundo, possuímos provas que nos foram transmitidas desde esses mesmos tempos primevos; em terceiro, é totalmente proibido levantar a questão de sua autenticidade. Em épocas anteriores, uma tal presunção era punida com os mais severos castigos, e ainda hoje a sociedade olha com desconfiança para qualquer tentativa de levantar novamente a questão. Esse terceiro ponto está fadado a despertar nossas mais fortes suspeitas. Afinal de contas, uma proibição desse tipo só pode ter uma razão - que a sociedade se acha bastante cônscia da insegurança da reivindicação que faz em prol de suas doutrinas religiosas. Caso contrário, decerto estaria pronta a colocar os dados necessários à disposição de quem quer que desejasse chegar à convicção. Assim sendo, é com uma sensação de desconfiança difícil de apaziguar que passamos ao exame dos outros dois fundamentos de prova. Temos que acreditar porque nossos antecipassados acreditaram. Mas nossos ancestrais eram muito mais ignorantes do que nós. Acreditavam em coisas que hoje não nos é possível aceitar, e ocorre-nos a possibilidade de que as doutrinas da religião possam pertencer também a essa classe. As provas que nos legaram estão registradas em escritos que, eles próprios, trazem todos os sinais de infidedignidade. Estão cheios de contradições, revisões e falsificações e, mesmo onde falam de confirmações concretas, elas próprias acham-se inconfirmadas. Não adianta muito asseverar que suas palavras, ou inclusive apenas seu conteúdo, se originam da revelação divina, porque essa asserção é, ela própria, uma das doutrinas cuja autenticidade está em exame, e nenhuma proposição pode ser prova de si mesma. Chegamos assim à singular conclusão de que, de todas as informações proporcionadas por nosso patrimônio cultural, as menos autenticadas constituem precisamente os elementos que nos poderiam ser da maior importância, ter a missão de solucionar os enigmas do universo e nos reconciliar com os sofrimentos. Não poderíamos ser levados a aceitar algo de tão pouco interesse para nós quanto o fato de as baleias darem à luz filhotes, em vez de porem ovos, se não se pudesse apresentar provas melhores do que isso. Esse estado de coisas é, em si próprio, um problema psicológico bastante notável. E que ninguém imagine que o que declarei a respeito da impossibilidade de provar a verdade das doutrinas religiosas contenha algo de novo. Isso já foi sentido em todas as épocas, e, indubitavelmente, também pelos ancestrais que nos transmitiram esse legado. Muitos deles provavelmente nutriram as mesmas dúvidas que nós, mas a pressão a eles imposta foi forte demais para que se atrevessem a expressá-las. E, visto que incontáveis pessoas foram atormentadas por dúvidas semelhantes e se esforçaram por reprimi-las, por acharem que era seu dever acreditar, muitos intelectos brilhantes sucumbiram a esse conflito e muitos caracteres foram prejudicados pelas transigências com que tentaram encontrar uma saída para ele. Se todas as provas apresentadas em prol da autenticidade dos ensinamentos religiosos se originam do passado, é natural que se passe o olhar em volta e se veja se o presente, sobre o qual é mais fácil formar julgamentos, não será capaz de fornecer provas desse tipo. Se, por esse meio, alcançássemos êxito em liberar da dúvida mesmo uma parte isolada do sistema religioso, a sua totalidade ganharia imensamente em credibilidade. Os processos dos espiritualistas vêm a nosso encontro nesse ponto; eles estão convencidos da sobrevivência da alma individual e procuram demonstrar-nos, para além de qualquer dúvida, a verdade dessa doutrina religiosa. Lamentavelmente, não conseguem refutar o fato de o aparecimento e as palavras dos espíritos serem simplesmente produtos de sua própria atividade mental. Invocaram os espíritos dos maiores homens e dos mais eminentes pensadores, mas todos os pronunciamentos e informações que deles receberam foram tão tolos e tão deploravelmente sem sentido que neles nada se pode encontrar de crível, exceto a capacidade dos espíritos em se adaptarem ao círculo de pessoas que os conjuraram. Devo agora mencionar duas tentativas que foram feitas - ambas as quais transmitem a impressão de serem esforços desesperados - para fugir ao problema. Uma, de natureza violenta, é antiga; a outra, sutil e moderna. A primeira é o ‘Credo quia absurdum’, do primeiro Padre da Igreja. Sustenta que as doutrinas religiosas estão fora da jurisdição da razão - acima dela. Sua verdade deve ser sentida interiormente, e não precisam ser compreendidas. Mas esse Credo só tem interesse como autoconfissão. Como declaração autorizada, não possui força obrigatória. Devo ser obrigado a acreditar em todos os absurdos? E caso não, por que nesse em particular? Acima da razão não há tribunal a que apelar. Se a verdade das doutrinas religiosas depende de uma experiência interior que dá testemunho dessa verdade, o que se deve fazer com as muitas pessoas que não dispõem dessa rara experiência? Pode-se exigir que todo homem utilize o dom da razão de que é possuidor, mas não se pode erigir, com base num motivo que existe apenas para poucos, uma obrigação que se aplique a todos. Se determinado homem obteve uma convicção inabalável a respeito da verdadeira realidade das doutrinas religiosas, a partir de um estado de êxtase que o comoveu profundamente, que significação isso tem para os outros? A segunda tentativa é a efetuada pela filosofia do ‘como se’, que assevera que nossa atividade de pensamento inclui grande número de hipóteses cuja falta de fundamento e até mesmo absurdeza compreendemos perfeitamente. São chamadas de ‘ficções’, mas, por várias razões práticas, temos de nos comportar ‘como se’ nelas acreditássemos. Tal é o caso das doutrinas religiosas, devido à sua incomparável importância para a manutenção da sociedade humana. Essa linha de argumentação não se afasta muito do ‘Credo quia absurdum‘, mas penso que a exigência feita pelo argumento do ‘como se’ é uma exigência que só o filósofo pode apresentar. Um homem cujo pensar não se acha influenciado pelos artifícios da filosofia nunca poderá aceitá-la; na opinião de tal homem, a admissão de que algo é absurdo ou contrário à razão não deixa mais nada a ser dito. Não se pode esperar dele que, precisamente ao tratar de seus interesses mais importantes, abra mão das garantias que exige para todas as suas atividades comuns. Lembro-me de um de meus filhos que se distinguia, em idade precoce, por uma positividade particularmente acentuada. Quando estava sendo contada às crianças uma história de fadas e todas a escutavam com embevecida atenção, ele se levantava e perguntava: ‘Essa história é verdadeira?’ Quando se respondia que não, afastava-se com um olhar de desdém. Podemos esperar que dentro em breve as pessoas se comportem da mesma maneira para com os contos de fadas da religião, a despeito de tudo o que o ‘como se’ advoga. Atualmente, porém, elas ainda se conduzem de modo inteiramente diferente e, em tempos passados, as idéias religiosas, a despeito de sua incontrovertível falta de autenticidade, exerceram a mais forte influência possível sobre a humanidade. Trata-se de um novo problema psicológico. Devemos perguntar onde reside a força interior dessas doutrinas e a que devem sua eficácia, independente, como é, do reconhecimento pela razão. VI Acho que preparamos suficientemente o caminho para uma resposta a ambas as perguntas. Ela será encontrada se voltarmos nossa atenção para a origem psíquica das idéias religiosas. Estas, proclamadas como ensinamentos, não constituem precipitados de experiência ou resultados finais de pensamento: são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade. O segredo de sua força reside na força desses desejos. Como já sabemos, a impressão terrificante de desamparo na infância despertou a necessidade de proteção - de proteção através do amor -, a qual foi proporcionada pelo pai; o reconhecimento de que esse desamparo perdura através da vida tornou necessário aferrar-se à existência de um pai, dessa vez, porém, um pai mais poderoso. Assim o governo benevolente de uma Providência divina mitiga nosso temor dos perigos da vida; o estabelecimento de uma ordem moral mundial assegura a realização das exigências de justiça, que com tanta freqüência permaneceram irrealizadas na civilização humana; e o prolongamento da existência terrena numa vida futura fornece a estrutura local e temporal em que essas realizações de desejo se efetuarão. As respostas aos enigmas que tentam a curiosidade do homem, tais como a maneira pela qual o universo começou ou a relação entre corpo e mente, são desenvolvidas em conformidade com as suposições subjacentes a esse sistema. Constitui alívio enorme para a psique individual se os conflitos de sua infância, que surgem do complexo paterno - conflitos que nunca superou inteiramente -, são dela retirados e levados a uma solução universalmente aceita. Quando digo que todas essas coisas são ilusões, devo definir o significado da palavra. Uma ilusão não é a mesma coisa que um erro; tampouco é necessariamente um erro. A crença de Aristóteles de que os insetos se desenvolvem do esterco (crença a que as pessoas ignorantes ainda se aferram) era um erro; assim como a crença de uma geração anterior de médicos de que a tabes dorsalis constitui resultado de excessos sexuais. Seria incorreto chamar esses erros de ilusões. Por outro lado, foi uma ilusão de Colombo acreditar que descobriu um novo caminho marítimo para as Índias. O papel desempenhado por seu desejo nesse erro é bastante claro. Pode-se descrever como ilusão a asserção feita por certos nacionalistas de que a raça indo-germânica é a única capaz de civilização, ou a crença, que só foi destruída pela psicanálise, de que as crianças são criaturas sem sexualidade. O que é característico das ilusões é o fato de derivarem de desejos humanos. Com respeito a isso, aproximam-se dos delírios psiquiátricos, mas deles diferem também, à parte a estrutura mais complicada dos delírios. No caso destes,enfatizamos como essencial o fato de eles se acharem em contradição com a realidade. As ilusões não precisam ser necessariamente falsas, ou seja, irrealizáveis ou em contradição com a realidade. Por exemplo, uma moça de classe média pode ter a ilusão de que um príncipe aparecerá e se casará com ela. Isso é possível, e certos casos assim já ocorreram. Que o Messias chegue e funde uma idade de ouro é muito menos provável. Classificar-se essa crença como ilusão ou como algo análogo a um delírio dependerá da própria atitude pessoal. Exemplos de ilusões que mostraram ser verdadeiras não são fáceis de encontrar, mas a ilusão dos alquimistas de que todos os metais podiam ser transformados em ouro poderia ser um deles. O desejo de possuir uma grande quantidade de ouro, tanto ouro quanto possível, foi, é verdade, em grande parte arrefecido por nosso conhecimento atual dos fatores determinantes da riqueza, mas a química não mais encara a transmutação dos metais em ouro como impossível. Podemos, portanto, chamar uma crença de ilusão quando uma realização de desejo constitui fator proeminente em sua motivação e, assim procedendo, desprezamos suas relações com a realidade, tal como a própria ilusão não dá valor à verificação. Havendo estabelecido desse modo nossas coordenadas, retornemos à questão das doutrinas religiosas. Podemos agora repetir que todas elas são ilusões e insuscetíveis de prova. Ninguém pode ser compelido a achá-las verdadeiras, a acreditar nelas. Algumas são tão improváveis, tão incompatíveis com tudo que laboriosamente descobrimos sobre a realidade do mundo, que podemos compará-las - se consideramos de forma apropriada as diferenças psicológicas - a delírios. Do valor de realidade da maioria delas não podemos ajuizar; assim como não podem ser provadas, também não podem ser refutadas. Conhecemos ainda muito pouco para efetuar sua abordagem crítica. Os enigmas do universo só lentamente se revelam à nossa investigação; existem muitas questões a que a ciência atualmente não pode dar resposta. Mas o trabalho científico constitui a única estrada que nos pode levar a um conhecimento da realidade externa a nós mesmos. É, mais uma vez, simplesmente uma ilusão esperar qualquer coisa da intuição e da introspecção; elas nada nos podem dar, a não ser detalhes sobre nossa própria vida mental, detalhes difíceis de interpretar, nunca qualquer informação sobre as perguntas que a doutrina religiosa acha tão fácil responder. Seria insolente permitir que nossa própria vontade arbitrária ingressasse na questão e, de acordo com nossa estimativa pessoal, declarasse esta ou aquela parte do sistema religioso como mais ou menos aceitável. Tais questões são momentosas demais para isso; poderiam ser chamadas de demasiadamente sagradas.Nesse ponto, é de esperar que se encontre uma objeção. ‘Bem, então, se mesmos os céticos impenitentes admitem que as asserções da religião não podem ser refutadas pela razão, por que não devo acreditar nelas, já que possuem tanta coisa de seu lado - a tradição, a concordância da humanidade, e todas as consolações que oferecem?’ De fato, por que não? Assim como ninguém pode ser forçado a crer, também ninguém pode ser forçado a descrer. Mas não nos permitamos ficar satisfeitos em nos enganarmos que argumentos desse tipo nos conduzirão pela estrada do pensamento correto. Se algum dia já houve um exemplo de desculpa esfarrapada, temolo aqui. Ignorância é ignorância; nenhum direito a acreditar em algo pode ser derivado dela. Em outros assuntos, nenhuma pessoa sensata se comportaria tão irresponsavelmente ou se contentaria com fundamentos tão débeis para suas opiniões e para a posição que assume. É apenas nas coisas mais elevadas e sagradas que se permite fazê-lo. Na realidade, trata-se apenas de tentativas de fingir para nós mesmos ou para outras pessoas que ainda nos achamos firmemente ligados à religião, quando há muito tempo já nos apartamos dela. Quanto a questões de religião, as pessoas são culpadas de toda espécie possível de desonestidade e mau procedimento intelectual. Os filósofos distendem tanto o sentido das palavras, que elas mal retêm algo de seu sentido original. Dão o nome de ‘Deus’ a alguma vaga abstração que criaram para si mesmos e, assim, podem posar perante todos como deístas, como crentes em Deus, e inclusive gabar-se de terem identificado um conceito mais elevado e puro de Deus, não obstante significar seu Deus agora nada mais que uma sombra sem substância, sem nada da vigorosa personalidade das doutrinas religiosas. Os críticos insistem em descrever como ‘profundamente religioso’ qualquer um que admita uma sensação da insignificância ou impotência do homem diante do universo, embora o que constitua a essência da atitude religiosa não seja essa sensação, mas o passo seguinte, a reação que busca um remédio para ela. O homem que não vai além, mas humildemente concorda com o pequeno papel que os seres humanos desempenham no grande mundo, esse homem é, pelo contrário, irreligioso no sentido mais verdadeiro da palavra. Avaliar o valor de verdade das doutrinas religiosas não se acha no escopo da presente investigação. Basta-nos que as tenhamos reconhecido como sendo, em sua natureza psicológica, ilusões. Contudo, não somos obrigados a ocultar o fato de que essa descoberta também influencia fortemente nossa atitude para com a questão que a muitos deve parecer a mais importante de todas. Sabemos aproximadamente em que períodos, e por que tipo de homens, as doutrinas religiosas foram criadas. Se, ademais, descobrirmos os motivos que conduziram a isso, nossa atitude para com o problema da religião experimentará um acentuado deslocamento. Dir-nos-emos que seria muito bom se existissem um Deus que tivesse criado o mundo, uma Providência benevolente, uma ordem moral no universo e uma vida posterior; constitui, porém, fato bastante notável que tudo isso seja exatamente como estamos fadados a desejar que seja. E seria ainda mais notável se nossos lamentáveis, ignorantes e espezinhados ancestrais tivessem conseguido solucionar todos esses difíceis enigmas do universo. VII Tendo identificado as doutrinas religiosas como ilusões, somos imediatamente defrontados por outra questão: não poderão ser de natureza semelhante outros predicados culturais de que fazemos alta opinião e pelos quais deixamos nossas vidas serem governadas? Não devem as suposições que determinam nossas regulamentações políticas serem chamadas também de ilusões? E não acontece que, em nossa civilização, as relações entre os sexos sejam perturbadas por ilusão erótica ou um certo número dessas ilusões? E, uma vez despertada nossa suspeita, não nos esquivaremos de também perguntar se nossa convicção de que podemos aprender algo sobre a realidade externa pelo emprego da observação e do raciocínio no trabalho científico, possui um fundamento melhor. Nada deveria impedirnos de dirigir a observação para nossos próprios eus e de aplicar o pensamento à crítica dele próprio. Nesse campo, uma série de investigações se abre a nossa frente, cujos resultados não podem deixar de ser decisivos para a construção de uma ‘Weltanschauung’. Imaginamos, ademais, que um esforço desse tipo não seria vão e que, pelo menos em parte, justificaria nossas suspeitas. O autor, porém, não dispõe dos meios para empreender tarefa tão abrangente; necessita confinar seu trabalho ao seguimento de apenas uma dessas ilusões, a saber, a da religião. Aqui, a alta voz de nosso opositor nos interrompe. É-nos exigido que expliquemos nossa má ação: ‘Os interesses arqueológicos são, indubitavelmente, bastante dignos de elogios, mas ninguém empreende uma escavação se, assim procedendo, solapar as moradias de pessoas vivas, de maneira que aquelas aluam e soterrem estas sob suas ruínas. As doutrinas da religião não constituem um tema sobre o qual se possa tergiversar, como outro qualquer. Nossa civilização se ergue sobre elas e a manutenção da sociedade humana se baseia na crença da maioria dos homens na verdade dessas doutrinas. Caso se lhes ensine que não existe um Deus todo-poderoso e justo, nem ordem mundial divina, nem vida futura, se sentirão isentos de toda e qualquer obrigação de obedecer aos preceitos da civilização. Sem inibição ou temor, seguirão seus instintos associais e egoístas, e procurarão exercer seu poder; o Caos, que banimos através de muitos milhares de anos de trabalho civilizatório, mais uma vez retornará. Mesmo que soubéssemos, e pudéssemos provar, que a religião não se acha na posse da verdade, deveríamos ocultar esse fato e nos comportarmos da maneira prescrita pela filosofia do ‘como se’, e isso no interesse da preservação de todos nós. E, à parte o perigo do empreendimento, seria uma crueldade sem propósito. Não poucas pessoas encontram sua única consolação nas doutrinas religiosas, e só conseguem suportar a vida com o auxílio delas. Você as despojaria de seu apoio, sem ter nada melhor a lhes oferecer em troca. Admite-se que, até agora, a ciência ainda não conseguiu muita coisa, mas, mesmo que progredisse mais, não bastaria para o homem. Este possui necessidades imperiosas de outro tipo, que jamais poderiam ser satisfeitas pela frígida ciência, sendo muito estranho - na verdade, o auge da incoerência - que um psicólogo, que sempre insistiu em que a inteligência, quando comparada à vida dos instintos, desempenha apenas um papel de menor vulto nos assuntos humanos, tente agora despojar a humanidade de uma preciosa realização de desejos e proponha compensá-la disso com um alimento intelectual’. Quantas acusações de uma só vez! Não obstante, estou preparado para refutá-las e, mais ainda, afirmo que a civilização corre um risco muito maior se mantivermos nossa atual atitude para com a religião do que se a abandonarmos. Contudo, mal sei por onde começar minha réplica. Talvez sirva de garantia o fato de que eu mesma encare meu empreendimento como completamente inócuo e livre de riscos. Aqui, não sou eu quem está supervalorizando o intelecto. Se as pessoas são como meus opositores as descrevem - e não gostaria de contradizê-los -, então não há perigo de que a crença de um devoto seja vencida pelos meus argumentos, e ele, privado de sua fé. Além disso, não disse nada que outros homens, melhores do que eu, já não tenham dito antes de mim, de modo muito mais completo, energético e impressivo. Seus nomes são bem conhecidos e não vou citá-los porque não quero dar a impressão de estar procurando colocar-me entre eles. Tudo o que fiz - e isso constitui a única coisa nova em minha exposição - foi acrescentar uma certa base psicológica às críticas de meus grandes predecessores. É difícil esperar que precisamente esse acréscimo produza o efeito que foi negado àqueles esforços anteriores. Não há dúvida de que aqui se me poderia perguntar qual a vantagem de escrever isso, se estou certo de que será ineficaz. Retornarei a esse ponto mais tarde. Sou a única pessoa a quem essa publicação pode prejudicar. Serei obrigado a ouvir as mais desagradáveis censuras por causa de minha superficialidade, estreiteza de espírito e falta de idealismo ou compreensão dos mais altos interesses da humanidade. Por um lado, porém, tais admoestações não são novas para mim, e, por outro, se um homem já aprendeu na juventude a se sobrepor à desaprovação de seus contemporâneos, que lhe pode ela importar na velhice, quando ele está certo de que em breve se achará além do alcance de todo favor ou desfavor? Em épocas passadas, era diferente. Então, declarações como as minhas acarretavam um seguro cerceamento da existência terrena de quem as proferisse e uma aceleração efetiva da oportunidade de conseguir uma experiência pessoal do além. Mas, repito, esses tempos já passaram e, atualmente, os escritos desse tipo não trazem para seu autor mais perigo do que para seus leitores. O máximo que pode acontecer é que a tradução ou distribuição de seu livro sejam proibidas num país ou noutro, e, precisamente, é natural, num país que esteja convencido do alto padrão de sua cultura. Mas se alguém faz um apelo em favor da renúncia aos desejos e da aquiescência ao Destino, tem que ser capaz de tolerar também esse tipo de prejuízo. Outra questão que me ocorreu foi a de saber se, no fim das contas, a publicação dessa obra não poderia causar danos. Não a uma pessoa, mas a uma causa, a causa da psicanálise, pois não se pode negar que a psicanálise é criação minha e que se deparou com muita desconfiança e má vontade. Se agora me apresento com esses pronunciamentos desagradáveis, as pessoas estarão prontas a efetuar um deslocamento de minha pessoa para a psicanálise: ‘Agora estamos vendo’, dirão, ‘aonde a psicanálise conduz. A máscara caiu; conduz a uma negação de Deus e de um ideal moral, como sempre desconfiamos. Para nos manter afastados dessa descoberta é que fomos iludidos a pensar que a psicanálise não possuía Weltanschauung e que jamais poderia elaborar uma.’ Um clamor desse tipo me seria realmente desagradável, por causa de meus muitos colaboradores, alguns dos quais, de modo algum, partilham de minha atitude para com os problemas da religião. A psicanálise, porém, já enfrentou muitas tempestades e terá agora de arrostar mais essa. Na realidade, a psicanálise constitui um método de pesquisa, um instrumento imparcial, tal como o cálculo infinitesimal, por assim dizer. Se um físico descobrisse, com o auxílio deste último, que ao fim de certo tempo a Terra seria destruída, ainda assim hesitaríamos em atribuir tendências destrutivas ao próprio cálculo e, portanto, em proscrevê-lo. Nada do que eu disse aqui sobre o valor de verdade das religiões precisou do apoio da psicanálise; já foi dito por outros muito antes que a análise surgisse. Se a aplicação do método psicanalítico torna possível encontrar um novo argumento contra as verdades da religião, tant pis para a religião, mas os defensores desta, com o mesmo direito, poderão fazer uso da psicanálise para dar valor integral à significação emocional das doutrinas religiosas. Prossigamos com nossa defesa. A religião, é claro, desempenhou grandes serviços para a civilização humana. Contribuiu muito para domar os instintos associais. Mas não o suficiente. Dominou a sociedade humana por muitos milhares de anos e teve tempo para demonstrar o que pode alcançar. Se houvesse conseguido tornar feliz a maioria da humanidade, confortá-la, reconciliá-la com a vida, e transformá-la em veículo de civilização, ninguém sonharia em alterar as condições existentes. Mas, em vez disso, o que vemos? Vemos que um número estarrecedoramente grande de pessoas se mostram insatisfeitas e infelizes com a civilização, sentindo-a como um jugo do qual gostariam de se libertar; e que essas pessoas fazem tudo que se acha em seu poder para alterar a civilização, ou então vão tão longe em sua hostilidade contra ela, que nada têm a ver com a civilização ou com uma restrição do instinto. Nesse ponto, será objetado contra nós que esse estado de coisas se deve ao próprio fato de a religião ter perdido parte de sua influência sobre as massas humanas, exatamente por causa do deplorável efeito dos progressos da ciência. Tomaremos nota dessa admissão e do motivo que lhe é dado; dela faremos uso posteriormente para nossos próprios fins, mas a objeção em si não possui força. É duvidoso que os homens tenham sido em geral mais felizes na época em que as doutrinas religiosas dispunham de uma influência irrestrita; mais morais certamente não foram. Sempre souberam como externalizar os preceitos da religião e anular assim suas intenções. Os sacerdotes, cujo dever era assegurar a obediência à religião, foram a seu encontro nesse aspecto. A bondade de Deus deve apor uma mão refreadora à Sua justiça. Alguém peca; faz depois um sacrifício ou se penitencia e fica livre para pecar de novo. A introspectividade russa atingiu o máximo ao concluir que o pecado é indispensável à fruição de todas as bênçãos da graça divina, de maneira que, no fundo, o pecado é agradável a Deus. Não é segredo que os sacerdotes só puderam manter as massas submissas à religião pela efetivação de concessões tão grandes quanto essas à natureza instintual do homem. Assim, concluíram: só Deus é forte e bom; o homem é fraco e pecador. Em todas as épocas, a imoralidade encontrou na religião um apoio não menor que a moralidade. Se as realizações da religião com respeito à felicidade do homem, susceptibilidade à cultura e controle moral não são melhores que isso, não pode deixar de surgir a questão de saber se não estamos superestimando sua necessidade para a humanidade e se fazemos bem em basearmos nela nossas exigências culturais.Consideremos a situação inequívoca do presente. Escutamos a admissão de que a religião não mais possui sobre o povo a mesma influência que costumava ter.(Estamos aqui interessados na civilização européia cristã.) E isso não aconteceu por que suas promessas tenham diminuído, mas porque as pessoas as acham menos críveis. Admitamos que o motivo - embora talvez não o único - para essa mudança seja o aumento do espírito científico nos estratos mais elevados da sociedade humana. A crítica desbastou o valor probatório dos documentos religiosos, a ciência natural demonstrou os erros neles existentes, e a pesquisa comparativa ficou impressionada pela semelhança fatal existente entre as idéias religiosas que reverenciamos e os produtos mentais de povos e épocas primitivos. O espírito científico provoca uma atitude específica para com os assuntos do mundo; perante os assuntos religiosos, ele se detém um instante, hesita, e, finalmente, cruza-lhes também o limiar. Nesse processo, não há interrupção; quanto maior é o número de homens a quem os tesouros do conhecimento se tornam acessíveis, mais difundido é o afastamento da crença religiosa, a princípio somente de seus ornamentos obsoletos e objetáveis, mas, depois, também de seus postulados fundamentais. Os americanos que instituíram o ‘julgamento do macaco’ em Dayton mostraram-se, somente eles, coerentes. Em todas as outras partes a transição inevitável é realizada através de meias-medidas e insinceridades. A civilização pouco tem a temer das pessoas instruídas e dos que trabalham com o cérebro. Neles, a substituição dos motivos religiosos para o comportamento civilizado por outros motivos, seculares, se daria discretamente; ademais, essas pessoas são em grande parte, elas próprias, veículos de civilização. Mas a coisa já é outra com a grande massa dos não instruídos e oprimidos, que possuem todos os motivos para serem inimigos da civilização. Enquanto não descobrirem que as pessoas não acreditam mais em Deus, tudo correrá bem. Mas eles o descobrirão, infalivelmente, mesmo que este meu trabalho não seja publicado. E estarão prontos a aceitar os resultados do pensamento científico, mas sem que neles se tenha dado a modificação que o pensamento científico provoca nas pessoas. Não existe aqui perigo de que a hostilidade dessas massas à civilização se arremesse contra o ponto fraco que encontraram naquela que lhe impõe tarefas? Se a única razão pela qual não se deve matar nosso próximo é porque Deus proibiu e nos punirá severamente por isso nesta vida ou na vida futura, então, quando descobrirmos que não existe Deus e que não precisamos temer Seu castigo, certamente mataremos o próximo sem hesitação e só poderemos ser impedidos de fazê-lo pela força terrena. Desse modo, ou essas massas perigosas terão de ser muito severamente submetidas e com todo cuidado mantidas afastadas de qualquer possibilidade de despertar intelectual, ou então o relacionamento entre civilização e religião terá de sofrer uma revisão fundamental. VIII Poder-se-ia pensar que não haveria dificuldades especiais na maneira de executar essa última proposta. É verdade que ela envolveria uma certa parte de renúncia, mas talvez se ganhasse mais do que se perdesse, e um grande perigo seria evitado. No entanto, todos se assustam com isso, como se isso fosse expor a civilização a um perigo ainda maior. Quando São Bonifácio pôs abaixo a árvore que os saxões veneravam como sendo sagrada, os assistentes esperavam que algum acontecimento temível se seguisse ao sacrilégio. Mas nada aconteceu, e os saxões aceitaram o batismo. Quando a civilização formulou o mandamento de que o homem não deve matar o próximo a quem odeia, que se acha em seu caminho ou cuja propriedade cobiça, isso foi claramente efetuado no interesse comunal do homem, que, de outro modo, não seria praticável, pois o assassino atrairia para si a vingança dos parentes do morto e a inveja de outros, que, dentro de si mesmos, se sentem tão inclinados quanto ele a tais atos de violência. Assim, não desfrutaria de sua vingança ou de seu roubo por muito tempo, mas teria toda possibilidade de ele próprio em breve ser morto. Mesmo que se protegesse contra seus inimigos isolados através de uma força ou cautela extraordinárias, estaria fadado a sucumbir a uma combinação de homens mais fracos. Se uma combinação desse tipo não se efetuasse, o homicídio continuaria a ser praticado de modo infindável e o resultado final seria que os homens se exterminariam mutuamente. Chegaríamos, entre os indivíduos, ao mesmo estado de coisas que ainda persiste entre famílias na Córsega, embora, em outros lugares, apenas entre nações. A insegurança da vida, que constitui um perigo igual para todos, une hoje os homens numa sociedade que proíbe ao indivíduo matar, e reserva para si o direito à morte comunal de quem quer que viole a proibição. Aqui, então, temos justiça e castigo. Mas não damos publicidade a essa explicação racional da proibição do homicídio. Asseveramos que a proibição foi emitida por Deus. Assim, assumimos a responsabilidade de adivinhar Suas intenções e descobrimos que Ele também não gosta que os homens se exterminem uns aos outros. Comportandonos dessa maneira, revestimos a proibição cultural de uma solenidade muito especial, mas, ao mesmo tempo, nos arriscamos a tornar sua observância dependente da crença em Deus. Se voltarmos atrás, ou seja, se não mais atribuirmos a Deus o que é nossa própria vontade, e nos contentarmos em fornecer a razão social, então, é verdade, teremos renunciado à transfiguração da proibição cultural, mas também teremos evitado seu risco. Contudo, ganhamos algo mais. Através de certo tipo de difusão ou infecção, o caráter de santidade e inviolabilidade - de pertencer a outro mundo, poder-se-ia dizer - espalhou-se de certas poucas proibições de vulto para todas as outras regulamentações, leis e ordenações culturais. Nestas, entretanto, a auréola com freqüência não parece cair bem; não apenas se invalidam umas às outras por fornecerem decisões contrárias em épocas e lugares diferentes como também, à parte isso, apresentam todos os sinais de inadequação humana. É fácil identificar nelas coisas que só podem ser produto de uma compreensão míope, de uma expressão de interesses egoisticamente restritos, ou de uma conclusão baseada em premissas insuficientes. A crítica que não podemos deixar de lhes dirigir também diminui a um grau muito pouco favorável nosso respeito por outras exigências culturais mais justificáveis. Visto ser tarefa difícil isolar aquilo que o próprio Deus exigiu, daquilo que pode ter sua origem remontada à autoridade de um parlamento todo-poderoso ou de um alto judiciário, constituiria vantagem indubitável que abandonássemos Deus inteiramente e admitíssemos com honestidade a origem puramente humana de todas as regulamentações e preceitos da civilização. Junto com sua pretensa santidade, esses mandamentos e leis perderiam também sua rigidez e imutabilidade. As pessoas compreenderiam que são elaborados, não tanto para dominá-las, mas, pelo contrário, para servir a seus interesses, e adotariam uma atitude mais amistosa para com eles e, em vez de visarem à sua abolição, visariam unicamente à sua melhoria. Isso constituiria um importante avanço no caminho que leva à reconciliação com o fardo da civilização. Aqui, porém, nosso apelo em favor da atribuição de motivos puramente racionais aos preceitos da civilização - isto é, derivá-los da necessidade social - é interrompido por uma dúvida repentina. Escolhemos como exemplo a origem da proibição do homicídio. Mas nossa descrição dela concorda com a verdade histórica? Tememos que não; parece não ser mais do que uma elaboração racionalista. Com o auxílio da psicanálise, efetuamos um estudo precisamente dessa parte da história cultural da humanidade, e, baseando-nos nele, somos obrigados a dizer que, na realidade, as coisas aconteceram de outro modo. Mesmo no homem atual os motivos puramente racionais pouco podem fazer contra impulsões apaixonadas. Quão mais fracos, então, eles devem ter sido no animal humano das eras primevas! Talvez seus descendentes ainda hoje se matassem uns aos outros sem inibição, não fosse o fato de entre aqueles atos homicidas ter ocorrido um - a morte do pai primitivo - que evocou uma reação emocional irresistível, com conseqüências momentosas. Foi dele que surgiu o mandamento. Não matarás. Sob o totemismo, esse mandamento estava restrito ao substituto paterno, mas posteriormente foi estendido às outras pessoas, embora ainda hoje não seja universalmente obedecido. Contudo, e tal como foi demonstrado por argumentos que não preciso repetir aqui, o pai primevo constituiu a imagem original de Deus, o modelo a partir do qual as gerações posteriores deram forma à figura de Deus. Daí a explicação religiosa ser correta. Deus realmente desempenhou um papel na gênese daquela proibição; foi Sua influência, e não uma compreensão interna (insight) de necessidade social, que a criou. E o deslocamento da vontade do homem para Deus é plenamente justificado, pois os homens sabiam que se tinham livrado do pai através da violência, e, em sua reação a esse ato ímpio, resolveram respeitar doravante sua vontade. Dessa maneira, a doutrina religiosa nos conta a verdade histórica - submetida embora, é verdade, a certa modificação e disfarce -, ao passo que nossa descrição racional não a reconhece. Observamos agora que o cabedal de idéias religiosas inclui não apenas realizações de desejos, mas também importantes reminiscências históricas. Essa influência concorrente de passado e presente tem de conceder à religião uma riqueza de poder verdadeiramente incomparável. Entretanto, talvez, com o auxílio de uma analogia, outra descoberta ainda possa começar a alvorecer em nós. Embora não seja boa política transplantar idéias para longe do solo em que se desenvolveram, há aqui, contudo, uma consonância que não podemos deixar de apontar. Sabemos que a criança humana não pode completar com sucesso seu desenvolvimento para o estágio civilizado sem passar por uma fase de neurose, às vezes mais distinta, outras, menos. Isso se dá porque muitas exigências instintuais que posteriormente serão inaproveitáveis não podem ser reprimidas pelo funcionamento racional do intelecto da criança, mas têm de ser domadas através de atos de repressão, por trás dos quais, via de regra, se acha o motivo da ansiedade. A maioria dessas neuroses infantis é superespontaneamente no decurso do crescimento, sendo isso especialmente verdadeiro quanto às neuroses obsessivas da infância. O remanescente pode ser eliminado mais tarde ainda, através do tratamento psicanalítico. Exatamente do mesmo modo, podese supor, a humanidade como um todo, em seu desenvolvimento através das eras, tombou em estados análogos às neuroses, e isso pelos mesmos motivos - principalmente porque nas épocas de sua ignorância e debilidade intelectual, as renúncias instintuais indispensáveis à existência comunal do homem só haviam sido conseguidas pela humanidade através de forças puramente emocionais. Os precipitados desses processos semelhantes à repressão que se efetuou nos tempos pré-históricos, ainda permaneceram ligados à civilização por longos períodos. Assim, a religião seria a neurose obsessiva universal da humanidade; tal como a neurose obsessiva das crianças, ela surgiu do complexo de Édipo, do relacionamento com o pai. A ser correta essa conceituação, o afastamento da religião está fadado a ocorrer com a fatal inevitabilidade de um processo de crescimento, e nos encontramos exatamente nessa junção, no meio dessa fase de desenvolvimento. Nosso comportamento, portanto, deveria modelar-se no de um professor sensato que não se opõe a um novo desenvolvimento iminente, mas que procura facilitar-lhe o caminho e mitigar a violência de sua irrupção. Decerto nossa analogia não esgota a natureza essencial da religião. Se, por um lado, a religião traz consigo restrições obsessivas, exatamente como, num indivíduo, faz a neurose obsessiva, por outro, ela abrange um sistema de ilusões plenas de desejo juntamente com um repúdio da realidade, tal como não encontramos, em forma isolada, em parte alguma senão na amência, num estado de confusão alucinatória beatífica. Mas tudo isso não passa de analogias, com a ajuda das quais nos esforçamos por compreender um fenômeno social; a patologia do indivíduo não nos provê de um correspondente plenamente válido. Já foram repetidamente indicados (por mim próprio e, particularmente, por Theodor Reik) os múltiplos pormenores em que a analogia entre religião e neurose obsessiva pode ser acompanhada, e quantas das peculiaridades e vicissitudes da formação da religião podem ser entendidas a essa luz. E harmoniza-se bem com isso o fato de os crentes devotos serem em alto grau salvaguardados do risco de certas enfermidades neuróticas; sua aceitação da neurose universal poupa-lhes o trabalho de elaborar uma neurose pessoal. Nosso conhecimento do valor histórico de certas doutrinas religiosas aumenta nosso respeito por elas, mas não invalida nossa posição, segundo a qual devem deixar de ser apresentadas como os motivos para os preceitos da civilização. Pelo contrário! Esses resíduos históricos nos auxiliaram a encararos ensinamentos religiosos como relíquias neuróticas, por assim dizer, e agora podemos argüir que provavelmente chegou a hora, tal como acontece num tratamento analítico, de substituir os efeitos da repressão pelos resultados da operação racional do intelecto. Podemos prever, mas dificilmente lamentar, que tal processo de remodelamento não se deterá na renúncia a transfiguração solene dos preceitos culturais, mas que sua revisão geral resultará em que muitos deles sejam eliminados. Desse modo, nossa tarefa de reconciliar os homens com a civilização estará, até um grande ponto, realizada. Não precisamos deplorar a renúncia à verdade histórica quando apresentamos fundamentos racionais para os preceitos da civilização. As verdades contidas nas doutrinas religiosas são, afinal de contas, tão deformadas e sistematicamente disfarçadas, que a massa da humanidade não pode identificá-las como verdade. O caso é semelhante ao que acontece quando dizemos a uma criança que os recém-nascidos são trazidos pela cegonha. Aqui, também estamos contando a verdade sob uma roupagem simbólica, pois sabemos o que essa ave significa. A criança, porém, não sabe. Escuta apenas a parte deformada do que dizemos e sente que foi enganada; sabemos com que freqüência sua desconfiança dos adultos e sua rebeldia têm realmente começo nessa impressão. Tornamo-nos convencidos de que é melhor evitar esses disfarces simbólicos da verdade no que contamos às crianças, e não afastar delas um conhecimento do verdadeiro estado de coisas, comensurado a seu nível intelectual. IX ‘Você se permite contradições difíceis de reconciliar. Começa dizendo que um trabalho como o seu é inteiramente inócuo: ninguém se permitirá ser despojado de sua fé por considerações do tipo das que apresenta. Não obstante, desde que, e tal como fica depois evidente, é sua intenção perturbar essa fé, podemos perguntar-lhe por que, na realidade, está publicando sua obra? Ademais, em outra passagem, admite que pode ser perigoso, e de fato muito perigoso, que alguém descubra que as pessoas não acreditam mais em Deus. Até então se mostrara dócil, mas agora parece desprezar sua obediência aos preceitos da civilização. Entretanto, sua asserção de que basear os mandamentos da civilização em fundamentos religiosos constitui um perigo para aquela, repousa na presunção de que o crente pode ser transformado num incréu. Sem dúvida isso é uma contradição completa. ‘E eis aqui uma outra. Por um lado, você admite que os homens não podem ser dirigidos por sua inteligência, que são governados por suas paixões e suas exigências instintuais. Por outro, porém, propõe substituir a base afetiva de sua obediência à civilização por uma base racional. Quem puder, que compreenda. A mim, parece que não deve ser uma coisa nem outra. ‘Além disso, não aprendeu nada da história? Já uma vez antes, uma tentativa desse tipo, a de substituir a religião pela razão, foi feita oficialmente e em grande estilo. Decerto se lembra da Revolução Francesa e de Robespierre? E deve também lembrar-se de quão efêmera e deploravelmente ineficaz a experiência foi? A mesma experiência está sendo repetida atualmente na Rússia e não precisamos ficar curiosos sobre o seu resultado. Não acha que podemos aceitar como algo evidente o fato de que os homens não podem passar sem religião? ‘Você mesmo disse que a religião é mais que uma neurose obsessiva. Mas não tratou desse outro lado dela. Contentou-se em elaborar a analogia com uma neurose. Os homens, diz você, devem ser libertados da neurose. O que se possa perder no processo não lhe interessa.’ A aparência de contradição provavelmente surgiu porque lidei com assuntos complicados de modo muito apressado. Até certo ponto, porém, podemos remediar isso. Continuo a sustentar que o que escrevi é, sob determinado aspecto, inteiramente inócuo. Nenhum crente se permitirá ser desviado de sua fé por esses argumentos ou outros semelhantes. O crente está ligado aos ensinamentos da religião por certos vínculos afetivos. Contudo, indubitavelmente existem inumeráveis outras pessoas que não são crentes,no mesmo sentido. Obedecem aos preceitos da civilização porque se deixam intimidar pelas ameaças da religião e têm medo dela enquanto se vêem obrigados a considerá-la como parte da realidade que as cerca. São as pessoas que desertam tão logo lhes é permitido abandonar sua crença no valor de realidade da religião. No entanto, elas também não são afetadas por argumentos. Deixam de temer a religião quando observam que os outros não a temem, e foi a respeito delas que afirmei que acabariam por saber do declínio da influência religiosa mesmo que eu não publicasse meu trabalho. [[1].] Mas acho que você mesmo concede maior peso à outra contradição de que me acusa. Visto os homens serem tão pouco acessíveis aos argumentos razoáveis e tão completamente governados por seus desejos instintuais, por que tentar privá-los de uma satisfação instintual e substituí-la por argumentos racionais? É verdade que os homens são assim, mas você já se perguntou se eles têm de ser assim, se sua natureza mais íntima tem necessidade disso? Pode um antropólogo fornecer o índice craniano de um povo cujo costume é deformar a cabeça das crianças enrolando-as com ataduras desde os primeiros anos? Pense no deprimente contraste entre a inteligência radiante de uma criança sadia e os débeis poderes intelectuais do adulto médio. Não podemos estar inteiramente certos de que é exatamente a educação religiosa que tem grande parte da culpa por essa relativa atrofia? Penso que seria necessário muito tempo para que uma criança, que não fosse influenciada, começasse a se preocupar com Deus e com as coisas do outro mundo. Talvez seus pensamentos sobre esses assuntos tomassem então os mesmos caminhos que os de seus antepassados. Mas não esperamos por um desenvolvimento desse tipo; introduzimo-la às doutrinas da religião numa idade em que nem está interessada nelas nem é capaz de apreender sua significação. Não é verdade que os dois principais pontos do programa de educação infantil atualmente consistem no retardamento do desenvolvimento sexual e na influência religiosa prematura? Dessa maneira, à época em que o intelecto da criança desperta, as doutrinas da religião já se tornaram inexpugnáveis. Mas acha você que é algo conducente ao fortalecimento da função intelectual o fato de um campo tão importante lhe ser fechado pela ameaça do fogo do Inferno? Quando outrora um homem se permitia aceitar sem crítica todos os absurdos que as doutrinas religiosas punham à sua frente, e até mesmo desprezar as contradições existentes entre elas, não precisamos ficar muito surpresos com a debilidade de seu intelecto. Não dispomos, porém, de outros meios de controlar nossa natureza instintual, exceto nossa inteligência. Como podemos esperar que pessoas que estão sob domínio de proibições de pensamento atinjam o ideal psicológico, o primado da inteligência? Você sabe também que se diz que em geral as mulheres padecem de ‘debilidade mental fisiológica’, isto é, de uma inteligência inferior à dos homens. O fato em si é discutível, e sua interpretação, duvidosa; contudo, um argumento em favor de essa atrofia intelectual ser de natureza secundária é o de que as mulheres vivem penando sob o rigor de uma proibição precoce que as impede de voltarem seus pensamentos para o que mais lhes interessaria, isto é, os problemas da vida sexual. Enquanto os primeiros anos da vida de uma pessoa forem influenciados não só por uma inibição sexual mental, mas também por uma inibição religiosa, e por uma inibição leal derivada desta última, não podemos realmente dizer a que ela se assemelha. Mas moderarei meu zelo e admitirei a possibilidade de que também eu esteja perseguindo uma ilusão. Talvez o efeito da proibição religiosa do pensamento não seja tão negativo quanto suponho; talvez acontecesse que a natureza humana permanecesse a mesma, ainda que não se abusasse da educação para submeter as pessoas à religião. Não sei, e tampouco você pode saber. Não são apenas os grandes problemas da vida que atualmente parecem insolúveis; muitas questões menores também são difíceis de responder. Mas você tem de admitir que, aqui, estamos justificados em ter esperanças no futuro - a de que talvez exista, ainda a ser desenterrado, um tesouro capaz de enriquecer a civilização, e de que vale a pena fazer a experiência de uma educação não religiosa. Se ela se mostrar insatisfatória, estou pronto a abandonar a reforma e voltar a meu juízo anterior, puramente descritivo, de que o homem é uma criatura de inteligência débil, governada por seus desejos instintuais. Sobre outro ponto concordo irrestritamente com você. Sem dúvida é insensato começar a tentar eliminar a religião pela força, e de um só golpe. Acima de tudo, porque isso seria irrealizável. O crente não permitirá que sua crença lhe seja arrancada, quer por argumentos, quer por proibições. E mesmo que isso acontecesse com alguns, seria crueldade. Um homem que passou dezenas de anos tomando pílulas soporíferas, evidentemente fica incapaz de dormir se lhe tiram sua pílula. Que o efeito das consolações religiosas pode ser assemelhado ao de um narcótico é fato bem ilustrado pelo que está acontecendo nos Estados Unidos. Lá estão tentando agora - claro que sob a influência de um domínio feminista - privar o povo de todos os estimulantes, intoxicantes e outras substâncias produtoras de prazer, e, em vez delas, a título de compensação, empanturram-no de devoção. Trata-se de outro experimento sobre cujo resultado não precisamos sentir-nos curiosos ,ver em [[1] e [2]]. Assim, tenho de contradizê-lo quando prossegue argumentando que os homens são completamente incapazes de passar sem a consolação da ilusão religiosa, que, sem ela, não poderiam suportar as dificuldades da vida e as crueldades da realidade. Isso é certamente verdade quanto aos homens em que se instilou o doce (ou agridoce) veneno desde a infância. Mas, e os outros, os que foram mais sensatamente criados? Os que não padecem da neurose talvez não precisem de intoxicante para amortecê-la. Encontrar-se-ão, é verdade, numa situação difícil. Terão de admitir para si mesmos toda a extensão de seu desamparo e insignificância na maquinaria do universo; não podem mais ser o centro da criação, o objeto de terno cuidado por parte de uma Providência beneficente. Estarão na mesma posição de uma criança que abandonou a casa paterna, onde se achava tão bem instalada e tão confortável. Mas não há dúvida de que o infantilismo está destinado a ser superado.Os homens não podem permanecer crianças para sempre; têm de, por fim, sair para a ‘vida hostil’. Podemos chamar isso de ‘educação para a realidade‘. Precisarei confessar-lhe que o único propósito de meu livro é indicar a necessidade desse passo à frente? Você tem medo, provavelmente, de que não resistam a tão duro teste? Bem, pelo menos tenhamos esperança de que resistam. Já é alguma coisa, de qualquer modo, alguém saber que está entregue a seus próprios recursos: aprende a fazer um emprego correto deles. E os homens não estão completamente sem assistência. Seu conhecimento científico lhes ensinou muito, desde os dias do Dilúvio, e aumentará seu poder ainda mais. E quanto às grandes necessidades do Destino, contra as quais não há remédio, aprenderão a suportá-las com resignação. De que lhes vale a miragem de amplos campos na Lua, cujas colheitas ainda ninguém viu? Como honestos arrendatários nesta Terra, aprenderão a cultivar seu terreno de tal modo que ele os sustente. Afastando suas expectativas em relação a um outro mundo e concentrando todas as energias liberadas em sua vida na Terra, provavelmente conseguirão alcançar um estado de coisas em que a vida se tornará tolerável para todos e a civilização não mais será opressiva para ninguém. Então, com um de nossos companheiros de descrença, poderão dizer sem pesar: Den Himmel überlassen wirDen Engeln und den Spatzen. X ‘Isso soa esplêndido! Uma raça de homens que renunciou a todas as ilusões e assim se tornou capaz de fazer tolerável sua existência na Terra! Entretanto, não posso partilhar de suas expectativas. E isso não por ser o obstinado reacionário por quem talvez me tome. Não, mas por ser sensato. Parece que agora trocamos de papéis: você surge como um entusiasta que permite ser arrebatado por ilusões, e eu represento as reivindicações da razão, os direitos do ceticismo. O que você expôs me parece ser construído sobre erros que, seguindo seu exemplo, eu poderia chamar de ilusões, por traírem de modo bastante claro a influência de seus desejos. Você prende sua esperança à possibilidade de que gerações, que não experimentaram a influência das doutrinas religiosas na primeira infância, alcançarão facilmente a desejada primazia da inteligência sobre a vida dos instintos. Isso é decerto uma ilusão; nesse aspecto decisivo, a natureza humana dificilmente tem probabilidade de mudar. Se não estou equivocado - conhece-se tão pouco sobre as outras civilizações - ainda hoje existem povos que não se desenvolveram sob a pressão de um sistema religioso e que, contudo, não se aproximam mais do seu ideal do que do resto. Se você quiser expulsar a religião de nossa civilização européia, só poderá fazê-lo através de outro sistema de doutrinas, e esse sistema, desde o início, assumiria todas as características psicológicas da religião - a mesma santidade, rigidez e intolerância, a mesma proibição do pensamento para sua própria defesa. Há que possuir algo desse tipo, a fim de atender aos requisitos da educação. E é impossível passar sem educação. O caminho que vai da criança de peito ao homem civilizado é longo; não poucos jovens se desviariam dele e fracassariam no cumprimento de suas missões na vida, na época correta, se fossem deixados sem orientação quanto a seu próprio desenvolvimento. As doutrinas que tivessem sido aplicadas à sua criação, sempre estabeleceriam limites ao pensar de seus anos de maturidade - que é exatamente o que você censura à religião fazer hoje. Não observa que se trata de um defeito inato e inestimável de nossa e de qualquer outra civilização, o fato de impor às crianças, que são movidas pelo instinto e fracas do intelecto, a tomada de decisões que só a inteligência madura dos adultos pode reivindicar? A civilização, porém, não pode operar de outro modo, de uma vez que o desenvolvimento, tão longo quanto as eras, do gênero humano, está comprimido em uns poucos anos de infância; e é só através de forças emocionais que a criança pode ser induzida a se assenhorear da tarefa que lhe apresentam. Tais são, portanto, as perspectivas para sua “primazia do intelecto”.‘E você não deve ficar surpreso agora que eu perore em favor da retenção do sistema doutrinal religioso como base da educação e da vida comunal do homem. Trata-se de um problema prático, e não de uma questão de valor de realidade. Já que, para preservar nossa civilização, não podemos adiar a influência sobre o indivíduo até que ele esteja maduro para a civilização (e, ainda assim, muitos nunca estarão), já que somos obrigados a impor à criança em crescimento um sistema doutrinário que nela funcione como um axioma que não admita crítica, parece-me que o sistema religioso é, de longe, o mais apropriado para esse fim. E o é, naturalmente, exatamente por causa de sua realização de desejo e seu poder consolatório, devido aos quais você reivindica identificá-lo como sendo ‘ilusão’. Diante da dificuldade de se descobrir qualquer coisa sobre a realidade - na verdade, da dúvida de saber se nos será possível realmente descobri-la -, não devemos desprezar o fato de que também as necessidades humanas são uma realidade e, na verdade, uma realidade importante, uma realidade que nos interessa especialmente de perto. ‘Outra vantagem da doutrina religiosa, em minha opinião, reside numa de suas características a que você parece particularmente opor-se, pois permite um refinamento e sublimação das idéias que tornam possível para ela livrar-se da maioria dos resíduos oriundos do pensamento primitivo e infantil. O que então sobra é um corpo de idéias que a ciência não mais contradiz e que é incapaz de refutar. Essas modificações da doutrina religiosa, que você condenou como meias-medidas e transigências, tornam-lhe possível evitar a cisão entre as massas não instruídas e o pensador filosófico, e preservar o vínculo comum entre eles, tão importante para a salvaguarda da civilização. Com isso, não haveria necessidade de temer que os homens do povo descobrissem que as camadas superiores da sociedade “não mais acreditam em Deus”. Acho que agora lhe demonstrei que seus esforços se reduzem a uma tentativa de substituir uma ilusão já provada e emocionalmente valiosa, por outra, que não foi provada e não possui valor emocional.’ Não sou inacessível à sua crítica. Sei como é difícil evitar ilusões; talvez as esperanças que confessei também sejam de natureza ilusória. Aferro-me, porém, a uma distinção. À parte o fato de castigo algum ser imposto a quem não as partilha, minhas ilusões não são, como as religiosas, incapazes de correção. Não possuem o caráter de um delírio. Se a experiência demonstrar - não a mim, mas a outros depois de mim, que pensem como eu - que estávamos enganados, abandonaremos nossas expectativas. Tome minha tentativa pelo que ela é. Um psicólogo que não se ilude sobre a dificuldade de descobrir a própria orientação neste mundo, efetua um esforço para avaliar o desenvolvimento do homem, à luz da pequena porção de conhecimento que obteve através de um estudo dos processos mentais de indivíduos, durante seu desenvolvimento de crianças a adultos. Ao agir assim, impõe-se a ele a idéia de que a religião é comparável a uma neurose da infância, e é otimista bastante para imaginar que a humanidade superará essa fase neurótica, tal como muitas crianças evolvem de suas neuroses semelhantes. Essas descobertas derivadas da psicologia individual podem ser insuficientes, injustificada sua aplicação à raça humana, e infundado otimismo o dele. Concedo-lhes todas essas incertezas. Mas freqüentemente não podemos impedir-nos de dizer o que pensamos, e nos desculpamos disso com o fundamento de que só o dizemos pelo que vale. Aqui temos dois pontos sobre os quais devo demorar-me um pouco mais. Em primeiro lugar, a fraqueza de minha posição não acarreta fortalecimento algum da sua. Acho que você está defendendo uma causa perdida. Podemos insistir, tão freqüentemente quanto quisermos, em que o intelecto do homem não tem poder, em comparação com sua vida instintual, e podemos estar certos quanto a isso. Não obstante, há algo de peculiar nessa fraqueza. A voz do intelecto é suave, mas não descansa enquanto não consegue uma audiência. Finalmente, após uma incontável sucessão de reveses, obtém êxito. Esse é um dos poucos pontos sobre o qual se pode ser otimista a respeito do futuro da humanidade, e, em si mesmo, é de não pequena importância. E dele se podem derivar outras esperanças ainda. A primazia do intelecto jaz, é verdade, num futuro infinitamente distante. Presumivelmente, ela estabelecerá para si os mesmos objetivos que aqueles cuja realização você espera de seu Deus (naturalmente dentro de limites humanos, na medida em que a realidade externa, ‘ , permita), a saber, o amor do homem e a diminuição do sofrimento. Assim sendo, podemos dizer-nos que nosso antagonismo é apenas temporário e não irreconciliável. Desejamos as mesmas coisas, mas você é mais impaciente, mais exigente e - por que não dizer? - mais egoísta do que eu e os que se encontram do meu lado. Você faria o estado de bem-aventurança começar diretamente após a morte; espera dele o impossível e não desiste das reivindicações do indivíduo. Nosso Deus, , atenderá todos esses desejos que a natureza a nós externa permita, mas fa-lo-á de modo muito gradativo, somente num futuro imprevisível e para uma nova geração de homens. Não promete compensação para nós, que sofremos penosamente com a vida. No caminho para esse objetivo distante, suas doutrinas religiosas terão de ser postas de lado, por mais que as primeiras tentativas falhem ou os primeiros substitutos se mostrem insustentáveis. Você sabe por que: a longo prazo, nada pode resistir à razão e à experiência, e a contradição que a religião oferece a ambas é palpável demais. Mesmo as idéias religiosas purificadas não podem escapar a esse destino, enquanto tentarem preservar algo da consolação da religião. Indubitavelmente, se se confinarem à crença num ser espiritual superior, cujas qualidades sejam indefiníveis e cujos intuitos não possam ser discernidos, não só estarão à prova do desafio da ciência, como também perderão sua influência sobre o interesse humano. Em segundo lugar, observe a diferença entre a sua atitude para com as ilusões e a minha. Você tem de defender a ilusão religiosa com todas as suas forças. Se ela se tornar desacreditada - e, na verdade, a ameaça disso é bastante grande - então seu mundo desmoronará. Nada lhe resta a não ser desesperar de tudo, da civilização e do futuro da humanidade. Dessa servidão, estou, estamos livres. Visto estarmos preparados para renunciar a uma boa parte de nossos desejos infantis, podemos suportar que algumas de nossas expectativas mostrem que não passam de ilusões. É possível que a educação libertada do ônus das doutrinas religiosas não cause grande mudança na natureza psicológica do homem. O nosso deus ó talvez não seja um deus muito poderoso, e poderá ser capaz de efetuar apenas uma pequena parte do que seus predecessores prometeram. Se tivermos de reconhecer isso, aceitá-lo-emos com resignação. Não será por causa disso que perderemos nosso interesse no mundo e na vida, pois dispomos de um apoio seguro, que falta a você. Acreditamos ser possível ao trabalho científico conseguir um certo conhecimento da realidade do mundo, conhecimento através do qual podemos aumentar nosso poder e de acordo com o qual podemos organizar nossa vida. Se essa crença for uma ilusão, então nos encontraremos na mesma posição que você. Mas a ciência, através de seus numerosos e importantes sucessos, já nos deu provas de não ser uma ilusão. Ela conta com muitos inimigos manifestos, e muitos outros secretos, entre aqueles que não podem perdoá-la por ter enfraquecido a fé religiosa e por ameaçar derrubá-la. É censurada pela pequenez do que nos ensinou e pelo campo incomparavelmente maior que deixou na obscuridade. Nisso, porém, as pessoas se esquecem de quão jovem ela é, quão difíceis foram seus primórdios e quão infinitesimalmente pequeno foi o período de tempo que decorreu desde que o intelecto humano ficou suficientemente forte para as tarefas que ela estabelece. Não nos achamos todos nós em falta, ao basear nossos julgamentos em períodos de tempo que são curtos demais? Deveríamos tomar os geólogos como modelo. As pessoas queixam-se da infidedignidade da ciência, do modo como ela anuncia como lei hoje o que a geração seguinte identifica como erro e substitui por uma nova lei cuja validade aceita não perdura por mais tempo. Mas isso é injusto e, em parte, inverídico. As transformações da opinião científica são desenvolvimentos, progressos, e não revoluções. Uma lei que a princípio foi tida por universalmente válida, mostra ser um caso especial de uma uniformidade mais abrangente ou é limitada por outra lei, só descoberta mais tarde; uma aproximação grosseira à verdade é substituída por outra mais cuidadosamente adaptada, a qual, por sua vez, fica à espera de novos aperfeiçoamentos. Existem diversos campos em que ainda não superamos uma fase de pesquisa na qual fazemos experiências com hipóteses que em breve têm de ser rejeitadas como inadequadas; em outros campos, porém, já possuímos um cerne de conhecimento seguro e quase inalterável. Finalmente, tentou-se desacreditar o esforço científico de maneira radical, com o fundamento de que, achando-se ele ligado às condições de sua própria organização, não poderia produzir nada mais senão resultados subjetivos, ao passo que a natureza real das coisas a nós externas permanece inacessível. Mas isso significa desprezar diversos fatores de importância decisiva para a compreensão do trabalho científico. Em primeiro lugar, nossa organização - isto é, nosso aparelho psíquico - desenvolveu-se precisamente no esforço de explorar o mundo externo, e, portanto, teria de ter concebido em sua estrutura um certo grau de utilitarismo; em segundo lugar, ela própria é parte constituinte do mundo que nos dispusemos a investigar e admite prontamente tal investigação; em terceiro, a tarefa da ciência ficará plenamente abrangida se a limitarmos a demonstrar como o mundo nos deve aparecer em conseqüência do caráter específico de nossa organização; em quarto, as descobertas supremas da ciência, precisamente por causa do modo pelo qual foram alcançadas, são determinadas não apenas por nossa organização, mas pelas coisas que influenciaram essa organização; finalmente, o problema da natureza do mundo sem levar em consideração nosso aparelho psíquico perceptivo não passa de uma abstração vazia, despida de interesse prático. Não, nossa ciência não é uma ilusão. Ilusão seria imaginar que aquilo que a ciência não nos pode dar, podemos conseguir em outro lugar. O MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO (1930 [1929]) NOTA DO EDITOR INGLÊS DAS UNBEHAGEN IN DER KULTUR (a) EDIÇÕES ALEMÃS: 1930 Viena: Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 136 págs. 1931 2ª ed. (Reimpressão da 1ª ed., com alguns acréscimos.) 1934 G.S., 12, 29-114. 1948 G.W., 14, 421-506. (b) TRADUÇÃO INGLESA: Civilization and its Discontents 1930 Londres: Hogarth Press e Institute of Psycho-Analysis. Nova Iorque: Cape and Smith, 144 págs. (Trad. de Joan Riviere.) A atual tradução baseia-se na publicada em 1930. O primeiro capítulo do original alemão foi publicado pouco antes do resto do livro, em Psychoanal. Bewegung,1 (4) novembro-dezembro de 1929. O quinto capítulo apareceu separadamente no número seguinte do mesmo periódico, 2 (1), janeiro-fevereiro de 1930. Duas ou três notas de rodapé a mais foram incluídas na edição de 1931 e uma frase final foi acrescentada à obra. Nenhum desses acréscimos apareceram na primeira versão da tradução inglesa. Freud terminara O Futuro de uma Ilusão no outono de 1927. Durante os dois anos seguintes, principalmente, sem dúvida, por causa de sua doença, produziu muito pouco. No verão de 1929, porém, começou a escrever outro livro, mais uma vez sobre um assunto sociológico. O primeiro esboço foi terminado por volta de fins de julho; o livro foi enviado à gráfica no começo de novembro e realmente publicado antes do fim do ano, embora trouxesse a data de ‘1930’ em sua página de rosto (Jones, 1957, 157-8). O título original para ele escolhido por Freud foi ‘Das Unglück in der Kultur’ (‘A Infelicidade na Civilização’), mas ‘Unglück’ foi posteriormente alterado para ‘Unbehagen’, palavra para a qual foi difícil escolher um equivalente inglês, embora o francês ‘malaise‘ pudesse ter servido. Numa carta à sua tradutora, a Sra. Riviere, Freud sugeriu‘O Desconforto do Homem na Civilização’, mas foi ela própria que descobriu a solução ideal para a dificuldade no título finalmente adotado. O tema principal do livro - o antagonismo irremediável entre as exigências do instinto e as restrições da civilização - pode ter sua origem remontada a alguns dos mais antigos trabalhos psicológicos de Freud. Assim, em 31 de maio de 1897, escreveu a Fliess que ‘o incesto é anti-social e a civilização consiste numa progressiva renúncia a ele’ (Freud, 1950a, Rascunho N), e, um ano depois, no artigo ‘Sexuality in the Aetiology of the Neuroses’ (1898a), escreveu que ‘podemos com justiça responsabilizar nossa civilização pela disseminação da neurastenia’. Não obstante, em seus primeiros trabalhos, Freud não parece ter considerado a repressão como sendo inteiramente devida a influências sociais externas. Embora em seus Três Ensaios (1905d), fale da ‘relação inversa que existe entre a civilização e o livre desenvolvimento da sexualidade’ (Edição Standard Brasileira, Vol. VII, pág. 250, IMAGO Editora, 1972), em outra passagem da mesma obra, fez o seguinte comentário sobre as barreiras opostas ao instinto sexual surgidas durante o período de latência: ‘Tem-se das crianças civilizadas uma impressão de que a construção dessas barreiras é um produto da educação, e sem dúvida, a educação muito tem a ver com ela. Mas, na realidade, este desenvolvimento é organicamente determinado e fixado pela hereditariedade, e pode ocasionalmente ocorrer sem qualquer auxílio da educação.’ (Ibid., pág. 157.) A noção de haver uma ‘repressão orgânica’ que prepara o caminho para a civilização - noção expandida nas duas longas notas de rodapé ao início e ao final do Capítulo IV (pág. 77 e seg. e 57 e segs., adiante) - remonta ao mesmo período anterior. Numa carta a Fliess, em 14 de novembro de 1897, Freud escreveu que freqüentemente suspeitou ‘que algo orgânico desempenhou um papel na repressão’ (Freud, 1950a, Carta 75). Prossegue, no mesmo sentido daquelas notas de rodapé, sugerindo a importância, como fatores de repressão, da adoção de uma postura ereta e da substituição do olfato pela vista como sentido dominante. Uma alusão ainda mais precoce à mesma idéia ocorre numa carta de 11 de janeiro de 1897 (ibid., Carta 55). Nos trabalhos publicados de Freud, as únicas menções dessas idéias, antes do atual, parecem ser uma breve passagem na análise do ‘Rat Man’ (1909d), Satndard Ed., 10, 247-8, e outra ainda mais sucinta no segundo artigo sobre a psicologia do amor (1912d), Edição Standard Brasileira, Vol. XI, pág.172, IMAGO Editora, 1972. De modo particular, nenhuma análise das origens internas mais profundas da civilização pode ser encontrada naquilo que é, de longe, o mais longo dos primeiros estudos de Freud sobre o assunto, ou seja, o artigo ‘“Civilized” Sexual Morality and Modern Nervous Illness’ (1908d), que dá a impressão de as restrições da civilização serem algo imposto desde fora. Na verdade, contudo, não foi possível nenhuma avaliação clara do papel desempenhado nessas restrições pelas influências internas e externas e seus efeitos recíprocos, até que as investigações realizadas por Freud sobre a psicologia do ego o conduziram às hipóteses sobre o superego e sua origem nas mais antigas relações objetais do indivíduo. É devido a isso que uma parte tão grande da presente obra (especialmente nos Capítulos VII e VIII) se interessa pela exploração e clarificação ulteriores da natureza do sentimento de culpa, e que Freud,ver ([1]), declara sua ‘intenção de representar o sentimento de culpa como o mais importante problema no desenvolvimento da civilização’. E isso, por sua vez, constitui o fundamento para o segundo tema lateral de importância da obra (embora nenhum deles seja, na verdade, um tema lateral), a saber, o instinto de destruição. A história das opiniões de Freud sobre o instinto da agressão ou de destruição é complicada e só resumidamente pode ser indicada aqui. Através de todos os seus primeiros escritos, o contexto em que ele predominantemente o encarou foi o do sadismo. Seus primeiros estudos mais longos sobre ele ocorreram nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905d), onde surgiu como um dos ‘instintos componentes’ ou ‘parciais’ do instinto sexual. ‘Assim’, escreveu ele na Seção 2 (B) do primeiro ensaio, ‘o sadismo corresponderia a um componente agressivo do instinto sexual que se tornou independente e exagerado e, por deslocamento, usurpou a posição dominante’ (Edição Standard Brasileira, Vol. VII, IMAGO Editora, 1972, págs. 159-60). Não obstante, posteriormente, na Seção 4 do segundo ensaio, a independência original dos impulsos agressivos foi reconhecida: ‘Pode-se presumir que os impulsos de crueldade surgem de fontes que são, na realidade, independentes da sexualidade, mas podem unir-se a ela num estágio prematuro’ (ibid., 198n). As fontes independentes indicadas deveriam ter sua origem remontada aos instintos autopreservativos. Essa passagem foi alterada na edição de 1915, onde se declarou que ‘o impulso da crueldade surge do instinto de domínio’ e a frase sobre ser ele ‘independente da sexualidade ‘foi omitida. Mas já em 1909, no decorrer do combate às teorias de Adler, Freud fizera um pronunciamento muito mais amplo. Na Seção II do terceiro capítulo da história clínica do ‘Pequeno Hans’ (1909b), Freud escreveu: ‘Não consigo convencer-me da existência de um instinto agressivo especial, ao lado dos instintos familiares de autopreservação e sexo, e em pé de igualdade com eles’ (ibid., 10, 140). A relutância em aceitar um instinto agressivo independente da libido foi auxiliada pela hipótese do narcisismo. Os impulsos de agressividade, e de ódio também, desde o início pareceram pertencer ao instinto autopreservativo, e, visto que este se achava agora incluído na libido, não se exigia qualquer instinto agressivo independente. E assim era a despeito da bipolaridade das relações objetais, das freqüentes misturas de amor e ódio, e da complexa origem do próprio ódio. (Ver ‘Instincts and their Vicissitudes’ (1915c), Standard Ed., 14, 138-9). Foi somente após a hipótese formulada por Freud de um ‘instinto de morte’ que um instinto agressivo verdadeiramente independente apareceu em Beyond the Pleasure Principle (1920g). (Ver, especificamente, o Capítulo VI, ibid., 18, 52-5). Mas é de notar que mesmo aí, e nos escritos posteriores de Freud (por exemplo, no Capítulo IV de The Ego and the Id.), o instinto agressivo ainda era algo secundário, derivado do instinto de morte autodestrutivo e primário. Isso é verdadeiro, ainda, quanto à presente obra, embora aqui a ênfase esteja colocada mais nas manifestações do instinto de morte voltadas para fora, e também quanto aos estudos ulteriores do problema na última parte da Conferência XXXIII das New Introductory Lectures (1922a) e em mais de um ponto do Esboço da Psicanálise (1940a [1938] Pequena Coleção das Obras de Freud, Livro 7, IMAGO Editora, 1974), de publicação póstuma.Sem embargo, é tentador citar um par de frases de uma carta escrita por Freud, em 27 de maio de 1937, à Princesa Marie Bonaparte, na qual parece aludir a uma maior independência original da destrutividade externa: ‘A interiorização do instinto agressivo é, naturalmente, o correspondente da exteriorização da libido, quando ela se transfere do ego para os objetos. Teríamos um quadro esquemático nítido se supuséssemos que, originalmente, ao início da vida, toda a libido era dirigida para o interior e toda a agressividade para o exterior, e que, no decorrer da vida, isso gradativamente se alterava. Mas talvez isso possa não ser correto’. É justo acrescentar que, em sua carta seguinte, Freud escrevia: ‘Peço-lhe para não dar muito valor às minhas observações sobre o instinto de destruição. Elas só foram feitas fortuitamente e teriam de ser cuidadosamente pensadas antes de publicadas. Ademais, pouco há de novo nelas.’ É óbvio, portanto, que O Mal-Estar na Civilização é uma obra cujo interesse ultrapassa bastante a sociologia. Partes consideráveis da primeira tradução (1930) do presente trabalho foram incluídas em Civilization, War and Death: Selections from Three Works by Sigmund Freud (1939, 26-81), da autoria de Rickman. O MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO I É impossível fugir à impressão de que as pessoas comumente empregam falsos padrões de avaliação - isto é, de que buscam poder, sucesso e riqueza para elas mesmas e os admiram nos outros, subestimando tudo aquilo que verdadeiramente tem valor na vida. No entanto, ao formular qualquer juízo geral desse tipo, corremos o risco de esquecer quão variados são o mundo humano e sua vida mental. Existem certos homens que não contam com a admiração de seus contemporâneos, embora a grandeza deles repouse em atributos e realizações completamente estranhos aos objetivos e aos ideais da multidão. Facilmente, poder-se-ia ficar inclinado a supor que, no final das contas, apenas uma minoria aprecia esses grandes homens, ao passo que a maioria pouco se importa com eles. Contudo, devido não só às discrepâncias existentes entre os pensamentos das pessoas e as suas ações, como também à diversidade de seus impulsos plenos de desejo, as coisas provavelmente não são tão simples assim. Um desses seres excepcionais refere-se a si mesmo como meu amigo nas cartas que me remete. Enviei-lhe o meu pequeno livro que trata a religião como sendo uma ilusão, e ele me respondeu que concordava inteiramente com esse meu juízo, lamentando, porém, que eu não tivesse apreciado corretamente a verdadeira fonte da religiosidade. Esta, diz ele, consiste num sentimento peculiar, que ele mesmo jamais deixou de ter presente em si, que encontra confirmado por muitos outros e que pode imaginar atuante em milhões de pessoas. Trata-se de um sentimento que ele gostaria de designar como uma sensação de ‘eternidade’, um sentimento de algo ilimitado, sem fronteiras - ‘oceânico’, por assim dizer. Esse sentimento, acrescenta, configura um fato puramente subjetivo, e não um artigo de fé; não traz consigo qualquer garantia de imortalidade pessoal, mas constitui a fonte da energia religiosa de que se apoderam as diversas Igrejas e sistemas religiosos, é por eles veiculado para canais específicos e, indubitavelmente, também por eles exaurido. Acredita ele que uma pessoa, embora rejeite toda crença e toda ilusão, pode corretamente chamar-se a si mesma de religiosa com fundamento apenas nesse sentimento oceânico.As opiniões expressas por esse amigo que tanto respeito, e que outrora já louvara a magia da ilusão num poema, causaram-me não pequena dificuldade. Não consigo descobrir em mim esse sentimento ‘oceânico’. Não é fácil lidar cientificamente com sentimentos. Pode-se tentar descrever os seus sinais fisiológicos. Onde isso não é possível - e temo que também o sentimento oceânico desafie esse tipo de caracterização -, nada resta senão cair no conteúdo ideacional que, de forma mais imediata, está associado ao sentimento. Se compreendi corretamente o meu amigo, ele quer significar, com esse sentimento, a mesma coisa que o consolo oferecido por um dramaturgo original e um tanto excêntrico ao seu herói que enfrenta uma morte auto-infligida: ‘Não podemos pular para fora deste mundo.Isso equivale a dizer que se trata do sentimento de um vínculo indissolúvel, de ser uno com o mundo externo como um todo. Posso observar que, para mim, isto parece, antes, algo da natureza de uma percepção intelectual, que, na verdade, pode vir acompanhada de um tom de sentimento, embora apenas da forma como este se acharia presente em qualquer outro ato de pensamento de igual alcance. Segundo minha própria experiência, não consegui convencer-me da natureza primária desse sentimento; isso, porém, não me dá o direito de negar que ele de fato ocorra em outras pessoas. A única questão consiste em verificar se está sendo corretamente interpretado e se deve ser encarado como a fons et origo de toda a necessidade de religião. Nada tenho a sugerir que possa exercer influência decisiva na solução desse problema. A idéia de os homens receberem uma indicação de sua vinculação com o mundo que os cerca por meio de um sentimento imediato que, desde o início, é dirigido para esse fim, soa de modo tão estranho e se ajusta tão mal ao contexto de nossa psicologia, que se torna justificável a tentativa de descobrir uma explicação psicanalítica - isto é, genética - para esse sentimento. A linha de pensamento que se segue, sugere isso por si mesma. Normalmente, não nada de que possamos estar mais certos do que do sentimento de nosso eu, do nosso próprio ego. O ego nos aparece como algo autônomo e unitário, distintamente demarcado de tudo o mais. Ser essa aparência enganadora - apesar de que, pelo contrário, o ego seja continuado para dentro, sem qualquer delimitação nítida, por uma entidade mental inconsciente que designamos como id, à qual o ego serve como uma espécie de fachada -, configurou uma descoberta efetuada pela primeira vez através da pesquisa psicanalítica, que, de resto, ainda deve ter muito mais a nos dizer sobre o relacionamento do ego com o id. No sentido do exterior, porém, o ego de qualquer modo, parece manter linhas de demarcação bem e claras e nítidas. Há somente um estado indiscutivelmente fora o comum, embora não possa estigmatizado como patológico - em que ele não se apresenta assim. No auge do sentimento de amor, a fronteira entre ego e objeto ameaça desaparecer.Contra todas as provas de seus sentidos, um homem que se ache enamorado declara que ‘eu’ e ‘tu’ são um só, e está preparado para se conduzir como se isso constituísse um fato. Aquilo que pode ser temporariamente eliminado por uma função fisiológica [isto é, normal] deve também, naturalmente, estar sujeito a perturbações causadas por processos patológicos. A patologia nos familiarizou com grande número de estados em que as linhas fronteiriças entre o ego e o mundo externo se tornam incertas, ou nos quais, na realidade, elas se acham incorretamente traçadas. Há casos em que partes do próprio corpo de uma pessoa, inclusive partes de sua própria vida mental - suas percepções, pensamentos e sentimentos -, lhe parecem estranhas e como não pertencentes a seu ego; há outros casos em que a pessoa atribui ao mundo externo coisas que claramente se originam em seu próprio ego e que por este deveriam ser reconhecidas. Assim, até mesmo o sentimento de nosso próprio ego está sujeito a distúrbios, e as fronteiras do ego não são permanentes. Uma reflexão mais apurada nos diz que o sentimento do ego do adulto não pode ter sido o mesmo desde o início. Deve ter passado por um processo de desenvolvimento, que, se não pode ser demonstrado, pode ser construído com um razoável grau de probabilidade. Uma criança recém-nascida ainda não distingue o seu ego do mundo externo como fonte das sensações que fluem sobre ela. Aprende gradativamente a fazê-lo, reagindo a diversos estímulos. Ela deve ficar fortemente impressionada pelo fato de certas fontes de excitação, que posteriormente identificará como sendo os seus próprios órgãos corporais, poderem provê-la de sensações a qualquer momento, ao passo que, de tempos em tempos, outras fontes lhe fogem - entre as quais se destaca a mais desejada de todas, o seio da mãe -, só reaparecendo como resultado de seus gritos de socorro. Desse modo, pela primeira vez, o ego é contrastado por um ‘objeto’, sob a forma de algo que existe ‘exteriormente’ e que só é forçado a surgir através de uma ação especial. Um outro incentivo para o desengajamento do ego com relação à massa geral de sensações - isto é, para o reconhecimento de um ‘exterior’, de um mundo externo - é proporcionado pelas freqüentes, múltiplas e inevitáveis sensações de sofrimento e desprazer, cujo afastamento e cuja fuga são impostos pelo princípio do prazer, no exercício de seu irrestrito domínio. Surge, então, uma tendência a isolar do ego tudo que pode tornar-se fonte de tal desprazer, a lançá-lo para fora e a criar um puro ego em busca de prazer, que sofre o confronto de um ‘exterior’ estranho e ameaçador. As fronteiras desse primitivo ego em busca de prazer não podem fugir a uma retificação através da experiência. Entretanto, algumas das coisas difíceis de serem abandonadas, por proporcionarem prazer, são, não ego, mas objeto, e certos sofrimentos que se procura extirpar mostramse inseparáveis do ego, por causa de sua origem interna. Assim, acaba-se por aprender um processo através do qual, por meio de uma direção deliberada das próprias atividades sensórias e de uma ação muscular apropriada, se pode diferenciar entre o que é interno - ou seja, que pertence ao ego - e o que é externo - ou seja, que emana do mundo externo. Desse modo, dá-se o primeiro passo no sentido da introdução do princípio da realidade, que deve dominar o desenvolvimento futuro. Essa diferenciação, naturalmente, serve à finalidade prática de nos capacitar para a defesa contra sensações de desprazer que realmente sentimos ou pelas quais somos ameaçados. A fim de desviar certas excitações desagradáveis que surgem do interior, o ego não pode utilizar senão os métodos que utiliza contra o desprazer oriundo do exterior, e este é o ponto de partida de importantes distúrbios patológicos.Desse modo, então, o ego se separa do mundo externo. Ou, numa expressão mais correta, originalmente o ego inclui tudo; posteriormente, separa, de si mesmo, um mundo externo. Nosso presente sentimento do ego não passa, portanto, de apenas um mirrado resíduo de um sentimento muito mais inclusivo - na verdade, totalmente abrangente -, que corresponde a um vínculo mais íntimo entre o ego e o mundo que o cerca. Supondo que há muitas pessoas em cuja vida mental esse sentimento primário do ego persistiu em maior ou menor grau, ele existiria nelas ao lado do sentimento do ego mais estrito e mais nitidamente demarcado da maturidade, como uma espécie de correspondente seu. Nesse caso, o conteúdo ideacional a ele apropriado seria exatamente o de ilimitabilidade e o de um vínculo com o universo - as mesmas idéias com que meu amigo elucidou o sentimento ‘oceânico’. Contudo, terei eu o direito de presumir a sobrevivência de algo que já se encontrava originalmente lá, lado a lado com o que posteriormente dele se derivou? Sem dúvida, sim. Nada existe de estranho em tal fenômeno, tanto no campo mental como em qualquer outro. No reino animal, atemo-nos à opinião de que as espécies mais altamente desenvolvidas se originaram das mais baixas; no entanto, ainda hoje, encontramos em existência todas as formas simples. A raça dos grandes sáurios se extinguiu e abriu caminho para os mamíferos; o crocodilo, porém, legítimo representante dos sáurios, ainda vive entre nós. Essa analogia pode ser excessivamente remota, além de debilitada pela circunstância de as espécies inferiores sobreviventes não serem, em sua maioria, os verdadeiros ancestrais das espécies mais altamente desenvolvidas dos dias atuais. Via de regra, os elos intermediários extinguiram-se, e só os conhecemos através de reconstruções. No domínio da mente, por sua vez, o elemento primitivo se mostra tão comumente preservado, ao lado da versão transformada que dele surgiu, que se faz desnecessário fornecer exemplos como prova. Quando isso ocorre, é geralmente em conseqüência de uma divergência no desenvolvimento: determinada parte (no sentido quantitativo) de uma atitude ou de um impulso instintivo permaneceu inalterada, ao passo que outra sofreu um desenvolvimento ulterior. Esse fato nos conduz ao problema mais geral da preservação na esfera da mente. O assunto mal foi estudado ainda, mas é tão atraente e importante, que nos será permitido voltarmos um pouco nossa atenção para ele, ainda que nossa desculpa seja insuficiente. Desde que superamos o erro de supor que o esquecimento com que nos achamos familiarizados significava a destruição do resíduo mnêmico - isto é, a sua aniquilação -, ficamos inclinados a assumir o ponto de vista oposto, ou seja, o de que, na vida mental, nada do que uma vez se formou pode perecer - o de que tudo é, de alguma maneira, preservado e que, em circunstâncias apropriadas (quando, por exemplo, a regressão volta suficientemente atrás), pode ser trazido de novo à luz. Tentemos apreender o que essa suposição envolve, estabelecendo uma analogia com outro campo. Escolheremos como exemplo a história da Cidade Eterna. Os historiadores nos dizem que a Roma mais antiga foi a Roma Quadrata, uma povoação sediada sobre o Palatino. Seguiu-se a fase dos Septimontium, uma federação das povoações das diferentes colinas; depois, veio a cidade limitada pelo Muro de Sérvio e, mais tarde ainda, após todas as transformações ocorridas durante os períodos da república e dos primeiros césares, a cidade que o imperador Aureliano cercou com as suas muralhas. Não acompanharemos mais as modificações por que a cidade passou; perguntar-nosemos, porém, o quanto um visitante, que imaginaremos munido do mais completo conhecimento histórico e topográfico, ainda pode encontrar, na Roma de hoje, de tudo que restou dessas primeiras etapas. À exceção de umas poucas brechas, verá o Muro de Aureliano quase intacto. Em certas partes, poderá encontrar seções do Muro de Sérvio que foram escavadas e trazidas à luz. Se souber bastante - mais do que a arqueologia atual conhece -, talvez possa traçar na planta da cidade todo o perímetro desse muro e o contorno da Roma Quadrata. Dos prédios que outrora ocuparam essa antiga área, nada encontrará, ou, quando muito, restos escassos, já que não existem mais. No máximo, as melhores informações sobre a Roma da era republicana capacitariam-no apenas a indicar os locais em que os templos e edifícios públicos daquele período se erguiam. Seu sítio acha-se hoje tomado por ruínas, não pelas ruínas deles próprios, mas pelas de restaurações posteriores, efetuadas após incêndios ou outros tipos de destruição. Também faz-se necessário observar que todos esses remanescentes da Roma antiga estão mesclados com a confusão de uma grande metrópole, que se desenvolveu muito nos últimos séculos, a partir da Renascença. Sem dúvida, já não há nada que seja antigo, enterrado no solo da cidade ou sob os edifícios modernos. Este é o modo como se preserva o passado em sítios históricos como Roma. Permitam-nos agora, num vôo da imaginação, supor que Roma não é uma habitação humana, mas uma entidade psíquica, com um passado semelhantemente longo e abundante - isto é, uma entidade onde nada do que outrora surgiu desapareceu e onde todas as fases anteriores de desenvolvimento continuam a existir, paralelamente à última. Isso significaria que, em Roma, os palácios dos césares e as Septizonium de Sétimo Severo ainda se estariam erguendo em sua antiga altura sobre o Palatino e que o castelo de Santo Ângelo ainda apresentaria em suas ameias as belas estátuas que o adornavam até a época do cerco pelos godos, e assim por diante. Mais do que isso: no local ocupado pelo Palazzo Cafarelli, mais uma vez se ergueria - sem que o Palazzo tivesse de ser removido - o Templo de Júpiter Capitolino, não apenas em sua última forma, como os romanos do Império o viam, mas também na primitiva, quando apresentava formas etruscas e era ornamentado por antefixas de terracota. Ao mesmo tempo, onde hoje se ergue o Coliseu, poderíamos admirar a desaparecida Casa Dourada, de Nero. Na Praça do Panteão encontraríamos não apenas o atual, tal como legado por Adriano, mas, aí mesmo, o edifício original levantado por Agripa; na verdade, o mesmo trecho de terreno estaria sustentando a Igreja de Santa Maria sobre Minerva e o antigo templo sobre o qual ela foi construída. E talvez o observador tivesse apenas de mudar a direção do olhar ou a sua posição para invocar uma visão ou a outra. A essa altura não faz sentido prolongarmos nossa fantasia, de uma vez que ela conduz a coisas inimagináveis e mesmo absurdas. Se quisermos representar a seqüência histórica em termos espaciais, só conseguiremos fazê-lo pela justaposição no espaço: o mesmo espaço não pode ter dois conteúdos diferentes. Nossa tentativa parece ser um jogo ocioso. Ela conta com apenas uma justificativa. Mostra quão longe estamos de dominar as características da vida mental através de sua representação em termos pictóricos. Há outra objeção a ser considerada. Pode-se levantar a questão da razão por que escolhemos precisamente o passado de uma cidade para compará-lo com o passado da mente. A suposição de que tudo o que passou é preservado se aplica, mesmo na vida mental, só com a condição de que o órgão da mente tenha permanecido intacto e que seus tecidos não tenham sido danificados por trauma ou inflamação. Mas influências destrutivas que possam ser comparadas a causas de enfermidade como as citadas acima nunca faltam na história de uma cidade, ainda que tenha tido um passado menos diversificado que o de Roma, e ainda que, como Londres, mal tenha sofrido com as visitas de um inimigo. Demolições e substituições de prédios ocorrem no decorrer do mais pacífico desenvolvimento de uma cidade. Uma cidade é, portanto, a priori, inapropriada para uma comparação desse tipo com um organismo mental. Curvamo-nos ante essa objeção e, abandonando nossa tentativa de esboçar um contraste impressivo, nos voltaremos para o que, afinal de contas, constitui um objeto de comparação mais estreitamente relacionado: o corpo de um animal ou o de um ser humano. Aqui também, no entanto, encontramos a mesma coisa. As primeiras fases do desenvolvimento já não se acham, em sentido algum, preservadas; foram absorvidas pelas fases posteriores, às quais forneceram material. O embrião não pode ser descoberto no adulto. A glândula do timo da infância, sendo substituída, após a puberdade, por tecidos de ligação, não mais se apresenta como tal; nas medulas ósseas do homem adulto posso, sem dúvida, traçar o contorno do osso infantil, embora este tenha desaparecido, alongando-se e espessando-se até atingir sua forma definitiva. Permanecem o fato de que só na mente é possível a preservação de todas as etapas anteriores, lado a lado com a forma final, e o de que não estamos em condições de representar esse fenômeno em termos pictóricos. Talvez estejamos levando longe demais essa reflexão. Talvez devêssemos contentar-nos em afirmar que o que se passou na vida mental pode ser preservado, não sendo, necessariamente, destruído. É sempre possível que, mesmo na mente, algo do que é antigo seja apagado ou absorvido quer no curso normal das coisas, quer como exceção - a tal ponto, que não possa ser restaurado nem revivescido por meio algum, ou que a preservação em geral dependa de certas condições favoráveis. É possível, mas nada sabemos a esse respeito. Podemos apenas prender-nos ao fato de ser antes regra, e não exceção, o passado achar-se preservado na vida mental. Assim, estamos perfeitamente dispostos a reconhecer que o sentimento ‘oceânico’ existe em muitas pessoas, e nos inclinamos a fazer sua origem remontar a uma fase primitiva do sentimento do ego. Surge então uma nova questão: que direito tem esse sentimento de ser considerado como a fonte das necessidades religiosas. Esse direito não me parece obrigatório. Afinal de contas, um sentimento só poderá ser fonte de energia se ele próprio for expressão de uma necessidade intensa. A derivação das necessidades religiosas, a partir do desamparo do bebê e do anseio pelo pai que aquela necessidade desperta, pareceme incontrovertível, desde que, em particular, o sentimento não seja simplesmente prolongado a partir dos dias da infância, mas permanentemente sustentado pelo medo do poder superior do Destino. Não consigo pensar em nenhuma necessidade da infância tão intensa quanto a da proteção de um pai. Dessa maneira, o papel desempenhado pelo sentimento oceânico, que poderia buscar algo como a restauração do narcisismo ilimitado, é deslocado de um lugar em primeiro plano. A origem da atitude religiosa pode ser remontada, em linhas muito claras, até o sentimento de desamparo infantil. Pode haver algo mais por trás disso, mas, presentemente, ainda está envolto em obscuridade. Posso imaginar que o sentimento oceânico se tenha vinculado à religião posteriormente. A ‘unidade com o universo’, que constitui seu conteúdo ideacional, soa como uma primeira tentativa de consolação religiosa, como se configurasse uma outra maneira de rejeitar o perigo que o ego reconhece a ameaçá-lo a partir do mundo externo. Permitam-me admitir mais uma vez que para mim é muito difícil trabalhar com essas quantidades quase intangíveis. Outro amigo meu, cuja insaciável vontade de saber o levou a realizar as experiências mais inusitadas, acabando por lhe dar um conhecimento enciclopédico, assegurou-me que, através das práticas de ioga, pelo afastamento do mundo, pela fixação da atenção nas funções corporais e por métodos peculiares de respiração, uma pessoa pode de fato evocar em si mesma novas sensações e cenestesias, consideradas estas como regressões a estados primordiais da mente que há muito tempo foram recobertos. Ele vê nesses estados uma base, por assim dizer fisiológica, de grande parte da sabedoria do misticismo. Não seria difícil descobrir aqui vinculações com certo número de obscuras modificações da vida mental, tais como os transes e os êxtases. Contudo, sou levado a exclamar, como nas palavras do mergulhador de Schiller: ‘…Es freue sich, Wer da atmet im rosigten Licht.’ II Em meu trabalho O Futuro de uma Ilusão [1927c], estava muito menos interessado nas fontes mais profundas do sentimento religioso do que naquilo que o homem comum entende como sua religião o sistema de doutrinas e promessas que, por um lado, lhe explicam os enigmas deste mundo com perfeição invejável, e que, por outro, lhe garantem que uma Providência cuidadosa velará por sua vida e o compensará, numa existência futura, de quaisquer frustrações que tenha experimentado aqui. O homem comum só pode imaginar essa Providência sob a figura de um pai ilimitadamente engrandecido. Apenas um ser desse tipo pode compreender as necessidades dos filhos dos homens, enternecer-se com suas preces e aplacar-se com os sinais de seu remorso. Tudo é tão patentemente infantil, tão estranho à realidade, que, para qualquer pessoa que manifeste uma atitude amistosa em relação à humanidade, é penoso pensar que a grande maioria dos mortais nunca será capaz de superar essa visão da vida. Mais humilhante ainda é descobrir como é vasto o número de pessoas de hoje que não podem deixar de perceber que essa religião é insustentável e, não obstante isso, tentam defendê-la, item por item, numa série de lamentáveis atos retrógrados. Gostaríamos de nos mesclar às fileiras dos crentes, a fim de encontrarmos aqueles filósofos que consideram poder salvar o Deus da religião, substituindo-o por um princípio impessoal, obscuro e abstrato, e dirigirmos-lhes as seguintes palavras de advertência: ‘Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão!’ E, se alguns dos grandes homens do passado agiram da mesma maneira, de modo nenhum se pode invocar seu exemplo: sabemos por que foram obrigados a isso. Retornemos ao homem comum e à sua religião, a única que deveria levar esse nome. A primeira coisa em que pensamos é na bem conhecida expressão de um de nossos maiores poetas e pensadores, referindo-se à relação da religião com a arte e a ciência: Wer Wissenschaft und Kunst besitzt, hat auch Religion; Wer jene beide nicht besitzt, der habe Religion! Esses dois versos, por um lado, traçam uma antítese entre a religião e as duas mais altas realizações do homem, e, por outro, asseveram que, com relação ao seu valor na vida, essas realizações e a religião podem representar-se ou substituir-se mutuamente. Se também nos dispusermos a privar o homem comum [que não possui nem ciência nem arte] de sua religião, é claro que não teremos de nosso lado a autoridade do poeta. Escolheremos um caminho específico para nos aproximarmos mais de uma justa apreciação de suas palavras. A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não podemos dispensar as medidas paliativas. ‘Não podemos passar sem construções auxiliares’, diz-nos Theodor Fontane. Existem talvez três medidas desse tipo: derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz de nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela. Algo desse tipo é indispensável. Voltaire tinha os derivativos em mente quando terminou Candide com o conselho para cultivarmos nosso próprio jardim, e a atividade científica constitui também um derivativo dessa espécie. As satisfações substitutivas, tal como as oferecidas pela arte, são ilusões, em contraste com a realidade; nem por isso, contudo, se revelam menos eficazes psiquicamente, graças ao papel que a fantasia assumiu na vida mental. As substâncias tóxicas influenciam nosso corpo e alteram a sua química. Não é simples perceber onde a religião encontra o seu lugar nessa série. Temos de pesquisar mais adiante. A questão do propósito da vida humana já foi levantada várias vezes; nunca, porém, recebeu resposta satisfatória e talvez não a admita. Alguns daqueles que a formularam acrescentaram que, se fosse demonstrado que a vida não tem propósito, esta perderia todo valor para eles. Tal ameaça, porém, não altera nada. Pelo contrário, faz parecer que temos o direito de descartar a questão, já que ela parece derivar da presunção humana, da qual muitas outras manifestações já nos são familiares. Ninguém fala sobre o propósito da vida dos animais, a menos, talvez, que se imagine que ele resida no fato de os animais se acharem a serviço do homem. Contudo, tampouco essa opinião é sustentável, de uma vez que existem muitos animais de que o homem nada pode se aproveitar, exceto descrevê-los, classificá-los e estudá-los; ainda assim, inumeráveis espécies de animais escaparam inclusive a essa utilização, pois existiram e se extinguiram antes que o homem voltasse seus olhos para elas. Mais uma vez, só a religião é capaz de resolver a questão do propósito da vida. Dificilmente incorreremos em erro ao concluirmos que a idéia de a vida possuir um propósito se forma e desmorona com o sistema religioso.Voltar-nosemos, portanto, para uma questão menos ambiciosa, a que se refere àquilo que os próprios homens, por seu comportamento, mostram ser o propósito e a intenção de suas vidas. O que pedem eles da vida e o que desejam nela realizar? A resposta mal pode provocar dúvidas. Esforçam-se para obter felicidade; querem ser felizes e assim permanecer. Essa empresa apresenta dois aspectos: uma meta positiva e uma meta negativa. Por um lado, visa a uma ausência de sofrimento e de desprazer; por outro, à experiência de intensos sentimentos de prazer. Em seu sentido mais restrito, a palavra ‘felicidade’ só se relaciona a esses últimos. Em conformidade a essa dicotomia de objetivos, a atividade do homem se desenvolve em duas direções, segundo busque realizar - de modo geral ou mesmo exclusivamente - um ou outro desses objetivos. Como vemos, o que decide o propósito da vida é simplesmente o programa do princípio do prazer. Esse princípio domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o início. Não pode haver dúvida sobre sua eficácia, ainda que o seu programa se encontre em desacordo com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo. Não há possibilidade alguma de ele ser executado; todas as normas do universo são-lhe contrárias. Ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja ‘feliz’ não se acha incluída no plano da ‘Criação’. O que chamamos de felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência, repentina) de necessidades represadas em alto grau, sendo, por sua natureza, possível apenas como uma manifestação episódica. Quando qualquer situação desejada pelo princípio do prazer se prolonga, ela produz tão-somente um sentimento de contentamento muito tênue. Somos feitos de modo a só podermos derivar prazer intenso de um contraste, e muito pouco de um determinado estado de coisas. Assim, nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição. Já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar. O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro. Tendemos a encará-lo como uma espécie de acréscimo gratuito, embora ele não possa ser menos fatidicamente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras fontes. Não admira que, sob a pressão de todas essas possibilidades de sofrimento, os homens se tenham acostumado a moderar suas reivindicações de felicidade - tal como, na verdade, o próprio princípio do prazer, sob a influência do mundo externo, se transformou no mais modesto princípio da realidade -, que um homem pense ser ele próprio feliz, simplesmente porque escapou à infelicidade ou sobreviveu ao sofrimento, e que, em geral, a tarefa de evitar o sofrimento coloque a de obter prazer em segundo plano. A reflexão nos mostra que é possível tentar a realização dessa tarefa através de caminhos muito diferentes e que todos esses caminhos foram recomendados pelas diversas escolas de sabedoria secular e postos em prática pelos homens. Uma satisfação irrestrita de todas as necessidades apresenta-se-nos como o método mais tentador de conduzir nossas vidas; isso, porém, significa colocar o gozo antes da cautela, acarretando logo o seu próprio castigo. Os outros métodos, em que a fuga do desprazer constitui o intuito primordial, diferenciam-se de acordo com a fonte de desprazer para a qual sua atenção está principalmente voltada. Alguns desses métodos são extremados; outros, moderados; alguns são unilaterais; outros atacam o problema, simultaneamente, em diversos pontos. Contra o sofrimento que pode advir dos relacionamentos humanos, a defesa mais imediata é o isolamento voluntário, o manter-se à distância das outras pessoas. A felicidade passível de ser conseguida através desse método é, como vemos, a felicidade da quietude. Contra o temível mundo externo, só podemos defender-nos por algum tipo de afastamento dele, se pretendermos solucionar a tarefa por nós mesmos. Há, é verdade, outro caminho, e melhor: o de tornar-se membro da comunidade humana e, com o auxílio de uma técnica orientada pela ciência, passar para o ataque à natureza e sujeitá-la à vontade humana. Trabalha-se então com todos para o bem de todos. Contudo, os métodos mais interessantes de evitar o sofrimento são os que procuram influenciar o nosso próprio organismo. Em última análise, todo sofrimento nada mais é do que sensação; só existe na medida em que o sentimos, e só o sentimos como conseqüência de certos modos pelos quais nosso organismo está regulado.O mais grosseiro, embora também o mais eficaz, desses métodos de influência é o químico: a intoxicação. Não creio que alguém compreenda inteiramente o seu mecanismo; é fato, porém, que existem substâncias estranhas, as quais, quando presentes no sangue ou nos tecidos, provocam em nós, diretamente, sensações prazerosas, alterando, também, tanto as condições que dirigem nossa sensibilidade, que nos tornamos incapazes de receber impulsos desagradáveis. Os dois efeitos não só ocorrem de modo simultâneo, como parecem estar íntima e mutuamente ligados. No entanto, é possível que haja substâncias na química de nossos próprios corpos que apresentem efeitos semelhante pois conhecemos pelo menos um estado patológico, a mania, no qual uma condição semelhante à intoxicação surge sem administração de qualquer droga intoxicante. Além disso, nossa vida psíquica normal apresenta oscilações entre uma liberação de prazer relativamente fácil e outra comparativamente difícil, paralela à qual ocorre uma receptividade, diminuída ou aumentada, ao desprazer. É extremamente lamentável que até agora esse lado tóxico dos processos mentais tenha escapado ao exame científico. O serviço prestado pelos veículos intoxicantes na luta pela felicidade e no afastamento da desgraça é tão altamente apreciado como um benefício, que tanto indivíduos quanto povos lhes concederam um lugar permanente na economia de sua libido. Devemos a tais veículos não só a produção imediata de prazer, mas também um grau altamente desejado de independência do mundo externo, pois sabe-se que, com o auxílio desse ‘amortecedor de preocupações’, é possível, em qualquer ocasião, afastar-se da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio, com melhores condições de sensibilidade. Sabe-se igualmente que é exatamente essa propriedade dos intoxicantes que determina o seu perigo e a sua capacidade de causar danos. São responsáveis, em certas circunstâncias, pelo desperdício de uma grande quota de energia que poderia ser empregada para o aperfeiçoamento do destino humano. A complicada estrutura de nosso aparelho mental admite, contudo, um grande número de outras influências. Assim como a satisfação do instinto equivale para nós à felicidade, assim também um grave sofrimento surge em nós, caso o mundo externo nos deixe definhar, caso se recuse a satisfazer nossas necessidades. Podemos, portanto, ter esperanças de nos libertarmos de uma parte de nossos sofrimentos, agindo sobre os impulsos instintivos. Esse tipo de defesa contra o sofrimento se aplica mais ao aparelho sensorial; ele procura dominar as fontes internas de nossas necessidades. A forma extrema disso é ocasionada pelo aniquilamento dos instintos, tal como prescrito pela sabedoria do mundo peculiar ao Oriente e praticada pelo ioga. Caso obtenha êxito, o indivíduo, é verdade, abandona também todas as outras atividades: sacrifica a sua vida e, por outra via, mais uma vez atinge apenas a felicidade da quietude. Seguimos o mesmo caminho quando os nossos objetivos são menos extremados e simplesmente tentamos controlar nossa vida instintiva. Nesse caso, os elementos controladores são os agentes psíquicos superiores, que se sujeitaram ao princípio da realidade. Aqui, a meta da satisfação não é, de modo algum, abandonada, mas garante-se uma certa proteção contra o sofrimento no sentido de que a não-satisfação não é tão penosamente sentida no caso dos instintos mantidos sob dependência como no caso dos instintos desinibidos. Contra isso, existe uma inegável diminuição nas potencialidades de satisfação. O sentimento de felicidade derivado da satisfação de um selvagem impulso instintivo não domado pelo ego é incomparavelmente mais intenso do que o derivado da satisfação de um instinto que já foi domado. A irresistibilidade dos instintos perversos e, talvez, a atração geral pelas coisas proibidas encontram aqui uma explicação econômica. Outra técnica para afastar o sofrimento reside no emprego dos deslocamentos de libido que nosso aparelho mental possibilita e através dos quais sua função ganha tanta flexibilidade. A tarefa aqui consiste em reorientar os objetivos instintivos de maneira que eludam a frustração do mundo externo. Para isso, ela conta com a assistência da sublimação dos instintos. Obtém-se o máximo quando se consegue intensificar suficientemente a produção de prazer a partir das fontes do trabalho psíquico e intelectual. Quando isso acontece, o destino pouco pode fazer contra nós. Uma satisfação desse tipo, como, por exemplo, a alegria do artista em criar, em dar corpo às suas fantasias, ou a do cientista em solucionar problemas ou descobrir verdades, possui uma qualidade especial que, sem dúvida, um dia poderemos caracterizar em termos metapsicológicos. Atualmente, apenas de forma figurada podemos dizer que tais satisfações parecem ‘mais refinadas e mais altas’. Contudo, sua intensidade se revela muito tênue quando comparada com a que se origina da satisfação de impulsos instintivos grosseiros e primários; ela não convulsiona o nosso ser físico. E o ponto fraco desse método reside em não ser geralmente aplicável, de uma vez que só é acessível a poucas pessoas. Pressupõe a posse de dotes e disposições especiais que, para qualquer fim prático, estão longe de serem comuns. E mesmo para os poucos que os possuem, o método não proporciona uma proteção completa contra o sofrimento. Não cria uma armadura impenetrável contra as investidas do destino e habitualmente falha quando a fonte do sofrimento é o próprio corpo da pessoa.Enquanto esse procedimento já mostra claramente uma intenção de nos tornar independentes do mundo externo pela busca da satisfação em processos psíquicos internos, o procedimento seguinte apresenta esses aspectos de modo ainda mais intenso. Nele, a distensão do vínculo com a realidade vai mais longe; a satisfação é obtida através de ilusões, reconhecidas como tais, sem que se verifique permissão para que a discrepância entre elas e a realidade interfira na sua fruição. A região onde essas ilusões se originam é a vida da imaginação; na época em que o desenvolvimento do senso de realidade se efetuou, essa região foi expressamente isentada das exigências do teste de realidade e posta de lado a fim de realizar desejos difíceis de serem levados a termo. À frente das satisfações obtidas através da fantasia ergue-se a fruição das obras de arte, fruição que, por intermédio do artista, é tornada acessível inclusive àqueles que não são criadores. As pessoas receptivas à influência da arte não lhe podem atribuir um valor alto demais como fonte de prazer e consolação na vida. Não obstante, a suave narcose a que a arte nos induz, não faz mais do que ocasionar um afastamento passageiro das pressões das necessidades vitais, não sendo suficientemente forte para nos levar a esquecer a aflição real. Um outro processo opera de modo mais energético e completo. Considera a realidade como a única inimiga e a fonte de todo sofrimento, com a qual é impossível viver, de maneira que, se quisermos ser de algum modo felizes, temos de romper todas as relações com ela. O eremita rejeita o mundo e não quer saber de tratar com ele. Pode-se, porém, fazer mais do que isso; pode-se tentar recriar o mundo, em seu lugar construir um outro mundo, no qual os seus aspectos mais insuportáveis sejam eliminados e substituídos por outros mais adequados a nossos próprios desejos. Mas quem quer que, numa atitude de desafio desesperado, se lance por este caminho em busca da felicidade, geralmente não chega a nada. A realidade é demasiado forte para ele. Torna-se um louco; alguém que, a maioria das vezes, não encontra ninguém para ajudá-lo a tornar real o seu delírio. Afirma-se, contudo, que cada um de nós se comporta, sob determinado aspecto, como um paranóico, corrige algum aspecto do mundo que lhe é insuportável pela elaboração de um desejo e introduz esse delírio na realidade. Concede-se especial importância ao caso em que a tentativa de obter uma certeza de felicidade e uma proteção contra o sofrimento através de um remodelamento delirante da realidade, é efetuada em comum por um considerável número de pessoas. As religiões da humanidade devem ser classificadas entre os delírios de massa desse tipo. É desnecessário dizer que todo aquele que partilha um delírio jamais o reconhece como tal. Não pretendo ter feito uma enumeração completa dos métodos pelos quais os homens se esforçam para conseguir a felicidade e manter afastado o sofrimento; sei também que o material poderia ter sido diferentemente disposto. Ainda não mencionei um processo - não por esquecimento, mas porque nos interessará mais tarde, em relação a outro assunto. E como se poderia esquecer, entre todas as outras, a técnica da arte de viver? Ela se faz visível por uma notável combinação de aspectos característicos. Naturalmente, visa também a tornar o indivíduo independente do Destino (como é melhor chamá-lo) e, para esse fim, localiza a satisfação em processos mentais internos, utilizando, ao proceder assim, a deslocabilidade da libido que já mencionamos,ver [[1]]. Mas ela não volta as costas ao mundo externo; pelo contrário, prende-se aos objetos pertencentes a esse mundo e obtém felicidade de um relacionamento emocional com eles. Tampouco se contenta em visar a uma fuga do desprazer, uma meta, poderíamos dizer, de cansada resignação; passa por ela sem lhe dar atenção e se aferra ao esforço original e apaixonado em vista de uma consecução completa da felicidade. Na realidade, talvez se aproxime mais dessa meta do que qualquer outro método. Evidentemente, estou falando da modalidade de vida que faz do amor o centro de tudo, que busca toda satisfação em amar e ser amado. Uma atitude psíquica desse tipo chega de modo bastante natural a todos nós; uma das formas através da qual o amor se manifesta - o amor sexual - nos proporcionou nossa mais intensa experiência de uma transbordante sensação de prazer, fornecendo-nos assim um modelo para nossa busca da felicidade. Há, porventura, algo mais natural do que persistirmos na busca da felicidade do modo como a encontramos pela primeira vez? O lado fraco dessa técnica de viver é de fácil percepção, pois, do contrário, nenhum ser humano pensaria em abandonar esse caminho da felicidade por qualquer outro. É que nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão desamparadamente infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor. Isso, porém, não liquida com a técnica de viver baseada no valor do amor como um meio de obter felicidade. Há muito mais a ser dito a respeito. [Ver [1]]. Daqui podemos passar à consideração do interessante caso em que a felicidade na vida é predominantemente buscada na fruição da beleza, onde quer que esta se apresente a nossos sentidos e a nosso julgamento - a beleza das formas e a dos gestos humanos, a dos objetos naturais e das paisagens e a das criações artísticas e mesmo científicas. A atitude estética em relação ao objetivo da vida oferece muito pouca proteção contra a ameaça do sofrimento, embora possa compensá-lo bastante. A fruição da beleza dispõe de uma qualidade peculiar de sentimento, tenuemente intoxicante. A beleza não conta com um emprego evidente; tampouco existe claramente qualquer necessidade cultural sua. Apesar disso, a civilização não pode dispensá-la. Embora a ciência da estética investigue as condições sob as quais as coisas são sentidas como belas, tem sido incapaz de fornecer qualquer explicação a respeito da natureza e da origem da beleza, e, tal como geralmente acontece, esse insucesso vem sendo escamoteado sob um dilúvio de palavras tão pomposas quanto ocas. A psicanálise, infelizmente, também pouco encontrou a dizer sobre a beleza. O que parece certo é sua derivação do campo do sentimento sexual. O amor da beleza parece um exemplo perfeito de um impulso inibido em sua finalidade.’Beleza’ e ‘atração’ são, originalmente, atributos do objeto sexual. Vale a pena observar que os próprios órgãos genitais, cuja visão é sempre excitante, dificilmente são julgados belos; a qualidade da beleza, ao contrário, parece ligar-se a certos caracteres sexuais secundários. A despeito da deficiência [de minha enumeração, ver ([1])], aventurar-me-ei a algumas observações à guisa de conclusão para nossa investigação. O programa de tornar-se feliz, que o princípio do prazer nos impõe,ver [[1]],não pode ser realizado; contudo, não devemos - na verdade, não podemos - abandonar nossos esforços de aproximá-lo da consecução, de uma maneira ou de outra. Caminhos muito diferentes podem ser tomados nessa direção, e podemos conceder prioridades quer ao aspecto positivo do objetivo, obter prazer, quer ao negativo, evitar o desprazer. Nenhum desses caminhos nos leva a tudo o que desejamos. A felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como possível, constitui um problema da economia da libido do indivíduo. Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo. Todos os tipos de diferentes fatores operarão a fim de dirigir sua escolha. É uma questão de quanta satisfação real ele pode esperar obter do mundo externo, de até onde é levado para tornar-se independente dele, e, finalmente, de quanta força sente à sua disposição para alterar o mundo, a fim de adaptá-lo a seus desejos. Nisso, sua constituição psíquica desempenhará papel decisivo, independentemente das circunstâncias externas. O homem predominantemente erótico dará preferência aos seus relacionamentos emocionais com outras pessoas; o narcisista que tende a ser auto-suficiente, buscará suas satisfações principais em seus processos mentais internos; o homem de ação nunca abandonará o mundo externo, onde pode testar sua força. Quanto ao segundo desses tipos, a natureza de seus talentos e a parcela de sublimação instintiva a ele aberta decidirão onde localizará os seus interesses. Qualquer escolha levada a um extremo condena o indivíduo a ser exposto a perigos, que surgem caso uma técnica de viver, escolhida como exclusiva, se mostre inadequada. Assim como o negociante cauteloso evita empregar todo seu capital num só negócio, assim também, talvez, a sabedoria popular nos aconselhe a não buscar a totalidade de nossa satisfação numa só aspiração. Seu êxito jamais é certo, pois depende da convergência de muitos fatores, talvez mais do que qualquer outro, da capacidade da constituição psíquica em adaptar sua função ao meio ambiente e então explorar esse ambiente em vista de obter um rendimento de prazer. Uma pessoa nascida com uma constituição instintiva especialmente desfavorável e que não tenha experimentado corretamente a transformação e a redisposição de seus componentes libidinais indispensáveis às realizações posteriores, achará difícil obter felicidade em sua situação externa,em especial se vier a se defrontar com tarefas de certa dificuldade. Como uma última técnica de vida, pelo que menos lhe trará satisfações substitutivas, é-lhe oferecida a fuga para a enfermidade neurótica, fuga que geralmente efetua quando ainda é jovem. O homem que, em anos posteriores, vê sua busca da felicidade resultar em nada ainda pode encontrar consolo no prazer oriundo da intoxicação crônica, ou então se empenhar na desesperada tentativa de rebelião que se observa na psicose. A religião restringe esse jogo de escolha e adaptação, desde que impõe igualmente a todos o seu próprio caminho para a aquisição da felicidade e da proteção contra o sofrimento. Sua técnica consiste em depreciar o valor da vida e deformar o quadro do mundo real de maneira delirante - maneira que pressupõe uma intimidação da inteligência. A esse preço, por fixá-las à força num estado de infantilismo psicológico e por arrastá-las a um delírio de massa, a religião consegue poupar a muitas pessoas uma neurose individual. Dificilmente, porém, algo mais. Existem, como dissemos, muitos caminhos que podem levar à felicidade passível de ser atingida pelos homens, mas nenhum que o faça com toda segurança. Mesmo a religião não consegue manter sua promessa. Se, finalmente, o crente se vê obrigado a falar dos ‘desígnios inescrutáveis’ de Deus, está admitindo que tudo que lhe sobrou, como último consolo e fonte de prazer possíveis em seu sofrimento, foi uma submissão incondicional. E, se está preparado para isso, provavelmente poderia ter-se poupado o détour que efetuou. III Até agora, nossa investigação sobre a felicidade não nos ensinou quase nada que já não pertença ao conhecimento comum. E, mesmo que passemos dela para o problema de saber por que é tão difícil para o homem ser feliz, parece que não há maior perspectiva de aprender algo novo. Já demos a resposta,ver [[1]] pela indicação das três fontes de que nosso sofrimento provém: o poder superior da natureza, a fragilidade de nossos próprios corpos e a inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade. Quanto às duas primeiras fontes, nosso julgamento não pode hesitar muito. Ele nos força a reconhecer essas fontes de sofrimento e a nos submeter ao inevitável. Nunca dominaremos completamente a natureza, e o nosso organismo corporal, ele mesmo parte dessa natureza, permanecerá sempre como uma estrutura passageira, com limitada capacidade de adaptação e realização. Esse reconhecimento não possui um efeito paralisador. Pelo contrário, aponta a direção para a nossa atividade. Se não podemos afastar todo sofrimento, podemos afastar um pouco dele e mitigar outro tanto: a experiência de muitos milhares de anos nos convenceu disso. Quanto à terceira fonte, a fonte social de sofrimento, nossa atitude é diferente. Não a admitimos de modo algum; não podemos perceber por que os regulamentos estabelecidos por nós mesmos não representam, ao contrário, proteção e benefício para cada um de nós. Contudo, quando consideramos o quanto fomos malsucedidos exatamente nesse campo de prevenção do sofrimento, surge em nós a suspeita de que também aqui é possível jazer, por trás desse fato, uma parcela de natureza inconquistável - dessa vez, uma parcela de nossa própria constituição psíquica. Quando começamos a considerar essa possibilidade, deparamo-nos com um argumento tão espantoso, que temos de nos demorar nele. Esse argumento sustenta que o que chamamos de nossa civilização é em grande parte responsável por nossa desgraça e que seríamos muito mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas. Chamo esse argumento de espantoso porque, seja qual for a maneira por que possamos definir o conceito de civilização, constitui fato incontroverso que todas as coisas que buscamos a fim de nos protegermos contra as ameaças oriundas das fontes de sofrimento, fazem parte dessa mesma civilização. Como foi que tantas pessoas vieram a assumir essa estranha atitude de hostilidade para com a civilização? Acredito que seu fundamento consistiu numa longa e duradoura insatisfação com o estado de civilização então existente e que, nessa base, se construiu uma condenação dela, ocasionada por certos acontecimentos históricos específicos. Penso saber quais foram a última e a penúltima dessas ocasiões. Não sou suficientemente erudito para fazer remontar a origem de sua cadeia o mais distante possível na história da espécie humana, mas um fator desse tipo, hostil à civilização, já devia estar em ação na vitória do cristianismo sobre as religiões pagãs, de uma vez que se achava intimamente relacionado à baixa estima dada à vida terrena pela doutrina cristã. A penúltima dessas ocasiões se instaurou quando o progresso das viagens de descobrimento conduziu ao contacto com povos e raças primitivos. Em conseqüência de uma observação insuficiente e de uma visão equivocada de seus hábitos e costumes, eles apareceram aos europeus como se levassem uma vida simples e feliz, com poucas necessidades, um tipo de vida inatingível por seus visitantes com sua civilização superior. A experiência posterior corrigiu alguns desses julgamentos. Em muitos casos, os observadores haviam erroneamente atribuído à ausência de exigências culturais complicadas o que de fato era devido à generosidade da natureza e à facilidade com que as principais necessidades humanas eram satisfeitas. A última ocasião nos é especialmente familiar. Surgiu quando as pessoas tomaram conhecimento do mecanismo das neuroses, que ameaçam solapar a pequena parcela de felicidade desfrutada pelos homens civilizados. Descobriuse que uma pessoa se torna neurótica porque não pode tolerar a frustração que a sociedade lhe impõe, a serviço de seus ideais culturais, inferindo-se disso que a abolição ou redução dessas exigências resultaria num retorno a possibilidades de felicidade. Existe ainda um fator adicional de desapontamento. Durante as últimas gerações, a humanidade efetuou um progresso extraordinário nas ciências naturais e em sua aplicação técnica, estabelecendo seu controle sobre a natureza de uma maneira jamais imaginada. As etapas isoladas desse progresso são do conhecimento comum, sendo desnecessário enumerá-las. Os homens se orgulham de suas realizações e têm todo direito de se orgulharem. Contudo, parecem ter observado que o poder recentemente adquirido sobre o espaço e o tempo, a subjugação das forças da natureza, consecução de um anseio que remonta a milhares de anos, não aumentou a quantidade de satisfação prazerosa que poderiam esperar da vida e não os tornou mais felizes. Reconhecendo esse fato, devemos contentar-nos em concluir que o poder sobre a natureza não constitui a única precondição da felicidade humana, assim como não é o único objetivo do esforço cultural. Disso não devemos inferir que o progresso técnico não tenha valor para a economia de nossa felicidade. Gostaríamos de perguntar: não existe, então, nenhum ganho no prazer, nenhum aumento inequívoco no meu sentimento de felicidade, se posso, tantas vezes quantas me agrade, escutar a voz de um filho meu que está morando a milhares de quilômetros de distância, ou saber, no tempo mais breve possível depois de um amigo ter atingido seu destino, que ele concluiu incólume a longa e difícil viagem? Não significa nada que a medicina tenha conseguido não só reduzir enormemente a mortalidade infantil e o perigo de infecção para as mulheres no parto, como também, na verdade, prolongar consideravelmente a vida média do homem civilizado? Há uma longa lista que poderia ser acrescentada a esse tipo de benefícios, que devemos à tão desprezada era dos progressos científicos e técnicos. Aqui, porém, a voz da crítica pessimista se faz ouvir e nos adverte que a maioria dessas satisfações segue o modelo do ‘prazer barato’ louvado pela anedota: o prazer obtido ao se colocar a perna nua para fora das roupas de cama numa fria noite de inverno e recolhê-la novamente. Se não houvesse ferrovias para abolir as distâncias, meu filho jamais teria deixado sua cidade natal e eu não precisaria de telefone para ouvir sua voz; se as viagens marítimas transoceânicas não tivessem sido introduzidas, meu amigo não teria partido em sua viagem por mar e eu não precisaria de um telegrama para aliviar minha ansiedade a seu respeito. Em que consiste a vantagem de reduzir a mortalidade infantil, se é precisamente essa redução que nos impõe a maior coerção na geração de filhos, de tal maneira que, considerando tudo, não criamos mais crianças do que nos dias anteriores ao reino da higiene, ao passo que, ao mesmo tempo, criamos condições difíceis para nossa vida sexual no casamento e provavelmente trabalhamos contra os efeitos benéficos da seleção natural? Enfim, de que nos vale uma vida longa se ela se revela difícil e estéril em alegrias, e tão cheia de desgraças que só a morte é por nós recebida como uma libertação? Parece certo que não nos sentimos confortáveis na civilização atual, mas é muito difícil formar uma opinião sobre se, e em que grau, os homens de épocas anteriores se sentiram mais felizes, e sobre o papel que suas condições culturais desempenharam nessa questão. Sempre tendemos a considerar objetivamente a aflição das pessoas - isto é, nos colocarmos, com nossas próprias necessidades e sensibilidades, nas condições delas, e então examinar quais as ocasiões que nelas encontraríamos para experimentar felicidade ou infelicidade. Esse método de examinar as coisas, que parece objetivo por ignorar as variações na sensibilidade subjetiva, é, naturalmente, o mais subjetivo possível, de uma vez que coloca nossos próprios estados mentais no lugar de quaisquer outros, por mais desconhecidos que estes possam ser. A felicidade, contudo, é algo essencialmente subjetivo. Por mais que nos retraiamos com horror de certas situações - a de um escravo de galé na Antiguidade, a de um camponês durante a Guerra dos Trinta Anos, a de uma vítima da Inquisição, a de um judeu à espera de um pogrom - para nós, sem embargo, é impossível nos colocarmos no lugar dessas pessoas - adivinhar as modificações que uma obtusidade original da mente, um processo gradual de embrutecimento, a cessação das esperanças e métodos de narcotização mais grosseiros ou mais refinados produziram sobre a receptividade delas às sensações de prazer e desprazer. Além disso, no caso da possibilidade mais extrema de sofrimento, dispositivos mentais protetores e especiais são postos em funcionamento. Parece-me improdutivo levar adiante esse aspecto do problema. Já é tempo de voltarmos nossa atenção para a natureza dessa civilização, sobre cujo valor como veículo de felicidade foram lançadas dúvidas. Não procuraremos uma fórmula que exprima essa natureza em poucas palavras, enquanto não tivermos aprendido alguma coisa através de seu exame. Mais uma vez, portanto, nos contentaremos em dizer que a palavra ‘civilização’ descreve a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais, e que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos. A fim de aprendermos mais, reuniremos os diversos aspectos singulares da civilização, tal como se apresentam nas comunidades humanas. Agindo desse modo, não hesitaremos em nos deixar guiar pelos hábitos lingüísticos ou, como são também chamados, sentimento lingüístico, na convicção de que assim estamos fazendo justiça e discernimentos internos que ainda desafiam sua expressão em termos abstratos. A primeira etapa é fácil. Reconhecemos como culturais todas as atividades e recursos úteis aos homens, por lhes tornarem a terra proveitosa, por protegerem-nos contra a violência das forças da natureza, e assim por diante. Em relação a esse aspecto de civilização, dificilmente pode haver qualquer dúvida. Se remontarmos suficientemente às origens, descobriremos que os primeiros atos de civilização foram a utilização de instrumentos, a obtenção do controle sobre o fogo e a construção de habitações.Entre estes, o controle sobre o fogo sobressai como uma realização extraordinária e sem precedentes, ao passo que os outros desbravaram caminhos que o homem desde então passou a seguir, e cujo estímulo pode ser facilmente percebido. Através de cada instrumento, o homem recria seus próprios órgãos, motores ou sensoriais, ou amplia os limites de seu funcionamento. A potência motora coloca forças gigantescas à sua disposição, as quais, como os seus músculos, ele pode empregar em qualquer direção; graças aos navios e aos aviões, nem a água nem o ar podem impedir seus movimentos; por meio de óculos corrige os defeitos das lentes de seus próprios olhos; através do telescópio, vê a longa distância; e por meio do microscópio supera os limites de visibilidade estabelecidos pela estrutura de sua retina. Na câmara fotográfica, criou um instrumento que retém as impressões visuais fugidias, assim como um disco de gramofone retém as auditivas, igualmente fugidias; ambas são, no fundo, materializações do poder que ele possui de rememoração, isto é, sua memória. Com o auxílio do telefone, pode escutar a distâncias que seriam respeitadas como inatingíveis mesmo num conto de fadas. A escrita foi, em sua origem, a voz de uma pessoa ausente, e a casa para moradia constituiu um substituto do útero materno, o primeiro alojamento, pelo qual, com toda probabilidade, o homem ainda anseia, e no qual se achava seguro e se sentia à vontade. Essas coisas - que, através de sua ciência e tecnologia, o homem fez surgir na Terra, sobre a qual, no princípio, ele apareceu como um débilorganismo animal e onde cada indivíduo de sua espécie deve, mais uma vez, fazer sua entrada (‘oh inch of nature’) como se fosse um recém-nascido desamparado - essas coisas não apenas soam como um conto de fadas, mas também constituem uma realização efetiva de todos - ou quase todos - os desejos de contos de fadas. Todas essas vantagens ele as pode reivindicar como aquisição cultural sua. Há muito tempo atrás, ele formou uma concepção ideal de onipotência e onisciência que corporificou em seus deuses. A estes, atribuía tudo que parecia inatingível aos seus desejos ou lhe era proibido. Pode-se dizer, portanto, que esses deuses constituíam ideais culturais. Hoje, ele se aproximou bastante da consecução desse ideal, ele próprio quase se tornou um deus. É verdade que isso só ocorreu segundo o modo como os ideais são geralmente atingidos, de acordo com o juízo geral da humanidade. Não completamente; sob certos aspectos, de modo algum; sob outros, apenas pela metade. O homem, por assim dizer, tornou-se uma espécie de “Deus de prótese”. Quando faz uso de todos os seus órgãos auxiliares, ele é verdadeiramente magnífico; esses órgãos, porém, não cresceram nele e, às vezes, ainda lhe causam muitas dificuldades. Não obstante, ele tem o direito de se consolar pensando que esse desenvolvimento não chegará ao fim exatamente no ano de 1930 A.D. As épocas futuras trarão com elas novos e provavelmente inimagináveis grandes avanços nesse campo da civilização e aumentarão ainda mais a semelhança do homem com Deus. No interesse de nossa investigação, contudo, não esqueceremos que atualmente o homem não se sente feliz em seu papel de semelhante a Deus. Reconhecemos, então, que os países atingiram um alto nível de civilização quando descobrimos que neles tudo o que pode ajudar na exploração da Terra pelo homem e na sua proteção contra as forças da natureza tudo, emsuma, que é útil para ele - está disponível e é passível de ser conseguido. Nesses países, os rios que ameaçam inundar as terras são regulados em seu fluxo, e sua água é irrigada através de canais para lugares onde ela é escassa. O solo é cuidadosamente cultivado e plantado com a vegetação apropriada, e a riqueza mineral subterrânea é assiduamente trazida à superfície e modelada em implementos e utensílios indispensáveis. Os meios de comunicação são amplos, rápidos e dignos de confiança. Os animais selvagens e perigosos foram exterminados e a criação de animais domésticos floresce. Além dessas, porém, exigimos outras coisas da civilização, sendo digno de nota o fato de esperarmos encontrá-las realizadas nesses mesmos países. Como se estivéssemos procurando repudiar a primeira exigência que fizemos, reconhecemos, igualmente, como um sinal de civilização, verificar que as pessoas também orientam suas preocupações para aquilo que não possui qualquer valor prático, para o que não é lucrativo: por exemplo, os espaços verdes necessários a uma cidade, como playgrounds e reservatórios de ar fresco, são também ornados de jardins e as janelas das casas, decoradas com vasos de flores. De imediato, constatamos que essa coisa não lucrativa que esperamos que a civilização valorize, é a beleza. Exigimos que o homem civilizado reverencie a beleza, sempre que a perceba na natureza ou sempre que a crie nos objetos de seu trabalho manual, na medida em que é capaz disso. Mas isso está longe de exaurir nossas exigências quanto à civilização. Esperamos, ademais, ver sinais de asseio e de ordem. Não concebemos uma cidade do interior da Inglaterra, na época de Shakespeare, como possuidora de um alto nível cultural, quando lemos que havia um grande monte de esterco em frente à casa de seu pai, em Stratford; também ficamos indignados e chamamos de ‘bárbaro’ (o oposto de civilizado), quando nos deparamos com as veredas do Wiener Wald cobertas de papéis velhos. A sujeira de qualquer espécie nos parece incompatível com a civilização. Da mesma forma, estendemos nossa exigência de limpeza ao corpo humano. Ficamos estupefatos ao saber que o emanava um odor insuportável, meneamos a cabeça quando, na Isola Bella nos é mostrada a minúscula bacia em que Napoleão se lavava todas as manhãs. Na verdade, não nos surpreende a idéia de estabelecer o emprego do sabão como um padrão real de civilização. Isso é igualmente verdadeiro quanto à ordem. Assim como a limpeza, ela só se aplica às obrasdo homem. Contudo, ao passo que não se espera encontrar asseio na natureza, a ordem, pelo contrário, foi imitada a partir dela. A observação que o homem fez das grandes regularidades astronômicas não apenas o muniu de um modelo para a introdução da ordem em sua vida, mas também lhe forneceu os primeiros pontos de partida para proceder desse modo. A ordem é uma espécie de compulsão a ser repetida, compulsão que, ao se estabelecer um regulamento de uma vez por todas, decide quando, onde e como uma coisa será efetuada, e isso de tal maneira que, em todas as circunstâncias semelhantes, a hesitação e a indecisão nos são poupadas. Os benefícios da ordem são incontestáveis. Ela capacita os homens a utilizarem o espaço e o tempo para seu melhor proveito, conservando ao mesmo tempo as forças psíquicas deles. Deveríamos ter o direito de esperar que ela houvesse ocupado seu lugar nas atividades humanas desde o início e sem dificuldade, e podemos ficar admirados de que isso não tenha acontecido, de que, pelo contrário, os seres humanos revelem uma tendência inata para o descuido, a irregularidade e a irresponsabilidade em seu trabalho, e de que seja necessário um laborioso treinamento para que aprendam a seguir o exemplo de seus modelos celestes. Evidentemente, a beleza, a limpeza e a ordem ocupam uma posição especial entre as exigências da civilização. Ninguém sustentará que elas sejam tão importantes para a vida quanto o controle sobre as forças da natureza ou quanto alguns outros fatores com que ainda nos familiarizaremos. No entanto, ninguém procurará colocá-las em segundo plano, como se não passassem de trivialidades. Que a civilização não se faz acompanhar apenas pelo que é útil, já ficou demonstrado pelo exemplo da beleza, que não omitimos entre os interesses da civilização. A utilidade da ordem é inteiramente evidente. Quando à limpeza, devemos ter em mente aquilo que também a higiene exige de nós, e podemos supor que, mesmo anteriormente à profilaxia científica, a conexão entre as duas não era de todo estranha ao homem. Contudo, a utilidade não explica completamente esses esforços; deve existir algo mais que se encontre em ação. Nenhum aspecto, porém, parece caracterizar melhor a civilização do que sua estima e seu incentivo em relação às mais elevadas atividades mentais do homem - suas realizações intelectuais, científicas e artísticas - e o papel fundamental que atribui às idéias na vida humana. Entre essas idéias, em primeiro lugar se encontram os sistemas religiosos, cuja complicada estrutura já me esforcei por esclarecer em outra oportunidade. A seguir, vêm as especulações da filosofia e, finalmente, o que se poderia chamar de ‘ideais’do homem - suas idéias a respeito de uma possível perfeição dos indivíduos, dos povos, ou da humanidade como um todo, e as exigências estabelecidas com fundamento nessas idéias. O fato de essas criações do homem não serem mutuamente independentes, mas, pelo contrário, se acharem estreitamente entrelaçadas, aumenta a dificuldade não apenas de descrevê-las, como também de traçar sua derivação psicológica. Se, de modo bastante geral, supusermos que a força motivadora de todas as atividades humanas é um esforço desenvolvido no sentido de duas metas confluentes, a de utilidade e a de obtenção de prazer, teremos de supor que isso também é verdadeiro quanto às manifestações da civilização que acabamos de examinar, embora só seja facilmente visível nas atividades científicas e estéticas. Não se pode, porém, duvidar de que as outras atividades também correspondem a fortes necessidades dos homens - talvez a necessidades que só se achem desenvolvidas numa minoria. Tampouco devemos permitir sermos desorientados por juízos de valor referentes a qualquer religião, qualquer sistema filosófico ou qualquer ideal. Quer pensemos encontrar neles as mais altas realizações do espírito humano, quer os deploremos como aberrações, não podemos deixar de reconhecer que onde eles se acham presentes, e, em especial, onde eles são dominantes, está implícito um alto nível de civilização. Resta avaliar o último, mas decerto não o menos importante, dos aspectos característicos da civilização: a maneira pela qual os relacionamentos mútuos dos homens, seus relacionamentos sociais, são regulados - relacionamentos estes que afetam uma pessoa como próximo, como fonte de auxílio, como objeto sexual de outra pessoa, como membro de uma família e de um Estado. Aqui, é particularmente difícil manter-se isento de exigências ideais específicas e perceber aquilo que é civilizado em geral. Talvez possamos começar pela explicação de que o elemento de civilização entra em cena com a primeira tentativa de regular esses relacionamentos sociais. Se essa tentativa não fosse feita, os relacionamentos ficariam sujeitos à vontade arbitrária do indivíduo, o que equivale a dizer que o homem fisicamente mais forte decidiria a respeito deles no sentido de seus próprios interesses e impulsos instintivos. Nada se alteraria se, por sua vez, esse homem forte encontrasse alguém mais forte do que ele. A vida humana em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os indivíduos isolados. O poder dessa comunidade é então estabelecido como ‘direito’, em oposição ao poder do indivíduo, condenado como ‘força bruta’. A substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da civilização. Sua essência reside no fato de os membros da comunidade se restringirem em suas possibilidades de satisfação,ao passo que o indivíduo desconhece tais restrições. A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo. Isso não acarreta nada quanto ao valor ético de tal lei. O curso ulterior do desenvolvimento cultural parece tender no sentido de tornar a lei não mais expressão da vontade de uma pequena comunidade - uma casta ou camada de uma população ou grupo racial -, que, por sua vez, se comporta como um indivíduo violento frente a outros agrupamentos de pessoas, talvez mais numerosos. O resultado final seria um estatuto legal para o qual todos - exceto os incapazes de ingressar numa comunidade - contribuíram com um sacrifício de seus instintos, que não deixa ninguém novamente com a mesma exceção - à mercê da força bruta. A liberdade do indivíduo não constitui um dom da civilização. Ela foi maior antes da existência de qualquer civilização, muito embora, é verdade, naquele então não possuísse, na maior parte, valor, já que dificilmente o indivíduo se achava em posição de defendê-la. O desenvolvimento da civilização impõe restrições a ela, e a justiça exige que ninguém fuja a essas restrições. O que se faz sentir numa comunidade humana como desejo de liberdade pode ser sua revolta contra alguma injustiça existente, e desse modo esse desejo pode mostrar-se favorável a um maior desenvolvimento da civilização; pode permanecer compatível com a civilização. Entretanto, pode também originar-se dos remanescentes de sua personalidade original, que ainda não se acha domada pela civilização, e assim nela tornar-se a base da hostilidade à civilização. O impulso de liberdade, portanto, é dirigido contra formas e exigências específicas da civilização ou contra a civilização em geral. Não parece que qualquer influência possa induzir o homem a transformar sua natureza na de uma térmita. Indubitavelmente, ele sempre defenderá sua reivindicação à liberdade individual contra a vontade do grupo. Grande parte das lutas da humanidade centralizam-se em torno da tarefa única de encontrar uma acomodação conveniente - isto é, uma acomodação que traga felicidade - entre essa reivindicação do indivíduo e as reivindicações culturais do grupo, e um dos problemas que incide sobre o destino da humanidade é o de saber se tal acomodação pode ser alcançada por meio de alguma forma específica de civilização ou se esse conflito é irreconciliável. Permitindo que o sentimento comum assumisse o papel de nosso guia quanto a decidir sobre quais aspectos da vida humana devem ser encarados como civilizados, conseguimos esboçar uma impressão bastante clara do quadro geral da civilização; contudo, é verdade que, até agora, não descobrimos nada que já não fosse universalmente conhecido. Ao mesmo tempo, tivemos o cuidado de não concordar com o preconceito de que civilização ésinônimo de aperfeiçoamento, de que constitui a estrada para a perfeição, preordenada para os homens. Agora, porém, apresenta-se um ponto de vista que pode conduzir numa direção diferente. O desenvolvimento da civilização nos aparece como um processo peculiar que a humanidade experimenta e no qual diversas coisas nos impressionam como familiares. Podemos caracterizar esse processo referindo-o às modificações que ele ocasiona nas habituais disposições instintivas dos seres humanos, para satisfazer o que, em suma, constitui a tarefa econômica de nossas vidas. Alguns desses instintos são empregados de tal maneira que, em seu lugar, aparece algo que, num indivíduo, descrevemos como um traço de caráter. O exemplo mais notável desse processo é encontrado no erotismo anal das crianças. Seu interesse original pela função excretória, por seus órgãos e produtos, transforma-se, no decurso do crescimento, num grupo de traços que nos são familiares, tais como a parcimônia, o sentido da ordem e da limpeza - qualidades que, embora valiosas e desejáveis em si mesmas, podem ser intensificadas até se tornarem acentuadamente dominantes e produzirem o que se chama de caráter anal. Não sabemos como isso acontece, mas não há dúvida sobre a exatidão da descoberta. Ora, vimos que a ordem e a limpeza constituem exigências importantes de civilização, embora sua necessidade vital não seja muito aparente, da mesma forma que revelam indesejáveis como fonte de prazer. Nesse ponto, não podemos deixar de ficar impressionados pela semelhança existente entre os processos civilizatórios e o desenvolvimento libidinal do indivíduo. Outros instintos [além do erotismo anal] são induzidos a deslocar as condições de sua satisfação, a conduzi-las para outros caminhos. Na maioria dos casos, esse processo coincide com o da sublimação (dos fins instintivos), com que nos achamos familiarizados; noutros, porém, pode diferenciar-se dele. A sublimação do instinto constitui um aspecto particularmente evidente do desenvolvimento cultural; é ela que torna possível às atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas ou ideológicas, o desempenho de um papel tão importante na vida civilizada. Se nos rendêssemos a uma primeira impressão, diríamos que a sublimação constitui uma vicissitude que foi imposta aos instintos de forma total pela civilização. Seria prudente refletir um pouco mais sobre isso. Em terceiro lugar, finalmente - e isso parece o mais importante de tudo -, é impossível desprezar o ponto até o qual a civilização é construída sobre uma renúncia ao instinto, o quanto ela pressupõe exatamente a não-satisfação (pela opressão, repressão, ou algum outro meio?) de instintos poderosos. Essa ‘frustração cultural’ domina o grande campo dos relacionamentos sociais entre os seres humanos. Como já sabemos, é a causa da hostilidade contra a qual todas as civilizações têm de lutar. Também ela fará exigências severas à nossa obra científica, e muito teremos a explicar aqui. Não é fácil entender como pode ser possível privar de satisfação um instinto. Não se faz isso impunemente. Se a perda não for economicamente compensada, pode-se ficar certo de que sérios distúrbios decorrerão disso. Mas, se quisermos saber qual o valor que pode ser atribuído à nossa opinião de que o desenvolvimento da civilização constitui um processo especial, comparável à maturação normal do indivíduo, temos, claramente, de atacar o problema. Devemos perguntar-nos a que influência o desenvolvimento da civilização deve sua origem, como ela surgiu e o que determinou o seu curso. IV A tarefa parece imensa e, frente a ela, é natural que se sinta falta de confiança. Mas aqui estão as conjecturas que pude efetuar. Depois que o homem primevo descobriu que estava literalmente em suas mãos melhorar a sua sorte na Terra através do trabalho, não lhe pode ter sido indiferente que outro homem trabalhasse com ele ou contra ele. Esse outro homem adquiriu para ele o valor de um companheiro de trabalho, com quem era útil conviver. Em época ainda anterior, em sua pré-história simiesca, o homem adotara o hábito de formar famílias, e provavelmente os membros de sua família foram os seus primeiros auxiliares. Pode-se supor que a formação de famílias deveu-se ao fato de ter ocorrido um momento em que a necessidade de satisfação genital não apareceu mais como um hóspede que surge repentinamente e do qual, após a partida, não mais se ouve falar por longo tempo, mas que, pelo contrário, se alojou como um inquilino permanente. Quando isso aconteceu, o macho adquiriu um motivo para conservar a fêmea junto de si, ou, em termos mais gerais, seus objetos sexuais, a seu lado, ao passo que a fêmea, não querendo separar-se de seus rebentos indefesos, viu-se obrigada, no interesse deles, a permanecer com o macho mais forte. Na família primitiva, falta ainda uma característica essencial da civilização. A vontade arbitrária de seu chefe, o pai, era irrestrita. Em Totem e Tabu [1912-13], tentei demonstrar o caminho que vai dessa família à etapa subseqüente, a da vida comunal, sob a forma de grupos de irmãos. Sobrepujando o pai, os filhos descobriram que uma combinação pode ser mais forte do que um indivíduo isolado. A cultura totêmica baseia-se nas restrições que os filhos tiveram de impor-se mutuamente, a fim de conservar esse novo estado de coisas. Os preceitos do tabu constituíram o primeiro ‘direito’ ou ‘lei’. A vida comunitária dos seres humanos teve, portanto, um fundamento duplo: a compulsão para o trabalho, criada pela necessidade externa, e o poder do amor, que fez o homem relutar em privar-se de seu objeto sexual - a mulher - e a mulher, em privar-se daquela parte de si própria que dela fora separada - seu filho. Eros e Ananke [Amor e Necessidade] se tornaram os pais também da civilização humana. O primeiro resultado da civilização foi que mesmo um número bastante grande de pessoas podia agora viver reunido numa comunidade. E, como esses dois grandes poderes cooperaram para isso, poder-se-ia esperar que o desenvolvimento ulterior da civilização progredisse sem percalços no sentido de um controle ainda melhor sobre o mundo externo e no de uma ampliação do número de pessoasincluídas na comunidade. É difícil compreender como essa civilização pode agir sobre os seus participantes de outro modo senão o de torná-los felizes. Antes de continuarmos a indagar sobre de que direção uma interferência poderia surgir, o reconhecimento do amor como um dos fundamentos da civilização pode servir de pretexto para uma digressão que nos capacitará a preencher uma lacuna por nós deixada num exame anterior,ver [[1]]. Mencionáramos então que a descoberta feita pelo homem de que o amor sexual (genital) lhe proporcionava as mais intensas experiências de satisfação, fornecendo-lhe, na realidade, o protótipo de toda felicidade, deve ter-lhe sugerido que continuasse a buscar a satisfação da felicidade em sua vida seguindo o caminho das relações sexuais e que tornasse o erotismo genital o ponto central dessa mesma vida. Prosseguimos dizendo que, fazendo assim, ele se tornou dependente, de uma forma muito perigosa, de uma parte do mundo externo, isto é, de seu objeto amoroso escolhido, expondo-se a um sofrimento extremo, caso fosse rejeitado por esse objeto ou o perdesse através da infidelidade ou da morte. Por essa razão, os sábios de todas as épocas nos advertiram enfaticamente contra tal modo de vida; apesar disso, ele não perdeu seu atrativo para grande número de pessoas. Apesar de tudo, uma pequena minoria de pessoas acha-se capacitada, por sua constituição, a encontrar felicidade no caminho do amor. Fazem-se necessárias, porém, alterações mentais de grande alcance na função do amor antes que isso possa acontecer. Essas pessoas se tornam independentes da aquiescência de seu objeto, deslocando o que mais valorizam do ser amado para o amar; protegem-se contra a perda do objeto, voltando seu amor, não para objetos isolados, mas para todos os homens, e, do mesmo modo, evitam as incertezas e as decepções do amor genital, desviando-se de seus objetivos sexuais e transformando o instinto num impulso com uma finalidade inibida. Ocasionam assim, nelas mesmas, um estado de sentimento imparcialmente suspenso, constante e afetuoso, que tem pouca semelhança externa com as tempestuosas agitações do amor genital, do qual, não obstante, se deriva. Talvez São Francisco de Assis tenha sido quem mais longe foi na utilização do amor para beneficiar um sentimento interno de felicidade. Além disso, aquilo que identificamos como sendo uma das técnicas para realizar o princípio do prazer foi amiúde vinculado à religião; essa vinculação pode residir nas remotas regiões em que a distinção entre o ego e os objetos, ou entre os próprios objetos, é desprezada. De acordo com determinado ponto de vista ético, cuja motivação mais profunda se nos tornará clara dentro em pouco, essa disposição para o amor universal pela humanidade e pelo mundo representa o ponto mais alto que o homem pode alcançar. Mesmo nessa etapapreliminar da discussão, gostaria de apresentar minhas duas principais objeções a essa opinião. Um amor que não discrimina me parece privado de uma parte de seu próprio valor, por fazer uma injustiça a seu objeto, e, em segundo lugar, nem todos os homens são dignos de amor. O amor que fundou a família continua a operar na civilização, tanto em sua forma original, em que não renuncia à satisfação sexual direta, quanto em sua forma modificada, como afeição inibida em sua finalidade. Em cada uma delas, continua a realizar sua função de reunir consideráveis quantidades de pessoas, de um modo mais intensivo do que o que pode ser efetuado através do interesse pelo trabalho em comum. A maneira descuidada com que a linguagem utiliza a palavra ‘amor’ conta com uma justificação genética. As pessoas dão o nome de ‘amor’ ao relacionamento entre um homem e uma mulher cujas necessidades genitais os levaram a fundar uma família; também dão esse nome aos sentimentos positivos existentes entre pais e filhos, e entre os irmãos e as irmãs de uma família, embora nós sejamos obrigados a descrever isso como ‘amor inibido em sua finalidade’ ou ‘afeição’. O amor com uma finalidade inibida foi de fato, originalmente, amor plenamente sensual, e ainda o é no inconsciente do homem. Ambos - o amor plenamente sensual e o amor inibido em sua finalidade - estendem-se exteriormente à família e criam novos vínculos com pessoas anteriormente estranhas. O amor genital conduz à formação de novas famílias, e o amor inibido em sua finalidade, a ‘amizades’ que se tornam valiosas, de um ponto de vista cultural, por fugirem a algumas das limitações do amor genital, como, por exemplo, à sua exclusividade. No decurso do desenvolvimento, porém, a relação do amor com a civilização perde sua falta de ambigüidade. Por um lado, o amor se coloca em oposição aos interesses da civilização; por outro, esta ameaça o amor com restrições substanciais. Essa incompatibilidade entre amor e civilização parece inevitável e sua razão não é imediatamente reconhecível. Expressa-se a princípio como um conflito entre a família e a comunidade maior a que o indivíduo pertence. Já percebemos que um dos principais esforços da civilização é reunir as pessoas em grandes unidades. Mas a família não abandona o indivíduo. Quanto mais estreitamente os membros de uma família se achem mutuamente ligados, com mais freqüência tendem a se apartarem dos outros e mais difícil lhes é ingressar no círculo mais amplo da cidade. O modo de vida em comum que é filogeneticamente o mais antigo, e o único que existe na infância, não se deixará sobrepujar pelo modo cultural de vida adquirido depois. Separar-se da família torna-se umatarefa com que todo jovem se defronta, e a sociedade freqüentemente o auxilia na solução disso através dos ritos de puberdade e de iniciação. Ficamos com a impressão de que se trata de dificuldades inerentes a todo desenvolvimento psíquico - e, em verdade, no fundo, a todo desenvolvimento orgânico. Além do mais, as mulheres logo se opõem à civilização e demonstram sua influência retardante e coibidora - as mesmas mulheres que, de início, estabeleceram os fundamentos da civilização pelas reivindicações de seu amor. As mulheres representam os interesses da família e da vida sexual. O trabalho de civilização tornou-se cada vez mais um assunto masculino, confrontando os homens com tarefas cada vez mais difíceis e compelindo-os a executarem sublimações instintivas de que as mulheres são pouco capazes. Já que o homem não dispõe de quantidades ilimitadas de energia psíquica, tem de realizar suas tarefas efetuando uma distribuição conveniente de sua libido. Aquilo que emprega para finalidades culturais, em grande parte o extrai das mulheres e da vida sexual. Sua constante associação com outros homens e a dependência de seus relacionamentos com eles o alienam inclusive de seus deveres de marido e de pai. Dessa maneira, a mulher se descobre relegada a segundo plano pelas exigências da civilização e adota uma atitude hostil para com ela. A tendência por parte da civilização em restringir a vida sexual não é menos clara do que sua outra tendência em ampliar a unidade cultural. Sua primeira fase, totêmica, já traz com ela a proibição de uma escolha incestuosa de objeto, o que constitui, talvez, a mutilação mais drástica que a vida erótica do homem em qualquer época já experimentou. Os tabus, as leis e os costumes impõem novas restrições, que influenciam tanto homens quanto mulheres. Nem todas as civilizações vão igualmente longe nisso, e a estrutura econômica da sociedade também influencia a quantidade de liberdade sexual remanescente. Aqui, como já sabemos, a civilização está obedecendo às leis da necessidade econômica, visto que uma grande quantidade da energia psíquica que ela utiliza para seus próprios fins tem de ser retirada da sexualidade. Com relação a isso, a civilização se comporta diante da sexualidade da mesma forma que um povo, ou uma de suas camadas sociais, procede diante de outros que estão submetidos à sua exploração. O temor a uma revolta por parte dos elementos oprimidos a conduz à utilização de medidas de precaução mais estritas. Um ponto culminante nesse desenvolvimento foi atingido em nossa civilização ocidental européia. Uma comunidade cultural acha-se, do ponto de vista psicológico, perfeitamente justificada em começar por proscrever as manifestações da vida sexual das crianças, pois não haveria perspectiva de submeter os apetites sexuais dos adultos, se os fundamentospara isso não tivessem sido lançados na infância. Contudo, uma comunidade desse tipo de modo algum pode ser justificada se vai até o ponto de realmente repudiar essas manifestações facilmente demonstráveis e, na verdade, notáveis. Quanto ao indivíduo sexualmente maduro, a escolha de um objeto restringe-se ao sexo oposto, estando as satisfações extragenitais, em sua maioria, proibidas como perversão. A exigência, demonstrada nessas proibições, de que haja um tipo único de vida sexual para todos, não leva em consideração as dessemelhanças, inatas ou adquiridas, na constituição sexual dos seres humanos; cerceia, em bom número deles, o gozo sexual, tornando-se assim fonte de grave injustiça. O resultado de tais medidas restritivas poderia ser que, nas pessoas normais - que não se acham impedidas por sua constituição -, a totalidade dos seus interesses sexuais fluísse, sem perdas, para os canais que são deixados abertos. No entanto, o próprio amor genital heterossexual, que permaneceu isento de proscrição, é restringido por outras limitações, apresentadas sob a forma da insistência na legitimidade e na monogamia. A civilização atual deixa claro que só permite os relacionamentos sexuais na base de um vínculo único e indissolúvel entre um só homem e uma só mulher, e que não é de seu agrado a sexualidade como fonte de prazer por si própria, só se achando preparada para tolerá-la porque, até o presente, para ela não existe substituto como meio de propagação da raça humana. Naturalmente, isso configura um quadro extremado. Todos sabem que ele se mostrou inxeqüível, mesmo por períodos muito breves. Apenas os fracos se submeteram a uma usurpação tão ampla de sua liberdade sexual, e as naturezas mais fortes só o fizeram mediante uma condição compensatória, que será posteriormente mencionada. A sociedade civilizada viu-se obrigada a silenciar sobre muitas transgressões que, segundo os seus próprios princípios, deveria ter punido. Mas, por um outro lado, não devemos errar, supondo que, por não alcançar todos os seus objetivos, uma atitude desse tipo por parte da sociedade seja inteiramente inócua. A vida sexual do homem civilizado encontra-se, não obstante, severamente prejudicada; dá, às vezes, a impressão de estar em processo de involução enquanto função, tal como parece acontecer com nossos dentes e cabelos. Provavelmente, justifica-se supor que sua importância enquanto fonte de sentimentos de felicidade e, portanto, na realização de nosso objetivo na vida, diminuiu sensivelmente. Às vezes, somos levados a pensar que nãose trata apenas da pressão da civilização, mas de algo da natureza da própria função que nos nega satisfação completa e nos incita a outros caminhos. Isso pode estar errado; é difícil decidir. V O trabalho psicanalítico nos mostrou que as frustrações da vida sexual são precisamente aquelas que as pessoas conhecidas como neuróticas não podem tolerar. O neurótico cria em seus sintomas satisfações substitutivas para si, e estas ou lhe causam sofrimento em si próprias, ou se lhe tornam fontes de sofrimento pela criação de dificuldades em seus relacionamentos com o meio ambiente e a sociedade a que pertence. Esse último fato é fácil de compreender; o primeiro nos apresenta um novo problema. A civilização, porém, exige outros sacrifícios, além do da satisfação sexual. Abordamos a dificuldade do desenvolvimento cultural como sendo uma dificuldade geral de desenvolvimento, fazendo sua origem remontar à inércia da libido, à falta de inclinação desta para abandonar uma posição antiga por outra nova. Dizemos quase a mesma coisa quando fazemos a antítese entre civilização e sexualidade derivar da circunstância de o amor sexual constituir um relacionamento entre dois indivíduos, no qual um terceiro só pode ser supérfluo ou perturbador, ao passo que a civilização depende de relacionamentos entre um considerável número de indivíduos. Quando um relacionamento amoroso se encontra em seu auge, não resta lugar para qualquer outro interesse pelo ambiente; um casal de amantes se basta a si mesmo; sequer necessitam do filho que têm em comum para torná-los felizes. Em nenhum outro caso Eros revela tão claramente o âmago do seu ser, o seu intuito de, de mais de um, fazer um único; contudo, quando alcança isso da maneira proverbial, ou seja, através do amor de dois seres humanos, recusa-se a ir além. Até aqui, podemos imaginar perfeitamente uma comunidade cultural que consista em indivíduos duplos como este, que, libidinalmente satisfeitos em si mesmos, se vinculem uns aos outros através dos elos do trabalho comum e dos interesses comuns. Se assim fosse, a civilização não teria que extrair energia alguma da sexualidade. Contudo, esse desejável estado de coisas não existe, nem nunca existiu. A realidade nos mostra que a civilização não se contenta com as ligações que até agora lhe concedemos. Visa a unir entre si os membros da comunidade também de maneira libidinal e, para tanto, emprega todos os meios. Favorece todos os caminhos pelos quais identificações fortes possam ser estabelecidas entre os membros da comunidade e, na mais ampla escala, convoca a libido inibida em sua finalidade, demodo a fortalecer o vínculo comunal através das relações de amizade. Para que esses objetivos sejam realizados, faz-se inevitável uma restrição à vida sexual. Não conseguimos, porém, entender qual necessidade força a civilização a tomar esse caminho, necessidade que provoca o seu antagonismo à sexualidade. Deve haver algum fator de perturbação que ainda não descobrimos. A pista pode ser fornecida por uma das exigências ideais, tal como as denominamos, da sociedade civilizada. Diz ela: ‘Amarás a teu próximo como a ti mesmo.’ Essa exigência, conhecida em todo o mundo, é, indubitavelmente, mais antiga que o cristianismo, que a apresenta como sua reivindicação mais gloriosa. No entanto, ela não é decerto excessivamente antiga; mesmo já em tempos históricos, ainda era estranha à humanidade. Se adotarmos uma atitude ingênua para com ela, como se a estivéssemos ouvindo pela primeira vez, não poderemos reprimir um sentimento de surpresa e perplexidade. Por que deveremos agir desse modo? Que bem isso nos trará? Acima de tudo, como conseguiremos agir desse modo? Como isso pode ser possível? Meu amor, para mim, é algo de valioso, que eu não devo jogar fora sem reflexão. A máxima me impõe deveres para cujo cumprimento devo estar preparado e disposto a efetuar sacrifícios. Se amo uma pessoa, ela tem de merecer meu amor de alguma maneira. (Não estou levando em consideração o uso que dela posso fazer, nem sua possível significação para mim como objeto sexual, de uma vez que nenhum desses dois tipos de relacionamento entra em questão onde o preceito de amar meu próximo se acha em jogo.) Ela merecerá meu amor, se for de tal modo semelhante a mim, em aspectos importantes, que eu me possa amar nela; merecê-lo-á também, se for de tal modo mais perfeita do que eu, que nela eu possa amar meu ideal de meu próprio eu (self). Terei ainda de amá-la, se for o filho de meu amigo, já que o sofrimento que este sentiria se algum dano lhe ocorresse seria meu sofrimento também - eu teria de partilhá-lo. Mas, se essa pessoa for um estranho para mim e não conseguir atrair-me por um de seus próprios valores, ou por qualquer significação que já possa ter adquirido para a minha vida emocional, me será muito difícil amá-la. Na verdade, eu estaria errado agindo assim, pois meu amor é valorizado por todos os meus como um sinal de minha preferência por eles, e seria injusto para com eles, colocar um estranho no mesmo plano em que eles estão. Se, no entanto, devo amá-lo (com esse amor universal) meramente porque ele também é um habitante da Terra, assim como o são um inseto, uma minhoca ou uma serpente, receio então que sóuma pequena quantidade de meu amor caberá à sua parte - e não, em hipótese alguma, tanto quanto, pelo julgamento de minha razão, tenho o direito de reter para mim. Qual é o sentido de um preceito enunciado com tanta solenidade, se seu cumprimento não pode ser recomendado como razoável? Através de um exame mais detalhado, descubro ainda outras dificuldades. Não meramente esse estranho é, em geral, indigno de meu amor; honestamente, tenho de confessar que ele possui mais direito a minha hostilidade e, até mesmo, meu ódio. Não parece apresentar o mais leve traço de amor por mim e não demonstra a mínima consideração para comigo. Se disso ele puder auferir uma vantagem qualquer, não hesitará em me prejudicar; tampouco pergunta a si mesmo se a vantagem assim obtida contém alguma proporção com a extensão do dano que causa em mim. Na verdade, não precisa nem mesmo auferir alguma vantagem; se puder satisfazer qualquer tipo de desejo com isso, não se importará em escarnecer de mim, em me insultar, me caluniar e me mostrar a superioridade de seu poder, e, quanto mais seguro se sentir e mais desamparado eu for, mais, com certeza, posso esperar que se comporte dessa maneira para comigo. Caso se conduza de modo diferente, caso mostre consideração e tolerância como um estranho, estou pronto a tratá-lo da mesma forma, em todo e qualquer caso e inteiramente fora de todo e qualquer preceito. Na verdade, se aquele imponente mandamento dissesse ‘Ama a teu próximo como este te ama’, eu não lhe faria objeções. E há um segundo mandamento que me parece mais incompreensível ainda e que desperta em mim uma oposição mais forte ainda. Trata-se do mandamento ‘Ama os teus inimigos’. Refletindo sobre ele, no entanto, percebo que estou errado em considerá-lo como uma imposição maior. No fundo, é a mesma coisa. Acho que agora posso ouvir uma voz solene me repreendendo: ‘É precisamente porque teu próximo não é digno de amor, mas, pelo contrário, é teu inimigo, que deves amá-lo como a ti mesmo’. Compreendo então que se trata de um caso semelhante ao do Credo quia absurdum.Ora, é muito provável que meu próximo, quando lhe for prescrito que me ame como a si mesmo, responda exatamente como o fiz e me rejeite pelas mesmas razões. Espero que não tenha os mesmos fundamentos objetivos para fazê-lo, mas terá a mesma idéia que tenho. Ainda assim, o comportamento dos seres humanos apresenta diferenças que a ética, desprezando o fato de que tais diferenças são determinadas, classifica como ‘boas’ ou ‘más’. Enquanto essas inegáveis diferenças não forem removidas, a obediência às elevadas exigências éticas acarreta prejuízos aos objetivos da civilização, por incentivar o ser mau. Não podemos deixar de lembrar um incidente ocorrido na câmara dos deputados francesa, quando a pena capital estava em debate. Um dos membros acabara de defender apaixonadamente a abolição dela e seu discurso estava sendo recebido com tumultuosos aplausos, quando uma voz vinda do plenário exclamou: ‘Que messieurs les assassins commencent! O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. - Homo homini lupus. Quem, em face de toda sua experiência da vida e da história, terá a coragem de discutir essa asserção? Via de regra, essa cruel agressividade espera por alguma provocação, ou se coloca a serviço de algum outro intuito, cujo objetivo também poderia ter sido alcançado por medidas mais brandas. Em circunstâncias que lhe são favoráveis, quando as forças mentais contrárias que normalmente a inibem se encontram fora de ação, ela também se manifesta espontaneamente e revela o homem como uma besta selvagem, a quem a consideração para com sua própria espécie é algo estranho. Quem quer que relembre as atrocidades cometidas durante as migrações raciais ou as invasões dos hunos, ou pelos povos conhecidos como mongóis sob a chefia de Gengis Khan e Tamerlão, ou na captura de Jerusalém pelos piedosos cruzados, ou mesmo, na verdade, os horrores da recente guerra mundial,quem quer que relembre tais coisas terá de se curvar humildemente ante a verdade dessa opinião. A existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com justiça que ela está presente nos outros, constitui o fator que perturba nossos relacionamentos com o nosso próximo e força a civilização a um tão elevado dispêndio [de energia]. Em conseqüência dessa mútua hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê permanentemente ameaçada de desintegração. O interesse pelo trabalho em comum não a manteria unida; as paixões instintivas são mais fortes que os interesses razoáveis. A civilização tem de utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sob controle por formações psíquicas reativas. Daí, portanto, o emprego de métodos destinados a incitar as pessoas a identificações e relacionamentos amorosos inibidos em sua finalidade, daí a restrição à vida sexual e daí, também, o mandamento ideal de amar ao próximo como a si mesmo, mandamento que é realmente justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente contra a natureza original do homem. A despeito de todos os esforços, esses empenhos da civilização até hoje não conseguiram muito. Espera-se impedir os excessos mais grosseiros da violência brutal por si mesma, supondo-se o direito de usar a violência contra os criminosos; no entanto, a lei não é capaz de deitar a mão sobre as manifestações mais cautelosas e refinadas da agressividade humana. Chega a hora em que cada um de nós tem de abandonar, como sendo ilusões, as esperanças que, na juventude, depositou em seus semelhantes, e aprende quanta dificuldade e sofrimento foram acrescentados à sua vida pela má vontade deles. Ao mesmo tempo, seria injusto censurar a civilização por tentar eliminar da atividade humana a luta e a competição. Elas são indubitavelmente indispensáveis. Mas oposição não é necessariamente inimizade; simplesmente, ela é mal empregada e tornada uma ocasião para a inimizade. Os comunistas acreditam ter descoberto o caminho para nos livrar de nossos males. Segundo eles, o homem é inteiramente bom e bem disposto para como seu próximo, mas a instituição da propriedade privada corrompeu-lhe a natureza. A propriedade da riqueza privada confere poder ao indivíduo e, com ele, a tentação de maltratar o próximo, ao passo que o homem excluído da posse está fadado a se rebelar hostilmente contra seu opressor. Se a propriedade privada fosse abolida, possuída em comum toda a riqueza e permitida a todos a partilha de sua fruição, a má vontade e a hostilidade desapareceriam entre os homens. Como as necessidades de todos seriam satisfeitas, ninguém teria razão alguma para encarar outrem comoinimigo; todos, de boa vontade, empreenderiam o trabalho que se fizesse necessário. Não estou interessado em nenhuma crítica econômica do sistema comunista; não posso investigar se a abolição da propriedade privada é conveniente ou vantajosa. Mas sou capaz de reconhecer que as premissas psicológicas em que o sistema se baseia são uma ilusão insustentável. Abolindo a propriedade privada, privamos o amor humano da agressão de um de seus instrumentos, decerto forte, embora, decerto também, não o mais forte; de maneira alguma, porém, alteramos as diferenças em poder e influência que são mal empregadas pela agressividade, nem tampouco alteramos nada em sua natureza. A agressividade não foi criada pela propriedade. Reinou quase sem limites nos tempos primitivos, quando a propriedade ainda era muito escassa, e já se apresenta no quarto das crianças, quase antes que a propriedade tenha abandonado sua forma anal e primária; constitui a base de toda relação de afeto e amor entre pessoas ( com a única exceção, talvez, do relacionamento da mãe com seu filho homem). Se eliminamos os direitos pessoais sobre a riqueza material, ainda permanecem, no campo dos relacionamentos sexuais, prerrogativas fadadas a se tornarem a fonte da mais intensa antipatia e da mais violenta hostilidade entre homens que, sob outros aspectos, se encontram em pé de igualdade. Se também removermos esse fator, permitindo a liberdade completa da vida sexual, e assim abolirmos a família, célula germinal da civilização, não podemos, é verdade, prever com facilidade quais os novos caminhos que o desenvolvimento da civilização vai tomar; uma coisa, porém, podemos esperar; é que, nesse caso, essa característica indestrutível da natureza humana seguirá a civilização. Evidentemente, não é fácil aos homens abandonar a satisfação dessa inclinação para a agressão. Sem ela, eles não se sentem confortáveis. A vantagem que um grupo cultural, comparativamente pequeno, oferece, concedendo a esse instinto um escoadouro sob a forma de hostilidade contra intrusos, não é nada desprezível. É sempre possível unir um considerávelnúmero de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade. Em outra ocasião, examinei o fenômeno no qual são precisamente comunidades com territórios adjacentes, e mutuamente relacionadas também sob outros aspectos, que se empenham em rixas constantes, ridicularizando-se umas às outras, como os espanhóis e os portugueses por exemplo, os alemães do Norte e os alemães do Sul, os ingleses e os escoceses, e assim por diante. Dei a esse fenômeno o nome de ‘narcisismo das pequenas diferenças’, denominação que não ajuda muito a explicálo. Agora podemos ver que se trata de uma satisfação conveniente e relativamente inócua da inclinação para a agressão, através da qual a coesão entre os membros da comunidade é tornada mais fácil. Com respeito a isso, o povo judeu, espalhado por toda a parte, prestou os mais úteis serviços às civilizações dos países que os acolheram; infelizmente, porém, todos os massacres de judeus na Idade Média não bastaram para tornar o período mais pacífico e mais seguro para seus semelhantes cristãos. Quando, outrora, o Apóstolo Paulo postulou o amor universal entre os homens como o fundamento de sua comunidade cristã, uma extrema intolerância por parte da cristandade para com os que permaneceram fora dela tornou-se uma conseqüência inevitável. Para os romanos, que não fundaram no amor sua vida comunal como Estado, a intolerância religiosa era algo estranho, embora, entre eles, a religião fosse do interesse do Estado e este se achasse impregnado dela. Tampouco constituiu uma possibilidade inexeqüível que o sonho de um domínio mundial germânico exigisse o anti-semitismo como seu complemento, sendo, portanto, compreensível que a tentativa de estabelecer uma civilização nova e comunista na Rússia encontre o seu apoio psicológico na perseguição aos burgueses. Não se pode senão imaginar, com preocupação, sobre o que farão os soviéticos depois que tiverem eliminado seus burgueses. Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não apenas à sexualidade do homem, mas também à sua agressividade, podemos compreender melhor porque lhe é difícil ser feliz nessa civilização. Na realidade, o homem primitivo se achava em situação melhor, sem conhecer restrições de instinto. Em contrapartida, suas perspectivas de desfrutar dessa felicidade, por qualquer período de tempo, eram muito tênues. O homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança. Não devemos esquecer, contudo, que na família primeva apenas o chefe desfrutava da liberdade instintiva; o resto vivia em opressão servil.Naquele período primitivo da civilização, o contraste entre uma minoria que gozava das vantagens da civilização e uma maioria privada dessas vantagens era, portanto, levada a seus extremos. Quanto aos povos primitivos que ainda hoje existem, pesquisas cuidadosas mostraram que sua vida instintiva não é, de maneira alguma, passível de ser invejada por causa de sua liberdade. Está sujeita a restrições de outra espécie, talvez mais severas do que aquelas que dizem respeito ao homem moderno. Quando, com toda justiça, consideramos falho o presente estado de nossa civilização, por atender de forma tão inadequada às nossas exigências de um plano de vida que nos torne felizes, e por permitir a existência de tanto sofrimento, que provavelmente poderia ser evitado; quando, com crítica impiedosa, tentamos pôr à mostra as raízes de sua imperfeição, estamos indubitavelmente exercendo um direito justo, e não nos mostrando inimigos da civilização. Podemos esperar efetuar, gradativamente, em nossa civilização alterações tais, que satisfaçam melhor nossas necessidades e escapem às nossas críticas. Mas talvez possamos também nos familiarizar com a idéia de existirem dificuldades, ligadas à natureza da civilização, que não se submeterão a qualquer tentativa de reforma. Além e acima das tarefas de restringir os instintos, para as quais estamos preparados, reivindica nossa atenção o perigo de um estado de coisas que poderia ser chamado de ‘pobreza psicológica dos grupos’. Esse perigo é mais ameaçador onde os vínculos de uma sociedade são principalmente constituídos pelas identificações dos seus membros uns com os outros, enquanto que indivíduos do tipo de um líder não adquirem a importância que lhes deveria caber na formação de um grupo. O presente estado cultural dos Estados Unidos da América nos proporcionaria uma boa oportunidade para estudar o prejuízo à civilização, que assim é de se temer. Evitarei, porém, a tentação de ingressar numa crítica da civilização americana; não desejo dar a impressão de que eu mesmo estou empregando métodos americanos. VI Em nenhum de meus trabalhos anteriores tive, tão forte quanto agora, a impressão de que o que estou descrevendo pertence ao conhecimento comum e de que estou desperdiçando papel e tinta, ao mesmo tempo que usando o trabalho e o material do tipógrafo e do impressor para expor coisas que, na realidade, são evidentes por si mesmas. Por essa razão, ficaria feliz em desenvolver o tema se isso levasse à conclusão de que o reconhecimento de um instinto agressivo, especial e independente, significa uma alteração da teoria psicanalítica dos instintos. Veremos, no entanto, que a coisa não é bem assim, e que se trata simplesmente de focalizar de modo mais nítido uma mudança de pensamento há muito tempo introduzida, seguindo-a até suas últimas conseqüências. De todas as partes lentamente desenvolvidas da teoria analítica, a teoria dos instintos foi a que mais penosa e cautelosamente progrediu. Contudo, essa teoria era tão indispensável a toda a estrutura, que algo tinha de ser colocado em seu lugar. No que constituía, a princípio, minha completa perplexidade, tomei como ponto de partida uma expressão do poeta-filósofo Schiller: ‘são a fome e o amor que movem o mundo’. A fome podia ser vista como representando os instintos que visam a preservar o indivíduo, ao passo que o amor se esforça na busca de objetos, e sua principal função, favorecida de todos os modos pela natureza, é a preservação da espécie. Assim, de início, os instintos do ego e os instintos objetais se confrontavam mutuamente. Foi para denotar a energia destes últimos, e somente deles, que introduzi o termo ‘libido’. Assim, a antítese se verificou entre os instintos do ego e os instintos ‘libidinais’ do amor (em seu sentido mais amplo) que eram dirigidos a um objeto. Um desses instintos objetais, o instinto sádico, destacou-se do restante, é verdade, pelo fato de o seu objetivo estar muito longe de ser o amar. Ademais, ele se encontrava obviamente ligado, sob certos aspectos, aos instintos do ego, pois não podia ocultar sua estreita afinidade com os instintos de domínio que não possuem propósito libidinal. Mas essas discrepâncias foram superadas; afinal de contas, o sadismo fazia claramente parte da vidasexual, em cujas atividades a afeição podia ser substituída pela crueldade. A neurose foi encarada como o resultado de uma luta entre o interesse de autopreservação e as exigências da libido, luta da qual o ego saiu vitorioso, ainda que ao preço de graves sofrimentos e renúncias. Todo analista admitirá que, ainda hoje, essa opinião não soa como um erro há muito tempo abandonado. Não obstante, alterações nela se tornaram essenciais, à medida que nossas investigações progrediam das forças reprimidas para as repressoras, dos instintos objetais para o ego. O decisivo passo à frente consistiu na introdução do conceito de narcisismo, isto é, a descoberta de que o próprio ego se acha catexizado pela libido, de que o ego, na verdade, constitui o reduto original dela e continua a ser, até certo ponto, seu quartel-general. Essa libido narcísica se volta para os objetos, tornando-se assim libido objetal, e podendo transformar-se novamente em libido narcísica. O conceito do narcisismo possibilitou a obtenção de uma compreensão analítica das neuroses traumáticas, de várias das afecções fronteiriças às psicoses, bem como destas últimas. Não foi necessário abandonar nossa interpretação das neuroses de transferência como se fossem tentativas feitas pelo ego para se defender contra a sexualidade, mas o conceito de libido ficou ameaçado. Como os instintos do ego também são libidinais, pareceu, por certo tempo, inevitável que tivéssemos de fazer a libido coincidir com a energia instintiva em geral, como C. G. Jung já advogara anteriormente. Não obstante, ainda permanecia em mim uma espécie de convicção, para a qual ainda não me considerava capaz de encontrar razões, de que os instintos não podiam ser todos da mesma espécie. Meu passo seguinte foi dado em Mais Além do Princípio do Prazer (1920g), quando, pela primeira vez, a compulsão para repetir e o caráter conservador da vida instintiva atraíram minha atenção. Partindo de especulações sobre o começo da vida e de paralelos biológicos, concluí que, ao lado do instinto para preservar a substância viva e para reuni-la em unidades cada vez maiores, deveria haver outro instinto, contrário àquele, buscando dissolver essas unidades e conduzi-las de volta a seu estado primevo e inorgânico. Isso equivalia a dizer que, assim como Eros, existia também um instinto de morte. Os fenômemos da vida podiam ser explicados pela ação concorrente, ou mutuamente oposta, desses dois instintos. Não era fácil, contudo, demonstrar as atividades desse suposto instintode morte. As manifestações de Eros eram visíveis e bastante ruidosas. Poder-se-ia presumir que o instinto de morte operava silenciosamente dentro do organismo, no sentido de sua destruição, mas isso, naturalmente, não constituía uma prova. Uma idéia mais fecunda era a de que uma parte do instinto é desviada no sentido do mundo externo e vem à luz como um instinto de agressividade e destrutividade. Dessa maneira, o próprio instinto podia ser compelido para o serviço de Eros, no caso de o organismo destruir alguma outra coisa, inanimada ou animada, em vez de destruir o seu próprio eu (self). Inversamente, qualquer restrição dessa agressividade dirigida para fora estaria fadada a aumentar a autodestruição, a qual, em todo e qualquer caso, prossegue. Ao mesmo tempo, pode-se suspeitar, a partir desse exemplo, que os dois tipos de instinto raramente - talvez nunca - aparecem isolados um do outro, mas que estão mutuamente mesclados em proporções variadas e muito diferentes, tornando-se assim irreconhecíveis para nosso julgamento. No sadismo, há muito tempo de nós conhecido como instinto componente da sexualidade, teríamos à nossa frente um vínculo desse tipo particularmente forte, isto é, um vínculo entre as tendências para o amor e o instinto destrutivo, ao passo que sua contrapartida, o masoquismo, constituiria uma união entre a destrutividade dirigida para dentro e a sexualidade, união que transforma aquilo que, de outro modo, é uma tendência imperceptível, numa outra conspícua e tangível. A afirmação da existência de um instinto de morte ou de destruição deparou-se com resistências, inclusive em círculos analíticos; estou ciente de que existe, antes, uma inclinação freqüente a atribuir o que é perigoso e hostil no amor a uma bipolaridade original de sua própria natureza. A princípio, foi apenas experimentalmente que apresentei as opiniões aqui desenvolvidas, mas, com o decorrer do tempo, elas conseguiram tal poder sobre mim, que não posso mais pensar de outra maneira. Para mim, elas são muito mais úteis, de um ponto de vista teórico do que quaisquer outras possíveis; fornecem aquela simplificação, sem ignorar ou violentar os fatos, pela qual nos esforçamos no trabalho científico. Sei que no sadismo e no masoquismo sempre vimos diante de nós manifestações do instinto destrutivo (dirigidas para fora e para dentro), fortemente mescladas ao erotismo, mas não posso mais entender como foi que pudemos ter desprezado a ubiqüidade da agressividade e da destrutividade não eróticas e falhado em conceder-lhe o devido lugar em nossa interpretação da vida. (O desejo de destruição, quando dirigido para dentro, de fato foge, grandemente à nossa percepção, a menos que estejarevestido de erotismo.) Recordo minha própria atitude defensiva quando a idéia de um instinto de destruição surgiu pela primeira vez na literatura psicanalítica, e quanto tempo levou até que eu me tornasse receptivo a ela. Que outros tenham demonstrado, e ainda demonstrem, a mesma atitude de rejeição, surpreende-me menos, pois ‘as criancinhas não gostam’ quando se fala na inata inclinação humana para a ‘ruindade’, a agressividade e a destrutividade, e também para a crueldade. Deus nos criou à imagem de Sua própria perfeição; ninguém deseja que lhe lembrem como é difícil reconciliar a inegável existência do mal - a despeito dos protestos da Christian Science - com o Seu poder e a Sua bondade. O Demônio seria a melhor saída como desculpa para Deus; dessa maneira, ele estaria desempenhando o mesmo papel, como agente de descarga econômica, que o judeu desempenha no mundo do ideal ariano. Mas, ainda assim, pode-se responsabilizar Deus pela existência do Demônio, bem como pela existência da malignidade que este corporifica. Em vista dessas dificuldades, ser-nos-á mais aconselhável, nas ocasiões apropriadas, fazer uma profunda reverência à natureza profundamente moral da humanidade; isso nos ajudará a sermos populares e, por causa disso, muita coisa nos será perdoada. O nome ‘libido’ pode mais uma vez ser utilizado para denotar as manifestações do poder de Eros, a fim de distingui-las da energia do instinto de morte. Deve-se confessar que temos uma dificuldade muito maior em apreender esse instinto; podemos apenas suspeitá-lo, por assim dizer, como algo situado em segundo plano, por trás de Eros, fugindo à detecção, a menos que sua presença seja traída pelo fato de estar ligado a Eros. É no sadismo - onde o instinto de morte deforma o objetivo erótico em seu próprio sentido, embora, ao mesmo tempo, satisfaça integralmente o impulso erótico - que conseguimos obter a mais clara compreensão interna (insight) de sua natureza e de sua relação com Eros. Contudo, mesmo onde ele surge sem qualquer intuito sexual, na mais cega fúria de destrutividade, não podemos deixar de reconhecer que a satisfação do instinto se faz acompanhar por um grau extraordinariamente alto de fruição narcísica, devido ao fato de presentear o ego com a realização de antigos desejos de onipotência deste último. O instinto de destruição, moderado e domado, e, por assim dizer, inibido em sua finalidade, deve, quando dirigido para objetos, proporcionar ao ego a satisfação de suas necessidades vitais e o controle sobre a natureza. Como a afirmação da existência do instinto se baseia principalmente em fundamentos teóricos, temos também de admitir que ela não se acha inteiramente imune a objeções teóricas. Mas é assim que as coisas se nos apresentam atualmente, no presente estado de nosso conhecimento; a pesquisa e a reflexão futuras indubitavelmente trarão novas luzes decisivas para esse tema. Em tudo o que se segue, adoto, portanto, o ponto de vista de que a inclinação para a agressão constitui, no homem, uma disposição instintiva original e auto-subsistente, e retorno à minha opinião,ver [[1]] de que ela é o maior impedimento à civilização. Em determinado ponto do decorrer dessa investigação ver [[1]], fui conduzido à idéia de que a civilização constituía um processo especial que a humanidade experimenta, e ainda me acho sob a influência dela. Posso agora acrescentar que a civilização constitui um processo a serviço de Eros, cujo propósito é combinar indivíduos humanos isolados, depois famílias e, depois ainda, raças, povos e nações numa únicagrande unidade, a unidade da humanidade. Porque isso tem de acontecer, não sabemos; o trabalho de Eros é precisamente este. Essas reuniões de homens devem estar libidinalmente ligadas umas às outras. A necessidade, as vantagens do trabalho em comum, por si sós, não as manterão unidas. Mas o natural instinto agressivo do homem, a hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra cada um, se opõe a esse programa da civilização. Esse instinto agressivo é o derivado e o principal representante do instinto de morte, que descobrimos lado a lado de Eros e que com este divide o domínio do mundo. Agora, penso eu, o significado da evolução da civilização não mais nos é obscuro. Ele deve representar a luta entre Eros e a Morte, entre o instinto de vida e o instinto de destruição, tal como ela se elabora na espécie humana. Nessa luta consiste essencialmente toda a vida, e, portanto, a evolução da civilização pode ser simplesmente descrita como a luta da espécie humana pela vida. E é essa batalha de gigantes que nossas babás tentam apaziguar com sua cantiga de ninar sobre o Céu. VII Por que nossos parentes, os animais, não apresentam uma luta cultural desse tipo? Não sabemos. Provavelmente alguns deles - as abelhas, as formigas, as térmitas - batalharam durante milhares de anos antes de chegarem às instituições estatais, à distribuição de funções e às restrições ao indivíduo pelas quais hoje os admiramos. Constitui um sinal de nossa condição atual o fato de sabermos, por nossos próprios sentimentos, que não nos sentiríamos felizes em quaisquer desses Estados animais ou em qualquer dos papéis neles atribuídos ao indivíduo. No caso das outras espécies animais, pode ser que um equilíbrio temporário tenha sido alcançado entre as influências de seu meio ambiente e os instintos mutuamente conflitantes dentro delas, havendo ocorrido assim uma cessação de desenvolvimento. Pode ser que no homem primitivo um novo acréscimo de libido tenha provocado um surto renovado de atividade por parte do instinto destrutivo. Temos aqui muitas questões para as quais ainda não existe resposta. Outra questão nos interessa mais de perto. Quais os meios que a civilização utiliza para inibir a agressividade que se lhe opõe, torná-la inócua ou, talvez, livrar-se dela? Já nos familiarizamos com alguns desses métodos, mas ainda não com aquele que parece ser o mais importante. Podemos estudálo na história do desenvolvimento do indivíduo. O que acontece neste para tornar inofensivo seu desejo de agressão? Algo notável, que jamais teríamos adivinhado e que, não obstante, é bastante óbvio. Sua agressividade é introjetada, internalizada; ela é, na realidade, enviada de volta para o lugar de onde proveio, isto é, dirigida no sentido de seu próprio ego. Aí, é assumida por uma parte do ego, que se coloca contra o resto do ego, como superego, e que então, sob a forma de ‘consciência’, está pronta para pôr em ação contra o ego a mesma agressividade rude que o ego teria gostado de satisfazer sobre outros indivíduos, a ele estranhos. A tensão entre o severo superego e o ego, que a ele se acha sujeito, é por nós chamada de sentimento de culpa; expressa-se como uma necessidade de punição. A civilização, portanto, consegue dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmandoo e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele, como uma guarnição numa cidade conquistada. Quanto à origem do sentimento de culpa, as opiniões do analista diferem das dos outros psicólogos, embora também ele não ache fácil descrevê-lo. Inicialmente, se perguntarmos como uma pessoa vem a ter sentimento deculpa, chegaremos a uma resposta indiscutível: uma pessoa sente-se culpada (os devotos diriam ‘pecadora’) quando fez algo que sabe ser ‘mau’. Reparamos, porém, em quão pouco essa resposta nos diz. Talvez, após certa hesitação, acrescentemos que, mesmo quando a pessoa não fez realmente uma coisa má, mas apenas identificou em si uma intenção de fazê-la, ela pode encarar-se como culpada. Surge então a questão de saber por que a intenção é considerada equivalente ao ato. Ambos os casos, contudo, pressupõem que já se tenha reconhecido que o que é mau é repreensível, é algo que não deve ser feito. Como se chega a esse julgamento? Podemos rejeitar a existência de uma capacidade original, por assim dizer, natural de distinguir o bom do mau. O que é mau, freqüentemente, não é de modo algum o que é prejudicial ou perigoso ao ego; pelo contrário, pode ser algo desejável pelo ego e prazeroso para ele. Aqui, portanto, está em ação uma influência estranha, que decide o que deve ser chamado de bom ou mau. De uma vez que os próprios sentimentos de uma pessoa não a conduziriam ao longo desse caminho, ela deve ter um motivo para submeter-se a essa influência estranha. Esse motivo é facilmente descoberto no desamparo e na dependência dela em relação a outras pessoas, e pode ser mais bem designado como medo da perda de amor. Se ela perde o amor de outra pessoa de quem é dependente, deixa também de ser protegida de uma série de perigos. Acima de tudo, fica exposta ao perigo de que essa pessoa mais forte mostre a sua superioridade sob forma de punição. De início, portanto, mau é tudo aquilo que, com a perda do amor, nos faz sentir ameaçados. Por medo dessa perda, deve-se evitá-lo. Esta também é a razão por que faz tão pouca diferença que já se tenha feito a coisa má ou apenas se pretenda fazê-la. Em qualquer um dos casos, o perigo só se instaura, se e quando a autoridade descobri-lo, e, em ambos, a autoridade se comporta da mesma maneira. Esse estado mental é chamado de ‘má consciência’; na realidade, porém, não merece esse nome, pois, nessa etapa, o sentimento de culpa é, claramente, apenas um medo da perda de amor, uma ansiedade ‘social’. Em crianças, ele nunca pode ser mais do que isso, e em muitos adultos ele só se modifica até o ponto em que o lugar do pai ou dos dois genitores é assumido pela comunidade humana mais ampla. Por conseguinte, tais pessoas habitualmente se permitem fazer qualquer coisa má que lhes prometa prazer, enquanto se sentem seguras de que a autoridade nada saberá a respeito, ou não poderá culpá-las por isso; só têm medo de serem descobertas. A sociedade atual, geralmente, vê-se obrigada a levar em conta esse estado mental. Uma grande mudança só se realiza quando a autoridade é internalizada através do estabelecimento de um superego. Os fenômenos da consciência atingem então um estágio mais elevado. Na realidade, então devemos falar de consciência ou de sentimento de culpa. Nesse ponto, também, o medo de ser descoberto se extingue; além disso, a distinção entre fazer algo mau e desejar fazê-lo desaparece inteiramente, já que nada pode ser escondido do superego, sequer os pensamentos. É verdade que a seriedade da situação, de um ponto de vista real, se dissipou, pois a nova autoridade, o superego, ao que saibamos, não tem motivos para maltratar o ego, com o qual está intimamente ligado; contudo, a influência genética, que conduz à sobrevivência do que passou e foi superado, faz-se sentir no fato de, fundamentalmente, as coisas permanecerem como eram de início. O superego atormenta o ego pecador com o mesmo sentimento de ansiedade e fica à espera de oportunidades para fazê-lo ser punido pelo mundo externo. Nesse segundo estágio de desenvolvimento, a consciência apresenta uma peculiaridade que se achava ausente do primeiro e que não é mais fácil de explicar, pois quanto mais virtuoso um homem é, mais severo e desconfiado é o seu comportamento, de maneira que, em última análise, são precisamente as pessoas que levaram mais longe a santidade as que se censuram da pior pecaminosidade. Isso significa que a virtude perde direito a uma certa parte da recompensa prometida; o ego dócil e continente não desfruta da confiança de seu mentor, e é em vão que se esforça, segundo parece, por adquiri-la. Far- se-á imediatamente a objeção de que essas dificuldades são artificiais, e dir-se-à que uma consciência mais estrita e mais vigilante constitui precisamente a marca distintiva de um homem moral. Além disso, quando os santos se chamam a si próprios de pecadores, não estão errados - considerando-se as tentações à satisfação instintiva a que se encontram expostos em grau especialmente alto -, já que, como todossabem, as tentações são simplesmente aumentadas pela frustração constante, ao passo que a sua satisfação ocasional as faz diminuir, ao menos por algum tempo. O campo da ética, tão cheio de problemas, nos apresenta outro fato: a má sorte - isto é, a frustração externa - acentua grandemente o poder da consciência no superego. Enquanto tudo corre bem com um homem, a sua consciência é lenitiva e permite que o ego faça todo tipo de coisas; entretanto, quando o infortúnio lhe sobrevém, ele busca sua alma, reconhece sua pecaminosidade, eleva as exigências de sua consciência, impõe-se abstinência e se castiga com penitências. Povos inteiros se comportaram dessa maneira, e ainda se comportam. Isso, contudo, é facilmente explicado pelo estágio infantil original da consciência, o qual, como vemos, não é abandonado após a introjeção no superego, persistindo lado a lado e por trás dele. O Destino é encarado como um substituto do agente parental. Se um homem é desafortunado, isso significa que não é mais amado por esse poder supremo, e, ameaçado por essa falta de amor, mais uma vez se curva ao representante paterno em seu superego, representante que, em seus dias de boa sorte estava pronto a desprezar. Esse fato se torna especialmente claro quando o Destino é encarado segundo o sentido estritamente religioso de nada mais ser do que uma expressão da Vontade Divina. O povo de Israel acreditava ser o filho favorito de Deus e, quando o grande Pai fez com que infortúnios cada vez maiores desabassem sobre seu povo, jamais a crença em Seu relacionamento com eles se abalou, nem o Seu poder ou justiça foi posto em dúvida. Pelo contrário, foi então que surgiram os profetas, que apontaram a pecaminosidade desse povo, e, de seu sentimento de culpa, criaram-se os mandamentos superestritos de sua religião sacerdotal. É digno de nota o comportamento tão diferente do homem primitivo. Se ele se defronta com um infortúnio, não atribui a culpa a si mesmo, mas a seu fetiche, que evidentemente não cumpriu o dever, e dá-lhe uma surra, em vez de se punir a si mesmo. Conhecemos, assim, duas origens do sentimento de culpa: uma que surge do medo de uma autoridade, e outra, posterior, que surge do medo dosuperego. A primeira insiste numa renúncia às satisfações instintivas; a segunda, ao mesmo tempo em que faz isso exige punição, de uma vez que a continuação dos desejos proibidos não pode ser escondida do superego. Aprendemos também o modo como a severidade do superego - as exigências da consciência - deve ser entendida. Trata-se simplesmente de uma continuação da severidade da autoridade externa, à qual sucedeu e que, em parte, substituiu. Percebemos agora em que relação a renúncia ao instinto se acha com o sentimento de culpa. Originalmente, renúncia ao instinto constituía o resultado do medo de uma autoridade externa: renunciava-se às próprias satisfação para não se perder o amor da autoridade. Se se efetuava essa renúncia, ficava-se, por assim dizer, quite com a autoridade e nenhum sentimento de culpa permaneceria. Quanto ao medo do superego, porém, o caso é diferente. Aqui, a renúncia instintiva não basta, pois o desejo persiste e não pode ser escondido do superego. Assim, a despeito da renúncia efetuada, ocorre um sentimento de culpa. Isso representa uma grande desvantagem econômica na construção de um superego ou, como podemos dizer, na formação de uma consciência. Aqui, a renúncia instintiva não possui mais um efeito completamente liberador; a continência virtuosa não é mais recompensada com a certeza do amor. Uma ameaça de infelicidade externa - perda de amor e castigo por parte da autoridade externa - foi permutada por uma permanente infelicidade interna, pela tensão do sentimento de culpa. Essas inter-relações são tão complicadas e, ao mesmo tempo, tão importantes, que, ao risco de me repetir, as abordarei ainda de outro ângulo. A seqüência cronológica, então, seria a seguinte. Em primeiro lugar, vem a renúncia ao instinto, devido ao medo de agressão por parte da autoridade externa. (É a isso, naturalmente, que o medo da perda de amor equivale, pois o amor constitui proteção contra essa agressão punitiva.) Depois, vem a organização de uma autoridade interna e a renúncia ao instinto devido ao medo dela, ou seja, devido ao medo da consciência. Nessa segunda situação, as más intenções são igualadas às más ações e daí surgem sentimento de culpa e necessidade de punição. A agressividade da consciência continua a agressividade da autoridade. Até aqui, sem dúvida, as coisas são claras; mas onde é que isso deixa lugar para a influência reforçadora do infortúnio (da renúncia imposta de fora),ver [[1]] e para a extraordinária severidade da consciência nas pessoas melhores e mais dóceis ver [[1]]?Já explicamos essasparticularidades da consciência, mas provavelmente ainda temos a impressão de que essas explicações não atingem o fundo da questão e deixam ainda inexplicado um resíduo. Aqui, por fim, surge uma idéia que pertence inteiramente à psicanálise, sendo estranha ao modo comum de pensar das pessoas. Essa idéia é de um tipo que nos capacita a compreender por que o tema geral estava fadado a nos parecer confuso e obscuro, pois nos diz que, de início, a consciência (ou, de modo mais correto, a ansiedade que depois se torna consciência) é, na verdade, a causa da renúncia instintiva, mas que, posteriormente, o relacionamento se inverte. Toda renúncia ao instinto torna-se agora uma fonte dinâmica de consciência, e cada nova renúncia aumenta a severidade e a intolerância desta última. Se pudéssemos colocar isso mais em harmonia com o que já sabemos sobre a história da origem da consciência, ficaríamos tentados a defender a afirmativa paradoxal de que a consciência é o resultado da renúncia instintiva, ou que a renúncia instintiva (imposta a nós de fora) cria a consciência, a qual, então, exige mais renúncias instintivas. A contradição entre essa afirmativa e o que anteriormente dissemos sobre a gênese da consciência não é, na realidade, tão grande, e vemos uma maneira de reduzi-la ainda mais. A fim de facilitar nossa exposição, tomemos como exemplo o instinto agressivo e suponhamos que a renúncia em estudo seja sempre uma renúncia à agressão. (Isso, naturalmente, só deve ser tomado como uma suposição temporária.) O efeito da renúncia instintiva sobre a consciência, então, é que cada agressão de cuja satisfação o indivíduo desiste é assumida pelo superego e aumenta a agressividade deste (contra o ego). Isso não se harmoniza bem com o ponto de vista segundo o qual a agressividade original da consciência é uma continuação da severidade da autoridade externa, não tendo, portanto, nada a ver com a renúncia. Mas a discrepância se anulará se postularmos uma derivação diferente para essa primeira instalação da agressividade do superego. É provável que, na criança, se tenha desenvolvido uma quantidade considerável de agressividade contra a autoridade, que a impede de ter suas primeiras - e, também, mais importantes - satisfações, não importando o tipo de privação instintiva que dela possa ser exigida. Ela, porém, é obrigada a renunciar à satisfação dessa agressividade vingativa e encontra saída para essa situação economicamente difícil com o auxílio de mecanismos familiares. Através da identificação, incorpora a si a autoridade inatacável. Esta transforma-se então em seu superego, entrando na posse de toda a agressividade que a criança gostaria de exercer contra ele. O ego da criança tem de contentar-se com o papel infeliz da autoridade - o pai - que foi assim degradada. Aqui, como tão freqüentemente acontece, a situação [real] é invertida: ‘Se eu fosse o pai e você fosse a criança, eu otrataria muito mal’. O relacionamento entre o superego e o ego constitui um retorno, deformado por um desejo, dos relacionamentos reais existentes entre o ego, ainda individido, e um objeto externo. Isso também é típico. A diferença essencial, porém, é que a severidade original do superego não representa ou não representa tanto - a severidade que dele [do objeto] se experimentou ou que se lhe atribui. Representa, antes, nossa própria agressividade para com ele. Se isso é correto, podemos verdadeiramente afirmar que, de início, a consciência surge através da repressão de um impulso agressivo, sendo subseqüentemente reforçada por novas repressões do mesmo tipo. Qual destes dois pontos de vista é correto? O primeiro, que geneticamente parecia tão inexpugnável, ou o último, que de maneira tão bem-vinda apara as arestas da teoria? Claramente, e também pelas provas de observações diretas, ambos se justificam. Não contradizem mutuamente e, até mesmo, coincidem em determinado ponto, pois a agressividade vingativa da criança será em parte determinada pela quantidade de agressão punitiva que espera do pai. A experiência mostra, contudo, que a severidade do superego que uma criança desenvolve, de maneira nenhuma corresponde à severidade de tratamento com que ela própria se defrontou. A severidade do primeiro parece ser independente da do último. Uma criança criada de forma muito suave, pode adquirir uma consciência muito estrita. No entanto, também seria errado exagerar essa independência; não é difícil nos convencermos de que a severidade da criação também exerce uma forte influência na formação do superego da criança. Isso significa que, na formação do superego e no surgimento da consciência, fatores constitucionais inatos e influências do ambiente real atuam de forma combinada. O que, de modo algum, é surpreendente; ao contrário, trata-se de uma condição etiológica universal para todos os processos desse tipo. Pode-se também asseverar que, quando uma criançareage às suas primeiras grandes frustrações instintivas com uma agressividade excessivamente forte e um superego correspondentemente severo, ela está seguindo um modelo filogenético e indo além da reação que seria correntemente justificada, pois o pai dos tempos pré-históricos era indubitavelmente terrível e uma quantidade extrema de agressividade lhe pode ser atribuída. Assim, se passarmos do desenvolvimento individual para o desenvolvimento filogenético, as diferenças entre as duas teorias da gênese da consciência ficam menores ainda. Por outro lado, uma nova e importante diferença aparece entre esses dois processos de desenvolvimento. Não podemos afastar a suposição de que o sentimento de culpa do homem se origina do complexo edipiano e foi adquirido quando da morte do pai pelos irmãos reunidos em bando. Naquela ocasião, um ato de agressão não foi suprimido, mas executado; foi, porém, o mesmo ato de agressão cuja repressão na criança se imagina ser a fonte de seu sentimento de culpa. Nesse ponto, não me surpreenderei se o leitor exclamar com raiva: ‘Então não faz diferença que se mate o pai ou não - fica-se com um sentimento de culpa do mesmo jeito! Pedimos licença para levantar algumas dúvidas. Ou não é verdade que o sentimento de culpa provém da agressividade reprimida, ou então toda a história da morte do pai é uma ficção e os filhos do homem primevo não mataram os pais mais do que as crianças o fazem atualmente. Além disso, se não for ficção, mas fato histórico plausível, seria o caso de acontecer algo que todos esperam que aconteça, ou melhor, uma pessoa se sentir culpada porque realmente fez algo que não pode ser justificado. E para esse evento, que afinal de contas, constitui uma ocorrência cotidiana, a psicanálise ainda não forneceu qualquer explicação.’ Tudo isso é verdade, e temos de corrigir a omissão. Tampouco existe qualquer grande segredo quanto ao assunto. Quando se fica com um sentimento de culpa depois de ter praticado uma má ação, e por causa dela, o sentimento deveria, mais propriamente, ser chamado de remorso. Este se refere apenas a um ato que foi cometido, e, naturalmente, pressupõe que uma consciência - a presteza em se sentir culpado - já existia antes que o ato fosse praticado. Um remorso desse tipo, portanto, jamais pode ajudar-nos a descobrir a origem da consciência e do sentimento de culpa em geral. O que acontece nesses casos cotidianos é geralmente o seguinte: uma necessidade instintiva adquire intensidade para alcançar satisfação, a despeito da consciência, que, afinal de contas, é limitada em sua força, e, com o debilitamentonatural da necessidade, devido a ter sido satisfeita, o equilíbrio anterior de forças é restaurado. A psicanálise encontra assim uma justificativa para excluir do presente exame o caso do sentimento de culpa devido ao remorso, por mais freqüentemente que tais casos ocorram e por grande que seja sua importância prática. Mas, se o sentimento humano de culpa remonta à morte do pai primevo, trata-se, afinal de contas, de um caso de ‘remorso’. Por ventura não devemos supor que [nessa época] uma consciência e um sentimento de culpa, como pressupomos, já existiam antes daquele feito? Se não existiam, de onde então proveio o remorso? Não há dúvida de que esse caso nos explicaria o segredo do sentimento de culpa e poria fim às nossas dificuldades. E acredito que o faz. Esse remorso constituiu o resultado da ambivalência primordial de sentimentos para com o pai. Seus filhos o odiavam, mas também o amavam. Depois que o ódio foi satisfeito pelo ato de agressão, o amor veio para o primeiro plano, no remorso dos filhos pelo ato. Criou o superego pela identificação com o pai; deu a esse agente o poder paterno, como uma punição pelo ato de agressão que haviam cometido contra aquele, e criou as restrições destinadas a impedir uma repetição do ato. E, visto que a inclinação à agressividade contra o pai se repetiu nas gerações seguintes, o sentimento de culpa também persistiu, cada vez mais fortalecido por cada parcela de agressividade que era reprimida e transferida para o superego. Ora, penso eu, finalmente podemos apreender duas coisas de modo perfeitamente claro: o papel desempenhado pelo amor na origem da consciência e a fatal inevitabilidade do sentimento de culpa. Matar o próprio pai ou abster-se de matá-lo não é, realmente, a coisa decisiva. Em ambos os casos, todos estão fadados a sentir culpa, porque o sentimento de culpa é expressão tanto do conflito devido à ambivalência, quanto da eterna luta entre Eros e o instinto de destruição ou morte. Esse conflito é posto em ação tão logo os homens se defrontem com a tarefa de viverem juntos. Enquanto a comunidade não assume outra forma que não seja a da família, o conflito está fadado a se expressar no complexo edipiano, a estabelecer a consciência e a criar o primeiro sentimento de culpa. Quando se faz uma tentativa para ampliar a comunidade, o mesmo conflito continua sob formas que dependem do passado; é fortalecido e resulta numa intensificação adicional do sentimento de culpa. Visto que a civilização obedece a um impulso erótico interno que leva os seres humanos a se unirem num grupo estreitamente ligado, ela só pode alcançar seu objetivo através de um crescente fortalecimento do sentimento de culpa. O que começou em relação ao pai é completado em relação ao grupo. Se a civilização constitui o caminho necessário de desenvolvimento, da família à humanidade como um todo, então, em resultado do conflito inato surgido da ambivalência, da eterna luta entre as tendências de amor e de morte, acha-se a ele inextricavelmente ligado um aumento do sentimento de culpa, que talvez atinja alturas que o indivíduo considere difíceis de tolerar. Aqui, somos lembrados da comovente denúncia dos ‘Poderes Celestes’, feita pelo grande poeta: lhr führt in’s Leben uns hinein,lhr lasst den Armen schuldig werden,Dann überlasst lhr den Pein,Denn iede Schuld rächt sich auf Erden. E bem podemos suspirar aliviados ante o pensamento de que, apesar de tudo, a alguns é concedido salvar, sem esforço, do torvelinho de seus próprios sentimentos as mais profundas verdades, em cuja direção o resto de nós tem de encontrar o caminho por meio de uma incerteza atormentadora e com um intranqüilo tatear. VIII Chegando ao fim de sua jornada, o autor se vê obrigado a pedir o perdão dos leitores por não ter sido um guia mais hábil e por não lhes ter poupado as regiões mais ásperas da estrada e os desconfortáveis détours. Não há dúvida de que isso poderia ter sido feito de forma melhor. Tentarei, já findando o dia, proceder a algumas correções. Em primeiro lugar, desconfio que o leitor tem a impressão de que nosso exame do sentimento de culpa quebra a estrutura deste ensaio; que ocupa espaço demais, de maneira que o resto do tema geral, ao qual não se acha sempre estreitamente vinculado, é posto de lado. Isso pode ter prejudicado a estrutura do trabalho, mas corresponde fielmente à minha intenção de representar o sentimento de culpa como o mais importante problema no desenvolvimento da civilização, e de demonstrar que o preço que pagamos por nosso avanço em termos de civilização é uma perda de felicidade pela intensificação do sentimento de culpa.Qualquer coisa que ainda soe estranha a respeito dessa afirmação, que constitui a conclusão final de nossa investigação, pode ser provavelmente localizada no relacionamento bastante peculiar - até agora completamente inexplicado - que o sentimento de culpa mantém com nossa consciência. No caso comum de remorso, que encaramos como normal, esse sentimento se torna claramente perceptível para a consciência. Na verdade, estamos habituados a falar de uma ‘consciência de culpa’, em vez de um ‘sentimento de culpa’. Nosso estudo das neuroses, ao qual, afinal decontas, devemos as mais valiosas indicações para uma compreensão das condições normais, nos leva de encontro a certas contradições. Numa dessas afecções, a neurose obsessiva, o sentimento de culpa fazse ruidosamente ouvido na consciência; domina o quadro clínico e também a vida do paciente, mal permitindo que apareça algo mais ao lado dele. Entretanto, na maioria dos outros casos e formas de neurose, ele permanece completamente inconsciente, sem que, por isso, produza efeitos menos importantes. Nossos pacientes não acreditam em nós quando lhes atribuímos um ‘sentimento de culpa inconsciente’. A fim de nos tornarmos inteligíveis para eles, falamos-lhes de uma necessidade inconsciente de punição, na qual o sentimento de culpa encontra expressão. Apesar disso, sua vinculação a uma forma específica de neurose não deve ser superestimada. Mesmo na neurose obsessiva há tipos de pacientes que não se dão conta de seu sentimento de culpa, ou que apenas o sentem como um mal-estar atormentador, uma espécie de ansiedade, se impedidos de praticar certas ações. Deveria ser possível chegar a compreender essas coisas, mas, até agora, não nos foi possível. Aqui, talvez, nos possamos alegrar por termos assinalado que, no fundo, o sentimento de culpa nada mais é do que uma variedade topográfica da ansiedade; em suas fases posteriores, coincide completamente com o medo do superego. E as relações da ansiedade com a consciência apresentam as mesmas e extraordinárias variações. A ansiedade está sempre presente, num lugar ou outro, por trás de todo sintoma; em determinada ocasião, porém, toma, ruidosamente, posse da totalidade da consciência, ao passo que, em outra, se oculta tão completamente, que somos obrigados a falar de ansiedade inconsciente, ou, se desejamos ter uma consciência psicológica mais clara - visto a ansiedade ser, no primeiro caso, simplesmente um sentimento -, das possibilidades de ansiedade. Por conseguinte, é bastante concebível que tampouco o sentimento de culpa produzido pela civilização seja percebido como tal, e em grande parte permaneça inconsciente, ou apareça como uma espécie de mal-estar, uma insatisfação, para a qual as pessoas buscam outras motivações. As religiões, pelo menos, nunca desprezaram o papel desempenhado na civilização pelo sentimento de culpa. Ademais - ponto que deixei de apreciar em outro trabalho -, elas alegam redimir a humanidade desse sentimento de culpa, a que chamam de pecado. Da maneira pela qual, no cristianismo, essa redenção é conseguida - pela morte sacrificial de uma pessoa isolada, que, desse modo, toma sobre si mesma a culpa comum a todos -, conseguimos inferir qual pode ter sido a primeira ocasião em que essa culpa primária, que constitui também o primórdio da civilização, foi adquirida. Embora talvez não seja de grande importância, não é supérfluo elucidar o significado de certas palavras, tais como ‘superego’, ‘consciência’, ‘sentimento de culpa’, ‘necessidade de punição’ e ‘remorso’, as quais é possível que muitas vezes tenhamos utilizado de modo frouxo e intercambiável. Todas se relacionam ao mesmo estado de coisas, mas denotam diferentes aspectos seus. O superego é um agente que foi por nós inferido e a consciência constitui uma função que, entre outras, atribuímos a esse agente. A função consiste em manter a vigilância sobre as ações e as intenções do ego e julgá-las, exercendo sua censura. O sentimento de culpa, a severidade do superego, é, portanto, o mesmo que a severidade da consciência. É a percepção que o ego tem de estar sendo vigiado dessa maneira, a avaliação da tensão entre os seus próprios esforços e as exigências do superego. O medo desse agente crítico (medo que está no fundo de todo relacionamento), a necessidade de punição, constitui uma manifestação instintiva por parte do ego, que se tornou masoquista sob a influência de um superego sádico; é, por assim dizer, uma parcela do instinto voltado para a destruição interna presente no ego, empregado para formar uma ligação erótica com o superego. Não devemos falar de consciência até que um superego se ache demonstravelmente presente. Quanto ao sentimento de culpa, temos de admitir que existe antes do superego e, portanto, antes da consciência também. Nessa ocasião, ele é expressão imediata do medo da autoridade externa, um reconhecimento da tensão existente entre o ego e essa autoridade. É o derivado direto do conflito entre a necessidade do amor da autoridade e o impulso no sentido da satisfação instintiva, cuja inibição produz a inclinação para a agressão. A superposição desses dois estratos do sentimento de culpa - um oriundo do medo da autoridade externa; o outro, do medo da autoridade interna - dificultou nossa compreensão interna (insight) da posição da consciência por certo número de maneiras. Remorso é um termo geral para designar a reação do ego num caso de sentimento de culpa. Contém, emforma pouco alterada, o material sensorial da ansiedade que opera por trás do sentimento de culpa; ele próprio é uma punição, ou pode incluir a necessidade de punição, podendo, portanto, ser também mais antigo do que a consciência. Tampouco fará mal que passemos mais uma vez em revista as contradições que nos confundiram durante algum tempo, no correr de nossa investigação. Assim, em determinado ponto, o sentimento de culpa era a conseqüência dos atos de agressão de que alguém se abstivera; em outro, porém - exatamente em seu começo histórico, a morte do pai -, constituía a conseqüência de um ato de agressão que fora executado,ver [[1]]. Encontrou-se uma saída para essa dificuldade, pois a instituição da autoridade interna, o superego, alterou radicalmente a situação. Antes disso, o sentimento de culpa coincidia com o remorso. (Podemos observar, incidentalmente, que o termo ‘remorso’ deveria ser reservado para a reação que surge depois de um ato de agressão ter sido realmente executado.) Posteriormente, devido à onisciência do superego, a diferença entre uma agressão pretendida e uma agressão executada perdeu sua força. Daí por diante, o sentimento de culpa podia ser produzido não apenas por um ato de violência realmente efetuado (como todos sabem), mas também por um ato simplesmente pretendido (como a psicanálise descobriu). Independentemente dessa alteração na situação psicológica, o conflito que surge da ambivalência - o conflito entre os dois instintos primitivos deixa atrás de si o mesmo resultado,ver [[1]]. Somos tentados a procurar aqui a solução do problema da relação variável em que o sentimento de culpa se acha para com a consciência. Pode-se pensar que o sentimento de culpa surgido do remorso por uma ação má deve ser sempre consciente, ao passo que o sentimento de culpa originado da percepção de um impulso mau pode permanecer inconsciente. Contudo, a resposta não é tão simples assim. A neurose obsessiva fala energicamente contra ela. A segunda contradição se referia à energia agressiva da qual supomos dotado o superego. Segundo determinado ponto de vista, essa energia simplesmente continua a energia punitiva da autoridade externa e a mantém viva na mente,ver [[1]], ao passo que, de acordo com outra opinião, ela consiste, pelo contrário, na própria energia agressiva que não foi uti lizada e que agora se dirige contra essa autoridade inibidora,ver [[1]]. A primeira visão parecia ajustar-se melhor à história e a segunda à teoria do sentimento de culpa. Uma reflexão mais adequada resolveu essa contradição aparentemente irreconciliável de modo quase excessivamente completo; o que restou como fator essencial e comum foi que, em cada caso, se lida com uma agressividadedeslocada para dentro. A observação clínica, ademais, nos permite de fato distinguir duas fontes para a agressividade que atribuímos ao superego; ou uma ou outra exerce o efeito mais forte em qualquer caso determinado, mas, em geral, operam em harmonia. É este, penso eu, o lugar para apresentar a uma consideração séria uma opinião que anteriormente recomendei para aceitação provisória. Na literatura analítica mais recente, mostra-se predileção pela idéia de que qualquer tipo de frustração, qualquer satisfação instintiva frustrada, resulta, ou pode resultar numa elevação do sentimento de culpa. Acho que se conseguirá uma grande simplificação teórica, se se encarar isso como sendo aplicável apenas aos instintos agressivos, e não se encontrará quase nada que contradiga essa afirmação. Pois, como devemos explicar, em fundamentos dinâmicos e econômicos, um aumento no sentimento de culpa que aparece no lugar de uma exigência erótica não satisfeita? Isso só parece possível de maneira indireta se supusermos que a prevenção de uma satisfação erótica exige uma agressividade contra a pessoa que interferiu na satisfação, e que essa própria agressividade, por sua vez, tem de ser recalcada. Se as coisas se passam assim, é em suma, apenas a agressividade que é transformada em sentimento de culpa, por ter sido recalcada e transmitida para o superego. Estou convencido de que muitos processos admitirão exposição mais simples e mais clara, se as descobertas da psicanálise sobre a derivação do sentimento de culpa forem restringidas aos instintos agressivos. O exame do material clínico não nos fornece aqui uma resposta inequívoca, porque, como nossa hipótese nos diz, os dois tipos de instinto dificilmente aparecem em forma pura, isolados um do outro, e uma investigação dos casos extremos provavelmente apontaria para a direção por mim prevista. Sinto-me tentado a extrair uma primeira vantagem dessa visão mais restrita do caso, aplicando-a ao processo da repressão. Conforme aprendemos, os sintomas neuróticos são, em sua essência, satisfações substitutivas para desejos sexuais não realizados. No decorrer de nosso trabalho analítico, descobrimos, para nossa surpresa, que talvez toda neurose oculte uma quota de sentimento inconsciente de culpa, o qual, por sua vez, fortifica os sintomas, fazendo uso deles como punição. Agora parece plausível formular a seguinte proposição: quando uma tendência instintiva experimenta a repressão, seus elementos libidinais são transformadosem sintomas e seus componentes agressivos em sentimento de culpa. Mesmo que essa proposição não passe de uma aproximação mediana à verdade, é digna de nosso interesse. Alguns leitores deste trabalho podem ainda ter a impressão de que já ouviram, de modo demasiado freqüente, a fórmula sobre a luta entre Eros e o instinto de morte. Ela foi não só empregada para caracterizar o processo de civilização que a humanidade sofre,ver [[1]],mas também vinculada ao desenvolvimento do indivíduo ver [[1]] e, além disso, dela se disse que revelou o segredo da vida orgânica em geral,ver [[1]]. Acho que não podemos deixar de penetrar nas relações existentes entre esses três processos. A repetição da mesma fórmula se justifica pela consideração de que tanto o processo da civilização humana quanto o do desenvolvimento do indivíduo são também processos vitais o que equivale a dizer que devem partilhar a mesma característica mais geral da vida. Por outro lado, as provas da presença dessa característica geral, pela razão mesma de sua natureza geral, fracassam em nos ajudar a estabelecer qualquer diferenciação [entre os processos], enquanto não for reduzida por limitações especiais. Só podemos ficar satisfeitos, portanto, afirmando que o processo civilizatório constitui uma modificação, que o processo vital experimenta sob a influência de uma tarefa que lhe é atribuída por Eros e incentivada por Ananké - pelas exigências da realidade -, e que essa tarefa é a de unir indivíduos isolados numa comunidade ligada por vínculos libidinais. Quando, porém, examinamos a relação existente entre o processo desenvolvimental ou educativo dos seres humanos individuais, devemos concluir, sem muita hesitação, que os dois apresentam uma natureza muito semelhante, caso não sejam o mesmo processo aplicado a tipos diferentes de objeto. O processo da civilização da espécie humana é, naturalmente, uma abstração de ordem mais elevada do que a do desenvolvimento do indivíduo, sendo, portanto, de mais difícil apreensão em termos concretos; tampouco devemos perseguir as analogias a um extremo obsessivo. Contudo, diante da semelhança entre os objetivos dos dois processos - num dos casos, a integração de um indivíduo isolado num grupo humano; no outro, a criação de um grupo unificado a partir de muitos indivíduos -, não podemos surpreender-nos com a similaridade entre os meios empregados e os fenômenos resultantes. Em vista de sua excepcional importância, não devemos adiar mais a menção de determinado aspecto que estabelece a distinção entre os dois processos. No processo de desenvolvimento do indivíduo, o programa do princípio do prazer, que consiste em encontrar a satisfação da felicidade, é mantido como objetivo principal. A integração numa comunidade humana,ou a adaptação a ela, aparece como uma condição dificilmente evitável, que tem de ser preenchida antes que esse objetivo de felicidade possa ser alcançado. Talvez fosse preferível que isso pudesse ser feito sem essa condição. Em outras palavras, o desenvolvimento do indivíduo nos parece ser um produto da interação entre duas premências, a premência no sentido da felicidade, que geralmente chamamos de ‘egoísta’, e a premência no sentido da união com os outros da comunidade, que chamamos de ‘altruísta’. Nenhuma dessas descrições desce muito abaixo da superfície. No processo de desenvolvimento individual, como dissemos, a ênfase principal recai sobretudo na premência egoísta (ou a premência no sentido da felicidade), ao passo que a outra premência, que pode ser descrita como ‘cultural’, geralmente se contenta com a função de impor restrições. No processo civilizatório, porém, as coisas se passam de modo diferente. Aqui, de longe, o que mais importa é o objetivo de criar uma unidade a partir dos seres humanos individuais. É verdade que o objetivo da felicidade ainda se encontra aí, mas relegado ao segundo plano. Quase parece que a criação de uma grande comunidade humana seria mais bemsucedida se não se tivesse de prestar atenção à felicidade do indivíduo. Assim, pode-se esperar que o processo desenvolvimental do indivíduo apresente aspectos especiais, próprios dele, que não são reproduzidos no processo da civilização humana. É apenas na medida em que está em união com a comunidade como objetivo seu, que o primeiro desses processos precisa coincidir com o segundo. Assim como um planeta gira em torno de um corpo central enquanto roda em torno de seu próprio eixo, assim também o indivíduo humano participa do curso do desenvolvimento da humanidade, ao mesmo tempo que persegue o seu próprio caminho na vida. Para nossos olhos enevoados, porém, o jogo de forças nos céus parece fixado numa ordem que jamais muda; no campo da vida orgânica, ainda podemos perceber como as forças lutam umas com as outras e como os efeitos desse conflito estão em permanente mudança. Assim também as duas premências, a que se volta para a felicidade pessoal e a que se dirige para a união com os outros seres humanos, devem lutar entre si em todo indivíduo, e assim também os dois processos de desenvolvimento, o individual e o cultural, têm de colocar-se numa oposição hostil um para com o outro e disputar-se mutuamente a posse do terreno. Contudo, essa luta entre o indivíduo e a sociedade não constitui um derivado da contradição - provavelmente irreconciliável entre os instintos primevos de Eros e da morte. Trata-se de uma luta dentro da economia da libido, comparável àquela referente à distribuição da libido entre o ego e os objetos, admitindo uma acomodação final no indivíduo, tal como, pode-se esperar, também o fará no futuro da civilização, por mais que atualmente essa civilização possa oprimir a vida do indivíduo. A analogia entre o processo civilizatório e o caminho do desenvolvimento individual é passível de ser ampliada sob um aspecto importante. Pode-se afirmar que também a comunidade desenvolve um superego sob cuja influência se produz a evolução cultural. Constituiria tarefa tentadora para todo aquele que tenha um conhecimento das civilizações humanas, acompanhar pormenorizadamente essa analogia. Limitar-me-ei a apresentar alguns pontos mais notáveis. O superego de uma época de civilização tem origem semelhante à do superego de um indivíduo. Ele se baseia na impressão deixada atrás de si pelas personalidades dos grandes líderes - homens de esmagadora força de espírito ou homens em quem um dos impulsos humanos encontrou sua expressão mais forte e mais pura e, portanto, quase sempre, mais unilateral. Em muitos casos, a analogia vai mais além, como no fato de, durante a sua vida, essas figuras - com bastante freqüência, ainda que não sempre - terem sido escarnecidas e maltratadas por outros e, até mesmo, liquidadas de maneira cruel. Do mesmo modo, na verdade, o pai primevo não atingiu a divindade senão muito tempo depois de ter encontrado a morte pela violência. O exemplo mais evidente dessa conjunção fatídica pode ser visto na figura de Jesus Cristo - se, em verdade, essa figura não faz parte da mitologia, que a conclamou à existência a partir de uma obscura lembrança daquele evento primevo. Outro ponto de concordância entre o superego cultural e o individual é que o primeiro, tal como o último, estabelece exigências ideais estritas, cuja desobediência é punida pelo ‘medo da consciência’,ver [[1]]. Aqui, em verdade, nos deparamos com a notável circunstância de que, na realidade, os processos mentais relacionados são mais familiares para nós e mais acessíveis à consciência tal como vistos no grupo, do que o podem ser no indivíduo. Neste, quando a tensão cresce, é apenas a agressividade do superego que, sob a forma de censuras, se faz ruidosamente ouvida; com freqüência, suas exigências reais permanecem inconscientes no segundo plano. Se as trazemos ao conhecimento consciente, descobrimos que elas coincidem com os preceitos do superego cultural predominante. Neste ponto os dois processos, o do desenvolvimento cultural do grupo e o do desenvolvimento cultural do indivíduo, se acham, por assim dizer, sempre interligados. Daí algumas das manifestações e propriedades do superego poderem ser mais facilmente detectadas em seu comportamento na comunidade cultural do que no indivíduo isolado.O superego cultural desenvolveu seus ideais e estabeleceu suas exigências. Entre estas, aquelas que tratam das relações dos seres humanos uns com os outros estão abrangidas sob o título de ética. As pessoas, em todos os tempos, deram o maior valor à ética, como se esperassem que ela, de modo específico, produzisse resultados especialmente importantes. De fato, ela trata de um assunto que pode ser facilmente identificado como sendo o ponto mais doloroso de toda civilização. A ética deve, portanto, ser considerada como uma tentativa terapêutica - como um esforço por alcançar, através de uma ordem do superego, algo até agora não conseguido por meio de quaisquer outras atividades culturais. Como já sabemos, o problema que temos pela frente é saber como livrar-se do maior estorvo à civilização - isto é, a inclinação, constitutiva dos seres humanos, para a agressividade mútua; por isso mesmo, estamos particularmente interessados naquela que é provavelmente a mais recente das ordens culturais do superego, o mandamento de amar ao próximo como a si mesmo.Ver [[1].] Em nossa pesquisa de uma neurose e em sua terapia, somos levados a fazer duas censuras contra o superego do indivíduo. Na severidade de suas ordens e proibições, ele se preocupa muito pouco com a felicidade do ego, já que considera de modo insuficiente as resistências contra a obrigação de obedecê-las - a força instintiva do id [em primeiro lugar] e as dificuldades apresentadas pelo meio ambiente externo real [em segundo]. Por conseguinte, somos freqüentemente obrigados, por propósitos terapêuticos, a nos opormos ao superego e a nos esforçarmos por diminuir suas exigências. Exatamente as mesmas objeções podem ser feitas contra as exigências éticas do superego cultural. Ele também não se preocupa de modo suficiente com os fatos da constituição mental dos seres humanos. Emite uma ordem e não pergunta se é possível às pessoas obedecê-la. Pelo contrário, presume que o ego de um homem é psicologicamente capaz de tudo que lhe é exigido, que o ego desse homem dispõe de um domínio ilimitado sobre seu id. Trata-se de um equívoco e, mesmo naquelas que são conhecidas como pessoas normais, o id não pode ser controlado além de certos limites. Caso se exija mais de um homem, produzir-se-á nele uma revolta ou uma neurose, ou ele se tornará infeliz. O mandamento ‘Ama a teu próximo como a ti mesmo’ constitui a defesa mais forte contra a agressividade humana e um excelente exemplo dos procedimentos não psicológicos do superego cultural. É impossível cumprir esse mandamento; uma inflação tão enorme de amor só pode rebaixar seu valor, sem se livrar da dificuldade. A civilização não presta atenção a tudo isso; ela meramente nos adverte que quanto mais difícil é obedecer ao preceito, mais meritório é proceder assim. Contudo, todo aquele que, nacivilização atual, siga tal preceito, só se coloca em desvantagem frente à pessoa que despreza esse mesmo preceito. Que poderoso obstáculo à civilização a agressividade deve ser, se a defesa contra ela pode causar tanta infelicidade quanto a própria agressividade! A ética ‘natural’, tal como é chamada, nada tem a oferecer aqui, exceto a satisfação narcísica de se poder pensar que se é melhor do que os outros. Nesse ponto, a ética baseada na religião introduz suas promessas de uma vida melhor depois da morte. Enquanto, porém, a virtude não for recompensada aqui na Terra, a ética, imagino eu, pregará em vão. Acho também bastante certo que, nesse sentido, uma mudança real nas relações dos seres humanos com a propriedade seria de muito mais ajuda do que quaisquer ordens éticas; mas o reconhecimento desse fato entre os socialistas foi obscurecido, e tornado inútil para fins práticos, por uma nova e idealista concepção equivocada da natureza humana.Ver [[1].] Creio que a linha de pensamento que procura descobrir nos fenômenos de desenvolvimento cultural o papel desempenhado por um superego promete ainda outras descobertas. Apresso-me a chegar ao fim, mas há uma questão a que dificilmente posso fugir. Se o desenvolvimento da civilização possui uma semelhança de tão grande alcance com o desenvolvimento do indivíduo, e se emprega os mesmos métodos, não temos nós justificativa em diagnosticar que, sob a influência de premências culturais, algumas civilizações, ou algumas épocas da civilização - possivelmente a totalidade da humanidade - se tornaram ‘neuróticas’? Uma dissecação analítica de tais neuroses poderia levar a recomendações terapêuticas passíveis de reivindicarem um grande interesse prático. Eu não diria que uma tentativa desse tipo, de transportar a psicanálise para a comunidade cultural, seja absurda ou que esteja fadada a ser infrutífera. Mas teríamos de ser muito cautelosos e não esquecer que, em suma, estamos lidando apenas com analogias e que é perigoso, não somente para os homens mas também para os conceitos, arrancá-los da esfera em que se originaram e se desenvolveram. Além disso, a diagnose das neuroses comunais se defronta com uma dificuldade especial. Numa neurose individual, tomamos como nosso ponto de partida o contraste que distingue o paciente do seu meio ambiente, o qual se presume ser ‘normal’. Para um grupo de que todos os membros estejam afetados pelo mesmo distúrbio, não poderia existir esse pano de fundo; ele teria de ser buscado em outro lugar. E, quanto à aplicação terapêutica de nosso conhecimento, qual seria a utilidade da mais corretaanálise das neuroses sociais, se não se possui autoridade para impor essa terapia ao grupo? No entanto, e a despeito de todas essas dificuldades, podemos esperar que, um dia, alguém se aventure a se empenhar na elaboração de uma patologia das comunidades culturais. Por uma ampla gama de razões, está muito longe de minha intenção exprimir uma opinião sobre o valor da civilização humana. Esforcei-me por resguardar-me contra o preconceito entusiástico que sustenta ser a nossa civilização a coisa mais preciosa que possuímos ou poderíamos adquirir, e que seu caminho necessariamente conduzirá a ápices de perfeição inimaginada. Posso, pelo menos, ouvir sem indignação o crítico cuja opinião diz que, quando alguém faz o levantamento dos objetivos do esforço cultural e dos meios que este emprega, está fadado a concluir que não vale a pena todo esse esforço e que seu resultado só pode ser um estado de coisas que o indivíduo será incapaz de tolerar. Minha imparcialidade se torna mais fácil para mim na medida em que conheço muito pouco a respeito dessas coisas. Sei que apenas uma delas é certa: é que os juízos de valor do homem acompanham diretamente os seus desejos de felicidade, e que, por conseguinte, constituem uma tentativa de apoiar com argumentos as suas ilusões. Acharia muito compreensível que alguém assinalasse a natureza obrigatória do curso da civilização humana e que dissesse, por exemplo, que as tendências para uma restrição da vida sexual ou para a instituição de um ideal humanitário à custa da seleção natural foram tendências de desenvolvimento impossíveis de serem desviadas ou postas de lado, e às quais é melhor para nós nos submetermos, como se constituíssem necessidades da natureza. Também estou a par da objeção que pode ser levantada contra isso, objeção segundo a qual, na história da humanidade, tendências como estas, consideradas insuperáveis, freqüentemente foram relegadas e substituídas por outras. Assim, não tenho coragem de me erguer diante de meus semelhantes como um profeta; curvo-me à sua censura de que não lhes posso oferecer consolo algum, pois, no fundo, é isso que todos estão exigindo, e os mais arrebatados revolucionários não menos apaixonadamente do que os mais virtuosos crentes. A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição. Talvez, precisamente com relação a isso, a época atual mereça um interesse especial. Os homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle, que, com sua ajuda, não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros, até o último homem. Sabem disso, e édaí que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade e de sua ansiedade. Agora só nos resta esperar que o outro dos dois ‘Poderes Celestes’ ver [[1]], o eterno Eros, desdobre suas forças para se afirmar na luta com seu não menos imortal adversário. Mas quem pode prever com que sucesso e com que resultado? FETICHISMO (1927) NOTA DO EDITOR INGLÊS FETISCHISMUS (a) EDIÇÕES ALEMÃS: 1927 Almanach 1928, 17-24. 1927 Int. Z. Psychoanal., 13 (4), 373-8. 1928 G.S., 11, 395-401 1931 Sexualtheorie und Traumlehre, 220-7 1948 G.W., 14, 311-17 (b) TRADUÇÃO INGLESA: ‘Fetishism’ 1928 Int. J. Psycho-Anal., 9 (2), 161-6. (Trad. de Joan Riviere.) 1950 C.P., 5, 198-204. (Edição revista da anterior.) A presente tradução inglesa é uma versão modificada da publicada em 1950. Este artigo, terminado no fim da primeira semana de agosto de 1927 (Jones, 1957, 146), foi publicado quase simultaneamente, no mesmo outono, no Almanach 1928 e no último número de 1927 da Zeitschrift. Em seu primeiro estudo sobre o fetichismo, nos Três Ensaios (1905d), Edição Standard Brasileira, Vol. VII, pág. 153-6, IMAGO Editora 1972, Freud escreveu que nenhuma outra variação do instinto sexual que se aproxima do patológico pode reivindicar tanto nosso interesse quanto esta, e, na realidade, não poucas vezes retornou à sua consideração. Nessa primeira descrição, ele não vai muito além de sustentar que ‘a escolha de um fetiche constitui um efeito posterior de alguma impressão sexual, via de regra recebida na primeira infância’ ficando o tema também nesse ponto, em alguns comentários de passagem ao fetichismo do pé em seu estudo sobre a Gradiva (1907a), um ano ou dois mais tarde (ibid., 9, 46-7). Sua abordagem seguinte ao assunto parece ter-se dado num artigo não publicado, ‘Sobre a Gênese do Fetichismo’, lido para a Sociedade Psicanalítica de Viena em 24 de fevereiro de 1909 (Jones, 1955, 332), mas, infelizmente, não conseguimos acesso às atas da Sociedade. Nessa ocasião, preparava a análise do ‘Homem dos Ratos’ (1909d) para publicação e nela mencionou um novo ponto - a vinculação do fetichismo com o prazer em cheirar (ibid., 10, 247) - que ampliou emnota de rodapé acrescentada aos Três Ensaios, em sua segunda edição de 1910 (ibid., VII). Mas, logo depois, uma nova e mais importante vinculação deve ter-lhe ocorrido, pois essa mesma nota de rodapé acrescentada continha a primeira afirmativa de que o fetiche representa o pênis que falta à mulher, que figurara de modo proeminente entre as teorias sexuais infantis a que recentemente dedicara um artigo (1908c), Ibid., 9, 215-18. Essa nova explicação do fetiche foi também mencionada (como Freud observa na pág. 180n, adiante) em seu estudo sobre Leonardo (1910c), ibid, XI, publicado muito pouco depois da nota de rodapé aos Três Ensaios. A questão especial da origem do fetichismo do pé (mencionada no presente artigo,ver [1]) atraiu a atenção de Freud alguns anos depois. A 11 de março de 1914, leu para a Sociedade Psicanalítica de Viena outro artigo sobre ‘Um Caso de Fetichismo do Pé’. Este também não foi publicado, mas dessa vez, afortunadamente, possuímos um resumo dele, da autoria de Ernest Jones (1955, 342-3). A explicação da escolha do pé como fetiche - uma abordagem aos órgãos genitais da mulher de maneira deslocada - a que nele se chegou, foi publicada como acréscimo posterior à mesma nota de rodapé aos Três ensaios, em sua terceira edição de 1915. Outro caso clínico bastante semelhante foi comunicado muito sucintamente por Freud na Conferência XXII de suas Introductory Lectures (1916-17). Entretanto, embora o presente artigo seja importante enquanto reunião e ampliação das primeiras opiniões de Freud sobre o fetichismo, seu principal interesse reside numa direção muito diferente, isto é, no novo desenvolvimento metapsicológico que introduz. Por diversos anos Freud utilizou o conceito de ‘rejeição’ (‘Verleugnung’), especialmente quanto às reações das crianças à observação da distinção anatômica entre os sexos. No presente artigo, baseando-se em observações clínicas recentes, apresenta razões para supor-se que essa ‘rejeição’ necessariamente acarreta uma divisão no ego do indivíduo. No fim da vida, Freud retomou o tema e ampliou seu âmbito: em artigo inacabado e postumamente publicado sobre’ Splitting of the Ego in the Process of Defence’ (1940e [1938]), e nos últimos parágrafos do Capítulo VIII de Esboço de Psicanálise (1940a [1938], Livro 7 da Pequena Coleção das Obras de Freud, IMAGO Editora, 1974). Entretanto, embora o fetichismo seja especialmente considerado em ambos esses trabalhos, Freud assinala aí que essa ‘divisão do ego’ não é peculiar ao fetichismo, mas que, na realidade,pode ser encontrada em muitas outras situações em que o ego se defronta com a necessidade de construir uma defesa, e que ela ocorre não apenas na rejeição, mas também na repressão. FETICHISMO Nos últimos anos tive oportunidade de estudar analiticamente certo número de homens cuja escolha objetal era dominada por um fetiche. Não é preciso esperar que essas pessoas venham à análise por causa de seu fetiche, pois, embora sem dúvida ele seja reconhecido por seus adeptos como uma anormalidade, raramente é sentido por eles como o sintoma de uma doença que se faça acompanhar por sofrimento. Via de regra, mostram-se inteiramente satisfeitos com ele, ou até mesmo louvam o modo pelo qual lhes facilita a vida erótica. Via de regra, portanto, o fetiche aparece na análise como uma descoberta subsidiária. Por motivos evidentes, os pormenores desses casos não podem ser publicados; não posso, portanto, mostrar de que maneira as circunstâncias acidentais contribuíram para a escolha de um fetiche. O caso mais extraordinário pareceu-me ser aquele em que um jovem alçou certo tipo de ‘brilho do nariz’ a uma precondição fetichista. A explicação surpreendente para isso era a de que o paciente fora criado na Inglaterra, vindo posteriormente para a Alemanha, onde esquecera sua língua materna quase completamente. O fetiche, originado de sua primeira infância , tinha de ser entendido em inglês, não em alemão. O ‘brilho do nariz’ [em alemão ‘Glanz auf der Nase‘] era na realidade um ‘vislumbre (glance) do nariz’. O nariz constituía assim o fetiche, que incidentalmente, ele dotara, à sua vontade, do brilho luminoso que não era perceptível a outros. Em todos os casos, o significado e o propósito do fetiche demonstraram, na análise, serem os mesmos. Ele se revelou de modo tão natural e me pareceu tão compelativo que me sinto preparado para esperar a mesma solução em todos os casos de fetichismo. Ao enunciar agora que o fetiche é um substituto para o pênis, decerto criarei um desapontamento, de maneira que me apresso a acrescentar que não é um substituto para qualquer pênis ocasional, e sim para um pênis específico e muito especial, que foi extremamente importante na primeira infância, mas posteriormente perdido. Isso equivale a dizer que normalmente deveria ter sido abandonado; o fetiche, porém, se destina exatamente a preservá-lo da extinção. Para expressá-lo de modo mais simples: o fetiche é um substituto do pênis da mulher (da mãe) em que o menininho outrora acreditou e que - por razões que nos são familiares - não deseja abandonar.O que sucedeu, portanto, foi que o menino se recusou a tomar conhecimento do fato de ter percebido que a mulher não tem pênis. Não, isso não podia ser verdade, pois, se uma mulher tinha sido castrada, então sua própria posse de um pênis estava em perigo, e contra isso ergueu-se em revolta a parte de seu narcisismo que a Natureza, como precaução, vinculou a esse órgão específico. Na vida posterior, um homem adulto talvez possa experimentar um pânico semelhante, quando se eleva o clamor de que o Trono e o Altar correm perigo e conseqüências ilógicas semelhantes decorrerão disso. Se não estou equivocado, Laforgue, nesse caso, diria que o menino ‘escotomiza’ sua percepção da falta de pênis da mulher. Um termo técnico novo se justifica quando descreve um fato novo ou lhe dá ênfase. Nesse caso, não é assim. A mais antiga palavra de nossa terminologia psicanalítica, ‘repressão’, já se relaciona com esse processo patológico. Se quisermos diferenciar mais nitidamente a vicissitude da idéia como distinta daquela do afeto, e reservar a palavra ‘Verdrängung’ [‘repressão’] para o afeto, então a palavra alemã correta para a vicissitude da idéia seria ‘Verleugnung’ [‘rejeição’]. ‘Escotomização’ parece-me particularmente inapropriada, por sugerir que a percepção é inteiramente apagada, de maneira que o resultado é o mesmo que sucede quando uma impressão visual incide sobre o ponto cego da retina. Na situação que estamos considerando, pelo contrário, vemos que a percepção continuou e que uma ação muito enérgica foi empreendida para manter a rejeição. Não é verdade que, depois que a criança fez sua observação da mulher, tenha conservado inalterada sua crença de que as mulheres possuem um falo. Reteve essa crença, mas também a abandonou. No conflito entre o peso da percepção desagradável e a força de seu contradesejo, chegou-se a um compromisso, tal como só é possível sob o domínio dasleis inconscientes do pensamento - os processos primários. Sim, em sua mente a mulher teve um pênis, a despeito de tudo, mas esse pênis não é mais o mesmo de antes. Outra coisa tomou seu lugar, foi indicada como seu substituto, por assim dizer, e herda agora o interesse anteriormente dirigido a seu predecessor. Mas esse interesse sofre também um aumento extraordinário, pois o horror da castração ergueu um monumento a si próprio na criação desse substituto. Ademais, uma aversão, que nunca se acha ausente em fetichista algum, aos órgãos genitais femininos reais, permanece um stigma indelebile da repressão que se efetuou. Podemos perceber agora aquilo que o fetiche consegue e aquilo que o mantém. Permanece um indício do triunfo sobre a ameaça de castração e uma proteção contra ela. Também salva o fetichista de se tornar homossexual, dotando as mulheres da característica que as torna toleráveis como objetos sexuais. Na vida posterior, o fetichista sente desfrutar de ainda outra vantagem de seu substituto de um órgão genital. O significado do fetiche não é conhecido por outras pessoas, de modo que não é retirado do fetichista; é facilmente acessível e pode prontamente conseguir a satisfação sexual ligada a ele. Aquilo pelo qual os outros homens têm de implorar e se esforçar pode ser tido pelo fetichista sem qualquer dificuldade. Provavelmente a nenhum indivíduo humano do sexo masculino é poupado o susto da castração à vista de um órgão genital feminino. Por que algumas pessoas se tornam homossexuais em conseqüência dessa impressão, ao passo que outras a desviam pela criação de um fetiche, e a grande maioria a supera, francamente não somos capazes de explicar. É possível que, entre todos os fatores em ação, ainda não conheçamos os decisivos para os raros resultados patológicos. Temos de nos contentar se pudermos explicar o que aconteceu, e deixar atualmente de lado a tarefa de explicar por que algo não aconteceu. Esperar-se-ia que os órgãos ou objetos escolhidos como substitutos para o falo ausente da mulher fossem tais, que aparecessem como símbolos do pênis também sob outros aspectos. Isso pode acontecer com bastante freqüência, mas certamente não constitui fator decisivo. Antes, parece que, quando o fetiche é instituído, ocorre certo processo que faz lembrar a interrupção da memória na amnésia traumática. Como nesse último caso, o interesse do indivíduo se interrompe a meio cominho, por assim dizer; é como se a última impressão antes da estranha e traumática fosse retida como fetiche. Assim, o pé ou o sapato devem sua preferência como fetiche - ou parte dela - à circunstância de o menino inquisitivo espiar os órgãos genitais da mulher a partir de baixo, das pernas para cima; peles e veludo - como por longo tempo se suspeitou - constituem uma fixação da visão dos pêlos púbicos,que deveria ter sido seguida pela ansiada visão do membro feminino; peças de roupa interior, que tão freqüentemente são escolhidas como fetiche, cristalizam o momento de se despir, o último momento em que a mulher ainda podia ser encarada como fálica. Não sustento, porém, ser invariavelmente possível descobrir com certeza o modo como o fetiche foi determinado. Uma investigação do fetichismo é calorosamente recomendada a quem quer que ainda duvide da existência do complexo de castração ou que ainda possa acreditar que o susto à vista do órgão genital feminino possua outro fundamento, tal como, por exemplo, que ele derive de uma suposta rememoração do trauma do nascimento. Para mim, a explicação do fetichismo possui também outro aspecto de interesse teórico. Recentemente, seguindo linhas inteiramente especulativas, cheguei à proposição de que a diferença essencial entre a neurose e a psicose consistia em que, na primeira, o ego, a serviço da realidade, reprime um fragmento do id, ao passo que, na psicose, ele se deixa induzir, pelo id, a se desligar de um fragmento da realidade. Retornei a esse tema mais tarde. Logo depois, porém, tive motivo para lamentar ter-me aventurado tão longe. Na análise de dois jovens aprendi que ambos - um quando tinha dois anos de idade, e o outro, quando contava dez - não haviam conseguido tomar conhecimento da morte do querido pai, haviam-na ‘escotomizado’, e, contudo, nenhum deles desenvolvera uma psicose. Desse modo, um fragmento de realidade, indubitavelmente importante, fora rejeitado pelo ego, tal como o fato desagradável da castração feminina é rejeitado nos fetichistas. Também comecei a suspeitar que ocorrências semelhantes na infância de maneira alguma são raras, e acreditei ter sido culpado de um erro em minha caracterização da neurose e da psicose. É verdade que havia uma saída para a dificuldade. Minha fórmula precisava apenas ser válida onde houvesse um grau mais elevado de diferenciação no aparelho psíquico; seriam permissíveis a uma criança coisas que acarretariam graves prejuízos a um adulto. Contudo, a pesquisa posterior conduziu-me a outra solução para a contradição. Tornou-se evidente que os dois jovens não haviam ‘escotomizado’ a morte dos pais mais do que um fetichista escotomiza a castração feminina. Fora apenas uma determinada corrente em sua vida mental que não reconhecera a morte daqueles; havia outra corrente que se dava plena conta desse fato. A atitude que se ajustava ao desejo e a atitude que se ajustava àrealidade existiam lado a lado. Num de meus dois casos, a divisão constituíra a base de uma neurose obsessiva moderadamente grave. Em todas as situações da vida, o paciente oscilava entre duas presunções: uma, de que o pai ainda estava vivo e atrapalhava suas atividades; outra, oposta, de que tinha o direito de se considerar como sucessor do pai. Assim, posso ater-me à expectativa de que, numa psicose, uma daquelas correntes - a que se ajustava à realidade esteja realmente ausente. Retornando à minha descrição do fetichismo, posso dizer que existem muitas provas adicionais e de peso quanto à atitude dividida dos fetichistas para com o tema da castração feminina. Em casos bastante sutis, tanto a rejeição quanto a afirmação da castração encontram caminho na construção do próprio fetiche. Assim ocorreu no caso de um homem cujo fetiche era um suporte atlético que também podia ser usado como calção de banho. Essa peça cobria inteiramente os órgãos genitais e ocultava a distinção entre eles. A análise mostrou que isso significava que as mulheres eram castradas e que não eram castradas; e isso também permitiu a hipótese de que os homens eram castrados, porque todas essas possibilidades podiam ser igualmente bem ocultas sob o suporte - cujo primeiro rudimento, em sua infância, fora a folha de parreira de uma estátua. Um fetiche desse tipo, duplamente derivado de idéias contrárias, é, naturalmente, especialmente durável. Em outros casos, a atitude dividida se mostra naquilo que o fetichista faz com o fetiche, seja em realidade ou em sua imaginação. Assinalar que ele o reverencia não é tudo; em muitos casos, trata-o de maneira obviamente equivalente a uma representação da castração. Isso acontece particularmente, caso ele tenha desenvolvido uma forte identificação com o pai e desempenha o papel deste último, pois foi a este que, em criança, atribuiu a castração da mulher. A afeição e a hostilidade no tratamento do fetiche - que correm paralelas com a rejeição e o reconhecimento da castração - estão mescladas em proporções desiguais em casos diferentes, de maneira a que uma ou outra seja mais facilmente identificável. Parecemos aqui aproximar-nos de uma compreensão, ainda que remota, do comportamento do ‘coupeur de nattes‘. Nele, a necessidade de executar a castração, que ele mesmo rejeita, veio para o primeiro plano. Sua ação contém em si própria as duas asserções mutuamente incompatíveis: ‘a mulher ainda tem um pênis’ e ‘meu pai castrou a mulher’. Outra variante, que também constitui um paralelo ao fetichismo na psicologiasocial, poderia ser encontrada no costume chinês de mutilar o pé feminino e, depois disso, reverenciá-lo como um fetiche. Parece algo como se o homem chinês quisesse agradecer à mulher por se ter submetido a ser castrada. Em conclusão, podemos dizer que o protótipo normal dos fetiches é um pênis de homem, assim como o protótipo normal de órgãos inferiores é o pequeno pênis real de uma mulher, o clitóris. O HUMOR (1927) DER HUMOR (a) EDIÇÕES ALEMÃS: 1927 Almanach 1928, 9-16. 1928 Imago, 14 (1), 1-6. 1928 G.S., 11, 402-8. 1048 G.W., 14, 383-9. (b) TRADUÇÃO INGLESA: ‘Humour’ 1928 Int. J. Psycho-Anal., 9 (1), 1-6. (Trad. de Joan Riviere.) 1950 C.P., 5, 215-21. (Reimpressão revista da anterior.) A presente tradução inglesa é versão corrigida da publicada em 1950. Freud escreveu este artigo em cinco dias, durante a segunda semana de agosto de 1927 (Jones, 1957, 146), e ele foi lido, em seu nome, por Anna Freud, a 1º de setembro, perante o X Congresso Psicanalítico Internacional, em Innsbruck. Foi publicado pela primeira vez no outono do mesmo ano no ‘Almanaque’ psicanalítico referente a 1928. O artigo retorna, depois de um intervalo de mais de vinte anos, ao tema examinado na última seção do livro sobre os Chistes (1905c). Freud considera-o agora à luz de sua nova representação estrutural da mente humana. Alguns pontos metapsicológicos interessantes surgem nas últimas páginas do artigo e, pela primeira vez, encontramos o superego apresentado num estado de espírito afável. O HUMOR Em meu volume sobre Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente (1905c), na realidade considerei o humor apenas do ponto de vista econômico. Meu objetivo era descobrir a fonte do prazer que se obtém do humor e acho que pude demonstrar que a produção do prazer humorístico surge de uma economia de gasto em relação ao sentimento. [Standard Ed., 8, 236.] Há duas maneiras pelas quais o processo humorístico pode realizar-se. Ele pode dar-se com relação a uma pessoa isolada, que, ela própria, adota a atitude humorística, ao passo que uma segunda pessoa representa o papel de espectador que dela deriva prazer; ou pode efetuar-se entre duas pessoas, uma das quais não toma parte alguma no processo humorístico, mas é tornada objeto de contemplação humorística pela outra. Quando, para tomar o exemplo mais grosseiro [ibid., 201], um criminoso, levado à forca numa segunda-feira, comentou: ‘Bem, a semana está começando otimamente’, ele mesmo estava produzindo o humor; o processo humorístico se completa em sua própria pessoa e, evidentemente, concede-lhe certo senso de satisfação. Eu, ouvinte não participante, sou afetado, por assim dizer, a longo alcance, por essa produção humorística do criminoso; sinto, como ele talvez, a produção de prazer humorístico. Temos um exemplo da segunda maneira pela qual o humor surge, quando um escritor ou narrador descreve o comportamento de pessoas reais ou imaginárias de modo humorístico. Essas próprias pessoas não precisam demonstrar humor algum; a atitude humorística interessa apenas à pessoa que as está tomando como seu objeto, e, tal como no primeiro exemplo, o leitor ou ouvinte partilha da fruição do humor. Para resumir, então, podemos dizer que a atitude humorística - não importando em que consista - é possível de ser dirigida quer para o próprio eu do indivíduo quer para outras pessoas; é de supor que ocasione uma produção de prazer à pessoa que a adota, e uma produção semelhante de prazer vem a ser a quota do assistente não participante. Compreenderemos melhor a gênese da produção do prazer humorístico se considerarmos o processo que se dá no ouvinte perante quem um outro produz humor. O ouvinte vê esse outro numa situação que o leva a esperar que ele produza os sinais de um afeto, que fique zangado, se queixe, expresse sofrimento, fique assustado ou horrorizado ou, talvez, até mesmo desesperado; e o assistente ou ouvinte está preparado para acompanhar sua direçãoe evocar os mesmos impulsos emocionais em si mesmo. Contudo, essa expectativa emocional é desapontada; a outra pessoa não expressa afeto, mas faz uma pilhéria. O gasto de sentimento, que é assim economizado, se transforma em prazer humorístico no ouvinte. É fácil chegar até aí. Logo, porém, verificamos que é o processo que se realiza na outra pessoa o ‘humorista’ - que merece maior atenção. Não há dúvida de que a essência do humor é poupar os afetos a que a situação naturalmente daria origem e afastar com uma pilhéria a possibilidade de tais expressões de emoção. Até esse ponto, o processo no humorista tem de concordar com o processo no ouvinte - ou, para dizê-lo mais corretamente, o processo no ouvinte deve ter copiado o do humorista. Mas, de que modo este último ocasiona a atitude mental que torna supérflua a liberação de afeto? Qual é a dinâmica de sua adoção da ‘atitude humorística’? Evidentemente, a solução do problema deve ser buscada no humorista; no ouvinte, temos de supor que existe apenas um eco, uma cópia, desse processo desconhecido. Já é hora de nos familiarizarmos com algumas das características do humor. Como os chistes e o cômico, o humor tem algo de liberador a seu respeito, mas possui também qualquer coisa de grandeza e elevação, que faltam às outras duas maneiras de obter prazer da atividade intelectual. Essa grandeza reside claramente no triunfo do narcisismo, na afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do ego. O ego se recusa a ser afligido pelas provocações da realidade, a permitir que seja compelido a sofrer. Insiste em que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo; demonstra, na verdade, que esses traumas para ele não passam de ocasiões para obter prazer. Esse último aspecto constitui um elemento inteiramente essencial do humor. Suponhamos que o criminoso levado para execução na segunda-feira dissesse: ‘Isso não me preocupa. Que importância tem, afinal de contas, que um sujeito como eu seja enforcado? O mundo não vai acabar por causa disso’. Teríamos de admitir que um discurso desse tipo apresenta de fato a mesma magnífica superioridade sobre a situação real. É sábio e verdadeiro, mas não revela traço de humor. Na verdade, baseia-se numa avaliação da realidade que vai diretamente contra a avaliação feita pelo humor. O humor não é resignado, mas rebelde. Significa não apenas o triunfo do ego, mas também o do princípio do prazer, que pode aqui afirmar-se contra a crueldade das circunstâncias reais. Essas duas últimas características - a rejeição das reivindicações da realidade e a efetivação do princípio do prazer - aproximam o humor dos processos regressivos ou reativos que tão amplamente atraem nossa atenção na psicopatologia. Seu desvio da possibilidade de sofrimento coloca-o entrea extensa série de métodos que a mente humana construiu a fim de fugir à compulsão para sofrer - uma série que começa com a neurose e culmina na loucura, incluindo a intoxicação, a auto-absorção e o êxtase. Graças a essa vinculação, o humor possui uma dignidade que falta completamente, por exemplo, aos chistes, pois estes servem simplesmente para obter uma produção de prazer ou colocar essa produção, que foi obtida, a serviço da agressão. Em que, então, consiste a atitude humorística, atitude por meio da qual uma pessoa se recusa a sofrer, dá ênfase à invencibilidade do ego pelo mundo real, sustenta vitoriosamente o princípio do prazer - e tudo isso em contraste com outros métodos que têm os mesmos intuitos, sem ultrapassar os limites da saúde mental? As duas realizações parecem incompatíveis. Se retornarmos à situação em que determinada pessoa adota uma atitude humorística para com outros, uma conceituação que já apresentei experimentalmente em meu livro sobre chistes se sugerirá por si mesma em seguida. É que o indivíduo se comporta para com eles como um adulto o faz com uma criança, quando identifica e sorri da trivialidade dos interesses e sofrimentos que parecem tão grandes a esta última [ibid., 205]. Assim, o humorista adquiriria sua superioridade por assumir o papel do adulto, identificar-se até certo ponto com o pai, e reduzir as outras pessoas a crianças. Essa conceituação provavelmente abrange os fatos, embora dificilmente pareça ser conclusiva. Perguntamo-nos o que é que faz o humorista arrogar-se esse papel. Mas temos de recordar a outra situação de humor, provavelmente mais primária e mais importante, na qual uma pessoa adota uma atitude humorística para consigo mesma, a fim de manter afastados possíveis sofrimentos. Há sentido em dizer que alguém está-se tratando a si próprio como criança e, ao mesmo tempo, desempenhando o papel de um adulto superior para com essa criança? Essa idéia não muito plausível receberá apoio bastante forte, penso eu, se levarmos em consideração aquilo que aprendemos das observações patológicas sobre a estrutura do ego. Esse ego não é uma entidade simples. Abriga dentro dele, como seu núcleo, um agente especial: o superego. Às vezes, acha-se fundido com o superego de maneira que não podemos fazerdistinção entre eles, ao passo que, em outras circunstâncias, se acha nitidamente diferenciado dele. Geneticamente o superego é o herdeiro do agente paterno. Freqüentemente ele mantém o ego em estrita dependência e, ainda, realmente o trata como os genitores, ou o pai, outrora trataram o filho, em seus primeiros anos. Obteremos uma explicação dinâmica da atitude humorística, portanto, se supusermos que ela consiste em ter o humorista retirado a ênfase psíquica de seu ego, transpondo-a para o superego. Para o superego, assim inflado, o ego pode parecer minúsculo, e triviais todos os seus interesses, e, com essa nova distribuição de energia, pode tornar-se coisa fácil para o superego reprimir as possibilidades de reação do ego. A fim de permanecermos fiéis à nossa fraseologia habitual, teremos de falar, não de transportar a ênfase psíquica, mas de deslocar grandes quantidades de catexia. A questão, então, é saber se temos o direito de representar amplos deslocamentos como esse, de um agente do aparelho psíquico para outro. Isso parece ser uma nova hipótese, construída ad hoc. Contudo, podemos lembrar-nos de que repetidamente (ainda que não com suficiente freqüência) tomamos um fator desse tipo em consideração nas nossas tentativas de representação metapsicológica dos acontecimentos mentais. Assim, por exemplo, supomos que a diferença entre uma catexia objetal erótica normal e o estado de se achar enamorado é que, neste último, uma catexia incomparavelmente maior se transfere para o objeto, e que o ego se esvazia, por assim dizer, em favor do objeto. Estudando certos casos de paranóia, pude estabelecer o fato de que idéias de perseguição se formam precocemente e existem por longo tempo sem qualquer efeito perceptível, até que, em resultado de determinado acontecimento precipitante específico, recebe quantidades de catexia suficientes para levá-las a se tornarem dominantes. Também a cura de tais crises paranóicas residiria não tanto numa solução e correção das idéias delirantes, quanto numa retirada delas da catexia que lhes foi emprestada. As alternações entre melancolia e mania, entre uma cruel opressão do ego pelo superego e uma liberação do ego após essa pressão, sugerem um deslocamento de catexia desse tipo; tal deslocamento, ademais, teria de ser introduzido para explicar um grande número de fenômenos que pertencem à vida mental normal. Se, até o presente, isso só foi feito em grau muito limitado, o fato deve-se à nossa cautela usual, algo que só merecelouvor. A região em que nos sentimos seguros é a da patologia da vida mental; é aqui que efetuamos nossas observações e adquirimos nossas convicções. Atualmente, só nos aventuramos a formar um juízo sobre a mente normal na medida em que podemos discernir o que é normal nos isolamentos e deformações do material patológico. Uma vez superada essa hesitação, reconhecermos quão grande é a contribuição efetuada à compreensão dos processos mentais tanto pelas condições estáticas quanto pelas alterações dinâmicas da quantidade da catexia energética. Acho, portanto, que a possibilidade que aqui sugeri, a de que, numa situação específica, o indivíduo subitamente hipercatexize seu superego, e então, a partir disso, altere as reações do ego, merece ser retida. Ademais, o que sugeri sobre o humor encontra analogia digna de nota no campo aparentado dos chistes. Quanto à origem destes, fui levado a supor que um pensamento pré-consciente é entregue por um momento à revisão inconsciente [ibid., 166]. Um chiste é, portanto, a contribuição feita ao cômico pelo inconsciente [ibid., 208]. Exatamente do mesmo modo, o humor seria a contribuição feita ao cômico pela intervenção do superego. Com respeito a outros assuntos, conhecemos o superego como um senhor severo. Dir-se-á que não combina bem com tal caráter o fato de o superego condescender em capacitar o ego a obter uma pequena produção de prazer. É verdade que o prazer humorístico jamais alcança a intensidade do prazer do cômico ou dos chistes, que jamais encontra vazão no riso cordial. Também é verdade que, ocasionando a atitude humorística, o superego está realmente repudiando a realidade e servindo a uma ilusão. Entretanto (sem saber exatamente por quê), encaramos esse prazer menos intenso como possuindo um caráter de valor muito alto; sentimos que ele é especialmente liberador e enobrecedor. Além disso, a pilhéria feita por humor não é o essencial. Ela tem apenas o valor de algo preliminar. O principal é a intenção que o humor transmite, esteja agindo em relação quer ao eu quer as outras pessoas. Significa: ‘Olhem! Aqui está o mundo, que parece tão perigoso! Não passa de um jogo de crianças, digno apenas de que sobre ele se faça uma pilhéria!’ Se é realmente o superego que, no humor, fala essas bondosas palavras de conforto ao ego intimidado, isso nos ensinará que ainda temos muito a aprender sobre a natureza do superego. Ademais, nem todas as pessoas são capazes da atitude humorística. Trata-se de um dom raro e precioso, e muitas sequer dispõem da capacidade de fruir o prazer humorístico que lhes é apresentado. E finalmente, se o superego tenta, através do humor, consolar o ego e protegê-lo do sofrimento, isso não contradiz sua origem no agente paterno. UMA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA (1928 [1927]) EIN RELIOGIÖSES ERLEBNIS (a) EDIÇÕES ALEMÃS: 1928 Imago, 14 (1), 7-10. 1928 G.S., 11, 467-70. 1928 Almanach 1929, 9-12. 1948 G.W., 14, 393-6. (b) TRADUÇÃO INGLESA: ‘A Religious Experience’ 1929 Int. J. Psycho-Anal., 10 (1), 1-4 (Tradutor não especificado.) 1950 C.P., 5, BDC-F. (Trad. de James Strachey.) A presente tradução inglesa é reimpressão ligeiramente corrigida da publicada em 1950. Este artigo, publicado em princípios de 1928, foi escrito, segundo Ernest Jones (1957, 151), em fins de 1927. A visita de Viereck a Freud, ponto de partida dos acontecimentos que levaram à redação do artigo, ocorreu, conta-nos Jones (ibid., 133), em fins de junho de 1926. Viereck (jornalista norteamericano bastante conhecido e interessado pela psicánalise) publicou seu relato da visita no outono do ano seguinte, relato reimpresso num volume, Glimpses of the Great (1930, 28 e segs.), e do qual alguns extratos são fornecidos por Jones (loc. cit.). Note-se que o texto da carta do médico americano a Freud não concorda exatamente com a versão alemã. A versão inglesa aqui fornecida constitui reimpressão da que foi originalmente apresentada no International Journal, havendo razões para supor que os redatores deste utilizaram uma cópia do autógrafo inglês da carta, da qual Freud não dera uma transcrição inteiramente exata. As diferença entre as duas versões, contudo, são insignificantes. UMA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA No outono de 1927. G.S. Viereck, jornalista teuto-americano que me fizera uma visita de boasvindas, publicou o relato de uma conversa comigo, no correr do qual mencionou minha falta de fé religiosa e minha indiferença quando ao tema da sobrevivência depois da morte. Essa ‘entrevista’, como foi chamada, foi amplamente lida e trouxe-me, entre outras, a seguinte carta de um médico americano: ‘…O que mais me impressionou foi sua resposta à pergunta sobre se acreditava numa sobrevivência da personalidade depois da morte. Consta que o senhor disse: “Não penso no assunto.” ‘Escrevo-lhe agora para narrar-lhe uma experiência que tive no ano em que me formei na Universidade de X. Certa tarde, ao atravessar a sala de dissecção, minha atenção foi atraída por uma velhinha de rosto suave que estava sendo conduzida para uma mesa de dissecção. Essa mulher de rosto suave me causou tal impressão que um pensamento atravessou minha mente: “Não existe Deus; se existisse, não permitiria que essa pobre velhinha fosse levada a sala de dissecção.” ‘Quando voltei para casa naquela tarde, o sentimento que experimentara à visão na sala de dissecção, fizera-me decidir não mais continuar indo à igreja. As doutrinas do cristianismo, antes disso, já tinham sido objeto de dúvidas em meu espírito. ‘Enquanto meditava sobre o assunto, uma voz falou-me à alma que “eu deveria considerar o passo que estava a ponto de dar”. Meu espírito replicou a essa voz interior: “Se eu tivesse a certeza de que o cristianismo é verdade e que a Bíblia é a Palavra de Deus, então eu os aceitaria.” ‘No decorrer das semanas seguintes, Deus tornou claro à minha alma que a Bíblia era Sua Palavra, que os ensinamentos a respeito de Jesus Cristo eram verdadeiros e que Jesus era nossa única salvação. Após uma revelação tão clara, aceitei a Bíblia como sendo a Palavra de Deus, e Jesus Cristo, como meu Salvador pessoal. Desde então, Deus Se revelou a mim por meio de muitas provas infalíveis. ‘Imploro-lhe, como um irmão na medicina, para refletir sobre esse tema tão importante e, posso garantir-lhe, se considerá-lo com a mente aberta, Deus revelará a verdade à sua alma, assim como fez comigo e com uma infinidade de outros.’Enviei-lhe uma resposta polida, dizendo que ficava contente em saber que essa experiência o havia capacitado a manter sua fé. Quando a mim, Deus não fizera o mesmo comigo. Nunca me permitira escutar uma voz interior e se, em vista da minha idade, não se apressasse, não seria culpa minha se eu permanecesse até o fim de minha vida o que agora sou - ‘an infidel jew’1 (um judeu infiel). Quando de uma resposta amistosa, meu colega garantiu-me que ser judeu não constituía obstáculo no caminho para a fé verdadeira e provou isso com diversos exemplos. Sua carta culminava com a informação de que preces estavam sendo convictamente endereçadas a Deus, a fim de que me concedesse a ‘faith to believe’ (fé para crer). Ainda estou esperando o resultado dessa intercessão. Enquanto isso, a experiência religiosa de meu colega fornece substância para reflexão. Parece-me exigir uma certa tentativa de interpretação baseada em motivos emocionais, pois sua experiência é, em si mesma, enigmática, e baseada numa lógica particularmente ruim. Deus, como bem sabemos, permite que aconteçam horrores nada semelhantes à remoção para a sala de dissecção do cadáver de uma velhinha de aparência agradável. Isso é verdade desde sempre, e também deve ter sido enquanto o meu colega americano conduzia seus estudos. Tampouco, como estudante de medicina, pôde ficar tão abrigado do mundo, a ponto de nada conhecer de tais males. Por que, então, sua indignação contra Deus irrompeu precisamente ao receber essa impressão específica na sala de dissecção? Para quem quer que esteja acostumado a encarar analiticamente as experiências internas e as ações dos homens, a explicação é muito óbvia - tão óbvia, que na realidade se insinuou em minha rememoração dos próprios fatos. Certa vez, quando me referia à carta de meu piedoso colega no decorrer de um debate, disse que ele escrevera que o rosto da mulher morta fizera-o lembrar-se do rosto de sua própria mãe. Na realidade, essas palavras não constavam de sua carta e uma curta reflexão bastará para mostrar que elas não tinham possibilidade de estar lá. Mas essa é a explicação a que somos irresistivelmente forçados por sua descrição afetuosamente enunciada da ‘sweetfaced dear old woman’ (velhinha de rosto suave). Dessa maneira, a fraqueza de julgamento demonstrada pelo jovem médico deve ser explicada pela emoção nele despertada pela lembrança de sua mãe. É difícil fugir ao mau hábito psicanalítico de apresentar como prova pormenores que também permitiriam explicações mais superficiais - e fico tentado a recordar o fato de que posteriormente meu colega se dirigiu a mim como ‘brother physician’ (irmão na medicina)Podemos supor, portanto, que foi assim que as coisas aconteceram. A visão de um cadáver de mulher, nu ou a ponto de ser despido, recordou ao jovem sua mãe. Despertou nele um anseio pela mãe que se originava de seu complexo de Édipo, e isso foi imediatamente completado por um sentimento de indignação contra o pai. Suas idéias de ‘pai’ e ‘Deus’ ainda não se tinham separado inteiramente, de modo que seu desejo de destruir o pai podia tornar-se consciente como dúvida a respeito da existência de Deus e procurar justificar-se aos olhos da razão como indignação com o mau trato dado a um objeto materno. Naturalmente, é típico do filho considerar como mau trato o que o pai faz à mãe nas relações sexuais. O novo impulso, deslocado para a esfera da religião, constituía apenas uma repetição da situação edipiana e, conseqüentemente, logo se defrontou com uma sorte semelhante, ou seja, sucumbiu a uma poderosa corrente oposta. Durante o conflito real, o nível do deslocamento não foi sustentado: não há menção de argumentos em justificação de Deus, não nos é dito quais foram os sinais infalíveis pelos quais Deus provou sua existência ao que duvidava. O conflito parece ter-se desdobrado sob a forma de uma psicose alucinatória: escutaram-se vozes interiores que enunciaram advertências contra a resistência a Deus. Mas o resultado da luta foi mais uma vez apresentado na esfera da religião, e era de um tipo predeterminado pelo destino do complexo de Édipo: submissão completa à vontade de Deus Pai. O jovem tornou-se crente e aceitou tudo o que desde a infância lhe havia sido ensinado sobre Deus e Jesus Cristo. Tivera uma experiência religiosa e experimentaria uma conversão. Tudo isso é tão simples e direto que não podemos deixar de nos perguntar se pela compreensão desse caso lançamos qualquer luz sobre a psicologia da conversão em geral. Posso indicar ao leitor um admirável livro sobre o assunto, de autoria de Sante de Sanctis (1924), o qual, incidentalmente, leva em consideração todas as descobertas da psicanálise. O estudo dessa obra confirma nossa expectativa de que, de modo algum, todos os casos de conversão podem ser compreendidos tão simplesmente quanto esse. Em aspecto algum, contudo, nosso caso contradiz as opiniões sobre o assunto a que se chegou pela pesquisa moderna. O ponto que nossa observação presente coloca em relevo é a maneira pela qual a conversão se ligou a um evento determinante específico, o qual fez com que o ceticismo do indivíduo flamejasse uma última vez, antes de se extinguir finalmente. DOSTOIEVSKI E O PARRICÍDIO (1928 [1927]) NOTA DO EDITOR INGLÊS DOSTOJEWSKI UND DIE VATERTÖTUNG (a) EDIÇÕES ALEMÃS: 1928 Em Die Urgestalt der Bruder Karamasof, ed. R. Fülöp-Miller e F. Eckstein, Munique. Págs. xi-xxxvi. 1929 Almanach 1930, 9-31. 1934 G.S., 12, 7-26. 1948 G.W., 14, 399-418. (b) TRADUÇÕES INGLESAS: ‘Dostoevski and Parricide’ 1929 The Realist, 1 (4), 18-33. (Trad. de D. F. Trait.)-’Dostoevski and Parricide’ 1945 Int. J. Psycho-anal, 26 (1 & 2), 1-8. (A mesma que a anterior, consideravelmente revista e com título ligeiramente modificado.) 1945 Partisan Review, 12 (4), 530-44.(Reimpre-ssão da anterior.) 1947 Em Stavrogin’s Confession, de F.M. Dostoevsky, trad. de V. Woolf e Koteliansky, Nova Iorque, Lear Publications, 87-114. (Reimpressão da anterior.) 1950 C.P., 5, 222-42. (Nova revisão da anterior.) A presente tradução inglesa é reimpressão ligeiramente corrigida da de 1950. A partir de 1925, Fülöp-Miller e Eckstein começaram a lançar uma série de volumes suplementares à grande edição alemã completa da obra de Dostoievski, a qual, coordenada por Moeller van den Bruck, tinha sido completada alguns anos antes. Os novos volumes, uniformes com a edição completa, continham trabalhos póstumos, esboços inacabados e material oriundo de diversas fontes a lançar luz sobre o caráter e as obras de Dostoievski. Um desses volumes deveria conter uma compilação de rascunhos e esboços preliminares referentes a Os Irmãos Karamassovi e um estudo das fontes do livro, e os editores estavam ansiosos por persuadir Freud a contribuir com uma introdução que tratasse da psicologia tanto do livro quanto de seu autor. Parece que o abordaram em princípios de 1926, e ele começou a escrever o ensaio por volta do fim de junho do mesmo ano. Foi dele desviado, contudo, pela necessidade urgente de redigir seu opúsculo sobre a análise leiga (1926e) em vista do processo iniciado contra Theodor Reik (Standard Ed., 20, 180). Depois disso, parece ter perdido o interesse pelo ensaio sobre Dostoievski, particularmente, conforme Jones nos conta (1957, 152), após ter-se deparado com um livro sobre o mesmo assunto, da autoria de Neufeld (1923), o qual, como diz em,ver ([1]) - com considerável modéstia, é de se notar -, continha a maioria das idéias que ele mesmo estava apresentando. Não fica claro quando retomou o ensaio. Jones (loc. cit.) sugere que foi acabado em princípios de 1927, mas parece pouco provável, visto a história de Stefan Zweig a que a última parte do ensaio se refere só ter aparecido em 1927. O volume ao qual o ensaio de Freud serviu de introdução (A Versão Original de Os Irmãos Karamassovi) só foi publicado no outono de 1928. O ensaio divide-se em duas partes distintas. A primeira trata do caráter de Dostoievski em geral, de seu masoquismo, seu sentimento de culpa, seus ataques ‘epileptóides’ e sua dúplice atitude no complexo de Édipo. O segundo debate o tema especial de sua paixão pelo jogo e conduz à de um conto de Stefan Zweig que lança luz sobre a gênese desse vício. Como se verá por uma carta subseqüente de Freud a Theodor Reik, que imprimimos como apêndice ver ([1]), as duas partes do ensaio estão mais estreitamente relacionadas do que superficialmente parece. O presente ensaio pode apresentar sinais de ser uma peça ‘ocasional’, mas contém muitas coisas de interesse, tais como, por exemplo, o primeiro exame realizado por Freud das crises histéricas, desde seu primeiro artigo sobre o assunto, escrito vinte anos antes (1909a), um reenunciado de suas últimas opiniões sobre o complexo de Édipo e o sentimento de culpa, e um esclarecimento sobre o problema da masturbação que não se encontra em sua descrição anterior do assunto (1912f). Acima de tudo, porém, Freud teve aqui a oportunidade de expressar seus pontos de vista sobre um escritor que considerava como um dos primeiros entre todos. DOSTOIEVSKI E O PARRICÍDIO Quatro facetas podem ser distinguidas na rica personalidade de Dostoievski: o artista criador, o neurótico, o moralista e o pecador. Como encontrar o caminho nessa desnorteadora complexidade? O artista criador é o menos duvidoso: o lugar de Dostoievski não se encontra muito atrás de Shakespeare. Os Irmãos Karamassovi são o mais grandioso romance jamais escrito; quanto ao episódio do Grande Inquisidor, um dos pontos culminantes da literatura mundial, dificilmente qualquer valorização será suficiente. Diante do problema do artista criador, a análise, ai de nós, tem de depor suas armas. O moralista em Dostoievski é o aspecto mais facilmente acessível. Se procurarmos colocá-lo num elevado plano enquanto moralista, alegando que só um homem que passou pelas profundezas do pecado pode atingir o mais alto cume da moralidade, negligenciaremos uma dúvida que surge. O homem moral é aquele que reage à tentação tão logo a sente em seu coração, sem submeter-se a ela. Um homem que alternadamente peca e depois, em seu remorso, erige altos padrões morais, fica exposto à censura de tornar as coisas fáceis demais para si. Não alcançou a essência da moralidade, a renúncia, pois a conduta moral de vida é um interesse humano prático. Faz-nos lembrar dos bárbaros das grandes migrações, que matavam e faziam penitência por matarem, até que a penitência se transformou numa técnica real para permitir que o homicídio fosse cometido. Ivan, o Terrível, comportava-se exatamente desse modo; na verdade, essa transigência com a moralidade constitui um traço russo característico. Tampouco o resultado final das batalhas morais de Dostoievski foi muito glorioso. Depois das mais violentas lutas para reconciliar as exigências instintuais do indivíduo com as reivindicações da comunidade, veio a cair na posição retrógrada de submissão à autoridade temporal e à espiritual, de veneração pelo czar e pelo Deus dos cristãos, e de um estreito nacionalimo russo - posição a que mentes inferiores chegaram com menor esforço. Esse é o ponto fraco dessa grande personalidade. Dostoievski jogou fora a oportunidade de se tornar mestre e libertador da humanidade e se uniu a seus carcereiros. O futuro da civilização humana pouco terá por que lhe agradecer. Parece provável que sua neurose o tenha condenado a esse fracasso. A grandeza de sua inteligência e a intensidade de seu amor pela humanidade poderiam ter-lhe aberto outro caminho de vida, um caminho apostólico.Considerar Dostoievski como pecador ou criminoso desperta oposição violenta, que não precisa basear-se numa apreciação filistéia dos criminosos. O motivo real para essa oposição logo se torna visível. Num criminoso, dois traços são essenciais: um egoísmo sem limites e um forte impulso destrutivo. Comum a ambos, e condição necessária para sua expressão, é a ausência de amor, a falta de uma apreciação emocional de objetos (humanos). Imediatamente nos recordamos do contraste que a isso é apresentado por Dostoievski - sua grande necessidade de amor e sua enorme capacidade de amar, que podem ser constatadas em manisfestações de bondade exagerada e que o levaram a amar e a ajudar onde tinha direito de odiar e ser vingativo, tal como, por exemplo, em seus relacionamentos com a primeira esposa e o amante dela. Assim sendo, é lícito perguntar por que ficar tentado a classificar Dostoievski entre os criminosos. A resposta é que isso provém não só de sua escolha de material, que isola de todas as outras as personagens violentas, homicidas e egoístas, indicando assim a existência de tendências semelhantes dentro dele próprio, como também de certos fatos de sua vida, tais como sua paixão pelo jogo e sua possível confissão de um ataque sexual a uma garotinha. A contradição é solucionada pela compreensão de que o instinto destrutivo muito intenso de Dostoievski, que facilmente poderia tê-lo transformado num criminoso, foi, em sua vida real, dirigido principalmente contra sua própria pessoa (para dentro, em vez de para fora), encontrando assim sua expressão como masoquismo e sentimento de culpa. Não obstante, sua personalidade reteve traços sádicos em abundância, os quais se mostram em sua irritabilidade, em seu amor de atormentar e em sua intolerância inclusive para com as pessoas que amava, aparecendo também na maneira pela qual, como autor, ele trata seus leitores. Assim, nas coisas mínimas, era um sádico para com os outros, e, nas maiores, um sádico para consigo mesmo, na verdade, um masoquista, vale dizer, a pessoa mais branda, bondosa e prestimosa possível.Selecionamos, da complexa personalidade de Dostoievski, três fatores, um quantitativo e dois qualitativos: a extraordinária intensidade de sua vida emocional, sua disposição instintual inata e pervertida, que inevitavelmente o marcava para ser um sado-masoquista ou um criminoso, e seus dotes artísticos inanalisáveis. Essa combinação poderia muito bem existir sem neurose: há pessoas que são masoquistas completas sem serem neuróticas. Não obstante, o equilíbrio de forças entre suas exigências instintuais e as inibições que se lhes opunham (mais os métodos disponíveis de sublimação) tornariam mesmo assim necessário classificar Dostoievski como sendo aquilo que é denominado de ‘caráter instintual’. Contudo, a posição é obscurecida pela presença simultânea da neurose, a qual, como dissemos, não era, nas circunstâncias, inevitável, mas que surge à existência tão mais prontamente quanto mais rica é a complicação que tem de ser dominada pelo ego, pois a neurose, afinal de contas, é apenas um indício de que o ego não conseguiu fazer uma síntese, e de que, ao tentar fazê-la, perdeu sua unidade. Como, então, falando estritamente, se apresenta sua neurose? Dostoievski considerava-se epiléptico e era encarado como tal por outras pessoas, por causa de suas graves crises, acompanhadas por perda de consciência, convulsões musculares e depressão subseqüente. Ora, é altamente provável que essa chamada epilepsia constituísse apenas um sintoma de sua neurose e devesse, por conseguinte, ser classificada como histeroepilepsia, ou seja, como histeria grave. Não podemos ter certeza absoluta sobre esse ponto por dois motivos: em primeiro lugar, porque os dados anamnésicos da suposta epilepsia de Dostoievski são deficientes e imerecedores de confiança; em segundo, porque nossa compreensão dos estados patológicos combinados com crises epileptiformes é imperfeita. Tomando o segundo motivo em primeiro lugar, é desnecessário reproduzir aqui toda a patologia da epilepsia, já que ela não lançaria uma luz decisiva sobre o problema; pelo menos, porém, pode-se dizer o seguinte. O antigo morbus sacer ainda está em evidência como entidade clínica ostensiva, a misteriosa enfermidade com as suas crises convulsivas incalculáveis e aparentemente não provocadas, sua transformação do caráter em irritabilidade e agressividade, e sua diminuição progressiva de todas as faculdades mentais. Mas falta muito em precisão aos traços gerais desse quadro. As crises, tão selvagens em seu início, acompanhadas por mordidas de língua, incontinência de urina, e evoluindo para o perigoso status epilepticus, com seu risco de graves autodanos, podem, não obstante, ser reduzidas a rápidos períodos de absence, crises de vertigem que passam logo, ou ser substituídas por curtos espaços de tempo durante os quais o paciente faz algo que está fora de seu caráter, como se se achasse sob o controle do inconsciente. Essas crises, embora via de regra determinadas, de uma maneira que não compreendemos, por causas puramente físicas, podem, entretanto, dever seu primeiro aparecimento a alguma causa puramente mental (um susto, por exemplo), ou reagir sob outros aspectos a excitações mentais. Embora uma deterioração intelectual característica possa acontecer na maioria esmagadora dos casos, pelo menos nos é conhecido um caso (o de Helmholtz) em que a moléstia não interferiu na mais elevada realização intelectual. (Outros casos a cujo respeito a mesma afirmação foi feita são discutíveis ou abertos às mesmas dúvidas que o caso do próprio Dostoievski.) As pessoas vítimas de epilepsia podem dar uma impressão de obtusidade e desenvolvimento interrompido, tal como a enfermidade freqüentemente acompanha a idiotia mais palpável e os mais grosseiros defeitos cerebrais, ainda que não como componente necessário do quadro clínico. Mas essas crises, com todas as suas variações, também ocorrem em outras pessoas que apresentam um desenvolvimento mental completo e, se algo mais, uma vida emocional excessiva, via de regra insuficientemente controlada. Não é de admirar que, nessas circunstâncias, tenha sido considerado impossível sustentar que a ‘epilepsia’ constitui uma entidade clínica isolada. A semelhança que encontramos nos sintomas manifestos parece exigir uma visão funcional deles. É como se houvesse sido disposto organicamente um mecanismo para a descarga instintual anormal, de que se poderia fazer uso em circunstâncias inteiramente diferentes, tanto no caso de distúrbios de atividade cerebral devido a graves afecções histolíticas ou tóxicas, quanto no de um controle inadequado sobre a economia mental, e, às vezes, quando a atividade da energia que opera na mente atinge o ponto de crise. Por trás dessa dicotomia, temos um vislumbre da identidade do mecanismo subjacente de descarga instintual. Tampouco pode esse mecanismo estar afastado dos processos sexuais, fundamentalmente de origem tóxica: os antigos médicos descreviam o coito como uma pequena epilepsia, reconhecendo assim no ato sexual uma mitigação e adaptação do método epiléptico de descarregar estímulos. A ‘reação epiléptica’, como esse elemento comum pode ser chamado, também está indubitavelmente à disposição da neurose, cuja essência reside em livrar-se, através de meios somáticos, de quantidades de excitação com as quais não pode lidar psiquicamente. Assim, a crise epiléptica se transforma num sintoma de histeria, sendo por ela adaptada e modificada, tal como é pelos processos sexuais normais de descarga. É, portanto, inteiramente correto distinguir entre epilepsia orgânica e epilepsia ‘afetiva’. A significação prática disso é a de que uma pessoa que sofre do primeiro tipo tem uma moléstia do cérebro, ao passo que a que padece do segundo é neurótica. No primeiro caso, sua vida mental está sujeita a uma perturbação estranha, oriunda de fora; no segundo, o distúrbio é expressão de sua própria vida mental. É extremamente provável que a epilepsia de Dostoievski tenha sido do segundo tipo. Falando estritamente, isso não pode ser provado. Para fazê-lo, precisaríamos estar em posição de inserir o primeiro aparecimento das crises e suas flutuações subseqüentes no encadeamento de sua vida mental, e, para tanto, conhecemos muito pouco. A descrição das próprias crises nada nos informa, e nossas informações sobre as relações entre elas e as experiências de Dostoievski são deficientes e, com freqüência, contraditórias. A suposição mais provável é a de que as crises remontavam muito atrás em sua infância, que seu lugar foi ocupado, de início, por sintomas mais brandos e que não assumiram forma epiléptica até depois da experiência dilaceradora de seu décimo oitavo ano de vida: o assassinato de seu pai. Viria muito a propósito se pudesse ser estabelecido que elas cessaram completamente durante seu exílio na Sibéria, mas outros relatos contradizem isso. A inequívoca vinculação existente entre o assassínio do pai em Os Irmãos Karamassovi e a sorte do próprio pai de Dostoievski já impressionou mais de um de seus biógrafos e os levou a se referirem a ‘certa moderna escola de psicologia’. Do ponto de vista da psicanálise (pois é a ela que se referem), somos tentados a ver nesse acontecimento o trauma mais severo e a encarar a reação de Dostoievski a ele como o ponto decisivo de sua neurose. Mas se eu empreender dar substância psicanalítica a essa opinião, correrei o perigo de me tornar ininteligível para todos os leitores que não estão familiarizados com a linguagem e as teorias da psicanálise. Dispomos de um ponto de partida seguro. Conhecemos o significado das primeiras crises que Dostoievski sofreu em seus primeiros anos, muito antes da incidência da ‘epilepsia’. Essas crises tinham a significação de morte; eram anunciadas por um temor da morte e consistiam em estados sonolentos, letárgicos. A moléstia o acometeu pela primeira vez quando ainda menino, sob a forma de uma melancolia súbita e infundada, uma sensação, como mais tarde contou a seu amigo Soloviev, de que iria morrer ali mesmo. E, na realidade, seguia-se um estado exatamente semelhante à morte real. Seu irmão Andriei conta que, mesmo quando ainda muito moço, Fiodor costumava deixar espalhadas pequenas anotações antes de dormir, dizendo que tinha medo de poder cair, durante a noite, num sono semelhante à morte; assim, implorava que seu enterro fosse adiado por cinco dias. (Fülöp-Miller e Eckstein, 1925, lx.) Conhecemos o significado e a intenção dessas crises semelhantes à morte. Significam uma identificação com uma pessoa morta, seja com alguém que está realmente morto ou com alguém que ainda está vivo e que o indivíduo deseja que morra. O último caso é o mais significativo. A crise possui então o valor de uma punição. Quisemos que outra pessoa morresse; agora somos nós essa outra pessoa e estamos mortos. Nesse ponto, a teoria psicanalítica introduz a afirmação de que, para um menino, essa outra pessoa geralmente é o pai, e de que a crise (denominada de histérica) constitui assim uma autopunição por um desejo de morte contra um pai odiado. O parricídio de acordo com uma conceituação bem conhecida, é o crime principal e primevo da humanidade, assim como do indivíduo. (Ver meu Totem e Tabu, 1912-13.) É, em todo caso, a fonte principal do sentimento de culpa, embora não saibamos se a única; as pesquisas ainda não conseguiram estabelecer com certeza a origem mental da culpa e da necessidade de expiação. Mas não lhe é necessário ser a única. A situação psicológica é complicada e exige elucidação. O relacionamento de um menino com o pai é, como dizemos, ‘ambivalente’. Além do ódio que procura livrar-se do pai como rival, uma certa medida de ternura por ele também está habitualmente presente. As duas atitudes mentais se combinam para produzir a identificação com o pai; o menino deseja estar no lugar do pai porque o admira e quer ser como ele, e também por desejar colocá-lo fora do caminho. Todo esse desenvolvimento se defronta com um poderoso obstáculo. Em determinado momento, a criança vem a compreender que a tentativa de afastar o pai como rival seria punida por ele com a castração. Assim, pelo temor à castração - isto é, no interesse de preservar sua masculinidade - abandona seu desejo de possuir a mãe e livrar-se do pai. Na medida em que esse desejo permanece no inconsciente, constitui a base do sentimento de culpa. Acreditamos que o que aqui descrevemos, são processos normais, o destino normal do chamado ‘complexo de Édipo’; não obstante, exige uma importante amplificação. Uma outra complicação surge quando o fator constitucional que denominamos de bissexualidade se acha, comparativamente, fortemente desenvolvido numa criança, porque então, sob a ameaça à masculinidade do menino, por meio da castração, sua inclinação é fortalecida a divergir no sentido da feminilidade, a colocar-se no lugar da mãe e a assumir o papel desta como objeto do amor do pai. Mas o temor à castração torna essa solução também impossível. O menino entende que também deve submeter-se à castração, se deseja ser amado pelo pai como se fosse uma mulher. Dessa maneira, ambos dos impulsos, o ódio pelo pai e o amor pelo pai, experimentam repressão. Há uma certa distinção psicológica do fato de o ódio pelo pai ser abandonado por causa do temor a um perigo externo (castração), ao passo que o amor pelo pai é tratado como um perigo interno, embora, fundamentalmente, remonte ao mesmo perigo externo. O que torna inaceitável o ódio pelo pai é o temor a este; a castração é terrível, seja como punição ou como preço do amor. Dos dois fatores que reprimem o ódio pelo pai, o primeiro, ou seja, o medo direto da punição e da castração, pode ser chamado de anormal; sua intensificação patogênica só parece surgir com o acréscimo do segundo fator, o temor à atitude feminina. Dessa maneira, uma forte disposição bissexual inata se torna uma das precondições ou reforços da neurose. Uma disposição desse tipo deve ser certamente suposta em Dostoievski, e ela se mostra sob forma viável (como homossexualismo latente) no importante papel desempenhado pelas amizades masculinas na vida dele, em suas atitudes estranhamente ternas para com rivais no amor e em sua notável compreensão de situações que só são explicáveis pelo homossexualismo reprimido, como muitos exemplos extraídos de seus romances demonstram. Lamento, embora não possa alterar os fatos, que essa exposição das atitudes de amor e ódio para com o pai e as transformações delas sob a ameaça da castração pareça desagradável e incrível a leitores não familiarizados com a psicanálise. Eu deveria esperar que era precisamente o complexo de castração que estava fadado a despertar o repúdio mais geral. Mas posso apenas insistir em que a experiência psicanalítica colocou especificamente esse assunto para além do alcance da dúvida e nos ensinou a reconhecer nele a chave para toda neurose. É essa chave, então, que temos de aplicar à chamada epilepsia de nosso autor. Como são estranhas à nossa consciência as coisas pelas quais nossa vida mental inconsciente é governada! Mas o que foi dito até agora não esgota as conseqüências da repressão do ódio pelo pai no complexo de Édipo. Há algo de novo a ser acrescentado, a saber: que, apesar de tudo, a identificação com o pai finalmente constrói um lugar permanente para si mesma no ego. É recebida dentro deste, mas lá se estabelece como um agente separado, em contraste com o restante do conteúdo do ego. Damoslhe então o nome de superego e atribuímos-lhe, como herdeiro da influência parental, as funções mais importantes. Se o pai foi duro, violento e cruel, o superego assume dele esses atributos e nas relações entre o ego e ele, a passividade que se imaginava ter sido reprimida é restabelecida. O superego se tornou sádico e o ego se torna masoquista, isto é, no fundo, passivo, de uma maneira feminina. Uma grande necessidade de punição se desenvolve no ego, que em parte se oferece como vítima ao destino e em parte encontra satisfação nos maus tratos que lhe são dados pelo superego (isto é, no sentimento de culpa), pois toda punição é, em última análise, uma castração, e, como tal, realização da antiga atitude passiva para com o pai. Mesmo o Destino, em última instância, não passa de uma projeção tardia do pai. Os processos normais da formação da consciência devem ser semelhantes aos anormais, aqui descritos. Ainda não conseguimos fixar a linha limítrofe entre eles. Observar-se-á que, aqui, a parcela maior no resultado é atribuída ao componente passivo de feminilidade reprimida. Além disso, deve ser de importância, como fator acidental, que o pai, que é temido em qualquer caso, seja também especialmente violento na realidade. Isso foi verdadeiro no caso de Dostoievski e podemos fazer remontar a origem de seu extraordinário sentimento de culpa e de sua conduta de vida masoquista a um componente feminino especialmente intenso. Assim, a fórmula para Dostoievski é a seguinte: uma pessoa com uma disposição bissexual inata especialmente intensa, que pode defender-se com intensidade especial contra a dependência de um pai especialmente severo. Essa característica de bissexualidade surge como acréscimo aos componentes de sua natureza que já identificamos. Seus sintomas precoces de crises semelhantes à morte podem ser assim compreendidos como uma identificação paterna por parte de seu ego, a qual é permitida pelo superego como punição. ‘Você queria matar seu pai, a fim de ser você mesmo o pai. Agora, você é seu pai, mas um pai morto’ - o mecanismo regular dos sintomas histéricos. E, além disso: ‘Agora, seu pai está matando você’. Para o ego, o sintoma da morte constitui uma satisfação, em fantasia, do desejo masculino e, ao mesmo tempo, uma satisfação masoquista; para o superego, trata-se de uma satisfação punitiva, isto é, uma satisfação sádica. Ambos, o ego e o superego, levam avante o papel de pai. Resumindo, a relação entre o indivíduo e o seu objeto paterno, embora retando seu conteúdo, foi transformada numa relação entre o ego e o superego - um novo cenário num novo palco. Reações infantis oriundas do complexo de Édipo como essas podem desaparecer se a realidade não lhes proporciona novo alimento. Mas o caráter do pai permaneceu o mesmo, ou melhor, se deteriorou com os anos, e assim o ódio de Dostoievski pelo pai e seu desejo de morte contra esse pai malvado foram mantidos. Ora, é algo perigoso a realidade atender a tais desejos reprimidos. A fantasia tornou-se realidade e todas as medidas defensivas são imediatamente reforçadas. As crises de Dostoievski assumiram então um caráter epiléptico; ainda, indubitavelmente, significavam uma identificação com o pai como punição, mas se tinham tornado terríveis, tais como a própria morte assustadora do pai. Qual outro conteúdo absorveram, especificamente qual conteúdo sexual, foge à conjetura. Uma coisa é digna de nota: na aura da crise epilépsia, um momento de felicidade suprema é experimentado. Pode bem ser um registro do triunfo e do sentimento de liberação experimentados ao escutar as notícias da morte, seguidos imediatamente por uma punição ainda mais cruel. Imaginamos exatamente essa seqüência de triunfo e de pesar, de alegria festiva e de luto, nos irmãos da horda primeva que mataram o pai, e encontramo-la repetida na cerimônia da refeição totêmica. Se se provasse que, no caso de Dostoievski, ele se libertou de suas crises na Sibéria, isso simplesmente daria substância à opinião de que elas eram sua punição. Não necessitava mais delas quando estava sendo castigado de outra maneira. Isso, porém, não pode ser provado. Essa necessidade de punição por parte da economia mental de Dostoievski antes explica o fato de ele ter passado inabalado por esses anos de tormento e humilhação. A condenação de Dostoievski como prisioneiro político foi injusta e ele deve ter sabido disso, mas aceitou o imerecido castigo das mãos do Paizinho, do Czar, como um substituto da punição que merecia por seu pecado contra o pai real. Em vez de se punir a si mesmo, conseguiu fazerse punir pelo representante paterno. Temos aqui um vislumbre da justificação psicológica das punições infligidas pela sociedade. É fato que grandes grupos de criminosos desejam ser punidos. O superego deles exige isso; assim se poupam a si mesmos a necessidade de se infligirem o castigo. Quem quer que esteja familiarizado com a complicada transformação de significado experimentada pelos sintomas histéricos, compreenderá que aqui não se pode fazer tentativa alguma para acompanhar o significado das crises de Dostoievski além desses começos. Basta podermos supor que seu significado original permaneceu inalterado por detrás de todos os acréscimos posteriores. Podemos com segurança dizer que Dostoievski nunca se libertou dos sentimentos de culpa oriundos de sua intenção de matar seu pai. Esses sentimentos também determinaram sua atitude nas duas outras esferas em que a relação paterna constitui o fator decisivo, ou seja, sua atitude para com a autoridade do Estado e para com a crença em Deus. Na primeira delas, findou pela completa submissão a seu Paizinho, o Czar, que outrora desempenhara com ele, na realidade, a comédia de matar que suas crises tão freqüentemente haviam representado em brincadeira. Aqui, a penitência levou a melhor. Na esfera religiosa, ele reteve mais liberdade: de acordo com relatórios aparentemente fidedignos, oscilou, até o último momento de sua vida, entre a fé e o ateísmo. Seu grande intelecto tornava-lhe impossível desprezar qualquer das dificuldades intelectuais a que a fé conduz. Através de uma recapitulação individual de um desenvolvimento da história mundial, esperou descobrir uma saída e uma libertação da culpa no ideal cristão e, mesmo, fazer uso de seus sofrimentos como reivindicação de estar representando um papel semelhante ao de Cristo. Se, em geral, não conseguiu a liberdade, tendo-se tornado um reacionário, isso se deveu ao fato de a culpa filial, que se acha presente nos seres humanos em geral e sobre a qual o sentimento religioso é construído, ter atingido nele uma intensidade superindividual e permanecido insuperável inclusive à sua grande inteligência. Escrevendo isso, expomonos à acusação de termos abandonado a imparcialidade da análise e sujeitado Dostoievski a julgamentos que só se podem justificar do ponto de vista particular de uma Westanschauung específica. Um conservador tomaria o partido do Grande Inquisidor e julgaria Dostoievski de modo diferente. A objeção é justa e só se pode dizer como desculpa que a decisão de Dostoievski tem toda a aparência de ter sido determinada por uma inibição intelectual devida à neurose. Dificilmente pode dever-se ao acaso que três das obras-primas da literatura de todos os tempos Édipo Rei, de Sófocles; Hamlet, de Shakespeare; e Os Irmãos Karamassovi, de Dostoievski - tratem todas do mesmo assunto, o parricídio. Em todas três, ademais, o motivo para a ação, a rivalidade sexual por uma mulher, é posto a nu. A mais direta é certamente a representação na tragédia da lenda grega. Nesta, ainda é o próprio herói que comete o crime. Mas, sem suavização e disfarce, o tratamento poético é impossível. A admissão nua de uma intenção de cometer parricídio, tal como aquela a que chegamos na análise, parece intolerável sem preparação analítica. O drama grego, embora mantendo o crime, introduz magistralmente a atenuação indispensável, projetando o motivo inconsciente do herói na realidade, sob a forma de uma compulsão por parte de um destino que lhe é estranho. O herói comete o ato sem intenção e, aparentemente, sem ser influenciado pela mulher; esse último elemento, contudo, é levado em consideração na circunstância de o herói só poder obter a posse da mãe-rainha depois de ter repetido seu feito sobre o monstro que simboliza o pai. Após sua culpa ter sido revelada e tornada consciente, o herói não faz qualquer tentativa de se eximir apelando para o expediente artificial da compulsão do destino. Seu crime é reconhecido e punido como se fosse um crime integral e consciente, algo fadado a parecer injusto à nossa razão, mas, psicologicamente correto. Na peça inglesa, a apresentação é mais indireta; o herói não comete o crime ele próprio; este é executado por outra pessoa, para quem não constitui parricídio. O motivo oculto da rivalidade sexual pela mulher, portanto, não precisa ser disfarçado. Ademais, vemos o complexo de Édipo do herói sob uma luz por assim dizer refletida, tomando conhecimento do efeito causado sobre ele pelo crime do outro. Deveria vingar esse crime, mas, de modo bastante estranho, descobre-se incapaz de fazê-lo. Sabemos que é seu sentimento de culpa que o paralisa, mas, de modo totalmente de acordo com os processos neuróticos, o sentimento de culpa é deslocado para a percepção de sua inaptidão em cumprir sua missão. Há sinais de que o herói sente essa culpa como superindividual. Ele despreza os outros não menos do que a si mesmo: ‘Dê a cada homem o que merece, e quem escapará do açoite?’ O romance russo vai um passo além na mesma direção. Aí também o homicídio é cometido por um outro. Esse outro, contudo, está, para com o assassinado, na mesma relação filial que o herói, Dimitri; no caso desse outro, o motivo da rivalidade sexual é abertamente admitido; trata-se de um irmão do herói e constitui fato digno de nota que Dostoievski lhe tenha atribuído sua própria doença, a suposta epilepsia, como se estivesse procurando confessar que o epiléptico, o neurótico nele próprio, era um parricida. Depois, então, no discurso de defesa no julgamento, ocorre a famosa zombaria da psicologia, como sendo uma ‘faca de dois gumes’, um disfarce esplêndido, pois basta invertê-lo para descobrir o significado mais profundo da visão que Dostoievski tinha das coisas. Não é a psicologia que merece a zombaria, mas o processo de investigação judicial. É indiferente saber quem realmente cometeu o crime; a psicologia se interessa apenas em saber quem o desejou emocionalmente e quem o recebeu com alegria quando foi cometido. E, por esse motivo, todos os irmãos, exceto a figura contrastada de Aliocha, são igualmente culpados - o sensual impulsivo, o cínico cético e o criminoso epiléptico. Em Os Irmãos Karamassovi há uma cena particularmente reveladora. No decorrer de sua conversa com Dimitri, o Padre Zossima reconhece que aquele está preparado para cometer parricídio e se ajoelha a seus pés. É impossível que isso possa ser entendido como expressão de admiração; tem de significar que o santo homem está rejeitando a tentação a desprezar ou detestar o assassino e, por isso, se humilha perante ele. A simpatia de Dostoievski pelo criminoso é, de fato, ilimitada; vai muito além da piedade a que o infeliz tem direito e nos faz lembrar do ‘temor sagrado’ com que os epilépticos e os lunáticos eram encarados no passado. Um criminoso, para ele, é quase um Redentor, que tomou sobre si próprio a culpa que, em outro caso, deveria ter sido carregada pelos outros. Não há mais necessidade de que alguém mate, visto que ele já matou, e há que ser-lhe grato; não fosse ele, ver-nos-íamos obrigados a matar. Isso não é apenas piedade bondosa, mas uma identificação com base em impulsos assassinos semelhantes - na realidade, um narcisismo ligeiramente deslocado. (Afirmando isso, não estamos discutindo o valor ético dessa benignidade.) Este pode talvez ser, de modo bastante geral, o mecanismo da simpatia benigna por outras pessoas,mecanismo passível de se discernir com facilidade especial no caso extremo de um romancista dominado pela culpa. Não há dúvida de que essa simpatia por identificação constituiu fator decisivo na determinação da escolha de material de Dostoievski. Ele tratou primeiramente do criminoso comum (cujos motivos são egoístas) e do criminoso político e religioso, sendo somente ao fim de sua vida que retornou ao criminoso primevo, ao parricida, e utilizou-o, numa obra de arte, para efetuar sua confissão. A publicação dos documentos póstumos de Dostoievski e do diário de sua esposa lançaram uma luz ofuscante sobre determinada fase de sua vida, a saber, o período na Alemanha, quando se mostrou obcecado pela mania do jogo (cf. Fülöp-Miller e Eckstein, 1925), impossível de ser considerada senão como um acesso inequívoco de paixão patológica. Não faltaram racionalizações para essa conduta fora do comum e indigna. Como freqüentemente sucede com neuróticos, o sentimento de culpa de Dostoievski tinha assumido forma tangível com se fosse um ônus de dívidas, e ele pôde refugiar-se no pretexto de estar tentando, com seus ganhos nas mesas de jogo, possibilitar a volta à Rússia sem ser preso pelos credores. Mas isso não foi mais do que um pretexto, e Dostoievski era suficientemente perspicaz para reconhecer o fato e bastante honesto para admiti-lo. Sabia que o importante era o jogo pelo amor ao jogo - le jeu pour le jeu. Todos os pormenores de sua conduta impulsivamente irracional demonstram isso, e algo mais também. Ele nunca descansava antes de ter perdido tudo. Para ele, o jogo era também um método de autopunição. Seguidamente fez à sua jovem esposa a promessa, ou deu-lhe sua palavra de honra, de não jogar mais ou de não jogar mais naquele dia específico, e, informa ela, quase sempre as rompeu. Quando suas perdas os reduziam à mais extrema necessidade, extraía disso uma segunda satisfação patológica. Podia então censurar-se e humilhar-se diante dela, convidá-la a desprezá-lo e a se lamentar por se ter casado com um velho pecador; quando havia assim aliviado sua consciência, recomeçava tudo no dia seguinte. A jovem esposa se acostumou a esse ciclo, porque observara que a única coisa que oferecia qualquer esperança real de salvação - a produção literária dele - nunca ia tão bem como quando perdiam tudo e empenhavam suas últimas posses. Naturalmente, ela não compreendia a conexão. Quando o sentimento de culpa dele ficava satisfeito pelos castigos que se havia infligido, a inibição incidente sobre seu trabalho se tornava menos grave e ele se permitia dar alguns passos ao longo da estrada do sucesso. Qual é a parte da infância, há muito tempo enterrada, de um jogador que força seu caminho à repetição na obsessão pelo jogo? A resposta pode ser percebida sem dificuldade numa história da autoria de um de nossos mais jovens escritores. Stefan Zweig, que, incidentalmente, dedicou ele próprio um estudo a Dostoievski (1920), incluiu em sua coletânea de três histórias, Die Verwirrung der Gefühle [Confusão de Sentimentos] (1927), uma a que denominou ‘Vierundzwanzig Stunden aus dem Leben einer Frau’ [‘Vinte e Quatro Horas na Vida de Uma Mulher’]. Essa pequena obra-prima dispõe-se, ostensivamente, apenas a demonstrar que criatura irresponsável é a mulher, e a que excessos, surpreendentes inclusive para ela, uma experiência inesperada pode impulsioná-la. Mas a história conta muito mais do que isso. Se for submetida a uma interpretação analítica, descobrir-se-á que representa (sem qualquer intenção apologética) algo inteiramente diferente, algo universalmente humano, ou antes, algo masculino. E essa interpretação é tão extremamente óbvia, que a ela não se pode resistir. É característico da natureza da criação artística que o autor, amigo pessoal meu, tenha podido garantir-me, quando lhe perguntei, que a interpretação que lhe apresentava era completamente estranha a seu conhecimento e intenção, embora alguns dos pormenores entremeados na narrativa parecessem expressamente destinados a fornecer a pista para um segredo. Nessa história, um senhora distinta e já idosa narra ao autor uma experiência que tivera, mais de vinte anos antes. Ficara viúva ainda jovem e mãe de dois filhos, que não mais precisavam de seus cuidados. Aos 42 anos, nada mais esperando da vida, aconteceu-lhe, numa de suas viagens sem destino, visitar o Cassino de Monte Carlo. Aí, entre todas as notáveis impressões produzidas pelo lugar, ficou logo fascinada pela visão de um par de mãos que pareciam revelar todos os sentimentos do infeliz jogador, com uma sinceridade e intensidade terrificantes. Essas mãos pertenciam a um belo jovem - o autor, como que sem intenção, dá-lhe a mesma idade que a do filho mais velho da narradora - que, depois de perder tudo, abandonou os salões de jogo no mais profundo desespero, com a intenção evidente de pôr fim à sua vida sem esperança nos jardins do Cassino. Um inexplicável sentimento de simpatia compeliu-a a segui-lo e a fazer todo esforço para salvá-lo. Ele a tomou por uma das importunas mulheres tão comuns naquele lugar, e tentou livrar-se dela, mas ela permaneceu com ele e se viu obrigada, da maneira mais natural possível, a ir encontrá-lo em seu apartamento no hotel e, finalmente, a partilhar de seu leito. Depois dessa improvisada noite de amor, ela exigiu do rapaz, que agora aparentemente se acalmara, um juramento solene de que nunca mais jogaria de novo, forneceu-lhe dinheiro para sua viagem de volta e prometeu encontrá-lo na estação, antes da partida do trem dele. Agora, contudo, ela começava a sentir uma grande ternura pelo jovem, dispunha-se a sacrificar tudo o que era seu a fim de preservá-lo, e tomou a decisão de partir com ele, em vez de lhe dizer adeus. Vários contratempos a retardaram, de maneira que ela perdeu o trem. Em seu anseio por aquele que acabava de perder, retornou aos salões de jogo e aí, para seu horror, viu mais uma vez as mãos que primeiramente tinham despertado sua simpatia: o infiel rapaz retornara ao jogo. Ela o fez lembrar-se de sua promessa mas, obcecado por sua paixão, o jovem a chamou de desmancha-prazeres, disse-lhe que fosse embora, arremessando-lhe o dinheiro com que tentara resgatá-lo. Em profunda mortificação, ela partiu às pressas. Mais tarde, descobriu que não conseguira salvá-lo do suicídio. Essa história, brilhantemente narrada e impecavelmente motivada, é, naturalmente, completa em si mesma, sendo certo produzir um efeito profundo no leitor. A análise, porém, nos mostra que sua invenção se baseia fundamentalmente numa fantasia plena de desejo pertencente ao período da puberdade, fantasia de que uma série de pessoas, na realidade, se lembra conscientemente. Ela corporifica o desejo do menino de que a própria mãe o inicie na vida sexual, a fim de salvá-lo dos temíveis danos causados pela masturbação. (As numerosas obras criativas que tratam do tema da redenção têm a mesma origem.) O ‘vício’ da masturbação é substituído pela inclinação ao jogo e a ênfase dada à atividade apaixonada das mãos revela essa derivação. Na verdade, a paixão pelo jogo constitui um equivalente da antiga compulsão a se masturbar; ‘brincar’ é a palavra real utilizada no quarto das crianças para descrever a atividade das mãos sobre os órgãos genitais. A natureza irresistível da tentação, as resoluções solenes, que, não obstante, são invariavelmente rompidas, de nunca fazê-lo de novo, o prazer entorpecedor e a consciência má que diz ao indivíduo que ele está se arruinando (cometendo suicídio) - todos esses elementos permanecem inalterados no processo de substituição. É verdade que a história de Zweig é contada pela mãe, não pelo filho. Deve ser lisonjeiro ao filho pensar: ‘se minha mãe soubesse em que perigos a masturbação me envolve, com certeza me salvaria deles, deixando que eu derramasse toda minha ternura em seu próprio corpo’. A igualização da mãe a uma prostituta, feita pelo rapaz da história vincula-se à mesma fantasia. Traz a mulher inatingível para um alcance fácil. A consciência má que acompanha a fantasia provoca o final infeliz da história. É também interessante observar como a façade que lhe é dada pelo autor parece disfarçar seu significado analítico, pois é extremamente discutível que a vida erótica das mulheres seja dominada por impulsos súbitos e misteriosos. Pelo contrário, a análise revela uma motivação apropriada para a surpreendente conduta dessa mulher, que até então se afastara do amor. Fiel à lembrança do marido morto, armara-se contra todas as atrações semelhantes, mas - e aqui a fantasia do filho se mostra correta - não escapou, como mãe, de sua transferência inteiramente inconsciente do amor para com seu filho, e o Destino pôde apanhá-la nesse ponto sem defesa. Se a inclinação ao jogo, com as lutas mal-sucedidas para romper o hábito e com as oportunidades que proporciona para autopunição, constitui uma repetição da compulsão a se masturbar, não nos surpreenderemos em descobrir que ela tenha ocupado um espaço tão grande na vida de Dostoievski. Afinal de contas, não encontramos casos de neurose grave em que a satisfação auto-erótica da primeira infância e da puberdade não tenha desempenhado um papel, e a relação entre os esforços para suprimi-la e o temor ao pai são por demais conhecidos para precisarem mais do que uma menção. APÊNDICE: UMA CARTA DE FREUD A THEODOR REIK [Alguns meses após a publicação do ensaio de Freud sobre Dostoievski, um exame dele, da autoria de Theodor Reik, apareceu em Imago (no segundo número de 1929, 15, 232-42). Embora os comentários de Reik fossem, em geral, favoráveis, argumentou com considerável amplitude que o julgamento de Freud sobre a moral de Dostoievski era injustificadamente severo e discordou também do que Freud escrevera sobre moralidade no terceiro parágrafo do ensaio. Também, incidentalmente, criticou a forma do ensaio, com sua conclusão aparentemente desvinculada. Após ler essas críticas, Freud enviou a Reik uma carta em resposta, e quando, não muito depois, este reimprimiu o artigo num livro de trabalhos coligidos (1930), Freud concordou com que sua carta também fosse incluída. Uma tradução inglesa da crítica e da resposta a ela foram posteriormente publicadas em From Thirty Year with Freud (Nova Iorque, 1940, e Londres, 1942), da autoria de Reik. É com a gentil permissão do Dr. Theodor Reik que publicamos a carta que Freud lhe dirigiu, numa tradução revisada.] 14 de abril de 1929 … Li a sua resenha crítica de meu estudo sobre Dostoievski com grande prazer. Todas as suas objeções merecem consideração e, em certo sentido, devem ser reconhecidas como apropriadas. Posso apresentar algo em minha defesa, mas, naturalmente, não se tratará de saber quem está certo ou errado. Acho que você está aplicando um padrão excessivamente alto a essa trivialidade. Foi escrita como um favor a outra pessoa, e escrita com relutância. Atualmente sempre escrevo com relutância. Não há dúvida de que você percebeu isso. Naturalmente, não vai aí qualquer intenção de desculpar juízos apressados ou falsos, mas simplesmente a descuidada arquitetura do ensaio como um todo. Não posso discutir o desarmonioso efeito produzido pelo acréscimo da análise de Zweig, mas um exame mais profundo talvez apresente certa justificação para ela. Se não tivesse sido atrapalhado por considerações a respeito do lugar em que meu ensaio deveria aparecer, certamente teria escrito: ‘Podemos esperar que, na história de uma neurose acompanhada por um sentimento de culpa tão severo, um papel especial seja desempenhado pela luta contra a masturbação. Essa expectativa é completamente atendida pela inclinação patológica de Dostoievski ao jogo, pois, como podemos ver num conto de autoria de Zweig (…) etc.’ Isso equivale a dizer que o espaço concedido ao conto não corresponde à relação ZweigDostoievski, mas a outra: masturbação-neurose. De qualquer maneira, o desfecho ficou desgracioso. Atenho-me com firmeza a uma avaliação social da ética cientificamente objetiva e, por esse motivo, não desejaria negar ao excelente filisteu um certificado de boa conduta ética, ainda que esta lhe tenha custado pouca autodisciplina. Ao lado disso, porém, consinto na validade da visão psicológica subjetiva da ética que você apóia. Embora concorde com seu julgamento do mundo e da humanidade, tal com hoje são, não posso, como bem sabe, encarar sua rejeição de um futuro melhor como justificada. Como você sugere, incluí Dostoievski psicólogo sob o artista criador. Outra objeção que poderia ter levantado contra ele, seria que sua compreensão interna estava muito restrita à vida mental anormal. Considere seu espantoso desamparo frente às manifestações do amor. Tudo de que realmente tomamos conhecimento são o desejo bruto e instintual, a submissão masoquista e o amor por piedade. Você tem razão, também, em desconfiar de que, a despeito de toda minha admiração pela intensidade e preeminência de Dostoievski, de fato não gosto dele. Isso se deve a que minha paciência com as naturezas patológicas está exaurida na análise. Na arte e na vida, não as tolero. Trata-se de traços caracterológicos que me são pessoais e não obrigam a outros. Onde vai publicar seu ensaio? Considero-o de alta qualidade. Só a pesquisa científica não deve possuir presunções. Em qualquer outra espécie de pensamento, a escolha de um ponto de vista não pode ser evitada, e, naturalmente, existem muitos deles … ALGUNS SONHOS DE DESCARTES: UMA CARTA A MAXIME LEROY (1929) NOTA DO EDITOR INGLÊS ÜBER DIE WEIBLICHE SEXUALITÄT (a) EDIÇÕES ALEMÃS: 1931 Int. Z. Psychoanal., 17 (3), 317-22. 1934 G.S., 12, 120-40. 1948 G.W., 14, 517-37. (b) TRADUÇÕES INGLESAS: ‘Female Sexuality’ 1932 Psychoanal. Quart., 1 (1), 191-209. (Trad. de E. B. Jackson.) 1932 Int. J. Psycho-Anal., 13 (3), 281-97. (Trad. de Joan Riviere.) 1950 C.P., 5, 252-72. (Reimpressão revista da anterior.) A presente tradução inglesa é versão modificada da publicada em 1950. O primeiro rascunho deste artigo parece ter sido escrito por volta do fim de fevereiro de 1931, mas só foi terminado no verão desse ano (Jones, 1957, 176). O presente estudo constitui um reenunciado das descobertas anunciadas por Freud seis anos antes, em seu trabalho sobre ‘Some Psychical Consequences of the Antomical Distinction between the Sexes’ (1925j), do qual um certo exame será encontrado na Nota do Editor Inglês àquela obra, Standard Ed., 19, 243. A publicação desse trabalho anterior provocou consideráveis repercussões entre os psicanalistas, especialmente, talvez, na Inglaterra, e elas podem ter estimulado Freud a retornar ao assunto. A última seção do presente artigo contém - coisa bastante fora do comum nos trabalhos de Freud - algumas críticas de uma série de outros artigos. E é curioso que ele pareça tratá-los como se esses trabalhos tivessem surgido espontaneamente e não, como era claramente o caso, como reação a seu próprio artigo um tanto revolucionário de 1925 - ao qual, na verdade, não faz aqui qualquer referência. Existem, contudo, um ou dois aspectos sob os quais esta obra amplia sua predecessora. Dá nova ênfase (obviamente com base em material clínico recente) à intensidade e longa duração da ligação pré-edipiana da menina à mãe. Contudo, de mais interesse, talvez, é o longo exame do elemento ativo na atitude da menina para com a mãe e na feminilidade em geral.Aproximadamente um ano depois do aparecimento deste artigo, Freud retornou ao tema da sexualidade feminina na Conferência XXXIII das New Introductory Lectures (1933a), que trata do assunto em linhas muito semelhantes às presentes, ainda que de maneira bastante menos técnica; termina, ademais, por um certo estudo das características das mulheres na vida adulta. ALGUNS SONHOS DE DESCARTES: UMA CARTA A MAXIME LEROY Ao considerar sua carta, em que me pede para examinar alguns sonhos de Descartes, o que primeiro senti foi uma impressão de desalento, pois trabalhar com sonhos sem poder obter da própria pessoa que sonhou quaisquer indicações sobre as relações passíveis de vinculá-los uns aos outros ou ligá-los ao mundo externo - e esse é claramente o caso quando se trata dos sonhos de uma figura histórica -, via de regra proporciona apenas um resultado pobre. No caso, minha tarefa mostrou ser mais fácil do que tinha previsto; não obstante, o fruto de minhas investigações sem dúvida lhe parecerá muito menos importante do que teria o direito de esperar. Os sonhos de nosso filósofo são aquilo que é conhecido como ‘sonhos vindos de cima’ (‘Traume von oben’), o que equivale a dizer que constituem formulações de idéias que poderiam ter sido criadas tão bem num estado de vigília quanto durante o estado de sono, e que apenas em certas partes derivaram seu conteúdo de estados mentais de nível comparativamente profundo. Por isso, esse sonhos, na maioria, oferecem um conteúdo que tem forma abstrata, poética ou simbólica. A análise de sonhos desse tipo geralmente nos conduz à seguinte posição: não podemos compreender o sonho, mas aquele que sonhou - ou o paciente - pode traduzi-lo imediatamente e sem dificuldade, dado que o conteúdo do sonho se aproxima muito de seus pensamentos conscientes. Restam então certas partes do sonho sobre as quais aquele que sonhou não sabe o que dizer, e precisamente essas partes pertencem ao inconsciente, sendo, sob muitos aspectos, as mais interessantes. Nos casos mais favoráveis, explicamos essa [parte] inconsciente com a ajuda das idéias que aquele que sonhou lhe acrescentou. Essa maneira de julgar os ‘sonhos vindo de cima’ - e essa expressão deve ser entendida em sentido psicológico, não em sentido místico - é a que deve ser seguida no caso dos sonhos de Descartes. O próprio filósofo os interpreta e, de acordo com todas as regras da interpretação de sonhos, temos de aceitar sua explicação, mas se deveria acrescentar que nenhum outro caminho, que nos leve mais adiante, se abre para nós. Em confirmação da explicação dele, podemos dizer que os obstáculos que o impediram de se movimentar livremente nos são perfeitamente bem conhecidos: constituem a representação, por parte do sonho, de um conflito interno. O lado esquerdo representa o mal e o pecado, e o vento, o ‘gênio mau’ ((animus). As diferentes figuras que aparecem no sonho não podem, naturalmente, ser por nós identificadas, embora Descartes, se fosse interrogado, não teria deixado de identificá-las. Os elementos bizarros, dos quais, incidentalmente, existem poucos, e que são quase absurdos - tais como ‘o melão de uma terra estrangeira’ e os pequenos retratos - permanecem inexplicados. Quanto ao melão, aquele que sonhou teve a idéia - original - de ver nele ‘os encantos da solidão, mas apresentados por incentivos puramente humanos’. Isso decerto não é correto, mas poderia fornecer uma associação de idéias que conduzisse a uma explicação correta. Se se correlacionar com seu estado de pecado, a associação poderia representar um quadro sexual que ocupasse a imaginação do jovem solitário. Sobre a questão dos retratos, Descartes não lança luz alguma. O PRÊMIO GOETHE (1930) GOETHE-PREIS, 1930 (a) EDIÇÕES ALEMÃS: Brief an Dr. Alfons Paquet 1930 Psychoanal. Bewegung, 2 (5) (set.-out), 419. 1934 G.S., 12, 406-7. 1948 G.W., 14, 545-6. Ansprache im Frankfurter Goethe-Haus 1930 Psychoanal. Bewegung, 2 (5) (set.-out.), 421-6. 1934 G.S., 12, 408-11. 1948 G.W., 14, 547-50. A presente tradução, a primeira em inglês, é de autoria de Angela Richards. Em 1927, a cidade de Frankfurt criou o ‘Prêmio Goethe’, que deveia ser anualmente concedido a ‘uma personalidade de realizações já firmadas cuja obra criadora fosse digna de uma honra dedicada à memória de Goethe’. Os primeiros três prêmios foram concedidos a Stefan George, o poeta; a Albert Schweitzer, o músico e missionário médico; e a Leopold Ziegler, o escritor filosófico. O valor do prêmio era de 10.000 marcos alemães, equivalentes na ocasião, a cerca de 500 libras ou 2.500 dólares. Por sugestão de Alfons Paquet, homem de letras bem conhecido e secretário dos Curadores do Fundo, decidiu-se conceder o prêmio de 1930 a Freud, o que foi anunciado a este (que, na ocasião, se encontrava em férias no Salzkammergut) numa carta de Paquet datada de 26 de julho de 1930 (impressa no Psychoanalytische Bewegung, 2, 417-18), a que Freud respondeu a 3 de agosto. Era costume, como Paquet explicava em sua carta, que o prêmio fosse entregue a 28 de agosto de cada ano, numa cerimônia realizada na casa de Frankfurt em que Goethe nascera, e que o contemplado aí fizesse um discurso, ilustrando sua própria relação interna com Goethe. Devido à sua doença, Freud não pôde fazêlo ele próprio, mas o discurso que preparou foi lido por Anna Freud na cerimônia na Casa de Goethe, a 28 de agosto. CARTA AO DR. ALFONS PAQUET Grundlsee, 3.8.1930. Prezado Dr. Paquet, Nunca fui mimado por sinais públicos de honra e adaptei-me tanto a esse estado de coisas, que me foi possível passar sem eles. Não gostaria de negar, contudo, que a concessão do Prêmio Goethe da cidade de Frankfurt deu-me grande prazer. Há nele algo que inflama especialmente a imaginação, e uma de suas estipulações dissipa o sentimento de humilhação que, em outros casos, é concomitante a tais distinções. Desejo particularmente agradecer-lhe por sua carta; ela me comoveu e espantou. À parte sua penetração simpática da natureza de minha obra, nunca antes encontrara as intenções pessoais e secretas por trás dela identificadas com tal clareza como o senhor o fez, e gostaria muito de lhe perguntar como veio a ter esse conhecimento. Lamento saber, por sua carta dirigida a minha filha, que não poderei encontrá-lo em futuro próximo, e, com meu tempo de vida, o adiamento é sempre algo de arriscado. Naturalmente, estarei pronto a receber o cavalheiro (Dr. Michel) cuja visita me anuncia. Infelizmente, não poderei estar presente à cerimônia em Frankfurt; estou muito fraco para tal empreendimento. Nada perderão por isso; minha filha Anna sem dúvida é mais agradável de ver e ouvir do que eu. Proponho que ela leia algumas frases minhas que tratam das vinculações de Goethe com a psicanálise e defendem os próprios analistas da censura de terem ofendido o respeito devido ao grande homem por causa das tentativas analíticas que sobre ele fizeram. Espero que seja aceitável que eu assim adapte o tema que me foi proposto - minhas ‘relações internas, como homem e cientista, com Goethe’ -, ou então que o senhor tenha a gentileza de me comunicar que não. Muito sinceramente seu, Freud DISCURSO PRONUNCIADO NA CASA DE GOETHE EM FRANKFURT O trabalho de minha vida se dirigiu a um só objetivo. Observei os mais sutis distúrbios da função mental em pessoas saudáveis e enfermas e procurei inferir - ou, se preferirem, adivinhar -, a partir de sinais desse tipo, como o aparelho que serve a essas funções é construído e quais as forças concorrentes e mutuamente oponentes que nele se acham em ação. O que nós - eu, meus amigos e colaboradores - conseguimos aprender seguindo esse caminho pareceu-nos de importância para a construção de uma ciência mental que torna possível compreender tanto os processos mentais normais quanto os patológicos como partes do mesmo curso natural de eventos. Fui motivado a tão estreitas considerações pela surpreendente honra que me conferistes. Ao evocar a figura da grande personalidade universal que nasceu nesta casa e passou sua infância nestas salas, vossa distinção incita, por assim dizer, à justificação perante ele, e suscita a questão de saber como ele teria reagido se seu olhar, atento a toda inovação na ciência, houvesse recaído na psicanálise. Goethe pode ser comparado em versatilidade a Leonardo da Vinci, o mestre da Renascença, que, como ele, tanto foi artista quanto investigador científico. Mas as imagens humanas nunca se podem repetir, e não faltam profundas diferenças entre os dois grandes homens. Na natureza de Leonardo, o cientista não se harmonizou com o artista, interferiu neste e, ao final, talvez o tenha abafado. Na vida de Goethe, ambas as personalidades encontram lugar lado a lado: em diferentes épocas, cada uma permitia à outra predominar. Em Leonardo, é plausível associar seu distúrbio àquela inibição em seu desenvolvimento que afastava tudo o que era erótico, e, daí, a psicologia também, de sua esfera de interesse. A esse respeito, o caráter de Goethe pôde desenvolver-se mais livremente. Penso que Goethe não teria rejeitado a psicanálise num espírito inamistoso, como tantos de nossos contemporâneos fizeram. Ele próprio dela se aproximou numa série de pontos; identificou, através de sua própria compreensão interna, muita coisa que pudemos confirmar, e certas opiniões, que nos acarretam crítica e zombaria, foram por ele expostas como evidentes por si mesmas. Assim, estava familiarizado com a força incomparável dos primeiros laços afetivos das criaturas humanas. Celebrou-as na Dedicatória de seu poema Fausto, em palavras que poderíamos repetir para cada uma de nossas análises: Ihr naht euch wieder, schwankende Gestalten, Die früh sich einst dem trüben Blick gezeigt, Versuch’ ich wohl, euch diesmal festzuhalten? ....................................................................... Gleich einer alten, halbverklungenen Sage Kommt erste Lieb’ und Freundschaft mit herauf Explicou a si mesmo o impulso mais forte de amor que experimentou como homem maduro, apostrofando sua bem-amada: ‘Ach, du worst in abgelebten Zeiten meine Schester oder meine Frau. Assim, não negou que essas primeiras inclinações perenes assumem figuras de nosso próprio círculo familiar como seu objeto. Goethe parafraseia o conteúdo da vida onírica nas evocadoras palavras: Was von Menschen nicht gewusst Oder nicht bedacht, Durch das Labyrinth der Brust Wandelt in der Nacht Por detrás dessa magia identificamos o antigo, venerável e incontestavelmente correto pronunciamento de Aristóteles - que o sonhar é a continuação de nossa atividade mental no estado de sono - combinado com o reconhecimento do inconsciente que a psicanálise pela primeira vez lhe acrescentou. Somente o enigma da deformação onírica não encontra solução aqui. No que constitui talvez sua mais sublime criação poética, Iphigenie, Goethe nos apresenta um notável exemplo de expiação, da libertação de uma mente sofredora do fardo da culpa, e faz com que essa catarse se dê atravésde uma apaixonada irrupção de sentimento, sob a influência benéfica da simpatia amorosa. Na verdade, repetidas vezes ele efetuou tentativas de fornecer auxílio psicológico, tal como, por exemplo, ao desafortunado homem que, nas Cartas, é denominado de Kraft, e ao Professor Plessing, de quem nos fala em Campagne in Frankreich [Campanha na França], e o processo que aplica vai além do método da confissão católica, aproximando-se, em alguns pormenores dignos de nota, da técnica de nossa psicanálise. Há um exemplo de influência psicoterapêutica que é descrito por Goethe como um gracejo, mas que eu gostaria de citar na íntegra, visto que talvez não seja bem conhecido, embora seja muito característico. É extraído de uma carta a Frau von Stein (Nº 1.444, de 5 de setembro de 1785): ‘Ontem à noite realizei uma façanha psicológica. Frau Herder ainda se achava num estado de tensão do tipo mais hipocondríaco, por causa de todas as coisas desagradáveis que lhe haviam acontecido em Carlsbad, particularmente por da causa mulher que fora sua companheira na casa. Fiz com que ela me dissesse e me confessasse tudo, as más ações de outras pessoas e suas próprias faltas com suas mais minuciosas circunstâncias e conseqüências, e, ao final, absolvi-a e tornei-lhe claro, gracejando, nessa fórmula, que aquelas coisas agora tinham passado e sido arrojadas às profundezas do mar. Ela própria achou graça em tudo e está realmente curada.’ Goethe sempre teve Eros em alta consideração, nunca tentou menosprezar seu poder, acompanhou suas expressões primitivas e até mesmo licenciosas com não menos atenção que as mais elevadamente sublimadas, e, segundo me parece, expôs sua unidade essencial através de todas as suas manifestações de modo não menos decisivo do que Platão o fez no passado remoto. Na verdade, talvez ocorra mais que uma coincidência fortuita quando, em Die Wahlverwandtschaften [As Afinidades Eletivas], aplica ao amor uma idéia extraída da esfera da química - vinculação de que o nome da própria psicanálise dá testemunho. Estou preparado para a censura de que nós, os analistas, perdemos o direito de nos colocar sob o patrocínio de Goethe, por termos ofendido o respeito que lhe é devido ao tentarmos aplicar a análise a ele próprio, por termos degradado o grande homem à posição de objeto de investigação analítica. Discutirei, porém, em seguida se qualquer degradação tenha sido intentada ou nisso esteja implícita. Todos nós, que reverenciamos Goethe, nos submetemos, sem demasiado protesto, aos esforços de seus biógrafos, que tentam recriar-lhe a vida a partirdos relatos e indicações existentes. Mas o que podem essas biografias proporcionar-nos? Mesmo a melhor e mais integral delas não pode responder às duas perguntas que, somente elas, parecem merecer serem conhecidas. Ela não lançaria luz alguma sobre o enigma do dom miraculoso que faz um artista, e não poderia ajudar-nos a compreender melhor o valor e o efeito de suas obras. E, contudo, não há dúvida de que uma biografia desse tipo satisfaria uma poderosa necessidade existente em nós. Sentimos isso muito distintamente se o legado da história, sem generosidade, nos recusa a satisfação dessa necessidade, como no caso de Shakespeare, por exemplo. Inegavelmente, é penoso para todos nós que ainda hoje não saibamos quem foi o autor das Comédias, Tragédias e Sonetos de Shakespeare, se foi de fato o filho inculto do cidadão provinciano de Strattford, que atingiu uma modesta posição como ator em Londres, ou se foi ao contrário, o aristocrata, de nascimento e alta instrução, apaixonadamente inconstante, até certo ponto declassé, Edward de Vere, Décimo Sétimo Conde de Oxford, Grande Lorde Camareiro Hereditário da Inglaterra. Mas como podemos justificar uma necessidade desse tipo, a de obter conhecimento das circunstâncias da vida de um homem, quando suas obras se tornaram tão plenas de importância para nós? As pessoas geralmente dizem que se trata de nosso desejo de nos aproximarmos de tal homem também de maneira humana. Aceitarmos isso; trata-se, então, da necessidade de adquirir relações afetivas com esses homens, acrescentá-los aos pais, aos professores, aos exemplos que conhecemos ou cuja influência já experimentamos, na expectativa de que suas personalidades sejam tão belas e admiráveis quanto as obras de arte deles que possuímos. Mesmo assim, podemos admitir que existe ainda outra força motivadora em ação. A justificação do biógrafo também contém uma confissão. É verdade que ele não deseja rebaixar seu herói, mas quer trazê-lo para mais perto de nós. Isso, contudo, significa reduzir a distância que o separa de nós; tende ainda, efetivamente, no sentido de degradação. E é inevitável que se aprendermos mais a respeito da vida de um grande homem, ouviremos também falar de ocasiões em que ele, de fato, não se saiu melhor do que nós, em que, na realidade, se aproximou de nós como ser humano. Não obstante, penso que podemos considerar os esforços do biógrafo como legítimos. Nossa atitude para com os pais e professores é, afinal de contas, uma atitudeambivalente, visto que nossa reverência por eles via de regra oculta um componente de rebelião hostil. Trata-se de uma fatalidade psicológica; não pode ser alterada sem a suspensão, pela força, da verdade, e está fadada a se estender às nossas relações com os grandes homens cujas vidas queremos investigar. Quando a psicanálise se põe a serviço da biografia, tem naturalmente o direito de não ser tratada com mais rudeza do que essa última. Ela pode fornecer certas informações às quais não é possível chegar por outros meios, logrando assim demonstrar novos fios vinculadores na ‘obra-prima do tecelão’, disseminados entre os dotes artísticos, as experiências e as obras de um artista. Visto ser uma das principais funções de nosso pensamento dominar psiquicamente o material do mundo externo, pareceme que agradecimentos são devidos à psicanálise se, quando aplicada a um grande homem, ela contribui para a compreensão de sua grande realização. Omito, entretanto, que no caso de Goethe não avançamos muito longe, porque Goethe, como poeta, não foi apenas um grande revelador de si mesmo, mas também, a despeito da abundância de registros autobiográficos, um cuidadoso ocultador de si mesmo. Aqui, não podemos deixar de pensar nas palavras de Mefistófeles: Das Beste, was du wissen kannstDarfst du den Buben doch nicht sagen. APÊNDICE: RELAÇÃO DOS TRABALHOS DE FREUD QUE TRATAM PRINCIPALMENTE OU EM GRANDE PARTE DE ARTE, LITERATURA OU TEORIA DA ESTÉTICA. [A data ao início de cada item é a do ano durante o qual a obra referida foi provavelmente escrita. A data ao final é a da publicação, e sob essa data, pormenores mais completos da obra poderão ser encontrados na Biblio-grafia e Índice de Autores. Os itens em colchetes foram publicados postumamente.] [1897 Sobre Édipo Rei e Hamlet, na Carta 71 a Fliess, de 15 de outubro de 1897. (1950a)] [1898 ‘Die Richterin’ (‘A Juíza’), na Carta 91 a Fliess, de 20 de junho de 1898. (1950a)] 1898 A Interpretação de Sonhos, Capítulo V, Seção D ( ), sobre Édipo Rei e Hamlet. (1900a) 1905 Os Chistes e sua Relação com o inconsciente. (1905c) [1905-6 ‘Caracteres Psicopáticos no Palco’. (1942a)] 1906 Delírios e Sonhos na ‘Gradiva’ de Jensen. (1907a) 1907 ‘Contribuição a um Questionário sobre Leitura’.(1907d) 1907 ‘Escritores Criativos e Devaneio’. (1908e) 1910 Uma Lembrança Infantil de Leonardo da Vinci. (1910c) 1913 ‘O Tema dos Três Cofres’. (1913f) [1913 ‘As Reivindicações da Psicanálise ao Interesse Científico’, Parte II, Seção F. (1913j) 1914 ‘O Moisés de Michelangelo’. (1914b) 1915 ‘Sobre a Transitoriedade’. (1916a) 1916 ‘Alguns Tipos de Caráter Encontrados no Trabalho Psicanalítico’. (1916d) 1917 ‘Uma Recordação Infantil de ‘Dichtung und Wahrheit‘. (1917b) 1919 ‘O “Sinistro”.’ (1919h) 1927 Pós-escrito a ‘O Moisés de Michelangelo’. (1927b) 1927 ‘O Humor’ (1927d) 1927 ‘Dostoievski e o Parricídio.’ (1928b) 1929 Carta a Reik sobre Dostoievski. (1930f) 1930 ‘O Prêmio Goethe’. (1930d e e) 1933 Prefácio a Edgar Allan Poe, de Marie Bonaparte. (1933d) TIPOS LIBIDINAIS (1931) ÜBER LIBIDINOSE TYPEN (a) EDIÇÕES ALEMÃS 1931 Int. Z. Psychoanal., 17 (3), 313-16. 1934 G.S., 12, 115-19. 1948 G.W., 14, 509-13. (b) TRADUÇÕES INGLESAS: ‘Libidinal Types’ 1932 Psychoanal. Quart., 1 (1), 3-6. (Trad. de E. B. Jackson.) 1932 Int. J. Psycho-Anal., 13 (3), 277-80. (Trad. de Joan Riviere.) 1950 C.P., 5, 247-51. (Reimpressão revista da anterior.) A presente tradução inglesa constitui versão corrigida da publicada em 1950. Tal como o artigo seguinte (‘Sexualidade Feminina’), este foi iniciado em princípios de 1931 e terminado durante o verão. Constitui acréscimo tardio ao número muito pequeno de artigos de Freud que tratam da caracterologia. Embora o tópico aflore à superfície num certo número de seus trabalhos (tal como, por exemplo, na primeira metade do Capítulo III de The Ego and the Id (1923d), Standard Ed., 19, 28 e segs.), apenas duas de suas obras anteriores se haviam explicitamente relacionado com ele: ‘Caráter e Erotismo Anal’ (1909b) e ‘Alguns Tipos de Caráter Encontrados no Trabalho Psicanalítico’ (1916d). No presente trabalho, o assunto é considerado à luz do conceito posterior, estrutural, de Freud sobre a mente. TIPOS LIBIDINAIS A observação nos ensina que cada ser humano, individualmente, entende o quadro geral da humanidade conforme uma variedade quase infinita de maneiras. Se nos submetermos à multiplicidade, teremos inicialmente de escolher quais as características e os pontos de vista que tomaremos como base de nossa diferenciação. Para esse fim, as qualidades físicas indubitavelmente servirão não menos bem do que as mentais; as distinções mais valiosas serão aquelas que prometam apresentar uma combinação regular de características físicas e mentais. É de duvidar que já nos encontremos em posição de descobrir tipos que atendam a esse requisito, como decerto seremos capazes de fazer mais tarde, sobre alguma base que ainda ignoramos. Se limitarmos nosso esforço a estabelecer tipos puramente psicológicos, a situação libidinal terá um primeiro direito a servir de base para nossa classificação. Pode-se com justiça exigir que essa classificação não seja meramente deduzida de nosso conhecimento ou nossas hipóteses sobre a libido, mas que seja facilmente confirmada pela experiência real e que contribua para o esclarecimento da massa de nossas observações e nos auxilie a apreendê-las. Pode-se imediatamente admitir que esses tipos libidinais não precisam ser os únicos possíveis, mesmo no campo psíquico, e que, se partirmos de outras qualidades, poderemos talvez estabelecer todo um conjunto de outros tipos psicológicos. Deve-se, porém, exigir de todos esses tipos que não coincidam com quadros clínicos. Pelo contrário, devem abranger todas as variações que, de acordo com nosso juízo prático incidem dentro dos limites do normal. Em seus desenvolvimentos extremos, contudo, podem aproximar-se de quadros clínicos e dessa maneira, ajudar a unir o abismo que se supõe existir entre o normal e o patológico. De acordo, portanto, com que a libido seja predominantemente atribuída às províncias do aparelho psíquico, podemos distinguir três tipos libidinais principais. Fornecer nomes a esses tipos não é particularmente fácil; seguindo as linhas de nossa psicologia profunda, gostaria de chamá-los de tipo erótico, tipo narcísico e tipo obsessivo. O tipo erótico é facilmente caracterizado. Eróticos são aqueles cujo principal interesse - a parte relativamente maior de sua libido - está voltado para o amor. Amar, mas acima de tudo ser amado, é a coisa mais importante para eles. São dominados pelo temor da perda do amor e acham-se, portanto, especialmente dependentes de outros que podem retirar seu amor deles. Mesmo em sua forma pura, esse tipo é muito comum. Variantes suas ocorrem segundo se ache mesclado com outro tipo, e proporcionalmente à quantidade de agressividade nele presente. Do ponto de vista social e cultural, esse tipo representa as exigências instintuais elementares do id, a que os outros agentes psíquicos se submeteram. O segundo tipo é o que denominei de obsessivo, nome que, a princípio, pode parecer estranho. Distingue-se pela predominância do superego, que se separa do ego sob grande tensão. As pessoas desse tipo são dominadas pelo temor de sua consciência, em vez do medo de perder o amor. Apresentam, por assim dizer, uma dependência interna, em vez de externa. Desenvolvem um alto grau de autoconfiança e, do ponto de vista social, são os verdadeiros e predominantemente conservadores veículos da civilização. O terceiro tipo, com justiça chamado de narcísico, deve ser principalmente descrito em termos negativos. Não existe tensão entre o ego e o superego (na verdade, se predominasse esse tipo, dificilmente se teria chegado à hipótese de um superego), e não há preponderância de necessidades eróticas. O principal interesse do indivíduo se dirige para a autopreservação; é independente e não se abre à intimidação. Seu ego possui uma grande quantidade de agressividade à sua disposição, a qual também se manifesta na presteza à atividade. Em sua vida erótica, o amar é preferido ao ser amado. As pessoas pertencentes a esse tipo impressionam os outros como ‘personalidades’; são especialmente apropriadas a atuarem como apoio para outros, a assumirem o papel de líderes e a darem um novo estímulo ao desenvolvimento cultural ou a danificarem o estado de coisas estabelecido. Esses tipos puros dificilmente escaparão à suspeita de terem sido deduzidos da teoria da libido. Mas nos sentimos no terreno firme da experiência quando nos voltamos para os tipos mistos, que podem ser observados com mais freqüência do que os não mistos. Esses novos tipos - o erótico-obsessivos, o erótico-narcísico e o narcísico-obsessivo - parecem realmente permitir uma boa classificação das estruturas psíquicas individuais que viemos a conhecer através da análise. Se estudarmos esses tipos mistos encontraremos neles quadros de caracteres com que há longo tempo estamos familiarizados. No tipo erótico-obsessivo, parece que a preponderância da vida instintual é restringida pela influência do superego. Nesse tipo, a dependência simultânea de objetos humanos contemporâneos e de resíduos dos pais, educadores e exemplos é levada a seu mais alto grau. O tipoerótico-narcísico é talvez aquele que devamos encarar como o mais comum de todos. Ele une opostos, que nele podem moderar-se mutuamente. Pode-se aprender com esse tipo, quando comparado com os outros dois eróticos, que a agressividade e a atividade vão de par com uma predominância do narcisismo. O tipo narcísicoobsessivo, finalmente, produz, do ponto de vista cultural, a mais valiosa variação, pois soma à independência do mundo externo e à consideração pela exigência da consciência uma capacidade de ação vigorosa, e fortalece o ego contra o superego. Poder-se-ia pensar que estamos gracejando, se perguntássemos por que não se fez aqui menção alguma de outro tipo misto teoricamente possível, a saber, o tipo erótico-obsessivo-narcísico. Mas a resposta ao gracejo é séria. De modo algum esse tipo seria um tipo; seria a norma absoluta, a harmonia ideal. Assim, damo-nos conta de que o fenômeno dos tipos surge precisamente do fato de que, das três principais maneiras de utilizar a libido na economia mental, uma ou duas foram favorecidas às expensas das outras. Pode-se também suscitar a questão de saber qual é a relação desses tipos libidinais com a patologia; se alguns deles possuem uma disposição especial de passar à neurose e, em caso afirmativo, quais os tipos que conduzem a que formas de neurose. A resposta é que a fixação desses tipos libidinais não lança luz nova sobre a gênese das neuroses. A experiência nos mostra que todos esses tipos podem existir sem qualquer neurose. Os tipos puros, assinalados pela preponderância indiscutida de um agente mental isolado parecem ter melhor possibilidade de se manifestarem como quadros caracterológicos puros, ao passo que podemos esperar que os tipos mistos forneçam um solo mais favorável para as condições que conduzem à neurose. Penso, porém, que não devemos tomar uma decisão sobre esses assuntos até que tenham sido submetidos a um exame cuidadoso e especialmente dirigido. Parece fácil inferir que, quando pessoas do tipo erótico caem doentes, elas desenvolverão histerias, assim como as do tipo obsessivo desenvolverão neuroses obsessivas; mas essas inferências também partilham da incerteza que acabei de acentuar. As pessoas do tipo narcísico que se expõem a uma frustração do mundo externo, embora sob outros aspectos independentes, estão particularmente dispostas à psicose, e também apresentam precondições essenciais para a criminalidade. Constitui fato familiar que as precondições etiológicas da neurose ainda não são conhecidas com certeza. As causas precipitantes dela são frustrações e conflitos internos: conflitos entre os três principais agentes psíquicos;conflitos que surgem dentro da economia libidinal em conseqüência de nossa disposição bissexual e conflitos entre os componentes instintuais erótico e agressivo. É trabalho da psicologia das neuroses descobrir o que faz com que esses processos, pertencentes ao curso normal da vida mental, se tornem patogênicos. SEXUALIDADE FEMININA (1931) NOTA DO EDITOR INGLÊS BRIEF AN MAXIM [sic] LEROY: ÜBER EINEN TRAUM DES CARTESIUS (a) EDIÇÕES FRANCESAS: 1929 Em Descartes, le philosophe au masque, de Leroy, 1, 89-90, Paris, Editions Rieder. (Em francês.) 1934 G.S., 12, 403-5. (Reimpressão da carta de Freud e extratos do livro de Leroy. Em francês.) 1948 G.W., 14, 558-60. (Reimpressão da anterior.) A presente tradução, a primeira em inglês, é da autoria de Angela Richards. Nenhum original alemão desta carta subsistiu. A versão francesa foi, quase certamente, feita por Leroy e fornece, na melhor das hipóteses, uma base insatisfatória para a tradução inglesa. Enquanto Maxime Leroy preparava seu livro sobre Descartes (1929), submeteu a Freud uma série de sonhos do filósofo, para que os comentasse. Não podemos dizer exatamente qual a descrição dos sonhos que Leroy forneceu a Freud, pois as edições alemãs não imprimem o texto de sua carta, citando simplesmente a descrição dos sonhos conforme no livro publicado por Leroy, onde este também incluiu a tradução da resposta de Freud à sua indagação. A descrição original e a interpretação dos sonhos de Descartes parecem ter ocupado as páginas iniciais de um manuscrito conhecido como ‘Olympica’, provavelmente escrito durante o inverno de 1619, e hoje perdido. Foi visto, entretanto, pelo abbé Adrien Baillet (século XVII), que publicou uma tradução parafraseada, contendo algumas citações do latim original, em sua Vie de Monsieur Des-Cartes (Paris, 1691, 1). A descrição dos sonhos está nas págs. 81-5. Foi nessa versão que Leroy buscou seu relato, mas parece certo que Freud estudou o texto integral de Baillet, já que, em sua resposta, fala do ‘melão de uma terra estrangeira’, frase que aparece na transcrição de Baillet, ao passo que, em seu livro, Leroy menciona simplesmente ‘um melão’. O manuscrito ‘Olympica’ foi visto também por Leibniz, que fez uma cópia de extratos dele. Infelizmente, as notas de Leibniz contêm apenas uma breve referência aos sonhos: ‘Somnium 1619, nov. in quo carmen 7 cujus initium: Quod vitae sectabor iter?… Auson. Como não faz menção de ter visto a ‘explicação’ dos sonhos, Leroy inclinou-se a pensar que se tratava, em grande parte pelo menos, de uma invenção do abbé Baillet, opinião que expressa em seu livro, embora nenhuma sugestão dela pareça ter chegado a Freud. A descrição dos sonhos publicada por Leroy (1929, 1, 84) - paráfrase da versão de Baillet - que aparece (em francês) como nota de rodapé nas edições alemãs de Freud, é a seguinte: ‘Então, durante a noite, quando tudo era febre, trovões, pânico, fantasmas se ergueram diante daquele que sonhava. Tentou levantar-se para expulsá-los, mas caiu de novo, envergonhado de si mesmo, sentindo-se perturbado por uma grande fraqueza em seu lado direito. De repente, uma janela do quarto se abriu. Com terror, sentiu-se carregado pelas rajadas de um vento violento, que o fez girar diversas vezes sobre o pé esquerdo. Arrastando-se, a cambalear, chegou aos prédios da faculdade em que fora educado. Tentou desesperadamente entrar na capela, para fazer suas orações. Nesse momento, algumas pessoas passaram. Tentou detê-las, a fim de lhes falar; notou que uma delas conduzia um melão. Mas um vento violento o empurrou de volta para a capela. ‘Acordou então, com pontadas de dor do lado esquerdo. Não sabia se estava sonhando ou acordado. Semidesperto, disse a si mesmo que um gênio mau estava tentando seduzi-lo, e murmurou uma prece para exorcizá-lo. ‘Adormeceu outra vez. Um estrondo de trovão o acordou novamente, enchendo o quarto de relâmpagos. Mais uma vez se perguntou se estava adormecido ou desperto, se aquilo era um sonho ou um devaneio, abrindo e fechando os olhos como para se certificar. Então, tranqüilizado, readormeceu, levado pela exaustão. ‘Com o cérebro em fogo, excitado por esses rumores e vagos sofrimentos, Descartes abriu um dicionário e, depois, uma coletânea de poema. O intrépido viajante sonhou com o seguinte verso: “Quod vitae sectabor iter?” Outra viagem à terra dos sonhos? Então, de súbito, apareceu um homem que não conhecia, pretendendo fazê-lo ler uma passagem de Ausônio que começava com as palavras “Est et non”. Mas o homem desapareceu e um outro tomou o seu lugar. O livro, por sua vez, se esvaneceu, para depois reaparecer decorado com retratos em talho-doce. Por fim, a noite se acalmou. A explicação dos sonhos, que Leroy (ibid., 85) cita de Baillet (e também impressa como nota de rodapé nas edições alemãs de Freud), é a seguinte: ‘Ele [Descartes] considerava que o “dicionário” significava simplesmente todas as Ciências combinadas e que a “coletânea de poemas”, intitulada Corpus Poetarum, indicava de modo específico e mais distintamente a Filosofia e a Sabedoria unidas… M. Descartes, continuando a interpretar o sonho enquanto dormia, pensou que o fragmento poético sobre a incerteza do tipo de vida que se deve escolher e começando por “Quod vitae sectabor iter?”, indicava um bom conselho de uma pessoa sábia, ou mesmo a Teologia Moral… ‘Pelos poetas reunidos na coletânea, ele entendeu a Revelação e o Entusiasmo, de cujo favor não desesperava. Pelo fragmento de verso “Est et non” (que é o Sim e o Não de Pitágoras) entendeu a Verdade e a Falsidade no saber humano e nas ciências profanas. Vendo que a aplicação de todas essas coisas era tão de seu gosto, atreveu-se a se convencer de que fora o Espírito da Verdade que decidira abrir-lhe todos os tesouros da ciência através daquele sonho. E já que nada lhe restava a explicar, a não ser os pequenos Retratos em talho-doce [taille douce] que encontrara no segundo livro, não procurou mais sua explicação depois que um pintor italiano lhe fez uma visita exatamente no dia seguinte. ‘Esse último sonho, que não continha nada, mas era muito doce [doux] e agradável, indicava o futuro, pensou ele, e referia-se apenas ao que lhe deveria ocorrer durante o resto de sua vida. Tomou os dois primeiros, entretanto, como advertências ameaçadoras em relação à sua vida passada, que poderia não ter sido tão inocente aos olhos de Deus quanto aos dos homens. E pensou que era esse o motivo para o terror e o susto com que os dois sonhos se tinham feito acompanhar. O melão com que tentaram presenteá-lo no primeiro sonho significava, disse ele, os encantos da solidão, mas apresentados por incentivos puramente humanos. O vento que o carregava na direção da Igreja da faculdade, onde sentira uma dor no lado direito, nada mais era do que o Gênio mau tentando arrojá-lo à força para um lugar em que era sua intenção entrar voluntariamente. Fora por isso que Deus não lhe permitira avançar mais, ou se deixar ser carregado, mesmo a um lugar santo, por um Espírito que não havia enviado - embora estivesse bastante convencido de que fora um Espírito de Deus que o levara a fazer suas primeiras abordagens a essa Igreja. O terror de que foi acometido no segundo sonho, indicava em sua opinião, sua sindérese, isto é, o remorso de sua consciência em relação aos pecados que poderia ter cometido no decorrer de sua vida até então. O trovão cujo troar ele ouvira, era o sinal do espírito da verdade descendo sobre ele, para dele tomar posse.’ SEXUALIDADE FEMININA I Durante a fase do complexo de Édipo normal, encontramos a criança ternamente ligada ao genitor do sexo oposto, ao passo que seu relacionamento com o do seu próprio sexo é predominantemente hostil. No caso do menino, isso não é difícil de explicar. Seu primeiro objeto amoroso foi a mãe. Continua sendo, e, com a intensificação de seus desejos eróticos e sua compreensão interna mais profunda das relações entre o pai e a mãe, o primeiro está fadado a se tornar seu rival. Com a menina, é diferente. Também seu primeiro objeto foi a mãe. Como encontra o caminho para o pai? Como, quando e por que se desliga da mãe? Há muito tempo compreendemos que o desenvolvimento da sexualidade feminina é complicado pelo fato de a menina ter a tarefa de abandonar o que originalmente constituiu sua principal zona genital - o clitóris - em favor de outra, nova, a vagina. Agora, no entanto, parece-nos que existe uma segunda alteração da mesma espécie, que não é menos característica e importante para o desenvolvimento da mulher: a troca de seu objeto original - a mãe - pelo pai. A maneira pela qual essas duas tarefas estão mutuamente vinculadas ainda não nos é clara. É bem sabido que existem muitas mulheres que possuem uma forte ligação com o pai, e para isso não precisam ser, de qualquer maneira, neuróticas. Foi em tais mulheres que efetuei as observações que me proponho comunicar aqui e que me conduziram a adotar um ponto de vista específico sobre a sexualidade feminina. Dois fatos sobretudo me impressionaram. O primeiro foi o de que onde a ligação da mulher com o pai era particularmente intensa, a análise mostrava que essa ligação fora precedida por uma fase de ligação exclusiva à mãe, igualmente intensa e apaixonada. Com exceção da mudança de seu objeto amoroso, a segunda fase mal acrescentara algum aspecto novo à sua vida erótica. Sua relação primária com a mãe fora construída de maneira muito rica e multificada. O segundo fato ensinoume que a duração dessa ligação também fora grandemente subestimada. Em diversos casos, durara até os quatros anos de idade - em determinado caso, até os cinco -, de maneira que abrangera, em muito, a parte mais longa doperíodo da primeira eflorescência sexual. Na verdade, tínhamos de levar em conta a possibilidade de um certo número de mulheres permanecerem detidas em sua ligação original à mãe e nunca alcançarem uma verdadeira mudança em direção aos homens. Assim sendo, a fase pré-edipiana nas mulheres obtém uma importância que até agora não lhe havíamos atribuído. De uma vez que essa fase comporta todas as fixações e repressões a que podemos fazer remontar a origem das neuroses, talvez pareça que deveríamos retratar-nos da universalidade da tese segundo a qual o complexo de Édipo é o núcleo das neuroses. Se, contudo, alguém se sentir relutante em efetuar essa correção, não há necessidade de que a faça. Por um lado, podemos ampliar o conteúdo do complexo de Édipo de modo a incluir todas as relações da criança com ambos os genitores, e, por outro, levar na devida conta nossas novas descobertas dizendo que a mulher só atinge a normal situação edipiana positiva depois de ter superado um período anterior que é governado pelo complexo negativo. De fato, durante essa fase, o pai de uma menina não é para ela muito mais do que um rival causador de problemas, embora sua hostilidade para com ele jamais alcance a intensidade característica dos meninos. Há muito tempo, afinal de contas, já abandonamos qualquer expectativa quanto a um paralelismo nítido entre o desenvolvimento sexual masculino e feminino. Nossa compreensão interna dessa fase primitiva, pré-edipiana, nas meninas, nos chega como uma surpresa, tal como a descoberta, em outro campo, da civilização mino-miceniana por detrás da civilização da Grécia. Tudo na esfera dessa primeira ligação com a mãe me parecia tão difícil de apreender nas análises - tão esmaecido pelo tempo e tão obscuro e quase impossível de revivificar - que era como se houvesse sucumbido a uma repressão especialmente inexorável. Mas talvez tenha ficado com essa impressão porque as mulheres que estavam em análise comigo podiam aferrar-se à própria ligação com o pai em que se tinham refugiado da fase primitiva em questão. Na verdade, parece que as analistas femininas - tais como, por exemplo, Jeanne Lampl-de Groot e Helene Deutsch - foram capazes de perceber esses fatos mais fácil e claramente por terem sido auxiliadas, ao lidarem com as que se achavam em tratamento com elas, pela transferência a uma substituta materna adequada. Tampouco alcancei sucesso em divisar completamente o caminho em qualquer caso; portanto, me limitarei a relatar as descobertas mais gerais e fornecerei apenas alguns exemplos das novasidéias a que cheguei. Entre estas acha-se a suspeita de que essa fase de ligação com a mãe está especialmente relacionada à etiologia da histeria, o que não é de surpreender quando refletimos que tanto a fase quanto a neurose são caracteristicamente femininas, e, ademais, que nessa dependência da mãe encontramos o germe da paranóia posterior nas mulheres, pois esse germe parece ser o surpreendente, embora regular, temor de ser morta (devorada?) pela mãe. É plausível presumir que esse temor corresponde a uma hostilidade que se desenvolve na criança, em relação à mãe, em conseqüência das múltiplas restrições impostas por esta no decorrer do treinamento e do cuidado corporal, e que o mecanismo de projeção é favorecido pela idade precoce da organização psíquica da criança. II Comecei por enunciar os dois fatos que me impressionaram como novos: que a intensa dependência de uma mulher quanto ao pai simplesmente assume a herança de uma ligação igualmente forte com a mãe , e que essa fase primitiva demora um período de tempo inesperadamente longo. Voltarei agora um pouco atrás, a fim de inserir essas novas descobertas no quadro do desenvolvimento sexual feminino com que estamos familiarizados. Assim, será inevitável uma certa repetição. Ajudará nossa exposição se, enquanto progredirmos, compararmos o estado de coisas nas mulheres como nos homens. Antes de tudo, não pode haver dúvida de que a bissexualidade, presente, conforme acreditamos, na disposição inata dos seres humanos, vem para o primeiro plano muito mais claramente nas mulheres do que nos homens. Um homem, afinal de contas, possui apenas uma zona sexual principal, um só órgão sexual, ao passo que a mulher tem duas: a vagina, ou seja, o órgão genital propriamente dito, e o clitóris, análogo ao órgão masculino. Acreditamos que estamos justificados em supor que, por muitos anos, a vagina é virtualmente inexistente e, possivelmente, não produz sensações até a puberdade. É verdade que recentemente um crescente número de observadores tem comunicado que os impulsos vaginais estão presentes mesmo nesses primeiros anos. Nas mulheres, portanto, as principais ocorrências genitais da infância devem ocorrer em relação ao clitóris. Sua vida sexual é regularmente dividida em duas fases, a primeira das quais possui um caráter masculino, ao passo que apenas a segunda é especificamente feminina. Assim, no desenvolvimento feminino, há um processo de transição de uma fase para a outra, do qual nada existe de análogo no homem. Uma outra complicação origina-se do fato de o clitóris, com seu caráter viril, continuar a funcionar na vida sexual feminina posterior, de maneira muito variável e que certamente ainda não é satisfatoriamente entendida. Não conhecemos, naturalmente, a base biológica dessas peculiaridades das mulheres e, menos ainda, podemos atribuirlhes qualquer intuito teleológico. Paralela a essa primeira grande diferença existe a outra, relacionada com o encontro do objeto. No caso do homem, a mãe se torna para ele o primeiro objeto amoroso como resultado do fato de alimentá-lo e de tomar conta dele, permanecendo assim até ser substituída por alguém que se lhe assemelhe ou dela se derive. Também o primeiro objeto de uma mulher tem de ser a mãe; as condições primárias para uma escolha de objeto são, naturalmente, as mesmas para todas as crianças. Ao final do desenvolvimento dela, porém, seu pai - um homem - deveria ter-se tornado seu novo objeto amoroso.Em outras palavras, à mudança em seu próprio sexo deve corresponder uma mudança no sexo de seu objeto. Os novos problemas que agora exigem investigação são a maneira pela qual essa mudança ocorre, quão radical ou incompletamente é efetuada, e quais as diferentes possibilidades que se apresentam no decurso desse desenvolvimento. Já aprendemos também que ainda existe uma outra diferença entre os sexos, a qual se relaciona com o complexo de Édipo. Temos aqui a impressão de que o que dissemos sobre o complexo de Édipo se aplica de modo absolutamente estrito apenas à criança do sexo masculino, e de que temos razão ao rejeitarmos a expressão ‘complexo de Electra’, que procura dar ênfase à analogia entre a atitude dos dois sexos. É apenas na criança do sexo masculino que encontramos a fatídica combinação de amor por um dos pais e, simultaneamente, ódio pelo outro, como rival. No caso dela, é a descoberta da possibilidade de castração, tal como provada pela visão dos órgãos genitais femininos, que impõe ao menino a transformação de seu complexo de Édipo e conduz à criação de seu superego, iniciando assim todos os processos que se destinam a fazer o indivíduo encontrar lugar na comunidade cultural. Após o agente paterno ter sido internalizado e ter-se tornado um superego, a tarefa seguinte consiste em desligar este último das figuras de quem originalmente constituiu o representante psíquico. Nesse notável curso de desenvolvimento, é precisamente o interesse narcísico do menino por seus órgãos genitais - seu interesse em preservar o pênis - que é transformado numa restrição de sua sexualidade infantil. Uma das coisas que remanesce nos homens, da influência do complexo de Édipo, é um certo desprezo em sua atitude para com as mulheres, a quem encaram como castradas. Nos casos extremos, isso dá origem a uma inibição em sua escolha de objeto e, se apoiado por fatores orgânicos, ao homossexualismo exclusivo. Inteiramente diferentes são os efeitos do complexo de castração na mulher. Ela reconhece o fato de sua castração, e, com ele, também a superioridade do homem e sua própria inferioridade, mas se rebela contra esse estado de coisas indesejável. Dessa atitude, dividida, abrem-se três linhas de desenvolvimento. A primeira leva a uma revulsão geral à sexualidade. A menina, assustada pela comparação com os meninos, cresce insatisfeita com seu clitóris, abandona sua atividade fálica e, com ela, sua sexualidade em geral, bem como boa parte de sua masculinidade em outros campos. A segunda linha a leva a se aferrar com desafiadora auto-afirmatividade à sua masculinidade ameaçada. Até uma idade inacreditavelmente tardia, aferra-se à esperança de conseguir um pênis em alguma ocasião. Essa esperança se torna o objetivo de sua vida e a fantasia de ser um homem, apesar de tudo, freqüentemente persiste como fator formativo por longos períodos. Esse ‘complexo de masculinidade’ nas mulheres pode também resultar numa escolha de objeto homossexual manifesta. Só se seu desenvolvimento seguir o terceiro caminho, muito indireto, ela atingirá a atitude feminina normal final, em que toma o pai como objeto, encontrando assim o caminho para a forma feminina do complexo de Édipo. Assim, nas mulheres, o complexo de Édipo constitui o resultado final de um desenvolvimento bastante demorado. Ele não é destruído, mas criado pela influência da castração; foge às influências fortemente hostis que, no homem, tiveram efeito destrutivo sobre ele e, na verdade, com muita freqüência, de modo algum é superado pela mulher. Por essa razão, também, nela as conseqüências culturais de sua dissolução são menores e menos importantes. Provavelmente não estaríamos errados em dizer que é essa diferença na relação recíproca entre o complexo de Édipo e o de castração que dá seu cunho especial ao caráter das mulheres como seres sociais. Vemos, portanto, que a fase de ligação exclusiva à mãe, que pode ser chamada de fase préedipiana, tem nas mulheres uma importância muito maior do que a que pode ter nos homens. Muitos fenômenos da vida sexual feminina, que não foram devidamente compreendidos antes, podem ser integralmente explicados por referência a essa fase. Há muito tempo, porexemplo, observamos que muitas mulheres que escolheram o marido conforme o modelo do pai, ou o colocaram em lugar do pai, não obstante repetem para ele, em sua vida conjugal, seus maus relacionamentos com as mães. O marido de tal mulher destinava-se a ser o herdeiro de seu relacionamento com o pai, mas, na realidade, tornou-se o herdeiro do relacionamento dela com a mãe. Isso é facilmente explicado como um caso óbvio de regressão. O relacionamento dela com a mãe foi o original, tendo a ligação com o pai sido construída sobre ele; agora, no casamento, o relacionamento original emerge da repressão, pois o conteúdo principal de seu desenvolvimento para o estado de mulher jaz na transferência, da mãe para o pai, de suas ligações objetais afetivas. Com muitas mulheres, temos a impressão de que seus anos de maturidade são ocupados por uma luta com os maridos, tal como suas juventudes se dissiparam numa luta com suas mães. À luz do exame anterior, concluiremos que sua atitude hostil para com a mãe não é conseqüência da rivalidade implícita no complexo de Édipo, mas se origina da fase precedente, tendo sido simplesmente reforçada e explorada na situação edipiana. E o exame analítico concreto confirma essa opinião. Nosso interesse deve dirigir-se para os mecanismos em ação em seu afastamento da mãe, que era um objeto tão intenso e exclusivamente amado. Estamos preparados para descobrir, não um fator único, mas um grande número deles operando juntos para o mesmo fim. Entre esses fatores, alguns são determinados pelas circunstâncias da sexualidade infantil em geral e, assim, valem igualmente para a vida erótica dos meninos. Primeiro e acima de tudo, podemos mencionar o ciúme de outras pessoas - de irmãos e irmãs, rivais, entre os quais também o pai encontra lugar. O amor infantil é ilimitado; exige a posse exclusiva, não se contenta com menos do que tudo. Possui, porém, uma segunda característica; não tem, na realidade, objetivo, sendo incapaz de obter satisfação completa, e, principalmente por isso, está condenado a acabar em desapontamento e a ceder lugar a uma atitude hostil. Mais tarde, na vida, a falta de uma satisfação suprema pode favorecer um resultado diferente. Esse mesmo fator pode garantir a continuidade ininterrupta da catexia libidinal, tal como acontece com as relações amorosas inibidas em sua finalidade. Na tensão dos processos de desenvolvimento, porém, acontece regularmente que a libido abandona sua posição insatisfatória, a fim de descobrir outra nova.Outro motivo muito mais específico para o afastamento da mãe surge do efeito do complexo de castração sobre a criatura que não tem pênis. Numa ocasião ou noutra a menina descobre sua inferioridade orgânica, mais cedo e mais facilmente, é natural, se existirem irmãos ou outros meninos a seu redor. Já observamos os três caminhos que divergem a partir desse ponto: (a) o que leva à cessação de toda sua vida sexual; (b) o que leva a uma desafiadora superenfatização de sua masculinidade; (c) os primeiros passos no sentido da feminilidade definitiva. Não é fácil determinar aqui o momento exato ou o curso típico dos eventos. Mesmo o momento em que a descoberta da castração é efetuada varia, e uma série de outros fatores parece ser inconstante ou depender do acaso. A situação da própria atividade fálica da menina desempenha um papel, bem como a questão de saber se essa atividade foi descoberta ou não, e quanta interferência na mesma ela experimentou posteriormente. As meninas geralmente descobrem por si próprias sua atividade fálica característica, a masturbação do clitóris, e, de início, isso sem dúvida não se faz acompanhar pela fantasia. O papel desempenhado, em seu começo, pela higiene infantil reflete-se na fantasia muito comum que transforma a mãe ou a babá em sedutora. Que as meninas se masturbem com menos freqüência e, desde o princípio, com menos energia que os meninos, não é certo; possivelmente, assim acontece. A sedução real também é bastante comum; é iniciada quer por outras crianças, quer por alguém encarregado da criança que deseja acalmá-la, pô-la para dormir ou torná-la dependente dele. Onde intervém, a sedução invariavelmente perturba o curso natural dos processos de desenvolvimento e com freqüência deixa atrás de si conseqüências amplas e duradouras. A proibição da masturbação, como vimos, transforma-se num incentivo para abandoná-la, mas torna-se motivo para rebelar-se contra a pessoa que a proíbe, ou seja, a mãe, ou o substituto materno que, mais tarde, normalmente se funde com esta. Uma persistência desafiadora na masturbação parece abrir o caminho à masculinidade. Mesmo onde a menina não conseguiu suprimir sua masturbação, o efeito da proibição aparentemente vã é visto em seus esforços posteriores para se libertar, a todo custo, de uma satisfação que lhe foi estragada. Quando atinge a maturidade, sua escolha de objeto ainda pode ser influenciada por esse intuito persistente. Seu ressentimento por ser impedida de uma atividade sexual livre desempenha grande papel em seudesligamento da mãe. O mesmo motivo entra em funcionamento após a puberdade, quando a mãe assume seu dever de guardiã da castidade da filha. Não nos esqueceremos, naturalmente, de que, de forma semelhante, a mãe se opõe à masturbação do menino, fornecendo-lhe assim, também, um forte motivo de rebelião. Quando a menina descobre sua própria deficiência, por ver um órgão genital masculino, é apenas com hesitação e relutância que aceita esse desagradável conhecimento. Como já vimos, aferrase obstinadamente à expectativa de um dia também ter um órgão genital do mesmo tipo, e seu desejo por ele sobrevive até muito tempo após sua esperança ter-se expirado. Invariavelmente a criança encara a castração, em primeira instância, como um infortúnio peculiar a ela própria; só mais tarde compreende que ela se estende a certas outras crianças e, por fim, a certos adultos. Quando vem a compreender a natureza geral dessa característica, disso decorre a feminilidade - e com ela, naturalmente, sua mãe sofrer uma grande depreciação a seus olhos. A descrição de como as meninas reagem à impressão da castração e à proibição da masturbação, provavelmente impressionará o leitor como confusa e contraditória. Não é, inteiramente, falha do autor. Na verdade, é quase impossível fornecer uma descrição que possua validade geral. Encontramos as mais diferentes reações em diferentes indivíduos e, no mesmo indivíduo, as atitudes contrárias coexistem lado a lado. Com a primeira intervenção da proibição, o conflito se forma e, doravante, acompanhará o desenvolvimento da função sexual. A compreensão interna do que ocorre é tornada particularmente difícil pelo fato de ser muito difícil distinguir os processos mentais dessa primeira fase dos posteriores, pelos quais são cobertos e deformados na memória. Assim, por exemplo, uma menina pode posteriormente interpretar o fato da castração como sendo uma punição por sua atividade masturbatória, e atribuirá a efetivação dessa punição ao pai; nenhuma dessas idéias, porém, pode ter sido primária. Do mesmo modo, os meninos normalmente temem a castração por parte do pai, embora também em seu caso a ameaça provenha mais geralmente da mãe. Seja como for, ao final dessa primeira fase de ligação à mãe, emerge, como motivo mais forte para a menina se afastar dela, a censura por a mãe não lhe ter dado um pênis apropriado, isto é, tê-la trazido ao mundo como mulher. Uma segunda censura, que não remonta tão atrás, é bastante surpreendente. É que sua mãe não lhe deu leite bastante, não a amamentou o suficiente. Nas condições da civilização moderna, isso freqüentemente pode ser bastante verídico, embora decerto não tão freqüentemente quanto é asseverado nas análises. Pareceria antes que essa acusação dá expressão à insatisfação geral dos filhos, que, em nossa civilização monogâmica, são desmamados após seis ou nove meses, ao passo que a mãe primitiva se devota exclusivamente ao filho por dois ou três anos. É como se nossos filhos tivessem permanecido para sempre insaciados, como se nunca tivessem sugado por tempo suficiente o seio de sua mãe. Contudo, não estou seguro de que, se analisássemos crianças que tivessem sido amamentadas por tanto tempo quanto as dos povos primitivos, não nos depararíamos com a mesma queixa, tão grande é a voracidade da libido de uma criança! Quando, passamos em revista toda a gama de motivos para se afastar da mãe que a análise traz à luz - que ela falhou em fornecer à menina o único ou órgão genital correto, que não a amamentou o suficiente, que a compeliu a partilhar o amor da mãe com outros, que nunca atendeu às expectativas de amor da menina, e, finalmente, que primeiro despertou a sua atividade sexual e depois a proibiu -, todos esses motivos, não obstante, parecem insuficientes para justificar a hostilidade final da menina. Alguns deles decorrem inevitavelmente da natureza da sexualidade infantil; outros aparecem como racionalizações imaginadas posteriormente, para explicar a mudança incompreendida no sentimento. Talvez o fato real seja que a ligação à mãe está fadada a pe recer, precisamente por ter sido a primeira e tão intensa, tal como freqüentemente se pode ver acontecer nos primeiros casamentos de mulheres jovens, que ingressaram neles quando estavam mais apaixonadamente amorosas. Em ambas as situações, a atitude de amor provavelmente passa para a de pesar pelos inevitáveis desapontamentos e pela acumulação de ocasiões para a agressão. Via de regra, os segundos casamentos se mostram muito melhores. Não podemos chegar ao ponto de afirmar que a ambivalência de catexias emocionais seja uma lei universalmente válida, e que seja absolutamente impossível sentir grande amor por uma pessoa sem que esse amor seja acompanhado por um ódio talvez igualmente grande, ou vice-versa. Sem dúvida, os adultos normais conseguem separar essas duas atitudes uma daoutra, e não estão obrigados a odiar seus objetos amorosos ou a amar seus inimigos tanto quanto a odiá-los. Isso porém, parece resultar de desenvolvimentos posteriores. Nas primeiras fases da vida erótica, a ambivalência é evidentemente a regra. Não poucas pessoas retêm esse traço arcaico durante toda sua vida. É característico dos neuróticos obsessivos que, em seus relacionamentos objetais, o amor e o ódio se contrabalancem mutuamente. Também nas raças primitivas podemos dizer que a ambivalência predomina. Concluiremos, então, que a intensa ligação da menina à mãe é fortemente ambivalente, sendo precisamente em conseqüência dessa ambivalência que (com a assistência dos outros fatores que aduzimos) sua ligação se afasta à força da mãe mais uma vez, isto é, em conseqüência de uma característica geral da sexualidade infantil. A explicação que tentei fornecer defronta-se em seguida com uma pergunta: ‘Como é, então, que os meninos podem manter intacta sua ligação com a mãe, que decerto não é menos forte do que a das meninas?’ A resposta chega com igual presteza: ‘Porque os meninos podem lidar com seus sentimentos ambivalentes para com a mãe dirigindo toda sua hostilidade para o pai.’ Em primeiro lugar, porém, não devemos dar resposta até que tenhamos efetuado um estudo atento da fase pré-edipiana nos meninos, e, em segundo lugar, provavelmente é mais prudente, em geral, admitir que ainda não dispomos de uma compreensão clara desses processos, com os quais só recentemente nos familiarizamos. III Uma outra pergunta surge: ‘O que é que a menina exige da mãe? Qual é a natureza de seus objetivos sexuais durante a época da ligação exclusiva à mãe?’ A resposta que obtemos do material analítico é exatamente a que esperaríamos. Os objetivos sexuais da menina em relação à mãe são tanto ativos quanto passivos e determinados pelas fases libidinais através das quais a criança passa. Aqui, a relação da atividade com a passividade é especialmente interessante. Pode-se facilmente observar que em todo campo de experiência mental, não simplesmente no da sexualidade, quando uma criança recebe uma impressão passiva, ela tende a produzir uma reação ativa. Tenta fazer ela própria o que acabou de ser feito a ela. Isso faz parte do trabalho que lhe é imposto de dominar o mundo externo e pode mesmo levar a que se esforce por repetir uma impressão que teria toda razão para evitar, por causa de seu conteúdo aflitivo. Também o brinquedo das crianças é realizado para servir ao fim de suplementar uma experiência passiva com um comportamento ativo, e desse modo, por assim dizer, anulá-la. Quando um médico abre a boca de uma criança, apesar da resistência dela, para examinar-lhe a garganta, essa mesma criança, após a partida daquele, brincará de ser o médico ela própria e repetirá o ataque com algum irmão ou irmã menor que esteja tão indefeso em suas mãos quanto ela nas do médico. Temos aqui uma revolta inequívoca contra a passividade e uma preferência pelo papel ativo. Essa oscilação da passividade à atividade não se realiza com a mesma regularidade ou vigor em todas as crianças; em algumas pode não ocorrer de modo algum. O comportamento de uma criança a esse respeito pode capacitar-nos a tirar conclusões quanto à intensidade relativa da masculinidade e feminilidade que ela apresentará em sua sexualidade. As primeiras experiências sexuais e sexualmente coloridas que uma criança tem em relação à mãe são, naturalmente, de caráter passivo. Ela é amamentada, alimentada, limpa e vestida por esta última, e ensinada a desempenhar todas as suas funções. Uma parte de sua libido continua aferrando-se a essas experiências e desfruta das satisfações e elas relacionadas: outra parte, porém, esforça-se por transformá-las em atividade. Em primeiro lugar, a amamentação ao seio dá lugar ao sugamento ativo. Quanto às outras experiências, a criança contenta-se quer em se tornar auto-suficiente - isto é, executando com ela própria com sucesso o que até então fora feito para ela -, quer em repetir suas experiências passivas, sob forma ativa, no brinquedo, ou, então, transforma realmente a mãe em objeto e comporta-se para com ela como sujeito ativo. Por muito tempo não consegui acreditar nesse último comportamento, que se realiza no campo da ação real, até que minhas observações removeram todas as dúvidas sobre o assunto. Raramente ouvimos falar numa menina que quer lavar ou vestir sua mãe, ou que lhe diga para efetuar suas funções excretórias. Às vezes, é verdade, ela diz: ‘Agora vamos brincar que eu sou a mãe e você é a filha’; geralmente, porém, realiza esses desejos ativos de maneira indireta, em seu brinquedo com a boneca, brinquedo em que representa a mãe, e a boneca, a filha. A predileção que as meninas têm por brincar com bonecas, em contraste com os meninos, é comumente encarada como sinal de uma feminilidade precocemente desperta, e isso não sem razão; não devemos, porém, desprezar o fato de que o que nisso encontra expressão é o lado ativo da feminilidade e que a preferência da menina por bonecas provavelmente constitui prova da exclusividade de sua ligação à mãe, com negligência completa do objeto paterno. A atividade sexual bastante surpreendente de meninas em relação à mãe manifesta-se cronologicamente em inclinações orais, sádicas e, por fim, até fálicas, dirigidas no sentido desta. É difícil fornecer uma descrição pormenorizada dessas inclinações, porque freqüentemente elas constituem impulsos instintuais obscuros que era impossível à criança apreender psiquicamente por ocasião de sua ocorrência, e que, portanto, só foram por ela interpretados posteriormente, aparecendo então na análise sob formas de expressão que decerto não foram as originais. Às vezes, nos deparamos com elas como transferências para o objeto paterno posterior, ao qual não pertencem, e onde interferem seriamente em nossa compreensão da situação. Encontramos os desejos orais agressivos e sádicos da menina sob uma forma a eles forçada pela repressão precoce, como um temor de ser morta pela mãe, temor que, por sua vez, justifica seu desejo de morte contra a mãe, se este se torna consciente. É impossível dizer quão freqüentemente esse temor da mãe é apoiado por uma hostilidade inconsciente por parte desta, hostilidade que é pela menina. (Até aqui, foi apenas em homens que encontrei o temor de ser comido. Esse medo se refere ao pai, mas provavelmente constitui o produto de uma transformação da agressividade oral dirigida para a mãe. A criança deseja comer a mãe, de quem recebe seu alimento, no caso do pai, não existe um determinante assim tão óbvio para o desejo.)Todas as pacientes que mostravam uma intensa ligação com a mãe em quem pude estudar a fase pré-edipiana, disseram-me que, quando suas mães lhes aplicavam clisteres ou lavagens retais, elas costumavam oferecer a maior resistência e reagiam com medo e gritos de raiva. Esse comportamento pode ser muito freqüente ou mesmo habitual em crianças. Só vim a compreender o motivo para essa oposição especialmente violenta através de uma observação feita por Ruth Mack Brunswick, que estava estudando esses problemas ao mesmo tempo que eu, observação segundo a qual se mostrava inclinada a comparar a irrupção de raiva após a aplicação de um clister com o orgasmo que se segue à excitação genital. A ansiedade acompanhante, pensava ela, deveria ser interpretada como uma transformação do desejo de agressão que fora despertado. Acredito que é realmente assim e que, em nível anal-sádico, a intensa excitação passiva da zona intestinal é respondida por um desencadeamento do desejo de agressão que se manifesta quer diretamente, como raiva, quer, em conseqüência de sua repressão, como ansiedade. Em anos posteriores, essa reação parece cessar. Quanto aos impulsos passivos da fase fálica, é digno de nota que as meninas regularmente acusem as mães de seduzi-las. Isso ocorre porque elas necessariamente recebem suas primeiras, ou, de qualquer modo, suas mais fortes sensações genitais quando estão sendo limpas e tendo sua toalete auxiliada pela mãe (ou por alguém, como uma babá, que tomou o lugar desta). Mães me contaram com freqüência, a título de observação, que suas filhinhas de dois e três anos de idade têm prazer com essas sensações e tentam conseguir que suas mães as tornem mais intensas através do tocar e do esfregar repetidos. O fato de assim a mãe inevitavelmente iniciar a filha na fase fálica, constitui, penso eu, o motivo por que, nas fantasias posteriores, o pai tão regularmente aparece como o sedutor sexual. Quando a filha se afasta da mãe, transmite também ao pai sua introdução na vida sexual.Por fim, impulsos cheios de desejo, intensos e ativos, dirigidos no sentido da mãe, também surgem durante a fase fálica. A atividade sexual desse período culmina na masturbação clitoriana. Esta é provavelmente acompanhada por idéias referentes à mãe; não consegui, porém, descobrir, a partir de minhas observações, se a criança liga um objetivo sexual à idéia, ou qual seja esse objetivo. Somente quando todos os seus interesses receberam novo ímpeto pela chegada de um bebê, irmão ou irmã, podemos identificar claramente esse objetivo. A menina deseja crer que deu à mãe o novo bebê, tal como o menino também quer; e sua reação a esse acontecimento e sua conduta para com o bebê é exatamente a mesma que a dele. Não há dúvida de que isso soa absurdo, mas talvez seja apenas por soar tão pouco familiar. O afastamento da mãe constitui um passo extremamente importante no curso do desenvolvimento de uma menina. Trata-se de algo mais do que uma simples mudança de objeto. Já descrevemos o que nele acontece e os muitos motivos apresentados para ele; podemos agora acrescentar que, de mãos dadas com o mesmo, deve ser observado um acentuado abaixamento dos impulsos sexuais ativos e uma ascensão dos passivos. É verdade que as tendências ativas foram mais intensamente afetadas pela frustração; revelaram-se totalmente irrealizáveis e, portanto, são mais prontamente abandonadas pela libido. Mas tampouco as tendências passivas escaparam ao desapontamento. Com o afastamento da mãe, a masturbação clitoriana não raro cessa também, e, com bastante freqüência, quando a menina reprime sua masculinidade prévia, uma parte considerável de suas tendências sexuais em geral fica também permanentemente danificada. A transição para o objeto paterno é realizada com o auxílio das tendências passivas, na medida em que escaparam à catástrofe. O caminho para o desenvolvimento da feminilidade está agora aberto à menina, até onde não se ache restrito pelos remanescentes da ligação pré-edipiana à mãe, ligação que superou. Se agora passarmos em revista a fase do desenvolvimento sexual na mulher que acabamos de descrever, não poderemos resistir a tirar uma conclusão definida sobre a sexualidade feminina como um todo. Descobrimos em ação nessa fase as mesmas forças libidinais que na criança do sexo masculino, e pudemos convencer-nos de que, durante algum tempo, essas forças seguem o mesmo curso e têm o mesmo desfecho em ambos. Subseqüentemente, fatores biológicos desviam essas forças libidinais [no caso da menina] de seus objetivos originais, inclusive conduzindo as tendências ativas e, em todo sentido, masculinas, para canais femininos. Visto não podermos afastar a noção de que a excitação sexual deriva do funcionamento de certas substâncias químicas, parece plausível, a princípio, esperarque a bioquímica um dia nos revele uma substância cuja presença produza uma excitação sexual masculina e outra substância que produza uma feminina. Mas essa esperança parece não menos ingênua do que aquela outra - hoje felizmente obsoleta -, a de ser possível, ao microscópio, isolar os diferentes fatores excitantes da histeria, da neurose obsessiva, da melancolia, e assim por diante. Mesmo na química sexual, as coisas devem ser muito mais complicadas. Para a psicologia, contudo, é indiferente que exista no corpo uma única substância sexualmente excitante, duas, ou um número incontável delas. A psicanálise nos ensina a lidar com uma libido única, a qual, é verdade, possui objetivos (isto é, modalidades de satisfação) tanto ativos quanto passivos. Essa antítese e, acima de tudo, a existência de tendências libidinais com objetivos passivos, contém em si mesma o restante de nosso problema. IV Um exame da literatura analítica sobre o assunto mostra que tudo que aqui foi dito por mim, já pode ser encontrado nela. Teria sido supérfluo publicar este artigo, não fosse pelo fato de que, num campo de pesquisa de acesso tão difícil, todo relato de experiências de primeira mão ou de pontos de vista pessoais pode ser de valor. Ademais, existe uma série de pontos que defini mais nitidamente e isolei com mais cuidado. Em alguns dos outros trabalhos sobre o tema, a descrição é obscurecida porque eles lidam simultaneamente com os problemas do superego e do sentimento de culpa. Evitei fazer isso. Também, ao descrever os diversos desfechos dessa fase de desenvolvimento, abstive-me de debater as complicações que surgem, quando uma criança, em resultado de um desapontamento com o pai, retorna à ligação com a mãe que abandonara, ou quando, no decorrer de sua vida, ela repetidamente muda de uma posição para a outra. Precisamente, porém, por meu artigo constituir apenas uma contribuição entre outras, posso poupar-me de fazer um levantamento exaustivo da literatura e limitar-me a apresentar os pontos mais importantes a respeito dos quais concordo com esses outros trabalhos ou deles discordo. A descrição feita por Abraham (1921) das manifestações do complexo de castração na mulher ainda não foi ultrapassada, mas teria sido motivo de satisfação que ela tivesse incluído o fator da ligação original exclusiva da menina com a mãe. Concordo com os principais pontos do importante artigo de Jeanne Lampl-de Groot (1927). Nele, a total identidade da fase pré-edipiana em meninos e meninas é reconhecida, e a atividade sexual (fálica) da menina para com a mãe é afirmada e substanciada por observações. O afastamento da mãe tem sua origem remontada à influência do reconhecimento da castração por parte da menina, fato que a obriga a abandonar seu objeto sexual e, com freqüência, a masturbação junto com ele. O desenvolvimento completo é resumido na fórmula de que a menina atravessa uma fase negativa de complexo de Édipo, antes de poder ingressar na positiva. Um ponto sobre o qual acho a descrição da autora inapropriada é o que representao afastamento da mãe como sendo simplesmente uma mudança de objeto e não examina o fato de ele ser acompanhado pelas manifestações mais diretas de hostilidade. A essa hostilidade justiça plena é feita no último artigo de Helene Deutsch, sobre o masoquismo feminino e sua relação com a frigidez (1930), artigo em que ela também reconhece a atividade fálica da menina e a intensidade de sua ligação à mãe. Helene Deutsch afirma, ainda, que o voltar-se da menina para o pai se realiza via suas tendências passivas (que já tinham sido despertadas em relação à mãe). Em seu livro anterior (1925), a autora ainda não se tinha libertado do afã de aplicar o modelo edipiano à fase pré-edipiana e, portanto, interpretara a atividade fálica da menina como sendo uma identificação com o pai. Fenichel (1930), corretamente, dá ênfase à dificuldade de reconhecer, no material produzido na análise, quais as partes dele que representam o conteúdo não modificado da fase pré-edipiana e quais as partes que foram deformadas pela regressão (ou por outros modos). Não aceita a afirmativa de Jeanne Lampl-de Groot quanto à atitude ativa da menina na fase fálica. Rejeita também o ‘deslocamento para trás’ do complexo de Édipo, proposto por Melanie Klein (1928), que situa seus primórdios já no começo do segundo ano de vida. Essa aposição de data, que necessariamente acarretaria também uma modificação de nossa opinião sobre todo o restante do desenvolvimento da criança, não corresponde, na realidade, ao que aprendemos nas análises de adultos, sendo especialmente incompatível com minhas descobertas quanto à longa duração da ligação pré-edipiana da menina à mãe. Um meio de suavizar essa contradição é proporcionado pela reflexão de que ainda não estamos capacitados a distinguir, nesse campo, entre o que é rigidamente fixado por leis biológicas e o que se acha aberto ao movimento e à mudança, sob a influência acidental. O efeito da sedução há muito tempo nos é familiar, e, exatamente da mesma maneira, outros fatores - tais como a data em que os irmãos e as irmãs da criança nasceram ou a ocasião em que ela descobre a diferença entre os sexos, ou, ainda, suas observações diretas de relações sexuais ou a conduta dos pais em incentivá-lo ou repeli-lo - podem apressar o desenvolvimento sexual da criança e conduzi-la à maturidade. Alguns autores inclinam-se a reduzir a importância dos primeiros e mais originais impulsos libidinais da criança em favor de processos desenvolvimentais posteriores, de maneira que - para colocar esse ponto de vista sob sua forma mais extrema - o único papel deixado aos primeiros é simplesmente o de indicar certos caminhos, ao passo que as intensidades [psíquicas] que fluem ao longo dessas vias são abastecidas por regressões e formações reativas posteriores. Assim, por exemplo, Karen Horney (1926) é de opinião que superestimamos grandemente a inveja do pênis primária da menina e que a intensidade da tendência masculina que mais tarde ela desenvolve deve ser atribuída a uma inveja do pênis secundária, utilizada para desviar seus impulsos femininos e, em particular, sua ligação feminina com o pai. Isso não concorda com minhas impressões. Certa como é a ocorrência de reforços posteriores através da regressão e da formação reativa, e por difícil que seja estimar a força relativa dos componentes libidinais confluentes, penso, não obstante, que não devemos desprezar o fato de os primeiros impulsos libidinais possuírem uma intensidade que lhes é própria, superior a qualquer outra que surja depois, e que pode ser verdadeiramente chamada de incomensurável. Sem dúvida é verdade que existe uma antítese entre a ligação ao pai e o complexo de masculinidade; trata-se da antítese geral que existe entre atividade e passividade, masculinidade e feminilidade. Mas isso não nos dá direito a supor que apenas uma delas seja primária e que a outra deva sua intensidade simplesmente à força da defesa. E, se a defesa contra feminilidade é tão enérgica, de que outra fonte pode ela haurir sua força senão da tendência masculina que encontrou sua primeira expressão na inveja do pênis da criança e que, portanto, merece ser denominada segundo esta? Uma objeção semelhante aplica-se à opinião de Ernest Jones (1927) de que a fase fálica nas meninas constitui mais uma reação secundária, protetora, do que um estágio desenvolvimental genuíno. Isso não corresponde quer à posição dinâmica quer à posição cronológica das coisas. BREVES ESCRITOS (1928-1931) DR. REIK E O PROBLEMA DO CHARLATANISMO UMA CARTA À NEUE FREIE PRESSE (1926) Prezado senhor, Num artigo de seu número de 15 de julho, que trata do caso de meu aluno, Dr. Theodor Reik, ou, mais precisamente, numa seção dele intitulada ‘Informações dos Círculos Psicanalíticos’, há uma passagem sobre a qual gostaria de fazer algumas observações, a título de correção. A passagem diz: ‘…durante os últimos anos ficou convencido de que o Dr. Reik, que angariou uma vasta reputação por seus trabalhos filosóficos e psicológicos, possui um dom muito maior para a psicanálise do que os médicos ligados à escola freudiana, e confiou os casos mais difíceis apenas a ele e a sua filha Anna, que se mostrou especialmente hábil na difícil técnica da psicanálise.’ O próprio Dr. Reik seria, penso eu, o primeiro a rejeitar uma descrição desse tipo de base de nossas relações. É verdade, contudo, que me vali de sua perícia em casos particularmente difíceis, mas isso só aconteceu quando os sintomas residiam numa esfera muito afastada da física. E jamais deixei de informar um paciente de que ele não é médico, mas psicólogo. Minha filha Anna dedicou-se à análise pedagógica de crianças e adolescentes. Jamais, até agora, lhe encaminhei um caso de doença neurótica grave em adulto. Incidentalmente, o único caso com sintomas moderadamente graves, a beirar o psiquiátrico, de que ela até o presente tratou, recompensou o médico que a ela o encaminhou com seu completo sucesso. Aproveito a oportunidade para lhe informar que acabei de mandar imprimir um pequeno trabalho sobre A Questão da Análise Leiga [1926e].Nele tentei demonstrar o que é uma psicanálise e quais exigências ela faz ao analista. Considerei as relações, muito longe de serem simples, entre a psicanálise e a medicina, e tirei a conclusão de que qualquer aplicação mecânica, a analistas formados, da seção contra o charlatanismo [do código penal] está aberta a graves dúvidas. Visto que abandonei minha clínica de Viena e limitei minha atividade ao tratamento de alguns estrangeiros, confio em que esse anúncio não me envolva também num processo por propaganda contra a ética profissional. Seu, Professor Freud O DR. ERNEST JONES (SOBRE SEU 50º ANIVERSÁRIO) (1929) O primeiro trabalho que coube à psicanálise desempenhar foi a descoberta dos instintos comuns a todos os homens que hoje vivem - e não apenas aos que hoje vivem, mas aos dos tempos antigos e pré-históricos. Portanto, não exigiu grande esforço à psicanálise ignorar as diferenças surgidas entre os habitantes da Terra devido à multiplicidade de raças, linguagem e países. Desde o início ela foi internacional, sendo bem sabido que seus seguidores superaram os efeitos divisórios da Grande Guerra mais cedo de que quaisquer outros. Entre os homens que estavam em Salzburg na primavera de 1908, para o primeiro congresso psicanalítico, proeminente foi um jovem médico inglês, que apresentou um pequeno trabalho sobre a ‘Racionalização na Vida Cotidiana’. O conteúdo desse primeiro fruto ainda é válido até hoje: nossa jovem ciência se enriqueceu com um importante conceito e um termo indispensável. Dessa época em diante, Ernest Jones nunca descansou. Primeiro em seu cargo de professor em Toronto, depois como médico em Londres, como fundador e professor de uma sociedade, como diretor de uma editora, redator-chefe de um periódico e diretor de um instituto de formação, trabalhou incansavelmente pela psicanálise, tornando, através de palestras, suas descobertas correntes conhecidas geralmente, defendendo-a contra os ataques e as incompreensões de seus oponentes através de críticas brilhantes severas, mas justas, mantendo sua difícil posição na Inglaterra contra as exigências da ‘profession’ (profissão) com tato e moderação, e, juntamente com todas essas atividades externamente dirigidas, realizando, em leal cooperação com o desenvolvimento da psicanálise no Continente, a obra científica da qual, entre outros trabalhos, seus Papers on Psycho-Analysis e Essays in Applied Psycho-Analysis dão testemunho. Agora, na plenitude da vida, ele não apenas é, indiscutivelmente, a principal figura entre os analistas de fala inglesa, mas também é reconhecido como um dos representantes de proa da psicanálise em geral - um sustentáculo para seus amigos e, tanto quanto sempre foi, uma esperança para o futuro de nossa ciência. Agora que o Diretor deste periódico rompeu o silêncio a que se condenou - ou a que tem direito - devido a sua idade, a fim de saudar o amigo, permita-se-lhe que conclua, não com um desejo - pois não acreditamos na onipotência dos pensamentos -, mas com a admissão de que não pode pensar em Ernest Jones, mesmo após seu qüinquagésimo aniversário, como outro que não o de antes: zeloso e enérgico, combativo e devotado à causa. O PARECER DO PERITO NO CASO HALSMANN (1931 [1930]) Até onde sabemos o complexo de Édipo está presente na infância em todos os seres humanos, sofre grandes alterações durante os anos de desenvolvimento e, em muitos indivíduos, é encontrado em graus variáveis de intensidade, mesmo em idade madura. Suas características essenciais, sua universalidade, seu conteúdo e seu destino foram reconhecidos, muito antes dos dias da psicanálise, por aquele agudo pensador, Diderot, tal como mostra uma passagem de seu famoso diálogo, Le Neveu de Rameau: ‘Si le petit sauvage était abandoné à lui-même, qu’il conservât tout son imbécilité, et qu’il reunît au peu de raison de l’enfant au berceau la violence des passions de l’homme de trente ans, il tordrait le cou à son père et coucherait avec sa mère’. Se tivesse sido objetivamente demonstrado que Philipp Halsmann assassinara seu pai, haveria, em todo caso, alguns fundamentos para introduzir o complexo de Édipo, a fim de fornecer um motivo para um ato de outro modo inexplicável. Visto que nenhuma prova desse tipo foi aduzida, amenção do complexo de Édipo possui um efeito desorientador; é, na melhor das hipóteses, ociosa. Discordâncias como as que se revelou existirem pela investigação na família de Halsmann entre o pai e o filho são inteiramente inapropriadas para fornecer uma base sobre a qual presumir no filho um mau relacionamento com o pai. Mesmo que fosse de outra maneira, seríamos obrigados a dizer que há uma grande distância entre isso e a causação de tal feito. Precisamente por estar sempre presente, o complexo de Édipo não é apropriado para fornecer uma decisão sobre a questão da culpa. A situação considerada por uma anedota bem conhecida poderia ter sido facilmente apresentada. Houve um roubo com arrombamento. Um homem que tinha um pé-de-cabra entre suas posses foi julgado culpado do crime. Depois que o veredicto foi pronunciado e que lhe perguntaram se tinha algo a dizer, implorou que fosse sentenciado por adultério ao mesmo tempo, já que carregava o instrumento consigo também para isso. No grande romance de Dostoievski, Os Irmãos Karamassovi, a situação edipiana se situa no ponto focal de interesse. O velho Karamassovi fez-se detestar pelos filhos através de uma opressão cruel; aos olhos de um deles é, além disso, um poderoso rival quanto à mulher que deseja. Esse filho, Dimitri, não faz segredo de sua intenção de vingar-se do pai pela força. É, portanto, natural que, depois de o pai ter sido assassinado e roubado, ele seja acusado como seu homicida e, apesar de todos os seus protestos de inocência, condenado. Contudo, Dimitri é inocente; foi outro irmão seu quem cometeu o ato. Uma frase que se tornou famosa ocorre durante a cena do julgamento nesse romance: ‘A psicologia é uma faca de dois gumes’. O Parecer da Faculdade de Medicina de Innsbruck parece inclinado a atribuir um ‘efetivo’ complexo de Édipo a Philipp Halsmann, mas se abstém de definir a medida dessa efetividade, visto que, sob a pressão da acusação, as condições necessárias para uma ‘exposição irrestrita’ por parte de Philipp Halsmann não foram atendidas. Quando a Faculdade prossegue recusando, mesmo ‘na suposição de o acusado ser culpado, procurar a raiz do ato num complexo de Édipo’, estão levando sua negação longe demais, sem necessidade alguma. No mesmo Parecer, deparamo-nos com uma contradição que de modo algum é sem significação. A possível influência do choque emocional sobreo distúrbio da memória com referência a impressões antes e durante a ocasião decisiva é minimizada ao extremo, em minha opinião injustamente. As suposições quanto a um estado mental excepcional ou de doença mental são decisivamente rejeitadas, mas a explicação de uma ‘repressão’ ter ocorrido em Philipp Halsmann após o ato é prontamente admitida. Devo dizer, contudo, que uma repressão desse tipo, a cair do céu sobre um adulto que não indica neurose grave - a repressão de uma ação que certamente seria mais importante do que quaisquer pormenores discutíveis de distância e a passagem do tempo, e que ocorre num estado normal ou num estado alterado apenas pela fadiga física -, seria uma raridade de primeira ordem. INTRODUÇÃO AO NÚMERO ESPECIAL DE PSICOPATOLOGIA DE THE MEDICAL REVIEW OF REVIEWS(1930) O Dr. Feigenbaum pediu-me para escrever algumas palavras para [um número] da Revista de que é o responsável e aproveito a oportunidade para desejar o melhor êxito a seu empreendimento. Freqüentemente escuto que a psicanálise é muito popular nos Estados Unidos e que aí não se defronta com a mesma obstinada resistência que na Europa. Minha satisfação por isso, contudo, é turbada por diversas circunstâncias. Parece-me que a popularidade do nome da psicanálise nos Estados Unidos não significa uma atitude amistosa para com a coisa em si, nem qualquer conhecimento especialmente amplo ou profundo dela. Como prova do primeiro fato posso apontar que, embora apoio financeiro possa ser fácil e abundantemente conseguido para toda espécie de empresas científicas e pseudocientíficas, nunca alcançamos êxito em obter respaldo para nossas instituições psicanalíticas. Tampouco é difícil encontrar provas para minha segunda afirmação. Embora os Estados Unidos possuam diversos analistas excelentes e, no Dr. A. A. Brill, pelo menos uma autoridade, as contribuições à nossa ciência provindas desse imenso país são exíguas e pouco apresentam que seja novo. Psiquiatras e neurologistas fazem uso freqüente da psicanálise como método terapêutico, mas, via de regra, mostram pouco interesse por seus problemas científicos e sua significação cultural. Particularmente com freqüência encontramos nos médicos e autores americanos uma familiaridade muito insuficiente com a psicanálise, de modo que só conhecem seus termos e algumas palavras de engodo - embora isso não os abale na certeza de seu discernimento. E esses mesmos homens misturam a psicanálise a outros sistemas de pensamento, que dela podem ter-se desenvolvido, mas que com ela são atualmente incompatíveis. Ou, então, fazem uma miscelânea com a psicanálise e outros elementos, e citam esse procedimento comoprova de sua broad-mindedness (tolerância), ao passo que isso só prova sua lack of judgement (falta de critério) Muitos desses males que mencionei com pesar indubitavelmente se originam do fato de existir nos Estados Unidos uma tendência geral a abreviar o estudo e a preparação e a passar tão rápido quanto possível à aplicação prática. Há uma preferência também a estudar um tema como a psicanálise não a partir das fontes originais, mas de relatos de segunda mão e, com freqüência, inferiores. A perfeição está fadada a sofrer com isso. É de esperar que trabalhos do tipo que o Dr. Feigenbaum pretende publicar em sua Revista sejam um poderoso incentivo ao interesse pela psicanálise nos Estados Unidos. INTRODUÇÃO A ELEMENTOS DE PSICANÁLISE, DE EDOARDO WEISS(1931[1930]) O autor destas conferências, meu amigo e aluno, Dr. Edoardo Weiss, expressou o desejo de que eu lançasse sua obra com algumas palavras de recomendação. Assim fazendo, estou plenamente ciente de que tal recomendação é supérflua. A obra fala por si mesma. Todos que sabem apreciar a seriedade de um esforço científico, valorizar a honestidade de um investigador que não procura diminuir ou negar as dificuldades, e auferir prazer da perícia de um mestre que traz luz à escuridão e ordem ao caos, através de sua exposição, deverão formar uma alta estima deste livro e partilhar de minha esperança de que ele desperte, entre os círculos cultos e eruditos da Itália, um interesse duradouro pela jovem ciência da psicanálise. Sigm. Freud PREFÁCIO A TEN YEARS OF THE BERLIN PSYCHO-ANALYTIC INSTITUTE (1930) As páginas seguintes descrevem a fundação e as realizações do Instituto Psicanalítico de Berlim, ao qual estão destinadas três importantes funções dentro do movimento psicanalítico. Em primeiro lugar, ele se esforça por tornar nossa terapia acessível à grande multidão que padece com suas neuroses não menos do que os abastados, mas não está em condições de enfrentar o custo de seu tratamento. Em segundo, procura fornecer um centro em que a análise possa ser teoricamente ensinada e no qual a experiência de analistas mais antigos possa ser transmitida a alunos ansiosos por aprender. Por fim, visa a aperfeiçoar nosso conhecimento das doenças mentais e nossa técnica terapêutica, por sua aplicação e verificação sob novas condições. Um Instituto dessa espécie era indispensável, mas teríamos esperado em vão pela assistência do Estado ou pelo interesse da Universidade em sua fundação. Aqui, foram a energia e o auto-sacrifício de um analista, individualmente, que tomaram a iniciativa. Dez anos atrás, o Dr. Max Eitingon, hoje Presidente da Associação Psicanalítica Internacional, criou um Instituto como este com seus próprios recursos, e desde então o manteve e dirigiu por seus próprios esforços. Esse Relatório sobre a primeira década do Instituto de Berlim constitui um tributo a seu criador e diretor - uma tentativa de lhe prestar agradecimentos públicos. Todos aqueles que, em qualquer sentido, partilham da psicanálise, se unirão em assim agradecer-lhe. PREFÁCIO A GENERAL THEORY OF THE NEUROSES ON A PSYCHO-ANALYTIC BASIS, DE HERMANN NUNBERG, (1931[1931]) Este volume da autoria de Hermann Nunberg contém a mais completa e conscienciosa apresentação de uma teoria psicanalítica dos processos neuróticos que atualmente possuímos. Quem quer que esteja ansioso por ter simplificados e reduzidos os problemas pertinentes, dificilmente achará satisfação nesta obra, mas todos os que preferirem o pensamento científico e puderem apreciar como mérito o fato de a especulação nunca abandonar a linha diretriz da experiência, bem como todos os que puderem fruir da bela diversidade dos acontecimentos mentais, valorizarão esta obra e a estudarão assiduamente. VIENA, outubro de 1931. CARTA AO BURGOMESTRE DE PRIBOR (1931) Apresento meus agradecimentos ao Burgomestre da cidade de Príbor-Freiberg, aos organizadores desta homenagem e a todos aqueles que a estão assistindo, pela honra que me prestaram em assinalar a casa em que nasci com esta plaqueta comemorativa, saída das mãos de um artista - e isso no decorrer de minha vida e enquanto o mundo ao redor de nós ainda não chegou a um acordo em sua estimativa a respeito de minha obra. Deixei Freiberg com a idade de três anos e visitei-a quando contava dezesseis, durante minhas férias escolares, como hóspede da família Fluss, nunca mais a ela retornando. Desde essa época, muita coisa me aconteceu; meus trabalhos foram muitos, experimentei algum sofrimento e também felicidade, e tive minha quota de sucesso - a mistura comum da vida humana. Aos setenta e cinco anos de idade, não me é fácil colocar-me de novo naqueles tempos; de suas ricas experiências, apenas algumas relíquias permanecem em minha lembrança. Mas de uma coisa posso estar certo: profundamente enterrada dentro de mim ainda vive a criança feliz de Freiberg, o primeiro filho de uma mãe ainda moça, que recebeu suas primeiras e indeléveis impressões deste ar e deste solo. Assim, seja-me permitido terminar minhas palavras de agradecimento por um voto sincero pela felicidade deste lugar e daqueles que nele vivem. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos VOLUME XXII (1932-1936) Dr. Sigmund Freud NOVAS CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS SOBRE PSICANÁLISE (1933 [1932]) NOTA DO EDITOR INGLÊS NEUE FOLGE DER VORLESUNGEN ZUR EINFÜHRUNG IN DIE PSYCHOANALYSE (a) EDIÇÕES ALEMÃS: 1933 Viena: Internationaler Psychoanalytischer Verlag. 255 págs. 1934 G.S., 12, 149-345. 1940 G.W., 15, iv + 206 págs. (b) TRADUÇÃO INGLESA: New Introductory Lectures on Psycho-Analysis 1933 Londres: Hogarth Press e Institute of Psycho-Analysis.xi + 240 págs. (Tr. de W. J. H. Sprott) 1933 Nova Iorque: Norton. xi + 257 págs. (Reimpressão da anterior.) A presente tradução inglesa é uma nova tradução feita por James Strachey. Partes das Conferências XXX e XXXI do texto original foram incluídas em Almanach 1933 (9-30 e 35-58); e parte da Conferência XXXIV, em Psychoanal. Bewegung, 4 (novembro-dezembro, 1932), 48197. A Conferência XXX, na tradução inglesa de 1933, foi incluída em Devereux, Psychoanalysis and the Occult (Nova Iorque, 1953), 91-109. Um resumo da parte inicial da Conferência XXX, escrito pelo próprio Freud, apareceu numa tradução húngara na edição de Magyar Hirlap, Budapeste, de 25 de dezembro de 1932 (Freud 1932d). Sabemos, de Ernest Jones, (1957, 186-7), que, embora o volume levasse a data ‘1933’ no seu frontispício, ele foi realmente publicado em 6 de dezembro de 1932 - com isso repetindo a história de A Interpretação de Sonhos (ver [1]). No início de 1932, a situação financeira do quadro editorial psicanalítico (a‘Verlag’) estava difícil, e Freud teve a idéia de vir em seu auxílio com uma nova série (‘Neue Folge’, no título em alemão) de Conferências Introdutórias. A primeira e a última conferências estavam prontas no fim de maio, e o livro todo estava completo em fins de agosto. Estas conferências diferem da série original em diversos aspectos, e não apenas no fato de que jamais se cogitou em pronunciá-las. Conforme assinala Freud, no prefácio que ele mesmo escreveu, elas não possuem vida própria; são, na sua essência, suplementos. Aspecto especialmente digno de nota nestas conferências, porém, é a forma pela qual diferem, nas suas características, umas das outras. A primeira conferência, sobre sonhos, não é muito mais do que um resumo da seção sobre sonhos da série anterior. Por sua vez a terceira, a quarta e a quinta conferências (sobre a estrutura da mente, sobre a ansiedade e a teoria dos instintos, e sobre a psicologia feminina) introduzem material e teorias inteiramente novos e, ao menos no que respeita à terceira e à quarta conferências, aprofundam-se em discussões metapsicológicas e teóricas de uma dificuldade que havia sido diligentemente evitada, quinze anos antes. As três conferências restantes - a segunda e as duas últimas - abordam conjuntamente assuntos diversos, apenas indiretamente relacionados à psicanálise; e os abordam, acima de tudo, segundo o que se poderia quase descrever como uma forma popular. Isto não sugere que sejam destituídas de interesse - longe disso -, mas exigem espécie e grau de atenção muito diferentes, por parte do leitor, em comparação com as demais conferências. Se o leitor desejar ouvir o que Freud pensa sobre telepatia, educação, religião e comunismo, ou se deseja conhecer os últimos pontos de vista de Freud sobre o superego, sobre a ansiedade, sobre o instinto de morte e sobre a fase pré-edipiana das meninas, certamente encontrará abundante material com que se ocupar nestas conferências. PREFÁCIO Minhas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise foram proferidas durante os dois períodos de inverno de 1915-16 e 1916-17, em uma sala de conferências da Clínica Psiquiátrica de Viena, perante ouvintes provenientes de todas as faculdades da Universidade. As conferências da primeira metade foram improvisadas, sendo providenciada a sua redação logo após; as das segunda metade foram delineadas num esboço feito durante as férias do verão desse intervalo, em Salzburg, e lidas palavra por palavra no inverno seguinte. Naquela época eu ainda tinha o dom de uma memória fonográfica. Estas novas conferências, diferentemente das anteriores, nunca foram proferidas. Minha idade, nesse ínterim, havia-me liberado da obrigação de expressar minha condição de membro da Universidade (que, de qualquer modo, era uma condição periférica) fazendo conferências; e uma operação cirúrgica havia-me impossibilitado de falar em público. Se, portanto, mais uma vez tomo o meu lugar na sala de conferências, durante os comentários que se seguem, é somente por um artifício de imaginação; isto pode ajudar-me a não me esquecer de levar em conta o leitor, à medida que me aprofundar mais em meu tema. As novas conferências de modo algum pretendem ocupar o lugar das anteriores. Em nenhum sentido elas formam uma entidade independente, com a expectativa de encontrar um círculo de leitores apenas seus; são continuações e suplementos que, em relação à série anterior, se dividem em três grupos. Um primeiro grupo contém novas abordagens de assuntos que já haviam sido discutidos, há quinze anos, mas que, em conseqüência de um aprofundamento de nosso conhecimento e de uma modificação em nossos pontos de vista, requerem atualmente uma exposição diferente, ou seja, revisões críticas. Os dois outros grupos contêm o que na verdade são ampliações, pois tratam de coisas que não existiam na psicanálise à época das primeiras conferências, ou que estavam muito pouco em evidência para justificar que constituíssem título de capítulo. É inevitável, mas não é de se lamentar, que algumas das novas conferências reúnam características de mais de um desses grupos. Também assinalei a dependência destas novas conferências em relação às Conferências Introdutórias, dando-lhes uma numeração contínua com a destas últimas. A primeira conferência deste volume, por conseguinte, tem o nº XXIX. Assim como as suas predecessoras, oferecem ao analista profissional pouca coisa nova; são endereçadas à multidão de pessoas instruídas às quais talvez possamos atribuir um interesse benévolo, ainda que cauteloso, pelas características e descobertas da jovem ciência. Também desta vez, meu objetivo principal foi o de não fazer concessões que visassem a dar uma aparência de que as coisas sejam simples, completas, acabadas, procurei não camuflar problemas e não negar a existência de lacunas e de incertezas. Em nenhum campo de trabalho científico seria necessário proclamar tais intenções modestas. São universalmente consideradas evidentes por si mesmas; o público não espera nada diferente. Nenhum leitor de um artigo sobre astronomia se sentirá desapontado e desdenhoso em relação à ciência quando lhe são mostradas aquelas fronteiras em que nosso conhecimento do universo se transforma em nebulosidade. Somente na psicologia isto é diferente. Nesta, a inabilidade constitucional da humanidade para a investigação científica surge inteiramente à mostra. O que as pessoas parecem exigir da psicologia não é o progresso no conhecimento, mas satisfações de algum outro tipo; todo problema não resolvido, toda incerteza reconhecida é transformada em vitupério contra ela. Todo aquele que zela pela ciência da vida mental deve aceitar também essas injustiças que a acompanham. FREUD VIENA, verão de 1932. CONFERÊNCIA XXIX REVISÃO DA TEORIA DOS SONHOS SENHORAS E SENHORES: Depois de um intervalo de mais de quinze anos, se eu os reuni novamente para discutir com os senhores quais novidades, e quais melhoramentos, talvez, o tempo intercorrente possa ter introduzido na psicanálise, é correto e adequado, sob mais de um ponto de vista, que devamos voltar nossa atenção primeiramente para a posição que ocupa a teoria dos sonhos. Esta ocupa um lugar especial na história da psicanálise e assinala um ponto decisivo; foi com ela que a psicanálise progrediu de método psicoterapêutico para psicologia profunda. Também, desde aí, a teoria dos sonhos permaneceu o que é mais característico e peculiar na jovem ciência, algo em relação ao qual não há similar no restante de nosso conhecimento, uma área de território novo que foi reavido das crenças populares e do misticismo. O caráter exótico das asserções que ela foi obrigada a apresentar, fê-la desempenhar o papel de senha, cujo uso decidiu quem poderia tornar-se seguidor da psicanálise e a quem ela permaneceria para sempre incompreensível. Eu próprio considerei a teoria dos sonhos âncora de salvação durante aqueles tempos duros nos quais os fatos não-reconhecidos das neuroses costumavam confundir meu julgamento inexperiente. Sempre que eu começava a ter dúvidas com referência à correção de minhas conclusões hesitantes, a transformação exitosa de um sonho absurdo e intrincado em processo mental inteligível da pessoa que teve o sonho vinha renovar minha confiança de estar no caminho certo. Portanto, é de especial interesse para nós, no caso particular da teoria dos sonhos, por um lado, seguir as vicissitudes por que passou a psicanálise durante este intervalo, e, por outro lado, verificar que progressos fez para ser compreendida e valorizada pelo mundo contemporâneo. Posso dizer-lhes desde logo que os senhores ficarão desapontados em ambos esses sentidos. Examinemos os volumes da Internationale Zeitschrift für (ärztliche) Psychoanalyse [Revista Internacional de Psicanálise (Médica)], na qual, desde 1933, os escritos de peso em nossa área de trabalho têm sido reunidos. Nos volumes iniciais, os senhores encontrarão um título de seção que se repete, ‘Sobre a Interpretação de Sonhos’, contendo numerosas contribuições sobre diferentes pontos da teoria dos sonhos. No entanto, quanto mais prosseguirem cronologicamente nesse exame, mais raras se tornam essas contribuições e, por fim, o título de seção desaparece completamente. Os analistas fazem como se não tivessem nada mais a dizer acerca de sonhos, como se nada mais houvesse a ser acrescentado à teoria dos sonhos. Se os senhores, contudo, perguntarem quanto da interpretação de sonhos foi aceito pelos intrusos - pelos muitos psiquiatras e psicoterapeutas que aquecem sua panela de sopa em nosso fogo (aliás, sem serem muito agradecidos à nossa hospitalidade), por aqueles que são catalogados como pessoas cultas, que têm o hábito de assimilar os achados mais surpreendentes da ciência, pelos literatos e pelo público em geral -, a resposta dá poucos motivos para se ficar satisfeito. Algumas fórmulas passaram a ser do conhecimento geral, entre elas algumas que nós nunca apresentamos - tal como a tese de que todos os sonhos são de natureza sexual -, mas coisas realmente importantes, como a fundamental diferença entre o conteúdo manifesto dos sonhos e os pensamentos oníricos latentes, a percepção de que a função de realização de desejos dos sonhos não é contradita pelos sonhos de ansiedade, a impossibilidade de interpretar um sonho a menos que se tenha à disposição as respectivas associações do sonhador, acima de tudo a descoberta de que o essencial nos sonhos é o processo da elaboração onírica - tudo isso ainda parece quase tão alheio ao conhecimento da maioria das pessoas, como o era há trinta anos. Estou em condições de dizer isto, pois, no decorrer desse período, tenho recebido inumeráveis cartas cujos autores apresentam seus sonhos para interpretação, ou pedem informações acerca da natureza dos sonhos, e declaram que leram o meu