Anatomia foliar de cultivares tintas de videira (vitis vinifera l.)
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Anatomia foliar de cultivares tintas de videira (vitis vinifera l.)
Anatomia foliar de cultivares tintas de videira (vitis vinifera l.) Generosa Teixeira1, Ana Monteiro2, Natacha Nunes2 & Carlos Lopes2 1 Faculdade de Farmácia, Univ. Lisboa, Botânica Farmacêutica, Centro de Biologia Ambiental, Av. Prof. Gama Pinto, 1649-003 Lisboa, Portugal [email protected] 2 Centro de Botânica Aplicada à Agricultura, Instituto Superior de Agronomia, Technical University of Lisbon, Tapada da Ajuda, 1349-017 Lisboa, Portugal [email protected]; [email protected] Palavras chave: epiderme, mesófilo, cutícula, estomas, indumento. Resumo Os objectivos deste trabalho consistiram em estudar as características foliares anatómico-biométricas das cultivares tintas de videira, 'Aragonez' (syn. ‘Tempranillo’), 'Cabernet Sauvignon', 'Syrah' e 'Touriga Nacional', à floração, pintor e meia-maturação, em condições de campo. Os estudos foram efectuados por recurso à microscopia óptica e electrónica de varrimento. Verifica-se que os estomas são de dois tipos, o tipo actinocítico e o tipo staurocítico, este não referenciado para o género Vitis. As cvs. ‘Cabernet Sauvignon’ e ‘Touriga Nacional’ apresentam um parênquima lacunoso com menos espaços intercelulares e menor espessura total do que as cvs. ‘Aragonez’ e ‘Syrah’. Em secção transversal, o lúmen das células epidérmicas de ‘Cabernet Sauvignon’ é maior do que nas outras cultivares. Em síntese, nas folhas das quatro castas observam-se características anatómicas gerais semelhantes mas com uma organização diferente do mesófilo e com células epidérmicas com secções transversais diferentes. Resumen Los objetivos del presente trabajo consistieron en estudiar las características foliares anatómico-biométricas de los cultivares tintos de vid 'Aragonez' (syn. ‘Tempranillo’), 'Cabernet Sauvignon', 'Syrah' y 'Touriga Nacional', en la floración, envero y media maduración, en condiciones de campo. Los estudios han sido efectuados utilizando microscopía óptica y electrónica de barrido. Se ha verificado la presencia de dos tipos de estomas, el tipo actinocitico y el tipo staurocitico, no citado para el género Vitis. Los cultivares ‘Cabernet Sauvignon’ y ‘Touriga Nacional’ presentan un parénquima lagunar con menos espacios intercelulares y menor espesura total que los cultivares ‘Aragonez’ y ‘Syrah’. En sección transversal, el lumen de las células epidérmicas de ‘Cabernet Sauvignon’ es mayor que en los otros cultivares. En resumen, se observan características anatómicas generales en las hojas de las cuatro cultivares, pero con una organización diferente del mesófilo y con células epidérmicas con secciones transversales diferentes. INTRODUÇÃO A morfologia e anatomia dos órgãos de uma planta estão directamente relacionadas com a sua função e são influenciadas por processos bioquímicos e fisiológicos. Algumas características histológicas e anatómicas são reconhecidas como caracteres taxonómicos podendo igualmente ser entendidas como caracteres ecológicos. Com as mesmas condições ambientais e de cultivo algumas cultivares respondem de modo diferente quer na taxa fotossintética (Iakono et al., 1998) quer na resposta ao 839 stress hídrico (Schultz, 2003). As razões para esta variabilidade ainda não estão completamente esclarecidas, podendo estar relacionadas com as características anatómicas (Patakas et al., 2003). O objectivo deste trabalho consistiu em estudar a anatomia foliar de quatro cultivares de videira, 'Aragonez' (syn. ‘Tempranillo’), 'Cabernet Sauvignon', 'Syrah' e 'Touriga Nacional'. MATERIAL E MÉTODOS O material vegetal foi recolhido numa vinha comercial com cinco anos, na Quinta de Amieira, Torres Vedras (Região Vitivinícola da Estremadura), Oeste de Portugal, nas cultivares ‘Aragonez’, ‘Cabernet Sauvignon’, ‘Syrah’ e ‘Touriga Nacional’. À floração, pintor e meia-maturação colheram-se 12 folhas, do 7º nó, por cultivar. De cada folha retiraram-se, sempre na zona média-central, pequenos pedaços para as observações em microscopia óptica (MO) e electrónica de varrimento (MEV). Nos estudos em MO, o material foi sujeito a clarificação (Evans, 1996) e a fixação (Hayat, 1981). Foi feito o destaque do tecido epidérmico em ambas as páginas foliares e observou-se a forma, a dimensão e a orientação das células epidérmicas. Na epiderme da página inferior observaram-se as características dos tricomas e procedeu-se ainda à medição, identificação e caracterização do tipo de estomas, bem como ao cálculo do índice estomático. Os valores obtidos resultaram de uma média de 10 observações. Os estomas foram classificados de acordo com Stace (1989) e o índice estomático calculado de acordo com Salisbury (1927). Para observação da anatomia foliar realizaram-se cortes transversais tendo o material sido incorporado em parafina (Ruzin, 1999). Os cortes, entre 10-15 μm de espessura, foram feitos num micrótomo de Minot e permitiram observar a espessura total do mesófilo e a espessura dos dois tipos de parênquima. As observações em microscopia óptica foram realizadas num microscópio Nikon Eclipse E400, equipado com lentes Nikon Coolpix MDC. As imagens foram obtidas com uma câmara digital Nikon Coolpix 995. Nos estudos em MEV, o material vegetal depois de fixado foi sujeito a ponto crítico e metalizado com ouro, num aparelho Jeol JFC-1200. As observações foram feitas num microscópio electrónico de varrimento, Jeol JSM-5220 LV, a 15 KV. Este aparelho está equipado com um sistema de aquisição de imagem. Os dados foram sujeitos a análise de variância e a comparação das médias foi feita pelo teste da mínima diferença significativa para um nível de probabilidade de 0,05. RESULTADOS E DISCUSSÃO As células da epiderme superior e inferior das cultivares estudadas apresentam forma e dimensões semelhantes e paredes celulares pouco sinuosas. Em corte transversal as células têm forma rectangular com excepção de algumas células epidérmicas da página superior das cvs. ‘Cabernet Sauvignon’ e ‘Touriga Nacional’ que têm uma secção circular (Figura 1A). A cv. ‘Cabernet Sauvignon’ apresentou células da epiderme superior e inferior com espessura significativamente superior às restantes cultivares, que não apresentaram diferenças significativas entre si. Alguns autores referem que um lúmen celular grande pode servir como reservatório de água, podendo ter um importante significado fisiológico (Esau, 1976; Dickison, 2000). A cutícula apresenta-se estriada e pouco espessa, tendo a cv. ‘Syrah’ apresentado uma espessura significativamente menor que as restantes cultivares, que não diferiram entre si. 840 As folhas são hipoestomáticas e os estomas são de dois tipos, actinocítico e staurocítico, segundo a classificação de Wilkinson (1979) (Figura 1B). O tipo actinocítico já anteriormente tinha sido referido por Metcalfe & Chalk (1979) para a videira enquanto o tipo staurocítico é agora referenciado pela primeira vez para esta espécie. Os estomas staurocíticos evidenciam-se acima da superfície epidérmica e, de um modo geral, têm dimensões maiores do que os do tipo actinocítico, heterogeneidade que dificulta a comparação entre as cultivares. O índice estomático, que exprime o número de estomas independentemente da dimensão da folha e das células epidérmicas e da sua exposição sol/sombra (Stace, 1989; Teixeira e Diniz, 2003), não apresentou diferenças significativas entre cultivares. No que concerne ao indumento foliar, os tricomas aparecem apenas na página inferior e são de dois tipos: i) uni- e pluricelulares, unisseriados, não glandulares, de dimensão pequena a média (Figura 1C) e ii) muito longos, provavelmente unicelulares, geralmente com enrolamento helicoidal (Figura 1D), provocando um efeito aveludado. Os dois tipos de pêlos têm uma distribuição aleatória. Relativamente à organização do mesófilo podem separar-se as quatro cultivares em dois grupos: i) ‘Cabernet Sauvignon’ e ‘Touriga Nacional’, que apresentam mais vezes até três camadas de parênquima clorofilino em paliçada e um parênquima clorofilino lacunoso, onde quase não se observam espaços intercelulares (Figura 1E); e ii) ‘Syrah’ e ‘Aragonez’ que apresentam menos vezes até três camadas de parênquima em paliçada mas um parênquima lacunoso muito mais evidente e espesso (Figura 1F). A espessura do parênquima clorofilino lacunoso diferiu de forma significativa entre as cultivares. A cv. ‘Aragonez’ apresenta o maior valor, a ‘Syrah’ um valor intermédio e as cvs. ‘Cabernet Sauvignon’ e ‘Touriga Nacional’ exibem os menores valores. As diferenças na organização do mesófilo poderão estar relacionadas com as diferenças de comportamento manifestadas por estas cultivares em condições de stress hídrico e térmico (Schultz, 2003; Costa et al., 2008), e sugerem a necessidade de mais estudos que relacionem as características anatómicas das cultivares com o seu comportamento fisiológico. Referências Costa, J. C., Ortuño, M.F., Lopes, C. e Chaves, M.M. 2008. Eco-physiological characterization of five grapevine cultivars grown in Alentejo based on thermal imaging and gas-exchange. IX Simposium Hispano Portugués de Relaciones Hídricas en Plantas, Lloret de Mar, Espanha, 15-17 Outubro, 20-24. Dickison, W. C. 2000. Integrative Plant Anatomy. Harcourt Academic Press, San Diego. Esau, K. 1976. Anatomia das Plantas com Sementes. Edgard Blucher, Lda, S. Paulo. Evans, W. C. 2002. Trease and Evans Pharmacognosy (15th edition). Saunders Company Ltd., London. Hayat, M. 1981. Principles and techniques of electron microscopy. Biological nd applications. 2 ed. Ed. Arnold Publ. London. Iakono, F., Buccella, A. e Peterlunger, E. 1998. Water stress and rootstock influence on gas exchange of grafted and ungrafted grapevines. Sc. Horticulturae 75: 27–39. Metcalfe, C. e Chalk, L. 1979. Anatomy of Dicotyledons, Vol I. 2nd ed. Oxford Univ. Press. Patakas, A., Kofidis, G. e Bosabalidis, A. M. 2003. The relationships between CO2 transfer mesophyll resistance and photosynthetic efficiency in grapevine cultivars. Sc. Horticulturae 97: 255–263. 841 Ruzin, S. 1999. Plant microtechnique and microscopy. Oxford University Press. Stace, C. 1989. Plant taxonomy and biosystematics, 2nd ed. Ed. Arnold Publ., Ltd. London. Schultz, H. R. 2003. Differences in hydraulic architecture account for near-isohydric and anisohydric behaviour of two field-grown Vitis vinifera L. cultivars during drought. Plant Cell and Environment 26, 1393–1405. Teixeira, G. e Diniz, M. 2003. Contribution of micromorphology to the taxonomy of Abrus (Leguminosae-Papilionoideae). Blumea 48: 153-162. Wilkinson, H. 1979. The plant surface. In Metcalfe, C., Chalk, L. Anatomy of Dicotyledons, Vol I. 2nd ed. Oxford Univ. Press. A B D C Figura 1. Superfície epidérmica e secção transversal de folhas de videira (Vitis vinifera). A: ‘Touriga Nacional’ (floração). Secção transversal da folha, com as células epidérmicas adaxiais quase circulares (SEM x750). B: ‘Aragonez’ (pintor). Superfície epidérmica abaxial com estrias visíveis e estomas staurocíticos elevados e estomas actinocíticos (SEM x750). C: ‘Syrah’ (floração). Superfície epidérmica abaxial com tricomas não-glandulares uni- e pluricelulares e tricomas provavelmente unicelulares muito longos e enrolados em hélice. As células epidérmicas que rodeiam os tricomas são morfologicamente distintas das outras (SEM x200). D: ‘Touriga Nacional’ (pintor). Indumento da epiderme abaxial com aspecto aveludado e distribuição dos tricomas heterogénea (SEM x100). 842 E F Figura 1. Superfície epidérmica e secção transversal de folhas de videira (Vitis vinifera). E: ‘Cabernet Sauvignon’ (meia-maturação). Secção transversal da folha com grandes células epidérmicas, 2-3 camadas de parênquima clorofilino em paliçada e parênquima clorofilino lacunoso quase sem espaços intercelulares, barra = 30 µm (LM x200). F: ‘Syrah’ (pintor). Secção transversal da folha com apenas algumas células epidérmicas grandes, 1-2 camadas de parênquima clorofilino em paliçada e parênquima clorofilino lacunoso com muitos e grandes espaços intercelulares, barra = 44 µm (LM x200). 843