Ripe 35 - Instituição Toledo de Ensino

Transcrição

Ripe 35 - Instituição Toledo de Ensino
ISSN 1413-7100
35
agosto a novembro de 2002
REVISTA DO INSTITUTO
DE PESQUISAS E ESTUDOS
Esta edição contém produções científicas desenvolvidas
no Centro de Pós-Graduação da ITE - Bauru.
REVISTA DO INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS (DIVISÃO JURÍDICA)
Faculdade de Direito de Bauru,
mantida pela Instituição Toledo de Ensino (ITE).
Edição quadrimestral - Nº 34 - abril a julho de 2002.
EDITE - EDITORA DA ITE
Praça 9 de Julho, 1-51 - Vila Falcão - 17050-790 - Bauru - SP - Tel. (14) 220-5000
CONSELHO EDITORIAL
Cláudia Aparecida de Toledo Soares Cintra, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Iara de Toledo Fernandes, José
Roberto Martins Segalla, Jussara Susi Assis Borges Nasser Ferreira, Luiz Alberto David Araujo, Luiz Antônio Rizzato
Nunes, Lydia Neves Bastos Telles Nunes, Maria Isabel Jesus Costa Canellas, Maria Luiza Siqueira De Pretto, Murilo
Canellas, Pedro Walter De Pretto.
SUPERVISÃO EDITORIAL
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
COORDENAÇÃO
Bento Barbosa Cintra Neto
* Os textos são de inteira responsabilidade de seus autores
Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos : Divisão Jurídica.
Instituição Toledo de Ensino de Bauru. -- n. 35 (1996) - . Bauru
(SP) : a Instituição, 1996 v.
Quadrimestral
ISSN 1413-7100
1. Direito - periódico I. Instituto de Pesquisas e Estudos. II.
Instituição Toledo de Ensino de Bauru
CDD 340
Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos
n. 35
p. 1-563
2002
ÍNDICE
Apresentação
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
9
DOUTRINA NACIONAL
Aspectos constitucionais da investidura no cargo de Ministro do
Supremo Tribunal Federal
José Wilson Ferreira Sobrinho
13
As novas “contribuições” ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço.
Lei Complementar nº 110, de 29 de junho de 2001. Natureza jurídica
dos novos encargos. Aferição de sua constitucionalidade.
Trícia de Oliveira Lima
29
Recurso Especial – Teoria e Prática
Rômulo de Andrade Moreira
73
Aprovação em concurso público e direito subjetivo à nomeação.
Theophilo Antonio Miguel Filho
87
Direito ambiental, fauna, tráfico e extinção de animais silvestres
Luís Paulo Sirvinskas
95
A proteção da família, a união homossexual e o direito de igualdade
Mônica Yoshizato Bierwagen
115
A procriação artificial e o casamento
Taciana Jusfredo Simões Pinto
127
Apontamentos sobre a responsabilidade objetiva
Luciene Mauerberg Muscari
143
O ‘eu’ poético: breves incursões nos campos da criação artística e do direito
moral de autor
Emerson Ike Coan
163
Percepção científica do direito
Reis Friede
179
Apelação cível e remessa oficial
Francisco Wildo Lacerda Dantas
209
Algumas considerações sobre a tutela cautelar e antecipatória
Rômulo Resende Reis
235
O VIII laudo do Tribunal Arbitral ad hoc do Mercosul e seus fundamentos
Valerio de Oliveira Mazzuoli
243
Aspectos jurídicos das relações de trabalho no Mercosul
Neydja Maria Dias de Morais
259
Alguns aspectos das alterações no campo dos recursos
Soraya Regina Gasparetto Lunardi
273
Da natureza jurídica do acréscimo financeiro cobrado nos parcelamentos de
ICMS no Estado de São Paulo
Eduardo Amorim de Lima
297
Meio ambiente e cidadania
Luís Paulo Sirvinskas
305
PARECERES
IPTU: por ofensa a cláusulas pétreas, a progressividade prevista na emenda
Nº 29/2000 é inconstitucional
Ives Gandra da Silva Martins & Aires F. Barreto
311
As aposentadorias parlamentares e a Constituição
Marcílio Toscano Franca Filho
345
Investimentos privados para suporte de bens públicos
Robson Zanetti
377
CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO
Resumos de dissertações defendidas no Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Direito (Área de Concentração: Sistema Constitucional de Garantia de Direitos), em nível de Mestrado, da Instituição Toledo de Ensino.
Responsabilidade sem culpa e responsabilidade sem fundamento
Vilma Aparecida Fabbrizzi Souza
393
A responsabilidade civil por abuso do direito
Cristiane Augusta Pulici Sanchez
395
Responsabilidade civil das instituições financeiras decorrente de cláusulas
contratuais abusivas
Carlos Rosseto Júnior
397
Responsabilidade civil por ato médico: estudo da culpa, de sua exigência ou
não, do ônus de sua prova.
Frederico de Ávila Miguel
399
Morte: aspectos da bioética e do biodireito
Renato de Paula Magri
401
Responsabilidade civil dos pais em relação aos filhos
Carla Bertoncini
403
Embriões: aspectos jurídicos da responsabilidade civil
Aline de Queiroz Ferreira Teixeira
405
O devido processo legal na execução penal
Francisco Bento
407
Presunção de inocência: direito fundamental limitador da prisão provisória
Ana Maria Nogueira Lemes
409
A lei ordinária e seu processo legislativo
Jose Lazaro Boderg
411
Argüição de descumprimento de preceito fundamental – Instrumento de
proteção da Constituição e dos Direitos Fundamentais.
Roberto Mendes Mandelli Junior
413
Imunidades parlamentares
Jorge Kuranaka
415
Da segurança jurídica na lei n. 9868/99
Alexandre Sormani
417
NÚCLEO DE PESQUISA DOCENTE
Contratos: estrutura milenar de fundação do direito privado
Superando a crise e renovando princípios, no início do vigésimo primeiro século, ao
tempo da transição legislativa civil brasileira
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka
421
DECISÕES DE RELEVO ESPECIAL
Parecer do Ministério Público do Estado do Pará
INDEFERIMENTO do Mandado de Segurança, por entender que o serviço de água
domiciliar não goza do caráter de essencialidade obrigatória; de individualidade e
nem da obrigatoriedade de um poder público o prestar de maneira direta, conforme a fundamentação acima.
Nélio Caetano Silva (Promotor de Justiça)
437
Decisão da Juíza da 22ª Vara Cível de Belém
O fato de que a impetrante se encontrava em débito para com a recorrida, não lhe
autorizava submetê-la a qualquer constrangimento ou ameaça, coação ou qualquer
outro procedimento que exponha ao ridículo ou interfira com o seu trabalho, descanso ou lazer. A água é realmente necessária para a sobrevivência do ser humano.
Ruth do Couto Gurjão (Juíza do Tribunal de Justiça do Estado do Pará)
443
Processo: 2000131144-6. Ação de Mandado de Segurança. Impetrante: Maria
da Glória Rabelo Costa. Advogado: Mário Antônio Lobato de Paiva. Impetrado:
Presidente da Companhia do Pará-COSANPA.
Mário Antônio Lobato de Paiva
451
ESTUDOS JURÍDICOS
A cessão de crédito e o provimento nº 06/2000 da Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho. Suas conseqüências no processo trabalhista
Francisco Antonio de Oliveira
469
A prescrição do FGTS vista pelo TST. Juízo crítico de exegese ao Enunciado
362 do TST
José Salem Neto
479
O monitoramento pelo empregador do correio eletrônico
Mário Antônio Lobato de Paiva
481
A procrastinação dos precatórios
Heraldo Garcia Vitta
491
Lei Complementar nº 104/2001. Inovações no campo tributário
Francisco Ramos Mangieri
493
A discrição do Poder Judiciário
Cláudio Luiz dos Santos
499
Gestão fraudulenta ou temerária de entidade financeira. Algumas controvérsias
Ivan Lira de Carvalho
503
ATUALIZAÇÃO PENAL
Pena de morte – O erro anunciado
Luíz Flávio Borges D’Urso
511
Prof. D’Urso é entrevistado no programa do JÔ SOARES
Luíz Flávio Borges D’Urso
513
8
faculdade de direito de bauru
Casa de detenção. Desativação sim, mas não agora!
Luíz Flávio Borges D’Urso
515
A manifestação pública, pancadaria e crimes
Luíz Flávio Borges D’Urso
517
Indulto é diferente de saída temporária
Luíz Flávio Borges D’Urso
521
Breves considerações sobre a citação no processo penal
Umberto Luiz Borges D’Urso
523
ACÓRDÃOS
TJSC - QUINTA CÂMARA DE DIREITO PÚBLICO. Apelação cível n.
99.005483-7, Comarca de Blumenau, em que é apelante MUNICÍPIO DE
BLUMENAU, sendo apelado JOÃO PAULO MAMEDE.
“Apelação Cível – Ação Indenizatória – Atropelamento – Preliminar de Nulidade da
Sentença – Fundamentação Adequada – Inteligência do Art. 93, IX, da CRFB –
Raciocínio Jurídico Motivador da Teoria da Decisão”.
Volnei Carlin (Desembargador Relator)
527
3ª TURMA TRT DA 15ª REGIÃO. Acórdão 006409/2001 do Processo
025976/2000-ROS-5, publicado em 5/3/2001. Recurso Ordinário.
“Vínculo Empregatício Reconhecido. Serviços prestados por Trabalhador Rural não
enquadrados nos objetivos da Cooperativa”.
Mauro Cesar Martins de Souza ( Juiz Relator)
549
TST. Recurso de Revista nº TST-RR-569.155/99.7, em que é Recorrente o
BANCO BEMGE S.A. e Recorrido GIOVANNI CAMPOS MACHADO.
“Engenheiro. Enquadramento Sindical. Bancário. Horas Extras. Categoria
Profissional Diferenciada. Legislação Específica. Lei Nº 4.950/66... Correção
Monetária. Época Própria”.
Anelia Li Chum ( Juíza Relatora)
553
INFORMAÇÕES AOS COLABORADORES
561
APRESENTAÇão
“O homem é um caniço, a coisa mais frágil da natureza, mas é um
caniço pensante. Para destruí-lo não é necessário que todo o universo se arme; para matá-lo, basta uma gota d’água, basta um vapor. No entanto, ainda que o universo o destruísse, o homem continuaria a ser mais nobre do que aquilo que o mata, pois sabe que
morre, e sabe qual a vantagem do universo com relação a ele; e
isso é ignorado pelo universo. Portanto, toda a nossa dignidade reside no pensamento. É através deste que devemos nos elevar, e não
através do tempo e do espaço, que não podemos preencher. Procuremos, portanto, pensar bem; aí está o princípio da moralidade”
(Blaise Pascal 1623-1662).
“Pensamento”. Substantivo masculino, definido no Aurélio como: “ato ou efeito de pensar, faculdade de pensar logicamente, poder de formular conceitos, produto do pensamento, idéia, mente, recordação, lembrança, modo de pensar, opinião, frase que encerra um conceito moral.”
Não importa a definição que adotemos, pois o pensamento é atribuição exclusiva do homem.
O ser humano expressa o encontro do seu mundo interior com o exterior
através de processos cognitivos. Utiliza-se do pensamento e do conhecimento adquirido e acumulado para relacionar-se com o mundo exterior - a realidade em que
vive - tornando-se, dessa forma, espécie diferenciada no contexto do universo.
O conhecimento é necessário para o progresso do homem, pois o seu acúmulo gera sabedoria. Conhecer e pensar colocam o universo ao nosso alcance, atribuindo-lhe finalidade e razão de ser.
Historicamente, cada geração foi revelando um modo de interpretar o mundo e a natureza. Assim, desde a época primitiva, do conúbio entre o homem e a mulher surgiu a família e, da luta pela sobrevivência, a tentativa de dominar a natureza
e passar às gerações seguintes as experiências de superação de suas angústias existenciais e sociais e as soluções mais adequadas para os problemas.
Nos primórdios da civilização, utilizava o homem do fogo para se proteger de
outros animais, para assar a sua comida, para iluminar a sua caverna etc. Com o passar do tempo e o acúmulo de conhecimento haurido no decorrer das sucessivas gerações, chegamos até os dias atuais onde o fogo continua sendo fundamental para
nossa sobrevivência. Naturalmente, dentro de uma perspectiva imediatista, decorrente do feixe de papéis que assumimos, poderá tornar-se imperceptível a aplicabi-
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lidade direta do fogo no nosso dia-a-dia, como vemos em um fogão de cozinha, por
exemplo, mas como teríamos um carro se não fossem as caldeiras das siderúrgicas?
O acumular conhecimento e transmiti-lo foi fundamental para a nossa espécie. E
isso somente foi possível porque o homem é um ser pensante, capaz de armazenar
e transferir conhecimento.
No momento em que o homem procura ultrapassar o simples conhecer, o empírico, desponta o elemento básico da atividade científica, que é crítica e objetiva.
É como instrumento dessa atividade que a RIPE vem contribuindo para a nossa e as futuras gerações. Procurando analisar, explicar, predizer soluções, não só conhecendo os fenômenos por suas causas, mas sendo capaz de demonstrá-los e explicá-los.
Com isso, adquire caráter de autoridade e respeitabilidade que faltam ao senso comum (conhecimento vulgar), sem, entretanto, desprezá-lo.
Na vida, quem não pensa, não anseia, não tem metas a ser atingidas, ignora
sua missão, evitando o desafio de reescrever a sua história para as futuras gerações.
Se, como afirma Graham Greene, “O homem é sempre escolhido para uma
aventura superior às suas forças, é uma maneira de prová-lo, de testar-lhe os valores e a coragem”, resta-nos acenar para o desafio da racionalidade jurídica, que
tem como fundamento, a preservação de cada homem em sua integralidade material e espiritual correspondente à condição de integrante da humanidade, prerrogativa essencial de quem pensa, analisa e conclui neste espetáculo magnífico do universo jurídico.
Novembro de 2002.
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
doutrina Nacional
ASPECTOS CONSTITUCIONAIS DA
INVESTIDURA NO CARGO DE MINISTRO DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
José Wilson Ferreira Sobrinho
Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora/MG
Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.
Quando o projeto político noticiado por MONTESQUIEU encontrou suporte
jurídico na idéia de Estado de Direito, o mundo pôde perceber que a coisa pública,
tirante os momentos extremados da história humana, necessitava do concurso de
funções estatais (ou, para outros, poderes) distintas, porém interdependentes.
Deixando-se de lado a doutrina de BENJAMIN CONSTANT (a concepção quadripartida das funções estatais em razão da introdução do Poder Moderador) e a realidade francesa a partir da queda da monarquia (ou seja, a inexistência, em solo francês, de
um autêntico Poder Judiciário como, por exemplo, o Judiciário brasileiro), tem-se que
é comum falar-se de três funções estatais: a Executiva, a Legislativa e a Judicial.
A transposição do modelo federativo, às avessas, é verdade, dos Estados Unidos para o Brasil, feita por Rui Barbosa, fez com que a concepção tripartida das funções estatais se impusesse entre nós, com exceção de um instante onde, no Império, pretendeu-se vivenciar a função moderadora enfeixada nas mãos do Imperador.
Isto, como mostrado pela História, não teve qualquer relação substancial com a idéia
de “Poder Moderador” defendida por BENJAMIN CONSTANT, uma vez que, no Brasil, o Poder Moderador do Imperador fez com que as outras funções estatais fossem
simplesmente eclipsadas pela atuação totalitária do monarca brasileiro. Teoricamente, portanto, convivemos com o modelo tripartido das funções estatais.
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Não obstante, convém que se diga que a factualidade da América do Sul funciona como elemento de reflexão, uma vez que entre nós a figura do chamado “Executivo forte” nunca foi banida do campo dos fatos, o que faz com que se tenha uma
divisão quase nominal das funções estatais enquanto no fundo a função executiva
prepondera claramente sobre as outras. Isto, obviamente, põe em cheque a pureza
do sistema de freios e contrapesos.
Todavia, interessa, no momento, destacar o Judiciário e dentro dele o Supremo Tribunal Federal na parte dos requisitos constitucionais exigíveis para a investidura no cargo de Ministro.
I - A Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, artigo 118, parágrafo único, dispunha que:
Art. 118 – Omissis.
Parágrafo Único. Os Ministros serão nomeados pelo Presidente da
República, depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal, dentre cidadãos maiores de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada.
A atual Constituição Federal, de seu turno, estabelece em seu artigo 101:
Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze ministros,
escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de
sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada.
Parágrafo Único. Os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão
nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.
Parece, à primeira vista, que a redação dos artigos transcritos não apresenta
diferença digna de nota. Todavia as coisas não são bem assim.
Basta que se atente para as seguintes diferenças:
a)
EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 1/69
A aprovação da indicação era feita por maioria simples, uma vez que os artigos 42, inciso III, e 118, parágrafo único, não exigiam expressamente a maioria absoluta, o que seria necessário por se tratar de quorum qualificado;
Não havia limitação de idade, anterior aos 70 anos, salva a fixação de idade mínima: maior de 35 anos;
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Não se previa a argüição pública do indicado, antes da aprovação.
b)
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
A aprovação da indicação será feita pelo voto da maioria absoluta (art. 101,
parágrafo único);
Fixação de lapso temporal onde a indicação é possível: mais de 35 e menos de 65 anos de idade (art. 101, caput);
Existência de argüição pública do indicado (art. 52, inciso III, alínea “a”)
como condição prévia à aprovação.
II - O procedimento de investidura no cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal compõe-se de três momentos que serão estipulativamente denominados de: atuação do Executivo, atuação do Legislativo e atendimento aos pressupostos constitucionais pertinentes.
1 – ATUAÇÃO DO EXECUTIVO
Cabe ao Chefe do Executivo Federal iniciar o procedimento de investidura no
cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal, através da indicação de um nome.
Indicação, portanto, é o ato inicial da cadeia procedimental aplicável à obtenção do
resultado almejado.Se o nome indicado é aprovado pelo Senado Federal, atingir-seá o momento final da atuação do Presidente da República: a nomeação do indicado anteriormente para ocupar uma vaga de Ministro do Supremo Tribunal Federal.
A posse do nomeado, obviamente, é matéria pertencente ao domínio interna
corporis do próprio Supremo Tribunal Federal.
2 – ATUAÇÃO DO LEGISLATIVO
O Legislativo tem a grave responsabilidade de examinar a indicação feita pelo
Presidente da República. Tal exame é comumente chamado de “sabatina”, embora a
Constituição Federal o qualifique como argüição pública (CF, art. 52, inciso III, alínea “a”).
O trabalho do Legislativo tem dois momentos: um de natureza mais vibrante
(o exame feito pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal) e outro de índole mais formal (a aprovação propriamente dita).
Aqueles que acompanham as “sabatinas” que são feitas no âmbito da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal ficam, em certas ocasiões, com a impressão de que existe certa similitude com a realidade encontrável
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no Tribunal do Júri, onde, às vezes, o lado jurídico das teses que poderiam ser discutidas é bafejado por compreensões tecnicamente tênues e passionalmente expressivas.
De fato, vários questionamentos que são feitos não têm qualquer relação com
aquilo que um Senador da República deveria indagar a um pretendente ao cargo de
Ministro do Supremo Tribunal Federal ou mesmo do Superior Tribunal de Justiça.
Ora são perguntas pouco aproveitáveis; ora são manifestações puramente ideológicas, carregadas de antipatia. Existem, porém, instantes de acertos constitucionais.
Com efeito, em determinada argüição pública de um indicado ao cargo de Ministro civil do Superior Tribunal Militar – STM – um Senador afirmou, por mais de
uma vez, que o indicado não tinha “notório saber jurídico”. Fixou, em desdobramento, os parâmetros que, para ele, norteariam a existência de “notório saber jurídico”:
a) citação de trabalhos doutrinários do indicado por Ministros do STF;
b) citação desses trabalhos pela comunidade científica;
c) publicação de livros, artigos e similares.
Deixando-se de lado a sistematização dos parâmetros feita pelo Senador, fixemo-nos na expressão “notório saber jurídico”. Referida expressão é encontrável na
Constituição Federal, ao lado de mais duas: “notável saber jurídico” e “notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração
pública”. Convém, entretanto, ter-se presente que existem diferenças envolvendo
tais expressões, uma vez que não existe sinonímia conceitual entre “notório saber
jurídico” e “notável saber jurídico”.
O MAGNO DICIONÁRIO BRASILEIRO DA LÍNGUA PORTUGUESA consigna o
seguinte entendimento:
notável diz-se do que é digno de nota, de ser notado, de ser reparado;
apreciável, louvável, ilustre, insigne; que ocupa elevada posição social.
notório reconhecido; sabido por todos; claro; público (São Paulo: Difusão Cultural do Livro, 1995, p. 636).
Mesmo que se admita a precariedade da linguagem utilizada em um dicionário não especializado, ainda assim será possível inferir-se que o conceito de notável
encontra-se conectado a um dado substancial, efetivamente existente, enquanto a
compreensão de notório parece ter relação com um ângulo formal que, inclusive,
poderá ser construído artificialmente.Veja-se, a título de exemplo, o caso de certos
escritores de livros jurídicos que se utilizam da mídia para inculcar no público uma
idéia de sapiência que não existe de fato. São os inúmeros “juristas” e “cientistas” fabricados artificialmente pela comunidade dita científica. Tais indivíduos poderão ter
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“notório conhecimento jurídico” – no sentido de terem seus pretensos méritos intelectuais difundidos sistematicamente junto ao grande público – mas será discutível a afirmação de que têm “notável saber jurídico”.
Conseqüência: nem sempre os publicamente considerados insignes o serão
realmente. Poderão, apenas, deter o lado público dos louros gnosiológicos (notoriedade) mas não serão, só por isso, detentores de “notável saber jurídico”.
A argüição pública de um indicado para ocupar o cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal, de seu turno, deverá ser pautada pela compreensão adequada
da expressão “notável saber jurídico” a fim de que não se queira transmutá-la para
“notório saber jurídico”.
Com efeito, existem, como dito, três momentos constitucionais ligados à captação de juízes:
I-
CRITÉRIO CONSTITUCIONAL DO “NOTÁVEL SABER JURÍDICO”:
a) Ministros do Supremo Tribunal Federal (CF, art. 101, caput);
b) Ministros do Superior Tribunal de Justiça (CF, art. 104, parágrafo único);
c) Juízes do Tribunal Superior Eleitoral pertencentes à classe dos advogados
(CF, art. 119, inciso II);
d) Juízes dos Tribunais Regionais Eleitorais pertencentes à classe dos advogados (CF, art. 120, § 1º, inciso IIII).
II – CRITÉRIO CONSTITUCIONAL DO “NOTÓRIO SABER JURÍDICO”:
a) Ministros do Tribunal Superior do Trabalho que preencherem as vagas
destinadas aos advogados (CF, art. 111. § 2º);
b) Ministros civis do Superior Tribunal Militar que preencherem as vagas destinadas aos advogados (CF, art. 123, parágrafo único, inciso I);
c) Juízes dos Tribunais Regionais Federais que preencherem as vagas destinadas aos advogados (CF, art. 94, caput);
d) Juízes dos Tribunais Regionais do Trabalho que preencherem as vagas
destinadas aos advogados (CF, art. 115, parágrafo único, inciso II).
III – CRITÉRIO CONSTITUCIONAL DOS “NOTÓRIOS
CONHECIMENTOS JURÍDICOS, CONTÁBEIS, ECONÔMICOS
E FINANCEIROS OU DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA”:
a) Ministros do Tribunal de Contas da União (CF, art. 73, § 1º, inciso III).
Portanto, talvez não se possa dizer que o constituinte originário apenas não
conhecia a técnica legislativa a fim de se qualificar as diferenças constitucionais
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apontadas como meros equívocos. Na verdade é preciso resgatar, pelo caminho hermenêutico, a dimensão substancial das expressões “notável saber jurídico” e “notório saber jurídico” como condição inafastável de sua adequada concretude. Se o
constituinte originário criou tal bimembridade conceitual, não cabe ao intérprete ignorá-la.
O momento terminal da atuação do Legislativo é representado pela aprovação, ou desaprovação, daquele que foi indicado para o cargo de Ministro do STF.
Aqui, entretanto, cabe uma observação. Como a votação é secreta, um Senador não
poderá dar a conhecer o seu voto (a favor ou contra). Se o fizer, o voto não deverá
ser computado, por ser nulo, a fim de se atingir o quorum da maioria absoluta.Instrumento importante existente no âmbito da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal é o “pedido de vista”, que tem sido concedido de forma
coletiva.
O “pedido de vista” possibilita aos Senadores esclarecerem certas dúvidas envolvendo o indicado (normalmente aspectos ligados à atuação do indicado, quando
documentos suplementares sejam reputados importantes), o que poderá resultar
em uma argüição pública de bom nível.
Esclareça-se, por fim, que se houver deferimento do “pedido de vista” a sessão de argüição pública será adiada pelo prazo fixado pelo Presidente da Comissão
de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal.
3 – ATENDIMENTO AOS PRESSUPOSTOS CONSTITUCIONAIS
PERTINENTES
O artigo 101 da Constituição Federal explicita aquilo que pode ser denominado de pressupostos constitucionais da investidura no cargo de Ministro do
Supremo Tribunal Federal.
Esses requisitos podem ser visualizados da forma seguinte:
1. requisito temporal
mais de 35 e menos de 65 anos de idade.
2. requisito intelectual
3. requisito moral
notável saber jurídico.
reputação ilibada.
A limitação temporal encontrável na atual Constituição Federal (menos de 65 anos
de idade) não constava da Emenda Constitucional nº 1/69, o que fez com que momentos lamentáveis tenham ocorrido. Sim, porque indivíduos foram nomeados Ministros do
Supremo Tribunal Federal apenas para se aposentarem, uma vez que passaram 01 ano –
ou pouco mais de 01 ano – no exercício do cargo, o que não se mostra aceitável.
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O constituinte de 1988, no artigo 40, inciso III, da Constituição Federal, assentou a regra de que, no caso de aposentadoria voluntária, o servidor público deveria
ter, no mínimo, cinco anos de efetivo exercício no cargo em que a aposentadoria
ocorrerá, regra essa aplicável aos magistrados por força do artigo 93, inciso VI da
Constituição Federal.
Ora, se se inseriu na Constituição Federal um preceptivo como esse, então,
por coerência, haver-se-ia de fechar a porta larga das nomeações com motivação utilitária (permitir que os amigos do partido de plantão no poder fossem aposentados
como, por exemplo, Ministros do STF ou de outros Tribunais).
O preenchimento do requisito moral apresenta, já, certa dificuldade instrumental, mormente à luz da factualidade. Dizer-se, no plano puramente conceitual,
o que é reputação ilibada não é difícil. Basta recorrer-se ao dicionário citado precedentemente para encontrar-se o seguinte asserto:
Ilibado: não tocado; não manchado; puro; incorrupto.
Portanto, reputação ilibada é aquela que não se corrompeu, que não se fez
manchada. Não obstante, tornar tal conceito parte da concretude comportamental
é uma tarefa delicada, quase impossível de ser realizada a contento.
Isto é assim porque “reputação ilibada” poderá ser tudo ou ser nada, dependendo do referencial que for utilizado. Figuremos dois exemplos hipoteticamente
construídos: indicação de alguém, para ocupar uma vaga de Ministro do STF, tendo
como pano de fundo, no tocante à reputação do indicado, uma espécie de retribuição pelos serviços prestados ao poder, embora tais serviços, em muitos momentos,
possam ser havidos como agressivos à moral e à ética; indicação de um indivíduo
afinado ideologicamente com a esquerda em razão de ter sido perseguido outrora
pela direita.
Na primeira hipótese, o indicado poderá ter “reputação ilibada” para o segmento do poder que o indicou. Entretanto, para parcela expressiva da sociedade ele
poderá ser considerado um indivíduo de caráter
duvidoso que pagou o preço exigido para ser indicado para o STF, não tendo,
por conseqüência, “reputação ilibada”, uma vez que poderá não haver coincidência
entre os conceitos do Executivo e da sociedade civil.
No segundo caso, diga-se que eventuais escaramuças ideológicas nunca foram
suficientes para configurar uma reputação como ilibada. Pelo contrário, a história
comprova que os rótulos ideológicos (esquerda e direita, por exemplo) pode ser
manipulados por indivíduos que, no nível comportamental, talvez não tenham “reputação ilibada”. Tem-se, mais uma vez, a confirmação de que nem sempre rótulos
ideológicos e conceitos sociológicos acham-se factualmente afinados.
Trata-se, então, de uma expressão plástica o suficiente para acomodar reputações nebulosas nos braços dos votos dos parlamentares que, por várias razões, não
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tiverem a necessária independência e o inarredável descortínio no momento em
que forem apreciar uma indicação para o STF.
Mesmo assim talvez seja viável trabalhar-se com um esquema muito geral, individualizável pelos contornos do caso concreto: a distinção feita pelo eminente administrativista italiano RENATO ALESSI entre interesses primários (os interesses
da sociedade como um todo) e interesses secundários (os interesses ligados ao
poder).
Deve-se examinar a atuação concreta, o comportamento, daquele que é indicado para ocupar uma vaga no STF para saber com qual interesse essa atuação tem
afinidade: com o da sociedade ou com o do partido de plantão no poder. Havendo
choque, decida-se a favor da sociedade.
O Chefe do Executivo Federal, se abonarmos a lição da História, poderá indicar para o STF um indivíduo afinado com as exigências do partido que se encontra
no poder, uma vez que poderá não ter consciência real da apontada diferença entre
interesses primários e interesses secundários. O Legislativo, todavia, não pode – e
não deve – agir do mesmo modo. Pelo contrário, o Parlamento, por definição, é o
lugar onde os interesses da sociedade deverão ser incondicionalmente respeitados,
pouco importando os interesses daquele que está eventualmente no exercício do
Poder Executivo.
O exame da reputação ilibada daquele que foi indicado para o STF haverá de
ser feito pelo Legislativo de forma criteriosa, sem transigir com interesses outros
que não aqueles pertencentes à sociedade. Logo, essa reputação ilibada poderá existir para o Executivo mas não para o Legislativo, o que determinará a não aprovação
do indicado.
O que o Legislativo não poderá aceitar é a posição de mero referendador das
indicações feitas pelo Executivo, uma vez que isto não se afina com a tarefa constitucional que lhe foi reservada pelo constituinte originário. Aqui a independência do
Legislativo haverá de ser mantida, custe o que custar. Mas não aquela independência aparente, formal, observável em muitas argüições públicas envolvendo indicados
onde tudo parece ter sido previamente acertado. Trata-se, na verdade, da independência substancial que é capaz de dizer não ao Executivo todas as vezes que houver
antagonismo entre os interesses primários e os interesses secundários.
Existem, portanto, dois momentos conceituais da “reputação ilibada” que poderão coincidir, mas não necessariamente: o conceito utilizado pelo Chefe do Executivo Federal e o conceito construído pelo Legislativo a partir do exame que fará
da conduta do indicado. Significa, então, que a “reputação ilibada” utilizada para se
fazer a indicação de alguém poderá se revelar inconsistente no momento de sua
aprovação, o que redundará em desaprovação.
Todavia é preciso que se deixe claro que o Legislativo, baseado apenas em sentimentos idiossincráticos, não poderá desaprovar a indicação de alguém para o STF
sob pretexto de não ter reputação ilibada.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
21
A recusa de um nome para ocupar o cargo de Ministro do STF é algo grave e,
por isso mesmo, haverá de se apoiar em provas adequadas. Afinal o conceito de “reputação ilibada” não dispensa o concurso da factualidade comportamental do indicado. Logo, eventuais antipatias dos membros da Comissão de Constituição, Justiça
e Cidadania do Senado Federal não servirão como suporte plausível para recusar-se
determinada indicação.
Respeite-se a discrição outorgada pela Constituição Federal ao Presidente da
República para fazer a indicação. Respeite-se, também, a competência constitucional do Senado Federal de, à luz de provas
irreprocháveis, concluir que determinado indicado não tem “reputação ilibada” e, em razão disso, não aprovar tal indicação. E isto é assim porque “indicação” e
“aprovação” são coisas distintas submetidas a juízos competenciais diferentes. As órbitas de competência não poderão ser confundidas, expressa ou implicitamente.
A expressão “notável saber jurídico” também se revela problemática no momento de sua materialização no mundo dos fatos. Constitui aquilo que outros chamam de “conceito jurídico indeterminado”, como se isso fosse possível.
Tem-se, na verdade, conceitos de termos indeterminados mas não conceitos
indeterminados, uma vez que todo conceito já é, por definição, determinado. Falese, então, em “conceito jurídico de termos indeterminados”.
Como quer que seja, o fato é que é extremamente complicado afirmar-se, com
propriedade, que alguém tem “notável saber jurídico”. Apelar-se para eventuais citações de obras escritas pelo indicado, por membros do STF ou da comunidade acadêmica, é expediente de valor relativo, uma vez que inúmeras citações são feitas por
amizade, não pelo valor científico da obra citada. A publicação de livros e artigos
também necessita de análise. Sim, porque não é qualquer artigo, publicado em qualquer lugar, que traduzirá “notável saber jurídico”.
Entretanto, a produção de obras jurídicas, aliada à real atuação profissional do
indicado, poderá se revelar, mantendo-se o necessário cuidado, um caminho para a
aferição concreta do “notável saber jurídico” do indicado. Afinal, talvez se revele problemático pretender-se que um indivíduo que nunca publicou obras jurídicas nem
teve atuação destacada no mundo jurídico possa ter “notável saber jurídico”.
O arquivo da História revela que muitas nomeações para o STF, em épocas
distintas, podem não ter encontrado apoio no requisito constitucional do “notável
saber jurídico”. Assessores de Ministro de Estado, Ministro de Estado e Deputado
Federal foram feitos Ministros do STF à luz de dados factuais discutíveis. Paciência.
As coisas humanas nem sempre são elogiáveis.
III - O preenchimento de uma vaga de Ministro do Supremo Tribunal Federal,
como visto, deve obedecer a um iter procedimental bem definido: indicação, aprovação, nomeação e posse. O ato de nomeação, então, materializa a concordância
existente entre os critérios utilizados para indicação e para aprovação. Qual será, então, a natureza jurídica desse ato de nomeação?
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faculdade de direito de bauru
Falando da necessidade de uma espécie de “Legitimação Democrática dos Juízes”, J.J. GOMES CANOTILHO lavrou o asserto seguinte:
De um modo geral, em todos os tribunais constitucionais criados
no após guerra teve-se em conta a necessidade de legitimação democrática dos juízes através da participação dos órgãos de soberania, directa ou indirectamente legitimados, na eleição ou escolha dos seus membros.
(Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 4. ed. Coimbra: Livraria Almedina, s/d, p. 663).
De um ponto de vista político, o ato de nomeação de um Ministro
do Supremo Tribunal Federal (em todos os seus momentos procedimentais) é caracterizável como atos de vontade do Executivo e do
Legislativo que se unem para possibilitar tal nomeação.
Não obstante, referido ato pode ser compreendido como ato administrativo.
Trata-se, aqui, de ato administrativo dito complexo. Segundo CELSO ANTÔNIO
BANDEIRA DE MELLO os atos complexos são “os que resultam da conjugação de
vontade de órgãos diferentes.” (Curso de Direito Administrativo, 8. ed. São Paulo:
Malheiros, 1996, p. 247).
Com efeito, a fase da indicação é titularizada por órgão constitucional (ou função estatal) diferente daquele que tem competência no momento da aprovação da
indicação. Existem, portanto, duas vontades distintas: a do Executivo e a do Legislativo. Segue-se, por conseqüência, que o ato de nomeação de um Ministro do STF
efetivamente é um ato administrativo complexo.O campo da responsabilidade política pela nomeação de um Ministro do STF recebe os influxos da caracterização dessa nomeação como ato administrativo complexo. Torna-se possível, então, cogitar-se
de uma responsabilidade dupla: do Executivo e do Legislativo.
Se o Presidente da República indica para Ministro do STF determinada pessoa
apenas como uma espécie de “contraprestação” pelos serviços prestados ao Executivo,
por amizade ou para possibilitar uma aposentadoria, certamente que não haverá atendimento aos pressupostos constitucionais pertinentes. Apesar disso o Senado Federal
aprova referida indicação. De quem será a responsabilidade? De ambos, certamente.
Não se mostra eficiente, do ponto de vista substancial, um estratagema retórico usado algumas vezes: diz-se expressamente, no âmbito da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, que determinado indicado não tem
“notável saber jurídico” porque é um desconhecido. Imagine-se, então, que mesmo
assim a votação secreta não registre nenhum voto contra.
Tem-se, então, um claríssimo jogo de cena. Na verdade houve uma aceitação
incondicional da indicação feita pelo Presidente da República, embora disfarçada
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por uma oposição nominal. Isto, claro está, não afasta a responsabilidade do Legislativo. Ela subsistirá inexoravelmente.
Imagine-se, por outro lado, o seguinte quadro: determinado indivíduo indicado para o STF tem sua indicação desaprovada pelo Senado Federal. Poderá ele recorrer ao Judiciário?
Se se considerar a natureza abstrata e autônoma do direito de ação, combinada com a regra constitucional da universalidade da jurisdição, a resposta será positiva, uma vez que não estará em cena o ângulo representado pelo direito material
eventualmente lesado. Certamente que o exercício do direito de ação subordina-se,
apenas, às denominadas condições da ação.
Entretanto, do ponto de vista da viabilidade do questionamento judicial, força é reconhecer que ela não existe na medida em que o Judiciário não poderá se
substituir ao Senado Federal a fim de aprovar a indicação não aprovada pelo Legislativo. A aprovação – ou a não aprovação – é ato da competência exclusiva do Senado Federal, prevista constitucionalmente, que não admite delegação para outra função estatal, mesmo aquela que tem como tarefa principal dizer o Direito.
Os juízes dos requisitos representados pela “reputação ilibada” e “notável saber jurídico” são, pela ordem, o Executivo (no momento da indicação) e o Senado
Federal (quando aprova ou desaprova a indicação), não o Judiciário. Portanto, se o
Senado Federal entender que o indicado não é possuidor de “notável saber jurídico”, o assunto estará encerrado, uma vez que ele não titulariza direito líquido e certo à nomeação como Ministro do Supremo Tribunal Federal.
Coisa diferente poderá ocorrer se o indicado for aprovado pelo Senado Federal e o Presidente da República, por qualquer razão, negar-se a nomeá-lo.
Aqui, com propriedade, o Judiciário poderá ser acionado porque a etapa da
intangibilidade competencial, por assim dizer (indicação e aprovação), já terá sido
superada. A fase de nomeação configura-se como o momento de recepção, pelo
Executivo, da vontade do Legislativo, donde se segue que o ato de nomeação tem
natureza receptícia, na medida em que não permitirá qualquer apreciação da parte
do Presidente da República.
A idéia de direito líquido e certo à nomeação, derivada da cláusula constitucional do direito adquirido, haverá de ser invocada para tutelar uma situação como
essa. Sim, porque seria desconcertante afirmar-se que um indivíduo indicado para o
STF, aprovado pelo Senado Federal, tenha apenas expectativa de direito no que diz
com sua nomeação. Se os momentos constitucionais que comportavam decisão já
foram ultrapassados, não há falar em expectativa mas sim em direito líquido e certo
à nomeação.
IV - A indicação de nomes para o Supremo Tribunal Federal não é uma tarefa
tão fácil se aquele que faz a indicação tiver consciência do que tal ato poderá significar para a coisa pública. Deverá, portanto, meditar muito antes de se deixar levar
por interesses eleitoreiros ou por sentimentos outros igualmente criticáveis.
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faculdade de direito de bauru
Quando pessoas são indicadas – e posteriormente nomeadas – para integrar
uma Corte Suprema e aquele que as indica nutre – explicitamente ou a sorrelfa –
expectativa no nível comportamental, isto é, que os nomeados por ele, diante de um
caso concreto, tenham esta ou aquela posição jurisdicional, abre-se um espaço perigoso em termos de funcionamento harmônico – porém respeitoso – das funções
estatais.
De fato, se o nomeado não tem a posição desejada por quem o nomeou, certamente será aquinhoado com adjetivos pesados. Sirva de exemplo, se se conceder
crédito ao material divulgado pela mídia, as reações creditadas a FRANKLIN DELANO ROOSEVELT e RICHARD NIXON.
O primeiro, ao ver seu plano governamental (New Deal) ser inviabilizado pela
Suprema Corte dos Estados Unidos da América, teria dito que dois de seus maiores
equívocos tinham assento nesse Tribunal (ele os havia nomeado juízes da Suprema
Corte). O segundo, ao saber que a Suprema Corte havia “lavado as mãos” quanto à
entrega das fitas conhecidas como “Watergate”, vociferou em altos brados coisas
que não devem ser tornadas públicas, pelo menos em sua literalidade.
Todavia, se o nomeado assume exatamente a posição desejada por aquele que
o nomeou, assumindo tal posição abertamente, então talvez se possa dizer que não
houve, substancialmente, uma nomeação para Ministro do Supremo Tribunal Federal mas sim uma nomeação esdrúxula do ponto de vista constitucional: a de Delegado do Presidente da República no Supremo Tribunal Federal (outros preferem terminologia diferente: líder do Governo no STF). Como quer que seja, ambos os
supostos são criticáveis.
No que diz com aquele que nomeia, é preciso que ele saiba que as nomeações
públicas não são – ou não deveriam ser – moeda de troca para obtenção de futuros
favores pessoais. Uma indicação para o STF deve ser feita por motivos sérios, não
com base na teoria do custo-benefício. Relativamente ao nomeado, seja qual for sua
origem, uma vez entronizado no cargo de Ministro do STF, ele se tornou um juiz,
não um alter ego do Chefe do Executivo Federal.
Esses aspectos que cercam a indicação de nomes para uma Corte Suprema
têm motivado especulações sobre os critérios que devem nortear tal indicação. Entre nós existem os dois requisitos constitucionais já examinados: “reputação ilibada”
e “notável saber jurídico”, além dos parâmetros temporais. Isto tem sido suficiente?
Para muitos, não.
O problema não reside no preenchimento formal dos pressupostos constitucionais mas sim nos parâmetros concretos que poderão ser usados para captar juízes da Suprema Corte. É dizer: esses juízes deverão ser recrutados nas várias corporações? Devem ser dos grandes centros urbanos? Deverão ser políticos profissionais? Deverão constar em listas elaboras por entidades de classe?
Certa feita alguém sustentou, com aparente convicção, que somente aqueles
que trabalhavam em determinado Estado-membro deveriam ser indicados para o
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STF porque teriam uma visão melhor dos problemas do país. Criava-se, nesse momento, um requisito não previsto na Constituição Federal: a origem geográfica
do indicado. A idéia, sem dúvida absurda, assemelha-se mais a uma espécie de reserva de vagas no STF para pessoas desse Estado-membro que – pasmem – no
passado parece efetivamente ter tido uma quota de cadeiras nesse Tribunal.
Há quem defenda que os juízes da Suprema Corte deveriam provir das várias
corporações, aí incluído o próprio Judiciário. A tese, quando pretenda assumir foros
de exclusividade, não é aceitável na medida em que existem três Tribunais Superiores – STJ, STM e TST – que são formados por juízes que têm origem nessas corporações em razão de expressa previsão constitucional. O constituinte originário não
criou tais regras para a composição do STF. Não há, portanto, o requisito da origem corporativa do juiz do STF.
Causou espécie, portanto, a fala pública de um ex-Presidente do STJ, diante
da indicação iminente de um juiz de Tribunal Regional Federal para o cargo de Ministro do STF, no sentido de que o Presidente da República deveria indicar um dos
Ministros do STJ a fim de preservar a hierarquia do Judiciário.
Talvez seja lícito indagar como um Ministro pode cometer dois erros crassos:
intrometer-se no exercício de competência exclusiva do Presidente da República e
falar de hierarquia entre um Tribunal Regional Federal e o Superior Tribunal de Justiça. Efetivamente é estarrecedor.
Com efeito, o Presidente da República certamente não necessita de conselhos
do Presidente do STJ para fazer uma indicação para o STF. Não terá sido por outra
razão que ele recebeu objurgatórias públicas de parlamentares do bloco governista,
aliás merecidas. Por outro lado, qualquer administrativista mediano sabe que hierarquia, enquanto vínculo jurídico que gera subordinação, é figura encontrável na Administração Pública, não no Legislativo nem no Judiciário. O que existe, obviamente, são competências distintas, não hierarquia.
Tem-se tentado, também, embora sem maiores envolvimentos dos juízes, elaborar lista contendo nomes colhidos em pesquisas feitas por entidades de classe.
Aqui, como em outros instrumentos, prevalece, como não poderia deixar de ser, o
interesse de promover determinados nomes do Judiciário que, estranhamente, parecem ser mais políticos que juízes. Será que há, realmente, diferença entre esse estratagema e outros similares? É duvidoso que essa diferença realmente exista. Existem, finalmente, aqueles que sustentam que políticos deveriam ser indicados para o
STF e os que dizem que políticos não deveriam ser indicados para o Tribunal citado.
Ocorre que ambas as posições são reducionistas.
O que interessa, na verdade, é que o indicado para o STF preencha, de modo
substancial, os requisitos constitucionais: tenha, de fato, “reputação ilibada” e “notável saber jurídico”.
É irrelevante, portanto, que ele pertença, ou não, a alguma corporação; que
trabalhe, ou não, em determinado Estado-membro; que seja, ou não, político pro-
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faculdade de direito de bauru
fissional ou que conste, ou não, em alguma pesquisa feita por alguma entidade de
classe.
Não se pode afastar – infelizmente – certa dose de subjetivismo do Presidente da República no momento em que indica alguém para o STF, o que, obviamente,
poderá provocar situações lamentáveis. Entretanto, convém que se diga que isso
não pode funcionar como elemento de afastamento de qualquer sugestão advinda
dos vários segmentos da sociedade. Sugestões poderão ser feitas. Se serão, ou não,
aceitas, é outra questão. O que não pode haver é imposição porque, então, estar-seá tentando invadir uma competência exclusiva do Chefe do Executivo Federal.
Talvez seja desejável que o Presidente da República, antes de fazer uma indicação para o STF, faça, através de auxiliares confiáveis, uma espécie de pesquisa e
depois a compare com as eventuais sugestões recebidas. Desse cruzamento de dados talvez surjam elementos capazes de possibilitar uma decisão mais legítima.
Repare-se que isso em nada afeta a órbita competencial do Presidente da República. Pelo contrário, poderá funcionar como importante fator de legitimação da
indicação. Vale a pena pensar – e andar – nesse caminho.
V - Já foi possível perceber, nos itens precedentes, que provavelmente não se
encontrará um mecanismo de captação de juízes para a Suprema Corte que logre satisfazer a todos. Sempre haverá quem conteste, às vezes até com boas razões, uma
indicação feita por considerá-la descabida.
Talvez isso seja configurável, em linguagem filosófica, como uma aporia. Entretanto, indicações terão que ser feitas, de um modo ou de outro.
Recorrer-se a uma realidade que não pertence a nossa cultura é sempre uma
atitude arriscada, uma vez que determinados fatores são muito diferentes. Todavia,
o fenômeno da “incorporação de idéias” permite a importação de certos modelos
estrangeiros, desde que as adaptações necessárias sejam feitas. Tendo-se isso presente, vejamos o que ocorre nos Estados Unidos da América quando o Presidente
americano faz uma indicação para a Suprema Corte.
Em momentos como esse os setores organizados da sociedade civil americana participam ativamente desse processo, cabendo à mídia um papel importantíssimo. A cidadania, portanto, é efetivamente exercida. Se existem fatos relevantes envolvendo o indicado, denúncias são feitas pela imprensa ou por cidadãos em Comissões Parlamentares encarregadas de conduzir o procedimento relativo às acusações.
O cidadão comum americano tem importância real, razão pela qual a mídia
produz rapidamente um volume considerável de informações com intuito de aumentar o debate e eventualmente conduzir o processo, formando opinião, da indicação. Utiliza-se, para tanto, da possibilidade de pressão sobre os congressistas, feita pelos cidadãos e pela própria rede de informações.
A investigação sobre as denúncias eventualmente feitas, apesar de conter instantes onde a política efetivamente fala mais alto, tem uma linha de seriedade que
não costuma permitir um arquivamento sumário dessas denúncias.
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O ponto importante consiste no seguinte: o exercício da cidadania faz-se presente no momento em que o Presidente americano faz uma indicação para a Suprema Corte, seja através do cidadão comum, seja através da imprensa, seja através das
inúmeras corporações. Todos discutem. Todos analisam. Todos opinam. E todos poderão pressionar os congressistas americanos.
É necessário importar exatamente esse exercício da cidadania. O cidadão brasileiro e a imprensa brasileira necessitam envolver-se substancialmente no processo
de escolha dos Ministros do STF. Não é possível continuar-se com essa apatia, como
se isso não fosse importante para o país.
O cidadão comum poderá valer-se do direito de petição para fazer chegar ao
Senado Federal qualquer denúncia envolvendo um indicado para o STF. O Presidente do Senado Federal, por sua vez, não poderá simplesmente engavetar uma denúncia. A seriedade de seu cargo exige que ele a encaminhe para o Presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania que deverá processá-la adequadamente.
A imprensa deverá fazer todas as denúncias que puderem ser feitas, desde, obviamente, que existam provas aceitáveis. Deverá, ainda, fiscalizar o que o Senado Federal fará diante dessas fundamentadas denúncias. Se as engavetar, simplesmente,
também deverá ser responsabilizado publicamente a fim de que o eleitor não reconduza aqueles que não souberam respeitar os interesses da sociedade.
O envolvimento da sociedade civil talvez não resolva todos os problemas que
cercam uma indicação para o STF. Entretanto, se a cidadania deixar de ser apenas um
conceito, vivido retoricamente, e se transformar em realidade comportamental, talvez
aqueles que têm a grave responsabilidade de indicar e de aprovar um nome para o STF
pensem duas vezes antes de agirem sem se preocupar com a opinião pública.
Povo, imprensa e corporações deverão acompanhar de perto uma indicação
para o STF, denunciando aqueles que deverão ser denunciados, pressionando Senadores para não aprovarem indicações desafinadas com a dimensão substancial das
idéias de “reputação ilibada” e “notável saber jurídico”.
Se a fixação concreta dos elementos ou termos formadores desses conceitos
pertence ao Presidente da República – na indicação – e ao Senado Federal – na votação secreta – a fiscalização de que houve, do ponto de vista substancial, essa concretude, pertence ao povo enquanto cidadão comprometido com as coisas que interessam ao país.
Essa fiscalização poderá ser operacionalizada através de instrumentos jurídicos e políticos, tais como: direito de petição, ação objetivando suspender a posse do
nomeado, pressão sobre os Senadores, pela mídia ou através de manifestações públicas promovidas por todos os setores da sociedade civil.
Imagine-se o seguinte exemplo hipotético: um indicado para o STF tem filhos
fora do casamento, mas não os reconhece formalmente, apesar das tentativas desses filhos. Em determinado momento viabiliza a prisão, ainda que temporária, deles
pelo fato de eles o terem procurado em local público. A mídia denuncia o fato, o Se-
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faculdade de direito de bauru
nado toma conhecimento do assunto e o indicado não consegue explicar satisfatoriamente o assunto. Mesmo assim tem sua indicação aprovada, é nomeado e toma
posse como Ministro do STF. Indaga-se: o requisito constitucional da “reputação ilibada” foi, no fundo, preenchido? Provavelmente não foi.
Portanto, a indicação e a aprovação de um nome para o STF encontra limites
constitucionais bem definidos: a existência real, não retórica, na pessoa do indicado, de “reputação ilibada” e de “notável saber jurídico”. Se se descobre,
antes da posse, que fatos graves, adequadamente provados, comprometem a reputação do indicado, ele não poderá ser aprovado pelo Senado Federal e posteriormente nomeado pelo Presidente da República. Se o for, deve-se tentar suspender
sua posse a fim de que as instituições não sejam arranhadas por atos de indiscutível
insensatez. Em uma palavra: a cidadania haverá de funcionar como fator de seriedade das coisas públicas, queiram ou não.
As novas “contribuições” ao Fundo de
Garantia do Tempo de Serviço. Lei Complementar nº 110, de 29 de junho de 2001. Natureza
jurídica dos novos encargos.
Aferição de sua constitucionalidade.*
Trícia de Oliveira Lima
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Analista Judiciária da Justiça Federal/Seção Judiciária do Estado de Minas Gerais.
Ex-chefe de Gabinete na Sexta Vara Federal de Belo Horizonte.
1
INTRODUÇÃO
Em 31 de agosto de 2000, como é notório, foi submetido a julgamento pelo
Pleno do Supremo Tribunal Federal o Recurso Extraordinário nº 226.855/RS, de que
foi relator o Ministro Moreira Alves, surgindo, naquele Pretório, o caso líder acerca
das complementações de correção monetária incidentes sobre saldos de contas vinculadas do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço.
No precedente, pronunciou-se a Corte Suprema a respeito dos “expurgos” decorrentes dos planos econômicos conhecidos como Bresser, Collor I (quanto ao
mês de maio de 1990) e Collor II, decidindo ser possível a mutação do índice de
atualização dos saldos daquelas contas no curso do período aquisitivo do direito ao
creditamento da correção monetária.
Assinalando o caráter estatutário do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço,
em contraposição à natureza contratual das cadernetas de poupança, afirmou aque* A autoria deste estudo encontra-se registrada na Fundação Biblioteca Nacional, onde foi depositada uma cópia do
presente texto, conforme facultado pelo art. 19 da Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998.
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la Corte, na esteira de sua já consolidada jurisprudência, a inexistência de direito adquirido a regime jurídico e, portanto, a índice de restauração do poder de compra
da moeda. Ficou assentada a atualização dos depósitos, no mês de junho de 1987,
pelo índice de 18,02%, relativo às Letras do Banco Central – LBCs –; no mês de maio
de 1990, pelo índice de 5,38%, correspondente à variação do Bônus do Tesouro Nacional – BTN – e, em fevereiro de 1991, pelo índice de 7%, adotando-se a Taxa Referencial – TR.
No que concerne aos planos Verão e Collor I (quanto ao mês de abril de
1990), o Supremo Tribunal Federal julgou tratar-se de matéria infraconstitucional,
deixando de conhecer do recurso extraordinário nesse aspecto.
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, o Recurso Especial nº
265.556/AL foi o primeiro feito daquela natureza levado a julgamento após a decisão
do caso líder no Supremo Tribunal Federal.
O processo foi relatado pelo Ministro Franciulli Netto, que manteve a posição
já assumida pelo Superior Tribunal de Justiça, proclamando encontrar-se “de há
muito, uníssona, harmônica, firme e estratificada a jurisprudência” da Primeira
Seção “quanto à aplicação do IPC de 42,72%, para janeiro de 1989, e do IPC de
44,80%, para abril de 1990”.
Com ambos os julgamentos, acelerou-se a pacificação da matéria há tanto
aguardada, surgindo orientação mais segura para as instâncias inferiores, que logo
trataram de a ela aderir, reconhecendo não convir a insistência em decisões dissidentes, dada a amplitude epidêmica alcançada pelo ajuizamento daquelas ações.
O Poder Executivo, por seu turno, como recordamos todos, pôs-se à busca de
expedientes de captação de recursos com os quais seriam quitadas as complementações de correção monetária em cujo pagamento foi condenada a Caixa Econômica Federal, na qualidade de agente operador do Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço, ente despersonalizado, à conta do qual correm as despesas decorrentes dos
creditamentos devidos.
Exatamente nesse contexto, veio a lume a Lei Complementar nº 110, de 29 de
junho de 2001, com o objetivo confesso de criar fonte de receita com a qual deveriam ser cumpridos os milhares de decisões judiciais que logo ingressariam em fase
de execução.
Foram, assim, instituídos dois novos encargos, denominados “contribuições”
pelos arts. 1º e 2º da Lei Complementar nº 110/2001, cuja constitucionalidade é objeto de discussão em centenas de ações distribuídas por todo o País.
Insurgem-se os contribuintes contra as novas imposições, aduzindo, entre
tantos e diversos argumentos levados ao Poder Judiciário, que não corresponderiam
elas a qualquer das espécies de contribuições previstas no ordenamento jurídico pátrio, por terem por finalidade proporcionar recursos com os quais deverão ser cumpridas as sentenças condenatórias que impuseram à Caixa Econômica Federal o dever de pagar as diferenças de correção monetária e que, subsidiariamente, poderiam
Revista do instituto de pesquisas e estudos
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vir a alcançar também a União. Ponderam que contribuições pressuporiam sempre
um benefício a ser auferido pelos sujeitos passivos, de sorte que os novos gravames
não poderiam ser exigidos a todo e qualquer empregador, tendo em vista que os recursos arrecadados aproveitariam tão-somente aos empregados que possuíssem valores depositados à época da ocorrência dos expurgos.
Por essa mesma razão, alguns rejeitam a tese de mera majoração das exações
já existentes, alegando que teria havido a instituição de novo tributo, incidente sobre a mesma base de cálculo da antiga contribuição ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço.
Nos diversos processos judiciais e artigos doutrinários em que é tratado o
tema, colhem-se, ainda, teses que ora negam a natureza tributária das novas “contribuições”, na esteira de antigas manifestações do Supremo Tribunal Federal, ora sustentam serem impostos que teriam ofendido a regra inscrita no art. 167, IV, da Constituição de 1988, a qual veda a vinculação das respectivas receitas a fundo, órgão ou
despesa.
Nesse emaranhado de opiniões díspares, pois, o presente estudo tem por escopo trazer alguma contribuição às reflexões acerca dos vícios de inconstitucionalidade increpados à Lei Complementar nº 110/2001.
2
Da natureza jurídica do encargo criado pelo art. 1º da Lei Comple
mentar nº 110/2001. Critério de identificação. Visão geral do quadro
dos ingressos públicos. Receitas públicas coativas ou derivadas. Tri
butos e penalidades pecuniárias. Distinção. Peculiaridades estrutu
rais das respectivas normas instituidoras. Dispensa injusta. Nature
za. Multa do art. 18 da Lei nº 8.036/1990. Teto constitucional.
Qualquer investigação acerca da constitucionalidade dos preceitos da Lei
Complementar nº 110/2001 que instituíram as novas “contribuições” – e mantenhase sob ressalva essa denominação, porquanto constitui precisamente o cerne do estudo ora desenvolvido – há de partir, necessariamente, da precisa identificação de
sua essência ontológica, visto que dela derivará a possibilidade de determinar o regime jurídico que lhe seja peculiar.
Havendo, em nosso sistema constitucional tributário, princípios e regras privativos das distintas espécies impositivas, somente diante da definição da natureza
jurídica dos ônus questionados, viabiliza-se a aferição de sua compatibilidade com
os preceitos de nossa Lei Maior.
Comecemos, pois, pela disposição veiculada pelo art. 1º da Lei Complementar nº 110/2001:
Art. 1º. Fica instituída contribuição social devida pelos empregadores em caso de despedida de empregado sem justa causa, à alí-
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faculdade de direito de bauru
quota de dez por cento sobre o montante de todos os depósitos devidos, referentes ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço –
FGTS, durante a vigência do contrato de trabalho, acrescido das
remunerações aplicáveis às contas vinculadas.
Não obstante o diploma se refira à contribuição, precate-se o intérprete e
aplicador do direito, de plano, contra as armadilhas da linguagem em que são vazados os textos legais.
Como é cediço, as leis, nos Estados Democráticos de Direito, são fruto do trabalho das Casas Legislativas, em cuja composição encontram-se membros e representantes dos mais diversificados segmentos da sociedade, os quais, em princípio,
não detêm a ciência e a técnica jurídicas, sendo recorrentes as impropriedades e as
imprecisões encontradiças na redação dos atos normativos. Acerca dessa heterogeneidade característica dos regimes representativos, bem observa Paulo de Barros
Carvalho que “tanto mais autêntica será a representatividade do Parlamento quanto
maior for a presença, na composição de seus quadros, dos inúmeros setores da comunidade social”.1
Cabe, portanto, ao profissional do direito “purificar” o texto da lei, conferindo-lhe interpretação capaz de escoimá-lo das falhas e atecnias que maculam os diplomas legais.
De fato, seja por sincera ignorância, seja com a intenção de burlar a rigidez de
nosso sistema constitucional tributário, com indesejável freqüência encontram-se
em nossa experiência fiscal, como destaca Misabel Abreu Machado Derzi2, as “pseudotaxas” ou “criptoimpostos”, em que, sob o manto vocabular, pretende o legislador
ocultar impostos que cria sob as vestes de taxas ou contribuições, a fim de se esquivar das limitações a seu poder de tributar. Daí o aviso encartado no art. 4º do Código Tributário Nacional:
Art. 4º. A natureza jurídica específica do tributo é determinada
pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevante para
qualificá-la:
I – a denominação e demais características formais adotadas pela
lei; [...].
Advertidos de que os nomes com que se venham a designar as prestações pecuniárias compulsórias devidas ao Estado não vinculam o intérprete, procuremos situar a “contribuição” instituída pelo art. 1º da Lei Complementar nº 110/2001 no
1 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 10. ed. rev. e compl., São Paulo: Saraiva, 1998. p. 4.
2 BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11. ed. rev. e compl. por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de
Janeiro: Forense, 2000. p. 68.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
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quadro geral dos ingressos públicos, adotando, para tanto, a classificação cunhada
por Aliomar Baleeiro.
Baleeiro denomina entradas ou ingressos a generalidade das quantias que,
por qualquer título, são recebidas pelos cofres públicos, distinguindo as que se podem considerar receitas públicas daquelas que constituem meros movimentos de
fundos, ou movimentos de caixa.
Receita pública, conceitua, “é a entrada que, integrando-se no patrimônio
público, sem quaisquer reservas, condições ou correspondência no passivo, vem
acrescer o seu vulto como elemento novo e positivo”.3
Os movimentos de fundos ou de caixa, por seu turno, seriam as somas escrituradas sob a reserva de serem restituídas por qualquer causa de direito e as indenizações.
Baleeiro nos oferece, ainda, o seguinte esquema gráfico para visualização da
classificação das entradas ou ingressos públicos:4
a) Empréstimos ao Tesouro
MOVIMENTOS
DE FUNDOS OU DE CAIXA
b) Restituição de empréstimos do Tesouro
c) Cauções, fianças, depósitos, indenizações
de direito civil
Doações puras e simples
a) a título
gratuito
Bens vacantes, prescrição
aquisitiva, etc.
I. Originárias, de Economia
Privada, de Direito Privado,
ou Voluntárias
Doações e legados sob condição
b) a título
oneroso
Preços quase privados
Preços Públicos
Preços Políticos
RECEITAS
Taxas
a) tributos
II. Derivadas, de Economia
Pública,de Direito Público
ou Coativas
Contribuições de melhoria
Impostos
Contribuições Parafiscais
b) penalidades pecuniárias e confisco
c) reparações de guerra
3 BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p.126.
4 CARVALHO, 1998. p. 13.
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faculdade de direito de bauru
O encargo criado pelo art. 1º da Lei Complementar nº 110/2001 insere-se na
categoria das receitas públicas derivadas ou coativas (grupo II do quadro), uma vez
que, na esteira do conceito transcrito acima, integra-se ao patrimônio de um Fundo
revestido de finalidade pública, social, sem quaisquer reservas, condições ou correspondência no passivo, acrescendo-lhe o vulto como elemento novo e positivo,
por força do cumprimento de uma obrigação compulsória, ex lege, imposta aos empregadores em caso de dispensa de empregado sem justa causa.
Excluída, por motivos óbvios, sua capitulação entre as reparações de guerra,
restam os tributos, as penalidades pecuniárias e o confisco.
O legislador, como se depreende da literalidade da redação do dispositivo sob
exame, pretendeu atribuir natureza tributária ao novo ônus, ao adotar o étimo contribuição. Impõe-se, pois, adentrar a compostura da norma jurídica que instituiu o
encargo, a fim de apurar se essa é, de fato, sua verdadeira natureza.
Não nos parece que assim seja, porquanto, na análise da estrutura da norma
sob comento, não se detecta a presença dos elementos ínsitos às matrizes de incidência tributária.
Como ressalta Barros Carvalho,5 o vocábulo tributo experimenta, nos textos
de direito positivo, na doutrina e nas manifestações jurisprudenciais, ao menos seis
significações diversas.
Em sua acepção mais vulgar, indica uma importância em dinheiro, coincidindo com seu uso leigo, por vezes encontrada também na lei, como no art. 166 do Código Tributário Nacional, que alude à restituição de tributos, nesse caso, equivalente à soma de dinheiro a ser devolvida.
Pode a palavra designar o dever jurídico do sujeito passivo, assumindo a proporção semântica de prestação jurídica consubstanciada na conduta humana de levar dinheiro aos cofres públicos. Em sentido oposto, pode, ainda, indicar o direito subjetivo
de que está investido o sujeito ativo, permitindo-lhe exigir seu crédito tributário.
Outras vezes, remete à totalidade da relação jurídica, abarcando a obrigação
tributária como um todo.
Pode também ser sinônimo de norma jurídica, dimensão utilizada, por exemplo, pelo art. 153, III, da Constituição de 1988, ao preceituar que compete à União
instituir imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza. Ali, instituir tributo nada mais significa que editar norma que descreva um fato ao qual a lei associe o
surgimento do vínculo jurídico-tributário.
Finalmente, na significação mais ampla, preferida pelo doutrinador, tributo
exprimiria a integridade da fenomenologia da incidência tributária – norma, fato e
relação jurídica.
Interessa-nos, por ora, tributo como norma. Norma tributária.
5 CARVALHO, 1998. p. 15-19.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
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Dissecando a estrutura da regra introduzida pelo art. 1º da Lei Complementar
nº 110/2001 e cotejando-a com a que caracteriza as distintas espécies de normas jurídicas, podemos encontrar sua verdadeira natureza.
Entre tantas classificações possíveis das normas jurídicas, tomemos aquela
adotada por Sacha Calmon Navarro Coêlho em sua Teoria Geral do Tributo e da Exoneração Tributária.
Laborando sobre as teorias de Austin, Von Wright, Kelsen, Hart, Alf Ross e Cossio, pelas quais transita com desenvoltura, Sacha Calmon apresenta sua proposta,
advertindo que essa, não obstante apresentar a precariedade inerente a qualquer
pretensão de classificação, tem o mérito de aspirar à funcionalidade.
Sua tipologia, de fundamento teleológico, distribui as normas jurídicas em
cinco grandes grupos, assim conceituados:6
Normas organizatórias – “Instituindo os órgãos do Estado, as instituições e
as pessoas. Desse tipo são as normas que prescrevem como deve ser o Estado Federal ou as que declinam os requisitos que deve possuir o ato jurídico ou uma sociedade por cotas de responsabilidade limitada para serem válidos, ou ainda as que
definem quais são os pressupostos para um cidadão ser elegível, ou comerciante,
ou, ainda, ser maior, senador, Presidente da República ou Prefeito Municipal. Neste
âmbito se encontram as normas ditas atributivas de qualidade e as de ‘reconhecimento’, permitindo identificar se as outras normas pertencem ao ‘sistema’”.
Normas de competência – Seriam as que conferem potestades aos sujeitos
públicos e privados para criar normas de comportamento, para interpretá-las e para
aplicá-las voluntariamente, ex officio ou contenciosamente. Nesta categoria estariam as normas que outorgam competência aos órgãos dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário para a produção de seus atos funcionais, assim como as que investem os particulares de capacidade para praticar e para celebrar atos jurídicos
constitutivos.
Normas técnicas – Prescrevem o modo como se devem produzir os atos jurídicos, como votar, sentenciar, interpor recursos, fazer testamento válido, celebrar
contratos, contrair matrimônio, discutir e votar leis. Técnicas seriam todas as normas processuais.
Normas de conduta – São as normas que obrigam a condutas, estatuindo
comportamentos positivos ou negativos, desde que ocorrentes certos pressupostos.
Como assinala Sacha Calmon, seriam nucleares, no sentido de se posicionar à sua
volta o sistema jurídico, uma vez que o direito se volta para o controle do meio social, indicando os comportamentos desejados pela sociedade que visa a ordenar.
Normas punitivas – São as que estatuem sanções como conseqüência para a
perpetração de condutas contrárias à ordem jurídica.
6 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria geral do tributo e da exoneração tributária. 3. ed. Belo Horizonte: Del
Rey, 2000. p. 77-79.
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As normas tributárias em sentido estrito, ou seja, aquelas que definem a incidência fiscal, prevendo abstratamente o dever de pagar tributo, configuram normas
de conduta, porque seu conteúdo essencial consiste em uma ordem para que se entregue pecúnia ao Estado. O vínculo obrigacional descrito na norma tributária tem
por objeto uma prestação positiva consistente no comportamento de levar soma em
dinheiro aos cofres públicos, dever atribuído ao sujeito passivo.
Tanto as normas punitivas ou sancionantes quanto as normas de conduta têm
em comum uma mesma conformação lógica, ostentando, ambas, estrutura hipotética. Interessa-nos, para o propósito deste trabalho, estremar as duas figuras, a fim
de determinar em qual delas podemos situar o encargo criado pelo art. 1º da Lei
Complementar nº 110/2001.
O arcabouço lógico da norma tributária insinua-se na definição legal ditada
pelo art. 3º do Código Tributário Nacional. Não obstante se repita, com insistência,
não ser dado ao legislador definir institutos jurídicos, tarefa que cabe precipuamente à Ciência do Direito, o preceito citado contém o teor da boa juridicidade, abrigando noção que tem merecido os encômios da doutrina.
Colhemos no dispositivo o traço que permite distinguir entre normas tributárias e normas sancionantes que cominam punições pecuniárias – as multas. Ambas,
no esquema geral dos ingressos públicos, como já vimos, inserem-se no quadro das
receitas coativas ou derivadas. Apenas os tributos, porém, sujeitam-se às regras e limitações contidas no capítulo do Sistema Constitucional Tributário, daí a relevância
de definir previamente se o dever de pagar uma soma em dinheiro ao Estado se faz
a título de multa ou de tributo.
Diz, pois, o art. 3º do Código Tributário Nacional:
Art. 3º. Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção
de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada. (grifos nossos).
Reside precisamente nessa ilicitude o elemento idôneo a distinguir tributo de penalidade pecuniária, nota presente nas sanções e ausente nas imposições tributárias.
Vejamos, assim, onde localizar tal traço diferenciador, buscando os préstimos
das lições de Barros Carvalho, reconhecidamente o jurista que, entre nós, com mais
rigor se aprofundou no estudo da norma tributaria, à luz da teoria geral da norma
jurídica.
A regra-matriz de incidência tributária, como ensina o doutrinador,7 apresenta-se
com a compostura própria dos juízos hipotético-condicionais, sendo integrada por
7 CARVALHO, 1998. p. 167 et seq.
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dois termos: haverá, por primeiro, uma hipótese, também denominada antecedente,
descritor, prótase, suposto, pressuposto, pressuposto de fato, fattispecie, hecho imponible, ou Tatbestand. A esse antecedente conjuga-se um mandamento, segundo termo
lógico da norma, também denominado conseqüente, conseqüência, apódose, prescritor ou estatuição. A forma associativa dos dois termos, nas palavras do autor, é a cópula deôntica, o dever-ser que caracteriza a imputação jurídico-normativa das conseqüências previstas no mandamento da norma-padrão de incidência.
Na hipótese, acha-se abstratamente descrito um fato cuja ocorrência no mundo fenomênico faz com que se irradiem os efeitos prescritos no conseqüente da
norma tributária. Aqui encontraremos os aspectos ou critérios que permitem reconhecer, se concretamente ocorrido, o fato a que a lei atribuiu virtude jurígena, a aptidão de fazer irromper o vínculo estipulado no conseqüente.
No suposto da norma tributária, o legislador põe dados que recorta da realidade social, os quais considera relevantes, qualificando-os como fatos jurídicos. Para
Barros Carvalho, três seriam os critérios identificadores do fato descrito na hipótese normativa: critério material, critério espacial e critério temporal.
Sucintamente, podemos dizer que o critério material constitui o núcleo da hipótese, trazendo uma referência a um comportamento de pessoas físicas ou jurídicas ou a um estado a elas relativo.
É o elemento objetivo do fato gerador, que emerge, nas precisas palavras de
Barros Carvalho, “de expressões genéricas designativas de comportamentos de pessoas, sejam aqueles que encerram um fazer, um dar ou, simplesmente, um ser (estado). Teremos, por exemplo, ‘vender mercadorias’, industrializar produtos’, ‘ser
proprietário de bem imóvel’, ‘auferir rendas’, ‘pavimentar ruas’, etc.”. 8
Explicita o autor:
Esse núcleo, ao qual nos referimos, será formado, invariavelmente, por um verbo, seguido de seu complemento. Daí por que
aludirmos a comportamento humano, tomada a expressão na
plenitude de sua força significativa, equivale a dizer, abrangendo não só as atividades refletidas (verbos que exprimem ação)
como aquelas espontâneas (verbos de estado: ser, estar, permanecer, etc.).9
Teremos, pois, um verbo de estado ou de ação com seus complementos, seus
objetos, insertos em condições de tempo e espaço.
Há, ainda, portanto, os critérios temporal e espacial, elementos também presentes no antecedente das normas tributárias, que permitem conhecer, como de8 CARVALHO, 1998. p. 180 et seq.
9 CARVALHO, 1998. p. 180.
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nunciam suas denominações, as circunstâncias de tempo e de espaço que condicionam o aspecto material.
Consta do antecedente da regra-matriz um conjunto de indicações tácitas ou
expressas que definem o local e o instante em que se reputa verificado o fato gerador, surgindo o liame tributário.
Enquanto a hipótese descreve os critérios identificadores do fato gerador, o
conseqüente, como prescritor, dá os critérios componentes da relação jurídico-tributária, permitindo conhecer quem se acha investido do direito subjetivo ao crédito tributário, a quem é imputado o dever de cumprir a correlata prestação – os sujeitos da relação obrigacional – bem como seu objeto. No prescritor, pois, habitam
os elementos subjetivos e quantitativos do laço tributário, que nos dizem quem deve
pagar o tributo (sujeito passivo), a quem (sujeito ativo) e quanto (base de cálculo e
alíquota).
Em ligeira discordância com a doutrina de Barros Carvalho, prefere Sacha Calmon utilizar o termo aspecto, em vez de critério, para qualificar as facetas da hipótese e da conseqüência da norma jurídico-tributária, acrescendo ao suposto, além
dos três critérios já apontados por Barros Carvalho, um aspecto pessoal, indicativo
de que a consistência material do antecedente, expresso por um verbo, liga-se, sempre, a uma pessoa que realiza o fato gerador. O aspecto pessoal em determinados
tributos, como ensina Sacha Calmon, pode delimitar a própria concretização da hipótese, como ocorre no Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS –, em que não basta haver a circulação de mercadoria para
que se tenha por verificado o fato gerador, reclamando-se, também, que a pessoa
promotora da operação seja industrial, comerciante, produtor agropecuário ou
equiparado.10
O aspecto pessoal que exsurge da hipótese auxilia, ainda, na compreensão do
fenômeno da responsabilidade tributária por fato gerador próprio e por fato gerador alheio, por substituição ou por transferência, calcando-se na coincidência ou na
distinção entre a pessoa efetivamente envolvida na realização do fato gerador (aspecto pessoal da hipótese) e o sujeito passivo ao qual a lei comete o dever de pagar
o tributo (aspecto subjetivo do mandamento da norma tributária).
No que concerne ao conseqüente da regra-matriz, entende Sacha Calmon que
seus aspectos quantitativos não podem ser reduzidos à base de cálculo e à alíquota,
como sustenta Barros Carvalho, vislumbrando, no plano do mandamento, a possibilidade de adoção de valores fixos, ausentes, portanto, base de cálculo e alíquota. Vinca, ainda, que, em certos tributos, a quantificação do crédito exige o concurso de
outros elementos, que se conjugam em operações mais complexas, com o envolvimento de deduções e adições, de créditos presumidos (como nos impostos sujeitos
10 COELHO, 2000. p. 113-114.
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ao princípio da não-cumulatividade), de concessão de despesas fictas dedutíveis do
lucro bruto, de incentivos; enfim, múltiplos “quantificadores” diversos da base de
cálculo e da alíquota.
Sem nos alongarmos mais, em linhas gerais, é esta a estrutura da regra-matriz
de incidência tributária com a qual trabalharemos.
Com o que vimos, podemos voltar à conceituação trazida pelo art. 3º do Código Tributário Nacional, para dele pinçar a ressalva de que tributo é toda prestação
pecuniária compulsória que não constitua sanção por ato ilícito.
Com acerto, cuidou o legislador de estremar as obrigações tributárias de outras
em que há imposição de prestação positiva de entregar dinheiro ao Estado, pondo em
relevo que as normas tributárias não podem ter fatos geradores ilícitos, ou melhor, digamos com maior apuro técnico, que a norma-padrão de incidência tributária não pode
descrever abstratamente, em sua hipótese, fatos ilícitos, sob pena de assim se construir
uma norma sancionante, visto que a noção que se consocia à de ilícito é a de penalidade, punição, âmbito em que se inserem as multas, espécie de sanção pecuniária.
Como saber, então, se, em face do dever de entregar soma em dinheiro ao Estado, estaremos diante de um tributo ou de uma penalidade pecuniária?
Buscamos a resposta em Sacha Calmon,11 que retoma em apertada, mas elucidativa síntese, as idéias de Kelsen e Cossio, clareando a compreensão de que nos devemos debruçar sobre o pressuposto da norma e apurar a índole do fato abstrato
que se acha hospedado no aspecto material que lhe dá consistência.
Como ensina, segundo a tradição kelseniana, a diferença entre as normas sancionantes e as normas impositivas, tipos básicos de normas condicionais, está em
que as impositivas têm hipóteses de incidência compostas por fatos jurígenos lícitos
e, por conseqüência, comandos que impõem direitos e deveres (relações jurídicas),
enquanto as punitivas são portadoras de hipóteses que representam fatos ilícitos e
de conseqüências que consubstanciam, sempre, sanções.
As normas sancionantes, ou sancionatórias, veiculam o poder dissuasório e punitivo que o direito desfecha contra aqueles que se insurgem contra sua pauta de conduta. Para Kelsen, lembra Sacha Calmon, as normas punitivas seriam as únicas de fato autônomas e relevantes para o direito; seriam as normas genuinamente jurídicas, fundantes da ordem jurídica, daí a razão pela qual as denomina primárias. As secundárias, as
normas de conduta, entre as quais se insere a norma tributária, seriam encontradas pelo
método de derivação lógica das primárias: diante do enunciado “matar, pena de X” (norma primária), extrai-se a norma de que é proibido matar (norma secundária).
Para Kelsen, pois, como anota Marcos Bernardes de Mello,12 a norma jurídica
completa teria uma estrutura dúplice, constituída por uma norma primária e uma
secundária, cuja expressão em linguagem lógico-formal seria:
11 COELHO, 2000. p. 100-104.
12 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico; plano da existência. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 27 et seq.
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“Se F então deve ser P (norma secundária), se não P então deve ser
S (norma primária)”.
Na fórmula, a variável F representa a situação de fato prevista, o suporte fático; P, a conduta humana que a norma ordena como conseqüência devida; não P representa a conduta humana contrária ao preceito, isto é, o descumprimento da norma e, finalmente, S representa a sanção pelo descumprimento da norma.
Bernardes de Mello serve-se de um exemplo bem esclarecedor, colhido no direito civil:
O art. 1.056 do Código Civil dispõe: ‘Não cumprida a obrigação, ou
deixando de cumpri-la pelo modo e no tempo devidos, responde o
devedor pelas perdas e danos’. Decompondo a norma segundo os
elementos da fórmula, teremos:
A) norma secundária
a) F (suporte fáctico) = Havendo uma dívida
b) P (preceito) = o devedor deve cumprir a obrigação pelo modo
e no tempo devidos;
B) norma primária
c) não-P (descumprimento da norma) = se o devedor não cumpre
a obrigação pelo modo e no tempo devidos,
d) S (sanção) = então deve responder pelas perdas e danos.13
Carlos Cossio, embora aceitando a estrutura dúplice da norma jurídica, conforme registra Bernardes de Mello, sustenta não se tratar de um juízo hipotético,
mas disjuntivo entre o que chama endonorma (a norma secundária de Kelsen) e a
perinorma (a norma primária de Kelsen, sancionante). Em fórmula lógica, a diferença no pensamento desse teórico assim se poderia exprimir:
“Dado F deve ser P, ou dado não P deve ser S”.
É que Cossio, como salienta Sacha Calmon, transcende a idéia de que o direito poderia ser esgotado no ilícito, conforme preconizado por Kelsen, para revalorizar a liberdade humana, o cumprimento normal da prestação jurídica. Há, portanto,
uma possibilidade de alternância entre os dois membros da estrutura normativa cossiana: cumprir espontaneamente a prestação ou infringi-la e submeter-se à sanção.
Outros filósofos do Direito, como Lourival Vilanova e Alf Ross, ressalta Sacha
Calmon, põem ênfase no critério cronológico, preferindo chamar primárias às nor13 MELLO, 1995. p. 28.
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mas impositivas e secundárias às sancionantes, mantendo, contudo, as linhas essenciais do pensamento do mestre de Viena.
Com fulcro nas lições de Lourival Vilanova, Bernardes de Mello demonstra,
ainda, que, em verdade, Cossio acaba por não negar a estrutura hipotética de Kelsen, pois, em sua fórmula, pode ser encontrada a relação antecedente e conseqüente, característica da conexão hipótese/tese.
Registrados esses reparos, e munidos desse aparato teórico, podemos ingressar na intimidade das normas de conduta e, logo, da norma tributária, que daquelas
é espécie, a fim de discerni-las, sem dificuldade, das normas sancionantes, ainda que
também determinantes de um dever de dar dinheiro ao Estado.
Concluindo com Sacha Calmon, repetimos, novamente, que “as normas
tributárias são do tipo impositivo ou endonormas, na terminologia cossiana,
por isso que possuem hipóteses de incidência constituídas, sempre, de fatos jurígenos lícitos, como v. gr. ‘ter renda’, ‘ser proprietário de imóvel’, ‘ter imóvel
particular valorizado em virtude de obra pública’, ‘importar mercadorias’, etc.”
[...]. “Os fatos que, jurígenos, estão nas hipóteses das normas tributárias têm de
ser obrigatoriamente fatos lícitos, porque, se ilícitos forem, o dever de entregar dinheiro ao Estado não mais será um dever tributário, mas de outra natureza jurídica. Em verdade, a soma devida ao Estado constituirá uma multa, jamais
um tributo”.14
Nesse sentido, fica evidente qual foi a cautela do legislador ao redigir o art. 3º
do Código Tributário Nacional, onde cuidou de enunciar que tributo não constitui
sanção de ato ilícito.
Atenção, porém: a mens legis ali insculpida é a de patentear que a norma tributária não pode descrever abstratamente, em sua hipótese de incidência, um fato
que em si mesmo encerre teor de ilicitude, o que não quer dizer que fatos ilícitos
in concreto não possam render ensejo à tributação.
Hugo de Brito Machado aborda, com precisão, esse aspecto, ao analisar o art.
3º do Código Tributário Nacional. Após dissertar acerca da distinção entre tributo e
penalidade, dita a irrepreensível lição que transcrevemos:
Quando se diz que o tributo não constitui sanção de ato ilícito, isto
quer dizer que a lei não pode incluir na hipótese de incidência tributária o elemento ilicitude. Não pode estabelecer como necessária e suficiente à ocorrência da obrigação de pagar um tributo
uma situação que não seja lícita. Se o faz, não está instituindo um
tributo, mas uma penalidade. Todavia, um fato gerador de tributo
pode ocorrer em circunstâncias ilícitas, mas essas circunstâncias
14 COELHO, 2000. p. 105-106.
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são estranhas à hipótese de incidência do tributo, e por isso mesmo, irrelevantes do ponto de vista tributário.
Demonstrando o dito acima, tomemos o exemplo do imposto de
renda: alguém percebe rendimento decorrente da exploração do
lenocínio, ou de casa de prostituição, ou de jogo de azar, ou de
qualquer outra atividade criminosa ou ilícita. O tributo é devido.
Não que incida sobre a atividade ilícita, mas porque a hipótese de
incidência do tributo, no caso, que é a aquisição da disponibilidade
econômica ou jurídica dos rendimentos, ocorreu. Só isto. A situação
prevista em lei como necessária e suficiente ao nascimento da
obrigação tributária do imposto de renda é a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica da renda ou dos proventos de
qualquer natureza (CTN, art. 43). Não importa como. Se decorrente de atividade lícita ou ilícita, isto não está dito na descrição normativa, vale dizer, isto não está na hipótese de incidência, sendo,
portanto, irrelevante. Para que o imposto de renda seja devido é
necessário que ocorra aquisição de disponibilidade econômica ou
jurídica de renda ou de proventos de qualquer natureza. E isto é suficiente. Nada mais se há de indagar para que se tenha como configurado o fato gerador do tributo em questão.15
O art. 3º do Código Tributário Nacional, que contém normas gerais de direito
tributário, é preceito de lex legum, lei sobre como fazer leis, ditando diretrizes que
orientarão e limitarão a ação legiferante das pessoas políticas de direito constitucional interno dotadas do poder de criar tributos. E, neste caso, veda-se a adoção de hipóteses normativas descritoras de fatos ou situações ilícitas.
Incide, aqui, portanto, a distinção entre hipótese de incidência e fato gerador concreto. A primeira é descrição hipotética e abstrata de um fato, situada no
plano da normatividade; o segundo, também chamado fato imponível, é conceituado por Geraldo Ataliba como “o fato concreto, localizado no tempo e no espaço, acontecido efetivamente no universo, que – por corresponder rigorosamente à descrição prévia, hipoteticamente formulada pela h.i. – dá nascimento à
obrigação tributária”.16
Nessa ordem de idéias, mais uma vez invocamos a autoridade do magistério
de Sacha Calmon, para quem “é preciso distinguir bem: a) se há dever pecuniário
como castigo pela prática de um ilícito, trata-se de multa (sanção); b) se há dever
pecuniário decorrente da prática de um ato lícito, trata-se de tributo”.17
15 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 50.
16 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 61.
17 COELHO, 2000. p. 106.
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Hipótese de incidência contempladora de fato ilícito, portanto, junge-se a sanção e não, a prestação tributária.
Com o socorro do instrumental teórico até agora exposto, podemos então
afirmar que o encargo criado pelo art. 1º da Lei Complementar nº 110/2001 não tem
natureza tributária, em razão da ilicitude que se aloja em sua hipótese de incidência.
Com efeito, o antecedente daquela norma descreve como jurígeno um fato ilícito, qual seja, a rescisão imotivada do contrato de trabalho pelo empregador. A dispensa arbitrária do empregado, com a nova regra, passou a sujeitar o empregador
ao pagamento de uma multa de 50%.
É preciso, de plano, afastar a preconceituosa assimilação da idéia de ilícito à
de crime, de delito, assim como desatrelar a noção de sanção da idéia de castigo.
Sanção é tão-somente o nome com que cientificamente se designa a conseqüência que a ordem jurídica comina para a hipótese de descumprimento de uma
norma. Nem sempre será um castigo, a não ser que outorguemos a esse termo um
elastério tal que seja capaz de abarcar qualquer conseqüência indesejável para aquele que transgrida uma norma. Ressalvada essa convenção semântica, podemos dizer
que sanção pode consistir na privação da liberdade, na restrição a direitos, na perda da propriedade ou da vida (nos ordenamentos que a admitam), na nulidade de
um ato jurídico,... ou na imposição de uma penalidade pecuniária.
O ilícito, por sua vez, conhece rica gradação, variando de gravidade, em função da relevância que uma dada sociedade atribua ao bem jurídico lesado, determinando a maior ou menor severidade da sanção.
Nesse sentido, lembremos as palavras colhidas de Sacha Calmon em sua Teoria e Prática das Multas Tributárias:
As infrações são absorvidas pela ordem jurídica através da aplicação de sanções aos infratores e estas são as mais diversas. Mencione-se, para logo, que as sanções não são uma exclusividade do Direito Penal, posto que seja este um Direito tipicamente sancionatório. [...] A norma jurídica estatuidora de sanção tem por hipótese
a prática de um ilícito violador de dever legal ou contratual. Por
hipótese uma infração, por conseqüência uma restrição à vida, liberdade, ou direitos outros do homem. No caso da subespécie multa, a norma sancionante tem por hipótese a prática de um ilícito
– o descumprimento de algum dever legal ou contratual – e, por
conseqüência, preceito que obriga o infrator a dar dinheiro a título de castigo (sanção).18
18 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria e prática das multas tributárias. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 19.
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Discorrendo sobre a ilicitude, Bernardes de Mello anota que todo ordenamento jurídico contém o princípio básico da incolumidade das esferas jurídicas individuais, concretizado no vetusto brocardo neminem laedere, segundo o qual a
ninguém é dado interferir na esfera jurídica alheia, sem a anuência de seu titular ou
autorização do ordenamento jurídico, donde se fala em um dever genérico e absoluto, que a todos cabe, de não causar danos a outrem.
Não só de danos patrimoniais se cogita, naturalmente, estando também
abrangidas todas as situações em que haja contrariedade ao direito: quando o ato é
realizado com violação a direito personalíssimo ou real, quando há infração a direito difuso, ou transindividual, quando existe abuso ou exercício irregular de direito,
quando o ato jurídico é praticado com contrariedade a norma jurídica cogente. Nas
relações de direito pessoal, ou de crédito, há ilicitude quando o devedor descumpre a prestação que lhe incumbe ou a cumpre mal e incide em mora e, ainda, quando a impossibilita culposamente.19
No âmago de qualquer ilicitude, independentemente do ramo do direito que
se leve em conta, haverá sempre a negação do direito, a contrariedade a uma regra
nascida de uma fonte jurídica, que pode ser tanto a lei quanto o contrato. O essencial é a violação ao direito, é a infração, sendo irrelevante a natureza do dever infringido.
Para a hipótese de suas regras de conduta não serem espontaneamente cumpridas, o direito adota as sanções como instrumento de repulsa ao ilícito, de punição dos infratores e, ao mesmo tempo, de desestímulo às condutas indesejadas.
O ônus previsto pelo art. 1º da Lei Complementar nº 110/2001 tem precisamente essa conformação, revelada quando indagamos a natureza da ruptura do contrato de trabalho sem justa causa.
Na tradição do direito civil, como é cediço, são estudadas distintas formas de
extinção dos contratos, que compreendem desde a decorrente de sua normal execução até as formas de perecimento por influência de causas anteriores à formação
do contrato (anulação) ou de causas extintivas supervenientes ao seu nascimento,
as quais a doutrina denomina genericamente dissolução,20 da qual é espécie a resilição, que pode ter origem em um acordo de vontades, em um distrato, hipótese
em que se diz bilateral, ou em ato de apenas uma das partes, quando se denomina
resilição unilateral.
No seio do contrato de trabalho, à manifestação de vontade do empregador
pela qual esse denuncia sua intenção de extinguir o pacto laboral costumamos chamar despedida ou dispensa.
Tratando da resilição unilateral, pondera Caio Mário da Silva Pereira que um
dos efeitos do princípio da obrigatoriedade dos contratos é “a alienação da liberda19 MELLO, 1995. p. 191 et seq.
20 GOMES, Orlando. Contratos. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987. p. 188-189.
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de dos contratantes, nenhum dos quais podendo romper o vínculo, em princípio,
sem a anuência do outro. Em casos excepcionais, contudo, admite a lei que um contrato cesse pela manifestação volitiva unilateral”.21 Entre essas exceções, figuram,
precisamente, os contratos por tempo indeterminado.
Sabemos que o traço característico dos contratos de trabalho por tempo indeterminado é sua tendência à continuidade, à permanência do vínculo, uma vez que
o trabalho, presume-se, é a imprescindível fonte de recursos hábeis a assegurar a sobrevivência do obreiro, razão pela qual merece especial atenção do Estado, reservando-lhe o ordenamento jurídico um regime próprio, repleto de normas protetivas, que descrevem um tratamento que excepciona a disciplina geral dos contratos
de direito privado.
Maurício Godinho Delgado, ocupando-se dos princípios reitores do direito individual do trabalho, põe em relevo o princípio da “continuidade da relação de
emprego”, o qual informa ser do interesse do Direito do Trabalho a permanência do
vínculo empregatício, com a integração do trabalhador na estrutura e dinâmica empresariais. Apenas mediante tal permanência e integração, observa o autor, “é que a
ordem justrabalhista poderia cumprir satisfatoriamente o objetivo teleológico do Direito do Trabalho de assegurar melhores condições – sob a ótica obreira – de pactuação e gerenciamento da força de trabalho em uma determinada sociedade”.22
Definir a natureza da ruptura arbitrária do contrato de trabalho, portanto, é tarefa a ser erigida sobre esse alicerce axiológico.
O fundamento da faculdade de resilição unilateral nos contratos por tempo
indeterminado em geral reside na presunção de que as partes, ao celebrarem aquela espécie de avença, não se desejam obrigar perpetuamente, devendo-se-lhe reservar a possibilidade de, a qualquer momento, desvencilharem-se do ajuste. É por
meio da resilição unilateral, pois, que as partes recuperam sua liberdade.
Essa denúncia, em regra, não carece de justificação. Em certos contratos, contudo, impõe a lei a necessidade de motivação, exigindo que se obedeça a uma justa causa. É o que se passa com o contrato de trabalho.
A faculdade de dispensa do empregado sem justa causa é tradicionalmente fundamentada no direito potestativo de pôr termo ao contrato de trabalho, reconhecido
ao empregador, que, contudo, deve exercitá-lo motivadamente, nos limites estatuídos
pela lei, que nele interfere em virtude dos reflexos sociais do desemprego.
Não obstante, a inexistência da justa causa, no atual estado do ordenamento
jurídico pátrio, não impede a extinção do contrato de trabalho, não havendo como
constranger o empregador a se manter vinculado ao empregado. O máximo que do
patrão se pode obter é o compulsório pagamento de multa em favor do trabalhador
arbitrariamente despedido.
21 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1975. v. 3, p. 9.
22 DELGADO, Maurício Godinho. Introdução ao direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1995. p. 158.
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Embora a Constituição de 1988 haja conferido especial importância à proteção da relação de emprego contra a dispensa imotivada, não se reconhece auto-aplicabilidade à disposição inscrita em seu art. 7º, I. Sobre o tema, as reflexões de Delgado:
A Constituição de 1988 tendeu a recolocar o princípio da continuidade da relação empregatícia em patamar de relevância jurídica,
harmonizando, em parte, a ordem justrabalhista à diretriz desse
princípio. Assim, afastou o sistema do FGTS de uma virtual incompatibilidade com garantias jurídicas de permanência do trabalhador no emprego, ao estender o instituto a todo e qualquer empregado (art. 7º, III, CF/88). Ao lado disso, fixou a regra da ‘relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos’ (art. 7º, I, CF/88). Adicionalmente lançou a idéia de ‘aviso prévio proporcional ao tempo de serviço’, ‘nos termos da lei’ (art. 7º, XXI, CF/88) [...]. Embora
a jurisprudência venha se firmando no sentido de negar eficácia
imediata a qualquer dos dois últimos preceitos.23
Não dispomos, ainda, é certo, desse regime que tornará efetiva a proteção da
relação de emprego contra a dispensa arbitrária, mas, apesar da inexistência de um
instrumento que a assegure à generalidade dos trabalhadores, restringindo o direito potestativo do empregador, podemos dizer que a dispensa que se faz fora das hipóteses legais que a legitimariam atenta contra o direito e, neste sentido, tem laivos
de ilicitude.
Desvincular-se de um ajuste por tempo indeterminado, em linha de princípio,
já vimos, é faculdade concedida aos contratantes. No âmbito do direito trabalho,
contudo, o seu legítimo exercício por parte do empregador é tolhido pelas margens
traçadas pela lei, imbuída do espírito de proteção ao trabalhador, parte hipossuficiente na relação empregatícia.
Diante da relevância social da proteção ao trabalhador e da preservação do
emprego, não nos devemos assustar com a asserção de que a ruptura do contrato
de trabalho fora das hipóteses do art. 482 da Consolidação das Leis do Trabalho carrega teor de ilicitude que sujeita o empregador infrator a uma sanção.
Analisando o sentido das expressões dispensa arbitrária ou sem justa causa,
Cretella Júnior giza que “a despedida arbitrária é iniciativa ilegal tomada pelo empregador e que incide sobre a relação do empregado, rompendo-a. Assim como a relação de emprego se forma por mútuo consenso, assim também a rescisão ou rompi23 DELGADO, 1995. p. 159.
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mento daquela relação deverá ocorrer, normalmente, por mútuo dissenso. Arbitrariedade da despedida é abuso de poder do empregador, que atinge a relação empregatícia”.24
E avança sobre os domínios da etimologia, de onde nos vem o vocábulo “justo”, do latim iustus, significando conforme ao direito, legal, que se contrapõe a “injusto”, do latim iniustus, contrário ao direito, ilegal, arbitrário, noção que, destaca,
é utilizada em outros ramos do Direito, como nas expressões “justo título” e “justo
preço”, presentes no direito civil e no direito econômico.
Se o patrão dispensar seu empregado por uma causa que não seja legalmente reputada justa, suportará a inflição da sanção que o direito lhe cominar.
Interessa-nos, aqui, a verba prevista pelo art. 18, § 1º, da Lei nº 8.036/1990,
que dispõe sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. O dispositivo mencionado prevê que o empregador, na hipótese de despedida sem justa causa, deve pagar ao empregado importância igual a 40% do montante de todos os depósitos realizados na conta vinculada durante a vigência do contrato de trabalho, com atualização monetária e acrescidos dos respectivos juros.
O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, como se sabe, foi criado pela Lei
nº 5.107/1966 como uma alternativa à antiga estabilidade prevista pela Consolidação
das Leis do Trabalho, benefício facilmente burlado pelos empregadores que, em sua
maioria, apressavam-se em despedir os trabalhadores tão logo esses se aproximassem dos dez anos de serviço. Pelo regime da antiga lei, a filiação ao Fundo era uma
opção do empregado e, uma vez manifestada, acarretava para o empregador o dever de depositar o montante de 8% da remuneração paga ou devida, no mês anterior, ao trabalhador, a ser recolhida a uma conta vinculada em seu nome.
A Lei nº 8.036/1990 veio pôr fim à duplicidade de regimes de proteção à relação de emprego tal como inicialmente criada.
O encargo do art. 18, § 1º, da Lei nº 8.036/1990, assim, soma-se a esse regime de
proteção como instrumento de desencorajamento à dispensa arbitrária, a um só tempo
servindo como meio dissuasório e intimidativo, capaz de inibir o desfazimento do vínculo fora das hipóteses reputadas justas pela lei, e punindo o empregador. Trata-se de conseqüência indesejada que a lei comina ao empregador que perpetra conduta que extrapola os limites legais da dispensa, tracejados sob a inspiração do princípio da continuidade da relação de emprego, prestigiado expressamente pela Carta Constitucional vigente.
O antecedente daquela norma, pois, descreve fato que ultrapassa as margens delineadas pela lei, ingressando na seara da ilicitude e criando autêntica
penalidade pecuniária.
A Lei Complementar nº 110/2001 exacerbou a pena a ser suportada pelo empregador, majorando-a em 10%, de modo que, valendo os termos de seu art. 1º, a
24 CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à constituição brasileira de 1988. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994. v. 9, p. 4.696.
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ruptura injusta do contrato de trabalho passaria a ensejar, verdadeiramente, o pagamento de duas multas distintas: uma, à razão de 40%, a ser paga ao empregado, e
outra, de 10%, a ser recolhida diretamente ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço.
A nova multa cria mais um obstáculo à concretização de novas dispensas imotivadas, que permitiriam a movimentação das contas. Tem perfil também nitidamente punitivo, já que cominada exclusivamente ao patrão que resilir o vínculo empregatício fora das hipóteses do art. 482 da Consolidação das Leis do Trabalho; e por,
simultaneamente, prevenir o desemprego, erige-se em mecanismo de forte função
social.
Aliás, essa intenção transparece na mensagem do Ministro de Estado do Trabalho e Emprego, Francisco Dornelles, e do Ministro de Estado da Fazenda, Pedro
Malan, ao Presidente da República, constante do Projeto de Lei Complementar nº
195 – A/2001, que deu origem à Lei Complementar nº 110/2001, conforme registra
Marcos Joaquim Gonçalves Alves:
A contribuição social devida nos casos de despedida sem justa causa, além de representar um importante instrumento de geração de
recursos para cobrir o passivo decorrente da decisão judicial, terá
por objetivo induzir a redução da rotatividade no mercado de trabalho.25 (grifos nossos).
Já vimos que a denominação atribuída pelo legislador ao gravame não vincula o intérprete e, tampouco, tem o condão de desvirtuar sua verdadeira natureza jurídica sancionante. As confessadas razões pré-legislativas que presidiram à edição do
ato normativo, por seu turno, constituem também subsídios exegéticos capazes de
auxiliar o intérprete, confirmando o resultado do esforço interpretativo que concluiu pela identificação da multa, natureza jurídica já desnudada com o exame da hipótese de incidência da norma ora apreciada.
Note-se que o fato de a nova multa não ser paga diretamente ao empregado,
nem depositada em sua conta, em nada modifica a estrutura sancionante da norma
que a institui, porquanto, em seu fato gerador, persiste a marca da ilicitude. Do mesmo modo, a circunstância de o empregado dispensado injustamente não ser beneficiado pela penalidade também não lhe desnatura essa feição, sendo irrelevante o
destino dos recursos arrecadados com o seu pagamento.
Em suma, até o advento da Lei Complementar nº 110/2001, a ruptura arbitrária do contrato de trabalho constrangia o empregador ao pagamento da importância de 40% de todos os depósitos realizados na conta vinculada do empregado, du25 ALVES, Marcos Joaquim Gonçalves. Novas contribuições sociais para o FGTS. Revista Dialética de Direito Tributário, v. 72, p. 127, set. 2001.
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rante a vigência do contrato de trabalho, ônus que ostentava feição sancionatória
que não se perdeu com o diploma que a elevou para 50%, ainda que dando destinação diversa aos 10% acrescidos. Importa, aqui, a circunstância de, pela perspectiva
do devedor daquela prestação (o empregador que resiliu arbitrariamente o pacto laboral), o fato dotado de virtude jurígena continuar a ser o mesmo – a dispensa injusta. Verificou-se mera cisão da destinação dos recursos, sem transmutação da essência ontológica do instituto.
Percebe-se que a majoração trazida com a Lei Complementar nº 110/2001 tem
também a natureza de multa, nada obstando que se reverta em favor do Fundo de
Garantia do Tempo de Serviço, como receita sem vinculação individualizada a este
ou àquele trabalhador.
Assim determinada a natureza jurídica do encargo, o que o retira do âmbito
de incidência das regras que compõem nosso sistema tributário, visto tratar-se de
multa, exsurge claro o vício de inconstitucionalidade que o macula, em face da limitação inscrita no art. 10, I, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da
Carta vigente:
Art. 10. Até que seja promulgada a lei complementar a que se refere o art. 7º, I, da Constituição:
I. fica limitada a proteção nele referida ao aumento, para quatro
vezes, da porcentagem prevista no art. 6º, caput, e § 1º, da Lei
5.107/1966.
Ainda não editada a lei complementar que disciplinará a proteção da relação
de emprego contra despedida arbitrária ou sem justa causa, persiste o limite máximo de 40% para a multa, hoje constante do art. 18, § 1º, da Lei nº 8.036/1990. O fato
de a majoração ter sido veiculada por lei complementar não supre a condição estabelecida pelo art. 10, I, do ADCT, que não se refere apenas à necessidade formal de
lei complementar, deitando também seu conteúdo.
Aguarda-se, portanto, a edição de lei complementar específica que venha a
disciplinar a proteção à relação de emprego contemplada pelo art. 7º, I, da Constituição e, enquanto não sobrevier esse regime, fica o empregador amparado pelo
teto estatuído, visto que o comando trazido pelo ADCT tem como destinatário não
apenas o empregado, beneficiário da multa originária, mas também o empregador,
que ficou resguardado de ampliação superior a 40%. Insista-se, mais vez, que, para
o empregador, é irrelevante o destino dos recursos arrecadados.
Há, pois, na disposição introduzida pelo art. 1º da Lei Complementar nº
110/2001, contraste material com o comando do art. 10, I, do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, o que é suficiente para o reconhecimento da inexigibilidade do novo encargo que o preceito írrito pretendeu criar.
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faculdade de direito de bauru
DA IMPOSIÇÃO CRIADA PELO ART. 2º DA LEI COMPLEMENTAR Nº
110/2001. NATUREZA JURÍDICA. DETERMINAÇÃO. CRITÉRIOS.
ESPÉCIES TRIBUTÁRIAS. CLASSIFICAÇÕES. DIVERGÊNCIAS.
AFERIÇÃO DA COMPATIBILIDADE DA LEI COMPLEMENTAR Nº
110/2001 COM O SISTEMA CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO
VIGENTE. BALIZAMENTOS LEGAIS, DOUTRINÁRIOS E JURISPRUDENCIAIS.
Distintas, contudo, são as conclusões acerca da exação criada pelo art. 2º da
Lei Complementar nº 110/2001, que traz a seguinte redação:
Art. 2º. Fica instituída contribuição social devida pelos empregadores, à alíquota de cinco décimos por cento sobre a remuneração
devida, no mês anterior, a cada trabalhador, incluídas as parcelas
de que trata o art. 15 da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990.
Após a publicação da Lei Complementar nº 110/2001, vários contribuintes ingressaram em juízo, insurgindo-se contra a exigência da nova imposição, e, entre
tantas teses de defesa articuladas, por vezes foi negada a natureza tributária da contribuição ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, à invocação de precedentes
do Supremo Tribunal Federal, que, antes da promulgação da Constituição de 1988,
havia proclamado tratar-se de um direito do trabalhador que se não caracterizaria
como crédito tributário.
Os precedentes foram fundamentados no entendimento de que a sede da
contribuição estaria no art. 165, XIII, da Carta anterior. Assegurando-se ao trabalhador estabilidade ou fundo de garantia equivalente, a contribuição do empregador
defluiria do fato de ser ele o sujeito passivo da obrigação de natureza social ou trabalhista, não detendo o Estado a titularidade dos recursos, aos quais foi recusado o
caráter de receita pública.
Não nos parece, contudo, que, diante das disposições hoje insculpidas no art.
149 da Constituição de 1988, possa remanescer dúvida acerca da natureza das contribuições ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, que em tudo se enquadram
no conceito legal de tributo, não bastasse a literalidade do texto constitucional, ao
submetê-las às regras integrantes do sistema tributário.
Tem-se, sim, insistimos, autêntica figura tributária, uma vez que a estrutura da
norma que instituiu o novo encargo apresenta os elementos característicos das imposições fiscais, conforme vimos nas teorias expostas no tópico anterior, subsumindo-se com precisão à conceituação legal ditada pelo art. 3º do Código Tributário Nacional.
Com efeito, trata-se de regra-matriz de incidência que descreve abstratamente, em seu antecedente, um fato lícito, consistente no “ser empregador”, no “efetuar
Revista do instituto de pesquisas e estudos
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o pagamento de remuneração a empregado”, situação definida em lei como necessária e suficiente (art. 114 do Código Tributário Nacional) à instauração do vínculo
obrigacional que constrange o empregador a uma prestação pecuniária, cuja solução lhe impõe o cumprimento do dever de recolher compulsoriamente importância em moeda aos cofres de entidade revestida de interesse público, aos cofres de
um Fundo de finalidade social.
A imposição foi instituída em lei e é cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada, conforme se depreende do preceituado pelo art. 3º da Lei
Complementar nº 110/2001:
Art. 3º. Às contribuições sociais de que tratam os arts. 1º e 2º aplicam-se as disposições da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990, e da
Lei nº 8.844, de 20 de janeiro de 1994, inclusive quanto a sujeição
passiva e equiparações, prazo de recolhimento, administração, fiscalização, lançamento, consulta, cobrança, garantias, processo
administrativo de determinação e exigência de créditos tributários federais.
Nada falta, pois, à configuração de um gravame fiscal, ou melhor, como veremos a seguir, parafiscal.
Aferir sua obediência aos cânones constitucionais reclama que se defina a natureza específica do tributo, pressuposto da identificação do regime próprio de cada
tipo tributário.
Ao redigir o texto da Lei Complementar nº 110/2001, o legislador deixou evidente ter pretendido criar uma contribuição de seguridade social. É o que se apura
com a leitura do art. 14 daquele diploma, o qual submeteu o novo tributo à espera
nonagesimal, regra peculiar às contribuições disciplinadas no art. 195 da Constituição de 1988. Diz a Lei Complementar nº 110/2001:
Art. 14. Esta Lei Complementar entra em vigor na data de sua publicação, produzindo efeitos:
I. noventa dias a partir da data inicial da vigência, relativamente
à contribuição social de que trata o art. 1º; e
II. a partir do primeiro dia do mês seguinte ao nonagésimo dia da
data de início de sua vigência, no tocante à contribuição social de
que trata o art. 2º (grifos nossos).
Todavia, como já foi visto à exaustão, a natureza específica do tributo não é determinada pelas palavras escolhidas pela lei, pela denominação que essa tenha intentado outorgar à exação ou pela destinação dos recursos, mas sim, pelo fato descrito abstratamente na hipótese de incidência da respectiva regra-matriz, conforme
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faculdade de direito de bauru
ensinamento da teoria dos tributos vinculados e não vinculados, expressamente
acolhida por nosso direito positivo.
Embora esse pareça ser ponto pacífico para a doutrina majoritária, grassa, ainda, acerba divergência entre os autores, quando o tema é a classificação das espécies tributárias, merecendo destaque as figuras dos empréstimos compulsórios e
das contribuições, pela estrepitosa celeuma que ainda suscitam. Não se trata de
mera querela acadêmica, mas de indagação de alta relevância, porquanto interfere
na aplicabilidade de diversas limitações ao poder de tributar, aspecto decisivo para
o controle da constitucionalidade das leis fiscais.
Logo, é imperioso classificar.
Devemos perguntar-nos, portanto, diante da norma posta pelos arts. 2º e 14,
II, da Lei Complementar nº 110/201: Que espécie de tributo foi ali criada? E, uma
vez assentada sua natureza específica, se sua instituição obedeceu às regras constitucionais e às normas gerais de direito tributário que a regulam.
Classificar, como ensina Roque Antônio Carrazza,26 é o procedimento lógico
de dividir um conjunto de seres em categorias, segundo critérios preestabelecidos,
acentuando as semelhanças e as dessemelhanças entre eles. Com apoio na doutrina
de Augustín Gordillo, destaca não haver classificações certas ou erradas, mas de
maior ou menor utilidade.
As classificações, portanto, são um modo de organização do pensamento humano, uma ferramenta intelectual, motivo pelo qual Carrazza salienta não estarem
elas no mundo fenomênico, mas, na mente do agente classificador.
Diversas têm sido as classificações das espécies tributárias ofertadas pela doutrina, em função dos distintos critérios nelas adotados. Deve-se advertir, porém, que
todas elas envolvem, sempre, uma certa margem de arbitrariedade.
Uma classificação que se queira jurídica há de partir da norma impositiva, de seus
elementos integradores, afastando, assim, aquelas propostas que se fundem em dados
pré ou pós-jurídicos, políticos, econômicos, financeiros ou sociais. Não nos interessaria,
acolhendo exemplo de Carrazza, a classificação dos tributos em exações muito rendosas e pouco rendosas para a Fazenda Pública. Embora admissível, não seria útil, operativa. Poderíamos falar, ainda, em tributos federais, estaduais e municipais. A competência, no entanto, não foi o critério de classificação das espécies tributárias eleito pelo direito positivo brasileiro, que adotou, como dado distintivo, o fato descrito na hipótese
de incidência da norma tributária, a circunstância de implicar ele, ou não, uma atuação
estatal mediata ou imediatamente referida de modo pessoal ao obrigado.
A doutrina não tem sido unânime em suas propostas de classificação, como anota Bernardo Ribeiro de Moraes,27 em levantamento que procuraremos aqui sintetizar.
26 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p.
348-349.
27 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de direito tributário. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. v. 1, p. 380.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
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Como registra o autor, para a chamada corrente bipartida, os tributos seriam
exclusivamente impostos ou taxas, espécies a que poderiam ser reduzidas todas as
exações. É o pensamento de Francisco Campos, Pontes de Miranda, Alberto Xavier
e Becker, entre outros.
Os membros da corrente tripartida ou tricotômica, que predomina na doutrina, vislumbram a existência de três espécies. Todavia, como consigna Werther Botelho Spagnol,28 tais espécies são também objeto de divergências. Para alguns, os tributos seriam impostos, taxas e contribuições de melhoria, podendo os empréstimos compulsórios e as contribuições especiais ser reduzidos a impostos ou taxas,
de acordo com o fato gerador. Há, ainda, a variante impostos, taxas e contribuições,
estas últimas compreendendo as subespécies contribuições especiais e contribuições de melhoria. É o entendimento de José Afonso da Silva, José Rodrigues Alckmin, Edvaldo Brito, Rubens Gomes de Sousa e Hamilton Dias de Sousa, entre outros, conforme registra Ribeiro de Moraes.
Da classificação quadripartida, ou quadripartite, Moraes cita Miguel Lins e Célio Loureiro, que aceitam a existência de impostos, taxas, contribuições de melhoria e contribuições especiais, havendo a variante impostos, taxas, contribuições e
empréstimos compulsórios, esposada por Fábio Fanucchi, Luiz Emydio F. da Rocha
Júnior e outros. Ribeiro de Moraes perfilha-se à corrente quadripartida, admitindo a
existência de impostos (que abrangeriam os empréstimos compulsórios), taxas,
contribuições de melhoria e contribuições especiais.
Finalmente, a corrente qüinqüipartida, seguida por Ives Gandra da Silva Martins, Fábio Leopoldo de Oliveira e Hugo de Brito Machado, para quem as espécies
tributárias seriam impostos, taxas, contribuições de melhoria, contribuições especiais e empréstimos compulsórios.
Historicamente, a evolução de nosso direito positivo também refletiu essas vacilações, como demonstra, ainda, Ribeiro de Moraes,29 ao proceder a um retrospecto do tratamento conferido ao tema pela legislação pátria.
Anota que a Constituição de 1891, filiando-se à corrente bipartida, admitia a
divisão dos tributos em impostos e taxas, critério mantido na Carta de 1934, tendo
o Decreto-lei nº 2.416/1940 definido as duas figuras, fazendo incluir as contribuições
entre as taxas.
A Constituição de 1946 seguiu a teoria tricotômica, dispondo sobre impostos,
taxas e contribuições de melhoria, classificação agasalhada por diversos diplomas
subseqüentes – a Lei nº 4.320/1964, a Emenda Constitucional nº 18/1965, a Emenda Constitucional nº 1/1969 e a Constituição de 1988.
As contribuições ditas especiais, ou parafiscais, por sua vez, foram, inegavelmente, as espécies que, com maior intensidade, experimentaram as incertezas da
28 SPAGNOL, Werther Botelho. Da tributação e sua destinação. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. p. 31.
29 MORAES, 1996. p. 379.
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faculdade de direito de bauru
doutrina e da legislação no que respeita à sua natureza tributária e no que concerne à sua autonomia.
Ribeiro de Moraes destaca o tratamento conhecido pelas contribuições parafiscais, dentro dos seguintes períodos da evolução constitucional brasileira. Diz ele:
a) até a promulgação da Emenda Constitucional nº 1, de 1969,
que incluiu no sistema tributário nacional as contribuições previdenciárias, corporativas e econômicas. A contribuição especial é
tributo;
b) da vigência da Emenda Constitucional nº 1, de 1969, até o advento da Emenda Constitucional nº 8, de 1977, que retirou do capítulo do sistema tributário nacional as contribuições previdenciárias devidas pelos empregadores e empregados;
c) a partir da Emenda Constitucional nº 8, de 1977, até o advento
da Constituição de 1988, em que as contribuições econômicas, corporativas e previdenciárias voltaram para o capítulo do sistema
tributário nacional;
d) a partir da vigência da Constituição de 1988.30
Entre as causas das controvérsias que cercam a taxionomia das espécies tributárias, arrola Sacha Calmon a “insegurança dos doutrinadores e dos intérpretes da
ordem jurídica, quando se deparam com figuras previstas pelo legislador aparentemente distanciadas dos modelos teóricos da dicotomia ou da tricotomia”; a “a-tecnalidade, o oportunismo, a polissemia da linguagem-do-objeto (posta pelo legislador, inclusive o constituinte), quando se põe a narrar o tributo, os impostos, as contribuições e as taxas”, e as oscilações da jurisprudência. A isso acresce que a Constituição de 1988, no particular, ao se referir a empréstimos compulsórios e a contribuições especiais, corporativas, de intervenção no domínio econômico, previdenciárias e sociais, parece ter ainda mais “embaralhado as noções teóricas sobre o assunto”, o que se agrava com a doutrina que, no trato da matéria, insere distinções
que só a tumultuam, com o concurso do legislador “que a todo o tempo se desdiz
contraditoriamente”. 31
De fato, quando o tema são as contribuições, a falta de uma teoria sólida que
permita identificá-las lança os operadores do direito em zona de profunda insegurança, a cada nova exação que se institui no País. As discrepâncias da jurisprudência
e a dimensão dos litígios poderiam ser sobremaneira amainadas, se assentássemos
um critério consistente e operativo, escorado exclusivamente em dados jurídicos.
30 MORAES, 1996. p. 636.
31 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p.
399.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
55
Conta hoje com vários seguidores a identificação das contribuições parafiscais
e dos empréstimos compulsórios segundo sua destinação. Diz-se que são tributos
autônomos afetados a finalidades especiais. Aí residiria sua essência ontológica.
Nessa ordem de idéias, assim se manifesta Spagnol, após referir-se à teoria tricotômica, que baseia sua classificação no aspecto material da hipótese de incidência
da norma tributária:
Se a classificação acima é suficiente para definir os Impostos, Taxas e Contribuições de Melhoria, apresenta-se insubsistente para
definir as Contribuições e os Empréstimos Compulsórios. Isso porque a hipótese de incidência desses tributos não são atividades do
Poder Público, mas o produto de sua arrecadação destina-se ao
custeio de uma atividade específica – não em relação ao contribuinte (Taxas e Contribuições), mas em relação à sociedade (ou
um grupo social).32
Para o autor, como se percebe, a divisão dos tributos em função do fato gerador abstratamente descrito no antecedente da norma tributária serviria à identificação dos impostos, das taxas e das contribuições de melhoria, mas não seria suficiente para a classificação das contribuições especiais e dos empréstimos compulsórios,
razão pela qual lança mão de sua destinação:
A classificação das espécies tributárias deve estar fulcrada na
Constituição, e, neste sentido, o Texto Magno, ao incorporar todo o
contexto evolutivo tributário, consagrou, além das três clássicas espécies tributárias – Impostos, Taxas e Contribuições de Melhoria –,
duas subdivisões: tributos de afetação obrigatória, compostas pelas
Contribuições e Empréstimos Compulsórios.33
Nesse pensar, não destoa dos comentários da mestra Misabel Abreu Machado
Derzi ao art. 4º do Código Tributário Nacional, o qual enuncia que a natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação,
sendo irrelevantes para qualificá-la a denominação e demais características formais
adotadas pela lei e a destinação legal do produto da sua arrecadação.
Embora reconheça que a maioria das contribuições existentes em nosso
ordenamento tenha estrutura interna de impostos, assim se pronuncia a Professora:
32 SPAGNOL, 1994. p. 33.
33 SPAGNOL, 1994. p. 35.
faculdade de direito de bauru
56
Mas ressalvas devem ser feitas ao art. 4º do Código Tributário Nacional, no ponto em que considera irrelevante, de forma generalizada, a destinação do produto arrecadado para a definição da espécie tributária. É que a destinação, efetivamente, será irrelevante para distinção entre certas espécies (taxas e impostos, p. ex.),
mas é importante no que tange à configuração das contribuições
e dos empréstimos compulsórios.
A Constituição de 1988, pela primeira vez, cria tributos finalisticamente afetados, que são as contribuições e os empréstimos
compulsórios, dando à destinação que lhes é própria relevância,
não apenas do ponto de vista do Direito Financeiro ou Administrativo, mas, igualmente, do Direito Constitucional (Tributário).
[...] Entretanto não nos parece ter sido revogado o art. 4º do
CTN. Ele apenas não encontra aplicação no caso das contribuições especiais e dos empréstimos compulsórios, de competência
da União, mas guarda inteira procedência quanto à distinção
entre impostos e taxas, valioso instrumento de identificação rigorosa dos lindes do exercício da competência tributária de Estados e Municípios.34
Sustenta que, alterada a destinação da contribuição, alterada também resulta
sua natureza jurídica.
A adoção do critério da destinação dos recursos arrecadados não é novidade
entre nós. Como noticia Ribeiro de Moraes, dois decretos-leis já o abrigaram:
O Decreto-lei nº 1.804, de 24 de novembro de 1939, trazia a disposição que o
Decreto-lei nº 2.416, de 17 de julho de 1940, repetiu em seu art. 1º:
Art. 1º, § 2º. – A designação de ‘imposto’ fica reservada para os tributos destinados a atender indistintamente às necessidades de ordem geral da administração pública; a de ‘taxa’, para os exigidos
como remuneração de serviços específicos prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição, ou ainda para as contribuições
destinadas ao custeio de atividades especiais do Estado ou do Município, provocadas por conveniência de caráter geral ou de determinados grupos de pessoas.
Ocorre, porém, que não foi este o critério escolhido por nosso direito tributário vigente, o qual expressamente acolhe a distinção entre tributos vinculados e
34 BALEEIRO, 2000. p. 68-69.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
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não vinculados, definindo as espécies tributárias pelo fato gerador da respectiva
obrigação (art. 4º, caput, do Código Tributário Nacional).
Não se pode admitir, por outro lado, que adotemos, simultaneamente, dois
critérios de classificação, como o fato gerador e a destinação: aplicar-se a algumas
exações o primeiro, para, em seguida, abandoná-lo e substituí-lo pela destinação,
prosseguindo na organização dos entes submetidos à classificação.
Com um exemplo concreto e, em certa medida, prosaico, procuraremos demonstrar a inviabilidade desse procedimento. Imaginemos que, diante de uma mesa
repleta de objetos, decidíssemos classificá-los segundo o seu preço. Objetos que
custarem mais de R$200,00 serão considerados caros e, abaixo desse valor, considerar-se-ão baratos. O critério, portanto, é o preço.
Suponhamos que, já iniciada sua distribuição em grupos, faltantes dois objetos, percebêssemos que se tratasse de uma borracha de R$10,00 e de um caderno de R$25,00, ainda a distribuir e, então, observando que são destinados ao
uso escolar, resolvêssemos colocá-los em um terceiro e novo grupo – o grupo
dos objetos escolares. Ao final, poderíamos, acaso, apresentar a seguinte proposta classificatória:
objetos caros
objetos baratos e
objetos escolares ?
Percebe-se, de plano, que a classificação imiscui dois critérios. O método é defeituoso e compromete sua validade, pois torna híbrido o critério de discrimen. Ou
classificamos pelo preço ou pela finalidade. O que não podemos fazer é começar a
ordená-los por um critério e abandoná-lo, no curso do procedimento, pois haverá
objetos que apresentarão características de mais de um grupo.
Do mesmo modo, ou classificamos os tributos pela materialidade do fato gerador descrito em sua hipótese de incidência, ou os classificamos pela destinação; o
que não podemos dizer é que o critério do fato gerador sirva para alguns tributos e
não para outros. Escolhido um critério, todas as exações criadas pela lei deverão passar por um mesmo crivo.
Isso não significa dizer que a destinação seja destituída de efeitos jurídicos,
mas tão-somente que, uma vez adotada pelo ordenamento jurídico a teoria dos tributos vinculados e não vinculados, a destinação não se prestará à determinação da
natureza específica do gravame.
Para essa teoria, didaticamente tão bem exposta por Geraldo Ataliba em sua
clássica Hipótese de Incidência Tributária, o critério jurídico de classificação reside
na consistência da hipótese de incidência da norma tributária, ou seja, em seu aspecto material.
A investigação de todas as normas impositivas revela, invariavelmente, que
seu aspecto material consiste em uma atuação estatal ou em um reflexo seu, ou, ao
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contrário, em uma atividade ou fato qualquer inserto na esfera jurídica do obrigado,
sem relação, ou vinculação, com uma atividade estatal.
No primeiro caso, teremos os tributos vinculados, que compreenderiam as taxas e
as contribuições. No segundo, os tributos não vinculados, representados pelos impostos.
No antecedente das normas instituidoras de impostos, teremos um fato revelador da capacidade econômica, contributiva, do sujeito passivo. Será um fato indicativo de sua força econômica – auferir renda, ser proprietário de imóvel, realizar
operações de circulação de mercadorias, industrializar produtos, entre outros. Enfim, os chamados signos presuntivos de riqueza.
Na hipótese de incidência das taxas, encontraremos uma atuação estatal diretamente referida ao sujeito passivo, que poderá ser a utilização de um serviço público específico e divisível, efetivamente prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição, ou o regular exercício do poder de polícia.
Na contribuição, a hipótese de incidência também descreve uma atuação estatal referida ao obrigado, todavia tal referibilidade é mediata ou indireta, pois, entre o sujeito passivo e a atividade estatal, há um fato ou uma circunstância intermediária, que, no caso da contribuição de melhoria, por exemplo, é a valorização imobiliária decorrente de obra pública que beneficia o contribuinte.
Nas palavras de Geraldo Ataliba:
A h.i. das contribuições é uma atuação estatal indireta ou mediatamente referida ao obrigado (e referida mediante um elemento
ou circunstância intermediária), quer dizer: ou (1) é uma conseqüência ou efeito da ação estatal que toca o obrigado, estabelecendo o nexo que o vincula a ela (ação estatal), ou (2) uma decorrência da situação, status, ou atividade do obrigado (sujeito passivo
da contribuição) que exige ou provoca a ação estatal que estabelece o nexo entre esta (ação) e aquele (obrigado).
É o que, no plano da ciência das finanças se designa como benefício especial ou detrimento especial [...]: o sujeito é chamado a pagar em razão de (1) benefício especial que recebe em conseqüência de uma ação estatal, ou em função de um (2) detrimento que
causa ao interesse público, exigente da ação estatal que o anule,
neutralize, corrija ou conserte.35
Essas seriam as espécies puras, autônomas – impostos, taxas e contribuições
– com seus traços típicos e inconfundíveis, caracterizados pelas peculiaridades de
suas hipóteses de incidência, pouco importando sua finalidade.
35 ATALIBA, 1991. p. 187.
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Ocorre, contudo, que, por vezes, o legislador não emprega essas denominações com rigor científico, utilizando um nomen juris por outro, vezo corriqueiro no
âmbito das contribuições parafiscais.
Na feliz expressão de Sacha Calmon, “o discurso constitucional faz referência
a dois personagens nominalmente refratários à tricotomia impostos, taxas e contribuições de melhoria” – os empréstimos compulsórios e as contribuições especiais,
ditas parafiscais.
Seriam tributos diversos daquela tríade, ou apenas nomes? É o questionamento a que o autor procura responder e o faz com precisão.
Em artigo intitulado Proposta para uma Nova Classificação dos Tributos a
partir de um Estudo sobre a Instituição de Contribuição Previdenciária pelos Estados, Distrito Federal e Municípios,36 Sacha Calmon insiste em que a natureza jurídica do tributo será encontrada pelo exame de seu fato gerador, sendo elementos
acidentais e irrelevantes o motivo ou a finalidade de sua instituição. Todavia, assinala, isso não impede que haja imposto restituível, nem obsta a existência de impostos ou taxas afetados a finalidades específicas e administrados por órgãos paraestatais ou autarquias.
Explica que o constituinte recorreu a tais nomes e expressões – “contribuições” e “empréstimos compulsórios” – não apenas pela tradição, mas porque, de fato, são tributos especiais. Isso porque não há compulsório sem imposto e sem promessa de restituição, devendo, ainda, ser atendidas as causas previstas pela Constituição (despesas extraordinárias decorrentes de calamidade
pública, guerra externa ou sua iminência, ou investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional), e vinculadas as receitas às despesas
mencionadas.
Por outro lado, as contribuições são afetadas a fins predeterminados pela
Constituição, são vinculadas a órgãos e finalidades.
Registre-se, porém, a arguta e perfeita conclusão do jurista:
[...] nem a restituição nem a afetação parafiscal decidem sobre
a natureza jurídica da espécie tributária. Contudo, estes aspectos constitucionais que vimos de ver conferem matizes que singularizam, para fins de regulamentação jurídica, os empréstimos compulsórios e as contribuições (sociais, corporativas e interventivas).37
36 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Proposta para uma nova classificação dos tributos a partir de um estudo sobre
a instituição de contribuição previdenciária pelos estados, Distrito Federal e municípios. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Contribuições previdenciárias; questões atuais. São Paulo: Dialética, 1996. p. 169-170.
37 COELHO, 1996. p. 171.
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60
Temos, em nosso direito positivo, portanto, contribuições que nada mais são
que impostos finalísticos, porque afetados a fins específicos estabelecidos pela própria Constituição, e outras que são contribuições verdadeiras, autênticas.
As contribuições que são ontologicamente impostos afetados, finalísticos, são
reconhecidas, como qualquer imposto, pelo fato abstratamente qualificado, na respectiva hipótese de incidência, como jurígeno. Nelas, o que faz nascer a obrigação
tributária é um fato, uma situação, independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte (art. 16 do Código Tributário Nacional). Em exceção à
regra geral encravada no art. 167, IV, da Constituição de 1988, a própria Carta Magna já prevê a afetação das receitas oriundas de seu recolhimento.
Há, ainda, no entanto, contribuições genuínas, verdadeiras ou puras, segundo
a visão de Sacha Calmon, na esteira da doutrina de Geraldo Ataliba, e que aqui acompanhamos. Têm como fato gerador uma atuação estatal indireta e mediatamente referida ao obrigado, que acarreta algum especial benefício para o contribuinte, ou algum especial detrimento que o contribuinte cause ao interesse público, exigindo a
atuação estatal.
As contribuições assim denominadas pela Constituição servem de instrumento arrecadatório de receita comprometida com o custeio dos encargos assumidos
pelo Estado na área social e nos campos da intervenção no domínio econômico e
da atuação das entidades representativas das categorias econômicas e profissionais.
Todavia, guardem-se, mais uma vez, as exatas palavras de Sacha Calmon:
[...] a finalidade, nas contribuições, não as autonomiza como espécie tributária. Para que haja uma contribuição especial verdadeira, como subespécie, diversa da contribuição de melhoria, outra subespécie, é necessário que a atuação estatal eleita como fato
gerador seja um atuar mediato ou imediato do Poder Público, específico e relativo à pessoa do contribuinte. Esta atuação, de sobredobro, não pode ser obra pública (contribuição de melhoria), nem
serviço de utilidade pública (taxa de serviço), nem ato do poder de
polícia (taxa de polícia).38
Do corpo da Constituição, destaca o jurista que as verdadeiras contribuições
seriam as previdenciárias incidentes sobre os ganhos dos segurados, para garantirem serviços médicos, auxílios diversos e aposentadorias, pois os fatos geradores seriam prestações do Estado, auxílios diversos, pensões, aposentadorias, ad futuram.
Assim, pondera, para obter tais prestações, específicas e pessoais, os segurados obrigatórios pagam as contribuições compulsórias, traço que lhes marca o incontestável
caráter sinalagmático.
38 COELHO, 1999. p. 405.
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Nas demais contribuições, diferentemente, essa referibilidade não comparece, apresentando-se como autênticos impostos, afetados a fins constitucionalmente
definidos, embora batizadas contribuições pelo constituinte. Predica Sacha Calmon:
“examine-se o fato gerador de todas elas e sobressairá que são todas manifestações
de capacidade contributiva e que, mesmo quando tal aspecto seja obscurecido,
como nas contribuições corporativas (sindicais ou associativas), inexistirá atuação
do Estado direta, pessoal, especificamente relacionada à pessoa do contribuinte”.39
Passando em revista diversas dessas contribuições ditas especiais ou parafiscais, salienta que várias delas, como as que ficam a cargo do empregador (art. 195
da Constituição de 1988), têm como fato gerador o lucro, o faturamento, o pagamento de salários, havendo, ainda, a receita de concursos de prognósticos, não se
detectando qualquer atividade estatal. É o que ocorre com as contribuições sociais
incidentes sobre o lucro líqüido – CSLL –, com a COFINS e com o PIS, entre outras.
Entre as contribuições de intervenção no domínio econômico, o autor menciona as contribuições cobradas pela Embrafilme sobre os ingressos de cinema, para
o fomento da produção nacional, o Adicional de Frete para Renovação da Marinha
Mercante – AFRMM – incidente sobre a movimentação de cargas nos portos, tributos que trazem, no descritor das normas que os instituíram, fatos alheios à atuação
do Estado, mostrando, em sua intimidade, a natureza específica de impostos.
Assim, calcado em sólidos pilares científicos, Sacha Calmon apresenta-nos sua
proposta taxionômica. Parte da teoria dos tributos vinculados e não vinculados, de
elemento ínsito à hipótese normativa, sem imiscuir dados estranhos ao vínculo obrigacional, como a destinação e a finalidade dos recursos, que, na verdade, constituem motivos ou inspirações que antecedem a criação do tributo – aspectos pré-jurídicos – e, uma vez extinta a relação tributária, com o pagamento da exação, após
o ingresso do dinheiro aos cofres públicos, o fim que a ele se dê não interferirá na
natureza específica do gravame.
Tem, ainda, o mérito de ponderar que a destinação que afeta impostos finalísticos – falsas contribuições – define a aplicabilidade de determinadas derrogações
do regime dos impostos gerais, estabelecendo o que chamou matizes, sem, contudo, modificar-lhes a essência que dá identidade às espécies tributárias.
Eis, portanto, o quadro a que chega Sacha Calmon, e onde procuraremos situar a contribuição criada pelo art. 2º da Lei Complementar nº 110/2001:40
39 COELHO, 1999. p. 405.
40 COELHO,1999, p. 75; 402.
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impostos gerais
Impostos restituíveis (empréstimos compulsórios)
não vinculados
Impostos especiais, afetados ou finalísticos,
(contribuições não sinalagmáticas para
seguridade social, corporativas e interativas)
Tributos
de polícia
taxas
de serviço
vinculados
contribuições
de melhoria
previdenciárias (sinalagmáticas)
A propósito do tema, Ribeiro de Moraes transcreve lição em que Bilac Pinto,
ao cuidar das classificações teóricas da receita pública, ressalta o confronto entre esquemas lógicos e eficácia jurídica:
Uma classificação pode ser irrepreensível do ponto de vista lógico
e inteiramente ineficaz do ponto de vista jurídico. A verdade lógica não constitui necessariamente uma verdade jurídica ou uma
verdade histórica. Existindo em cada país civilizado uma classificação constitucional, legal ou jurisprudencial, das receitas públicas que, não obstante seu caráter empírico e seus defeitos lógicos,
está incorporada ao respectivo direito objetivo, as classificações
que com ela não coincidem são destituídas de eficácia jurídica.41
A observação nos parece excessivamente rigorosa.
Embora não pensemos que o contraste entre uma classificação lógica e uma
classificação de direito positivo deva ser sempre decidido em favor desta última, é
inegável que a tipologia adotada pelo texto constitucional não pode ser ignorada,
pois as palavras escritas na Constituição são o portal para ingressarmos na intenção
do poder que lhe deu origem.
Se o constituinte quis apelidar de contribuições as fontes de manutenção de entidades de interesse de categorias econômicas e profissionais e de custeio da seguridade social e da atuação do Estado nos domínios social e econômico, mesmo que sejam
verdadeiramente impostos, tal opção não pode ser desconsiderada pelo intérprete. O
41 PINTO, Bilac. As classificações teóricas da receita pública, RF, v. 133, p. 150, apud MORAES, Bernardo Ribeiro de.
Compêndio de direito tributário. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. v.1, p.513.
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nome não modificará a verdadeira identidade do tributo, mas etiquetará algumas regras
peculiares que a Constituição reservou aos impostos finalísticos, distinguindo-as, pela
denominação, das regras a que se subordinam os impostos gerais.
O tema das contribuições, como se vê, é inçado de divergências, que perpassam as discussões acerca de sua natureza tributária, de sua autonomia, a começar
pela questão de ordem terminológica, que ainda não logrou uniformização, quer
seja em legislação, quer seja em doutrina ou jurisprudência.
Nesse contexto de imprecisões terminológicas e taxionômicas, preciosa é a
contribuição do Ministro Carlos Mário Velloso, que, com a autoridade da Corte que
integra, vem auxiliando nesse processo de consolidação terminológica, sendo reiteradamente invocada pelas instâncias inferiores.
Em didático e bem fundamentado voto proferido no julgamento do Recurso
Extraordinário nº 138.284-8/CE, procedeu o Ministro Carlos Mário Velloso a uma
proposta de classificação estribada no nominalismo albergado pela Constituição.
Não obstante as ligeiras divergências de índole lógica que guarda com a proposta de
Sacha Calmon, ora esposada, tem o mérito, como já foi dito, de colaborar em uniformização que facilitará a comunicação entre operadores do direito.
No esquema de classificação engendrado por Carlos Mário Velloso, as espécies
tributárias assim se encontram topograficamente dispostas:
a) impostos (CF, art. 145, I, 153, 154, 155 e 156);
b) taxas (CF, 145, II)
c) contribuições
c.1. de melhoria (CF, art. 145, III)
c.2. parafiscais (CF, art. 149)
c.2.1. sociais
c.2.1.1. de seguridade social (CF, art. 195, I, II, III),
c.2.1.2. outras de seguridade social (CF, art. 195, parág. 4º),
c.2.1.3. sociais gerais (o FGTS, o salário-educação, CF art. 212,
parág. 5º, contribuições para o SESI, SENAI, SENAC, CF, art.
240)
c.3. especiais
c.3.1. de intervenção no domínio econômico (CF, art. 149)
c.3.2. corporativas (CF, art. 149)
d) os empréstimos compulsórios (CF, art. 148).
Cabe-nos, pois, capitular a contribuição aqui examinada neste quadro, com os
reparos da doutrina já estudada.
Estamos em que o percentual de meio por cento incidente sobre a remuneração devida, no mês anterior, ao empregado nada mais é que a majoração da contribuição já prevista pelo art. 15 da Lei nº 8.036/1990, porquanto o fato gerador e os
elementos da respectiva relação jurídico-tributária permanecem os mesmos.
faculdade de direito de bauru
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Façamos o cotejo dos dois dispositivos:
Lei Complementar nº 110/2001 – Art. 2º. Fica instituída contribuição social devida pelos empregadores, à alíquota de cinco décimos
por cento sobre a remuneração devida, no mês anterior, a cada
trabalhador, incluídas as parcelas de que trata o art. 15 da Lei nº
8.036, de 11 de maio de 1990.
Lei nº 8.036/1990 – Art. 15. Para os fins previstos nesta Lei, todos os
empregadores ficam obrigados a depositar, até o dia 7 (sete) de
cada mês, em conta bancária vinculada, a importância correspondente a 8% (oito por cento) da remuneração paga ou devida,
no mês anterior, a cada trabalhador, incluídas na remuneração
as parcelas de que tratam os arts. 457 e 458 da CLT e a gratificação
de Natal a que se refere a Lei nº 4.090, de 13 de julho de 1962, com
as modificações da Lei nº 4.749, de 12 de agosto de 1965.
O aspecto material continua a ser o “remunerar o empregado”, os sujeitos
passivos também são os mesmos, como, aliás, fez questão de vincar o art. 3º da Lei
Complementar nº 110/2001:
Art. 3º. Às contribuições sociais de que tratam os arts. 1º e 2º aplicam-se as disposições da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990, e da
Lei nº 8.844, de 20 de janeiro de 1994, inclusive quanto a sujeição
passiva e equiparações, prazo de recolhimento, administração, fiscalização, lançamento, consulta, cobrança, garantias, processo
administrativo de determinação e exigência de créditos tributários federais.(grifos nossos).
A base de cálculo foi igualmente mantida. Alterou-se tão-somente o percentual da alíquota, majorando-a de 8 para 8,5%. Talvez a sujeição ativa seja o aspecto que maiores dúvidas deva suscitar, quando nos perguntamos se estamos diante da mesma contribuição ao Fundo de Garantia do Fundo de Serviço até então
existente.
Entendemos que sim, pois ambas constituem receita do Fundo de Garantia do
Tempo de Serviço, sendo irrelevante o modo como sejam recolhidas e por ele guardadas, se de forma individualizada, ou se comporão um todo indiviso a ser repartido entre determinados trabalhadores que venham a receber as complementações
de correção monetária. Saber de que modo serão escrituradas, se depositadas nas
contas vinculadas dos respectivos empregados ou se serão utilizadas para recomposição de contas de outros titulares, é circunstância acidental. Trata-se de providência pós-arrecadatória.
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O que acontece posteriormente à entrega do dinheiro ao Fundo é questão de
ordem administrativa, que em nada interfere na compostura do tipo tributário. O
emprego dos recursos insere-se no contexto de outras relações jurídicas. A relação
tributária, em ambos os casos, firma-se entre o empregador e o Fundo, ente despersonalizado, investido de função pública, social, mas representado por pessoa jurídica a que a lei atribua sua gestão.
Veja-se o que diz Rubens Gomes de Sousa, acerca do destino das receitas tributárias, em artigo onde examinou a natureza jurídica da contribuição ao Fundo de
Garantia do Tempo de Serviço:
A afetação das receitas públicas a determinadas finalidades é evidentemente sem influência para lhes definir a natureza jurídica. Digo
“evidentemente” porque aquela afetação logicamente pressupõe a
prévia arrecadação da própria receita, isto é, a extinção da relação jurídica que deu origem a sua cobrança. Logo, não poderia atuar sobre
aquela relação jurídica, a ponto de integrar-se na definição do tributo, ou do preço público, ou do contrato, ou de qualquer modalidade de atuação do Estado, que lhe tenha dado origem. Em resumo,
a destinação da receita é uma providência de tesouraria relacionada
com a despesa pública e não com a própria receita, por isso mesmo
enquadrada em outro ramo do direito – o financeiro ou orçamentário – mas não no tributário.
[...] o que em definitivo confirma esta configuração é o fato de que a
relação jurídica se estabelece exclusivamente entre o empregador
como contribuinte (sujeito passivo) e o poder público como sujeito ativo, através dos órgãos a que este delegou a administração do FGTS. Nenhuma relação jurídica se estabelece entre o contribuinte (empregador)
e o beneficiário (empregado): este, ou seus herdeiros ou dependentes,
poderá ser titular ativo de uma segunda relação jurídica, cuja natureza
não interessa indagar porque não se reflete sobre a da primeira, mesmo
porque o seu sujeito passivo não é o mesmo daquela (empregador),
mas o que nela figurou como sujeito ativo (o poder público representado por seus órgãos delegados).42 (grifos nossos).
É contribuição para o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço a exação do art.
2º da Lei Complementar nº 110/2001, tanto quanto a do art. 15 da Lei nº 8.036/1990.
São a mesma contribuição, embora com diversa repartição do produto da respectiva arrecadação. A função social não foi alterada e é o que basta a sua qualificação.
42 SOUSA, Rubens Gomes de. Natureza tributária da contribuição do FGTS, Revista de Direito Administrativo, v.
112, p. 41;44, abr/jun. 1973.
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Calha, aqui, então, assentar que o fato gerador desse tributo consiste no ato de
“remunerar empregado”, situação que não envolve qualquer atuação estatal, sendo sua
hipótese de incidência típica dos impostos, por tratar-se de fato inserto na esfera jurídica e econômica do contribuinte. A contribuição ao Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço, no plano da teoria geral do direito tributário, é, pois, imposto.
Todavia, seria imposto geral criado com desobediência à proibição do art. 167,
IV, da Constituição de 1988, como vêm sustentando os contribuintes que hostilizam
o gravame em juízo, ou seria imposto finalístico, com afetação permitida pelo texto
constitucional?
Não vislumbramos qualquer ofensa à vedação inscrita no art. 167, IV, da Constituição, cuja intenção é a de zelar pelo princípio da separação dos Poderes da República. Ao dizer que é defesa a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou
despesa, cuidou o constituinte de impedir que o Poder Legislativo, ao criar aquelas
exações, determinasse como deveriam ser despendidos os respectivos recursos,
atribuição administrativa típica, privativa do Poder Executivo, por excelência.
Todavia, a própria Constituição excepcionou aquela vedação, afetando certos
tributos ao financiamento da atuação do Estado, diretamente ou por meio de entes
paraestatais, em segmentos impregnados do superior interesse público, social.
É o que se passa com o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço.
É imposto finalístico, “contribuição” no vocabulário constitucional. Contudo,
não constitui fonte de custeio da seguridade social, como pretende fazer crer o art.
14, II, da Lei Complementar nº 110/2001, ao submetê-la ao prazo nonagesimal, privativo das contribuições securitárias, uma vez que a finalidade do Fundo não se subsume a qualquer das ações que integram o conceito de Seguridade Social fixado por
nosso direito constitucional positivo.
Importa, aqui, portanto, distinguir entre contribuição social e contribuição
de seguridade social.
Misabel Abreu Machado Derzi, em artigo intitulado O PIS, as Medidas Provisórias e o Princípio da Não Surpresa,43 ensina que o conceito de Seguridade Social
varia de um direito positivo a outro, dependendo seu conteúdo do momento histórico e das experiências vivenciadas em cada país.
Do ponto de vista formal e objetivo, nossa Seguridade Social, diz ela, abrange
o elenco de ações inscrito no art. 194 da Constituição de 1988, cuja substância é desdobrada nos arts. 196, 201 e 203, entre os quais não figura o direito social do trabalhador à garantia do tempo de serviço, consagrado no art. 7º, III, da Carta vigente.
Na dicção do art. 194, a Seguridade Social compreende o conjunto de ações
destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Como frisa a autora, “nela não estão incluídos os direitos à educação, à habita43 DERZI, Misabel Abreu Machado. O PIS, as medidas provisórias e o princípio da não-surpresa. In: ROCHA, Valdir
de Oliveira (Coord.). PIS; problemas jurídicos relevantes. São Paulo: Dialética, 1996. p. 201-202.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
67
ção, e outros que compõem o conjunto da ordem social em todo o Título VIII da
Constituição”.44 As contribuições de seguridade social, ou securitárias, seriam, portanto, fontes de custeio da ação do Estado exclusivamente nas áreas citadas acima:
saúde, previdência e assistência social.
Previstas no art. 195 da Constituição, as contribuições de seguridade social
integram o grupo das contribuições sociais, ao lado de outras, ditas contribuições
sociais gerais, na terminologia de Carlos Mário Velloso, destinadas ao financiamento da atuação do Estado em outras áreas de cunho social, que não a Seguridade.
Aludindo ao permissivo insculpido no art. 149 da Constituição de 1988, observa Misabel Abreu Machado Derzi:
[...] as contribuições sociais incluídas nesse dispositivo magno têm
exatamente a ampla acepção de serem destinadas ao custeio das
metas fixadas na Ordem Social, Titulo VIII e dos direitos sociais,
sendo inconfundíveis com aquelas de intervenção no domínio
econômico e com as corporativas. Dentro delas – sociais – como
gênero, se especializam aquelas destinadas ao custeio da Seguridade Social, reafirmando o mesmo art. 149 que a essas especiais
não se aplica o princípio da anterioridade do art. 150, III, “b”, mas
outro constante do art. 195, par. 6º.45
Esclarece, assim, que o conceito de contribuições sociais é mais amplo do que
aquele de contribuições destinadas a custear a Seguridade Social, havendo entre elas
uma relação de gênero e espécie. As contribuições sociais gerais, diz a autora, “são instrumentos tributários, previstos na Constituição de 1988, para o custeio da atuação da
União nesse setor. E dentro desse campo – o social – as contribuições financiadoras da
Seguridade Social (previdência, saúde e assistência social) são tão só a espécie do gênero maior, contribuições sociais”.46 Prestam-se à arrecadação de receita afetada a despesas
públicas nos mais diversos campos sociais, “como o salário-educação (art. 212, par. 5º),
o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS, no custeio da casa própria) et alii”.47
Dispomos, agora, de todos os elementos e conceitos necessários à identificação do regime constitucional tributário a que se sujeita a contribuição ao Fundo de
Garantia do Tempo de Serviço.
Já vimos que seu fato gerador é típico dos impostos, espécie a que pertence,
sendo essa a sua essência ontológica, determinada segundo os preceitos científicos
aqui examinados.
44 DERZI, 1996. p. 201.
45 DERZI, 1996. p. 202.
46 DERZI, 1996. p. 203.
47 DERZI, 1996. p. 202
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faculdade de direito de bauru
Vimos, também, que são impostos que, refugindo à regra da não-afetação das
respectivas receitas a fundo, órgão ou despesa, têm sua destinação preestabelecida
pelo próprio constituinte, em razão da relevância e da prioridade dos encargos cometidos ao Estado na área social, que demanda uma garantia de fontes estáveis de
financiamento. A decisão acerca do dispêndio das respectivas receitas não fica ao
amplo alvedrio do Poder Executivo.
Ficou também assentado que a garantia do tempo de serviço insere-se no rol
de direitos inscrito no Título da Ordem Social, não integrando o conceito positivo
de Seguridade Social, firmando-se, ainda, que, nessa, não se incluem as ações de financiamento da habitação possibilitadas com a utilização dos recursos do Fundo de
Garantia do Tempo de Serviço, de onde se extrai a ilação de que as contribuições a
ele recolhidas são impostos finalísticos, batizados de contribuições sociais gerais.
O berço de tais contribuições é o art. 149 da Constituição de 1988, que expressamente as remete à observância das regras gerais de direito tributário e dos princípios da legalidade, da irretroatividade e da anterioridade, plasmados peremptoriamente em seus arts. 146, III, e 150, I e III.
Estão, portanto, fora do âmbito de incidência e de aplicabilidade da norma estatuída pelo art. 195, § 6º, da Constituição de 1988, que mitigou o princípio da anterioridade para as contribuições de seguridade social, única espécie submetida ao
aguardo do prazo nonagesimal, como o que pretendeu instituir o art. 14, II, da Lei
Complementar nº 110/2001.
Nesse sentido são as conclusões sublinhadas por Derzi, comparando os regimes peculiares às contribuições sociais gerais e às de seguridade social: “a grande
diferença está em que as contribuições sociais em sentido lato não são objeto de
qualquer exceção, sujeitando-se de forma integral ao regime constitucional tributário, mormente ao princípio da anterioridade da lei tributária ao exercício financeiro
de sua eficácia, enquanto as contribuições sociais destinadas ao custeio da Seguridade Social submetem-se a regime constitucional próprio” (...), porquanto “escapam
ao clássico princípio da anterioridade da lei tributária ao exercício de sua aplicação,
sujeitando-se apenas à espera nonagesimal do art. 195, par. 6º e não podem integrar
o orçamento fiscal da União. O regime constitucional peculiar que lhes foi imposto
está integrado pelos arts. 149, 165, par. 5º, III, 167, VI e VIII, 194 e 195 da Constituição Federal”.48
Nisso reside a inconstitucionalidade do art. 14, II, da Lei Complementar nº
110/2001, que, por majorar alíquota de contribuição social geral, dever-se-ia curvar
rigidamente ao princípio da anterioridade.
Registre-se, ainda, que, na linha exegética consolidada pelo Supremo Tribunal
Federal, as contribuições previstas no art. 149 da Carta Magna podem ser disciplinadas por simples lei ordinária, porquanto o quorum qualificado seria exigido, no
48 DERZI, 1996. p. 202.
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campo das contribuições, tão-somente para as fontes suplementares de custeio da
seguridade social criadas com fulcro no art. 195, § 4º, da Constituição de 1988. Firmou-se, ainda, a desnecessidade de norma geral que disponha sobre os fatos geradores, sobre a base de cálculo e sobre os sujeitos passivos das contribuições, ao entendimento de que o art. 146, III, a, aplicar-se-ia exclusivamente a impostos gerais.
Colacionamos, aqui, o sempre invocado voto proferido pelo Ministro Carlos
Mário Velloso, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 138.284-8/CE:
A norma matriz das contribuições sociais, bem assim a das contribuições de intervenção e das contribuições corporativas, é o art.
149 da Constituição Federal. O artigo 149 sujeita tais contribuições, todas elas, sem exceção, à lei complementar de normas gerais (art. 146, III). Isto, entretanto, não que dizer, também já falamos, que somente a lei complementar pode instituir tais contribuições. Elas se sujeitam, é certo, à lei complementar de normas gerais (art. 146, III). Todavia, porque não são impostos, não há necessidade de que a lei complementar defina os seus fatos geradores,
bases de cálculo e contribuintes (art. 146, III, “a”). Somente para
aqueles que entendem que a contribuição é imposto é que a exigência teria cabimento. Essa é, aliás, a lição sempre precisa do
eminente SACHA CALMON NAVARRO COELHO, hoje professor titular
da UFMG (Sacha Calmon Navarro Coelho, ‘Comentários à Constituição de 1988- Sistema Tributário, Forense, 1990, págs. 145/146)
[...].
A razoabilidade dessa linha de interpretação pode ser admitida, se concebermos essa desnecessidade de edição de lei complementar de normas gerais definidoras dos fatos geradores, das bases de cálculo e dos sujeitos passivos como mais um
dos matizes do regime dos impostos especiais, a que se refere Sacha Calmon, embora suas conclusões sejam diversas quanto ao tema.
Pensamos não haver contradição em esposar a tese sufragada no excerto
transcrito e, simultaneamente, afirmar que as contribuições sociais gerais cujos
fatos geradores sejam reveladores de capacidade econômica, como as contribuições ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, sejam impostos, no nível da
Ciência do Direito. A conseqüência dessa constatação será o de atrair para aquelas contribuições a maior parte do regime próprio aos impostos, embora com peculiaridades.
Podemos admitir, pois, que a circunstância de serem afetadas a fins reputados
relevantes pelo constituinte tenha o efeito de implicar derrogações ao regime geral
– os mencionados matizes – como se passa com a regra da anterioridade mitigada
inscrita no art. 195, § 6º, exceção erguida ao princípio geral da anterioridade em fa-
faculdade de direito de bauru
70
vor das contribuições de seguridade social, que, não obstante, conservarão a natureza de impostos.
É também razoável entender que, se o constituinte, no plano do direito positivo, resolveu apelidar os impostos finalísticos de contribuições, possa reservar o
termo impostos, como usado no art. 146, III, a, para os impostos gerais, servindo-se
daquela alcunha para evidenciar as exceções ao regime geral. No plano do direito
posto, é inegável a existência da distinção gramatical, indício de exceção, que não
chega a criar espécie nova, dentro dos cânones da teoria da vinculação dos fatos geradores.
Fica afastada, portando, a exigência de lei complementar para a majoração de
alíquota perpetrada, que, embora adotada, poderia ter sido dispensada, subsistindo,
contudo, a contrariedade do art. 14, II, da Lei Complementar ao art. 150, III, b, da
Constituição de 1988, o que veda a cobrança da contribuição relativamente a fatos
geradores ocorridos no ano de 2001. Os valores porventura já recolhidos, naturalmente, deverão ser restituídos.
4
CONCLUSÃO
Procuramos, com este estudo, demonstrar a inconstitucionalidade do art. 1º
e do art. 14, II, da Lei Complementar nº 110, de 29 de junho de 2001, que pretenderam instituir duas novas fontes de receita para o Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço, as quais denominou “contribuições”.
Após situá-las no quadro geral dos ingressos públicos, percorremos, juntamente
com o leitor, os caminhos da estrutura lógica da regra-matriz de incidência tributária,
contrastando-a com a norma punitiva, de modo a estremar tributos de sanções.
Examinando a natureza jurídica da ruptura arbitrária dos contratos de trabalho, em face dos princípios que informam o direito que os rege, tentamos recolher ferramentas teóricas que nos permitissem identificar a ilicitude que se faz
presente no antecedente da norma introduzida pelo art. 1º da Lei Complementar nº 110/2001, que, na verdade, acabou por, simplesmente, majorar a multa já
prevista pelo art. 15 da Lei nº 8.036/1990, em desconformidade com o art. 10, I,
do Ato das Disposições ConstitucionaisTransitórias, mácula que fulmina a validade daquele preceito.
No que concerne ao gravame trazido pelo art. 2º da Lei Complementar nº
110/2001, após lhe desvendarmos a natureza jurídica, à luz da teoria dos tributos
vinculados e não vinculados, pensamos haver demonstrado tratar-se de imposto, em
razão de o fato jurígeno abstratamente descrito em sua hipótese de incidência não
se vincular a qualquer atuação estatal.
Acrescemos, ainda, cuidar-se de imposto especial, afetado ao atendimento de
despesas assumidas pelo Estado no cumprimento de metas contempladas na Ordem Social, razão pela qual é capitulado entre as contribuições sociais gerais, cuja
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matriz constitucional é encontrada no art. 149 da Constituição de 1988, que as submete rigidamente ao princípio da anterioridade geral prevista no art. 150, III, b.
Não se destinando ao custeio das ações abrangidas pelo conceito de Seguridade Social ditado pelo direito positivo brasileiro, consoante o disposto pelo art.
194 da Constituição de 1988, não se caracterizam como contribuições de seguridade social, tributos aos quais se aplica a regra excepcional da anterioridade mitigada
ou nonagesimal.
Evidenciado o contraste entre o art. 14, II, da Lei Complementar nº 110/2001
e o art. 150, III, b, ficou afastada a exigibilidade do gravame relativamente a fatos geradores ocorridos no exercício de 2001.
Tecidas breves considerações quanto ao aspecto formal das leis que instituem
contribuições sociais gerais, queremos noticiar, por fim, o ajuizamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 2.568-6/DF e 2.556-2/DF, distribuídas ao Ministro
Moreira Alves, nas quais o Partido Social Liberal e a Confederação Nacional da Indústria – CNI, respectivamente, questionam dispositivos da Lei Complementar nº
110/2001 aqui examinados.
Aguardemos, pois, para conhecer os rumos que trilhará o Supremo Tribunal
Federal.
5
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RECURSO ESPECIAL – TEORIA E PRÁTICA
Rômulo de Andrade Moreira
Promotor de Justiça e Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça.
Ex-Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais
do Ministério Público do Estado da Bahia.
Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-UNIFACS
na graduação e na pós-graduação.
Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal).
Especialista em Processo pela UNIFACS (Curso coordenado pelo Professor Calmon de Passos).
Membro da Association Internationale de Droit Penal e do Instituto Brasileiro de Direito Processual.
Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim e
ao Movimento Ministério Público Democrático.
Dispõe a Constituição Federal, no seu art. 105, III, que compete ao Superior
Tribunal de Justiça
“julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida:
“a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência;
“b) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face de lei
federal;
“c) der à lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.”
74
faculdade de direito de bauru
Apenas em tais hipóteses será cabível o recurso especial, tratandose, portanto, de matéria taxativamente estabelecida.
Este recurso, além dos dispositivos constitucionais, está também disciplinado na Lei nº. 8.038/90 e no Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, além de, eventualmente, ser alvo de súmulas.
É um meio recursal que tem indiscutivelmente natureza política, pois visa
“primordialmente à tutela do próprio direito objetivo editado pela
União”2 Cuida exclusivamente de tutelar a “vigência e eficácia da legislação federal infraconstitucional e busca harmonizar a respectiva
jurisprudência. Não debate o conjunto probatório. Súmula 7, STJ.”
(STJ – 6ª. Turma – Resp. nº. 88.104/SP – Rel. Ministro Vicente Cernicchiaro, Diário da Justiça, Seção I, 17/02/97, p. 2.180).
Logo, “questões jurídicas de índole eminentemente constitucional estão
afastadas do âmbito de conhecimento do especial.” (STJ – 1ª. Turma – Resp. nº.
59.256-9/RS – Rel. Ministro Demócrito Reinaldo, 05/04/95), mesmo porque para
tais hipóteses o recurso cabível será o extraordinário (art. 102, III da Constituição
Federal).
O recurso especial, a par de servir às partes sucumbentes, tem, em última análise, como escopo tutelar o próprio direito federal acaso atingido pela decisão guerreada. Ademais, não é cabível em sede deste recurso extremo perquirir-se acerca de
matéria fática, devendo ser analisadas apenas as questões de direito já examinadas
pelo Juízo a quo, mesmo porque, se assim não o fosse, o recurso se prestaria a uma
segunda apelação. Neste sentido, atente-se para a Súmula nº. 7 do STJ: “A pretensão
de simples reexame de prova não enseja recurso especial.”
Observe-se, porém, que na lição de Ada, Scarance e Magalhães Gomes Filho, não se pode excluir “a reapreciação de questões atinentes à disciplina legal
da prova e também à qualificação jurídica de fatos assentados no julgamento de
recursos ordinários.”3 A esse respeito, o STJ já decidiu que “o erro sobre critérios
de apreciação da prova ou errada aplicação de regras de experiência são matérias de direito e, portanto, não excluem a possibilidade de recurso especial.” (STJ,
RT 725/531).
Este recurso não tem efeito suspensivo, segundo dispõe o art. 27, § 2º. da
Lei nº. 8.038/90: “os recursos extraordinário e especial serão recebidos no efeito
devolutivo.”
Neste sentido, veja-se este julgado do Supremo Tribunal Federal:
2 Recursos no Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 3ª. ed., 2001, p. 269.
3 Obra citada, p. 270.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
75
“O direito de recorrer em liberdade não se estende ao recurso especial e ao recurso extraordinário, eis que essas modalidades excepcionais de impugnação recursal não se revestem de eficácia suspensiva.”
(STF – 1ª. Turma – HC nº. 72.465-5/SP – Rel. Ministro Celso de Mello, Diário da Justiça, 24/11/95, p. 40.387).
Atente-se, porém, para a lição de Ada Pellegrini Grinover, segundo a qual o art.
27, § 2º. da Lei nº. 8.038/90 “visa a regulamentar os recursos de forma genérica,
não sendo aplicável, quanto aos efeitos prisionais, à esfera penal.”4
Aliás, não é mesmo possível admitir-se o efeito somente devolutivo do recurso especial (e mesmo do extraordinário) na esfera penal, pois estaríamos contrariando o princípio constitucional da presunção de inocência.
Ora, se o art. 5º., LVII, da Constituição proclama que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, é de
todo inadmissível que alguém seja preso antes de definitivamente julgado, salvo a
hipótese desta prisão provisória se revestir de caráter cautelar, independentemente
de primariedade e de bons antecedentes. Soa, portanto, estranho alguém ser presumivelmente considerado não culpado (pois, ainda não foi condenado definitivamente) e, ao mesmo tempo, ser obrigado a se recolher à prisão, mesmo não representando a sua liberdade nenhum risco seja para a sociedade, seja para o processo,
seja para a aplicação da lei penal. Mais estranho se nos afigura ao atentarmos que
aquela presunção foi declarada constitucionalmente.
Desta forma, esta prisão provisória anterior a uma decisão transitada em julgado, ditada automaticamente pelo só motivo do recurso não ter efeito suspensivo,
só se revestirá de legitimidade caso seja devidamente fundamentada (art. 5º., LXI,
CF/88) e reste demonstrada a sua necessidade (periculum libertatis5).
Resta-nos, então, já que legem habemus, interpretar este dispositivo legal à luz da
Constituição Federal, a fim de que possamos entendê-lo ainda como válido, fazendo, porém, uma leitura efetivamente garantidora.
Ora, se temos a garantia constitucional da presunção de inocência, é evidente que não pode ser efeito de um acórdão recorrível, pura e simplesmente, um decreto prisional, sem que se perquira quanto à necessidade do encarceramento.
Como sabemos, entre nós, cabível será a prisão preventiva sempre que se tratar
de garantir a ordem pública, a ordem econômica, ou por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. São estes os requisitos da prisão preventiva e que configuram exatamente o periculum libertatis. Estes requisitos, portan4 Apud Roberto Delmanto Junior, in As modalidades de prisão provisória e o seu prazo de duração, Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 206.
5 Expressão preferida pelos italianos, ao invés do periculum in mora (cfr. Delmanto Junior, Roberto, in As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração, Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 67).
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faculdade de direito de bauru
to, representam a necessidade da prisão preventiva, que não é outra coisa senão uma
medida de natureza flagrantemente cautelar, pois visa a resguardar, em última análise,
a ordem pública, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal (há, ainda, os pressupostos desta prisão, que não nos interessam no presente estudo).
Se assim o é, fácil é interpretar este art. 27, § 2º. da Lei nº. 8.038/90 da seguinte forma e nos seguintes termos: a prisão será uma decorrência do acórdão confirmatório da sentença condenatória sempre que, in casu, seja cabível a prisão preventiva contra o réu. O que definirá se o acusado aguardará preso ou em liberdade o
julgamento final do processo é a comprovação da presença de um daqueles requisitos acima referidos.
Conclui-se que a necessidade é o fator determinante para alguém aguardar
preso o julgamento final do seu processo, já que a Constituição garante que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”
Por outro lado, como a ampla defesa (e no seu bojo a garantia do duplo grau
de jurisdição) também está absolutamente tutelada pela Carta Magna, o artigo ora
analisado não pode ser interpretado literalmente, porém, mais uma vez, em conformidade com aquele Diploma, lendo-o da seguinte forma: não se pode admitir que
o recurso especial interposto contra uma decisão de natureza condenatória/penal
tenha, tão-somente, efeito devolutivo. Aqui, vamos, inclusive, mais além: mesmo
que a prisão seja necessária (e se revista, portanto, da cautelaridade típica da prisão
provisória), ainda assim, admitir-se-á o recurso especial, mesmo que não tenha sido
preso o acusado, ou que, após ser preso, venha a fugir.
Observa-se que, agora, mesmo sendo cabível o encarceramento provisório
(por ser, repita-se, necessário), o não recolhimento do acusado não pode ser obstáculo à interposição de eventual recurso especial pela defesa, e se recurso houver, a fuga posterior não lhe obstará o regular andamento (não pode ser considerado deserto).
Vê-se que não optamos pela interpretação literal do art. 27, § 2º., o que seria
desastroso, tendo em vista as garantias constitucionais acima vistas. Por outro lado,
utilizamo-nos do critério da interpretação conforme a Constituição, procurando
adequar o texto legal com o Texto Maior e evitando negar vigência ao dispositivo,
mas, antes, admitindo-o válido a partir de uma interpretação garantidora e em consonância com a Constituição.
Afinal de contas, como já escreveu Cappelletti, “a conformidade da lei com
a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todas.”6
Só poderíamos interpretar este artigo literalmente se este modo interpretativo fosse possível à luz da Constituição. Por outro lado, não entendemos ser o caso
6 Apud José Frederico Marques, in Elementos de Direito Processual Penal, Campinas: Bookseller, 1998, Vol. I, p. 79.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
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de, simplesmente, reconhecer inválida a norma insculpida naquele artigo de lei. A
nós nos parece ser possível interpretá-la em conformidade com o texto constitucional, sem que se o declare inválido e sem “ultrapassar os limites que resultam do
sentido literal e do contexto significativo da lei.”7
Se verdade é que
“por detrás da lei está uma determinada intenção reguladora, estão valorações, aspirações e reflexões substantivas, que nela
acharam expressão mais ou menos clara”, também é certo que
“uma lei, logo que seja aplicada, irradia uma acção que lhe é peculiar, que transcende aquilo que o legislador tinha intentado. A
lei intervém em relações da vida diversas e em mutação, cujo
conjunto o legislador não podia ter abrangido e dá resposta a
questões que o legislador ainda não tinha colocado a si próprio.
Adquire, com o decurso do tempo, cada vez mais como que uma
vida própria e afasta-se, deste modo, das idéias dos seus autores.” (grifo nosso): teoria objetivista ou teoria da interpretação
imanente à lei.8
Portanto, não se pode ler o referido artigo de lei e inferir o que se traduz gramaticalmente desta leitura. A interpretação literal efetivamente deve ser o início do
trabalho, mas não o completa satisfatoriamente.9
Em reforço à tese ora esboçada, ilustra-se dizendo que na exposição de motivos do projeto de lei de reforma do Código de Processo Penal, afirma-se que “toda
prisão antes do trânsito em julgado final somente pode ter o caráter cautelar. A
execução ‘antecipada’ não se coaduna com os princípios e garantias do Estado
Constitucional e Democrático de Direito.”
Atentando-se, outrossim, para o sistema jurídico e fazendo uma interpretação
sistemática do dispositivo10, assinalamos que, posteriormente a ele, surgiu no cenário jurídico brasileiro a Lei nº. 8.072/90 (Crimes Hediondos), dispondo que “em
caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade.” (art. 2º., § 2º., com grifo nosso).11
7 Idem, p. 481
8 idem, ibidem, p. 446.
9 “Toda a interpretação de um texto há-de iniciar-se com o sentido literal” (idem, p. 450).
10 “Consiste o processo sistemático em comparar o dispositivo sujeito a exegese, com outros do mesmo repositório ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto”, segundo nos ensina Carlos Maximiliano, Hermenêutica
e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro: Freitas Bastos S/A, 1961, 7ª. ed., p. 164.
11 Infelizmente já houve um retrocesso, pois a nova lei de tóxicos (Lei nº. 10.409/02, art. 46, § 12), estabelece que
terão apenas efeito devolutivo os recursos interpostos contra as decisões proferidas no curso do respectivo procedimento, o que é lamentável.
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faculdade de direito de bauru
Maximiliano já escreveu que o “Direito objetivo não é um conglomerado
caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora
fixada cada uma no seu lugar próprio.”12
É possível a interposição simultânea dos recursos especial e extraordinário
contra acórdão com duplo fundamento (legal e constitucional), excepcionandose o princípio da unirrecorribilidade recursal, segundo o qual de cada decisão judicial cabe apenas um único recurso. Neste caso, indispensável que o recorrente
apresente duas petições distintas, em conformidade com o art. 26 da Lei nº.
8.038/90.
Assim, na lição de Ada, Scarance e Magalhães Gomes Filho, é possível a dupla
interposição “se houver fundamentos legais e constitucionais que autorizem as
duas impugnações.”13
Neste sentido, veja-se esta decisão do STF:
O recurso extraordinário e o recurso especial são institutos de direito processual constitucional. Trata-se de modalidades excepcionais
de impugnação recursal, com domínios temáticos próprios que lhes
foram constitucionalmente reservados. Assentando-se, o acórdão do
Tribunal inferior, em duplo fundamento, impõe-se à parte interessada o dever de interpor tanto o recurso especial para o STJ (para exame da controvérsia de caráter eminentemente legal) quanto o recurso extraordinário para o STF (para apreciação do litígio de índole essencialmente constitucional), sob pena de, em não se deduzindo
qualquer desses recursos, o recorrente sofrer as conseqüências indicadas na Súmula 283/STF, motivadas pela existência de fundamento
inatacado, apto a dar, à decisão recorrida, condições suficientes para
subsistir autonomamente. A circunstância de o STJ haver examinado
o mérito da causa, negando provimento ao recurso especial – e, assim, resolvendo a controvérsia de mera legalidade instaurada nessa
via excepcional – não prejudica o conhecimento do recurso extraordinário, que, visando à solução de litígio de índole essencialmente
constitucional, foi interposto, simultaneamente, pela mesma parte
recorrente, contra o acórdão por ela também impugnado em sede
recursal especial. (STF – 2ª. Turma – Ag. em Rextr. nº. 246.370-1/SC
– Rel. p/ Acórdão Ministro Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção
I, 05/05/00, p. 34).
12 Idem, p. 165.
13 Recursos no Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 3ª. ed., 2001, p. 37.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
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Para que seja conhecido o recurso especial, indispensável o prequestionamento, consistente “no prévio tratamento do tema de direito federal pela decisão
recorrida.”14
Assim, “o prequestionamento da matéria é pressuposto indispensável ao conhecimento do recurso interposto sob o fundamento da letra a, do inciso III, do
art. 105 da CF.” (STJ – 2ª. Turma – Resp. nº. 9.402/SP – Rel. Ministro Peçanha Martins, Diário da Justiça, Seção I, 30/09/91).
Na verdade, o prequestionamento nada mais é senão a necessidade de que tenha havido no Juízo recorrido o debate e a decisão sobre a matéria federal objeto
do recurso especial, “emitindo juízo de valor sobre o tema”15. Se tal circunstância
não ocorreu deverão ser utilizados os embargos declaratórios16 visando a provocar
efetivamente a discussão do tema objeto do recurso, pois “em sede de recurso especial não se decide sobre matérias não discutidas e nem julgadas nas instâncias
ordinárias.” (STJ – 1ª. Turma – Resp. nº. 59.256-9/RS – Rel. Ministro Demócrito Reinaldo, 05/04/95), “não bastando, obviamente, sua argüição pela parte durante o
processo ou nas razões do recurso ordinário.”17
O prequestionamento é considerado pela doutrina e pela jurisprudência
como um verdadeiro requisito de admissibilidade do recurso especial.
Para a interposição deste recurso extremo faz-se necessário, além do prequestionamento, a indicação expressa do dispositivo legal contestado, mesmo
porque
a referência genérica à lei federal porventura vulnerada, sem a
particularização de qualquer artigo, bem como a falta de indicação de arestos visando a demonstração da dissidência jurisprudencial, torna inviável o recurso especial, dado a ausência de
pressupostos básicos a sua admissibilidade, pelas alíneas ‘a’ e ‘c’,
do permissivo constitucional (...) Na interposição do recurso especial fundado na letra ‘a’ do permissivo constitucional é necessária a indicação do dispositivo de lei federal supostamente violado, para a exata compreensão da controvérsia, possibilitando o
exame do apelo na instância especial. (STJ – 5ª. Turma – Resp. nº.
43.037/SP – Rel. Ministro Cid Flaquer Scartezzini, Diário da Justiça, Seção I, 29/04/96, p. 13.427).
14 Ada, Scarance e Magalhães Gomes Filho, obra citada, p. 271.
15 Alexandre de Moraes, Constituição do Brasil Interpretada, São Paulo: Atlas, 2002, p. 1.401.
16 Observa-se, contudo, que “os embargos declaratórios não servem de expediente para forçar o ingresso na instância extraordinária, se não ocorreu omissão do acórdão, que se limitou a examinar o pedido tal como foi formulado, sob o aspecto da legalidade do ato.” (STJ, ED no MS 632-0, DJU 25/05/92, p. 7.352).
17 Ada, Scarance e Gomes Filho, ob. cit. P. 271.
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O Superior Tribunal de Justiça, excepcionalmente, vem admitindo o chamado
prequestionamento implícito,
exigindo apenas que a questão tenha sido posta na instância de origem” (Resp. 2.336-MG, RT 659/192). “É chamado de prequestionamento implícito o que reputa uma questão implicitamente apreciada, em razão de expressa apreciação de questão outra, que daquela
é decorrente. Um exemplo de prequestionamento implícito consiste na questão da competência do Juiz: se ele julga a questão de mérito, implicitamente reconhece sua competência, segundo o ensinamento de Bruno Mattos e Silva.18
É importante ressaltar que somente será admissível o recurso especial se esgotadas as vias recursais ordinárias. A propósito, editou-se a Súmula 207 do STJ: “É
inadmissível recurso especial quando cabíveis embargos infringentes contra o
acórdão proferido no tribunal de origem.”
O prazo para a interposição do recurso vem estabelecido na referida Lei nº.
8.038/90, art. 26, ou seja, quinze dias, devendo ser impetrado perante o Presidente
do Tribunal recorrido, a quem caberá um primeiro juízo de admissibilidade19, podendo haver a interrupção deste prazo se houver a oposição de embargos declaratórios.
Se o Presidente do Tribunal recorrido denegar o recurso será cabível agravo
de instrumento no prazo de cinco dias para o STJ (art. 28 da Lei nº. 8.038/90), possibilitando, assim, o reexame deste primeiro juízo de admissibilidade.
O art. 26 da referida lei ordinária estabelece os requisitos gerais da petição de
interposição do recurso especial.
O procedimento também vem disciplinado nesta lei.
PRÁTICA - MODELO
Excelentíssimo Senhor Juiz-Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça do
Estado da Bahia
O Procurador-Geral de Justiça do Estado da Bahia, nos autos da apelação criminal nº............, desta Comarca da Capital, tendo como apelante o
Sr................................................................e como apelada a Justiça Pública, com fundamento no art. 105, III, “a” e “c” da Constituição Federal, vem interpor o presente
RECURSO ESPECIAL para o Colendo Superior Tribunal de Justiça, pelos motivos
adiante deduzidos:
18 Prequestionamento, Recurso Especial e Recurso Extraordinário, Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 10. Sobre o assunto, conferir a obra de José Miguel Garcia Medina, “O prequestionamento nos recursos especial e extraordinário”, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 3ª. ed., 2002.
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O apelante foi processado como incurso no art. 171, caput do Código Penal
porque no dia 04 de abril do ano de 2001 emitiu um cheque no valor de R$
25.000,00 (vinte e cinco mil reais), sem suficiente provisão de fundos em poder do
sacado, apondo na cártula data posterior àquela em que realmente efetivava a compra no estabelecimento comercial........................, localizado nesta Capital,
na..........................................................................................
Ao final da instrução processual, o Juiz de Direito julgou procedente a acusação, aplicando ao réu a pena de 1 ano de reclusão (fls. 27/30).
Irresignado, o acusado apelou visando a sua absolvição, por entender que se
tratava de um fato, do ponto de vista penal, absolutamente atípico.
A 1ª.
Câmara Criminal deste Tribunal julgou procedente a apelação interposta, reformando a decisão de 1º. grau e absolvendo o réu, sob o argumento de que a conduta do
sentenciado se tratava, em verdade, de um mero ilícito civil.
Com a devida vênia, assim decidindo, os eminentes Desembargadores negaram vigência ao texto do art. 171, caput do Código Penal, como mostraremos
a seguir.
Com efeito, a questão do cheque pré-datado, dado como garantia de dívida e
não como pagamento à vista, é deveras polêmica, constituindo-se, verdadeiramente, numa vexata quaestio, entendendo muitos que a sua emissão não constitui nenhum ilícito penal.
É induvidoso que para se caracterizar o delito tipificado no art. 171, § 2º., VI
do Código Penal urge que o título cambial se cubra de todos os requisitos legais pertinentes, inclusive que seja emitido como forma de pagamento à vista de dívida contraída pelo emitente. Em sendo assim, é lógico e evidente que o cheque pré-datado, aquele que visa a um pagamento futuro, não pode e não deve ser considerado
como título cambial, o que acarreta a impossibilidade jurídica de sua emissão configurar o delito acima referido.
Coisa diferente, porém, é o crime previsto no caput do art. 171 do mesmo Código, ou seja, o chamado estelionato simples. Para esta figura penal são exigidos determinados elementos sem os quais não haverá a infração. Ora, se é certo que o cheque transmudado de ordem de pagamento à vista para garantia de quitação futura
não traz como conseqüência a consumação do delito específico, o mesmo não ocorre quando se fala do crime previsto no estelionato simples.
Para a configuração deste último crime urge que determinadas circunstâncias
sejam observadas: em primeiro lugar que haja vantagem ilícita.
Ora, quem emite um cheque como forma de garantir uma compra efetuada a
prazo e, na data acertada, sem justificativa nenhuma, não deposita o numerário suficiente para a respectiva quitação, auferiu ou não vantagem ilícita? A resposta é afirmativa, posto que o emitente recebeu as mercadorias, delas usufruiu e, no entanto,
no momento da compensação financeira concertada com o vendedor, não honrou
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o compromisso. Induvidoso, por isso, a vantagem ilícita e em proveito próprio ou
de terceiro.
A segunda exigência do tipo penal é a existência de prejuízo alheio; perguntase: o comerciante, ilaqueado em sua boa-fé, lesado na confiança depositada no seu
cliente, sofreu ou não desvantagem patrimonial considerável? Afirma-se, também, o
presente questionamento, visto que, despojado de bens a ele pertencentes, não
teve o ressarcimento devido com o negócio efetuado, ou, em outras palavras, vendeu o que possuía e não recebeu a quantia equivalente, tendo, inquestionavelmente, prejuízo financeiro importante (R$ 25.000,00), ainda mais sobrevivendo unicamente desta atividade e tendo que pagar a seus fornecedores.
O terceiro requisito é a existência de meio fraudulento, induzindo ou mantendo alguém em erro, para a obtenção da vantagem indevida. Aqui, igualmente, encontramos suporte suficiente para adequar o cheque pré-datado ao tipo penal sob
análise.
O fato de alguém, na data aprazada, não fazer o depósito necessário para que
a sua conta corrente fosse suficientemente abastecida e pudesse, consequentemente, cobrir o cheque que seria depositado, por si só, já indica conduta dolosa no sentido de prejudicar o terceiro mantido em erro, mediante a fraude, que consistiu, especificamente, em emitir um cheque, prometendo pagá-lo em determinada época
e, neste momento (sabedor que era da obrigação assumida, em confiança), não honrar o compromisso assumido.
Entendemos, que a situação se conforma perfeitamente com o tipo penal do
art. 171, caput, o que não foi considerado pelo acórdão recorrido que, em última
análise, negou-lhe vigência.
Não é justo que o comerciante, lesado em seu patrimônio, fique desprotegido em detrimento da impunidade e incentivo ao enriquecimento ilícito. Ademais, o
cheque pré-datado já é um instrumento corriqueiro no comércio brasileiro usado
indiscriminadamente pelos consumidores.
A propósito, o jornal O GLOBO, do dia 21 de junho de 1995, mais especificamente no Caderno de Economia, reportou-se a algumas considerações a respeito do
fenômeno do cheque pré-datado, reafirmando a disposição da justiça carioca em
considerar relevantes os efeitos jurídicos advindos da emissão do citado cheque, inclusive transcrevendo opiniões que a seguir mostraremos:
Inicialmente, vejamos trecho de uma sentença do Juiz Sebastião Pereira de
Souza, onde o mesmo afirma que “apesar de o cheque pré-datado não existir legalmente, havia, nesse caso, uma relação jurídica entre o comprador e o vendedor.”
Já o Procurador de Justiça, Dr. Hélio Gama, entende que, “pelo tempo que
vem sendo utilizado, cerca de dois anos, o cheque pré-datado se alçou à condição de nota promissória. Os tribunais têm considerado os cheques pré-datados assim, e não mais somente como pagamento à vista.”
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Por sua vez, o advogado Antônio Mallet escalrece ter “o costume modificado
a questão jurídica e, mesmo o cheque pré-datado não sendo reconhecido pela lei,
existe um contrato entre as partes que deve ser cumprido, e não pode haver prejuízo de nenhum dos lados.”
Na matéria, a jornalista Nadja Sampaio informa que “em suas decisões, os juízes vêm entendendo que existe um contrato subentendido no acordo verbal entre
consumidor e lojista, e ambas as partes têm de cumpri-lo.”
A transcrição da matéria jornalística demonstra bem a disposição em aceitar
esta operação como juridicamente relevante, o que implica também aceitá-la, do
ponto de vista penal, como juridicamente tutelada.
Aliás, o próprio Nelson Hungria já esboçava, àquele tempo, uma opinião
que se coaduna, mutatis mutandis, ao que hoje se procura mostrar nestas razões
recursais:
(...) se falta qualquer dos requisitos formais exigidos pela lei, o título
deixa de ser cheque, não se podendo falar, portanto, em ‘fraude no
pagamento por meio de cheque’, embora possa ser reconhecido, no
caso, o estelionato no seu tipo fundamental (ficando, assim, afastada
a objeção de DONNEDIEU DE VABRES, no sentido de que seria estranho que a circunstância de um vício de forma, que em nada atenua a imoralidade ou o caráter delituoso do agente, possa suprimir
sua responsabilidade).20 (grifo nosso).
O que o mestre do Direito Penal disse é que, ainda não se revestindo das formalidades legais exigidas (v.g., como ordem de pagamento à vista), a emissão do
cheque poderá vir a configurar o delito de estelionato no seu tipo fundamental.
Também a jurisprudência, como veremos a seguir:
COMPETÊNCIA. ESTELIONATO. EMISSÃO DE CHEQUES PRÉ-DATADOS SEM A SUFICIENTE PROVISÃO DE FUNDOS. HIPÓTESE DO ART.
171, CAPUT, DO CP CARACTERIZADA. JUÍZO COMPETENTE: O DO
LOCAL DA EMISSÃO DO CHEQUE. A compra efetuada com cheques
pré-datados emitidos em garantia e sem a suficiente provisão de fundos
configura o delito da cabeça do art. 171 do CP, e não a hipótese do art.
171, § 2º., VI, do CP, que pressupõe a imediata apresentação da cártula
ao estabelecimento bancário sacado; portanto, o Juízo competente
19 “Caberá ao Presidente do Tribunal, com efeito, verificar com maior profundidade as condições e pressupostos recursais (especialmente se está presente uma das hipóteses constitucionais de cabimento).”, como afirmam
Ada, Scarance e Gomes Filho (p. 293).
20 Comentários ao Código Penal, Vol. VII, Rio de Janeiro: Forense, p. 250.
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para o processo e julgamento é o do local da emissão do cheque e não
o da recusa pelo sacado. (STJ, C. Comp. N.º 16.403 – São Paulo, 3ª. Seção, Rel. William Patterson, j. 23.4.97; v.u.).
Agente que dá cheques em pagamento a serem cobrados na data posterior a emissão, pratica o delito do art. 171, caput (estelionato simples), e não o art. 171, § 2º., VI (fraude no pagamento por meio de cheque), ambos do CP. Assim, se o processo contém fatos descritivos do
estelionato simples, e a condenação se dá pela fraude no pagamento
por meio de cheques a decisão deve ser reformada com base no art.
621, I, do CPP. (TACRIM-SP - Rev. - Rel. Tyrso Silva - RJD 7/244).
Não se aplica a todas as hipóteses de emissão de cheques sem fundos o entendimento de que a sua descaracterização ou transformação, de ordem de pagamento à vista, para simples promessa, não
conduz à tipicidade do estelionato. A proteção penal do cheque autêntico está no tipo do art. 171, § 2o., VI do CP. O cheque pode ser
instrumento hábil a consumação de outros estelionatos, desde que
o sujeito ativo seja impelido pela vontade livre e consciente de, induzindo ou mantendo alguém em erro, obter, mediante fraude, vantagem ilícita, causando prejuízo patrimonial ao sujeito passivo. É o estelionato no seu tipo fundamental. É crime contra o patrimônio. (TACRIM-SP - Rev. - Rel. Fábio de Araújo - RJD 1/223 - JUTACRIM 97/505,
como grifo nosso).
Já se tem decidido que a emissão de cheque sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado pode, em certos casos, não se constituir no delito previsto no art. 171, § 2º., VI, do CP, mas simplesmente tratar-se de um artifício complementar da ação delituosa do estelionato simples.(Ac. un., de 27/10/70, da 1ª. Cam.
TACRIM-SP, Rel. Manoel Pedro, RT, Vol. 423, p. 437).
É sabido que a distinção entre ilícito civil e ilícito penal, passa, necessariamente,
pela existência ou não de um elemento fundamental: o dolo em fraudar, ou, nas palavras de Hungria, “o propósito ab initio de frustração do equivalente econômico”.
Ademais, na lição de Manzini, a “distinzione tra frode civile e penale è non solo
superflua o arbitraria, ma altrasì produttiva di dannosissima confusione, specialmente nei particolari riguardi della truffa (logro, vigarice, trapaça, tramóia...)”.21
Em face de todo exposto, certificando-se induvidosamente a negativa de vigência de lei federal por parte do acórdão recorrido, bem como demonstrado o dis21 Trattato di Diritto Penale, Vol. IX, n. 3.381, pp. 385/386, apud Romeu de Almeida Salles Junior, in Apropriação
Indébita e Estelionato, Jalovi, 2ª. ed., 1986, p. 217.
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senso jurisprudencial que também fundamenta o presente recurso especial, aguarda esta Procuradoria-Geral de Justiça que seja deferido o seu processamento, a fim
de que, conhecido pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, mereça provimento,
reformando-se aquela decisão e firmando-se a responsabilidade penal do sentenciado como infrator do art. 171, caput do Código Penal.
Salvador, em 09 de agosto de 2002.
Procurador-Geral de Justiça
APROVAÇÃO EM CONCURSO PÚBLICO
E DIREITO SUBJETIVO À NOMEAÇÃO
Theophilo Antonio Miguel Filho
Juíz Federal - Diretor do Foro Seção Judiciária do Rio de Janeiro
I – PROBLEMÁTICA
Não são raras as vezes em que o candidato aprovado em concurso público
comparece ao Poder Judiciário para pedir que a esfera do Poder Público responsável pela realização do certame seja compelida a nomeá-lo para o cargo almejado.
Tal pretensão exsurge quando, a despeito da aprovação e classificação dentro
do número de vagas expressamente previsto no edital, a Administração Pública queda-se inerte, ou, ainda, quando, durante o prazo de eficácia1 do certame, cargos tornam-se vagos em virtude de transferências, aposentadorias ou óbitos de seus ocupantes.
As razões expendidas abordam o inconformismo com a conduta omissiva e
excessiva delonga na nomeação, já que não seria razoável, além de ferir o princípio
da moralidade administrativa, que, a despeito da existência de cargos vagos, se realizasse um custoso e demorado concurso público para o provimento dos mesmos
1 Afirma Sergio de Andréa Ferreira, in Comentários à Constituição, 3o volume, 1991, Biblioteca Jurídica Freitas Bastos, página 150, que “a CF, no inciso III do artigo 37, fixou o que rotula de prazo (máximo) de validade do concurso público. Repete, assim, equívoco, generalizado, encontradiço na própria legislação, porquanto o prazo é ligado
ao plano de eficácia, e não de validade. Em verdade, a limitação temporal diz respeito ao efeito produzido, ou seja,
à habilitação que resulta da aprovação no concurso homologado, e, quando, é o caso, da correspondente ordem
classificatória. É, pois, questão de vigência desse efeito, que tem prazo preclusivo.”
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única e exclusivamente com a finalidade de arrecadar o valor cobrado a título de inscrição, o qual, invariavelmente, é elevado.
II – OBJETIVOS
Por intermédio do presente trabalho, pretende-se demonstrar a insubmissão
do Poder Público ao dever jurídico de nomear candidato aprovado em certame, em
que pese a vacância de cargos.
III – JUSTIFICATIVA
A importância deste estudo se justifica para preservar a integridade de diversos princípios do Direito Administrativo, como o da razoabilidade, o da moralidade, bem como o da separação dos Poderes, a fim de coibir indevidas ingerências do exercício da função jurisdicional em misteres exclusivamente atinentes aos da função administrativa, evitando a proliferação de práticas processuais
que enfraqueçam a segurança jurídica e acarretem instabilidade nas relações políticas.
IV – METODOLOGIA E TÉCNICAS UTILIZADAS
A pesquisa jurisprudencial e doutrinária será o método utilizado para se alcançar a conclusão.
V – DESENVOLVIMENTO
A controvérsia acerca da existência de direito subjetivo à nomeação de
candidato aprovado em concurso público suscita intermináveis debates acerca
de questões jurídicas de alta indagação, envolvendo seara constitucional e administrativa.
Ensina-nos San Tiago Dantas2 que em toda relação jurídica, consubstanciada
em uma relação social especialmente qualificada pela norma jurídica, encontra-se
como seu elemento fundamental o dever jurídico. Esse dever se deduz da própria
norma jurídica que qualifica aquela relação. Ou é o dever de fazer aquilo que a norma ordena, quando a norma contém o comando, ou é o dever de respeitar os efeitos jurídicos da norma, quando a norma se limita a atribuir efeitos jurídicos, ou, então, quando a norma foi violada, a esse dever corresponde um direito de uma outra
pessoa de exigir o cumprimento do dever.
2 Programa de Direito Civil, Parte Geral, Editora Rio, página 147.
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Destarte, conclui-se que a relação jurídica compõe-se de dois elementos indissociáveis: o dever jurídico e o direito subjetivo. Este último é identificável segundo
a presença de três elementos:
a) este direito subjetivo é sempre decorrência de um dever jurídico;
b) o direito subjetivo é violável;
c) o titular do direito subjetivo pode ter a iniciativa da coerção para fazer a
parte contrária sucumbir à sua pretensão surgida da violação do dever jurídico.
Assim, direito subjetivo e dever jurídico são os dois lados da mesma moeda
denominada relação jurídica.
Não há de se falar em direito subjetivo se não preexistir um dever jurídico a
ser desrespeitado. A existência deste é conditio sine qua non para que se cogite daquele.
Neste exato momento vem à baila a inexorável indagação: tem o candidato
aprovado em concurso público direito subjetivo à nomeação?
Esta pergunta equivale a outra de igual quilate: tem a Administração Pública o dever jurídico de proceder à nomeação de candidato aprovado em concurso público?
A resposta da última conduzirá à solução daquela.
Doutrina e jurisprudência incumbiram-se de responder. Conforme Diógenes
Gasparini3,
Concurso público é o procedimento posto à disposição da Administração Pública direta e indireta, de qualquer nível de governo,
para a seleção do futuro melhor servidor, necessário à execução
de serviços que estão sob sua responsabilidade. Não é, assim, procedimento de simples habilitação. É um processo competitivo,
onde as vagas são disputadas pelos vários candidatos. Nenhum direito subjetivo tem à nomeação. Pelo concurso concretiza-se o Princípio da Igualdade.
Referindo-se ao prazo de validade do concurso público (artigo 37, inciso III,
Constituição da República), comenta, ainda, o insigne administrativista que nada impede que, durante o prazo de validade de um concurso, outro seja aberto, levado a
efeito e classificados os aprovados. O que não se pode dentro desse prazo é nomear
os classificados de um concurso posterior, enquanto existirem concursados anteriores a serem nomeados.
3 Direito Administrativo, Saraiva, 3ª edição, página 129.
faculdade de direito de bauru
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Outro não foi o entendimento esposado pela Eminente Desembargadora Federal Tania Heine4, em voto proferido perante julgamento realizado no Egrégio Tribunal Regional Federal da 2ª Região, cuja ementa segue in verbis:
I - Concurso público para professor assistente, constando do edital
a existência de uma vaga, com aprovação de quatro candidatos.
II - Os aprovados têm prioridade sobre novos concursados (art. 37
da CF) dentro do prazo de validade do concurso (art. 12, § 2o, da
Lei 8.112/90).
III - Aberta outra vaga, dentro do prazo de validade do concurso,
o segundo colocado tem direito de ser convocado prioritariamente, antes dos aprovados no concurso seguinte.
IV - Recurso e remessa necessária improvidos.
Ainda em seu voto, cita a Magistrada as elucidativas lições do saudoso Hely Lopes Meirelles5:
“Ainda mesmo a aprovação no concurso não gera direito absoluto à nomeação, pois que continua o aprovado com simples expectativa de direito à investidura no cargo disputado.
Vencido o concurso, o primeiro colocado adquire direito subjetivo
à nomeação com a preferência sobre qualquer outro, desde que a
Administração se disponha a prover o cargo, mas a conveniência
e oportunidade do provimento ficam à inteira discrição do Poder
Público. O que não se admite é a nomeação de outro candidato,
que não o vencedor do concurso”.
Trazemos, ainda, à colação o entendimento do Eminente Ministro Hélio Mosimann6, em julgamento realizado no Superior Tribunal de Justiça, in verbis:
Sabemos que o princípio norteador da matéria é o de que a aprovação em concurso público não obriga o candidato, ao qual aproveita mera expectativa de direito à almejada nomeação.
Nesse mesmo sentido:
Recurso em mandado de segurança. Concurso público. Aprovação. Nomeação.
4 Apelação em Mandado de Segurança 93.02.20733-1/RJ, publicado no DJU-II de 09/08/94, página 42.213.
5 Direito Administrativo Brasileiro, 1966, página 365.
6 Recurso em Mandado de Segurança 1585-3/MG, RSTJ 67/267
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A aprovação em concurso público confere ao candidato expectativa à nomeação. Não tem direito de exigi-la. Ilegalidade haverá
caso a pública administração promova nomeação em desrespeito
à ordem de classificação.7
Destarte, impende tecer algumas considerações de ordem prática para perfeito delineamento da vexata quaestio.
Aprovação e classificação em concurso público não se confundem.
A primeira é conferida aos que obtiverem logrado o grau mínimo. Entretanto,
estes não se podem dizer classificados, eis que se encontram na dependência da
existência de vagas, que é fator meramente circunstancial.
Tanto aos aprovados classificados quanto aos aprovados não classificados reconhece-se direito subjetivo tão-somente à estrita observância da ordem classificatória para que se proceda à nomeação, porque a este direito corresponde o dever
jurídico da Administração Pública em manter imaculado o Princípio Constitucional
da Impessoalidade e Moralidade, insculpidos no caput do artigo 37 da Carta Magna.
Possuem mera expectativa de direito à nomeação, segundo a análise meritória da conveniência e oportunidade da prática do ato. Lesão apta a ensejar tutela jurisdicional só surgirá se e quando for inobservada a ordem de classificação.
Daí porque compelir a Administração Pública a nomear o candidato para o cargo
almejado esbarra em quebra do Princípio da Separação dos Poderes, insculpido no artigo 2o da Constituição da República, consubstanciando-se em ingerência exacerbada e indevida de um Poder (rectius Órgão) em misteres exclusivos atinentes a outro.
A Constituição do Estado do Rio de Janeiro, no artigo 77, inciso VII, assim dispõe:
A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado e dos Municípios, obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, interesse coletivo e, também, ao seguinte:
...
VII – a classificação em concurso público, dentro do número de
vagas obrigatoriamente fixado no respectivo edital, assegura o
provimento no cargo no prazo máximo de cento e oitenta dias,
contado da homologação do resultado.
Ocorre que o Supremo Tribunal Federal, em mais de uma ocasião, se posicionou, incidenter tantum, pela inconstitucionalidade do mandamento constitucional
acima indigitado, corroborando, destarte, o entendimento que ora se expõe:
7 ROMS nº 494/MS, Ministro Vicente Cernicchiaro, e também RSTJ 66/213.
92
faculdade de direito de bauru
“Concurso público. Artigo 77, inciso VII, da Constituição do Estado
do Rio de Janeiro, que cria direito à nomeação dos candidatos
aprovados dentro do número de vagas e no prazo de cento e oitenta dias. Inconstitucionalidade formal.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário n.º 229.450, Relator Ministro Maurício Corrêa, por
maioria, declarou a inconstitucionalidade do artigo 77, inciso
VII, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que cria direito à nomeação dos candidatos aprovados em concurso público,
dentro do número de vagas do edital do certame, e impõe a nomeação no prazo de cento e oitenta dias, por inobservância do
princípio da reserva da iniciativa legislativa ao Chefe do Poder
Executivo (Constituição Federal, artigo 61, parágrafo primeiro,
inciso II, alínea “c”).
Recursos conhecidos e providos.8
No Recurso Extraordinário n.º 229.450 – RJ, Relator Ministro Maurício Corrêa,
julgado em 10 de fevereiro de 2000, acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio
de Janeiro assegurou a candidatos aprovados no concurso para provimento de cargos de fiscal do sistema viário o direito à nomeação, por força do disposto no supra
mencionado artigo 77, inciso VII.
A questão versada lavrou dissensão: o Relator, acompanhado pelos eminentes
Ministros Nelson Jobim, Ilmar Galvão, Sydney Sanches, Néri da Silveira e Moreira Alves, declarou a inconstitucionalidade da norma impugnada, uma vez que esta limitação temporal, ao restringir o poder discricionário do agente público, contraria o
princípio da independência dos Poderes, conforme insculpido no artigo 2º da Constituição da República.
Por outro lado, os Ministros Celso de Mello, Sepúlveda Pertence, Octavio Gallotti e Marco Aurélio entenderam que a Constituição Estadual pode limitar a discricionariedade dos Poderes, assegurando ao candidato aprovado em concurso público o direito subjetivo à nomeação.
Em outra oportunidade9, acrescentou a Suprema Corte, por maioria, que a
obrigatoriedade da nomeação dos candidatos aprovados dentro do número de vagas previstas no edital ofende o artigo 61, parágrafo primeiro, inciso II, alínea “c”, da
8 Recurso Extraordinário 191.089 – RJ, Relator Ministro Ilmar Galvão, 1ª Turma, julgamento em 14 de março de
2000, votação unânime, publicação no Diário de Justiça em 28 de abril de 2000, página 95, ementário volume 0198605, página 846.
9 Recurso Extraordinário n.º 190.264 – RJ, Relator Originário Ministro Marco Aurélio, Relator para acórdão Ministro
Nelson Jobim. Julgamento em 10 de fevereiro de 2000.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
93
Constituição da República, que confere ao Chefe do Poder Executivo a iniciativa privativa das leis que disponham sobre servidores e o provimento dos cargos públicos.
VI – CONCLUSÃO
Em suma: onde não há dever jurídico, inexiste possibilidade de violação de direito subjetivo, eis que nos encontramos no campo da mera expectativa de direito,
que somente exsurgirá mediante inobservância à ordem classificatória ou deflagração de novo certame durante o prazo de eficácia do anterior.
VII – BIBLIOGRAFIA
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 19a ed. São Paulo, Malheiros Editores, 1994.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 7a ed. Rio
de Janeiro, Forense, 1989.
GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo. 4a ed. São Paulo, Saraiva, 1995.
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. São Paulo, Malheiros Editores, 1992.
DIREITO AMBIENTAL, FAUNA, TRÁFICO E
EXTINÇÃo DE ANIMAIS SILVESTRES
Luís Paulo Sirvinskas
Promotor de Justiça Criminal em São Paulo.
Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Especialista em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FADUSP) e
em Interesses Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público (ESMP).
Ex-Professor Adjunto de Legislação Tributária nas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) e
Professor Associado de Direito Ambiental na Universidade Cidade de São Paulo (UNICID).
Autor dos livros Tutela penal do meio ambiente e Manual de direito ambiental,
ambos da editora Saraiva, edições 2002.
1.
DIREITO AMBIENTAL
Trata-se de uma disciplina relativamente nova no Direito brasileiro. O Direito Ambiental era um apêndice do Direito Administrativo1 e só recentemente é
que adquiriu a sua autonomia com base na legislação vigente e, em especial, com
o advento da Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981. Em decorrência desse fato,
várias Faculdades de Direito, hoje em dia, inseriram essa matéria em seus currículos como exigência do próprio mercado de trabalho, eis que muitas empresas
estão admitindo profissionais com especialização nesta área2. Escritórios de advo1. Hely Lopes Meirelles, Direito administrativo brasileiro, 16a., Ed., 2a. Tiragem, São Paulo, Revista dos Tribunais,
1991 (Vide capítulos III, IV, V, VI, VIII e IX).
2. André Santoro ressalta que até o ano 2003 abrirá, estima o Ministério do Meio Ambiente, 500 mil postos de trabalho, incluindo o cargo de advogado ambiental (Meu emprego é verde, Revista Veja n. 23, de 17/05/2000, ano 33,
edição 1649, p.176/177).
faculdade de direito de bauru
96
cacia especializados na área empresarial passaram a atuar também na área do Direito Ambiental, criando Departamentos de Meio Ambiente e contratando advogados e especialistas em outras áreas com experiência nas questões ambientais
para a realização de avaliações ambientais nas empresas. Estes escritórios procuram dar consultoria ambiental preventiva às empresas causadora de degradação
ambiental (consultoria técnica e jurídica)3.
Contudo, antes de conceituar este ramo do Direito, devemos responder a
seguinte indagação: o Direito Ambiental é um ramo do Direito Público ou do Direito Privado? No nosso entender, o Direito Ambiental faz parte do Direito Público. Contudo, os interesses defendidos por este novel ramo do direito não pertencem a categoria de interesse público (Direito Público) e nem de interesse privado (Direito Privado). Cuida, sim, de interesse pertencente a cada um e, ao mesmo tempo, a todos. Trata-se do conhecido interesse transindividual ou metaindividual. São interesses dispersos ou difusos situados numa zona intermediária entre o público e o privado4.
Há várias definições de Direito Ambiental elaboradas por juristas de renome.
No entanto, para o nosso campo de estudo, adotamos um conceito simples. Assim,
Direito Ambiental é a ciência jurídica que estuda, analisa e discute as questões e os
problemas ambientais e sua relação com o ser humano, tendo por finalidade a proteção do meio ambiente e a melhoria das condições de vida no planeta.
Ressalte-se ainda que o Direito Ambiental só foi elevado a condição de ciência a partir do momento em que adquiriu autonomia com o advento da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA). Esta lei trouxe em seu bojo todos os requisitos necessários para tornar o Direito Ambiental uma ciência jurídica independente como, por exemplo, regime jurídico próprio, definições e conceitos de meio ambiente e de poluição, objeto do estudo da ciência ambiental, objetivos, princípios,
diretrizes, instrumentos, sistema nacional do meio ambiente (órgãos) e a indispensável responsabilidade objetiva.
2.
CONCEITO DE MEIO AMBIENTE
O termo meio ambiente é criticado pela doutrina, pois meio é aquilo que está
no centro de alguma coisa. Ambiente indica o lugar ou a área onde habitam seres vivos. Assim, na palavra “ambiente” está também inserido o conceito de meio. Cuidase de um vício de linguagem conhecido por pleonasmo, consistente na repetição de
3. Nosso aluno de graduação, Dr. Flávio Silva Ojidos, formado na turma de 2000, foi promovido à Consultor Ambiental, no escritório de advocacia, Marcondes Advogados Associados, após sua conclusão no Curso de Direito da
Universidade Cidade de São Paulo - UNICID.
4. Nesse sentido é a posição de Celso Antonio Pacheco Fiorillo e Marcelo Abelha Rodrigues em seu Manual de direito ambiental e legislação aplicável, São Paulo, Max Limonad, 1997, p. 81.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
97
palavras ou de idéias com o mesmo sentido simplesmente para dar ênfase. Em outras palavras, meio ambiente é o lugar onde habitam os seres vivos. É o habitat dos
seres vivos. Esse habitat (meio físico) interage com os seres vivos (meio biótico),
formando-se um conjunto harmonioso de condições essenciais para a existência da
vida como um todo. A biologia estuda os seres vivos isoladamente, independentemente do seu meio ambiente. Já a ecologia, estuda a relação dos seres vivos com o
meio ambiente. A expressão ecologia provém das palavras gregas oikos (casa) e logos (estudo), ou seja, estudo do habitat dos seres vivos.
A expressão meio ambiente já está consagrada na legislação, na doutrina, na
jurisprudência e na consciência da população. Por essa razão, optou-se por sua utilização neste trabalho.
Assim, entende-se por meio ambiente como sendo “o conjunto de condições,
leis, influências, alterações e interações de ordem física, química e biológica, que
permite, abriga e rege a vida em toda as suas formas” (art. 3o., I, da Lei n. 6.938, de
31 de agosto de 1981). Registre-se que o conceito legal de meio ambiente não é adequado, pois não abrange de maneira ampla todos os bens jurídicos protegidos. É um
conceito restrito ao meio ambiente natural
José Afonso da Silva, diante dessa deficiência legislativa, conceitua meio
ambiente como sendo “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais
e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as
suas formas”5. Para completar esse conceito, acrescentaria também o meio ambiente do trabalho.
Partindo-se desse conceito doutrinário, podemos dividir o meio ambiente em:
a) meio ambiente natural - integra a atmosfera, as águas interiores, superficiais e
subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna, a flora, o patrimônio genético e a zona costeira (art. 225, da CF); b)
meio ambiente cultural - integra os bens de natureza material e imaterial, os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (arts. 215 e 216 da CF); c) meio ambiente artificial - integra os equipamentos urbanos, os edifícios comunitários, arquivo, registro, biblioteca, pinacoteca, museu e instalação científica ou similar (arts. 21, XX, 182
e ss. e 225 da CF); d) meio ambiente do trabalho6 - integra a proteção do homem
em seu local de trabalho com observância às normas de segurança (art. 200, VII e
VIII e art. 7o., XXII, ambos da CF).
Para o nosso campo de estudo, adotaremos a classificação de meio ambiente:
natural, cultural, artificial e do trabalho. Trata-se de uma classificação didática e útil
para a compreensão dos seus conceitos.
5. José Afonso da Silva, Direito ambiental constitucional, 2a. ed., 3a. tiragem, São Paulo, Malheiros, 1998, p. 2.
6 Júlio César de Sá da Rocha, Direito ambiental e meio ambiente do trabalho, São Paulo, LTr, 1997, p. 27.
98
3.
faculdade de direito de bauru
EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE NO
BRASIL
A proteção jurídica do meio ambiente no Brasil pode ser dividida em três períodos: a) o primeiro período começa com o descobrimento (1500) e vai até a vinda da família real (1808) – nesse período havia algumas normas isoladas de proteção aos recursos naturais que se escasseavam na época como, por exemplo, o PauBrasil, o ouro etc.; b) o segundo período inicia-se com a vinda da família real (1808)
e vai até a criação da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (1981). Esse período caracteriza-se pela exploração desregrada do meio ambiente, cujas questões
eram solucionadas através do Código Civil (direito de vizinhança, por exemplo). Havia, sim, preocupações pontuais com o meio ambiente, objetivando a sua conservação e não a sua preservação. Surgiu, neste período, a fase fragmentária, onde o legislador procurou proteger categorias mais amplas dos recursos naturais, limitando
sua exploração desordenada (protegia-se o todo a partir das partes). Tutelava-se somente aquilo que tivesse interesse econômico; e c) o terceiro período começa com
a criação da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981), dando-se ensejo a fase holística que consistia em proteger de maneira
integral o meio ambiente através de um sistema ecológico integrado (protegia-se as
partes a partir do todo)7.
A história nos mostra que tanto em Portugal como no Brasil-Colônia já havia uma preocupação com o meio ambiente. Naquela época, procurava-se proteger
as florestas em decorrência da derrubada de árvores de madeira de lei para a exportação à Portugal, onde escasseava esse tipo de recurso. Houve inúmeras invasões de
franceses, holandeses e portugueses no Brasil-Colônia, com o intuito apenas de extrair minérios (ouro, prata e pedras preciosas) e madeira, contrabandeado-os para
Portugal e outros países. Diante disso é que nossos primeiros colonizadores resolveram adotar medidas protetivas às florestas e aos recursos minerais por meio da
criação de normas criminais.
Ann Helen Wainer analisou com muita percuciência toda a legislação ambiental a partir do século XVI8. Assinala a ilustre autora que já existiam nas Ordenações do
Reino alguns artigos protegendo as riquezas florestais. Naquela época era comum a extração indiscriminada de madeira, principalmente do Pau-Brasil, a ser exportada para a
Pátria-Mãe. Foi com as Ordenações Afonsinas, seguidas pelas Ordenações Manuelinas,
de 1521, que surgiu a preocupação com a proteção à caça e às riquezas minerais, mantendo-se o crime de corte de árvores frutíferas, entre outros.
7. Antonio Herman V. Benjamín, Introdução ao Direito Ambiental Brasileiro, in Manual prático da Promotoria de
Justiça do Meio Ambiente, 2a. ed., São Paulo, IMESP, 1999, p. 22, 23 e 24.
8. Ann Helen Wainer, Legislação ambiental brasileira - Subsídios para a história do direito ambiental, 2a. ed., Rio
de Janeiro, Editora Forense, 1999.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
99
Após a criação do Governo-Geral no Brasil, vários Regimentos mantiveram
a proteção, principalmente da madeira, que era muito escassa em Portugal. A Carta
de Regimento “contém um verdadeiro zoneamento ambiental, no qual delimita as
áreas das matas que deveriam ser guardadas”9.
No Brasil, por sua vez, já havia o Regimento sobre o Pau-Brasil, protegendo esse tipo de madeira, cuja edição data de 1605, ainda na vigência das Ordenações
Filipinas, que continha vários tipos penais ecológicos.
Com a vinda da família real (1808), a proteção ao meio ambiente se intensificou,
mediante a promessa da libertação do escravo que denunciasse o contrabando de PauBrasil. Nessa ocasião, várias providências foram tomadas para a proteção das florestas.
A Constituição de 1824 e o Código Criminal de 1830, na Monarquia, previam
o crime de corte ilegal de árvores e a proteção cultural. Depois, com a Lei n. 601, de
1850, estabeleceram-se sanções administrativas e penais para quem derrubasse matas e realizasse queimadas.
Também se protegia o meio ambiente na República, com advento do Código
Civil de 1917. A partir daí, criaram-se o Código Florestal, o Código de Águas e o Código de Caça, dentre inúmeras outras legislações infraconstitucionais disciplinando
regras para a proteção do meio ambiente.
4.
FAUNA
A fauna é o conjunto de animais estabelecidos em uma determinada região.
Quando se fala em fauna, deve-se pensar imediatamente em seu habitat. Habitat,
por sua vez, é o local onde vive o animal, incluindo aí os ninhos, criadouros naturais
etc., o qual, por sua vez, integra o ecossistema. Ecossistema é o conjunto de vegetais e animais que interage entre si ou com outros elementos do ambiente, dando
sustentação a diversidade biológica. Por tal razão é que a fauna não deve ser analisada isoladamente ou dissociada da flora. Assim, a fauna deve ser preservada, pois integra o meio ambiente previsto no art. 225, caput, da CF. Os animais tem o mesmo
direito que o homem de viver no planeta Terra. A fauna e a flora estão intimamente
ligadas em uma relação de interação mútua e contínua. Uma não vive sem a outra,
fazendo com que essa interação mantenha a integridade das espécies vegetais e animais. Muitos animais pré-históricos (dinossauros, por exemplo) foram extintos pela
quebra da cadeia alimentar, pois muitos deles eram herbívoros.
Por isso que se faz necessária a tutela efetiva da fauna, punindo-se aqueles
que praticam a caça sem a autorização do órgão competente ou punindo-se aquele
que destrói a flora, indiscriminadamente, ocasionando a morte de muitos animais
silvestres que vivem naquela floresta.
9. Ivete Senise Ferreira, Tutela penal do patrimônio cultural, São Paulo, Revistas dos Tribunais, 1995, v. 3, p. 78.
faculdade de direito de bauru
100
É importante ressaltar que o Brasil subscreveu a Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora e da Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (CITES) em 3 de março de 1973.
5.
FUNDAMENTO LEGAL
A proteção da fauna encontra-se expressamente inserida no art. 225, § 1o, VII,
da Constituição.
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendêlo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1o. Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder
Público:
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco a sua função ecológica, provoquem a
extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
Fauna é o conjunto das espécies animais estabelecidos em uma determinada
região. Flora é o conjunto das espécies vegetais de uma região, de um país ou de
um continente. A fauna e a flora são bens corpóreos e integram o meio ambiente
ecologicamente equilibrado.
Função ecológica, por sua vez, abrange a relação entre as espécies da fauna e
da flora e as demais formas de vida existente num ecossistema. Sob essa visão holística (proteção integral do meio ambiente), é que “o homem deve assumir, como animal racional capaz de entender e compreender o valor de cada ser e suas relações
ecossistêmicas, o papel de gestor do ambiente, respeitando as normas primeiras
que regem a natureza, para só então, com bases nestas, construir o Direito Positivo,
que rege as relações humanas”10.
Este inciso já se encontrava regulamentado pela Lei n. 5.197, de 03 de janeiro
de 1967, que cuida da Lei de Proteção à Fauna (Código de Caça), Decreto-lei n. 221,
de 28 de fevereiro de 1967 (Código de Pesca), Lei n. 4.771, de 15 de setembro de
1965 (Código Florestal) e Lei n. 9.605, 12 de fevereiro de 1998 (Lei Ambiental).
A competência para legislar sobre fauna, caça e pesca é da União, Estados e
Distrito Federal (art. 24, VI, da CF). Cuida-se de competência legislativa concorrente. A competência legislativa difere da competência prevista no art. 23, VII, da CF.
Este artigo atribui a competência a União, Estados, Distrito Federal e Municípios
10. Édis Milaré, Direito do ambiente, cit., p. 231.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
101
para proteger as florestas, a fauna e a flora. Trata-se de competência comum (administrativa) entre os poderes públicos.
A fauna é protegida, na esfera federal, pela Lei n. 5.197, de 03 de maio de 1967,
a qual foi recepcionada pela nova ordem constitucional. Referida lei foi, posteriormente, alterada pela lei ambiental (Lei n. 9.605/98).
A competência para processar e julgar as causas relacionadas à fauna é da justiça federal com fundamento no art. 1o da Lei n. 5.197/67, e no art. 109, I, da CF. Tal
competência não afasta a possibilidade do julgamento pela Justiça Comum Estadual,
quando houver interesse local ou se o fato ocorrer dentro de uma Unidade de Conservação criada pelo Poder Público estadual. Ressalte-se, além disso, que a Súmula
n. 91, do STJ, que determinava a competência da Justiça Federal para processar e julgar os crimes contra a fauna, foi cancelada pela Terceira Seção do STJ, em 13 de novembro de 2000, por votação unânime, durante o julgamento de conflito de competência entre a 2a. Vara Federal de Ribeirão Preto e a Vara Criminal de Santa Rosa de
Viterbo. O Min. Fontes de Alencar, autor da proposta de cancelamento, sustenta que
após o advento da Lei n. 9.605/98, esta súmula “antes atrapalha do que auxilia a prestação jurisdicional11.
Analisemos, por ora, a lei de proteção à fauna.
6.
CONCEITO DE FAUNA SILVESTRE
Fauna silvestre é o conjunto de animais que vivem em determinada região.
São os animais que têm seu habitat natural nas matas, nas florestas, nos rios e mares, animais estes que ficam afastados do convívio do meio ambiente humano.
O art.1o da Lei n. 5.197, de 03 de maio de 1967, conceitua fauna silvestre como
sendo os “animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem
como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais”.
Este conceito refere-se, no nosso entender, somente à fauna silvestre, afastando a proteção dos animais domésticos ou domesticados. Isso não significa que a legislação não proteja estes últimos animais. Prevalece a norma penal prevista no artigo 64 da LCP. Este dispositivo não foi revogado. Também se encontra em vigor o
Decreto n. 24.645, de 10 de julho de 1934, que estabelece medidas de proteção dos
animais domésticos.
Registre-se, ademais, que a nova lei ambiental ampliou este último conceito
de fauna silvestre com o advento da lei ambiental. Assim, são “espécimes da fauna
silvestre todos aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que/ tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocor-
11. V. site: http://www.stj.gov.br.
102
faculdade de direito de bauru
rendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras”
(art. 29, § 3o, da Lei n. 9.605/98).
Extrai-se deste conceito que nem todos os animais são protegidos pela lei ambiental. Protegem-se as espécies da fauna silvestre ou aquática, domésticas ou domesticadas, nativas, exóticas ou em rota migratória. Espécies nativas são aquelas
que vivem em determinada região ou país. Espécies migratórias são aquelas que migram de um lugar para outro, passando de um país para outro. Espécies exóticas são
aquelas originadas de outros países. Espécies aquáticas são aquelas que vivem nos
lagos, lagoas, rios e mares. Espécies domésticas ou domesticadas são aquelas passíveis de domesticação, preservando, no entanto, seu instinto selvagem. Essa proteção, contudo, não é absoluta. A lei exige a permissão, a licença ou a autorização da
autoridade competente para a prática da caça ou da pesca.
7.
A PROTEÇÃO DA FAUNA PELO CÓDIGO CIVIL
O Código Civil de 1916 não protegia a fauna com o objetivo da preservação
das espécies. A visão do código estava adstrita sob o ponto de vista da propriedade
do bem móvel (semoventes). Tanto é verdade que os artigos que dizem respeito a
fauna está inserido no capítulo da aquisição e perda da propriedade móvel, do título da propriedade, arts. 592 a 602, do CC.
Esses dispositivos regulam a forma de aquisição do bem móvel (semoventes)
pela ocupação (arts. 592 e 593, do CC), pela caça (arts. 594 a 598, do CC) e pela pesca (arts. 599 a 602, do CC). A ocupação dava-se com a propriedade da coisa abandonada ou sem dono anterior, incluindo os animais bravios encontrados na natureza, os mansos e domesticados que perderam o hábito de retornarem ao lugar onde
anteriormente viviam, os enxames de abelha não reclamados imediatamente pelo
proprietário anterior, os animais arrojados às praias pelo mar. A caça podia ocorrer
nas propriedades públicas ou particulares. Neste último, haveria a necessidade da
autorização do seu proprietário. Assim, pertencia ao caçador o animal por ele
apreendido. Se o animal ferido adentrar em propriedade particular, a perseguição
poderá se concretizar com a autorização do proprietário. Caso este não permita a
entrada em sua propriedade murada ou cercada deverá entregar ou expelir o animal. E se o caçado adentrar na propriedade alheia sem a autorização perderá a caça
sem prejuízo dos danos causados. A pesca podia também ocorrer nas propriedades
públicas ou privadas. Nas propriedades privadas, a pesca só poderia ocorrer mediante autorização do seu proprietário. Pertencia ao pescador o peixe por ele pescado
ou apreendido. Aquele que pescar em propriedade alheia perderá a pesca e responderá pelos danos causados. Se o rio atravessar vários terrenos, cada proprietário poderá pescar às margens de suas propriedades até a metade.
Esses dispositivos foram revogados pela lei de proteção à fauna (Lei n. 5.197,
de 3 de maio de 1967).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
8.
103
A FAUNA SILVESTRE COMO BEM AMBIENTAL
A fauna é um bem ambiental e integra o meio ambiente ecologicamente equilibrado previsto no art. 225, da CF. Trata-se de um bem difuso. Esse bem não é público e nem privado. É de uso comum do povo. A fauna pertence a coletividade. É
bem que deve ser protegido para as presentes e futuras gerações.
Ressalte-se, contudo, que a lei de proteção à fauna colocou os animais silvestres como sendo de propriedade do Estado (art. 1o da Lei n. 5.197/67)12. O Estado,
por sua vez, seria representado pelo Poder Público da União. Assim, todos os animais silvestres integrariam o domínio particular do Poder Público. Além disso, o Estado não pode usar, gozar e dispor desses bens ambientais que são indisponíveis.
Com o advento da Constituição Federal, a fauna passou a ser bem ambiental difuso.
9.
CAÇA
A preservação da fauna é um dos objetivos da lei de proteção ao meio ambiente. No entanto, a caça predatória poderá colocar em risco essa preservação. A proteção da fauna não é incompatível com o exercício da caça. Essa aparente contradição não impede a proteção legal da fauna. Só se admitirá a caça, se as peculiaridades regionais comportarem a sua prática, competindo ao Poder Público federal a
concessão da permissão com base em ato regulamentador (art. 1o, § 1o, da Lei n.
5.197/67).
Vê-se, pois, que a lei permite a caça de maneira controlada. A caça controlada
é aquela que necessita de autorização do Poder Público.
A caça, por seu turno, pode se apresentar nas seguintes modalidades: a) em caça
predatória (caça profissional e caça sanguinária) e b) caça não predatória (caça de
controle, caça esportiva ou amadorista, caça de subsistência e caça científica)13.
9.1. Caça predatória
Caça predatória é aquela praticada para fins comerciais ou por mero deleite.
São elas a caça profissional e a caça sanguinária.
9.1.1. Caça profissional
Profissional é a caça praticada para fins comerciais. É a caça com o intuito do
lucro com a venda do produto ou subproduto extraído do animal silvestre. Trata-se
do comércio da carne, do couro e de outros subprodutos provenientes do animal.
12. Diz citado artigo: “Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais
são propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha”.
13. Paulo Affonso Leme Machado, Direito ambiental brasileiro, 7a ed., São Paulo, Malheiros, 1998, p. 652/653.
104
faculdade de direito de bauru
Essa caça foi expressamente proibida pela lei de proteção à fauna. O art. 2o da
Lei n. 5.197/67, dispõe que é “proibido o exercício da caça profissional”. É também
proibida a caça amadorista ou profissional nas Reservas de Fauna (art. 19, § 3o, da
Lei n. 9.985/2000).
9.1.2. Caça sangüinária
Sangüinária é a caça praticada por puro prazer, deixando o animal morto no
local sem qualquer utilidade.
Assim, se a caça profissional é expressamente proibida, com maior razão, também o é a caça sangüinária.
9.2. Caça não predatória
A caça não predatória é aquela praticada com uma finalidade específica. É a
denominada caça de controle, caça esportiva ou amadorista, caça de subsistência e
caça científica.
9.2.1. Caça de controle
A caça de controle destina-se à proteção da agricultura e da saúde pública.
Permite-se essa caça mediante prévia licença da autoridade competente, quando os
animais silvestres estiverem destruindo a plantação ou matando o rebanho, bem
como colocando em risco a saúde humana (art. 3o, § 2o, da Lei n. 5.197/67).
Essa licença deverá ser fundamentada, indicando a espécie do animal, o perigo iminente da saúde pública, o espaço e a duração da licença14.
9.2.2. Caça esportiva ou amadorista
Essa caça é destinada aqueles que possuem a devida autorização para esse
tipo de esporte amador. Normalmente, o caçador integra uma associação, clube ou
sociedade amadorista de caça ou tiro ao vôo (art. 6o, a, da Lei n. 5.197/67).
Essas entidades deverão requerer a licença especial para os seus associados
transitarem com arma de caça e de esporte (art. 12 da Lei n. 5.197/67).
O Poder Público federal, atendendo às peculiaridades regionais, poderá conceder licença de caça em regiões previamente determinadas (art. 1o, § 1o, da Lei n.
5.197/67).
9.2.3. Caça de subsistência
A caça de subsistência é aquela praticada com o intuito de manter a subsistência do caçador e de sua família. Tal caça é exercida pelos indígenas, caiçaras, caboclos etc. São pessoas que vivem afastadas, normalmente, dos centros urbanos.
14. Paulo Affonso Leme Machado, Direito ambiental, cit., p. 653/654.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
105
O abate de animal para saciar a fome do caçador e de sua família não constitui crime (art. 37, I, da Lei n. 9.605/98).
9.2.4. Caça científica
A caça científica é aquela destinada para fins científicos. É a permissão dada
aos cientistas para a coleta de material, a utilização e constatação da eficácia de novos remédios com a finalidade de descobrir a cura de doenças.
O art. 14 da Lei n. 5.197/67 disciplina a caça científica. Diz citado dispositivo:
Poderá ser concedida a cientistas, pertencentes a instituições científicas, oficiais ou oficializadas, ou por estas indicadas, licença especial para a coleta de material destinado a fins científicos, em
qualquer época. § 1o. Quando se tratar de cientistas estrangeiros,
devidamente credenciados pelo país de origem, deverá ser o pedido de licença aprovado e encaminhado ao órgão público federal
competente, por intermédio de instituição científica oficial do
país. § 2o. As instituições a que se refere este artigo, para efeito de
renovação anual da licença, darão ciência ao órgão público federal competente das atividades dos cientistas licenciados no ano
anterior. § 3o. As licenças referidas neste artigo não poderão ser
utilizadas para fins comerciais ou esportivos. § 4o. Aos cientistas
das instituições nacionais que tenham por lei, a atribuição de coletar material zoológico, para fins científicos, serão concedidas licenças permanentes.
Essa licença, devidamente regulamentada pelo dispositivo transcrito, deverá
ser cotejada com outras normas relacionadas ao período de caça, o local e a maneira de como ocorre a perseguição, a caça ou a apanha do animal silvestre.
10. O PODER PÚBLICO E A CAÇA
Constata-se uma aparente contradição entre a preservação da fauna e a permissão da caça. Cabe ao Poder Público realizar um controle efetivo de toda a fauna
brasileira, catalogando as espécies existentes em abundância e as espécies ameaçadas de extinção, exercendo um controle efetivo, especialmente destas últimas. O Poder Público federal deverá ainda, no prazo de cento e vinte dias, publicar anualmente as relações das espécies passíveis de caça, delimitando as respectivas áreas, bem
como a época, o número de dias e a quota diária de exemplares caçados (art. 8o, alíneas a, b e c, da Lei n. 5.197-67).
Registre-se que o art. 29 da Lei n. 9.605/98 exige a permissão, a licença ou a
autorização para matar, perseguir, caçar, apanhar espécimes da fauna silvestre, nati-
faculdade de direito de bauru
106
vos ou em rota migratória. Esse controle se dá através da concessão da permissão,
licença ou autorização pelo IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Entende-se por permissão
o ato administrativo negocial, discricionário e precário, pelo qual
o Poder Público faculta ao particular a execução de serviços de interesse coletivo, ou o uso especial de bens públicos, a título gratuito ou remunerado, nas condições estabelecidas pela Administração15.
Licença, por seu turno, é
o ato administrativo vinculado e definitivo, pelo qual o Poder Público, verificando que o interessado atendeu a todas as exigências
legais, faculta-lhe o desempenho de atividades ou a realização de
fatos materiais antes vedados ao particular, como por exemplo, o
exercício de uma profissão, a construção de um edifício em terreno próprio16.
Autorização, por fim, é
o ato administrativo discricionário e precário pelo qual o Poder
Público torna possível ao pretendente a realização de certa atividade, serviço, ou a utilização de determinados bens particulares
ou públicos, de seu exclusivo ou predominante interesse, que a lei
condiciona à aquiescência prévia da Administração, tais como o
uso especial de bem público, o porte de arma, o trânsito por determinados locais etc17.
A lei não faz distinção entre licença e autorização e nem entre estas e a permissão.
O instrumento mais adequado para o exercício da caça é, sem dúvida, a autorização e
não a permissão ou a licença. Esta última, segundo o conceito, é concedido à título de
definitividade. A permissão é a faculdade dada pelo Poder Público na execução de um
serviço de interesse coletivo. A autorização, a semelhança do porte de arma, pode ser
cassada a qualquer momento, pois ela é concedida a título precário. Ora, se o caçador
estiver utilizando a autorização de maneira inadequada ou realizando a caça fora do período permitido, o Poder Público poderá cassá-la a qualquer momento.
15. Hely Lopes Meirelles, Direito administrativo, cit., p. 165.
16. Hely Lopes Meirelles, Direito administrativo, cit., p. 164.
17. Hely Lopes Meirelles, Direito administrativo, cit., p. 164.
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107
Proíbe-se a caça com determinados instrumentos como, por exemplo, com
visgos, atiradeiras, fundas, bodoques, veneno, incêndio ou armadilhas que maltratem o animal. Também se proíbe a caça com armas à bala, próximos de ferrovias ou
rodovias ou com armas calibre 22 para animais de porte superior ao tapiti (se assemelha a lebre e tem cerca de 35 cm). Também se proíbe a caça com a utilização de
armadilhas constituídas de armas de fogo (art. 10, alíneas a, b, c e d, da Lei n.
5.197/67).
Proíbe-se a caça em determinados locais como, por exemplo: nas zonas
urbanas, suburbanas, povoadas e nas estâncias hidrominerais e climáticas; nos
estabelecimentos oficiais de açudes do domínio público, bem como nos terrenos adjacentes, até a distância de cinco quilômetros; na faixa de quinhentos
metros de cada lado do eixo das vias férreas e rodovias públicas; nas áreas destinadas à proteção da fauna, flora e das belezas naturais; nos jardins zoológicos,
nos parques e jardins públicos; fora do período de permissão de caça, mesmo
em propriedades privadas; à noite, exceto em casos especiais e no caso de animais nocivos; e no interior de veículos de qualquer espécie (art. 10, alíneas e, f,
g, h, i, j, k e l, da Lei n. 5.197/67).
11. COMERCIALIZAÇÃO DA FAUNA SILVESTRE
O comércio das espécies da fauna silvestre que implique na caça, perseguição,
destruição ou apanha é expressamente proibido. É proibido o comércio tanto das
espécies como dos produtos e objetos provenientes da fauna (art. 3o, caput, da Lei
n. 5.197/67). No entanto, a lei permite a caça das espécies silvestres e dos produtos
e objetos provenientes de criadouros artificiais (art. 3o, § 1o, da Lei n. 5.197/67).
Para a realização desse comércio, o interessado deverá estar devidamente autorizado pelo Poder Público competente.
Ressalte-se, ainda, que o art. 18 da Lei n. 5.197/67 proíbe “a exportação para o
Exterior (sic), de peles e couros de anfíbios e répteis, em bruto”. Tal dispositivo
deve ser cotejado com o art. 3o do mesmo diploma legal. Se se tratar de exportação
de produtos manufaturados de anfíbios e répteis será permitida. Para Paulo Affonso
Leme Machado será proibida “a exportação, ou o comércio exterior, de peles de répteis e de anfíbios, em bruto, mesmo provenientes de criadouros devidamente legalizados”18.
Não assiste razão ao mestre citado, pois se o produto manufaturado provier de criadouro artificial, devidamente legalizado, não vemos motivo para impedir a sua comercialização ou exportação nos termos do dispositivo legal já citado.
18. Direito ambiental brasileiro, cit., p. 672.
108
faculdade de direito de bauru
12. PESCA
A pesca é disciplinada pela Lei n. 7.679, de 23 de novembro de 1988, que dispõe sobre a proibição da pesca de espécies em períodos de reprodução, pelo Decreto n. 221, de 28 de fevereiro de 1967, que dispõe sobre a proteção e estímulos à
pesca e pela Lei n. 7.643, de 18 de dezembro de 1987, que dispõe sobre a pesca de
cetáceos nas águas jurisdicionais brasileiras.
Entende-se por pesca como sendo “todo ato tendente a retirar, extrair, coletar, apanhar, apreender ou capturar espécimes dos grupos dos peixes, crustáceos,
moluscos e vegetais hidróbios, suscetíveis ou não de aproveitamento econômico,
ressalvadas as espécies ameaçadas de extinção, constantes nas listas oficiais da fauna e da flora” (art. 36 da Lei n. 9.605/98).
O órgão competente deverá fixar, através de atos normativos, os períodos de
proibição da pesca ou em lugares interditados, respeitando as peculiaridades regionais para a proteção da fauna e flora aquáticas, relacionando ainda as espécies ameaçadas de extinção.
É proibida a pesca: a) de espécies que devam ser preservadas ou espécimes
com tamanhos inferiores aos permitidos; b) de quantidades superiores às permitidas, ou mediante a utilização de aparelhos, petrechos, técnicas e métodos não permitidos; c) por meio de explosivos ou substâncias que, em contato com a água produzam efeito semelhança; e d) por meio de substâncias tóxicas, ou outro meio proibido pela autoridade competente. É proibido ainda o transporte, o comércio, o beneficiamento ou a industrialização de espécimes provenientes da coleta, apanha e
pesca proibidas.
Para a realização da pesca, o interessado deverá solicitar a autorização, licença ou permissão perante o órgão competente. E munido desse documento, o interessado poderá pescar observando-se os períodos, tamanhos e lugares proibidos
para a pesca previamente estabelecidos pelo Poder Público.
13. FARRA DO BOI, RODEIO E RINHA
A farra do boi é uma manifestação popular muito comum em Santa Catarina.
Essa manifestação teve origem no costume ibérico e ainda hoje permanece em algumas cidades da Espanha e Portugal. Tal prática chegou ao Brasil através do Arquipélago de Açores, no século XVIII, com a migração de açorianos para o litoral catarinense. Essa tradição existe no Brasil há mais de trezentos anos.
Tal prática consiste em submeter o boi à fobia do público, o qual é perseguido e machucado durante o trajeto. O animal é cortado e ensangüentado, culminando no seu sacrifício no final da brincadeira.
Não há dúvida que a farra do boi submete o animal a crueldade desnecessária. Essa prática é vedada pela nosso ordenamento jurídico. É vedada, na forma da
Revista do instituto de pesquisas e estudos
109
lei, as práticas que submetam os animais a crueldade (art. 225, § 1o., VII, da CF). O
Estado, por outro lado, deverá incentivar a valorização e a difusão das manifestações
culturais (art. 215 da CF). Há quem entenda haver antinomia entre estes dois dispositivos constitucionais.
Essa discussão foi travada no Supremo Tribunal Federal, cuja decisão foi no
sentido de proibir a prática de tal manifestação, prevalecendo o dispositivo mais favorável ao animal. Houve divergência no julgamento entre o Ministro Maurício Corrêa e os Ministros Francisco Rezek, Marco Aurélio, Néri da Silveira e Carlos Velloso.
No que pese essa divergência, a decisão foi pela proibição da prática da farra do boi.
Nesse sentido: Meio Ambiente. Crueldade a animais. “Farra do boi”. Alegação de que
se trata de manifestação cultural. Inadmissibilidade. Aplicação do art. 225, § 1o., VII,
da CF. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do art. 225, § 1o., VII, da CF, que veda a prática que acabe por
submeter os animais à crueldade, como é o caso da conhecida “farra do boi”. (RE
153.531-8/SC – 2a. T – STF – j. 3-6-1997 – redator p/ acórdão Min. Marco Aurélio –
DJU 13-3-1998 – RDA n. 18:315, abr-jun/2000).
O rodeio, por outro lado, é outra manifestação popular também muito comum no Brasil, principalmente nas festas de boiadeiro. Nessa modalidade, os eqüinos e bovinos são provocados por choques elétricos ou mecânicos e submetidos a
provas cruéis e dolorosas, quais sejam: bulldog, sela americana, laço em dupla ou
team roping, laçada de bezerro ou calf roping, bareback, montaria cutiana. Para
isso são utilizados os seguintes instrumentos: o sedém, esporas, peiteiras, laços,
choques elétricos, alfinetes e similares.
Tais práticas submetem a crueldade, psíquica e física dos animais. Diante desse fato, o judiciário foi chamado a se pronunciar em ação civil pública no Município
da Estância Turística de Itu, o qual, através da decisão de primeira instância, proibiu
a utilização de instrumentos aptos a produzir sofrimento desnecessário aos animais.
Nesse sentido, Rodeios. Espetáculos em que são infligidos aos animais tratamento
cruel, incompatível com a legislação em vigor. Proibição de utilização de instrumentos aptos a produzir sofrimento atroz e desnecessário. (Processo n. 326/1999 – 5a.
Vara de Itu – SP – j. 31-3-2000 – Juiz Substituto Fábio Marcelo Holanda – RDA n.
20:335, out-dez/2000).
A rinha, também chamada de briga de galo, é outra modalidade de manifestação popular comum no Brasil. Trata-se, mais especificamente, de um esporte, cujas aves são levadas ao confronto mortal. Essas aves, geralmente, saem da rinha bastante feridas, sangrando e, às vezes, cegas.
Vê-se, pois, que toda manifestação popular que submetam os animais a crueldade desnecessária deve ser coibida. Não se pretende vedar as manifestações culturais, mas evitar os abusos contra animais que não podem se manifestar sobre as brutalidades do homem.
faculdade de direito de bauru
110
14. TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES
O tráfico de animais silvestres sempre existiu no Brasil desde o seu descobrimento. Esclarece a história, segundo Fernando Laerte Levai, que a
nau Bretoa voltou para Portugal, em 1511, lotada de papagaios, bugios e sagüis, inaugurando a rota marítima das grandes explorações.
Na mesma época interceptou-se, em águas européias, uma caravela
francesa pirata a nau Pèlerine – carregada de produtos contrabandeados: 5 mil toras de pau-brasil, 3 mil peles de felinos, 600 aves e 300
macacos. Tristes números da ganância exploradora que se infiltrava
pela costa litorânea brasileira... Quantas outras ações desse tipo não
teriam sido cometidas nos tempos coloniais, para satisfazer a cupidez
da Metrópole e dos mercadores do mar?19.
Desde então o Brasil-Colônia passou a ser explorada pelos portugueses, franceses e holandeses. A ocupação do Brasil por esses povos teve por escopo contrabandear espécies da flora e da fauna, bem como os metais preciosos aqui existentes. A invasão do território brasileiro pelos povos europeus e as diversas fases do ciclo do pau-brasil, da cana-de-açúcar, do gado e dos metais preciosos foram à causa
da devastação do meio ambiente. A caça indiscriminada fez desaparecer diversas espécies da fauna silvestre como, por exemplo, o Curupira etc.
A divisão do Brasil-Colônia em capitanias hereditárias teve por escopo realizar
a ocupação territorial e, ao mesmo tempo, tentar proteger os recursos naturais aqui
existentes. Mas, como sabemos, nem todas as capitanias prosperaram, exceto a de
São Vicente. É importante ressaltar que havia no Livro V das Ordenações Filipinas alguns dispositivos protetivos da fauna, o qual se aplicava também ao Brasil-Colônia.
No entanto, isso não impedia o tráfico dos animais silvestres.
Com a vinda da família real, procurou-se intensificar a proteção do meio ambiente com a criação de leis mais específicas para cada caso concreto.
Hodiernamente, o tráfico de animais silvestres não mudou muito depois das
medidas adotadas neste período histórico. Aliás, a situação se agravou, pois hoje há
notícias da extinção de mais de uma espécie animal por dia. Tal extinção ocorria
tempos atrás a cada quatro anos20. O tráfico de animais silvestres atinge altos índices
19. Proteção jurídica da fauna, in Manual prático da Promotoria de Justiça do Meio Ambiente, 2a. ed., São Paulo,
IMESP, 1999, p. 209.
20. Edis Milaré esclarece que o “ritmo de extinção das espécies aumenta, com o andar da história, em proporções
incríveis. Sabe-se que os processos naturais de extinção de vegetais e animais podem alcançar, na sua continuidade, 10% das espécies. Com a participação direta do homem, o ritmo se acelera e, conforme dados da UICN e da
WWF, são 370 as espécies de mamíferos ameaçados de extinção atualmente. Se regressarmos ao passado, sabere-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
111
na Europa e nos Estados Unidos. Tanto é verdade que a Environment Investigation
Agency (EIA), publicou um relatório que descreve com detalhes as condições em
que são transportados esses animais, muitos dos quais chegando mortos em seu
destino. Esse relatório foi denominado de Flight to Extintion. Há, contudo, quem
compare o tráfico de animais silvestres ao tráfico de drogas. A punição, neste último
caso, é efetiva, naquele, na prática, não. No exterior, os principais pontos do comércio do tráfico de animais silvestres encontram-se em Portugal, Grécia, Itália e Espanha. No Brasil, esses pontos encontram-se no Rio de Janeiro, especialmente na Baixada Fluminense. Há informações de que na Feira de Caxias comercializa-se cerca
de dois mil animais por fins de semana. Tal fato também ocorre na Feira de Santana,
na Bahia. Na Amazônia, o tráfico ocorre por via aérea e por via fluvial para o mercado peruano. O preço do animal está intimamente relacionado com a sua raridade. A
maioria dos animais silvestres é constituída por aves. Ressalte-se ainda que muitos
dos animais ameaçados de extinção são utilizados para confecção de medicamentos
sem valor terapêutico21.
Há informação de que o tráfico de animais silvestres constitui o terceiro maior
do mundo, ficando atrás apenas do tráfico de drogas e de armas. Estima-se, segundo Érika Bechara, que “12 milhões de animais por ano são retirados de seus habitats
para atender as suas finalidades”22. O tráfico de animais silvestres movimenta cerca
de US$ 10 bilhões ao ano, segundo pesquisa colhida pela associação ecológica
Greenpeace23.
A intervenção humana vem acelerando o processo de extinção das espécies,
aliada, é claro, ao efeito estufa. O aquecimento global do planeta tem afetado ecossistemas terrestres e marinhos. Essa informação foi constatada pela publicação recente da revista científica britânica “Nature”. Pesquisas realizadas por cientistas constataram que a mudança climática tem causado impactos sobre a fauna e a flora em
diferentes regiões do globo como, por exemplo, a migração de aves e borboletas, a
reprodução das tartarugas-pintadas e do atum-de-barbatana-azul, o estoque de krill
no oceano Austral, o branqueamento dos corais etc. As espécies animais, por conta
disso, são forçadas a migrar das regiões afetadas. No entanto, a velocidade dessas
mudanças pode ser maior que a capacidade das espécies de se adaptar a ela24.
mos que em 300 anos (1600 a 1900) uma espécie era extinta a cada quatro anos; já em 1974 desapareciam anualmente mil espécies. Mas quando atingimos 1990 desaparece uma espécie por hora, numa progressão tal que até o
final deste século (que está aí, às portas), cerca de cem espécies desaparecerão diariamente” (Direito do ambiente. 2a. ed., Revista dos Tribunais, 2001, p. 173).
21. Edna Cardozo Dias, A tutela jurídica dos animais, Belo Horizonte, Mandamentos, 2000, p. 115-117.
22. Luciana Caetano da Silva, Fauna terrestre no direito penal brasileiro, Belo Horizonte, Mandamentos, 2001, p. 61.
23. Laerte Fernando Levai, Direito dos animais – O direito deles e o nosso direito sobre eles, Campos do Jordão,
Mantiqueira, 1998, p. 60.
24. Cláudio Ângelo, Aquecimento global já afeta ecossistemas – Elevação nas temperaturas médias tem provocado
mudanças na distribuição de espécies há pelo menos 30 anos, Folha de S. Paulo, ed. 28-3-2002, p. A-16.
112
faculdade de direito de bauru
Como se vê, o tráfico de animais silvestres não é a única causa da extinção das
espécies, outros fatores devem ser levados em consideração como, por exemplo, o
efeito estufa.
15. CAUSAS DA EXTINÇÃO DAS ESPÉCIES DA FAUNA SILVESTRE
Como se vê, o tráfico de animais silvestres não é a única causa da extinção das
espécies, outros fatores devem ser levados em consideração como, por exemplo, o
efeito estufa.
A intervenção humana vem acelerando o processo de extinção das espécies,
aliada, é claro, ao efeito estufa. O aquecimento global do planeta tem afetado ecossistemas terrestres e marinhos. Essa informação foi constatada pela publicação recente da revista científica britânica “Nature”. Pesquisas realizadas por cientistas constataram que a mudança climática tem causado impactos sobre a fauna e a flora em
diferentes regiões do globo como, por exemplo, a migração de aves e borboletas, a
reprodução das tartarugas-pintadas e do atum-de-barbatana-azul, o estoque de krill
no oceano Austral, o branqueamento dos corais etc. As espécies animais, por conta
disso, são forçadas a migrar das regiões afetadas. No entanto, a velocidade dessas
mudanças pode ser maior que a capacidade das espécies de se adaptar a ela25.
Foi publicado recentemente estudo realizado por pesquisadores ligados as
Nações Unidas sobre a situação da biodiversidade no Planeta. Constatou-se que a
destruição dos habitats e das espécies invasoras são as maiores ameaças a biodiversidade. Afirma este estudo que um quarto dos mamíferos do Planeta está
ameaçado de extinção nos próximos trinta anos. Foram identificadas 11.046 espécies de plantas e de animais ameaçadas de extinção, incluindo 1.130 mamíferos e
1.183 aves. A principal causa é a atividade humana que vem continuadamente
destruindo os habitats dos animais e a introdução de espécies exóticas. É importante ressaltar que estes dados podem ser maiores, pois ainda não se conhecem
todas as espécies da fauna e da flora existentes no planeta. Conhece-se, segundo
estes dados, somente quatro por cento das espécies avaliadas. As causas que levam a extinção das espécies são as mesmas apuradas há trinta anos, só que esta
extinção ocorre com intensidade cada vez maior. Dentre estas causas podemos
apontar, a ocupação dos espaços territoriais rurais, poluição das águas, a exploração dos recursos naturais de maneira desordenada, a mudança climática global,
as espécies invasoras etc.
Estas questões levantadas no estudo em comento deverá ser discutida na conferência da ONU sobre o ambiente e o desenvolvimento sustentável que acontece
em agosto de 2002 na África do Sul. Nesta conferência deverá ser rediscutida a Agen25. Cláudio Ângelo, Aquecimento global já afeta ecossistemas – Elevação nas temperaturas médias tem provocado
mudanças na distribuição de espécies há pelo menos 30 anos, Folha de S. Paulo, ed. 28-3-2002, p. A-16.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
113
da 21 e o Protocolo de Kioto. Caso contrário, a extinção das espécies animais e vegetais se concretizará em menos tempo do que se imagina.
16. INFRAÇÕES PENAIS E ADMINISTRATIVAS
A evolução histórica da proteção do meio ambiente teve seu apogeu, praticamente, com a criação da Lei n. 6.938/81 e em seguida com o advento da Constituição Federal. Hoje a proteção da fauna se dá em três esferas, ou seja, na esfera civil,
administrativa e penal. Na esfera civil, o causador dos danos contra a fauna deverá,
após a realização da perícia, recompor ou devolver à natureza os animais abatidos
ou apreendidos (art. 14, par. 1o, da Lei n. 6.938/81). Na esfera administrativa, o causador poderá ser autuado administrativa com multa pecuniária, além da apreensão
dos produtos ou subprodutos originários da caça ou da apanha (arts. 11 a 24 do Decreto n. 3.179, de 21 de setembro de 1999). Na esfera penal, o autor poderá ser preso em flagrante delito pela prática de qualquer infração tipificada nos arts. 29 a 35
da Lei n. 9.605/98.
Atualmente, a legislação protetiva da fauna é satisfatória. Assim, quem for surpreendido realizando a venda de qualquer animal silvestre proveniente do exterior
sem a competente nota fiscal, guia de importação ou exportação e laudo técnico
(certificado sanitário para animais/produtos) poderá ser preso em flagrante delito,
além de ser autuado administrativamente sem prejuízo do ressarcimento dos danos
causados à fauna.
17. BIBLIOGRAFIA
ÂNGELO, Cláudio. Aquecimento global já afeta ecossistemas – Elevação nas
temperaturas médias tem provocado mudanças na distribuição de espécies há pelo
menos 30 anos. Folha de S. Paulo, ed. 28-3-2002, p.A-16.
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do direito ambiental. 2a. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
OUTRAS PUBLICAÇÕES
Site: http://www.stj.gov.br
A Proteção da Família, a União
Homossexual e o Direito de Igualdade
Mônica Yoshizato Bierwagen
Advogada em São Paulo
I.
INTRODUÇÃO
O último século foi, certamente, palco de grandes e profundas alterações na
concepção jurídica de família: se nos tempos do advento do Código Civil de 1916
discriminava duas espécies de família, quais sejam, a legítima e a ilegítima, conforme, respectivamente, fosse constituída dentro ou fora do casamento, a história traçada pela jurisprudência, a legislação posterior e, finalmente, a Constituição Federal
de 1988, deixaram claro que esses dois conceitos, embora tenham sempre andado
juntos, não se confundem.
Com efeito, o art. 226, ao afirmar em seu caput que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” e que as entidades familiares, ou seja, as
uniões estáveis (§ 3.º) e as famílias monoparentais (§ 4.º) se incluem nessa tutela,
resta claro que o constituinte não só aderiu ao pensamento de que a noção de família transcende a idéia de casamento, rompendo a tradição das últimas constituições
de proteger apenas a dita “legítima” 1, mas principalmente, dispensou-lhe o devido
1 CF/1937: “Art. 124. A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Às
famílias numerosas serão atribuídas compensações na proporção dos seus encargos”; CF/1946: “Art. 163. A família
é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado”; CF/1967: “Art. A
família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos. § 1.º O casamento é indissolúvel”; CF/1969: “Art. 175. A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos. § 1.º
116
faculdade de direito de bauru
tratamento, reconhecendo-a como sustentáculo da sociedade e outorgando-lhe especial proteção.
É inegável, pois, que o art. 226, ao lançar um novo olhar sobre a noção tradicional de família, alarga o seu conceito para abarcar não apenas aquela constituída
sob a égide do casamento, mas igualmente, a união estável e a monoparental, acolhendo, dessarte, uma realidade irrecusável da sociedade brasileira: o número cada
vez maior de agrupamentos de pessoas que reproduziam, de forma mais ou menos
fiel, a estrutura da dita “família legítima”, e que, embora fizessem parte da “base da
sociedade”, permaneciam à margem da lei. Não obstante a iniciativa assemblear tenha seus méritos, por desenlaçar os conceitos de família e de casamento, não é possível deixar de questionar se a interpretação do aludido dispositivo não poderia ir
mais além, ou seja, diante da amplitude do termo “família”, não seria conveniente
refletir se seriam somente esses modelos de família estabelecidos pelos parágrafos
do art. 226 os únicos a constituir a dita “base da sociedade”? Não haveriam outras
estruturas sociais que, apesar de apresentar uma formação não convencional, mas
desempenhando o papel de família, não se enquadrariam no modelo genérico abrigado pelo Texto Supremo? Se afirmativo, seria possível, com fundamento no princípio da isonomia (art. 5.º, caput), ampliar-se mais um pouco a interpretação da norma, para também abranger essas estruturas familiares não expressamente descritas?
A união homossexual e os movimentos reivindicatórios de proteção legal aos
parceiros2 do mesmo sexo estimulam e exigem respostas a essas questões. Por certo, não qualquer relação homossexual, mas aquelas que caracterizam uma família,
vale dizer, as que se estruturam de forma idêntica à união estável e que somente não
preenchem o requisito da diversidade de sexos; nesse caso, qual seria o óbice para
a sua equiparação, se a Constituição Federal prevê, como princípio fundamental, a
igualdade de todos perante a lei?
Antes de conclusões apressadas ou infundadas, a proposta deste trabalho é refletir sobre tais questões, ponderar sobre o que está à nossa volta, o que vem acontecendo no mundo, e nos perguntar, com a máxima isenção possível, se existem motivos justos e relevantes para o tratamento diferenciado. A evolução do estado marginal de concubinato à constitucionalmente reconhecida união estável não só é um
exemplo incontestável de que o direito, na sua missão de garantir valores como a
justiça, a solidariedade e a tolerância, pode (e deve) mudar frente à realidade, mas
principalmente mostra que, de quando em quando, é necessário colocar em xeque
O casamento somente poderá ser dissolvido nos casos expressos em lei,, desde que haja prévia separação judicial
por;mais de três anos”. Apud Rodrigo da Cunha Pereira, Direito de família – uma abordagem psicanalítica, Belo
Horizonte, Del Rey, 1997, p. 21, e Yussef Said Cahali, Divórcio e separação, tomo 1, São Paulo, Revista dos Tribunais, 7.ª ed., p. 44.
2 No desenvolvimento do trabalho, utilizaremos a expressão “parceiros” para evitar eventuais confusões com os
“companheiros”, terminologia adotada pelo legislador para se referir aos componentes da união estável.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
117
alguns conceitos e verdades comumente aceitos, seja para confirmá-los, seja para
revê-los. E, acima de tudo, para nos permitir o poder de escolha.
II.
A FAMÍLIA MODERNA E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
É fato que a entrada da mulher no mercado de trabalho, a conquista de sua independência financeira e liberação sexual, especialmente após a segunda metade do século XX, ditaram uma profunda reestruturação dos papéis sexuais e familiares. O modelo
do Código Civil de 1916, ou seja, a família, cujo laço se constituía pelo casamento e era
indissolúvel senão pela morte, em que o homem garantia o sustento e determinava seus
rumos, ao lado da mulher responsável por cuidar da casa e dos filhos, rapidamente se
revelou inadequado e obsoleto. A independência financeira da mulher ensejou-lhe não
apenas um maior poder de escolha do cônjuge ou parceiro, já que não necessariamente precisaria se unir a alguém capaz de lhe prover o sustento, tampouco manter-se subjugada a um relacionamento infeliz por não ser capaz de manter a si própria, como inclusive, de decidir por formar, apenas ela e os filhos, uma família; os métodos contraceptivos mais eficazes propiciaram a possibilidade de manter relações sexuais sem os riscos
da gravidez indesejada, além de lhe permitir optar por não ter filhos; o trabalho externo
e a conseqüente diminuição de seu tempo para cuidar da casa e da prole levou os homenaprenderem e a se dedicarem ao trabalho doméstico.
Essas novas estruturas familiares, cada vez mais distantes do modelo projetado
pelo legislador de 1916, embora não tenham criado a figura do concubinato3, contribuíram decisivamente para o desprestígio do casamento e a formação de relações “ilegítimas”. Se por um lado a indissolubilidade do casamento constituía uma segurança para
aquela mulher dona de casa, sem renda e sem profissão, de outro, para a “nova” mulher
financeiramente independente, esse mesmo fator de segurança passou a se constituir
uma ameaça à sua liberdade caso o casamento não se apresentasse satisfatório; a chefia
conjugal deferida exclusivamente ao homem não se adequava à igualdade e à independência que cada vez mais essa mulher vinha conquistando; a pílula anticoncepcional mostrou-se um coadjuvante decisivo para a perda da importância e o significado da virgindade, uma das causas de anulação do casamento prevista no Código Civil.
Apesar disso, homens e mulheres, mesmo longe das formalidades do casamento
civil, continuaram a se unir, dividir suas vidas, ter filhos. Não mais motivados exclusivamente por aquelas necessidades já aludidas e que encontravam amplo amparo na insti3 Silvio Rodrigues (Direito civil, vol. 6, 22.ª ed., São Paulo, Saraiva, 1997, p. 8) lembra que a figura do concubinato,
embora praticamente ignorada pelo Código de 1916, não se apresentava como um fato raro na sociedade brasileira e se motivava, principalmente, por dois fatores: o recurso somente ao casamento religioso, em especial nas partes mais atrasadas do País – o que, aos olhos da lei, não passava de mero concubinato –, e a inexistência, até a Lei
n.º 6.515/77, da figura do divórcio, que não permitia às pessoas separadas de fato ou desquitadas, a constituir nova
relação, salvo pela via concubinária.
118
faculdade de direito de bauru
tuição do casamento, mas pela permanente razão que há de, sempre, unir os casais e
mantê-los juntos: o amor4. O amor, que nem sempre se apresenta nas perfeitas formas
idealizadas pela lei5; o amor, que, por ser sentimento, pode surgir, desaparecer, se transformar, no mais das vezes, independentemente da vontade racional do próprio indivíduo.
Essa é a família que, finalmente, foi reconhecida pelo texto constitucional de
1988: a família do afeto, em substituição à família patriarcal do Código Civil de 1916,
desassociada do casamento, fundada no amor e na igualdade, formada e mantida
pelo amor do casal e dos filhos6.
Críticas são dirigidas a esse modelo familiar, já que nessas relações, cada parte, pautando-se por sua compreensão sobre o amor e buscando satisfazê-lo a seu
modo, sem qualquer vínculo superior que os mantenham unidos, com a mesma facilidade que poderiam se juntar, também poderiam se separar, criando um ambiente instável e inseguro para a formação do núcleo familiar e a criação dos filhos7.
4 Como bem sintetizam Claire Garber e Francis Theodore (Família mosaico, São Paulo, Augustus, 2000, p. 26)
“hoje, em princípio, o homem não tem mais necessidade de uma mulher que cuide do lar; e a mulher não tem mais
necessidade de um homem que lhe garanta a renda necessária a sua subsistência. Logo, torna-se essencial a procura da felicidade por meio do sentimento amoroso, que é a base da união (...)”.
5 Silvana Maria Carbonera (O papel jurídico do afeto nas relações de família, in Repensando o direito de família –
Anais do I Congresso Brasileiro de Direito de Família, coord. Rodrigo da Cunha Pereira, Belo Horizonte, IBDFAM,
1999, p. 485-511), remontando a evolução do crescimento da família concubinária paralelamente à família legítima,
lembra que “o engessamento do ordenamento jurídico, inicialmente com o objetivo de proteger a família legítima,
paradoxalmente acabou abrindo espaço para a diversidade. Diante do fato de, por exemplo, não ser possível a uma
pessoa desquitada constituir uma nova família nos moldes legais em face da impossibilidade de dissolução do vínculo, os sujeitos ignoraram o modelo legal e deram origem a novas comunidades familiares. Buscando a realização
pessoal, o ordenamento foi posto em segundo plano e os sujeitos se impuseram como prioridade. Formaram-se novas famílias, marginais e excluídas do mundo jurídico, mas ainda assim se formaram. A verdade social não se ateve
à verdade jurídica e os fatos afrontaram e transformaram o Direito”.
6 “Com a Constituição de 1988, finalmente, deu-se o passo decisivo e um novo ordenamento familiar foi introduzido, através dos princípios normativos de Direito de Família inseridos nos artigos 226 e 227 da Constituição Federal.
Novo paradigma foi adotado para reger o Direito de Família – o da afetividade –, substituindo o já destronado paradigma da família patriarcal que fundamenta as normas do Código Civil de 1916.
A adoção desse novo paradigma tem um significado singular para os operadores do direito, em especial para o exercício da advocacia, pois desvenda e torna perceptível a especificidade do exercício da advocacia na área de família,
na qual as questões tratam do amor e devem ser resolvidas com a aplicação da lei.
O espaço da família, em que são vividas as relações familiares reguladas pelo Direito de Família, é o espaço do amor
e do afeto. Logo, amor e afeto são ingredientes fundamentais do Direito de Família (...)” (Lia Justiniano dos Santos,
Uma reflexão necessária. Conflitos familiares e o exercício da advocacia, in Revista do Advogado, n. 62, p. 33-40,
março/2001).
7 A esse respeito, lembremos as palavras de Yussef Said Cahali (Divórcio e separação, 7.ª ed., Revista dos Tribunais,
1994, p. 15-6): “Em realidade, porém, é exatamente nesta notória mutação de conceitos básicos [da família], nestes ‘novos critérios’ a que se submetem as relações do grupo societário, especialmente agora sob a pressão apologística da relação concubinária sob a forma de ‘entidade familiar’, que reside a crise da família, na exaltação de pretensos valores novos e contingentes, e que se assinala pelo enfraquecimento gradativo da disciplina familiar, pela
desconsideração paulatina do significado do vínculo matrimonial, pelo relaxamento dos costumes, pelas liberdades
Revista do instituto de pesquisas e estudos
119
De fato, as famílias constituídas fora do casamento têm uma facilidade maior
de estabelecer e extinguir esses vínculos, pois prescindem de cumprir as formalidades legais e judiciais que iniciam e findam o matrimônio (celebração do casamento
e processo judicial de separação e/ou divórcio, respectivamente). No entanto, as facilidades se encerram por aí. Ao contrário do que se argumenta, é justamente em
virtude de hoje a lei reconhecer a união estável, impondo-lhe direitos e obrigações,
que se exige de cada um dos companheiros a mesma séria reflexão que se impõe na
relação constituída pelo casamento, pois estas serão assumidas ipso facto, independentemente da vontade dos companheiros. Negar tutela estatal a essas famílias, isso,
sim, poderia ensejar uma insegurança ao núcleo familiar, pois viveriam sem peias e
dependentes exclusivamente da consciência de cada um de seus componentes.
Essa é, querendo ou não, a real situação da família brasileira, respeitada e protegida pela Constituição Federal. Como brilhantemente aduz Giselda Hironaka8 sobre esse
novo modelo fundado no afeto – cujas conclusões peço vênia para fazer também minhas as suas palavras –: “(...) a verdade jurídica cedeu vez à imperiosa passagem e instalação da verdade da vida. E a verdade da vida está a desnudar aos olhos de todos,
homens ou mulheres, jovens ou velhos, conservadores ou arrojados, a mais esplêndida
de todas as verdades: neste tempo em que até o milênio muda, muda a família, muda o
seu cerne fundamental, muda a razão de sua constituição, existência e sobrevida, mudam as pessoas que a compõem, pessoas estas que passam a ter a coragem de admitir
que se casam principalmente por amor, pelo amor e enquanto houver amor. Porque só
a família assim constituída – independentemente da diversidade de sua gênese – pode
ser mesmo aquele remanso de paz, ternura e respeito, lugar em que haverá, mais que
em qualquer outro, para todos e para cada um de seus componentes, a enorme chance
de realização de seus projetos de felicidade”.
III. É POSSÍVEL EQUIPARAR-SE A UNIÃO HOMOSSEXUAL À UNIÃO
ESTÁVEL?
A partir da concepção da família moderna como uma entidade baseada essencialmente no afeto, surge uma questão de grande polêmica e controvérsia: o reconhecimento da união homossexual como entidade familiar. Afinal, os homossexuais
que mantenham relações de afeto, duradouras, públicas e com o intuito de formar
uma família, podem ter esse relacionamento equiparado à união estável?
e concessões de toda ordem como justificativa do descarte de preconceitos tradicionais, criando com isto um quadro favorável ao aumento progressivo das separações entre os cônjuges, em clima prenhe de irresponsabilidade
pela sorte da família legalmente constituída e da prole, estimuladoras de uniões estáveis, mas inevitavelmente efêmeras pela possibilidade de dissolução arbitrária, sem forma nem figura de juízo”.
8 Giselda Maria Novaes Hironaka, Família e casamento em evolução, in Revista do Advogado, n. 62, março 2001, p.
16-24.
120
faculdade de direito de bauru
Há demonstrações de que as relações homossexuais possam se comparar,
no quesito estabilidade, às relações heterossexuais: os jornais e as revistas9 estão repletos de exemplos de pessoas do mesmo sexo que vivem juntas, estabelecem um patrimônio comum, criam filhos. Por outro lado, no Judiciário, embora as decisões que as reconheçam ainda constituam exceção10, há uma visível
tendência no sentido de admiti-las como sociedade de fato nos casos em que o
casal amealhou bens durante a relação, deferindo a partilha ao parceiro sobrevivente, e em alguns casos, determinando o julgamento desses feitos pelas varas de família11.
Apesar disso, o que realmente parece impedir a equiparação da união homossexual à união estável é o pressuposto da diversidade de sexos.
Além do fato de o projeto de autoria da ex-deputada Marta Suplicy12 ainda
não ter sido votado até hoje, é certo que, na esfera do Judiciário, com apoio em
grandes nomes da doutrina13, o não reconhecimento das uniões homossexuais
baseia-se, precipuamente, no argumento de que a Constituição Federal, bem
como a legislação infraconstitucional referem-se, expressamente, ao par constituído por homem e mulher, pressuposto esse, evidentemente, impossível de ser
não satisfeito por casais homossexuais.
Embora a interdição constitucional alegada seja parcialmente procedente,
uma vez que da análise gramatical do § 3.º do art. 226 da Constituição Federal e
do art. 1.º da Lei n.º 9.278/96 (Lei dos Companheiros) resulta tal conclusão, temse, por outro lado, que o referido dispositivo não pode ser encarado de forma
9 Vide, a título de exemplo, Família arco-íris, Folha de São Paulo, p. C3-C4, de 31.03.2002 e Casamento cor-derosa, Revista Isto é de 15.01.1997 (www.zaz.com.br/istoe/comport/142507.htm).
10 No sentido da equiparação da união homossexual à união estável, destaca-se a posição pioneira do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul (Ap. Cível 598362655, 8.ª Câmara Cível, Rel. Des. José Ataídes Siqueira Trindade, j.
01.03.2000).
11 TJRS: CC 70000992156, 8.ª Câmara Cível, Rel. Des. José Ataídes Siqueira Trindade, j. 29.06.2000; Ap. Cível
599348562, 8.ª Câmara Cível, Rel. Antônio Carlos Stangler Pereira, j. 25.11.1999; Ap.Cível 598362655, 6.ª Câmara Cível, Rel. Desa. Marilene Bonzanini Bernardi, j. 15.09.1999; AI 599075496, 8.ª Câmara Cível, Rel. Des. Breno Moreira
Mussi, j. 17.06.1999. TJRJ: Ap. Cível 2000.001.10704, 3.ª Câmara Cível, Rel. Des. Antônio Eduardo F. Duarte, j.
07.11.2000.
12 Trata-se do projeto n.º 1.151/95, que visa instituir a parceria civil entre pessoas do mesmo sexo. Tal projeto, muitas vezes compreendido, equivocadamente, como sendo o reconhecimento do “casamento homossexual”, referese exclusivamente a direitos patrimoniais (registro de contrato de parceria civil, extensão dos efeitos da lei do bem
de família a essas uniões, direitos previdenciários, direitos de sucessão, exercício de curatela), não reconhecendo
outros que são deferidos à união estável, como o de alimentos e o de adoção.
13 Nesse sentido, vide Álvaro Villaça Azevedo, União de pessoas do mesmo sexo, in A família na travessia do milênio – Anais do II Congresso Brasileiro de Direito de Família, coord. Rodrigo da Cunha Pereira, Belo Horizonte,
IBDFAM, 2000, p. 141-160; Miguel Reale, O direito de família no projeto de Código Civil: à frente da Constituição
de 1988, e Ricardo Fiúza, Reforma do Código – O novo Código Civil e a união de pessoas do mesmo sexo, artigos
extraídos da página eletrônica Jus Navigandi (www.jus.com.br).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
121
isolada, seja dentro do próprio artigo, seja dentro do texto constitucional como
um todo14.
E é justamente adotando uma visão integrada do § 3.º do art. 226 com as demais disposições da Constituição que se verifica a possibilidade de equiparação da
união estável com a união homossexual: primeiro, por força de seu caput, que estabelece “especial proteção do Estado” à família; em segundo, pelos direitos fundamentais assegurados pela Carta e os objetivos e fundamentos da República. Pois vejamos cada um deles:
a)
A proteção constitucional da família
Regra geral estabelecida pelo caput do art. 226 refere-se à proteção da família, ali genericamente definida como “base da sociedade”.
Tal dispositivo, ao contrário dos seus antecessores15, não definiu a família, senão pela fórmula genérica ora aludida. Outrossim, ao estabelecer nos §§ 3.º e 4.º
que são entidades familiares a união estável e a família monoparental, não parece ter
estabelecido um rol taxativo, porquanto ao “reconhecer” a união estável como entidade familiar, e “entender” assim também a família monoparental, a linguagem empregada não leva, necessariamente, à exclusão de outras entidades, mas, quando
muito, somente à explicitação de que aquelas ali arroladas se incluem no conceito
de família.
Nesse sentido, não parece ser de boa técnica entender que a família protegida pelo caput do art. 226 seja apenas a constituída pelo casamento, pela união estável e a monoparental. Até porque, se considerarmos que o modelo do caput é bastante amplo, para a limitação de seu conteúdo exclusivamente àquelas entidades, seria necessário mais do que a afirmar que os modelos nele elencados são entidades
familiares, mas certamente explicitar, de forma taxativa, que sua noção de família se
circunscreveria única e exclusivamente àquelas, eliminando qualquer interpretação
mais elástica do dispositivo.
Ademais, mais do que uma interpretação estritamente gramatical do dispositivo, é necessário contextualizá-lo à realidade presente, tendo em conta, precipuamente, a moderna proposta de família, ou seja, da família como um laço de afeto.
Deveras, como aponta Paulo Luiz Neto Lôbo, sobre a nova entidade familiar da
Constituição de 1988:
14 Segundo Celso Ribeiro Bastos (Curso de direito constitucional, 18. ed, São Paulo, Saraiva, 1997, p. 62) pelo princípio da unidade da Constituição, “é necessário que o intérprete procure as recíprocas implicações de preceitos e
princípios, até chegar a uma vontade unitária da Constituição. Ele terá de evitar as contradições, antagonismos e antinomias. As Constituições, compromissórias sobretudo, apresentam princípios que expressam ideologias diferentes. Se, portanto, do ponto de vista estritamente lógico, elas podem encerrar verdadeiras contradições, do ponto
de vista jurídico são sem dúvida passíveis de harmonização desde que se utilizem as técnicas próprias de direito”.
15 Vide nota 1. Note-se que os textos anteriores sempre vinculam a família à idéia de casamento.
122
faculdade de direito de bauru
A família é, no presente, muito mais do que antes, o espaço de realização pessoal, afetiva, despatrimonializada. (...) Rentes à realidade social, as propostas populares e de entidades representativas
da sociedade civil partiram da família concreta, e não da família
sacralizada ou mítica ou patriarcal. Visaram, sobretudo, a garantia das condições reais de igualdade e liberdade, como pressupostos da realização afetiva16.
Dessa maneira, se de um lado não resta possível afirmar, via interpretação estritamente gramatical do art. 226, que no conceito de família contido no caput estejam protegidos apenas os modelos descritos nos parágrafos, e de outro, na elaboração de uma exegese evolutiva do dispositivo17, considerando que a proposta da família moderna baseia-se numa estrutura que enfatiza, acima de quaisquer modelos
rigidamente estabelecidos, a existência do afeto, a busca pelo real e exato sentido
do mencionado dispositivo não pode encontrar naquela exegese restritiva o seu
ponto final e ser tomado por verdade absoluta. Há de ir além, tanto pela observação
da realidade concreta em que se insere essa nova família, como também estabelecendo uma leitura conjugada do artigo, seus parágrafos e demais dispositivos constitucionais, especialmente à luz do direito fundamental de igualdade, base de qualquer Estado democrático de direito.
b)
O tratamento isonômico da união homossexual e da união estável
Ainda na trilha da interpretação do § 3.º do art. 226 dentro do contexto constitucional em sua totalidade, como já anunciado, não há como escapar da sua leitura à luz do princípio da isonomia inscrito no caput e no inc. I do art. 5.º.
Com efeito, mesmo que se queira considerar os parágrafos do art. 226 como
rol taxativo, excluindo de sua proteção entidades familiares que não se conformem
aos modelos ali instituídos, ainda assim seria necessária a sua compreensão segundo os princípios norteadores do sistema constitucional, em especial os princípios da
igualdade, da liberdade, e da dignidade da pessoa humana.
Deveras, desde a Antigüidade já ensinava Aristóteles, que a igualdade pressupõe não só tratar igualmente os iguais, mas também, tratar desigualmente, na medida dessa desigualdade, os desiguais. Assim ocorre, por exemplo, na garantia do acesso ao Judiciário aos menos favorecidos (art. 5.º, LXXIV ), pela qual concede-se-lhes
16 O direito de família e a constituição de 1988, São Paulo, Saraiva, coord. Carlos Alberto Bittar, 1989, p. 74.
17 Segundo Anna Candida da Cunha Ferraz (Processos informais de mudança na Constituição: mutações constitucionais e mutações inconstitucionais, Max Limonad, 1986, p. 45), configura-se como interpretação evolutiva,
aquela “dada a uma norma formulada, na origem, com base em um conceito de conteúdo elástico ou indeterminado – assim, por exemplo, ‘bons costumes, ordem pública, interesse público’ – capazes de assumir conteúdo historicamente variável e determinar, em conseqüência, variação na época de aplicação da norma”.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
123
um especial tratamento, capaz de assegurar-lhes a paridade de forças necessária no
processo judicial. O tratamento desigual justifica-se tanto pela existência de uma
sensível desigualdade entre uma e outra parte, como, principalmente, por se verificar que o critério que os desnivela (critério econômico) deve ser contornado para
que esse obstáculo não comprometa tanto o acesso aos órgãos judiciais como a justiça do provimento jurisdicional.
Transferindo esse raciocínio para o caso do tratamento desigual ocorrente na
união homossexual ante a união estável, é imprescindível que, antes de nos apegarmos exclusivamente à compreensão gramatical do conteúdo do § 3.º do art. 226, em
primeiro lugar busquemos a razão do trato diferenciado das duas situações ou, em
outras palavras, o porque de o legislador ter consagrado essa discriminação. Em segundo – e isso, sem dúvida, é o mais importante – verificar se esse tratamento diferenciado encontra um fundamento lógico e racional18, que se harmonize com os
compromissos éticos e políticos da sociedade como um todo.
Nesse sentido, se a família homossexual é idêntica à família constituída em
união estável, diferindo somente no que concerne ao pressuposto da diversidade de
sexos entre os companheiros, resta pertinente verificar se esse elemento pode ser
considerado como critério diferenciador justificável a vedar-lhe o mesmo tratamento. Em outras palavras, há de se investigar se a diversidade de sexos é, de fato, determinante para o sucesso ou o fracasso daquele núcleo social enquanto entidade
familiar.
Parece-nos que a diversidade ou identidade de sexos não pode, de forma exclusiva, ser adotado como critério diferenciador. Como já dito acima, há muitas demonstrações de que o casal homossexual, na medida em que estabelecem uma relação de afeto, respeito, consideração e auxílio mútuos, apresentando-se socialmente como parceiros, em união contínua e duradoura, comportam-se de forma idêntica ao casal heterossexual. Casos em que um dos parceiros cuidou do outro em momentos difíceis, ou aqueles que se dedicam a criar conjuntamente os filhos (naturais ou adotivos de um dos parceiros), não constituem uma raridade e bem ilustram
essa assertiva19.
Assim, se tais famílias se comportam de forma semelhante àquela oriunda de
união estável, qual seria a explicação para a não equiparação de ambas, se a Consti18 Esse, aliás, é o ensinamento de Celso Antônio Bandeira de Mello, na sua brilhante monografia Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, para quem “(...) o critério especificador escolhido pela lei, a fim de circunscrever os
atingidos por uma situação jurídica – a dizer: o fator de discriminação – pode ser qualquer elemento radicado neles; todavia, necessita, inarredavelmente, guardar relação de pertinência lógica com a diferenciação que dele resulta. Em outras palavras: a discriminação não pode ser gratuita ou fortuita. Impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferenciado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo. Segue-se que, se
o fator diferencial não guardar conexão lógica com a disparidade de tratamentos jurídicos dispensados, a distinção
estabelecida afronta o princípio da isonomia”.
19 A esse respeito, consultar as fontes indicadas na nota 9.
124
faculdade de direito de bauru
tuição obriga ao tratamento igual aos iguais, principalmente vedando o tratamento
diferenciado por orientação sexual?
Ao que parece, a razão de não se estender a proteção da família à união homossexual não está relacionada a critérios a que se possa atribuir o caráter de racional ou sensato, mas, sim, a padrões sociais cultivados desde longa data, e que, diante das premissas maiores da Constituição Federal e da realidade social de hoje, devem, obrigatoriamente, ser reavaliados.
É inegável que muito do que conhecemos por “moral sexual” tem suas bases
assentadas em dogmas religiosos: a preservação da virgindade até o casamento, a relação sexual apenas com o intuito de reprodução, o ritual do casamento para constituição da família, o matrimônio indissolúvel, são exemplos bastante significativos
da influência da religião sobre os costumes e a lei20.
Embora muitos desses valores estejam em franco abandono, notadamente
após as profundas mudanças dos papéis sexuais de homens e mulheres21 ocorrida
na segunda metade do último século e que vigorosamente alavancaram um novo
pensar sobre a expressão da sexualidade, alguns deles ainda continuam a ser defendidos, entre eles, a condenação ao relacionamento homossexual; basta abrir o jornal ou assistir ao noticiário para ver, de quando em quando, mostras de atitudes preconceituosas contra homossexuais, de uma simples sátira aos seus trejeitos até casos assustadores de espancamento e assassinato.
No entanto, cada vez mais essa resistência vem se enfraquecendo no que toca
aos seus fundamentos. Notáveis avanços científicos na área da sexualidade humana, especialmente da psicologia, assinalando que a homossexualidade não é doença22, mas
20 Nesse sentido, basta lembrar o modelo de família instituído pelas Constituições anteriores e pelo Código Civil
de 1916.
21 “A família composta por casal homossexual realmente obriga, mesmo nos dias atuais, que muitas pessoas revejam seus próprios conceitos de família. Isso porque talvez esse tipo de composição seja justamente aquele
mais contundentemente coloque em xeque as visões tradicionais já tão incorporadas. Acresce-se a isso, o fato
de que o atendimento destes casais em terapia conjugal faz emergir o tema das relações de gênero. Assim, a maneira de demarcar o espaço feminino e do masculino nas relações heterossexuais e o modo como estas imagens
se acomodam entre homossexuais consubstanciaram uma importante questão. O ponto é, então, indagar se o
que está em pauta é um processo mais amplo vinculado ao questionamento dos papéis de gênero em nossa sociedade onde a mencionada busca pelo igual não é exclusivamente conferida aos pares homossexuais, podendo estar refletindo um movimento mais amplo mediado pela idéia de que homens e mulheres devem ter as
mesmas condições na vida social e que na esfera da vida doméstica deveriam formar casais igualitários” (Maria
Luiza Dias, Divórcio e família: a emergência da terapia familiar no Brasil, tese apresentada para obtenção
do título de doutor em antropologia junto à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1999, p. 37-8).
22 Rodrigo da Cunha Pereira (Direito de família – uma abordagem psicanalítica, Belo Horizonte, Del Rey, 1997,
p. 45) anota que “o Conselho Federal de Medicina, antecipando-se à Organização Mundial de Saúde (OMS), em
1985, tornou sem efeito o Código 302 da Classificação Internacional de Doenças (CID), não mais considerando a
homossexualidade como desviou ou transtorno sexual”.
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125
simples orientação afetivo-sexual do indivíduo23, evidenciam que tais padrões ainda resistem não por uma explicação razoável, lógica ou aceitável, mas pelo simples preconceito dos que não encontram, para definir a união homossexual, qualificações mais
consistentes que “doentio”, “perverso”, “vergonhoso”, “corrupto” e “imoral”24.
A Constituição Federal, enquanto o instrumento maior de proteção dos direitos fundamentais, não dá guarida a esse tipo de discriminação. Pelo contrário, na
medida em que eleva a isonomia de todos perante a lei e o direito de intimidade e
de privacidade à categoria de cláusula pétrea (art. 5.º, caput, inc. I e X, e art. 60, inc.
III, § 4.º) e estabelece como objetivo e fundamento da República, respectivamente,
a promoção indistinta do bem de todos (art. 3.º, IV ) e a dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III), deixa mais que patente seu repúdio a toda e qualquer iniciativa tendente a discriminações infundadas, irrefletidas ou preconceituosas. E, nessa medida, o corrente tratamento desigual da união homossexual, enquanto a marginaliza e
alimenta a sua estigmatização, não se mostra coerente com tais premissas, mormente quando os motivos alegados em favor da tese da não extensão dos direitos da
união estável se abriga apenas em formalismos25, que não se sustentam diante do
processo interpretativo do texto constitucional como um todo26.
23 Sobre homossexualidade como orientação afetivo-sexual, vide Ronaldo Pamplona da Costa, Os onze sexos – as
múltiplas faces da sexualidade humana, 3.ª ed., São Paulo, Gente, 1994.
24 Cite-se, a título de exemplo, as palavras do deputado Euler de Morais do PMDB de Goiás, no artigo Apoio de FHC
à união gay causa protestos, Folha de São Paulo de 19.05.2002, p. C-5, onde, posicionando-se contrário ao “casamento gay”, teria afirmado que isso seria “‘institucionalizar o perverso, a corrupção, a imoralidade, a vergonha e a
nudez. Se o homossexualismo se alastrar, teremos uma sociedade doentia’”. Apenas a título de esclarecimento acerca do “alastramento da homossexualidade”, remetemos à anotação de Ronaldo Pamplona da Costa, cit., sobre o índice da homossexualidade se restringir a apenas 10% da população mundial.
25 A esse respeito, vide Miguel Reale, cit.: “Há quem diga, por outro lado, que o Projeto não prevê a união estável entre pessoas do mesmo sexo, mas, mais uma vez, é a própria Constituição que a restringe a ‘união estável entre o homem e a mulher’. Assim sendo, sem reforma da Constituição não poderá ser atendida a pretensão dos homossexuais...”.
26 Anna Candida da Cunha Ferraz (cit, p. 28) lembra que “A natureza política da norma constitucional é intrínseca à
Constituição, que rege a estrutura fundamental do Estado, atribui competências aos poderes, assegura os direitos humanos, fixa o comportamento dos órgãos estatais e serve, enfim, de pauta à ação dos governos. Ao desdobrar tal conteúdo, a Constituição positiva os princípios políticos fundamentais da organização do Estado. (...) É importante lembrar, ademais, que o elemento político introduzido e cristalizado na norma constitucional não se estratifica, mas continua desenvolvendo-se e adaptando-se às novas exigências, às novas situações, pelo que é um elemento dinâmico
cujo sentido atual será sempre perseguido pelo exegeta. Desta forma, a norma constitucional interpretada conforme
o elemento político nela entranhado pode ganhar conteúdo novo. Em tal caso, esse elemento favorece a caracterização da interpretação constitucional como processo de mutação constitucional”. E nesse sentido, arremata: “sempre
que se atribui à Constituição um sentido novo; quando na aplicação, a norma constitucional tem caráter mais abrangente, alcançando situações dantes não contempladas por ela ou comportamentos ou fatos não considerados anteriormente disciplinados por ela; sempre que, ao significado da norma constitucional, se atribui novo conteúdo, em todas essas situações está diante do fenômeno da mutação constitucional. Se essa mudança de sentido, alteração de
significado, maior abrangência da norma constitucional são produzidas por via da interpretação constitucional, então
pode se afirmar que a interpretação constitucional assumiu o papel de processo de mutação constitucional”.
126
faculdade de direito de bauru
A realidade muda, e a lei deve mudar. Há cem anos atrás, o preconceito e a
marginalização das relações concubinárias jamais permitiriam reconhecer-lhes
quaisquer direitos; o Judiciário, sensível ao fenônemos sociais, corajosamente adaptou os instrumentos legais que dispunha para corrigir a cegueira e o formalismo da
lei com relação às famílias ilegítimas, e nos limites desse ferramental, pode estenderlhes a proteção estatal merecida; hoje, o ordenamento cede a essa realidade e outorga tutela constitucional aos companheiros. Diante de um exemplo tão claro e tão
recente na nossa história, não há como não nos perguntar se será necessário, com
relação ao reconhecimento dos direitos das uniões homossexuais, trilhar novamente esse mesmo árduo caminho, e que certamente, implicará o sacrifício de direitos
e liberdades de muitos desses parceiros. Ou se poderemos aprender com a nossa
história e com a observação da realidade, a respeitar e aceitar as diferenças e, acima
de tudo, reconhecer que a Constituição Federal, sobrepairando sobre todos, independentemente de sua raça, cor, sexo, religião, e principalmente, da sua orientação
sexual, tem por missão construir um autêntico estado democrático de direito, e que,
certamente, jamais encontrará solo firme no preconceito e na intolerância.
A Procriação Artificial e o Casamento
Taciana Jusfredo Simões Pinto
Bacharela em Direito, graduada pelas Faculdades Integradas “Antônio Eufrásio de Toledo”
Faculdade de Direito de Presidente Prudente.
1.
OS IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS
Primeiramente, vale ressaltar a distinção entre incapacidade e impedimento
matrimonial.
Incapacidade matrimonial é de caráter geral, pois a pessoa incapaz não tem
aptidão para casar-se com quem quer que seja. Ex: um menor de 15 anos é inapto
para casar-se com qualquer pessoa em razão de sua idade.
Já impedimento matrimonial, por sua vez, é circunstancial, pois, nesse caso,
a pessoa não é incapaz para convolar núpcias, e sim possui uma circunstância, que
em razão da lei, proíbe certos casamentos, ou seja, inaptidão do nubente para se
casar com determinada pessoa, que corresponde à falta de legitimação para tal
ato. Ex: o irmão está impedido de casar-se com sua irmã, em virtude do laço de
parentesco existente entre eles, mas por outro lado, possui capacidade para se casar com outrem.
A doutrina dos impedimentos originou-se do direito canônico, e este, assim
como o Direito Civil Brasileiro, que manteve esta posição, asseguraram a liberdade
dos casamentos, reconhecendo a todos a capacidade para se casar, e estabelecendo
os impedimentos com a finalidade de que não seja feito um casamento contrário às
normas vigentes. O direito canônico distinguiu em: impedimentos dirimentes e impedimentos impedientes O Direito Civil Brasileiro cuida-se desse assunto no art. 183
do Código Civil, em que distingue os impedimentos em três espécies.
128
faculdade de direito de bauru
a) Impedimentos dirimentes absolutos ou públicos – conduzem a absoluta
nulidade do casamento realizado com a inobservância da proibição constante no art.
207, do CC. Contém a metas de preservar a família e sua moral, constituindo desse
modo uma sociedade sadia. Verifica-se expressamente nos incisos I a VIII.
b) Impedimentos dirimentes relativos ou privados – constituem-se no interesse dos nubentes a fim de preservar o livre consentimento, fundado no requisito de
que o contraente deva ter a aptidão de manifestá-lo de forma eficaz, pois sua inobservância resultará na anulação do matrimônio. No entanto, se as partes preferirem
silenciar, ou se se manifestarem inertes, o casamento convalida do vício de que era
portador, conforme diz o art. 209, do CC. Encontram-se expressamente nos incisos
IX ao XII.
c) Impedimentos impedientes ou proibitivos – proíbem o casamento, sem,
todavia, promover a sua invalidação, caso seja contraído, ou melhor, ao invés de anular o matrimonio, sujeita os cônjuges às penas previstas em lei de ordem econômica, podendo ainda, impor o regime de separação de bens. Contempla-se nos incisos
XIII a XVI.
Diante da breve exposição do assunto, examinar-se-á a questão da matéria matrimonial frente aos modos artificiais de procriação, pois com o seu surgimento criaram-se inúmeros problemas jurídicos.
Pois bem, as técnicas de procriações artificiais encontram-se em um grande dilema no que atine aos impedimentos matrimoniais, constantes no art. 183 do CC,
principalmente, nos incisos I, II e IV, que dizem respeito aos impedimentos decorrentes do parentesco e da afinidade.
É proibido o casamento entre essas pessoas próximas, pois, surge uma certa
comunidade de vida entre eles, de sentimentos e de sangue que se entrelaçam, resultando em uma inconformidade tanto familiar quanto ao próprio sujeito.
Segundo informações de estudiosos, os filhos nascidos de uma união entre
parentes próximos podem ser atingidos por taras fisiológicas, malformações somáticas ou defeitos psíquicos. Destarte, é cediço que legalmente sempre buscaram evitar tais relacionamentos, em virtude da possibilidade de riscos existentes em futuros descendentes, em se tratando de consangüinidade.
Mas, referindo-se a uma inseminação artificial heteróloga, isto é, quando o sêmen colhido é de um doador fértil anônimo, há uma grande chance de que os futuros descendentes que foram concebidos sejam, por exemplo, meio-irmãos, sem
mesmo eles saberem, em razão do anonimato que prevalece no Brasil. Portanto,
essa técnica de procriação, apresenta riscos inevitáveis de consangüinidade.
Por outro lado, os CECOS franceses – Centro de Estudos e Conservação de
Ovos e Espermas Humanos – desmentem, mediante as experiências realizadas, essa
afirmação de que o risco de consangüinidade seria considerável nas procriações artificiais, argumentando que as instituições responsáveis pelas procriações só liberam
um número restrito de capilares de esperma provenientes de um mesmo doador.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
129
E, ainda, Georges David, já se manifestou afirmando que existe o risco de aumento de uma taxa de consangüinidade sobre o plano genético das populações, porém, é certo que, limitando, a cada doação cinco gravidezes, não contribui para este
aumento de taxa de consangüinidade.
Entretanto, nada é impossível!
Mas para se evitar o risco de consangüinidade entre pessoas que contém um
liame de parentesco ou afinidade, segundo Eduardo de Oliveira Leite, basta criar
mecanismos de controle governamental, capazes de avaliar e limitar a ação dos bancos de esperma e centros de reprodução humana.
2.
OS DIREITOS E OS DEVERES DOS CÔNJUGES
Estão assegurados no art. 231 do CC, onde define a mais intensa comunidade
de vida entre eles, sendo certo que, um direito de um cônjuge importa no dever de
outro.
No que tange à fidelidade recíproca, esta contém um caráter moral e educativo, que preserva a relação sexual dos cônjuges, representando assim, a monogamia,
pois o não cumprimento dessa norma acarretará para o cônjuge infrator a punição
pelo crime de adultério (bigamia) podendo ser condenado em ação de separação
judicial litigiosa.
Quanto à vida em comum no domicílio conjugal, entende-se também como
um dever dos cônjuges, a coabitação física que ambos estão obrigados, e desta coabitação compreende a do débito conjugal que consiste em relações sexuais, isto é,
um dever que implica em uma obrigação mais estrita entre eles.
Por conseguinte, o abandono injustificado do lar conjugal configura-se como
um comportamento injurioso ao outro cônjuge. No entanto, esse dever corresponde à comunhão moral, espiritual, material e sexual de ambos os cônjuges.
Em relação à mútua assistência dos cônjuges, embora possua um caráter geral, trata-se especificadamente da assistência material e moral: de alimentação, de
moradia, vestuário e nos cuidados pessoais nas moléstias, no socorro nas desventuras, no apoio na adversidade e no auxílio constante em todas as vicissitudes da vida.
Por fim, quanto ao sustento, a guarda e a educação dos filhos, constituem uma
obrigação comum dos pais com relação aos filhos, decorrente do matrimônio. Os
cônjuges devem sustentá-los, dando toda a subsistência material aos seus filhos, assim como alimentação, vestuário, teto, amparo médico-hospitalar. Devem também,
ter-lhes a guarda, exercendo o direito de vigilância. E, ainda, educá-los com uma boa
formação moral e espiritual. Neste caso, a negligência dos pais, isto é, o desleixo
para com os seus filhos, levará à suspensão ou perda do pátrio poder.
Portanto, perante o até então esposado, conclui-se que, o não cumprimento
aos quatros deveres dos cônjuges contidos no art. 231, do CC, é claro que ensejará
a ação de separação judicial litigiosa, sofrendo desse modo, a sanção prevista no art.
130
faculdade de direito de bauru
5º da Lei do Divórcio n. 6.515/77, em razão de ter infringido gravemente as normas
referentes aos deveres matrimoniais. Insta salientar que, a separação poderá ser
pleiteada por um dos cônjuges, através de fatos imputáveis ao outro cônjuge, desde que esses fatos incriminadores tenham violado os deveres do casamento e, conseqüentemente, tornado insuportável à manutenção de vida em comum entre eles.
No entanto, frisa-se que, o grande problema referente às técnicas de procriação
artificial é no tocante ao trecho que diz: “grave violação dos deveres do casamento”.
Quanto à técnica de inseminação artificial homóloga não cria problema algum, pois é realizada com o consentimento de ambos, e com o sêmen do próprio
marido ou companheiro (concubino).
Entretanto, há alguns juristas que questionam se o marido pode ou não se
opor à inseminação artificial homóloga, e que argumento poderia ser invocado pelo
marido a fim de evitar tal operação, já que se trata de um recurso possível de procriar, destinado a suavizar certas deficiências físicas, onde não apresenta nenhum risco corporal.
Assim, deve-se reapreciar os argumentos já mencionados pela doutrina e pela
jurisprudência sobre a obrigatoriedade do débito conjugal no dever de coabitação.
A grande indagação seria se haveria ou não constrangimento ilegal, seja por
parte do marido em constranger a mulher à prestação do dever conjugal ou da esposa, deixando-se inseminar artificialmente pelo sêmen de seu marido. A questão da
obrigação da coabitação com a procriação natural decorrente da vida em comum se
realiza diante de decisões de ambos os cônjuges, de comum acordo, portanto, não
há que se falar em constrangimento ilegal. Todavia, quando a obrigação da coabitação for entendida no seu aspecto carnal, isto é, o débito conjugal, há um verdadeiro dever mútuo.
Em contrapartida, quanto à inseminação artificial heteróloga, a questão é mais
complexa. Luiz C. Guimarães, em sua monografia nacional, incriminou a inseminação artificial heteróloga, isto é, a tipicidade da figura delituosa estava condicionada
ao não consentimento do marido. A contrariu sensu, a sua autorização excluía a injuricidade do fato. Mas, perante a liberdade e o direito que a mulher possui de decidir sobre sua fecundação artificial, ou seja, o direito de ser inseminada artificialmente, dentro da esfera de disponibilidade do próprio corpo, o Direito Penal vigente não abriga nenhum delito quanto à prática de inseminação artificial, quer seja homóloga ou heteróloga.
3.
OS DIREITOS DA ESPOSA SOBRE O ESPERMA DO MARIDO
Refere-se ao caso de inseminação ou fecundação post mortem. Essa questão
já ocorreu na França em 1984 e nos EUA em 1986.
Na França, o caso versava sobre um casal que, diante de informações que o
marido possuía um câncer nos testículos, e que por causa do tratamento quimiote-
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131
rápico, haveria um grande risco de ocorrer sua esterilidade, sendo assim, o marido
depositou seu esperma no CECOS, a fim de ser utilizado em futuras inseminações,
mas posteriormente, este veio a falecer.
Ocorre que, a viúva requereu o seu direito sobre o esperma de seu marido,
que havia sido congelado em um Banco de sêmen, e o CECOS negou a devolução
do esperma coletado. O caso foi levado ao Tribunal da Grande Instance de Crétil, e
este julgou que, o contrato realizado entre as partes era sui generis, obrigando o estabelecimento a conservar o esperma do interessado e a restituição do mesmo ao
depositante ou à pessoa a qual o esperma era destinado. Trata-se de um caso excepcional, contrário aos ideais do Direito, que não mais se repetiu em território francês.
Nos EUA, a mulher solicitou a seu marido uma amostra de seu esperma, depositando-o para conservação (congelando em um Banco de Esperma). Mas vindo
a se divorciarem posteriormente, a mulher se submeteu a uma inseminação artificial
com o esperma do ex-marido que estava conservado, isto é criopreservado, e conseqüentemente nasceu uma filha.
A vista disso, a mulher ingressou com uma ação de alimentos contra o ex-marido, já que ele se tratava do pai biológico da criança e tinha o dever de prestar alimentos a ela. No entanto, o ex-marido recorreu exigindo uma indenização de sua
ex-mulher, no valor correspondente a vinte mil dólares, em virtude de ter “desviado
seu esperma”.
Então, essas duas situações supra revelam a complexidade do assunto diante
da esfera jurídica. É notório que, quando a inseminação artificial é realizada inter vivos não há problema algum, pois a criança está juridicamente vinculada a seu pai e
a sua mãe biológicos. Entretanto, a realização da inseminação post mortem já gera
certas circunstâncias de difícil resolução, principalmente, no que diz respeito à capacidade sucessória, disposta no art. 1577, do CC.
Uma delas é quando a criança nasce depois de 300 dias após a morte de seu
genitor, por ora o marido e, nesse caso, como foi concebida após a morte do marido, considera-se a filha, exclusivamente, da mãe.
Cumpre observar que, com a morte do marido, extingue-se o casamento, e
com isso não há mais uma relação familiar, portanto, nesse caso, embora o marido
seja biologicamente pai da criança, juridicamente, este não é mais o pai dela.
Agora, por outro lado, a mulher não tinha o direito de utilizar-se do esperma
congelado do marido, pois se trata de direito personalíssimo, que poderia ser utilizado somente mediante sua prévia autorização e consentimento.
Deste modo, conclui-se que, numa situação como essa, dever-se-ia verificar
que só seria possível a inseminação post mortem quando a mulher já se encontra
em tratamento no momento da morte do marido, ou melhor, quando a criança já
foi concebida. No entanto, não seria possível, se a mulher tentar utilizar-se dessa
técnica após a morte de seu marido, pois o encontro entre os gametas ainda não
ocorreu.
faculdade de direito de bauru
132
4.
OS DIREITOS E OS EFEITOS DA PATERNIDADE RECONHECIDA
4.1. Nome
É uma denominação empregada para designar e identificar as pessoas, sejam
elas físicas ou jurídicas, dando-lhes personalidade, para se integrar na sociedade, e
se compõe de dois elementos: prenome (designação individual) e o patronímico
(sobrenome).
É importante ressaltar que, o patronímico, excepcionalmente, pode ser mudado, mas apenas o juiz é quem autorizará essa modificação, perante justificação, com
audiência do representante do Ministério Público, e diante da observância das formalidades processuais.
O nome possui uma natureza pública, conforme disposto na Lei dos Registros
Públicos n. 6.015/73, e ainda, é imprescindível salientar que, além de constar como
um direito de todo o cidadão, o nome também está representado por um liame de
dever dos pais de registrarem o seu filho. Desse modo, o nome e o sobrenome o
acompanharão até a morte, mediante sua inserção no Cartório de Registro Civil de
Pessoas Naturais.
Convém lembrar que, o patronímico, é considerado a parte mais importante
do nome, pois os filhos aos serem registrados recebem os nomes de família dos seus
pais, ou pelo menos, do pai, sendo que o meio fundamental da aquisição do patronímico é através da filiação. Em razão disso, é que toda criança possui o direito de
ter um nome paterno, representado pelo efeito do reconhecimento, e estabelecido
pelo vínculo da filiação.
Além disso, considerando o direito ao nome uma prerrogativa individual e,
uma vez já estabelecido, incorpora-se o filho à família do genitor que o reconheceu,
podendo usar o respectivo patronímico, ainda que seja contra a vontade de todos
os membros da família.
É imperioso mencionar que, o direito ao nome é imprescritível e com isso o
filho reconhecido pode adotar o patronímico paterno em qualquer tempo utilizando-se de ação própria (já que todo direito corresponde a uma ação), quer para defendê-lo, para reclamá-lo ou impedir que dele faça uso pessoa a quem falta o respectivo direito.
Por isso, a criança deve reivindicar o seu patronímico ao seu pai, quando este
lhe nega, através da ação de investigação de paternidade, onde a vitória é atribuir ao
autor da ação (investigante) o sobrenome do réu (o investigado), que até então lhe
fora negado, e que com a sentença lhe será deferido.
Desta maneira, qualquer criança oriunda de uma das técnicas de procriação
artificial poderá manejar uma ação de investigação de paternidade contra o suposto
pai, e requerer-lhe o seu patronímico paterno bem como seus devidos direitos adquiridos diante da lei.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
133
Conforme o disposto no art. 227, §6º da CF/88, que proíbe quaisquer designações discriminatórias, é ilícito fazer constar dos registros e certidões de nascimento a declaração se o filho é havido dentro ou fora das relações de casamento.
Portanto, ressalta-se mais uma vez que, é indiferente a questão do filho ser oriundo ou não de uma das técnicas de procriação artificial, pois todos possuem os mesmos
direitos perante a lei, devido o princípio da igualdade (art. 5º, inciso I, da CF).
4.2. Pátrio Poder
Com o reconhecimento do filho, através do vínculo da filiação, os pais adquirem o pátrio poder sobre o mesmo, que consiste num conjunto de direitos e obrigações que os pais têm em relação aos bens e aos filhos, observados os interesses
destes, sejam eles incapazes ou menores.
A titularidade é exercida por ambos os cônjuges, em igualdade, por delegação
do Estado, e havendo qualquer divergência em relação ao pátrio poder quem resolverá é o Poder Judiciário.
No tocante aos filhos legítimos, legitimados, os legalmente reconhecidos e os
adotivos, todos estão sujeitos ao pátrio poder, enquanto menores (art. 379, do CC).
Em relação ao pátrio poder fora do casamento, a regra é a mesma, inclusive
para os pais divorciados e separados, ambos exercem o pátrio poder.
Frise-se bem que, ocorrendo à separação dos pais, a guarda é estabelecida em
favor de apenas um deles, e com isso, conseqüentemente, o pátrio poder daquele
que não ficou com a guarda é sensivelmente limitado, pois ocorre uma redução dos
direitos e deveres do pátrio poder.
As características que marcam o pátrio poder são: múnus público, irrenunciabilidade (exceção: na adoção, o pai biológico renuncia o pátrio poder), indisponibilidade, inalienabilidade, imprescritibilidade, incompatibilidade com a tutela.
O pátrio poder divide-se quanto à pessoa dos filhos e quanto aos bens dos filhos. Quanto aos direitos dos pais sobre a pessoa dos seus filhos, está expressamente estabelecido no art. 384, do CC. Já, quanto aos bens dos filhos, ou seja, às conseqüências patrimoniais, cabe ao detentor do pátrio poder administrar e usufruir os
bens do filho, sem a necessidade de prestar contas, e também, estão dispostas nos
arts. 385 a 389, do CC.
Entretanto, vale dizer que, há bens que são excluídos do usufruto legal bem
como da administração dos pais, assim como dispõe o art. 391, do CC.
No que atine à suspensão do pátrio poder, esta consiste em uma medida menos grave e contém a finalidade de proteger os interesses do menor e punir os pais
que descumprirem suas obrigações, como abuso de poder dos pais, faltando com
seus deveres e obrigações paternos, ou arruinando os bens dos filhos, assim como
determina o art. 394, do CC.
Com relação à perda do pátrio poder, também se denomina destituição do pátrio
poder. As causas que justificam a perda do pátrio poder estão contidas no art. 395, do CC.
134
faculdade de direito de bauru
Nota-se que, a suspensão, é temporária e pode abranger um determinado filho, já a perda é permanente e se estende a todos os filhos menores.
No entanto, em regra, a perda do pátrio poder é definitiva, mas há possibilidade de ser restabelecida se ocorrerem os requisitos necessários para o restabelecimento, que são: regeneração do pai, prazo de cinco anos após a penalidade, processo judicial contencioso.
Afinal, quanto à extinção do pátrio poder, esta consta no art. 392, do CC.
4.3. Alimentos
Os alimentos podem ser exigidos em razão do parentesco, decorrente do jus
sanguinis, que segue a regra do art. 396, do CC, ou também podem decorrer do pátrio poder, fundado do dever familiar, e sendo assim, uma vez reconhecido o filho,
este adquire o direito de pleitear alimentos para si, para atender às suas necessidades essenciais, já que não pode prover a sua própria subsistência.
São pressupostos essenciais da obrigação alimentícia: a existência de um vínculo de parentesco entre o alimentante e o alimentado, que se estende apenas aos
ascendentes, descendentes e aos colaterais até o 2º grau; necessidade do alimentando, em razão da sua impossibilidade de se sustentar, por ser pessoa idosa ou enferma; possibilidade econômica do alimentante para prestar alimentos, desde que este
não seja sacrificado ou tenha privações pessoais; proporcionalidade, pois a fixação
do quantum dos alimentos quem decidirá é o juiz, mediante a avaliação das necessidades essenciais do alimentando e a possibilidade do alimentante, observando sua
situação econômica; e, reciprocidade entre parentes. O art. 229 da CF constitui reciprocidade do dever alimentar entre pai e filho.
As características principais do direito aos alimentos são: direito personalíssimo, intransmissível, indisponível, inacessível, irrestituível, irrenunciável, imprescritível, impenhorável, incompensável, intransacionável, é atual.
Frise-se que, a obrigação dos pais de prestar alimentos aos filhos, cessa com a
maioridade - exceto se o filho de até 25 anos estiver freqüentando um curso superior profissionalizante - ou com a emancipação do filho. No entanto, nessas hipóteses deixa de existir o dever alimentar decorrente do pátrio poder, mas pode surgir
à obrigação alimentar, de natureza genérica, decorrente do parentesco (art. 396, do
CC).
Por derradeiro, o dever alimentar, extingue-se quando desaparecer a necessidade do alimentado ou possibilidade do alimentante ou quando ocorrer o falecimento de qualquer um deles, já que se trata de caráter personalíssimo.
4.4. Sucessão
O direito das sucessões é assegurado pela nossa Carta Magna em seu art. 5º,
XXX, onde garante ao herdeiro o direito de herança, e sendo assim, consistindo
num conjunto de normas que disciplinam a transferência do patrimônio de alguém,
Revista do instituto de pesquisas e estudos
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depois de sua morte, ao herdeiro, em virtude de Lei ou testamento. Portanto, sucessão, de um modo geral, é a transmissão de bens patrimoniais, isto é, da herança, seja
parcial ou total, por morte de alguém, a um ou mais herdeiros (sucessores).
No instante da morte do de cujus abre-se a sucessão, transmitindo-se automaticamente o domínio e a posse da herança aos herdeiros legítimos e testamentários
(1.572, CC). Isso consiste no princípio da Saisine, a herança se transmite por ficção
jurídica, sendo que, no momento da morte do autor da herança ocorre a transmissão simultânea e, em decorrência desse princípio, ocorre a capacidade sucessória
(art. 1.577).
Conseqüências da transmissão: Necessidade de se provar o momento da morte do autor da herança. Os herdeiros, no mesmo instante da morte do autor da herança, entram na posse dos bens que constituem acervo hereditário, sem necessidade de praticar qualquer ato; prova que o herdeiro estava vivo no momento da morte do autor da herança, ainda que uma fração de segundos; prova que o herdeiro
tem capacidade sucessória, isto tem aptidão para receber os bens deixados pelo de
cujus.
A sucessão pode ser legítima, decorrente da lei, quando a pessoa morre sem
deixar testamento (ab intestado) ou testamentária, por testamento, por disposição
de última vontade (art. 1.573, CC).
Ocorrendo a sucessão legítima, transmite-se à herança a seus herdeiros legítimos, e na ausência destes, ao Poder Público, de acordo com a ordem preferencial, estabelecida expressamente na lei, conforme consta no art 1.603, do CC, denominada ordem de vocação hereditária que se sucede da seguinte maneira: aos descendentes, ascendentes, ao cônjuge ou concubino sobrevivente, aos colaterais até o 4º grau e, por
último, aos Municípios, ao Distrito Federal ou à União. Em regra geral, o chamamento
é feito por classes, onde o parente mais próximo exclui o mais remoto.
Contudo, o grande problema diz respeito ao filho que foi concebido mediante a utilização de alguma das técnicas de procriação artificial, principalmente quando se trata de inseminação ou fecundação post mortem. Em se tratando de reconhecimento de paternidade, o efeito mais importante diz respeito à atribuição do filho
ao direito sucessório e também à sua capacidade sucessória para herdar ab intestato do pai e dos parentes deste.
A lei n. 6.515/77, no art. 51, n. 2 equiparou os filhos de qualquer natureza,
diante dos efeitos sucessórios, concedendo desse modo plena igualdade aos filhos.
Nesse mesmo sentido, o art. 1.605, do CC, equiparou os filhos ilegítimos aos
legítimos. E, ainda, o art. 227, §6º, da CF reza que: “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações,
proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
Portanto, conclui-se que há legislação que permite a plena igualdade dos filhos, onde todos terão os mesmos direitos perante a lei, sem nenhuma discriminação, independentemente da forma em que o filho foi concebido.
faculdade de direito de bauru
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No entanto, no tocante à inseminação ou fecundação post mortem o assunto
é mais complexo.
Ex: o casal, que já possui dois filhos legítimos, deixa o sêmen congelado do
marido em um Banco de esperma para futuras inseminações, ocorre que, posteriormente, o marido vem a falecer e, um ano depois, a mulher decide fazer uma nova
inseminação artificial com o sêmen do marido que está congelado, isto é, criopreservado em um Banco de esperma. E, diante disso, a criança nasce. Destarte, no momento da partilha dos bens do casal, os dois filhos legítimos, dizem que o “bebê de
proveta” não teria capacidade sucessória para herdar os bens do casal, pois no momento da abertura da sucessão, o bebê ainda não tinha sido concebido, já que a realização da inseminação artificial foi feita um ano após a morte do marido.
Enfim, para se resolver esse caso há de se analisar dois pontos: em primeiro
lugar, o art. 1.577, do CC diz que a capacidade para suceder é a do tempo da abertura da sucessão e, sendo assim, a capacidade sucessória ocorrerá apenas quando já
tenha sido concebido ou nascido a criança. Assim, por esse ponto de vista, a criança não poderia herdar se não tinha capacidade sucessória no tempo da abertura da
sucessão, pois ainda não tinha sido concebida.
Por outro lado, diante do princípio da isonomia e do art. 227, § 6º da CF,
no qual considera-se a igualdade entre todos e que os filhos possuem os mesmos direitos, não havendo discriminações, nesse caso, a criança herdaria os
bens do casal em igual capacidade sucessória dos seus irmãos. E, ainda, como
herdeiro excluído, irá propor diretamente contra cada herdeiro na proporção do
quinhão que cada um recebeu, e então, receber o seu respectivo quinhão de direito adquirido.
Então, vê-se que, realmente trata-se de um caso muito complexo e divergente, de difícil solução, pois, além disso, poderia também indagar sobre a questão da
utilização do sêmen do marido criopreservado no Banco de esperma pela mulher,
sem sua autorização, lembrando que se trata de um direito personalíssimo, e ainda,
considerar-se que, concebida a criança após a morte do marido, isto é, após 300 dias
subseqüentes ao seu falecimento (388, II, do CC), a criança não é mais considerada
sua filha juridicamente, pois a inseminação artificial foi realizada após um ano de sua
morte, e com a morte do marido extingue-se o casamento, interrompendo uma relação familiar, como já foi exposto no capítulo VII, item 3.
5.
AS QUESTÕES DECORRENTES DA RESPONSABILIDADE CIVIL
5.1. Médicos e Banco de Sêmen
A responsabilidade civil dos médicos consiste em uma responsabilidade de
natureza contratual, em razão da existência de relação entre médico e paciente, que
impõe uma obrigação de meio, só podendo ser responsabilizado se agir com culpa
mediante prova. Porém, há uma divergência entre os juristas sobre a natureza des-
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137
se contrato, se o mesmo deve ser classificado como “prestação de serviço”, ou como
“contrato sui generis”.
A responsabilidade contratual do médico constitui uma obrigação de meio, isto
é, cuidar do paciente, e não obrigação de resultado, que seria a cura do paciente.
Destarte, incumbe ao prejudicado (paciente) provar o inadimplemento obrigacional do médico. Deste modo, a culpa do médico pode ser fundada mediante a
imprudência, imperícia ou negligência, conforme disposto no art. 1.545, do CC.
Sendo assim, caso uma pessoa venha a falecer diante de uma imprudência que,
comprovadamente, foi praticada por um médico, este se responsabilizará pelo erro
que cometeu.
No entanto, situações como essa podem ocorrer na seara das procriações
artificiais, produzindo grandes violações decorrentes de conduta culposa dos
médicos.
Exemplos: no caso do doador, este é ou não responsável pelos defeitos que
pode apresentar seu esperma? O médico que realizou a inseminação artificial está
ou não vinculado à obrigação de resultado, sendo que este operou em perfeita conformidade com as regras da arte médica?
Todavia, em se tratando de matéria de procriação artificial a responsabilidade
contratual do médico pode ser tanto uma obrigação de resultado como de meio.
Com relação aos bancos de sêmen devem ser aplicados os princípios e regras
atinentes à responsabilidade por fato de terceiro e às casas de saúde ou hospitais.
Com isso, tanto o proprietário como os diretores dos hospitais e clínicas responde
por fato de terceiro, seja o médico, enfermeiro, ou auxiliar, consentindo no dever de
reparar o dano causado.
Esta responsabilidade contratual por fato de terceiro também é chamada de
“indireta” ou “reflexa”, quando se responsabiliza o imputado por fato praticado por
pessoa a ele ligada, como por exemplo, os patrões em relação aos empregados, conforme se assegura no art. 1.521, III, do CC, decorrente da culpa “in elegendo ou in
vigilando”.
Sendo assim, do mesmo modo que as casas ou hospitais são responsáveis pelos médicos, enfermeiras, auxiliares e demais funcionário que ali trabalham, os bancos de sêmen, também, são responsáveis pelos danos ocorridos a seus pacientes,
em decorrência de conduta dolosa ou culposa de todos os responsáveis pelas procriações artificiais.
Por isso que, em se tratando de bancos de sêmen ou centros de reprodução
humana é indispensável à existência de um médico responsável pelos atos decorrentes de sua função, e, além disso, é necessário fazer um controle rigoroso desses
organismos pelo Ministério de Saúde. E caso ocorra um dano, o organismo, que no
caso em tela representa os bancos de sêmen, seria responsável em relação à vítima,
de acordo com as regras de direito comum de responsabilidade civil.
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faculdade de direito de bauru
5.2. Doadores e Receptores
O doador e o estabelecimento médico estabelecem um contrato de doação,
mas para este ser válido deve ser gratuito. E, ainda, esse contrato dispõe de dois
princípios relevantes: o princípio da inviolabilidade do corpo humano e o de sua indisponibilidade.
Diante disso, caso ocorra à violação desse contrato, provocará a reparação de
dano. Dessa forma, por exemplo, se o esperma de um doador é misturado ao de outros doadores por imperícia, ou até mesmo, por negligência do médico, ou também,
caso cesse o anonimato do doador por imprudência do banco de esperma, nesses
casos, o doador pode responsabilizar tanto o médico quanto o banco, pelos danos
ocorridos, com fundamento do art. 159, do CC.
No que tange aos pacientes receptores há entre estes e o médico um contrato de prestação de serviço e, também, uma relação de dupla obrigação, tanto de
meio quanto de resultado.
Na inseminação artificial, a obrigação de meio se concretiza diante do emprego de todas as técnicas viáveis para atingir a meta desejada, que nesse caso seria a
fecundação. Mas, suponha-se que o médico realize a inseminação artificial em uma
mulher que não ovula e, sendo assim, não poderá ser fecundada por esse meio, e
conseqüentemente, nunca atingiria o fim desejado, que seria a obrigação de resultado, nesse caso, o médico estaria cometendo um erro, seja culposo ou doloso, sendo responsável pelos danos acarretados à paciente.
Ainda, convém dizer que a obrigação de resultado consiste na preservação da
vida e da integridade física da mulher receptora, e neste caso com a ocorrência da
obrigação de meio não exime o médico da obrigação de resultado, vez que o direito à vida e o direito à integridade física estão aqui presentes e não podem ser afastados durante todo o procedimento médico. O fato de pretender gerar uma nova
vida não pode admitir a anulação de sua própria vida.
Portanto, diante das pessoas que sofreram o prejuízo, os centros de reprodução humana serão responsáveis pelos danos ocorridos, em qualquer fase da procriação artificial.
5.3. Nascituros e Nascidos
Consoante já dito no art 4º, do CC, a lei brasileira protege o direito do nascituro (concebido), que ainda não nasceu, desde que venha a nascer com vida. Com
efeito, a responsabilidade dos médicos e dos bancos de sêmen torna-se mais intensa, principalmente com relação à seleção dos doadores de sêmen, a fim de evitar a
transmissão de doenças contagiosas ou hereditárias ao novo ser, sob pena de responsabilizar-se pelos danos a ele causados.
No Brasil, já ocorreu uma situação em que uma mulher foi contaminada pelo
vírus da AIDS após ter se submetido a uma inseminação artificial, segundo o teste-
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munho de Maria Eugênia Lemos Fernandes, diretora do programa de prevenção à
AIDS no Estado de São Paulo.
Portanto, observa-se que, a respectiva matéria é muito importante, e em razão
disso, há a necessidade de uma regulamentação jurídica, onde limitar-se-á a possibilidade de ocorrer um dano ao ser humano, isto é, à sua vida.
CONCLUSÃO
Essa evolução da medicina que trouxe inovações na área de reprodução humana, vem sendo alvo de inúmeras discussões entre médicos, pacientes e juristas.
É imperioso ressaltar que tais discussões fazem surgir questões polêmicas e de
grande valor, porém de difícil solução, como por exemplo: como fica a utilização do
esperma congelado mediante a realização da inseminação ou fecundação post mortem? Qual será o destino dos embriões excedentes? Estes poderão ser alienados,
doados, destruídos ou destinados à pesquisa científica? A gestante de aluguel desiste de entregar o recém nascido ao casal solicitante, qual deve ser a atitude da Justiça? E esta deve ou não ser remunerada?
No entanto, na tentativa de aplicar o Direito – que constitui uma ciência que
busca normatizar e regular a conduta dos indivíduos na sociedade – encontra-se
uma lacuna no tocante às novas descobertas médicos biológicas. E em virtude disso, o Direito ainda não nos apresentou respostas satisfatórias às novas questões surgidas em decorrência do aperfeiçoamento das novas tecnologias. Portanto, a ciência
jurídica deveria sofrer uma reflexão sobre toda a problemática surgida em razão das
novas técnicas de procriação artificial; assim como, o legislador, também, deveria
criar uma legislação pertinente para disciplinar sobre esse tema, já que no Brasil não
há nenhuma legislação específica, contendo apenas uma Resolução do CFM e projetos de lei.
Pois bem, é cediço que esse tema constitui uma realidade no campo médico
e, sendo assim, é imprescindível a criação de uma legislação a fim de adaptá-la a esta
nova realidade. Desta forma, considera-se como fator relevante deste tema no que
diz respeito à utilização das técnicas de procriação artificial com o intuito de devolver a possibilidade de gerar filhos a quem não pode ter naturalmente essa oportunidade, bem como conter a autorização médica.
Além disso, no tocante aos embriões excedentes poderiam ser vedado a destruição ou descartes de sêmen ou embriões, com fundamento legal no art. 5º da CF,
e também, com base no art. 4º do CC, respeitando à vida do nascituro. Ademais,
quanto à mãe de substituição, poderia ser permitido, desde que não haja interesses
pecuniários através de um contrato, exceto a remuneração às despesas médicas.
Insta salientar que, todos os procedimentos teriam que ser prosseguidos mediante a anuência expressa das partes interessadas. Ainda, frise-se bem que, a legislação deveria garantir como direitos do casal que se submete a esse tipo de tecno-
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logia, a informação sobre a possibilidade de êxito e os perigos da técnica utilizada,
recaindo ao médico e ao Centro de Reprodução a responsabilidade solidária em
caso de dano causado, em decorrência de culpa ou dolo.
Por derradeiro, é importante enfatizar que o presente tema de procriação artificial trata essencialmente do direito à vida, em que se estima o bem jurídico de
maior relevância tutelado pela ordem constitucional. E no caso em testilha, há inúmeras indagações a respeito do embrião consideradas de árdua resolução e, no entanto, mister lembrar que tais indagações fazem alusão à representatividade do direito a vida e por isso não deveriam ficar em estado de inação.
Enfim, toda essa discussão pertine à evolução humana, sempre acompanhada
e regulada pelo Direito, o qual, diante de mais esse degrau evolutivo, deve, com seu
caráter de essencialidade social, garantir a perpetuidade da vida e não com sua inércia, paradoxalmente à presente matéria, permitir o seu o caso.
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APONTAMENTOS SOBRE A
RESPONSABILIDADE OBJETIVA:
Luciene Mauerberg Muscari
Advogada,
Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP,
Mestranda em Direito Obrigacional Público e Privado na UNESP e
Professora de Direito Processual Civil da UNIP.
DEFINIÇÃO:
A razão da existência da responsabilidade civil é a busca pelo restabelecimento do equilíbrio econômico e jurídico alterado pela realização do dano.
O tema responsabilidade civil sempre foi bastante tormentoso em todos
os seus aspectos, e como não poderia deixar de acontecer, há polêmica quanto à sua
definição.
A palavra responsabilidade tem uma raiz latina, spondeo, que significa responder a, comprometer-se, e exprime a idéia de equivalência de contraprestação, de
correspondência.
Josserand considera responsável aquele que em definitivo suporta
um dano. Toma a responsabilidade civil no seu sentido mais amplo, tanto que abrange na qualificação de responsável o causador
do dano a si mesmo.1
1 JOSÉ DE AGUIAR DIAS, Responsabilidade Civil, v. 1, p. 15.
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faculdade de direito de bauru
Aguiar Dias é adepto deste pensamento dizendo: “o fato de se confundirem, no mesmo patrimônio, o crédito pela reparação e a obrigação respectiva
não afeta, a nosso ver, a figura da responsabilidade, tal como a entende Josserand”.2
Mazeaud e Mazeaud sustentam que a definição de responsabilidade deve
colocar em confronto duas pessoas, e responsável será aquela que tem o dever
de reparar o dano.3
Para Aguiar Dias, o que os irmãos Mazeaud pretendem com esta definição
é defender, desde já, a teoria da culpa; mas não importa que a culpa tenha primazia por ser mais freqüente, pois este fato não repele o risco, uma vez que há
casos em que a culpa será insuficiente para gerar a responsabilidade, podendo
isto gerar injustiça.4
Alvaro Villaça Azevedo traz a seguinte definição de responsabilidade: “é a situação de indenizar o dano moral ou patrimonial, decorrente de inadimplemento
culposo, de obrigação legal ou contratual, ou imposta por lei”.5
DISTINÇÃO ENTRE RESPONSABILIDADE E OBRIGAÇÃO:
Não obstante, os juristas tratarem os termos obrigação e responsabilidade
como sinônimos, há quem diga que são coisas diferentes. A obrigação é algo que
nasce da vontade das pessoas, quando se vinculam através de um contrato, ou da
lei, que deve ser cumprida; ela resulta do dever, pois quem é obrigado, o é porque
deve.6 Quando não se cumpre um dever, existente em razão de um contrato ou da
lei, aí surge a responsabilidade.
Alvaro Villaça Azevedo faz nítida distinção entre obrigação e responsabilidade.
Ele diz que a obrigação surge de uma relação jurídica originária, ao passo que a responsabilidade surge de uma relação jurídica derivada. Ele diz que há obrigação sem
responsabilidade, como nos casos das dívidas de jogo e das dívidas prescritas. Por
outro lado, a responsabilidade pode existir sem a obrigação, como no caso do fiador, que não tem obrigação de pagar o aluguel, mas é responsável pelo seu pagamento se o inquilino não o fizer. Trata-se de uma relação jurídica derivada, que surge com o descumprimento da obrigação originária.7
2 Ob. cit., p. 16.
3 Ob. cit.
4 Ob. cit.
5 Teoria Geral das Obrigações, p. 274.
6 ÀLVARO VILLAÇA AZEVEDO, Teoria Geral das Obrigações, p. 37.
7 Ob. cit., p. 38.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
145
ESPÉCIES DE RESPONSABILIDADE:
Há duas principais espécies de responsabilidade, a contratual e a extracontratual, também chamada de aquiliana.
A responsabilidade contratual está situada no campo da inexecução das obrigações contratuais, e não é o objeto de estudo neste trabalho.
A responsabilidade extracontratual ou aquiliana é aquela que surge da inobservância de um preceito legal. É chamada de aquiliana, pois foi estabelecida no Direito Romano pela Lex Aquilia de Damno, do séc. III a.C.
A partir da responsabilidade extracontratual surgem duas subespécies: a responsabilidade delitual baseada na idéia de culpa, e a responsabilidade sem culpa, baseada no risco.
A responsabilidade subjetiva, para que se configure, é necessário indagar-se
se o sujeito agiu dolosamente ou culposamente. Até agora, ela teve como fundamento legal o art. 159 do Código Civil, mas no novo código, é prevista pelo art.
186, que acrescenta a menção expressa ao dano moral e não fala em reparação do
dano, mas em ato ilícito; e a reparação do dano é agora prevista nos artigos 927
e seguintes.8
A responsabilidade objetiva é aquela baseada em dados meramente objetivos,
que são o dano, a atividade humana e o nexo de causalidade; não se perquirindo
qualquer elemento subjetivo. É esta espécie de responsabilidade que nos propusemos estudar e passaremos, a partir de agora, a nos reportar somente a ela.
TEORIA OBJETIVA:
Segundo Àlvaro Villaça Azevedo, existem duas categorias de responsabilidade
objetiva: “pura” e “impura”.9
A responsabilidade objetiva impura é aquela que resulta de ato culposo de terceiro, que deve estar vinculado à atividade do indenizador, como acontece na responsabilidade civil do Estado por dano causado por seus agentes (art. 37, § 6º, CF).
É chamada de impura, pois em rigor, o elemento culpa existe, ainda que sirva somente para que o Estado tenha direito de regresso.
A responsabilidade objetiva pura é a decorrente do simples exercício de determinada atividade que oferece risco, ainda que não haja culpa de qualquer dos envolvidos, ela existe em razão da lei; e nestes casos, não há direito de regresso. É o
caso das atividades perigosas, como por exemplo, as atividades nucleares, que são
regulamentadas por lei, mas que oferecem um risco potencial para o ser humano e
8 art. 186: “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a
outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
9 Teoria Geral das Obrigações, p. 281.
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faculdade de direito de bauru
para a natureza; nestes casos, os operadores de tais atividades responderão, independentemente de culpa.10
Para este ilustre civilista, caberá somente à lei fixar os casos de responsabilidade objetiva, mormente no que tange à responsabilidade objetiva pura. Segundo ele,
é o legislador quem deve dizer se a atividade é perigosa, ou não.11
SURGIMENTO DA TEORIA DO RISCO:
Os precursores da doutrina do risco foram Thomasius e Heineccius, que
eram adeptos da escola do direito natural no séc. XVIII. Eles entendiam que o
autor do dano deveria ser responsabilizado sempre, independentemente de ter
agido com culpa, ou não. Eles engendraram este raciocínio com o fito de atribuir responsabilidade às pessoas sem discernimento e, portanto, incapazes de
culpa.12
Este princípio foi consagrado no código alemão, mas desapareceu em razão
da influência do direito romano durante o séc. XIX.
O código prussiano, de 1794, responsabilizava as pessoas que tivessem a guarda de animal, não utilizado na economia rural ou urbana, por danos que este causasse, “sem culpa especial de sua parte” (do guardião).13
O código austríaco, de 1811, “instituía a reparação por ato praticado sem culpa ou involuntariamente e a influência da fortuna de uma e outra parte na atribuição do ressarcimento”.14
Apesar de a doutrina do risco haver sido mencionada pela primeira vez pelos alemães, os franceses foram os seus maiores divulgadores através de Saleilles e Josserand.
A doutrina objetiva ganhou o nome de “teoria do risco” através da literatura francesa.15
Saleilles e Josserand procuraram conciliar a responsabilidade objetiva com o
artigo 1.382 do Código de Napoleão, buscando não sacrificar a vítima com a comprovação da culpa, que é algo difícil de se conseguir.16
Aguiar Dias deixa entender que a introdução desta teoria recebeu bastante influência de um sentimento de solidariedade social e revolta pela desigualdade social
que existia na época. É interessante que, não obstante os adeptos da doutrina tradicional defenderem a dignidade da pessoa humana, que na opinião deles seria sacrificada pela teoria do risco, acabam escarnecendo da eqüidade e da solidariedade so-
10 Ob. cit., p. 282.
11 Ob. cit.
12 JOSÉ DE AGUIAR DIAS, Responsabilidade Civil, v. 1, p. 58.
13 Ob. cit., ps 58 e 59.
14 Ob. cit.
15 Ob. cit., p. 64.
16 CÁIO MÁRIO, Responsabilidade Civil, p. 287.
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cial, que foram as molas propulsoras do crescimento da teoria do risco, dizendo que
estas eram “formas de mera caridade”.17
Raymond Sailelles baseou-se no próprio Código de Napoleão (que adota a
teoria da culpa) para proclamar a teoria do risco. Ele fez uma interpretação do vocábulo faute, dizendo que o art. 1.384 utilizou tal termo no sentido de fait, que equivale à causa determinante de qualquer dano, ou seja, na sua interpretação, ao falar
em culpa, o legislador estava usando esta palavra no sentido de causa, e não no sentido de ato ilícito.18
George Ripert, não abandonando a idéia de culpa, adere à nova doutrina, que
prefere chamar de responsabilidade objetiva e não de teoria do risco. Ele argumenta que todo prejuízo deve ser reparado por quem causou, e diz que todo o problema da responsabilidade civil resolve-se na questão da causalidade.19
CRÍTICAS E DEFESAS:
A primeira crítica registrada na doutrina que podemos mencionar é a de que
a teoria objetiva é materialista, meramente patrimonial, e que isto não se coaduna
com o direito, que regulamenta as relações entre as pessoas, não se podendo eliminar a pessoa e a sua vontade.
Alvino Lima rebate dizendo que a teoria do risco se assenta em princípios de
justiça e eqüidade, na democracia e na igualdade, pois desfaz a superioridade econômica de empresas poderosas, e por isso a acusação de materialismo não deve
subsistir.20
Os irmãos Mazeuad dizem que a doutrina do risco coloca o interesse social
em primeiro lugar negando o valor do indivíduo em si mesmo, e acrescentam que
o dano sofrido por um particular não resulta em perigo para a sociedade.21
Esta crítica pode ser rebatida sob o argumento de que o interesse social também atinge o indivíduo e não somente aquilo que diz respeito à sua esfera privada.
Os mencionados civilistas franceses ainda argumentam dizendo que a teoria
do risco poderia levar o homem à inércia. O que podemos mencionar frente a esta
crítica é o fato de que na teoria clássica também existe a culpa presumida, e isto não
levou à inércia do homem.
Uma outra crítica que fazem, e que se aproxima desta última, é a de que a adoção da teoria objetiva colocaria a economia em perigo, pois o risco da atividade levaria os produtores a abandonarem suas atividades em virtude dos encargos que
17 Ob. cit.
18 CÁIO MÁRIO, ob. cit., p. 22.
19 Ob. cit., p. 24.
20 Ob. cit., p. 82.
21 Ob. cit., ps 78 e 79.
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faculdade de direito de bauru
dela poderiam surgir.22 Esta crítica também não procede, pois as empresas já incluem tais gastos em seus passivos.
OUTRAS TEORIAS:
Com o surgimento da teoria do risco, sugiram outras teorias, como a do risco proveito, pela qual a responsabilidade deve recair em quem tem lucro com a atividade causadora do dano, e este proveito tem uma noção econômica.
Há também, a teoria do risco profissional, que diz respeito à responsabilidade do empregador pelos acidentes ocorridos com os seus empregados, no trabalho ou por ocasião dele, está na legislação de acidentes do trabalho.
Existe a teoria do risco integral, pela qual não se indaga em como ou porque
ocorreu o dano, bastando que este seja apurado e a sua ligação a um fato qualquer, sem
possibilidade de rompimento do nexo causal. Esta teoria não teve aceitação no direito
privado, apenas no direito público, e mesmo assim, em casos específicos.23
Pela teoria dos riscos anormais somente os atos anormais geram a responsabilidade, e a vítima deve provar o caráter anormal do ato, que é aferido de acordo
com a moral e os costumes.24
ELEMENTOS DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA:
A responsabilidade civil no sistema brasileiro tem como fundamento a teoria
subjetiva; e em nosso código civil o principal dispositivo concernente à responsabilidade civil tem sido o art. 159, que se refere à responsabilidade por ato ilícito. Ato
ilícito é “a ação ou omissão culposa com a qual se infringe, direta e imediatamente,
um preceito jurídico do direito privado, causando dano a outrem”.25
A culpa mencionada nesta definição é em sentido amplo, abrangendo o dolo,
que é a violação intencional de um dever jurídico, e também a culpa em sentido estrito, que é a violação por negligência, imprudência ou imperícia.
É interessante destacar que o art. 159 e o art. 186 do novo código não se referem à imperícia, mas somente à negligência e à imprudência.
Carlos Roberto Gonçalves diz que o termo negligência é usado pelo código
em sentido amplo e abrange a idéia de imperícia, pois tem um sentido de omissão
ao cumprimento de um dever.26Ele diz que a negligência é uma espécie de preguiça
psíquica, em razão da qual não se prevê aquilo que seria previsível.
22 Ob. cit., 79 e 80.
23 CÁIO MÁRIO, ob. cit., p. 300.
24 Ob. cit., p. 303.
25 ORLANDO GOMES, Introdução ao Direito Civil, p. 416.
26 Ob. cit., p. 10.
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Desse modo, para que haja responsabilidade subjetiva são necessários estes
elementos: um ato ilícito, no qual já está embutida a idéia de conduta culposa, o
dano e o nexo de causalidade.
Com relação à responsabilidade objetiva, os elementos são em menor número e de comprovação mais fácil, são eles o fato, o dano e o nexo de causalidade.
Deve haver um fato causador do dano, uma vez que este é um pressuposto material
da existência do direito, ou seja, todo direito nasce de um fato, podendo ser um fato
humano, ou não.
Na doutrina encontramos a definição de fato jurídico como sendo todo
acontecimento que direta ou indiretamente provoca um efeito jurídico, abrangendo
os fatos naturais e os fatos humanos.
Os fatos naturais geram conseqüências jurídicas, como um terremoto uma
tempestade ou um maremoto, mas para efeito de responsabilidade civil eles são
causa de isenção de responsabilidade, pois entram na categoria de fatos que acontecem por força maior (que para alguns doutrinadores, seria caso fortuito, como
abordaremos mais adiante, esta classificação não é pacífica na doutrina nacional).
Os atos jurídicos são todos os atos humanos que surgem da vontade do homem, sejam intencionais, ou não. Estes abrangem os atos lícitos e os ilícitos (alguns
autores entendem que o ato ilícito não é jurídico, mas não há como negar que ele
gera efeitos jurídicos). O ato lícito pode ser um negócio jurídico, conforme seja
praticado com a intenção específica de gerar efeitos jurídicos, ao passo que se esta
intenção não existe, estamos diante de um ato meramente lícito.27
Com relação à responsabilidade civil objetiva, como já dissemos, ela existe em
razão de um dano causado por um ato qualquer, lícito ou ilícito, pois não há necessidade de se perquirir isto. Dissemos fato porque muitas vezes o responsável não
praticou ato determinado, mas apenas o fato de possuir um animal que causa dano
a alguém, ou de ser morador de um prédio do qual foi lançado um objeto que causou dano já é suficiente para gerar responsabilidade.
Orlando Gomes diz o seguinte: “quando a responsabilidade é determinada
sem culpa, o ato não pode, a rigor, ser considerado ilícito”.28 Salvo nos casos de responsabilidade do Estado em que este tem direito regressivo contra o agente que
agiu com dolo ou culpa; responsabilidade objetiva impura já mencionada aqui.
Outro elemento da responsabilidade objetiva é o dano, sem ele não existe direito a indenização. No campo da teoria subjetiva sem ele não há ato ilícito, pois o
dano integra o conceito de ato ilícito. A obrigação de reparar, na teoria subjetiva, é
uma sanção pelo cometimento de um ato ilícito. “Se do erro de conduta não resultar dano, o ato, embora culposo, não tem relevância no campo do direito civil”.29
27 SILVIO DE SALVO VENOSA, Direito Civil, v. 1, p. 260.
28 Ob. cit., p. 417.
29 ORLANDO GOMES, ob. cit., p. 417.
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No que tange à responsabilidade objetiva, não importa o fato de o ato não ser
ilícito, pois esta teoria existe justamente em função daquelas hipóteses em que, pela
teoria subjetiva, o prejuízo ficaria sem reparação. Desse modo, nas duas espécies de
responsabilidade civil a sua presença é imprescindível.
É interessante lembrar que, como diz Carlos Roberto Gonçalves, a multa penitencial e as arras penitenciais não são casos de indenização sem dano, mas são casos de dispensa da alegação do prejuízo sofrido.30
Em um sentido amplo, o dano é a lesão de qualquer bem jurídico, e nisto estamos incluindo o dano moral.
Alguns autores definem dano como sendo “a diminuição ou subtração de um
bem jurídico, para abranger não só o patrimônio, mas a honra, a saúde, a vida, suscetíveis de proteção”.31
No dano patrimonial se inclui tudo aquilo que efetivamente se perdeu e aquilo que se deixou de ganhar, que são o dano emergente e o lucro cessante, e é claro
que estamos nos referindo àquilo que é apreciável em dinheiro.
O dano moral, mesmo antes da Constituição Federal de 1988 já estava presente na nossa legislação através dos artigos 1.547, 1.548, 1.549, todos do Código Civil,
mas somente a partir de 88 passou a ser mencionado expressamente na Constituição Federal no art. 5º, V e X. Como já dissemos acima, o projeto do Código Civil prevê expressamente a indenização do dano moral no art. 186.
Yussef Said Cahali ressalta que a caracterização do dano moral tem sido feita na
doutrina sob a forma de negativa, ou seja, o dano moral é aquele não patrimonial.32
Segundo Wilson Melo da Silva, os danos morais, ou prejuízos morais, são
aqueles “decorrentes das ofensas à honra, ao decoro, à paz interior de cada qual, às
crenças íntimas, aos sentimentos afetivos de qualquer espécie, à liberdade, à vida, à
integridade corporal”.33
O dano moral pode ser classificado em objetivo ou subjetivo. O objetivo é
aquele que atinge a imagem da pessoa perante a sociedade, ao passo que o dano
moral subjetivo é o sofrimento interior. Geralmente, do primeiro surge o segundo.34
Há também o dano estético, que tem repercussão material e também moral;
se a pessoa dependia de uma aparência agradável em sua profissão sofrerá um prejuízo patrimonial, além dos gastos com cirurgias reparatórias. O dano moral, a meu
ver, sempre existirá em qualquer hipótese de dano estético. Aliás, segundo Tereza
Ancona Lopes, o dano estético é dano moral.35
30 Responsabilidade Civil, p. 164.
31 Ob. cit., p. 163.
32 Dano Moral, p. 720.
33 O Dano Moral e sua Reparação, p. 728.
34 TEREZA ANCONA LOPES, O Dano Estético, Responsabilidade Civil, p. 254.
35 Ob. cit., p. 19.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
151
Segundo Alvaro Villaça Azevedo não se pode cogitar de dano moral em caso
de responsabilidade objetiva pura, que de acordo com a classificação introduzida
por este civilista, é aquela que existe sem que haja culpa, ainda que de terceiro, mas
porque a lei assim determina.36
Com a devida vênia, discordamos do ilustre civilista, pois é possível que alguém sofra dor interior em razão de um dano físico provocado por um acidente
nuclear, que é um dos casos de responsabilidade objetiva pura em nosso ordenamento.
O terceiro elemento é o nexo de causalidade. Tanto no âmbito do direito
penal quanto no direito civil é preciso estabelecer-se qual o fato que é a causa do
dano, e isto se torna ainda mais difícil quando surgem concausas.
Segundo Renè Savatier “um dano só produz responsabilidade, quando ele
tem por causa uma falta cometida ou um risco legalmente sancionado”.37Nesta última parte, o autor está se referindo à responsabilidade objetiva. Desse modo, o nexo
causal é tão importante na doutrina subjetiva quanto na teoria do risco.
Com relação a este elemento na doutrina civilista existem três teorias: a teoria da equivalência, a teoria da causalidade adequada e a teoria da causa necessária.
A teoria da equivalência, ou da conditio sine qua non, que no direito penal é a mais aceita, determina que será causa do dano toda circunstância que tenha
contribuído para a sua produção.
A crítica que se faz a esta teoria, tanto na doutrina penal quanto na civil, é aquilo que os penalistas chamam de regressus ad infinitum, ou seja, diz respeito à extensão desta equivalência das condições, pois se levarmos este raciocínio até as últimas conseqüências, o fabricante da arma de fogo com que se praticou um homicídio poderia ser obrigado a indenizar a família da vítima.
Com relação ao direito penal, Damásio E. de Jesus diz que esta crítica não representa um obstáculo à adoção desta teoria, pois tal fabricante não teria agido nem
com dolo e nem com culpa.38
A segunda teoria é a da causalidade adequada, pela qual será considerada
causa somente a circunstância que normalmente é capaz de provocar o resultado,
não somente naquela situação específica.
Segundo Rümelin, a causa deverá ser analisada, não sob o ângulo do agente,
mas sob o ponto de vista de um observador normal.39 O juiz deverá eliminar os fatos que sejam menos relevantes, que seriam indiferentes à efetivação do dano, considerando aquele fato que, dentre outros, normalmente causaria aquele resultado.40
36 Teoria Geral das Obrigações, p. 278.
37 Apud, CARLOS ROBERTO GONÇALVES, Responsabilidade Civil, p. 157.
38 Direito Penal, Parte Geral, vol. 1, p. 218.
39 WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, Curso de Direito Civil, vol. 1, p. 279
40 CARLOS ROBERTO GONÇALVES, Responsabilidade Civil, p. 157.
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faculdade de direito de bauru
A terceira teoria, e mais aceita pela doutrina é a da causalidade direta e
imediata, que busca a solução da causalidade no art. 1.060 do Código Civil, não
obstante ele se referir à responsabilidade contratual.41
O critério usado na fixação das condições necessárias do dano é o de “se ater
exclusivamente às causas mais próximas, excluindo as mais longínquas”.42 É o caso,
por exemplo, do motorista que fere um transeunte, que vem a morrer em razão da
imperícia do médico que o assistiu. Neste caso, não há responsabilidade do motorista pelo evento morte, apenas pela lesão que o levou àquele hospital. Não há nexo
de causalidade entre o acidente e a morte. Damásio E. de Jesus chama esta segunda circunstância (imperícia do médico) de causa superveniente relativamente independente.43
Existem fatos que podem excluir a responsabilidade civil, mas apenas alguns
podem romper o nexo causal e em razão disto isentar de qualquer obrigação de indenizar. Estes fatos são: o caso fortuito e a força maior, a culpa da vítima e o fato de
terceiro.
O caso fortuito e a força maior são casos em que o evento danoso é uma fatalidade que não pode ser imputada a ninguém. A eles se refere o art. 1.058, do Código Civil, que diz:” o caso fortuito, ou de força maior, verifica-se no fato necessário,
cujos efeitos não era possível evitar, ou impedir”.
Não há qualquer implicação prática na distinção entre caso fortuito e força
maior, pois o código dá o mesmo tratamento a ambos, mas mesmo assim, a doutrina faz certa distinção, que não é pacífica, como já dissemos anteriormente.
De acordo com Cáio Mário, caso fortuito é o acontecimento natural, derivado
da força da natureza, como um raio, uma inundação, terremoto etc, ao passo que
força maior será o acontecimento ligado a um elemento humano, como a ação das
autoridades (factum principis), uma revolução, um roubo etc.44
Washington de Barros Monteiro,
afirma a força maior de eventos físicos ou naturais, de índole
ininteligente, como o granizo, o raio e a inundação; o caso fortuito decorre de fato alheio, gerador de obstáculo, que a boa vontade
do devedor não logra superar, como a greve, o motim e a guerra45.
Para que se configure o caso fortuito ou força maior é preciso que o evento
não possa ser previsto, que seja superveniente e inevitável.
41 GUILHERME COUTO DE CASTRO, A Responsabilidade Objetiva no Direito Brasileiro, p. 14.
42 WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, Curso de Direito Civil, vol. 1, p. 278.
43 Ob. cit., p. 222.
44 CÁIO MÁRIO, ob. cit., p. 323.
45 Ob. cit., vol. 4, p. 331.
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Há o rompimento do nexo causal, também, quando o dano é produzido por
culpa exclusiva da vítima. Nestes casos, o causador do dano é mero instrumento do acidente, pois não há liame de causalidade entre o seu ato e o dano causado
à vítima. É o caso, por exemplo, de um motorista que é surpreendido por um suicida, ou por uma pessoa embriagada em uma rodovia de alta velocidade.46
O fato de terceiro é causa de rompimento do nexo de causalidade quando
este fato é causa exclusiva do prejuízo causado à vítima. Isto acontece porque o fato
de terceiro funciona como o caso fortuito ou a força maior, será imprevisível e inevitável. 47Podemos tomar como exemplo, o caso de um acidente de veículos em que
um veículo atravessa o sinal vermelho e choca-se com outro, que acaba atropelando a vítima na calçada em razão do forte impacto; com relação ao motorista do segundo veículo, há rompimento do nexo de causalidade.
RESPONSABILIDADE POR COISAS LANÇADAS DE IMÓVEIS:
O art. 1.529, do CC dispõe que “aquele que habita uma casa, ou parte dela,
responde pelo dano proveniente das coisas que dela caírem ou forem lançadas em
lugar indevido”. Tal dispositivo foi repetido no projeto do novo código, no art. 938,
com redação semelhante: “aquele que habitar prédio, ou parte dele, responde pelo
dano proveniente das coisas que dele caírem ou forem lançadas em lugar indevido”.
Ainda que o habitante da casa alegue que o ato causador do dano foi praticado por um visitante, não ficará livre da obrigação de indenizar, pois se trata de responsabilidade objetiva.
Há casos em que um objeto é lançado de um prédio de apartamentos, sendo
impossível a identificação do responsável; para estas situações, existem doutrinadores que entendem que o condomínio deverá ser responsabilizado.48
Cáio Mário adota entendimento em sentido oposto dizendo:
é necessário assentar que, se de um edifício coletivo cai ou é lançada uma coisa, a inteligência racional do art. 1.529 não autoriza condenar todos os moradores, rateando a indenização ou impondo-lhes solidariedade.49
Tratando-se de responsabilidade objetiva, o habitante do prédio somente conseguirá se eximir se provar que houve rompimento do nexo causal.
46 CARLOS ROBERTO GONÇALVES, ob. cit., p. 221.
47 Ob. cit., p. 223.
48 GUILHERME COUTO DE CASTRO, A Responsabilidade Civil Objetiva no Direito Brasileiro, p 34.
49 Ob. cit., p. 125.
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faculdade de direito de bauru
RESPONSABILIDADE POR FATO DE TERCEIRO:
Esta espécie de responsabilidade é prevista pelo Código Civil no art. 1.521 e é
uma exceção à regra de que cada um é responsável por seus próprios atos (unuscuique sua culpa nocet). Esta regra existe devido a uma relação jurídica que há entre estas pessoas.
Os casos previstos na legislação são: os pais pelos atos dos filhos menores; o
tutor ou curador por seus tutelados ou curatelados; o patrão por seus empregados;
os donos de hotéis pelos seus hóspedes e aqueles que gratuitamente houverem participado nos produtos dos crimes.
De todos estes casos, a única hipótese que independe, segundo o código
(1916), de comprovação de culpa é a última que mencionamos acima, que é prevista no Inciso V do art. 1.521, e isto acontece por força da redação do art. 1.523.
Trata-se de responsabilidade indireta fundamentada na culpa presumida, pois
de acordo com a doutrina e a jurisprudência, cabe às pessoas mencionadas nos Incisos I a IV, do art. 1.521, a prova de que não procederam com culpa, não obstante
o art. 1.523 dizer expressamente que tais pessoas, exceto o caso do inciso V, somente serão responsabilizadas se ficar comprovado que elas concorreram para o dano
com culpa, ou negligência.
Para alguns civilistas este artigo 1.523 deve ser considerado como não escrito,
tendo em vista que é pacífico o entendimento de que se trata de culpa presumida.50
Há doutrinadores que indagam se não se trataria de responsabilidade objetiva, já que a culpa presumida não está muito distante disto.51
Esta discussão perderá lugar com a entrada em vigor do novo código civil,
pois o art. 932 prevê as mesmas hipóteses de responsabilidade por fato de terceiro,
mas o art. 933 deixa claro que em alguns casos a responsabilidade é objetiva: “as pessoas indicadas nos ns. I a III do artigo anterior, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos”.
RESPONSABILIDADE PELA GUARDA DA COISA:
Trata-se da responsabilidade do guardião de coisas animadas e inanimadas.
Primitivamente foi chamada de “responsabilidade pelo fato da coisa”, mas chegouse à conclusão de que uma “coisa” não é capaz de fato, pois haverá sempre um ato
humano que desencadeará, de alguma forma, aquele fato.
Como responsabilidade pela guarda de coisa animada o código prevê a obrigação de o dono ou detentor do animal de ressarcir o dano causado por este, que
está prevista no art. 1.527. Esta responsabilização somente será afastada se o guar50 CÁIO MÁRIO, Ob. cit., p. 96.
51 GUILHERME COUTO, ob. cit., p. 36.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
155
dião provar em sua defesa os seguintes fatos: que guardava e vigiava o animal com
cuidado preciso; que o animal foi provocado por outro; que houve imprudência do
ofendido; que o fato resultou de caso fortuito ou força maior.
Não se trata de mera presunção de culpa, pois na doutrina e na jurisprudência é pacífico o entendimento de que o “cuidado”, para elidir a responsabilidade,
não é aquele normal, mas o cuidado preciso, ou seja, aquele necessário para evitar
o dano. Isto quer dizer que a responsabilidade, nestes casos, é objetiva mitigada.52
A redação do novo código encampou o entendimento que já era pacífico na
doutrina e jurisprudência, pois menciona como defesa somente a culpa da vítima e
a força maior.53
Com relação à guarda de coisa inanimada, o código não disciplina esta matéria de maneira específica. Desse modo, aplica-se a regra geral do art. 159, que é de
responsabilidade subjetiva.
DIREITO DE VIZINHANÇA:
Com relação ao direito de vizinhança, previsto no código nos artigos 544
(1.277 e seguintes no novo código), quando uma obra em um terreno causa dano
ao prédio vizinho, mesmo que todos os recursos de engenharia tenham sido utilizados, o dono da obra não se isentará de ressarcir o dano. Desse modo, a responsabilidade é objetiva, e além disso, é de natureza propter rem, ou seja cabe tal obrigação àquele que for o titular do direito real.
Haverá isenção somente quando ficar provado que o dano não ocorreu pela
construção, mas em razão da precariedade do próprio prédio prejudicado, pois neste caso, haverá o rompimento do nexo de causalidade.54
RESPONSABILIDADE POR DANOS CAUSADOS POR ACIDENTES
NUCLEARES:
Existem atividades que o homem exerce que não constituem atos ilícitos, são
politicamente corretas e até permitidas pela legislação, mas são atividades consideradas perigosas. Atividades perigosas são aquelas geradoras de riscos à vida, à saúde
e outros bens protegidos pela legislação.
Para Carlos Alberto Bittar elas podem ser de duas espécies: aquelas que geram perigo em razão de sua natureza (exploração de minérios, fabricação de explosivos, manipulação de certos produtos químicos) e aquelas que são perigosas
52 Ob. cit., p. 39.
53 art. 936: “O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou
força maior”.
54 GUILHERME COUTO, ob. cit., ps. 44 e 45.
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faculdade de direito de bauru
em razão dos meios utilizados (como as que utilizam máquinas e aparatos complexos).55 As atividades nucleares podem ser classificadas como perigosas em razão de sua natureza.
“Por atividade nuclear entende-se toda aquela que promova, direta ou indiretamente, a liberação ionizante, independentemente da finalidade a que se destina”.56
Até o advento da Constituição de 1988 esta atividade estava sendo regulamentada somente a nível infraconstitucional pela lei 6.453/77, que foi recepcionada e
continua em vigor.
O art. 21, XXIII, “c”, da Constituição Federal diz que “a responsabilidade civil
por danos nucleares independe da existência de culpa”. Por sua vez, o art. 4º, da lei
6453/77 diz que “será exclusiva do operador da instalação nuclear, nos termos desta lei, independentemente da existência de culpa, a responsabilidade civil pela reparação de dano nuclear por acidente nuclear”.
Desse modo, não há dúvida de que se trata de responsabilidade objetiva, e
para boa parte da doutrina, a esta atividade aplica-se a doutrina do risco integral, que
determina a obrigação de indenizar, independentemente de culpa, sendo suficiente
o dano e o nexo causal, sem que haja possibilidade de interrupção da causalidade.57
Celso Fiorillo adota este entendimento:
em relação à responsabilidade civil pelos danos causados por atividades nucleares, será aferida pelo sistema da responsabilidade
objetiva, conforme preceitua o art. 21, XXIII, c, da Constituição Federal. Com isso, consagraram-se a inexistência de qualquer tipo de
exclusão de responsabilidade (incluindo caso fortuito ou força
maior), a ausência de limitação no tocante ao valor da indenização e a solidariedade da responsabilidade.58
Não é pacífica a utilização da expressão “risco integral”, justamente por existirem
as escusas do art. 8º da lei federal, e também a culpa exclusiva da vítima, nos termos do
art. 4º, da mesma lei, que rompem o nexo causal e afastam a responsabilidade.59
Antes mesmo do advento da Constituição Federal de 1988 a doutrina já entendia que as escusas eram permitidas somente nos casos expressos na legislação especial, que devem ser encarados restritivamente.60
55 Responsabilidade Civil nas Atividades Perigosas, Responsabilidade Civil - Doutrina e Jurisprudência, p.91.
56 CELSO ANTONIO PACHECO FIORILLO, Curso de Direito Ambiental Brasileiro, p. 159.
57 GUILHERME COUTO DE CASTRO, ob. cit., ps. 71 e 72.
58 Ob. cit., p. 160.
59 artigo 8º, da lei 6453/77: “O operador não responde pela reparação do dano resultante de acidente nuclear causado diretamente por conflito armado, hostilidades, guerra civil, insurreição ou excepcional fato da natureza”.
60 GUILHERME COUTO, ob. cit, p. 73.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
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Trata-se de responsabilidade do Estado, pois a União tem o monopólio sobre
a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados (art. 177, da Constituição
Federal).
É possível a descentralização desta atividade, mas deverá ser dentro da própria administração; e quando isto acontecer, a União será responsável solidária em
caso de dano (art. 14 e 15, da lei 6453/77).
Com relação à indenização, o art. 9º da lei federal limita o seu montante a um
milhão e quinhentos (1.500.000) OTNs.61 Por outro lado, após o advento da Constituição de 1988, surgiu o entendimento de que esta limitação somente se aplicará naqueles casos expressos na lei federal, pois a carta magna não mencionou qualquer
limite e a sua abrangência é maior.62
RESPONSABILIDADE DO ESTADO:
Com relação à responsabilidade extracontratual do Estado várias teorias já foram
formuladas, como por exemplo: a teoria da irresponsabilidade, teoria civilista da culpa,
da culpa do serviço, a teoria do risco administrativo e a teoria do risco integral.
A teoria da irresponsabilidade foi introduzida na época dos Estados absolutistas;
baseava-se na infalibilidade real e na idéia de soberania: the king can do no wrong.63
Ela foi abandonada pelos EUA e pela Inglaterra por meio do Federal Tort
Claimn Act de 1946, e do Crown Proeceding Act, de 1947.64
Após a fase da irresponsabilidade, adotou-se a teoria civilista da culpa, que fazia uma separação entre atos de império e atos de gestão. Atos de império eram os
praticados com as prerrogativas de autoridade, impostos unilateralmente e coercitivamente; por seu turno, os atos de gestão eram aqueles praticados pela administração em situação de igualdade com os particulares. Somente gerava responsabilidade os atos de gestão, e era uma responsabilidade subjetiva. Essa doutrina foi acolhida pelo Direito brasileiro e passou a ser prevista no art. 15 código civil.65
Finalmente a responsabilidade do Estado deixou de ser tratada através de conceitos civilistas e passou a ser regulada pelo direito público. Isto começou por influência do caso Blanco, em 1873, na França.66
Posteriormente foi introduzida a teoria da culpa do serviço, segundo a qual
haveria responsabilidade do Estado quando o serviço não funcionasse, funcionasse
61 Equivalente a sete milhões, quinhentos e setenta e seis mil, novecentos e quatro reais (R$ 7.576.904,03).
62 GUILHERME COUTO, ob. cit. p. 78
63 HELY LOPES MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, p. 546.
64 MARIA SYLVIA DI PIETRO, Direito Administrativo, p. 410.
65 Ob. cit., ps. 410 e 411.
66 Uma menina, Agnés Blanco foi atropelada, em uma rua na cidade de Bordeaux, por um vagão da Cia. Nacional
de Manufatura do Fumo.
faculdade de direito de bauru
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mal ou atrasado, incidindo a obrigação de indenizar independentemente de culpa
do agente.67
Em seguida, veio à tona o surgimento da teoria do risco administrativo, que
não leva em conta a culpa, mas apenas o nexo causal; por ela a atuação do Estado
envolve um risco de dano inerente.
Existe uma diferença importante entre a teoria do risco administrativo e a teoria do risco integral. Hely Lopes Meirelles entende que a teoria do risco integral é
uma modalidade exagerada da teoria do risco, que foi abandonada por levar a situações extremas, pois de acordo com esta teoria, como já dissemos acima, não há
rompimento do nexo de causalidade, nem por culpa exclusiva da vítima, culpa de
terceiro, caso fortuito ou força maior.68
A teoria do risco administrativo é hoje prevista pela Constituição Federal de
1988, no art. 37, § 6º, que determina que:
as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus
agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurando o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Neste mesmo dispositivo, estão presentes a responsabilidade objetiva do Estado e a responsabilidade subjetiva do agente público, que será discutida em ação
regressiva do Estado em face de seu funcionário.
RESPONSABILIDADE CIVIL NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR:
Até o advento da lei n. 8.078/90 a única proteção do consumidor era aquela
dada pelo Código Civil quanto aos vícios redibitórios, pela qual o fornecedor somente responderia pelos vícios ou defeitos ocultos que tornassem a coisa imprópria à
sua utilização, ou que diminuíssem o seu valor (art. 1.101).
Desde 1990, é o Código de Defesa do Consumidor que regulamenta a relação
jurídica entre fornecedor e consumidor, inclusive a responsabilidade civil resultante
deste relacionamento.
De acordo com o mencionado código, consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final (art. 2º); ao passo que fornecedor será toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou
estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de
produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços (art. 3º).
67 MARIA SYLVIA DI PIETRO, ob. cit., p. 412.
68 Ob. cit. p. 548.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
159
Para que uma relação jurídica seja considerada de consumo é necessário que
estejam presentes ambos os conceitos. Quando o empresário adquire bens ou serviços para tornar a inseri-los no mercado de consumo, embora transformados, não
é considerado consumidor, pois ele não age como destinatário final, e neste caso a
lei do consumidor não é aplicável.69
O Código do Consumidor adotou a teoria do risco do empreendimento (ou empresarial) que vem para se contrapor à teoria do risco do consumo, que vigia no sistema antigo, tendo em vista a pouca proteção ao consumidor.70
Por esta teoria qualquer pessoa que exercer atividade como fornecedora deverá
responder pelos riscos ou defeitos que os bens ou serviços oferecerem, sem que haja
qualquer verificação de culpa.Trata-se, sem dúvida alguma, de uma responsabilidade
calcada somente em elementos objetivos, pelo simples fato de se realizar atividade prevista na lei como de fornecimento de produtos ou serviços.
A responsabilidade do fabricante, produtor, construtor, importador, é prevista
pelo art. 12, do Código do Consumidor, que diz expressamente que estes responderão
pelos danos causados aos consumidores em virtude de defeito no produto independentemente de culpa. O produto será considerado defeituoso quando não oferecer a
segurança que dele se espera nos termos dos incisos do § 1º, do art. 12.
Com relação ao fornecedor de serviços, o art. 14 estabelece, também, que ele
será responsável pela reparação dos danos provocados pelos serviços que oferecer, independentemente da existência de culpa.
Desse modo, para que o fornecedor de bens e produtos e o fornecedor de serviços sejam responsabilizados por danos causados por defeitos, basta que o consumidor prove o dano e o nexo de causalidade, ainda com a possibilidade de inversão do
ônus probatório, nos termos do art. 6º, VIII.
Os artigos 12 e 14, acima citados, dizem respeito à responsabilidade pelo fato do
produto, que é o acidente de consumo, que não se confunde com o vício do produto.
“Entende-se por fato do produto o acontecimento externo que causa dano material ou moral ao consumidor, decorrente de um defeito do produto”. O defeito pode
ser de concepção (criação, projeto, fórmula), de produção (fabricação, construção,
montagem), ou de comercialização (informações, publicidade, apresentação etc).71
O fato do serviço é todo dano causado por fornecimento de serviço defeituoso, que
é aquele que não oferece a segurança que se poderia esperar, levando-se em conta
o modo do fornecimento, os riscos normais e a época em que foi fornecido, nos termos do art. 14, § 1º. São defeitos de concepção, prestação ou de comercialização
(informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição ou riscos).72
69 FÁBIO ULHOA COELHO, O Empresário e os Direitos do Consumidor, p. 47.
70 SERGIO CAVALIERI FILHO, Programa de Responsabilidade Civil, p. 366.
71 SERGIO CAVALIERI FILHO, ob. cit., p. 367.
72 Ob. cit., p. 370
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faculdade de direito de bauru
A responsabilidade por vício do produto vem disciplinada nos arts. 18 e 20 do
Código de Defesa do Consumidor. Os vícios são aqueles defeitos inerentes aos produtos ou serviços, vicios in re ipsa. Esta responsabilidade não se confunde com
aquela pelos danos causados por estes mesmos defeitos que, como dissemos acima,
são chamados de acidentes de consumo, mas é pelo próprio defeito.
Não há qualquer menção na lei a respeito do elemento subjetivo, o que nos
leva a crer que a responsabilidade, nestes casos, também é objetiva.
Os vícios podem ser de qualidade ou de quantidade. Os de qualidade referemse à inadequação do bem para aquilo a que ele se destina, ao passo que os vícios de
quantidade dizem respeito ao peso e medida do produto.
Com relação aos profissionais liberais, o Código fugiu à regra, pois no § 4º do
art. 14 determina que a responsabilidade, nestes casos, seja apurada mediante a verificação de culpa.
O comerciante, quanto ao acidente de consumo tem responsabilidade subsidiária, nos termos do art. 13, e isto acontece quando o fabricante, o construtor, o
produtor ou importador não podem ser identificados; o produto for fornecido sem
identificação clara de seu fabricante, produtor, construtor ou importador, ou quando o comerciante não conserva adequadamente os produtos perecíveis.
Tendo em vista que no Código de Defesa do Consumidor não existem casos
de responsabilidade fundada no risco integral, existem algumas excludentes de responsabilidade previstas nos incisos do § 3º, do art. 12.
A primeira excludente consiste no fato de o fornecedor provar que não colocou o produto no mercado, pois pode haver casos de produtos falsificados.
Outra excludente é a prova de que o mencionado defeito não existe, e a terceira é a demonstração da culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
É interessante destacar que o Código do Consumidor não se refere ao caso
fortuito e à força maior; em razão disto, alguns autores afastam estas excludentes.
Por outro lado, há autores que consideram que é possível a aplicação do caso
fortuito e da força maior, mas que dividem o caso fortuito em duas espécies: interno e externo. O interno seria aquele que ocorreu antes da introdução do produto
no mercado de consumo, e este não exclui a responsabilidade. Ao passo que, o caso
fortuito externo seria aquele que é absolutamente independente da atividade do
fornecedor, e este tem o condão de romper o nexo causal.73
Guilherme Couto entende que esta distinção é desnecessária, pois o chamado caso fortuito interno se resume na aferição da existência, ou não de defeito na
mercadoria ou serviço.74
73 SERGIO CAVALIERI FILHO, ob. cit., p. 376.
74 Ob. cit., p. 89.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
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BIBLIOGRAFIA:
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Tribunais, 2001, 360 pp.
BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade Civil nas Atividades Perigosas, Responsabilidade Civil - Doutrina e Jurisprudência (coordenado por Yussef Said Cahali). 2ª
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ed., Rio de Janeiro: Forense, 2000, 137 pp.
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999, 439 pp.
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O ‘eu’ poético: breves incursões nos
campos da criação artística e do
direito moral de autor
Emerson Ike Coan
Professor de Linguagem Jurídica na Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie.
“Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.” 1
O processo de criação comporta, de início, um ato de expressão da personalidade do autor e, depois, um ato de comunicação2, ao se projetar no meio em que
está inserido, pelo fato de colocar à disposição da coletividade uma obra intelectual
(literária, artística, científica etc.).
Como ato de expressão individual, percorre certas fases, quais sejam: 1. Primeira apreensão (insight): de uma idéia a ser realizada ou de um problema a ser resolvido; 2. Preparação: rigorosa investigação das potencialidades da idéia germinal;
3. Incubação: trabalho do inconsciente fazendo inesperadas conexões que consti1 CECÍLIA MEIRELES, primeira estrofe do poema “Motivo” In: “Poesia completa”, p. 109.
2 Convém alertar que a comunicação (de communicare - colocar em comum) pressupõe a interação humana e
mesmo quando se fala em subjetividade, esta é considerada como “eu” plural, enquanto indivíduo/sujeito num sistema de processo/resultado/processo, levando-se em conta sua inserção num conjunto de campos semiológicos
(BACCEGA, Maria Aparecida. “Palavra e discurso”, pp. 22, 25 e 36).
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tuem a essência da criação (matéria-prima); 4. Iluminação: clímax, solução do problema; 5. Verificação: ou revisão para dar formas acabadas ao trabalho.3
O homem cria (dá uma forma a algo novo) porque necessita (enquanto ser consciente-sensível-cultural que é), uma vez que, a partir de seu potencial criador (que sempre se refaz na medida em que recupera e renova um estado de tensão psíquica) chegase a um, como diz Fayga Ostrower, “sentimento de um crescimento interior, em que nos
ampliamos em nossa abertura para a vida” 4, sendo certo que é o próprio viver a fonte dessa criatividade (inserindo-se, nesse processo dinâmico, a noção de acasos significativos - que são de certo modo esperados, ainda que numa expectativa inconsciente5).
Há, assim, distinção entre a criatividade, que está no potencial de cada um (algo aberto)
- vindo a se manifestar nas pessoas através de certas inclinações, interesses, aptidões –
e a criação, que se refere à escolha de cada um (algo concreto).6
No campo da Estética7, cabe a ressalva de que este estudo não pretende um aprofundamento, mas apenas tecer pequenas considerações sobre o assunto, levando em
conta a obra intelectual predominantemente artística e, mais detidamente, a poética. 8
3 KNELLER, George F. “Arte e ciência da criatividade”, pp. 62-73; cf. ainda SCHLEDER, Tania Stoltz. “Capacidade de
criação: introdução”, que, quanto aos aspectos do processo criativo, expõe quadro comparativo entre diversos autores, p. 29. Nesse campo do processo criativo é interessante a observação feita por Luís Washington VITA, em aula
intitulada “Psicologia do sentimento artístico”, que: “tôda obra artística, enquanto problema psicológico, é alguma coisa que acontece quando o artista está inspirado, e seu acrescentamento só deforma, só empobrece a criação”- sic (Revista Brasileira de Filosofia n. 30, 1958, p. 220). Pertinente, ainda, a referência à chamada crítica genética, que, ao estudar semioticamente os modos de concepção de uma obra de arte pelos vestígios materiais que deixa (teve início pela análise dos manuscritos literários), percorre todos os ‘bastidores’ da criação artística (a enxergando como um ‘gesto inacabado’), seja no âmbito da literatura, seja no da pintura, enfim em qualquer manifestação da sensibilidade e do intelecto humano. (v. WILLEMART, Philippe. “Bastidores da criação literária” e SALLES, Cecília Almeida. “Gesto inacabado: processo de criação artística” e “Crítica genética: uma (nova) introdução”).
4 “Criatividade e processos de criação”, p. 28.
5 Para essa autora, “cada artista, cada leitor terá provavelmente seu próprio repertório de coincidências, ou talvez até mesmo de erros cometidos que se transformam em acertos. Constituem sempre eventos imprevistos e surpreendentes. No entanto, parecem ocorrer num momento exato de vida, momento por vezes decisivo na realização de certos objetivos” (“Acasos e criação artística”, p. 2).
6 Idem, ibidem, p. 218-19.
7 Para MÁRIO DE ANDRADE a Estética “é a disciplina do saber que estuda a arte” e adverte que o método neste
campo deve ser sincrético, ou seja, nem exclusivamente metafísico, nem exclusivamente experimental (“Introdução
à estética musical”, p.3-5). Artístico é tudo que seja relativo à arte no sentido de “atividade que supõe a criação de
sensações ou de estados de espírito de caráter estético carregados de vivência pessoal e profunda, podendo suscitar em outrem o desejo de prolongamento ou renovação” (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. “Novo Dicionário da Língua Portuguesa”, verbete arte); pode-se acrescentar que ao prazer estético, que não se resume num
de natureza física, se mescla o enaltecimento da própria vida, na felicidade de uma realização íntima nossa (v. OSTROWER, Fayga. “Acasos e criação artística”, p. 224).
8 Parafraseando JOSÉ VERÍSSIMO, este tema fará sorrir a muitos. Embora, num momento em que todas as atenções
são para crises de ordem política, social, financeira e econômica em suma, ocupar-se alguém teoricamente de poesia parecerá a alguns inoportuno ou impertinente. Esquecem esses o profundo aforismo de Cristo “nem só de pão
vive o homem”, portanto deixem-me os práticos tratar de poesia, que ela sim, vitoriosa e imortal (expressão neces-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
165
A arte pode ser definida como a expressão livre e sem interesse imediato do
ser racional.9
Pode-se dizer que o criador-artista, para conceber sua obra, acha-se preso a
um ideal e, em certa medida, está desligado dos dados concretos e do domínio físico das coisas, percebendo-se daí uma nítida dualidade em sua pessoa, pois,
A obra de arte é uma composição. Esta composição é subjetiva e
está ligada a imaginação e a sentimentos. Ela é infinita e completa em si, introduz uma certa permanência no presente. A atividade do artista é completamente determinada e regida pela essência
da criação. O domínio que o artista exerce sobre a sua imaginação difere-o do homem comum.10
É ele o autor da obra intelectual-artística, a quem se atribui a paternidade (maternidade) de uma composição subjetiva - fruto de sua imaginação11 - que, por sua
vez, passa a ser um objeto original e independente, ocupando espaço na realidade
como um prolongamento daquele.12
De maneira que:
Foram criadores do espírito, todos aqueles que, por meio das palavras da linguagem, das notas da música, das cores da pintura, das
mordeduras do buril, dos movimentos da cinzel ou das linhas de
sária do espírito humano), prevalecerá contra todas as crises, as próprias, inclusive (“O futuro da poesia?” In: “Que
é literatura? E outros escritos”, pp. 37-41).
9 MÁRIO DE ANDRADE, op. cit., p. 21. Frisa esse autor tratar-se de uma definição subjetiva, esclarecendo que pela manifestação objetiva: “é a expressão que nos dá o conhecimento virtual da vida” (p. 30). Para BENEDETTO CROCE, a
arte pode ser definida como intuição, no sentido de representar um sentimento (“Breviário de Estética”, p. 50).
10 BARBOSA, Elyana. “Indivíduo e autor” In: Revista Brasileira de Filosofia, v. XXXIV, fasc. 133, p. 79. Paul WATZLAWICK, Janet Helmick BEAVIN & Don D. JACKSON, ao citarem Koestler, indicam que a criação artística (assim como
o humor e a descoberta científica) é resultado de um processo mental denominado bissociação, que é definido
como a percepção de uma situação ou idéia em dois quadros de referência intrinsecamente coerentes mas habitualmente incompatíveis (“Pragmática da Comunicação Humana: um estudo dos padrões, patologias e paradoxos da interação”, pp. 232-33).
11 G. W. F. HEGEL dá à imaginação criadora o nome de fantasia, cuja atividade e a correspondente exigência da execução técnica constituem a inspiração, que, por sua vez, “consiste em estar obsediado pela coisa, em tê-la sempre
presente, em não encontrar repouso enquanto não lhe der uma forma estética e perfeita” (“Curso de Estética: o
belo na arte”, p. 324).
12 “A poesia, a arte, é um tipo de realização intelectual que se situa entre a experiência direta do mundo e a
formulação conceitual abstrata: o artista rejeita a experiência imediata do real, na medida em que a transforma em linguagem, mas também rejeita a sua transformação em conceito abstrato porque deseja preservá-la
como vivência individual e afetiva” (GULLAR, Ferreira. “Dor e arte: o poeta Ferreira Gullar examina a relação entre sofrimento e criatividade”. Folha de São Paulo, Caderno 5, 07/05/95, p. 12).
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desenho de um plano de arquiteto, fizeram sair do nada uma obra
à qual se aferrava sua personalidade, à qual abriram as portas do
real e que tornaram pública. O autor lança-se à inércia das palavras, das linhas e das cores, que nada retiraria de sua vã letargia
se não as tomasse e as arrancasse de seu sono, e, tendo-as arrebatado, as agrupa, lhes dá forma, as engrandece.13
Assim, por ter inspiração e ser criador de uma nova realidade, será uma mesma individualidade com duas maneiras de acontecer: o “eu” civil e o “eu” artista,
que, diga-se de passagem, é mais altruísta que egoísta, porque
nenhuma diferença essencial entre ele e os outros homens do mundo.
O que o distingue dos outros homens é antes uma inferioridade que
uma superioridade, uma tal ou qual timidez que o leva de preferência a se aplicar às necessidades superiores do espírito a preferir e se
servir do Belo que é uma contemplação sem posse pra se expressar e
se comunicar...Nós todos temos inspirações. Porém na maioria das vezes essas inspirações são práticas, determinadas pelas nossas necessidades imediatas. O artista destrói essa imediateza da necessidade
idealizando a vida....o que apenas distingue a vida do artista da do
homem comum,... está em que na vida do homem comum tem como
que uma integração mais perfeita e unida de corpo e espírito, uma
concordância, uma coincidência de atividades espirituais e físicas
que lhe fazem da vida uma realidade única, ao passo que na vida do
artista se dá uma espécie de vida dupla, uma superposição de duas
vidas distintas, pra não dizer diferentes. Se o homem comum tem personalidade só indissolúvel no artista se dá uma espécie de desdobramento contínuo de personalidade que o faz viver duas vidas diferentes....O artista se distingue dele porque além da vida prática que vive,
vive numa permanente dádiva de si mesmo pelas obras-de-arte que o
desejo de amigo o obriga a cria. (sic).14
Tudo isso se aplica ao fazer literário, que, por ser arte, tem o condão de transfigurar a realidade, substituindo-a por uma nova mediante a força criativa - e, assim,
imaginativa - de um autor.15
13 BEDEL, Maurice apud CHAVES, Antônio. “Criador da obra intelectual”, p. 80.
14 MÁRIO DE ANDRADE, op. cit., pp. 57-58.
15 “A Literatura, como toda arte, é uma transfiguração do real, é a realidade recriada através do espírito do
artista e retransmitida através da língua para as formas, que são os gêneros, e com os quais ela toma corpo e
nova realidade. Passa, então, a viver outra vida, autônoma, independente do autor e da experiência de reali-
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167
Sobre a linguagem literária, deve-se acrescentar que ela se encontra (tendo
por base o sistema semiótico que é o texto literário), tanto na prosa, como nas manifestações em versos, a serviço da criação artística e, por isso, é um discurso distinto dos demais discursos (cotidiano e técnico), exigindo, pois, um trabalho de cunho
interpretativo.16 A função poética (também denominada estética ou fantástica) da
linguagem predomina porque há uma preocupação com a forma do texto, levandose em conta a mensagem pela mensagem.17
No que se refere à poesia, que pode ser vista sob várias fases ou aspectos, a saber:
texto ou objeto criado, isto é, motivado pela atividade de um ser
humano. A poesia energia que impulsiona essa atividade, ou que
por ela se transmite, ou se transforma. A poesia que se recebe: energia que nos ataca e comove e vem ‘não se sabe de onde’ e pode existir em tudo, em tudo o que nos choca, ou desperta, ou alerta, ou
entusiasma, ou entristece, e que depende portanto muito de nós
próprios, da nossa capacidade ou vulnerabilidade para sermos
chocados, despertados, alertados, entusiasmados, entristecidos.18
dade de onde proveio” (COUTINHO, Afrânio. “Antologia brasileira de literatura”, Introdução Geral, p. x); Cf. MOISÉS, Massaud. “A Criação Literária: introdução à problemática da Literatura”, pp. 17-29; NOVAES COELHO, Nelly. “Literatura e linguagem (a obra literária e a expressão lingüística)”, p. 23.
16 A linguagem literária, exatamente por ser um discurso que apresenta as características da complexidade; multissignificação; predomínio da conotação (metáfora e metonímia); liberdade na criação; ênfase no significante e variabilidade, exige uma interpretação, que deve considerar o texto (plano superficial, sintagmático, in praesentia), seja
em prosa, seja na manifestação poética, como um sistema semiótico em seus componentes semântico, sintático e
pragmático, operando-se este último entre os interlocutores, e que no campo da estética diz respeito à produção
de emoções (pelo componente profundo, paradigmático, sistemático, in absentia). Acrescente-se que, “A experiência estética que ocorre e é vivenciada pelo espectador se dá quando um objeto (obra de arte) funciona simbolicamente para ele como um meio de satisfação de suas necessidades emocionais (fantasias) inconscientes. Trata-se aqui de uma descoberta; na verdade, é sempre uma redescoberta de suas fantasias inconscientes por meio
da forma e do conteúdo do objeto estético, como uma reação em espelho” (PICHON-RIVIÈRE, Enrique. “O processo de criação”, p. 8). Cf. SAUSSURE, Ferdinand. “Curso de lingüística geral”, pp. 142-47; PROENÇA FILHO, Domício. “Linguagem literária”, pp. 8, 20 e 36; OLSEN, Stein Haugom. “A estrutura do entendimento literário”, pp. 65
e ss. e 103 e ss.; LAFACE, Antonieta. “Fundamentos de lexicologia. Requisitos para o estudo das linguagens literária
e técnico-científica” In: “Estudos de literatura e lingüística”, pp. 259-61.
17 A função poética pode não se aplicar somente à poesia, como a denominação parece designar, mas a toda manifestação em que se observe uma preocupação de se expor a mensagem pela mensagem (a forma do texto - “o
lado palpável do signo”; o ritmo, o jogo das sonoridades das palavras e as imagens). Ver JAKOBSON, Roman. “Lingüística e comunicação”, p. 130; BARTHES, Roland. “Elementos de semiologia”, p. 63; CHALHUB, Samira. “Funções
da linguagem”, p. 32; DELAS & FILLIOLET. “Lingüística e poética”, pp. 23, 47, 49, 55, 65, 75, 107, 130, 185; BOSI, Alfredo. “O ser e o tempo da poesia”, pp. 29, 34, 51; VANOYE, Francis. “Usos de linguagem”, pp. 55, 132 e 141; EPSTEIN, Isaac. “O signo”, pp. 33-36 e 45-46; BIDERMAN, Maria Tereza C. “Teoria lingüística: leitura e crítica”, pp. 3141; MERQUIOR, José Guilherme. “Razão do poema”, p. 280; e MUKAROVSKY, Jan. “Escritos sobre estética e semiótica da arte”, p. 16 e 184.
18 MELO E CASTRO, E. M. de. “O próprio poético”, Cap. 2.0 - O próprio poético, p. 2.
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168
Ademais pode ser ela entendida como “a força que atua de maneira divina
e inapreendida além e acima da consciência” 19 relevando seus traços de inspiração20 e beleza. 21
Assim manifestou-se o poeta:
Sabeis o que é atuar de maneira divina? Confesso lisamente que
não sei. Mas conheço da poesia, por experiência própria, essa maneira inapreendida de ação: nunca pude explicar, em muitos casos, a emoção que me assaltava ao ouvir ou ao ler certos versos,
certas combinações de palavras.22
Ratificando essa colocação:
Não sei como vem um poema. Às vezes uma palavra, uma frase
ouvida, uma repentina imagem que me ocorre em qualquer
parte, nas ocasiões mais insólitas. A esta imagem respondem outras. Por vezes uma rima até ajuda, com o inesperado da sua
associação. Em vez de associações de idéias, associações de
imagens; creio ter sido esta a verdadeira conquista da poesia
moderna. 23
19 SCHILLER apud MANUEL BANDEIRA (“De Poetas e de poesia”, Cap. Poesia e Verso, p. 107); e também desse
nosso poeta, “Noções de história das literaturas”, p. 8, cuja definição foi utilizada para distinguir, quanto à essência,
a poesia da prosa, enfatizando que aquela se dirige sobretudo à sensibilidade.
20 Ramón NIETO, ao discorrer sobre a inspiração, cita Alfonso Reyes quanto aos doze estímulos: de tipo literário
(leituras); de tipo verbal (palavras que nos levam a outras); de tipo visual; de tipo auditivo; de tipo olfativo, gustativo, tátil; de tipo ambulatório (montanhas, paisagens); de tipo onírico; de memória involuntária (personagens, cenas que afloram); das sinestesias (percepções de um sentido a outro); puramente físicos (espaço, volume, peso,
temperatura); emotivos (notícias comoventes, choques); provocados voluntariamente (buscados pela pessoa, hábitos de trabalho etc). “O ofício de escrever”, pp. 67-69.
21 ARISTÓTELES a definia como “uma disposição suscetível de criação acompanhada de razão verdadeira.”
(“Arte retórica e arte poética”, p. 259), centrada na tese de que a poesia é imitação de uma ação (mímese); “A imitação poética visa à criação de algo novo, por isso mesmo, só a arte pode ser mimética, o que significa deslocar
o conceito de mímese do sentido de cópia para o de representação e transformação” (SANTELLA, Lúcia. “Estética: de Platão a Pierce”, p. 29). Cf. exposição e crítica de MOISÉS, Massaud no livro “A criação poética”, pp. 14-17,
onde analisa também o pensamento de Hegel, Croce e Jakobson; e, “A criação Literária”, do mesmo autor, a etimologia da palavra: do grego poíesis, de poien: criar, no sentido de imaginar, p. 47 (v. tb. seu “Dicionário de termos literários”, verbetes poema e poesia). Para GOETHE, J. W., conforme consta de seu ensaio intitulado “Aos jovens poetas”, o conteúdo poético é o conteúdo da própria vida, cabendo falar-se em poesia da natureza. (“Escritos sobre literatura”, pp.12-13).
22 MANUEL BANDEIRA. “De poetas e de poesia”, pp. 107-08.
23 MÁRIO QUINTANA apud GARCIA, Othon M. “Esfinge Clara e outros enigmas: ensaios estilísticos”, p. 334, nota
13.
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169
De fato:
embora não esteja completamente correto dizer que a poesia é
uma atividade de todo inconsciente, como os sonhos, não há dúvida de que esse fator tem muita interferência na criação poética.
Seja na organização aparentemente fragmentada das idéias, seja
no uso criativo das palavras, a força do inconsciente interfere e influencia as imagens construídas poeticamente.24
Ora, não se vale somente de sonhos, mas é possível se afirmar que o poeta
possui uma inteligência lingüística mais aguçada, haja vista o que sustenta Howard
Gardner, ao expor a facilidade (ou competência intelectual) que aquele tem para lidar com palavras em termos de semântica (uma sensibilidade ao significado e aos
sons das palavras), sintática (uma sensibilidade à ordem entre as palavras) e pragmática (uma sensibilidade às diferentes funções da linguagem).25
No entanto, cumpre acrescentar que, essa pretensa facilidade pode ser o ponto central da batalha incessante que ele trava com as palavras no intuito de expressar-se esteticamente26, caminhando para a confecção daquilo que se pode chamar de
sonho inventado.27
24 PAIXÃO, Fernando. “O que é poesia?”, pp. 34-35.
25 “Estruturas da mente: a teoria das inteligências múltiplas”, pp. 59-60. Esses são os componentes da semiótica
(ciência que tem por objeto os signos) do fazer literário-poético. Segundo EZRA POUND a poesia “é um centauro.
A faculdade intelectiva e aclaradora que articula palavras deve movimentar-se e saltar juntamente com as faculdades energéticas, sensitivas, musicais” (“A arte da poesia”, p. 70). Edgar MORIN fala que o fim da poesia é o
de nos colocar em estado poético pelo seu caráter simbólico, mitológico e mágico (“Amor. Poesia. Sabedoria”, pp.
38 e 43). Carlos Felipe MOISÉS fala em impacto emocional e relaciona como temas mais recorrentes na poesia: autoconhecimento, paisagem-natureza, devaneio, cotidiano, utilidade ou beleza, infância ou memória, amor, morte, o
eu e o outro e a própria poesia (“Poesia não é difícil”. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1996). Para Alberto PUCHEU o
poeta, assim como a Esfinge, é um produtor de enigmas, cabendo-lhe “dizer o que não pode ser dito, nomear o
inominável”(“Escritos da admiração”. In: “Poesia (e) Filosofia: por poetas-filósofos em atuação no Brasil”, p. 26).
Cf. BRITO, José Domingos (org.). “Por que escrevo?”, v. 1, “Mistérios da criação literária”, coletânea de depoimentos célebres; NEMEROV, Howard (coord.) “Poesia como criação”, diversos relatos de poetas norte-americanos sobre o assunto; e PLIMPTON, George (ed.). “Escritoras e a arte da escrita: entrevistas do Paris Review”.
26 Vale lembrar os versos de DRUMMOND: “Lutar com palavras/ é a luta mais vã./ Entanto lutamos/ mal rompe
a manhã/ São muitas,/eu pouco.” (“O lutador”); “Chega mais perto e contempla as palavras./ Cada uma/ Tem
mil faces secretas sob a face neutra./E te pergunta, sem interesse pela resposta,/ Pobre ou terrível, que lhe deres:/
Trouxeste a chave?” (“Procura da poesia”). In: ”Poesia e prosa”, volume único, p. 84 e 97, respectivamente.
27 A expressão ‘sonho inventado’ foi inspirada numa crônica de CECÍLIA MEIRELES denominada “Escolha o seu sonho”, que se inicia: “Devíamos poder preparar os nossos sonhos como os artistas, as suas composições” (“Escolha
o seu sonho”, p. 143; tb. “Janela Mágica”, p. 10). Até porque a poesia caracteriza-se por uma alogicidade, a-historicidade, a-narratividade, que habitam o “eu” do poeta. (v. MOISÉS, Massaud. “Dicionário de Termos Literários”, verbete poesia e “A análise literária”, p. 41).
170
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Por isso, transmite “uma idéia para ser sentida e não apenas entendida, explicada, descascada” e “por melhor que você explique, a explicação nunca pode
substituí-la”28, sendo, desse modo, “perigosa solapadora da racionalidade.”29
E, servindo de remate, “não parece desavisado admitir uma relativa cissiparidade entre o poeta-cidadão, civilmente sujeito a leis e normas de comportamento, e o poeta-criador, apenas condicionado às regras do jogo estético”30, que,
a partir do que denominou Rilke de “ensimesmar-se”31, transfere sua postura criativa para aquele (falando por meio do poema), cujo impulso primordial é manifestarse para apaziguar-se (fase da expressão), oferecendo, pois, como um amigo, a sua
composição (fase da comunicação).
Tudo isso permite assegurar seja fonte de trabalho intelectual do poeta a imaginação, dado colocado plenamente à disposição de uma única entidade entre duas:
o ‘eu’ poético.
Neste contexto, e retornando à comparação que se costuma fazer entre o criador e a obra de arte, cuida-se de uma relação de paternidade (ou maternidade), pois
a segunda revela algo que nasceu e se apresenta como um prolongamento do primeiro. Vale citar a lição do ilustre Professor Antônio Chaves:
Tem-se assinalado que a semelhança entre a concepção de um trabalho intelectual e a de um ser humano não é apenas terminológica, implicando outrossim no surto de um elemento germinativo
fecundo, num período de gestação, num delicado processo de desenvolvimento, acompanhado, como este, quase sempre de...dores
de parto.32
E, ainda, “spetta, perciò, all’autore, sempre ed inalienabilmente, un diritto di paternità intellettuale, il quale consiste nel diritto di tutelare la rappresentazione della propria personalità intellettuale nell’opera creata”33 (cabe, por isso, ao autor, sempre e inalienavelmente, um direito de paternidade intelectual, que consiste no
direito de tutelar a representação de sua personalidade na obra criada).
Em breve passagem, é sob esse enfoque o fundamento do direito relacionado
às criações intelectuais, com a constatação de que o elemento moral do direito de
28 PIGNATARI, Décio. “O que é comunicação poética?”, pp. 18 e 10, respectivamente.
29 PAES, José Paulo. “Os perigos da poesia e outros ensaios”, p. 10. Para esse saudoso poeta, tradutor e ensaísta,
quando perguntado sobre seu processo de criação poética, a inspiração é uma dimensão interior que só aflora em
momentos privilegiados como o sonho significativo (“A aventura literária de José Paulo Paes”. In: Revista Cult n. 22,
maio/99, p. 48; tb. “Lições sobre o ofício de escrever poesia”. Jornal da Tarde, Caderno de Sábado, 16/10/99, p. 6).
30 MOISÉS, Massaud. “A criação poética”. Cap. 4. - O ‘eu’ poético, p. 47.
31 “Cartas a um jovem poeta”, p. 24.
32 “Criador da obra intelectual”, p. 79.
33 CASELLI, Piola. “Trattato del Diritto di Autore e del Contrato di Edizione”, p. 523.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
171
autor é expressão do espírito criador da pessoa, como reflexo de sua personalidade34, sem se falar, num primeiro momento, no elemento patrimonial que possa adquirir a obra, pois:
el derecho moral tiene por objeto defender la personalidad del autor de los posibles atentados contra su manifestación creadora. Se
funda en el principio de que la personalidad humana es intangible. Trata de evitar que se lesionen en lo esencial los intereses personales o artisticos.35
Convém lembrar sempre que,
É princípio básico do Direito em geral, que tem suas raízes na própria natureza humana e se diz tratar-se de um regra de Direito
Natural, aquele que manda ‘dar a cada um o que é seu’...Ora,
nada é mais próprio do homem do que o produto de sua inteligência. Logo, nada mais natural do que ser dele a sua própria obra
intelectual, para dela fazer o uso que melhor lhe convenha.36
Isso significa que tais direitos morais são aqueles inseparáveis do autor, pois
perpétuos, impenhoráveis, inalienáveis, irrenunciáveis e imprescritíveis, dada sua
natureza de direito da personalidade, distintos, portanto, dos direitos patrimoniais37,
que correspondem àqueles referentes à colocação da obra em circulação, explorando-a economicamente.38
34 “Como o direito ao nome, não é inato; inatos são o direito à liberdade de criação e o direito a ter nome.(...)
No suporte fático de qualquer ato-fato de criação está o opus.(...) Antes dêle, só existe a liberdade de criar. Todavia, para que do ato-fato de criação se irradie o efeito, a que se chama direito autoral de personalidade, é preciso que implìcitamente se haja exercido a liberdade de criar no sentido de se ligar a obra à pessoa” – sic (PONTES DE MIRANDA. “Tratado de Direito Privado”, Parte Especial, Tomo VII, p. 143); v. DE CUPIS, Adriano. “Os direitos da personalidade”, pp. 309-37; BITTAR, Carlos Alberto. “Os Direitos da Personalidade”, 1989, p. 136, tb. “Direito de autor”, pp. 44-46; COSTA NETTO, José Carlos. “Direito autoral no Brasil”, pp. 72-76; AZEVEDO, Philadelpho.
“Direito moral do escriptor” - sic, pp. 31-52; RADAELLI, Carlos & MOUCHET Sigfrido A. “Direito moral de autor”,
Revista Forense, Janeiro de 1947, p. 23-34; COSTA MACHADO, Antônio Cláudio. “Direito moral do artista”, Revista
Forense 294, p. 129; FERREIRA, Pedrylvio Francisco Guimarães. “Direito moral”. In: “Reflexões sobre Direito Autoral”, p. 154.
35 SATANOWSKI, Isidro apud BOBBIO, Pedro Vicente. “O Direito de Autor na creação musical” - sic, p. 9.
36 MANSO, Eduardo Vieira. “O que é Direito Autoral?”, p. 19-20; v., quanto ao fundamento do direito moral do autor, AZEVEDO, Philadelpho. “Direito moral do escriptor” - sic, pp. 53-66.
37 Ver Lei 9.610/98, art. 28 e seguintes.
38 “Escrever é uma coisa - ser escritor, outra, publicar-se, uma terceira. O ato de escrever é uma atividade pessoal de natureza subjetiva, que se basta a si próprio, com o qual o escritor se realiza, independentemente de ser
publicado ou não. Publicar-se envolve motivações diferentes e o concurso de terceiros, nem sempre disponível.
faculdade de direito de bauru
172
Entre nós a matéria está assegurada no âmbito constitucional conforme dispõe o artigo 5º, inciso XXVII: “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo
tempo que a lei fixar” (Título II - Dos direitos e garantias fundamentais - Capítulo I
- Dos direitos e deveres individuais e coletivos).
No plano infraconstitucional, vige a Lei nº 9.610/98 que dispõe em seu artigo 24:
São direitos morais do autor: I - o de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra; II - o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal
convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na
utilização de sua obra; III - o de conservar a obra inédita; IV - o de
assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra; V - o
de modificar a obra, antes ou depois de utilizada; VI - o de retirar
de circulação a obra ou de suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem
afronta à sua reputação e imagem; VII - o de ter acesso a exemplar
único e raro da obra, quando se encontre legitimamente em poder
de outrem, para o fim de, por meio de processo fotográfico ou assemelhado, ou audiovisual, preservar sua memória, de forma que
cause o menor inconveniente possível a seu detentor, que, em todo
caso, será indenizado de qualquer dano ou prejuízo que lhe seja
causado.
Cumpre ressaltar que constituem crimes contra a propriedade intelectual (Código Penal - Parte Especial - Título III - Dos crimes contra a propriedade imaterial Capítulo I - Dos crimes contra a propriedade intelectual) a violação de direito autoral e a usurpação de nome ou pseudônimo alheio.
CONCLUSÃO.
Por todo o exposto, procurou-se destacar a criação literária-poética de outras
manifestações estéticas, como um processo que vai da expressão do ‘eu’ poético de
uma pessoa à exposição de uma obra intelectual-artística à coletividade, enfatizando
o caráter protetivo que merece (e reveste-se no plano jurídico) esse prolongamenPassa-se de escritor a autor, de entidade privada a figura pública. Isso tem suas vantagens e seus riscos” (BARROS, Benedicto Ferri de. “Reflexões sobre o angustiante - e fascinante - ofício de escrever”. Jornal da Tarde, Caderno de Sábado, 20/11/99, p. 3; v. tb. MEIRA PENNA, J. O. de. “Escrever, a dolorosa arte de organizar o universo”. Jornal da Tarde, Caderno de Sábado, 17/07/99, p. 2).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
173
to autônomo e independente do ser sensível e criativo, pois revelador de uma relação de paternidade (ou maternidade), ainda que não biológica, mas com as mesmas
dores, expectativas, receios e, sobretudo, compensações e regozijos.
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Percepção Científica do Direito
Reis Friede
Mestre e Doutor em Direito Público,
é Magistrado Federal e
autor de inúmeras obras jurídicas, dentre as quais
“Ciência do Direito, Norma, Interpretação e Hermenêutica Jurídica”, 4ª edição, Forense Universitária,
2001, RJ (189 ps.) e “Vícios de Capacidade Subjetiva do Julgador: Do Impedimento e da Suspeição
do Magistrado nos Processos Civil, Penal e Trabalhista”, 3ª edição, Forense, 2001, RJ (469 ps.).
Não obstante a tese segundo a qual o Direito se constitui em efetivo ramo
científico ter sido negligenciada no passado por expressiva parcela de estudiosos,
na atualidade contemporânea é, no mínimo, majoritária a posição doutrinária que
entende o Direito como autêntica e genuína Ciência Autônoma.
Ainda que se possa discutir se o Direito constitui-se na própria ciência, em
sua descrição conceitual, ou, ao contrário, restringe-se apenas ao objeto de uma
ciência (a chamada Ciência do Direito), a verdade é que, no presente momento
evolutivo, poucos são os autores que ousam desafiar a visão dominante do Direito
como ciência e suas principais conseqüências, especialmente após o advento – e,
sobretudo, a leitura técnica – da notável obra de HANS KELSEN, Teoria Pura do Direito, em que o autor logrou demonstrar, na qualidade de mentor do racionalismo
dogmático (normativismo jurídico), a pureza jurídica do Direito em seu aspecto tipicamente científico.
Mesmo assim, entre nós ainda existem aqueles que simplesmente defendem
o ponto de vista do Direito como uma forma não-científica, desafiando não só o
caminho lógico-evolutivo do estudo do Direito, mas, particularmente, a acepção
mais precisa (e correta) do vocábulo ciência.
faculdade de direito de bauru
180
(...)não é rigorosamente científico denominar o Direito de ciência.
(...). As pretensas ciências sociais, com ranço comtiano, onde se costuma incluir o Direito (...) não oferecem princípios de validez universal que lhes justifiquem a terminologia (...)”.
(PAULINO JACQUES in Curso de Introdução ao Estudo do Direito,
ps. 10/11)
“O Direito não é ciência, mas arte; como também ramo da moral”
(GENY in Science et Téchnique en Droit Privé Positif, 2a. édiction,
Tome I, Paris, 1927, ps.69/71 e 89)
“As regras do Direito são preceitos artísticos, normas para fins práticos, determinações ordens, que se impõem à vontade. Não se confundem com as afirmações científicas, que se dirigem à inteligência.”
(PEDRO LESSA in Estudos de Philosophia do Direito, Rio, 1912, p.
46).
1.
CONCEITO DE CIÊNCIA
A questão central, nesse contexto de atuação, ao que tudo indica, parece ser,
sob o prisma de sua própria especificidade, os múltiplos e variáveis conceitos de
ciência, bem como, as possíveis e diferentes traduções do vocábulo em epígrafe.
Nesse sentido, resta oportuna a lição de TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR. (in Direito, Retórica e Comunicação, Saraiva, SP, 1973, ps. 159/160) para quem “a expressão ciência não é unívoca; não obstante de com ela se pretender designar um tipo
específico de conhecimento, não há um critério único e uniforme que determine
sua extensão, natureza e caracteres, devido ao fato de que os vários critérios têm
fundamentos filosóficos que extravasam a prática científica.”
De qualquer sorte, o que caracteriza a ciência, na acepção atual, não pode ser,
em nenhuma hipótese, como deseja PAULINO JACQUES, uma pretensa e utópica
validez universal de seus princípios, independentemente de meridianos e paralelos, uma vez que, de forma absolutamente diversa, a noção contemporânea de ciência reside no escopo próprio de sua atuação, ou seja, na busca, constante e permanente, pela verdade (ou, ainda, em outras palavras, na perene explicação evolutiva dos diversos fenômenos naturais e sociais).
(Nesse contexto, por força do raciocínio binário, é lícito, inclusive,
consignar o conceito antagônico à ciência que se traduz modernamente pela crença. Enquanto a ciência, reconhecendo que não possui a verdade, objetiva, de forma constante e permanente, encon-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
181
trá-la (através da busca incessante da explicação verdadeira dos
fenômenos fáticos (de valoração objetiva e subjetiva) e de suas
conseqüentes ocorrências no mundo real e cultural), a crença, por
sua vez, ciente de que já possui a verdade (ou seja, a correta explicação para os fenômenos fáticos do mundo real), simplesmente
impõe a sua explicação (interpretação), como única e insuperável
tradução da realidade, permitindo, neste sentido, a concepção básica da denominada fé (que é sempre imposta), como fator último
a impedir o próprio desenvolvimento da crença.
Não é por outra razão, inclusive, que a essência da fé (na qualidade de fator basilar da crença) se traduz pelo “acreditar em algo
que não pode ser provado”, tornando, por efeito, toda crença
(como, por exemplo, a religião) igualmente válida (não permitindo, conseqüentemente, padrões de comparação qualitativa) e determinante sob a ótica de sua própria abrangência.)
Em essência, - é oportuno ressaltar -, inexiste, de forma insofismável, a efetiva possibilidade de se ter fato gerando normas de validade sinérgica, acima de
qualquer possibilidade de contestação no espectro temporal-evolutivo.
Muito pelo contrário, o que a ciência realiza, no âmbito de sua atuação, é exatamente conceber, caracterizando e criando através de interpretações próprias (porém, com necessário escopo de generalização), a melhor explicação de um dado fenômeno particular (natural ou social), em um considerado momento histórico em
que aspectos culturais, geográficos, organizacionais, etc, necessariamente possuem
sua esfera - maior ou menor - de influência.
(Assim é que nos primórdios da Física, a melhor explicação científica para o fenômeno da queda de um objeto em direção ao chão
não passava pela atual e complexa teoria da gravitação universal,
preferindo os “cientistas” da época, por ausência de melhor interpretação, entenderem o fato (na qualidade de efetivo acontecimento no mundo real) através da singela concepção da existência
de uma pretensa “mão invisível” que simplesmente empurrava todo
e qualquer objeto em direção ao solo.
Mas mesmo com todo o desenvolvimento da Ciência da Física, o homem ainda não foi capaz de explicar, de forma inequívoca, dentro
de seu contexto de juízo de realidade, dotado de valoração objetiva,
o simples fato da queda de um objeto em direção chão, considerando, sobretudo, que a vigente lei da gravidade (corolário da teoria da
gravitação universal) parte de um princípio básico de suposta validez
universal, mas amplamente contestável, que poderia ser resumido,
182
faculdade de direito de bauru
não obstante algumas complexidades que deixaremos ao largo, da
seguinte maneira: um corpo de massa menor é sempre atraído em direção ao corpo de massa maior, determinando, em conseqüência,
que qualquer objeto (de massa relativa desprezível) simplesmente
“caia” em direção ao centro do planeta (que possui massa infinitas
vezes maior), sendo contido apenas pelo obstáculo natural que é
exatamente a sua superfície (ou seja, o chão).
Como o pressuposto básico da atração gravitacional como concebida na atualidade contemporânea, pressupõe a existência de corpos com massa, a Física de hoje simplesmente não é capaz de explicar a descomunal atração gravitacional que exerce os chamados
“buracos negros”, na qualidade de corpos celestes desprovidos de
matéria, e, por conseqüência, de massa, na concepção clássica de
“massa branca”.)
A concepção básica de Ciência (incluindo seu conceito específico), por efeito conseqüente, não pode considerar a existência de incontestes e permanentes
princípios de validez universal, tendo em vista que a validade intrínseca dos princípios e pressupostos científicos são sempre mutáveis no tempo e no espaço, em
decorrência da própria e necessária evolução dos conceitos científicos.
(É evidente que os denominados Princípios Gerais do Direito não
são universais ou mesmo permanentes (até porque, os fenômenos
sociais que os instruem são nitidamente mais complexos que os fenômenos naturais, objetos de outras ciências) muito embora, no
mundo atual de notável capacidade de comunicação e intercâmbio, essa realidade tenda naturalmente a um ponto de aproximação semelhante a pretensa universalização de concepções tipicamente estudados pela Física, Química, Astronomia etc. O próprio
conceito axiológico de justiça, como valor intrínseco do Direito, é
conveniente ressaltar, vem sendo, de modo perceptível, permanentemente universalizado, não obstante as diversas culturas e os diferentes estágios evolutivos das várias sociedades em convivência
temporal comum.
Por outro lado, é também importante consignar que as ciências
dotadas de juízo de valor (valoração subjetiva), como o Direito, são
inerentes ao denominado mundo cultural, em que as preocupações
valorativas possuem inconteste natureza subjetiva.)
Por efeito conseqüente, a ciência não pode, sob pena de sublime subversão
lógico-conceitual, ser encarada como algo que se traduz por uma verdade absolu-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
183
ta, mas, ao contrário, necessariamente deve ser entendida como algo que busca, de
forma constante e permanente, a verdade (em sua acepção plena), aproximando-se
cada vez mais da mesma, porém sem nunca poder atingi-la, ou mesmo tangenciá-la
com plena segurança.
(É exatamente neste sentido que alguns autores observam a existência, em matéria científica, das denominadas “verdades relativas”, ou, em outras palavras, “verdades” com validez limitada ou
restrita, no tempo e no espaço, a uma dada e/ou considerada situação fática.
Por outro prisma, como o objeto das ciências sociais (culturais) é
mais complexo do que o das ciências naturais, considerando, neste
contexto analítico, não só a célebre afirmação de WILHELM DILTHEY (Introduction a L’etude des Sciences Humaines, Paris, 1942)
de que “a natureza se explica, enquanto que a cultura se compreende” mas, sobretudo, a constatação inequívoca de que o fato social
abrange relações múltiplas (mecânicas, físicas, químicas, biológicas, etc.), deduz-se, sem muito esforço, que a sua mobilidade é
muito maior que a relativa às ciências naturais, gerando uma falsa impressão de que suas conclusões interpretativas são menos válidas ou mesmo desprovidas de qualquer grau de cientificidade.
A verdade, entretanto, é que ambas as ciências (naturais e sociais
(culturais)) são, por definição, inexatas (pois buscam, de forma
constante e permanente, as suas respectivas verdades interpretativas), diferenciando-se apenas no foco de associação dos fenômenos e, em conseqüência, no lapso temporal associado que, no caso
das ciências naturais (por se tratar de fenômenos de menor complexidade relacional), são mais longos, originando uma primeira
(e equivocada) impressão de que não são variáveis e, portanto,
traduzem uma realidade fixa e exata.)
1.1. Classificação Binária das Ciências
Se é plenamente correto afirmar que as ciências, de modo geral, não se traduzem em verdades absolutas (ou, sob outra ótica, em princípios imutáveis e intangíveis de validez permanente e universal), mas apenas e limitadamente na busca incansável por estas mesmas verdades (no sentido da explicação correta e absoluta
para cada fenômeno natural ou social (cultural)), não menos acertada constitui a
afirmação segundo a qual o raciocínio binário humano se constitui no principal fator limitante do próprio desenvolvimento científico.
184
faculdade de direito de bauru
(Sob uma ótica puramente matemática, neste sentido, seria até
mesmo lícito afirmar que o raciocínio binário corresponde, como
uma sinérgica limitação humana, a uma progressão geométrica
de razão igual a dois. Em essência, o número a índice n, último
numeral da progressão, corresponderia ao infinito, demonstrando, claramente, a efetiva possibilidade humana de desenvolvimento. Porém, a velocidade deste mesmo desenvolvimento, correspondente à razão q da progressão, seria o menor possível, ou seja dois,
equivalente numeral ao raciocínio binário).
Como a contingência de superação da limitação binária tem se mostrado,
nos inúmeros séculos de desenvolvimento da humanidade, tarefa impossível de ser
concretizada, restou, de forma inexorável, ao gênero humano conceber e adaptar
todos os modelos de desenvolvimento científico a esta forma única e exclusiva de
pensar.
Por efeito conseqüente, todas as classificações de cunho científico forçosamente tiveram de se adaptar, e efetivamente se adaptaram, à imposição do binarismo, inclusive, sob esta ótica, a própria classificação das ciências em seu sentido
amplo.
Nesse contexto, as ciências, quanto ao seu objeto, passaram, de maneira amplamente majoritária, a ser classificadas em dois principais grupos: as denominadas
ciências da natureza (cujo foco de observação são fenômenos naturais) e as chamadas ciências da sociedade (cujo foco de observação cinge-se a fenômenos sociais e culturais). As ciências naturais, por sua vez, passaram a admitir uma subdivisão peculiar em ciências do macrocosmos (cujo foco de observação são fenômenos naturais externos aos seres vivos) e em ciências do microcosmos (cujo foco de
observação são fenômenos naturais internos aos seres vivos), ao passo que as ciências sociais, por seu turno, passaram a acolher a subdivisão em ciências não-hermenêuticas (ou não-comportamentais) e em ciências hermenêuticas (ou comportamentais).
No primeiro grupo (ciências naturais do macrocosmos), encontramos a Física, a Química, a Astronomia etc.; no segundo grupo (ciências naturais do microcosmos), nos deparamos com a Medicina, a Biologia, etc.; no terceiro grupo (ciências sociais não-hermenêuticas) achamos a Sociologia, a Antropologia, etc.; e, finalmente, no quarto grupo (ciências sociais hermenêuticas), encontramos o Direito.
(É importante esclarecer que a nomenclatura usual designativa dos
diversos tipos de ciência não guarda o necessário rigor terminológico que deve, em última análise, traduzir as características intrínsecas de cada modalidade científica. Assim, seria absurdo supor
a existência de uma pretensa ciência exata, considerando o próprio
Revista do instituto de pesquisas e estudos
185
conceito contemporâneo de ciência que se coaduna, de modo geral, com a “busca da verdade”.
De igual forma, sem qualquer precisão designativa, apresenta-se a
expressão ciência humana, posto que toda ciência é um produto humano de valoração intrínseca a um fato, concebendo uma regra explicativa (norma), associada, por seu turno, a um juízo de realidade ou a um juízo de valor.
Ainda assim, é forçoso reconhecer que não há como afastar, de
modo definitivo, estas nomenclaturas tradicionais (porém, atécnicas), devendo pois, os estudiosos do tema (e demais interessados)
procurar conviver com tais expressões, através de uma “virtual
tradução” de seus verdadeiros (e respectivos) sentidos designativos.)
Muito embora os menos avisados possam questionar onde estaria, neste espectro classificatório, posicionada a Matemática, a verdade é que esta pseudociência, por não possuir o escopo próprio de atuação das ciências (ou seja, a valoração
intrínseca (e interpretativa) de um fato (natural ou social), concebendo uma norma
explicativa (inerente ao mundo real) ou de projeção (inerente ao mundo cultural)), melhor se encontra classificada como genuína linguagem científica ou, como
preferem alguns, efetiva ciência instrumental.
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186
Diagrama 1: Classificação das Ciências (Quanto ao Objeto de Observação)
Do Macrocosmos (nomenclatura
Tradicional: Exatas)
(Ex.: fisíca, astronomia, quimica etc.)
Da Natureza
foco de observação:
fenômenos naturais
percepção interpretativa objetiva (juízo de
realidade), gerando
normas explicativas
Ciências
(Quanto ao
objeto)
foco de observação: fenômenos naturais externos aos seres vivos
Do Microcosmos (nomenclatura
Tradicional: Biomédicas)
(Ex.: medicina, biologia, bioquimica,
foco de observação: fenômenos naturais
internos aos seres vivos
Linguagem matemática
Instrumentais
Outras Formas de linguagem
pseudociências
derivadas das várias linguagens de
comunicação
Da sociedade
(Nomenclatura Tradicional:
Humanas lato sensu)
foco de observação: fenômenos sociais e culturais
percepcão interpretativa (juízo
de valor), gerando nomas de
projeção
Hermenêuticas (Nomenclatura Tradicional:
interpretativas) (Ex.: direito)
projeção cultural comportamental
Não-Hermenêuticas (Nomenclatura
Tradicional: Humanas stricto sensu)
(Ex.: soiologia, antropologia,
história, etc.)
projeção cultural não-comportamental
(reflexiva)
Revista do instituto de pesquisas e estudos
187
1.1.1. Outras Classificações Relativas às Ciências
Não obstante a consagrada classificação binária das ciências, resta oportuno
consignar que, no espectro histórico-evolutivo, como bem leciona MARIA HELENA
DINIZ em seu Compêndio de Introdução à Ciência do Direito (12ª ed., Saraiva, SP,
2000, ps. 22-26), muitos autores ensaiaram algumas classificações, hoje, de modo
geral, reputadas primitivas (e, portanto, ultrapassadas), que partem de outros pressupostos lógicos.
AUGUSTO COMTE, (Cour de Philosophie Positive, Paris, 1949), por exemplo,
optou por classificar as ciências em abstratas (teóricas ou gerais) e concretas (particulares ou especiais).
No primeiro grupo comtiano, como bem salienta MARIA HELENA DINIZ (ob.
cit., p. 23), estariam as ciências que estudam as leis gerais que norteiam os fenômenos da natureza, sendo-lhes aplicável os critérios da dependência dogmática (que
consiste em agrupar as ciências, de modo que cada uma delas se baseie na antecedente, preparando a conseqüente), da sucessão histórica (que indica a ordem cronológica de formação das ciências, partindo das mais antigas às mais recentes) e de
generalidade decrescente e complexidade crescente (que procede partindo da
mais geral para a menos geral e da menos complexa para a mais complexa), compreendendo, neste particular, a matemática (ciência dos números e da grandeza, a
mais simples e universal, posto que só se refere às relações de quantidade, embora
seja a mais geral porque se estende a todos os fenômenos), a astronomia (física celeste ou mecânica universal, ciência que estuda as massas materiais que existem no
universo), a física (ciência que se ocupa dos fenômenos físicos, ou seja das forças
da natureza), a química (físico-química, ciência que tem por objeto a constituição
dos corpos particulares), a biologia (física-biológica, ciência que estuda os corpos
complexos que se apresentam com vida) e a sociologia (físico social, ciência das relações sociais que se dedica a acompanhar a vida social do homem).
No segundo grupo desta classificação, por seu turno, encontrariam-se as ciências derivadas em que a tônica seria a descrição concreta dos fenômenos abstratos
estudados nas ciências teóricas ou gerais. Desta feita, a botânica e a zoologia seriam
ciências concretas derivadas da biologia, ao passo que o Direito seria uma ciência
concreta derivada da sociologia.
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188
Diagrama 2: Classificação das Ciências Segundo Augusto Comte
Ciências Matemáticas
Ciências Abstratas
(Teóricas ou Gerais)
Que tem por objeto os
números e as grandezas
(Aritmética, Geometria, etc.)
Que tem por objeto
as leis gerais que
norteiam os fenômenos da natureza
Ciência
Quanto ao
Critério de
Concreção
Ciência Originária
Ciências
Concretas
(Particulares
ou Especiais)
Que têm por objeto a
descrição concreta
dos fenômenos
abstratos estudados
nas ciências teóricas
ou gerais
Ciência Derivada
Ciências
Físicas
Que tem
por objeto
as forças da
natureza, de
Deus e do
homem.
Física Celeste
(Astronomia)
Física Abstrata
(Física propriamente dita)
Física-Química
(Química)
Física Biológica
(Biologia)
Física Social
(Sociologia)
Revista do instituto de pesquisas e estudos
189
WILHEM DILTHEY (Introduction a L’etude des Sciences Humaines, Paris,
1942), inspirado, como bem lembra MARIA HELENA DINIZ (ob. cit., p. 24), na classificação de ciência de AMPÉRE, optou, por sua vez, em distinguir ciências da natureza (que se ocupam dos fenômenos físico-naturais, empregando o método da
explicação fática) e ciências do espírito (ciências noológicas ou culturais na nomenclatura de RICKERT), estas subdivididas em ciências do espírito subjetivo (psicológicos, que têm por objeto o mundo pensamento) e em ciências do espírito objetivo (culturais, que descrevem e analisam a realidade histórica e social como produto das ações humanas).
Nesse contexto classificatório, encontraríamos na primeira divisão a física, a
química, a biologia, etc., ao passo que, na segunda divisão, a psicologia (espírito
subjetivo) e a sociologia e o direito (espírito objetivo), entre outras.
Diagrama 3: Classificação das Ciências Segundo Wilhem Dilthey (e Ampère)
Ciências da Natureza
Que tem por objeto os fenômenos físico-naturais (Física,
Química, Biologia, etc.)
Ciência Quanto
ao Critério
Perceptivo
Subjetivo (psicológico)
Ciências do Espírito
(Noológicas)
Que tem por objeto os
fenômenos físico-culturais
Que tem por objeto o mundo
do pensamento (cultural interno) (Psicologia)
Objetivo (Cuturais)
Que tem por objeto o mundo da
realização humana (cultural externo) (Sociologia, Direito, etc.)
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190
ARISTÓTELES, baseando-se no critério ficcional, por seu turno, preferiu dividir as ciências em teórica ou especulativa (limitadas à reprodução cognitiva da realidade), e práticas (que tem por objeto o conhecimento para a orientação de ações
e comportamentos).
Dentre as ciências teóricas, distinguiu-se, conforme o grau de abstração inerente a cada uma delas, as ciências físicas ou naturais (incluindo a percepção da natureza originária (realidade natural) e da natureza transformada pelo homem (realidade cultural)), as ciências matemáticas ou formais (atinentes ao mundo quantitativo numérico (aritmética) e extensivo (geometria)) e as ciências metafísicas (ontológicas, relativas ao ser enquanto ser, ocupando-se com noções de causa e efeito).
Já no grupo das ciências práticas, existiriam as ciências morais ou ativas
que objetivam dar normas ao agir, procurando dirigir a atividade interna e pessoal
do homem, buscando atingir o bem comum) – onde estaria inserido o Direito –, e
as ciências factivas e produtivas (que visam dar normas ao fazer, procurando dirigir a atividade externa e pessoal do homem, buscando atingir o belo (ciências artísticas) ou o útil (ciências técnicas)).
Diagrama 4: Classificação das Ciências Segundo Aristóteles
Ciências Teóricas
ou Especulativas
Limitadas à reprodução cognitiva
da realidade
Ciências Físicas ou
Naturais (Física,
Química, etc.)
Ciências
Matemáticas ou
Formais
Ciências Metafísicas
(Ontológicas)
(Psicologia)
Ciência
Quanto ao
Critério
Funcional
Quantitativo-Numérico
(Aritmética)
Quantitativo-Extensivo
(Geometria)
Ciências Morais ou Ativas
Artísticas
Ciências Práticas
Que têm por objeto o conhecimento
para a orientação
de ações e comportamentos
Objetivam dar normas ao
agir (atividade interna do
homem) (Direito)
Ciências Factativas ou
Produtivas
Objetivam dar normas
ao fazer (atividade
externa do homem)
Objetivam o belo (Música,
Artes Plásticas, etc.)
Técnicas
Objetivam dar normas
o útil (Engenharia,
Medicina, etc.)
Revista do instituto de pesquisas e estudos
191
De qualquer sorte, - e independentemente de outras considerações -, vale frisar que, sob uma certa ótica, todas essas diferentes classificações também atendem,
a exemplo da doutrina mais contemporânea a propósito do tema, a uma concepção
binária, ainda que, de modo inevitável, restrita, por sua vez, a uma percepção menos desenvolvida (avançada) do fenômeno epistemológico em seu sentido amplo.
1.2. Normas da Natureza ( Juízo de Realidade) e Normas da Cultura
( Juízo de Valor)
A moderna concepção classificatória binária, todavia, não pode ser plena e
satisfatoriamente entendida, em sua inteireza, sem a necessária compreensão da
origem última da própria dicotomia intrínseca que existe na distinção básica e fundamental entre as ciências naturais e sociais (culturais), na qualidade de incontestes circunstâncias originárias que se operam como verdadeiras explicações lógico-distintivas.
Essas inerentes características circunstanciais aludem, sobretudo, às diferentes percepções normativas que se deduzem a partir da observação dos mais diversos fenômenos naturais e sociais (culturais), o que torna, por via de conseqüência,
o seu estudo indiscutivelmente fundamental para a perfeita compreensão do Direito como ciência social (cultural).
Desta feita, o primeiro passo, sob esta ótica analítica, é procurar estabelecer
claramente a indubitável diferença entre as regras derivadas da simples observação da natureza, - que retratam a realidade perceptível do mundo como ele se
apresenta (mundo do ser) -, produzindo os chamados “juízos de realidade”, das regras derivadas da percepção intelectual e criativa do homem, - que, ao contrário,
traduzem a percepção axiológica do ser social e criativo -, produzindo os denominados “juízos de valor”.
(Conforme já mencionamos, a partir da observação de fatos da
natureza, o homem descreve interpretativamente determinadas
normas que retratam, através de uma percepção objetiva, a explicação lógica relativa aos fenômenos naturais, concebendo os chamados “juízos de realidade”. Neste particular, é cediço deduzir que
os corpos providos de massa “caem” (na verdade se dirigem ao
centro do planeta), em função de uma construção normativa, cuja
síntese conclusiva aponta para a explicação teórica da lei da gravitação universal (cujo corolário mais conhecido denomina-se lei
da gravidade), da mesma maneira que os gases, quando submetidos ao calor, se dilatam, através de leis concebidas pelo homem
por intermédio de uma valoração objetiva da realidade fática inerente ao denominado mundo do ser, em que a participação humana, embora tenha inegável caráter de percepção valorativa, é sem-
192
faculdade de direito de bauru
pre dirigida objetivamente a explicação dos fenômenos inerentes
ao mundo como ele de fato se apresenta, sem qualquer consideração subjetiva (juízo de valor propriamente considerado), posto
que seu único objetivo é extrair juízos perceptivos de realidade,
criando normas físicas com o intuito de sedimentar (e desenvolver) os conhecimentos adquiridos.
A partir da observação dos fatos sociais, em virtual oposição, todavia, o homem descreve interpretativamente, determinadas normas
que refletem, através de uma percepção subjetiva, não a explicação lógica inerente ao mundo natural, mas, ao contrário, a valoração efetiva derivada da realidade cultural em que se encontra
inserido, produzindo normas de cultura (e não normas da natureza) derivadas de um juízo de valor (valoração subjetiva).
Neste especial, o homem, de forma diversa do juízo de realidade
(onde também existe uma valoração perceptível, ainda que de caráter objetivo), não mais deseja construir normatizações inerentes
ao mundo como ele é (mundo do ser), mas, ao contrário, procura
traduzir valores próprios (subjetivos) que projetem alterações circunstanciais capazes de interferir com a realidade, concebendo
um autêntico mundo derivado que corresponde aos vários objetivos pelos quais o homem analisa a realidade fática buscando,
através dos vários juízos de valor, analisá-la e modificá-la.)
As normas da natureza, inerentes ao juízo de realidade (valoração factual perceptiva da caráter objetivo), como se pode facilmente deduzir, são estudados pelas chamadas ciências naturais, por intermédio de suas duas vertentes: macrocosmos (relativa aos aspectos factuais da realidade observável externa aos seres vivos) e microcosmos (relativa aos aspectos factuais da realidade observável interna aos seres vivos).
Já as normas da cultura, inerentes ao juízo de valor (valoração perceptível de
caráter subjetivo), ao contrário, correspondem às denominadas ciências sociais (culturais) que se subdividem, por seu turno, em ciências não-hermenêuticas (em que os
juízos de valor são procedidos sobre fatos sociais observados, reunindo, pois, normas
derivadas de simples percepção axiológica e reflexiva dos fenômenos ocorridos no
mundo cultural, tais como as normas sociológicas, históricas, econômicas, etc.) e em
ciências hermenêuticas (em que os juízos de valor se adicionam a uma projeção de
obrigatoriedade de comportamento na busca da preservação de valores e que, por esta
razão, são necessariamente reinterpretadas hermeneuticamente).
Vale registrar, por oportuno, que outros autores também têm ensaiado outras
classificações a respeito do tema, ainda que, de um modo geral, aludam, como não poderia deixar de ser, as inexoráveis diferenças entre as normas da natureza (derivadas
do juízo de realidade e inerentes ao mundo do ser) e as normas de cultura (deriva-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
193
das do juízo de valor e inerentes ao mundo do dever-ser). Nesse particular, resta,
como ilustração, expressamente aludir à classificação de HERMES DE LIMA (Introdução à Ciência do Direito, 27ª ed., Freitas Bastos, RJ, 1983), que procurou estabelecer
uma classificação, segundo a conduta humana, em normas técnicas (derivadas do juízo de realidade e inerentes ao mundo do ser) e em normas éticas (derivadas do juízo de valor e inerentes ao mundo do dever-ser).
Diagrama 5: Concepção Estrutural Normativa: Normas da Natureza ( Juízo de Realidade) e Normas da Cultura ( Juízo de Valor).
Normas da Natureza
Retratam, através de uma
percepção objetiva, a
explicação lógica relativa
aos fenômenos naturais,
concebendo os chamados
juízos de realidade
Concepção
Estrutural
Normativa
Plexo Axiológico Objetivo
(valoração factual perceptivel de carater objetivo)
Externa
Inerente à realidade perceptivel interna ao seres vivos
Interna
Inerente à realidade perceptivel externa ao seres vivos
Não-Hermenêticas
Sociológicsa
Histórias
Econômicas
Mundo do Ser
Inerente às Ciéncias
Naturais
Norma da Cultura
Inerentes aos juízos de valor
que são procedidos sobre fatos
sociais observados, reunindo
normas derivadas de simples
percepção axiológica (reflexiva)
dos fenômenos perceptiveis no
mundo cultural
Retratam, através de uma percepção
subjetiva, a valoração efetiva aos
fenômenos sociais, concebendo os
chamados juízos de valor
Hermenêticas
Plexo Axiológico Subjetivo (valoração factual perceptivel de
caráter subjetivo)
Mundo do Dever-Ser
Inerente às Ciências
Sociais (Culturais)
Inerentes aos juízos de valor
adicionados a uma projeção de
obrigatoriedade de comportamento na busca de preservação de valores
Política
Moral
Ética
Religiosa
Jurídica
194
2.
faculdade de direito de bauru
CLASSIFICAÇÃO DA CIÊNCIA DO DIREITO
Como o objeto precípuo de nosso trabalho restringe-se ao estudo do Direito,
mister que, a partir de um amplo quadro ilustrativo (já perfeitamente delineado),
nos limitemos à classificação do Direito, objetivando, desta feita, extrair os importantes ensinamentos derivados desta percepção.
Neste diapasão, resta fundamental assinalar que, num espectro analítico mais
adequado, a Ciência do Direito tem sido corretamente classificada como efetiva
ciência social, de nítida feição hermenêutica, considerando, especialmente, não só
possuir foco de observação em fenômenos sociais e culturais, mas, sobretudo, por
desenvolver um sistema peculiar de interpretação de fatos sociais e culturais que
não se limita, de nenhuma maneira, à simples valoração intrínseca dos mesmos,
concebendo norma (fase legislativa), mas, ao contrário, permite ultrapassar a concepção fundamental interpretativa, reprocessando a conclusão (ou, em outras palavras, a própria norma) e concebendo, desta feita, uma segunda norma (de aplicação) no contexto de um sinérgico processo hermenêutico (fase judicial).
(A verdade é que o Direito, como ciência, possui, numa aproximação para fins didáticos, dois diferentes momentos interpretativos.
O primeiro – comum a todas as ciências e que se processa através
da tríade fato/valor/norma – caracteriza um processo tipicamente
legislativo de criação da própria norma abstrata. O segundo – peculiar à chamada ciência jurídica – desenvolve um processo genuinamente judicial de aplicação efetiva da norma abstrata por meio da
caracterização (através de um complexo hermenêutico de mecanismos de interpretação da norma jurídica) da norma concreta
(ou efetiva).)
Todavia, não obstante a inerente complexidade do assim concebido processo
hermenêutico, o Direito, sob o prisma classificatório, não pode se restringir (e de
fato não se restringe) à simples designação de ciência social hermenêutica, posto
que a denominada ciência jurídica também se caracteriza, de forma diversa das demais ciências, por ser uma ciência particular de projeção comportamental (ou,
como preferem alguns autores, ciência de projeção de um mundo ideal (meta do
dever-ser)) e por ser uma ciência inexoravelmente axiológica (valorativa).
(Sob a ótica axiológica, em particular, cumpre esclarecer que o Direito se exterioriza, no âmbito científico, através de um específico
e complexo processo de valoração factual que inclui parcelas intrínsecas (notadamente a segurança das relações sócio-político-jurídicas e a busca da justiça (ou da decisão justa)), cuja ponderação se
Revista do instituto de pesquisas e estudos
195
concretiza, de maneira diferenciada, por intermédio dos diversos
ramos científicos do Direito. Assim, o Direito Processual, que, incontestavelmente, se constitui em uma inexorável unidade (como
sempre defenderam os unitaristas (ou monistas), como HANS KELSEN), passou a ser dividido em Direito Processual Penal – no qual,
no eventual confronto entre os valores axiológicos da justiça e da
segurança, prepondera o valor da justiça (razão pela qual inexiste,
por exemplo, prazo decadencial para o ajuizamento da competente ação autônoma de impugnação (revisão criminal) contra
sentença condenatória transitada em julgado) – e em Direito Processual Não-Penal (Direito Processual Patrimonial ou Civil lato sensu) – no qual, no mesmo confronto, prepondera o valor da segurança (razão pela qual há, no âmbito do processo civil, em situação
análoga, prazo decadencial de dois anos para o ajuizamento da
competente ação autônoma de impugnação (ação rescisória)
contra sentença transitada em julgado na esfera cível).)
2.1. Axiologia Jurídica e Projeção Comportamental do Direito
Inegavelmente, as características axiológicas e de projeção comportamental (meta do dever-ser) do Direito, muito mais do que a própria vertente hermenêutica, foram responsáveis, por muitos anos (e mesmo séculos), pela grande
dúvida no tocante ao específico posicionamento enciclopédico do Direito. Havia
no passado remoto razoáveis dúvidas (e algumas com sobrevida mesmo no passado recente) a respeito dessas características particulares da Ciência Jurídica,
notadamente no que alude à sua específica operacionalidade prática, forjando,
em conseqüência, uma forte incompreensão quanto à efetiva possibilidade de se
ter, no espectro classificatório, uma autêntica ciência social de projeção de um
mundo ideal, a partir de premissas valorativas (de cunho nitidamente axiológico), inerentes a um quadro de idéias (com forte feição ideológica), presentes e
decompostas no mundo real.
Entretanto, o que aparenta ter sido dúvida primaz no passado parece ter se
transformado em inconteste certeza no presente, permitindo que o Direito – a par
de toda a sorte de inegáveis especificidades – se posicione, com invejável segurança, na atualidade contemporânea, em um tipo particular de ciência, com características especiais (hermenêutica, comportamental (projeção de um mundo ideal
(meta do dever-ser)) e axiológica), mas nem por isso distante do factum característico fundamental de todas as ciências, ou seja, a busca permanente e contínua
pela verdade, através da interpretação de fatos (naturais ou sociais), por intermédio
da necessária e insuperável valoração intrínseca de um dado fenômeno, originando uma norma ou tese (explicativa e/ou comportamental).
CIÊNCIA
HERMENÊUTICA
DO DIREITO
específica da ciência hermenêtica do
Direito (inerente ao Poder Judiciário
no caso do Direito)
Fase interpretativa 2
comum a todas as ciências
(inerente ao Poder Legislativo
no caso do Direito)
Fase interpretativa 1
FATO
Valoração intreseca de um caso
Aplicação dos planos metodológicos
(notadamente a interpretação quanto aos meios ou métodos)
Projeção Ideal do
Mundo do DEVER-SER
Resultante da aplicação dos três principais planos
metodológicos de interpretação normativa, particularmente a interpretação quanto aos meios ou métodos
APLICAÇÃO DA NORMA
NORMA
Resultado do juizo próprio
implícito na valoração anterior
VALOR
Conjunto axiológico de valores de
uma determinada sociedade no
tempo e no espaço (quadro de
idéias e valores)
196
faculdade de direito de bauru
(Informações complementares e detalhes a respeito do tema podem ser pesquisados em nossa obra Ciência do Direito, Norma, Interpretação e Hermenêutica Jurídica, 3ª ed., Rio de Janeiro, Forense
Universitária, 2000, ps. 1-38).
Diagrama 6: Caracterização da Ciência Hermenêutica do Direito
Revista do instituto de pesquisas e estudos
3.
197
TRIDIMENSIONALIDADE DO DIREITO
Não obstante toda a sorte de considerações que permitem uma verdadeira
multiplicidade de pontos de vista a respeito do Direito como ciência, - particularmente o próprio conceito de ciência, que de sua matriz original e restritiva (“ciência é um complexo de enunciados verdadeiros, rigorosamente fundados e demonstrados, com um sentido limitado, dirigido a um determinado objeto”) evoluiu
para uma concepção contemporânea mais ampla e consentânea (“ciência é a busca
da verdade (explicativa de uma realidade inerente ao mundo do ser ou projetativa
de uma percepção cultural inerente ao mundo do dever-ser) -, é fato que, em seu
caráter estrutural, a denominada Ciência Jurídica apresenta-se através de uma nítida feição tridimensional, transcendente, em todos os casos, às diversas concepções
epistemológico-jurídicas relativas à cientificidade do conhecimento jurídico.
Desta feita, - independente da particular concepção doutrinária de MIGUEL
REALE -, o Direito, como qualquer ciência, constitui-se, em último grau, em uma resultante final da percepção interpretativa (de índole subjetiva, inerente ao seu
correspondente juízo de valor, relativo ao denominado mundo do dever-ser, dotado de significação cultural) de um dado fato social, traduzindo necessariamente
uma concepção normativa (cultural) de projeção comportamental e de natureza
hermenêutica.
Por efeito conseqüente, a caracterização do Direito, como inconteste realidade científica, em sua vertente tridimensional, apenas reflete, em linhas gerais, o caráter comum da equação que sempre se constrói por intermédio da percepção interpretativa de um fato (valoração factual) concebendo uma norma resultante;
sendo certo, sob este prisma, que as diferentes ciências e suas respectivas classificações se operam a partir, sobretudo, das duas diferentes possibilidades de percepções
interpretativas de um dado fato produzindo normas finalísticas: de caráter objetivo (juízo de realidade inerente ao mundo do ser sobre fatos naturais, traduzindo
normas (reais) explicativas) ou de caráter subjetivo (juízo de valor inerente ao
mundo do dever-ser sobre fatos sociais, traduzindo normas (culturais) de projeção comportamental (hermenêutica) ou não-comportamental).
Social
Natural
FATO
NORMA
Cultural
De Projeção
Real
Explicativa
Percepção
interpretativa
Descritivas e analiticas de condutas humanas
Comportamental (Hermenêutica)
Descritivas e analíticas da realidade histórica, cultural e social
Não-Comportamental
Significação Cultural
Mundo do Dever-Ser (valoração factual subjetiva)
Subjetiva ( Juizo de Valor)
Significação Real
Mundo do Ser (valoração factual objetiva
Objetiva ( Juizo de Realidade)
198
faculdade de direito de bauru
Diagrama 7: Estrutura Tridimensional das Ciências
Revista do instituto de pesquisas e estudos
199
3.1. Estrutura Tridimensional do Direito
O tridimensionalismo, essencialmente, constitui-se, portanto, em uma característica estrutural inerente a todas as ciências, - e não, como podem supor os
menos avisados, a uma particularidade da Ciência do Direito -, ainda que sejamos
obrigados a reconhecer que a denominada visão tridimensional de MIGUEL REALE,
neste aspecto, transcenda à concepção básica da tríade Fato-Valor-Norma, comum a
toda construção científica, para também abranger aspectos associados, próprios e
específicos, da Ciência Jurídica, tais como aqueles integrantes da interação do fato
com a validade social (sociologismo jurídico), do valor com a validade ética (moralismo jurídico) e da norma com a validade técnico-jurídica (normativismo abstrato), além de elementos de domínio que traduzem uma tridimensionalidade concreta ou específica: fato/eficácia (aspecto do ser), valor/fundamento (aspecto do
poder-ser) e norma/vigência (aspecto do dever-ser).
4.
CARACTERIZAÇÃO PARTICULAR DA CIÊNCIA DO DIREITO
De todo e exposto, resta concluir, - não obstante algumas acepções conceituais simplificadas (que entendem, por exemplo, a ciência “como um conjunto organizado de conhecimentos relativos a um determinado objeto, especialmente os
obtidos mediante a observação e a experiência dos fatos e um método próprio”) -,
que toda a ciência resume-se, em última análise, a um processo de percepção valorativa objetiva (inerente ao mundo real) ou subjetiva (inerente ao mundo cultural) de um dado fato natural ou social, produzindo, em conseqüência, uma norma
explicativa (descritiva da realidade física) ou de projeção não-comportamental
(descritivas e analíticas da realidade histórica, cultural e social) e comportamental
(descritivas e analíticas de condutas humanas).
Nesse aspecto, é cediço concluir que toda a ciência é, em síntese, interpretativa
em uma tradução abrangente, tendo em vista que o escopo de atuação científica se processa exatamente através da interpretação de fenômenos naturais ou sociais (culturais).
Desta feita, a chamada valoração intrínseca de um dado fato (natural ou social), criando uma tese ou norma, nada mais é do que o resultado último de uma
interpretação em sentido amplo.
Por efeito, quando se afirma que uma determinada ciência é classificada como
não-hermenêutica isto não significa dizer que inexiste, in casu, interpretação, mas apenas que não se processa, na hipótese, um mecanismo de “sobreinterpretação” (ou dupla interpretação), caracterizador do denominado processo hermenêutico.
Nesse diapasão analítico, é lícito afirmar que a denominada ciência hermenêutica – de que o Direito é o melhor exemplo – se caracteriza, sobremodo, pela
efetiva existência de um autêntico processo complexo de interpretação. Por efeito,
vale dizer que inicialmente há, como em todas as demais ciências, a valoração in-
faculdade de direito de bauru
200
trínseca de um fato criando uma dada norma ou tese (fase legislativa); todavia, de
forma diversa das demais espécies científicas, a norma produzida pelo sistema interpretativo básico não pode ser, de imediato, aplicada, sendo necessária uma espécie de “sobreinterpretação” (ou seja, a norma concebida originariamente é reinterpretada através de um novo e diferente processo) para se chegar, finalmente, à interpretação final e definitiva, no contexto específico de uma “verdade relativa”, por
intermédio de uma fase judiciária.
A este fenômeno particular e próprio do Direito é que convencionalmente a doutrina costuma denominar de interpretação normativa ou hermenêutica jurídica e
que, em face de sua inerente complexidade, será estudado em capítulo estanque.
Diagrama 8: Processo Interpretativo Concernente à Ciência do Direito
Fase legislativa de caracterização
da norma jurídica
VALOR
(Valoração intrinseca de um dado
fato social com correspondente juízo
de valor)
FATO
Processo básico de interpretação
(Inerente a todas as ciências)
NORMA
Fase judiciária de aplicação
da norma jurídica
(Resultado final da valoração factual, com a concepção de uma reprovadora, incentivadora etc.)
Processo específico de sobreinterpretação (Inerente ao Direito
na qualidade de ciência hermenêutica)
NORMA DE
APLICAÇÃO
(Resultado hermenêutico da aplicação dos critérios
técnicos-jurídicos de aplicabilidade da norma
Revista do instituto de pesquisas e estudos
201
4.1. Ciência Axiológica
Da mesma forma que o Direito se caracteriza, sob o prisma hermenêutico,
como uma ciência de “duplo processo interpretativo” (ou “sobreinterpretação”),
igualmente se processa como uma ciência de valoração factual ampliada, ou
mesmo de “sobrevaloração”.
Isto significa, em linguagem objetiva, que, no âmbito da Ciência do Direito, o
processo de valoração intrínseca de um fato, concebendo uma dada norma, não
se restringe a um espectro valorativo (de cunho científico) nitidamente objetivo
(ou exclusivamente interpretativo), mas, ao contrário, necessita da imposição de valores sociais (derivados da ética, da moral etc. e que, necessariamente, são mutáveis no tempo e no espaço) e de valores intrínsecos (tais como segurança, justiça,
ordem etc.)
Como os valores axiológicos do Direito podem, inclusive (em dadas circunstâncias), ser antagônicos (segurança versus justiça, por exemplo), incumbe ao processo valorativo (de feição axiológica) particular do Direito a busca permanente de
uma solução conciliadora, representada, em última análise, pela caracterização dicotômica dos diferentes ramos científicos do Direito (direito penal, civil, tributário
etc.) que ponderam, de maneira propositadamente desigual, os diferentes valores
intrínsecos a cada dada situação efetiva.
(Não é por outra razão que, após duas horas acaloradas de debates, o Superior Tribunal de Justiça tomou uma decisão inédita no
Brasil.
Negou o cancelamento do registro de paternidade, mesmo após um
exame de DNA comprovar que um pediatra de Goiás não era o pai
biológico de uma criança. A razão: a sentença já havia transitado em julgado.
O STJ optou por manter a sentença para preservar a “segurança jurídica” no campo do Direito Civil.
A ação foi julgada em primeira instância em 1993 e a decisão, à
base de provas testemunhais, foi pelo reconhecimento da paternidade. Em segunda instância, manteve-se a decisão. E, em grau de
recurso, chegou o caso ao STJ, que não julgou a ação por se tratar
de matéria de prova (é conveniente lembrar que o STJ só tem competência para julgar matéria de direito).
Só depois de vencidos os prazos legais em que podia recorrer, o pediatra entrou com uma ação de negação de paternidade, exigindo
o exame de DNA e pedindo o cancelamento do registro civil.
O exame provou que não era ele o pai. Mas aos olhos da lei era tarde demais. Prevaleceram no STJ os argumentos de que a matéria
julgada deveria ser preservada, sob pena de abrir um precedente
202
faculdade de direito de bauru
que determinaria a possibilidade de reavaliação constante de
ações já julgadas, fazendo, desta feita, pois, prevalecer o princípio
de segurança jurídica sobre o valor da justiça, como valor axiológico básico inerente ao Direito, considerando, sobretudo, a natureza não-penal do Direito Processual vertente à hipótese.)
5.
ESPECIFICIDADES DA CIÊNCIA JURÍDICA
A percepção do Direito como inexorável ramo científico, todavia, não é, por
si só, suficiente para a plena compreensão do fenômeno jurídico à luz das necessidades de superação das múltiplas questões que se apresentam.
Muito pelo contrário, resta fundamental que o estudioso da matéria seja
capaz de entender, de forma amplamente satisfatória, as três características basilares do Direito como ciência: projeção comportamental, axiologia e hermenêutica.
A primeira – projeção comportamental – alude ao fato de que a preocupação vital do Direito resume-se, acima de tudo, em moldar comportamentos individuais e grupais, a partir de um quadro de idéias e valores (mutáveis no tempo e no espaço), idealizado pelo conjunto da sociedade, representada pelos seus
legisladores.
(Não é por outra razão que as normas incriminadoras (típicas da
parte especial do Código Penal), por exemplo, não podem ser aplicadas retroativamente, posto que a preocupação fundamental do Direito não é punir e sim evitar que a conduta reprovável (e em algum momento já realizada) se repita, projetando, desta feita, o
comportamento idealizado pelo conjunto da sociedade (contrário
à prática da conduta considerada).
Em sentido oposto, as chamadas normas permissivas têm emprego
retroativo exatamente pelo fato de que a projeção de comportamentos, intrínseca ao Direito, encontra fundamento na valoração
factual (valoração político-ideológica do conjunto da sociedade
(através de seus representantes) sobre o fato social, concebendo a
norma comportamental (norma jurídica)) que, por natureza, é
sempre mutável no tempo (e no espaço) e, por esta razão, deve
acompanhar os desígnios sociais mais atualizados.)
Assim é que o Direito está, de modo constante e permanente, a orientar
as condutas humanas em sociedade, a partir de suas normas jurídicas que são
produzidas pelo conjunto da sociedade (ainda que através de seus representantes eleitos para tanto) e aplicadas (interpretadas) por um corpo técnico de jul-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
203
gadores, quando da eventualidade da existência do conflito (derivado da nãocompreensão dos exatos termos da norma e/ou do efetivo e intencional descumprimento da mesma).
A segunda – a axiologia – corresponde à inconteste existência de uma infinidade de valores intrínsecos ao Direito, donde se destacam, preponderantemente,
os valores da justiça e da segurança.
Como ambos os valores são igualmente importantes, tratou o Direito (originalmente, uma inconteste realidade unitária) de se ramificar, permitindo o estabelecimento a priori de eventuais possibilidades de prevalência de um valor sobre o
outro, quando preexiste a hipótese de conflito valorativo.
Desta maneira, prevalece, em última instância, a verdade real (em nome do
valor da justiça) nas questões instrumentalizadas pelo Direito Processual Penal, ao
passo que prepondera, em última análise, a verdade ficta, formal ou presumida
(em nome do valor da segurança) nas questões (sobretudo patrimoniais) instrumentalizadas pelo Direito Processual Civil.
(Ainda assim, deve ser esclarecido que os valores vertentes do Direito (fundamentalmente, a justiça e a segurança) não são necessariamente divergentes. Muito pelo contrário, trata-se de valores
harmônicos e convergentes que, apenas em dadas situações concretas, tornam-se divergentes, obrigando o Direito, como realidade axiológica, a resolver o eventual conflito valorativo. Assim é
que, em essência, o Direito Processual Civil, em relação ao Direito Processual Penal, busca igualmente a verdade real; apenas,
não a encontrando, sua disciplina autoriza o julgador a sentenciar com base na verdade presumida. Aliás, a maior prova da
convergência axiológica dos valores intrínsecos ao direito pode
ser deduzida partindo-se de uma premissa segundo a qual cada
grau jurisdicional subsequente (posterior) aperfeiçoa o anterior,
forjando a concepção hipotética de que, para se ter um decisão
absolutamente justa, seriam necessário n graus, quando n tende
ao infinito (•). Ora, como a existência humana é inexoravelmente finita, tal concepção – abstrata e hipoteticamente justa –
seria, na prática, absolutamente injusta, posto que todos os jurisdicionados (e demais interessados) deixariam de existir antes
da prolação final da sentença. A restrição do número de graus
de jurisdição – uma inconteste imposição do fator segurança – ,
por efeito, coaduna, neste contexto, perfeitamente com os ditames mais sublimes do valor da justiça, demonstrando claramente o relativo equilíbrio axiológico do Direito.)
204
faculdade de direito de bauru
A terceira – hermenêutica – indica, sobremaneira, a existente interação funcional entre a apriorística parcela legislativa do Direito e a subseqüente parcela
judiciária, responsável última pela interpretação (e aplicação, nos eventuais conflitos) das normas jurídicas produzidas pelos representantes do povo (na qualidade de titular do Poder Político).
(A idéia central in casu corresponde, em termos aproximados, à
noção da separação funcional do exercício do Poder Político e, em
parte, ao festejado mecanismo de freios e contrapesos, considerando que, na hipótese, a parcela responsável pela criação e edição
das leis (Poder Legislativo) não pode interpretar e aplicar as mesmas, ao passo que a parcela responsável pela interpretação e aplicação das leis (Poder Judiciário, em última análise) não pode
fazê-lo, exceto com base na norma legitimamente produzida pelo
legislador. Não é por outro motivo que, não obstante seja pacífico
o entendimento de que o julgador deve sempre buscar a decisão
justa, o mesmo jamais pode obter o resultado almejado senão com
base na lei (ou nas leis), legítima e constitucionalmente produzidas pelo legislador.
Também, a propósito do tema, vale consignar que não é só o julgador que aplica e interpreta a norma jurídica. Muito pelo contrário, todos os operadores do Direito (advogados, membros do Ministério Público, juízes etc.) e até mesmo os cidadãos são potenciais
aplicadores e intérpretes (o primeiro grupo, de forma técnica, e o
segundo, de modo leigo), sendo certo que, no eventual conflito, no
entanto, a última palavra (no que tange à interpretação e à aplicação das normas jurídicas) será sempre do Judiciário (e, consequentemente, de seus membros).)
Muito embora o conhecimento dessas três características basilares do Direito como ciência seja absolutamente fundamental para o entendimento e a compreensão última do fenômeno jurídico, é exatamente esta última característica (a
hermenêutica jurídica) – e sua indispensável e plena compreensão – o fator primordial para o completo êxito deste objetivo, posto que tal característica atinge o
âmago da concepção estrutural do Direito.
Aliás, neste particular, cumpre assinalar, de modo veemente, que o objeto específico (em seu sentido mais restritivo) do conteúdo dos cursos jurídicos cinge-se,
preponderantemente (se não exclusivamente) à interpretação (e aplicação) da
norma jurídica, produzida pelo legislador, e não propriamente à caracterização
originária da lei (em seu sentido amplo) ou do próprio Direito, devendo, neste aspecto, serem afastadas, com sinérgica repulsa, quaisquer teses (ou posições) excên-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
205
tricas (e altamente controvertidas), como a do propalado Direito Alternativo ou Direito Insurgente.
Diagrama 9: Características Basilares do Direito como Ciência
Ciência de projeção Comportamental
A preocupação vital do Direito resume-se, acima de
tudo, em moldar comportamentos individuais e grupais a partir de um quadro de idéias e valores idealizado pelo conjunto da sociedade, representando pelos
seus legisladores
Caracteristicas
Basilares do
Direito como
Ciência
Ciência Axiológica
O Direito é, essencialmente, uma ciência valorativo-cultural em que sua ramificação, embora útil também para
fins didáticos, se opera com o intuito de equilibrar axiologicamente os valores da justiça e da segurança
Ciência Hermenêutica
No Direito há, dialeticamente, uma peermanente interação funcional entre uma apriorística parcela legislativa
(de produção normativa) e uma subseqüente parcela
interpretativa (de aplicação normativa)
faculdade de direito de bauru
206
Diagrama 10: Direito como Ciência de Projeção Comportamental
DIREITO
Instrumento (sobretudo normativo)
de orientação de condutas humanas
em sociedade
Mundo Real
Mecanismo de transformação do mundo real no
mundo ideal
Mundo Ideal
Realidade Factual
(mundo do ser)
Produto de idealização política
(meta do dever-ser)
Objeto de constante e permanente
valoração pelo Direito como mecanismo de modificação comportamental
Resultado de um quadro de idéias e
valores, de feição político-ideológica,
forjado por uma dada sociedade e
mutável no tempo (e no espaço)
Revista do instituto de pesquisas e estudos
207
Diagrama 11: Direito como Ciência Axiológica
DIREITO UNITÁRIO
(Realidade Originária)
VALOR DA
JUSTIÇA
Sentido de
Prevalência
DIREITO A
(Por exemplo, Direito
Processual Penal)
CONFLITO VALORATIVO
(Eventual)
VALOR DA
SEGURANÇA
DIREITO RAMIFICADO
(Realidade Impositiva)
Sentido de
Prevalência
DIREITO B
(Por exemplo, Direito
Processual Civil)
FATO SOCIAL
(Constatação
Perseptivel do
Mundo Real)
NORMA CONCRETA DE APLICAÇÃO
(Norma Intepretativa)
Aplicaçãodos Critérios ou
Métodos Hermenêuticos
CONCEPÇÃO COMPORTAMENTAL
(Resultante Normativa)
(Idealização Comportamental Projetada)
VALORAÇÃO INTRINSECA
(Derivação Própria e Mutável
de um Quadro de Idéias e
Concepções Político-ideológicas)
FASE INTERPRETATIVA
(Aplicação Efetiva da
Norma Jurídica)
FASE LEGISLATIVA
(Produção da Norma
Jurídica)
INTERAÇÃO
FUNCIONAL
(Como Característica
Hermenêutica do
Direito
208
faculdade de direito de bauru
Diagrama 12: Direito como Ciência Hermenêutica
APELAÇÃO CÍVEL E REMESSA OFICIAL
Francisco Wildo Lacerda Dantas
Juiz Federal da 1ª Vara da Seção Judiciária de Alagoas,
Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFAL e
doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa - FDL.
1.
CONCEITO
Na monografia que escreveu sobre a apelação, Marco Aurélio Moreira Bortowski assinala que a palavra apelação (appellatio, appellationis) tem origem latina
e significava um refúgio de alguma coisa, com o que tinha o significado de uma suplicação em face de uma decisão desfavorável.1Nelson Nery Júnior prefere ressaltar
que a apelação é o recurso ordinário por excelência. Para ele este é, entre os recursos brasileiros, é o que tem maior abrangência, servindo não só para a correção dos
chamados errores in procedendo (erros ou equívocos cometidos no curso do procedimento e a ele alusivos) quanto para corrigir-se os errores in judicando (erros
ou equívocos cometidos no julgamento propriamente dito).
Não se deve extrair daí, porém, a conclusão de que o recurso possa ser interposto de forma genérica, isto é, sem que o apelante peça, expressamente, que o órgão de segunda instância profira nova decisão, requisito indispensável a fixar-se o
conteúdo de devolutividade do órgão julgador a que o recurso é dirigido.2
Em obra clássica de Chiovenda, Liebman assinalou que a apelação é, no direito brasileiro, o recurso típico – o recurso por excelência – destinado a realizar o
princípio do duplo grau de jurisdição. Afirma que, na sua forma moderna, resulta da
1 - “Apelação Cível”, ob. cit., p. 47.
2 - Cf. “Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos”, ob. cit., p. 372.
faculdade de direito de bauru
210
fusão da apelação romana com a querela nullitatis sanabilis e serve para conduzir
uma causa já decidida em primeira instância à presença do Tribunal (o autor acrescenta Superior, que considero desnecessário) a fim de obter deste uma nova decisão purgada dos vícios e eventuais defeitos da primeira.3 Francesco Carnellutti – por
sua vez – refere que a apelação constitui o nome que uma prática secular tem dado
ao procedimento destinado a provocar um novo exame da sentença impugnada,
considerando-a como uma impugnação de rescisão ilimitada ou necessária.4
Com fundamento em tudo o exposto, podemos formular um conceito de apelação, válido para o processo civil brasileiro, como recurso cabível das sentenças5 do
juiz de primeira instância, em que se busca submetê-la ao reexame da segunda instância, para reformá-la ou anulá-la.
2.
PROCESSAMENTO E CONTEÚDO DA APELAÇÃO
a)
Introdução
A apelação se interpõe sempre por petição escrita, di-lo o art. 514 do CPC.
José Carlos Barbosa Moreira acentua que essa exigência discrepa de algumas legislações antigas, inclusive de alguns ordenamentos estrangeiros, como o argentino,
em que se admite a interposição oral. Observa que isso se dá em razão de a interposição oral não se compadecer com a exigência da fundamentação imediata que o
nosso direito consagra.
O conteúdo, por sua vez, deverá atender aos requisitos exigidos no mesmo
dispositivo, com os nomes e qualificação das partes, as razões da apelação – que
constituem os fundamentos de fato e de direito – que podem constar, já, da própria
petição do apelo ou serem oferecidas em peça anexa.
As razões devem indicar quais os errores in procedendo e os errores iudicando que foram cometidos e os argumentos porque devem ser assim considerados.
Se o apelante por acaso suscitar novas questões de fato não apreciadas na sentença, mas possível de serem suscitadas, na forma do art. 517 do CPC – desde que
comprove que o deixou de fazer por motivo de força maior – cabe-lhe, também, argumentar que a sentença apelada se revela injusta, à luz desses novos elementos.
Observe-se que, nessa hipótese, o juiz que proferiu a sentença não pode exercer nenhuma cognição nem pode deixar de receber o recurso sob a alegação de que o re3 - Cf. “Instituições de Direito Processual Civil”, vol. II, tradução da 2ª ed. italiana por J. Guimarães Menegale, acompanhada de notas pelo Prof. Enrico Tullio Liebman, Ed. Saraiva, 1945, São Paulo, p. 335.
4 - Cf. Instituciones del Proceso Civil, tradução ao espanhol da 5ª ed. Italiana por Santiago Sentis Melendo, vol. II,
Ediciones Jurídicas Europa-America, Buenos Aires, 1989, p. 183 e p. 227.
5 - José Carlos Barbosa Moreira anotou que a apelação “... é o recurso cabível contra toda e qualquer sentença (grifo do original), entendido este termo, na conformidade do que reza o art. 162, § 1°, como o ato pelo qual o juiz
põe fim ao procedimento de primeiro grau”, o que bem se ajusta ao conceito que formulei no texto. Cf. “Comentários ao CPC – arts. 476 a 565”, V vol., Ed. Forense, Rio-São Paulo, 1974, p. 325.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
211
corrente estaria inovando no processo, tendo em vista que toda essa matéria fica reservada à apreciação do Tribunal. Inclui-se, ainda, como conteúdo indispensável da
petição de apelo o pedido de nova decisão. Esse pedido não se limita à solicitação
de um novo pronunciamento que substitua o anterior. Em se tratando de apelo que
busca a invalidação da sentença, o pedido será para que o órgão de segunda instância anule a sentença, caso em que deverá retornar à primeira instância, para proferir novo julgamento.6
b)
Juízo da admissibilidade
I – CONCEITO
Afirmando que todo ato postulatório se sujeita a exame sob dois ângulos distintos: o primeiro, referente à verificação do atendimento dos requisitos estabelecidos por
lei para que se possa apreciar o conteúdo da postulação e, o segundo, relativo a esse
conteúdo, quando se examina os fundamentos mesmos do que se pede, para acolhê-la
ou rejeitá-la, Barbosa Moreira define o juízo de admissibilidade como aquele em que se
declara o atendimento ou desatendimento desses requisitos e juízo de mérito aquele
em que se apreciação os fundamentos, para deferir ou indeferir a postulação.7
O juízo de admissibilidade tem por objeto, pois, o exame dos requisitos exigidos para que se possa apreciar o mérito do recurso, no caso a apelação. Considerando-se – como o fazemos – que o recurso se revela como um prolongamento do direito de ação, tem-se que há uma identificação entre os requisitos exigidos para um
recurso seja admitido – no caso específico deste estudo – a apelação e as chamadas
condições da ação. Na prática judiciária, convencionou-se denominar o juízo de admissibilidade pela expressão conhecer ou não conhecer do recurso, para significar
que se julgou admissível o recurso ou se o julgou inadmissível ou, mais resumidamente, se conheceu ou não se conheceu do recurso. Observe-se que não é conhecer ou não conhecer o recurso, mas conhecer ou não conhecer do recurso. Em respeito ao exame de mérito, as expressões consagradas são deu provimento ou negou-se provimento ao apelo, para significar que se julgou procedente ou se negou
improcedente o recurso. 8 O juízo de admissibilidade está dividido entre o primeiro
e o segundo grau. O apelo pode ser admitido no primeiro grau e não o ser no segundo, para onde ele foi dirigido. Mais adiante se examinará a questão da preclusão
nesse julgamento.
6 - Idem, ibidem, p. 331/332 e p. 356.
7 - Foi esse autor quem primeiro sistematizou essa distinção, entre nós. Cf. “Comentários ao CPC”, ob. cit., p. 207-208.
8 - Como o faz Flávio Cheim Jorge, “Apelação Cível: teoria geral e admissibilidade”, Ed. Revista dos Tribunais, São
Paulo, 1999, 1ª ed., 2ª tiragem, p. 55-57.
212
faculdade de direito de bauru
Requisitos
Os requisitos exigidos por lei para que apelação seja admitida se dividem em
intrínsecos e extrínsecos, como se resume a seguir.
Requisitos Intrínsecos
Os requisitos intrínsecos da apelação são o cabimento, a legitimação para recorrer e o interesse em recorrer.
Cabimento
O cabimento corresponde à possibilidade jurídica do pedido como condição
da ação. Consiste em saber-se se o recurso de apelação foi manejado contra sentença, única hipótese em que este recurso é admitido entre nós, na forma do art. 513
do CPC.
Não importa que tipo de sentença seja, se terminativa ou definitiva, a apelação será sempre possível, ou seja, cabível.
Legitimação para recorrer
A legitimação para recorrer se identifica com a condição da ação denominada legitimação para agir. Em princípio somente pode apelar quem for parte no
processo e conceito de parte pode ser o de pessoa que toma parte no processo,
como elemento componente do litígio ou, se se preferir – como o faz Alfredo Buzaid - parte é qualquer pessoa que está no processo e parte legítima é quem deve
estar no processo. O primeiro é um conceito ontológico e, o segundo, um conceito deontológico, para concluir que a legitimidade de parte é a pertinência subjetiva da lide.9
De um modo geral tem legitimação para apelar o autor e o réu, que são partes. O assistente qualificado – ou litisconsorcial – pode apelar de forma autônoma
a independente. O assistido simples pode apelar da sentença que tenha causado
gravame ao assistido, desde que este o permita ou não lhe vede. Barbosa Moreira,
porém, considera que o assistente simples é parte e, como tal, tem legitimação para
recorrer, ainda que o assistido não o faça, por considerar que ainda que não tivesse
intervindo no feito o poderia, como terceiro prejudicado, logo não tem sentido impedi-lo apenas porque participa do processo nessa condição. Além disso, tem legitimidade para apelar o terceiro interessado, que foi prejudicado pela decisão. Tem-se
que terceiro, na hipótese, é aquele que não foi parte no processo. Para propor o
apelo, porém, cabe a ele demonstrar que sofreu um prejuízo e que, portanto, tem
um interesse jurídico. Não basta que tenha um interesse econômico.10
9 - Cf. “Do Mandado de Segurança”, vol. I – Do Mandado de Segurança Individual – Ed. Saraiva, São Paulo, 1989, p.
165-166.
10 - Cf. Marco Aurélio Moreira Bortowski, ob. cit., p. 76-79 e p. 81.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
213
Interesse para apelar
O interesse para recorrer – em geral – se identifica com a utilidade prática
que, em tese, o recorrente busca com a interposição do recurso. Observa Barbosa
Moreira que
recurso interposto sem interesse é recurso inadmissível, que não
pode sequer ser conhecido, isto é, julgado no mérito. Diante dele –
prossegue o autor - a única atitude correta do órgão para o qual
haja sido porventura interposto consistirá em declarar que não lhe
é lícito reexaminar a matéria (grifo do original).
Em respeito à apelação, o mesmo autor observa que a falta dessa utilidade tem
a mesma significação de falta de interesse para apelar, por ser evidentemente impensável que para o apelante possa advir qualquer utilidade prática de uma decisão
capaz de pô-lo em situação praticamente menos vantajosa: há aí verdadeira contradição em termos. 11Quando se trata de apelo manifestado pelo terceiro prejudicado, esse interesse estará demonstrado não apenas com a alegação da utilidade
prática, nos termos acima mencionados, mas deverá, também, evidenciar a existência de um liame entre a decisão impugnada e o prejuízo causado por esta.12
Requisitos extrínsecos
Os requisitos extrínsecos são as exigências que são feitas para o recebimento
do apelo que não dizem respeito ao recurso mesmo em si – como acontece com os
requisitos intrínsecos – porque dizem respeito ao que está fora da estrutura do recurso. São eles: a tempestividade, a regularidade formal, a inexistência de fato impeditivo ou extintivo do direito de apelar e, finalmente, o preparo.
Tempestividade
Todo recurso há de ser manejado no prazo estabelecido em lei para sua interposição, sob pena de operar-se a preclusão temporal. O prazo para a interposição
do apelo é de 15 dias, na forma do disposto no art. 508 do CPC. Essa regra é de aplicação geral, aplicando-se não só às apelações dos processos disciplinados no CPC,
como em qualquer procedimento que mande aplicar as normas do CPC subsidiariamente, como acontece com o mandado de segurança.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, no entanto, estabeleceu – no art. 198
- que adotaria o sistema recursal do CPC, com as modificações ali introduzidas. Logo
no inciso II deste artigo fixou em dez dias o prazo para a interposição do apelo. De
11 - Cf. “Comentários ao CPC”, ob. cit., p. 339. Nesse sentido, também, Marco Aurélio Moreira Bortowski, ob. cit.,
p. 85.
12 - Cf. Marco Aurélio Moreira Bortowski, ob. cit., p. 89-90.
214
faculdade de direito de bauru
igual modo, nas causas sujeitas ao regime da Lei n° 9.099/95 ( Juizados Especiais Cíveis), como também em todos os procedimentos especiais em que haja lei específica definindo outro prazo que não o previsto no referido art. 508, como regra geral.13
O prazo para apelar é contado da ciência (intimação) do ato decisório, mas se a sentença for lida em audiência – prática que se tem tornado muito rara atualmente – o
prazo começa a correr daquela data.
A petição do apelo há de ser apresentada no protocolo do juízo de quem se
apela – também chamado juízo a quo – dentro do horário do expediente, estabelecido pela lei local, na forma do art. 172, § 3° do CPC e o terceiro prejudicado – um
dos legitimados ao apelo – tem o mesmo prazo de que a parte dispõe para apelar.
Há, porém, hipóteses, em que esse prazo é contado de maneira diversa. Quando
houver litisconsórcio – por exemplo - no pólo ativo ou no pólo passivo da relação
processual e estes tiverem diferentes procuradores, o prazo da apelação, como de
qualquer outro recurso será contado em dobro, na forma do art. 191 do CPC.
Essa vantagem, porém, não se aplica em respeito aos embargos, pela única e
boa razão de que não se trata de recurso, mas sim de uma ação autônoma, ainda que
conexa com a execução contra a qual se investe. Também é contado em dobro o prazo do apelo do defensor público, em face do art. 5°, § 5° da Lei n° 1.060/1950. Além
disso, há a regra do art. 188 que manda se contar em dobro o prazo para recorrer
quando a parte for a Fazenda Pública ou o Ministério Público. Entende-se que se
deve atribuir efeito abrangente, nesse dispositivo, à atuação do Ministério Público:
não só quando o MP atuar como parte se lhe aplica essa prerrogativa, também quando estiver atuando como fiscal da lei, por razões sobejas.
Regularidade formal
Como já se assinalou, para que o recurso seja admitido, exige-se que se preencham os requisitos exigidos em lei. Em respeito à apelação eles estão estabelecidos
no art. 514 do CPC. Isso se dá porque o sistema recursal brasileiro não admite a apelação genérica, aquela em que se apela sem se dizer o que se pretende modificar ou
anular nem por quais razões. Aplica-se o princípio tantum devolutum quantum appelantum – ou, em vernáculo e em tradução livre: somente se devolve ao exame do
Tribunal aquilo de que se apela.
Discute-se, em respeito à regularidade formal, o cabimento da apelação proposta mediante fax, telegrama ou por cópia fotostática. A jurisprudência vacila. Temse entendido que as cópias do fax, pela ação do tempo, estão sujeitas a desbotar,
pelo que parece legítimo o entendimento de aceitar-se o recurso, mas se exigir o envio do original, em cinco dias. Não há impedimento nenhum, porém, em respeito
da apelação interposta por telegrama, radiograma ou por telex, em vista do que es-
13 - Idem, ibidem, p. 91.ƒƒ
Revista do instituto de pesquisas e estudos
215
tabelece o art. 374 do CPC. Exige-se, apenas, que haja reconhecimento de firma por
tabelião.
De qualquer modo, não se pode exigir nenhuma outra formalidade que não
as estabelecidas em lei, sob pena de maltratar-se a garantia de acesso à tutela jurisdicional estabelecida no art. 5°, XXXV da CF/88.14
Inexistência de fato impeditivo ou extintivo do poder de recorrer
Todo direito nasce do fato: ex facto oritur jus. Chama-se fato constitutivo
aquele que dá nascimento a uma relação jurídica, constitui ou dá nascimento ao direito. Fato impeditivo é aquele que, sem fazer cessar uma relação jurídica, impede
que ela produza os efeitos jurídicos normais. Fato extintivo – por fim – é aquele que
faz cessar a relação jurídica. São fatos impeditivos do direito de apelar a desistência
do recurso ou da ação, o reconhecimento jurídico do pedido e a renúncia ao direito em que se funda a ação. São fatos extintivos do direito de apelar a renúncia ao recurso e a aquiescência com a sentença.
A desistência do apelo, como é óbvio, pressupõe que se tenha manifestado o
recurso. Tendo sido formulada pela parte apelante, não pode ser objeto de qualquer
juízo nem mesmo do juízo de admissibilidade. Ela torna a apelação inexistente. Daí
porque o art. 501 do CPC não exige, para a desistência do apelo, o consentimento
do apelado, o que não acontece com a desistência da ação que, embora produza o
mesmo efeito, exige, como se sabe, se o réu já houver contestado, as expressa concordância deste, na forma do art. 267, § 4° do CPC. É ato unilateral da vontade, por
isso não carece de homologação ou de termo. Há que se atentar, porém, para o fato
de que somente o advogado com poderes especiais pode desistir do recurso.
Preparo
Como se sabe, o preparo é o pagamento das custas processuais pelo processamento do recurso. É um requisito extrínseco exigido a todo recurso e, no processo civil brasileiro, por força do art. 511 do CPC – com a redação que lhe deu a Lei
n° 8.950/94 - tem de ser atendido de imediato, pois o atendimento deve ser comprovado no ato da interposição do recurso. Nelson Néry Júnior observa que a matéria referente a esse instituto é de direito processual e, em razão do que estabelece
o art. 22, I, da CF/88, de competência legislativa exclusiva da União Federal. Como
esse valor se destina a custear os serviços judiciários prestados pela União ou pelos
14 - Acompanhamos a exposição de Marco Aurélio Moreira Bortowski, embora discordemos dele quanto ao fundamento constitucional que proíbe outras exigências em respeito às formalidades do apelo, tendo em vista que o autor alega possível maltrato ao princípio constitucional do duplo grau de jurisdição, que vinha definido no art. 158
da Constituição do Império do Brasil, de 1824 e hoje em dia não tem mais domicílio constitucional. Cf. a esse respeito Nelson Nery Júnior, “Princípios do Processo Civil na Constituição Federal”, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1996, 3ª ed., p. 163.
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faculdade de direito de bauru
Estados, estes últimos podem, porém, dizer quando ocorre o fato gerador da taxa
judiciária, pelo que, em São Paulo, há isenção do preparo em respeito ao agravo de
instrumento.15
O art. 511 do CPC prevê a aplicação da pena processual, de deserção em razão do desatendimento a esse requisito. Essa pena pode ser relevada quando – na
forma do art. 519 do CPC - a parte alegar e comprovar que não efetuou o preparo
exigido por justo impedimento. Essa noção é vaga. Há de ser apreciada pelo prudente arbítrio do juiz e constitui decisão interlocutória que pode ser, também, impugnada por agravo de instrumento. Marco Aurélio Bortowski observa que se o apelante for oferecer o recurso no último horário do expediente forense, após o horário
de funcionamento da agência bancária encarregada de receber o preparo, é possível alegar-se esse fato como justo impedimento, devendo relevar-se a pena, se comprovado.16 A decisão que releva a deserção é irrecorrível, pois a que a decreta está
sujeita a agravo de instrumento.17
b)
O juízo de admissibilidade e a preclusão
O juízo de admissibilidade se revela como um ato complexo, pois dele participa
pelo menos dois órgãos jurisdicionais diversos. O primeiro deles é o juízo de cuja decisão se recorre, denominado de juízo a quo e, o segundo, o juízo para o qual se recorre, ou juízo ad quem. O apelo é oferecido perante o juízo a quo, que exercita um juízo de admissibilidade, na primeira fase, de natureza provisória. A segunda fase é exercida, de maneira mais definitiva, na instância revisora, ou juízo ad quem.
Como a decisão do juízo a quo em respeito à admissibilidade do recurso nunca é definitiva, costuma-se dizer que não se submete à preclusão esse julgamento,
merecendo um exame mais detido a respeito.18 Em face da preclusão, o juízo de admissibilidade no apelo ostenta, em face da recente reforma pontual, duas situações
distintas que merece atenção:
1. duas decisões sobre a admissibilidade proferidas pelo mesmo órgão e
contraditórias entre si;
2. decisão do juiz a quo, pela não admissibilidade do apelo, remessa do feito para o Tribunal, em face do deferimento de liminar em agravo.
É possível a primeira hipótese em face do que estabelece o parágrafo único do
art. 518 do CPC, com a recente reforma pontual. Dá-se, então, que o juiz admite o
15 - Cf. “Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos”, ob. cit., p. 364-365.
16 - Cf. “Apelação Cível”, ob. cit., p. 110.
17 - Cf. Manoel Caetano Ferreira Filho, “Comentários ao CPC”, vol. 07 – Do Processo de Conhecimento: arts. 496 a
565 – Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2001, p. 157-168.
18 - Como o faz Leonardo Castanho Mendes, in “Juízo de Admissibilidade Recursal e a Preclusão”, artigo inserto na
Revista da Associação dos Juízes Federais – AJUFE – Ano 19, n° 63, p. 210, cujo estudo seguiremos neste trabalho.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
217
apelo e, após a resposta do recorrido, faculta o dispositivo que o mesmo juiz possa
reexaminar os pressupostos desse recurso. Nesse caso, a retratação somente é possível porque a lei expressamente a admite. Não pode o juiz permanecer indefinidamente a retratar-se: não se esqueça que, como observou Calmon de Passos, o processo é um cair para frente (vem do latim pro + caedere). Somente se poderia admitir a existência de preclusão em respeito ao juiz prolator da decisão. O juízo ad
quem pode proceder a novo reexame do juízo de admissibilidade e, se for o caso,
reformar a decisão anterior, qualquer que tenha sido ela.
Ocorre a segunda hipótese quando o juiz monocrático não admite o apelo, o
recorrente interpõe agravo de instrumento e, em razão disso, o recurso sobe para a
mesma instância que lhe deferiu a liminar. Pergunta-se: pode o Tribunal – que concedeu a liminar no agravo possibilitando a subida da apelação - reexaminar a admissibilidade deste mesmo recurso, para, já agora, deixar de admiti-lo?
A resposta é afirmativa.
A decisão que concedeu a liminar dando provimento ao agravo e determinando o processamento do apelo é provisória. Nada impede que, no momento em que
o Tribunal for apreciar o mérito do apelo, renove o juízo de admissibilidade e, se então se convencer de que na verdade não foram atendidos todos os requisitos exigidos por lei (e não só aquele apontado pelo juiz monocrático), não conheça do recurso (apelo). No entanto, se o apelo não houver sido admitido na primeira instância porque se o considerou serôdio e esta decisão é modificada pela Turma do Tribunal a que foi distribuída, por considera-la tempestiva, não pode mais esta mesma
Turma, ao apreciar o apelo - em virtude desta decisão - deixar de conhecê-lo à alegação de que foi extemporâneo. Nesse caso, operou-se a preclusão lógica.19
3.
PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE:
A DISCIPLINA DO CPC DE 1939 E DO ATUAL
a)
Introdução
O princípio da fungibilidade está ligado ao primeiro requisito intrínseco para
o juízo de admissibilidade e se considera que seja destinado a abrandá-lo. Ele consagra a possibilidade de que – em tese - se admita um recurso ainda que não seja
ele o adequado para aquela decisão. Ao contrário do que dispunha o CPC anterior,
no art. 810, o atual não traz qualquer norma a respeito desse princípio. Isso não
quer dizer que o princípio deixou de existir. Considera-se, mesmo, que apesar de Alfredo Buzaid – o autor do anteprojeto do CPC – haver demonstrado a desnecessidade da mantença do princípio quando, na Exposição de Motivos com o que o enviou ao Congresso Nacional, deixou indícios claros de que não carecia de manter-se
19 - Idem, ibidem, p. 213-214.
faculdade de direito de bauru
218
a regra até então existente no dispositivo anterior, ante a simplicidade recursal do
sistema que então era criado o princípio subsiste no CPC atual20.
Nelson Néry Júnior, no entanto, observa que nada obstante se houvesse considerado, a partir da entrada em vigor do novo CPC – já não mais tão novo – não só
a falta de menção do princípio quanto a simplicidade recursal que então se introduziu, a doutrina houvesse inicialmente se inclinado a afirmar que o princípio não mais
existia, o que seria confirmado pela jurisprudência, inclusive do próprio STF, hodiernamente tem-se considerado que há hipóteses em que se torna difícil identificar-se,
com segurança, qual o recurso cabível, não por impropriedades do próprio CPC
quanto pela dúvida que determinados dispositivos suscita na doutrina e na jurisprudência.
b)
Resumo das hipóteses
Esse autor faz um resumo das hipóteses em que isso ocorre, que se busca reproduzir nesse trabalho:
1. O próprio CPC designa uma decisão interlocutória como sentença ou viceversa, de modo obscuro e impróprio;
2. A doutrina e a jurisprudência divergem quanto ao enquadramento de certos atos processuais e, em conseqüência, do recurso adequado;
3. O juiz profere um pronunciamento em lugar de outro.
No primeiro grupo – equívoco de redação do CPC – se identifica a hipótese do
art. 790 c/c art. 558, em que se indica que o ato do juiz que defere a remição de bens
na execução é decisão interlocutória e não sentença. Há, ainda, a hipótese do art. 718
do CPC que afirma ser sentença o ato do juiz que decreta o usufruto de imóvel ou de
empresa. Além de outras impropriedades, como a do art. 338, que chama a decisão de
saneamento de despacho saneador e a do art. 930, parágrafo único, que denomina de
despacho a decisão que aprecia o pedido de liminar em ação possessória.
No segundo grupo – divergência doutrinária e/ou jurisprudencial – o mesmo
autor identifica as seguintes hipóteses:
a) rejeição liminar de reconvenção ou de ação declaratória incidental, prevista no art. 325 do CPC;
b) ato do juiz que resolve o incidente de falsidade documental, previsto no
art. 395 do CPC;
c) ato judicial que resolve o pedido de remoção do inventariante, definido
no art. 997 do CPC;
d) decisão que, no curso de execução por título extrajudicial, homologa
atualização do cálculo do Contador;
20 - Cf. Flávio Cheim Jorge, ob. cit., p. 209-210.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
219
e) ato de julgamento do incidente de exibição de documento ou de coisa
em poder de terceiro, previsto no art. 361 do CPC;
f ) decisão que exclui litisconsorte do processo.
No terceiro grupo as hipóteses são mais raras, tendo em vista que o CPC desconsidera a forma do ato processual para fins de definição, considerando mais o aspecto teleológico. Não é incomum, porém, o magistrado proferir simples decisão interlocutória em que indefere petição inicial quando a nova redação do art. 296 do
CPC já esclarece que o autor poderá apelar dessa decisão.21
O autor traça, ainda, um resumo das posturas jurisprudenciais em respeito a
essas hipóteses, aqui também resumidas: quanto ao indeferimento liminar da reconvenção ou declaratória incidental, ainda que parcela da jurisprudência defenda que
se trata de sentença, e, portanto, que cabe apelação, a jurisprudência predominante a tem como decisão interlocutória, que desafia o agravo. Se, porém, a declaratória incidental for ajuizada em autos apartados, a decisão que julgar encerrará o processo e, nos termos do art. 162, § 1° do CPC, terá a natureza de sentença, contra a
qual cabe apelação.
No que respeita ao julgamento do incidente de falsidade, o art. 395 do CPC o
denomina textualmente de sentença. A doutrina, no entanto, tem proposto duas situações distintas: se o incidente for provocado antes da instrução, a decisão que o
julgar será mera decisão interlocutória, impugnável por agravo. Se for ajuizado depois de encerrada a instrução, será autuado em apartado e a decisão que o resolver
será uma sentença, contra a qual cabe o apelo.
Em respeito ao incidente de exibição de documento ou de coisa, tem-se que
se trata de um processo incidente, autuado em apartado, em razão do que se considera que a decisão que o encerra tem a natureza mesmo de uma sentença, que desafia apelação, ainda que haja parcela significativa da doutrina que a considera como
mera decisão interlocutória e, portanto, agravável.
Já o ato do juiz que decide o pedido de remoção de inventariante – previsto no art. 997 do CPC - se revela com a natureza de decisão interlocutória, tendo em vista que o art. 996 do CPC o trata como um incidente no processo, não
se podendo identificar nenhuma ação ou processo autônomo de remoção do inventariante.
Além disso, o art. 998 do CPC determina que o inventariante removido proceda a imediata entrega dos bens do espólio ao substituto, o que não seria possível se
se tratasse de apelo que forçosamente seria recebido nos dois efeitos – devolutivo
e suspensivo – tanto mais que não se encontra excluído o efeito suspensivo na previsão do art. 520 do CPC, muito embora se registre entendimento contrário. Questão controversa é, também, à decisão que homologa os cálculos do Contador na exe21 - Cf. “Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos”, ob. cit., p. 112-122.
220
faculdade de direito de bauru
cução fundada em título extrajudicial. Considera-se que na execução por título judicial há possibilidade do manejo, de fato, de três processos distintos:
1º - o de conhecimento, que instrumentaliza a ação condenatória, que termina com uma sentença que define o an debeatur;
2º - o eventual processo de liquidação, com base numa ação declaratória do
quantum debeatur;
3° - o processo executório propriamente dito, em que se busca satisfazer os
dois anteriores.
Esses três processos são reunidos nos mesmos autos, apenas por comodidade. A execução por título extrajudicial, no entanto, tem estrutura diferente: trata-se
de um só processo executivo, fundado na ação de execução. O título há de ser líquido e certo. Eventual discussão sobre o quantum debeatur não se apresenta como
uma ação e processo autônomo. Será sempre um incidente dessa execução, que se
encerra por uma decisão interlocutória, que desafia o agravo. Embora haja controvérsia a respeito, o STJ já se posicionou a respeito com a Súmula n° 118: O agravo
de instrumento é o recurso cabível da decisão que homologa a atualização do
cálculo de liquidação.
Finalmente, em respeito à exclusão de um dos litisconsortes do processo.
Essa questão deve ter tratamento semelhante ao da ação declaratória incidental
que envolve a questão da cumulação subjetiva de causas. Havendo litisconsortes, existirá tantas ações quantos litisconsortes houver, mas elas estarão cumuladas em um só processo ou em simultaneus processus.22 Em razão disso, porém,
a decisão que afastar um deles sem que extinga o processo como um todo terá
posto fim a uma ação, mas não a um processo autônomo e será considerada, na
sistemática do CPC, como um mero incidente processual que foi extinto por
uma decisão interlocutória, passível de ser atacada por agravo e não por sentença. É a postura do mesmo Nelson Néry, cujas lições resumimos, muito embora
este mesmo autor reconheça que haja decisões, até mesmo do STF, afirmando
que o recurso cabível é o de apelação.
De qualquer modo, todos essas hipóteses revelam a existência de fundada
controvérsia doutrinária e jurisprudencial a respeito, a justificar a aplicação do princípio de fungibilidade do recurso.23
22 - Nesse sentido, observa Araken de Assis, ao definir litisconsórcio que Externamente, portanto, o litisconsórcio
reside na assunção, em processo único e por mais de uma pessoa, da função de parte. Mas, do ponto de vista
substancial, a presença de várias pessoas, na qualidade de autores ou de réus, sugere um número correspondente de ações. Cf. “Cumulação de Ações”, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1991, 1ª ed., 2ª tiragem, p. 136.
23 - Cf. ob. cit., p. 134.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
c)
221
Requisitos para admissão da incidência da fungibilidade
Admitida a aplicação do princípio da fungibilidade no sistema recursal brasileiro, pelas razões apontadas, importa assinalar que tem-se que satisfazer um dos
dois requisitos para que se dê aplicação desse princípio: a dúvida objetiva ou o erro
grosseiro. Observe-se que não se trata de dois requisitos, cumulativos. Basta o atendimento de um deles.
Flávio Cheim Jorge faz um resumo das opiniões doutrinárias a respeito do
erro grosseiro, entendendo-se como tal, quando:
I – a lei era clara quanto ao cabimento do recurso contra determinada decisão;
II – a doutrina era unânime quanto ao recurso cabível para a espécie; e
III – não existia qualquer dissenso na jurisprudência a respeito. Se, pelo contrário, a própria lei é dúbia, por conceituar uma decisão por outra, a
doutrina é controversa a respeito ou a jurisprudência é divergente, não
há erro grosseiro na interposição de um recurso por outro.
Já a dúvida objetiva – que muitos autores insistem em distinguir do erro grosseiro, para considerá-la uma hipótese autônoma, é considerada como algo que não
carece de ser extremada do erro grosseiro, tanto que respeitável parte da doutrina
que define a dúvida objetiva como situações configuradoras do erro grosseiro. Desse modo, afirma-se que, havendo dúvida objetiva quanto ao recurso cabível, não se
pode ser considerada a interposição de um recurso por outro como erro grosseiro.24
4.
APELAÇÃO ADESIVA
a)
Conceito e natureza jurídica
A adesão ao recurso interposto pela outra parte não é privativa da apelação.
Na verdade, considera-se que o legislador não foi muito feliz nessa denominação.
Somente se poderia falar em adesão ao apelo manejado pela outra parte se se repetisse a hipótese existente no direito italiano, que permite a um litisconsorte aderir
ao recurso de outro em razão da existência de um direito comum.25 Na forma que
deflui do disposto no art. 500, 2ª parte, do CPC, tem-se que a apelação adesiva se revela como o apelo de uma parte que, parcialmente vencida, adere à insatisfação da
outra para devolver à instância superior também o reexame da parte da sentença
que lhe restara desfavorável, embora defenda a manutenção da parte que lhe foi favorável e está sendo impugnada pela outra parte que já apelou.
Não tem, pois, a natureza jurídica de um recurso que adere ao outro. Revela
mais a natureza de um recurso que se subordina ao outro, que se tem por principal,
24 - Cf. “Apelação Cível: teoria geral e admissibilidade”, ob. cit., p. 222-232.
25 - Idem, ibidem, p. 247.
faculdade de direito de bauru
222
em razão de haver sido interposto em primeiro lugar. Embora com a denominação
de apelação adesiva, ela se contrapõe ao recurso da parte contrária, em razão de
possuírem objetivos opostos.
A apelação adesiva – considerada o recurso-tipo enunciado no art. 496 do
CPC, ou seja, recurso que mais se ajusta ao tipo de recurso adesivo - é, no dizer de
Nelson Néry Júnior, apenas uma forma de interposição desse recurso.26
b)
Objeto da apelação adesiva
O objeto desse recurso – apelação adesiva – será sempre limitado à parte da
decisão que foi desfavorável ao apelante adesivo, ainda que em pequena proporção.
Dentro desses limites, o apelante adesivo tanto pode atacar toda a decisão que lhe
foi desfavorável, como apenas parte dela, como deflui do art. 505 do CPC.
c)
Requisitos de admissibilidade
Como já se disse, a apelação adesiva tem por característica a sua subordinação
ao apelo da outra parte, dito recurso principal.
Essa subordinação decorre do próprio texto legal que menciona, no art. 500
do CPC: fica subordinado ao recurso principal e, mais adiante, no inciso III: não
será conhecido, se houver desistência do recurso principal, ou se ele for declarado inadmissível ou deserto. Extrai-se daí os requisitos de admissibilidade da apelação adesiva: atendimento de todos os requisitos de admissibilidade da apelação
principal e, além disso, atendimento de todos os requisitos da apelação adesiva,
consistente nos requisitos gerais de toda apelação, acrescidos, ainda, a existência de
sucumbência recíproca.
d)
Impossibilidade da apelação adesiva
Imaginemos que, em determinada ação, proposta por Tício contra Mélvio, o
autor tenha pedido A, B e C e o juiz tenha proferido sentença reconhecendo-lhe
apenas A. Em conseqüência, Tício apela apenas quanto ao pedido B, com o que concordou com o não provimento de C. Mélvio, por sua vez, apela adesivamente, para
pedi a reforma da sentença em respeito ao pedido A. Seria possível, agora, a Tício
apelar adesivamente para incluir o pedido C no apelo anterior? Flávio Cheim Jorge
revela que a doutrina e a jurisprudência têm sido harmônica no sentido de que não
é possível, por considerar-se – como fez Athos Gusmão Carneiro - que quando, na
hipótese, foi manifestado o recurso principal, o recorrente havia fixado expressamente os limites de inconformidade, aceitando em parte a sucumbência, com o que
tem incidência os princípios da unirrecorribilidade e da preclusão consumativa. 27
26 - Cf. “Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos”, ob. cit., p. 48-51.
27 - Cf. Flávio Cheim Jorge, ob. cit., p. 253- 284..
Revista do instituto de pesquisas e estudos
5.
EFEITOS DA APELAÇÃO
a)
Suspensivo
223
Nelson Nery Júnior observa que o efeito suspensivo “é uma qualidade do recurso que adia a produção dos efeitos da decisão impugnada assim que interposto
o recurso, qualidade essa que perdura até que transite em julgado a decisão sobre
o recurso”.28 O efeito suspensivo do apelo tem início com a publicação da sentença
impugnada pelo recurso e termina com a publicação da decisão que o julga. Normalmente, todo recurso tem efeito devolutivo – a seguir examinado - mas nem todos têm efeito suspensivo.
O art. 520 do CPC estabelece as hipóteses em que o apelo é recebido apenas
no efeito devolutivo. Discute-se qual a interpretação correta a ser dada a esse dispositivo: restritiva ou extensiva. O princípio geral de hermenêutica estabelece que as
exceções devem ser interpretadas restritivamente. Como as hipóteses se revelam
como restrições à aplicação do efeito suspensivo ao apelo, esse tipo de interpretação opera.. Uma coisa, porém, é a interpretação das hipóteses de cabimento: são
apenas aquelas previstas no art. 520 do CPC, outra coisa é interpretar as hipóteses
definidas abstratamente para nelas buscar-se incluir o maior número de situações
concretas possíveis.
Nesse sentido, Manoel Caetano Ferreira Filho observa que a jurisprudência mais atualizada com os tempos modernos tem entendido que a sentença
que condena a título de indenização por ato ilícito pode ser incluída no item II
do art. 520, que, no entanto, se refere apenas a condenar à prestação de alimentos.29
Questão interessante diz respeito à interposição do apelo parcial da sentença
em razão da dúvida que se estabelece a respeito da extensão do efeito suspensivo:
alcança-se apenas parte da sentença que foi impugnada ou a toda ela, tendo se afirmado que a solução dessa questão era tarefa do direito positivo. Entendo correta a
postura de Nelson Néry de que se poderá dar início à execução definitiva da parte
não impugnada da sentença, atendidas às seguintes condições: a) cindibilidade dos
capítulos da sentença b) autonomia entre a parte da sentença que se pretende executar e a parte impugnada c) não existência ou, quando se tratar de recurso interposto por apenas um dos litisconsortes, existência de litisconsórcio não unitário ou
de diversidade de interesses entre os litisconsortes.30
28 - Com remissa a Salis, a quem cita na nota 530 do pé de página. Cf. “Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos
Recursos”, ob. cit., p. 383.
29 - Cf. “Comentários ao CPC – Do Processo de Conhecimento: arts. 496 a 565”, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2001, p. 175.
30 - Cf. Nelson Néry Júnior, “Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos”, ob. cit., p. 390-391.
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224
b)
Devolutivo
I-
CONCEITO
Pode-se definir o efeito devolutivo como o consistente no reexame pelo Poder Judiciário da matéria impugnada no recurso. A devolução significa que o Poder
Judiciário reexamina pela segunda vez a matéria. Embora se possa discutir a existência desse efeito, como sustenta Barbosa Moreira, somente quando se transfere ao
órgão ad quem algo que fora submetido ao órgão a quo ou, como prefere Pontes
de Miranda, o segundo juízo na apelação é necessariamente juízo superior, objetivamente, ao primeiro, para que se dê a substituição dos julgados, admite-se que haja
devolução na hipótese introduzida pelo parágrafo único do art. 296 e, em respeito
ao agravo de instrumento, na hipótese do art. 523, § 2° do CPC.31
II - EXTENSÃO
A matéria que se devolve ao reexame do juízo ad quem está restrita à matéria impugnada, na forma do princípio tantum devolutum quantum apellattum. Tratando-se de apelação sobre sentença terminativa, por exemplo, a Corte
não pode apreciar o mérito da causa, tendo em vista que se transfere a matéria
impugnada.
Nesse caso, tem-se que é impossível impugnar-se o que não foi decidido.
O juízo ad quem se limitará a anular a sentença determinando a baixa dos autos ao juízo de 1° grau para que prolate outra sentença. A sentença definitiva é
aquela que aprecia o mérito. Ainda que se tenha extinto o processo por sentença em que afirme sem o exame do mérito, mas se termine por examiná-lo, como
acontece quando o juiz acolha a alegação de prescrição e decadência, nada impede que o Tribunal revogue a sentença, se entender que isso não ocorreu e,
apreciando todo a questão apresentada, julgue a ação procedente ou improcedente.32
De igual modo, não pode decidir matéria que não foi decidida. Numa hipótese dessa – como acontece com a sentença citra petita – a corte deve cassar o
pronunciamento, por error in procedendo, determinando a baixa dos autos para
que este se pronuncie sobre a matéria omitida. É o que se dá na hipótese em que
Tício propõe ação ordinária contra Mélvio e este, citado, apresenta contestação e
oferece reconvenção e o juiz julga procedente o pedido sem apreciar a reconven-
31 - Cf. Virgínia Brodbeck Bolzani, “Efeito Devolutivo da Apelação”, Ed. AIDE, Rio de Janeiro, 2001, p. 89-90.
32 - Cf. Manoel Caetano Ferreira Filho, “Comentários ao CPC – Do Processo de conhecimento: arts. 496 a 565”, Ed.
Revista dos Tribunais, São Paulo, 2001, p. 107.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
225
ção. Se Mélvio recorrer, o Tribunal não pode apreciar a reconvenção, mas apenas
anular a sentença para que o juiz de 1° grau a aprecie.33
III – PROFUNDIDADE
A questão da profundidade do apelo está ligada à de saber-se se a sentença
está ou não obrigada a resolver todas as questões suscitadas pelas partes. Muito embora se registrem respeitáveis opiniões contrárias, predomina o entendimento de
que o juiz não está obrigado a examinar e a decidir todas as questões levantadas pelas partes, sendo suficiente que aprecie aquelas suficientes à fundamentação da conclusão a que chegará na parte dispositiva.
Por outro lado, há questões que, por já terem sido decididas antes da sentença, não podem mais ser nela apreciadas, em face da preclusão. Se houver questões
que não foram apreciadas em momento algum pelo juiz monocrático, nem antes
nem no corpo da sentença, serão devolvidas à apreciação do Tribunal, por força do
art. 516 do CPC. Por fim, há questões que embora tenham sido apreciadas no primeiro grau somente serão devolvidas ao Tribunal se houverem sido impugnadas,
em tempo oportuno, pelo recurso de agravo de instrumento. Se tal recurso não
houver sido manejado, opera-se quanto a elas a preclusão. No entanto, se se tratar
de matéria de ordem pública, conhecível de ofício pelo juiz, como a matéria a que
se refere o § 3° do art. 267 do CPC: pressupostos processuais, condições da ação,
perempção, litispendência e coisa julgada e, mais, a decadência, será ela devolvida
ao Tribunal, ainda que não se tenha interposto o agravo correspondente, por sobre
elas não operar a preclusão.34
c)
Efeito regressivo ou repositivo
Diz-se efeito regressivo ou repositivo àquele em que se permite que o mesmo
juiz prolator da sentença a reveja.
Significa a mesma coisa que juízo de retratação que, existente apenas o agravo de instrumento, se estendeu à apelação por força na forma da nova redação dada
ao art. 296 do CPC.
Particularmente, não vejo vantagem nessa mudança de terminologia, mas entendo importante referi-la num trabalho dessa natureza. Esta inovação chegou ao
CPC depois de haver sido introduzida no art. 198, VII do Estatuto da Criança e do
33 - Cf. Bernardo Pimentel Souza, “Introdução aos Recursos Cíveis e à Ação Rescisória”, Ed. Brasília Jurídica, Brasília, 2000, p. 173-174.
34 - Idem, ibidem, p. 120-123.
35 - Cf. Eliana Pires Rocha e Jefferson Carús Guedes, “Efeito Devolutivo Regressivo ou “Repositivo” e Juízo de Retratação nos Recursos Cíveis”, artigo inserto na obra “Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis e de Outras
Formas de Impugnação às Decisões Judiciais”, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2000, p. 299-337.
faculdade de direito de bauru
226
Adolescente e se revela como conquista da busca de celeridade processual, quando
se percebeu a possibilidade da modificação nessas duas matérias.35
d)
Efeito expansivo
Vemos essa denominação na obra de Nelson Néry Júnior que refere a utilização por autores italianos. Diz respeito ao julgamento do recurso em que o juízo ad
quem extrapola os estritos limites da matéria devolvida aos tribunais, que é o mérito do recurso. O efeito expansivo pode ser objetivo ou subjetivo, interno ou externo, segundo síntese que se procede a seguir.
Diz-se efeito expansivo objetivo interno quando o Tribunal, ao apreciar apelação
interposta contra sentença de mérito, dá-lhe provimento e acolhe, por exemplo, preliminar de litispendência. Considera-se que essa decisão embora seja sobre questão preliminar (e não questão prejudicial, que é outra coisa) estende-se por toda a sentença,
invalidando-a, pois o resultado efetivo desse julgamento de apelação será o de extinguir o processo sem o exame do mérito, na forma do art. 267, V, do CPC. De modo semelhante, sendo atacada no recurso a questão prejudicial do an debeatur – se, por
exemplo, há uma ação de cobrança e o réu suscita a questão de que a dívida an debeatur não existe (que é prejudicial porque necessariamente o juiz de 1° grau deve apreciá-la para condenar-se ou não ao pagamento, em razão do que irá influir no conteúdo
da sentença a ser proferida36) – o provimento do apelo que reforma a sentença condenatória importa também o efeito expansivo objetivo interno de estender a decisão à
condenação do autos nas despesas processuais e honorários do advogado, muito conhecido como inversão do ônus da sucumbência.37
Nesse caso, diz-se que o efeito expansivo é interno porque opera relativamente ao mesmo ato. Nos dois exemplos acima mencionados, o efeito expansivo se derramou sobre a sentença que havia sido impugnada. No efeito expansivo objetivo externo, tem-se que opera em respeito a outro ato ou outra relação processual, atingida indiretamente. Assim ocorre, por exemplo, com o recurso do agravo de instrumento. Ressabe-se que este recurso não tem – em regra – efeito suspensivo, em razão disso não se paralisa o curso do procedimento.
Se, no entanto, o procedimento prosseguiu e, no curso dele, deu-se provimento ao agravo, deve-se renovar todos os atos praticados depois de sua interposição desde que sejam incompatíveis com a nova decisão. 38
Ocorre o efeito expansivo subjetivo na hipótese do provimento de apelo manejado por litisconsorte – em litisconsórcio unitário – que se expande para os de36 - Cf. a respeito Barbosa Moreira. “Questões Prejudiciais e Coisa julgada”, tese de concurso para a docência livre
de Direito Judiciário Civil na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1967, ed esgotada, p.
52-54.
37 - Cf. Nelson Néry Júnior, ob. cit., p. 410.
38 - Idem, ibidem, p. 411.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
227
mais litisconsortes na forma do art. 509 do CPC, salvo quando distintos ou opostos
os interesses. Creio que, nesse caso, tem-se um efeito expansivo subjetivo interno.
No que respeita ao efeito expansivo subjetivo externo, penso identificar a hipótese
de recurso interposto apenas pela seguradora litisdenunciada, em que a ré – condenada – restou silente. Nesse caso, tem-se que a ré – vencida – não pode mais recorrer em face da preclusão. Nada obstante, não se formou, ainda, autoridade da coisa
julgada sobre a sentença, em face do apelo da litisdenunciada, em razão do efeito
expansivo desse recurso que, no caso, inegavelmente é externo.39
Efeito translativo
I – DEFINIÇÃO
Dá-se o efeito translativo em respeito à apelação quando se reconhece que o
Tribunal possa conhecer de questões não suscitadas pelos recorrentes desde que se
trate de questões de ordem pública, ainda que não tenham sido decididas pela primeira instância, na forma do art. 516, cuja nova redação atendeu aos reclamos de
Barbosa Moreira, mas ainda se sujeita às críticas de Nelson Néry Júnior.40
II – EXTENSÃO E PROFUNDIDADE
Considera-se que o poder atribuído ao órgão judiciário para, na instância recursal, examinar de ofício as questões de ordem pública não argüidas pelas partes
não se insere no efeito devolutivo estrito senso, pois se lastreia no princípio inquisitório.41
Em tema de extensão do princípio, tem-se que o objeto do julgamento estabelece a extensão deste no sentido de que o órgão julgador não pode extrapolar os
termos em que foi formulado o pedido de nova decisão, sob pena de proferir-se julgamento, citra, extra ou ultra petita, na forma dos arts. 128 e 460 do CPC. Em face
do princípio translativo, porém, a lei autoriza que – excepcionalmente – o julgador
extrapole esses limites, sem maltrato a esses dispositivo, quando aprecia questões
de ordem pública.
A profundidade com que se dará esse exame se refere aos elementos com que
há de contar o órgão recursal para julgar. Em princípio, se devolve à instância recursal as matérias decididas pela instância a quo. A extensão e a profundidade do efeito translativo há de ser examinada com fundamento nos §§ 1° e 2° do art. 515 do
CPC. No § 1° se observa que se devolve ao Tribunal a apreciação e julgamento de
todas as questões suscitadas e discutidas no processo, ainda que a sentença não
as tenha julgado por inteiro.
39 - Idem, ibidem, p. 414.
40 - Idem, ibidem, p. 415-416.
41 - Cf. Nelson Néry Júnior, ob. ct., p. 417.
228
faculdade de direito de bauru
O § 2° acrescenta que apelação devolverá ao Tribunal o conhecimento de todas as questões, ainda que parte delas não tenha sido apreciadas porque, havendo
várias questões, o juiz acolheu apenas uma delas com fundamento da sentença. No
exame dessas questões a instância recursal apreciará todos os elementos existentes
nos autos, ainda que não considerados na sentença.42Nesse caso, se o réu, numa
ação de cobrança, alegar que a dívida já foi paga e, além disso, se encontra prescrita e o juiz tiver acolhido alegação de prescrição sem apreciar se tinha ocorrido o pagamento, o Tribunal poderá decidir sobre este.43
O art. 516, na nova redação dada pela Lei n° 8.950/94 tornou-se inócuo,
segundo observa Nelson Néry Júnior porque as questões ainda não decididas
são devolvidas – mais corretamente, na forma dessa nova nomenclatura, são
transladadas à instância recursal – não por força do art. 516, mas do art. 515 do
CPC.44
III – REFORMATIO IN PEJUS
O princípio da reformatio in peius ou reformatio in pejus, que significa
reforma para pior, no sentido de o apelante obter uma sentença que longe de
obter uma decisão que melhore a situação vem prejudicá-la mais, nem sempre
existiu no nosso direito processual na forma como atualmente se o defende.
Moacyr Amaral Santos, por exemplo, explica que no regime das Ordenações,
como a apelação era comum às partes, no sentido de que com esse recurso se
devolviam por inteiro todas as questões e não somente aquelas de que se apelava, o célebre princípio tantum devolutum quantum apellatur “...em razão da
comunhão da apelação, o juízo ad quem tinha o poder de decidir melhorando
a situação do apelado e piorando a do apelante”, com a observação de que esse
sistema permaneceu até a Proclamação da República.45
Hoje em dia, admite-se a existência da proibição da reformatio in pejus, por
considerar-se que o recorrente não pode ter piorada sua situação com o julgamento do recurso, muito embora se reconheça que se trata de uma opção do ordenamento jurídico positivo. Essa conseqüência é extraída do sistema processual, mais
precisamente da análise do art. 499 do CPC – que refere o interesse de recorrer –
em conjunto com a regra do art. 515, caput, do mesmo CPC, que menciona a extensão do efeito devolutivo da apelação. Se a parte só possui interesse para recorrer da
decisão que lhe causou algum prejuízo e, com o recurso, pretende obter algum pro42 - Cf. Marco Aurélio Moreira Bortowski, ob. cit., p. 120-122.
43 - Cf. Nelson Néry Júnior e Rosa Maria Andrade Néry, “CPC Comentado e legislação processual civil em vigor”, Ed.
Revista dos Tribunais, São Paulo, edição atualizada até 10.03.99, p. 1003.
44 - Idem, ibidem, p. 1004 e nota 3 ao art. 516 do CPC.
45 - Cf. “Primeiras Linhas de Direito Processual Civil”, 3° vol., Ed. Saraiva, São Paulo, 1979, 3ª ed.,p. 108.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
229
veito, a decisão que reformasse a decisão anterior imputando maior gravame ao apelante inevitavelmente estaria violando uma dessas regras.46
Como essa proibição assenta no princípio dispositivo, não ocorre em respeito às questões de ordem pública porque têm lastro no princípio inquisitório nem
quando há apelações recíprocas, ou seja, quando a parte adversa também recorre
porque, nesse caso, toda matéria é devolvida ao Tribunal.
Observe-se, por fim, que não há violação ao princípio da reformatio in pejus
se o Tribunal não reforma a sentença, mas a mantém por fundamento distinto do
impugnado.
Discordo, respeitosamente, do entendimento de Nelson Néry Júnior de que
o Tribunal não pode modificar o fundamento do julgamento em casos como a da
ação popular e da ação civil pública, por serem relevantes tais fundamentos, com o
que se estaria incidindo em reformatio in pejus proibida, para o que faz expressa
menção ao art. 18 da Lei n° 4.717/65 (Lei da Ação Popular). Tanto este dispositivo,
como o do art. 16 da Lei n° 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) autorizam a propositura de nova ação, ainda que tenha sido julgada improcedente, com o mesmo fundamento, desde que baseada em nova prova.47
6.
A CONTROVÉRSIA A RESPEITO DA ADMISSIBILIDADE DA ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA NA SENTENÇA E DO RECURSO
CABÍVEL
a)
Introdução
Questão momentosa e atual que não poderia deixar de ser abordada num trabalho que verse sobre a apreciação do apelo como um das formas de recurso diz
respeito à decisão da antecipação da tutela no corpo mesmo da sentença e qual o
recurso cabível para impugná-la.
b)
Momento de deferimento da tutela antecipada
Tem-se destacado, na abordagem desse tema que a disciplina da antecipação
da tutela entre nós, não menciona em que momento ela deva ser deferida, muito
embora boa parte da doutrina considere que ela possa ser concedida liminarmente
ou em qualquer fase do procedimento de conhecimento sempre antes da sentença,
mas nunca no seu bojo.48 Muitos autores, no entanto, consideram que se possa de46 - Cf. Manoel Caetano Ferreira Filho, ob. cit., p. 110-111.
47 - Cf. “Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos”, ob. cit., p. 157.
48 - Carreira Alvim sustenta que não tendo a lei estabelecido um momento preclusivo (grifo do original) para a antecipação da tutela, pode ela ser concedida a qualquer tempo, antes da sentença, bastando que se tenha tornado
necessária, o que pode vir a ocorrer no curso do processo ou depois de produzida determinada prova. Cf. “Ação Monitória – Temas Polêmicos – Reforma Processual”, Ed. Del Rey, Belo Horizonte, 1995, 1ª ed. 2ª tiragem, p. 166.
230
faculdade de direito de bauru
ferir a antecipação da tutela no ato que põe termo ao processo porque se sustenta
que essa medida enaltece a efetividade deste, considerando que a antecipação é
apenas o poder conferido ao magistrado de emprestar eficácia executiva provisória imediata à sua decisão.49
C)
A QUESTÃO DA UNIRRECORRIBILIDADE RECURSAL E A POSIÇÃO
DO VENCIDO EM FACE DO DEFERIMENTO DA TUTELA
A dúvida que assalta em respeito ao recurso cabível na hipótese em que se admita o deferimento da antecipação dos efeitos da tutela no bojo da sentença diz respeito à uni-recorribilidade recursal, ou seja, ao princípio de que não se admite, em
nosso sistema recursal, a propositura de mais de um recurso contra a mesma decisão.50 Em razão disso, tem-se que o recurso cabível da decisão entranhada na sentença que defere a antecipação dos efeitos da mesma sentença é a apelação, que, todavia, não deverá ser recebida nos dois efeitos, mas apenas no efeito devolutivo.51Há
controvérsia, no entanto, registrando-se opiniões no sentido de que o vencido na
sentença requeresse, em preliminar do recurso de apelação, a suspensão dos efeitos da medida. Isso se faria com espeque no art. 558, parágrafo único, com a redação que lhe deu a Lei n° 9.139/95, dispositivo aplicável ao recurso de apelação, a suspensão dos efeitos da decisão impugnada, ainda que no bojo da sentença impugnada.52 Há, por fim, uma terceira posição, que provoca muita controvérsia: a sentença
terá que ser impugnada por dois recursos: o de agravo de instrumento – em respeito à antecipação da tutela no bojo da sentença – e o de apelação em respeito à sentença mesma.
Essa postura se encontra no acórdão proferido pela 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que se transcreve, tal como reproduzido em trabalho de Eduardo Bastos de Barros:
“Antecipação de tutela. Concessão no bojo da sentença. Possibilidade. Efeitos. Recursos. Execução. Art. 273, §§ 3° e 5°, do CPC.
49 - Com o faz Fernando César Zeni, in “Deferimento do Pedido de Tutela Antecipatória na Sentença. Novas Considerações”, participação na obra coletiva “Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis e de Outras Formas de
Impugnação às Decisões Judiciais”, ob. cit., p. 359.
50 - Barbosa Moreira após discutir o cabimento de dois recursos sobre a mesma decisão, existente no direito italiano, acrescenta: No direito brasileiro, não há caso de análoga alternativa: para cada hipótese, a lei prevê um recurso adequado, e somente um. É o que se denomina princípio da uni-recorribilidade; consagrava-o expressis
verbis o art. 809, 2ª parte, do código de 1939, e, apesar de não haver dispositivo equivalente na lei nova, o princípio subsiste, implícito (grifo do original). Cf. “Comentários ao CPC”, V vol., arts. 476 a 565. Ed. Forense, Rio-São
Paulo, 1974, p. 204.
51 - Como informa o mesmo Fernando César Zeni, na mesma obra anteriormente citada, às p. 365.
52 - Idem, ibidem, p. 366.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
231
Nenhum óbice legal há que, em uma mesma peça, profira o juiz a
sentença e defira a tutela antecipada, que poderia ter concedido
antes, mas que não o fizera por qualquer razão, inclusive eventual produção de prova apenas em audiência ou melhor e mais
acurada análise da prova somente quando da oportunidade do
julgamento antecipado. Não seria evidentemente jurídico e justo
negar-se a tutela antecipada, quando presentes seus pressupostos.
Em uma mesma peça, proferida a sentença e deferia a tutela antecipada, há independência entre as duas ordens de decisão: a interlocutória, de antecipação de tutela, e a sentença, resolvendo o
mérito. O fato de os provimentos constarem de uma mesma peça
não iguala suas respectivas naturezas nem os sujeita aos mesmos
efeitos. Cada qual desafia instrumento específico de impugnação,
com efeitos próprios. Assim, da interlocutória de antecipação de
tutela, cabe agravo de instrumento, sem efeito suspensivo, que, se
o caso, pode ser concedido pelo relator; da sentença cabe apelação, com duplo efeito, se o caso.
Interposto recurso de apelação, corretamente recebido nos efeitos devolutivo e suspensivo, mas não interposto o recurso de agravo da decisão interlocutória, o efeito suspensivo daquela não empolga esta. A
decisão de antecipação de tutela, como lhe é inerente, reclama imediata execução, nos termos do art. 273, §§ 3° e 5°, do CPC.
Como os efeitos da apelação não podem abranger a decisão de antecipação de tutela, que desafiava, por sua específica natureza,
agravo, não cabia aos agravantes agravar da decisão que recebeu, no duplo efeito, a apelação. O duplo efeito só envolve a sentença, não, repita-se, a decisão de antecipação de tutela. Agravo
conhecido e provido para que tenha a decisão de antecipação de
tutela imediato cumprimento, de acordo com os §§ 3° e 5° do art.
273, do CPC”.53
d)
A posição jurisprudencial
Sobre o assunto, Fernando César Zeni procede a um resumo da atual posição
jurisprudencial, sobre a qual traçamos um apertado sumário. Esclarece, inicialmen53 - O precedente é da lavra do Desembargador Mário Machado, em votação unânime, e foi publicada no DJU 3, de
4.02.98, p. 57 e se encontra às p. 232-233, de onde foi transcrito, do artigo “Necessidade da Criação de Mecanismo
Garantidor da Eficácia de Medidas de Antecipação dos Efeitos da Tutela e Tutela Específica da obrigação”, do autor
mencionado Eduardo Bastos de Barros, advogado em Curitiba, que integra a obra“Aspectos Polêmicos e Atuais dos
Recursos Cíveis e de outras Formas de Impugnação às Decisões Judiciais”, ob. cit., p. 222-233, mais precisamente
p. 231-232.
faculdade de direito de bauru
232
te, que – de um modo geral - a jurisprudência tem aceitado a concessão da antecipação da tutela na sentença, radicando a discussão quanto ao recurso cabível, que
se resumem às hipóteses já mencionadas: apelação, tão somente; apelação recebida
somente com efeito devolutivo e apelação e agravo. Além do precedente acima
transcrito, refere, mais:
A decisão do Tribunal de Alçada do Paraná, aceitando a concessão da antecipação da tutela na sentença, impugnável por agravo de instrumento:
A antecipação da tutela pode ser deferida na própria sentença, decisão que,
sujeita ao recurso de agravo de instrumento, não se submete ao efeito suspensivo
da apelação. Diante do convencimento do magistrado é de se deferir a antecipação
da tutela, afastando-se o perigo da imprevisibilidade da medida pela cautela de se
condicionar o levantamento da importância à prestação de caução.54
E, por fim, postura do TRF da 3ª Região, que, ao contrário da tendência atual,
não aceita a concessão da antecipação da tutela no corpo mesmo da sentença:
A tutela antecipatória, cujo deferimento está subordinado a expresso requerimento do autor, inexistente na espécie, de modo algum pode ser, ademais, deferida na própria sentença do processo
de conhecimento (grifo nosso). Inteligência do art. 273, caput, e §
5°, do CPC.55
e)
Nossa posição
Penso que a admissibilidade da concessão da antecipação da tutela no próprio
corpo da sentença provoca muitos questionamentos, notadamente no que respeita
ao recurso cabível, pelo que, por motivo de cautela, deve ser evitada. Não creio que
o processo, na atividade jurisdicional de rotina, sirva de campo para discussões de
teses jurídicas, mais ajustadas ao ambiente acadêmico.
Não se deve levar os conceitos jurídicos, sobretudo no processo, aos paroxismos de considerá-lo com um fim em si mesmo, perdendo-se de vista a dimensão da
instrumentalidade com que serve ao direito.
Em uma palavra, há que se buscar realizar o direito na experiência, como o demonstrou sobejamente Miguel Reale em fundamental obra, recentemente reeditada.56
54 - Indica-se o precedente: TAPR – Agravo de Instrumento 136.669-6-Cianorte – Acórdão 11997 – 3ª Câmara Cível
– Rel. Juiz Rogério Coelho. “Deferimento do Pedido de Tutela Antecipatória na Sentença. Novas Considerações”, artigo também inserto na obra “Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis e de outras Formas de Impugnação
às Decisões Judiciais”, cit., p. 356-369, mais precisamente p. 368.
55 - Cf. TRF 3ª Região – AC 96.03.053618-0-SP. 1ª Turma – Rel. Juiz Theotônio Costa, precedente no mesmo artigo
e na mesma obra citada na nota anterior, às p. 368.
56 Refiro-me à obra “O Direito Como Experiência”, Ed. Saraiva, São Paulo, 2ª ed. fac-similar com nota introdutiva
do autor, 1999, 2ª tiragem.
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233
A partir dessas observações, penso que melhor seria que o magistrado de primeiro grau evitasse deferir a antecipação da tutela no corpo mesmo da sentença.
Isso não quer dizer que não a possa deferir nessas condições. Se o fizer, me parece
que o recurso cabível deve ser o de apelação. Data vênia do entendimento que se
vem firmando de aceitar-se a interposição de apelo – em respeito à sentença – e de
agravo – em relação a decisão inserta neste mesmo ato – não me convenço nem do
acerto teórico nem da vantagem prática. No primeiro caso, tal concepção vulnera o
princípio da unirrecorribilidade do recurso, a que se refere Barbosa Moreira, em
obra clássica, em que se afirma, de forma contundente, que, no direito brasileiro, a
regra estabelecida é a de que, para cada hipótese, a lei prevê um recurso adequado,
e somente um. No segundo, muito embora se pretenda com tal construção, permitir que, na prática, a antecipação da tutela seja logo executada, ainda que provisoriamente, e, por isso, se sustenta que eventual apelo deva ser recebido no efeito meramente devolutivo, tudo isso pode ser evitado, porém, porque também se admite
o manejo do agravo de instrumento que, como se sabe, pode ter esse efeito atribuído pelo relator. Por fim, penso que não se pode deixar de admitir eventual recurso
manejado para atribuir efeito suspensivo à decisão embutida na sentença, ainda que
seja agravo contra a decisão que recebe o apelo no efeito meramente devolutivo, em
face da aplicação do princípio da fungibilidade dos recursos que, malgrado não se
tenha disciplinado no texto atual do CPC, permanece no sistema como bem demonstrou Nelson Néry Júnior, cujo pensamento foi acima sumariado.
Penso que essa inovação não tem sentido prático maior e deita abaixo o esforço do legislador ao criar o atual CPC, no sentido de facilitar a disciplina dos
recursos.
Como se sabe, o CPC efetuou uma disciplina dos atos do juiz, no art. 162 (muito embora não fosse a melhor, do ponto de vista técnico)57, para racionalizar a disciplina dos recursos. Assim, estabeleceu, já no art. 513 do mesmo CPC, que da sentença cabe apelação e, no art. 522, adiante, que das decisões interlocutórias cabe agravo de instrumento. Com essas inovações – relevantes, sem dúvida, no plano dos
conceitos – imprime-se profunda manifestação no sistema, pois se termina por concluir que da sentença caiba apelação e agravo de instrumento, ao mesmo tempo, o
que me parece, com todas escusas ao entendimento contrário, algo incompatível
com o sistema, que nenhuma vantagem prática trará para o processo como poderoso instrumento da jurisdição, destinado à realização da justiça.
Acrescento, por fim, que essa questão foi resolvida pelas últimas modificações
procedidas na reforma pontual do CPC, mas precisamente com a Lei nº 10.352, de
57 - Cândido Dinamarco, por exemplo, bem anotou que a palavra sentença – definida no art. 162, § 1° do CPC e,
mesmo, o vocábulo decisão, conceituado no art. 162, § 2°, têm significado incerto por virem empregadas em diversos sentidos no próprio corpo do CPC. Cf. “Fundamentos do Processo Civil Moderno”, Ed. Revista dos Tribunais,
São Paulo, 1986, p. 174-175.
234
faculdade de direito de bauru
28 de dezembro do ano passado (2001). Como se vê da mencionada lei, o legislador
estabeleceu que o recurso cabível da sentença, ainda que nela se conceda a antecipação da tutela, é a apelação, tanto que acrescentou ao rol do art. 520 do CPC mais
um inciso VII, com a seguinte redação:
“Art. 520 – A apelação será recebida em seu efeito devolutivo e suspensivo.
Será, no entanto, recebida só no efeito devolutivo, quando interposta de sentença
que:
I a VI – omissos...........................................................................
VII – confirmar a antecipação dos efeitos da tutela”.
Entenda-se – de uma vez por todas – que isso dispositivo inclui não só a sentença que confirma a antecipação dos efeitos da tutela anteriormente concedida
quanto a própria sentença que, no seu bojo, contém a concessão da medida, tendo
em vista que ambas têm a mesma natureza de sentença e contém o mesmo dispositivo, sem que – em ambos os casos – se possa, ainda, falar-se em produção dos efeitos definitivos.
Na mesma lei, deu-se nova redação ao § 4º do art. 523, que passou a soar:
§ 4º - Será retido o agravo das decisões proferidas na audiência da
instrução e julgamento e das posteriores à sentença, salvo nos casos de dano de difícil e de incerta reparação, nos de inadmissão
da apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida (DEI DESTAQUE).
Na esteira do novo recorte que se deu ao agravo de instrumento – em que o
Relator pode determinar que fique retido nos autos, para julgamento posterior ou
pode lhe atribuir efeito suspensivo ou, mesmo efeito positivo, para conceder medida que porventura se tenha negado na primeira instância.
Como se sabe, este § 4º estabelece que todos os agravos interpostos a partir
da audiência e das decisões posteriores à sentença, tenham apenas efeito devolutivo. Excepciona-se a medida, porém, para a hipótese em que o apelo haja sido recebido apenas no efeito devolutivo – como consta da parte posta em destaque – o
permite aplicar-se o parágrafo único do art. 558 do CPC, com a redação que lhe deu
a Lei nº 9.139, de 30.11.95, para permitir-se ao relator atribuir-se efeitos suspensivo
não só ao agravo, como o autoriza o caput do referido art. 558, mas também à apelação, nas precisas hipóteses previstas no art. 520 do CPC, na forma já mencionada.
Em resumo: estabelece-se que se maneje a apelação para todas as sentenças,
sendo que naquelas que contiver em seu bojo a antecipação dos efeitos da tutela ou
a confirmação da decisão que anteriormente a concedeu o apelo somente será recebido no efeito devolutivo. Permite-se ao relator, porém, atribuir efeito suspensivo
ao apelo se houver sido manejado agravo de instrumento da decisão que o receber
apenas no efeito devolutivo, desde que se convença dessa necessidade.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A TUTELA
CAUTELAR E ANTECIPATÓRIA
Rômulo Resende Reis
Advogado em Minas Gerais,
Pós–Graduando em Direito Processual Civil pelo CAD – Universidade Gama Filho
INTRODUÇÃO
A demora na prestação jurisdicional, bem como os graves efeitos do tempo sempre foram obstáculos a uma prestação jurisdicional eficaz e ágil. Daí a importância do estudo das medidas processuais cautelares e de antecipação de tutela. As quais visam a impedir que estes efeitos maléficos do tempo venham a frustrar a prestação jurisdicional.
Neste singelo estudo, faremos um breve apanhado dos principais aspectos e
características dos dois institutos, mostrando seus pontos de semelhança e distinção, bem como seus requisitos e aplicação.
Desde já, é de se salientar que este singelo trabalho não tem a pretensão de
esgotar o assunto. Trata-se de simples estudo, reunindo nossos apontamentos e observações pessoais sobre os institutos questão.
TUTELA CAUTELAR
Ao iniciar-se o estudo do tema, primeiramente torna-se necessário estabelecer
o conceito de tutela cautelar. Para este mister, recorreremos a abalizada doutrina do
mestre José Frederico Marques1 que, com precisão, conceitua:
1 MARQUES, José Frederico. Manual de Direito Processual Civil. Vol. IV. Ed. Millennium. 1998. 2a Ed. P. 461
236
faculdade de direito de bauru
Tutela cautelar é o conjunto de medidas de ordem processual destinadas a garantir o resultado final do processo de conhecimento,
ou do processo executivo.
Do conceito acima expresso, extraímos a principal característica da tutela
cautelar, qual seja, sua acessoriedade ao processo de conhecimento e execução.
Embora seja um processo autônomo, tem por pressuposto um processo de conhecimento ou execução, sendo sua existência diretamente subordinada à daqueles.
Seu objetivo é assegurar a efetividade do processo de conhecimento ou execução. De modo a impedir que a prestação jurisdicional se torne inócua pelo decurso do tempo. Sua função primordial é de garantia.
A característica marcante da tutela cautelar é que a mesma em princípio não
tem cunho satisfativo. Ponto este de capital importância para diferenciação da tutela antecipada. Como bem adverte Ernane Fidélis dos Santos2, “o processo cautelar
não se presta nunca à antecipação da prestação jurisdicional definitiva.” Ressalvando-se alguns casos em que o perigo de lesão está diretamente ligado ao reconhecimento do direito, sendo que a tutela cautelar implica em verdadeiro provimento
satisfativo. Como exemplo, o caso dos alimentos provisionais.
Em conclusão, podemos afirmar que a tutela cautelar tem como objetivo
maior assegurar a eficácia do processo principal, garantindo-lhe a efetividade do resultado, impedindo que os efeitos do tempo torne o mesmo completamente inócuo. Sua função, no magistério de Carnelutti, citado por Humberto Theodoro Júnior3 é “auxiliar e subsidiária” de servir à “tutela do processo principal”, onde
será protegido o direito e eliminado o litígio.”
REQUISITOS
Para concessão da tutela cautelar, torna-se necessária a satisfação de certos requisitos. Somente após verificada a existência dos mesmos é que se admitirá a concessão da medida.
O primeiro deles é a possibilidade de ocorrência de lesão grave ou de difícil
reparação, em decorrência do periculum in mora. Ou seja, o risco concreto e possível de o processo principal se tornar ineficaz devido a sua demora. Bastando que
no contexto do processo a possibilidade de ocorrência dano se apresente. O que
pode ocorrer nos casos de perecimento do objeto, destruição, desvio ou adulteração de provas e coisas, mutação de pessoas, bens ou qualquer outro ato que coloque em risco a tutela jurisdicional requerida.
2 SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de Direito Processual Civil. Vol. 2. Ed. Saraiva. 1997. 5a Ed. P. 297
3 JÚNOR. Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil Vol. II. Ed. Forense. 3a Ed. 1987. P. 1.105
Revista do instituto de pesquisas e estudos
237
O segundo requisito da tutela cautelar é o chamado fumus boni iuris. Ou seja
a “fumaça de bom direito”, que se constitui na plausibilidade do direito material invocado pela parte. É a demonstração pela parte, superficialmente, da existência, in
tese, de seu Direito. Cabendo aqui esclarecer que não é necessária a demonstração
concreta da existência real do direito invocado, o que é feito no processo principal.
Neste sentido doutrina Humberto Theodoro Júnior4:
Para a ação cautelar, não é preciso demonstrar-se cabalmente a
existência do direito material em risco, mesmo porque esse, freqüentemente, é litigioso e só terá sua comprovação e declaração
no processo principal.
Pela análise dos requisitos para concessão da tutela cautelar, ressalta-se, mais
uma vez, o caráter de acessoriedade e garantia da mesma. Delimitando-se o instituto como um instrumento processual de garantia e cautela. Autônomo como fenômeno processual, mas completamente acessório e dependente do processo principal, tal como se depreende do art. 796 do CPC.
TUTELA ANTECIPADA
Atendendo aos reclamos de efetividade e presteza do processo, o instituto da tutela antecipada foi introduzido no Direito Pátrio pela Lei 8.952, de 13 de
Dezembro de 1994, a qual deu nova redação ao art. 273 do CPC, modificando-o
totalmente.
Um bom conceito de tutela antecipada nos é dado por Pedro Barbosa Ribei5
ro , qual seja:
O ato pelo qual o Juiz, ante a prova inequívoca dos fatos articulados pelo autor, na peça exordial, e ante à verossimilhança dos fundamentos jurídicos do pedido, concede o adiantamento da tutela
jurisdicional pedida, desde que haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou que fique caracterizado, pelo
comportamento do réu, o abuso do direito de defesa ou de seu manifesto propósito procrastinatório.
Analisando o conceito em tela, bem como as disposições do art. 273 do CPC,
de imediato extraímos as principais características do instituto.
4 JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil. Vol. II. Ed. Forense. 3a Ed. 1987. P. 1116
5 RIBEIRO, Pedro Barbosa. In Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos – Divisão Jurídica. Instituição Toledo de
Ensino – Bauru-SP. Abril a Julho de 1999. N. 25. P. 243
238
faculdade de direito de bauru
A primeira característica marcante é que a antecipação de tutela, diferentemente da tutela cautelar, não tem cunho de acessoriedade ou garantia, nem é pleiteada em autos apartados. È tutela efetiva de mérito, satisfativa do direito pleiteado,
desde que preenchidos seus requisitos de admissibilidade. No dizer de Humberto
Theodoro Júnior6,
há antecipação de tutela porque o juiz se adianta para, antes do
momento reservado ao normal julgamento do mérito, conceder à
parte um provimento que, de ordinário, somente deveria ocorrer
depois de exaurida a apreciação de toda a controvérsia e prolatada a sentença definitiva.
O Juiz, acatando o pedido, antecipa a parte requerente, total ou parcialmente, os efeitos da tutela de mérito. Diferentemente do julgamento antecipado da lide,
que põe fim ao processo com uma sentença, na tutela antecipada o juiz não profere uma sentença, simplesmente defere a parte o adiantamento da tutela requerida.
O processo continuará até final sentença, podendo em seu curso ser revogada a medida, a qual se reveste do caráter de provisoriedade (§ 4o do Art. 273 do CPC).
Outro ponto que certamente tem causado divergências é quanto ao momento de concessão da tutela antecipada. Alguns doutrinadores afirmam que a mesma
poderá ser concedida liminarmente, sem oitiva do réu, outros discordam desta possibilidade. Analisando os requisitos legais da concessão da medida, obrigatoriamente ficamos ao lado daqueles que negam a possibilidade de concessão liminar, sem
oitiva do réu. Basta esclarecer que a lei fala em prova inequívoca. Ora, se a prova é
inequívoca, obrigatoriamente, para se revestir desta característica, tem que ser submetida ao contraditório. Exemplificando, não basta que o autor seja detentor de um
documento público que comprove seu direito, o réu também poderá apresentar em
juízo outro documento que anule aquele. Portanto para que a prova seja inequívoca, entendemos que obrigatoriamente terá que ser submetida ao contraditório.
Somos da opinião de que a tutela antecipada poderá ser concedida em qualquer fase do processo, mas somente após prévia oitiva do réu. Ernane Fidélis dos
Santos7 cita dois renomados juristas com o entendimento semelhante ao nosso:
Calmon de Passos entende que a prova inequívoca nasce apenas
em razão do que se produz nos próprios autos, não sendo, portanto, possível a antecipação antes do esgotamento da instrução, a
não ser que esta se dispense. (....)
6 JÚNIOR, Humberto Theodoro. O Processo Civil Brasileiro no Liminar do Novo Século. Ed. Forense. 1a Ed. 1999
– P. 81
7 SANTOS. Ernane Fidélis dos. Manual de Direito Processual Civil. Vol. 1. Ed. Saraiva. 5a Ed.. 1997. P. 330
Revista do instituto de pesquisas e estudos
239
Sérgio Bremudes parece entender que a tutela pode dar-se liminarmente, mas nunca sem ouvir antes o réu, julgando ferido o princípio do contraditório se assim não for feito.(....)
Ponto que deve ser abordado também, nestas breves considerações, é a existência de certo temor em alguns juizes em deferir a medida. Para tanto argumentam
que o § 2o do art. 273, veda a concessão em caso de perigo de irreversibilidade. De
plano, o juiz obrigatoriamente terá que analisar a possibilidade de dano irreversível.
Devendo esta análise se basear nas provas e na existência de um perigo concreto, e
não em mera possibilidade de dano. Ademais a tutela antecipada é provisória, podendo ser modificada ou cancelada no curso do processo caso ocorra o perigo de
dano irreversível após a concessão. Daí não concordarmos com esta posição restritiva de aplicação de tão importante instituto.
Concluindo, resta analisar a natureza jurídica do instituto da tutela antecipada. Tal ato seria uma sentença, despacho ou decisão interlocutória? Tal questionamento, em princípio simples, causa sérias dificuldades ao aplicador do Direito. Analisando o § 2o do Art. 162 do CPC, somos enfáticos em afirmar que o ato pelo qual
o juiz concede a tutela antecipada é decisão interlocutória. Posto que no curso do
processo, o juiz decide uma questão incidente, consistente no adiantamento ou não
dos efeitos da tutela requerida. Ademais, é de se frisar que tal decisão não põe fim
ao processo, portanto em hipótese alguma poderá ser considerada sentença. Daí
afirmarmos que o recurso cabível da decisão que antecipa ou não a tutela é o agravo de instrumento.
REQUISITOS.
Os requisitos necessários à concessão da tutela antecipada, vêm expressos no
art. 273 e seus incisos. Diferentemente da tutela cautelar, que exige a ocorrência do
fumus boni iuris e periculum in mora para sua concessão, na tutela antecipada os
requisitos são diversos. Tendo em vista que o provimento antecipatório tem cunho
satisfativo e não de mera garantia ou acautelamento.
O primeiro requisito, o encontramos no caput do art. 273, qual seja a existência de prova inequívoca. Entendemos no caso, que a prova em questão deverá ser
documental. A qual espelharia irrefutavelmente o direito do requerente da medida.
Outro ponto controvertido, conforme exposto acima, é que tal prova, para se revestir da qualidade de “inequívoca”, obrigatoriamente terá que ser submetida ao contraditório.
Seguindo, o dispositivo legal fala em verossimilhança da alegação. Ou seja,
a parte obrigatoriamente deverá demonstrar que seu pleito é verdadeiro, ou muito
próximo da verdade. Que suas alegações se aproximam da verdade e do Direito. A
lei no caso não exige a prova absoluta da verdade, posto que esta será apurada no
240
faculdade de direito de bauru
decorrer da instrução processual. O que exige sim é a demonstração de um grau de
probabilidade da verdade.
Outro requisito, encontramos no inciso I do art. 273, ou seja, o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação. A parte deverá demonstrar que
a concessão da medida se presta a evitar um dano irreparável, ou que a reparação
se torne muito difícil. Obrigatoriamente deverá provar, no caso concreto, a real possibilidade ou grande probabilidade de ocorrência do dano, justificando assim a concessão da medida.
O inciso II do artigo em questão fala também na caracterização do abuso do
direito de defesa ou manifesto propósito protelatório. Lógico concluir que pelo
princípio da ampla defesa e contraditório, constitucionalmente consagrados, o réu
tem o direito de se defender amplamente, utilizando-se dos recursos legais. Entretanto tal direito é limitado pelos procedimentos legais. A partir do momento que o
réu extrapola os limites e requisitos impostos pela lei, seu pretenso direito passa a
configurar um verdadeiro abuso, o qual coloca em risco toda a atividade jurisdicional. Bem como, quando começa a utilizar-se de procedimentos protelatórios, que
em nada elucidam a questão, com o único fito de retardar o provimento jurisdicional. Nestes casos, presentes os requisitos do caput do art. 273 poderá se conceder
a tutela antecipada.
Por derradeiro, poderíamos arrolar também como requisito para concessão
da tutela antecipada, a não existência de perigo de irreversibilidade da medida. O
§ 2o do art. 273 é taxativo ao afirmar que não se concederá a tutela antecipada quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado. Entendemos que
ao analisar o pedido, o juiz necessariamente tem que verificar sobre a possibilidade
de irreversibilidade da medida. Havendo este perigo, não há que se deferir a tutela
antecipada. Portanto, a não existência de perigo de irreversibilidade se caracteriza
como um verdadeiro requisito à concessão da medida.
Presentes os requisitos, somos da opinião que o juiz deverá obrigatoriamente
deferir a medida. Embora a lei use a expressão “poderá”, entendemos que se trata
de um poder-dever do juiz. Presentes os requisitos, logicamente teremos um direito da parte, e não de mera faculdade do magistrado. Comungamos com a opinião
do ilustre professor José Marcos Rodrigues Vieira8, para o qual:
Poder, faculdade de exercício, corporificada em Poder estatal, é
poder-dever. Quando o juiz puder, deverá antecipar a tutela. Nem
poderia ser outra a conclusão, se encarado o problema do ângulo
da finalidade do dispositivo legal.
8 VIEIRA, José Marcos Rodrigues, Tutela Antecipatória, publicado no site oficial da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Minas Gerais
Revista do instituto de pesquisas e estudos
241
CONCLUSÃO
A morosidade do processo, bem como sua excessiva formalidade sempre foram o maior obstáculo a uma Justiça ágil e eficiente. Sendo que a maior crítica feita
à Justiça como um todo, nos dias de hoje, é exatamente a extrema demora na prestação jurisdicional. Fato que tem levado a sérios estudos e reformas legislativas, com
o fito de agilizar os procedimentos processuais, tornando a Justiça ágil e mais eficiente.
É de se ressaltar que a demora na prestação jurisdicional equivale a uma situação de verdadeira injustiça. Sendo que muitas vezes a demora na solução da lide aniquila o próprio direito das partes. Problema este, já apontado pelo Prof. Humberto
Theodoro Júnior9:
A demora na resposta jurisdicional muitas vezes invalida toda eficácia prática da tutela e quase sempre representa uma grave injustiça para quem depende da justiça estatal.
Neste contexto é que se torna de extrema importância a implementação de
mecanismos processuais que acelerem a prestação jurisdicional. Quando se fala em
efetividade do processo, imediatamente nos vem a mente a existência de um processo célere, ágil, que assegure as partes a pronta prestação jurisdicional. Sem, contudo, abrir-se mão das garantias constitucionais e processuais.
É de se concluir então que os efeitos do tempo na relação processual estão diretamente relacionados á idéia de efetividade do processo. Um processo moroso e
ineficaz, coloca em risco a prestação jurisdicional, tolhendo o próprio direito das
partes, o qual no curso da relação processual poderá vir a perecer. Neste contexto é
que surge a importância dos institutos da tutela cautelar e antecipatória. Institutos
diversos, mas com um ponto de semelhança, qual seja, garantir a efetividade da
prestação jurisdicional.
BIBILIOGRAFIA
JÚNIOR. Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil Vol. II. 3a Ed. Rio
de Janeiro: Forense. 1987.
JÚNIOR, Humberto Theodoro. O Processo Civil Brasileiro no Limiar do Novo Século. 1a Ed. Rio de Janeiro: Forense. 1999.
9 JÚNIOR, Humberto Theodoro. O Processo Civil Brasileiro no Limiar do Novo Século. Ed. Forense. 1999.1a Ed.
P. 83
242
faculdade de direito de bauru
MARQUES, José Frederico. Manual de Direito Processual Civil. Vol. IV. 2ª Ed. Campinas (SP): Millennium. 1998.
RIBEIRO, Pedro Barbosa. Da Tutela Antecipada. Revista do Instituto de Pesquisas e
Estudos – Divisão Jurídica. Bauru (SP). N. 25, Abril a Julho de 1999. 239 a 256.
SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de Direito Processual Civil. Vol. 2. 5a Ed. São
Paulo: Saraiva. 1997.
VIEIRA, José Marcos Rodrigues, Tutela Antecipatória, publicado no site oficial da
Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Minas Gerais
O VIII LAUDO DO TRIBUNAL ARBITRAL AD HOC
DO MERCOSUL E SEUS FUNDAMENTOS
Valerio de Oliveira Mazzuoli
Advogado no Estado de São Paulo (Brasil).
Mestrando na Faculdade de Direito da Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Campus de Franca.
Professor de Direito Internacional Público e Direitos Humanos na
Faculdade de Direito de Presidente Prudente – SP (Associação Educacional Toledo) e de
Direito Constitucional na Universidade do Oeste Paulista – UNOESTE.
Autor de vários livros sobre direito internacional e direitos humanos e de diversos artigos publicados
em revistas jurídicas especializadas, no Brasil e no exterior. E-mail: [email protected].
INTRODUÇÃO
Aos 21 dias do mês de maio deste ano, foi constituído, na cidade de São Paulo, Brasil, o Tribunal Arbitral ad hoc do Mercosul, para decidir a controvérsia entre
a República do Paraguai e a República Oriental do Uruguai sobre a aplicação, pelo
Uruguai, do Imposto Específico Interno – IMESI à comercialização de cigarros provenientes da República do Paraguai.
O artigo 7.º, n.º 1 do Protocolo para a Solução de Controvérsias do Mercosul
(“Protocolo de Brasília”), ratificado pelo Brasil em 28 de dezembro de 1992, e promulgado pelo Decreto n.º 922 (DOU de 13.09.93), assim dispõe:
Quando não tiver sido possível solucionar a controvérsia mediante a aplicação dos procedimentos referidos nos Capítulos II e III,
qualquer dos Estados Partes na controvérsia poderá comunicar à
Secretaria Administrativa sua intenção de recorrer ao procedimento arbitral que se estabelece no presente Protocolo.
244
faculdade de direito de bauru
A constituição do Tribunal Arbitral é a segunda fase de um iter procedimental
que, no caso, já teve suas duas primeiras fases regularmente desenvolvidas. O artigo 9, n.º 1, do Protocolo de Brasília estabelece que: “O procedimento arbitral tramitará ante um Tribunal ad hoc composto de três (3) árbitros pertencentes à lista referida no Artigo 10”. Este dispositivo, por sua vez, dispõe: “Cada Estado Parte designará dez (10) árbitros que integrarão uma lista que ficará registrada na Secretaria Administrativa. A lista, bem como suas sucessivas modificações, será comunicada aos
Estados Partes”.
Foram designados árbitros, para o caso, o Dr. EVELIO FERNÁNDEZ ARÉVALOS pelo
Paraguai, o Dr. JUAN CARLOS BLANCO pelo Uruguai, e o Dr. LUIZ OLAVO BAPTISTA, do Brasil, Presidente do Tribunal Arbitral, sem que tenham havido objeções ou impugnações.
2.
INÍCIO DO PROCEDIMENTO PERANTE A COMISSÃO DE COMÉRCIO DO MERCOSUL
Conforme destaca o VIII Laudo do Tribunal ad hoc do Mercosul, a controvérsia iniciou-se com a reclamação apresentada à República Oriental do Uruguai, pela
Seção Nacional da República do Paraguai, na XLVI Reunião da Comissão de Comércio do Mercosul (CCM) em novembro de 2000, mediante a Consulta 53/2000, pela
“Aplicação do Imposto Específico Interno (IMESI) de Discriminação Tributária”. Foi
este o início da primeira etapa de negociações entre as partes, prevista no Protocolo de Brasília, sobre solução de controvérsias no Mercosul. Na XLVII Reunião da
CCM, o Uruguai apresenta a sua resposta, considerada insatisfatória ante as reclamações formuladas pelo Paraguai.
O Paraguai, por meio da Nota 367/01 de 27 de março de 2001, dá início ao Procedimento de Negociações Diretas, previsto no artigo 2.º do Protocolo de Brasília,
contra o Uruguai, com relação à “Aplicação do Imposto Específico Interno (IMESI)
à comercialização de cigarros procedentes do Paraguai”. Como informa o VIII Laudo, tais negociações foram concluídas sem que as partes tenham chegado a um
acordo, fato este que fez com que o Paraguai submetesse a controvérsia à consideração da Reunião Ordinária XLII do Grupo Mercado Comum – GMC.
O Paraguai, com fundamento no Capítulo III, artigo 4.º, n.º 2, do Protocolo de
Brasília (“O Grupo Mercado Comum avaliará a situação, dando oportunidade às partes
na controvérsia para que exponham suas respectivas posições e requerendo, quando
considere necessário, o assessoramento de especialistas selecionados da lista referida
no Artigo 30 do presente Protocolo”), requereu a assessoria de um Grupo de Expertos
para o tratamento da controvérsia. Como destaca o VIII Laudo Arbitral:
O Uruguai expressou seu desacordo quanto à conformação de um
Grupo de tal Grupo, reservando-se o direito de dar uma resposta ao
Revista do instituto de pesquisas e estudos
245
mesmo dentro do prazo de 30 dias, segundo o Art. 6 do Capítulo III do
Protocolo de Brasília. O GMC resolveu considerar a controvérsia no
prazo de 30 dias em uma reunião extraordinária que seria convocada a tal efeito. Na XXI Reunião Extraordinária do GMC não chegouse a um acordo, concluindo-se, assim, a intervenção do GMC.
Através da nota n.º 908/01, a Coordenação Nacional do Paraguai comunicou a
Secretaria Administrativa do Mercosul que o Governo Paraguaio daria início ao procedimento arbitral previsto no Capítulo IV do Protocolo de Brasília.1
3.
AS QUESTÕES APRESENTADAS PELAS PARTES
O VIII Laudo do Tribunal ad hoc do Mercosul expõe com clareza as questões
de direito invocadas pelas partes em suas razões.
O Paraguai, invocou as seguintes questões de direito em suas razões:
1. O objeto da controvérsia é a incompatibilidade das normas uruguaias referentes à aplicação do “Imposto Específico Interno” ou “IMESI”. Para o Governo do
Paraguai: “A forma de calcular a incidência de tal imposto é discriminatória e contradiz os artigos 1 e 7 do Tratado de Assunção e seu Anexo I. Embora a alíquota tanto
para os produtos nacionais como para os oriundos de países fronteiriços ou não
fronteiriços seja a mesma, o cálculo da base tributável é discriminatório já que se determina por meio de um mecanismo de ponderação que se baseia no preço ficto
aplicado ao cigarro nacional de maior categoria, multiplicando-o por um coeficiente prefixado que estabelece desigualdade de tratamento com o produto similar nacional com relação ao produto de país limítrofe e não limítrofe. O cigarro paraguaio
resulta, portanto, duplamente discriminado, por não provir de um país limítrofe”.
Assim, o cigarro paraguaio estaria sendo duplamente discriminado, por não se tratar de um país limítrofe com a República Oriental do Uruguai.
2. O Paraguai sustentou, ainda, que a aplicação do IMESI quebra com o princípio da igualdade de tratamento e restringe o acesso de seus produtos no mercado uruguaio, o que causaria uma incompatibilidade com o princípio insculpido no
artigo 7.º do Tratado de Assunção, constitutivo do Mercosul.2 Segundo este disposi-
1. O Protocolo de Brasília, a esse respeito, assim dispõe: “Artigo 7 – 1. Quando não tiver sido possível solucionar a
controvérsia mediante a aplicação dos procedimentos referidos nos capítulos II e III, qualquer dos Estados Partes
na controvérsia poderá comunicar à Secretaria Administrativa sua intenção de recorrer ao procedimento arbitral
que se estabelece no presente Protocolo. 2. A Secretaria Administrativa levará, de imediato, o comunicado ao conhecimento do outro ou dos outros Estados envolvidos na controvérsia e ao Grupo Mercado Comum e se encarregará da tramitação do procedimento”.
2. O Tratado de Assunção foi ratificado pelo Brasil em 30.11.91, e promulgado internamente pelo Decreto n.º 350
(DOU de 22.11.91)
246
faculdade de direito de bauru
tivo: “Em matéria de impostos, taxas e outros gravames internos, os produtos originários do território de um Estado Parte gozarão, nos outros Estados Partes, do mesmo tratamento que se aplique ao produto nacional”. Ademais, dito imposto inibe a
livre circulação de bens, na forma estabelecida pelo artigo 1.º do Tratado de Assunção (“Este Mercado Comum implica: a livre circulação de bens serviços e fatores
produtivos entre os países, através, entre outros, da eliminação dos direitos alfandegários e restrições não-tarifárias à circulação de mercadorias e de qualquer outra medida de efeito equivalente”…), bem como a reciprocidade de direitos e obrigações
entre os Estados-partes, já que o acesso aos cigarros originários do Uruguai no Paraguai é irrestrito.
3. O artigo 1.º do Anexo I do Tratado de Assunção estabelece que: “Os Estados Partes acordam eliminar, o mais tardar a 31 de dezembro de l994, os gravames
e demais restrições aplicadas ao seu comércio recíproco”, pelo qual entendo o Paraguai que o Uruguai descumpriu a referida regra.
4. Por fim, para o governo do Paraguai, a Decisão n.º 22/00 do Conselho de
Mercado Comum – CMC, prorrogada pela Decisão n.º 57/00, de “Acesso a Mercados”, faz com que os Estados-partes não apliquem medidas restritivas ao comércio
recíproco (dita Decisão identificou as medidas de caráter restritivo e identificou cursos de ação tendentes à eliminação de tais medidas em 15.11.2000).
O Uruguai, por sua vez, como destaca o VIII Laudo Arbitral do Tribunal ad hoc
do Mercosul, invocou as seguintes questões de direito em suas razões:
1. O Uruguai não nega ou se opõe ao fato de que a imposição do IMESI sobre
os cigarros originários de países fronteiriços ou não fronteiriços é discriminatória.
Entretanto, discute que os princípios abarcados pelos artigos 1.º e 7.º do Tratado de
Assunção têm caráter programático e não têm, por isto, caráter de auto-executoriedade. Pelo contrário, o Uruguai entende que o Paraguai, ao exigir a imediata eliminação do IMESI não está respeitando os princípios de gradualidade, flexibilidade e
equilíbrio, pretendidos pelo Tratado de Assunção. Ainda segundo a posição do Uruguai, tal Tratado reúne as características de um Tratado marco, que estabelece princípios gerais que se concentram a partir de uma normatividade vinculante que emana de seus órgãos.
2. Como também se lê no VIII Laudo do Tribunal ad hoc do Mercosul, entende, ainda, o Uruguai que,
embora o Art. 7 contenha um mandato de caráter imperativo, seu
caráter de auto-executoriedade deve ser interpretado de acordo
ao objeto e à finalidade do Tratado, segundo os princípios de equilíbrio e reciprocidade. Neste sentido, o Uruguai dá como exemplos
leis dos demais países do MERCOSUL que têm caráter discriminatório com relação a cigarros importados, inclusive leis paraguaias.
Visto que não há reciprocidade e equilíbrio, não se pode exigir do
Revista do instituto de pesquisas e estudos
247
Uruguai que elimine o IMESI. Assim, entende que não é respeitado
o princípio de reciprocidade de direitos e obrigações consagrado
no Tratado de Assunção.
3. O Uruguai também evoca o princípio de direito internacional, contido no
Tratado de Viena, da “exceção de inexecução” (ou exceptio non adimpleti contractus), no sentido de que, quando o próprio Paraguai aplica normas discriminatórias
aos demais países do Mercosul, não pode exigir que não lhe sejam aplicadas normas
discriminatórias.
4. O Uruguai, por fim, além de solicitar que seja rechaçada a demanda do
Paraguai,
opõe-se especificamente aos petitórios contidos nas alíneas 5, do
primeiro escrito, e 3, do segundo, que requerem que o Tribunal ordene ao Uruguai que suprima as discriminações aos cigarros de
origem MERCOSUL. Por sua parte, o Uruguai não discute a forma
como o Paraguai descreve o Procedimento de cálculo, nem nega
que possa ser discriminatório. Sustenta que o IMESI não viola as
normas MERCOSUL invocadas pelo Paraguai e que o regime estabelecido para calcular esse imposto é compatível com a normativa MERCOSUL, já que esta última dispõe que as medidas classificadas como Políticas Públicas que Distorcem a Concorrência –
PPDC – (inclusive tributos) estão sujeitas a um processo multilateral de harmonização e eliminação que não foi concluído, conforme resulta da já mencionada DEC 20/94 e das DEC 9/95 (Programa de Ação), 15/96 (Grupo ad hoc sobre PPDC) e 22/00 (Relançamento do MERCOSUL). Durante o seguimento de um processo instaurado pelas Partes de forma unânime e juridicamente obrigatória, não pode-se exigir a uma delas o desmantelamento unilateral
de medidas tributárias internas sujeitas a esse processo coletivo.
4.
COINCIDÊNCIAS ENTRE OS FUNDAMENTOS JURÍDICOS INVOCADOS PELO PARAGUAI E URUGUAI
No VIII Laudo do Tribunal ad hoc do Mercosul, os árbitros designados pretenderam demonstrar as coincidências entre os fundamentos jurídicos invocados tanto pelo
Paraguai como pelo Uruguai. Eis o que se lê no referido Laudo do Tribunal Arbitral:
1. Ambos entendem que os Tratados submetem-se à boa-fé e ao princípio de
direito internacional pacta sunt servanda. Assim, para o Paraguai, se o Uruguai é
signatário da ALADI, OMC e Mercosul, dito país deve eliminar quaisquer formas de
discriminação, seja ela tarifária ou não. Por outro lado, o Uruguai entende que, se-
248
faculdade de direito de bauru
gundo o princípio pacta sunt servanda, as partes devem seguir os tratados conforme as suas disposições e, ademais, de boa-fé, mas levando em conta os objetivos e
fins desse tratado e da reciprocidade: cumprimento conjunto, por todas as partes,
das disposições do tratado.
2. Fica incontroverso o princípio de direito internacional, reconhecido pelo
Tratado de Viena em seu artigo 31, de que os ditames estabelecidos nos tratados podem ser interpretados, desde que dita interpretação seja de boa-fé. Entretanto, entende o Paraguai que a interpretação que o Uruguai pretende relativamente aos artigos 1.º e 7.º do Tratado de Assunção não é necessária, já que ditos artigos contêm
regras explícitas e claras a respeito de seus preceitos e não há, então, que interpretar de acordo com os princípios da flexibilidade, equilíbrio e gradualidade, já que o
conteúdo, o objeto e a finalidade de tidos artigos estão claros em si mesmos. Ademais, segundo o artigo 19 do Tratado de Brasília, as controvérsias devem ser resolvidas de acordo com a normatividade do Mercosul. Assim, recorre-se às interpretações dos princípios de direito internacional quando o texto normativo do Mercosul
não é expresso a respeito.
5.
QUESTÕES DE DIREITO INVOCADAS PELO PARAGUAI EM SUAS
CONTRA-RAZÕES
O Paraguai, em suas contra-razões, invocou as seguintes questões de direito
para justificar o seu posicionamento, como se lê no texto do VIII Laudo do Tribunal
ad hoc do Mercosul:
1. Os Arts. 1 e 7 do Tratado de Assunção contêm normas de caráter
auto-executório, ao contrário do que entende o Uruguai. Os objetivos gerais do tratado de Assunção estão previstos em seu preâmbulo.
2. A controvérsia, quanto à aplicação do IMESI, está fundada na
determinação de violação ou não, pelo Uruguai, das normas sobre as quais se assentam os princípios de tratamento nacional e de
não discriminação.
3. Não se negam os princípios de gradualidade, flexibilidade e
equilíbrio invocados pelo Uruguai; entende-se, porém, que o Uruguai incide numa interpretação incorreta dos mesmos. Assim, o
princípio de gradualidade é relativo à construção de um Mercado
Comum Integrado, que se realiza por etapas sucessivas. Esse princípio está relacionado à adequação do ordenamento jurídico de
cada Estado Parte com a situação de um mercado novo e ampliado. O Regime de Adequação, por outro lado, esteve vigente até dezembro de 1999. O princípio de flexibilidade, por outra parte, ob-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
249
jetiva proteger ou reconhecer determinadas situações especiais
que compreendem vantagens circunstanciais e excepcionais. O
princípio de equilíbrio, por sua vez, pretende o desenvolvimento
harmônico das medidas para a integração, de modo a distribuir
tanto o custo econômico e social como os benefícios da integração.
4. É discutida a relação entre a natureza da presente controvérsia
e o razoamento relativo ao princípio do exceptio non adimpleti
contractus, assim como a aplicabilidade de tal princípio no contexto da integração pretendida pelas partes contratantes.
6.
QUESTÕES DE DIREITO INVOCADAS PELO URUGUAI EM SUAS
CONTRA-RAZÕES
O Uruguai, em suas contra-razões, por sua vez, invocou as seguintes questões
de direito na justificativa de sua pretensão, também encontradas no texto do VIII
Laudo do Tribunal ad hoc do Mercosul:
1. O Uruguai mantém a argumentação de sua demanda inicial.
Assim sendo, entende que a demanda do Paraguai viola os princípios de gradualidade, flexibilidade e equilíbrio consagrados no
Tratado de Assunção. Nesse contexto, o Art. 7 do Tratado de Assunção é o objetivo final do Tratado e não seu ponto de partida, entendendo-se com isto que tal regra é programática e não auto-executável.
2. Uma vez mais consagra-se o princípio de exceptio non adimpleti contractus. Argumenta que o IMESI é um imposto que existe desde 1990, antes mesmo da existência do MERCOSUL, constatando
que somente será eliminado em face de políticas concretas de harmonização tributária entre os Estados contratantes. Por outro
lado, o Paraguai criou um imposto discriminatório frente a produtos estrangeiros no ano 2002, o METI, após a conclusão do Regime
de Adequação.
3. Descumprimento das disposições do Art. 2 do Tratado de Assunção: reciprocidade. Os demais países membros do MERCOSUL também aplicam medidas claramente restritivas à comercialização
de cigarros paraguaios. Ademais, inclusive o Paraguai apresenta
medidas restritivas à comercialização de determinados produtos
originários do Uruguai.
250
7.
faculdade de direito de bauru
AS CONSIDERAÇÕES DO TRIBUNAL ARBITRAL AD HOC DO MERCOSUL E SUA DECISÃO
Depois de expostas as questões jurídicas invocadas por ambos Estados-partes
envolvidos na controvérsia, o Tribunal ad hoc do Mercosul, tomando como critério
de interpretação a finalidade descrita nos seus tratados e preâmbulos, que é promover a integração e construção de um mercado comum, passando pelo trâmite da
zona de livre comércio e da união aduaneira, passa a fazer suas considerações a respeito das matérias discutidas na controvérsia, para depois, decidir levando-se em
consideração o caso concreto envolvendo o Paraguai e o Uruguai.
7.1. As questões de direito invocadas pelas partes e as considerações do
Tribunal Arbitral a respeito
No VIII Laudo do Tribunal ad hoc do Mercosul, os árbitros nomeados fizeram
as seguintes considerações a respeito das matérias de direito debatidas na controvérsia, e que serão brevemente analisadas posteriormente:
O problema que foi apresentado ao Tribunal é de dupla natureza:
a igualdade de tratamento e a harmonização das normas do MERCOSUL enquanto restrições da livre circulação de bens. A norma
que estabelece o dever de harmonização e eliminação de obstáculos à livre circulação de bens nasce da própria natureza do Tratado e é deduzida de alguns de seus pontos, tendo sido também recordada em decisões de Tribunais anteriores.
Na realidade, as normas oriundas do Tratado de Assunção, assim
como as normas subseqüentes do MERCOSUL, integram-se ao direito interno dos países membros do MERCOSUL segundo os Procedimentos das respectivas constituições. Uma vez integradas, adquirem vigência na ordem interna. Também produzem efeitos na ordem internacional.
Na primeira, são criadoras de obrigações e produzem efeitos concretos. As obrigações criadas pelo MERCOSUL, em matéria de livre
circulação, têm uma dupla natureza: a primeira é negativa, –
proíbe que os Estados Membros introduzam quaisquer normas
contrárias a esse objetivo – a segunda, por outro lado, é uma obrigação positiva – a de implantar de boa fé em sua legislação o que
for necessário para alcançar a integração.
Na ordem interna possuem ao menos a hierarquia da lei, e se houvesse antinomias entre as leis e as normas do Tratado, entrariam
em ação os Procedimentos aplicáveis em caso de conflito temporal
Revista do instituto de pesquisas e estudos
251
de cada um dos direitos internos, segundo for o caso, levando em
conta a existência de obrigações internacionais.
A regra de igualdade no MERCOSUL, em sua essência, é a mesma
que se deduz dos Tratados de Montevidéu e que aparece no GATT
de 1947, persistindo ainda hoje na OMC, dos quais fazem parte todos os Estados Membros, que se submeteram também às regras do
Tratado de Montevidéu, do qual fazem parte.
Desta forma, a definição de igualdade parte daí, mas adquire especificidade no MERCOSUL. A referência que se faça às demais
normas de direito internacional, como os Tratados de Montevidéu
e a OMC, só serviria para acrescentar lacunas.
A igualdade de tratamento no MERCOSUL será concretizada, em
primeiro lugar, pela existência de fato e de direito da não discriminação entre os Estados Membros na prática. Ou seja, uma norma
aparentemente não discriminatória, na verdade é discriminatória se em si mesma contém discriminação, o qual é incompatível
com a igualdade de tratamento estabelecida no tratado do MERCOSUL.
A livre circulação deve ocorrer tanto no campo da imposição tarifária como no campo das práticas administrativas. Do ponto de
vista da livre circulação, o MERCOSUL quer eliminar todas as diferenças tarifárias. E nos casos em que houver exceções, estas deverão ser especificadas. Outrossim, os Estados Membros não podem
criar obstáculos, de qualquer natureza, que impeçam a livre circulação de produtos. As exceções, embora não sejam diretamente
contempladas pelos Tratados do MERCOSUL, serão apenas as previstas pelo art. 50 do Tratado de Montevidéu e pelos arts. XX e XXI
do GATT/1994.
Do ponto de vista de procedimento, apresentou-se ante o Tribunal
a exceptio non adimpleti contractus; esta exceção é uma regra deduzida e introduzida no direito internacional a partir de sua remota origem no direito romano. Entretanto, sua aplicação no direito internacional está submetida a restrições e cautelas muito
maiores que as utilizadas em contratos privados e isso provém da
natureza especial dos tratados que, além dos aspectos contratuais,
também têm aspectos normativos. Além disso, as conseqüências de
um tratado têm um alcance muito maior que as de um ato privado, e a prudência, que é a virtude indispensável dos jurisconsultos,
impõe que os que decidem nessa matéria exijam que somente possa admitir-se a aplicação dessa exceção se houver violação substancial; do tratado e tendo a mesma características essenciais.
252
faculdade de direito de bauru
Nos tratados multilaterais, deve-se ter em conta sua natureza. Os
que tratam de direitos humanos, regras sobre a paz e o desarmamento, têm restrições ainda mais severas sobre a aplicação da exceção, e no âmbito da instituição comunitária européia a instituição não é aplicável, não tem aplicação. No MERCOSUL, a prudência recomendaria a aplicação mais restritiva se houvesse uma violação de natureza fundamental que representasse uma ameaça a
todos os Estados inocentes, e teria que ser invocada sempre de
modo solene pelo órgão habilitado em cada um dos Estados para
celebrar e denunciar tratados. É preciso, pois, ter em conta que
essa exceção é muito próxima, em sua natureza, à represália, que
tem seus limites estabelecidos pela Carta da ONU aos vários tratados que regulamentam a solução de disputas internacionais e,
ademais, que tem a ver com o princípio de reciprocidade e, justamente por isso, deve levar em conta a natureza especial que a repressão possui dentro de um processo de integração.
Não tem sentido, num processo de integração, que se recorra à retorsão. Por isso mesmo há mecanismos de solução de disputas que
permitem a aplicação, por meio do direito, de sanções adequadas.
A exceptio non adimpleti contractus tem o alcance mais limitado
que se possa imaginar dentro de uma organização de integração
regional que visa tornar-se um mercado comum, porque nessa o
que se procura é a concretização de uma situação de direito para
que seja mais pronunciada ainda do que já é no direito internacional público.3
Como se denota das considerações acima, expressadas no VIII Laudo do Tribunal ad hoc do Mercosul, são basicamente três os fundamentos esposados pelos
árbitros: a) o dever de os Estados respeitarem os tratados internacionais, que têm,
no mínimo, o status de lei interna no ordenamento jurídico dos países signatários;
b) a impossibilidade de sobrevivência de normas discriminatórias entre os Estadospartes do Mercosul, que têm o direito legítimo de igualdade de tratamento entre
eles; e c) a impossibilidade da aplicação incondicionada, aos tratados internacionais,
da regra da exceptio non adimpleti contractus, utilizada, com menores prejuízos,
em contratos de natureza privada e não muito bem adaptada à sistemática do Mercosul, onde passa a ter uma conotação de represália, extremamente prejudicial ao
processo de integração e à formação de um mercado comum.
3. Trata-se da íntegra da fundamentação dos Drs. LUIZ OLAVO BAPTISTA (Presidente do Tribunal), EVELIO FERNÁNDEZ ARÉVALOS (Árbitro) e JUAN CARLOS BLANCO (Árbitro), no VIII Laudo do Tribunal ad hoc do Mercosul, no caso Aplicação
do “IMESI” (Imposto Específico Interno) à Comercialização de Cigarros, de 21.05.02.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
253
Andou bem o Tribunal Arbitral ad hoc do Mercosul na exposição dos fundamentos acima elencados. Em primeiro lugar, as normas provenientes do Tratado de
Assunção, bem como as de qualquer outro instrumento internacional, têm o status
de, no mínimo, lei interna, nos países signatários do acordo, produzindo efeitos jurídicos no ordenamento interno desses mesmos Estados-partes.4 E em caso de conflito entre Tratados Internacionais e leis internas, de aplicar-se os procedimentos
previstos pelo direito internacional para a solução da antinomia. A Convenção de
Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, dá sempre primazia ao direito internacional, em caso de conflito entre tratados e leis internas, impedindo que um Estado
invoque disposições de seu direito interno como pretexto para descumprir um
compromisso internacional (arts. 26 e 27).5
Em segundo lugar, a igualdade de tratamento nos países do Mercosul, efetivamente, tem de estar centrada, na prática, no direito de não discriminação entre os
seus Estados-membros. Uma norma que apresente uma discriminação, seja de fato
ou em seus próprios dispositivos, não se coaduna com a igualdade de tratamento
que deve prevalecer num processo integracionista, e que está expressamente amparada pelo Tratado do Mercosul.
Por fim, correta também foi a análise da aplicabilidade, no Mercosul, da regra da exceptio non adimpleti contractus, introduzida no direito internacional
desde a sua remota origem no direito romano. Mas, como adverte o Laudo do Tribunal, sua aplicação no direito internacional “está submetida a restrições e cautelas muito maiores que as utilizadas em contratos privados e isso advém da natureza especial dos tratados que, se têm aspectos contratuais, também os têm
normativos”. Por isso é que a prudência recomenda que a sua utilização só se
apresente em caso da existência de uma violação de natureza fundamental que
representa uma ameaça a todos os Estados-partes do tratado, tendo que ser invocada “sempre de maneira solene pelo órgão habilitado em cada um dos Estados
para celebrar ou denunciar tratados”. Como se lê no VIII Laudo do Tribunal Arbitral ad hoc do Mercosul, esta exceção
é muito próxima, em sua natureza, da represália, que tem seus limites fixados desde a Carta da ONU aos vários tratados que regulam a solução de disputas internacionais e, ademais, que tem a
ver com o princípio de reciprocidade e por isso mesmo, tem que levar em conta a natureza especial que tem a repressão dentro de
um processo de integração.
4. Cf. VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI. Tratados internacionais: com comentários à Convenção de Viena de 1969. São
Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2001, pp. 151-195.
5. Cf. VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI. Tratados internacionais…, cit., pp. 63-65.
254
faculdade de direito de bauru
Não faz sentido, num processo integracionista, onde se visa a formação de um
mercado comum, o recurso a um expediente como este, vez que existem meios jurídicos adequados à solução das controvérsias que podem surgir entre os Estadospartes desse processo.
7.2. A análise do caso concreto posto sob a jurisdição do Tribunal e sua
decisão
Depois do estabelecimento dessas premissas maiores, o Tribunal ad hoc do
Mercosul passou a examinar o caso concreto envolvendo a controvérsia entre o Paraguai e o Uruguai na cobrança, pelo Uruguai, do Imposto Específico Interno (IMESI) à comercialização de cigarros provenientes da República do Paraguai.
A – Quanto à aplicação do IMESI (Imposto Específico Interno), o Tribunal deixou estabelecido que:
Aplicação do IMESI (Imposto Específico Interno): tributo estabelecido
por Lei que grava seletivamente o consumo de determinados bens,
entre os quais o cigarro. A percentagem da taxa geral do IMESI tanto para os cigarros nacionais como importados é da ordem de 66,5%
sobre os preços fictos estabelecidos pelo Poder Executivo desse país
para qualquer classe de cigarro, independentemente de sua origem.
A discriminação de tratamento, incompatível com o MERCOSUL, se
radica na maneira em que se estabelece a base tributável no Uruguai para cigarros importados. Esta se determina por meio de um
mecanismo de ponderação que se calcula tomando como base o preço ficto aplicado ao cigarro nacional de maior categoria, multiplicando-o por um coeficiente prefixado, que estabelece uma desigualdade de tratamento com o produto similar nacional e discrimina ao
aplicar 1,3 para países limítrofes e 2 para os não limítrofes. Os produtos paraguaios, por isso, são tratados como se fossem extra zona.
Esta situação (de discriminação) é reconhecida pelo Uruguai.
i) Incompatibilidades da aplicação do IMESI com a regra do tratamento nacional existente no MERCOSUL, no GATT/OMC e na ALADI:
– O Uruguai, ou outro Estado Membro do MERCOSUL, pode gravar
os bens dentro de seu próprio território, mas não pode fazê-lo de
forma que um produto oriundo de outro país seja tratado com discriminação relativamente a produtos similares nacionais: essa é a
regra do MERCOSUL (artigo 7 do Tratado de Assunção), da ALADI
e da OMC, organizações das quais são signatários tanto o Paraguai como o Uruguai.
– A aplicação do IMESI discrimina duplamente o cigarro paraguaio, ao impor sobre este maior pressão fiscal com relação a pro-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
255
dutos similares uruguaios e originários de países fronteiriços, o
que vai de encontro à normativa do MERCOSUL.
ii) O tratamento discriminatório com relação à aplicação do IMESI não se fundamenta na lista de exceções previstas no âmbito do
MERCOSUL (tampouco as exceções previstas no GATT 94) e, portanto, não é admissível e não pode ser permitido.
iii) A anterioridade do IMESI em relação ao surgimento do MERCOSUL não quer dizer que isso esteja em conformidade com a normativa do MERCOSUL. Ao assinar o Tratado de Assunção, o Uruguai aceitou o compromisso de adequar sua legislação às normas
ditadas nos tratados constitutivos da integração. Foi gerada, para
os países que integram o MERCOSUL, a obrigação de adaptar sua
normativa interna aos propósitos da integração. Dita obrigação
deriva do princípio do direito internacional da “boa fé”, princípio
orientador das relações internacionais. Ademais, quando da adoção do Tratado de Assunção, instaurou-se uma antinomia entre a
forma de aplicação do IMESI e aquele acordo internacional.
iv) O relatório n° 3, apresentado pelo Uruguai em seus contra-arrazoados, que é um relato elaborado pela consultora KPMG acerca das conseqüências da aplicação do IMESI, admite, em sua página 10, que “A aplicação do IMESI diferencial operou nos fatos
como uma salvaguarda da produção nacional…” Assim, não resta dúvida, o que inclusive é aceito pelo Uruguai, de que o IMESI é
discriminador dos produtos que não são nacionais.
B – Quanto ao caráter auto-executável do artigo 7.º do Tratado de Assunção,
assim se expressou o Tribunal:
i) O argumento, apresentado pelo Uruguai, de que o Artigo 7 do
Tratado de Assunção tem caráter programático e não é auto-executável é parcialmente procedente. Tal regra não é auto-executável no sentido de resultar na modificação imediata das legislações
das partes, substituindo-a por outra. Em contrapartida, possui caráter auto-executável ao impor aos Estados Partes o dever de modificar sua legislação de modo a que a mesma seja afetada, adaptada às previsões do Artigo 7 do Tratado de Assunção.
ii) Uma lei que vai de encontro a uma regra contida em um tratado internacional – cuja hierarquia é igual, no mínimo, à de uma
lei interna – não será aplicada pelo juiz nacional: neste sentido,
as regras contidas no Tratado de Assunção e, inclusive no Artigo 7,
têm caráter auto-executável, uma vez que o direito não admite as
256
faculdade de direito de bauru
antinomias em sua lógica.
iii) As Decisões do Conselho do Mercado Comum, N° 22/00 e 57/00,
ao proibirem que os Estados adotem medidas de caráter restritivo
com relação ao comércio, reiteram que estas não são permitidas
ou admissíveis no âmbito do MERCOSUL e reforçam a obrigação
que todos os Estados Partes têm de harmonizar o comércio intrazona.
C – No tocante às políticas públicas que distorcem a competitividade, o Tribunal ad hoc do Mercosul, deixou assente o seguinte:
Ao analisar o Artigo 7 do Tratado de Assunção, deve-se esclarecer
que a obrigação de tratamento nacional que aí se estabelece é
aplicável quando os impostos internos de um país atribuem um
tratamento diferente aos demais países, o qual constitui um obstáculo ao comércio. Todo imposto aplicável de acordo à cláusula de
igualdade não representa uma distorção, já que não se caracteriza o obstáculo ao comércio se o produto importado circula com a
mesma liberdade que o produto nacional.
O consumo de determinadas mercadorias pode ser mais ou menos incentivado em um determinado território. Neste sentido,
ditas questões devem ser harmonizadas porque se referem a
uma política macroeconômica que ainda não está firmada, política que deverá ser coordenada, segundo o disposto pelo Artigo
1 do Tratado de Assunção, assim como foram harmonizadas as
legislações nos pontos necessários para fortalecer o processo de
integração.
D – Em face do exposto, pelos fundamentos expressados precedentemente,
o Tribunal Arbitral ad hoc do Mercosul, no seu VIII Laudo, decidiu, por fim:
1) por unanimidade, que o Uruguai deveria cessar os efeitos discriminatórios
aos cigarros paraguaios, baseados na condição de país não fronteiriço;
2) por maioria, que também deveriam cessar os efeitos discriminatórios que
resultem de sua aplicação por via administrativa em relação aos cigarros de origem
paraguaia;
3) por unanimidade, estabelecer um prazo de 06 (seis) meses para o cumprimento, por parte do Uruguai, da decisão.
O Paraguai pediu o aclaração do Laudo em relação ao sentido da frase “cessar
os efeitos discriminatórios que resultem de sua aplicação por via administrativa em
relação aos cigarros de origem paraguaia”, o que se deu em 19 de junho de 2002. Ficou, então, estabelecido o seguinte:
Revista do instituto de pesquisas e estudos
257
A via administrativa descrita na demanda, e conforme ficou definido no objeto da litis que produz e conduz à discriminação, são
Decretos do Poder Executivo, e demais normas aplicáveis – exemplo: Resoluções da Dirección General Impositiva ‘DGI’ – que determinam os preços fictos para o cálculo de base tributável que, em
sua aplicação para os cigarros importados do MERCOSUL, foi declarada no Laudo incompatível com a normativa MERCOSUL. Por
conseguinte, é preciso deixar claro que na obrigação de eliminar
toda discriminação e violação da igualdade de tratamento, inclui-se na expressão ato administrativo todo ato normativo administrativo, abrangendo os Decretos aplicáveis do IMESI e demais
normas de aplicação.
O Uruguai solicitou o aclaração do Laudo com relação às alíneas 1 e 2 da decisão
do Tribunal, que se referem, respectivamente, a “cessar os efeitos discriminatórios aos
cigarros paraguaios, baseados na condição de país não fronteiriço” e a “cessar os efeitos discriminatórios que resultem de sua aplicação por via administrativa em relação
aos cigarros de origem paraguaia”. A esse respeito, disse o Tribunal:
As alíneas 1 e 2 da decisão arbitral são claras e não necessitam interpretação. Elas indicam que devem cessar todos os efeitos discriminatórios com relação aos cigarros de origem paraguaia, ou
seja, que o IMESI deve ser aplicado sobre os cigarros paraguaios da
mesma forma que é aplicado aos cigarros uruguaios. Para que assim seja, o Uruguai deverá, em primeiro lugar, abster-se de aplicar
as percentagens que distinguem os cigarros de uma ou outra origem e, com isso, adequar sua normativa a tal decisão. Atendendo
ao princípio da racionalidade, o Tribunal estabeleceu um prazo
de 06 (seis) meses para que o Uruguai cumpra as obrigações emanadas do Laudo. É evidente que não compete ao Tribunal determinar aos Estados Partes como deve ser concretizada a medida porque isso procede do ordenamento jurídico e da decisão de caráter
político de cada Estado. Desse modo, o Uruguai pode cumprir a
decisão do juízo arbitral da forma jurídica que lhe seja mais conveniente e que decida adotar. O Tribunal determinou que os efeitos discriminatórios sejam eliminados logo do decurso do prazo
determinado em sua decisão.6
6. Cf. Aclaração do Laudo Arbitral do Tribunal Arbitral “Ad Hoc” do Mercosul Constituído para Decidir a Controvérsia entre a República do Paraguai e a República Oriental do Uruguai sobre a Aplicação do “IMESI” (Imposto Específico Interno) à Comercialização de Cigarros, de 19.06.2002
faculdade de direito de bauru
258
Dita decisão do Tribunal Arbitral ad hoc do Mercosul, proferida em 19 de junho de 2002, foi unânime.
8.
CONCLUSÃO
Andou bem, a nosso ver, o Tribunal Arbitral ad hoc do Mercosul, no seu VIII
Laudo, na decisão da controvérsia instaurada entre o Paraguai e a República
Oriental do Uruguai referente à aplicação, por parte do Uruguai, do Imposto Específico Interno – IMESI à comercialização de cigarros provenientes da República do Paraguai.
Observando os princípios do direito internacional e com profundo propósito
integracionista, os árbitros designados, corretamente, entenderam ser a aplicação
concreta do IMESI, pelo Uruguai, incompatível com a regra de tratamento nacional
existente no Mercosul. Como conseqüência, para o Tribunal, o fato de que um produto oriundo de um Estado Membro do Mercosul receba tratamento distinto ao
dado a um produto similar de outros países do Mercosul é discriminatório e contrário ao Artigo 7 do Tratado de Assunção. O Tribunal, em sua decisão, acolheu a demanda paraguaia expedindo-se por maioria com relação à primeira e por unanimidade com respeito à segunda.
Como se lê, na aclaração do Laudo, de 19 de junho de 2002, se o Tribunal tivesse acolhido somente a demanda por discriminação fundada na condição de país
não fronteiriço, o Uruguai teria podido aplicar aos cigarros paraguaios um IMESI
igual ao aplicado aos cigarros de origem argentina e brasileira. Porém, tendo sido reconhecida pela maioria do Tribunal a existência de discriminação no fato de não dar
o tratamento nacional aos cigarros paraguaios, a execução do Laudo consiste precisamente em fazer cessar toda aplicação discriminatória do IMESI aos cigarros de origem paraguaia. Portanto, a aplicação do IMESI dada a estes deverá ser a mesma que
recebem os cigarros de origem uruguaia. Ou seja, o Uruguai deve cessar os efeitos
discriminatórios aos cigarros paraguaios, baseados na condição de país não fronteiriço, bem como os efeitos discriminatórios que resultam de sua aplicação pela via
administrativa em relação aos cigarros de origem paraguaia.
O propósito maior, como se vê, foi o de eliminar a discriminação entre os países-membros do Mercosul, impulsionando o processo de integração e a formação
de um mercado comum entre tais Estados.
ASPECTOS JURÍDICOS DAS
RELAÇÕES DE TRABALHO NO MERCOSUL
Neydja Maria Dias de Morais
Procuradora da Fazenda Nacional,
pós-graduada pela Escola Superior da Magistratura,
Coordenadora do Curso de Pesquisa Jurídica na Internet da Escola Superior de Advocacia da OAB/SP e
ex-Assessora do Juiz Federal Substituto da 2ª Vara da Seção Judiciária da Paraíba.
1.0 - INTRODUÇÃO
O presente estudo objetiva analisar, juridicamente, o momento atual das relações de trabalho no Mercado Comum do Cone Sul – MERCOSUL.
Para tanto, a fim de facilitar o entendimento, iniciou-se por uma abordagem
histórica, analisando-se diplomas que marcaram a trajetória que convergiu para
aprovação da Declaração Sócio-Laboral do Mercosul.
Ainda, fez-se uma intrusão nas legislações pertinentes com o objetivo de ressaltar e esclarecer seus pontos divergentes e convergentes.
Ao final, traçou-se um paralelo entre as normas da Declaração Sócio-Laboral
do Mercosul e a Constituição Federal de 1988.
Para a implementação do presente trabalho, foram realizadas pesquisas bibliográficas em periódicos, na legislação e na internet.
2.0 - O DIREITO DE IR E VIR, A OIT E O TRABALHADOR MIGRANTE
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948,
proclama, em seu art. XIII, os dois princípios que norteiam o direito de ir e vir nos
seguintes termos:
260
faculdade de direito de bauru
1. Todo homem tem direito à liberdade de locomoção e residência
dentro das fronteiras de cada Estado.
2. Todo homem tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o
próprio, e a este regressar.
O primeiro princípio funda-se na liberdade da pessoa e na necessidade de incrementar o comércio internacional.
O segundo significa que cabe a cada Estado, soberanamente, decidir sobre a
admissão de pessoas em seu território, permitindo, limitando ou proibindo o seu ingresso sem discriminação, estando essa regra consagrada no Direito Internacional
através da Convenção sobre Condição dos Estrangeiros (Havana, 20.02.1928), art.
1o, verbis: “Os Estados têm o direito de estabelecer, por meio de leis, as condições
de entrada e de residência dos estrangeiros nos seus territórios.”
Assim, verifica-se que o direito de ir e vir não é absoluto. Kelsen já dizia que o
Estado que admitir estrangeiros em seu território tem o dever de conferir-lhe o mínimo de direitos.
A livre circulação de trabalhadores encontra-se inserida no direito de migração e a União Européia é o modelo mais avançado e perfeito, sendo a melhor experiência a respeito do tema.
A Organização Internacional do Trabalho – OIT – tem demostrado acentuada
preocupação com o problema do trabalhador migrante, merecendo realce duas
Convenções Internacionais do Trabalho: a 97a e a 143a.
A primeira – Convenção no 97 – objetiva “eliminar as desigualdades de tratamento resultantes de ação dos poderes públicos”, traça normas gerais sobre migração e foi ratificada pelo Brasil e pelo Uruguai, dentre os que compõem o MERCOSUL. Recomenda aos Estados:
a) possuírem serviços gratuitos para ajuda ao migrante (art. 2o);
b) montagem de serviços médicos para atender ao trabalhador migrante
e sua família (art. 5o);
c) tratamento igual ao nacional e ao imigrante quanto á remuneração,
filiação a sindicatos, gozo de vantagens em convenções coletivas, tratamento igual no campo da seguridade social e impostos (arts. 6o e 7o);
d) o imigrante não poderá ser enviado ao Estado de origem por motivo de
enfermidade ou acidente, se admitido em caráter permanente (art. 8o);
e) permissão para transferir dinheiro (art. 9o).
A Convenção no 143 cuida das migrações em condições abusivas e de promoção de igualdade de oportunidade de tratamento aos trabalhadores migrantes. Não
foi ratificada por nenhum componente do MERCOSUL. Segundo a OIT esse diplo-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
261
ma tem além de outras finalidades, formular a igualdade de oportunidades e eliminar as discriminações na prática.
A preocupação com o trabalhador migrante foi objeto de tratamento específico no âmbito das Nações Unidas, cuja Assembléia Geral aprovou, através da Resolução no 158 (XLV ), de 18 de dezembro de 1990, a Convenção Internacional sobre a
Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Seus Familiares. Visa
ao estabelecimento de normas fundamentais que protejam internacionalmente esses trabalhadores e suas famílias, considerando, sobretudo, o alto grau de discriminação. Apresenta minucioso glossário contendo importantes definições fundamentais para entender seu alcance, a saber:
1) TRABALHADOR MIGRANTE – pessoa que realiza atividade remunerada
em um Estado do qual não seja nacional;
2) TRABALHADOR FRONTEIRIÇO – o migrante que, exercendo atividade
em um Estado, regresse diariamente ou pelo menos uma vez por semana ao Estado vizinho, onde tem residência habitual;
3) TRABALHADOR DE TEMPORADA – aquele cuja natureza da atividade
dependa de certas condições e só possa ser realizado durante parte do
ano;
4) MARÍTIMO E TRABALHADOR EM UMA ESTRUTURA MARÍTIMA – o primeiro é o pescador empregado a bordo de embarcação registrada em
Estado do qual não seja nacional e o segundo desenvolve atividade em
uma estrutura sob jurisdição de um Estado diverso daquele de sua nacionalidade;
5) TRABALHADOR ITINERANE – o que, em razão de sua atividade, embora tenha residência habitual em um Estado, necessita viajar a outros
Estados;
6) TRABALHADOR VINCULADO A UM PROJETO – aquele que é admitido
em um Estado por prazo definido para trabalhar apenas em um
projeto concreto que dito Estado realize na condição de empregador;
7) TRABALHADOR COM EMPREGO EFETIVO – possui três acepções, sempre
por prazo limitado e definido, atingindo a contratação para uma tarefa ou função concreta; quando o trabalho exija qualificação específica ou conhecimentos especializados; ou quando realize um trabalho
transitório ou breve;
8) TRABALHADOR POR CONTA PRÓPRIA – aquele que realiza atividade remunerada sem possuir um contrato de trabalho, vivendo dessa mesma
atividade.
Dentre outras regras, a Convenção prevê que:
262
faculdade de direito de bauru
1o) os trabalhadores migrantes tenham os mesmos direitos dos trabalhadores nacionais no que pertine às relações individuais de trabalho (art. 25);
2o) o direito de participar de atividade sindical (art. 26);
3o) devem gozar de proteção contra dispensa, seguro desemprego, acesso
aos programas oficiais de combate ao desemprego e a obter outro emprego
(arts. 54/55);
4o) vedação à expulsão do trabalhador e sua família (art. 56).
3.0 - O TRATADO DE ASSUNÇÃO E O SEU ALCANCE
Intensificada a competição na economia internacional, na década de 1990, em
razão do protecionismo e da formação de blocos econômicos, a assinatura do Tratado de Assunção é uma tentativa de responder às complexidades e incertezas da nova
ordem internacional.
O Tratado de Assunção contempla cinco liberdades peculiares ao processo de
integração:
1a) a livre circulação de bens, serviços e fatores de produção, eliminando-se
restrições alfandegárias;
2a) a liberdade de estabelecimento;
3a) a liberdade de circulação de pessoas;
4a) a liberdade de circulação de capitais; e,
5a) a liberdade de concorrência.
Foram fixados quatro objetivos a serem perseguidos pelo MERCOSUL:
a livre circulação de bens, serviços e fatores de produção, eliminando-se
restrições alfandegárias;
estabelecimento de uma tarifa externa comum e de uma política comercial comum com relação a outros Estados;
assegurar condições adequadas de concorrência entre os Estados Partes, mediante políticas macroeconômicas e setoriais coordenadas; e,
harmonizar as respectivas legislações para fortalecer o processo de integração
(art. 1o).
A liberdade de circulação de trabalhadores pode ser extraída da liberdade de
circulação das pessoas e da livre circulação de fatores de produção (mão-de-obra).
4.0 - A PREOCUPAÇÃO COM O TRABALHADOR E O PAPEL DO SUBGRUPO DE TRABALHO 10 (SGT-10)
As questões sociais não ficaram expressadas claramente desde o primeiro momento do MERCOSUL. O Tratado de Assunção faz referência à justiça social e a melhorar as condições de vida – no preâmbulo –, a induzir preocupação subsidiária
com os problemas sociais inerentes ao movimento de integração.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
263
A questão trabalhista já era motivo de estudos na região desde o PICE – Programa de Integração e Cooperação Econômica –, negociado entre Brasil e Argentina, que tencionava:
mediante a abertura seletiva e do estímulo à complementação
de setores da economia dos dois países segundo princípios de
gradualidade, flexibilidade, equilíbrio e simetria, para permitir
a adaptação progressiva dos habitantes e das empresas de cada
Estado às novas condições de competitividade e à nova legislação econômica.1
Verificada a necessidade de se cuidar de modo mais efetivo da questão trabalhista, foi acrescentado mais um aos dez subgrupos criados inicialmente Assim,
foi criado o Subgrupo de Trabalho 112, sobre as Relações de Trabalho, Emprego e
Seguridade Social, que passou, em seguida, a ser denominado STT – 10, com as
seguintes Comissões:
– Comissão 1: Relações individuais de trabalho;
– Comissão 2: Relações coletivas de trabalho;
– Comissão 3: Emprego e migrações trabalhistas;
– Comissão 4: Formação profissional;
– Comissão 5: Saúde e segurança no trabalho;
– Comissão 6: Seguridade social;
– Comissão 7: Custas laborais no setor terrestre e marítimo; e,
– Comissão 8: Princípios.
Para os representantes dos trabalhadores, o SGT-10 tem se revelado insuficiente para resolver os problemas que envolvem os obreiros. João de Lima Teixeira
Filho3 observa que a postura dos trabalhadores deve ser mais no sentido conciliatório, de soluções negociadas, que de atitudes políticas e contestatórias. Assim, no
MERCOSUL cogita-se de negociação coletiva no âmbito comunitário, conquanto
exista registro de dificuldades quanto aos movimentos da população e uso de mãode-obra não nativa.
Dados dos quatro Países integrantes revelam aspectos de aproximação quanto às normas trabalhistas vigentes internamente. A Argentina, o Brasil e o Paraguai
contemplam regras tanto nas suas respectivas Constituições como em legislação infraconstitucional, diversamente do Uruguai que tende a incentivar os mecanismos
autônomos de composição.
1 O Mercosul hoje, www.mre.gov.br/mercosul/Mercosul.htm.
2 José Alves de Paula, O subgrupo 11 do MERCOSUL: balanço de suas atividades, disponível em 200.246.216.4/getec/merco/15/artigos/3alves.htm
3 Boletim de integração Latino-Americana no 8, disponível www.aduaneiras.com.br/getec/merco/08/indice
264
faculdade de direito de bauru
Os quatro países adotam o princípio da territorialidade da lei, da continuidade do contrato, como regra geral, a licença maternidade, com diferenças quanto aos
períodos de concessão, a responsabilidade do sucessor na empresa e o 13o salário.
Há fortes divergências, contudo, em alguns pontos. Quanto à jornada semanal, Argentina e Paraguai consagram 48 horas; Brasil, 44 horas; Uruguai, 44 horas nas
atividades comerciais e 48 horas, nas industriais. A jornada diária é de 8 horas na Argentina e no Brasil; 9,15 horas no Paraguai e 9,30 horas no Uruguai.
Quanto às férias, o Brasil considera o número de faltas para apuração do período devido, e, no Uruguai, o empregado tem direito a 20 dias úteis. Na Argentina
e no Paraguai, sua concessão leva em conta o tempo de serviço: quanto mais tempo de casa, maior número de dias de férias.
5.0 - ATUALIDADE DAS RELAÇÕES TRABALHISTAS
Prática razoavelmente comum na Europa, a negociação coletiva transnacional
ainda não se fez sentir de modo mais expressivo no MERCOSUL, conquanto existam
atores que bem poderiam se habilitar a esse mister: a Coordenação de Centrais Sindicais do Cone Sul e Conselho Industrial do MERCOSUL.
No MERCOSUL, além de direitos básicos, há matérias que precisam de regulamentação como: regras sobre migrações internas; regime de equivalência em qualificações profissionais; coordenação dos sistemas de seguridade social.
Em estudo junto à 4a Comissão do SGT-10, existe um projeto relativo ao reconhecimento e equivalência de qualificações ocupacionais do MERCOSUL, incentivado pelo Centro Interamericano de Investigação e Documentação sobre Formação
Profissional (CINTERFOR/OIT), juntamente com o Centro Internacional de Formação da OIT, para possibilitar a livre circulação de trabalhadores.
Após o Protocolo de Ouro Preto, as Centrais Sindicais propuseram um protocolo laboral que reconhecesse dimensão social ao MERCOSUL, cujo conteúdo além
dos direitos individuais, da seguridade social e da segurança e saúde, também contemplaria os direitos coletivos de mecanismos procedimentais de negociação coletiva supranacional.
Por outro lado, foi assinado em Las Leñas/1992 o Protocolo de Cooperação e
Assistência Judicial em matéria civil, comercial, trabalhista e administrativa, prevendo igualdade de tratamento processual, isto é, pessoas físicas e jurídicas da nacionalidade dos Estados membros têm iguais condições de acesso ao Judiciário,
além de criar facilidade para o cumprimento de cartas rogatórias.
Em fase de redação o “Ato de Reconhecimento dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores da Região do MERCOSUL”. O projeto desse Ato de Reconhecimento ou de Carta cuida, no preâmbulo, tanto da livre circulação de trabalhadores, que exigirá a “geração de condições prévias e urgentes no campo da educação fundamental, da saúde e da formação profissional”, como a busca de polí-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
265
ticas desestimuladoras da migração de populações rurais à procura de subsistência.
O esboço propõe que os “trabalhadores regionais” tenham direito à “melhoria da
condição social do conjunto de seus povos”, incluindo: a eliminação da fome e garantia de alimentação adequada; superação da pobreza/elevação da qualidade de
vida, com redistribuição de renda; melhores índices de saúde e equipamento sanitário; eliminação do analfabetismo; ensino fundamental universal, obrigatório e gratuito; formação profissional; habilitação adequada e serviços públicos satisfatórios
(arts. 1o e 3o).
O valor da Carta ou Ato, como na União Européia, é apenas moral, facilitará,
no entanto, o aprimoramento das legislações nacionais sobre proteção trabalhista e
previdenciária.
Na reunião de Fortaleza do Conselho do Mercado Comum, realizadas em dezembro de 1996, deveriam ter sido assinados diversos documentos complementares ao Tratado constitutivo, merecendo destaque o Acordo Unilateral de Previdência Social. Por esse documento, o trabalhador, ao ser transferido de um para outro
Estado, conservaria direitos de assistência médica e social sem novo período de carência, a aposentadoria poderia ser obtida por tempo de trabalho e de contribuição
de um para outro país. Para a implementação das regras, seriam necessárias reformas nas legislações internas do Brasil e Uruguai já que a Argentina e Paraguai possuem normas compatíveis com esse diploma. No entanto, o acordo não foi assinado continuando a preferência pelas matérias ligadas à área econômica.
O CONSELHO DO MERCADO COMUM (CMC), nos termos da ATA DA XV
REUNIÃO ORDINÁRIA DO CMC (Rio de Janeiro, 09-10/12/1998) aprovou a Declaração Sócio-Laboral do Mercosul, que fortalece o tratamento de questões sociais no
Mercosul, ao consagrar direitos trabalhistas reconhecidos em convenções internacionais e instituir mecanismo de acompanhamento de sua aplicação.
Sem dúvida, a aprovação da Declaração Sócio-Laboral do Mercosul retrata a
preocupação com a harmonia entre o progresso econômico e o bem estar social.
Na Declaração Sócio-Laboral do Mercosul foram declarados direitos individuais, coletivos e, ainda, a previsão de aplicação e seguimento destes direitos.
Nos direitos individuais ficaram garantidos:
a) a não discriminação (igualdade de direitos sem distinção de raça, cor,
sexo, origem nacional, idade, credo);
b) a promoção da igualdade (para as pessoas portadoras de necessidades
especiais, também a igualdade de tratamento e oportunidade entre o homem e a mulher);
c) mesmo tratamento dado aos nacionais do país em que está trabalhando
aos trabalhadores migrantes e fronteiriços;
d) comprometimento com a eliminação do trabalho forçado, ou seja,
trabalho sob ameaça de pena;
266
faculdade de direito de bauru
e) abolição do trabalho infantil e de menores, a idade mínima de admissão
ao trabalho, nos termos das legislações dos Estados, não poderá ser inferior àquela que cessa a escolaridade obrigatória;
f ) direitos dos empregadores a garantia da organização e direção da atividade econômica em conformidade com as legislações e práticas nacionais;
Nos direitos coletivos, foram reconhecidos:
a) a liberdade de associação (direito de constituir organizações bem como
de afiliar-se nos termos das legislações nacionais vigentes);
b) a liberdade sindical (liberdade de filiação, impossibilidade de demissão
pela filiação, direito de ser representado);
c) a negociação coletiva (possibilidade da elaboração de convenções e acordos coletivos);
d) o direito de greve;
e) a promoção e desenvolvimento de procedimentos preventivos e
de autocomposição dos conflitos (formas preventivas e alternativas de autocomposição dos conflitos individuais e coletivos);
f ) o diálogo social (incentivo ao diálogo social com a criação de mecanismos
de consulta para governos, empregadores e trabalhadores).
Sob a epígrafe de “OUTROS DIREITOS” foram declarados direitos a:
a) fomento do emprego (comprometimento dos Estados com o crescimento econômico objetivando a criação de empregos);
b) proteção dos desempregados (comprometimento dos Estados para instituir, manter e melhorar mecanismos de proteção contra o desemprego);
c) formação profissional e desenvolvimento de recursos humanos (capacitação profissional do trabalhador);
d) saúde e segurança no trabalho (preocupação com a saúde e segurança no
meio ambiente do trabalho);
e) inspeção do trabalho (inspeções para garantir o cumprimento das normas
relativas à proteção, saúde e segurança no trabalho;
f ) seguridade social (nos termos das legislações nacionais).
A fim de resguardar sua observância, a Declaração Sócio-Laboral do MERCOSUL trouxe, sob o nome “APLICAÇÃO E SEGUIMENTO”, previsão expressa sobre o
comprometimento dos Estados Partes com os direitos inscritos na Declaração para
promover a sua aplicação. Prevista, também, a criação de uma comissão Sócio-Laboral e, em virtude do caráter dinâmico dos direitos previstos, a própria declaração
prevê um prazo de dois anos para revisão.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
267
Importante ressaltar outro aspecto fundamental incluído na Declaração SócioLaboral do MERCOSUL, a vedação da invocação dos direitos nela contidos para outros fins ou aplicação a questões comerciais, econômicas e financeiras. Entende-se,
entretanto, que não há como garantir direitos laborais sem o resguardo dos efeitos
financeiros.
Os quadros a seguir facilitam a visualização dos direitos garantidos pela Declaração Sócio-Laboral do MERCOSUL:
DIREITOS INDIVIDUAIS
Não discriminação
Promoção da igualdade
Trabalhadores migrantes e fronteiriços
Eliminação do trabalho forçado
(abolição) Trabalho infantil e de menores
Direitos dos empregadores
DIREITOS COLETIVOS
Liberdade de associação
Liberdade sindical
Negociação coletiva
Greve
Promoção e desenvolvimento de procedimentos
preventivos e de autocomposição dos conflitos
Diálogo social
OUTROS DIREITOS
Fomento do emprego
Proteção dos desempregados
Formação profissional e desenvolvimento de recursos humanos
Saúde e segurança no trabalho
Inspeção do trabalho
Seguridade social
APLICAÇÃO E SEGUIMENTO
6.0 - A DECLARAÇÃO SÓCIO-LABORAL DO MERCOSUL E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Para o processo de integração, sem dúvida, a aprovação da Declaração SócioLaboral do MERCOSUL reflete um grande avanço. No entanto, sua aplicação esbarra nos limites da legislação interna dos Estados componentes do MERCOSUL.
268
faculdade de direito de bauru
Particularmente, em relação ao Brasil, a Constituição Federal de 1988 terá que
sofrer modificações para adaptar-se à Declaração Sócio-Laboral do MERCOSUL apesar da confluência em diversas normas.
Logo no artigo 1o da Declaração Sócio-Laboral do MERCOSUL encontra-se o
princípio da não-discriminação. Aproxima-se ao princípio brasileiro de igualdade
(art. 3o, VI e 5o, da CF/88) e supera amplamente as previsões da Constituição de
1988 já que ela própria traz a discriminação quanto ao trabalhador doméstico (art.
6o, parágrafo único, CF/88).
Às pessoas com necessidades especiais (art. 2o da Declaração Sócio-Laboral
do Mercosul), a Constituição brasileira faz referência direta garantindo a não discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência (art. 7o, XXXI, da CF/88).
A igualdade entre mulher e homem nas relações laborais (art. 3o da Declaração Sócio-Laboral do Mercosul) tem acolhida no princípio geral da igualdade (art.
5o, I, da CF/88).
Quanto aos direitos laborais dos trabalhadores migrantes ou fronteiriços a
Constituição de 1988 não faz qualquer referência e, ainda, garante expressamente o
direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade somente aos estrangeiros residentes no País (art. 5o, caput, CF/88).
A Declaração Sócio-Laboral do MERCOSUL, como visto, traz expressa preocupação contra o trabalho forçado, infantil e de menores (art. 5o e 6o). Quanto ao trabalho forçado, a proteção advém da extensa gama de direitos trabalhistas reconhecidos no diploma Constitucional.
Em relação ao trabalho infantil e de menores, em recente alteração via Emenda Constitucional (no 20, de 15.12.1998), ficou garantida a proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos (art.
6o, XXXIII). Houve a elevação da idade mínima de quatorze para dezesseis anos, ou
seja, na redação anterior o menor poderia, na condição de aprendiz, trabalhar a partir dos doze anos. Agora, somente a partir dos quatorze anos na condição de aprendiz e dos dezesseis anos como trabalhador menor.
Relativamente aos direitos dos empregadores (art. 7o da Declaração SócioLaboral do Mercosul) não há garantia específica na Constituição Federal Brasileira. Somente quanto aos princípios gerais da atividade econômica (Capítulo I, Título VII).
A liberdade de associação sindical, de filiação, a negociação coletiva e a
greve (art. 8o, 9o, 10 e 11 da Declaração Sócio-Laboral do Mercosul) têm guarida constitucional (art. 5o, XVII a XXI; arts. 8o e 9o da Constituição Federal de
1988).
O diálogo social com a amplitude do disposto na Declaração Sócio-Laboral do
Mercosul supera as previsões brasileiras:
Revista do instituto de pesquisas e estudos
269
Art. 13. Os Estados Partes comprometem-se a fomentar o diálogo social nos âmbitos nacional e regional, instituindo mecanismos efetivos de consulta permanente entre representantes dos governos,
dos empregadores e dos trabalhadores, a fim de garantir, mediante o consenso social, condições favoráveis ao crescimento econômico sustentável e com justiça social da região e a melhoria das
condições de vida de seus povos.
O fomento do emprego (art. 14 da Declaração Sócio-Laboral do Mercosul) encontra-se entre os princípios da atividade econômica da Constituição de 1988 (art.
170, VIII). Já a proteção dos desempregados (art. 15 da Declaração Sócio-Laboral do
Mercosul), entre os direitos sociais, no Brasil, é garantido o seguro-desemprego, em
caso de desemprego involuntário (art. 7o, II, da CF/88).
O direito à formação profissional e desenvolvimento de recursos humanos
(art. 16 da Declaração Sócio-Laboral do Mercosul) não tem previsão expressa na
Constituição de 1988. No entanto, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa são apontados como fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1o,
IV ). Também garantidos expressamente os direitos sociais (arts. 6o e 7o da
CF/88).
A saúde e a segurança no trabalho (art. 17 e 18 da Declaração Sócio-Laboral
do Mercosul) encontram-se incluídos nos direitos sociais garantidos aos brasileiros
no art. 6o e 196 da CF/88.
A seguridade social (art. 19 da Declaração Sócio-Laboral do Mercosul), nos termos da Constituição de 1988, compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. No entanto, relativamente à previdência social o regime geral é de caráter contributivo e de filiação obrigatória para
qualquer trabalhador (Leis nos 8.213/91 e 8.212/91).
Por fim, convém ressaltar a dificuldade de aplicação destes direitos em relação
aos trabalhadores migrante ou fronteiriço já que os direitos expressos na Constituição de 1988 dirigem-se especificamente aos nacionais.
7.0 - CONCLUSÃO
Com a existência do Mercosul, tanto as tarifas alfandegárias como as alíquotas
comerciais tendem a diminuir progressivamente, o que permite a aplicação de interesses por parte das empresas transnacionais dos países membros em outras localidades do bloco a que pertencem, que ultrapassam fronteiras étnicas, políticas e culturais, não respeitando essas diferenças e difundindo seus objetivos na região.
A princípio, tem-se a idéia de que o processo de globalização e conseqüentemente a formação dos blocos econômicos são benéficos para a economia mundial.
270
faculdade de direito de bauru
Sem dúvidas. Mas levando em consideração fatores sociais, constata-se que nem
tudo é tão bom.
À medida que aumenta o número de multinacionais e a concorrência fica acirrada torna-se necessário diminuir cada vez mais o preço do produto e para isso dispensa-se um bom número de trabalhadores para investimentos em tecnologias
avançadas. Consequência disso e característica marcante da globalização é o desemprego estrutural que cria uma divisão estamental da sociedade levando inúmeras
pessoas à miséria.
Entretanto, as dificuldades que estão sendo vivenciadas no âmbito do MERCOSUL, sobretudo no referente às questões sociais, não irão desestimular a caminhada rumo à integração. Todavia,, é induvidosa a necessidade de superação gradual
desses empecilhos para uma harmonização dos direitos trabalhistas.
Não deve o Homem ser o objeto das relações no MERCOSUL, mas o destinatário mais importante das conquistas que forem obtidas, e o trabalhador,
como fator de produção indispensável para o êxito do movimento, deve ser tratado com dignidade, atribuindo-se-lhe garantias indispensáveis estendidas ao
migrante.
Não se pode olvidar, no entanto, que se se almeja a efetivação de um processo integracionista retratado pela configuração do Mercado Comum, afigurase de extrema urgência o apressamento e a solidificação da harmonização legislativa, atendendo-se à globalização que atinge o mercado mundial do trabalho,
sob pena de, se assim não se proceder, permanecer-se estagnado perante a realidade.
8.0 - BIBLIOGRAFIA
BAPTISTA, Luiz Olavo. A solução de divergências no Mercosul. In Mercosul: seus
efeitos jurídicos, econômicos e políticos nos Estados-membros. Org. Maristela Basso. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995.
____. O impacto do Mercosul sobre o sistema legislativo brasileiro. In Revista da
Indústria, v.1, no 1, p.144-151.
Boletim de Integração Latino-Americana. Principios esenciales de un ordenamiento juridico. [online] [s.l.], 27 jul. 1998. Disponível em www.aduaneiras.com.br/getec/merco/08/indice.htm
CORDEIRO, Wolnei de Macedo. A Regulamentação das Relações de Trabalho Individuais e Coletivas no âmbito do Mercosul. Dissertação Final do Mestrado em Direito
Econômico da Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa: 1999.
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271
FARIA, Werter R. Métodos de harmonização aplicáveis no Mercosul e incorporação
das normas correspondentes nas ordens jurídicas internas. In Mercosul: seus efeitos jurídicos, econômicos e políticos nos Estados-membros. Org. Maristela Basso.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995.
LIPOVETZKY, J. Mercosul: estratégias para a integração. São Paulo: Ltr, 1994.
O Mercosul hoje. [online] [s.l.] 22 dez. 1998. Disponível em www.mre.gov.br/mercosul/Mercosul.htm
DE PAULA, José Alves. O subgrupo 11 do Mercosul: balanço de suas atividades. [online] [s.l.] 23 abr. 1997. Disponível em 200.246.216.4/getec/merco/15/artigos/3alves.htm
VENTURA, Deisy de Freitas Lima, A ordem jurídica do Mercosul. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1996.
ALGUNS ASPECTOS DAS ALTERAÇÕES
NO CAMPO DOS RECURSOS
1
Soraya Regina Gasparetto Lunardi
Porque sempre atual e sempre presente nos rendemos mais uma
vez a Chiovenda: “na medida do que for praticamente possível, o
processo deve proporcionar a quem tem um direito tudo aquilo e
precisamente aquilo que ele tem o direito de obter.”
A TRAMITAÇÃO DOS PROJETOS:
O primeiro projeto foi aprovado na íntegra pela Lei 10.352 de 26 de dezembro de 2001;
O segundo projeto com a imposição de vetos foi promulgado pela Lei 10.358
de 27 de dezembro de 2001;
O terceiro projeto foi aprovado em 7 de maio de 2002 pela Lei 10.444;
Todos os projetos respeitaram o período de vacatio legis de 3 meses a contar
da respectiva publicação, sendo que o terceiro projeto, entrou em vigor no dia 07
de agosto, deste ano de 2002.
O ESPÍRITO DA REFORMA:
Primeiramente se faz necessário salientar a importância das reformas em nossa legislação processual. Trata-se da busca incessante de nossos doutrinadores, por
1 Palestra Proferida na Faculdade de Direito de Bauru, no ano de 2002.
faculdade de direito de bauru
274
um processo justo, célere e apto a cumprir sua função de pacificador social. É a garantia prevista em nossa Constituição Federal de que a tutela deverá ser prestada, a
quem tiver razão, mediante uma prestação jurisdicional, em um tempo razoável e de
forma acessível.2
Verificamos assim a presença dos valores constitucionais na busca do aprimoramento do que chamamos do processo civil constitucional, o qual seja, um processo civil não apenas voltado para a normatização, mas comprometido com os valores
constitucionais de um “devido processo legal3“, fazendo com que a constituição federal deixe de ser apenas uma “carta de intenções”, e passe a ser aplicada através da
legislação, superando sua condição de vetor de valores.
Estas minirreformas vêm, portanto para remover os chamados pontos de estrangulamento que segundo o Ministro Sálvio de Figueiredo4, dar-se-iam:
Pela admissão em juízo;
Pelo modo de ser do processo;
Pela justiça das decisões;
Pela efetividade ou utilidade
Do Recurso de Apelação
Art. 515 – Extensão do Efeito Devolutivo da Apelação em Sentenças
Terminativas:
Art. 515 inclusão do § 3º
Como era: Art 515. (...)
§ 1º
§ 2º
Com a alteração: Art. 515
§ 1º
§ 2º
§ 3º Nos casos de extinção do processo sem julgamento de mérito
(art. 267), o tribunal pode julgar desde logo a lide, se a causa versar unicamente sobre questão de direito e estiver em condições de
imediato julgamento.
2 Candido Rangel Dinamarco, ob. Citada, p. 29.
3 Acerca da riqueza do devido processo legal, ver Nelson Nery Junior, em sua obra Os princípios constitucionais do
processo.”
4 Salvio de Figueiredo Teixeira, A efetividade do processo e a reforma processual, in Ajuris, v. 59.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
275
Comentários:
Apelação: Trata-se do recurso cabível da sentença (terminativa ou de mérito
– aquela que põe termo ao processo no primeiro grau de jurisdição – art. 162 § 1º).
Assim, quando a parte não se conforma com a decisão proferida, por lhe ter sido a
mesma prejudicial, poderá buscar sua reapreciação para reforma total, parcial ou
mesmo sua invalidação, “como garantia de boa solução.”5 Uma das finalidades da
reapreciação segundo Amaral dos Santos seria que “a possibilidade do reexame recomenda ao juiz inferior maior cuidado na elaboração da sentença e o estímulo ao
aprimoramento de suas aptidões funcionais, como título para uma ascensão nos
quadros da magistratura. O órgão de grau superior, pela sua maior experiência, se
acha mais habilitado para reexaminar a causa e apreciar a sentença anterior, a qual
por sua vez, funciona como elemento de freio à nova decisão que vier a proferir.”6
Mudança: Esta mudança demonstra o espírito das reformas avesso a conceitualismos acadêmicos a reforma busca a efetividade do processo. Temos aqui um
confronto com o princípio do duplo grau de jurisdição onde não era permitido ao
apelante impugnar senão aquilo que fosse decidido na sentença (tantum devolutum quantum apellatum). Assim, se a sentença de extinção do processo sem julgamento de mérito fosse reformada, o órgão de grau superior, na hipótese de movida apelação, não pode passar ao exame de mérito, porquanto, se assim o fizesse, estaria vulnerando o princípio do duplo grau de jurisdição.7 Agora, contrariamente se o processo for extinto sem julgamento de mérito, o Tribunal poderá julgar se a causa versar unicamente sobre questão de direito e estiver em condições
de imediato julgamento, aquilo que Gilson Miranda e Patricia Miranda Pizzol chamam de “ julgamento da causa madura.”8
A primeira questão a ser enfrentada então seria: o princípio do duplo grau
de jurisdição estaria sendo desrespeitado? Isso implicaria uma inconstitucionalidade? Para responder estas questões nos valemos da idéia do professor português
Gomes Canotilho que bem leciona acerca das cargas valorativas dos princípios e
das normas. A verdade é que deverá existir uma correspondência entre os princípios jurídicos (valor em sentido amplo) e as normas (delimitação do valor ao caso
concreto). Mas justamente em razão da amplitude dos valores, os mesmos podem
acabar colidindo em casos concretos como o presente. No caso presente temos
dois valores em discussão – o princípio da instrumentalidade e o princípio do duplo grau de jurisdição.
5 Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, 1ª ed. V. V, nº 107.
6 Primeiras linhas do processo civil, 4ª ed., v. III, nº 696.
7 José Carlos Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, v. 5, 8ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1999,
p. 425.
8 Obra citada, p. 70.
faculdade de direito de bauru
276
Certamente o princípio do duplo grau de jurisdição trata-se de garantia constitucional e sua função é no sentido de a parte ter direito ao reexame das questões
discutidas e até como forma de controle das atividades estatais pela sociedade e
pelo próprio poder judiciário por meio do manejo de recursos.9
Ora, se sua função é no sentido de reexame por um tribunal superior, como
forma de controle das atividades estatais, não podemos olvidar que a situação em
discussão é bastante limitada, ou seja: somente em casos de extinção do processo
sem julgamento de mérito, se a causa versar unicamente sobre questão de direito e
estiver em condições de imediato julgamento. Sejamos mais diretos, este julgamento não acarreta a prevenção da turma? Acarretando esta prevenção, o tribunal reformando a sentença e concluindo pelo julgamento de mérito, devolve o processo ao
juízo de primeiro grau, ora este julga e depois existindo recurso o processo volta ao
tribunal e o que prevalece é a decisão deste. Ou seja teríamos todo uma volta para
chegarmos ao mesmo lugar. Evidente que não é isso que o princípio do duplo grau
de jurisdição visa assegurar, e evidente também que o mesmo princípio continua
tendo sua aplicabilidade e utilidade garantida nos demais casos onde é realmente
necessário.
Assim, nos parece que em virtude do princípio da proporcionalidade, e da
instrumentalidade, e da efetividade e até do devido processo legal, não podemos
concordar com procedimentos inócuos, desnecessários, sendo a mudança feliz10,
e correspondendo a idéia de desapego a mitos e dogmas do processo na busca da
efetividade e tempestividade da tutela jurisdicional.11 Nas palavras de Gilson Miranda e Patricia Pizzol: “Mitiga-se, portanto o duplo grau de jurisdição em prol da
celeridade.” 12
As condições para o julgamento:
a) Que se trate de matéria de direito: A interpretação literal e fragmentada
do texto, nos faria entender que somente se tratando de matéria de direito
(em seu sentido restrito), seria possível a aplicação do dispositivo legal, não
existindo possibilidade quando estivesse em discussão matéria de fato. Não
nos parece que seja a melhor forma de se interpretar o dispositivo legal, uma
9 Sobre os princípios em discussão ver excelente estudo elaborado pelos professores: Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda Alvim Wambier, em sua obra Breves comentários à segunda fase do Código de Processo Civil, ob. Já citada pp. 132 a 140.
10 Contrariamente sustenta José Rogério Cruz e Tucci, ob. Citada, p. 99 onde acentua que o foi dado ênfase a instrumentalidade, em detrenimento à boa técnica processual.
11 Candido Rangel Dinamarco afirma com propriedade que: “ Não há porque levar tão longe um princípio, como
tradicionalmente se levava o do duplo grau nos termos em que ele sempre foi entendido, quando esse verdadeiro
culto não for indispensável para preservar as balizas do processo justo e équo, fiel ás exigências do devido processo legal, ob. Citada p. 152.
12 Obra citada p. 70.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
277
vez que se a prova da matéria de fato for toda documental e já tenha sido
submetida ao contraditório, ou a matéria de fato não seja objeto de divergência entre as partes, nestes casos não existe controvérsia quanto a matéria de
fato, ou mesmo se tratando de fato notório, também cabendo o julgamento
pelo tribunal nos termos do § 3∞ , pois a divergência limita-se a matéria de
direito. Nos parece que é o que quer significar disposto no item seguinte,
“que o processo esteja em condições de julgamento.”13
b) Que o processo esteja em condições de imediato julgamento: Neste caso temos um processo já suficientemente instruído para o julgamento de mérito, como no caso de o procedimento legal já ter percorrido perante o juízo de primeiro grau (art. 329), ou quando presentes o pressupostos do julgamento antecipado do mérito (art. 330, I e II), quando o réu
for revel, etc. Assim resta evidente a preocupação do legislador no sentido
de proteger as garantias constitucionais do contraditório (CF art. 5. inc. LV )
e do Devido Processo Legal (art. 5. Inc. LIV ).
A forma do requerimento relativo ao § 3.:
Relevante discussão é a que se trava em relação a forma como deverá a parte
proceder quando pretenda a reforma da decisão de primeiro grau com base no § 3.
Do art. 515: parte da doutrina entende que em razão das peculiaridades da reforma
a elaboração do recurso de apelação em respeito ao princípio da eventualidade14,
deverá suscitar toda a matéria a ser apreciada e não apenas os fundamentos da reforma da decisão a qual extinguiu o processo sem julgamento de mérito15.
Quanto ao pedido propriamente dito, entendem Flavio Cheim Jorge, Fredie
Didier Júnior e Marcelo Abelha Rodrigues que “o pedido do apelante para que o
tribunal julgue o mérito da causa é requisito intransponível para que seja aplicado o novo § 3° do art. 515 sob pena de violação do art. 2° do CPC, aplicado analogicamente aos recursos”.16
Adotando uma postura mais liberal Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e Candido Rangel Dinamarco, entendem tratar-se de dever do juiz a
manifestação nos termos da lei e não possibilidade, em razão especialmente do in-
13 Neste sentido Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda Alvim Wambier, em sua obra Breves comentários à segunda fase do Código de Processo Civil, ob. Já citada p. 142.
14 Nelson Nery e Rosa Maria Nery observam, ainda, que a nova redação “não autoriza o exame da questão não suscitada e discutida no processo e nem impugnada na apelação. (Código de Processo Civil comentado, 6ª ed. P. 859,
nota 11).
15 José Rogério Cruz e Tucci, ob. Citada, p. 102.
16 A reforma da reforma, p. 159-160.
faculdade de direito de bauru
278
teresse público. O professor da USP sustenta ainda que, se a parte não quiser o julgamento do mérito, mas tão somente da questão processual, deverá requerer expressamente. Nos parece que o posicionamento mais liberal vai de encontro ao espírito da reforma, e portanto a vontade do legislador, sendo a linha a qual entendemos mais adequada.
Dos Efeitos da Apelação
Art. 520 – A sentença que confirma a antecipação de tutela:
Art. 520 inclusão do inciso VII
Como era: Art 520. (...)
(...)
VI (...)
Com a alteração: Art. 520
(...)
VII Confirmar a antecipação dos efeitos da tutela.
Comentários:
O que verificamos em nossa legislação é que a regra em nosso sistema legislativo processual é que a apelação produz ambos os efeitos, devolutivo e suspensivo, não podendo o juiz privá-la deste, sem que, a lei expressamente o faça.17 A verdade é que o caput do art. 520 dá essa amplitude ao duplo efeito na recepção dos
recursos. Entendemos, que, a exemplo do direito italiano, deveríamos converter em
regra geral a eficácia imediata da sentença de primeiro grau.18
Entretanto uma dúvida subsiste:
Pode o juiz conceder a antecipação da tutela na própria sentença? Nesse
caso, a alteração também produz efeitos?
Em relação ao primeiro questionamento, a resposta é afirmativa, uma vez que
o tempo despendido no processamento do recurso de apelação, somado a inexistência de qualquer vedação legal, nos faz concluir pela evidente possibilidade, podendo o juiz conceder a antecipação de tutela na própria sentença. Por outro lado,
se o juiz pode, com base em convicção não exauriente (verificando o periculum in
17 Sérgio Bermudes, A reforma do Código de Processo Civil, 2ª ed. São Paulo, Saraiva, 1996, p. 77.
18 Também nesse sentido: João Batista Lopes, ob. Citada, p.135.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
279
mora ou mesmo o manifesto propósito protelatório do réu), conceder, porque não
permitir que o juiz conceda depois que tiver plena convicção da razão do autor e
que seu direito corre risco de perecer.19
A alteração é de grande valia, vindo sanar uma das incoerências existentes até
então no campo legislativo, determinando que a sentença que confirmar a antecipação dos efeitos da tutela se admitirá recurso de apelação, que será recebido somente no efeito devolutivo. A verdade é que a tutela antecipada, por sua própria
natureza, tem eficácia imediata, que persiste até decisão que venha revogá-la expressamente.
O problema fica evidente nas palavras do professor Candido Rangel Dinamarco:
Se o autor obteve medida cautelar urgente no curso do processo da
ação reivindicatória, para haver desde logo a posse do imóvel, seria desconfortavelmente insensato dizer que, logo agora que foi
proferida sentença de mérito favorável após a exauriente instrução da causa, ele perderia o direito a desfrutar aquilo que já vinha fruindo, teria mais eficácia uma decisão tomada sumariamente e que é provisória por definição, do que a sentença calcada
em ampla instrução realizada antes do processo.20
Procurando então corrigir esta incoerência, a eficácia que foi previamente antecipada na sentença continuará realizando o direito mesmo após a interposição do
recurso de apelação.
Quanto ao recurso cabível no caso de confirmação de antecipação de tutela
na sentença, antes concedida na forma de decisão interlocutória, está sujeita apenas
ao recurso de apelação e não a agravo e apelação, afastando-se definitivamente o entendimento acerca da dualidade de atos em uma sentença.
Temos ainda a questão relativa a vários pleitos, quando o pedido de antecipação de tutela limita-se a um dos requerimentos, os efeitos suspensivo e devolutivo
incidirão nos demais pedidos não contemplados no art. 520, e não incidindo o efeito suspensivo em relação a parte da sentença que concede ou confirma a antecipação de tutela. Candido Rangel Dinamarco apresenta exemplo elucidativo: Em ação
reivindicatória cumulada com pedido de perdas e danos, o juiz antecipa a tutela para
a entrega do bem aos autores, mas só na sentença inclui a condenação de ressarcir.
A apelação do réu, conquanto única, terá efeito suspensivo sobre essa condenação,
não, porém no tocante à entrega do bem.21
19 Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda Alvim Wambier, em sua obra Breves comentários à segunda fase do Código de Processo Civil, ob. Já citada p. 150.
20 Candido Rangel Dinamarco ob. Citada, p. 145.
21 Candido Rangel Dinamarco ob. Citada, p. 148.
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280
Do Recurso de Agravo Retido
Art. 523, §§ 2° e 4° – Casos em que só se admite o agravo retido e o
dano for de difícil reparação:
Como era: Art 523. (...)
(...)
§ 2° Interposto o agravo, o juiz poderá reformar sua decisão, após
ouvida a parte contrária, em 5 (cinco) dias.
(...)
§ 4° Será sempre retido o agravo das decisões posteriores à sentença, salvo nos caso de inadmissão da apelação.
Com a alteração: Art. 523 (...)
(...)
§ 2° Interposto o agravo, e ouvido o agravado no prazo de 10 (dez)
dias, o juiz poderá reformar sua decisão.
(...)
§ 4º Será retido o agravo das decisões proferidas em audiência de
instrução e julgamento e das posteriores à sentença, salvo nos casos de dano de difícil e de incerta reparação, nos de inadmissão da
apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebido
Comentários:
Do Agravo: Agravo é o recurso cabível contra decisões interlocutórias (art. 522),
ou seja, contra os atos pelo qual “o juiz, no curso do processo, resolve questão incidente” (art. 162, § 2º). O agravo, em se tratando de decisões proferidas em primeiro grau,
pode ser interposto de duas maneiras: a) por instrumento, b) na forma retida, 22 podendo a parte optar sempre que a lei não lhe imponha a forma (§ 4º do art. 523).23
O agravo retido, independe de preparo e será apresentado, em regra, no prazo de dez dias após a intimação da decisão, por petição escrita, dirigida ao juiz da
causa, contendo as razões de fato e de direito, pedido de reforma e requerimento
que dele conheça o Tribunal, preliminarmente, por ocasião da apelação (ou seja fica
“ retido nos autos até a apelação), tratando-se portanto de “ instrumento estratégico”24, evitando a preclusão e o gasto com custas e cópias25.
22 Gilson Miranda e Patricia Pizzol atentam para o fato de existem outras formas de agravo em nosso sistema processual, entretanto não são objetos do estudo em questão. p. 80
23 Idem ibidem p.81
24 Gilson Miranda e Patricia Pizzol citando Nelson Nery Junior e Rosa Maria Nery, ob. Citada, p. 82
25 Idem ibidem p. 82.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
281
Alteração: O art. 523 § 2°, altera de cinco para 10 dias o prazo para a interposição do agravo retido, e posteriormente o juiz poderá retratar-se. Tal medida visa
a assegurar a isonomia das partes. O legislador foi movido pelo intuito de estabelecer a equivalência entre os prazos para interpor e responder, uma vez que para a interposição do agravo retido a parte dispunha de 10 dias e para responder dispunha
de apenas cinco, o que fere a garantia constitucional da igualdade entre as partes.26
Além disso, se conferiu uma redação muito mais clara ao artigo, não restando
dúvidas acerca do procedimento correto que é: o agravado terá prazo de 10 dias,
para responder e após o juiz que proferiu a decisão impugnada poderá se retratar.27
Em relação ao § 4° é de se observar que veio limitar a utilização do agravo de
instrumento, sendo admitido somente o retido:
a) Contra decisões proferidas em audiência de instrução e julgamento;
b) Contra decisões proferidas depois de publicadas a sentença;
Ficam ressalvados, entretanto:
a) Em ambos os casos as situações que o retardamento pelo tribunal possa
causar dano a parte;
b) No tocante às decisões proferidas depois da sentença, que indeferem o
processamento da apelação e as que declarem o efeito, ou os efeitos, em
que é recebida.
Assim, nestes casos, não subsiste o veto previsto no § 4° do art. 523 do CPC.28
Quanto ao prazo para que o juiz profira uma possível decisão no sentido de
juízo de retratação, entendemos na mesma linha de Nelson Nery Junior e Rosa Maria Nery que, uma vez que não existe determinação legal expressa, se aplica a regra
geral de prazos previsto em nosso Código de Processo Civil, o qual seja: 05 dias, conforme preceitua o art. 185 do mesmo códex.
Salienta-se que o agravo retido pode ser interposto oralmente ou por petição
devendo a) descrever as razões de inconformismo; b) inserir o pedido de reforma,
c) reiterar o seu julgamento quando da apresentação das razões ou contra-razões do
recurso de apelação.
PROCEDIMENTO ORDINÁRIO, SUMÁRIO E ESPECIAL:
A alteração do disposto no art. 280 do CPC29 visa transpor para a disciplina geral dos recursos o que já vigia somente em relação ao procedimento sumário (agra26 Nesse sentido Candido Rangel Dinamarco ob. Citada, p. 174, Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda Alvim
Wambier, ob. Cit. p. 153.
27 José Rogério Cruz e Tucci.
28 Conforme Candido Rangel Dinamarco ob. Citada, p. 166
29 Exclusão do inciso III – “ das decisões sobre matéria probatória, ou proferidas em audiência, o agravo será sempre retido.
30 Candido Rangel Dinamarco ob. Citada, p. 166
282
faculdade de direito de bauru
vo contra decisão preferida em audiência).30 Temos assim agora uma disposição uniforme as quais aplicam-se para os procedimentos ordinário, sumário e em boa parte dos especiais, bem como processo cautelar, embargos a execução ou ação monitória (todos processos de conhecimento).
Observação importante se faz quanto às audiências unas proferidas no procedimento sumário, uma vez que a lei fala em decisões tomadas em audiência de instrução e julgamento, não pode pairar qualquer dúvida, até porque a intenção do legislador foi somente de deslocar dispositivo legal da sede do procedimento sumário para
que o mesmo fosse aplicado para todas as decisões onde não fosse vedado seu emprego. Assim mesmo sendo tal audiência composta da tentativa de conciliação e pela
instrução propriamente dita, mesmo assim será aplicado o disposto no parágrafo 4°.
Decisão proferida em audiência ou depois desta: Um exemplo de decisão tomada após ser proferida a audiência seria a de tutela específica, podendo o
juiz determinar uma solução equivalente (art. 461 caput), no caso de descumprimento. Serão casos de aplicação do novo regime do agravo retido, entretanto fica
subordinado a possibilidade da interposição de apelação, pois trata-se do veículo
condutor necessário.31
Decisões que não admitem apelação e que definem seus efeitos: Nestes casos o agravo será de instrumento, segundo a redação dada ao § 4º. São casos em
que o dano do agravante é presumido.32
Risco de Dano de Difícil e Incerta Reparação em face do Agravo Retido:
As desvantagens existentes em razão da interposição de agravo retido são evidentes.
Primeiramente o referido recurso estará sujeito a interposição de uma apelação por alguma das partes, depois, sofrerá a ação do tempo referente a toda a tramitação da apelação muito mais lenta e burocrática que o agravo de instrumento. Mas a lei admite exceções em relação ao agravo retido somente existindo “risco de dano de difícil e incerta reparação”. Esse risco existirá toda vez que o tempo e a forma possam comprometer resultados justos e tempestivos, que é o que se busca.33 Tudo isso porque somente
o regime de agravo de instrumento possibilita a imediata tutela da pretensão recursal,
ou seja pode tratar-se de uma forma de prestígio ao previsto no inciso XXXV do art. 5º
da CF, protegendo a ameaça de lesão a direito.34 O exemplo do professor Candido Rangel Dinamarco deixa claro: concedida ou negada a medida antecipatória ou cautelar, ou
determinando o juiz a apreensão de um documento sigiloso, mesmo que a decisão tenha sido tomada em audiência ou depois de proferida a sentença, o recurso cabível
será o de agravo de instrumento.35
31 Idem ibidem p. 170
32 Cruz e Tucci, ob. Cit. P. 114.
33 Candido Rangel Dinamarco obra citada, p. 173.
34 Roberto Armelim e João R. E. Piza Fontes, apud Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda Alvim Wambier, ob. Citada p. 157.
35 Candido Rangel Dinamarco obra citada, p. 171
Revista do instituto de pesquisas e estudos
283
Do Recurso de Agravo de Instrumento
Art. 526 – Comunicação ao juízo de origem:
Como era: Art. 526. (...)
Com a alteração: Art. 526 (...)
(...)
Parágrafo único: o Não cumprimento do disposto neste artigo, desde que argüido e provado pelo agravado, importa inadmissibilidade do agravo (...)
Comentários:
O agravo de instrumento possui entre suas características, a de ser interposto
diretamente ao Tribunal competente, e como já vimos, visa modificar uma decisão
interlocutória. Outra característica louvável do referido instrumento é de tal decisão
poder ser revista pelo prolator, ou seja, o previsto no art. 526, trata-se de vantagem
autorgada ao agravante o qual poderá obter um juízo de retratação.36
Entretanto a juntada, aos autos do processo, de cópia da petição do agravo de
instrumento e do comprovante de sua interposição, assim como a relação documentos (no prazo de 03 dias) também se trata de uma forma, de garantia de contraditório.
Em se tratando da parte agravada de parte patrocinada por advogado o qual somente
possua escritório no interior do Estado, este terá dificuldades em conseguir a cópia da
minuta, seu prazo para contraminutar poderá restar prejudicado em razão de possíveis contratempos, o que não ocorrerá se a parte cumprir com a sua obrigação, a qual
seja, juntar aos autos cópia da petição de agravo encaminhada ao Tribunal.
Verificamos assim que a omissão do agravado acarreta duplo prejuízo: ao juiz
o qual não poderá exercer seu juízo de retratação e ao agravado pelas dificuldades
inerentes a situação.
O legislador optou por deixar a cargo da parte prejudicada a alegação da omissão, ou seja não deverá ser conhecida de ofício pelo juízo a quo. A argüição terá seu
momento oportuno na contra-minuta37, ou seja, dez dias após a intimação da interposição do agravo, tempo razoável se considerar-mos que o agravante disporá de 03
dias para juntar os documentos.38
36 Resp 157.563-MG, rel. Min. Ari Pargendler, DJ 03.11.1999.
37 Neste sentido: Candido Rangel Dinamarco ob. Citada p. 181; Contrariamente entender ser possível a alegação
até o momento do julgamento do recurso de agravo: Luiz Rodrigues Wambier Teresa Arruda Alvim Wambier ob. Cit.
Pp.164, Flavio Cheim Jorge, Fredidier Junior e Marcelo Abelha Rodrigues, ob. Citada, p. 93.
38 Luiz Rodrigues Wambier Teresa Arruda Alvim Wambier ob. Cit. Pp.162 e 163, e Candido Rangel Dinamarco ob.
Citada p. 180 e 181.
284
faculdade de direito de bauru
A lei fala que cabe ao agravado comprovar a não interposição do recurso. Ora
tal prova pode se dar por meio de certidão negativa expedida pelo cartório da vara
em que tramita o processo em primeiro grau de jurisdição.39 O ideal será também
que a comunicação seja feita ao Tribunal (se comprova a juntada dos documentos
no juízo de primeiro grau, e posteriormente se comunica ao tribunal tal procedimento – juntada da cópia da petição endereçada ao órgão a quo).40 Tal inobservância importa inadmissibilidade do agravo.
Do Recurso de Agravo de Instrumento
Art. 527 – Comunicação ao juízo de origem:
Como era: Art 527. Recebido o agravo de instrumento no tribunal,
e distribuído incontinenti, se não for caso de indeferimento liminar
(art. 557), o relator:
I - poderá requisitar informações ao juiz da causa, que as prestará
no prazo de 10 (dez) dias;
II - poderá atribuir efeito suspensivo ao recurso (art. 558), comunicando ao juiz tal decisão;
III - intimará o agravado, na mesma oportunidade, por ofício dirigido ao seu advogado, sob registro e com aviso de recebimento, para
que responda no prazo de 10 (dez) dias, facultando-lhe juntar cópias das peças que entender convenientes; nas comarcas sede de tribunal, a intimação far-se-á pelo órgão oficial;
IV - ultimadas as providências dos incisos anteriores, mandará ouvir o Ministério Público, se for o caso, no prazo de 10 (dez) dias.
Parágrafo único. Na sua resposta, o agravado observará o disposto
no § 2º do art. 525.
Com a alteração: Art. 527. Recebido o agravo de instrumento no
tribunal, e distribuído incontinenti, o relator:
I - Negar-lhe-á seguimento, liminarmente, nos casos do art. 557;
II – poderá converter o agravo de instrumento em retido, salvo
quando se tratar de provisão jurisdicional de urgência, ou houver
perigo de grave lesão e de difícil ou incerta reparação, remetendo
os respectivos autos ao juiz da causa onde serão apensados aos
principais, cabendo agravo dessa decisão ao órgão colegiado competente;
39 Luiz Rodrigues Wambier Teresa Arruda Alvim Wambier ob. Cit. P. 163.
40 Candido Rangel Dinamarco ob. Citada p. 181.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
285
III – poderá atribuir efeito suspensivo ao recurso (art. 558), ou deferir, em antecipação de tutela, total ou parcialmente a pretensão recursal, comunicando ao juiz sua decisão;
IV - poderá requisitar informações ao juiz da causa, que as prestará no prazo de 10 (dez) dias;
V mandará intimar o agravado, na mesma oportunidade, por ofício dirigido ao seu advogado, sob registro e com aviso de recebimento, para que responda no prazo de 10 (dez) dias, facultando-lhe juntar cópias das peças que entender conveniente; nas comarcas sede
de tribunal, e naquelas cujo expediente forense for divulgado no
diário oficial, a intimação far-se-á mediante a publicação no órgão
oficial;
IV - ultimadas as providências referidas nos incisos I a V, mandará
ouvir o Ministério Público, se for o caso, no prazo de 10 (dez) dias.
(...)
Comentários:
O Inciso I – Negar seguimento ao agravo – O inciso I assegura amplos
poderes para que o relator, no caso de recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou contrário à súmula do respectivo tribunal ou tribunal superior (art. 557) negue seguimento ao recurso. Dessa decisão, cabe o agravo previsto
no art. 557, § 1º no prazo de cinco dias.
Além de negar provimento ao recurso de agravo, é de se observar que se tratando de agravo manifestamente inadmissível ou infundado, o § 2º prevê multa de
até 10% do valor corrigido da causa e o impedimento de interpor novo recurso enquanto a multa não for paga.
Um exemplo de negativa de seguimento de agravo com fundamento na improcedência por confronto com a jurisprudência: agravo sustentando que os contratos de abertura de crédito em conta-corrente sejam títulos executivos, quando a
jurisprudência sumulada no Superior Tribunal de Justiça é em sentido contrário –
súmula 233 do STJ – “ Contrato de abertura de crédito, ainda que acompanhado de
extrato de conta-corrente, não é título executivo.”41
O Inciso II – Converter agravo de instrumento em retido – A alteração visa
atender as queixas dos tribunais que viram aumentar excessivamente sua distribuição
em razão do fácil acesso aos agravos, provocando congestionamentos na Segunda instância e traduzindo privilégios aos agravos em detrimento das apelações.42 Convertido o
recurso, o processamento se dará normalmente, como se retido fosse.
41 Candido Rangel Dinamarco ob. Citada p. 188.
42 João Batista Lopes, obra citada, p. 137.
faculdade de direito de bauru
286
O inciso III – Efeito Ativo do Agravo de Instrumento – O texto anterior
referia-se tão-somente a suspensão dos efeitos, surgindo dúvidas quanto a possibilidade de o relator também conceder o chamado efeito ativo, ou seja, deferir a providência que havia sido negada em primeiro grau. O problema fica evidente quando
se trata de decisão a qual nega antecipação de tutela: seria admissível na redação anterior a “concessão” pelo relator do pedido sendo a decisão interlocutória de cunho
negativo? A resposta veio com a alteração do artigo o qual buscando a efetividade do
processo permite que o relator conceda em casos de urgência, a tutela adequada ao
caso.43 Assim, antecipar a pretensão recursal é conceder, em decisão monocrática
o que aquilo que o agravante pretende.
Eduardo Talamini esclarece acerca de qualquer dúvida a qual possa pairar devendo a interpretação do art. 527 III, ser feita conjuntamente: com o previsto no art.
558: de duas uma a) ou se interpreta teleologicamente o novo art. 558, entendendo-se que ele autoriza não só a “suspensão do cumprimento da decisão” agravada,
mas também concede a própria antecipação dos da providência negada pelo órgão
a quo que se buscava através do recurso, b) ou, para tais casos continuará sendo utilizado o mandado de segurança.44
Sustenta João Batista Lopes que concedido o efeito ativo, caberá agravo para
o colegiado, o que permitirá corrigir eventual desacerto do relator sem qualquer
prejuízo para a tutela jurisdicional constituindo-se um agravo interno – art. 527, II e
557 § 1º.
Quanto aos demais incisos do artigo em comentário não apresentaram modificações significativas, motivo pelo qual não serão tecidos comentários, eis que o objeto do presente estudo é as alterações sofridas pelo Código de Processo Civil.
Embargos Infringentes
Art. 530 – Hipóteses de Admissibilidade:
Como era: Art 530. Cabem embargos infringentes quando não for
unânime o julgado proferido em apelação ou ação rescisória. Se o
desacordo for parcial, os embargos serão restritos à matéria objeto de divergência.
Com a alteração: Art. 530 Cabem embargos infringentes quando
o acórdão não unânime houver reformado, em grau de apelação,
a sentença de mérito, ou houver julgado procedente a ação resci43 Idem ibidem, p. 138
44 A nova disciplina do agravo e os princípios constitucionais do processo, Revista do Advogado da AASP, 48
(1996):27.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
287
sória. Se o desacordo for parcial, os embargos serão restritos à matéria objeto da divergência.
Comentários:
As Alterações Introduzidas: A nova redação do art. 530 reduziu a possibilidade de aplicação do mesmo nas seguintes hipóteses: os embargos infringentes serão usados como recurso em impugnação:
1. Tratando-se de acórdão não unânime45 (por maioria de votos);
2. Se este tiver Julgado o mérito da causa46;
3. Houver reformado, em grau de apelação, a sentença – assim somente será
cabível referido recurso, quando não houver consonância entre a decisão
de primeiro grau e o tribunal. Ou seja, tendo sido por duas vezes composta a lide no mesmo sentido, restam excluídos os Embargos Infringentes –
a dupla sucumbência47;
4. Houver julgado procedente o pedido deduzido em ação rescisória;48
Quanto a dupla sucumbência, para melhor ilustrar o requisito utilizamos o feliz
exemplo futebolístico do professor Candido Rangel Dinamarco – Imaginemos que a parte “A” foi vencida em primeiro grau (1 ponto), a decisão tenha sido reformada em grau
de recurso quando “B” marca 2 pontos – o voto de procedência de dois dos relatores, e
um voto divergente, entendendo correta a decisão de primeiro grau (mais 01 ponto para
“A”). Temos um empate 2x2, seria então os EI uma prorrogação.49
Assim restam excluídas as seguintes possibilidades de cabimento de embargos infringentes:
1. Se a sentença impugnada não for de mérito;
2. Se a sentença de mérito for confirmada pelo acórdão proferido no julgamento da apelação;
3. Se o pedido formulado na ação rescisória for julgado totalmente improcedente (sendo parcial a procedência os embargos infringentes serão acolhidos nos
limites da divergência quanto à parte do pedido que fora acolhido);
45 A falta de unanimidade deve se dar pela desigualdade de conclusões e não de fundamentação.
46 Sérgio Shimura observa que apesar da lei se referir a decisão do Tribunal que reforma a sentença, inexiste na
verdade, necessidade de que o acórdão também seja de mérito. Considera o professor, cabíveis os embargos, mesmo quando no acórdão, apesar se ter decidido o mérito da causa, se decide o mérito do recurso. Os embargos infringentes e seu novo perfil, Aspectos polêmicos e atuais dos recursos – 5ª série, coords. Nelson Nery Junior e Tereza Arruda Alvim Wambier, São Paulo, RT, 2002, p. 497-524.
47 Athos Gusmão Carneiro, Os “novos” embargos infringentes e o direito intertemporal, Revista Síntese de Direito
Civil e Processual Civil, julho-agosto de 2002, nº 18 Editora Síntese.
48 José Rogério Cruz e Tucci, ob. Citada, p. 123.
49 Cândido Rangel Dinamarco, ob. Citada, p. 198.
faculdade de direito de bauru
288
4, Se a ação rescisória não for admitida50
As alterações revelam que o legislador restringiu a utilização dos EI, sem entretanto excluí-lo de nosso sistema recursal. Assim, a interpretação a ser dada de acordo com
a intenção do legislador é realmente restritiva, buscando-se a equidade entre o acesso a
justiça e o grande número de recursos existentes na legislação pátria.
Embargos Infringentes
Art. 531 – Juízo de Admissibilidade:
Como era: Art 531. Compete ao relator do acórdão embargado
apreciar a admissibilidade do recurso.
Com a alteração: Art. 531. Interpostos os embargos, abrir-se-á vista ao recorrido para contra-razões; após o relator do acórdão embargado apreciará a admissibilidade do recurso.
Comentários:
As Alterações Introduzidas: De acordo com a alteração, o procedimento se
dará da seguinte forma: após o protocolo dos EI na secretaria do Tribunal, o recorrido terá vistas para contra-razões pelo prazo de 15 dias, após este exercício do contraditório é que o relator do acórdão embargado se manifestará, o que visa facilitar
a atividade do relator que já terá a fundamentação de ambas as partes.
O relator poderá então se manifestar pela admissibilidade ou inadmissibilidade, como nos casos de falta de requisitos ou o no caso de o recurso estar em desacordo com súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal.51
Em relação aos arts. 533 e 534, as modificações dispensam maiores comentários, dispondo basicamente que o processamento e julgamento dos EI se darão conforme as disposições internas dos respectivos Tribunais, o que demonstra estar o legislador atendo para a diversidade da realidade com relação a organização de cada um deles (diferença de número de juízes, divisão de câmaras,
turmas seções etc).
50 Gilson Delgado Miranda e Patricia Pizzol, ob. Citada, p. 91.
51 É de consignar as críticas tecidas pela doutrina, acerca do julgamento singular e não pelo colegiado previsto em
referido dispositivo legal, entre eles: Sérgio Shimura, ob. Já indicado, Peçanha Martins, Eduardo Talamini, entre outros.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
289
Protocolo integrado
Arts. 542 e 547 – Protocolo integrado:
Como era: Art. 542. Recebida a petição pela secretaria do tribunal
e aí protocolada, será intimado o recorrido, abrindo-se-lhe vista
para apresentar contra-razões.
Com a alteração: Art. 542. Recebida a petição pela secretaria do
tribunal, será intimado o recorrido, abrindo-se-lhe vistas, para
apresentar contra-razões.
Como era: Art. 547. (...)
Com a alteração: Art. 547. (...)
Parágrafo único: Os serviços de protocolo poderão, a critério do
tribunal, ser decentralizados, mediante delegação a ofícios de justiça de primeiro grau.
Comentários:
Em ambos os diapositivos verificamos a previsão expressa do protocolo integrado, o qual está adstrito a leis especiais de cada Estado, conforme previsão Constitucional da Carta Magna de 1988 – art. 24, XI.52
Tal possibilidade já adotada em vários Estados53, é muito positiva para os operadores do direito, que não ficam sujeitos a deslocamentos desnecessários. A disposição no texto legal veio para sanar qualquer dúvida que pudesse persistir acerca da
possibilidade de utilização do referido expediente.
Especificamente quanto ao art. 542, a supressão do termos e aí protocolada
atribui aos tribunais de segundo grau a faculdade de procederem, mediante edição
de ato administrativo a descentralização do serviço de protocolo das petições de interposição daqueles respectivos recursos.54
Do Recurso Extraordinário e Especial
Como era: Art 498. Quando o dispositivo do acórdão contiver julgamento por maioria de votos e julgamento unânime e forem in52 Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda Alvim Wambier. Ob. Citada, p. 193.
53 No estado de São Paulo, Provimento 462/85 do Conselho Superior da Magistratura em relação aos foros estaduais.
54 José Rogério Cruz e Tucci, ob. Citada, p. 125.
faculdade de direito de bauru
290
terpostos simultaneamente embargos infringentes e recurso extraordinário ou recurso especial, ficarão estes sobrestados até o
julgamento daquele.
Com a alteração: Art. 498. Quando o dispositivo do acórdão contiver julgamento por maioria de votos e julgamento unânime, e forem interpostos embargos infringentes, prazo para recurso extraordinário ou especial, relativamente ao julgamento unânime,
ficará sobrestado até a intimação da decisão nos embargos.
Parágrafo único: Quando não forem interpostos embargos infringentes, o prazo relativo à parte unânime da decisão, terá como
dia de início aquele em que transitar em julgado a decisão por
maioria de votos
Comentários:
Para firmarmos o entendimento acerca da modificação do referido dispositivo, necessário se faz o estabelecimento de algumas premissas. Primeiro o de que a
sentença apesar de ser formalmente única, poderá ser composta por várias decisões
ou por apenas uma, eis que a parte pode elaborar vários requerimentos em uma
mesma demanda.
Tal possibilidade de segmentação da decisão, enseja a possibilidade de parte
da demanda ser concedida por unanimidade da parte remanescente ser deferida
por maioria. Neste caso se verifica a possibilidade de necessidade de interposição simultânea55 de embargos infringentes (decisão não unânime) e recurso especial ou
extraordinário56, conforme o caso quanto a parte da decisão unânime.57
Pelo sistema anterior ao atual, os prazos fluíam simultaneamente para os embargos infringentes e para os recursos especial ou extraordinário. Ou seja eram processados os embargos infringentes e sobrestado o outro recurso (especial ou ex55 Vale lembrar que o Recurso Especial e o Extraordinário, somente são admitidos em se tratando de decisões proferidas em única ou última instância, motivo pelo qual muitas vezes é necessário a interposição simultânea de embargos infringentes e recurso especial ou extraordinário.
56 Em linhas gerais, a interposição de recurso especial dirigido ao STJ é possível quando a decisão recorrida: a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhe vigência; b) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face
de lei federal; c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal, respeitados os
demais requisitos de admissibilidade. Já o recurso extraordinário dirigido ao STF, somente será admitido quando a
decisão recorrida: a)contrariar dispositivo da Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c)julgar válida lei ou ato do governo local contestado em face da Constituição também respeitados os demais
requisitos de admissibilidade.
57 Arts.535 e 498 do CPC.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
291
traordinário), até que o primeiro fosse julgado.58 Com a alteração, sendo a decisão
passível de desmembramento, o prazo para a interposição dos recursos excepcionais não começa a correr até que julgados os embargos infringentes interpostos
tempestivamente.59 Assim seja o prazo só começa a fluir com a intimação do julgamento dos Embargos infringentes.
Não tendo a parte utilizado os embargos infringentes quanto a parte da decisão cabível, opera-se a preclusão e o prazo para a interposição dos recursos especial
ou extraordinário começa a correr no dia seguinte ao transito em julgado relativo a
preclusão (décimo sexto dia após a intimação do prazo para interposição do recurso) pela não interposição dos Embargos Infringentes.
Do Recurso de Agravo de Instrumento contra decisão denegatória
Art. 544 – Peças para a Instrução do agravo:
Como era: Art 544. (...)
§ 1° O gravo de instrumento será instruído com as peças apresentadas pelas partes, devendo constar, obrigatoriamente, sob pena de
não conhecimento, cópia do acórdão recorrido, da petição de interposição do recurso denegado, das contra-razões, da decisão
agravada, da certidão da respectiva intimação e das procurações
outorgadas aos advogados do agravante e do agravado.
§ 2° Distribuído e processado o agravo na forma regimental, o relator proferirá a decisão.
Com a alteração: Art. 544. (...)
§ 1° O agravo de instrumento será instruído com as peças apresentadas pelas partes, devendo constar obrigatoriamente, sob pena de
não conhecimento, cópias do acórdão recorrido, da certidão da
respectiva intimação, da petição de interposição do recurso denegado, das contra-razões, da decisão agravada, da certidão da respectiva intimação e das procurações outorgadas aos advogados
do agravante e do agravado. As cópias das peças do processo poderão ser declaradas autenticas pelo própria advogado, sob sua
responsabilidade pessoal.
58 Candido Rangel Dinamarco, ob. Citada, p. 211.
59 Wambier e Wambier, ob. Citada p. 127.
faculdade de direito de bauru
292
§ 2º A petição de agravo será dirigida a presidência do tribunal de
origem, não dependendo do pagamento de custas e despesas postais. O agravado será intimado, de imediato, para no prazo de 10
(dez) dias oferecer resposta, podendo instruí-las com cópias das
peças que entender conveniente. Em seguida, subirá o agravo ao
tribunal superior, onde será processado na forma regimental.
Comentários:
A explicitação dos documentos os quais devem instruir este tipo especial de
agravo, trata-se de uma forma de se buscar evitar decisões denegatórias de seguimento ao recurso, em razão de falta de pré-requisito formal, o qual vinha sendo exigido pelos Tribunais (jurisprudência), sem constar do texto legal. Tal posicionamento, certamente acarreta insegurança jurídica, expondo os operadores do direito
(leia-se advogados) a toda sorte de problemas, impedindo o acesso ao judiciário, e
comprometendo o exercício da boa técnica. Vale salientar a dificuldade enfrentada
pelos advogados, ao precisarem explicar para seus clientes que por uma “falha” procedimental, o recurso não será apreciado, podendo comprometer a análise do mérito. O mais lamentável, é que tais entendimentos firmaram-se, no transcorrer dos
processos coma exigência, reiteramos, sem previsão legal de ser requisito de admissibilidade do agravo interposto contra decisão denegatória a prova da tempestividade do recurso extraordinário ou especial - cópia de certidão ou intimação do acórdão recorrido. Foi realmente uma surpresa para a parte que se viu impedida de poder se proteger desta jurisprudência retroativa60. 61
Temos portanto nas palavras de Rogério Cruz e Tucci a expressão de toda a indignação: “ Intervindo com grande atraso e talvez sem mais qualquer necessidade,
a atual reforma introduz agora, no mesmo § 1° do art. 544 a exigência de certificação da intimação do acórdão recorrido.
Desnecessidade da autenticação de cópias: Tal exigência realmente não
corresponde ao espírito da reforma que busca a exclusão dos formalismos desnecessários, sendo a declaração de autenticidade prestada pelo advogado suficiente.
Entretanto é importante não olvidar-mos que o desrespeito a regra de boa-fé, acarreta logicamente a responsabilidade pessoal do patrono por eventual falsidade.
Procedimento e pagamento de custas e de porte: Estabelece a lei que o
recurso será dirigido diretamente a presidência do tribunal de origem, não dependendo do pagamento de custas e despesas postais. A verdade é que tal pagamento
já é efetuado quando da interposição do recurso extraordinário ou especial, motivo
60 Termo utilizado pelo professor Candido Rangel Dinamarco e José Rogério Cruz e Tucci, obras já citadas pp. 215
e 127.
61 Súmula 123 do STJ
Revista do instituto de pesquisas e estudos
293
pelo qual a modificação nos parece justa, uma vez que existia duplo pagamento,
quando previsto nas normas dos tribunais.
O agravado será intimado para em 10 (dez) dias contraminutar, prevendo então de modo explícito a possibilidade do contraditório, o que visa assegurar o devido processo legal. A parte poderá ainda querendo, instruir com documentos os
quais entenda necessário o recurso.
Da Uniformização de Jurisprudência de Ofício Por Interesse Público
Art. 555 – Novo procedimento:
Como era: Art 555. (...)
Art. 555. O julgamento da turma ou câmara será tomado pelo voto
de três juizes, seguindo-se ao do relator o do revisor e o do terceiro
juiz.
Parágrafo único. É facultado a qualquer juiz, que tiver assento na
turma ou câmara, pedir vista, por uma sessão, se não estiver habilitado a proferir imediatamente o seu voto.
Com a alteração: Art. 555
No julgamento de apelação ou de agravo, a decisão será tomada,
na câmara ou turma, pelo voto de 3 (três) juizes.
§ 1° Ocorrendo relevante questão de direito, que faça conveniente
prevenir ou compor divergência entre câmaras ou turmas do tribunal, poderá o relator propor seja o recurso julgado pelo órgão colegiado que o regimento indicar; reconhecendo o interesse público, na
assunção de competência, esse órgão colegiado julgará o recurso.
§ 2º A qualquer juiz integrante do órgão julgador é facultado pedir vista por uma sessão, se não estiver habilitado a imediatamente proferir seu voto.
Comentários:
Trata-se, nas palavras de Cândido Rangel Dinamarco de deslocamento do recurso, e não incidente procedimental como na uniformização de jurisprudência.
(art. 476 e ss.) Realmente parece que o professor tem razão, pois a característica da
uniformização de jurisprudência é que no incidente o Colegiado62 apenas firma um
62 A competência referente ao órgão colegiado, será delimitada de acordo com o Regimento Interno de cada Tribunal.
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294
entendimento, e, neste caso, efetivamente julga, tratando-se de um deslocamento
de competência.
Importante é a delimitação do que pode-se classificar como sendo questão jurídica relevante seriam os casos em que a solução pudesse transcender os interesses dos sujeitos em litígio, afetando valores relativos a vida social.63
Em que pese tratar-se de uma excelente ferramenta de efetividade, com vistas
inclusive a segurança jurídica, e bem-estar social, é de se observar a pouca utilização
de sua irmã próxima a uniformização de jurisprudência, o que nos faz questionar a
aplicação do novo procedimento pelo mesmo motivo, se não utiliza de uma, porque
utilizaria da outra?
Poderia se pensar em uma ab-rogação do instituto da uniformização de jurisprudência ante a ampla aplicabilidade da uniformização por interesse social, mas é
de se observar que o presente instrumento não pode ser utilizado pelas partes, as
quais ficam limitadas a requere-las. A decisão sobre a aplicação caberá tão somente
aos julgadores, que pela redação do artigo, poderão não buscar a uniformização, recusa esta a qual não poderá ser reformada por nenhum recurso.64
Conclusão:
Entendemos pelos muito breves comentários tecidos que a reforma veio com
um espirito de mudanças comprometido com a justiça do procedimento. É verdade
que muitas delas pretendem visivelmente restringir ao máximo o acesso do jurisdicionado aos tribunais, tanto por motivos de volume de trabalho, já que a evolução
do número de advogados, a ampliação do acesso ao judiciário com base em novos
instrumentos, bem como o desenvolvimento tecnológico, não são nem de perto
acompanhados pela evolução do número de juizes os quais são responsáveis pelo
julgamento dos processos! Bem não podemos ignorar que as condições de trabalho
dos cartórios que são no mínimo precárias.
Como resultado tivemos nos últimos anos um alargamento da base da pirâmide (advogados e pedidos), que em nada foi acompanhado pelo ápice da mesma (juizes e tecnologia). Temos praticamente o mesmo número de desembargadores que
a 20 anos atras. É lamentável o comprometimento do sistema em razão de tais deficiências estruturais, políticas e orçamentárias.
A verdade é que nosso sistema recursal em linhas gerais é adequado e que
todo o processo tem o seu tempo. Em todo o mundo a média de tempo despendida em um processo não é significativamente diferente daquela suportada no Brasil,
o que demonstra que trata-se de um problema conceitual – o processo para ser justo tem que oferecer as mesmas oportunidades e de forma igual para ambas as par63 Candido Rangel Dinamarco, ob. Já citada, p. 137.
64 Idem Ibidem
Revista do instituto de pesquisas e estudos
295
tes (devido processo legal processual/prestação jurisdicional célere). Além disso a
busca da verdade nunca deixou de ser tormentosa, sinuosa, difícil, ou como já disse Carlos Drumond de Andrade sobre a verdade:
“A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
(...)
BIBLIOGRAFIA
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TALAMINI, Eduardo, A nova disciplina do agravo e os princípios constitucionais
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TEIXEIRA Salvio de Figueiredo, A efetividade do processo e a reforma processual,
in Ajuris, v. 59
TUCCI José Rogério Cruz, Lineamentos da Nova Reforma do CPC, 2ª ed., RT, 2002,
WAMBIER, Luiz Rodrigues e Teresa Arruda Alvim Wambier, Breves Comentários à 2ª
fase da Reforma do Código de Processo Civil, RT, 2ª ed., 2002.
DA NATUREZA JURÍDICA DO ACRÉSCIMO
FINANCEIRO COBRADO NOS PARCELAMENTOS
DE ICMS NO ESTADO DE SÃO PAULO
Eduardo Amorim de Lima
Mestrando em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino em Bauru/SP e
advogado tributarista no Estado de São Paulo.
1.
INTRODUÇÃO
O Estado de São Paulo, ao conceder parcelamento de débitos para os seus
contribuintes, faz incidir, sobre o valor principal do imposto não pago, os seguintes
acréscimos: multa, juros de mora e acréscimo financeiro.
Esses acréscimos geram certa revolta para os contribuintes paulistas, pois os
mesmos vêem seus débitos duplicarem, principalmente por conta de taxas de juros
que se desbordam por completo de todos os parâmetros gizados em termos de custo do dinheiro no mercado.
Desde já, cumpre deixar assentado que a presente abordagem não tem a intenção de enfocar as vicissitudes que grassam a cobrança de juros de mora indexados pela taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia – SELIC , aplicável no âmbito estadual após a entrada em vigor da Lei Paulista nº 10.175/98,
que reproduziu, no âmbito estadual, as normas já articuladas na esfera federal desde 1995, com o advento da Lei nº 9.250 de 26 de dezembro de 1995.1
1 A propósito da impossibilidade de aplicação da taxa SELIC para fins tributários, ver decisão do Ministro Franciulli
Neto que, proficientemente, apontou dezenove óbices que corroboram referida impossíbilidade, (RE nº 215881/PR,
Rel. Min. Franciulli Neto, 2ª T., STJ, DJ de 03/04/2000).
faculdade de direito de bauru
298
O que será analisado, portanto, é a natureza jurídica de apenas um dos aditivos incidentes sobre o débito a parcelar, o acréscimo financeiro.
2.
BREVE ESCORÇO HISTÓRICO
Socorrendo-se do passado mais recente, a fim de não perder de vista a objetividade da abordagem proposta, pode-se afirmar que o acréscimo financeiro cobrado nos parcelamentos de débitos para com a Fazenda Estadual Paulista foi disciplinado, inicialmente, pelo Decreto nº 33.118, de 14/3/91. In verbis:
Artigo 636 - O débito fiscal será (Lei nº 6.374/89, art. 100):
I - quando apurado pelo Fisco:
a) se o procedimento fiscal não tiver sido julgado, o indicado na
notificação ou no auto de infração;
b) se o procedimento fiscal tiver sido julgado, o fixado na decisão
administrativa proferida até a data da protocolização do pedido
de parcelamento na repartição fiscal;
II - quando não apurado pelo Fisco, o denunciado pelo contribuinte;
III - quando inscrito na dívida ativa, o constante no termo de inscrição.
§ 1º - Ao valor do imposto, atualizado monetariamente, conforme
o caso:
1 - somar-se-á a multa prevista no artigo 592, atualizada monetariamente;
2 - somar-se-á a multa prevista no artigo 593, calculada sobre o imposto atualizado monetariamente;
3 - somar-se-ão os juros de mora previstos no artigo 630, calculados sobre o imposto atualizado monetariamente.
§ 2º - A atualização monetária do débito fiscal será calculada em
conformidade com o artigo 631, considerando-se o valor da UFESP
da data do deferimento do pedido de parcelamento e computando-se os juros de mora até esse mesmo dia, inclusive (Lei nº
6.374/89, arts. 100 e 109).
Artigo 637 - Consolidado o débito nos termos do artigo anterior, o
valor total e o de cada parcela serão expressos em UFESPs e sobre
eles incidirá o acréscimo financeiro, sempre superior ao praticado no
mercado, fixado por ato do Secretário da Fazenda (Lei nº 6.374/89,
art. 100, §§ 4º e 5º).
§ 1º - O acréscimo financeiro integrará o débito fiscal para efeito
deste capítulo.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
299
§ 2º - O valor da parcela mensal a recolher será obtido mediante
a multiplicação da quantidade determinada de UFESPs correspondente a essa parcela pelo valor da UFESP do dia do seu efetivo
recolhimento, somado ao acréscimo financeiro calculado até o
mês do recolhimento.
(grifou-se)
Sob a égide do RICMS então vigente, existia a Resolução SF nº 21/97, de
06/6/97, publicada no DOE de 07/6/97, que dispunha sobre o acréscimo financeiro
incidente em parcelamento de débito fiscal. In verbis:
Artigo 1º - O acréscimo financeiro de que trata o artigo 637 do Regulamento do ICMS, aprovado pelo Decreto nº 33.118, de 14.03.91,
incidente em parcelamentos de débitos fiscais, fica fixado em 1,8%
ao mês e será calculado com base na tabela de multiplicadores finais anexa, de nº 1.
Artigo 2º - Os parcelamentos em curso, com acordo celebrado ou
com acordo a celebrar, requeridos entre 05.03.96 até antes da data
de publicação desta Resolução, cujos carnês já tenham sido emitidos e cujas parcelas tenham sido calculadas com o custo financeiro de 2,5% ao mês, previsto na Resolução SF nº 13, de 04.03.96, terão suas parcelas vincendas recalculadas mediante a multiplicação do “valor total” de cada parcela pelo fator de redução constante da tabela anexa, de nº 2.
Verifica-se, portanto, que a consolidação do débito fiscal estadual implica
soma ao valor principal dos juros de mora e da multa. Por fim, sobre o resultado da
soma, incide o famigerado acréscimo financeiro.
O que pode ser aferido de plano, nesta breve retrospecção, é que o acréscimo financeiro foi da ordem de 2,5% ao mês, de março de 1996 até junho de
1997. A partir de então, foi reduzido para 1,8% ao mês, vigorando até janeiro de
2001, sendo que, a partir de tal data, foi utilizado pelo fisco a variação da TJLP
(taxa de juros de longo prazo) vigente no mês de pagamento, conforme previsto no artigo 3º da Resolução SF nº 27, de 14/7/00, publicada no DOE de
15/7/00.
3.
NATUREZA JURÍDICA DO ACRÉSCIMO FINANCEIRO
Ora, se o Código Tributário Nacional, em seu artigo 161, §1º autoriza apenas
e tão-somente a incidência de juros de mora à razão de 1% ao mês sobre o crédito
300
faculdade de direito de bauru
tributário, indaga-se: qual seria, então, a natureza jurídica do acréscimo financeiro em pauta?
A resposta parece ter sido dada pelo próprio legislador e corroborada pela Fazenda Estadual, quando da publicação do Decreto nº 44.971, de 19/6/00 e das Resoluções SF 27, de 14/7/00 e Resolução Conjunta SF/PGE-5, de 14/7/00, publicada no
DOE de 20/02/00, respectivamente, que regularam o chamado Refis paulista. Essas
normas, por si só, são suficientes para desvendar quaisquer dúvidas que pairassem
acerca da investigada natureza jurídica dos acréscimo financeiros. É o que se depreende da leitura dos dispositivos abaixo transcritos:
O §1º, do art. 4º, da Resolução Conjunta SF/PGE-5, de 14/7/00,
prescreve:
Art. 4º (...)
§1º Ao parcelamento submetido a ampliação nos termos do caput,
será aplicado o acréscimo financeiro equivalente à TJLP, nos termos
da Resolução SF nº 27, de 14.07.2000. (grifamos)
A Resolução SF 27, de 14/7/2000, por seu turno, determina:
Art. 1º O acréscimo financeiro, incidente nos parcelamento de que
trata o Decreto nº 44.971, de 19 de junho de 2000, fica fixado, para
as parcelas vincendas até janeiro de 2001, em 0,8542%, aplicável linear e mensalmente.
(...)
Art. 3º O acréscimo financeiro incidente nos parcelamentos de que
trata o Decreto nº 44.971, de 19.6.2000, a partir de fevereiro de
2001, que terá base a TJLP vigente no período, será publicado em janeiro de 2001. (grifou-se)
Ora, se a própria norma fazendária menciona que o acréscimo financeiro eqüivale à Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), aplicável linear e mensalmente, fica evidente que a natureza jurídica do mesmo nada mais é do que taxa de juros, sendo
irrelevante o fato de que a lei não faça expressa menção ao seu nomen juris como
taxa de juros. Havia, sim, previsão para cobrança de uma taxa fixa: 2,5%, posteriormente diminuída para 1,8%.
Assim, fica evidente, a todas as luzes, que a cobrança do acréscimo financeiro,
sobre um débito que sofre incidência de juros SELIC (inconstitucionalmente como
já visto) e multa de mora, é ilegal, por afrontar o artigo 161, §1º do CTN e incons-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
301
titucional por violar inúmeros dispositivos constitucionais e até mesmo cláusulas
pétreas como o direito à propriedade (art. 5º, caput e incisos XXII e LIV da CF/88).
Com efeito, com a cobrança abusiva retromencionada, o contribuinte está
perdendo seu patrimônio sem a observância do devido processo legal, o que é inconcebível e repudiante em nosso Estado democrático de direito.
Mas não é só. É necessário ressaltar que o indigitado acréscimo financeiro não
era cobrado linearmente dos contribuintes, mas sim de forma capitalizada, consubstanciando cobrança de juros composto, ou seja, exemplificativamente: 1,8% no primeiro mês, 1,03632 (1,018 x 1,018) no segundo mês, 1,0497 (1,036632 x 1,018) no
terceiro mês, 1,07392 (1,05497 x 1,018) no quarto mês e assim por diante.
A situação é perceptível prima facie, pela própria dicção do artigo 1º da Resolução SF 27, de 14/7/00, que determinou a incidência linear do acréscimo financeiro, diferentemente da forma até então cobrada, qual seja, a capitalizada.
Por derradeiro, vale destacar que o acréscimo financeiro corresponde à taxa
de juros sempre superior ao praticado no mercado, conforme estabelecido pelo
inconstitucional art. 637 do Decreto Estadual nº 33.118/91, já transcrito.
Essa peculiaridade do acréscimo financeiro afronta, outrossim, o princípio da
igualdade, diante da aberrante situação criada: o investidor financeiro é tratado com
mais privilégio do que um contribuinte.
4.
DO ANATOCISMO
Note-se que, no caso do acréscimo financeiro, o contribuinte sequer é equiparado a um aplicador financeiro (como ocorre inconstitucionalmente com a SELIC): ele é
posto num patamar inferior, pois sofre a incidência de juros ainda maiores.
Portanto, não há como admitir a constitucionalidade do acréscimo financeiro,
pois, por todos os prismas que se analise a questão, outra não é a conclusão, se não
a existência do tão condenado anatocismo, que é a capitalização dos juros de uma
importância emprestada, o que é ilegal.
Isto porque, a cobrança do acréscimo financeiro proporciona enriquecimento ilícito para o Fisco, em detrimento do contribuinte, pois tal cobrança, excessivamente onerosa, não se coaduna com a lei.
Destaca-se que é princípio de direito universal dos países civilizados que ninguém pode enriquecer sem causa legítima ou se locupletar às custas do prejuízo ou
sacrifício de outrem.
O Direito, corolário do sobreprincípio da Justiça, não pode permitir tal relação,
absolutamente expúria, onde uma das partes é privilegiada e a outra sufocada, pois isto
seria negar o próprio Direito como regulador das relações entre os homens.
A cobrança dos juros exorbitantes, mês a mês, não está recepcionada no nosso ordenamento jurídico, que não aceita o fenômeno do anatocismo que, como já
dito, é a tão repudiada capitalização de juros. Confira-se:
302
faculdade de direito de bauru
O Código Comercial Pátrio vigente, em seu artigo 253, dispõe que:
É proibido contar juros de juros; esta proibição não compreende a
acumulação de juros vencidos aos saldos liquidados em conta corrente de ano a ano.
Percebe-se, ainda, que não pairam dúvidas quanto ao entendimento jurisprudencial da proibição da cobrança de juros sobre juros, dito anatocismo, tanto pelos Tribunais como pelo próprio Supremo Tribunal Federal, conforme verse-á a seguir:
(...) A capitalização de juros persiste obstada pela Lei e por orientação jurisprudencial. Vigência da Súmula 121 do STF. Óbice ao
anatocismo emergente também da exegese do art. 192, § 3, da
Const. Federal. Não pode ser subtraída do devedor oportunidade
de verificar se há ou não propósito de cobrança de juros capitalizados. Direito de ampla defesa (art. 5, lV, da Constituição Federal).
(Apelação nº 189.107.261, Rel. Vanir Perin - Tribunal de Alçada do Rio
Grande do Sul - 5ª Câmara)
A mencionada Súmula 121 do Supremo Tribunal Federal determina que a capitalização mensal dos juros, mesmo quando convencionada e independente de
quem seja o credor, é inadmissível.
Nesse sentido, não é demais transcrever o entendimento do Colendo Superior Tribunal de Justiça:
Direito Privado - Juros - ANATOCISMO - vedação incidente também
sobre as instituições financeiras. Exegese do Enunciado 121, em
face de nº 596, ambos da SÚMULA DO STF. Precedentes da Excelsa
Corte. A capitalização de juros (juros de juros) é vedada pelo nosso direito, mesmo quando expressamente convencionada, não tendo sido revogada a regra do artigo 4º do Decreto nº 22.626/93 pela
Lei nº 4.595/64. O anatocismo repudiado pelo verbete nº 121 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, não guarda relação com o
Enunciado nº 596, da mesma Súmula.
(STJ - 4ª Turma - Recurso Especial nº 1.285 - GO - Relator Ministro
Sálvio de Figueiredo Teixeira - julgamento 14/11/89 v.u. - DJU de
11/12/89, p. 18141)
Revista do instituto de pesquisas e estudos
303
Pelas razões expostas, está evidenciado que existe um efetivo aumento de tributo, sem qualquer base legal, tornando, dessa forma, ilegal a exigência tributária
denominada acréscimo financeiro.
5.
DA LIMITAÇÃO DOS JUROS AO PATAMAR DE 1% AO MÊS
O art. 161, §1º do Código Tributário Nacional expressamente prescreve que se
a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora são calculados à taxa de 1%
ao mês. Este é, portanto, o teto estabelecido pelo CTN, em atendimento ao artigo
146, III, b da Lei Maior.
Com efeito, os juros estão relacionados intimamente com o tema crédito tributário, sendo, por conseguinte, matéria apreciável por norma geral de direito tributário (que atualmente é o CTN).
Nessa linha de raciocínio, conclui-se que é vedada a aplicação de juros superiores ao de 1% ao mês, como determina o mencionado artigo 161, §1º do CTN.
6.
CONCLUSÕES
1ª. Sobre o débito a parcelar junto ao Fisco paulista, após a incidência de juros de mora (SELIC) e multa, incide o acréscimo financeiro.
2ª. O acréscimo financeiro tem natureza jurídica de taxa de juros, que foi cobrada de forma capitalizada e, posteriormente, de forma linear.
3ª. A cobrança do acréscimo financeiro viola o artigo 161, §1º do CTN, o artigo 5º, caput, e incisos XXII e LIV da CF/88.
4ª. A cobrança do acréscimo financeiro representa anatocismo, pois sobre o
débito a parcelar já incide juros de mora indexados pela inconstitucional taxa SELIC.
5ª. Os juros cobrados nos parcelamentos de ICMS devem sujeitar-se ao limite
máximo de 1%, a teor do que dispõe o art. 161, §1º do CTN.
RESUMO
Aborda-se a questão da impossibilidade de aplicação de acréscimos financeiros aos parcelamentos de ICMS no Estado de São Paulo, haja vista que os mesmos
têm natureza jurídica de juros de mora. Assim, não poderiam ser cobrados em conjunto com os juros indexados pela taxa SELIC, pois tal cobrança configura anatocismo, que é vedado no direito brasileiro.
AUTORIZAÇÃO
Autorizo a publicação na RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos da
Instituição Toledo de Ensino de Bauru - do artigo de minha autoria, intitulado DA
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NATUREZA JURÍDICA DO ACRÉSCIMO FINANCEIRO COBRADO NOS PARCELAMENTOS DE ICMS NO ESTADO DE SÃO PAULO, sem qualquer ônus para a revista
ou para a Instituição Educacional.
São Paulo, 19 de setembro de 2002.
MEIO AMBIENTE E CIDADANIA
Luís Paulo Sirvinskas
Promotor de Justiça Criminal em São Paulo.
Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Especialista em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FADUSP) e
em Interesses Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público (ESMP).
Professor Associado de Direito Ambiental na Universidade Cidade de São Paulo (UNICID).
Autor dos livros Tutela penal do meio ambiente e Manual de direito ambiental,
ambos da editora Saraiva, edições 2002.
Não há dúvidas de que o maior desafio da humanidade neste século é a proteção do meio ambiente. É a preservação de nosso habitat para a melhoria da qualidade de vida desta e das futuras gerações. Essa responsabilidade tem por escopo
proporcionar às futuras gerações a mesma qualidade de vida que temos hoje. No entanto, a vida nos grandes centros urbanos está ficando cada vez mais difícil, porque
não estamos conseguindo conciliar a preservação do meio ambiente com o desenvolvimento sócio-econômico.
Preocupados com a preservação do meio ambiente é que as Nações Unidas
convocou a reunião na Cúpula da Terra, em Johannesburgo, na África do Sul, para
se discutir os principais problemas que afligem o mundo, como um todo, e as grandes cidades, em particular. Estiveram presentes cento e noventa e um representantes dos diversos países do mundo para discutir os mais variados problemas ambientais em comissões ou subcomissões como se fosse uma torre de babel. Vários países tentaram impor suas posições, apresentando propostas e metas para a implementação de medidas importantes para as diversas questões levantadas. Essa megareunião pretendia, em uma semana, estabelecer metas para resolver questões arrai-
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gadas durante décadas do seio da sociedade industrializada. Tal reunião não conseguiu atingir seu objetivo, especialmente porque os EUA estavam ausentes da reunião. Os EUA, além de se recusarem em aderir ao Protocolo de Kioto, estão mais
preocupados com a derrubada do regime ditatorial de Sadam Hussein no Iraque.
Como podemos ver, essas mega-reuniões já não são mais produtivas. Há a necessidade de reuniões setoriais para tentar apresentar soluções adequadas para as
questões mais graves. São esses problemas setoriais que repercutem mais decididamente na esfera do planeta. Devemos resolver as questões setoriais olhando para o
todo (fase holística). Devemos analisar as questões como um todo, pois, só assim,
estaremos preservando o meio ambiente. Devemos tentar encontrar soluções setoriais e efetivas para evitar o desmatamento, as queimadas, a extinção das espécies
animais e vegetais, a poluição atmosférica, a alteração do clima, a desertificação, a
erosão do solo, a escassez da água, a pobreza etc.
É o exercício efetivo da cidadania que poderá resolver parte desses grandes
problemas mundiais através da ética ambiental transmitida pela educação ambiental. Para se entender as causas da degradação ambiental é necessário compreender
os problemas sócio-econômicos e político-culturais e partir desses conhecimentos
poderemos então tentar alterar as atitudes comportamentais das pessoas na sua fase
inicial por meio uma ética ambiental adequada.
O primeiro passo foi dado com a regulamentação do art. 225, § 1o, VI, da CF,
pela Lei n. 9.795, de 27 de abril de 1999, que dispôs sobre a educação ambiental e
instituiu a Política Nacional de Educação Ambiental. Essa lei, por sua vez, foi regulamentada pelo Decreto n. 4.281, de 25 de junho de 2002. Assim, incumbe ao Poder
Público “promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente”. Entende-se por educação ambiental “os processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constróem valores sociais, conhecimento, habilidades, atitudes e competências voltadas
para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade” (art. 1o, da Lei n. 9.795, de 27 de abril
de 1999). A educação ambiental será promovida em todos os níveis, abrangendo: a)
educação básica (educação infantil e ensinos fundamental e médio); b) educação
superior; c) educação especial; d) educação profissional; e e) educação de jovens
e adultos. A dimensão ambiental deve constar também dos currículos de formação
de professores, em todos os níveis e em todas as disciplinas. A autorização e supervisão do funcionamento de instituições de ensino e de seus cursos, nas redes pública e privada, deverão observar o cumprimento das exigências contidas nos arts. 10
e 11 da Lei n. 9.795/99.
Compreende-se por sustentabilidade a conciliação de duas situações aparentemente antagônicas, de um lado, temos a necessidade da preservação do meio ambiente e, de outro, a necessidade de incentivar o desenvolvimento sócio-econômico. Essa conciliação será possível com a utilização racional dos recursos naturais
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sem, contudo, causar poluição ao meio ambiente (art. 225, CF – Capítulo: do meio
ambiente e art. 170, VI, da CF – Capítulo: dos princípios gerais da atividade econômica). Ressalte-se ainda que a República Federativa do Brasil tem por objetivo: a)
construir uma sociedade livre, justa e solidária; b) garantir o desenvolvimento nacional; c) erradicar a pobreza e a marginalização e diminuir as desigualdades sociais e
regionais; e d) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3o, I, II, III e IV, da CF).
Para que o cidadão possa ter uma vida digna (art. 170, caput, da CF) e uma sadia
qualidade de vida (art. 225, caput, da CF) é necessária garantir a ele o direito à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, à
proteção à maternidade e à infância, à assistência aos desamparados (art. 6o, caput,
da CF). Referido dispositivo fixa, assim, os direitos que devem ser assegurados pelo
Estado aos seus cidadãos para que eles possam ter uma sadia qualidade de vida.
A educação ambiental deve estar fundamentada na ética ambiental. Entendese por ética ambiental o estudo dos juízos de valor da conduta humana em relação
ao meio ambiente. É, em outras palavras, a compreensão que homem tem da necessidade de preservar ou conservar os recursos naturais essenciais a perpetuação de
todas as espécies de vida existentes no planeta Terra. Essa compreensão está relacionada com a modificação das condições físicas, químicas e biológicas do meio ambiente ocasionada pela intervenção de atividades comunitárias e industriais, que
pode colocar em risco todas as formas de vida do planeta. O risco da extinção de todas as formas de vida deve ser uma das preocupações do estudo da ética ambiental.
Para que a Terra possa prosseguir seu caminho natural, é necessária a construção de uma nova ética voltada ao futuro, buscando uma visão global e transcendental. A ética ambiental está amparada pela Constituição Federal, ao consignar que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum
do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo e para as presentes e futuras gerações
(art. 225, caput, da CF).
Vê-se, pois, que esta ética deve ser buscada através da consciência ecológica
fundamentada na educação ambiental. É o exercício efetivo da cidadania que irá proporcionar a melhoria da qualidade de vida do ser humano nos grandes centros urbanos.
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pareceres
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IPTU: POR OFENSA A CLÁUSULAS PÉTREAS, A
PROGRESSIVIDADE PREVISTA NA EMENDA
Nº 29/2000 É INCONSTITUCIONAL
Ives Gandra da Silva Martins
Professor Emérito da Universidade Mackenzie, em cuja Faculdade de Direito foi
Titular de Direito Econômico e de Direito Constitucional.
Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio e
do Centro de Extensão Universitário - CEU
Aires F. Barreto
Professor no Curso de Especialização em Direito Tributário da PUC/SP,
Professor no Curso de Especialização em Direito Tributário no Centro de Extensão Universitária-SP.
Professor no Curso de Especialização promovido pelo IBET Instituto Brasileiro de Estudos Tributários.
I.
PREMISSAS NECESSÁRIAS.
O deslinde das questões postas pela Consulente exige que, previamente,
sejam relembradas noções relativas (a) ao princípio da legalidade, (b) ao princípio da igualdade e da capacidade contributiva, (c) à progressividade tributária,
(d) à classificação dos impostos em pessoais e reais, (e) ao poder constituinte
originário e ao poder derivado, e (f ) às cláusulas constitucionais pétreas. Diante das condicionantes jurídicas regentes da matéria, serão analisados os aspectos de progressividade pertinentes ao IPTU, para, finalmente, chegar às conclusões que permitam resposta, fundamentada, ao quesito que nos foi, objetivamente, formulado.
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I.1. O princípio da legalidade tributária
O princípio constitucional da legalidade tributária é inderrogável. Foi posto, não só
em termos genéricos, pelo inciso II do art. 5o, do Texto Constitucional, como — especificamente para a matéria tributária — no inciso I do art. 150, o que o erige em
direito individual, absolutamente insuperável, até mesmo pelo legislador. Todo cidadão tem direito público subjetivo a exigir que só a lei (ato formal e material do Poder Legislativo) crie ou aumente tributos. A clareza e incisividade desses preceitos
constitucionais fá-los peremptórios; sua reiteração, de modo patente e categórico,
torna a Constituição brasileira a única no mundo que reforça a legalidade de modo
tão eloqüentemente enfático.
O insigne constitucionalista Josaphat Marinho sublinha seu cunho essencial
(in: RD Tributário 27-28/15): “No campo do Direito Tributário é dispensável retraçar a importância do princípio de legalidade, dado que sob a guarda dele se preservam direitos essenciais de pessoas físicas e jurídicas”.
Baleeiro, dando destaque ao princípio da legalidade, evidencia a incontornável necessidade de lei ordinária para satisfazer as exigências constitucionais tributárias (in: Direito Tributário Brasileiro, 10a ed., p. 405). Tão cediços são seu
conteúdo e alcance que até o CTN os explicita com clareza didática e tom dogmático, dispondo:
“Art. 97. Somente a lei pode estabelecer (…) III – a definição do
fato gerador da obrigação tributária principal (…) e do seu sujeito passivo; IV – a fixação da alíquota do tributo e da sua base de
cálculo (…)”.
Aliás, parece muito clara a implicação do princípio da legalidade, no sentido
de que só a lei pode dispor sobre o sujeito passivo da obrigação tributária (art. 97,
III, do CTN), seja estabelecendo quem deve (naturalmente) revestir-se dessa qualidade — por sua natureza de agente provocante do fato imponível —, seja para o efeito de substituí-lo por qualquer outra pessoa, segundo as várias modalidades de responsabilidade tributária que a doutrina aponta. De qualquer maneira, sem lei expressa não há possibilidade de nenhuma disposição a respeito da sujeição passiva
tributária.
O princípio da legalidade é uma das vigas mestras de nosso ordenamento jurídico e garantia constitucional de que a própria Constituição Federal não seja malferida pelo constituinte derivado, igualmente submetido à obediência à segurança
jurídica proporcionada pelas cláusulas pétreas, como já assim se dissertou:
“A sua significação é dúplice. De um lado representa o marco
avançado do Estado de Direito que procura jugular os comporta-
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mentos quer individuais, quer dos órgãos estatais, às normas jurídicas das quais as leis são a suprema expressão. Nesse sentido, o
princípio da legalidade é de transcendental importância para vincar as distinções entre o Estado constitucional e o absolutista, este
último de antes da Revolução Francesa. Aqui havia lugar para o
arbítrio. Com o primado da lei cessa o privilégio da vontade caprichosa do detentor do poder em benefício da lei que presume ser a
expressão da vontade coletiva.
“De outro lado, o princípio da legalidade garante o particular
contra os possíveis desmandos do Executivo e do próprio Judiciário. Instaura-se, em conseqüência, uma mecânica entre os Poderes
do Estado, da qual resulta ser lícito apenas a um deles, qual seja,
o Legislativo, obrigar os particulares.
“Os demais atuam as suas competências dentro dos parâmetros fixados pela lei. A obediência suprema dos particulares, pois, é para
com o Legislativo. Os outros, o Executivo e o Judiciário, só compelem na medida em que atuam a vontade da lei. Não podem, contudo, impor ao indivíduo deveres ou obrigações ex novo, é dizer,
calcados na sua exclusiva autoridade.
“No fundo, portanto, o princípio da legalidade mais se aproxima de uma garantia constitucional do que de um direito individual, já que ele não tutela, especificamente, um bem da vida,
mas assegura, ao particular, a prerrogativa de repelir as injunções que lhe sejam impostas por uma outra via que não seja a
da lei.”1
Na esteira da citação suso, com o primado das cláusulas pétreas, portanto, cessa o privilégio da vontade caprichosa do detentor do poder constituinte derivado,
que deve ater-se à blindagem da segurança jurídica proporcionada ao cidadão pela
Carta Magna de 1988 em sua origem.
I.2. Igualdade e capacidade contributiva
Complementando a citação acima, registre-se que a obediência suprema dos
particulares é para com o Legislativo, porém este Poder é vassalo do supremo Poder, que, em nome do povo, é a Constituição Federal.
A Constituição é a expressão da soberania nacional, a vontade normativa política do povo, elaborada e promulgada por meio de representantes legitimados a
1 Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, Comentários à Constituição do Brasil, 2v, São Paulo: Saraiva, 1989, p.
23.
2 Cf. Sahid Maluf, Direito Constitucional, São Paulo: Sugestões Literárias, 1968, p.
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tanto, a Assembléia Constituinte.2
O constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho ensina que a Constituição é fruto de um poder distinto dos que estabelece, o Poder Constituinte, fonte da
Carta Magna e, portanto, dos poderes constituídos, esclarecendo, como se segue
(in: Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Saraiva, 1967, p. 17):
“O reconhecimento de um poder capaz de estabelecer as regras
constitucionais, diverso do de estabelecer regras segundo a constituição, é desde que se pretenda serem aquelas superiores a estas,
uma exigência lógica. A superioridade daquelas, que se impõe aos
próprios órgãos do Estado, deriva de terem uma origem distinta,
provindo de um poder que é fonte de todos os demais, pois é o que
constitui o Estado, estabelecendo seus poderes, atribuindo-lhes e limitando-lhes a competência.
(…)
“Quando esse poder edita a Constituição, onde esta não existia sob
a forma escrita, ou em desacordo com a Constituição escrita que
vigorava até a promulgação da nova, diz-se que ele é originário.
Quando, todavia, apenas se operam modificações em seu texto, o
Poder Constituinte que aí se manifesta é chamado de instituído, ou
derivado. Isto porque, sendo ele instituído pelo Poder Constituinte
originário sua autoridade deriva da que tem este.”
No Estado de Direito, todos devem submeter-se às regras constitucionais,
não escapando o aplicador e o criador da lei dos ditames da Norma Maior, a eles
submetidos, não só pela existência de cláusulas pétreas (CF, art. 60), mas, também, pela prevalência do princípio da igualdade, como deflui do texto subseqüente:
“Esse princípio implica, em primeiro lugar, que, diante da lei “x”,
toda e qualquer pessoa que se enquadre na hipótese legalmente
descrita ficará sujeita ao mandamento legal. Não há pessoas “diferentes” que possam, sob tal pretexto, escapar do comando legal, ou
ser dele excluídas. Até aí, o princípio da igualdade está dirigido ao
aplicador da lei, significando que este não pode diferenciar as pessoas, para efeito de ora submetê-las, ora não, ao mandamento legal (assim como não se lhe faculta diversificá-las, para o fim de
ora reconhecer-lhes, ora não, benefício outorgado pela lei. Em re-
3 Luciano Amaro, Direito Tributário Brasileiro, 7.ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 132.
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sumo, todos são iguais perante a lei.”3
Assim como a Lei de Introdução ao Código Civil transcende o seu campo para
reger, introdutoriamente, o Direito — e não apenas o Direito Civil — a isonomia deixou de ser um complemento assegurador do princípio da legalidade para, nos tempos atuais no sistema jurídico brasileiro, constituir-se em garante contra toda e qualquer má utilização que possa ser feita da ordem jurídica,4 representando intransponível obstáculo para que, por exemplo, não se atente contra o princípio de respeito
à capacidade contributiva.
O princípio da isonomia é estrutural e formal do direito tributário, de molde
a respeitar-se a capacidade contributiva e obter-se justiça fiscal, ou, nas palavras de
um dos pareceristas:
“O princípio da isonomia é maculado sempre que dois empreendimentos idênticos passam a ter incidências tributárias distintas, mas se
compõe na força maior de conjunção dos dois primeiros princípios,
pois nem a capacidade contributiva do mais onerado é atingida pelo
encargo acrescido, por pressupor maior potencialidade de suporte,
nem a redistribuição de riquezas deixa de se fazer, pela incidência menor, a justificar a procura do desenvolvimento pretendido.”5
A Constituição Federal, objetivando alcançar a justiça social, postulado dos
ideais republicanos, determina a aplicação do princípio da isonomia e o respeito à
4 Oportuna a orientação proporcionada pelo seguinte excerto (in: Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, Comentários à Constituição do Brasil, 2v, São Paulo: Saraiva, 1989, p. 13):
“Nesse particular, o princípio da igualdade mantém conexão com a generalidade que outrora, com mais rigor
do que hoje, se exigia da lei.
“Esta haveria de ser igual para todos. E em função desta igualdade é que resultava a garantia fornecida pela
lei. Tratando de igual forma todos que estivessem em idêntica situação, a lei prevenia o cidadão contra o arbítrio e a discriminação infundada.
“O atual artigo isonômico teve trasladada a sua topografia. Deixou de ser um direito individual tratado tecnicamente como os demais. Passou a encabeçar a lista destes direitos, que foram transformados em parágrafos do
artigo igualizador.
“Esta transformação é prenhe de significação. Com efeito, reconheceu-se à igualdade o papel que ela cumpre na
ordem jurídica.
“Na verdade, a sua função é a de um verdadeiro princípio a informar e a condicionar todo o restante do direito. É como se tivesse dito: assegura-se o direito de liberdade de expressão do pensamento, respeitada a igual de
todos perante este direito.
“Portanto, a igualdade não assegura nenhuma situação jurídica específica, mas na verdade garante o indivíduo contra toda má utilização que possa ser feita da ordem jurídica.
“A igualdade é, portanto, o mais vasto dos princípios constitucionais, não se vendo recanto onde ela não seja
impositiva.”
5 Ives Gandra da Silva Martins, Teoria da Imposição Tributária, São Paulo: Saraiva, 1983, p. 38.
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capacidade contributiva dos contribuintes.
Nessa conformidade, a Carta Magna de 1988, no art. 145, § 1o, e no art. 150, II,
ilumina dois direitos fundamentais (e cláusulas pétreas), obrigando o constituinte
derivado e o legislador ordinário à observância quanto à capacidade contributiva e
ao princípio da igualdade.
Para não macular direitos fundamentais do sujeito passivo, deve haver respeito à sua capacidade contributiva. Ora, a progressividade fundada em valor venal do
imóvel não reflete a efetiva condição econômica do sujeito passivo, ferindo a sua
real capacidade contributiva.
A capacidade contributiva do contribuinte deve ser aferida em termos subjetivos, considerando a pessoa do sujeito passivo e não o fato objetivo tributário, ou
seja, deve-se buscar, como determina a CF, art. 145, § 1o, a revelação da aptidão concreta de alguém para suportar a carga tributária.Desrespeitada a capacidade contributiva do sujeito passivo na aplicação de alíquotas tributárias progressivas conduz a
um exercício abusivo e injusto por parte do Fisco, tendente a configurar uma atividade estatal confiscatória.
Esse mesmo insensato procedimento de desconsiderar a capacidade contributiva acaba ofendendo também o princípio da igualdade, pois discriminará indevidamente contribuintes que possam estar em idêntica situação ou, ainda, gerar indevidos privilégios, por levar em consideração o valor isolado de unidades imobiliárias,
que, para uns, pode ser o único patrimônio, mas, para outros, pode ser apenas um
minúsculo componente percentual.
A aplicação da progressividade a impostos de natureza fiscal fundamenta-se
em mera presunção de capacidade contributiva, dissociada da realidade, ofendendo
os princípios da isonomia e da capacidade contributiva, podendo conduzir a tratamento tributário de caráter confiscatório.
Destarte, para a hipótese de IPTU, a lei ordinária municipal — para ser editada em consonância aos princípios e normas constitucionais —, para efetivamente
responder positivamente aos princípios da legalidade, da igualdade e do respeito à
capacidade contributiva, como se demonstrará infra, só pode prever a progressividade tributária no tempo.
A norma que se pretenda introduzir à Lei das Leis por meio de emenda constitucional só ingressa, efetivamente, no sistema se obedecidos os princípios prévia
e originariamente existentes, para não padecer de vício de ilegalidade máxima — a
inconstitucionalidade — e dele ser extirpada pelo seu guardião, o Excelso Pretório,
restando inconstitucionais as suas consectárias ordinárias.
I.3. Aplicação do princípio da progressividade
Dentre as diretrizes que norteiam o sistema constitucional no âmbito tributário,
guardam especial relevo os princípios da igualdade e o da capacidade contributiva.
Voga de toada que o exame entrelaçado e harmônico desses vetores implica a
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conclusão inexorável de que todos os impostos têm que ser progressivos.
Como exposto por um dos signatários deste no I Congresso Internacional de
Direito Tributário promovido pelo IBET – Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, a progressividade atuaria como desdobramento necessário e geral dos dois
princípios suso referidos, não podendo, pois, com eles restar incompatível.6
Alguns doutrinadores pugnaram que a realização da isonomia e a observância
à capacidade econômica só poderiam dar-se em face de impostos impregnados pelo
timbre de progressividade.
Exame sistemático da Constituição aponta, todavia, rumo diverso. Deveras, visão conjugada do sistema indica que a diretriz decorrente dos princípios da capacidade econômica e da isonomia subordina a criação de tributos à proporcionalidade
(e não à progressividade). É dizer: o sistema constitucional tributário é genericamente formado pelo princípio da proporcionalidade (especialmente dos impostos)
e só especificamente pelo princípio da progressividade.
A Constituição satisfez-se com o exigir que os tributos fossem proporcionais,
vedando pois — como demonstra Paulo de Barros Carvalho, nas excelentes lições de
seu “Curso de Direito Tributário”, Saraiva, 9ª ed., São Paulo, 1997, pág. 217 — a criação de tributo fixo. Apenas em alguns casos, expressamente contemplados, a Magna Carta previu fossem progressivos. Estabeleceu como princípio geral o da proporcionalidade e como princípio específico o da progressividade.
Prevalecendo esse entendimento, segue-se que a progressão das alíquotas dos
impostos não é admitida pela Constituição de 1988, senão nos casos expressamente especificados. Os princípios e normas constitucionais impõem essa conclusão. A
mens legis, independentemente de qual tenha sido o propósito do legislador, somente permite interpretação nesse sentido.
Proficientemente, ensina o mestre Geraldo Ataliba que “o objeto do estudo dos
juristas não são as intenções do legislador, mas sim a norma que ele põe (direito positivo, posto). E a interpretação da norma há de ser feita em harmonia com o sistema de
direito positivo que ela integra e não em função das episódicas e subjetivas — e, no mais
das vezes, insondáveis — intenções dos exercentes da função legisladora. Nessa premissa básica repousa a segurança jurídica, que tem por base a generalidade e a impessoalidade (art. 5º, I e II, da Constituição de 1988) das normas do Direito”.
O trabalho interpretativo, para ter foros de objetividade e respaldo científico,
há de, necessariamente, partir do estudo sistemático da ordenação jurídica tal como
posta, o que implica analisar cada norma não isoladamente, mas considerando as
inafastáveis influências recíprocas entre as normas jurídicas que coexistem e compõem essa ordenação.
Especificamente quanto ao tema da progressividade, é preciso, antes de tudo,
6 Aires F. Barreto, “Aplicação do Princípio da Progressividade”, in Justiça Tributária, direitos do fisco e garantias dos
contribuintes nos atos da administração e do processo tributário, São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 37.
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afastar a apressada conclusão, no sentido de que o disposto no artigo 145, § 1º, da
Constituição Federal, ao impor a graduação dos impostos segundo a capacidade
econômica do contribuinte, possa justificar sua progressividade.
É necessário atentar para as mutações constitucionais, a fim de colher adequadamente o sentido, conteúdo e alcance dos mecanismos da graduação e da progressão dos tributos.
I.3.1.Diferença entre graduação e progressão
Versar o tema da progressividade exige, preliminarmente, se tenha presente
que, na Constituição de 1988, há radical diferença entre graduação e progressão
dos impostos.7
I.3.1.1. Graduação
A graduação dos impostos decorre de sua proporcionalidade em relação
à base tributável (imposto ad valorem). Essa proporcionalidade é, como sabido,
obtida pela aplicação de uma alíquota única sobre base tributável variável; da
aplicação desse mecanismo (graduação) resulta imposto a pagar em montantes
tanto maiores quanto maior for a base tributável. Pela graduação, portanto, é
que se realiza o princípio da capacidade contributiva, que, em síntese, postula
que o desembolso de cada qual seja proporcional à grandeza da expressão econômica do fato tributado.
É exigência, pois, do princípio da capacidade contributiva que todo e qualquer imposto seja ad valorem, vedando, a contrário sensu, a criação dos chamados impostos fixos.
A progressão, todavia, é matéria inteiramente diversa da simples graduação. A graduação e a progressão dos impostos distinguem-se radicalmente, pelos seus respectivos fundamentos e, às vezes, até pelas formas por que são operacionalizadas.
I.3.1.2. Progressão
Há progressão quando à elevação da matéria tributável, ou de elemento que
a componha, corresponde elevação da alíquota. Há, igualmente, progressão quando, à vista de certas finalidades extrafiscais que pretende alcançadas, a lei estatui a
progressiva majoração das alíquotas — independentemente da maior ou menor expressão econômica da matéria tributável — na medida em que o comportamento do
contribuinte impeça ou retarde o alcance daquela finalidade.
A progressividade opera-se pelo estabelecimento de alíquotas tanto maiores
quanto o forem os níveis de intensidade ou de grandeza de um específico fator ou
7 Cf. Aires F. Barreto, “Aplicação …”, cit., p. 38.
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aspecto do fato tributário.
A progressão, portanto, implica desigualação, na medida em que extrapassa a
mera graduação (proporcionalidade) e, conforme o fator de discriminação utilizado, desconsidera o princípio da capacidade contributiva.
Daí por que a progressividade somente pode ser legitimamente adotada: a)
em razão de critérios extrafiscais ou ordinatórios e b) se restrita às situações e formas previstas, expressamente, na Constituição Federal.
O fundamento da progressão, no sistema da Constituição de 1988, não é o
princípio da capacidade contributiva. Precisamente por isso, o texto constitucional
versou todos os casos em que ou a impõe ou a admite. Pouco importa se, em tese,
a progressividade é fiscal ou extrafiscal. Quer numa, quer noutra hipótese, a Constituição foi expressa. Ao invés de deixar sua utilização ao sabor das posições doutrinárias, quase sempre dissonantes, versou todas as situações em que admite, ou exige, que um imposto seja progressivo. Valeu-se, para tanto, de três caminhos:
a) dispôs direta e expressamente sobre a progressão:
a.1) exigindo-a, no caso do IR, ITR e IPI (cf., respectivamente, art. 153, § 2º, I;
153, § 4º e 153, § 3º, I;
a.2) facultando-a, no caso de ICMS e do IPTU (art. 155, § 2º, III; e, antes da
emenda 29/2000, art. 156, § 1º, respectivamente);
b) concedendo ampla liberdade ao legislador infraconstitucional, para instituí-la, de acordo com a natureza do tributo, no caso do II, IE, IGF e IOF (cf.
art. 153, § 1º);
c) implicitamente, vedando a progressão em todos os demais casos (ISTC,
IPVA, ITBI, ISS e impostos instituídos pela União com base na sua competência residual).
Nas hipóteses em que expressamente facultou a progressividade, definiu os limites da faculdade: o ICMS, só em razão da essencialidade; o IPTU, só no caso do §
1º do art. 156 — antes da emenda 29/2000 —, fixado no art. 182, § 4o.
Essa distinção entre graduação e progressão de alíquotas é relevante porque
a Constituição não tolera progressividade dos impostos, senão nos casos que autoriza. Supor diferentemente importaria tornar letra morta o dispositivo que exige seja
o IR progressivo (art. 153, § 2º, I) e também o que possibilita a progressão do IPTU,
no tempo (art. 156, § 1º, redação anterior à emenda 29/2000, combinado com o art.
182, § 4o). Estivesse a progressão abrangida no conceito de graduação e esse dispositivos reduzir-se-iam a singela sugestão de forma de progressividade; seriam, assim,
dispositivos inócuos, vazios, inúteis.
Em suma, há progressividade quando a lei discrimina o tratamento tributário:
a) estabelecendo alíquotas progressivamente mais elevadas em razão da
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maior grandeza da expressão econômica da matéria tributável; ou,
b) prescrevendo alíquotas tanto mais elevadas quanto mais o comportamento do contribuinte se distancie do atingimento de certa finalidade por ela (lei) visada, relacionada ao fato tributário.
I.4. Progressividade do IPTU
Assentado o sentido, conteúdo e alcance desses vários institutos já é possível
proceder ao exame da progressividade tomando como exemplo o IPTU, cuja progressividade, na Constituição de 1988, é facultada pelo § 1º, do artigo 156, na redação anterior à emenda 29/2000, combinada com o art. 182, § 4o, verbis:
“Art. 156. Compete aos Municípios instituir imposto sobre: I – propriedade predial e territorial urbana (omissis). § 1º - O imposto
previsto no inciso I poderá ser progressivo, nos termos de lei municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social da
propriedade”
“Art. 182. A política de desenvolvimento urbano (omissis).
§ 4o. É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos de lei
federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento,
sob pena, sucessivamente, de:
I – parcelamento ou edificação compulsórios;
II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III – (omissis).”
À primeira vista, parece que o Texto Constitucional de 1988 facultou, amplamente, a utilização do imposto com fins regulatórios, mediante o emprego da progressividade. Em outras palavras, num exame apressado, concluir-se-á que a Carta
Magna originária autoriza o emprego do tributo com funções extrafiscais, permitindo que as alíquotas sejam graduadas, de acordo com os critérios definidos em lei
municipal.
Embora não houvesse, na Constituição anterior, nenhuma referência expressa à progressividade, era entendida constitucional (e legítima) sua instituição por lei.
É que as únicas balizas postas pela Constituição anterior eram a proibição do confisco tributário e a preservação do direito de propriedade. Não ultrapassados esses limites, o imposto poderia ser progressivo, mediante a fixação de alíquotas crescentes em razão das variáveis de progressão eleitas pela lei municipal. A progressividade não afrontava a Constituição, desde que não implicasse negação do direito de
propriedade, nem atingisse as raias do confisco (Cf. Aires F. Barreto, “A Progressivi-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
321
dade do IPTU”, RDT n. 4).
Autorizada, assim, implicitamente, no sistema anterior, pode parecer, em primeira análise, que o § 1º do artigo 156, na redação originária, veio tornar expresso
o que era implícito, espancando dúvidas a respeito. Chegamos até a admitir a suposição de que tenha sido esse o intento do constituinte. Todavia, se assim o pretendeu, expressou-se em sentido diverso. A mens legis, portanto — qualquer que tenha
sido o propósito do legislador — não permite essa interpretação.
Não se perca de vista que o § 1º do artigo 156, antes da emenda 29/2000, não
previu, singelamente, a possibilidade de o imposto ser progressivo, nos termos de
lei municipal. Autorizou a progressividade, mas impôs-lhe restrição: “de forma a assegurar o cumprimento da função social de propriedade”. Em outros termos, o imposto poderá ser progressivo, quando essa progressão vise à asseguração do cumprimento da função social da propriedade. A progressividade deve ter por objetivo,
apenas e tão-só, o de servir como instrumento da mantença e do uso da propriedade, em consonância com a função social que lhe foi constitucionalmente atribuída.
Esse preceito não previu, singelamente, a possibilidade de o imposto ser progressivo, nos termos de lei municipal; autorizou a progressividade, mas impôs restrição ao seu emprego, ao eleger a finalidade à vista da qual esse mecanismo pode
ser legitimamente adotado: “assegurar o cumprimento da função social de propriedade”. Em outros termos, o imposto poderá ser progressivo, quando essa progressão vise a garantir o cumprimento da função social da propriedade.
Se o texto constitucional assim dispôs, foi para evitar eventuais abusos e coibir a fúria fiscal dos Municípios. Por isso, parece ser equivocado supor que a Constituição lhes tenha outorgado uma “carta em branco”. Tudo conduz para interpretação contrária: a de que a Constituição circunscreveu, clara e expressamente, as situações em que o imposto poderia ser progressivo. Ao invés de deixar a cargo do intérprete ou do aplicador da lei a formulação do conceito de asseguração do “cumprimento da função social da propriedade”, definiu seu sentido, conteúdo e alcance, ao dispor no artigo 182, sobre a política urbana.
Segundo a Constituição Federal, portanto, o emprego da progressividade tem
como pressuposto necessário o servir como instrumento da mantença e do uso da
propriedade, em consonância com a função social que o próprio Estatuto Supremo
impõe-lhe desempenhar, conforme ensina, com a proficiência costumeira, Celso Antonio Bandeira de Mello (in Revista de Direito Público 84/39).
A norma constitucional que disciplina a progressividade do imposto sobre a
propriedade imobiliária urbana, ao prescrever a finalidade à vista da qual o legislador ordinário está autorizado a instituí-la, não se limita a enunciá-la por meio de
conceito indeterminado, cujo conteúdo e extensão dependam da valoração do legislador ordinário, no instante da formulação da lei tributária.
A própria Constituição delimitou, diretamente, de modo claro, o conteúdo e
a extensão do conceito encerrado na expressão enunciativa da finalidade a que con-
322
faculdade de direito de bauru
dicionada a progressividade do imposto sobre a propriedade imobiliária urbana, ao
estabelecer, no seu artigo 182, § 2º, que “a propriedade urbana cumpre sua função
social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas
no plano diretor”...
A análise desse dispositivo evidencia que o texto constitucional classifica a
propriedade urbana em duas espécies, absolutamente distintas: a) a que não cumpre sua função social; e b) a que cumpre sua função social.
A Constituição Federal (art. 182, § 2º), visando a evitar veleidades na interpretação do conceito, preferiu não deixar à legislação infraconstitucional a definição
dos limites entre essas duas categorias, estabelecendo, diretamente:
a) não cumpre sua função social a propriedade urbana que não atende às exigências fundamentais de ordenação de cidade expressas no plano diretor;
b) inversamente, cumpre sua função social a propriedade urbana que atende
às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
Não ficou, assim, repita-se, a caracterização do cumprimento ou não da função social da propriedade ao alvedrio do legislador ordinário. A Constituição demarcou, claramente, as hipóteses em que a propriedade urbana deixa de cumprir sua
função social. Dispôs, sem margem a dúvida, sobre o critério extremador entre propriedades urbanas em descompasso com sua função social, daqueloutras com ela
ajustadas. Visando a esgotar a questão, remeteu à disciplina adrede fixada nos planos diretores; não só os impôs como mecanismo básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana, mas, sobretudo, como instrumento de definição das
exigências fundamentais de ordenação das cidades.
Por conseguinte, as normas sobre a progressividade do IPTU, dependem e estão condicionadas às exigências previstas na lei administrativa que estatui o plano diretor da cidade. Em suma, a Constituição Federal dispôs, sem margem a dúvida, sobre o critério diferenciador entre propriedades urbanas em descompasso com a função social que devem cumprir, das com ela ajustadas. Visando a harmonizar o tratamento jurídico da questão, condicionou o emprego da progressividade do imposto
sobre a propriedade imobiliária urbana à disciplina da lei administrativa que estabelece os planos diretores das cidades.
Impediu a Constituição Federal, dessa forma, que a caracterização do cumprimento, ou não, da função social da propriedade urbana, seja formulada para atender a objetivos meramente arrecadatórios, ou fixada em função das idiossincrasias ou das diversas
preferências subjetivas dos sucessivos exercentes do governo municipal.
Ao remeter a caracterização do que seja o “cumprimento da função social da
propriedade” imobiliária urbana, para efeitos do emprego da progressividade do
IPTU, às diretrizes e exigências da lei que institui o plano diretor da cidade, a Cons-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
323
tituição Federal:
a) vedou o preenchimento discricionário do conteúdo, sentido e alcance desse conceito pelo legislador ordinário, com vistas apenas a objetivos fiscais;
b) garantiu a uniformização dos conceitos normativos que delimitam o regime jurídico da propriedade imobiliária urbana, segundo critérios estáveis e
objetivos, porque extraídos das diretrizes de lei que define a política de desenvolvimento e de expansão urbana, estabelecendo, para tanto, as exigências fundamentais da ordenação das cidades.
Destarte, somente pelas normas da lei instituidora do plano diretor — cujos
objetivos, funções e alcance social são significativamente mais amplos que a lei tributária — é que poderão ser classificadas as propriedades imobiliárias urbanas entre
(a) as que cumprem sua função social e (b) as que não cumprem essa função. Convém lembrar que mesmo os Municípios que não estão obrigados a ter um Plano Diretor não estão impedidos de tê-lo.
A preservação da função social da propriedade — e só ela — justifica e juridiciza a
progressividade. Dito de outro modo, o pressuposto que autoriza o emprego da progressão das alíquotas é, apenas e tão-só, o uso da propriedade imobiliária em descompasso
com sua função social, segundo as normas da lei que estatui o plano diretor da cidade.
Disso resulta que a propriedade urbana que cumpre sua função social — nos
termos do parágrafo 2º do artigo 182 da Constituição Federal — jamais poderá ser
alvo de imposto progressivo, senão com afronta ao disposto no § 1º do artigo 156,
in fine, na redação originária, que não poderia ter sido alterado pela emenda
29/2000 sem ofensa a cláusulas pétreas.
A Constituição — assim como as leis que nela se fundam — deve ser interpretada sistematicamente. Ora, a interpretação sistemática do texto constitucional impõe a conclusão de que a progressão das alíquotas só tem respaldo constitucional
se e quando a propriedade não cumprir sua função social.
É inconstitucional a instituição de imposto progressivo para propriedades que
cumprem sua função social. É que, nesse caso, ter-se-á imposto progressivo, sem
que ocorra o pressuposto constitucionalmente previsto pela Constituição Federal
como condição de legitimidade da progressão qual seja o “assegurar a função social
da propriedade”, como exige explicitamente o § 1o do artigo 156, da Constituição de
1988, na redação originária.
Em face das normas constitucionais, é ilegítimo pretender imposto progressivo de propriedades que cumprem sua função social. É que, nesse caso, o imposto
seria progressivo, mas não progressivo “de forma a assegurar a função social da propriedade”, como exige o originário § 1º do artigo 156, da Constituição de 1988, que
deverá ser restaurado pelo Excelso Pretório, pelo vício existente na emenda
29/2000. Ter-se-ia uma progressividade qualquer — como a pretendida pela emenda
29/2000, de imposto progressivo em razão do valor do imóvel —, mas não aquela au-
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faculdade de direito de bauru
torizada pelo texto constitucional.
Como se vê, a Constituição Federal em sua promulgação originária circunscreveu, nitidamente, em que circunstância e à vista de que finalidade ao constituinte
derivado não é permitido — à vista de cláusulas pétreas — e o legislador ordinário
pode estabelecer alíquotas progressivas para o imposto sobre a propriedade predial
e territorial urbana.
A progressividade desse imposto somente se legitima se a propriedade não
cumprir sua função social, segundo as exigências do plano diretor da cidade, tal
como disciplina o artigo 182, da Constituição Federal.
Sobre a propriedade que cumpre sua função social não pode recair imposto
progressivo, pena de frontal desconsideração à Constituição Federal. Só a propriedade urbana que não cumpre sua função social poderá sujeitar-se a imposto progressivo, porque, só em relação a esta, a progressividade poderá atuar como mecanismo assecuratório dessa função.
A Constituição — assim como as leis que nela se fundam — deve ser interpretada sistematicamente, ensina Geraldo Ataliba (Cf. suas excelentes lições em “Hermenêutica e Sistema Constitucional Tributário”, in Interpretação no Direito Tributário”, Educ/Saraiva, 1975, págs. 13 e seguintes).
No mesmo sentido, os ensinamentos, igualmente preciosos, de Celso Antonio
Bandeira de Mello (in “Teoria Geral do Direito”, op. cit., págs. 3 e seguintes).
Ora, a interpretação sistemática do texto constitucional impõe a conclusão de
que a progressão das alíquotas só tem respaldo constitucional se e quando a propriedade não cumprir sua função social.
Nenhuma outra interpretação é possível, a não ser que se dê por inexistente,
vazia e inócua a cláusula final, pétrea, do § 1º do artigo 156, em sua redação originária, e de outros postulados constitucionais, como se verá infra.
A instituição de imposto progressivo, em qualquer caso, está balizada pelos limites previstos diretamente pela Constituição Federal e pelas regras estabelecidas
na lei administrativa que estatui o plano diretor da cidade, às quais o Texto Supremo vincula a lei tributária.
Isso não é insólito ao nosso sistema. Também a legislação tributária de taxas
apoia-se necessariamente (necessidade constitucionalmente estabelecida) na legislação administrativa.
A Constituição Federal pressupõe que a lei administrativa crie um serviço público, regule seu funcionamento e estabeleça como será prestado aos usuários para,
só então, em momento lógico posterior, a lei tributária instituir a taxa que o remunerará. Deveras, só após a previsão legal da entidade ou órgão que prestará o serviço público, dos caracteres de sua divisibilidade entre os usuários, do delineamento
de sua especificidade é possível à lei tributária definir os sujeitos, a base de cálculo,
a alíquota e demais aspectos do tributo taxa.
Por isso se diz que a lei tributária, nos casos de taxas, é legislação de superpo-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
325
sição em relação à legislação administrativa, que deve precedê-la, logicamente, por
servir-lhe de fundamento. É claro que, cronologicamente, a norma tributária pode
ser expedida concomitantemente. Logicamente, porém, a norma tributária é sempre posterior, porque norma de superposição.
A disciplina constitucional da progressividade do IPTU adotou o mesmo critério: a lei tributária instrumental da única progressividade permitida constitucionalmente (a do art. 182, § 4o, II) deverá superpor-se à lei administrativa urbanística municipal.
Examinando o art. 182 e seus parágrafos ver-se-á que outras restrições foram
postas pela Constituição. Deveras, flui do § 4º do artigo 182, da Constituição Federal, que, antes de impor alíquota progressiva, é de mister exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado,
que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de parcelamento ou edificação compulsórios; só então é que se faz possível a criação de imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo.
Vê-se, assim, que o texto constitucional estabeleceu uma ordenação de etapas. O termo sucessivamente deixa evidente a fixação de uma escala de precedência. Cada critério sancionador só pode ser utilizado se ineficaz o anterior.
É obrigatória — pena de inconstitucionalidade — a observância da ordem preconizada pelo texto constitucional. Assim, não podem os Municípios se utilizarem
dos mecanismos preconizados nos incisos II e III, do § 4º, do art. 182, a não ser depois de esgotada a medida prevista no inciso I; não se podem utilizar da alternativa
III, se antes não tiverem se valido das medidas previstas em I e II.
O texto constitucional não cogita de alternatividade, mas de sucessividade:
tem o Município que valer-se, primeiro, do critério do inciso I; depois, se este não
for eficaz, utilizar-se do segundo; e, se ainda assim, não foram atingidos os fins perseguidos, pode, então, o Município chegar à desapropriação.
Por conseguinte, só se pode cogitar de imposto progressivo se o proprietário do
solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, instado ao parcelamento ou
edificação compulsórios, não os promover depois de um certo prazo, definido em lei.
Ademais disso, para a constitucionalidade do imposto progressivo, não basta
se esteja diante de propriedade urbana (a) que não cumpra sua função social (nos
termos do § 2º do artigo 182) e (b) cujo proprietário, embora compelido a parcelar
ou edificar, não o tenha feito.
Deveras, a única progressividade para o IPTU permitida na Carta Magna, cujo
emprego é previsto pelo texto constitucional, se esgota na exacerbação da alíquota
no tempo.
Mesmo quando cabível a progressão, a lei só pode tomar em conta a variação
da alíquota no tempo. É dizer, a alíquota aplicável sobre o valor venal no ano “A” será
majorada nos anos subseqüentes B, C, D e assim por diante. Tirante a variável temporal, não cabe a aplicação de quaisquer outros critérios de progressão. A progres-
326
faculdade de direito de bauru
sividade só pode dar-se em razão do tempo.
Nenhuma alternativa é tolerada pela Constituição Federal em sua redação originária, sabiamente blindada — para proteção e segurança jurídica do cidadão contribuinte — com mais do que justificadas e imbricadas cláusulas pétreas.
Em resumo, à luz da Constituição Federal original — munida de cláusulas
pétreas —, somente pode haver progressividade do IPTU com a exacerbação da
alíquota no tempo; e, para fazê-lo é de mister estar-se diante de propriedades urbanas:
a) não edificadas;
b) que não cumpram sua função social;
c) que estejam situados em áreas definidas pelo plano diretor;
d) cujo proprietário, apesar de compulsoriamente instado a parcelar ou edificar, não o faça no prazo assinalado por lei.
Nesses casos, e só nesses, o imposto poderá ser progressivo, no tempo. A Lei
Suprema originária assim determina, para a segurança jurídica dos cidadãos.
Em síntese — e sem embargo do respeito que nos merecem os que postulam posição diversa — à luz da redação originária da Constituição Federal de 1988, somente
pode haver progressividade do IPTU com a exacerbação da alíquota no tempo.
I.5. A progressividade e a decisão do Supremo Tribunal Federal
Atento aos limites impostos pela Constituição Federal, o seu Guardião, o Supremo Tribunal Federal, afastou a progressividade em razão do valor do imóvel.
Isto porque, a partir de 1989, os Municípios efetuaram lançamentos de IPTU
calçados em tese de possibilidade de ser esse imposto progressivo, procedimento
que os contribuintes resolveram submeter aos Tribunais.
Após intensos debates nos Pretórios existentes nas várias Unidades da Federação, o Plenário da Corte Suprema, nos autos do recurso extraordinário nº 153.771MG, declarou a inconstitucionalidade de cobrança progressiva do IPTU exigida, naquele processo, pelo Município de Belo Horizonte.
Logo a seguir, o STF, no RE nº 204.827-5, declarou a inconstitucionalidade da
Lei nº 10.921/90, através da qual o Município intentava cobrança progressiva do
IPTU em função do valor do imóvel, acórdão do qual releva colacionar a seguinte
passagem:
“Com efeito, simples leitura da nova redação introduzida pela referida Lei n. 10.921/90 ao texto do art. 7o da Lei n. 6.989/66, mostra
que, ao revés, é ele inteiramente incompatível com a Constituição,
ao estabelecer alíquotas progressivas em função do valor do imóvel, quando, a Carta da República, no art. 182, § 4o, II, prevê tão-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
327
somente imposto progressivo no tempo.”
Contemporaneamente a esses julgados, o Plenário do STF também declarou,
no RE 234.105-3/SP, a inconstitucionalidade da cobrança progressiva do Imposto sobre Transmissão Inter Vivos de Bens Imóveis, exigida naquele feito pelo Município
de São Paulo, igualmente por ser o ITBI um imposto real.
No leading case referente ao IPTU, RE 153.771-0/MG, o STF não se limitou a
declarar que o art. 182 da Constituição Federal fora desrespeitado, mas, em extraordinária e relevante dicção de direito, definiu que aquele imposto, por sua especial
condição de imposto real, não se presta à graduação segundo presumida capacidade econômica do contribuinte.
E o fez, dentre outros argumentos, destacando, sobremodo, que o IPTU não
poderia ser progressivo em função do valor, por se tratar de imposto real, incompatível com a progressividade.
Sucessivamente, várias outras ações, intentadas pelos sujeitos passivos contra
outras municipalidades, foram pacificadas pelo Egrégio Supremo nesse mesmo sentido de inconstitucionalidade de tributação progressiva do IPTU, pela sua característica de imposto real.8
A tese dos signatários deste foi expressamente acolhida pelo Ínclito Ministro
Celso de Mello, em despacho na petição 1.245-3/170, do qual transcrevemos os seguintes trechos:
“Esta Suprema Corte, ao declarar a inconstitucionalidade de dispositivos da legislação tributária do Município de São Paulo (normas análogas às que constituem objeto de apreciação no caso em
análise), enfatizou que a única progressividade admitida pela
Carta Federal, em tema do IPTU, é aquela de caráter extrafiscal,
vocacionada a garantir o cumprimento da função social da propriedade urbana, desde que estritamente observados os requisitos
fixados pelo art. 156, § 1o e, também, pelo art. 182, § 4o, II, ambos
da Constituição da República.
“Os precedentes específicos sobre a matéria em exame, firmados
pelo plenário do STF — apoiados em qualificado magistério doutrinário (Ives Gandra Martins, ‘Comentários à Constituição do
Brasil’, Vol. 6o, Tomo I/548-552, 1990, Saraiva, Aires Fernandino
Barreto, ‘A progressividade do IPTU na Constituição de 1988’, in
Repertório IOB de Jurisprudência, 1a quinzena de novembro de
1990, n. 21/90, p. 359 e segs.; Celso Ribeiro Bastos, ‘Curso de Direito
Financeiro e de Direito Tributário’, p. 269/270, 1991, Saraiva, v.g.)
8 Entre outros, v. RE 234.105-3 – Pleno – São Paulo.
faculdade de direito de bauru
328
— desautorizam, em tema de progressividade do IPTU, a decisão
proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo na causa em análise e justificam o reconhecimento da absoluta incompatibilidade
material da legislação tributária do Município de São Paulo, no
ponto em que instituiu, com fundamento no valor dos imóveis, alíquotas progressivas para o imposto predial e territorial urbano.
(…)
“Esse é o sentido em que acertadamente se orienta o magistério de
Ives Gandra Martins (‘Comentários à Constituição do Brasil’, v. 6,
tomo I/548-552, 1990, Saraiva) e de Aires Fernandino Barreto (‘A
progressividade do IPTU na Constituição de 1988’, in Repertório
IOB de jurisprudência, 1a quinzena de novembro de 1990, n.
21/90, p. 359 e segs.), que sustentam que a progressividade do IPTU
só tem incidência constitucionalmente autorizada nas hipóteses
em que, descumprida a função social da propriedade urbana,
também ocorrerem os demais pressupostos estipulados no art. 182,
par. 4o, da Carta Política, especialmente a edição da lei federal
(ainda inexistente) destinada a caracterizar, em seus aspectos básicos, os requisitos definidores do conceito da função social da propriedade.”9
Com efeito, pelo balizamento constitucional, impostos reais não podem ser
progressivos, razão pela qual convém demarcar a distinção entre impostos pessoais
e reais.
I.6. Impostos reais e impostos pessoais
Um equívoco em que, no passado, incorreram alguns autores foi a tentativa
de afastamento da classificação em impostos reais e pessoais, sob o argumento de
que todos os impostos seriam pessoais, porquanto só as pessoas pagam tributos; as
coisas não os pagam.
Com o devido respeito e guardadas as devidas proporções, a afirmação eqüivale a se rejeitar a existência do Direito Real, porque as relações são entre as pessoas
e não entre as coisas ou entre as pessoas e as coisas.
A classificação dos impostos em reais e pessoais baseia-se em critérios vários,
tais como a divisão no Direito Civil — direito real (coisa) e direito obrigacional (relações pessoais) —, o da garantia, segundo o qual são reais os que têm no bem gravado a própria garantia do pagamento do tributo e pessoais aqueles em que não há
garantia especial, respondendo pela obrigação tributária o patrimônio global do
9 Cf. Aires F. Barreto, “Arts. 32 a 34 —IPTU”, in Comentários ao Código Tributário Nacional, Coordenador Ives Gandra Martins, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 261.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
329
contribuinte; o da espécie de lançamento, que os distingue em pessoais, quando o
lançamento é por declaração, e reais, quando de lançamento de ofício, ou intra muros, e, finalmente, o do objeto, que nos interessará mais de perto.
Segundo o critério do objeto, denominam-se reais os impostos que tomam
em consideração manifestações objetivas e concretas do patrimônio, isoladamente
considerado, sem analisar a situação do titular desses bens. São, pois os que gravam
determinadas coisas, sem consideração à condição ou riqueza global dos contribuintes.10
Ao contrário, pessoais são aqueles cuja imposição estriba-se nas condições
personalísticas do contribuinte, tomando em conta a sua capacidade contributiva,
globalmente.
Esse conceito dicotômico — impostos reais e impostos pessoais — foi perfilhado por um dos mais notáveis tributaristas pátrios, Rubens Gomes de Sousa.11
No passado, discutiu-se muito sobre a validade dessa dicotomia que, para
muitos, tinha natureza pré-jurídica, não podendo, por conseqüência, ser utilizada
para separar os vários tipos de gravames.
Todavia, a partir do Texto Supremo de 1988, essa é uma classificação nitidamente jurídica. É jurídica porque decorrente do Direito Positivo, mais especificamente resultante da distinção adotada pela própria Carta Magna em vigor.
Com efeito, quando a Constituição Federal de 1988 (art. 145, § 1o) diz que os
impostos, sempre que possível, terão caráter pessoal, está inexoravelmente a absorver a dicotomia de impostos reais e pessoais.
Portanto, após 05-10-88, não tem mais sentido qualquer esforço no sentido de
demonstrar a falta de juridicidade dessa classificação, porque ela foi expressamente
adotada pela Carta Magna, art. 145, § 1o.
Destarte, hoje, à luz do texto da Constituição, os impostos, sempre que possível, terão a natureza de pessoais e, quando isso não se revelar possível, serão reais.
Didático é o seguinte trecho do voto do Ministro Moreira Alves, exarado no
julgamento do RE 153.771-MG,12 anterior à emenda 29/2000, acórdão no qual a progressividade do IPTU foi apreciada, negando-se-lhe constitucionalidade, por impossibilidade de se exigir imposto real de forma progressiva:
“Desse dispositivo decorre que a Constituição, adotando a distin10 Nessa conformidade, o pensamento de José Eduardo Soares de Melo, para quem, entre outras formas classificatórias, os impostos podem ser agrupados em pessoais e reais, do seguinte modo:
a – pessoal, quando a quantificação do tributo decorre de condições peculiares ao contribuinte, como é o caso do
Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza (CF, art. 153, III);
b – real, quando o montante do tributo leva em conta o valor da coisa, como é o caso do Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana (CF, art. 156, I).
11 Cf. Compêndio de Legislação Tributária, 2a ed., São Paulo: Edições Financeiras, 1954, p. 129.
12 RTJ 162/726.
330
faculdade de direito de bauru
ção clássica segundo a qual os impostos podem ter caráter pessoal
ou caráter real (é a classificação que distingue os impostos pessoais e reais), visa a que os impostos, sempre que isso seja possível,
tenham caráter pessoal, caso em que serão graduados — e um dos
critérios poderá ser a progressividade — segundo a capacidade
econômica do contribuinte.
(…)
“Portanto, é inconstitucional qualquer progressividade, em se tratando do IPTU, que não atenda exclusivamente ao disposto no artigo 156, § 1o, aplicado com as limitações expressamente constantes dos §§ 2o e 4o do artigo 182, ambos da Constituição Federal.”
No mesmo julgamento, a declaração de voto do Ministro Ilmar Galvão rechaçadora de progressividade pelo valor do imóvel no IPTU também realçou a natureza real do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, como se depreende do seguinte excerto:
“O critério, como se vê, é de natureza objetiva, certamente porque
se está diante de um tributo, não de natureza pessoal, cuja alíquota possa variar em função das condições econômicas do proprietário do bem, na forma preconizada pelo art. 145, § 1o, da CF, parte final, mas de natureza real. Com efeito, o tributo incidente sobre
o imóvel não é necessariamente de responsabilidade de quem lhe
detinha o domínio, no exercício tributado, mas de quem o detém,
à época da cobrança ou execução.”13
Finalmente, mas de igual relevância, com a vantagem da síntese e objetividade de declaração de ser o IPTU um imposto real, estremando-o dos que são pessoais, transcreve-se parcela do voto do Ministro Maurício Corrêa no aludido recurso extraordinário:
“O caso específico de que ora se cuida é exatamente o de imposto
predial, que pela sua natureza é um tributo real, incidente sobre o
imóvel urbano, não recaindo sobre a pessoa, como é o caso do imposto de renda e outras exações similares.”14
É fora de dúvida que é o imposto que grava a propriedade imobiliária o exemplo mais conspícuo de tributo real, tanto em nossa organização constitucional-tribu13 RTJ 162/750.
14 RTJ 162/747.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
331
tária quanto nos sistemas de outros países.
Assim, confira-se a doutrina de Ernesto Flores Zavala que, após estremar impostos indiretos (impostos sobre a importação, exportação, consumo etc.) e diretos
(pessoais e reais), elucida o significado destes:
“Los impuestos directos pueden clasificarse en personales y reales.
Algunos autores consideran esta clasificación como general de todos los impuestos, y otros la limitan a los impuestos directos. Esta
cuestión carece de importancia, porque los impuestos indirectos
son necesariamente reales, ya que, como hemos dicho, no pueden
tener en cuenta las condiciones de las personas que en realidad los
van a pagar, pues éstas son ignoradas de una manera específica
por el legislador, aun cuando deba tomarlas en consideración al
estructurar el impuesto, pero sin mencionarlas.
“Los impuestos personales son aquellos en los que se toman en
cuenta las condiciones de las personas que tienen el carácter de
sujetos pasivos, como, por ejemplo, el impuesto sobre herencias y
legados. Impuestos reales son aquellos que recaen sobre la cosa objeto del gravamen, sin tener en cuenta la situación de la persona
que es dueña de ella y que es sujeto del impuesto, por ejemplo, el
impuesto sobre la propiedad raíz.”15
A exemplificação do imposto sobre a propriedade, como o exemplo mais nítido de imposto real, também foi utilizada pelo tributarista Héctor B. Villegas, na seguinte passagem:
“Impuestos reales y personales. — Conforme a esta clasificación,
son impuestos personales aquellos que tienen en cuenta la especial
situación del contribuyente, valorando todos los elementos que integran el concepto de su capacidad contributiva. Por ejemplo, la
imposición progresiva sobre la renda global que tiene en cuenta situaciones como las cargas de familia, el origen de la renta, etc.
“Los impuestos reales, en cambio, consideran en forma exclusiva
la riqueza gravada con prescindencia de la situación personal del
contribuyente. Así, por ejemplo, los impuestos a los consumos o el
impuesto inmobiliario.”16
Mais adiante, Villegas reforça a noção de que o imposto imobiliário, por não
15 Elementos de Finanzas Públicas Mexicanas – Los Impuestos, 14.ed., México: Editorial Porrúa, S.A., 1972, p. 248.
16 Curso de Finanzas, Derecho Financiero y Tributario, Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1972, p. 61.
332
faculdade de direito de bauru
considerar as condições pessoais do proprietário, é de caráter real, não lhe sendo
pertinente a tributação progressiva em razão do valor, destacando — o que passou
despercebido por alguns de nossos tributaristas — que, por óbvio, a obrigação tributária de pagar o imposto imobiliário não cabe ao imóvel, mas, às pessoas, porém
essa obrigação ocorre relativamente a todos os impostos, inclusive, por certo, os de
natureza real, verbis:
“El impuesto inmobiliario es de carácter real, porque no tiene en
cuenta las condiciones personales de los contribuyentes. Pero no
debe confundirse con la obligacion tributaria, que siempre es personal. La obligación de pagar el impuesto no es de los inmuebles,
sino de las personas. Existe una tendencia a la subjetividad mediante la progresividad. (…) Este sistema, sin embargo, es criticable, por cuanto no tiene en cuenta la riqueza mobiliaria del sujeto ni la riqueza inmobiliaria que tenga en otras jurisdicciones.”
I.7. A EC 29/2000 e a progressividade do IPTU
Induvidosa é a afirmação de que o IPTU é imposto real. Basta relembrar
que o seu “fato gerador” é a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel urbano.
A Suprema Corte, escudada principalmente nas fecundas lições do eminente
Min. Moreira Alves, salienta que a progressividade não é aplicável a todos tributos,
não podendo alcançar os impostos diretos reais, que dizem respeito a rendimentos
singulares, como é o caso de terrenos ou de construções. Prossegue o ínclito Ministro afirmando que esses impostos devem ser necessariamente proporcionais, pois,
se assim não for, estar-se-á a gravar mais fortemente aquele que recebe rendimento
proveniente de uma fonte de renda, em comparação com outro, que recebe renda
igual, embora produzida por fontes de renda diversas. Conclui, destacando que
“(…) o campo em que deve sobretudo operar a progressão é o do imposto pessoal
sobre rendimentos do sujeito” (in: RTJ 742).
Assentado pelo Supremo Tribunal Federal que o IPTU, por ser imposto real,
não poderia ser progressivo em função do valor do imóvel, o Congresso Nacional,
pressionado pelos Municípios, pretendeu tornar viável essa modalidade de progressão, mediante a alteração do § 1º do artigo 156, da Constituição, verbis:
“O § 1º do art. 156 da Constituição Federal passa a vigorar com a
seguinte redação:
Art. 156 -...............
§ 1º - Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o
art. 182, § 4º, inciso II, o imposto previsto no inciso I poderá:
I – ser progressivo em razão do valor do imóvel; e
Revista do instituto de pesquisas e estudos
333
II – ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do
imóvel.” (cf. art. 3º da Emenda Constitucional nº 29, de 14 de setembro de 2000).
A partir da publicação da parcialmente transcrita emenda, aconteceram manifestações no sentido de que, a contar dessa alteração, o IPTU poderia ser progressivo, em razão do valor do imóvel (inciso I, encartado pela modificação supra).
Não compartilhamos desse entendimento, por estarmos convencidos de que
esse inciso, introduzido por emenda à Constituição Federal, é inconstitucional, descompassado que está com as cláusulas pétreas.
I.8. A Emenda nº 29/2000 é inconstitucional por ofensa a cláusulas pétreas
Advirta-se, desde logo, que, ao editar essa Emenda, o Congresso Nacional não estava investido do chamado poder constituinte originário, esgotado que fora esse poder
pela Assembléia Nacional Constituinte. Como se sabe, só esta possui plenos poderes —
sem quaisquer outros limites, que não os decorrentes do Direito Natural — para dispor
livremente sobre todas as matérias, sem quaisquer empeços ou restrições.
A Carta Magna de 1988 é rígida, só admitindo a sua modificação através de processo e solenidades especiais para introdução de emenda constitucional,17 alteração essa
defesa relativamente às cláusulas pétreas dispostas pelo Texto Supremo, em seu art. 60.
As cláusulas pétreas configuram postulados e princípios constitucionais que,
por representarem as vigas mestras da estrutura federativa e republicana e a espinha
dorsal da segurança jurídica dos cidadãos, remanescem inalteráveis.18
Os argumentos de que essa rigidez de mutação impede um acompanhamento sincrônico da evolução social são amplamente rechaçados pela garantia de segurança jurídica que esse sistema preserva.19
Manoel Gonçalves Ferreira Filho, após iluminar que o Poder Constituinte é empunhado por um grupo de representantes do povo para que, em seu nome, originária
ou derivadamente, organize a Constituição, proporciona as elucidações subseqüentes
(in: Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Saraiva, 1967, pp. 19 e 22):
“O Poder Constituinte originário apresenta três caracteres principais: é inicial, autônomo e incondicionado. É inicial porque não
se funda noutro mas é dele que derivam os demais poderes. É autônomo porque não está subordinado a nenhum outro. É incondicionado porque não está subordinado a nenhuma condição, a ne17 Cf. Sahid Maluf, Direito Constitucional, São Paulo: Sugestões Literárias, 1968, p. 27.
18 Id., ib., p. 34.
19 Id., ib., p. 28.
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faculdade de direito de bauru
nhuma forma.
“Não é, porém, ilimitado. Ainda que nenhuma regra positiva o possa cercear, tem ele sua extensão naturalmente limitada pelo conteúdo da idéia de direito que o inspira.
(…)
“Embora grupo constituinte algum cuide de preparar a substituição da idéia de direito que o incita a agir, a experiência o faz prever a necessidade futura de alterações no texto que edita. Por isso
é que dispõe sobre a revisão da constituição, atribuindo a um poder constituído o direito de emendá-la. Esse poder instituído goza
de um poder constituinte derivado do originário.
“Caracteriza-se o Poder Constituinte instituído por ser derivado (provém de outro), subordinado (está abaixo do originário) e condicionado (só pode agir nas condições postas, pelas formas fixadas).”
Ao promulgar emenda, o Congresso Nacional detém apenas o poder constituinte derivado — subordinado, abaixo do originário, como pontifica Manoel Gonçalves Ferreira Filho — que, de um lado, lhe faculta a introdução de emendas à Constituição Federal, mas, de outro, impõe-lhe manter íntegra a área constituída por
cláusulas pétreas. Dentre estas estão, sem dúvida, as que garantem aos contribuintes o direito de só serem submetidos à progressividade, em face de impostos pessoais (C.F., art. 145, § 1º).
Dúvida não pode haver de que os princípios constitucionais integram o intocável rol das cláusulas pétreas. A Constituição Federal, art. 60, § 4o, IV, determina
que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais. O art. 5o, CF, não se esgota em seus 77 incisos. É o § 2o
desse art. 5o que determina que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados”.
Em outras palavras, os princípios constitucionais — entre os quais o de vedação de
utilização de tributo com efeito de confisco, art. 150, IV — integram o rol das cláu20 Um dos signatários deste parecer exarou a esse respeito o seguinte pensamento (in: Celso Ribeiro Bastos e Ives
Gandra Martins, Comentários, 4v, op. cit., p. 413):
“Os direitos e garantias individuais conformam uma norma pétrea. Não são eles apenas os que estão no art. 5o,
mas, como determina o § 2o do mesmo artigo, incluem outros que se espalham pelo Texto Constitucional e outros que decorrem de implicitude inequívoca. Trata-se, portanto, de um elenco cuja extensão não se encontra
em Textos Constitucionais anteriores.
“Tem-se discutido se, via de regra, toda a Constituição não seria um feixe de direitos e garantias individuais, na
medida em que o próprio Estado deve assegurá-lo, e sua preservação, em rigor, é um direito e uma garantia individual. Toda a Constituição não faz senão garantir direitos individuais que decorrem, necessariamente, da
existência do poder assecuratório (Judiciário), Legislativo (produção de leis), Executivo (executá-las a favor do
cidadão).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
335
sulas pétreas, por previsão do próprio art. 5o, § 2o. 20
O ilustre Ministro Moreira Alves, na conferência de abertura do XXV Simpósio de Direito Tributário, coordenado por um dos signatários deste parecer,
embora ressalvando que foi voto vencido, relembrou que o Supremo Tribunal
Federal:
“... já discutiu esse tema (o das cláusulas pétreas) quando tratou
numa ADIN do problema do IPMF, examinando a questão de saber
se o princípio da anterioridade, no caso, seria uma cláusula pétrea, tendo em vista que não era observado pela norma que havia
instituído esse tributo. E o Tribunal se dividiu. A maioria considerou que aí se tratava de uma cláusula pétrea porque seria um
princípio fundamental ou um direito fundamental do contribuinte...” (in “Tributação na Internet”, Pesquisas Tributárias, Nova Série –
7, Coordenador Ives Gandra da Silva Martins, Ed. Rev. dos Tribunais,
São Paulo, 2001, pág. 17, esclarecemos).
A ressalva do eminente Ministro foi no sentido de que as emendas não podem
adotar medidas “tendentes a abolir”, é dizer, para ele, as cláusulas pétreas não são
imutáveis. O que a Constituição veda é emenda que vise a abolir.
Ao apreciar a Emenda Constitucional nº 3/93 relativa a IPMF, o Excelso Pretório declarou a sua inconstitucionalidade relativamente à obrigação de as entidades
públicas pagarem-no, suscitando a seguinte ponderação:
“A declaração do Supremo Tribunal Federal de inconstitucionalidade apenas considerou que não poderia a norma ter sido veiculada por vedação do art. 60.
“Desta forma, a primeira questão já foi equacionada pelo Pretório
“Por esta teoria, a Constituição seria imodificável, visto que direta ou indiretamente tudo estaria voltado aos direitos e garantias individuais.
“Tal formulação, todavia, peca pela própria formulação do artigo, visto que se os organismos produtores, executores e assecuratórios do direito representassem forma indireta de permanência dos direitos e garantias individuais, à evidência, todo o resto do art. 60 seria desnecessário em face da imodificabilidade da Lei Suprema.
O conflito fala por si só para eliminar a procedência dos argumentos dos que assim pensam.
“Em posição diversa, entendo que os direitos e garantias individuais são aqueles direitos fundamentais plasmados no Texto Constitucional — e apenas nele -, afastando-se, de um lado, da implicitude dos direitos não expressos ou de veiculação infraconstitucional, bem como restringindo, por outro lado, aqueles direitos que são assim
considerados pelo próprio Texto e exclusivamente por ele.
“Assim sendo, o art. 150 faz expressa menção a direitos e garantias individuais, como tais conformados no capítulo do sistema tributário. Tal conformação, à evidência, oferta, por este prisma, a certeza de que está ela no
elenco complementar do art. 150 e, por outro, que é tida pelo constituinte como fundamental.”
336
faculdade de direito de bauru
Excelso no sentido de que pode ser objeto de deliberação — não se
manifestando a Suprema Corte no processo de elaboração legislativa — podendo ser provocado posteriormente. (omissis).
“O segundo aspecto diz respeito à expressão “tendente a abolir”.
Muitos vêem na referida expressão apenas um limite máximo
(abolição) e não um limite médio (manutenção das cláusulas pétreas ou alteração). Para estes uma alteração conceitual de cláusula pétrea, sem aboli-la, não estaria vedada pela Constituição.
Acrescentam, tais intérpretes, a inteligência de que o nível de generalidades a que se referem os quatro incisos do § 4o se interpretados de forma inelástica tornaria toda a Constituição imodificável,
o que seria um contra-senso.
“Tenho para mim que a melhor interpretação é aquela pela qual
qualquer “alteração” implica abolição do “dispositivo” alterado, o
que vale dizer, não só cuidou o legislador supremo em “abolição
completa” de qualquer das cláusulas, mas também da abolição
parcial por alterações tópicas dos referidos privilégios.
“Desta forma, qualquer alteração implicaria uma abolição parcial.”21
Perfilha-se, destarte, o pensamento de que qualquer alteração relativa a cláusulas pétreas implica abolição parcial, trazendo a conseqüente inconstitucionalidade de emenda que intente sua modificação.
Ora, no caso da progressividade, é inquestionável que a Emenda Constitucional nº 29/00 não apenas tende a abolir, como, de fato, aniquila, suprime, destrói,
anula a restrição posta pelo princípio de que progressivos só podem ser os impostos pessoais.
Em conformidade ao exaustivamente demonstrado alhures por um dos signatários deste,22 a Constituição veda a progressividade de impostos de caráter real,
como o IPTU. Trata-se de área constitucional intocável, por integrar o conjunto de
direitos atribuídos ao contribuinte pela Constituição. É que compõem esse rol todos
os princípios constitucionais, inclusive e especialmente aqueles ligados à matéria tributária.
O parecerista acima referido teve oportunidade de demonstrar23 que tal exegese — de os princípios constitucionais, mormente os tributários, comporem a cou21 Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, Comentários à Constituição do Brasil, 4v-tomo I, 2.ed., São Paulo:
Saraiva, 1999, p. 395.
22 Cf. Aires F. Barreto, “Aplicação …”, cit., passim.
23 Cf. Aires F. Barreto, “IPTU: Progressividade e Diferenciação”, in Revista Dialética de Direito Tributário nº 76,
jan/2002, p. 7.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
337
raça constitucional protetora, dita pétrea — decorre de interpretação sistemática,
fruto da conjugação do disposto no § 2º, do art. 5º, com o art. 60, § 4º, IV, ambos
da Constituição. Por outras palavras: (a) os princípios (§ 2º do art. 5º) configuram
direitos individuais, (b) igualdade e capacidade contributiva são princípios, (c) sendo princípios, configuram cláusulas pétreas, à luz do disposto no inciso IV, do § 4º,
do art. 60; logo, (d) não podem ser modificados por emenda constitucional.
Repisemos: no campo tributário, um dos princípios mais conspícuos é o da capacidade contributiva.24 E, sendo princípio, não pode ser alvo de emenda tendente
a aboli-lo. Esse princípio encerra, em seu bojo, uma autorização e uma limitação. Visto da perspectiva positiva, o princípio contém autorização para a criação de impostos progressivos, desde que estes sejam pessoais. Examinado da perspectiva negativa, o princípio veda a instituição da progressividade, quanto a impostos de natureza real.
Não dissente a doutrina quanto a comporem — os direitos individuais e as garantias que os asseguram — o amplo espectro em que se desdobra o princípio da segurança jurídica. Ora, insignificante, para não dizer nulo, seria o valor desse princípio constitucional — que alguns consideram como verdadeiro sobreprincípio, a nortear todos os demais — se pudesse ser contornado ou removido, por simples emenda constitucional.25
A proteção assegurada pela diretriz da capacidade econômica — que deve ser
vista conjugadamente com o princípio da igualdade — estava assim decomposta:
a) os tributos têm que ser proporcionais;
b) se forem de caráter pessoal, podem (devem) ser progressivos.
Ou, em outras palavras, como os princípios constitucionais existem não para
proteger o Estado, mas para a defesa dos contribuintes, a Constituição assegura solenemente aos sujeitos passivos que:
a) só serão submetidos à progressividade no caso de impostos pessoais;
b) não serão atingidos pela progressão quando de impostos reais.
É estreme de dúvida que o solapamento de um dos mais relevantes princípios, mediante emenda constitucional — promulgada com o objetivo de permitir a progressividade de imposto real — implica aniquilamento em cerne da
Constituição, ferindo-a, de morte, em direitos e garantias que ela originariamente assegura.
Precisamente porque considera o princípio da capacidade contributiva como
componente dos direitos individuais, o Supremo Tribunal Federal focalizou as duas
facetas (afirmativa e negativa) em que se desdobra esse princípio e, como verdadei24 Cf. Aires F. Barreto, “Aplicação …”, cit., passim.
25 Cf. Aires F. Barreto, “IPTU – Progressividade e Diferenciação”, cit., passim.
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faculdade de direito de bauru
ro intérprete da Constituição, fixou o entendimento de que: positivamente, o princípio só se aplica a impostos pessoais; negativamente, não pode alcançar os impostos reais. 26
A emenda 29/2000 é inconstitucional, por ofensa a cláusulas pétreas da Constituição Federal de 1988, tendo o constituinte derivado, no afã de saciar o voraz apetite fiscal dos Municípios, retirado do texto originário do art. 156, § 1o, a expressa
condição de que o IPTU seja instituído pelos Municípios de forma a assegurar o
cumprimento da função social da propriedade.
Retirar-se do texto o princípio que preside o tributo (o cumprimento da função social da propriedade) é mais do que abolição: é aniquilação do esteio e razão
de ser da Constituição Federal de 1988.
Mesmo intransigente defensor de qualquer forma para progressividade do
IPTU, além da progressão no tempo permitida pelo art. 182, § 4o, II, reconheceu,
para outros tributos, que as cláusulas pétreas não podem ser violadas pelo constituinte derivado, como se verifica pelo seguinte trecho:
“Também neste ponto a Emenda Constitucional em pauta era inconstitucional, por ter ferido “cláusula pétrea”, que, como é de conhecimento comum, não pode ser abolida pelo Congresso Nacional, no exercício de seu “poder constituinte derivado.
“Melhor explicando, dentre as cláusulas pétreas inscrevem-se os
“direitos e garantias individuais” (art. 60, § 4o, IV, da CF). Ora, o
princípio da anterioridade tributária é um direito individual do
contribuinte. Tanto é, que a lei que lhe concede uma vantagem fiscal (v.g., que lhe reduz a carga tributária ou que lhe confere uma
isenção) pode incidir imediatamente ou, até, retroagir: não precisa obedecer ao princípio da anterioridade, que só opera em seu favor, isto é, quando a lei cria ou aumenta um tributo. Logo, o princípio da anterioridade não poderia ter sido atropelado (como o
foi) por uma Emenda Constitucional.
“Nem se diga que, havendo exceções ao princípio da anterioridade, nada impedia que seu rol fosse ampliado por uma Emenda
Constitucional. É que tais exceções brotaram diretamente da Constituição de 1988, ou seja, do exercício do poder constituinte originário (de que a Assembléia Nacional Constituinte estava investida). O poder constituinte derivado, único que resta ao atual Congresso Nacional, não podia criar novas exceções ao princípio.
“Aliás, os que sustentaram esta possibilidade estavam — certamen-
26 Cf. RE nº 153.771, Minas Gerais – Pleno, e RE 234.105-3 – Pleno, São Paulo.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
339
te sem o perceberem — absurdamente admitindo que uma Emenda Constitucional podia, até, anular o princípio em tela. De fato,
admitida a ampliação das exceções, o que impediria que, num
primeiro momento, mais dois ou três tributos fossem, por Emenda
Constitucional, colocados ao largo do princípio da anterioridade?
O que impediria que, depois, novos tributos também fossem excepcionados do mesmo princípio? O que impediria, enfim, que uma
derradeira Emenda Constitucional acabasse de vez com o princípio? Uma Emenda Constitucional estaria reduzindo a pó um princípio constitucional. Estaria derrubando uma “viga mestra” do sistema jurídico...”27
Irrepreensível a defesa acima, do princípio da anterioridade tributária, por decalque nas cláusulas pétreas, preservando-o de máculas pelo constituinte derivado,
estribado em decisão do STF de inconstitucionalidade de emenda.28 Em outra passagem, o mesmo tributarista29 — perfilhando tese de José Souto Maior Borges30 — retorna à resistência aos ataques às cláusulas pétreas, desta feita em torno da isonomia, do seguinte modo:
“Nesse sentido, José Souto Maior Borges não exagerou ao afirmar,
no VIII Congresso Brasileiro de Direito Tributário, realizado em
São Paulo, em setembro de 1994, que a isonomia não está no Texto
Constitucional: a isonomia é o próprio Texto Constitucional.
“Aprofundando este raciocínio, o mestre pernambucano, em recente estudo, ponderou: ‘(…) a CF de 1988 não contempla a isonomia como um direito qualquer que dela pudesse ser eventualmente extirpado. A isonomia não está sequer apenas ao abrigo das
mal denominadas cláusulas pétreas (art. 60, § 4o, IV). A isonomia
27 Roque Antonio Carrazza, Curso de Direito Constitucional, 16.ed., São Paulo: Malheiros, 2001, p. 173.
28 “Direito Constitucional e Tributário. Ação Direta de Inconstitucionalidade de Emenda Constitucional (omissis).
Uma Emenda Constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada, incidindo em violação à Constituição
originária, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é de guarda
da Constituição (art. 102, I, a, da C.F.).
A Emenda Constitucional n. 3, de 17.03.1993, que, no art. 1., autorizou a União a instituir o IPMF, incidiu em vício
de inconstitucionalidade, ao dispor, no parágrafo 2. desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica o ‘o
art. 150, III, b e VI, da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes princípios e normas imutáveis (somente eles, não outros): 1 – o princípio da anterioridade, que a garantia individual do contribuinte (art. 5., par. 2.,
art. 60, par. 4., inciso IV e art. 150, III, b da Constituição); 2 (omissis).
29 Id., ib., p. 375.
30 O título do texto de José Souto Maior Borges, referido por Carrazza, é “Sobre a atualização de créditos do sujeito passivo contra o Fisco”, in Revista Dialética de Direito Tributário 32/45.
faculdade de direito de bauru
340
é a própria Constituição. Confunde-se com ela, ao permear todos
os direitos e deveres que a Constituição instituiu. Sem isonomia, estaria simplesmente supressa a CF de 1988 como um todo. Não é ela
portanto uma palavra que possa ser extirpada do texto constitucional e substituída, sem maiores delongas por outra, como se fora
uma inútil quinquilharia’.”
II.
CONCLUSÕES
Diante do espectro constitucional que preside o nosso sistema tributário, conclui-se que a emenda 29/2000, por ter afrontado cláusulas pétreas, está insanavelmente viciada por inconstitucionalidade.
Primeiro porque o emprego de progressividade no caso de imposto real implica a abolição dos limites do princípio da capacidade econômica; derruba as balizas dessa diretriz para alcançar — contra a solene promessa do art. 5º, § 2º — os impostos de natureza real. Mas, sobretudo, soterra a exegese do Supremo Tribunal Federal. A indigitada Emenda tripudia sobre o sentido, conteúdo e alcance que a Excelsa Corte deu ao princípio da capacidade contributiva. A Emenda aniquila o direito individual de os contribuintes não serem tributados progressivamente, diante de
impostos reais. Como se expôs, a E.C. 29/00 não apenas tende a abolir, mas, de fato,
culmina com a abolição de um dos mais conspícuos pilares do sistema constitucional tributário.
Segundo, porque o emprego da progressividade, no caso de imposto real
como o IPTU (ou de qualquer outro imposto real), implica inconstitucionalidade,
também por ofensa ao princípio da isonomia, para o qual não existe qualquer possibilidade de dúvida de constituir cláusula pétrea, pois expresso no caput e inciso I
do art. 5o CF. 31
Deveras, como o discrímen se dá pelo valor de cada imóvel, ficam em condição altamente privilegiada (infringindo a Constituição, pela desigualdade) os inúmeros proprietários (de casas, lojas, unidades autônomas destinadas à locação ou de
loteamentos inteiros), cujos imóveis, de per si considerados, têm um valor venal baixo, em confronto com os titulares de um só imóvel, de valor expressivo.
Figuremos um exemplo:32 se o titular de único imóvel de R$ 150.000,00 ficar
sujeito ao IPTU, em razão de uma alíquota de 1,8%, e outro, titular de centenas de
imóveis de pequeno valor, for submetido ao imposto, com base em alíquotas de
0,5%, ter-se-á, nesse caso, flagrante ofensa ao princípio da igualdade. Na verdade, estar-se-á a pôr às avessas as diretrizes desse princípio. Mais flagrante fica essa inversão em legislações que isentam do IPTU os proprietários de imóveis, cujo valor seja
31 Cf. Aires F. Barreto, “IPTU – Progressividade e Diferenciação”, cit., p. 9.
32 Cf. Aires F. Barreto, “IPTU – Progressividade e Diferenciação”, cit., p. 10.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
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de pouca expressão, relativamente ao dono de inúmeras propriedades.
Na mesma esteira, restou proficientemente demonstrado por Carlos Celso
Orcesi da Costa (in: “A surpresa do IPTU”, Diário do Comércio, 06-3-02) o desacerto de progressividade para o IPTU, que não seja a extrafiscal da CF, art. 182,
verbis:
“Juridicamente se discute se os impostos reais (que incidem sobre a
coisa, sobre o imóvel) podem sofrer progressividade. Tome-se quatro bons apartamentos, todos no mesmo 6o andar de um edifício
no Tatuapé. O proprietário do 61 o herdou dos pais, entre outros
imóveis colocados à locação; o do 62 o comprou à vista; o dono do
63 o comprou durante 20 anos, utilizando poupança e a maior
parte do FGTS; finalmente a dona do 64 é viúva cujo marido faleceu recentemente, recebendo substancial pensão do INSS. Os quatro têm o mesmo valor venal e no entanto a capacidade contributiva de seus donos difere a olhos vistos. Quer dizer: a propalada
“justiça social” da progressividade alcança aleatoriamente ricos e
remediados. Enfim, apenas os impostos pessoais (que incidem sobre a pessoa, não sobre a coisa), como o imposto de renda, quando os que ganham mais pagam mais, podem se prestar às escalas
da progressividade.”
Em outras palavras: se se busca a função social da propriedade tributando
progressivamente pretensa capacidade contributiva, acaba-se por onerar o morador dono de única propriedade de algum valor, deixando de se tributar o especulador de muitas propriedades de valor menor — individualmente, porém de
alta concentração de renda no total —, que não as utiliza para residir, mas, para
explorar.
A respeito desse tratamento desigual, funesto e calamitoso, Roberto Macedo escreveu instigante artigo (realçando esse desvio tão lamentável) publicado
em “O Estado de S. Paulo”, figurando hipotética discussão, transcrita em ata, levada a efeito em reunião no fictício “condomínio do conjunto residencial e comercial Cidade de São Paulo”, conduzindo o leitor a meditação, do modo subseqüente:
“O proprietário da unidade 81 argumentou que as de um dormitório estariam isentas, ao passo que a sua, de dois, mas com metragem apenas um pouco maior, já teria de pagar. Perguntou se
era isso mesmo e indagou aos presentes se alguém se interessaria
em trocar seu apartamento por dois desses menores, lado a lado, e
se haveria impedimento de colocar uma porta unindo os dois. O
faculdade de direito de bauru
342
proprietário das unidades 101 a 115 disse que compreendia a sua
situação, e tinha imóveis nessas condições, mas a isenção de que
se beneficiava lhe tirava o interesse de fazer o negócio”.33
Embora a argumentação tenha sido acima apresentada jocosamente, é certo
que desnuda ter-se — fruto de descabido tratamento de um tributo inequivocamente real, como se imposto pessoal fosse — a obtenção de uma figura híbrida que, de
um lado, para definir a base de cálculo, toma em conta o caráter real do imposto e,
de outro, para definir a alíquota, atua como se de imposto pessoal se tratasse.
O autor do projeto que resultou na Emenda nº 29/2000 desconsiderou as lições do insuperável Baleeiro, para quem o exemplo conspícuo de imposto real é o
territorial, porque “(…) paga, por exemplo, o solo, o imposto territorial a tantos
cruzeiros por hectares ou a 1% sobre o seu valor venal, pouco importando se o proprietário seja celibatário, ausente, rico, que o conserve na expectativa de valorização
ou para caçadas”.34
O Poder Judiciário por certo eliminará a frontal ofensa ao texto constitucional
originário — “introduzida” pela EC 29/2000 — e à declaração de seu conteúdo de origem pelo seu Guardião, o Pretório Excelso, por agressão a cláusulas pétreas.
Para tanto, o caminho processual indicado é a ação direita de inconstitucionalidade, que permitirá, em controle concentrado ou abstrato de constitucionalidade,
a pronta manifestação da mais Alta Corte do país.
E, à evidência, pertinência temática existe se proponente for a Confederação
Nacional do Comércio, visto que as empresas comerciais estão estabelecidas em algum imóvel, necessariamente sujeito à incidência do IPTU ou, o que é menos provável, a possível isenção.
Nada mais lógico que em defesa dos associados dos Sindicatos que compõem
as Federações que constituem a CNC, quase todas eles estabelecidos em imóveis incididos pelo IPTU, ingresse, a Confederação, com o veículo processual enunciado
no artigo 102, inciso I, letra “a” da Constituição Federal, no S.T.F. para obter, em medida cautelar, a suspensão de eficácia ex nunc da parte da E.C. nº 29/2000, que introduziu a progressividade do IPTU.
III. RESPOSTA AO QUESITO
Apresentados e discutidos os fundamentos doutrinários e o embasamento
constitucional norteadores da presente análise, a resposta ao quesito formulado é a
que se segue:
33 “IPTU em pauta e em Ata”, na seção “Espaço Aberto”, 8 de novembro de 2001. Roberto Macedo, economista, é
professor na Universidade Mackenzie.
34 Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, Rio: Forense, 1977, p. 363
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Não pode o constituinte derivado promulgar emenda constitucional autorizativa de novas formas de alíquotas progressivas para o
IPTU; é inconstitucional a modalidade de progressividade “introduzida” pela emenda 29/2000. O Município só pode fixar alíquotas
progressivas, em relação ao IPTU, no tempo, na hipótese de inobservância aos requisitos fixados pela Constituição Federal (art.
182, § 4o, II).
É o parecer, s.m.j.
São Paulo, 08 de março de 2002.
As Aposentadorias Parlamentares
e a constituição
1
Marcílio Toscano Franca Filho
Procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da Paraíba,
Mestre (UFPB/1999) e Doutorando em Direito (Universidade de Coimbra)
Autor de “Introdução ao Direito Comunitário” (São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002)
Ex-Professor do Departamento de Direito Público da UFPB
Ex-aluno da Universidade Livre de Berlim (Alemanha)
PARECER
Constitucional, Administrativo e Previdenciário. Aposentadoria Parlamentar
Precoce. Inconstitucionalidade. Ofensa à Moralidade Administrativa e às Regras Gerais Constitucionalmente Estabelecidas. Precedente desta Corte de Contas e Ausência de Pronunciamento do STF em Sede de Controle Concentrado de Constitucionalidade. Impossibilidade de acumulação de proventos de Deputado Estadual e de
Procurador do Estado. Denegação do Registro ao Ato Aposentatório.
1. Ao não tomar conhecimento da ADIn nº 512-PB, no ponto que aqui se discute, o plenário do Supremo Tribunal Federal nunca chegou a apreciar a
constitucionalidade (o mérito) das aposentadorias dos ex-deputados esta1 O presente parecer reproduz, com ligeiras alterações, a manifestação que o autor proferiu nos autos de um processo de aposentadoria parlamentar submetido ao Tribunal de Contas da Paraíba (TCE/PB). Como o ato aposentatório fora editado bem antes da EC 20/98, as alterações constitucionais decorrentes da “Reforma da Previdência”
não mereceram maiores consideração ao longo do texto.
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duais paraibanos em cotejo com o texto original da CF/88. O entendimento da Corte Suprema tem sido sempre no sentido de que resta prejudicado (sem julgamento de mérito) o exame concentrado de constitucionalidade ante a superveniência de novo texto constitucional incompatível com
o texto infraconstitucional cuja constitucionalidade se pretendia examinar.
O exame difuso e concreto, porém, resta sempre salvaguardado.
2. A aposentadoria parlamentar precoce, aos oito anos de mandato, ofende
objetivamente o princípio constitucional da moralidade administrativa posto que denota uma contradição entre os fins do instituto da aposentadoria
(solidariedade social com quem já não deve mais trabalhar) e os fins alcançados pelo legislador estadual (remuneração sem trabalho a quem se encontra em pleno gozo das capacidades laborais). O argumento da existência de previsão semelhante em outros ordenamentos jurídicos é pífio, pois,
diante da constatação óbvia da inexistência de uma “moral universal”, nem
tudo que é moral no exterior é moral no Brasil. E vice-versa.
3. A competência legislativa concorrente em matéria previdenciária (art. 24,
inc. XII, CF/88) exige obediência compulsória às regras gerais estabelecidas
já na própria Constituição (art. 25 CF/88). Assim, o antigo §2º do art. 40 da
CF/88 não poderia servir de fundamento para modalidade de aposentadoria por tempo de serviço não prevista no esquema geral do primitivo caput do art. 40. As únicas exceções previstas na CF/88 seriam as estabelecidas por lei complementar, na forma do §1º do art. 40 da CF/88, com a redação anterior à Reforma da Previdência. A diferença entre as espécies legislativas referidas no §1º (lei complementar) e no §2º (lei ordinária) comprovam a diversidade de objetivos do legislador constituinte originário: a
primeira institui exceções à aposentadoria por tempo de serviço, a segunda apenas regulamenta hipóteses aposentatórias já previstas.
4. A acumulação de proventos somente é permitida quando se tratar de
cargos, funções ou empregos acumuláveis na atividade, na forma permitida pela Constituição Federal e conforme o leading case do Supremo Tribunal Federal (RE-163204/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU 31-0395, p. 7779). Se é expressamente defeso pela Constituição Estadual o
exercício simultâneo de mandato de Deputado Estadual com o de cargo de Procurador do Estado, logicamente, pois, a percepção conjunta
de proventos decorrentes do exercício destes mesmos cargos é também vedada.
5. O Plenário desta Corte de Contas já firmou precedente sobre a inconstitucionalidade da criação de modalidade de aposentadoria não prevista no
Texto Magno (Processo TC 1786/86).
6. Recomendação de que se negue o registro ao ato aposentatório.
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347
Cuida-se de processo advindo da eg. Assembléia Legislativa do Estado da Paraíba relativo à aposentadoria parlamentar voluntária do ex-Deputado (...), aos
13 anos, 08 meses e 12 dias de mandato, para fins de registro nesta eg. Corte de Contas. O ato aposentatório é bem anterior à Reforma Constitucional da Previdência
(EC 20/98).
Em sua manifestação técnica, a d. Auditoria, após examinar a documentação
encartada aos presentes autos, opinou pela regularidade do ato aposentatório e
dos cálculos proventuais.
Colocado em julgamento pelo eminente Conselheiro Relator, na última sessão
da eg. Segunda Câmara, o processo saiu de pauta, a meu pedido, para melhor exame da matéria.
É o relatório. Passo a opinar.
I. Instada a apresentar os subsídios técnicos necessários ao exame do ato aposentatório ora apreciado, a Auditoria do Tribunal de Contas da Paraíba mencionou o
julgamento “de mérito” (sic), no âmbito do Supremo Tribunal Federal, de Ação Direta de Inconstitucionalidade que versava sobre as aposentadorias parlamentares
paraibanas. Com efeito, a ADIn nº 512-PB, proposta em 1991 pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), tinha por objeto a declaração de inconstitucionalidade do
art. 270, parágrafo único, da Constituição Estadual da Paraíba2, sob o argumento de
que o aludido dispositivo feriria os princípios da moralidade e da autonomia dos
municípios.
Conforme se lê na Revista Trimestral de Jurisprudência do STF (nº 140, p.
430 e ss.), o Relator da ADIn, ínclito Ministro Marco Aurélio, em decisão monocrática datada de 03 de julho de 1991, ordenou a suspensão liminar da vigência do referido dispositivo constitucional estadual, assim argumentando:
Concedi a cautelar, porque como está a Lei é possível a um ex-deputado, que não tenha ainda trinta anos de serviço, que tenha
apenas exercido dois mandatos - oito anos - aposentar-se, obtendo
a denominada aposentadoria precoce.
Em 20 de fevereiro de 1992, ao apreciar a liminar concedida, o Tribunal
Pleno, entretanto, decidiu por maioria3 não referendá-la, restaurando parcialmen2 Art. 270. O titular de mandato eletivo ou função temporária estadual ou municipal, terá direito a aposentadoria proporcional ao tempo de exercício, nos termos da lei.
Parágrafo único. O benefício a que se refere o caput deste artigo será concedido àquele que contar com, pelo
menos, oito anos de serviço público em qualquer das funções mencionadas.
3 Entenderam negar referendo à liminar concedida os Ministros Sepúlveda Pertence, Paulo Brossard, Sydney Sanches,
Neri da Silveira e Otávio Galloti. Referendaram a liminar os Ministros Marco Aurélio (Rel.), Ilmar Galvão, Carlos Veloso e Celso de Mello. O Ministro Célio Borja declarou-se impedido e o Ministro Moreira Alves estava ausente.
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te a eficácia do art. 270, parágrafo único, da CE/89. Decidiu a nossa Suprema Corte
suspender a eficácia apenas da expressão “ou de função temporária” contida no caput do art. 270 da CE/89.
A liminar é um meio processual clássico de proteção jurisdicional provisória que visa apenas assegurar a efetividade da tutela jurisdicional definitiva. A
medida liminar é um provimento cautelar admitido na legislação processual cuja
função é neutralizar os riscos de que a duração do processo torne irrealizável ou
inútil o resultado da demanda. De tal raciocínio decorre que a concessão de liminar
exige: 1º) a previsão de que a tutela principal com determinado conteúdo será prestada; e 2º) a ameaça de prestação não efetiva dessa mesma tutela. Estes são os requisitos específicos para a concessão de liminares, que, tradicionalmente, assumem
a denominação de fumus boni juris e periculum in mora, respectivamente. A liminar visa garantir o processo, ou melhor, o direito da parte a um processo eficaz. Assim, por meio da concessão ou denegação de liminar em Ação Direta de Inconstitucionalidade não se faz nenhum julgamento antecipado do mérito da
demanda, mas apenas avalia-se a presença simultânea da relevância do fundamento jurídico e da possibilidade de resultar ineficaz a prestação jurisdicional se concedida somente ao fim da demanda. Conclui-se, portanto, que a denegação da liminar
na ADIn 512-PB não importou em nenhuma repercussão na questão de fundo
da ação, a (in)constitucionalidade do parágrafo único, do art. 270, da Constituição
do Estado.
A 03 de março de 1999, após, portanto, o advento da Reforma Constitucional da Previdência, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade4, julgou
prejudicada (sem julgamento de mérito) a ADIn nº 512-PB no que toca aos parlamentares estaduais da Paraíba e, neste ponto, dela não tomou conhecimento,
em razão do art. 270 e seu parágrafo único da Constituição Estadual da Paraíba terem sido implicitamente revogados pela Emenda Constitucional Federal nº 20,
de 15 de dezembro de 1998, que aboliu a aposentadoria por tempo de serviço, permitindo-a, apenas, por contribuição. Nesse particular, aquele acórdão do Supremo
Tribunal Federal mereceu a seguinte ementa:
CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE. MUDANÇA SUPERVENIENTE DO TEXTO CONSTITUCIONAL. Possível conflito de normas com o novo texto constitucional resolve-se no campo
da revogação, não ensejando o controle concentrado de constitucionalidade. (...) (STF, ADIn 512-0/PB, Rel. Min. Marco Aurelio, DJU
de 18.06.2001, g. n.)
4 Ausente o então Presidente, Min. Celso de Mello; presidiu o julgamento o Min. Carlos Velloso.
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Do voto do eminente Min. Marco Aurélio, relator do processo, colhem-se os
fundamentos jurídicos que impediram o julgamento definitivo de mérito sobre as aposentadorias dos ex-deputados estaduais paraibanos. In verbis:
Quanto à regência estadual, verifica-se normatividade decorrente
da Emenda Constitucional nº 20 discrepante da anterior. Hoje a aposentadoria linear proporcional não mais subsiste. Destarte, tenho
por prejudicada a ação, no particular, ante a mudança ocorrida e a
jurisprudência segundo a qual possível descompasso entre a norma
legal e a constitucional superveniente resolve-se no campo da revogação. Por tal razão, conheço desta ação direta de inconstitucionalidade apenas no ponto em que se ataca a expressão contida no artigo 270 “ou municipal”. (p. 09 nos originais, g. n.)
Ao acompanhar unanimemente o voto do preclaro Ministro Relator, o plenário do Supremo Tribunal Federal nunca chegou a apreciar a constitucionalidade
das aposentadorias dos ex-deputados estaduais paraibanos na ADIn nº 512-PB em
cotejo com o texto original da Constituição Federal de 1988. Aliás, o entendimento
da nossa Suprema Corte tem sido sempre no sentido de que resta prejudicado o
exame concentrado de constitucionalidade ante a superveniência de novo texto
constitucional incompatível com o texto infraconstitucional cuja constitucionalidade se pretendia examinar. A racionalidade dessa postura hermenêutica é simples
e irrefutável:
O controle de constitucionalidade em tese, por via de ação direta,
não se destina à tutela de situações jurídicas individuais. Sua finalidade principal é a de assegurar a supremacia da Constituição e a
conseqüente conformação de toda a ordem jurídica. Disso resulta
que só deve caber o controle de constitucionalidade, em via principal, perante Constituição em vigor. Fugiria ao desiderato de
guarda da Constituição a possibilidade de se pronunciar, em tese,
a inconstitucionalidade de uma norma em face de Constituição
anterior, já revogada.5
Assim, uma vez promulgado um novo texto constitucional não é mais possível ao Supremo Tribunal Federal prosseguir no controle em tese e concentrado
da constitucionalidade, pela via da Ação Direta, restando admissíveis às partes interessadas, porém, todas as demais formas processuais de controle concreto e di-
5 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 91.
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fuso. Disso resulta que o julgamento sem mérito da ADIn 512, no ponto que aqui
se discute, não tem o condão de produzir quaisquer efeitos sobre os julgamentos de
atos aposentatórios de ex-deputados estaduais paraibanos desta Corte de Contas.
II. Neste instante, o eg. Tribunal de Contas do Estado da Paraíba se põe diante de um caso concreto: apreciar, para fins de registro, a legalidade de ato concessório de aposentadoria do ex-Deputado (...), conforme ordena a Constituição Federal (art. 71, III, c/c art. 75) e a Lei Orgânica desta Corte (art. 1º, VI). Apreciar a legalidade de certo ato administrativo significa examinar a sua conformidade com o sistema jurídico vigente ao tempo de sua concessão e, sobretudo, apreciar-lhe a adequação em relação às normas constitucionais então em vigor, afinal a inconstitucionalidade é a espécie mais conspícua de ilegalidade.
Conforme já expressei em artigo doutrinário6, não resta dúvida de que ao Tribunal de Contas não cabe, por absoluta incompetência, declarar a inconstitucionalidade de lei. Entretanto, há que se distinguir entre declaração de inconstitucionalidade e não aplicação de norma inconstitucional, pois essa é obrigação de
qualquer Tribunal ou órgão de qualquer dos Poderes do Estado7. A melhor doutrina é unânime em reconhecer a competência do Tribunal de Contas para negar aplicação a norma que entenda inconstitucional. O Prof. Themístocles Brandão Cavalcanti, ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, foi enfático neste sentido:
Outra indagação é se o Tribunal de Contas pode deixar de aplicar
um ato por inconstitucional. A resposta não me parece ser outra
senão afirmativa. Tecnicamente, o processo de aplicação da lei
conduz à verificação da constitucionalidade, e, portanto, verificado o conflito com a Constituição, deve esta prevalecer.
Exerce o Tribunal de Contas o controle de constitucionalidade
usando apenas da técnica da interpretação que conduz à valorização da lei maior. Neste ponto tem aplicado o princípio da
supremacia da Constituição. Não pode, entretanto, anular o
ato, nem anular a lei, mas apenas deixar de aplicá-la por inconstitucional.
Ao poder Judiciário cabe a competência privativa de declarar a
inconstitucionalidade, mas qualquer dos poderes responsáveis
pela aplicação de uma lei, ou de um ato, pode deixar de aplicálos quando exista um preceito constitucional que com eles conflite de maneira ostensiva, evidente. Privativo do Poder Judiciá6 FRANCA FILHO, Marcílio Toscano. Os Tribunais de Contas e o Controle da Constitucionalidade. Boletim de Direito Administrativo. n. 9, p. 705-706, 2001.
7 Conforme dicção do próprio STF, no Recurso de Mandado de Segurança nº 8.372-Ceará, Rel. Min. Pedro Chaves,
julgado em 11.12.61.
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rio é considerar inválido o ato ou a lei em face da Constituição.8
Mais recentemente, o Prof. Ricardo Lobo Torres, renomado financista da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ao se referir ao controle da legalidade pelos
Tribunais de Contas também asseverou:
O controle da legalidade implica ainda o da superlegalidade,
ou seja, o da constitucionalidade das leis e atos administrativos. (...) A inconstitucionalidade das leis in abstracto não a decretam o Tribunal de Contas nem os órgãos de controle externo
ou interno, posto que, além de não exercerem função jurisdicional, limitam-se a apreciar casos concretos. Mas a inconstitucionalidade dos atos administrativos pode ser reconhecida in
casu pelos órgãos encarregados do controle, que se negarão a
aprová-los ou a dar quitação aos responsáveis, alinhando-se com
a lei e a Constituição. (...) A declaração incidental da inconstitucionalidade tornou-se evidente no texto de 1988, mercê da
possibilidade de controle da legitimidade.9
Acompanhando o mesmo entendimento, o ex-Conselheiro do Tribunal de
Contas do Estado de São Paulo, Dr. José Luiz de Anhaia Mello, em primoroso livro
dedicado ao tema10, assim fez observar:
(...)Quando um órgão da Administração se indispõe contra uma
‘lei’ inconstitucional, deve-se considerar que ele se põe ao lado, em
defesa da Constituição. Esse o ponto que deve ser repisado para
que não se furtem de assim agir aqueles que, num dado momento,
e à vista de suas funções, devam atuar. (...) De fato, se a ‘lei’ inconstitucional é um abantesma jurídico, se não existe, não deve
um Tribunal tratá-la como elemento hábil, sob pena de dar efeitos
jurídicos a algo nulo e não simplesmente anulável. (...) O Tribunal
de Contas tem pois o poder-dever de negar cumprimento a leis flagrantemente inconstitucionais.
8 CAVALCANTI, Themístocles Brandão. O Tribunal de Contas - Órgão Constitucional: Funções próprias e funções
delegadas. In: Revista de Direito Administrativo. n. 109, jul/set 1972, p. 8.
9 TORRES, Ricardo Lobo. O Tribunal de Contas e o Controle da Legalidade, Economicidade e Legitimidade. In:
Revista de Informação Legislativa. a. 31, n. 121, jan/mar 1994, p. 266-267.
10 MELLO, José Luiz de Anhaia. Da Competência do Tribunal de Contas para Negar Aplicação a Leis Inconstitucionais. São Paulo: Saraiva, 1965.
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Ao lado da caudalosa doutrina, o próprio Supremo Tribunal Federal, ao editar
a Súmula 347, reconheceu que “o Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público”. Diante de tantos argumentos, inexiste dúvida acerca do poder-dever de que
dispõe o TCE/PB para, ao julgar, para fins de registro, a legalidade do ato de aposentadoria do ex-Deputado (...), negar aplicação à norma que afronte a Constituição. Passo, pois, ao exame da (in)constitucionalidade do ato aposentatório em cotejo com a redação da Carta Magna anterior à Reforma da Previdência.
III. O presente processo cuida da aposentadoria especial precoce concedida aos parlamentares estaduais paraibanos através de plano de previdência parlamentar instituído pela Lei Estadual 5.23811, de 24 de janeiro de 1990, que veio regulamentar a lacuna técnica do art. 270 da Constituição do Estado, de 05 de outubro de 1989, cuja redação dispõe, in verbis:
Art. 270 - O titular de mandato eletivo ou de função temporária, estadual ou munícipal12, terá direito a aposentadoria proporcional
ao tempo de exercício, nos termos da lei.
Parágrafo único - O benefício a que se refere o caput deste artigo
será concedido àquele que contar com, pelo menos, 08 (oito) anos
de serviço público em qualquer das funções mencionadas.
O sistema previdenciário proposto pela Lei Estadual 5.238/90 pode ser sintetizado pelas seguintes diretrizes básicas:
• Competia ao Instituto de Previdência do Estado da Paraíba (IPEP) administrá-lo, na forma de seu regulamento, e ao Tesouro Estadual destinar os
recursos complementares necessários ao respectivo custeio (art. 3º, parágrafo único).
• Os benefícios básicos concedidos eram a aposentadoria, a pensão e o auxílio funeral (art. 2º).
• O período de carência, contado a partir da data em que o deputado assume o exercício do mandato (art. 6º), é de 96 contribuições mensais (oito
anos) para a concessão de aposentadoria voluntária (art. 7º, II).
• O valor da aposentadoria é proporcional aos anos de contribuição e calculado à razão de 1/24 por ano, não podendo ser inferior a 50% do salário de contribuição (art. 11).
11 Revogada pela Lei Estadual 6.718, de 12 de janeiro de 1999, em consonância com a EC 20/98.
12 Único trecho da norma estadual considerada inconstitucional no julgamento da ADIn 512-PB, por afrontar a autonomia municipal.
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353
Das disposições daquela norma legal, pode-se inferir que o plano de previdência parlamentar instituído não era concedido por instituto previdenciário privado
(próprio dos parlamentares), custeado unicamente pelas contribuições compulsórias e voluntárias dos seus filiados e pela renda auferida de seu patrimônio. O plano
adotado pelos parlamentares paraibanos era, sim, um plano público, com participação obrigatória do erário público no seu custeio. Ademais, vê-se que, aos oito
anos de mandato, qualquer deputado estadual paraibano poderia se aposentar com
proventos proporcionais, nunca inferiores a 50% do salário de contribuição, e,
aos vinte e quatro anos, com proventos integrais.
Ao julgar um caso análogo ao dos presentes autos, o col. Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo se pronunciou pela total inconstitucionalidade da norma
instituidora de aposentadoria especial a parlamentar, aos oito anos de mandato. Do
referido acórdão13, da lavra do insigne Desembargador Leite Cintra, pode-se extrair
lição magistral, aplicável à hipótese tratada nos presentes autos:
Ementa: INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal. Aposentadoria Especial para Vereador. Carência de apenas 8 anos de contribuição, com repasse de verba pública para cobrir déficit técnico.
Inadmissibilidade. Requisitos específicos que não podem ser alterados pela legislação ordinária. Artigo 40 da Constituição da República. Violação ao princípio constitucional da moralidade administrativa. Sentença Confirmada. Recursos não provido.
[Voto:] (...) A Lei Municipal nº 1.132, de 04.01.1977, autorizou a
Câmara Municipal de Moji Mirim a realizar convênio com o
IPESP [Instituto de Previdência do Estado de São Paulo] para extensão a seus vereadores das disposições da Lei nº 951, de 14.01.1976,
alterada pela Lei nº 1.002, de 16.06.1976, que instituiu a Carteira
de Previdência dos Deputados à Assembléia Legislativa do Estado
de São Paulo, com o objetivo de assegurar a pensão mensal aos deputados e vereadores do Estado de São Paulo e pensão mensal aos
seus dependentes (fls. 172).
Pelo referido sistema previdenciário, o parlamentar ou ex-parlamentar interessado se aposenta com apenas oito anos de contribuição à Carteira de Previdência, bastando, para tanto, o exercício efetivo de um único mandato parlamentar, de quatro anos.
É manifesta a inconstitucionalidade desse regime especial de aposentadoria, como já anotado no parecer do Prof. Celso Bastos, encartado nos autos às fls. 44/62.
13 Apelação Cível 193.482-1, São Paulo, Rel. Des. Leite Cintra, 09.12.93.
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faculdade de direito de bauru
De fato, compete à União legislar sobre previdência social, nos termos do inciso XII do art. 24 da Constituição Federal. Aos Estados e
Municípios a competência, concorrente, é de caráter supletivo, sujeitando-se às normas gerais traçadas pela União.
Conforme leciona Hely Lopes Meirelles, os requisitos para a aposentadoria, tais como estabelecidos na Constituição, não podem
ser alterados pela legislação ordinária.
No mesmo sentido, Adilson de Abreu Dallari assegura a taxatividade das normas constitucionais federais, sendo certo que as Constituições Estaduais não poderão criar novas aposentadoria especiais de qualquer natureza, a qualquer titulo ou motivo.
As regras gerais para aposentadoria estão traçadas no art. 40 da
Constituição da República. As exceções, no caso de exercício de atividades consideradas penosas, insalubres ou perigosas, somente
poderão ser estabelecidas por lei-complementar, conforme dispõe o
parágrafo 1º do art. 40 da Lei Magna.
Por essa razão, a Lei nº 951/76, que estabeleceu a pensão parlamentar após a carência de apenas oito anos de contribuição, efetivamente criou regime especial incompatível com o sistema previdenciário estatuído pela Lei Maior, conforme assentado na declaração de voto vencedor do Eminente Desembargador José Osório,
na Ação Rescisória nº 101.711-1, julgada pela Colenda Oitava Câmara desse Egrégio Tribunal de Justiça.
Segundo ainda o Eminente Juiz, não existe justificativa racional
para o desigual tratamento jurídico, ou seja, para a precocidade
da aposentadoria, pois a atividade de deputado e vereador não é
excepcionalmente penosa e desgastante para justificar, racional e
logicamente, o encurtamento do prazo. Não está em jogo a relevância (que é inegável) da atividade parlamentar para toda a sociedade
e para a vida democrática. O que tem que ser levado em conta são as
condições de dureza, de sofrimento, de perigo, de insalubridade,
como está implícito, mas evidente, no art. 103 da Constituição da
República de 1967, no parágrafo 1º do art. 94 da Constituição Estadual de 1969, e explicito no parágrafo 1º do art. 40 da Constituição da República de 1988 (fls. 410/411).
Por último, os atos impugnados, à evidencia, são lesivos à moralidade administrativa, erigida à categoria de principio constitucional,
consagrado no art. 37 da Lei Maior. Por essa razão, são passíveis
de anulação, como fundamento autônomo, por esta via adequada de ação popular, nos termos do art. 5º, LXXIII, da Constituição
Federal.
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A moralidade administrativa, doutrina Hely Lopes Meirelles, constitui, hoje em dia, pressuposto de validade de todo ato da Administração Pública (CF, art. 37, caput). Não se trata - diz Hauriou, o sistematizador de tal conceito - da moral comum, mas sim de uma
moral jurídica, entendida como o conjunto de regras de conduta
tiradas da disciplina interior da Administração.
Por considerações de direito e de moral, o ato administrativo não
terá que obedecer somente à lei jurídica, mas também à lei ética
da própria instituição, porque nem tudo que é legal é honesto... A
moral comum é imposta ao homem para a sua conduta externar
a moral administrativa é imposta ao agente publico para sua conduta interna, segundo as exigências da instituição a que serve e a
finalidade de sua ação: o bem comum.
A atuação parlamentar de legislar em causa própria, por sua
iniciativa, editando a lei municipal que autorizou o convênio
com a Carteira de Previdência, instituindo o benefício de aposentadoria especial, no curto prazo de oito anos de contribuição, com repasse de verba publica para cobrir déficit técnico,
obviamente que desvia do bem comum colimado pela Administração ao mesmo tempo que ofende o principio constitucional da
moralidade administrativa.
Ainda, do mesmo acórdão paulista, pode-se extrair brilhante ensinamento da
Declaração de Voto Vencedor do Des. Godofredo Mauro:
A moralidade administrativa foi maculada de forma indelével pela
lei municipal. Como consta da lição do saudoso mestre Hely Lopes
Meireles “...o ato administrativo não terá que obedecer somente à
lei jurídica, mas também à lei ética da própria instituição porque
nem tudo que é legal é honesto...” citado pela I. Procuradoria (fls.
427).
Assim, é de todo inadequada a situação dos legisladores municipais, que, olvidando-se do dever maior que comete seus mandatos
e que consiste na busca do “bem comum”, usam-no para cumular
vantagens individuais, em detrimento dos municípios que representam.
Em suma, conforme o abalizado entendimento do eg. Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo, duas ordens de argumentos maculam a aposentadoria precoce dos parlamentares estaduais com o estigma da inconstitucionalidade: em primeiro lugar, a afronta ao princípio da moralidade administrativa e, em segundo
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faculdade de direito de bauru
lugar, a afronta à gramática constitucional do instituto da aposentadoria, prevista na redação original do caput art. 40 da Constituição Federal de 1988.
IV. Sobre a ofensa à moralidade administrativa, importa destacar desde
logo que a concessão dessa forma de aposentadoria precoce aos parlamentares
em outros ordenamentos jurídicos – ao que parece na Alemanha, Dinamarca, Suécia, Israel, Estados Unidos e França – nunca a tornará conforme a moral administrativa brasileira. O argumento segundo o qual a aposentadoria precoce é legítima
porque concedida em outros ordenamentos é falacioso. Ora, a moral, justamente
por ser um produto humano e cultural, varia histórica e geograficamente nas diferentes sociedades. É, portanto, impossível uma moral universal – a moral diz respeito a cada povo, em cada época. Essa é a lição do eminente professor e filósofo espanhol, naturalizado mexicano, Adolfo Sánchez Vázquez, catedrático da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Nacional Autônoma do México:
Se por moral entendemos um conjunto de normas e regras destinadas a regular as relações dos indivíduos numa comunidade social
dada, o seu significado, função e validade não podem deixar de variar historicamente nas diferentes sociedades. Assim como umas sociedades sucedem a outras, também as morais concretas, efetivas,
se sucedem e substituem umas às outras. Por isso, pode-se falar da
moral da Antigüidade, da moral feudal própria da Idade Média,
da moral burguesa na sociedade moderna etc. Portanto, a moral é
um fato histórico e, por conseguinte, a ética como ciência da moral, não pode concebê-la como dada de uma vez para sempre, mas
tem de considerá-la como um aspecto da realidade humana mutável com o tempo. Mas a moral é histórica precisamente porque é
um modo de comportar-se de um ser – o homem- que por natureza é histórico, isto é, um ser cuja característica é a de estar-se fazendo ou se autoproduzindo constantemente tanto no plano de sua
existência material, prática, como no de sua vida espiritual, incluída nesta a moral.14
À guisa de exemplo, poderiam ser citadas aqui diversas outras condutas que,
tanto quanto a aposentadoria parlamentar precoce, embora morais na Alemanha,
na Dinamarca, na Suécia, em Israel, nos Estados Unidos ou na França, são amorais
ou mesmo imorais no Brasil. Aborto, casamento entre homossexuais, circuncisão
obrigatória, pena de morte, ablação feminina, descriminalização das drogas e eutanásia são apenas alguns dos muitos temas polêmicos.
14 VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p. 25.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
357
E por que a aposentadoria precoce dos parlamentares estaduais é objetivamente imoral no Brasil? Ora, a natureza da aposentadoria no ordenamento jurídico brasileiro, longe de ser uma benesse, uma mordomia ou uma sinecura, é a garantia retributiva da inatividade remunerada reconhecida àqueles que já prestaram
longos anos de serviço ou se tornaram incapacitados para as suas funções. Fundada na solidariedade social, a natureza da aposentadoria é a de amparar aquele que já trabalhou durante muitos anos ou já não pode mais trabalhar. A aposentadoria precoce, ao fim de oito anos de mandato, estatuída pela Assembléia Legislativa paraibana refoge àquelas nobres finalidades do instituto aposentatório, configurando uma flagrante contradição entre os fins alcançados pelo legislador (remuneração sem trabalho a quem se encontra em pleno gozo das capacidades laborais) e os fins visados pelo instituto (solidariedade social com quem já não deve
mais trabalhar) – daí a sua objetiva imoralidade. Ao ser concedida precocemente
àqueles que ainda gozam de plenas faculdades para o trabalho a aposentadoria parlamentar paraibana ofende às próprias razoabilidade e racionalidade do instituto da aposentadoria.
Nesse mesmo diapasão é a lição magistral do Min. Themístocles Brandão Cavalcanti repetida em precedente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região:
(...) 2 - “O instituto da aposentadoria é, antes de tudo, uma conquista social, fundada em um princípio de justiça que não permite
o abandono na miséria, depois de velhice ou da invalidez, daquele
que prestou o seu serviço ao Estado” (Themístocles Cavalcanti), e
não um meio de ganhar mais do Estado, num país em que o desemprego alcança taxas altíssimas. (...) (TRF 1ª Região, MS
94.01.26062-1/DF, Rel. Des. Fed. Tourinho Neto, DJ 19/12/1994, p.
73862)
Configurada a radical contradição entre os fins alcançados pelo legislador
estadual e os fins visados pelo instituto da aposentadoria, inegável se torna a imoralidade do instituto por afronta à razoabilidade. Nesse diapasão, o sempre digno Supremo Tribunal Federal assegurou lição indelével:
O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa
está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade - que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do substantive due process of law - acha-se vocacionado a inibir e a neutrali-
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faculdade de direito de bauru
zar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. A norma estatal, que não veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, presta obséquio ao
postulado da proporcionalidade, ajustando-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do substantive due
process of law (CF, art. 5º, LIV). Essa cláusula tutelar, ao inibir os
efeitos prejudiciais decorrentes do abuso de poder legislativo, enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencialmente limitada, ainda
que o momento de abstrata instauração normativa possa repousar em juízo meramente político ou discricionário do legislador.
(Supremo Tribunal Federal, ADIMC-1407/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 24-11-00, p. p. 86)
V. Quanto à afronta à gramática constitucional do instituto da aposentadoria, importa destacar que, na redação original da Constituição Federal de 1988 (art.
40 e seus parágrafos15) já constavam quais as hipóteses em que se davam as aposentadorias dos servidores e as respectivas exceções (como constam ainda hoje). As
aposentadorias previstas constitucionalmente eram as seguintes:
15 Art. 40. O servidor será aposentado:
I - por invalidez permanente, sendo os proventos integrais quando decorrentes de acidente em serviço, moléstia
profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável, especificadas em lei, e proporcionais nos demais casos;
II - compulsoriamente, aos setenta anos de idade, com proventos proporcionais ao tempo de serviço;
III – voluntariamente:
a) aos trinta e cinco anos de serviço, se homem, e aos trinta, se mulher, com proventos integrais;
b) aos trinta anos de efetivo exercício em funções de magistério, se professor, e vinte e cinco, se professora, com
proventos integrais;
c) aos trinta anos de serviço, se homem, e aos vinte e cinco, se mulher, com proventos proporcionais a esse tempo;
d) aos sessenta e cinco anos de idade, se homem, e aos sessenta, se mulher, com proventos proporcionais ao tempo de serviço.
§1º - Lei complementar poderá estabelecer exceções ao disposto no inciso III, “a” e “c”, no caso de exercício de
atividades consideradas penosas, insalubres ou perigosas.
§2º - A lei disporá sobre a aposentadoria em cargos ou empregos temporários.
§3º - O tempo de serviço público federal, estadual ou municipal será computado integralmente para os efeitos
de aposentadoria e de disponibilidade.
§4º - Os proventos da aposentadoria serão revistos, na mesma proporção e na mesma data, sempre que se modificar a remuneração dos servidores em atividade, sendo também estendidos aos inativos quaisquer benefícios
ou vantagens posteriormente concedidos aos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou reclassificação do cargo ou função em que se deu a aposentadoria, na forma da lei.
§5º - O benefício da pensão por morte corresponderá à totalidade dos vencimentos ou proventos do servidor falecido, até o limite estabelecido em lei, observado o disposto no parágrafo anterior.
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359
1. Aposentadoria por invalidez permanente;
2. Aposentadoria compulsória aos setenta anos de idade;
3. Aposentadoria voluntária aos trinta e cinco anos de serviço, se homem, e
aos trinta, se mulher, com proventos integrais;
4. Aposentadoria voluntária aos trinta anos de efetivo exercício em funções de
magistério, se professor, e vinte e cinco, se professora, com proventos integrais;
5. Aposentadoria voluntária aos trinta anos de serviço, se homem, e aos vinte
e cinco, se mulher, com proventos proporcionais a esse tempo;
6. Aposentadoria voluntária aos sessenta e cinco anos de idade, se homem, e aos
sessenta, se mulher, com proventos proporcionais ao tempo de serviço.
A competência para legislar sobre previdência social está insculpida no art. 24,
inc. XII, da Constituição Federal16, que a arrola entre as matérias que se submetem à
competência legislativa concorrente dos entes federativos, ou seja, à União compete
estabelecer as normas gerais da matéria e aos Estados compete suplementá-las.
Neste tipo de competência, não se permite nunca dispensar ou alterar tudo aquilo
que a Constituição já estabeleceu como condições de eficiência, moralidade e aprimoramento do Estado brasileiro, ou seja, o cometimento de tal competência ao Estado-membro não autoriza, todavia, à Assembléia Estadual elaborações legislativas em
desacordo com os princípios constitucionais atinentes à matéria, pois a estes deve
obediência o legislador infraconstitucional. Destarte, não podem ser desconsideradas
as disposições constitucionais acerca do tema, sob pena de tornar inaplicável a legislação estadual. Nesse ponto, a Constituição Federal é clara:
Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e
leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.
Com referência à competência concorrente, prevista no art. 24 da Constituição Federal, é incontornável o magistério de Raul Machado Horta, in verbis:
As Constituições federais passaram a explorar, como maior amplitude, a repartição vertical de competências, que realiza a distribuição de idêntica matéria legislativa entre a União Federal e
os Estados-membros, estabelecendo verdadeiro condomínio legislativo, consoante regras constitucionais de convivência. A repartição vertical de competências conduziu à técnica da legisla16 Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;
§ 1º - No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
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faculdade de direito de bauru
ção federal fundamental, de normas gerais e de diretrizes essenciais, que recai sobre determinada matéria legislativa de eleição
do constituinte federal. A legislação federal é reveladora das linhas essenciais, enquanto a legislação local buscará preencher o
claro que lhe ficou, afeiçoando a matéria revelada na legislação
de normas gerais às peculiaridades e às exigências estaduais. A
Lei Fundamental ou de princípios servirá de molde à legislação
local. É a Rahmengesetz, dos alemães; a Legge-cornice, dos italianos; a Loi de Cadre, dos franceses; são as normas gerais do Direito Constitucional Brasileiro.17
In casu, as normas mais gerais sobre a matéria previdenciária já estavam inscritas no próprio caput do antigo art. 40 da CF/88, caberia ao legislador estadual observá-las ao dar concretude à sua competência concorrente. Na linha desse exato entendimento, o advogado e consultor jurídico José Roberto de Andrade,
em parecer publicado no respeitado Boletim de Direito Municipal18, ensinou:
A aposentadoria é, pois, um direito inteiramente regulado pela
Constituição. Esse é o modo de ver tranqüilamente aceito pela doutrina. Veja-se, nesse sentido, o que nos ensina o eminente Prof. Hely
Lopes Meireles:
‘Os requisitos para a aposentadoria, tais como estabelecidos na
Constituição, não podem ser alterados pela legislação ordinária. Somente quanto ao tempo de serviço para a aposentadoria (e também) para a reforma, transferência para a inatividade e disponibilidade), tendo em vista a natureza do serviço, se permitem exceções, assim mesmo através de lei complementar, consoante dispõe
o art. 40, § 1º, da Constituição. (...). (In Direito Administrativo Brasileiro, 1988, p. 387).
(...) Daí a conclusão do eminente jurista, endossando a lição de Temístocles Cavalcanti, no sentido de que as disposições constitucionais sobre a matéria constituem mesmo ‘um código de direitos e
obrigações que devem ser respeitados pelos Estados e municípios (e
também pela União) em suas leis ordinárias’.
Assim, a Constituição não só está acima de qualquer outra lei vigente no país, mas também revoga todas as leis e disposições que
lhe são contrárias. Por conseguinte, em face do exposto, não há
17 HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p. 366.
18 ANDRADE, José Roberto L. de. Carteira de Previdência de Vereadores e Prefeitos: Não há como se considerar
constitucional. In: BDM - Boletim de Direito Municipal. Out./94, p. 555-7.
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361
como opinarmos pela constitucionalidade da Carteira de Previdência de Vereadores e Prefeitos.
Desde 05 de outubro de 1988, portanto, as aposentadorias admitidas no ordenamento jurídico pátrio eram aquelas da redação primitiva do caput do art. 40 da
Constituição Federal. Nessa direção, o eminente Min. Marco Aurélio bem salientou:
O preceito da Carta do Estado da Paraíba não se restringe à disciplina da aposentadoria em cargo ou função temporária. Extravasa tal campo para cogitar da aposentadoria proporcional ao tempo
de serviço. No particular, ao primeiro exame, o preceito discrepa
de princípio constante da Lei Básica Federal. (Revista Trimestral de
Jurisprudência do STF, nº 140, p. 431)
As exceções previstas às aposentadorias por tempo de serviço o constituinte
tratou logo de especificar: lei complementar poderia estabelecer exceções no
caso de exercício de atividades consideradas penosas, insalubres ou perigosas
(art. 40, §1º). Outras exceções seriam inadmissíveis. Até mesmo as aposentadorias
em cargos ou empregos temporários, previstas na redação original do § 2º do
citado art. 40, teriam que obedecer às linhas de força descritas no caput e nos seus
incisos iniciais, afinal, como ensina a melhor técnica hermenêutica, o parágrafo é
tão só uma disposição marginal e secundária que segue o e depende do caput
do artigo. Essa lição elementar mas olvidada de interpretação e redação legislativas
é extraída do clássico compêndio de Hésio Fernandes Pinheiro:
“Paragraphus em latim e paragrapheus em grego é palavra composta de para (ao lado) e graphein (escrever). Assim, pela sua própria
etimologia, vê-se que parágrafo não é escrita principal e, sim, acessória, marginal, complementar do trecho escrito onde figura. (...) Estando o parágrafo intimamente relacionado com o artigo e sendo
ele, sempre, uma conseqüência deste, é lógico que se faça depender
o seu assunto diretamente do assunto daquele. Por isso, para a redação dos parágrafos, existem também regras próprias, não muitas, é verdade, mas que devem ser observadas. Vejamo-las: (...) 3ª
Regra – A regra fundamental, o princípio, nunca deve ser enunciado em parágrafo.”19
À vista de tais argumentos, é fácil concluir que as linhas de força, os princípios gerais, as balizas estruturantes das aposentadorias por tempo de serviço
19 PINHEIRO, Hésio Fernandes. Técnica Legislativa. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1962, p. 99 e 103.
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dos agentes públicos já estavam inscritas no caput do art. 40. No seu §1º estavam
as únicas exceções admitidas (exercício de atividades consideradas penosas, insalubres ou perigosas – o que, obviamente, não caracteriza a atividade parlamentar).
O §2º do art. 40 nunca autorizou outras exceções além daquelas previstas no §1º,
de modo que mesmo as aposentadorias em cargos ou empregos temporários
deveriam guardar obediência ao esquema lógico do caput, conforme o disposto
no art. 25 CF/88. Foi com esse entendimento que opinei favoravelmente à concessão de registro à aposentadoria do ex-Deputado Egídio Silva Madruga, que detinha
36 anos e nove dias de mandato, tempo mais que suficiente para a concessão do
benefício (Processo TC 6977/95, Parecer nº 106/98).
Se essa não fosse a hermenêutica pretendida pelo constituinte originário
de 1988 não teria ele exigido “lei complementar” para as exceções previstas no
§1º20 do art. 40 original e “lei ordinária” para as possíveis exceções do §2º21 do
mesmo artigo. Seria uma incongruência prever espécies legislativas distintas
para excepcionar a mesma coisa – a aposentadoria por tempo de serviço prevista no caput. A diferença entre espécies legislativas já demonstrava desde logo
que os objetos de ambas as normas eram distintos: a primeira cuidaria de exceções ao tempo de serviço necessário para a aposentadoria, a segunda de regular hipóteses já previstas de aposentadoria. Daí uma espécie legislativa mais
complexa e duradoura no §1º (lei complementar) e uma outra mais simples e
mutável no §2º (lei ordinária).
Nesse mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal assentou, ainda sob a vigência da Constituição anterior:
1. Somente Lei Complementar, de iniciativa exclusiva do Presidente da República, pode estabelecer exceções às regras de aposentadoria, compulsória ou voluntária, constantes do art. 101, II e III da
Constituição, haja vista o disposto no seu art. 103.
2. A legislação ordinária pretérita, institutiva de aposentadorias especiais, reduzindo o limite de idade para a aposentação, compulsória ou voluntária, está implicitamente revogada, a partir da vigência do texto constitucional inserto na Emenda n. 1, porque com ele
incompatível. Recurso extraordinario conhecido e provido. (STF,
RE-100596/DF, Rel. Min. Rafael Mayer, DJU 08-06-84, p. 9261)
Outro argumento que se poderia utilizar para justificar a aposentadoria precoce é o de que os Deputados, como agentes políticos que são, não se submete20 §1º - Lei complementar poderá estabelecer exceções ao disposto no inciso III, “a” e “c”, no caso de exercício
de atividades consideradas penosas, insalubres ou perigosas.
21 § 2º - A lei disporá sobre a aposentadoria em cargos ou empregos temporários.
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riam às regras gerais da redação original do art. 40 da CF/88, que se referia apenas a
“servidor”. Tal argumento também é pífio, afinal “servidor público” é uma expressão ampla, usada nos textos ora examinados de forma a abranger todos os agentes públicos, inclusive os agentes políticos.
Já demonstrei alhures22 que, entre os métodos clássicos de interpretação jurídica, Savigni já distinguia o gramatical, o sistemático e o histórico. Na competente
proposição de Karl Larenz, citada pelo eminente Prof. Luís Roberto Barroso23, a interpretação gramatical, também chamada de literal, semântica ou filológica,
“consiste na compreensão do sentido possível das palavras, servindo esse sentido
como limite da própria interpretação”. Segundo aquele método hermenêutico
deve-se examinar cada um dos termos normativos para que se possa compreender
o espírito da Lei. Apesar de constituir importante ferramenta de interpretação legal,
o método gramatical não pode ser exercido com um rigor técnico absoluto, pois,
dessa forma corre-se o rico de distorcer o conteúdo da norma.
Tomando-se por marco inicial de nossa argumentação esse modelo de interpretação gramatical para o referido art. 40 da CF/88, não há como se negar que o
dispositivo constitucional fala tão somente de servidores públicos. De fato, para
a doutrina administrativa, as categorias jurídicas do agente político e do agente administrativo nunca se confundiram. Nesse sentido, a lição do mestre Hely Lopes
Meirelles24 é esclarecedora:
Os agentes políticos exercem funções governamentais, judiciais e
quase judiciais, elaborando normas legais, conduzindo os negócios públicos, decidindo e atuando com independência nos assuntos de sua competência. (...) Nesta categoria se encontram os chefes do Executivo (Presidente da República, Governadores e Prefeitos) e seus auxiliares imediatos (Ministros e Secretários de Estado e
Município); os membros das corporações legislativas (Senadores,
Deputados e Vereadores); os membros do Poder Judiciário (Magistrados em geral); os membros do Ministério Público (Procuradores
da República e da Justiça, Promotores e Curadores Públicos); os
membros dos Tribunais de Contas (Ministros e Conselheiros); os representantes diplomáticos e demais autoridades que atuem com
independência funcional no desempenho de atribuições governamentais, judiciais ou quase-judiciais, estranhas ao quadro do servidor público.
22 FRANCA FILHO, Marcílio Toscano. A Lei Camata e a Remuneração dos Prefeitos e Vereadores. In: Boletim de
Direito Municipal. v.15, n.6, jun. 1999, p. 340 e ss.
23 BARROSO, op. cit., p. 119.
24 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: RT, 1991, p. 69.
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Agentes administrativos são todos aqueles que se vinculam ao Estado ou às suas entidades autárquicas e fundacionais por relações
profissionais, sujeitos à hierarquia funcional e ao regime jurídico
único da entidade estatal a que servem.
Resta observar entretanto que a moderna hermenêutica constitucional, embora partindo sempre da interpretação gramatical, tende atualmente a valorizar
outros modelos interpretativos, baseando-se para tanto em importantes contribuições de doutrinadores lusos ( Jorge Miranda e Gomes Canotilho) e germânicos
(Konrad Hesse, Friedrich Müller, Otto Bachoff ). É uma constatação óbvia que “a linguagem diz sempre algo mais do que o seu inacessível sentido literal, que já se
perdeu desde o início da emissão textual”25.
A interpretação gramatical, apesar de importante referencial teórico, se exercitada com um rigor absoluto, é um perigoso reducionismo técnico que muitas
vezes corre o risco de distorcer o espírito da norma. Não resta dúvida que a linguagem constitucional, sobretudo com a democratização dos processos constituintes, perdeu muito do rigor conceitual necessário à clareza e à objetividade de um
texto jurídico-científico. As Cartas contemporâneas, dado o amplo debate que as
cercam, se conquistam muito em direitos e garantias, perdem demais em rigor vocabular e precisão técnica. A esse respeito o Prof. Uadi Lamêgo Bulos já se pronunciou com firmeza:
Tanto a linguagem do constituinte como a linguagem do legislador infraconstitucional possuem o traço da naturalidade, ambas
entremeadas, aqui e acolá, de termos técnicos. Isso ocorre por
duas razões. A primeira, foi enfatizada por Paulo de Barros
Carvalho, ao notar que ‘os membros das Casas Legislativas, em
países que se inclinam por um sistema democrático de governo,
representam os vários segmentos da sociedade. Alguns são médicos, outros bancários, industriais, agricultores, engenheiros,
advogados, dentistas, comerciantes, operários, o que confere
um forte caráter de heterogeneidade, peculiar aos regimes que
se queiram representativos. E podemos aduzir que tanto mais
autêntica será a representatividade do Parlamento quanto
maior a presença, na composição de seus quadros, dos inúmeros setores da comunidade social’. A segunda razão consiste em
que as leis, no sentido mais lato do termo, não são redigidas de
uma maneira clara, deliberadamente, pois, para serem aprovadas, devem satisfazer compromissos de forças antagônicas,
25 ECO, Umberto. In: Les Limites de l´Interprétration, apud BARROSO, op. cit., p. 01.
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interesses de variadíssima gama. Isto gera vaguidades, ambigüidades e imprecisões.26
Com tais argumentos é fácil concluir que nem sempre o termo contido num
dispositivo normativo se apresenta com sua acepção técnico-jurídica. Portanto, a
interpretação que excepciona a aposentadoria precoce do parlamentar estadual dos
princípios gerais contidos no art. 40 da CF/88 afigura-se equivocada, mesmo
porque se a intenção do legislador constituinte era separar os agentes políticos teria que o fazer não só em relação aos representantes do Legislativo, mas também a
Ministros e Secretários de Estado e Município, aos membros do Poder Judiciário, aos
membros do Ministério Público, aos membros dos Tribunais de Contas, aos representantes diplomáticos e demais autoridades que atuem com independência funcional no desempenho de atribuições governamentais, judiciais ou quase-judiciais, estranhas ao quadro do servidor público. Diante de tantas exceções o controle da
moralidade e das finanças públicas, fim maior da norma constitucional em tela,
restaria fracassado.
Por tudo que foi exposto, fica claro que o parágrafo único do art. 270 da
Constituição do Estado da Paraíba era inconstitucional frente ao que estatuía
a redação original da CF/88. Do mesmo modo inconstitucional era a Lei Estadual 5.238, de 24 de janeiro de 1990, que veio regulamentar a lacuna técnica
daquele dispositivo estadual. Não resta dúvida, pois, que o eg. Tribunal de Contas da Paraíba deve negar aplicação às referidas normas, não concedendo o
necessário registro ao ato aposentatório em questão e advertindo para a imediata interrupção do seu pagamento. Ao proceder dessa maneira, essa Corte de Contas protege o erário público.
VI. Esta não será a primeira vez que o TCE/PB nega aplicação a norma inconstitucional que cria uma aposentadoria precoce. O Tribunal Pleno, ao apreciar
o Processo TC 1786/86, na sua 645ª Sessão Ordinária, em 16.03.86, decidiu, à
unanimidade, negar aplicabilidade à Emenda Constitucional Estadual nº 36, de 08
de novembro de 1985, por vício de inconstitucionalidade. Coincidentemente, a
referida EC 36/85 tinha por objeto a criação de aposentadorias especiais (precoces) para membros do Ministério Público Estadual, da Procuradoria Geral do Estado e da Advocacia de Ofício. Acerca do julgamento daquele processo colhe-se da ata
da referida sessão:
Passando à classe de Processos Diversos o Exmo. Sr. Presidente
anunciou o de nº 1786/86 que trata de exame da constitucionalidade da Emenda nº 36 à Constituição do Estado da Paraíba, de
26 BULOS, Uadi Lamêgo. Teoria da Interpretação Constitucional. In: Revista de Direito Administrativo. n. 205,
jul./set. 1996, p. 23-64.
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faculdade de direito de bauru
08.11.85. Relator: Conselheiro Luiz Nunes Alves. Ao relatar o feito S.
Exa. disse que a Presidência, ao tomar conhecimento da Emenda
nº 36 à Constituição do Estado da Paraíba achou por bem determinar que a Douta Procuradoria Geral examinasse a matéria. Em
seguida, S. Exa. procedeu a leitura do texto da referida Emenda
Constitucional objeto do Processo e também, do minucioso parecer
emitido pela Douta Procuradoria Geral, baseado em ampla jurisprudência do Supremo Tribunal Federal - STF e que concluiu ser a
Emenda nº 36, de 1985, inconstitucional uma vez que estabelece
nova hipótese de aposentadoria não prevista na Constituição Federal. Concedida a palavra ao Procurador Geral para se pronunciar
oralmente em relação ao feito, S. Exa. disse que, em princípio, ratificava integralmente o bem elaborado parecer emitido nos autos
de autoria do Procurador Wilson Aquino e lido, na íntegra, pelo
Conselheiro Relator.(...) Devolvida a palavra ao Relator para o
voto, S. Exa. disse que naquele Processo não se discutia se as pessoas beneficiadas pela Emenda Constitucional nº 36 deviam ou
não aposentar-se aos 30 e aos 25 anos, a exemplo do que ocorre
com outras categorias, como é o caso do Magistério Público conforme disposto na Constituição Federal. Acrescentou que a respeito da matéria havia farta jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e mencionada nos autos, a indicar que os Estados não poderão modificar o preceito constitucional de modo a ampliar as hipóteses previstas na Carta Magna. Afirmou que a Presidência da Corte,
em boa hora encaminhou a matéria à Douta Procuradoria Geral
para estudo e emissão do Parecer a respeito do assunto. Após estudo e discussão do problema em reunião do dia anterior com o Dr.
Procurador Geral chegou-se a conclusão de que embora existisse
no Processo um bem fundamentado parecer, falecia competência
ao Tribunal para pronunciar-se acerca da matéria. Procurou-se
então detectar a tramitação de Processo de aposentadoria ajustado à matéria. Ante a inexistência de feito da espécie, a posição a ser
adotada pelo Tribunal seria negar a aplicabilidade à Emenda Constitucional, ou seja, negar o registro de aposentadoria que tramitar no
Tribunal. Todavia teria que se distinguir entre declaração de inconstitucionalidade e inaplicabilidade de lei inconstitucional pois
esta é a obrigação de qualquer Tribunal ou de qualquer dos poderes do Estado. Concluindo, disse que considerando a repercussão
que possa advir de Atos baixados pelo Poder Público com base naquela Emenda nº 36/85 votava no sentido do Tribunal representar
perante S. Exa. o Dr. Procurador Geral da República a cerca da in-
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constitucionalidade da referida Emenda à Constituição do Estado da
Paraíba.(...) Foi em seguida proclamada a decisão do Tribunal aprovado, à unanimidade, o voto do relator.
Em desacordo com o precedente acima citado, porém, na sessão plenária de
24 de maio de 2001, o eg. Plenário do Tribunal de Contas da Paraíba concedeu o
registro a uma aposentadoria parlamentar precoce (Acórdão APL-TC 353/2001),
reconhecendo-a como constitucional. Nessa altura, estava eu licenciado das minhas atividades no Ministério Público.
Deve ser uma missão institucional permanente desta eminente Corte de
Contas apaziguar a sua própria jurisprudência revolta, contrastante ou desarmônica, de modo a buscar uma hermenêutica coerente para todo o Direito estadual
que aplica. A configuração dessa divergência jurisprudencial entre duas manifestações deste col. Tribunal já constituiria motivo bastante e suficiente para uma novo
pronunciamento seu – sobretudo se considerarmos que, ao contrário do que pareceria indicar o mais recente daqueles acórdãos (Acórdão APL-TC 353/2001), inexiste efeito vinculante nos julgamentos desta Corte. Mas, como se viu até o momento, ainda há razões de sobra para um novo pronunciamento meritório: esta eg.
Corte nunca chegou a se posicionar, nem em sessão plenária nem tampouco em sessão fracionária, sobre os novos argumentos levantados pelo Ministério Público na
presente manifestação.
VII. Como se não bastassem todos os argumentos elencados até o momento,
a aposentadoria ora analisada é ainda maculada pela inconstitucionalidade pelo motivo de o ex-Deputado Estadual (...) já gozar de uma outra aposentadoria, no cargo
de Procurador do Estado, conforme consta do Processo TC 7222/90 desta Corte e comprova o documento anexo, fato esse que dá lugar à acumulação inconstitucional de proventos.
Assim, a aposentadoria agora pretendida por (...), na qualidade de ex-Deputado Estadual, é também inconstitucional por ir de encontro ao que rezava o art.
37, inc. XVI, antes de ser modificado pela EC 19/98, senão vejamos:
XVI - é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto,
quando houver compatibilidade de horários:
a) a de dois cargos de professor;
b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico;
c) a de dois cargos privativos de médico;
Em julgamento histórico o Supremo Tribunal Federal, ao decidir o RE
163204-6, relatado pelo culto Min. Carlos Velloso, a respeito do dispositivo constitucional acima transcrito, assentou o seguinte entendimento:
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faculdade de direito de bauru
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. PROVENTOS E VENCIMENTOS: ACUMULACAO. C.F. art. 37, XVI, XVII. I. A acumulação de proventos e vencimentos somente é permitida
quando se tratar de cargos, funções ou empregos acumuláveis na atividade, na forma permitida pela Constituição. C.F., art. 37, XVI, XVII;
art. 95, parágrafo único, I. Na vigência da Constituição de 1946,
art. 185, que continha norma igual a que está inscrita no art. 37,
XVI, CF/88, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal era no
sentido da impossibilidade de acumulação de proventos com vencimentos, salvo se os cargos de que decorrem essas remunerações fossem acumuláveis. II. - Precedentes do STF: RE 81.729-SP, ERE 68.480,
MS 19.902, RE 77.237-SP, RE 76.241-RJ. III. - R.E. conhecido e provido.
(Supremo Tribunal Federal, RE-163204/SP, Rel. Min. Carlos Velloso,
DJU 31-03-95, p. 7779)
O ilustre Ministro Carlos Velloso, nos autos do Recurso Extraordinário acima
indicado, fundamentou o seu entendimento da seguinte forma, inteiramente aplicável in casu:
(...) Verifica-se, portanto, que as disposições inscritas nas Constituições de 1946, art. 185, e de 1988, art. 37, XVI, são iguais. Por muito
tempo, discutiu-se sob o pálio da CF/46, no Supremo Tribunal Federal, se seria possível a acumulação de proventos da aposentadoria
com vencimentos de cargo público. A jurisprudência da Corte Suprema, a princípio, foi vacilante. Todavia, dá notícia o eminente
Min. Xavier de Albuquerque, no voto que proferiu no RE 81.729-SP,
que quando do julgamento dos ERE 68480 e do MS 19.902, o Plenário pôs “termo à hesitação das Turmas, manifestada em acórdãos
discrepantes, que a acumulação de proventos e vencimentos somente era permitida, mesmo no regime da Constituição de 1946,
quando se tratasse de cargos, funções ou empregos legalmente
acumuláveis na atividade” (RTJ 75/325). O acórdão do citado RE
81.729-SP, julgado em 05.09.75 e relatado pelo Sr. Min. Xavier de Albuquerque, ficou assim ementado:
“1) Acumulação. A de proventos e vencimentos somente era permitida, mesmo no regime da Constituição de 1946, quando se tratasse de cargos, funções ou empregos legalmente acumuláveis na atividade. Não se podendo reconhecer, no caso, tal direito, dispensase a indagação sobre se sobreviveria ele à Constituição de 1967. 2)
A estabilidade do art. 177, § 2º, da Constituição de 1967 pressupõe
investidura regular no cargo, função ou emprego de que se tratar.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
369
3) Recurso extraordinário não conhecido.” (RTJ 75/324)
(...) A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, portanto, interpretando norma constitucional - art. 185 da Constituição de
1946 - igual à que está inscrita no art. 37, XVI, da Constituição de
1988, era no sentido de que a acumulação de proventos e vencimentos somente é permitida quando se trate de cargos legalmente
acumuláveis na atividade.
Esse sempre foi, aliás, o meu entendimento.
Quando nomeado para esta Corte, ocupava o cargo de Ministro
do Superior Tribunal de Justiça, com cerca de trinta e cinco anos
de serviço. À época, existia parecer do Consultor-Geral da República, aprovado pelo Presidente da República, no sentido da licitude
da acumulação de vencimentos com proventos. Não acolhi a sugestão de alguns no sentido de aposentar-me no cargo de Ministro
do STJ e empossar-me no cargo de Ministro do STF. Requeri, expressamente, exoneração do cargo de ministro daquela Corte. Isto porque, repito, sempre entendi que a acumulação de proventos e vencimentos somente é permitida quando se trate de cargos legalmente acumuláveis na atividade.
Tenho como acertada a lição do professor Ivan Barbosa Rigolin, a
dizer que “o que se proíbe é o duplo ganho, mas é exatamente isso
que parece interessar ao servidor aposentado que volta a ocupar
posto público, e nesse sentido entendemos, a partir da nova Carta,
proibida tal acumulação, se remunerada”. (“O servidor Público
na Constituição de 1988”, Saraiva, 1989, p. 159).(...)
Não procede a afirmativa no sentido de que a Constituição apenas
veda a acumulação de cargos públicos. Que a Constituição é expressa no estabelecer tal acumulação, não há dúvida. Partir dessa proibição para a afirmativa no sentido de que a Constituição permitiria a
acumulação de proventos com vencimentos, é ir longe demais. O que
deve ficar esclarecido é que deveria ser expressa a permissão excepcional, a acumulação de proventos com vencimentos, dado que a
proibição está implícita na vedação expressa. É que os proventos decorrem sempre de um cargo exercido na atividade. Se a regra é a
proibição de acumulação, a permissão, que é a exceção, há de ser expressa, há de ser escrita. Escrevendo sob o pálio da Constituição de
1946, esclareceu o professo Haroldo Valadão:
“Se tivesse em vista fazer tais exceções, deveria a Constituição ter
usado outra locução que não acumulação de quaisquer cargos
ou, a manter esta, deveria ter excetuado, expressa e declaradamente, os subsídios, os proventos da inatividade e os soldos qual fez
370
faculdade de direito de bauru
para o magistério e os cargos técnico-científicos, conservando a
mesma redação na regra geral, redação que constantemente
abrangeu os casos apontados, redação de significado conhecido
no país, e não abrindo para estes disposição especial, quis, por certo, o constituinte de 1946 permanecer firme com a orientação dominante do direito pátrio no assunto.” (Haroldo Valadão, Parecer,
20.05.48, RDA 15/304,335)
É que, no magistério do professor Valadão, “vedando a acumulação de quaisquer cargos, foi o texto constitucional o mais amplo,
usando a palavra ‘acumulação’ sem restrições, a abranger e impedir, portanto, todas as formas de acumulação, e, assim, quer de
exercício quer de remuneração” (ob. e loc. cits., p. 336). Como já
acentuamos, e a lição é, ainda, do Prof. Valadão, “a aposentadoria e a reforma são dadas, também, num certo cargo ou num determinado posto, sendo o funcionário inativo, professor aposentado da Faculdade X, Ministro aposentado do Tribunal J, contra-almirante reformado, general reformado, etc. É que a aposentadoria e a reforma acham-se, também, ligadas diretamente ao cargo
ou ao posto do inativo, como direito ou vantagem dele conseqüente. Os aposentados são funcionários públicos de uma categoria especial, são funcionários inativos.” (ob. e loc. cits., p. 339).
De fato. A aposentadoria encontra disciplina na Constituição e
nas leis dos servidores públicos. A Constituição estabelece os casos de aposentadoria e o tempo de serviço necessário à sua obtenção (CF, art. 40), estabelecendo, mais, que “os proventos da
aposentadoria serão revistos, na mesma proporção e na mesma
data, sempre que se modificar a remuneração dos serviços em
atividade, sendo também estendidos aos inativos quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente concedidos aos servidores
em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação
ou reclassificação do cargo ou função em que se deu a aposentadoria, na forma da lei.” (art. 40, § 4º). No que concerne aos
servidores federais, a Lei 8.112/90, disciplina a aposentadoria
nos artigos 185, § 1º, 186 a 195. Os servidores públicos aposentados não deixam de ser servidores públicos: são, como bem
afirmou Haroldo Valadão, servidores públicos inativos. A proibição de acumulação de vencimentos com proventos decorre,
na realidade, de uma regra simples: é que os vencimentos, que
são percebidos pelos servidores públicos ativos, decorrem de um
exercício atual do cargo, enquanto os proventos dos aposentados decorrem de um exercício passado. Ambos, entretanto, ven-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
371
cimentos e proventos, constituem remuneração decorrente do
exercício - atual ou passado - de cargos públicos, ou de empregos e funções em autarquias, empresas públicas, sociedades de
economia e fundações mantidas pelo Poder Público (CF, art. 37,
XVI e XVII, art. 40). Por isso mesmo, essa acumulação de vencimentos e proventos incide na regra proibitiva, porque ambos vencimentos e proventos - constituem remuneração decorrente
do exercício público. E a Constituição, no art. 37, XVI, ao estabelecer “que é vedada a acumulação remunerada de cargos
públicos”, observadas as exceções por ela previstas, está justamente vedando a acumulação remunerada decorrente do exercício de cargos públicos.
Registre-se, de outro lado, o elemento histórico, a conspirar contra
a tese dos acumuladores. Em trabalho que escreveu sobre o tema,
o Prof. Caio Tácito anotou que “as acumulações remuneradas nasceram no Brasil, como herança recebida da corte portuguesa, na
qual o privilégio de poucos monopolizava os empregos públicos”, e
que “Barbalho mostrou, em página célebre, como a acumulação
remunerada era fruto originário do validismo palaciano” (“Comentários à Constituição Federal Brasileira”, 1902, p. 339). (Caio
Tácito, “Acumulação de Cargos na Constituição do Brasil”, RDP
7/16). Já no Império, procurou-se impedir o duplo ganho no serviço público. Proclamada a República, a proibição foi constitucionalizada (CF/1891, art. 73). Os interesses, entretanto, lembra Caio
Tácito, eram enormes. Surgiram, então, as exceções mas o Supremo Tribunal Federal, “em inúmeros acórdãos, declarou, repetidamente, a inconstitucionalidade das acumulações remuneradas”,
lembra o ilustre publicista. Não obstante as exceções que os acumuladores sempre imaginavam, na 1ª República, muita vez com
sucesso, certo é que, a partir de 1930 “voltaria, porém, a mentalidade de saneamento de mal secular. O decreto nº 19.576, de
08.01.1931, estabelece norma severa contra as acumulações remuneradas, tornando-as ilícitas, salvo, temporariamente, as funções
de magistério, ou deste com cargo técnico ou científico”, esclarece
o autor. (...)
Do exposto, conheço do recurso e dou-lhe provimento.
Note-se que esse posicionamento do augusto Supremo Tribunal Federal não
é único nem tampouco isolado, mas sim faz parte de torrencial corrente jurisprudencial, da qual se podem extrair alguns outros precedentes:
372
faculdade de direito de bauru
A acumulação de proventos com vencimentos somente é possível
quando se tratar de cargos acumuláveis na atividade. Precedente.
(STF, AGRRE-245200/SP, Rel. Min. MAURÍCIO CORR A, DJU 02-03-01,
p. 7)
A acumulação de proventos e vencimentos somente é permitida
quando se tratar de cargos, funções ou empregos acumuláveis na
atividade, na forma permitida pela Constituição. Precedente do
Plenário RE 163.204. Entendimento equivocado no sentido de, na
proibição de não acumular, não se incluem os proventos. RE
141.734-SP. (STF, RE-141376/RJ, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA)
ACUMULAÇÃO - PROVENTOS - VENCIMENTOS. Na dicção da ilustrada maioria, entendimento em relação ao qual guardo profundas reservas, a Carta de 1988 somente viabiliza a acumulação de
proventos e vencimentos quando envolvidos cargos, funções ou
empregos acumuláveis na atividade (Recurso Extraordinário nº
163.204-6-SP, relatado pelo Ministro Carlos Velloso, com acórdão
publicado no Diário da Justiça de 31 de março de 1995). Convicção pessoal colocada em plano secundário visando à uniformização de tratamento. (STF, RE-197699/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO,
DJU 17-09-99, p. 58)
Não é lícita a acumulação de proventos e de vencimentos relativos
a cargos não acumuláveis na atividade. Precedente do Tribunal
Pleno: RE 163.204, D.J. de 31-3-95. (STF, RE-189717/DF, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI)
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. PROVENTOS E VENCIMENTOS: ACUMULAÇÃO: IMPOSSIBILIDADE. C.F.,
art. 37, XVI e XVII. I. - A acumulação de proventos e vencimentos
somente é permitida quando se tratar de cargos, funções ou empregos acumuláveis na atividade, na forma permitida pela Constituição Federal, artigo 37, incisos XVI e XVII, artigo 95, par. único,
inciso I. II. - Precedentes do STF: RE 163.204-SP, Velloso, Plenário,
09.XI.94; MS 22.182-DF, M. Alves, Plenário, 05.04.95; RE 198.190-RJ,
Velloso, 2ª Turma, 05.03.96. III. - R.E. conhecido e provido. (STF, RE185582/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO)
ACUMULAÇÃO. A de proventos e vencimentos somente era permitida, mesmo no regime da Constituição de 1946, quando se tratasse
de cargos, funções ou empregos legalmente acumuláveis na atividade. Não se podendo reconhecer, no caso, tal direito, dispensa-se
a indagação sobre se sobreviveria ele a Constituição de 1967. (STF,
RE-81729/SP, Rel. Min. XAVIER DE ALBUQUERQUE, DJU 19-09-75, p.
6739)
Revista do instituto de pesquisas e estudos
373
Infere-se dos muitos precedentes do Supremo Tribunal Federal que a acumulação, salvo as exceções previstas, quer seja de vencimentos, vencimentos e proventos,
ou somente de proventos, enseja grave mácula aos princípios regentes da nossa
Constituição Federal, sobretudo – e novamente – aos da legalidade e moralidade.
Ora, as acumulações são originariamente “fruto do validismo palaciano e desde o Império, assim como, ao depois, na República, tem-se feito tentativas, embora nem sempre exitosas, de combater as acumulações remuneradas, sendo este o objetivo perseguido: o de proscrever o duplo ganho, salvo para as exceções previstas.” 27
Já indiquei acima que o instituto da aposentadoria, na bela dicção do Tribunal
Regional Federal da 1ª Região, “não é um meio de ganhar mais do Estado”. À luz
de tal afirmação, faz-se curial, e é aqui o ponto fundamental para a não concessão
do registro à aposentadoria ora analisada, relembrar que a percepção simultânea
de vencimentos decorrente do exercício do cargo de Procurador do Estado e os
vencimentos relativos à titularidade de mandato legislativo não está inserida no
rol das exceções de acumulação remunerada de cargos permitidas constitucionalmente na redação original do art. 37, inc. XVI (já citado).
A Constituição do Estado da Paraíba reproduz o texto original da CF/88
no seu art. 30, inc. XX, dispondo que somente pode haver acumulação remunerada de cargos públicos nas hipóteses de dois cargos de professor, um cargo de professor com outro técnico ou científico e de dois cargos privativos de médico. Portanto, e conforme jurisprudência pacífica e dominante do STF, a acumulação
de proventos somente é autorizada pelo ordenamento jurídico pátrio se os cargos
de que decorrem tais proventos forem acumuláveis na atividade. In casu, o
cargo de Procurador do Estado e o de titular de mandato de Deputado Estadual não
se inscrevem nas exceções previstas pelo legislador constituinte. Desta feita, é terminantemente proibido o vislumbre de tal hipótese de acumulação.
Especificamente no caso de mandato de Deputado Estadual a Constituição da Paraíba dispõe em seus arts. 31, I; 56, I, b, verbis:
Art. 31. Ao servidor público, em exercício de mandato eletivo, aplicam-se as seguintes disposições:
I – tratando-se de mandato eletivo federal ou estadual, ficará afastado do cargo, emprego ou função.
Art. 56. Os Deputados Estaduais não poderão:
I – desde a expedição do diploma:
b) aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado, inclusive os de que sejam admissíveis ad nutum, nas entidades constantes da alínea anterior.
27 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Acumulação de proventos – Remuneração de cargos – Constituição de 1988.
Boletim de Direito Administrativo. n.º 9, p. 595, 1997.
374
faculdade de direito de bauru
Vê-se, pois, que os titulares de mandato legislativo terão que observar certos
impedimentos ditados pela Lei Maior Estadual. A esses impedimentos dá-se o
nome de incompatibilidades, que nada mais são que a interdição para o parlamentar da possibilidade deste vir a acumular o mandato legislativo com certas situações que ele ocupava antes de sua eleição ou que adquire após ela. A respeito
do instituto da incompatibilidade assevera com grande propriedade o mestre
pernambucano Pinto Ferreira:
Múltiplas são as causas que deram origem à consagração do instituto de incompatibilidade. Em primeiro lugar, domina a regra da
impossibilidade material de realização simultânea das funções
parlamentares com outras funções públicas. Há o problema do
tempo, da necessidade de dedicação às atividades legislativas, vendando praticamente o bom cumprimento da vida parlamentar.
Em segundo lugar, a incompatibilidade exerce um efeito altamente moralizador e consagra a independência do Legislativo. Ela é
indispensável a fim de proibir que os membros do Poder Legislativo, pelo seu prestígio e influência, possam adquirir vantagens pessoais e econômicas, favorecendo os seus interesses. Teriam necessariamente de negociar o seu voto, em manobras escusas e indecorosas, que lhes permitissem a fruição de vantagens e favores ofertados. O poderia beneficiar-se com a concessão de favores, dados aos
legisladores, evitando assim a fiscalização destes sobre a administração. A autonomia e a independência do Poder Legislativo estão,
desse modo, vinculados naturalmente a um sistema severo de determinação de incompatibilidades.
É essa a razão pela qual as Constituições ou as leis ordinárias prescrevem o seu sistema de incompatibilidades, as quais deverão sempre decorrer de disposições ou normas jurídicas expressas.28
Com relação ao cargo de Procurador do Estado, a Constituição Estadual da
Paraíba dispõe da seguinte forma:
Art. 136. Aos Procuradores de Estado é vedado:
I – exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo público efetivo, exceto um de magistério.
Desta feita, é expressamente defeso o exercício simultâneo de mandato de
Deputado Estadual com o de cargo de Procurador do Estado por manifesta
28 FERREIRA. Pinto. Comentários à Constituição Brasileira. 3º Vol. São Paulo: Saraiva, p. 4, 1992.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
375
proibição constitucional. Logicamente, pois, a percepção conjunta de proventos
decorrentes do exercício destes mesmos cargos é também vedada.
IX. ISTO POSTO, considerando que até o momento o interessado permanece alheio à discussão travada nestes autos, opina este representante do Ministério
Público, em preliminar, pela notificação do ex-Deputado Estadual (...), preservando-se, assim, as garantias constitucionais da ampla defesa, do contraditório e do
devido processo legal.
Quanto ao mérito, à luz do diferendo jurisprudencial existente nesta Corte e com fundamento na afronta ao princípio da moralidade administrativa e à
gramática constitucional do instituto da aposentadoria, prevista na redação
original do caput art. 40 da Constituição Federal de 1988, bem assim na inconstitucionalidade de se acumular proventos de Deputado Estadual com proventos de
Procurador do Estado, opina o Parquet pela não concessão do necessário registro
ao ato aposentatório do ex-Deputado (...), cessando-se imediatamente o seu pagamento.
É como opino.
Investimentos privados
para suporte de bens públicos
Robson Zanetti
Mestre e doutorando em Direito Comercial pela Universitè de Paris 1 (Panthéon – Sorbonne)
Especialista em Direito Comercial pela Università Statale degli Studi di Milano
E-mail: robson [email protected]
Home page: www.zanetti.adv.br, www.zanettiadvocacia.hpg.com.br
CONSULTA
O Governo do Estado do Paraná vem realizando esforços para a conservação
de áreas ambientais que estão sob seu domínio e esses seus esforços, a partir da introdução da recente lei sobre unidades de conservação1 (Lei 9985, de 18 de julho de
2000), podem ser compartilhados com a iniciativa privada trazendo benefícios para
toda a população e para o próprio Estado.
O Governo Estadual, preocupado com a questão ambiental, no ano de 2000,
convoca um grupo de trabalho formado por “x”, “y”, “z” e “w”, com a finalidade de
buscar suportes financeiros junto à iniciativa privada para a conservação das áreas
públicas que estão sob seu domínio.
Estas áreas protegidas são de dois tipos: umas consideradas unidades de conservação por força de Lei, sendo administradas por “x” e outras administradas por
“y” e “z “ que não são consideradas unidades de conservação, mas que poderão vir
a ser, após a realização de um ato público que lhe dê esta qualidade.
1 Esta lei está em vigor e depende de regulamentação do CONAMA.
378
faculdade de direito de bauru
A Sociedade de pesquisa em vida selvagem e educação ambiental – SPVS, vem
a consultar-me:
a) sobre a possibilidade de serem realizados investimentos privados para a
conservação destas áreas;
b) se é possível o investidor privado fiscalizar o investimento que está sendo
realizado, para ver se o fim almejado está sendo atingido;
c) se o investidor pode exigir como contraprestação desse investimento direitos como: usar a imagem da área que está sendo protegida, utilizar a área
para fins de certificação ambiental e contribuir para a promoção da educação ambiental dessas áreas. Isto tudo, de forma vitalícia.
PARECER
Para analisarmos a consulta que nos fora proposta, utilizaremos basicamente duas
leis: a Lei nº 9985, de 18 de julho de 2000 e a Lei nº 8666, de 21 de julho de 1993.
A Lei nº 9985, de 18 de julho de 2000 regulamenta o artigo 225, §1º, incisos
I, II, III e VII da Constituição Federal e institui o Sistema Nacional de Unidades de
Conservação da Natureza. Esta Lei vem a representar a Constituição Federal em matéria de Unidades de Conservação, (UC), devendo as demais disposições legais nas
esferas Estadual e Municipal estarem adequadas a ela.
Esta Lei estabelece em seu artigo 2º, inciso I, a definição de unidade de conservação da natureza da seguinte forma:
unidade de conservação (UC) é o espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias
adequadas de proteção.
As unidades de conservação podem ser áreas de domínio público ou privado,
estando sob a jurisdição federal, estadual ou municipal. Elas são criadas por ato do
Poder Público, conforme dispõe o art. 22 da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000 e
são classificadas conforme os artigos 8 e 14 desta Lei, em diversas categorias de manejo, tais como: parques, estações ecológicas, reservas biológicas, áreas de proteção
ambiental, segundo as diferentes vocações e funções que exercem dentro dos objetivos de conservação da biodiversidade.
No Estado do Paraná, a Lei Florestal do Estado do Paraná nº 11.054, de 11
de janeiro de 1995, ao se referir as unidades de conservação, segue o critério estabelecido no sistema federal de forma concorrente, da seguinte forma:
Revista do instituto de pesquisas e estudos
379
Cap. I
Art. 9º.- As florestas e demais formas de vegetação nativa consideradas Unidades de Conservação são previstas na Legislação Federal e no Sistema Federal de Unidades de Conservação.
Cap. II
Art. 16- Os objetivos e a classificação das Unidades de Conservação
da Natureza ao Estado do Paraná serão concorrentes com o Sistema Nacional de Unidades de Conservação conforme dispuser a legislação federal em vigor.
A Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, regulamenta o art. 37, inciso XXI, da
Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração
Pública e dá outras providências.
Assim, com base nas atuais legislações em matéria de unidades de conservação
e de bens públicos não considerados unidades de conservação analisaremos a consulta que nos foi dirigida verificando em um primeiro momento se não existe nenhum
empecilho para um investidor privado investir na conservação destas áreas públicas
(estão fora as privadas), bem como, se não existe nenhum obstáculo para estes gestores dos bens públicos poderem contratar e receberem os investimentos versados destinados a conservação do meio ambiente (I); em um segundo momento, analisaremos
algumas possibilidades do que pode ser contratado (II) e, para finalizar, como este contrato deve ser realizado para que seja considerado válido (III).
I – CAPACIDADE DAS PARTES
O primeiro requisito que deve ser observado para a realização de um acordo
entre as partes envolvidas para a conservação do meio ambiente é o de verificarmos
a capacidade do investidor (A) e a capacidade da pessoa que está recebendo o investimento (B).
A)
Capacidade de investir
A capacidade de realização de investimentos provenientes da iniciativa privada vem prevista no artigo 5º do SNUC da seguinte forma:
“Art. 5º.- O SNUC será regido por diretrizes que:
IV- busquem o apoio e a cooperação de organizações não governamentais, de organizações privadas e pessoas físicas... para a
manutenção e outras atividades de gestão das unidades de conservação;”
380
faculdade de direito de bauru
A pessoa física e a pessoa jurídica tem capacidade para realizar investimentos
visando a conservação da natureza desde que sejam respeitadas as condições de capacidade estabelecidas pela lei.
Desta forma, uma pessoa maior de 21 anos em plena consciência, uma pessoa
jurídica com fins lucrativos ou uma organização não governamental, como por
exemplo, o Fundo brasileiro para a biodiversidade – FUNBIO, podem investir dinheiro para a conservação das áreas pertencentes ao Governo do Estado do Paraná.
O FUNBIO é uma instituição que permite a captação de dinheiro dos investidores privados e que serve como alavanca para o retorno dos investimentos realizados em até 50% deste valor para investir sob a forma de parceria com outras pessoas, em projetos ligados ao meio ambiente. Desta forma se “A” pretende investir “x”
na conservação de uma unidade de conservação, o FUNBIO pode entrar com até
metade de “X” deste valor. Diga-se de passagem, este fundo é um excelente canal
para a realização de investimentos para a conservação de áreas ambientais.
B) A capacidade de “x”, “y” e “z” para firmar contratos com investidores privados visando a conservação destas áreas e de receber estes investimentos
No caso em exame é importante saber se a parte administradora de uma unidade de conservação (UC) ou de um bem público tem capacidade para acordar em
matéria de conservação de áreas ambientais, bem como, se ela tem capacidade para
receber investimentos provenientes da iniciativa privada.
Esta constatação é essencial para a formação do negócio jurídico, pois, a falta
de capacidade do agente, seja ela absoluta ou relativa, torna o ato ilegal e, portanto,
passível de conseqüências que podem culminar com sua nulidade2.
Segundo estabelece o artigo 34 da Lei 9985/00, os órgãos responsáveis pela
administração das unidades de conservação podem receber recursos provenientes
da iniciativa privada, conforme se constata in verbis:
Art. 34.- Os órgãos responsáveis pela administração das unidades de
conservação podem receber recursos ou doações de qualquer natureza, nacionais ou internacionais, com ou sem encargos, provenientes de organizações privadas ou públicas ou de pessoas físicas
que desejam colaborar com a sua conservação.
Já no que se refere aos bens públicos que ainda não são unidades de conservação, nenhuma restrição existe para a realização de acordos visando a conservação
do meio ambiente, diga-se de passagem, seria um contra-senso não permitir a realização deste tipo de negócio jurídico.
2 J. Cretella Júnior. Dos atos administrativos especiais. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 209.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
381
No direito administrativo brasileiro uma entidade autárquica, como é o caso
de “x”, pelo fato de ser uma pessoas jurídica de direito público3, tem esferas limitadas de ação. Ele não poderá vender um bem público, porque estaria realizando um
ato de disposição, mas ele, como gestor deste bem, seja ele uma unidade de conservação ou não, pode firmar um acordo com um investidor privado visando sua conservação porque age como mandatário do Governo do Estado praticando atos de
administração.
Por outro lado, nós indagamos se além de firmar o contrato, ele tem o direito
de receber o valor decorrente do acordo de investimento firmado com a iniciativa
privada? A resposta é afirmativa. “X” tem autonomia orçamentaria e financeira para
receber estes investimentos, embora esteja sujeito ao controle do Governo do Estado do Paraná4.
A “y” e “z” são empresas de economia mista, elas tem personalidade jurídica
de direito privado e podem contratar e receber estes investimentos porque tem autonomia administrativa, orçamentaria e financeira.
Esta forma de realizar acordos é descentralizada, mas isto não impede que
o Governo venha a criar um fundo de investimentos destinado especificamente a
conservação de suas áreas protegidas através de uma fundação, por exemplo.
Desta forma este fundo é diferenciado do atual fundo estadual para proteção do
meio ambiente, porém, este processo é um pouco demorado e alternativo, uma
vez que existe um trâmite legal a ser respeitado, conforme estabelece o artigo 167
do Constituição Federal:
“ Art. 167.- São vedados:
IX- a instituição de fundos de qualquer natureza, sem prévia autorização legislativa5“.
Embora existam meios alternativos, como o apontado acima, que possa ser
utilizado no futuro pelo Governo, o atual sistema legislativo em matéria de bens
públicos, abrangidos ou não pelas unidades de conservação, permite que “x”, “y”
e “z” firmem com a iniciativa privada contratos visando a conservação do meio
ambiente e recebam o valor correspondente ao investimento, sem ferir a legislação orçamentaria.
3 J. Cretella Júnior. Dos atos administrativos especiais. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 211.
4 Dec.-Lei nº 200/67, art. 5º, inciso I. Ver também Hely Lopes Meirelles. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p. 312.
5 Ver também James Giacomoni. Orçamento público. São Paulo: Editora Atlas S.A, 1994, p. 77.
faculdade de direito de bauru
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II-
A CONSERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE
A Lei 9985/00 estabelece em seu artigo 2º, inciso I, a definição de unidade de
conservação da natureza da seguinte forma
II. Conservação da natureza é o manejo do uso humano da natureza, compreendendo a preservação, a manutenção, a utilização
sustentável, a restauração e a recuperação do ambiente natural,
para que possa produzir o maior benefício, em bases sustentáveis,
às atuais gerações, mantendo seu potencial de satisfazer as necessidades e aspirações das gerações futuras, e garantindo a sobrevivência dos seres vivos em geral;
Uma vez verificado que os contratantes são capazes, estes passam a estabelecer direitos e obrigações reciprocas que dependem de uma negociação prévia,
como qualquer acordo realizado entre particulares.
Assim, vejamos como exemplos, o que o investidor pode vir a exigir do cocontratante (A) e também o que o co-contratante pode exigir do investidor (B).
A) Dos direitos do investidor-contratante
Como é natural nos negócios jurídicos, o investidor que pretende conservar o meio ambiente, não quer fazer uma doação pura e simples, mas ele quer
se beneficiar de alguns direitos decorrentes deste investimento que ele pretende realizar, assim, por exemplos: ele pode requerer que lhe sejam conferidos os
direitos de promover a educação ambiental numa destas áreas (a), utilizá-la para
questão de certificação ambiental (b) e também ser reconhecido como responsável por ajudar a preservá-la (c) e permitir que outros investidores possam participar desta conservação (d).
a) A educação ambiental
O artigo 5º, da Lei 9.985, de 18 de julho de 2000 estabelece:
Art. 5º.- O SNUC será regido por diretrizes que:
IV- busquem o apoio e a cooperação de organizações não-governamentais, de organizações privadas e pessoas físicas para o desenvolvimento de... práticas de educação ambiental;
A educação ambiental é uma atividade perfeitamente possível de ser desenvolvida com o apoio da iniciativa privada conforme se verifica no artigo supra men-
Revista do instituto de pesquisas e estudos
383
cionado. Esta atividade ajuda a conservação do meio ambiente, evitando que uma
unidade de conservação seja mal utilizada.
O investidor privado não quer interferir na gestão realizada pelo gestor da
área pública, ficando esta questão sob a responsabilidade deste e não daquele. O
que o investidor busca é o reconhecimento de sua iniciativa e está poderá ser realizada conforme veremos através do uso do marketing6.
b)
A certificação ambiental
A utilização de uma área para fins de certificação ambiental não implica em retirar do proprietário de uma unidade de conservação sua propriedade e nem a sua
posse.
Desta forma, o gestor continua usando a área pública sem a interferência do
investidor, cedendo apenas a este o direito de certificação ambiental. O investidor
não precisa estar usando a área para obtê-lo, basta que a área seja conservada pelo
gestor, o qual estará com sua posse.
O uso da área para fins de certificação florestal, por exemplo, atende o objetivo de sua conservação, uma vez que, no Estado do Paraná, as áreas devem ser devidamente conservadas em um certo percentual, o qual varia conforme o Estado (está
é a chamada reserva legal prevista pelo Código Florestal).
c)
O uso da imagem
O direito ao uso da imagem da unidade de conservação também pode ser
transmitido ao investidor, sem que este venha a utilizá-la inadequadamente, por
exemplo, ferindo a paisagem de uma unidade de conservação.
O artigo 33 da Lei 9985/00 estabelece:
Art. 30.- A exploração comercial de produtos, subprodutos ou serviços obtidos ou desenvolvidos a partir dos recursos naturais, biológicos, cênicos ou culturais ou da exploração da imagem de unidade de conservação exceto Área de Proteção Ambiental e Reserva
Particular do Patrimônio Natural, dependerá de prévia autorização e sujeitará o explorador a pagamento conforme disposto no
regulamento.
A utilização da imagem pelo investidor está prevista legalmente, desde que
certas condições venham a ser cumpridas, como por exemplo, a que diz respeito a
autorização administrativa.
6 Item c.
faculdade de direito de bauru
384
Digamos, por exemplo, que uma das áreas mantidas por investidores seja o
Parque Estadual do Paraná. O investidor não poderá colocar um cartaz ou uma faixa cobrindo um “determinado objeto”, porque isto fere a paisagem do ambiente,
porém, ele poderá fazer uma publicidade colocando uma fotografia do Parque no
jornal “G“, dizendo que ele está sendo responsável pela manutenção do mesmo,
sem tampar a fotografia, desde que autorizado pelo gestor.
d)
O apoio de outros investidores
Desde que acordado entre as partes, poderá haver a participação de outros investidores antes e após a conclusão do contrato. Este dispositivo está
atrelado a vontade dos contratantes, mas é possível de se realizar. Com isso,
abre-se a oportunidade de investimentos a outros interessados na conservação
ambiental.
Os investidores não querem participar da administração destas áreas, eles
querem uma total independência neste aspecto. A administração da área é de exclusiva competência do órgão gestor, sem a interferência da iniciativa privada.
B)
DIREITOS DO CO-CONTRATANTE
O co-contratante também tem seus direitos resguardados pela própria lei,
dessa forma, ele primeiro tem o direito de aceitar ou recusar a proposta que lhe está
sendo dirigida (a), exigir do contratante o investimento prometido (b) e impede sua
interferência na administração da unidade de conservação (c), bem como, fixa o prazo para o acordo realizado (d).
a)
A aceitação do co-contratante
Não basta somente a proposta ser realizada pelo investidor, mas é necessária
a aceitação por parte do co-contratante, o que será feita por seus órgãos competentes. Sem esta aceitação o contrato não é realizado.
b)
A exigência do investimento prometido
O gestor da unidade de conservação tem o direito de exigir que o co-contratante lhe verse o investimento prometido para a conservação da unidade de conservação acordada.
c)
A independência na gestão
O gestor também possui autonomia administrativa para administrar a unidade de conservação, por isso, ele pode decidir livremente, dentro do poder de
gestão que lhe fora confiado por seu mandante, como será a participação do cocontratante.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
d)
385
O prazo do acordo
O prazo do acordo que é estabelecido entre as partes depende do livre consentimento delas para cada área pública, porém, este contrato não pode ser vitalício
porque bens públicos estão envolvidos7 e o prazo de contratação máximo é de sessenta meses, prorrogável por até 12 meses, conforme estabelece o artigos 57, parágrafo 1, inciso II e parágrafo 4, da Lei 8666/93.
Art. 57. A duração dos contratos regidos por esta Lei ficará adstrita
à vigência dos respectivos créditos orçamentários, exceto quanto
aos relativos:
II - à prestação de serviços a serem executados de forma contínua,
que poderão ter a sua duração prorrogada por iguais e sucessivos
períodos com vistas à obtenção de preços e condições mais vantajosas para a administração, limitada a sessenta meses; (Redação
dada pela Lei nº 9.648, de 27/05/98);
§ 4º. Em caráter excepcional, devidamente justificado e mediante
autorização da autoridade superior, o prazo de que trata o inciso
II do caput deste artigo poderá ser prorrogado por até doze meses.
(Parágrafo acrescido pela Lei nº 9.648, de 27/05/98)
A administração destes bens é confiada a uma autarquia ou a uma sociedade
de economia mista. Estes bens são do patrimônio público8 e continuarão o sendo,
porque eles não serão alienados aos investidores privados.
Após o término do acordo, este poderá ser renovado.
III) A FORMA
Para que o acordo seja válido ele deve estar revestido da forma que a lei lhe
impõe, assim, este acordo não pode ser verbal e deverá ser realizado por escrito (A),
para posteriormente ser publicado (B) e dependendo do que for acordado deverá
ser autorizado e objeto de licitação (C) sob pena de nulidade.
A)
O contrato deve ser escrito
Embora esta situação de colaboração recíproca possa aparentar que o acordo
entre as partes deva ser realizado através de um convênio, esta não é a melhor for7 No que se refere aos bens públicos, consultar J. Cretella Júnior. Bens públicos. São Paulo: Livraria Editora Universitária de Direito Ltda., 1975.
8 Hely Lopes Meirelles. Direito administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p. 436.
faculdade de direito de bauru
386
ma para o presente caso, porque existem obrigações recíprocas entre as partes e o
investidor vem a se beneficiar de bens com valor econômico importantes e que são
explorados comercialmente, por tal razão, a forma mais conveniente é a contratual,
embora tanto o convênio como o contrato, neste caso, atinjam o mesmo fim.
B)
A publicidade dos atos administrativos
Os atos administrativos respeitam o princípio da publicidade e, assim, o acordo firmado entre as partes deve ser publicado. Isto faz com que não somente o contratante tenha conhecimento do negócio jurídico realizado, mas também outras
pessoas interessadas.
A publicidade é realizada, obrigatoriamente, no órgão oficial da Administração, vale dizer, no Diário Oficial do ente público respectivo ou o jornal contratado
para este fim específico, devidamente autorizado por ato legal em quadro de aviso
de amplo acesso público, conforme estabelece o artigo 61, parágrafo único da Lei n
8666/93, com a redação dada pela Lei 8883, de 1994.
Através desta publicidade, o contratante-investidor pode fiscalizar o uso do investimento que está realizando para ver se não está ocorrendo um desvio do valor
investido para outros fins que não foram acordados, com isso, existe uma segurança ao investidor, o qual poderá romper o acordo estipulado nesta hipótese, bem
como, exigir uma prestação de contas do co-contratante.
O artigo 34, parágrafo único da Lei 9985/00 afirma claramente que os investimentos recebido da iniciativa privada não pode ser utilizados para finalidade diversa do que a conservação do meio ambiente, conforme se verifica:
Art. 34. (...)
Parágrafo único.- A administração dos recursos obtidos cabe ao órgão gestor da unidade, e estes serão utilizados exclusivamente na
sua implantação, gestão e manutenção.
Para que o acordo celebrado entre os contratantes seja oponível perante terceiros e produza os efeitos jurídicos desejados ele deve obrigatoriamente ser publicado9, pois, além da vontade das partes, é o interesse público o fator principal da finalidade do serviço público e é esse mesmo interesse público que exige publicidade e conhecimento de atos e fatos que, no curso do processo e na formação contratual, afetam patrimônio estatal e necessidades gerais. 10
O direito brasileiro exige que os contratos celebrados pela Administração,
com prazo certo, sejam publicados, não bastando serem lavrados em livros especial9 Manoel de Oliveira Franco Sobrinho. Contratos administrativos. São Paulo: Saraiva, 1981, p. 354.
10 Manoel de Oliveira Franco Sobrinho. Contratos administrativos. São Paulo: Saraiva, 1981, p. 357.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
387
mente destinados a esse fim. A norma, na imposta colocação jurídica, envolve o interesse público e a obrigatoriedade da tutela sobre o acordo11.
Não resta dúvida que o investidor pode fiscalizar o valor do investimento que
esta sendo realizado para a conservação de áreas protegidas junto ao ente gestor do
bem público.
B)
A REALIZAÇÃO DE AUTORIZAÇÃO E LICITAÇÃO
Para o uso de certos bens públicos deverá haver uma autorização administrativa realizada pelo órgão competente (1) e ainda, poderá ou não haver a necessidade de uma licitação (2).
1)
A necessidade de autorização
Embora alguns atos praticados pelos gestores dos bens públicos não necessitem de autorização, certos bens que o exigem, assim, por exemplo, o uso da imagem depende de uma autorização administrativa.
O artigo 33 da Lei 9985/00 exige somente a autorização administrativa para a
exploração da imagem de uma unidade de conservação, conforme vemos:
Art. 33.- A... exploração da imagem de unidade de conservação, exceto Área de Proteção Ambiental e Reserva Particular do Patrimônio Natural, dependerá de prévia autorização o explorador...
A exploração da imagem da unidade de conservação depende de uma autorização administrativa prévia para ser considerada oponível perante terceiros.
2)
A realização de licitação
A conservação das áreas protegidas está submetida a Lei de licitações e, em
virtude do princípio da isonomia e por exclusão dos artigos 24 e 25 desta Lei, deverá ser realiza, obrigatoriamente, uma licitação nas matérias envolvidas neste caso
que dizem respeito a conservação, uso de imagem e certificação ambiental.
Entendo que a necessidade de licitação se dá pelo seguinte fato: hoje um investidor investe “a” para conservar uma determinada área e daqui a “ ? ” anos aparece um outro investidor dizendo que dá “2x” para conservação da área e exige os
mesmos direitos do primeiro contratante.
11 Manoel de Oliveira Franco Sobrinho. Contratos administrativos. São Paulo: Saraiva, 1981, p. 358.
faculdade de direito de bauru
388
CONCLUSÃO
Respondendo ao problema que me fora proposto, afirmo que os investidores
privados:
a) podem realizar investimentos para a conservação das áreas públicas administradas por “x”, “y” e “z” (se houver áreas privadas pertencentes a “x” e a
“y” o acordo é feito diretamente com estas empresas, que são regidas pela
lei das sociedades anônimas e a partir do momento que seus patrimônios
estiverem envolvidos será necessária uma autorização do Conselho de
Acionistas das empresas e se submeter, no que couber, a Lei 8666/93. Nos
casos de “x” e “y”, se a área não for uma unidade de conservação, para que
ela venha a se tornar uma, além do ato público, primeiramente deverá haver uma autorização no âmbito interno da empresa para tal fim);
b) podem fiscalizar o investimento realizado junto a contabilidade dos gestores destas áreas;
c) podem exigir como contraprestação deste investimento direitos como:
usar a imagem da área que está sendo protegida, utilizar a área para fins de
certificação ambiental e contribuir para a promoção da educação ambiental destas áreas, mas não de forma vitalícia.
1)
BIBLIOGRAFIA CITADA:
A)
Obras
Cretella Júnior, J Dos atos administrativos especiais. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
Hely Lopes Meirelles. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 1997.
James Giacomoni. Orçamento público. São Paulo: Atlas, 1994, p. 77.
Manoel de Oliveira Franco Sobrinho, Contratos administrativos. São Paulo: Saraiva,
1981.
B) Legislação:
Constituição Federal.
Lei 9985, de 18 de julho de 2000.
Lei nº 8666, de 21 de julho de 1993.
Lei Florestal do Estado do Paraná nº 11054, de 11 de janeiro de 1995.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
2)
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:
A)
Obras e artigos
389
André de Laubadère et al.. Traité de droit administratif, tome 1, 12ª éd. Paris: Librairie générale de droit et de jurisprudence, 1992.
Antonio Silveira Ribeiro dos Santos. Reserva legal: importância e proteção jurídica. Revista de direito ambiental: Editora Revista dos tribunais, ano 2, out/dez 1997.
Considerações iniciais. www.ig.com.br (palavras-chave: unidade de conservação).
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Leon Frejda Szklarowsky. Lei 9985, de 2000. SNUC – Sistema nacional de unidades
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Leon Frejda Szklarowsky. A publicidade e os contratos administrativos: Lei 8666/93
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Paulo Affonso Leme Machado. Direito ambiental brasileiro. São Paulo: Malheiros
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Pierre Delvolvé. Droit public de l’economie. Paris: Dalloz, 1998.
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Vladimir Passos de Freitas. Direito ambiental em evolução. Curitiba: Juruá Editora,
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B)
Leis
Constituição do Estado do Paraná. Curitiba: JM Editora, 1999.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
Centro de
pós-Graduação
391
Resumos de dissertações defendidas no Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu em Direito (Área de Concentração: Sistema Constitucional de
Garantia de Direitos), em nível de Mestrado, da Instituição Toledo de Ensino.
RESPONSABILIDADE SEM CULPA E
RESPONSABILIDADE SEM FUNDAMENTO
Mestre: Vilma Aparecida Fabbrizzi de Souza
Orientadora: Professora Doutora Jussara Suzi Assis Borges Nasser Ferreira.
A coexistência de responsabilidade com culpa e responsabilidade sem culpa
no mesmo sistema jurídico sugere uma contradição. Esta investigação pretende demonstrar que esse paradoxo é apenas aparente. A lógica do sistema impõe que a responsabilidade subjetiva seja tomada como regra, e a responsabilidade objetiva como
exceção. Exceções demandam previsão expressa e enumeração taxativa; hipóteses
de responsabilidade objetiva obedecem ao princípio da tipicidade. Responsabilidade civil é problema de conflito de interesses. A modalidade subjetiva protege o causador do dano que não responde quando isento de culpa; a modalidade objetiva
consubstancia regras de proteção à vítima. As razões dessa proteção correspondem
aos fundamentos do dever de indenizar. São tantos os fundamentos quantas forem
a razões dessa proteção. A singularidade da previsão normativa e a aparente natureza primária aproximam a norma de responsabilidade objetiva de uma autêntica obrigação. Entretanto, responsabilidade não se confunde com obrigação; o estudo da
394
faculdade de direito de bauru
estrutura da relação jurídica revela a verdadeira identidade da norma que atribui responsabilidade sem culpa. O objeto da obrigação é a prestação, o objeto da responsabilidade é a indenização; a voluntariedade caracteriza a obrigação, a coercitividade caracteriza a responsabilidade; obrigação é dever originário, responsabilidade é
dever sucessivo; dever é a essência da obrigação; infração de dever é a essência da
responsabilidade. O pagamento extingue a obrigação; a indenização extingue a responsabilidade. Pagamento sem dívida ou indenização sem violação de dever tipifica
o absurdo de se conceber efeito sem causa. O direito não pode reprimir práticas lícitas e ilícitas ao mesmo tempo.
A RESPONSABILIDADE CIVIL
POR ABUSO DO DIREITO
Cristiane Augusta Pulici Sanchez
Orientadora: Professora Doutora Jussara Suzi Assis Borges Nasser Ferreira.
O presente trabalho trata da Teoria do Abuso do Direito. Aborda, num primeiro momento, a questão da existência e aplicação da doutrina sob investigação
nos mais diversos ramos do direito apesar, das inúmeras divergências que pairam
sobre o assunto. A começar pelo tema relacionado à sua origem, enfatiza a predominância de posicionamento doutrinário no sentido de que a referida teoria teve
sim origem no direito romano, desenvolvendo-se posteriormente no período medieval sob a denominação de Teoria da Aemulatio. No que diz respeito ao seu desenvolvimento, demonstra que a teoria do abuso atingiu o seu auge no século XIX,
destaque este decorrente dos aprofundados trabalhos realizados, principalmente,
pelas doutrinas francesa e belga. São analisadas também as correntes negativistas,
correntes estas encabeçadas por autores estrangeiros especializados no tema, que
ora atacam a sua forma, ora o seu conteúdo. São destacadas as objeções proferidas por Duguit, Mario Rotondi, Planiol, Esmein e Ripert. Prosseguindo, são estudadas as correntes afirmativas. Analisa, nesse ponto, as suas principais espécies: a
teoria objetiva e a teoria subjetiva. Em seguida, dedica-se ao tratamento da Teoria
do Abuso do Direito no direito brasileiro, bem como a questão da autonomia do
ato abusivo na legislação nacional. Por fim, são abordados os efeitos da prática dos
atos abusivos.
RESPONSABILIDADE CIVIL DAS INSTITUIÇOES
FINANCEIRAS DECORRENTE DE CLÁUSULAS
CONTRATUAIS ABUSIVAS
Mestre: Carlos Rosseto Júnior
Orientadora: Professora Doutora Silmara Juny de Abreu Chinelato e Almeida.
O objetivo deste trabalho é demostrar a responsabilidade civil das instituições
financeiras, pelos danos causados aos consumidores em face das cláusulas contratuais abusivas inseridas em seus contratos, fundamentando a nulidade destas cláusulas nos conceitos legais contidos no Código de Defesa do Consumidor e na possibilidade de sua aplicação aos contratos bancários. É fato que as instituições financeiras utilizam-se de contratos de adesão, o que impossibilita a discussão de seu
conteúdo, que, em muitas vezes, trazem no seu bojo cláusulas que afrontam aos
princípios da boa-fé, da lealdade, afetando o equilíbrio contratual. Neste bordo, foi
elaborado um estudo sobre o caráter adesivo dos contratos bancários e a nulidade
de suas cláusulas abusivas pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor, não
descuidando de apontar as correntes contrárias a tal posicionamento. Bem como,
foram traçadas as linhas mestras do instituto da responsabilidade civil, a fim de cotejar tais fundamentos para compor a indenização do dano moral e material a ser
concedido ao lesado de uma obrigação contratual bancária que contenha cláusulas
abusivas. Este trabalho não teve o objetivo de relacionar todas as cláusulas contratuais abusivas insertas nos contratos bancários, e sim, teve seu foco centrado na responsabilidade civil das instituições financeiras, em face dos danos oriundos destas
cláusulas contratuais. Contudo, concluímos que o Código de Defesa do Consumidor
398
faculdade de direito de bauru
tem aplicação aos contratos realizados pelas instituições financeiras e que todo dano
experimentado pelo consumidor, decorrente das cláusulas contratuais abusivas contidas nestes contratos deverá ser indenizado pela instituição financeira causadora do
prejuízo.
RESPONSABILIDADE CIVIL POR ATO MÉDICO:
Estudo da culpa, de sua exigência
ou não, do ônus de sua prova.
Mestre: Frederico de Ávila Miguel
Orientadora: Professora Doutora Silmara Juny de Abreu Chinelato e Almeida.
O assunto central desta dissertação é a responsabilidade civil por ato médico.
O tema é analisado com o elemento culpa recebendo o enfoque principal. Abordase a evolução histórica. São verificados aspectos gerais da responsabilidade civil pertinentes à obrigação de indenizar por ato médico, sendo estudadas generalidades,
conceito e pressupostos da responsabilidade civil: ação ou omissão; culpa; nexo
causal; dano. A culpa é o elemento objeto de maior enfoque, sendo apresentadas
suas classificações e modalidades. Cuida-se da culpa presumida e da teoria do risco.
São apresentadas as espécies da responsabilidade civil: direta e indireta; objetiva e
subjetiva; contratual e extracontratual. A responsabilidade do hospital advinda de
ato médico é verificada, levando em conta se a obrigação de indenizar do nosocômio será objetiva ou subjetiva ou se isso dependerá das circunstâncias do caso. São
analisados aspectos gerais, o código civil e o código de defesa do consumidor, a natureza do serviço prestado pelo hospital, a identidade entre o serviço do médico e
do hospital e o vínculo jurídico entre médico, hospital e usuário. Também merece
estudo a natureza da relação entre médico e paciente, buscando-se especificar qual
a legislação que se aplica para solucionar os danos decorrentes desse tipo de vínculo jurídico. O alcance do parágrafo 4°. do artigo 14 da lei 8.078/90 também é abordado, assim como o ônus da prova da culpa, as teorias que se embasam no fato de
400
faculdade de direito de bauru
ser a obrigação de meio ou de resultado, os critérios da hipossuficiência e verossimilhança, bem como o direito de informação e de consentir do paciente. São tratados o direito estrangeiro e a legislação futura. Sugestiona alterações visando maior
efetividade do direito na sociedade. Adota na maior parte do trabalho o método dedutivo, aplicando o método indutivo ao passar da classificação da culpa em contratual e extracontratual para o estudo da responsabilidade civil contratual e extracontratual.
MORTE: ASPECTOS DA BIOÉTICA E DO BIODIREITO
Mestre: Renato de Paula Magri
Orientadora: Professora Doutora Silmara Juny de Abreu Chinelato e Almeida.
O trabalho aqui desenvolvido, Morte: Aspectos da bioética e do biodireito,
é uma reflexão sobre um problema que angustia o homem contemporâneo: a
necessidade de se lidar com novas condutas e valores diante das recentes descobertas científicas. A Ciência, que teve um desenvolvimento surpreendente sobretudo na última metade do século passado, passa a transformar a natureza de
uma forma nunca antes vista. Assim, rapidamente, começam a fazer parte do cotidiano da humanidade, manipulações genéticas, experiências com clonagem e
reprodução humana, etc. Reacendem-se também antigas discussões, porque o
homem, apesar de todo o desenvolvimento tecnológico, não pôde vencer as forças da Natureza, e, sobretudo, não pode interferir em sua própria condição de
mortal. Desta forma, a idéia da Morte, tratada nessa dissertação, se faz presente
de forma marcante no pensamento contemporâneo; trataremos muito especialmente de um tipo de morte discutida em nossos dias, em função da facilidade
tecnológica de promovê-la: a eutanásia. Esse assunto, que preocupa médicos, legisladores e a sociedade em geral, é questão que aparece dentro do Biodireito,
ramo da Ciência Jurídica,,criado para atender as novas necessidades de regulamentação de práticas surgidas com as novas tecnologias.
RESPONSABILIDADE CIVIL DOS PAIS EM
RELAÇÃO AOS FILHOS
Mestre: Carla Bertoncini
Orientadora: Professora Doutora Silmara Juny de Abreu Chinelato e Almeida.
A autora procura mostrar uma breve notícia histórica a respeito da responsabilidade civil, a sua evolução pelo Direito Romano e a própria evolução do poder
dos pais sobre os filhos também no direito romano. O objetivo principal é responsabilizar os pais, relativamente a atos seus que possam prejudicar seus filhos. Para
isto, o estudo trata, inicialmente, da responsabilidade civil dos pais por falhas na
criação e educação de seus filhos, diante dos termos amplos do art. 159 do Código
Civil Brasileiro e do dever específico que lhes compete, segundo o preceito dos arts.
231, IV e 384, I do mesmo código, e trata também dessa responsabilidade civil dos
pais perante seus filhos no Estatuto da Criança e do Adolescente quanto ao dever
de sustento, guarda e educação dos filhos menores. Prossegue seu estudo responsabilizando a gestante pelos danos causados ao nascituro em decorrência da sua utilização de cigarros. Destacam- se alguns artigos da Constituição Federal de 1988, no
qual menciona não só o pátrio poder mas também o pátrio dever de garantir aos filhos os direitos fundamentais. Em relação ao Direito Interracional, relata aspectos
importantes da Declaração Universal dos Direitos da Criança e da Convenção sobre
os Direitos desta. Antecedendo o objetivo principal, analisa a responsabilidade civil
em alguns países. Em seguida, aborda alguns indicadores básicos para definir o melhor interesse da criança em face dos novos princípios e regras constitucionais e infraconstitucionais. Destacam-se, também, aspectos fundamentais do pátrio poder
404
faculdade de direito de bauru
no Direito Brasileiro. A autora se preocupa em relatar as inovações previstas e algumas até mesmo não previstas pelo projeto de código civil, encerrando seu trabalho
com as seguintes conclusões: o interesse do menor deve prevalecer sobre qualquer
outro interesse, quando seu destino estiver em discussão; é dever de todos, e não
só dos pais, velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de
qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor
e, além disso, responsabilizar os pais perante os seus próprios filhos, caso venham
os primeiros a praticar atos que causem prejuízos a estes, tanto de ordem puramente patrimonial como moral, tendo em vista a inadmissibilidade da idéia de dano, injustamente infligido, sem reparação.
EMBRIÕES: Aspectos Jurídicos da
Responsabilidade Civil
Mestre: Aline de Queiroz Ferreira Teixeira
Orientadora: Professora Doutora Silmara Juny de Abreu Chinelato e Almeida.
A idéia deste trabalho surgiu através da indignação que tomou conta do mundo no dia em que houve a maior destruição, de que se tem notícia até o momento,
de embriões humanos, em uma clínica de reprodução humana na Inglaterra. A partir de então, começaram a surgir movimentos e pesquisas em defesa da não destruição dos embriões humanos. Em contrapartida, dia após dia, novas descobertas científicas estão sendo desenvolvidas a partir da manipulação dos embriões. Por isso, o
presente trabalho objetivou verificar a importância da reprodução humana nas sociedades antigas, demonstrando os avanços tecnológicos pelos quais passou, verificar a evolução do Direito através de suas gerações, até o momento atual: o Biodireito, e fazer uma análise do tema. O foco mais importante deste trabalho é o estudo
do embrião humano. Primeiramente, sob o ponto de vista genético ou biológico, demonstrando as maneiras pelas quais ele poderá ser gerado e suas implicações. Em
seguida, procurou-se determinar o momento em que se caracteriza o início da vida
humana e os direitos da personalidade, reconhecendo, dessa forma, direitos ao embrião. Foram trabalhados conceitos da responsabilidade civil, para a identificação
dos responsáveis pela violação do direito à vida do embrião. Tratou-se dos embriões
excedentes, sua destruição e a reparação do dano.
Alguns projetos de lei a respeito do tema foram analisados. Assim, concluiuse que o embrião deverá ter seus direitos de personalidade reconhecidos; que de-
406
faculdade de direito de bauru
verá haver congelamento apenas de gametas e não de embriões, evitando assim, os
excedentes. E, por último, foi apresentado um esboço de projeto de lei sobre reprodução humana assistida.
O DEVIDO PROCESSO LEGAL NA EXECUÇAO PENAL
Mestre: Francisco Bento
Orientador: Professor Doutor Vidal Serrano Nunes Júnior.
A busca da liberdade pelo homem também revela a luta pela contenção do poder, e muito embora já se fizesse presente na Idade Antiga, sua semente foi plantada pelos Ingleses no relvado de Runnymede com a obtenção da declaração de direitos conhecida como Magna Charta, documento no qual, pela primeira vez, é prevista a cláusula do devido processo legal a constituir a essência da liberdade individual
em face da lei. Após a Magna Charta, outros documentos vieram reavivar os direitos
já adquiridos, culminando com a positivação destes e de outros em diversas Constituições passando a constituir os direitos fundamentais dos cidadãos. O princípio do
devido processo legal que por muito tempo foi observado pelo direito americano
por influência da common law, se refere não só ao procedimento a ser observado
na aplicação da lei, do regulamento, do ato administrativo, ou da ordem judicial
como, também, determina que o Poder Legislativo obedeça, na elaboração da lei, os
critérios de abstração, generalidade, impessoalidade, razoabilidade e racionalidade
sob pena de violação ao devido processo legal substantivo. Este, apresenta-se, relativamente ao processo judicial, como um conjunto de elementos indispensáveis
para que o Estado possa atingir de maneira objetiva e devidamente, sua finalidade
resolutória de conflitos de interesses, consubstanciando-se numa garantia conferida
pela Constituição Federal, visando à consecução de tutela dos direitos nela denominados fundamentais. Na Execução Penal, como em todo e qualquer procedimento,
impõe-se a observância do princípio do devido processo legal. A execução da pena
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somente pode ser realizada dentro dos limites traçados na sentença e na lei, sendo
que qualquer ato praticado fora desses limites, é um desrespeito aos direitos individuais do preso não atingidos pela sentença, assim como desrespeito ao Estado Democrático de Direito. Possui a Execução Penal natureza jurisdicional, e é a Constituição Federal quem estabelece a orientação maior para o seu desenvolvimento, estabelecendo princípios essenciais à garantia do condenado, princípios estes que norteiam o Direito Penal Executivo. Dentre esses princípios avulta como alicerce o princípio da dignidade da pessoa humana que alcança acentuado destaque no direito
penal. Como corolário do devido processo legal, deverão ser observadas todas as garantias constitucionais aplicáveis ao processo de conhecimento tais como o direito
à ampla defesa, ao contraditório, direito de acesso ao duplo grau de jurisdição, direito à prova, dentre outros, consistindo o desvio ou excesso de execução, não só
desrespeito aos direitos subjetivos do sentenciado mas, acima de tudo, um atentado a todo um sistema jurídico.
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA: DIREITO FUNDAMENTAL
LIMITADOR DA PRISÃO PROVISÓRIA
Mestre: Ana Maria Nogueira Lemes
Orientador: Professor Doutor Vidal Serrano Nunes Júnior.
Os direitos fundamentais têm sua gênese na idade antiga e foi com o Cristianismo que a dignidade do homem passou a ganhar relevo. Na Idade Média, a Magna Cartha Libertathum constituiu o marco decisivo entre o sistema de arbítrio real
e a nova era das garantias individuais. Reconhecia liberdades a uma classe privilegiada e, apesar de distante da comunidade como um todo, deixou assente que a lei estava acima do rei e que deveria ser respeitada. No Estado absolutista, outras declarações de direitos surgiram, mas foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, formulada na França, por ocasião da Revolução Francesa, que positivou o Estado Democrático de Direito. Sua influência no mundo inteiro fez com que as Constituições de diversos países adotassem os seus postulados. A luta por liberdades culminou com a Declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada pela ONU aos
10 de dezembro de 1.948. Muitos dos direitos humanos passaram a ser reconhecidos pelas Constituições, inclusive as brasileiras e, sob a denominação de direitos
fundamentais, são abraçados, dentre outros, pela Constituição de 1.988. Dentre esses direitos fundamentais se encontra o direito de ser presumido inocente enquanto sua culpabilidade não for declarada por uma sentença penal condenatória trânsita em julgado. A presunção de inocência, além de constituir um direito, é um princípio que norteia todo o ordenamento jurídico processual penal. O comando proibitivo inserido no inciso L VII do artigo 5° da Constituição Federal de 1.988, limita
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as prisões provisórias que não tenham a natureza jurídica de medidas cautelares.
Diante do princípio da presunção de inocência, somente a prisão em flagrante e a
preventiva se afiguram como prisões legais, amparadas constitucionalmente. A prisão por força de sentença penal condenatória recorrível, assim como a prisão resultante de pronúncia, se não estiverem revestidas de cautelaridade, são tidas como inconstitucionais, em razão da visível ofensa ao princípio da presunção de inocência.
A exigência de recolhimento do réu ao cárcere para poder apelar ofende não só o
mencionado princípio como também o devido processo legal, no qual se acha inserido o direito à ampla defesa e o direito de acesso ao duplo grau de jurisdição. Em
conseqüência, muitos dispositivos do Código de Processo Penal e de leis esparsas
não foram recepcionados pela norma constitucional. Consideramos, ainda, como inconstitucional, a Súmula n. 09 do Superior Tribunal de Justiça, na medida em que
faz prevalecer normas infraconstitucionais que impedem o verdadeiro alcance do
princípio da presunção de inocência.
A LEI ORDINáRIA E SEU PROCESSO LEGISLATIVO
Mestre: Jose Lazaro Boberg
Orientador: Professor Doutor Walter Claudius Rothenburg.
Pesquisa sobre a lei ordinária e o seu processo legislativo. Constata-se que, a
produção da lei no Estado absolutista era legitimada pela vontade de Deus ao príncipe. Essa soberania, fundamento do poder absoluto do príncipe, é transferida para
o povo ou para a nação, após as revoluções burguesas, no século XVIII; a produção
da lei, antes, monopólio do príncipe, passa a ser do Estado; um único órgão na tripartição dos poderes é o encarregado: o Poder Legislativo. A lei é a expressão da
vontade geral. Essa transformação se deve a vários teóricos e filósofos que influenciaram o pensamento político, moral e social do século xvm; dentre outros, citamse, Hobbes, Locke, Rousseau, Montesquieu. De expressão da vontade geral, La loi
est l’expression de la volonté générale, lema dos revolucionários, transforma-se nos
regimes pluralistas contemporâneos em expressão da vontade política. Estabelecem-se as diferenças entre a lei com conteúdo (lei material) e lei independente de
conteúdo (lei formal). O critério formal é o adotado nas Constituições modernas,
incluindo o Brasil, com ampliação nas Constituições que adotam a participação do
Executivo. Nosso direito constitucional elege o princípio da tipicidade dos atos legislativos, isto quer dizer I que só os atos legislativos que estão elencados em numerus clausus na Constituição (art. 59). O que legitima e qualifica o Estado de Direito
não é a lei, mas a democracia, daí a importância do processo legislativo democrático na formação da lei. São destacados os pontos essenciais do processo legislativo
com exame de seu conceito, natureza e tipos de processo legislativo. Análise do pro-
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cesso legislativo nos aspectos, sociológico e jurídico ou propriamente constitucional. Apesar da divergência doutrinária, a Constituição brasileira optou pela expressão processo legislativo, dando abrangência ampla à expressão. O processo legislativo classifica-se quanto às formas de organização política (o autocrático, o direto, o
representativo e o semidireto) e quanto à seqüência das fases procedimentais (o comum ou ordinário, o sumário e os especiais). Analisa-se o “porquê” do uso do termo lei ordinária, em relação às demais espécies normativas e o campo constitucional reservado à lei. Aborda-se esboço histórico do processo legislativo nas Constituições brasileiras, a partir da Colônia, ressaltando a diversidade de atos legislativos.
Desenvolvem-se estudos da fases da produção da lei: a introdutória, a constitutiva e
a complementar. Na fase introdutória, relacionam-se, de acordo com o art. 61 caput,
da CF, os legitimados de iniciativa das lei (quanto ao sujeito iniciativa parlamentar
ou extraparlamentar e, ainda, conjunta -e, quanto à matéria, geral e privativa (ou reservada). A fase constitutiva desdobra-se em deliberação parlamentar (comissões,
emendas, discussão e votação) e deliberação executiva (sanção e veto), tomando-se
um ato complexo. Na fase complementar, com a lei já sancionada, analisam-se a promulgação (pelo Executivo ou pelo Legislativo) e publicação. No final, expendem-se
considerações sobre o controle jurisdicional de constitucionalidade do processo legislativo. Os Tribunais Constitucionais nas constituições européias e o controle político no Brasil, pelo Legislativo e Executivo. A utilização do mandado de segurança,
por parlamentares, como medida contra atos contrários ao procedimento legislativo.
ARGüIÇãO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO
FUNDAMENTAL Instrumento de proteção da
Constituição e dos Direitos Fundamentais
Mestre: Roberto Mendes Mandelli Junior
Orientador: Professor Doutor Walter Claudius Rothenburg.
O objeto deste trabalho é a argüição de descumprimento de preceito fundamental, instrumento do direito brasileiro que proporciona um controle concentrado de constitucionalidade, realizado pelo Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de proteção da própria Constituição e dos direitos fundamentais. A argüição tem
natureza jurídica de ação, podendo dar ensejo a um controle abstrato ou concreto
de constitucionalidade, sendo da essência do instituto a verificação de uma contrariedade entre atos normativos ou concretos do Poder Público e preceitos, normas
ou princípios, fundamentais da Constituição, caso não haja outro meio eficaz de sanar a lesividade. A criação da argüição de descumprimento se deu no texto constitucional de 1988, mas foi regulamentada apenas pela lei n.o 9882 de 1999, que estabeleceu os objetos sindicáveis pelo instituto, a legitimidade para propô-lo, a forma
de processá-lo e os efeitos das decisões cautelar e final.
IMUNIDADES PARLAMENTARES
Mestre: Jorge Kuranaka
Orientador: Professor Doutor Luiz Alberto David Araujo.
O Estado Democrático de Direito pressupõe a separação dos Poderes e os
mecanismos de freios e contrapesos. Visando à proteção e a independência do Poder Legislativo, enquanto instituição, a Constituição Federal vigente contempla as
imunidades parlamentares (art. 53). São duas as modalidades das franquias: a) a
imunidade material, que protege o parlamentar, no exercício de suas funções, pelas opiniões, palavras e votos e, b) a imunidade formal, por atos estranhos ao exercício do mandato, consistente na garantia de não-prisão, excetuada a hipótese de
prisão em flagrante de crime inafiançável e na garantia de não- processamento criminal, sem prévia licença da Casa respectiva. Contempla-se o estudo doutrinário
e jurisprudencial à luz da ordem constitucional vigente, que dilargara a proteção
parlamentar, confrontando com o sistema constitucional anterior. Levanta-se, a
partir de fatos atuais, a crise pela qual passa o instituto das imunidades. A imunidade material não gera maior crítica. A imunidade formal, sim, quer quanto à sua
amplitude, quer quanto a sua própria subsistência, em época de, democracia consolidada. E que, nesses atuais tempos, a manutenção principalmente da garantia
de não processamento por crime, ao invés de proteger a instituição do Poder Legislativo, macula-a, na medida em que gera injustificável impunidade e desrespeito ao princípio da igualdade, motivo pelo qual se sugere a sua supressão.
DA SEGURANÇA JURÍDICA NA LEI N. 9868/99
Mestre: Alexandre Sormani
Orientador: Professor Doutor Walter Claudius Rothenburg.
A presente dissertação trata da segurança jurídica na Lei n.o 9868/99. Compreende-se como segurança jurídica o princípio do Estado de direito relativo à estabilidade do ordenamento jurídico constitucional, com o fim de incutir nas pessoas o sentimento de previsibilidade quanto aos efeitos jurídicos da regulação
das condutas sociais. Logo, a segurança jurídica está adequada à Constituição e
aos atos que a realizam. Portanto, a existência de sistemas de controle de constitucionalidade objetiva, em última análise, manter o princípio da segurança jurídica, cuja base se encontra na Constituição. Sob a ótica deste princípio, analisa-se
qualquer sistema de controle, inclusive o sistema brasileiro concentrado do âmbito federal, em que dois importantes instrumentos encontram-se regulados pela
Lei n.o 9868/99: a ação direta de inconstitucionalidade genérica em face de comissão e a ação declaratória de constitucionalidade. Algumas inovações relevantes desta lei são bem-vindas: a possibilidade de intervenção de interessados; a
previsão de instrução processual; a hipótese de julgamento antecipado; a menção às técnicas de decisão em controle de constitucionalidade; e a distinção clara entre os ritos de ambas as ações. No entanto, outras inovações merecem críticas sob a ótica do princípio da segurança jurídica, como exposto neste trabalho:
o efeito vinculante sem a necessidade de divergência judicial prévia e o aproveitamento da inconstitucionalidade.
Núcleo de
pesquisa Docente
Contrato: Estrutura milenar de
fundação do direito privado.
Superando a crise e renovando princípios, no
início do vigésimo primeiro século, ao tempo
da transição legislativa civil brasileira.
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka*
Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Professora-Doutora do Departamento de Direito Civil da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
A segunda metade do século XX, principalmente, foi o tempo em que mais se
falou acerca de uma eventual decadência do contrato, tido sempre como um dos
fundamentais pilares de sustentação do direito privado e da autonomia da vontade
privada.
Sob o vaticínio da crise das instituições, a crise do contrato igualmente se desenhou e exprimiu-se debaixo da inegável limitação da autonomia privada, mormente em face da limitação à liberdade dos atores ou partícipes contratuais, no que respeita à outrora livre fixação do conteúdo das cláusulas de um contrato.
Uma ingerência cada vez mais presente, por parte do Estado, na estruturação
desse conteúdo contratual, tendo em vista a salvaguarda de interesses sociais mais
significativos que a mera intenção e simples pretensão dos contratantes, constituiuse, também, em forte razão para a crescente onda de descrédito que pretendeu to* Palestra proferida no 5º Seminário de Estudos sobre o Novo Código Civil, promovido pela Escola Judicial Des.
Edésio Fernandes e pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, em Uberlândia, em 23 de agosto de 2002.
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mar conta do destino do contrato enquanto tradicional e clássico instituto de direito privado.
Confundindo-se, muitas vezes, liberdade de contratar com liberdade contratual, o diagnóstico foi sempre muito pessimista, a respeito da sobrevida institucional do contrato. Mas, como o “sonho de John Lenon”, o contrato não morreu. Nem
declinou, nem encolheu, nem perdeu espaço, nem poder.
Rui de Alarcão1 escreveu, e com toda a razão, que tal pessimismo foi claramente desmentido, a significar que o alarde foi exagerado e que a pós-modernidade prescreve a necessidade de novos modelos de realização do direito, estando entre eles,
certamente, os novos modelos contratuais que todos os dias se multiplicam, indicando uma fertilidade inesgotável desses paradigmas e o seu verdadeiro e sempre renovado papel de organizador e auto-regulamentador dos interesses privados.
Ora mais publicizado, ora mais socializado, ora mais poroso à intervenção estatal, ora mais limitado quanto ao seu conteúdo específico, ora mais funcionalizado,
não importa. Todas essas faces são as faces do contrato que se transmuda e evolui
sempre, como a própria transmudação e evolução da pessoa humana e das relações
que estabelece com os demais. A dinâmica própria da vida dos homens e a realidade jurídica subjacente conseguem explicar e justificar essa mobilidade, traçando-a
naturalmente, conforme convém, e imprimindo o devido grau de certeza acerca da
necessidade e urgência desta releitura contratual. Construção e crítica se alternaram, [desde o início do anterior século], produzindo um movimento de edificação
de uma teoria [geral do direito privado] tão sólida quanto volátil.2
Esse movimento é absolutamente saudável, rejuvenescedor e revigorante
para as instituições privadas, mesmo porque, dizendo respeito a relações de natureza intersubjetiva, quer dizer, dos sujeitos entre si, essas instituições se renovam com
o próprio uso, e o seu eventual desuso é que pode acarretar sua morte, por inércia.3
O contrato não caiu em desuso nunca e, por isso, permanece vivo; sua força revela sua indispensabilidade no trato das relações jurídicas e da mantença da
segurança.
Mudam os fatos, mudam os homens, muda a realidade social, altera-se, por
força da conseqüência, a arquitetura jurídica subjacente. Mas o contrato é sempre o
contrato, afinal. Sob o paradigma simplesmente individualista da burguesia revolucionária francesa, ou sob o paradigma de consagração dos princípios contratuais
1 Rui de Alarcão, Contrato, Democracia e Direito, in Revista Brasileira de Direito Comparado, nº 20, 1º semestre
de 2001, Rio de Janeiro, 2001, ps. 03-12.
2 André Lipp Pinto Basto Lupi, O Direito Privado Burguês, in www.eticadireito.hpg.ig.com.br/artigos-page.htm
3 Interessante e paradoxal, por exemplo, é o momento rico em que a sociedade jurídica pode assistir ao ressuscitamento de um certo instituto privado, como o que vimos observando ocorrer justamente agora, com a proximidade da vigência do novo Código Civil Brasileiro que traz, em seu bojo, o instituto da superfície, prestigiado pelos romanos, mas em desuso há muito, entre nós, ausente por isso da legislação brasileira anterior.
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como princípios próprios da ordem natural, ou sob o paradigma meramente dogmático de conformação do direito com a lei, o contrato muda de feição e atende aos
interesses jurídicos dos contratantes de cada época. Até que se mostre, a cada época, como insustentável ou deficiente, quando então ele se remoldura e busca sua
readequação, para prosseguir como o que sempre fundamentalmente foi: um instrumento essencial da organização social.
O contrato, tal como houvera sido, antes, concebido no Código Francês de
1804, conferia poder absoluto à vontade individual e à liberdade contratual. Tal poder podia fazer surgir todos os direitos atribuíveis ao sujeito emissor da vontade, independentemente da preocupação social gerada a indagar se estaria, ou não, ferindo o interesse jurídico dos demais. Os tempos eram os da busca compulsiva da certeza científica, o que deu azo à torrente positivista esvaziada de conteúdo axiológico e da idéia mais geral e abstrata de justiça.
Não havia como prosperar indefinidamente, uma visão assim fanática e tão
apertada em seus próprios limites. Por isso, opôs-se o tempo de revisão do velho espírito revolucionário, dentro dos melhores limites da democracia e da justiça dos rumores de superação dos ideais napoleônicos, para enfrentar a substituição de normas simplesmente supletórias por normas superiormente imperativas, na regulação
dos contratos, de modo a se restringir a liberdade contratual (não a liberdade de
contratar), pela adição de normas de ordem pública. Limitando-se a liberdade contratual, buscou-se impedir a opressão do fraco pelo forte, do tolo pelo esperto, do
pobre pelo rico.
A intervenção legislativa do Estado assim levada a cabo fez florescer um tempo novo, onde os malefícios do liberalismo jurídico foram mitigados pela proteção
social que se estendeu ao economicamente mais fraco. As formas contratuais nas
quais os direitos competiam todos a uma só das partes e as obrigações só à outra
parte, foram repelidas severamente pelo que se convencionou chamar dirigismo
contratual.4
Enfim, o que se deu neste interregno de passagem, desde a vitória burguesa
até o paradigma da pós-modernidade, foi a sujeição da vontade dos contratantes ao
interesse público, como se por atuação de um verdadeiro freio que moderasse a liberdade contratual, tudo em nome do interesse coletivo e em atenção às exigências
do bem comum. O modelo atual pede e espera uma abertura maior do sistema outrora tão fechado a valorações externas e, para tanto, procura injetar-se de bases
principiológicas novas ou, no máximo, renovadas.
Segundo o meu sentir, mais importa, hoje, identificar e reconhecer os princípios que regem a conformação contratual atual, que continuar em debate acerca da
presença ou da ausência dos novos tipos na composição positiva do direito atual,
4 Conforme o capítulo denominado “A função social do contrato”, de lavra da autora deste estudo, no livro Direito Civil – Estudos, Editora Del Rey, Belo Horizonte, 2000.
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mesmo porque o fato de estarem consagrados, ou não, pelo beneplácito do legislador contemporâneo, em sede codicista, não parece ser exatamente o viés de maior
importância.
O novo Código Civil acolheu, em acréscimo ao modelo novecentista de Código Civil, os mesmos modelos contratuais até aqui atípicos, que já eram previsíveis
desde a década de 70, quando o trabalho da Comissão nomeada pelo Governo Federal, em 1969, sob a presidência de Sua Excelência o Professor Miguel Reale, ganhou o status de Projeto de Lei (Projeto 634/75), quais sejam, o contrato de transporte, o contrato de comissão, o contrato de agência e distribuição, o contrato de
corretagem, além do contrato preliminar e do contrato estimatório. Nada de novo
ou surpreendente, enfim. Nada que a atipicidade contratual já não nos tivesse desenhado, à exaustão.
Nesse passo, levanto pedido de licença para registrar, desde logo, a inconveniência e o desacerto de se prosseguir, doutrinaria e dogmaticamente, com aquela
posição que sempre deu, como sinônimas as expressões inominado e atípico.5 Sob
nenhuma hipótese desconsidero tal crítica, eis que a atipicidade de um contrato não
se traduz pelo fato de não ter ele, ou não, um nomen juris, senão pelo fato de não
estar devidamente regulamentado em lei.
Reconhece-se com freqüência cada vez mais acentuada que contratos há que
têm nome e nem por isso são nominados-típicos já que, para que assim fossem considerados, estariam a exigir a presença de um regramento legislativo específico. Fico com
a melhor e dominante doutrina para admitir que é preferível se referir, nestes casos, a
contratos típicos e a contratos atípicos, em lugar de nominados e inominados.
Assim, é contrato típico aquele que a lei regulamenta, estabelecendo regras
específicas de tratamento e lhe concedendo um nomen juris. Aliás, penso que a denominação decorre da regulamentação, e não vice-versa, como poderia parecer se
o adjetivo preferido fosse nominado.
A seu turno, portanto, contrato atípico é aquele não disciplinado pelo ordenamento jurídico, embora lícito, pelo fato de restar sujeito às normas gerais do contrato e pelo fato de não contrariar a lei, nem os bons costumes, nem os princípios
gerais de direito. Pouco importa se tem ou não um nome, porque este não é a característica da sua essência conceitual; seu traço característico próprio é o fato de
não estar sujeito a uma disciplina própria.
Isso considerado, ainda que com a brevidade da premência do tempo, retomo o que mencionava antes, acerca de ter, o novo Código Civil, acolhido em seu
bojo, e tipificado, portanto, modelos contratuais já em constância tradicional e antiga de uso, no mundo do direito, quais sejam e como já referido, o contrato de co5 Já me referi a essa inconveniência em estudo que resultou no capítulo denominado “Contratos atípicos e contratos coligados: características fundamentais e dessemelhanças”, no livro de minha autoria, supra rferido, Direito
Civil – Estudos.
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missão, o contrato de transporte, o contrato de agência e distribuição, o contrato de
corretagem.
De fora da nova Lei Civil permaneceram tipos mais contemporâneos, é certo, mas
nem por isso exatamente novos, como o contrato de leasing e o contrato de franquia.
O que o novo Código mesmo perdeu, como feliz oportunidade a ser considerada nesta ambiência mais definida dos modelos contratuais – como bem esclarece
Junqueira de Azevedo – foi a oportunidade de estabelecer regras específicas para as
modalidades coligadas de contratos, tão em evidência nos dias atuais, e que absolutamente não se confundem com os contratos mistos.
Se os contratos mistos são aqueles que resultam da combinação de elementos de diferentes contratos, formando uma espécie contratual não esquematizada
em lei e se desta combinação de elementos de diferentes contratos, resulta uma
unicidade que é o que, afinal, claramente os caracteriza, não há razão para se confundir os contratos mistos – assim definidos – com os contratos coligados, uma vez
que, nestes, não se combinam elementos de vários contratos, simplesmente, mas o
que se dá é a combinação de contratos completos. Por isso, nos contratos coligados
há uma pluralidade de contratos, e a combinação deles não resulta, como nos contratos mistos, numa unicidade.
Contudo, e como adverte Orlando Gomes, o mecanismo da coligação muito
se assemelha ao do contrato misto, e, por isso mesmo, teria sido oportuno que o
novo Código houvesse traçado as regras próprias de tratamento e tutela de tais contratos, impedindo a repetição da confusão nefasta entre eles e os contratos mistos.
Contrato coligado assim estampado, e segundo registra Maria Helena Diniz6,
é, então,
o que apresenta celebração conjunta de duas ou mais relações
contratuais, formando nova espécie de contrato não contemplado
em lei. Na coligação, as figuras contratuais unir-se-ão em torno de
relação negocial própria, sem perderem, contudo, sua autonomia,
visto que se regem pelas normas alusivas ao seu tipo.
Por isso, são os seguintes os elementos constitutivos fundamentais dos contratos coligados: a) a celebração conjunta de dois ou mais contratos; b) a manutenção da autonomia de cada uma das modalidades que integra a modalidade nova; c)
a dependência recíproca ou apenas unilateral dos contratos amalgamados; d) a ausência de unicidade entre os contratos jungidos; e) a sua regência jurídica pelas normas típicas alusivas a cada um dos contratos que se coligam.
Tive ocasião de iniciar um de meus estudos na área contratual, e sobre exatamente os contratos coligados, dizendo que ‘sempre se mostrou confusa ou vacilan6 “Tratado Teórico e Prático dos Contratos”, vol. I, São Paulo, Saraiva, 1993.
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te a doutrina, no sentido de bem situar no complexo quadro classificatório dos contratos, aqueles denominados simples e aqueles denominados mistos, aqueles denominados típicos e aqueles denominados atípicos e, por fim, aqueles denominados
coligados, diferentes dos mistos, mas aparentados com os múltiplos’. Em conclusão, pautei minhas reflexões sobre o benefício que haveria se a normativa contratual
especificasse bem essa composição de tipos contratuais inteiros que se amalgamam,
mas cuja regência se daria tipo a tipo, considerando a disfunção havida, em cada um
dos contratos de per se.
Bem, o Código de 2002 não abriu espaço para essa regulamentação.
De qualquer forma, tudo quanto mais se coloca em pauta de discussão, nesse
encontro de hoje, e segundo a seleção de assuntos que fiz, por julgar mais convenientes à alta consideração de vossas excelências, se referirá, daqui por diante, aos
aspectos mais fundantes de toda a estrutura principiológica dos contratos, na nova
visão que lhes determina o Código Civil de Miguel Reale.
Junqueira de Azevedo, em famosa palestra que proferiu no Seminário “O
novo Código Civil – o que muda na vida do cidadão”, em 04 de junho deste ano
de 2002, junto à Ouvidoria Parlamentar da Câmara dos Deputados, em Brasília,
reconhece outros princípios contratuais, na legislação nova, que não estiveram
explicitamente considerados pelo legislador do século passado, entre eles e principalmente, o princípio da boa-fé objetiva e o princípio da função social do
contrato. Ele refere que esta nova organização principiológica da Lei de 2002 não
exclui os princípios clássicos do direito contratual, quer dizer, o princípio da liberdade de contratar, o princípio segundo o qual o contrato faz lei entre as
partes (pacta sunt servanda7) e o princípio da relatividade dos efeitos contratuais (res inter alios acta allis nec nocet prodest nec8). Ao contrário, a nova tábua de princípios convive, completa e remoça a tábua tradicional, sem sufocá-la
ou excluí-la. Apenas convivem. O novo agrupamento principiológico revela, enfim, a feição contemporânea do contrato e seu traço de adaptação e coerência
com a pessoa mais ética desta pós-modernidade, centro de todo o interesse epistemológico do direito atual.
O contrato levado a efeito entre os atores contratuais contemporâneos, pois,
passa a ser um contrato que exige mais do comprometimento ético e político de
cada um desses partícipes, de modo a expandir projeção para muito além das fronteiras do mero sinalagma.
Ora, acerca desse novo contrato, então – instituto eternamente presente na
triangulação básica do Direito Civil, ao lado da propriedade e da família – seria desejável referir, prioritariamente, às denominadas cláusulas gerais, que
7 “Os pactos devem ser observados”.
8 “O que é feito entre certas pessoas nem prejudica nem aproveita aos outros”.
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constituem uma técnica legislativa característica da segunda metade deste século, época na qual o modo de legislar casuisticamente, tão caro ao movimento codificatório do século passado – que
queria a lei clara, uniforme e precisa [...] – foi radicalmente transformado, por forma a assumir a lei características de concreção e
individualidade que, até então, eram peculiares aos negócios privados.9
‘A mais célebre das cláusulas gerais é exatamente a da boa-fé objetiva nos contratos. Mesmo levando-se em consideração o extenso rol de vantagens e de desvantagens que a presença de cláusulas gerais pode gerar num sistema de direito, provavelmente a cláusula da boa-fé objetiva, nos contratos, seja mais útil que deficiente,
uma vez que, por boa-fé, tout court, se entende que é um fato (que é psicológico)
e uma virtude (que é moral)’.
‘Por força desta simbiose – fato e virtude – a boa fé, numa visualização muito
mais subjetiva, se apresenta como a conformidade dos atos e das palavras com a
vida interior, ao mesmo tempo que se revela como o amor ou o respeito à verdade. Contudo, observe-se, através da formidável lição de André Comte-Sponville, que
a boa-fé
não pode valer como certeza, sequer como verdade, já que ela exclui a mentira, não o erro’.10
O homem de boa-fé tanto diz o que acredita, mesmo que esteja enganado, como acredita no que diz. É por isso que a boa-fé é uma
fé, no duplo sentido do termo. Vale dizer, é uma crença ao mesmo
tempo que é uma fidelidade. É crença fiel, e fidelidade no que se
crê. É também o que se chama de sinceridade, ou veracidade, ou
franqueza, é o contrário da mentira, da hipocrisia, da duplicidade, em suma, de todas as formas, privadas ou públicas, da má-fé.11
‘Esta é a interessante visão da boa-fé pela sua angulação subjetiva; contudo,
enquanto princípio informador da validade e eficácia contratual, a principiologia
deve orientar-se pelo viés objetivo do conceito de boa-fé, pois visa garantir a estabilidade e a segurança dos negócios jurídicos, tutelando a justa expectativa do contraente que acredita e espera que a outra parte aja em conformidade com o avença9 Judith Martins-Costa, O Direito Privado como um sistema em construção:as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil Brasileiro (www.jusnavigandi.com.br).
10 André Comte-Sponville, Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, Martins Fontes, 1999, citado por Régis Fichtner
Pereira, “A responsabilidade civil pré-contratual”, Renovar, 2001.
11 Idem, ibdem.
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do, cumprindo as obrigações assumidas. Trata-se de um parâmetro de caráter genérico, objetivo, em consonância com as tendências do direito contratual contemporâneo, e que significa bem mais que simplesmente a alegação da ausência de má-fé,
ou da ausência da intenção de prejudicar, mas que significa, antes, uma verdadeira
ostentação de lealdade contratual, comportamento comum ao homem médio, o padrão jurídico standard’.
‘Em todas as fases contratuais deve estar presente o princípio vigilante do
aperfeiçoamento do contrato, não apenas em seu patamar de existência, senão
também em seus planos de validade e de eficácia. Quer dizer: a boa-fé deve se
consagrar nas negociações que antecedem a conclusão do negócio, na sua execução, na produção continuada de seus efeitos, na sua conclusão e na sua interpretação. Deve prolongar-se até mesmo para depois de concluído o negócio contratual, se necessário’.
Trata-se, portanto, da boa-fé objetiva entranhada no comportamento dos contratantes, capaz de exigir, deles, uma postura que sobrepassa a singela idéia de ser
o contrato apenas uma auto-regulamentação de interesses contrapostos, um instrumento de composição de interesses privados antagônicos. O comportamento delineado pelo atributo da boa-fé objetiva é um comportamento tal que faz transcender
a noção de colaboração entre os que contratam, antes de mais nada. E que os faz,
por isso, mais leais, reciprocamente, mais informados, mais cuidadosos e mais solidários na persecução da finalidade contratual comum.
‘Da consagração da boa-fé objetiva, nas relações contratuais – como pretendi
demonstrar – decorrem principalmente os deveres de informação, de colaboração
e de cuidado, somatória que realiza a insofismável verdade que, em sede contratual,
se lida com algo bem maior que o simples sinalagma, mas se lida com pressupostos
imprescindíveis e socialmente recomendáveis, como a fidelidade, a honestidade, a
lealdade, o zelo e a colaboração. Enfim, está presente, também na ambiência contratual, o sentido ético, a tendência socializante e a garantia de dignidade que são,
por assim dizer, as marcas ou os marcos deste direito que perpassando os séculos,
se apresenta renovado, aos primórdios do milênio novo.’12
O art. 422 do novo Código estampa, precisamente, esse novo princípio, ao dizer que os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. Mas estará seguramente melhor referido, o aludido princípio, se for aprovada a proposta de alteração
do novo Código Civil, de autoria do Deputado Ricardo Fiúza, o próprio relator do
Código em sua fase final de tramitação, a qual, por meio do Projeto 6960/2002 (no
12 Estas considerações que se encontram entre aspas simples, às ps. 07 e 08 desta transcrição, são as mesmas – com
breves alterações ou supressões – que já haviam sido expendidas em anterior palestra acerca das Tendências do Direito Civil no século XXI, proferida em 21.09.2001, no Seminário Internacional de Direito Civil, promovido pelo NAP
– Núcleo Acadêmico de Pesquisa da Faculdade Mineira de Direito da PUC/MG
Revista do instituto de pesquisas e estudos
429
momento aguardando parecer, na Câmara), sugere que o mencionado art. 422 passe a ter a seguinte redação:
Os contratantes são obrigados a guardar, assim nas negociações
preliminares e conclusão do contrato, como em sua execução e
fase pós-contratual, os princípios de probidade e boa-fé e tudo
mais que resulte da natureza do contrato, da lei, dos usos e das
exigências da razão e da equidade.
A justificativa textual, apresentada no Projeto 6960/2002, menciona que a necessidade de se imprimir ao art. 422 esta nova redação, se dá pelo fato de a atual redação apresentar,
conforme aponta o Desembargador JONES FIGUEIREDO ALVES, insuficiências e deficiências, na questão objetiva da boa-fé nos contratos. As principais insuficiências convergem às limitações fixadas (período da conclusão do contrato até a sua execução), não
valorando a necessidade de aplicações da boa-fé às fases pré-contratual e pós-contratual, com a devida extensão do regramento.13
Esta modificação de redação, ampliando significativamente os horizontes
da regra da boa-fé objetiva nos contratos, é resultado, enfim, de um grande incômodo sentido pela comunidade jurídica brasileira, ao tempo da promulgação
do Código, no que dizia respeito ao fato de não estar o dispositivo em comento, conforme a sua redação original, conectado com os momentos anteriores à
formação do contrato – a fase pré-contratual – e nem mesmo os momentos posteriores à sua execução – a fase pós-contratual. Em ambas as fases, deve estar
presente, igualmente, o comportamento qualificado pela lealdade ou honestidade, considerando-se os interesses alheios, por força da celebração futura e execução posterior de um negócio jurídico.
Códigos alienígenas já consagram tais posturas mais ampliadas, como por
exemplo, o Código Italiano que prescreve o dever daquele pré-contratante que
perdendo o interesse no prosseguimento das tratativas preambulares e não mais
desejando concluir o negócio, deva comunicar esta nova situação ao seu co-adjuvante pré-contratual, exatamente para liberá-lo do engessamento que é produzido pela obrigatoriedade da proposta negocial, permitindo que possa, ele, iniciar nova negociação conforme bem entenda, com o menor prejuízo possível
pela interrupção.
13
430
faculdade de direito de bauru
Da mesma maneira, a exigência de comportamento coerente com a boa-fé objetiva deve estar presente, também, nas hipóteses em que o contrato já se encontre
terminado, pelo eventual cumprimento das obrigações dele resultantes. Haverá hipóteses em que tal conduta assim pautada deverá obrigatoriamente estar presente,
sempre sob a perspectiva de minoração de prejuízos e incômodos ao outro contratante. A esse respeito, Junqueira de Azevedo, naquela palestra na Ouvidoria Parlamentar, já antes referida, mencionou o seguinte exemplo:
na Alemanha, uma pessoa vendeu um terreno e disse ao comprador que, de lá, ele poderia ver o vale; assim, a situação topográfica do terreno se constituiria em uma vantagem do imóvel. Para
justificar tal vantagem, o vendedor disse que o imóvel em frente a
seu terreno, do outro lado da rua, não poderia receber edificações
elevadas, pois haveria determinado limite para a construção. A
pessoa comprou o terreno e construiu uma casa, que, segundo a
jurisprudência alemã, valia seis vezes o valor do terreno. O comprador estava muito satisfeito com essa situação, até que o mesmo
vendedor comprou o terreno em frente, foi à Prefeitura, obteve licença para a mudança do projeto de zoneamento — de acordo
com o nome que utilizamos — e construiu naquele local um edifício alto. Havia acabado a transação de compra e venda, caso em
que, muitas vezes, o comprador nunca mais vê o vendedor. Porém,
depois de terminado o contrato, ou seja, depois que vendeu, e o outro pagou, o vendedor comprou o imóvel em frente e, ele mesmo,
prejudicou o antigo comprador. O fato caracteriza evidente falta
de boa-fé.
Um exemplo assim – fato verdadeiro ocorrido na Alemanha, mas que certamente pode ocorrer, e ocorre, em nosso país, e todo momento – estava mesmo a revelar a
urgência de se alterar o contexto do art. 422 do novo Código. Deve-se aguardar, portanto, a aprovação da nova redação, conforme o Projeto de Lei mencionado, de nº
6960/2002. A regra, enfim, que corresponda, no colo positivo da lei, ao princípio da
boa-fé objetiva não deve ser tida simplesmente como uma fonte de interpretação do
contrato, mas deve ser tida, isso sim, pois é o que ela é, uma fonte de preenchimento
de lacunas de cláusulas contratuais. Nem sempre é possível dizer, nas cláusulas dos
contratos, toda a extensão das pretensões ali regulamentadas pelos contratantes. Aliás,
pretender fazê-lo seria utópico, pois que se dá uma evidente impossibilidade natural e
até física de se intentar esgotar as possibilidades, pela projeção já prevista em cláusulas. Ninguém pode fazê-lo. Mas a boa-fé objetiva, enquanto princípio fundador do direito contratual da atualidade, pode preencher a omissão. Provavelmente a nova redação
sugerida pode conferir ao art. 422 um tal e desejável alcance.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
431
Com relação ao princípio da função social do contrato, finalmente, encantame sempre mencioná-lo, assim como sempre me encanta pensar a função social da
propriedade.
Este princípio vem consagrado – desde 1975, ano em que o Projeto 634 foi
encaminhado à Presidência da República, para ser apreciado como o novo Código
Civil Brasileiro – no atual art. 421 do novo Código. Em que pese o seu alto teor axiológico, e a alegria por verificar o legislador brasileiro reconhecendo a nova conotação social das relações privadas, é inegável, conforme apontam, com precisão, Junqueira de Azevedo e Álvaro Villaça Azevedo, que o dispositivo tem importantes defeitos que analisaremos a seguir, e que poderão igualmente ser corrigidos se a sugestão de alteração contida no Projeto 6960/2002 for acolhida e aprovada, passando
a ser a nova normativa brasileira acerca desse princípio agora sob exame, o da função social do contrato.
Mas antes, e apenas para não perder a oportunidade de tecer algumas considerações de caráter mais geral sobre essa limitação de ordem social imposta à esfera contratual, seria talvez útil considerar que a profunda repercussão social que o fenômeno da funcionalidade condicionadora – e, por isso, limitadora – do uso da propriedade foi que levou os pensadores e cientistas do direito a compreender – e Duguit já havia feito essa previsão bem antes – que o atributo da função social não se
encontra afeto apenas à propriedade, mas senão também ao contrato.
Orlando Gomes, o saudoso jurista de vanguarda, havia dito, logo nas primeiras considerações de seu clássico
Transformações gerais do Direito das Obrigações, que orienta-se
modernamente o Direito das Obrigações no sentido de realizar
melhor equilíbrio social, imbuídos seus preceitos não somente da
preocupação moral de impedir a exploração do fraco pelo forte,
senão também, de sobrepor o interesse coletivo, em que se inclui a
harmonia social.14
Para tanto, ele ponderava que se tratava, então, de submeter a ambiência contratual a um regime no qual a autonomia da vontade [estivesse] severamente restringida, o que acarretaria, seguramente – e sempre conforme a previsão de Orlando Gomes – enorme restrição de ocorrência de injúria contratual, a ponto de cercá-la de modo provavelmente absoluto.
A limitação contratual derivada da funcionalidade social se instalaria no âmago do conteúdo contratual – e não exatamente, como é o meu sentir, no prenúncio
da liberdade de contratar, domínio ainda perene da autonomia privada – de sorte a
14 xxx
432
faculdade de direito de bauru
restringir a ingerência da vontade dos contratantes em áreas de salvaguarda social,
de alcance inegavelmente mais dilatado.
Para compreender esse assunto, conviria apresentar a importante distinção
entre dois aspectos da liberdade individual nos contratos, ainda hoje confundidos,
inclusive pelo legislador brasileiro de 2002, conforme procurarei demonstrar, na seqüência. São dois lados de uma mesma moeda, por assim dizer, mas cada qual deles deve ser considerado de per si, em prol da verdadeira dimensão contratual, hoje.
Refiro-me à distinção absoluta entre o que se convenciona denominar liberdade de
contratar e liberdade contratual.
A liberdade de contratar ainda é aquela mesma liberdade facultada a todas as
pessoas de realizarem suas avenças, sem qualquer consideração sobre eventual restrição de conteúdo do contrato em foco, limitação essa que seja decorrente de uma
determinada norma de ordem pública. Em outras palavras, a liberdade de contratar revela, exclusivamente, a liberdade que cada um tem de realizar contratos, ou de
não os realizar, de acordo com a sua exclusiva vontade e necessidade. Por isso, é naturalmente ilimitada, uma tal liberdade.
Mas, diferentemente, põe-se a liberdade contratual, a qual, no dizer de Álvaro Villaça Azevedo, é considerada como a possibilidade de livre disposição de interesses, pelas partes, no negócio.15 Enfoca o conteúdo, ele mesmo, dos contratos,
quer dizer, a sua consistência interna, traduzida pelas cláusulas que compõem o negócio. Este é o aspecto mais crítico da formação do contrato, uma vez que esta liberdade pode vir limitada por normas de ordem pública que digam qual o percurso cogente de determinadas cláusulas contratuais. Por isso, a liberdade há de condicionar-se emoldurando-se na lei, para ser liberdade condicionada, não ser liberdade-escravidão, instrumento dos que atuam de má-fé, em detrimento da própria
sociedade, como mencionou, bem antes, Álvaro Villaça Azevedo.
Essa idéia dos limites impostos à liberdade contratual resulta do próprio fenômeno da publicização do Direito Privado, por meio, então, da interferência estatal
nas relações havidas entre particulares, em atenção às exigências do bem comum e
do interesse coletivo, num último passo. Não é difícil, portanto e como se vê, conceber que também o contrato, assim como a propriedade, possui uma função social
que lhe é inerente, que o limita essencialmente, e que não pode, de modo nenhum,
deixar de ser observada.
A função social – então, e enquanto princípio contratual – veio instalada, no
bojo da novel legislação civil, em seu art. 421 que prescreve, em sua atual e original
redação que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. É fácil reconhecer, talvez, onde se assentam os dois enormes problemas desse dispositivo que precisa mesmo ser urgentemente modificado,
15 Verbete liberdade contratual, Enciclopédia Saraiva do Direito 49/370-371, São Paulo: Saraiva, 1977.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
433
para alcançar a perfeição de redação que permita se revela, em sua total consagração o referido princípio da função social.
Vejamos, então, e para finalizar:
Bem adverte Junqueira de Azevedo que a função social do contrato é um limite para a liberdade contratual, e efetivamente é. Não um limite à liberdade de
contratar, como consideramos antes. E no que estaria fundada a liberdade de contratar, é a pergunta intrigante de Junqueira Azevedo, que respondeu a S.Exa., o Professor Miguel Reale e a S. Exa., o Deputado Ricardo Fiúza, naquele encontro na Ouvidoria Parlamentar, ao qual já me referi, antes, que no seu modo de ver – e lhe parece ser esse o pensamento implícito na Constituição Brasileira – baseia-se na dignidade da pessoa humana. No entanto – ele prossegue – esse artigo tem um viés
trágico, porque determina textualmente que a liberdade de contratar será exercida em razão da função social.
Ora. Nem se trata de liberdade de contratar, nem deverá ser exercida em razão da função social do contrato.
Na verdade, trata-se de liberdade contratual, aquela pertinente à limitação do
Conteúdo do contrato, por força de norma de ordem pública, e não de liberdade
de contratar, esta sim fundada na dignidade da pessoa humana e resultante da alta
expressão da autonomia privada e, bem por isso, ilimitada.
Além disso, a liberdade contratual poderá encontrar, na função social que é
inerente ao contrato, uma limitação à sua extensão meramente volitiva, uma vez que
nem sempre os contratantes poderão, sem estes freios, fixar livremente as cláusulas
de seu contrato.
E quando isso se der, quer dizer, quando certas cláusulas estiverem cogentemente registradas no contrato conforme a determinação de norma de ordem pública, se compreenderá, então, que a função social exerceu o seu verdadeiro papel,
conforme convém. Exerceu o papel limitador da vontade dos contratantes, restringindo-lhes a liberdade contratual, e não qualquer outro papel que fosse delineado
por um viés de fundamentação ou de razão de ser da própria restrição cometida.
Em desacerto, portanto, o mesmo art. 421, em dois momentos subseqüentes
de sua composição legislativa, quando descreve que a ‘liberdade de contratar’ será
exercida ‘em razão’ e no limite da função social do contrato. Insisto: a função social
de que se cuida aqui, é função limitadora à fixação absolutamente livre do conteúdo contratual, mas não é fundamento para justificar ou sustentar a restrição imposta em certos casos.
O Projeto nº 6960/2002, atento a estas discussões – que não são recentes, mas
que se encontram ressuscitadas, hoje, especialmente pela presença constitucional
do mega-princípio da dignidade da pessoa humana e pela vasta tábua axiológica
dada aos brasileiros e à sociedade brasileira como um todo – ostenta significativa alteração nesse art. 421, acolhendo, principalmente, a lição pontual e valorosa daqueles dois professores titulares de Direito Civil da Faculdade de Direito de onde venho
faculdade de direito de bauru
434
para hoje, honradamente, estar aqui com V.Exas, digníssimos desembargadores e
juízes do Estado de Minas Gerais. São eles – e já os referi antes – Antonio Junqueira de Azevedo e Álvaro Villaça Azevedo.
Se aprovado, enfim, o mencionado art. 421, em exame, passará ele a ter a seguinte e muito mais precisa redação, permitindo ao juiz, se for o caso, o exame a
posteriori de eventuais nulidades contratuais decorrentes do desatendimento desse princípio, e não apenas o exame a priori, como ocorre à face do sistema geral
das nulidades negociais: “A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato”.
A justificativa apresentada pelo deputado Ricardo Fiúza, para a alteração dúplice do presente artigo 421, corre exatamente nesta mesma vertente à qual me refiro e diz, textualmente, o seguinte:
A alteração proposta, atendendo a sugestão dos professores ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO e ANTÔNIO JUNQUEIRA AZEVEDO, objetiva
inicialmente substituir a expressão ‘liberdade de contratar’ por ‘liberdade contratual’. Liberdade de contratar a pessoa tem, desde
que capaz de realizar o contrato. Já a liberdade contratual é a de
poder livremente discutir as cláusulas do contrato. Também procedeu-se à supressão da expressão ‘em razão’. A liberdade contratual está limitada pela função social do contrato, mas não é a sua
razão de ser.
Senhores, estas eram, então, as considerações que com grande prazer separei
para vir lhes trazer, nesta noite, e por conta da abertura da 5ª edição deste ciclo de
estudos que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais e a Escola Judicial Edésio Fernandes têm, com muito sucesso, feito realizar.
Obrigada.
Uberlândia, 23 de agosto de 2002.
decisões de
relevo especial
PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO
PARÁ INDEFERIMENTO do Mandado de Segurança, por entender que o serviço de água domiciliar não goza do caráter de essencialidade
obrigatória; de individualidade e nem da obrigatoriedade de um poder público o
prestar de maneira direta, conforme a
fundamentação acima.
Nélio Caetano Silva
Promotor de Justiça
EXMA. SRª. DRª. JUÍZA DE DIREITO DA 22º VARA CÍVEL DA CAPITAL
PROCESSO: 2000131144-6
AÇÃO DE MANDADO DE SEGURANÇA
IMPETRANTE: MARIA DA GLÓRIA RABELO COSTA
ADVOGADO: MÁRIO ANTÕNIO LOBATO DE PAIVA
IMPETRADO:PRESIDENTE DA COMPANHIA DO PARÁ-COSANPA
MM. JUÍZA:
Versam os presentes autos sobre o caráter de continuidade do serviço público, onde a impetrante sobre este prisma impetra a presente segurança conta ato que
diz ser abusivo e ilegal do Sr. Presidente da Companhia de Saneamento do Pará –
438
faculdade de direito de bauru
COSANPA, o qual num ato de justiça privada ordenou o corte do fornecimento de
água para sua residência, pelo fato de encontrar-se inadimplente.
Esclarecendo, ademais que o fornecimento desse serviço pela Administração
não pode sofrer solução de continuidade por ser de importância na qualidade de
vida de toda uma coletividade. Por outra, o fornecimento de água é, sem dúvidas,
uma relação de consumo conforme o art. 3º do Código de Defesa do Consumidor,
e os usuários da COSANPA considerados comunicadores na forma do art. 2º, parágrafo único e amparado, portanto, pelo art.22º desse mesmo estatuto legal.
Reconhecida esta, pois, a ilegalidade da interrupção do serviço público essencial, como é o caso de fornecimento de água que é uma necessidade da população
não podendo ser interrompida sob nenhum propósito, já que o serviço público essencial está subordinado diretamente ao principio da continuidade, sendo impossível a sua interrupção sobre qualquer pretexto ou muito menos por atraso no pagamento.
Pedindo a concessão da liminar inaudita altera pars pela inconteste presença do fumus boni iuris e do periculum in mora, uma vez que seria irreparável
os prejuízos caso tivesse que esperar o julgamento de mérito, uma vez que seria
impossível residir sem o tal liquido precioso.
Sucintamente era o necessário.
MANIFESTAÇÃO
Embora devidamente notificado para prestar as devidas informações, conforme certidão às fls. 26. O impetrado não as forneceu. Limitou tão somente, através
do procurador, a requer vistas dos auros conforme as fls.27, porém, não se manifestou do decênio legal. Devendo ser-lhe aplicado a revelia sem os defeitos dela
decorrentes, em razão do interesse do caráter público, pois, indispensável.
DO MANDADO DE SEGURANÇA
O MANDADO DE SEGURANÇA é conferidos aos indivíduos para que eles
se defendam de atos ilegais ou praticados com abuso de poder, constituindo-se verdadeiro instrumento de liberdade civil e liberdade política
“Ary Florêncio Guimarães“. Desta forma, é importante ressaltar que o
MANDADO DE SEGURANÇA caberá contra os atos discricionários e os
atos vinculados, pois nos primeiros, apesar de não se poder examinar o
mérito do ato, deve-se verificar se ocorreram o os pressupostos autorizados de sua condição e, nos últimos, a hipótese vinculadora da expediçào
do ato (Alexandre de Moraes, Dir. Const.6º Ed. Edt. Atlas, 1999-SP).
Temos como pressuposto à impetração do MANDADO DE SEGURANÇA o ato
da autoridade, ilegalidade ou abuso do poder e lesão ou ameaça de lesão
a direito liquido e certo, não amparado por Habeas Corpos ou Habeas
Data.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
439
DIREITO LÍQUIDO E CERTO
Originalmente, falava-se em direito liquido e certo, direito incontestável, o
que levou ao entendimento que a medida só era cabível quando a norma legal
tivesse clareza suficiente que dispensasse maior trabalho de interpretação. Hoje
está pacífico o entendimento de que a liquides e certeza refere-se aos fatos; estando estes devidamente provados, as dificuldade com relação à interpretação do direito serão resolvidos pelo juiz.
Daí o conceito de direito liquido e certo como direito comprovado de plano, ou seja, o direito comprovado juntamente com a inicial. No MANDADO DE
SEGURANÇA inexiste a fase de instrução, de modo que, havendo duvidas quanto
às provas produzidas na inicial o juiz extinguirá o processo sem julgamento do
mérito, por falta de um pressuposto básico, a certeza e liquides do direito. A certeza e liquides decorrem de norma legal e expressa, não se reconhecendo como
liquido e certo o direito fundamentado em analogia, equidade ou princípios implícito na Constituição Federal, em decorrência, especialmente, do art. 5º, 2º (Maria Silvia Zanelle Dipietro, Dir. Adm. 11º Ed. Edt. Atlas, 1999-SP).
Direito liquido e certo é o que se apresenta manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto a ser exercitado no momento da impetração. Por
outra palavras, o direito invocado para ser amparável por MANDADO DE SEGURANÇA, há de vir expresso em norma legal e trazer em si todos os requisitos e condições de sua aplicação ao inpetrante: se sua existência for duvidosa; se sua extensão ainda não estiver delimitada; se seu exercício depender de situações e fatos ainda indeterminados n~`ao dar ensejo à segurança, embora possa ser definido por outros meios judiciais.
Quando a lei alude a direito liquido e certo, está exigindo que este direito
se apresente com todos os requisitos para seu reconhecimento exercício no momento da impetração. Ë direito comprovado de plano. Se depender de comprovação posterior, não é liquido nem certo, para fins de segurança.
Por exigir situações e fatos comprovados de planos é que não há instrução probatória no MANDADO DE SEGURANÇA. Havendo apenas uma dilação
para as informações do impetrado sobre as alegações e provas apresentado
pelo impetrante (Hely Lopes Meireles, Mandado de Segurança, 14º Ed. Edt. Malheiros, 1999-SP).
Embora tenha a liminar já concedida, caráter eminentemente satisfativo, abordaremos ligeiramente a respeito do mérito da questão, até mesmo pela perspectiva
de ser o objeto da presente demanda um fato corriqueiro, de acontecimento quase
que do dia- a- dia dos usuários desse tipo de serviço. Podendo a questão vir, futuramente servir de parâmetro para uma avalanche de demanda em busca do mesmo
objetivo.
Dente a classificação do serviço público, este pode ser segundos certos critérios essenciais e não essências: São essenciais os assim considerados por lei ou os
440
faculdade de direito de bauru
que pela própria natureza são tidos como de necessidade pública, e, em princípio,
de execução privativa da Administração Pública. São os exemplos os serviços de segurança nacional, de segurança pública, transporte coletivo e os judiciários. São os
essenciais os assim considerados por lei ou os que, pela própria natureza são havidos de utilidade pública cuja a execução é facultada aos particulares. Os essenciais,
em principio, não podem ser executados por terceiros, o mesmo não ocorre com
os essenciais, como é o caso dos executados através das permissões e concessões.
Essenciais, diga-se, os serviços que não podem faltar. A natureza do serviço o
indica e a lei os considera como indispensáveis à vida e a convivência dos administrados na sociedade, como são os serviços de segurança externa, de segurança pública, transporte coletivo e os judiciários.
O serviço público gerais e indivisível quando posto a toda uma coletividade dada a sua natureza, como é o caso da segurança pública e os de segurança nacional. Específicos são os que satisfazem os usuários certos que os fluem individualmente, designados por alguns autores, de serviço divisíveis. Como exemplos
temos os serviços de telefonia, postal e distribuição domiciliar de água.
Em razão da obrigatoriedade da utilização, são compulsórios e facultativos.
Compulsórios são os impingidos aos administrados nas condições estabelecidas
em lei, a exemplo da coleta de lixo, de esgoto, de vacinação obrigatória, de internação de doentes de caráter infecto- contagioso. Facultativo são os colocados a disposição dos usuários sem lhes impor a utilização, a exemplo do serviço de transporte coletivo. Os compulsórios, quando remunerados, o são por taxa, enquanto os
facultativos o são por tarifa ou preço. O fornecimento do compulsório não pode
ser interrompido enquanto que o fornecimento dos serviços facultativos, ante a
falta de pagamento correspondente pore ser interrompido.
Tomando-se por base a forma de execução podem ser os serviços públicos de
execução direta ou indireta. Direta os fornecimentos pela Administração Pública
por seus órgãos e agentes; são de execução Indireta os prestadores por terceiros.
Assim, se prestados pelo Poder Público, são de execução direta; se oferecidos por
estranhos (concessionários, permissionários) aos administrados, são de execução
indireta. Qualquer serviço, salvo, em tese, os essenciais ou indisponíveis, assegurou
José Cretella Júnior que: “a declaração do direito, a manutenção da ordem interna,
a defesa do Estado contra o inimigo externo e a distribuição de justiças são serviços
públicos que a nenhum particular pode ser outorgados”.(Direito Administrativo,
Diogenes Gasparine –Saraiva 5ª Ed. P. 255, SP).
A continuidade impõe ao serviço público o caráter de contínuo, sucessivo.
O serviço publico não pode sofrer solução de continuidade. Vale dizer: uma vez instituído há de ser prestado normalmente. Não caracteriza descontinuidade da prestação de serviço público quando interrompido em face de uma situação de emergência ou quando sua paralisação se der, após o competente aviso, por motivo de
ordem técnica ou de segurança das instalações, ou,ainda, por falta de pagamento
Revista do instituto de pesquisas e estudos
441
dos usuários, conforme estabelece o 3ºdo art. 6º da Lei Federal (nº 8.987 de
13.02.95) das concessões e permissões.
Portanto, sendo serviço de água domiciliar específico, divisível, facultativo e
de execução indireta, o seu fornecimento pode ser interrompido pelas causas acima mencionadas, mormente pela inadimplência; para tal, o usuário ser comunicado
dessa interrupção com o prazo mínimo de 15 dias de antecedência.
Assim o é, se entende, pelo fato de ser uma prestação de caráter sucessivo,
tanto no que diz respeito a prestação de serviço como a sua contraprestação. Se o
fornecedor do serviço buscasse os meios jurídicos para solucionar possíveis inadimplência sem sua interrupção do serviço, logicamente nunca haveria uma solução, já
que, enquanto se resolveria a inadimplência pendente, as demais iriam se sucedendo mês- a- mês.
Razão pela qual este Órgão do Ministério Publico acompanhando o entendimento majoritário da corrente doutrina, no mérito, é pelo INDEFERIMENTO do
presente Mandado de Segurança, por entender que o serviço de água domiciliar não goza do caráter de essencialidade obrigatória; de individualidade
e nem da obrigatoriedade de um poder público o prestar de maneira direta, conforme a fundamentação acima. Não havendo, pois, violação a direito liquido e certo a reclamar pela interrupção desse serviço em domicílio comum, e pela
causas acima já frisando dentre as quais pelas inadimplência do usuário.
É o parecer.
DECISÃO DA JUÍZA DA 22ª VARA CÍVEL DE BELÉM
O fato de que a impetrante se encontrava em
débito para com a recorrida, não lhe autorizava submetê-la a qualquer constrangimento ou
ameaça, coação ou qualquer outro
procedimento que exponha ao ridículo ou
interfira com o seu trabalho, descanso ou
lazer. A ÁGUA É REALMENTE NECESSÁRIA
PARA A SOBREVIVÊNCIA DO SER HUMANO.
Ruth do Couto Gurjão
Juíza do Tribunal de Justiça do Estado do Pará
SENTENÇA EM MANDADO DE SEGURANÇA ONDE CONSIDEROU-SE ILEGAL O ATO DE CORTAR O FORNECIMENTO DE ÁGUA EM RAZÃO DE
INADIMPLÊNCIA DO CONSUMIDOR
Sentença inédita do Estado do Pará onde a Juíza Ruth do Couto Gurjão,
em julgamento de Mandado de Segurança, considerou ilegal o ato de suspender o fornecimento de água em razão de inadimplência do consumidor. A decisão foi enviada pelo Dr. Mário Antônio Lobato de Paiva, advogado do impetrante, que fundamentou-se no Código de Defesa do Consumidor para obter
a segurança.
444
faculdade de direito de bauru
A decisão destacou o fato do fornecimento de água ser um serviço público essencial e contínuo, necessário à preservação da vida, não podendo ser suspenso,
mesmo estando o consumidor em situação de inadimplência.
SENTENÇA
Juíza: Dra. Ruth do Couto Gurjão
Impetrante: Maria da Glória Rabelo Costa
Advogado: Dr. Mário Antônio Lobato de Paiva
Impetrado: Diretor-Presidente da Companhia de Saneamento do
Pará- COSANPA
Ação de Mandado de Segurança
Autos de nº: 2000131144-6
Vistos, etc...
MARIA DA GLÓRIA RABELO COSTA, devidamente qualificada e legalmente representada, impetra MANDADO DE SEGURANÇA COM PEDIDO DE
LIMINAR INAUDITA ALTERA PARS, contra DIRETOR- PRESIDENTE DA
COMPANHIA DE SANEAMENTO DO PARÁ- COSANPA, pelos fatos e fundamentos:
Alega a impetrante que no mês de dezembro de 2000 foi surpreendida por
funcionários da COSANPA que, sem maiores explicações, interromperam o serviço
de funcionamento de água, não permitindo que a impetrante fosse procurar os
comprovantes de pagamento.
Ressalta que o serviço funcionamento de água é uma relação de consumo,
considerado fornecedor a empresa de Saneamento- COSANPA, na forma do art.3º
do código de defesa do consumidor, e os seus usuários são consumidores na forma
do art. 2º, parágrafo único da mesma norma.
Aduz que o art. 6º, inciso x, do código da defesa do consumidor, consigna
que é direito básico do consumidor “a adequada é eficaz prestação dos serviço
público em geral”. O art. 4º do CDC estabelece a política nacional das relações
de consumo, cujo objetivo é atender às necessidades dos consumidores, respeitando a sua dignidade, saúde e segurança, providenciando a melhoria de sua
qualidade de vida, citando ainda o art. 175, parágrafo único, inciso IV da constituição Federal.
Destaca o art. 4º, inciso VI do CDC, o qual consagra a ação governamental de
coibição e repressão eficiente de todos os abusos no mercado de consumo, pois
cada dia torna-se mais comum relações contra o fornecedor pelos serviços prestados, sendo muitas vezes o consumidor surpreendido com o débito indevido em sua
contas, recebendo a orientação de pagar para depois discutir, sobre pena de corte
do fornecimento.
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445
Ao final, requer a concessão da medida liminar, suspendendo o ato abusivo e
ilegal de corte de fornecimento de água, com notificação da autoridade como coatora para prestar as devidas informações.
Concluso, foi concedida a liminar.
A autoridade coatora, COSANPA, ao prestar suas informações alega que:
No mandado da citação da liminar, ocorreram fatos processuais capazes de tumultuar o regular andamento do feito, pois contava no mesmo, ordem não proferida no despacho de fl.23, sendo entre tanto obedecido.
A natureza Jurídica da remuneração exigida pelo fornecimento da água aos
usuários de tal serviço, não e taxa específica do gênero tributo, mas sim pagamento
de um serviço.é preço de serviço que só aparece com a sua utilização, com tipificação diferente de taxa.
O STF tem admitido que a remuneração de serviços prestados por departamentos. Companhia ou empresa de saneamento, constitui preço público I e também consagrou legitimidade da interrupção do fornecimento de água por falta de
pagamento da tarifa 2.
O serviço publico é prestado mediante a remuneração de tarifas, sendo essa
remuneração que sustenta a comunidade do serviço. Sem a cobrança de tarifas, o
sistema de fornecimento de água não existe. Determinar a “religação” do fornecimento de água ao consumidor inadimplente, impede à autoridade impetrada um
óbice mortal à prestação dos serviços.
O serviço publico não é gratuito e se assim fosse, assistiria razão a impetrante, contudo tal gratuidade não pode ser presumida em função de essencialidade do
serviço prestado, ao contrário, deve ser definitivamente afastada para manutenção e
continuidade do serviço.
Estando caracterizada a mora do usuário, o corte do fornecimento de água
não pode estar eivado de qualquer ilegalidade, pois o Regulamento das Instalações
Prediais de águas e Esgotos Sanitários da cidade de Belém, homologado pelo decreto nº 60656,de 09.05.1969, assim autorizada.
O contrato de prestação de serviços de fornecimento de água e esgoto, na verdade tem natureza de contrato de adesão, onde o usuário de serviço adere as clausulas contratuais automaticamente, com a simples autorização do serviço. A relação
Jurídica entre a contratante e o contratado, pressupõe um contrato liberal, de cunho
oneroso, prevalecendo o previsto no art. 1.092 do código civil.
Que, com o advento do código do consumidor, o art. 22 prescreveu um fator do
consumidor obrigatoriedade dos órgãos público, por si ou empresas concessionárias ou
permissionárias de fornecer serviços adequados, seguros e, quantos aos essenciais contínuos, o que desconsidera espancado este equívoco do código do consumidor.
Invoca o art. 3º, parágrafo 2º da lei nº 8.078/90 do mesmo código, porque tais
serviços de remuneração pelo pagamento de taxas ou tarifas, portanto, não tem remuneração específica e por isso não pode ser prestigiado o consumidor inadimplen-
446
faculdade de direito de bauru
te que os serviços essenciais sejam suspensos por motivos injustificados. Assim, os
órgãos públicos ou entidades paraestatais estão obrigados a fornecer os serviços essenciais como água e energia elétrica, desde que sejam pagos, dependendo disto a
sua continuidade.
Considera que estando em casos interesses individuais de determinado usuário, a oferta de serviço pode sofrer solução de continuidade, caso não estejam observadas as normas administrativas, porque a norma visa interesse da coletividade e
não do indivíduo consumidor.
Ao final, requer a denegação do mandado e a condenação da impetrante nas
custas e normas de advogado.
Junto aos autos documentos de fls. 57/58.
À fl. 59, o Recurso de Agravo interposto pela impetrada, nos termos dos art.
529 do CPC, sem tudo juntar a cópia do agravo
Com vista ao Ministério Publico, entende que sendo o serviço de água específico, divisível, facultativo e de execução indireta, o seu fornecimento pode ser interrompido mormente pela inadimplência, devendo o usuário ser comunicado dessa
interrupção com o prazo mínimo de 15 dias de antecedência.
Ao final, por entender que o serviço de água domiciliar não goza do caráter
de essencialidade obrigatória, indivisibilidade e nem de obrigatoriedade de um poder publico o prestar de maneira direta, opina pelo indeferimento do mandado de
segurança, uma vez que não houve violação a direito liquido e certo a reclamar pela
interrupção desse serviço em domicilio comum, por inadimplência do usuário.
É o relatório.
Ao Mérito.
Na verdade, o serviço de água é, indubitavelmente relação de consumo, considerada fornecedora a COSANPA, na forma do art. 2º, parágrafo único e 3º do CDC,
sendo os seus usuários os comunicadores.
“O serviço de fornecimento de água é PÚBLICO E ESSENCIAL, subordinado ao princípio da continuidade (o grifo é nosso), na forma do art. 22
do código do consumidor, da mesma forma que o serviço de telefonia e
energia elétrica”.
Enuncia o art. 22 e seu parágrafo único do CDC que:
Os órgãos públicos, por ou suas empresas, concessionárias, permissionária ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são
obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e,
quanto aos essenciais, contínuos.
Examinado os autos, constato que a liminar concedida, embasada nos arts. 5º,
inciso XXXII e 170, inciso V da Constituição Federal, c/c o art.. 7º, inciso II da Lei
nº1.533/51, inquinou-se necessária, haja visto que:
Revista do instituto de pesquisas e estudos
447
É a própria jurisprudência pátria que vem determinando em seus julgados
como consta na EMENTA:
MANDADO DE SEGURANÇA. CORTE NO FORNECIMENTO DE
ÁGUA, EM VIRTUDE DE ATRASO NO PAGAMENTO DE CONTAS.
QUESTÕES PRÉVIAS REJEITADAS. ABASTECIMENTO DE ÁGUA É SERVIÇO PÚBLICO, POR SER UMA UTILIDADE FRÍVEL PELOS ADMINISTRADOS E POR ESTAR JUNGINDO A UM REGIME JURIDICO DE DIREITO PÚBLICO. ESSENCIALIDADE DO BEM (ÁGUA) QUE DESAUTORIZA O CORTE, MANU MILITAREI, COM FEITO DE OBRIGAR O DEVEDOR A PAGAR. CREDITO QUE HÁ DE SER BUSCADO EM OUTRAS
VIAS. ORDEM CONCEDIDA.
1. Mandado de Segurança ajuizado com o azo de assegurar ao independente
a ligação do fornecimento de água de seu imóvel, cortado em virtude de
atraso no pagamento.
2. Matéria prévia de inadequação da via eleita e de interesse de agir afastadas,
posto que cabível o writ, desde que aja direito liquido e certo a ser tutelado, e que há necessidade da tutela jurisdicional e utilidade da via eleita
3. Ausência do direito liquido e certo e inexistência de impossibilidade de discussão de matéria fática no writ que se confundem com o mérito, onde devem ser analisados.
4. Questões previas rejeitadas.
5. O serviço de abastecimento de água e saneamento é serviço público (por
ser uma utilidade por todos frível-substrato material de sua noção- e por estar jungindo a um regime jurídico próprio, de direito público, erigido pela
Constituição Federal e pelas leis nº 8.987/95- traço formal de sua noção).
6. O fornecimento de água é hoje em dia, para quem já teve acesso ao mesmo, uma essencialidade. Com relevo, denominado “líquido precioso” serve
para a higiene do ser humano, para sua alimentação, para saciar sua sede,
enfim, para tudo o mais que sabemos e ressabemos da maior importância.
7. Ante essa conjuntura, é desarrazoada a ruptura no fornecimento para compelir o consumidor a arcar com as tarifas em atraso, valores estes que haverão de ser buscados em outras vias idôneas. Inteligência, ademais do art. 22,
da Lei nº 8.078/90 (Código do consumidor).
8. Procedência do writ.
Notificada a autoridade coatora, pede vista dos autos, enquanto que o cartório, desavisadamente faz a remessa dos autos ao Ministério Público, o qual na sua
manifestação, inicialmente pede a revelia da parte suplicada por entender que a
mesma não se manifestou nos autos em tempo hábil, e em sua exposição opina pelo
448
faculdade de direito de bauru
indeferimento de writ, por entender que o serviços de água domiciliar não tem o caráter de essencialidade obrigatória, acompanhando corretamente doutrinária e referindo-se em especial, neste aspecto, nos estudos esposados por HELLY MEIRELES e
JOSÉ CRETELLA JÚNIOR. Obsta-se entretanto a este entendimento, a norma do
consumidor no art.4º, inciso I da CDC.
O fato de que a impetrante se encontrava em débito para com a recorrida, não
lhe autorizava submete-la a qualquer constrangimento ou ameaça, coação ou qualquer outro procedimento que exponha ao ridículo ou interfira com o seu trabalho,
descanso ou lazer. A ÁGUA É REALMENTE NECESSÁRIA PARA A SOBREVIV NCIA DO SER HUMANO.
É um direito natural à vida. A água é vida, portanto, o CDC se impõe nos seus
art. 42 e 71, proibindo que a cobrança do fornecedor de água, possa interromper o
serviço o serviço publico essencial do usuário consumidor.
É portanto, o fornecimento de água serviço essencial, o que concede a qualquer ofendido pleitear a medida judicial a defesa do seu direito básico, para que seja
observado o fornecimento de produtos e serviços (relação de consumo) a teor de
art. 6º, incisos VI e X, c/c o art. 22 do CDC.
Tal principio proíbe o retrocesso, porque o seu art. 5º, inciso XXXII, 170 e art.
48 e suas disposições transitórias, vem protegidos pelo art.1º do CDC, o que atende à política a política nacional de relação de consumo, cujo o objetivo é o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito a dignidade, saúde4 e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria de sua qualidade de
vida, bem como a transferência e harmonia de relações de consumo (art.4ºcaput, do
CDC).
Assim é que o jurista Marcos Maselle Gouveia afirma: “A defesa do consumidor é uma garantia fundamental prevista no art. 5º, inciso XXXII, bem como um
princípio de relação econômica, previsto no art. 170, item V da CF”
O direito do consumidor possui garantia fundamental na constituição e, a interrupção no fornecimento, alem de causar uma lesão, afeta diretamente a sua dignidade e flagrante retrocesso ao direito do consumidor.
Assim é que a prática abusiva do corte já vem sendo conhecida em casos de
fornecimento de água, pois a água é de necessidade da população, de consumo imprescindível e não pode ser cortada sob nenhum propósito.
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça assim se pronunciou:
Seu fornecimento é serviço público subordinado ao princípio da
continuidade, sendo impossível a sua interrupção e muito menos
por atraso em seu pagamento (Decisão unânime do stj, que rejeitou o recurso da Companhia Catarinense de Água e SaneamentoCASAN. Proc. RESP. 201112).
Revista do instituto de pesquisas e estudos
449
Esta decisão do STJ fundamentou-se em que:
O fornecimento de água, por se tratar de serviço público fundamental, essencial e vital ao ser humano, não pode ser suspenso
pelo atraso no pagamento das respectivas tarifas, já que o poder
público dispõe dos meios cabíveis para a cobrança dos débitos dos
usuários.
Para o Ministro Garcia Vieira, a água deve ser servida à população de
maneira adequada, eficiente, segura e contínua e, em caso de atraso por
parte do usuário, não pode ser cortado o seu fornecimento porque expõe
o consumidor ao ridículo e ao constrangimento “não podendo fazer justiça privada porque não estamos mais vivendo nessa época e sim no império da lei, sendo os litígios compostos pelo Poder Judiciário e não pelo
particular. A água é bem essencial à saúde e higiene da população”.
Neste sentido, é o inteiro entendimento deste Juízo por se tratar da defesa
de um direito básico da consumidora, não podendo a pessoa Jurídica criar descontinuidade, pois os serviços essenciais se tornam indispensáveis para a conservação, preservação da vida, saúde, higiene, educação e trabalho das pessoas, o
que, ainda para o Ministro Garcia Vieira, “na época moderna exemplificadamente se tornam essenciais, nas condições de já estarem sendo prestados, o transporte, água, esgoto, fornecimento de eletricidade com estabilidade, linha telefônica,
limpeza urbana, etc”.
Para o jurista Mário de Aguiar, “uma inovação trazida pela atual constituição é
a extensão do mesmo critério às concessionárias ou permissionárias dos serviços
públicos”.
Comentando o art.22 do CDC, o jurista Antônio Herman de Vasconcelos e
Benjamim, assim se expressa:
A Segunda inovação importante é a determinação que os serviços
essenciais e só eles devem ser contínuos, isto é,não podem ser interrompidos. Cria-se para o consumidor um direito à continuidade
do serviço, podendo o consumidor postular em juízo que se condene a administração a fornecê-lo.
Tal situação está reconhecida por nossas Câmaras Civis, como, por exemplo,
do tribunal Catarinense, cujo reexame de sentença de ação de mandado de segurança confirmou a sentença a qual, fundamentado-se em que: “Se houver débito a cobrança deverá ser feita pela via própria. O que não pode é o usuário ser coagido a
pagar o que julga razoavelmente não deve sob teor de ver interrompido o fornecimento de água, bem indispensável para a vida humana”.
450
faculdade de direito de bauru
Entendendo este Juízo que o art. 5º, inciso XXXXV da Constituição Federal
que: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direita
e, a ré está resguardada pelo Principio da Isonomia para ingressar em juízo e cobrar
o que lhe é devido.
Isto Posto, JULGO PROCEDENTE O MANDADO DE SEGURANÇA impetrado por MARIA DA GLÓRIA RABELO COSTA contra ato do DIRETOR PRESIDENTE DA COMPANHIA DE SANEAMENTO DO PARÁ COSANPA, declarando a ilegalidade do ato ruptura do fornecimento de água no imóvel da impetrante, fundamentando esta decisão nos termos do art. 6º, inciso VI e X e art. 22, ambos do código de defesa do consumidor, c/c o art. 170 e art.5º, inciso XXXXV da lei básica prática.
E para que surta seus efeitos legais,
P.R.I.C.
Belém, junho de 2001
Ruth do Couto Gurjão
Juíza da 22º Vara Cível de Belém
Processo: 2000131144-6. Ação de Mandado de
Segurança. Impetrante: Maria da Glória
Rabelo Costa. Advogado: Mário Antônio
Lobato de Paiva. Impetrado: Presidente da
Companhia do Pará-COSANPA.
Mário Antônio Lobato de Paiva.
Advogado
Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito da ________Vara Cível de
Belém- Pará,
MARIA DA GLORIA RABELO COSTA, brasileira, casada, dona de casa,
RG nº 1557247-Sepup-Pa, CIC nº 22843230225 residente e domiciliada sito nesta Capital na Rua Nova nº1081, bairro da pedreira, por advogado e procurador
subscrito, com escritório profissional abaixo impresso, vem, respeitosamente, à
presença de Vossa Excelência para impetrar por seu procurador in fine assinado, qualificado no instrumento ut acostado que passa a integrar esta (doc. 01),
com escritório profissional consignado no cabeçalho, onde em atendimento à
diretriz do artigo 39, inciso I, do Código de Processo Civil, indica-o para as intimações necessárias, vem perante Vossa Excelência, com o habitual e merecido
respeito, requerer os benefícios da justiça gratuita, por ser pobre nos termos da
Lei nº 1.060, de 05.02.50, com as alterações da Lei nº 7.310/86, para impetrar
452
faculdade de direito de bauru
MANDADO DE SEGURANÇA COM PEDIDO DE LIMINAR INALDITA
ALTERA PARS
contra coação, constante e renovável, a cada fatura mensal, do DIRETOR
- PRESIDENTE da COMPANHIA DE SANEAMENTO DO PARÁ - COSANPA,
o qual tem sede na Avenida Magalhães Barata nº 1201 - Belém - PA, visando compeli-lo imediatamente a restabelecer o fornecimento de água da impetrante, conforme passa a expor e, ao final, requerer:
I.
DO CABIMENTO DO MANDADO DE SEGURANÇA
Os atos administrativos, em regra, são os que mais ensejam lesões a direitos
individuais e coletivos; portanto, estão sujeitos à impetração de mandado de segurança.
Segundo explica Coqueijo Costa,
cabe mandado de segurança contra ato administrativo executório, de autoridade de qualquer dos três poderes, que violente a esfera jurídica do indivíduo, isto é, que revista uma ilegalidade ou
um abuso de poder” (“Mandado de Segurança e controle constitucional, São Paulo, LTr, 1982, p. 47).
Acórdão AGA 248297/SE; AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO (1999/0055461-2)
Fonte DJ DATA:11/09/2000 PG:00246
Relator(a) Min. NANCY ANDRIGHI (1118)
Data da Decisão 15/08/2000
Orgão Julgador T2 - SEGUNDA TURMA
Ementa AGRAVO NO AGRAVO DE INSTRUMENTO - PROCESSUAL CIVIL E
ADMINISTRATIVO - ATO DE REPRESENTANTE DE CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO
PÚBLICO – CORTE DE ENERGIA ELÉTRICA - MANDADO DE SEGURANÇA - CABIMENTO. É cabível o Mandado de Segurança contra ato praticado por representante de concessionária de serviço público que determinou o corte do fornecimento de
energia elétrica sob alegação de prática de fraude por parte do consumidor.Agravo
a que se nega provimento.
Decisão Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da
Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das
notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, negar provimento ao
agravo regimental, nos termos do voto da Sra. Ministra-Relatora. Votaram com a Sra.
Ministra-Relatora os Srs. Ministros Eliana Calmon, Paulo Gallotti e Franciulli Netto.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Francisco Peçanha Martins.
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453
Indexação CABIMENTO, MANDADO DE SEGURANÇA, IMPUGNAÇÃO, ATO
DE AUTORIDADE, CONCESSIONARIA, SERVIÇO PUBLICO, AUTO DE INFRAÇÃO,
INTERRUPÇÃO, FORNECIMENTO, ENERGIA ELETRICA, ALEGAÇÃO, FRAUDE, CARACTERIZAÇÃO, AUTORIDADE COATORA.
Referências Legislativas LEG:FED PRT:000222 ANO:1987 (DNAEE - DEPARTAMENTO NACIONAL DE ÁGUA E ENERGIA ELÉTRICA)
Veja RESP 84082-RS, RESP 174085-GO (STJ)
Desse modo, é cabível o mandado de segurança com pedido para que seja
concedido liminarmente, e ao final, a segurança, para determinar à autoridade coatora que proceda o restabelecimento do fornecimento de água em sua residência
II.
DOS FATOS
No mês de dezembro a impetrante foi surpreendida por funcionários da Cosanpa que, sem darem maiores explicações, interromperam o serviço de fornecimento de água, não deixando a impetrante nem sequer procurar por sua residência
os comprovantes de pagamento.
Assim sendo, o fato está a merecer a tutela jurisdicional, posto que a autoridade coatora, apesar dos insistentes apelos dos órgãos consumeristas, resiste em se
adequar a realidade fática, econômica e jurídica no que diz respeito aos cortes no
fornecimento de água.
III - DO DIREITO (*)
Sumário:
1- O fornecimento de água como serviço essencial;
2- O consumidor como parte frágil tutelada pela norma do consumidor;
3- A qualidade do serviço público e o atendimento ao consumidor
4- Da abusividade das práticas comerciais nas relações de consumo;
5- A interrupção do fornecimento de água e o constrangimento do
consumidor;
6- O direito fundamental do consumidor e o princípio da proibição
de retrocesso;
7- A prática abusiva do corte de serviço essencial pala COSANPA.
(*)
Fundamentação jurídica extraída do artigo do Professor Plínio Lacerda Martins intitulado “Corte de Energia elétrica por falta de pagamento – prática abusiva – Código do Consumidor – publicado pela Revista de Informação Legislativa de julho/setembro de 2000, Brasília, ano 37, n 147.
454
1-
faculdade de direito de bauru
O FORNECIMENTO DE ÁGUA COMO SERVIÇO ESSENCIAL
O serviço de fornecimento de água é, sem dúvida, uma relação de consumo,
considerado fornecedor a empresa de Saneamento COSANPA, na forma do artigo 3º
do Código de Defesa o Consumidor, e os seus usuários são consumidores na forma
do artigo 2º e parágrafo único da norma consumerista.
O serviço de fornecimento de água é público e essencial, subordinado ao
princípio da continuidade, na forma do artigo 22 do Código do Consumidor, da
mesma forma que o serviço de telefonia e energia elétrica.
(1) Hermam Benjamim afiança que “ o Código não disse o que entendia por serviços essenciais. Essencialidade, pelo menos neste ponto, há
que ser interpretada em seu sentido vulgar, significando todo serviço público indispensável ‘a vida em comunidade, ou melhor, em uma sociedade de consumo. Incluem-se aí não só os serviços públicos stricto sensu (os
de polícia, os de proteção, os de saúde), mas ainda os serviços de utilidade pública (os de transporte coletivo, os de energia, fornecimento de água,
os de telefonia)...” (grifo nosso). Antônio Herman de Vasconcellos Benjamin et.al. Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor, São Paulo:
Saraiva, 1991, p.111.
Enuncia o artigo 22 e seu parágrafo único do CDC que:
os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento,
são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e,
quanto aos essenciais, contínuos.
Cumpre registrar que a Portaria nO. 3/99 da Secretaria de Direito Econômico
do Ministério da Justiça (publicada em 19-03-99) reconheceu como serviço essencial o fornecimento de água.
(2) estabelece a Portaria do Ministério da Justiça no item 3: “ 3. Permitam ao fornecedor de serviço essencial (água) incluir na conta....”
2- O CONSUMIDOR COMO PARTE FRÁGIL TUTELADA PELA NORMA
DO CONSUMIDOR
É cediço que o consumidor é reconhecido na relação de consumo como sendo a parte mais fraca, a merecer a tutela da norma do consumidor no artigo 4, I, do
CDC.
(3) A 106O. Sessão plenária da ONU editou em 09 de abril de 1985 a
Resolução nO. 39/248, que retrata no artigo 1O. que o consumidor é parte
mais fraca nas relações de consumo.
Revista do instituto de pesquisas e estudos
455
O 40O. Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor, realizado em Gramado, conclui pelo reconhecimento jurídico da desigualdade do consumidor perante
o fornecedor.
(4) O item 4 das conclusões aprovadas pelo Congresso prescreve:
“Como direito social, a proteção ao consumidor tem como princípio a vulnerabilidade do consumidor que exige o reconhecimento jurídico de sua
desigualdade.
É de bom alvitre destacar que a Organização das Nações Unidas-ONU editou,
em 1985, a Resolução nO. 39/248, reconhecendo no artigo 1O. que o consumidor é a
parte mais fraca na relação de consumo. O nosso CDC estabeleceu o princípio da
vulnerabilidade, reconhecendo essa fragibilidade na sociedade de consumo, possuindo a favor do consumidor a boa-fé objetiva (artigo 4O., III, do CDC).
Verifica-se em muitos casos que o consumidor não efetua o pagamento não
porque não quer, mas porque há situações imprevisíveis que fogem a esfera de sua
vontade, tais como o atraso do salário, problemas de saúde, etc..inviabilizando o pagamento da conta de água.
Arrimadas a esse fato existem hipóteses de débitos indevidos praticados pelo
fornecedor, que, com a ameaça de desligamento, impossibilitam o direito de revisão
como no caso da impetrante.
Destarte, o Código do Consumidor tutela a parte mais frágil, que é o consumidor, contra abusos praticados pelos fornecedores.
3-
A QUALIDADE DO SERVIÇO PÚBLICO E O ATENDIMENTO AO
CONSUMIDOR
O artigo 6º, X, do Código de Defesa do Consumidor, consigna que é direito básico do consumidor “a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos
em geral”
O artigo 4º do CDC estabelece a política nacional das relações de consumo, cujo o objetivo é atender às necessidades dos consumidores, respeitando a
sua dignidade, saúde e segurança, providenciando a melhoria de sua qualidade
de vida.
Prescreve ainda a legislação consumerista a ação governamental no sentido de
proteger efetivamente o consumidor, garantindo que os produtos e serviços possuam padrões adequados de qualidade e segurança, durabilidade e desempenho
(artigo 4º, II, d), devendo o Estado ainda providenciar a “harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do
consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de
modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (artigo 170
da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre
consumidores e fornecedores”(artigo 4º, III).
456
faculdade de direito de bauru
O artigo 175 parágrafo único, inciso IV da Constituição Federal estabelece:
“Artigo 175 – Incumbe ao Poder Público, na forma da lei diretamente ou sob
regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Parágrafo-único- A lei disporá sobre:
(...)
IV-a obrigação de manter serviço adequado”
A Lei nº8.987/95, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão de serviços públicos, estabelece no artigo 6º, que
toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço
adequado ao pleno atendimento dos usuários”, afirmando no parágrafo 1º o conceito de serviço adequado como sendo”o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia nas sua prestação e modicidade das tarifas
Por fim registra-se que o artigo 4º, inciso VII, do CDC imputa ao Estado o dever da melhoria dos serviços públicos.
4-
DA ABUSIVIDADE DAS PRÁTICAS COMERCIAIS NAS RELAÇÕES DE
CONSUMO
O CDC consagra a ação governamental de coibição e repressão eficiente de
todos os abusos praticados no mercado do consumo (artigo 4º, VI).
Cada dia torna-se mais comum reclamações contra o fornecedor pelos serviços prestados.
Não são raras as vezes que o consumidor/usuário é surpreendido com um débito indevido em sua conta, e a solução outorgada pelo fornecedor consiste na
orientação de o consumidor pagar a conta indevida após discutir, sob pena de corte do fornecimento.
Prescreve o artigo 39, inciso IV, do CDC que se prevalecer da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhes seus produtos ou serviços constitui prática abusiva repudiada pela norma do consumidor.
O CDC traz preceito expresso a respeito do Princípio da boa-fé (artigo 4º, inciso III, da norma do consumidor) concretizando assim o Princípio a boa-fé objetiva:
No dizer da doutrinadora Cláudia Lima Marques:
“Boa-fé significa aqui um nível mínimo e objetivo de cuidados, de respeito e
de tratamento leal com a pessoa do parceiro contratual e seus dependentes. Este patamar de lealdade, cooperação, informação e cuidados com o patrimônio e a pessoa
Revista do instituto de pesquisas e estudos
457
do consumidor é imposto por norma legal, tendo em vista a aversão do direito ao
abuso e aos atos abusivos praticados pelo contratante mais forte, o fornecedor, com
base na liberdade assegurada pelo princípio da autonomia privada”.
O CDC, presumindo o consumidor como parte contratual mais fraca, impõe
aos fornecedores de serviços no mercado um mínimo de atuação conforme a boafé. O princípio da boa-fé nas relações de consumo atua limitando o princípio da autonomia da vontade e combatendo os abusos praticados no mercado.
O corte de fornecimento de água da impetrante reveste-se de uma prática comercial que ocasionou desequilíbrio na relação contratual atentando contra o patamar mínimo de boa-fé na relação contratual de consumo, devendo ser declarada
abusiva e ilegal.
O CDC prevê, no artigo 6º, IV, como direito básico do consumidor, a proteção
contra cláusulas abusivas. Também prevê como direito básico do consumidor, no
mesmo dispositivo legal, a proteção contra práticas abusivas impostas no fornecimento de produtos e serviços.
Há que se observar que o CDC enumera, no artigo 39, uma lista de práticas
abusivas, sendo certo que a lista não é taxativa, admitindo outras práticas comerciais como sendo abusivas, desde que figure o significativo desequilíbrio entre os
direitos do consumidor, a manifesta vantagem e a ofensa ao princípio da boa-fé
objetiva.
Infere-se que o ato de interromper o fornecimento de água da impetrante foi
praticado sem boa-fé, ferindo flagrantemente o princípio que norteia o sistema, e se
configurando como uma prática abusiva.
5-
A INTERRUPÇÃO DO FORNECIMENTO ÁGUA E O CONSTRANGIMENTO DO CONSUMIDOR
Conforme leciona Hélio Gama, a “Constituição Federal traz dispositivo de proteção d honra da pessoa, enquanto o Código Penal comina crime ao ato de exacerbação no exercício arbitrário das próprias razões”.
Assevera Hélio Gama que era comum submeter-se os devedores à execração
pública ou constrangê-las até pagarem os seus débitos”; afiançando que certos credores se aproveitam dos mecanismos de cobrança “para aviltar as dignidades dos
seus devedores”.
O CDC, contudo, veda a prática do constrangimento na cobrança de dívidas,
determinando que o consumidor não pode ser submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça e nem exposto a ridículo pela cobrança de dívida.
Consagra o artigo 42 do CDC: “na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto ao ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça”.
458
faculdade de direito de bauru
Como se sabe, a lei do consumidor repudiou a cobrança vexatória a tal ponto
de tipificar como criminosa a conduta que expõe o consumidor a constrangimento
em razão de dívida.
Estabelece o artigo 71 do CDC:
Artigo 71- Utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação,
constrangimento físico ou moral, afirmações falsas, incorretas ou
enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o
consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu
trabalho, descanso ou lazer:
Pena- Detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano e multa.
Vale transcrever as lições do Professor Hélio a respeito do conceito de constrangimento, sustentando in verbis:
Ao nosso ver, o constrangimento de que fala o CDC é aquela imposição de situações que venham a atormentar o devedor, fazendo
com que as agruras da cobrança que sofra se transformem em
condenação adicional ou acessória
Seria o caso de indagarmos: será que a cobrança do fornecedor de água que
ameaça de interromper o serviço público essencial do usuário/consumidor/impetrante inadimplente não configura para o consumidor um constrangimento ? Será
que essa cobrança não dificulta o acesso à Justiça?
O fornecimento de água é serviço essencial. A sua interrupção acarretou o direito da impetrante postular em juízo, buscando que se condene a Administração a
fornecê-la. Importa assinalar que tal medida judicial tem em mira a defesa de um direito básico d a impetrante a ser observado quando do fornecimento de produtos e
serviços (relação de consumo), a teor do artigo 6º, VI, X, e artigo 22 do CDC.
6-
O DIREITO FUNDAMENTAL DO CONSUMIDOR E O PRINCÍPIO DA
PROIBIÇÃO DO RETROCESSO
É cediço que o CDC surgiu atendendo a um comando constitucional, estabelecendo a um comando constitucional, estabelecendo um sistema de defesa do consumidor. Conforme já registrado anteriormente, se há relação de consumo, os direitos dos usuários/consumidores são regulados e tutelados pelo CDC.
O artigo 1O. do CDC é bem claro ao dispor que:
“o presente Código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor,
de ordem pública e interesse social, nos termos dos artigos 5O., inciso XXXII, 170,
inciso V, da Constituição Federal, e artigo 48 de suas Disposições Transitórias,
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Atendendo assim ‘a política nacional de relação de consumo, que tem por
objetivo:
o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito ‘a
sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses
econômicos, a melhoria de sua qualidade de vida, bem como a
transferência e harmonia das relações de consumo (artigo 4O., caput)
Com conhecimento jurídico sólido sobre o assunto, o jurista Marcos Maselli
Gouvêa afirma que “a defesa do consumidor é uma garantia fundamental previstas
no artigo 5O., XXXII, e um princípio da ordem econômica, previsto no artigo 170, V”
A Constituição Federal estabelece como princípio fundamental a dignidade da
pessoa humana, como um fundamento básico (artigo 1O.,III da CF). No artigo 170,
V, estabelece:
Artigo 170- A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)
V-defesa do consumidor;
No mesmo sentido, o direito do consumidor está elencado entre os direitos
fundamentais da constituição.
José Geraldo Brito Filomeno esclarece a respeito do artigo 1O. do CDC que sua
promulgação se deve a “ mandamento constitucional expresso. Assim, a começar
pelo inciso XXXII do artigo 5O. da mesma Constituição, impõe-se ao Estado promover, na forma da lei, a defesa do consumidor”.
O 40O. Congresso do Consumidor, realizado em Gramado, conclui que o direito de proteção ao consumidor é cláusula pétrea da Constituição Federal (artigo 5O.,
XXXII, CF/88).
Conforme demonstrado, o CDC erigiu do comando Constitucional, estabelecendo expressamente no artigo 1O. do CDC a despeito da norma constitucional.
Nesse sentido, é correta a premissa que qualquer norma infraconstitucional
que ofender os direitos consagrados pelo CDC estará ferindo a Constituição e, mutatis mutandis, deverá ser declarada como inconstitucional.
Nessa direção estabelece Arruda Alvim:
Garantia constitucional desta magnitude, possui, no mínimo,
como efeito imediato e emergente, irradiado da sua condição de
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faculdade de direito de bauru
princípio geral da atividade econômica do país, conforme erigido em nossa Carta Magna, o condão de inquinar de inconstitucionalidade qualquer norma que nossa consistir em óbice ‘a defesa desta figura fundamental das relações de consumo, que é o
consumidor
Sem embargo dessas considerações, faz necessário comentar o princípio da
proibição do retrocesso em face das garantias fundamentais.
Com efeito, o direito do consumidor possui o status de direito constitucional
e, como tal, não pode o legislador ordinário fazer regredir o “grau de garantia fundamental”, conforme leciona Marcos Gouvêa.
A lei da concessão do serviço público (Lei no. 8.987/95), ao afirmar que não
se caracteriza como descontinuidade do serviço público a sua interrupção “ por
inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade” (artigo 6O.,
parágrafo 3O., II), na realidade está praticando o autêntico retrocesso ao direito
do consumidor, haja vista que o artigo 22 do CDC afirma que os fornecedores de
serviço essencial são obrigado a fornecer serviços adequados, eficientes e “contínuos”.
Arrimado a esse fato, acrescente-se que o direito do consumidor possui garantia fundamental na Constituição e que a interrupção do fornecimento, além de causar uma lesão, afeta diretamente, a sua dignidade, sem embargo da dificuldade de
acesso a Justiça que o dispositivo apresenta, consolidando assim a autotutela do direito do fornecedor.
Admitir a possibilidade do interrupção no fornecimento de água da consumidora/impetrante implica flagrante retrocesso ao direito do consumidor,
consagrado em nível constitucional. Por isso, o princípio de retrocesso veda
que lei posterior possa desconstituir qualquer garantia constitucional. Ainda
que lex posteriori estabelaça nesse sentido, a norma deverá ser considerada inconstitucional.
Por tais razões, é manifesta a inconstitucinalidade do dispositivo legal previsto no artigo 6O., parágrafo 3O., II da Lei nO. 8.987/95, que autoriza a interrupção de
serviço essencial, em razão do princípio da proibição do retrocesso.
7-
A PRÁTICA ABUSIVA DO CORTE DE SERVIÇO ESSENCIAL PELA COSANPA
O reconhecimento da ilegalidade do corte em relação ao serviço essencial é
patente nos casos de fornecimento de água, a exemplo da sentença da Juíza Aparecida Oliveira, de Anápolis, Goiás, que expressamente considerou o corte ilegal, porque “a água é de necessidade da população, de consumo imprescindível
e não pode ser cortada sob nenhum propósito”.
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461
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou entendendo que: “Seu fornecimento é serviço público, subordinado ao princípio da continuidade, sendo impossível a sua interrupção e muito menos
por atraso no seu pagamento” (Decisão unânime da Primeira Turma do
STJ, que rejeitou o recurso da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento- CASAN. Proc. RESP 201112)
Dessa forma, o aresto do E. STJ decidiu, por unanimidade, que o fornecimento de água não pode ser interrompido por inadimplência, fundamentando:
O fornecimento de água, por se tratar de serviço público fundamental, essencial e vital ao ser humano, não pode ser suspenso
pelo atraso no pagamento das respectivas tarifas, já que o Poder
Público dispõe dos meios cabíveis para a cobrança dos débitos dos
usuários.
Para o Ministro Garcia Vieira, relator do processo,
a Companhia Catarinense de Água cometeu um ato reprovável,
desumano e ilegal. É ela obrigada a fornecer água ‘as população
de maneira adequada, eficiente, segura e contínua e, em caso de
atraso por parte do usuário, não poderia cortar o seu fornecimento, expondo o consumidor ao ridículo e ao constrangimento,
casos previstos no CDC.
Segundo o Ministro Garcia Vieira a empresa fornecedora de água
deve utilizar-se dos meios legais de cobrança:
não podendo fazer justiça privada porque não estamos mais vivendo nessa época e sim no império da lei, e os litígios são compostos pelo Poder Judiciário, e não pelo particular. A Água é bem essencial e indispensável ‘a saúde e higiene da população.
No mesmo sentido, o fornecimento de água é serviço essencial. A sua interrupção acarreta o direito da impetrante/consumidora postular em juízo, buscando
que se condene a Administração a fornecê-la, sem prejuízo da condenação do fornecedor pelo dano moral e patrimonial sofrido pela consumidora.
Importa assinalar que tal medida judicial tem em mira a defesa de um direito
básico da consumidora/impetrante, a ser observado quando do fornecimento de
produtos e serviços (relação de consumo), na forma como prescreve o artigo 6, X
do CDC (adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral), sem prejuízo
faculdade de direito de bauru
462
da reparação dos danos provocados (a teor do artigo 6, VI, do CDC, “ a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos”
A respeito, claríssima a lição de Mario Aguiar Moura:
A continuidade dos serviços essenciais significa que devem ser eles
prestados de modo permanente, sem interrupção, salvo ocorrência de caso fortuito ou força maior que determine sua paralisação
passageira. A hipótese é a de o particular já estar recebendo o serviço. Não pode a pessoa jurídica criar descontinuidade. Serviços
essenciais são todos os que se tornam indispensáveis para a conservação, preservação da vida, saúde, higiene, educação e trabalho das pessoas. Na época moderna, exemplificativamente, se tornam essenciais, nas condições de já estarem sendo prestados, o
transporte, água, esgoto, fornecimento de eletricidade com estabilidade, linha telefônica, limpeza urbana, etc...
Leciona Mário de Aguiar que:
Uma inovação trazida pela atual Constituição é a extensão do
mesmo critério ‘as concessionárias ou permissionárias do serviços públicos. Assim, no caso dos serviços concedidos de transporte, fornecimento de água, eletricidade, etcc.., as empresas respondem perante terceiro segundo os critérios da responsabilidade sem culpa nas mesmas condições do que ocorre com a pessoa
jurídica pública.
O ilustre jurista Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, comentando o
artigo 22 ressalta o seguinte:
A segunda inovação importante é a determinação de que os serviços essenciais e só eles devem ser contínuos, isto é, não podem ser
interrompidos. Cria-se para o consumidor um direito ‘a continuidade do serviço.
Tratando-se de serviço essencial e não estando ele sendo prestado,
o consumidor pode postular em juízo que se condene a Administração a fornecê-lo
Na esteira do entendimento pretoriano, a jurisprudência tem firmado como
vimos acima, o entendimento que o corte de fornecimento de água é ilegal, afirmando que deve a concessionária aguardar o pronunciamento da Justiça, não podendo
exigir de imediato o pagamento do alegado débito sob ameaça de corte de forneci-
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463
mento de água, sendo o serviço prestado bem indispensável, não pode ser ele suspenso bruscamente sem motivo justificado.
Em idêntica direção, decidiu a Terceira Câmara Civil do Tribunal de Justiça Catarinense, em reexame de sentença de Ação de Mandodo de Segurança, pela confirmação da sentença a quo, fundamentando que se:
houver débito a cobrança deverá ser feita pela via própria. O que
não pode é o usuário ser coagido a pagar o que julga razoavelmente não dever sob teor de ver interrompido o fornecimento de
água, bem indispensável a vida humana.
Com efeito, não há justificativas para a prática abusiva do corte no fornecimento água por falta de pagamento por parte da fornecedora COSANPA na cobrança de dívidas, expondo o consumidor a constrangimento, sendo certo que existem
mecanismos legais de cobrança, não sendo possível referendar a autotutela.
Há que se referir que aos juízes é permitido o controle das cláusulas e práticas abusivas. Destarte, faz-se necessário a providência jurisdicional, em prol da consumidora/impetrante, para que o direito consagrado no CDC não seja violado com
o corte no fornecimento de água, que é considerado serviço essencial, coibindo o
abuso na cobrança, que deve ser efetuada pelos meios legais em direito admitidos.
Estabelece o artigo 5, XXXXV, da CF que: “a lei não excluirá da apreciação
do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”
Se a lei não pode excluir da apreciação do Judiciário a simples ameaça a direito, como admitir-se que o fornecedora de água COSANPA se arrogue o poder de fazer “ justiça com as próprias mãos?”
Nos casos de inadimplência, portanto, cabe á ré-COSANPA, com resguardo do
Princípio da Isonomia, ingressar em juízo para cobrar quanto lhe é devido. Porque
o juiz, que representa o Estado e diz o direito (jurisdição), pode determinar a providência, se assim lhe parecer.
Por outro lado, o fornecimento de água é serviço essencial. A sua interrupção
como no caso em epígrafe acarretou o direito da impetrante postular em juízo, buscando que se condene a COSANPA a fornecê-la. Importa assinalar que tal medida judicial tem em mira a defesa de um direito básico da consumidora/impetrante, a ser
observado quando do fornecimento de serviços (relação de consumo), a teor do artigo 6O., VI e X, do CDC.
IV - DO PEDIDO LIMINAR
A via eleita, portanto, para obtenção da prestação jurisdicional almejada é o
mandado de segurança com pedido de liminar inaldita altera pars, ante a ofensa
ao direito líquido e certo a água da impetrante.
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O fumus boni iuris afigura-se-nos suficientemente demonstrado pela impetrante, onde se comprova a existência do direito do consumidor no sentido de ver respeitado o seu direito ao fornecimento de água previsto na legislação consumerista.
Quanto ao eventual dano e o gravame daí decorrente, é de se levar em consideração que a questão atinge a impetrante, e toda a sua família usuária do fornecimento de água.
A demora na prestação jurisdicional ou periculum in mora é fator indiscutível, já que a impetrante pode vir a se tornar devedora de valores ilegítimos, injustos,
exigidos a título de multa moratória, de custo do reaviso, que, se não forem pagos,
serão obrigados a continuar com a interrupção do fornecimento do produto, essencial para a vida humana, animal e vegetal.
A concessão da providência só ao final da demanda poderá ser inócua, e as
conseqüências desastrosas para a saúde da impetrante e de seus familiares.
Neste sentido, é oportuna as seguintes decisões:
A Companhia Catarinense de Água e Saneamento negou-se a parcelar o débito do usuário e cortou-lhe o fornecimento de água, cometendo ato reprovável, desumano e ilegal. Ela é obrigada a fornecer água à população de maneira
adequada, eficiente, segura e contínua, não expondo o consumidor ao ridículo
e ao constrangimento. Recurso improvido”. (Decisão no RE 201.112SC(99/0004398-7), da Primeira Turma do STJ, no voto do relator Ministro Garcia
Vieira, de 20/04/99, unânime)
Presentes, pois, os pressupostos do art. 7º, inc. II, da Lei nº 1.533, de 31.12.51,
por via de ordem liminar.
Portanto, manifesto o perigo de dano patrimonial, e certa a necessidade de reparação pela interrupção do fornecimento e/ou cobrança indevida.
V.
CONCLUSÃO E PEDIDO FINAL
ISTO POSTO, a impetrante requer a V. Exa. digne-se deferir a segurança, LIMINARMENTE INALDITA ALTERA PARTS e ao final, para determinar à autoridade coatora:
Deferida a liminar, suspendendo o ato abusivo e ilegal, requer-se seja notificada a autoridade coatora de sua concessão e para que preste informações.
Que seja concedido o benefício da gratuidade da justiça, abrangendo também
autenticação dos documentos.
Após, dando-se vistas ao Dr. Promotor de Justiça para manifestar-se, requer-se
seja deferido em definitivo a presente segurança como medida de justiça.
Dá-se à causa, para efeitos fiscais e de alçada, o valor de R$ 100,00 (cem reais).
Nestes termos, pede deferimento.
Belém 20 de dezembro de 2000
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Mário Antônio Lobato de Paiva
Advogado-OAB-8775
Documentação em anexo:
Procuração
Cópia simples do RG e CIC da impetrante
Copia simples das contas de água pagas
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estudos jurídicos
A CESSÃO DE CRÉDITO E O PROVIMENTO Nº 06/2000
DA CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA
DO TRABALHO. SUAS CONSEQÜÊNCIAS NO
PROCESSO TRABALHISTA.
Francisco Antonio de Oliveira
Juiz Presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região
1. A Cessão de crédito, em âmbito trabalhista, sempre foi objeto de divergências. Com o intuito de normatizar esse instituto, a Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho, através do Provimento nº 02/2000 (DJU 19.05.2000), assim regulamentou a matéria: “1. Declarar que o crédito trabalhista não é cedível a
terceiros. 2. Determinar que qualquer pretensão nesse sentido, manifestada
em Juízo, seja indeferida, liminarmente, independentemente da forma como
tenha sido feita a cessão. 3. Este Provimento entrará em vigor na data de sua
publicação no Órgão Oficial, revogadas as orientações em contrário”. Referida norma regulamentar teve vida curta, revogada que foi pelo Provimento nº
06/2000, de 19.12.2000 (DJU *) que assim dispõe: “A cessão de crédito prevista
em lei (artigo 1.065 do Código Civil) é juridicamente possível, não podendo,
porém, ser operacionalizada no âmbito da Justiça do Trabalho, sendo como é
negócio jurídico entre empregado e terceiro que não se coloca em qualquer
dos pólos da relação processual trabalhista”.
2. Denomina-se cessão de crédito o negócio jurídico em virtude do qual o
credor transfere a outrem a sua qualidade creditória contra o devedor, recebendo o
cessionário o direito respectivo, com todos os acessórios e garantias. É uma alteração subjetiva da obrigação, indiretamente realizada, porque se completa por via de
470
faculdade de direito de bauru
uma trasladação da força obrigatória, de um sujeito ativo para outro sujeito ativo,
mantendo-se em vigor o vinculum iuris originário1.
3. Ato inter vivos, oneroso ou gratuito, pelo qual uma pessoa transfere a outrem o crédito ou direito pessoal de que é titular. É uma forma de sub-rogação. A
cessão de crédito também se denomina cessão ativa, por oposição a cessão passiva,
que compreende a aceitação da dívida transmitida. Pode ser: a) a título gratuito, ou
pura e simples, se resulta de liberalidade, sem encargo algum para o cessionário; b)
a título oneroso, se o cedente recebeu valor equivalente pela alienação ou se o cessionário fica sujeito a ônus ou encargo; c) obrigatória, quando se opera independentemente da vontade das partes. Esta espécie de cessão se subdivide: I - judicial, se
se realiza em virtude de sentença; II - legal, quando se verifica por força ou exigência da lei; d) voluntária ou convencional, quando decorre de acordo entre as partes,
com o caráter de sub-rogação, em que o cedente transfere ao cessionário o seu crédito ou direito que tem sobre terceiro2.
4. De conformidade com os preceitos contidos no artigo 1.065 do Código Civil, o credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor. Em regra, todos os créditos podem ser
objeto de cessão; a negociabilidade é a regra em matéria de direitos patrimoniais.
Ensina Washington de Barros Monteiro3 que de acordo com o Código Civil,
créditos existem que não podem ser cedidos. A interdição decorre da natureza do
crédito, de disposição da lei e de convenção das partes. Pela sua natureza, não podem ser cedidas as relações jurídicas estritamente pessoais, inerentes à própria pessoa do titular, como as de direito de família, nome civil e alimentos. Por lei, não comportam cessão os direitos e obrigações mencionados a seguir: obrigação de fazer,
quando infungível a prestação (art. 878); a venda a contento (art. 1.148); a perempção (art. 1.157); o pacto de melhor comprador (art. 1.158, parágrafo único); a obrigação originada da ingratidão do donatário (art. 1.185); a do locador de serviços
(art. 1.233); a do mandato, salvo existindo poder de substabelecimento (art. 1.316,
nº II); a do parceiro agrícola (art. 1.413); o usufruto, exceto na hipótese prevista no
art. 717; o benefício da justiça gratuita (Lei nº 1.060, de 2-2-1950, art. 10). A essa enumeração acrescente-se ainda o direito de remir.
5. O direito romano não acolhia a transmissão de direitos ou de créditos nos
termos em que a produz a cessão. Nele a obrigação era inseparável do indivíduo a
quem aderia ut Iepra cutis.
Segundo ensinamentos de J. M. Carvalho dos Santos4 a novação foi o meio indireto, o artifício a que se recorreu, então, para transmitir-se a dívida. O processo,
1 Silva Pereira, Caio Mário da – Instituições de Direito Civil, Ed. Forense, Rio/1972, p. 301/02, Vol. II.
2 Nunes, Pedro – Dicionário de Tecnologia Jurídica, Vol. I, Ed. Freitas Bastos, 1965, p. 232.
3 Barros Monteiro, Washington – Curso de Direito Civil, Ed. Saraiva, São Paulo, 1967, vol. IV, p.376.
4 Carvalho dos Santos, J.M. – Código Civil Brasileiro Comentado, Ed. Freitas Bastos, 1964, Vol. XIV, p. 308
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inspirado na prática e na necessidade, progrediu porque aquele já não servia, retardado pela formalística e dificultado pelo caráter sinuoso que apresentava. Ainda não
se efetuava a transmissão de crédito pura e simples, mas a dívida continuava como
do credor, em nome do qual agia o procurador in rem propriam, que não prestava
contas do mandato e se tornava dono da prestação cobrada.
6. A validade da cessão com relação a terceiros está condicionada a certos requisitos, não sendo demais aqui delinearmos o que se entende por terceiro.
Segundo Caio Mário da Silva Pereira5, genericamente será toda pessoa que não
seja parte na mesma relação jurídica. Mas, no caso particular da cessão, considerase tal, para efeitos legais, quem não participou do negotium iuris da cessão: assim
é terceiro o devedor do crédito transferido; qualquer outro cessionário; o credor
pignoratício que recebeu em caução o crédito cedido, como qualquer credor quirografário do cedente. Assim, efetuada a cessão, à sua validade contra terceiros não
basta a estipulação entre cedente e cessionário, ainda que acompanhada de notificação ao devedor. Esta notificação, esclareçamos desde logo, não se confunde com
a denuntiatio primitiva, embora se aproxime dela. Realiza-se com a finalidade de integrar a validade da cessão em relação ao devedor, e, assegura os direitos do cessionário em relação a terceiros. Pode a cessão ser notificada por via judicial, como também particular, ou ainda revestir a modalidade da notificação presumida, que assim
se considera a que resulta de qualquer escrito público ou particular, no qual o devedor manifeste a sua ciência (Código Civil, art. 1.069). Nesse sentido doutrinam os
doutores, como ainda naquele de considerar que, enquanto não notificada, ou aceita, a cessão não é oponível ao devedor. Para ser oponível a terceiros, a cessão poderá revestir a forma pública, e se for hipotecário o crédito transferido, tem o cessionário o direito de fazer averbar a cessão à margem da inscrição principal, como subrogado nas qualidades de credor hipotecário.
Mas, se revestir a forma particular, terá de ser escrita e assinada, ou somente
assinada por quem esteja na disposição livre de seus bens, e transcrita no registro
público, para valer contra terceiros. Em torno da última exigência, reina constante
controvérsia na doutrina, com deplorável repercussão jurisprudencial, havendo opiniões e arestos no sentido de que tem mero efeito publicitário a transcrição no registro público, enquanto que outros lhe atribuem o caráter de requisito de validade.
É bem de ver que a distinção não é meramente acadêmica, mas de sensível projeção prática, pois que, se o registro tivesse efeito de simples publicidade, sua omissão seria suprível por qualquer outra prova de conhecimento da cessão por parte do
terceiro. Caso contrário, e revestindo caráter de condição de eficácia, será insuprível. Diante dos termos da lei, e com apoio na invocação doutrinária alienígena, onde
vige semelhante regra, não pode haver dúvida de que o registro é erigido em requi-
5 Silva Pereira, Caio Mário da – Obra citada, p. 309/311.
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faculdade de direito de bauru
sito essencial à própria existência da cessão, pois que não vale ela em relação a terceiros, a não ser que revista a forma pública, ou no caso de ser vazada em instrumento particular, se não se sujeitar às imposições formais, entre os quais precisamente o registro. O regulamento específico, antes Decreto n° 4.857, de 9 de novembro de 1939, artigo 134, inciso I e atual Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, artigo 131, determina que se faça a transcrição no Registro de Títulos e Documentos
do domicílio dos contratantes, ou dos domicílios se os não tiverem na mesma localidade.
Ora, quando a lei estabelece o requisito formal como substância do ato, cominando a pena de ineficácia para o caso de sua inobservância, não terá valor nenhum
o ato que a ele desatenda.
À luz de tais princípios é de se concluir que a transcrição do instrumento de
cessão é exigida ad substantiam e não apenas ad probationem, o que vale dizer
que de nenhum valor a cessão, caso preterida a formalidade do registro, não sendo,
ademais, oponível a terceiros.
7. Serpa Lopes6 ensina que também foi imposto o registro da cessão de crédito, para que esta possa valer contra terceiro. Relativamente à cessão de crédito, não
nos parece que o intuito da lei, ensina o mestre, tenha sido meramente o da fixação
de uma data, pois a situação jurídica, neste caso, é completamente diversa da que
surge nos demais contratos. Na cessão de crédito, a pressuposição é a de que, antes
de tratar com o credor para a aquisição ou constituição de um penhor sobre o crédito, se informe o contratante do registro, se dele consta algo sobre o crédito, além
de poder também se informar no sentido de averiguar quem é atualmente o seu credor, sendo certo ainda que o registro da cessão tem o efeito de oponibilidade. E arremata: O registro da cessão de crédito resulta da combinação do art. 135 do Código Civil com o art. 1.067, o qual assim dispõe: “não vale, em relação a terceiros, a
transmissão de um crédito, se se não celebrar mediante instrumento público, ou instrumento particular revestido das solenidades do art. 135”.
8. Decorrência lógica da noção de cessão de crédito é a sub-rogação do
cessionário na qualidade creditória do cedente, investido que fica em todos os
seus direitos e garantias, exceto quanto a estas, a estipulação em contrário. Assim, o cessionário passa a substituir o cedente, operando-se a mutação subjetiva e o cessionário passa a proceder em relação ao crédito como se credor originário fora.
9. De conformidade com o artigo 42 do Código de Processo Civil, temos:
A alienação da coisa ou do direito litigioso, a título particular, por
ato entre vivos, não altera a legitimidade das partes.”
6 Serpa Lopes, Miguel Maria – Tratado de Registros Públicos, Ed. Freitas Bastos, 1955, Vol. II, p. 56.
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§ 1° - “O adquirente ou o cessionário não poderá ingressar em juízo, substituindo o alienante, ou o cedente, sem que o consinta a
parte contrária.”
§ 2° - “O adquirente ou o cessionário poderá, no entanto, intervir
no processo, assistindo o alienante ou o cedente.”
§ 3° - “A sentença, proferida entre as partes originárias, estende os
seus efeitos ao adquirente ou ao cessionário.”
Comentando o artigo retro e seus respectivos parágrafos, Celso
Agrícola Barbi preleciona que, quando ocorrer a alienação da coisa litigiosa, no
sistema ora adotado entre nós, haverá caso de substituição processual ou legitimação anômala, porque o alienante continuará em juízo em nome próprio, mas
postulando direito de terceiro. Verifica-se, ademais, que a regra contida no artigo
41 do diploma processual é a permanência das partes originais. Mais adiante, afirma que o artigo 42 reafirma o princípio expresso no artigo 41 e regula, no seu
corpo e nos parágrafos, a hipótese de transmissão entre vivos; a transmissão decorrente de morte do litigante é regida pelo art. 43. Segundo o artigo, mesmo
que tenha havido alienação da coisa ou direito no curso da causa, as partes continuam as mesmas. A regra torna clara a distinção entre relação de direito substancial discutida em juízo e a relação de direito processual. Os sujeitos daquela
mudaram, mas os desta permanecem os mesmos.
10. Temos que o parágrafo 1° do artigo 42 do Código de Processo Civil admite a substituição voluntária da parte originária pelo adquirente da coisa ou cessionário do direito objeto da demanda. Mas subordina ao consentimento do devedor. Se
este não concordar, a substituição não poderá ser feita, devendo a causa continuar
com o alienante ou cedente, observados os preceitos contidos no parágrafo 3°. Em
havendo a concordância expressa ou tácita, a substituição se concretizará e o alienante ou cedente será excluído de um dos pólos processuais.
Alexandre de Paula8 ensina que no caso de recusa da parte contrária para que
o adquirente ou cessionário ingresse em Juízo, substituindo o alienante ou cedente, poderá aquele ingressar na qualidade de assistente litisconsorcial deste, eis que
a sentença não poderá deixar “de influir na relação jurídica entre eIe e o adversário
do assistido (art. 54).”
Ainda o mesmo autor traz a exame acórdão proferido pelo Egrégio Tribunal
de Justiça do Rio de Janeiro, relator Desembargador Vieira de Moraes:
7
A proibição de alterar-se subjet