InIcIando a construção

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InIcIando a construção
CAPÍTULO 1
Iniciando
a construção
Sumário • 1.1 Como tudo começou; 1.1.1 Primeiros registros históricos: a
actio popularis; 1.1.2 As ações de grupo na Inglaterra medieval; 1.1.3 O declínio das ações de grupo na Idade Moderna; 1.1.4 Atravessando o oceano: rumo
aos Estados Unidos; 1.1.5 As class actions na Regra 23 original de 1938; 1.1.6
Da reforma de 1966 até os dias de hoje; 1.2 Lançando a pedra fundamental: a
classe e o representante; 1.2.1 Primeiro pressuposto: a classe; 1.2.2 Segundo
pressuposto: o representante; 1.3 Condições da ação nas class actions?; 1.3.1
Legitimidade processual e representação do grupo; 1.3.2 Regra geral: o representante como integrante do grupo; 1.3.3 Legitimação das associações e
dos entes despersonalizados; 1.3.4 Legitimação dos entes públicos e as ações
parens patriae; 1.3.5 Interesse processual; 1.3.6 Perda superveniente do interesse processual nas class actions
Antes de iniciar qualquer construção de maior vulto com segurança, é preciso estudar muito bem o terreno, verificando a sua composição e resistência e analisando a existência de eventual lençol freático,
entre outras providências, para saber exatamente quais estruturas ele
suportará. Consciente dessa necessidade de saber onde se está pisando, é exatamente a isso que se propõe este primeiro item: investigar
as raízes históricas que serviram de base para as ações coletivas nos
Estados Unidos.
Ultrapassada essa etapa, será o momento de estruturar os alicerces e lançar a pedra fundamental, investigando os pressupostos de
uma class action.
1.1 Como tudo começou
A evolução histórica da tutela coletiva norte-americana ainda não
recebeu o tratamento merecido da doutrina naquele país. Normalmente, os livros mais conhecidos sobre as class actions tratam do assunto
de forma muito superficial, geralmente com uma simples referência às
Bill of Peace da Corte de Chancelaria inglesa nos séculos XVII e XVIII,
para a partir daí descrever em linhas gerais o desenvolvimento do ins-
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tituto nos Estados Unidos com as Equity Rules de 1842 e 1912, a aprovação das FRCP em 1938 e, finalmente, a profunda revisão da Regra 23
ocorrida no ano de 19661.
A superficialidade da grande maioria dos autores norte-americanos no tratamento da matéria tem um alto preço. Segundo entendimento predominante da doutrina, as class actions deitam as suas raízes
sobre o Bill of Peace da Corte de Chancelaria inglesa2. Outros autores
apontam a Inglaterra medieval como o berço das ações coletivas3. Nenhum deles, no entanto, faz menção ao primeiro antecedente histórico
das ações coletivas, as actiones popularis, cuja origem se perde na história do direito romano clássico4.
1.1.1 Primeiros registros históricos: a actio popularis
A existência das actiones popularis é praticamente ignorada pela
doutrina americana, tendo desaparecido até mesmo dos manuais de
1.
2.
3.
4.
Sintomática a este respeito é a principal obra de referência sobre as class actions nos
Estados Unidos. Trata-se da coleção Newberg on class actions, editada em onze volumes. De uma forma geral, todos os assuntos ali são tratados com uma impressionante
profundidade. Surpreendentemente, porém, o tema da evolução histórica das class
actions é enfrentado em singelas quatro páginas. V. CONTE, Alba; NEWBERG, Herbert
H. Newberg on class actions. 4. ed. St. Paul: Thomson West, 2002, v. 1, p. 30/33.
Nesse sentido, entre muitos outros: STORY, Joseph. Commentaries on equity pleadings and the incidents thereof, according to the practice of the Courts of Equity of
England and America. 4 ed. Boston: Charles C. Little and James Brown, 1848, especialmente p. 123 e segs. (descreve as class actions como uma exceção ao princípio
de que todas as partes interessadas no litígio devem ser reunidas nos processos
julgados pelas Cortes de equidade); CHAFEE JR., Zechariah. Some problems of equity. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1950, p. 163/164 (“Class suits began as
an offshoot of bills of peace with multiple parties”); MOORE, James W.; COHN, Marcus. Federal class actions, Illinois Law Review, v. 32, 1937, p. 307/308; WEINER;
William; SZYNDROWSKI, Delphine. The class action, from the English Bill of Peace
to Federal Rules of Civil Procedure 23: is there a common thread?, Whittier Law Review, v. 8, 1987, p. 936; HAZARD JR., Geoffrey C. Indispensable party: the historical
origin of a procedural phantom, Columbia Law Review, v. 61, 1961, p. 1260.
V., entre outros, MARCIN, Raymond B. Searching the origin of the class action, Catholic University Law Review, v. 23, 1974, p. 521/523 (sustenta que o primeiro registro histórico das ações coletivas se encontra em um caso julgado pelas Cortes Reais
de Westminster no século XIV) e a principal obra de referência sobre o assunto
nos Estados Unidos: YEAZELL, Stephen C. From medieval group litigation to the modern class action. New Haven and London: Yale University Press, 1986, p. 38 e segs.
(aponta que as ações coletivas se originaram na Inglaterra medieval do século XII).
Nesse sentido, apontando que as actiones popularis se perdem na história do direito
romano, SILVA, José Afonso da. Ação popular constitucional. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 17.
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direito romano5. As ações populares em Roma não eram propriamente
um procedimento especial6. Esta denominação, na realidade, englobava um conjunto variado de ações cuja característica diferenciada consistia em permitir que qualquer cidadão ingressasse em juízo, ainda
que não tivesse no assunto um interesse pessoal direto7. Existe no Digesto de Justiniano, a propósito, um título inteiro dedicado às ações
populares8, destinadas à tutela dos bens públicos e dos valores mais
relevantes para a sociedade romana. Trata-se, portanto, de exceção ao
princípio da legitimação individual, que exigia a presença de um interesse pessoal do demandante9.
O surgimento das actiones popularis em um sistema essencialmente individualista pode ser facilmente explicado pelo fato de a noção
de Estado ainda não estar bem definida naquele momento histórico.
Não se havia concebido até então o Estado como uma entidade autô5.
6.
7.
8.
9.
Nesse sentido, DI PORTO, Andrea. Interdictos populares y protección de las res in
usu publico – lineas de una investigación, Roma e America. Diritto Romano Comune,
v. 17, 2004, p. 293. No artigo, são discutidos alguns motivos que teriam conduzido
ao desaparecimento das ações populares nos manuais de direito romano, tais como
a construção do Estado como uma pessoa jurídica com existência própria, o que
afastaria a possibilidade de defesa direta e pessoal dos bens públicos pelos cidadãos, e a interpretação dos institutos romanos pela escola da Pandectística alemã
de Windscheid, que optou por rechaçar as partes do direito romano que não podiam ser assimiladas pelo sistema jurídico alemão de sua época.
V. MERCER, Peter P. The citizen’s right to sue in the public interest: the Roman actio
popularis revisited, University of Western Ontario Law Review, v. 21, 1983, p. 97.
Nesse sentido, entre outros, BIELSA, Rafael. A ação popular e o poder discricionário
da administração, Revista Forense, v. 157, jan./fev. 1955, p. 37; VAN DER VYER, J.
A. Actiones populares and the problem of standing in Roman, Roman-Dutch, South
African and American law, Acta Juridica, v. 1978, 1978, p. 192; SILVA, José Afonso
da. Op. Cit., p. 18; BUZAID, Alfredo. Considerações sobre o mandado de segurança
coletivo. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 39. Há que se considerar, no entanto, que o conceito de cidadão em Roma não era tão amplo como se poderia imaginar à primeira
vista. Pelo menos a princípio, mulheres, menores e escravos estavam excluídos do
rol de legitimados para propor as actiones popularis. V. LEONEL, Ricardo de Barros.
Manual do processo coletivo. São Paulo: RT, 2002, p. 45.
V. transcrições extraídas do livro 47, título XXIII do Digesto de Justiniano, inteiramente dedicado às ações populares, em BUZAID, Alfredo. Op. Cit., p. 40/41.
Os autores apontam, de forma geral, que o direito romano sempre manteve com
extremo rigor o princípio da legitimidade ativa em termos individualistas, exigindo
do autor que apresentasse um interesse pessoal e direto no litígio. V., entre outros,
SILVA, José Afonso da. Op. Cit., p. 18; MACEDO, Alexander dos Santos. Da ação popular – Retratabilidade da posição assumida pela pessoa jurídica no processo – possibilidade, Revista Forense, n. 328, out./dez. 1994, p. 3/4; MANCUSO, Rodolfo de
Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada – teoria geral das ações coletivas. São
Paulo: RT, 2006, p. 23 e LEONEL, Ricardo de Barros. Op. Cit., p. 41.
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noma, de sorte que os bens públicos pertenciam a cada um dos cidadãos romanos em uma espécie de comunhão indivisível. Estado e povo
são conceitos equivalentes, pelo menos até a fase do Império Romano
(por volta do século I a.C.)10. As actiones popularis eram, portanto, o
instrumento através do qual cidadãos ingressavam em juízo na defesa
de bens públicos11.
Uma relação das espécies de ações populares romanas servirá para
dar uma boa ideia dos bens públicos considerados relevantes naquele
momento histórico. Algumas das actiones popularis tradicionalmente
reconhecidas pela doutrina são as seguintes: ação de sepulcro violato
(concedida no caso de violação de sepulcro, coisa santa ou religiosa);
ação de effusis et deiectis12 (concedida contra quem atirasse objetos de
sua casa sobre a via pública); ação de positis et suspensas (cabível contra quem mantivesse objetos na sacada ou na aba do telhado sem tomar
as cautelas necessárias); ação de albo corrupto (admitida contra quem
adulterasse o edito dos pretores romanos); ação de bestiis (cabível
para fins de evitar que fossem levados animais perigosos a lugares de
acesso comum); ação de termino moto (admitida contra quem adulterasse os limites entre propriedades privadas); ação de tabulis (admitida contra quem abrisse o testamento ou aceitasse a herança de alguém
violentamente morto, sem que antes fosse apurada a responsabilidade dos servos); interdictum de homine libero exhibendo (ação voltada
para garantir a liberdade de pessoas livres mantidas indevidamente
como escravos, guardando certa semelhança com a figura do habeas
corpus); ação de collusione detegenda (admitida quando escravos eram
declarados nascidos livres em conluio com os seus antigos donos) e a
10. Segundo Andrea di Porto, a partir da fase imperial de Roma, a noção de um Estado
autônomo e diferenciado da pluralidade de cidadãos romanos foi ganhando espaço. Progressivamente, a tutela de bens públicos foi sendo confiada a determinados
oficiais da administração imperial, denominados “curadores”. O cidadão continuou
legitimado a defender apenas alguns bens públicos, de forma bastante limitada.
Assim foi que, ao longo dos séculos, construiu-se a concepção moderna de bens
públicos, inserida nos esquemas de propriedade individual do Estado. V. DI PORTO,
Andrea. Op. Cit., p. 316/318.
11. Nesse sentido, MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação popular – proteção do erário,
do patrimônio público, da moralidade administrativa e do meio ambiente. 5 ed. São
Paulo: RT, 2003, p. 42/43; LEONEL, Ricardo de Barros. Op. Cit., p. 41 (enfatizando a
existência de um forte vínculo natural entre o cidadão e a gens, na falta do adequado
delineamento do Estado) e DI PORTO, Andrea. Op. Cit., p. 316/317.
12. No artigo de J. A. Van der Vyer, encontra-se denominação ligeiramente diferente
para esta espécie de ação: actio de deiectis vel effusis. V. VAN DER VYER, J. A. Op. Cit.,
p. 192.
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accusatio suspecti tutoris (concedida para promover a remoção do tutor suspeito, em defesa do patrimônio do menor e da ordem pública)13.
Muitas das ações populares romanas tinham caráter eminentemente penal, levando à imposição de multas contra o infrator, que podiam ser revertidas ao autor da ação (como um prêmio por ter vindo a
juízo na defesa de bens públicos), ao erário ou até para terceiros14. Outras, todavia, mesmo possibilitando a aplicação de penas pecuniárias,
se assemelhavam mais às atuais ações cominatórias ou aos interditos
proibitórios15. Pode-se afirmar, portanto, a existência de duas categorias de actiones popularis: as penais e as civis16.
Para os fins do presente estudo, existem dois pontos importantes a
serem ressaltados no que diz respeito às actiones popularis romanas. O
13. Uma relação bastante abrangente das actiones popularis pode ser encontrada em
SILVA, José Afonso da. Op. Cit., p. 21/25. Encontram-se na doutrina outras espécies
além daquelas mencionadas no texto, tais como a actio legis Plaetoria (admitida
contra quem induziu a erro a outra parte contratante, desde que esta última fosse
menor de vinte e cinco anos de idade), a interdicta de itineribus publicis e interdicta
de fluminibus publicis (destinadas a resguardar o tráfego em vias terrestres públicas
e nos rios, respectivamente) e o intedito de cloacis (defesa da utilização do esgoto
público). V., nesse sentido, as relações apresentadas em VAN DER VYER, J. A. Op. Cit.,
p. 192; SEABRA FAGUNDES, Miguel. Da ação popular, Revista de direito administrativo, v. 6, out. 1946, p. 2 e LEONEL, Ricardo de Barros. Op. Cit., p. 48/49.
14. São exemplos a ação de sepulcro violato, de albo corrupto, de effusis et deiectis, de
positis et suspensas e de tabulis. Na ação de collusione detegenda, o escravo era adjudicado ao autor da ação popular como prêmio por ter descoberto o conluio com
seu antigo dono. A accusatio suspecti tutoris, por sua vez, representa um exemplo
de ação popular em que a soma da condenação estava destinada a terceiros. V. VAN
DER VYER, J. A. Op. Cit., p. 192 e SILVA, José Afonso da. Op. Cit., p. 21/26. Aludindo
também ao caráter eminentemente penal das actio popularis do direito romano,
LEONEL, Ricardo de Barros. Op. Cit., p. 44.
15. Incluem-se nessa categoria, por exemplo, o interdictum de homine libero exhibendo,
bem como os interdicta de itineribus publicis e interdicta de fluminibus publicis. V.
VAN DER VYER, J. A. Op. Cit., p. 192.
16. V. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação popular.... Op. Cit., p. 45 e SILVA, José Afonso
da. Op. Cit., p. 28/29. Encontram-se na doutrina as mais diversas classificações para
as actiones popularis romanas. Elas podem ser separadas, por exemplo, conforme a
sua origem (decorrentes de lei ou de construção pretoriana), à natureza jurídica do
meio de exercício (ações ou interditos populares) ou, ainda, quanto ao destinatário
da condenação (em favor do erário, do autor da ação ou de terceiros). Outra classificação diz respeito ao caráter procuratório das ações populares, ou seja, se o autor
ingressa em juízo apenas na defesa de um interesse público ou para a tutela concomitante de interesses pessoais e públicos. A discussão sobre as classificações das
ações populares romanas foge aos objetivos do presente estudo. Recomenda-se, a
propósito, a leitura de SILVA, José Afonso da. Op. Cit., p. 25/26 e LEONEL, Ricardo
de Barros. Op. Cit., p. 47/48, com referências bibliográficas sobre o tema.
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primeiro deles é que, segundo o disposto no Digesto de Justiniano (D.
47.23.3), se uma determinada matéria já foi decidida em uma ação popular anterior, não poderá novamente ser apreciada em uma segunda
ação, ainda que o autor seja diferente. Esta regra constitui, em termos
bastante simplificados, a primeira noção de coisa julgada em demandas de caráter coletivo17.
O segundo aspecto a ser destacado se afigura ainda mais surpreendente. Segundo uma outra regra inserida também no Digesto (D.
47.23.2), caso mais de uma pessoa comparecesse em juízo para ingressar com uma actio popularis em defesa do mesmo interesse, a preferência deveria ser dada àquela que apresentasse melhores condições
em termos de idoneidade e de maior interesse pessoal no litígio18. Isso
quer dizer que, em termos bastante rudimentares, havia no direito
romano uma norma relacionada à concepção de representatividade
adequada. Como será oportunamente discutido, trata-se de conceito
primordial para as class actions do direito contemporâneo nos Estados
Unidos e para as ações coletivas de forma geral19. Cumpre ressaltar, porém, que esta noção foi construída no direito americano independentemente da concepção romana. Não se pode, portanto, falar em evolução das actiones popularis em Roma até os dias de hoje, mas apenas
nos primeiros registros históricos sobre o tema.
Após a queda do Império Romano do Ocidente (por volta do século V d.C.), o destino das ações populares restou incerto. Até onde o
direito romano manteve a sua influência, essas ações foram observadas e aplicadas, desde que compatíveis com os regulamentos políticos
das cidades situadas nos territórios outrora dominados por Roma. O
direito bárbaro não conheceu nenhum instituto similar às actiones popularis20. Sem embargo, ao contrário do que sustentam alguns autores,
não é correta a afirmação de que não teriam existido ações coletivas
17. Nesse sentido, entre outros, VAN DER VYER, J. A. Op. Cit., p. 192; BUZAID, Alfredo.
Op. Cit., p. 40 e LEONEL, Ricardo de Barros. Op. Cit., p. 45.
18. Nesse sentido, VAN DER VYER, J. A. Op. Cit., p. 192; BUZAID, Alfredo. Op. Cit., p. 40;
BIELSA, Rafael. Op. Cit., p. 39 e LEONEL, Ricardo de Barros. Op. Cit., p. 51.
19. Sobre o conceito de representatividade adequada, v. item 2.1.4 infra. Encontrar uma
concepção relacionada à representatividade adequada no direito romano é surpreendente. O direito brasileiro em vigor, por exemplo, em pleno século XXI, ainda não
consagra expressamente este conceito em sua legislação, embora a doutrina discuta a possibilidade do controle da representatividade adequada pelo juiz em determinados casos
20. Nesse sentido, v. as obras de SILVA, José Afonso da. Op. Cit., p. 29 e MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação popular... Op. Cit., p. 47/49.
Iniciando a construção 31
na Idade Média21. As ações populares romanas realmente entraram em
declínio. Nada obstante, a tutela coletiva também pode ser encontrada
durante este período histórico, ainda que de forma não dogmatizada,
nem institucionalizada. A desintegração da escravidão romana e o advento do feudalismo, um modo de produção baseado nas relações entre servos e senhores de terras22 que somente se consolidaria no século
IX, criaram as condições para o desenvolvimento das ações coletivas na
Idade Média, sobretudo a partir do século XII.
1.1.2 As ações de grupo na Inglaterra medieval
A Europa medieval estava organizada de forma muito diferente
dos dias de hoje nos aspectos social, político e econômico. Com efeito,
a sociedade contemporânea e os sistemas jurídicos atuais se encontram baseados na figura do indivíduo, sujeito de direitos e obrigações
por excelência. Por esta razão, qualquer observador contemporâneo
necessita de justificações especiais para explicar a existência de associações de indivíduos, sejam elas permanentes ou temporárias, compulsórias ou voluntárias, amplas ou restritas. As ações coletivas não
fogem a este fenômeno: elas também demandam justificativas e explicações, sobretudo no que diz respeito à vinculação e ao grau de participação dos indivíduos envolvidos no litígio.
Na Idade Média, todavia, encontra-se uma sociedade organizada
em torno de pequenas coletividades23. Na Inglaterra do século XII,
pouco após a conquista normanda, a maioria das pessoas estava trabalhando na agricultura. Os vilarejos (villages) eram predominantemente
compostos de servos, vinculados entre si por um conjunto de obrigações e privilégios com os senhores feudais. Cada um dos feudos possuía seu próprio conjunto de normas internas, que disciplinavam os
21. Sustentando que a Idade Média teria desconhecido o fenômeno das ações coletivas,
v. CARNEIRO, Nélson. Das ações populares civis no direito brasileiro, Revista de Direito Administrativo, v. 25, jul./set. 1951, p. 477.
22. Os servos não podem ser considerados escravos porque, embora eles não tenham
direitos oponíveis contra o senhor feudal, o mesmo não ocorre com relação às outras pessoas. Neste caso, o servo é tratado como se fosse um homem livre. A servidão não é propriamente um estado, mas sim uma relação estabelecida entre o
servo e o senhor feudal. Nesse sentido, v. POLLOCK, Frederick; MAITLAND; Frederic
William. Op. Cit., p. 415.
23. V. YEAZELL, Stephen C. From medieval group litigation... Op. Cit., p. 84. A obra de
Stephen C. Yeazell, intitulada From medieval group litigation to the modern class
action, publicada no ano de 1986, é ainda hoje a principal obra de referência sobre o
desenvolvimento histórico das class actions norte-americanas, cuja leitura se revela
obrigatória para aqueles que desejarem se aprofundar na matéria.
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deveres com o senhor feudal, a forma de organização dos servos, o uso
das terras, a manutenção das vias públicas e a criação de animais. Os
feudos consistiam, portanto, em unidades econômicas coletivamente
organizadas em torno da terra24.
A Igreja também exercia forte influência na Inglaterra medieval.
Tanto os servos como os homens livres deveriam oferecer dízimos e
outras oferendas para a igreja de sua paróquia (parish), sob pena de
serem excomungados. Deveriam, ainda, providenciar a manutenção
das construções eclesiásticas voltadas à realização dos cultos na comunidade local. A paróquia funcionava, assim, como uma unidade eclesiástica organizada, com o objetivo de angariar e gerenciar recursos
destinados à Igreja local. O seu funcionamento dependia de um grupo
de pessoas agindo na qualidade de representantes, escolhidos informalmente, que decidiriam de que forma os recursos obtidos pela paróquia seriam utilizados25.
Um dos maiores obstáculos para o desenvolvimento econômico
na Inglaterra medieval pode ser atribuído à precariedade dos meios
de transporte então existentes. As estradas eram muito ruins e o risco
de um ataque de salteadores, bastante considerável. O rei não podia
garantir a segurança em todo o reino, pois o Estado ainda não havia se
consolidado naquele momento histórico. Uma das medidas tomadas
para garantir a ordem pública foi instituir um sistema de autovigilância coletivamente organizado, denominado frankpledge. Segundo este
sistema, todos os homens que não fossem pessoas livres deveriam se
organizar em grupos. Os membros de cada um dos grupos seriam responsáveis pelo bom comportamento dos demais. De tempos em tempos, os representantes deveriam informar aos oficiais da Coroa os crimes cometidos pelos integrantes de seu grupo, sob pena de imposição
de multa contra toda a coletividade, sendo a mesma recolhida através
dos representantes26.
Os indivíduos não tinham a possibilidade de decidir se queriam ou
não integrar esses grupos (villages, parish, frankpledge). Todos aqueles que vivessem em um certo local e que se encaixassem em determinados requisitos eram automaticamente considerados membros das
coletividades acima descritas. As autoridades medievais não tinham o
aparato administrativo para impor obrigações particularizadas contra
24. V. YEAZELL, Stephen C. Op. Cit., p. 41/42.
25. V. YEAZELL, Stephen C. Op. Cit., p. 44/45.
26. V. YEAZELL, Stephen C. From medieval group litigation... Op. Cit., p. 43/44.
Iniciando a construção 33
cada um dos indivíduos. Por isso, impunha-se a organização coletiva
da sociedade, a fim de que os deveres pudessem ser impostos contra
o grupo. As relações estabelecidas entre os membros desses grupos,
especialmente a forma de divisão de suas obrigações com a Igreja, a
Coroa e o senhor feudal, deveriam ser ajustadas internamente, não interessando este assunto às autoridades de então27.
Saindo do campo para as vilas medievais, encontram-se coletividades organizadas de forma voluntária, como as corporações (guilds)
e os burgos (boroughs). As corporações eram fundadas em vínculos
sociais e de fraternidade entre seus integrantes, que se reuniam para
comer, beber e praticar atividades recreativas,. Corporações mercantis
se apresentavam como um porto seguro para comerciantes que viajassem para outras vilas, uma necessidade na Idade Média28. Os burgos,
na Inglaterra medieval, muitas vezes se confundiam com as corporações. Originalmente, esta designação se referia a construções fortificadas, sendo posteriormente utilizada para denominar uma cidade com
governo local estabelecido29. Na prática, entretanto, os conceitos se
confundiram. A relação pode parecer estranha, porque hoje estão estabelecidas distinções claras entre entidades públicas e privadas, entre
associações comerciais e governo municipal. Na Idade Média, contudo,
a diferenciação era tênue30. Frequentemente, as mesmas pessoas que
integravam uma corporação governavam a cidade.
Progressivamente, os dois grupos (corporações e burgos) se fortalecem e conseguem estabelecer monopólios comerciais em suas áreas
territoriais. No entanto, o rei não concederia este tipo de privilégio gratuitamente. Para obter a outorga da carta real de monopólio, o grupo
assumia obrigações junto à Coroa, normalmente se comprometendo a
recolher um pagamento anual referente a todos os moradores da vila
onde estava sediado. Em outras palavras, estava o grupo assumindo a
responsabilidade pelo recolhimento dos tributos reais, sob pena de a
Coroa poder cobrar de seus integrantes a integralidade do pagamento
não efetivado pela vila. Mais uma vez, portanto, impunha-se uma responsabilidade coletiva contra alguns representantes do grupo, assim
como acontecia nas coletividades encontradas no campo31.
27.
28.
29.
30.
V. YEAZELL, Stephen C. Op. Cit., p. 48/49.
V. YEAZELL, Stephen C. Op. Cit., p. 43.
V. YEAZELL, Stephen C. Op. Cit., p. 44.
V. YEAZELL, Stephen C. Op. Cit., p. 65 e POLLOCK, Frederick; MAITLAND; Frederic
William. Op. Cit., p. 639.
31. V. YEAZELL, Stephen C. Op. Cit., p. 63/64.
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Nesse contexto, podem ser facilmente compreendidas as primeiras
ações coletivas que se tem notícia na Inglaterra medieval, que remontam ao século XII. O primeiro caso teria sido julgado pela Corte Eclesiástica de Canterbury em 1199, quando o pároco Martin, de Barkway,
ajuizou uma ação contra os paroquianos de Nuthamstead envolvendo
o direito ao recebimento de certas oferendas e serviços diários. A ação
foi proposta contra uma coletividade, qual seja, os paroquianos de Nuthamstead, sendo que apenas algumas pessoas foram chamadas a juízo
para, aparentemente, responder por todos os integrantes do grupo. O
segundo caso ocorreu já no século XIII, quando três aldeões propuseram ação em benefício de toda a comunidade de Helpingham em face
dos povoados de Donington e Bykere, representados por apenas alguns moradores, para que prestassem assistência na reparação dos diques na região. Finalmente, o terceiro caso ocorreu no início do século
XIV, quanto Emery Gegge e Robert Wawayn, em seu próprio benefício
e de todos os médios e pobres burgueses de Scarborough, ingressaram
em juízo contra Roger atte Cross e os demais ricos burgueses daquela
cidade32.
Os três casos relatados acima são típicos da Inglaterra medieval.
Conflitos deflagrados entre párocos e paroquianos, servos e senhores
feudais, burgueses pobres e ricos certamente se repetiram inúmeras
vezes33. Infelizmente, quase todos os registros de litígios submetidos
aos tribunais locais ingleses se perderam no tempo.
De todo o modo, os registros dos casos que chegaram até os tempos contemporâneos indicam que não havia, naquela época, qualquer
preocupação acerca da possibilidade da tutela coletiva de direitos ou
da adequação do representante para defender os interesses do grupo
no processo. Nos três casos acima relatados, a discussão se restringia
32. Os casos estão referidos em YEAZELL, Stephen C. Op. Cit., p. 38/39. A propósito, é
importante ressaltar que a organização da sociedade medieval em pequenos grupos mais ou menos coesos não aconteceu exclusivamente na Inglaterra. O fenômeno também ocorreu na Europa continental, de sorte que seria equivocado afirmar
que os casos narrados por Stephen C. Yeazell foram as primeiras ações coletivas
típicas da Idade Média. Na Inglaterra e no resto da Europa certamente existiram
muitas outras ações semelhantes, antes mesmo do primeiro caso acima relatado.
Em revisão crítica da obra de Yeazell, por exemplo, Edward Peters aponta que os
moradores da vila de Rosny-sous-Bois reivindicaram no ano de 1179 o fim da condição de servos em face de seus senhores, o abade e os clérigos de Santa Genoveva,
em Paris. O litígio somente se encerrou em 1246, quando os aldeões compraram
sua liberdade, sob a condição de não formar uma comuna. V. PETERS, Edward. Book
reviews, The American Journal of Legal History, v. 34, 1990, p. 429.
33. V. YEAZELL, Stephen C. Op. Cit., p. 50.
Iniciando a construção 35
ao mérito da demanda, ou seja, se o pároco tinha direito às oferendas
e serviços de Nuthamstead, se as comunidades de Donington e Bykere
deveriam ajudar o povo de Helpingham na reparação dos diques locais
e se os burgueses ricos de Scarborough estavam oprimindo os demais.
Não se discutia, porém, se os paroquianos podiam ser processados coletivamente em uma ação, ou se Emery Gegge e Robert Wawayn representavam de forma adequada os pobres e médios burgueses34.
Na verdade, as ações coletivas medievais estavam fundadas em
outro contexto social, muito diferente do que se conhece nos dias atuais. A maior parte dos litígios dessa natureza na Idade Média envolvia
grupos previamente organizados. A sociedade estava formada em torno de pequenas coletividades, mais ou menos coesas. Muitos desses
grupos, sobretudo no campo (villages, parish, frankpledges) eram coercitivamente impostos pelas autoridades da época. Em alguns casos, as
ações coletivas nada mais representavam que um instrumento através
do qual as obrigações eram impostas à coletividade. O litígio ocorrido entre o pároco Martin e os paroquianos de Nuthamstead em 1199
constitui um excelente exemplo disso. Ao contrário do que se observa
nos dias atuais, as ações coletivas passivas (ou seja, ações propostas
contra um grupo) eram relativamente comuns naquele tempo35.
A escolha dos representantes da coletividade, de uma forma geral,
devia ser resolvida nas discussões internas do grupo. Como também já
observado, muitos dos grupos tradicionais na Idade Média assumiam
obrigações, voluntariamente (guild, borough) ou não (village, parish,
frankpledge). Para o seu cumprimento, era preciso um mínimo de organização interna, o que demandava a escolha de representantes, ainda
que mediante procedimentos informais, não necessariamente justos
ou democráticos (por exemplo, por aclamação ou por influência política ou econômica dentro do grupo). Evidentemente, tais critérios
somente eram viáveis em coletividades pequenas, que raramente ultrapassavam centenas de indivíduos.
Em princípio, as ações coletivas medievais não se destinavam a
tutelar os interesses de grupos desorganizados, que seriam estruturados somente pelo litígio coletivo, tal como ocorre nos dias atuais, por
exemplo, com os consumidores de um determinado produto defeituoso. Elas também não tinham a finalidade de proporcionar a defesa
de direitos de valor patrimonial ínfimo, caso fossem individualmente
34. V. YEAZELL, Stephen C. Op. Cit., p. 39.
35. Sobre as ações coletivas passivas, v. item 3.8 infra.