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Revisando o Modelo de Governança do Futebol Europeu Por Carlos Eduardo Caruso Ferreira ([email protected]) - Mestre em Gestão, Direito e Humanidades do Esporte – CIES - Suíça e MBA pela BSP Introdução Quando em 1904, os representantes de sete países Europeus se reuniram para fundar a FIFA, eles não poderiam imaginar que estavam criando uma associação que, cem anos mais tarde, se tornaria a mais internacional das organizações mundiais. A FIFA hoje tem mais países afiliados do que a própria ONU. A idéia por trás daquela reunião era de criar uma organização que tivesse legitimidade para arbitrar sobre conflitos entre federações nacionais, além de organizar competições internacionais com regularidade. Essa legitimidade veio com o tempo, quando um crescente número de nações se afiliava à FIFA, e com a característica monopolística que o órgão impingia ao controle do futebol em todos os níveis: apenas uma associação por país seria reconhecida oficialmente como soberana responsável pelo controle e desenvolvimento do jogo de Futebol em seu território. Estava plantada ali a semente para o que viria a ser o modelo mais bem sucedido de organização e difusão de uma disciplina esportiva. Com o passar dos anos esse modelo se solidificou, com o advento da figura das confederações continentais, formando o que conhecemos hoje como a Pirâmide do Futebol. Porém, se o modelo de governança do futebol permaneceu relativamente estável nas últimas décadas, contribuindo para a bem sucedida popularização do esporte internacionalmente, a realidade em que se insere esse modelo vem sofrendo drásticas alterações nos últimos anos. O acentuado processo de comercialização pelo qual o esporte vem passando desde os anos 80, aliado à globalização, sugerem que esse modelo pode estar precisando de ajustes. Esta série de artigos trata da necessidade de ajustes no modelo de governança do futebol através da análise da realidade atual do futebol Europeu. Carlos Eduardo Caruso Ferreira – Todos os direitos reservados Página 1 / 13 Os Donos da Bola A organização de competições esportivas, em seu nível mais alto, tem características que se assemelham a monopólios naturais; monopólios que tendem a surgir devido ao ganho de escala que o setor oferece. Em monopólios naturais a competição é ineficiente para o mercado. A rede metropolitana de distribuição de energia elétrica é um desses casos. Basta imaginar um cenário onde a AES Eletropaulo decidisse competir com a Light pela distribuição de energia na cidade do Rio de Janeiro e, para ter acesso direto às residências, começasse a instalar seus próprios postes do lado oposto aos da Light nas ruas e avenidas da cidade. Situação semelhante ocorre com o modelo de governança esportiva. Competição na organização de um esporte de espetáculo de alto nível é ineficiente. Divide o mercado (como é o caso do Rugby) confunde o torcedor (caso do Boxe), encarece a produção do espetáculo através da competição pela oferta limitada de talentos, e reduz o potencial de receitas. A realidade do Baseball Americano é bastante ilustrativa. Lá existem duas ligas concorrentes: A National League fundada em 1876 com times como Chicago Cubs, New York Mets e Houston Astros e a American League fundada em 1901 com Chicago White Sox, New York Yankees e Texas Rangers. Traduzindo para a nossa realidade, é como se existissem dois campeonatos brasileiros de primeira divisão: o primeiro com clubes como Flamengo, Santos, Atlético Mineiro e Internacional e o segundo com clubes como Fluminense, Corinthians, Cruzeiro e Grêmio. As duas ligas de baseball coexistem até hoje, graças ao advento da World Series, uma competição onde os clubes das ligas rivais se enfrentam. Sem o World Series a popularidade do Baseball Americano sofreria um duro golpe, pois a característica do monopólio natural não seria respeitada. O torcedor, que na sua essência é a razão pela qual a indústria do esporte de espetáculo existe, quer ver o seu time campeão contra os melhores times da categoria. A ausência da World Series abriria espaço para o estabelecimento de uma nova liga de baseball, trazendo os melhores jogadores do mercado para jogarem uns contra os outros, o que seria fatal para as duas ligas atuais. O “nosso futebol” entendeu a condição de monopólio natural desde muito cedo, e esse é certamente um dos fatores contributivos para a bem sucedida popularização do esporte ao longo do globo. A organização do futebol é baseada em monopólios geográficos. A “Família FIFA” assumiu proporções tão gigantescas e sua arquitetura é tão sólida, que hoje é praticamente inviável o estabelecimento de uma estrutura rival. Um dos objetivos da FIFA, conforme constante dos seus estatutos, é o de controlar todo e qualquer tipo de “Futebol Association” através da adoção de medidas que previnam infrações dos seus estatutos e regulamentos e das regras do jogo, e evitem a introdução de métodos e práticas julgadas impróprias para o desenvolvimento do jogo. É um poder considerável. Trocando em miúdos isso significa o seguinte: Suponhamos que um grande empresário ligado à uma rede internacional de televisão, consiga um financiamento milionário para montar uma nova liga de futebol, fazendo algumas pequenas modificações nas regras do jogo para aumentar a dinâmica do esporte e adaptá-lo a um formato de televisão, com partidas de 4 tempos de 20 minutos, times com 9 jogadores, laterais cobrados com os pés e eliminação da regra de impedimento. Imaginemos que o seu capital fosse suficiente para contratar e manter jogadores como Ronaldo, Zidane, Van Nilsterooij, Oliver Kahn, Ronaldinho Gaúcho, enfim, a nata do futebol mundial. Este empresário poderia fazer isto fora das estruturas tradicionais da FIFA? Sim. Porém essa liga seria uma liga hermética e isolada, cujos clubes jamais poderiam jogar partidas contra clubes tradicionais como Real Madrid, Milan ou Liverpool, e mais, seus jogadores teriam que abdicar do direito de jogar em suas seleções nacionais. No final, seria mais provável que uma liga como essa não fosse viável no longo prazo. Sua única chance seria, talvez, a obtenção de um apoio popular maciço, algo que não se conquista da noite para o dia. Carlos Eduardo Caruso Ferreira – Todos os direitos reservados Página 2 / 13 Portanto, na prática o monopólio está estabelecido. Deve haver apenas uma federação nacional de futebol em cada país, uma confederação em cada continente e apenas ligas regionais que sejam sancionadas pelas federações nacionais. O sistema se auto-legitima. Porém nenhum poder é ilimitado. Apesar de o monopólio ser a forma mais eficiente de organização do esporte de espetáculo, assim como acontece em qualquer outro monopólio natural, é preciso que haja alguma regulação para evitar que apareçam abusos da posição dominante. Até hoje, o futebol tem se auto-regulado de forma relativamente eficiente. As próprias confederações e federações de futebol têm sido competentes para garantir o bom funcionamento do setor em seus territórios. Porém, abusos passados já têm sido questionados na justiça com sucesso. Vide o caso Bosman, que revolucionou as regras internacionais do passe de jogadores no mundo inteiro. Mas ainda não apareceu o caso para validar a necessidade de um regulador externo. Por enquanto. Carlos Eduardo Caruso Ferreira – Todos os direitos reservados Página 3 / 13 Dilema dos Prisioneiros e a Necessidade de Regulação Qualquer pessoa que tenha alguma familiaridade com os princípios de gestão esportiva sabe que a estrutura da indústria do esporte apresenta algumas peculiaridades que a diferenciam de outros setores. Entre elas o fato de que nesta indústria, as empresas precisam dos seus concorrentes para a fabricação dos produtos finais: uma partida, um campeonato. Em qualquer outra indústria, o cenário ideal para uma empresa, seria a eliminação da concorrência a fim de atingir posição monopolista. As ligas esportivas portanto, funcionam como cartéis, onde os membros coludem para controlar o mercado. A diferença é que enquanto em outros setores este comportamento é considerado ilegal pois atenta contra o consumidor através da adoção de práticas de restrição competitiva e fixação de níveis de preços, nas ligas esportivas o funcionamento tipo cartel é necessário. Seria impossível produzir um campeonato sem a cooperação dos clubes envolvidos. Mais do que isso, é geralmente aceita a teoria de que deve haver um equilíbrio competitivo entre os clubes participantes de uma liga, para que se mantenha a incerteza de resultado, característica fundamental na formação de demanda pelo esporte. Assim, é bom para um clube que seus oponentes sejam igualmente fortes, pois isso aumenta a demanda pelo campeonato, e conseqüentemente o seu valor de mercado. Como num cartel, quando todos cooperam para o bem conjunto, todos ganham individualmente. Porém, essa situação apresenta um conflito de interesses significativo para os clubes. É até possível sustentar a argumentação de que é bom para o Corinthians, que o São Paulo, Palmeiras, Santos, São Caetano e Portuguesa sejam campeões paulistas de vez em quando. Mas tente fazer com que a Gaviões da Fiel aceite isto. O Corinthians portanto, tem a obrigação perante a sua torcida de lutar para ganhar os títulos que disputa todo ano. Porém, no limite, se o Corinthians for campeão todo ano, no longo prazo o produto futebol perderá o seu brilho, com conseqüências negativas para o próprio Corinthians. Mas a pressão do torcedor é real e de curto prazo. Isso cria uma situação semelhante à do dilema dos prisioneiros, clássico modelo da teoria dos jogos, técnica utilizada para elaboração de estratégia, e que ajuda a explicar porque cartéis tendem a se auto-destruir. O dilema dos prisioneiros é uma história envolvendo dois criminosos que estão sendo interrogados pela polícia em salas separadas. A polícia sabe que os dois cometeram o crime, mas não tem como provar a menos que consiga a confissão de pelo menos um dos prisioneiros. A polícia faz a seguinte proposta para cada um deles separadamente: - “Se você confessar o crime, e o seu parceiro não, a gente garante uma sentença leve pra você: 1 ano de reclusão.” - “Se você não confessar, mas o seu parceiro confessar, você vai pegar a pena máxima: Dez anos” - “Se nenhum dos dois confessar, a gente dá um jeito de mandar os dois para a cadeia por algum outro motivo, por dois anos.” - “Se os dois confessarem, vocês vão pegar uma pena longa, porque a gente não precisa da confissão de um para condenar o outro. Mas, devido à confissão, é possível fazer um acordo para reduzir a pena máxima para oito anos.“ Se os dois prisioneiros agirem racionalmente, eles perceberão que a melhor situação para ambos é a cooperação entre eles: nenhum dos dois confessa e ambos pegam apenas dois anos. Porém o conflito reside no fato de que, como os dois estão sendo interrogados em salas diferentes, um não pode prever qual será o comportamento do outro. Diante desta situação ambos acabam decidindo por não cooperar entre si e confessam o crime, pois independente do Carlos Eduardo Caruso Ferreira – Todos os direitos reservados Página 4 / 13 que fizer o outro, o resultado para cada prisioneiro individualmente será sempre melhor. Faça as contas. Portanto, em situações onde há conflitos de interesses como estes, a tendência é de que a cooperação seja relevada em detrimento do benefício individual. Como a cooperação entre os clubes é necessária para a estrutura da indústria do esporte, é preciso criar uma forma de reforçá-la. É preciso que haja um órgão com autoridade sobre os times regulando a indústria para garantir a que a cooperação ocorrerá. Nas ligas americanas, antes da criação da figura do league commissioner, com poderes sobre os times para fazer valer o interesse coletivo, era comum um time participar do campeonato enquanto estivesse tendo lucro, e pular fora imediatamente a partir do momento em que os custos marginais ultrapassassem as receitas. No futebol essa função de “órgão regulador” cabe às federações, confederações e à FIFA. Esses “órgãos reguladores” do esporte também atuam no sentido de preservar o equilíbrio competitivo de suas competições através da criação de divisões e categorias, ou até mesmo de forma mais intervencionista como nas ligas americanas, que regulam até sobre a distribuição de talento nos times através de sistemas como o drafting e salary cap. Um outro aspecto que fortalece a necessidade de regulação da indústria do esporte, é o fato de que os clubes, por sofrerem pressão da sua torcida por resultados constantes e imediatos, tendem a privilegiar medidas de curto prazo em detrimento de outras com retornos mais longos e portanto deixam de investir em atividades que são vitais para a sobrevivência do setor. Com o fim da lei do passe, muitos clubes no mundo inteiro revisaram suas políticas de investimento em divisões de base. Em um cálculo puramente financeiro, investir em formação de jogador hoje, dá menos retorno ao clube individualmente do que no passado. Porém uma redução generalizada no investimento em formação de jogadores no longo prazo refletirá em uma redução na qualidade técnica e na quantidade de talento disponível. Isso acarretará em danos coletivos para a indústria. Sem um órgão regulador garantindo eficientemente que tais investimentos serão feitos, a indústria do esporte corre o risco de praticar autofagia. Carlos Eduardo Caruso Ferreira – Todos os direitos reservados Página 5 / 13 UEFA: Um Gigante em Crise de Identidade Na Europa, a UEFA tem consciência do seu papel de regulador e a implementação do sistema de licenciamento de clubes prevista para a temporada 2004/05 demonstra isso. Através desse sistema, os clubes interessados em participar de competições oficiais por toda a Europa deverão apresentar um nível mínimo de performance em uma série de categorias como saúde financeira, formação de novos talentos, manutenção da infraestrutura esportiva (campos de treinamento, estádios), práticas gerenciais, entre outros. Ao fazer isso, a UEFA pretende assegurar que uma parte da riqueza gerada no esporte será reinvestida em áreas tidas como críticas para a sobrevivência da indústria no longo prazo. Porém, além de regulador, o órgão máximo do futebol Europeu também assume outras funções. A própria UEFA atua como investidor direto na indústria do futebol, desenvolvendo programas de cunho social como combate ao racismo, redistribuindo entre os “membros da família” parte das receitas geradas com suas competições e subsidiando modalidades de futebol, como futsal e futebol feminino, cujo baixo apelo comercial não permite a sua auto-sustentação. Além disso, ao organizar competições entre clubes, a confederação assume também o papel de liga profissional e ao vestir esse chapéu, tem, como qualquer outra liga profissional, o objetivo de maximizar o valor de seu produto no mercado. A maximização do valor de um campeonato é uma função que depende, entre outros fatores, da qualidade dos times participantes, do equilíbrio da competição e do sucesso dos times de grande torcida (apesar de haver controvérsias entre os próprios economistas esportivos quanto ao mix de importância de cada um desses componentes). Porém, por ser responsável pelo desenvolvimento do futebol em 52 países, a confederação se vê na obrigação de adotar uma política inclusiva na determinação de elegibilidade de participação em suas competições. Como resultado, a edição atual da Champions League, conta com clubes como Panathinaikos da Grécia, Lokomotiv de Moscou e FK Partizan da Yoguslavia, enquanto deixa de fora clubes de primeira linha como Barcelona, Liverpool e Roma, o que certamente pesa sobre o valor da competição. Portanto, por princípio, a UEFA está impossibilitada de maximizar o valor do seu produto premium, e deve pagar um preço para não entrar em conflito com sua função de desenvolvimento do futebol Europeu. Some-se a isso o fato de que o aumento do importância das competições continentais de futebol tende a canibalizar as competições domésticas. Esta afirmação se baseia no seguinte raciocínio: com o incremento do valor da Champions League, participar da competição passa a ser um fator altamente relevante no complemento das finanças dos clubes. Portanto, os clubes com maior potencial de receitas têm mais um motivo para evitar a cooperação com seus rivais domésticos. Quanto maior controle um clube puder ter sobre suas receitas diretas, maiores as suas chances de montar um time competitivo em nível continental. É o Real Madrid investindo na sua Ferrari para competir contra a McLaren da Juventus e a BMW-Williams do Manchester United na Fórmula 1 da Champions League. Com o detalhe que estes mesmos carros estão competindo em suas ligas domésticas contra carros de Fórmula 3000. O resultado é um campeonato nacional cada vez menos equilibrado e mais concentrado em alguns poucos clubes com reais chances de vitórias. Por outro lado, clubes cujas ligas nacionais são mais equilibradas como a Francesa, têm obtido resultados modestos em níveis continentais nos últimos anos. Isto gera um dilema a ser administrado pelas ligas domésticas: Adotar medidas de redistribuição de renda para gerar equilíbrio competitivo no âmbito nacional, ou permitir que seus grandes clubes se preparem para ser competitivos internacionalmente? Portanto, cabe também à UEFA a função de “operador do sistema” definindo a equação que otimiza a oferta total de futebol, controlando o mix entre futebol doméstico, futebol continental, e futebol de seleções. Já que todos eles são produzidos a partir da mesma base de recursos e estão sujeitos à limitação temporal do calendário. Não é um modelo simples de otimizar, ainda mais sob a pressão de diferentes grupos de interesse e em uma indústria onde não há consenso sobre a fórmula ideal de formação de demanda. Carlos Eduardo Caruso Ferreira – Todos os direitos reservados Página 6 / 13 Por fim, a estrutura da UEFA, o fato de ser uma associação de federações nacionais, tem se revelado um problema em algumas situações recentes. Na UEFA as decisões mais importantes são tomadas em um congresso formado por 52 federações nacionais com direito a um voto cada. O Congresso delega certas alçadas de decisão ao Comitê Executivo, e ao CEO da UEFA, que também são apontados direta ou indiretamente pelo voto das federações no Congresso. Um dos objetivos da UEFA, conforme apresentado em seus estatutos, é o de salvaguardar os interesses das federações membros. Porém, a estrutura da indústria européia do futebol não se encerra nas federações nacionais. Existem outros grupos, cada um com seus pontos de vistas e interesses legítimos e que algumas vezes colidem com os interesses das federações nacionais. Como delegar à UEFA o poder de legislar sobre o futebol Europeu se pela sua constituição ela está impossibilitada de analisar os diferentes pontos de vistas com imparcialidade? O caso da formação da Liga do Atlântico demonstra esse paradoxo: o futebol Europeu é dominado pelas ligas de cinco países – Inglaterra, Itália, Espanha, Alemanha e França, que juntas respondem por quase 80% das receitas geradas com campeonatos nacionais de primeira divisão na Europa. Essas “Big five” como são chamadas, têm ao seu alcance excelentes direitos de transmissão, uma ampla base de torcedores e um número significativo de grandes clubes. A realidade para as demais ligas européias não é tão ensolarada. A maioria tem um ou dois grandes clubes entre uma série de clubes pequenos. Geralmente essas ligas estão sujeitas a restrições de mercado como uma indústria televisiva relativamente mais fraca. Em 1998, começaram a surgir idéias de criar uma Liga do Atlântico que combinasse os grandes clubes de mercados menores como Escócia, Holanda, Portugal, Bélgica, Suécia, Noruega e Dinamarca. Assim, clubes como Ajax, Feyenoord, PSV, Benfica, Porto, Celtic, Rangers, Anderlecht, poderiam disputar um campeonato realmente equilibrado, o que alavancaria o seu potencial de receitas domésticas, aumentando as chances de competição contra clubes das cinco grandes ligas. A UEFA imediatamente rechaçou o projeto afirmando que as estruturas nacionais deveriam ser mantidas, sob pena de expulsar eventuais infratores da pirâmide do futebol. Conhecendo o atual modelo de governança da UEFA é fácil entender a reação. Porém, numa época em que competições internacionais se tornam cada vez mais importantes, e numa época em que os clubes ganham força no contexto do futebol moderno está mais do que na hora da UEFA rever seus conceitos. Sob pena de ver a sua legitimidade como reguladora da indústria seriamente ameaçada. Carlos Eduardo Caruso Ferreira – Todos os direitos reservados Página 7 / 13 UEFA, G-14 e suas Querelas O G-14 foi fundado em 1999 e adquiriu personalidade jurídica em Setembro de 2000. O grupo, que conta hoje com 18 clubes, se auto-intitula “a voz dos clubes” e vira e mexe aparece na mídia fazendo barulho. Na sede da UEFA em Nyon na Suíça, G-14 é palavra proibida. A confederação não reconhece a existência do grupo e não há diálogo direto entre os dois. Principalmente depois que o grupo contratou Thomas Kurth para liderar sua estrutura administrativa recém inaugurada em Bruxelas. Kurth era peça chave na estrutura administrativa da UEFA pois chefiava o departamento de competição de clubes. Sua contratação deixou ressentimentos no órgão máximo do futebol Europeu semelhantes aos experimentados pelo torcedor Rubro-Negro quando o vasco levou Bebeto da Gávea. Os conflitos entre G-14 e UEFA se concentram principalmente em três grandes áreas: Competição, Divisão de Receitas e Participação nas Decisões. É interessante analisar como UEFA e os clubes vêm se posicionando em cada uma dessas áreas. Competição: O Formato das competições Européias tem-se cristalizado em uma série de conflitos entre os clubes e a UEFA, mesmo antes da formação do G-14. Nem os clubes nem a UEFA parecem ter encontrado um formato que atenda às expectativas gerais. Prova disso é que desde a sua criação na temporada de 1992/93, em pouco mais de dez anos, a Champions League já sofreu cinco alterações de formato. E tem gente que acha que essas coisas só acontecem no Brasil. Na realidade, a própria criação da Champions League em 1992 que veio substituir a antiga Copa dos Campeões foi uma resposta da UEFA às requisições dos clubes para evitar eliminações precoces da competição e afastar idéias de criação de uma “Superliga” independente. Desde então os grandes clubes vêm pressionando com sucesso a confederação no sentido de aumentar a sua participação na competição Européia. A competição que na sua versão inaugural contava com 8 clubes, foi expandida para 16 participantes na temporada de 94/95, 24 na temporada de 97/98, pela primeira vez abrindo espaço para mais de um participante por país, e finalmente para 32 clubes em 99/2000. Dizem as más línguas que esta última modificação teria sido uma ação reativa da UEFA face à mais séria proposta de criação de uma Liga Européia independente, que segundo consta, contava inclusive com um caixa de mais de € 3 bilhões a ser distribuído entre os clubes participantes, garantido por um grande banco de investimento internacional. O resultado de tantas modificações na competição, é um aumento gradual na participação dos grandes clubes, conforme mostra a figura abaixo: Evolução do Total de Partidas – UEFA Champions League Mais de um clube por país Legenda: Outros vs. Outros G-14 vs. Outros G-14 vs. G-14 61 18 25* 6 12 7 27* 8 15 30 4 61 26 26 61 85 85 20 22 50 48 157 157 157 48 46 40 157 26 125 80 86 82 84 27 27 31 16 34 13 9 11 15 15 51 92/93 93/94 94/95 95/96 96/97 97/98 98/99 99/00 00/01 01/02 02/03 # Teams 8 8 16 16 16 24 24 32 32 32 32 03/04 32 G-14 4 4 6 5 6 10 10 12 12 12 15 12 Nota: * Não considera a fase eliminatória preliminar Fonte: The Rec.Sport.Soccer Statistics Foundation, análise do autor Carlos Eduardo Caruso Ferreira – Todos os direitos reservados Página 8 / 13 Está certo que tais modificações resultaram num aumento considerável do valor da competição, beneficiando direta ou indiretamente a todos, uma vez que as receitas da Champions League são distribuídas a toda a “Família” do Futebol Europeu. E é aí que reside a segunda área de conflito. Divisão de Receitas: A UEFA conta basicamente com duas fontes de receita para financiar suas atividades e investir no desenvolvimento do futebol Europeu: a UEFA Champions League, e a Euro Copa. Estima-se que para a temporada 2003/04 cada uma contribuirá com cerca de Sfr 1 bilhão (pouco mais de US$ 800 milhões), lembrando que a Euro é organizada apenas uma vez a cada quatro anos, o que aumenta a dependência da confederação sobre a Champions League. É a partir das receitas dessas duas competições que a confederação faz girar a máquina do futebol Europeu, investindo no desenvolvimento de federações menores, e subsidiando modalidades do futebol de baixo apelo comercial. O grande problema é que ambas competições se apóiam em grande parte, nos recursos dos grandes clubes para gerar receitas. Os clubes, sabedores disso, pressionam para obter um maior controle sobre seus direitos, e vêm obtendo êxito. Recentemente a Comissão Européia garantiu a co-propriedade dos direitos de transmissão da Champions League aos clubes participantes. A UEFA ainda detém a autonomia de comercializar centralmente os direitos de TV, mas os clubes passam a ter liberdade para comercializar individualmente algumas modalidades de direitos, como internet e algumas novas mídias. A pressão dos clubes no sentido de aumentar a sua participação no bolo de receitas geradas pela Champions League tem dado resultado. Praticamente todo o crescimento marginal do valor da competição foi parar no bolso dos clubes, com os membros do G-14 recebendo proporcionalmente mais do que os demais conforme mostra a figura abaixo: Distribuição das Receitas da Champions League – (milhões de Sfr) (Líquidos de custos de organização) 1000 900 835 800 879 708 700 600 500 400 Legenda: Clubes participantes Outros* 300 200 100 87% 88% 88% 254 81% 13% 12% 12% 98/99 19% 99/00 00/01 01/02 Participantes G-14 / Total de clubes participantes 42% 38% 38% 38% Participação do clubes G-14 na receita / Total da participação de clubes 54% 54% 55% 53% 0 * Outros incluem Ligas Nacionais, Federações, Times Eliminados nas rodadas de classificação Fonte: Relatórios Financeiros da UEFA Isso dá mostras da força dos clubes na queda de braço contra a UEFA. Além disso, os grandes clubes começam a sinalizar um interesse em participar também nas receitas das competições de Seleções, afinal eles são os detentores dos contratos da maior parte dos jogadores que compõem as seleções Européias. Com isso, forma-se uma tendência cada vez mais forte de concentração das receitas em um número cada vez menor de beneficiários, o que pode vir a minar o equilíbrio do futebol Europeu, e conseqüentemente a atratividade da indústria no longo prazo. Carlos Eduardo Caruso Ferreira – Todos os direitos reservados Página 9 / 13 Participação nas Decisões: Apesar das questões em competições e distribuição de receitas serem importantes, o ponto nevrálgico do conflito está na reivindicação dos grandes clubes Europeus em participar do processo decisório da UEFA. O G-14 reclama que freqüentemente são tomadas decisões que afetam o dia-a-dia operacional dos clubes sem que os mesmos sejam consultados. Em resposta, a UEFA criou em 2002 o Fórum de Clubes Europeus, com o intuito de criar uma plataforma de diálogo entre os clubes e a UEFA. O Fórum é um painel formado por 102 clubes Europeus representando os 52 países membros da UEFA. O Fórum elege um board de 11 membros, sendo que o chairman e os três vice-chairmen desse board participam do Comitê de Competições de Clubes da UEFA. Este comitê tem a função principal de apresentar propostas e pontos de vista à UEFA em relação às competições Européias de clubes. Este modelo parece ainda não ter satisfeito completamente a demanda dos clubes, uma vez que através dele, os clubes têm uma participação apenas consultiva no processo decisório. Os clubes querem mais, principalmente depois que a UEFA deixou claro que seus interesses serão ouvidos mas não necessariamente acatados, com a última reformulação da Champions League para a temporada 2003/04 sendo implementada à revelia dos grandes clubes. Todos esses conflitos e a maneira como eles vêm evoluindo dão indícios de que o atual modelo de governança do futebol Europeu pode já não ser o mais adequado para garantir a continuidade do sucesso do futebol no longo prazo. Carlos Eduardo Caruso Ferreira – Todos os direitos reservados Página 10 / 13 O que o Futebol Pode Aprender com o Ciclismo O Ciclismo é um esporte governado internacionalmente pela UCI (União Ciclista Internacional), associação que conta com a participação de 170 federações nacionais. O esporte tem sete modalidades que vão desde mountain bike até o tradicional ciclismo de estrada. Cada modalidade tem o seu campeonato mundial organizado pela UCI. Apesar de o ciclismo ser uma atividade praticada por um incalculável número de pessoas, e de contar com cerca de 600 mil atletas amadores licenciados por todo o mundo, a única área em que o esporte atingiu um apelo comercial relevante foi a modalidade de ciclismo de estrada de elite masculino que conta com aproximadamente 1.200 atletas profissionais. Esta disciplina é altamente concentrada na Europa Ocidental, que responde por quase 80% dos ciclistas profissionais do mundo. Os atletas são contratados por equipes profissionais para competir em corridas tradicionais como o Tour de France e o Giro D’Italia, competições organizadas por empresas independentes como a Société du Tour de France. Por ser uma associação de 170 federações nacionais, o board do UCI é composto por membros representando essas federações. Uma vez que o ciclismo profissional é praticamente um conceito Europeu, as peculiaridades desse ramo do esporte podem ser muito distantes da realidade da maioria das federações em seus respectivos países. O modelo de governança da UCI tornava inevitável que membros dessas federações, mesmo não conhecendo a fundo a realidade do ciclismo profissional, arbitrassem sobre questões complexas com impacto sobre ciclismo profissional como doping e elegibilidade para competições. Ao mesmo tempo, os pilares do ciclismo profissional, que são os organizadores das corridas, as equipes e os próprios ciclistas, eram deixados de fora do processo decisório. Essa situação começou a gerar desconforto entre os envolvidos, dando espaço para se começar a pensar na formação de competições independentes com suas próprias regras, fora do guardachuva da UCI. Para contornar essa situação, em 1999 a UCI criou o Conselho do Ciclismo Profissional. O objetivo principal da criação do Conselho era de envolver os principais grupos de interesse no processo decisório da UCI. O Conselho é formado por 12 membros, seis apontados pela UCI, dois apontados pela Associação dos Organizadores de Corrida de Ciclismo (AIOCC), dois representantes dos atletas pela Associação dos Ciclistas Profissionais, e dois delegados da Associação Internacional das Equipes de Ciclismo Profissional (AIGCP). No nível político, o presidente do Conselho do Ciclismo Profissional é membro do comitê gerencial da UCI, e o Presidente da UCI participa de todas as reuniões do Conselho Profissional. No nível administrativo, as decisões tomadas pelo Conselho são operacionalizadas pelo departamento de ciclismo profissional da UCI. O Conselho se reúne três vezes ao ano e toma decisões sobre áreas como organização e administração das corridas, regulamentações das equipes profissionais, definição do calendário, entre outras questões relevantes para o ciclismo de estrada profissional. De acordo com Alan Rumpf, gerente do departamento de ciclismo profissional da UCI, o envolvimento dos principais grupos de interesse no mais alto nível de decisões da modalidade, fazendo com que eles deliberem sobre os rumos do ciclismo profissional é uma maneira de mostrar a esses grupos que não há razões para abandonar a estrutura oficial da UCI, ou recusar participar dos campeonatos mundiais organizados pela confederação, cujos direitos de TV são essenciais para o sustento das outras modalidades do esporte. Este modelo, desde a sua implementação, reduziu drasticamente o volume de conflitos no ciclismo profissional e permitiu que os diferentes grupos conhecessem e apreciassem os pontos Carlos Eduardo Caruso Ferreira – Todos os direitos reservados Página 11 / 13 de vista uns dos outros, garantindo decisões balanceadas e suportadas por todos os envolvidos na produção do esporte. Sem dúvida, poderia servir de exemplo para o Futebol. Carlos Eduardo Caruso Ferreira – Todos os direitos reservados Página 12 / 13 É Hora de Mexer As realidades do Futebol e do Ciclismo são completamente distintas e a posição da UEFA como detentora do monopólio natural do Futebol na Europa é muito mais sólida do que a posição da UCI no ciclismo. O risco de que os grandes clubes Europeus cheguem às vias de fato e resolvam montar uma liga rebelde fora da jurisdição da UEFA apesar de existir é quase nulo. Porém, a maneira como a UEFA vem se posicionando, através da adoção de medidas paliativas, não ataca o cerne da questão, e desperdiça uma oportunidade de liderar uma mudança importante para a manter o seu status como reguladora da indústria. Considerar a adoção de um modelo nos moldes da solução adotada pela UCI para o ciclismo profissional faz sentido. A criação de um “Conselho de Futebol Profissional” com poder de decisão, reunindo à mesma mesa representantes da UEFA, das ligas profissionais domésticas, das federações nacionais, dos clubes e dos jogadores para decidir sobre assuntos como calendário Europeu de Futebol, formato e elegibilidade de competições, critérios de distribuição de receitas e comercialização de direitos, sem dúvida traria benefícios para a Indústria do Futebol Europeu e consolidaria ainda mais a sua liderança no cenário esportivo internacional. Em princípio, uma proposta como essa pode parecer um atentado à soberania da UEFA. Contudo, ao decidir pelo compartilhamento do poder de decisão, a UEFA não apenas estaria diminuindo o nível de conflitos atual, como também estaria reforçando a sua posição de reguladora da indústria. Ao aceitar a delegação de poder, os grupos de interesse estariam, por tabela, reconhecendo a legítima ascendência da confederação sobre o esporte. Tal situação contribuiria também para evitar que determinados grupos venham buscar, através de instrumentos externos como a justiça comum ou os poderes da União Européia, a implementação de suas reivindicações, como já tem ocorrido no passado. Isto raramente seria necessário, visto que todos os pontos de vista seriam considerados nas decisões que impactam o dia-a-dia do esporte. Quase cem anos atrás os representantes de sete países Europeus se reuniram para traçar as primeiras linhas do que seria o modelo de governança ideal para o futebol durante o século XX. Resta saber se a Europa ainda é capaz de produzir dirigentes visionários e com vontade política suficiente para ajustar esse modelo e garantir a proeminência do seu futebol por mais cem anos. Carlos Eduardo Caruso Ferreira – Todos os direitos reservados Página 13 / 13