aqui - Grupo de Pesquisa em Economia Política dos Sistemas
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Passado e Presente na Análise dos Sistemas-Mundo Organizadores P EDRO A NTONIO V IEIRA R OSÂNGELA DE L IMA V IEIRA F ELIPE A MIN F ILOMENO © Pedro Antonio Vieira; Rosângela de Lima Vieira; Felipe Amin Filomeno Conselho Editorial Immanuel Wallerstein, Fernando Novais, Hoyêdo Lins, e Francisco Luiz Corsi Projeto gráfico, diagramação e capa Rita Motta - www.editoratribo.blogspot.com Revisão Sérgio Meira Impressão Gráfica e Editora Copiart Ltda 1ª Edição - 2012 - São Paulo – SP CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ B83 O Brasil e o capitalismo histórico : passado e presente na análise dos sistemas-mundo / organização Pedro Antonio Vieira, Rosângela de Lima Vieira, Felipe Amin Filomeno.- São Paulo, SP : Cultura Acadêmica Editora, 2012. 327 p. ISBN 978-85-7983-386-1 1. Capitalismo - Brasil - História. 2. Capital (Economia). I. Vieira, Pedro Antonio. II. Vieira, Rosângela de Lima. III. Filomeno, Felipe Amin. IV. Série. 13-1521. CDD: 330.1220981 CDU: 330.142.23(81) 043362 Sumário Introdução ............................................................................................................7 Passado, presente e futuro da análise dos sistemas-mundo no Brasil Pedro Antonio Vieira, Rosângela de Lima Vieira, Felipe Amin Filomeno SEÇÃO 1 FUNDAMENTOS DA ANÁLISE DOS SISTEMAS-MUNDO Capítulo 1 A análise dos sistemas-mundo como movimento do saber ......................17 Immanuel Wallerstein Capítulo 2 A perspectiva dos sistemas-mundo: fundamentos e tendências .............29 Eduardo Barros Mariutti SEÇÃO 2 O CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO Capítulo 3 O fim do longo século XX ...............................................................................77 Beverly Silver e Giovanni Arrighi Capítulo 4 Continuidades e transformações na evolução dos sistemas-mundo ................................................................................................97 Christopher Chase-Dunn e Roy Kwon Capítulo 5 Desigualdades mundiais de renda: em direção a uma perspectiva crítica .......................................................................................... 137 Roberto Patricio Korzeniewicz Capítulo 6 Das eras douradas aos “tempos bicudos” do capitalismo mundial: práticas empresariais e ilicitudes como estrutura .................................................. 169 Antonio José Escobar Brussi SEÇÃO 3 O BRASIL NO SISTEMA-MUNDO CAPITALISTA Capítulo 7 A economia-mundo, Portugal e o “Brasil” no longo século XVI (14501650) ................................................................................................................. 207 Pedro Antonio Vieira Capítulo 8 A cadeia mercantil do café produzido no Brasil entre 1830 e 1929 ..... 265 Rosângela de Lima Vieira Capítulo 9 A mudança institucional em perspectiva histórico-mundial: competição transnacional e propriedade intelectual na agricultura de soja da América do Sul ................................................................................................................ 297 Felipe Amin Filomeno Introdução PASSADO, PRESENTE E FUTURO DA ANÁLISE DOS SISTEMAS-MUNDO NO BRASIL P EDRO A NTONIO V IEIRA (Universidade Federal de Santa Catarina) R OSÂNGELA DE L IMA V IEIRA (Universidade Estadual Paulista-Marília) F ELIPE A MIN F ILOMENO (Universidade Federal de Santa Catarina) É experimentando um sentimento de grande júbilo e de realização que entregamos ao público de língua portuguesa este que é o primeiro livro produzido no Brasil completamente dedicado à Análise dos SistemasMundo (ASM). O sentimento de júbilo e realização se deve a que o livro vem à luz mais ou menos treze anos depois que um grupo de professores do então Departamento de Economia (hoje Economia e Relações Internacionais) da Universidade Federal de Santa Catarina se juntou para estudar autores 7 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO não lidos no curso de Economia, tais como Karl Polanyi, Fernand Braudel, Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi. Os seminários envolveram professores e alunos de outros cursos, que aos poucos foram se dispersando e voltando para suas respectivas linhas teóricas, enquanto nós já não podíamos fazer o mesmo, tal foi nosso entusiasmo com as obras de Fernand Braudel, Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi. Continuamos então a estudá-las, incorporando-as em disciplinas da graduação e da pós-graduação, de modo que, aos poucos, monografias e dissertações foram elaboradas tendo como referencial teórico a ASM. Em 2006, foi criado o Grupo de Pesquisa em Economia Política dos Sistemas-Mundo (GPEPSM), que no ano seguinte organizou em Florianópolis o I Colóquio Brasileiro em Economia Política dos Sistemas-Mundo. Desde então, o Colóquio é realizado anualmente, tendo sido organizado pelo Prof. Antonio Brussi na Universidade de Brasília (2009), pelo Prof. Eduardo Mariutti na UNICAMP (2011), e pela Profa. Rosângela de Lima Vieira na UNESP-Marília (2012). A continuidade dos Colóquios e sua organização em outras universidades que não sua sede inicial, a UFSC em Florianópolis, revelam a difusão da ASM pelo meio acadêmico brasileiro, difusão que, ademais das limitações daqueles que lideram o processo, enfrenta dificuldades inerentes a qualquer inovação, mas que, no caso específico, parecem decorrer de certas peculiaridades do meio acadêmico vis-à-vis a ASM. No que segue, e no limite do espaço desta Introdução, indicaremos estas peculiaridades, começando pelas peculiaridades da ASM. Como reitera Immanuel Wallerstein neste volume, a ASM nasceu como um protesto contra as Ciências Sociais, particularmente a sua expressão dominante nos anos 1970, a teoria da modernização. Para impensar as Ciências Sociais, quatro princípios metodológicos foram desenvolvidos no processo de criação coletiva da ASM: as Ciências Sociais deveriam ser históricas, a unidade de análise deveria ser o sistema mundial (em lugar da economia/estado/sociedade nacional), a temporalidade de referência deveria ser a longue durée braudeliana e o enfoque necessariamente unidisciplinar (WALLERSTEIN, 2002). Não é difícil perceber o quanto esta proposta desafiava cada disciplina em particular 8 INTRODUÇÃO e o conjunto delas. Desde 1974, quando foi lançado o primeiro volume de O Moderno Sistema-Mundo, obra seminal de Wallerstein, a ASM avançou bastante nos EUA, mas não muito fora dele, embora o suficiente para ser considerada por Wallerstein como um movimento do saber (ver o seu texto neste volume). Na América Latina, a entrada da ASM nos circuitos acadêmicos foi praticamente nula até o início da década de 2000. Até onde vai nosso conhecimento, somente no México existe uma contribuição relevante, a de Carlos Antonio Aguirre Rojas. No Brasil, embora fossem lidos, Wallerstein e Arrighi não tinham inspirado programas de pesquisas consistentes. Por quê? Se temos em mente seus quatro princípios metodológicos, é compreensível que a ASM enfrentasse grandes barreiras. Comecemos pelas resistências mais gerais, quer dizer, não exclusivas do Brasil. Em primeiro lugar, assim como em todos os processos de trabalho, também no labor científico, instalou-se uma divisão do trabalho, que, ao se revelar tão eficiente na geração de conhecimento quanto na de objetos, foi se reproduzindo e se constituindo em uma sólida estrutura - neste caso, uma estrutura do saber da economia-mundo capitalista (LEE, 1998). E as estruturas limitam e condicionam as ações humanas. No caso das Ciências Sociais, esta divisão do trabalho não só se expressa na separação entre as diversas disciplinas – Economia, Sociologia, Ciência política, História, Antropologia, entre outras – como também em especializações dentro de cada uma delas. Além das universidades, esta organização do trabalho científico é replicada nas agências governamentais de fomento à pesquisa, dando lugar a uma rede de interesses (cargos, prestígio, complementações salariais, financiamentos etc.) que pode dificultar e mesmo sufocar propostas metodológicas que desafiem o status quo. Ao serem transplantadas para a América Latina, as Ciências Sociais foram adaptadas às condições econômicas, políticas e intelectuais dos vários países da região nas décadas de 1950 e seguintes, marcadas, até a década de 1980, pelo embate entre dois grandes projetos civilizatórios no contexto da Guerra Fria: o desenvolvimentismo, entendido como a busca, pelos países da região, dos padrões de riqueza e bem-estar vigentes nos países chamados desenvolvidos através do capitalismo, e o socialismo, que seria a promoção do bem-estar e justiça social através da socialização dos meios de produção. 9 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO No meio acadêmico latino-americano, estes dois projetos civilizatórios foram incorporados nos pensamentos cepalino-desenvolvimentista e marxista-revolucionário, os quais, em que pesem as diferenças, são tributários das ciências sociais do século dezenove e, principalmente, adotam o estado/ economia/sociedade nacional como unidade de análise para o estudo das permanências e da mudança social. O “nacionalismo metodológico” expresso naquelas duas vertentes correspondeu a projetos políticos que tomavam o estado/economia/sociedade nacional como espaço prioritário da ação política. Teoria e prática interagiam para privilegiar o espaço nacional. De fato, ambas as correntes teóricas passaram a ver no estado nacional o agente principal da mudança – desenvolvimento/industrialização para os cepalinos e implantação do socialismo para os marxistas. Quando colocados em prática simultaneamente, os quatro princípios metodológicos da ASM alteram significativamente os objetivos, procedimentos e resultados das pesquisas sobre a mudança social, originando um outro programa político, e assim, mais uma área de atrito com acadêmicosmilitantes das duas correntes antes mencionadas. Entretanto, o próprio desenvolvimento da economia-mundo parece estar trazendo água para o moinho da ASM. Por um lado, os dois processos civilizatórios e suas expressões acadêmico-científicas perderam força após 1980 e, por outro, a atual (quarta) onda de globalização1 está fazendo até o cidadão comum perceber que a humanidade compartilha um único e mesmo mundo. Ao compartilhar esta percepção, que também contribui para expor as limitações da perspectiva nacional, também o meio acadêmico e intelectual - especialmente as novas gerações de cientistas sociais - está mais aberto a enfoques sistêmicos. A presente obra é tanto um resultado, como, esperamos, um fator impulsionador desta abertura. No Brasil, algumas obras de Immanuel Wallerstein 1 A primeira ocorreu no século XIII e foi estudada por Janet L. Abu-Lughod no livro Before European Hegemony –The World System A.D. 1250-1350 (Oxford Univertity Press, 1989); a segunda, iniciada pelos portugueses no século XV, deu lugar, já no XVI, ao que se convencionou chamar Os Grandes Descobrimentos e ao nascimento da Economia-Mundo Capitalista; a terceira, no século XIX, liderada pela Grã-Bretanha, deu lugar ao que Hobsbawn chamou a era do Imperialismo e praticamente incorporou todo o globo terrestre à Economia-Mundo Capitalista. 10 INTRODUÇÃO e Giovanni Arrighi, dois dos principais expoentes da ASM, tem sido publicadas. Poderíamos até dizer que, neste aspecto, Arrighi têm sido mais conhecido porque seus três principais livros têm edição brasileira2. Contudo, nenhum dos quatro volumes da obra seminal da perspectiva, The Modern World-System, de Immanuel Wallerstein, mereceu uma edição brasileira3. Considerando que o conhecimento desta obra é fundamental para o contato direto com os fundamentos sistêmicos, históricos e unidisciplinares da ASM, podemos imaginar a lacuna que isto implica para a formação das novas gerações de pesquisadores. Além de Arrighi e Wallerstein, continuam completamente desconhecidos no Brasil pesquisadores que têm dado contribuições importantes para a ASM, como é o caso de Christopher Chase-Dunn e Roberto Patrício Korzeniewicz. Faltava também no Brasil uma obra dedicada inteiramente à ASM e que apresentasse, além dos autores estrangeiros, as contribuições que pesquisadores brasileiros estão dando para este campo de estudos. O presente livro é o primeiro passo nesta direção. A intenção dos organizadores foi oferecer uma obra em que a ASM apareça tanto em discussões teórico-metodológicas quanto em pesquisas empíricas, abarcando tanto o passado quanto o presente, do Brasil e do mundo. Assim, a coletânea de textos revela a pluralidade e o potencial da ASM para o estudo da mudança social e dos problemas que afligem a humanidade na atual conjuntura do sistema-mundo capitalista. Na parte I do livro são discutidos os fundamentos e tendências da Análise dos Sistemas-Mundo. No texto de abertura, Immanuel Wallerstein faz uma espécie de recuperação da evolução, das pretensões e dos dilemas atuais da ASM. A tese central do criador da ASM é que “A análise dos SistemasMundo é mais do que uma perspectiva; é também mais do que uma teoria, se é que é uma teoria. É um movimento do saber, e isso é de crucial importância para o desenvolvimento futuro das ciências sociais históricas.” Como se vê, a ASM está sendo vista não apenas como uma inovação epistemológica, 2 O leitor não terá dificuldade de encontrar essas obras, razão pela qual não as relacionamos aqui. 3 Os dois primeiros volumes foram publicados por Edições Afrontamento de Portugal, mas estão esgotados. 11 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO mas sim como um movimento social, uma força de mudança social, no campo do saber. Como movimento de mudança, o destino da ASM está indissoluvelmente ligado à evolução da economia-mundo capitalista. No capítulo 2, Eduardo Mariutti aponta as condições para o surgimento da Análise dos Sistemas-Mundo, focando em dois contextos históricos, a modernidade e o período de 1945 a 1968 para, na sequência, analisar criticamente a evolução desta perspectiva, balizando a análise em torno da sua oposição radical à teoria da modernização e apontando os pontos de convergência com o materialismo histórico. A parte II do livro contém trabalhos dedicados à análise da conjuntura atual do sistema-mundo capitalista. No capítulo 3, Giovanni Arrighi e Beverly Silver utilizam a teoria dos ciclos sistêmicos de acumulação para analisar as transformações associadas ao governo de George W. Bush, à crise mundial inaugurada em 2008, e à ascensão da China. O trabalho, que é um dos últimos de Arrighi, é uma extensão da análise feita em O Longo Século XX (por Arrighi) e em Caos e Governabilidade no Moderno Sistema Mundial (por Arrighi, Silver e colaboradores). No capítulo 4, Christopher Chase-Dunn e Roy Kwon analisam o capitalismo contemporâneo da perspectiva evolucionária e comparativa dos sistemas-mundo. Fenômenos como a Primavera Árabe, o movimento “Occupy Wall Street” e a ascensão de governos de centro-esquerda na América Latina são situados num esquema analítico que considera três horizontes temporais: 500, 5.000 e 50.000 anos. No capítulo 5, Roberto Patricio Korzeniewicz, que tem empregado a ASM para estudar a desigualdade mundial de renda, avalia o impacto que as transformações que têm caracterizado a economia-mundo nos últimos vinte anos e a crise atual tiveram sobre a estratificação e a mobilidade social em nível mundial. Após oferecer uma análise empírica do problema, Korzeniewicz usa o trabalho de Giovanni Arrighi para mostrar por que tanto as abordagens dominantes quanto as críticas são incapazes de explicar a redução recente da desigualdade mundial. O autor conclui ressaltando alguns dos dilemas enfrentados atualmente por aqueles que visam promover “uma ordem mundial mais igual e solidária”. 12 INTRODUÇÃO No capítulo 6, Antonio Brussi argumenta que práticas empresariais ilícitas, como o descaminho (contrabando) e a pirataria nos dias atuais, são traços estruturais do sistema-mundo capitalista. Em uma análise que vai desde a hegemonia holandesa, passando pelo século americano até a atualidade, Brussi demonstra que tais “inovações” ético-empresariais, embora rejeitadas e até mesmo combatidas no contexto de sua ocorrência, acabam por banalizarem-se com o passar do tempo, transformando-se em práticas correntes dos negócios do ciclo de acumulação que fez emergir aquelas inovações. A parte III do livro é composta de trabalhos que aplicam a perspectiva dos sistemas-mundo em estudos sobre o Brasil. No capítulo 7, Pedro Antonio Vieira insere Portugal e sua colônia americana no desenvolvimento da economia-mundo capitalista no longo século XVI. O autor argumenta que o sucesso do Estado e da sociedade portuguesa do Antigo Regime em impedir o pleno desenvolvimento de ideias e práticas capitalistas em seus domínios, mas não no sistema-mundo, fez com que Portugal se atrasasse relativamente às regiões mais dinâmicas, de modo que, por volta de 1650, Portugal e o “Brasil” estivessem firmemente situados na periferia da economia-mundo. No capítulo 8, Rosângela de Lima Vieira faz uma interpretação do desenvolvimento da cafeicultura no Brasil usando o conceito de cadeia mercantil da Análise dos Sistemas-Mundo. A autora mostra a distribuição espacial das diversas atividades que compõem a cadeia mercantil do café no período 1830-1929, apontando as relações e assimetrias existentes entre os diversos componentes da cadeia mercantil entre si e destes com a economiamundo capitalista. No capítulo 9, Felipe Amin Filomeno aplica a Análise dos SistemasMundo ao estudo da mudança institucional, utilizando a metodologia da “comparação incorporada”. O autor mostra que o fortalecimento dos direitos de propriedade intelectual na agricultura de soja da América do Sul após 1980 foi a reprodução, em escala regional e setorial, de uma tendência mundial associada ao declínio da hegemonia dos EUA. No caso de Argentina, Brasil e Paraguai, a reprodução desta tendência foi facilitada pela competição entre estados e produtores rurais da região por tecnologia e mercados estrangeiros. 13 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Por fim, os organizadores querem agradecer a todos os autores que, além dos textos, foram sempre solícitos no atendimento dos prazos e das demandas burocráticas inerentes à publicação de um livro.Também expressamos nossos profundos agradecimentos à Pró-Reitoria de Pós-Graduação e ao Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina pelo apoio financeiro a nós concedido. Bibliografia LEE, Richard. Structures of Knowledge. In: HOPKINS, T.K.; WALLERSTEIN, I.(orgs.). The Age of Transition-Trajectory of the World-System, 19452025. London & New Jersey: Zed Books e Pluto Press (Australia), 1998. WALLERSTEIN, I. O fim do mundo como o concebemos: Ciência Social para o século XXI. Rio de Janeiro: Revan, 2002. 14 SEÇÃO 1 FUNDAMENTOS DA ANÁLISE DOS SISTEMAS-MUNDO CAPÍTULO 1 A Análise dos Sistemas-Mundo como movimento do saber I MMANUEL W ALLERSTEIN 1 A Análise dos Sistemas-Mundo é mais do que uma perspectiva; é também mais do que uma teoria, se é que é uma teoria. É um movimento do saber, e isso é de crucial importância para o desenvolvimento futuro das ciências sociais históricas. Um movimento do saber é um movimento social intelectual. Ele propõe uma reorientação no modo como organizamos nosso entendimento do mundo. No caso da análise dos sistemas-mundo, ela se baseia na rejeição das categorias das ciências sociais herdadas do século dezenove. Ela propõe substituir estas categorias por uma nova ciência social histórica. No decorrer dos milênios, quase todo argumento, proposição ou conceito nas ciências sociais históricas provavelmente tem sido afirmado milhares de vezes. Traçar a história dos conceitos é um interessante, e, algumas 1 Doutor em Sociologia pela Columbia University, é atualmente Senior Research Scholar na Yale University e, de 1976 a 2005, foi diretor do Fernand Braudel Center da State University of New York - Binghamton. 17 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO vezes, válido exercício de história intelectual. Mas é somente quando um conceito ou conjunto de conceitos é adotado por uma minoria suficientemente ampla de pessoas que ele se torna capaz de afetar a evolução corrente do conhecimento coletivo. Quando esta dimensão é alcançada, pode-se falar deles como sendo um movimento do saber, o que significa que há um grupo de pesquisadores suficientemente grande em número e coerentes o bastante em termos de organização para sustentarem suas posições nos debates coletivos e, talvez, vencerem esse debate no decorrer do tempo. Por certo, se e quando eles chegam a vencer o debate, então esses conceitos constituirão um novo modo de análise, temporariamente dominante e, por sua vez, sujeito a ser posteriormente desafiado pelos novos movimentos do saber. As premissas hoje dominantes nas ciências sociais históricas foram estabelecidas aproximadamente entre 1850 e 1945. Estas premissas foram analisadas no relatório da Comissão Gulbekian, que eu presidi.2 O contexto em que estas foram adotadas foi o do estado do sistema-mundo naquele mesmo período. Era o período de auge da dominação política, econômica e cultural do Ocidente sobre o sistema-mundo. No modo de pensar do setor dominante do sistemamundo, havia diferenças radicais entre o “o Ocidente e o resto”. Este contexto mudou depois de 1945. E as novas realidades globais apresentaram várias dissonâncias em relação ao modelo organizacional das ciências sociais históricas vigente em 1945. As duas principais mudanças na realidade global depois de 1945 foram (1) a elevação dos EUA ao papel de potência hegemônica e a peculiar relação estabelecida por eles com a URSS, e (2) a considerável força que os movimentos antissistêmicos tradicionais vieram a demonstrar por todo o sistema-mundo no período pós-1945. O modelo organizacional das ciências sociais baseado na diferença epistemológica radical entre o Ocidente e o resto levou a uma clara segmentação disciplinar no modo de estudar cada um desses epaços. Emergiu uma clara divisão do trabalho acadêmico. A pesquisa sobre o passado das sociedades ocidentais foi atribuida à História. As sociedades ocidentais 2 I. WALLERSTEIN et al., Open the Social Sciences: Report of the Gulbenkian Commission on the Restructuring of the Social Sciences, Stanford, CA: Stanford Univ. Press, 1996. Este relatório foi traduzido para 25 línguas. No Brasil, foi publicado pela Cortez em 1996. 18 A ANÁLISE DOS SISTEMAS - MUNDO COMO MOVIMENTO DO SABER contemporâneas se tornaram o foco do trio de disciplinas nomotéticas – a Economia estudando o mercado, a Ciência Política estudando o estado, e a Sociologia estudando a sociedade civil. O estudo do mundo não ocidental foi dividido entre a antropologia, que estudava os pequenos grupos, as assim chamadas “tribos”, e os estudos orientais, investigando as grandes, mas consideradas congeladas, “altas” civilizações. Este padrão de estudo teve problemas para lidar com as novas realidades pós-1945. Isto provocou um debate sobre se, e de que modo, se poderia adaptar as premissas dominantes para torná-las mais relevantes a estas novas realidades globais. No período que vai mais ou menos de 1945 a 1965/70, houve quatro diferentes tentativas de adaptar as premissas dominantes das ciências sociais mundiais a estas novas realidades globais. Cada tentativa parecia realizar alguns ajustes plausíveis no modelo, mas cada um delas demonstrou ao final suas limitações. A primeira e possivelmente a mais importante tentativa foi da teoria da modernização. Em lugar de separar o estudo do mundo “civilizado” do estudo do resto do mundo como se fossem lugares epistemológicos distintos, a teoria da modernização tentou historicizar as diferenças entre os dois espaços. Ela argumentava que o mundo “desenvolvido” não era ontologicamente diferente do mundo “subdesenvolvido”, mas apenas estava à frente dele no tempo. Os países subdesenvolvidos poderiam alcançar os países desenvolvidos aprendendo com os modelos dos países mais avançados e fazendo certas mudanças essenciais nas suas práticas sócio-culturais. A segunda tentativa foi a da teoria da dependência, que emergiu primeramente da análise centro-periferia da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) sob Raúl Prebisch, e depois foi elaborada com uma ênfase mais política por diversos intelectuais latino-americanos e sul-asiáticos. Diferente da teoria da modernização, a teoria da dependência tinha um outro modelo de tempo. Opondo-se à ideia de que todos os estados começaram no mesmo ponto, com alguns avançando mais rapidamente que os outros, os teóricos da dependência enfatizavam o “desenvolvimento do subdesenvolvimento” (para usar a famosa expressão de Gunder Frank) Isto significava que do mesmo ponto de partida, algumas regiões se moveram para frente para se tornarem “desenvolvidas” e outras se moveram adiante no tempo para se tornarem “subdesenvolvidas”. Concluiu-se que as 19 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO mudanças essenciais para realizar o catching-up não estavam na arena sociocultural mas nas arenas econômica e política. Somente desta maneira, poderiam os países “subdesenvolvidos” sair da sua posição de inferior. A terceira tentativa foi a do revisionismo marxista, que tomou duas formas. A primeira variante foi uma consequência do famoso discurso de Khrushchev no 20o. Congresso do Partido Comunista da União Soviética em 1956. Do mesmo modo que a teoria da modernização, o modelo soviético pós-1956 historicizou a diferença, e o caminho proposto para realizar o catching-up acabou se tornando surpreendentemente similar ao defendido pela teoria da modernização, com uma diferença crucial: a versão soviética sugeria que o país/modelo “avançado”, a ser imitado, era a URSS e não os EUA. A segunda e possivelmente mais importante variante do revisionismo marxista tomou outra direção. Ela foi lançada pela discussão sobre o “modo de produção asiático” que teve lugar primeiramente na Hungria e em alguns países da Europa Ociental. O modo de produção asiático foi um dos conceitos menos felizes de Marx e foi abertamente banido por Stálin. Ter dado credibilidade renovada a este conceito gerou duas consequências teóricas. Provocou o questionamento da automaticidade da sequência de modos de produção que supostamente iria do comunismo primitivo ao mundo comunista do futuro. Desse modo possibilitou discutir a validade do conceito iluminista do “progresso” inevitável e unilinear. A segunda consequência diz respeito ao debate da “questão nacional”. Se alguns países (ou sociedades, ou formações sociais), mas não todos, passaram por um modo de produção asiático (ou algo coisa equivalente), isso significava que não havia mais um único caminho que todos os países deviam percorrer. Isto implicava que a análise social marxista de partes específicas do mundo deveria se basear nas particularidades históricas destas partes do mundo. O marxismo clássico era essencialmente nomotético. Esta discussão levava na direção de uma epistemologia idiográfica. Ela permitia à análise marxista deixar de tentar encaixar a história do não-ocidente em uma sequencia derivada da análise do pensamento e das instituições européias. A quarta tentativa foi aquela baseada no conceito braudeliano de longue durée e sua dupla ênfase na importância central da história socioeconômica 20 A ANÁLISE DOS SISTEMAS - MUNDO COMO MOVIMENTO DO SABER combinada com a minimização da importância da história política episódica, a assim chamada histoire événementielle. Este ataque à historiografia político-diplomática narrativa tradicional alcançou grande sucesso em partes significativas da comunidade histórica mundial. A limitação de cada um dos três primeiros revisionismos é terem continuado a considerar estados/sociedades/formações sociais como entidades autônomas separadas que seguem caminhos autônomos paralelos, em diferentes velocidades, em direção a um futuro mais ou menos inevitável. Isso impedia explicar a contínua polarização das diferentes regiões do sistemamundo, polarização que parecia estar se ampliando em vez de estar se reduzindo. A limitação do caminho braudeliano foi que seus praticantes tenderam a confinar seu trabalho à análise dos séculos XV ao XVIII e estavam amplamente despreparados para olhar tanto para o tempo presente quanto para o longo itinerário de mudança histórica através dos milênios. O que desfez o relativo sucesso de todas as quatro formas de revisionismo foi revolução mundial de 1968. Para sermos exatos, a primeira preocupação dos estudantes e da juventude que lideraram as diversas rebeliões que nós associamos a 1968 não eram as esturuturas do saber. Em seus ataques às várias estruturas de autoridade, eles estavam acima de tudo preocupados com o que eles viam como as execráveis consequências da hegemonia dos EUA, bem como com o que muitos (talvez a maioria) deles consideravam o conluio soviético com os Estados Unidos. Em segundo lugar, eles estavam preocupados com o fracasso dos movimentos antissistêmicos históricos em chegar ao segundo passo da sua estratégia de dois passos – primeiro chegar ao poder do estado, para então mudar o mundo – adotada por estes movimentos no final do século XIX. De fato, eles disseram a estes movimentos: vocês mais ou menos alcançaram o poder do estado (para a maioria nos anos 1950 e 1960), mas definitivamente vocês não mudaram o mundo. Entretanto, na medida em que o processo revolucionário mundial avançou, mais e mais participantes dessas rebeliões começaram a sentir que os modos de organizar o saber e as categorias que estavam sendo usadas eram, elas próprias, os grandes obstáculos ao tipo de transformação que eles esperavam alcançar. Eles voltaram então sua atenção aos modos pelo qual o 21 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO quadro epistemológico dominante sistematicamente negligenciava os “povos esquecidos”. E começaram a demandar que as instituições do saber refocassem sua atenção nas realidades históricas e sociológicas. Este novo impulso – visto tanto por seus defensores quanto pelos adversários como um impulso político – provocou outra mudança nas realidades do sistema-mundo e possibilitou que os dissidentes do saber obtivessem apoio suficiente para que pudessem dizer que tinham se transformado em movimentos do saber. A análise dos sistemas-mundo como um movimento do saber nasceu neste momento e dentro deste contexto. O que a análise dos sistemas-mundo tentou fazer foi tomar elementos de cada uma das quatro tentativas revisionistas e, juntando-os, construir uma ferramenta que fosse capaz de desafiar as premissas epistemológicas até então dominantes e que tinham moldado as assim chamadas disciplinas - como argumentos intelectuais, como aparatos organizacionais e como fenômenos culturais. Como qualquer outro movimento do saber, a análise dos sistemasmundo não é constituída por um exército disciplinado, mas por um conjunto de pessoas que, embora compartilhem certas premissas, perseguem diferentes ênfases dentro deste marco. Eu começarei delineando o que significa para mim a combinação de argumentos que eu denomino análise dos sistemas-mundo. Depois disso discutirei outras variações dentro do campo geral da análise dos sistemas-mundo. Para mim, o elemento chave na análise dos sistemas-mundo é a ênfase na unidade de análise – um sistema-mundo ao invés do estado/sociedade/ formação social. A palavra “mundo” de modo nenhum é sinônimo de global ou planetário, mas simplesmente se refere a uma unidade relativamente grande (em termos de área e população) no interior da qual existe uma divisão axial do trabalho. Estamos falando de “um” mundo, não “do” mundo, como diria Fernand Braudel. O segundo elemento chave para mim é que “sistemas-mundo” (como todos os sistemas) não são eternos. Eles têm vida. Eles passam a existir; eles perfazem seus itinerários históricos de acordo com o conjunto de regras que definem e governam o sistema; e eles finalmente se afastam tanto do 22 A ANÁLISE DOS SISTEMAS - MUNDO COMO MOVIMENTO DO SABER equilíbrio que o sistema entra em uma crise estrutural terminal. Portanto, a questão crucial aqui é o argumento de que todos os sistemas são históricos e sistêmicos. A ênfase da teoria da modernização na historização das diferenças entre centro e periferia é fundamental. Do mesmo modo o é a noção de Prebisch e dos dependentistas de que a brecha entre centro e periferia está se ampliando ao invés de diminuir – uma parte necessária da explicação do desvio do equilíbrio no decorrer do tempo. Um terceiro elemento crucial é a recusa à separação ontológica das imaginadas arenas, tão caras ao velho conjunto de premissas dominantes – a [arena] política, a econômica e a sociocultural. Para os teóricos da modernização, como para aqueles que aderiram ao conjunto de premissas dominantes antes de 1945, a autonomia intelectual das três arenas era a principal característica definidora do que eles chamavam modernidade. Para a análise dos sistemasmundo, as assim denominadas três arenas estão intrinsecamente conectadas. Elas definem umas as outras. Nenhuma das três é “primoridal” e todas devem ser analisadas na sua definição mútua. Consequentemente, a análise dos sistemas-mundo é inerentemente unidisciplinar (em oposição a ser multi-, inter-, ou transdisciplinar) em relação às ciências sociais históricas. Por fim, a análise dos sistemas-mundo recusa a institucionalização ocorrida durante o século XIX do conceito de duas culturas e defende a superação desta falsa (e historicamente muito recente) divisão epistemológica. A divisão idiográfico-nomotético entre filosofia e ciência data somente da segunda metade do século dezoito. Com a invenção, no século XIX, das “ciências sociais” como uma categoria intermediária, esta divisão foi incorporada nas ciências sociais como a divisão entre a história idiográfica e as três ciências sociais nomotéticas. A análise dos sistemas-mundo afirma que esta divisão epistemológica entre a história e as ciências sociais nomotéticas foi sempre falsa e agora é obsoleta. Na medida em que a análise dos sistemas-mundo ganhou força como um movimento do saber, existiram versões mais ou menos inseridas dentro deste grande campo, as quais colocaram ênfases diferentes e/ou adicionais na agenda epistemológica e de pesquisa. 23 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Uma dessas versões foi a impulsionada por Chris Chase-Dunn e Thomas Hall, entre outros. Esta versão argumentou contra limitar os esforços práticos de pesquisa ao “moderno sistema-mundo” como uma “economiamundo capitalista” – e que na maior parte de sua existência se localizava em um espaço menor que o globo terrestre. Fazer isso, sugeria-se, tendia a deixar importantes questões fora da discussão. Uma era o que estava acontecendo, durante os tempos modernos, em regiões definidas como estando fora da divisão axial do trabalho da economia-mundo capitalista, bem como os complexos processos pelos quais zonas externas eram incorporadas à divisão axial do trabalho. Além disso, este grupo não estava preocupado apenas com que a prática de devotar esforços de pesquisa primariamente, e até exclusivamente, à economia-mundo capitalista, levasse ao que pode ser chamado exclusões espaciais da análise. O grupo se preocupava também com o que pode ser chamado de exclusões temporais de longo prazo da análise. Este grupo desejava olhar para duas questões de mais longo prazo. Uma era o desenvolvimento histórico de muito longo prazo da interação social humana. Eles diligentemente confrontaram a há muito estabelecida questão da “evolução histórica”- o que “evoluiu” e se a evolução foi teleológica. Adicionalmente, entretanto, este grupo sentiu que havia conhecimentos valiosos a serem descobertos pela comparação sistemática de diferentes tipos de sistemas históricos, para o que os casos teriam que ser necessariamente obtidos das análises de sistemas históricos de todos os tipos e de todas as áreas geográficas no decorrer de vários milhares de anos. Isto pode ser chamado de análise comparativa de sistemas históricos. Uma segunda versão da análise comparativa de sistemas históricos, embora limitando-se ao período histórico “moderno” (cerca de 1500 ao presente), foi aquela desenvolvida por Giovanni Arrighi e Takeshi Hamashita, entre outros. Basicamente, eles se propuseram a comparar a evolução do sistema comercial centrado na China com aquele que se desenvolveu como sistema comercial centrado na Europa ocidental no período pós-1500. Eles olharam para os modos como as estruturas dos dois sistemas diferiam – com Arrighi argumentando que as diferenças persistem até hoje – bem como para os crescentes vínculos entre os dois sistemas no transcorrer dos séculos. 24 A ANÁLISE DOS SISTEMAS - MUNDO COMO MOVIMENTO DO SABER A crescente relevância econômica e geopolítica da China no sistemamundo desde a década de 1980 atraiu crescentemente a atenção dos estudiosos do mundo para o papel histórico da China, e provocou, em particular, reclamações sobre o negligenciamento, pelos estudiosos pan-europeus, do papel da China. Desde então, um volume relativamente grande de literatura vem sendo produzido sobre a China e o mundo, tanto em linguas asiáticas como europeias. Esta literatura é muito diversificada e somente parte dela pode ser considerada como estando dentro do grande campo da análise dos sistemas-mundo. André Gunder Frank nos seus escritos pós-1990 insistiu no conceito de que desde sempre somente existiu um sistema mundo (e por isso ele retirou o hífen), e traçou sua existência até no mínimo 5000 anos atrás. Para Frank, a China foi sempre o centro deste sistema (exceto um tanto brevemente no século XIX e em parte do XX). Embora Frank tenha usado muitas ferramentas metodológicas derivadas da análise dos sistemas-mundo, ele atacou as outras versões (de fato, todas as outras) como sendo eurocêntricas e rejeitou o próprio conceito de capitalismo como variável a ser incluída na análise. Outros neste grupo de acadêmicos centrados na China, como Kenneth Pomeranz, insistiram na reanálise dos dados que comparavam a China e a Europa Ocidental entre os séculos dezesseis e dezoito, e procuraram mostrar que o que Pomeranz chamou de a “grande divergência” ocorreu somente no século dezenove. Pomeranz, entretanto, não procura situar a si mesmo na família dos analistas dos sistemas-mundo, ainda que de alguma maneira sua análise concreta esteja de acordo com a versão Arrighi-Hamashita. De fato, a versão de Pomeranz reforça a visão tradicional e dominante das ciências sociais, segundo a qual a mudança chave nos tempos modernos foi a “revolução industrial” que se considerava ter ocorrido (ao menos primariamente) na Inglaterra no limiar do século dezenove. Enquanto este debate se desenvolvia entre os analistas dos sistemasmundo no período 1970-2010, duas coisas aconteceram, alterando o caráter da análise dos sistemas-mundo como movimento do saber. A primeira foi o surgimento e mesmo o triunfo, da globalização neoliberal no sistemamundo. A segunda foi a mudança de atitude das principais organizações 25 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO disciplinares e dos livros-textos para com a análise dos sistemas-mundo. Consideremos cada uma separadamente. A estagnação da economia-mundo que começou nos anos 1970 (uma fase B do Kondratieff) se combinou com o debilitamento, como resultado da revolução mundial de 1968, da dominação do liberalismo centrista. A combinação permitiu às forças conservadoras promoverem uma tentativa mundial de reverter todas as mudanças políticas, econômicas e culturais ocorridas no período 1945-1970. Esta campanha política recebeu o depreciativo rótulo de neoliberalismo, e foi encarnada originalmente no sucesso político do Partido Conservador transformado da Sra. Thatcher, no Reino Unido, e do Partido Republicano transformado de Ronald Reagan, nos Estados Unidos. Os neoliberais mudaram o marco analítico que aplicavam ao sistemamundo de “desenvolvimentismo” (que prevaleceu no período 1945-1970) para algo que eles denominaram globalização. Eles usaram este novo marco para impor, primariamente através do Tesouro estadunidense e do Fundo Monetário Internacional (FMI), um programa prático que passou a ser chamado Consenso de Washington. Este demandava que todos os países não “desenvolvidos” instituíssem um programa que dava prioridade ao crescimento orientado para exportações, ao mesmo tempo que abrissem suas fronteiras ao investimento externo direto, privatizando empresas estatais, reduzindo seus programas de bem-estar, e diminuindo suas burocracias. Geopoliticamente, este esforço político foi um enorme sucesso no mundo todo, no perído transcorrido aproximadamente entre a metade do anos 1970 e cerca de 1995. Dentro das ciências sociais históricas, a resposta a esta nova realidade política mundial, foi fazer da globalização a palavra da moda na pesquisa e na publicação. Um dos resultados foi, um tanto paradoxalmente, tornar a análise dos sistemas-mundo mais respeitável academicamente. Anteriormente, a análise dos sistemas-mundo ou era objeto de fortes acusações por seus supostos erros, ou era tratada com uma desdenhosa recusa a reconhecer seu caráter acadêmico. De repente, a análise dos sistemas-mundo passou a ser vista, e mesmo aclamada, com uma precursora da teoria da globalização, ainda que em uma versão muito comprometida politicamente. A análise dos 26 A ANÁLISE DOS SISTEMAS - MUNDO COMO MOVIMENTO DO SABER sistemas-mundo (usualmente referida como teoria dos sistemas-mundo) passou a ser incluída em escritos e livros-textos como uma visão teórica alternativa em meio a uma lista de visões teóricas alternativas à globalização. Na verdade, entretanto, a análise dos sistemas-mundo não era uma precursora da teoria da globalização, mas algo bem diferente. A análise dos sistemas-mundo nunca pretendeu fazer parte de uma lista de teorias alternativas. Ela pensava a si mesma como formulando uma rejeição a todo o arcabouço das ciências sociais dominantes. A análise dos sistemas-mundo conclamava a uma reformatação drástica do marco intelectual das ciências sociais, convocando para uma reorganização unidisciplinar. A análise dos sistemas-mundo combinou esta visão das ciências sociais históricas com a demanda pela superação da divisão epistemológica entre as “duas culturas” e a recriação de um marco epistemológico único para todo o saber. O triunfo do Consenso de Washington passou a ser desafiado politicamente na segunda metade dos anos 1990, na medida em que as promessas neoliberais de melhoramento econômico universal se revelaram uma miragem. Esta crescente desilusão foi reforçada pelas sucessivas crises financeiras ocorridas desde então e que levaram finalmente a um sério questionamento da viabilidade do prometido retorno ao “crescimento” econômico universal. O grau em que a economia-mundo capitalista pode retomar seus tradicionais e repetidos retornos a uma expansão normal é matéria de algum debate mesmo dentro do campo da análise dos sistemas-mundo. Se alguém acredita, como eu, que o moderno sistema-mundo está em um crise estrutural, e, portanto, em uma bifurcação, e no meio de uma transição para um novo sistema global, então uma pergunta é o que acontece, neste processo, com a análise dos sistemas-mundo enquanto movimento do saber. A força da análise dos sistemas-mundo como movimento do saber é que ela tem resistido à tentação de definir a si mesma muito estreita e dogmaticamente, ainda que não se permitindo ser definida tão frouxamente a ponto de que qualquer um que pareça lidar com questões para além de nações/sociedades/formações sociais singulares ser considerado parte da família. Este tem sido um projeto organizacional difícil, mas que até hoje tem funcionado. De fato, a análise dos sistemas-mundo como movimento 27 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO do saber tem sido relativamente exitosa em difundir seus seguidores por todas as atuais disciplinas das ciências sociais históricas e difundido sua base organizacional para além dos Estados Unidos, para outras partes do mundo – notavelmente, mas não somente, para América Latina, Europa Ocidental e o leste asiático. A questão para a análise dos sistemas-mundo como movimento do saber é se ela pode continuar jogando o jogo organizacional que tem jogado até agora. Na medida em que uma transição estrutural transcorre, o sucesso da análise dos sistemas-mundo pode ser medido pelo seu desaparecimento como um movimento do saber resultante da reorganização radical do mundo do saber. É cedo demais para dizer se isso de fato vai acontecer. Mas se a análise dos sistemas-mundo acabar se tornando meramente uma posição teórica a mais dentro das ciências sociais, ela terá falhado no que esperava realizar. 28 CAPÍTULO 2 A perspectiva dos sistemas-mundo: fundamentos e tendências E DUARDO B ARROS M ARIUTTI 4 In general, in a deep conflict, the eyes of the downtrodden are more acute about the reality of the present. For it is in their interest to perceive correctly in order to expose the hypocrisies of the rulers. (Immanuel Wallerstein) A mudança social só pode ser compreendida no plano da totalidade. Embora ambígua, esta hipótese constitui a base fundamental da perspectiva do sistema-mundo. Se acreditarmos na autoimagem de Wallerstein, tal perspectiva não foi constituída a priori, mas como o resultado de uma indagação prévia, isto é, um conjunto de estudos orientados para tentar compreender 4 Doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor do Instituto de Economia da UNICAMP. 29 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO os fundamentos sociais dos conflitos políticos nos EUA nas décadas de 1950 e 60, com o objetivo de - enquanto homem racional, confessa - discriminar as suas diversas modalidades para conseguir interferir no curso dos acontecimentos, almejando constituir uma sociedade melhor. Esta preocupação, simultaneamente ingênua e pretensiosa, levou o então jovem sociólogo a estudar os processos de descolonização na África, acreditando que ao observar o fenômeno em seus estágios iniciais – em um nível mais elementar, portanto – ele teria mais facilidade para entender a sua forma mais complexa. Mas a experiência não foi bem-sucedida: trouxe mais problemas do que soluções. Suspeitando das bases de sua própria formação intelectual, Wallerstein se viu forçado a revisitar as grandes questões debatidas durante a fase de formação das Ciências Sociais, entre os séculos XVIII e XIX. Como se sabe, além das profundas transformações sociais, este período foi marcado pela disputa acirrada entre as formas mais tradicionais do conhecimento – Teologia (em franco declínio), Filosofia e História – e as novas modalidades de reflexão, as ciências. Wallerstein suspeitou que esta discussão teórica não poderia ser realizada de forma independente, isto é, destacada da compreensão do processo histórico que resultou na formação do mundo moderno. O primeiro passo concreto nesta direção foi dado em 1974, com a publicação de The Modern World-System I, livro que, indubitavelmente, deu origem à perspectiva do sistema-mundo. Logo, como ponto de partida, utilizarei como parâmetro básico o conjunto da obra deste autor para conduzir a argumentação. Seria impossível em um capítulo cobrir todas as dimensões e, sobretudo, as diversas correntes que fazem parte – ou que alegam fazer parte - da perspectiva do sistemamundo. A despeito de um certo ecletismo que a caracteriza, nem toda teoria sistêmica – ou “pensamento sistêmico” - é compatível com esta perspectiva.5 5 A própria ênfase de Wallerstein na ideia de que se trata de uma perspectiva e não de uma teoria do sistema-mundo abre margem para o ecletismo: ela se define essencialmente pela crítica reflexiva dos pressupostos das ciências sociais “modernas”, que sistematicamente deslocam a atenção da verdadeira unidade de análise – o sistema-mundo e não as estruturas e subsistemas que ele contém – e prometem uma objetividade que não podem realizar. É cedo demais para teorizar: “Eu tenho considerado o trabalho dos últimos vinte anos e de mais alguns que virão com o trabalho de limpar a vegetação rasteira, para que possamos construir um aparato 30 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS - MUNDO Além disto, a despeito das contínuas – e distintas – reverências de Wallerstein e Arrighi a Fernand Braudel, a reflexão do notável historiador francês – como ele próprio salientou (BRAUDEL, 1997 p. 58) – não corresponde perfeitamente à problemática da perspectiva do sistema-mundo. O objetivo deste capítulo é duplo. Inicialmente discriminarei os fundamentos que delimitaram o quadro geral onde a reflexão sobre a dinâmica da sociedade se desenrolou, respeitando duas temporalidades. A primeira, de mais longa duração, diz respeito à herança da intensa discussão epistemológica travada, sobretudo, no século XIX, e que, em meio às lutas sociais, precedeu e condicionou a institucionalização das Ciências Sociais e do sistema universitário contemporâneo. A segunda, mais conjuntural, incorpora as questões mais circunscritas ao período compreendido entre, grosso modo, 1945 e 1968, momento em que as determinações sociais que possibilitaram a consolidação da perspectiva do sistema-mundo ficaram mais explícitas e, por conta dos desdobramentos de 1968, possibilitaram a sua difusão. O segundo objetivo é diferente. Trata de apontar as perspectivas que se abrem a esta corrente de pensamento, frente a algumas tendências recentes, das quais podemos destacar dois desdobramentos: i) a expansão do escopo analítico, isto é, a investigação de outros sistemas-mundo (ou as relações entre sistemas-mundo distintos, porém contemporâneos); e ii) o debate teórico em torno da própria ideia de sistema, particularmente, a aproximação cautelosa com a “teoria” do caos. As determinações mais profundas: a era moderna e suas contradições Há uma forte correlação entre a formação do sistema-mundo capitalista e o estabelecimento da ciência moderna. No intuito de nos aproximarmos mais adequado para as ciências sociais” (WALLERSTEIN, 1998, p. 103). Embora essa postura possa efetivamente dar margem à pluralidade – bastante evidente dentre os seus entusiastas – há critérios mínimos que garantem a especificidade da perspectiva: a fusão entre o tempo e o espaço na demarcação dos limites do sistema-mundo (qualquer que seja ele) e a tipologia básica em que as análises se sustentam: a distinção entre economia-mundo e império-mundo. 31 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO mais rapidamente do nosso problema, é necessário restringir um pouco mais esta afirmação: há uma conexão entre a consolidação de uma economiamundo baseada no modo de produção capitalista6 no “Ocidente” em expansão (1640-1815) e a constituição das ciências sociais [1850-1914(45)], isto é, a formação de um domínio específico do conhecimento, dividido em disciplinas supostamente autônomas (antropologia, ciência política, economia, geografia, história e sociologia) e, também, a criação de um aparato institucional capaz de preservar e fomentar a especialização do conhecimento nestes moldes. Como isto ocorreu em conjunto com a conversão da economia-mundo europeia em um empreendimento praticamente global (1815-1917), a divisão do conhecimento estabelecida no núcleo do sistema se impôs sobre praticamente todo o planeta. Esta correlação fica ainda mais nítida se levarmos em conta a grande questão que subjaz a todas as disciplinas das ciências sociais: explicar a ascensão do “Ocidente”, isto é, explicar o processo geral do qual as próprias ciências sociais são uma expressão (WALLERSTEIN, 1992a, p. 561-3; 1992b). A reconstituição deste processo, mesmo que sumária, exige uma breve descrição do sistema de ideias típico do sistema precedente. No plano das estruturas do pensamento, tal como elas se expressavam com mais nitidez nas camadas dominantes, o feudalismo tinha como base uma concepção essencialmente transcendente sobre a realidade, onde praticamente todos os aspectos da vida se expressavam de acordo com a temática religiosa. Por conta disto, as contestações sociais eram percebidas e se expressavam como heresias. A linguagem da política era, portanto, essencialmente religiosa. E este traço sobreviveu, com algumas transformações importantes, no Antigo Regime. A ascensão dos Estados Absolutos exacerbou, contudo, uma contradição importante: a tensão entre o poder temporal e o poder espiritual. No primeiro caso, a tendência foi a criação de uma ideologia 6 Ao conceber o sistema-mundo como a unidade de análise Wallerstein é forçado a utilizar uma concepção bastante restrita – e pouco rigorosa - de Modo de Produção: este termo é usado, por vezes, como sinônimo de organização da produção, ora como sistema econômico e, de forma mais recorrente (e ainda menos precisa), como um sistema que submete praticamente tudo a uma “lei do valor”: a acumulação incessante de capitais. Wallerstein á categórico em um aspecto: em um sistema-mundo consolidado, apenas um Modo de Produção pode dominar, embora ele possa subordinar diversos outros. 32 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS - MUNDO essencialmente fundada na razão de Estado (a base das prerrogativas do Príncipe), que abriu caminho para uma concepção política das lutas sociais. As forças associadas ao poder espiritual, por sua vez, tiveram de racionalizar seu discurso e suas bases burocráticas, reforçando – e tentando uniformizar – a liturgia,7 em conjunto com a afirmação da autoridade do Papa, respaldada pelo colegiado dos bispos mais notáveis que viviam ao seu redor. As tentativas de resolver o problema, tido a partir de então como fundamental pela cristandade – i.e. criar uma unidade entre o Império e o Papado –, fracassaram duplamente. O reforço do poder Papal encontrou resistências de base doutrinária que, ao se mesclarem com questões mundanas, assumiram uma forma política que, ao final, redundou na divisão da Igreja (Reforma e Contrarreforma). As tentativas de criação de uma unidade política, por sua vez, foram bloqueadas por coalizações defensivas, que tomavam a forma de um dinâmico sistema de alianças (equilíbrio de poder).8 As implicações destas transformações no plano do pensamento foram elegantemente sintetizadas por Mannheim: O Estado Absoluto, tendo como uma de suas prerrogativas a consecução de sua própria interpretação do mundo, deu um passo que, com 7 Esta orientação afetava diretamente o cotidiano das heterogêneas comunidades camponesas, criando um terreno propício à manifestação de revoltas, vistas pelos olhos eclesiásticos como heresias que, como tal, deveriam ser erradicadas violentamente. Estas agitações também afetavam o poder secular em consolidação. Onde a Coroa era forte, a tendência foi no sentido de reprimir, em conjunto com a Igreja, os infiéis (fato que, no futuro, converteu o Tribunal do Santo Ofício em um braço do Estado). Porém, onde o Rei era fraco (ou praticamente inexistente, como nos sistemas de Dietas da Europa Centro-Oriental), as heresias foram um elemento político importante a favor dos nobres locais. Logo, o entrecruzamento entre as tensões sociais e a disputa teológica, centrada no papel dos representantes da Igreja (se eram sobrenaturais ou não) é uma das marcas mais características do Antigo Regime. 8 Nem sempre se destaca a relação complementar entre os dois movimentos: a questão religiosa como um ingrediente da questão política (e vice versa). Mas Arrighi (1996, p. 42) vai direto ao ponto: “Paralelamente a essa escalada dos custos de proteção [os constantes conflitos militares do Século XVI e XVII], houve uma escalada na luta ideológica. A progressiva desarticulação do sistema de governo medieval levara a uma mistura de propostas religiosas inovadoras e restauradoras, vindas de cima, seguindo o princípio do cuius régio eius religio, que provocou o ressentimento popular e rebeliões contra ambas. À medida que os governantes transformavam a religião num instrumento de suas lutas pelo poder, os súditos seguiram seu exemplo e transformaram a religião num instrumento de insurreição contra os governantes”. 33 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO a democratização da sociedade, posteriormente tendeu cada vez mais para a abertura de um precedente. Mostrou que a política era capaz de usar sua concepção de mundo como uma arma e que a política não era apenas uma luta pelo poder, mas veio realmente a se tornar pela primeira vez significativa quando, enfim, infundiu em seus objetivos uma espécie de filosofia política com uma concepção política do mundo.[...] Primeiro, o liberalismo, depois, seguindo hesitantemente o seu exemplo, o conservadorismo, e, finalmente, o socialismo, todos fizeram de seus objetivos políticos um credo filosófico, uma visão de mundo com métodos de pensamento bem fundados e conclusões prescritas. Assim, à ruptura da visão de mundo religiosa veio somar-se o fracionamento das visões políticas. (MANNHEIM, 1986, p. 63). Em suma: o Antigo Regime, de forma contraditória, acelerou o processo de secularização da vida social, afetando as estruturas do pensamento: a inspiração transcendental, que reduzia o papel do empirismo e impunha uma aura mística à sociedade, tendeu a ser substituída por uma concepção centrada na imanência, que abriu o caminho para a reflexão sobre a dinâmica endógena da sociedade (HOBSBAWM, 2000, cap. 13; NOVAIS, 2005, p. 162-4; SANTOS, 1992, p. 17-9). Com isto, as lutas políticas ganharam um novo terreno: o campo da reflexão imanente sobre a natureza dos problemas sociais. E, evidentemente, o diagnóstico sobre as suas causas era o guia para propor as linhas de ação. No século XVIII, após a Revolução Francesa, um novo aspecto passou a ser decisivo: a generalização da ideia de progresso e sua implicação mais imediata, isto é, de que a mudança social é possível e, para alguns, inevitável (WALLERSTEIN, 1991, p. 7-22). Isto exigiu uma mudança no rumo da discussão. A questão decisiva: uma vez removidos os obstáculos reacionários ou obscurantistas, o progresso seria automático? Ou, pelo contrário, destruir os últimos elementos do Antigo Regime era apenas o passo inicial? Mas, de qualquer modo, a mudança social passou a ser aceita como algo comum, encorajando uma linha de pensamento otimista, que tinha como pressuposto básico a tese de que o colapso do Antigo Regime libertou a sociedade dos seus grilhões e que, dali em diante, a tendência seria o progresso da humanidade em todos os planos. O pensamento conservador, por sua vez, tentava contra-arrestar este excesso de otimismo, salientando que as sociedades se formam por 34 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS - MUNDO sedimentação e que, portanto, “mudanças” muito rápidas podem comprometer a ordem social, prejudicando a todos (WALLERSTEIN, 2011 p. 2-5). A questão começou a mudar depois do período cujo símbolo máximo foi Robespierre. Frente ao conjunto de forças que se precipitaram após a fase jacobina da Revolução Francesa, o pensamento conservador se viu forçado a definir uma identidade mínima, bem como um programa político calcado fundamentalmente na tradição, no caráter “orgânico” (i.e. hierárquico) da sociedade e, sobretudo, no alcance reduzido do voluntarismo.9 Este movimento, por sua vez, deu mais coesão ao bloco heterogêneo de forças sociais e sistemas de ideias que, posteriormente, foram definidos como “liberais”. A oposição entre o liberalismo e o conservadorismo, por sua vez, grosso modo, abriu caminho para reivindicações mais radicais, rotuladas posteriormente de socialistas ou libertárias. Estas ramificações, contudo, só ficaram mais nítidas a partir de 1848, quando a insurreição dos trabalhadores urbanos, momentaneamente, conquistou o poder na França, em conjunto com diversos levantes em outros países europeus (a “primavera dos povos”). Embora derrotados por uma combinação de repressão sanguinária imediata, seguida de pequenas concessões a conta-gotas, o sucesso momentâneo destes movimentos produziu dois efeitos principais. Entre as camadas dominantes, favoreceu uma tendência à aproximação entre o pensamento conservador e o liberal, pautado pelas reformas em nome da estabilidade social (o “despotismo ilustrado” e seu congênere, um liberalismo mais pragmático e cada vez mais distante das noções 9 O conservadorismo é, como todo sistema de ideias complexo, bastante heterogêneo. Para nossos propósitos, basta reter alguns elementos que são comuns a todas as suas variantes: i) a desconfiança com relação à Razão e, principalmente, na possibilidade de utilizá-la como critério na adoção de políticas destinadas a aprimorar a sociedade; ii) uma visão da História centrada na lenta cristalização dos costumes (na longa duração), que fundamenta a rejeição aos movimentos “bruscos” da política; iii) uma tendência ao pragmatismo, que deriva da desconfiança da razão e do que é novo (ou que se propõe como novo), na medida exata em que o “novo” é incerto, e não passou pela prova do Tempo; iv) a crítica à espontaneidade, típica do pensamento anarquista e demais correntes libertárias. É contra esta atitude que os conservadores diluem o papel do indivíduo (mas não necessariamente eliminam, tal como na vigorosa linha conservadora baseada em Tocqueville) e valorizam as ordens, corporações, a família e demais grupos sociais tradicionais. Esses atributos, na realidade, refletem um traço fundamental: embora tenha sofrido modificações importantes, o conservadorismo moderno permanece, essencialmente, uma doutrina negativa, que se exacerba na medida em que a modernidade desloca os costumes mais “tradicionais” e se aferra à ideia de progresso. 35 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO mais radicais de democracia). No outro polo também ocorreram mudanças significativas. Ao passar a conceber a revolução como um movimento de superação da ordem vigente, baseada na insurreição social guiada por uma teoria sobre a dinâmica da sociedade, o socialismo saiu da sombra do pensamento liberal. A tendência, desde então, foi que, mesmo com a eventual oposição tática e até mesmo estratégica do pensamento anarquista,10 o marxismo passou a dominar o pensamento socialista e, principalmente, o movimento operário internacional.11 Em suma, em um ambiente instável, propenso à radicalização, e com a preponderância do marxismo no pensamento socialista, os liberais foram 10 Dentro do campo revolucionário, o exemplo mais cristalino desta oposição simultaneamente teórica, “institucional” (A Aliança Internacional da Democracia Socialista) e tática é Bakunin. Contra o alegado cientificismo defendido por Marx e Engels – a diferenciação entre socialismo utópico e científico, exposta no Manifesto do Partido Comunista - que ele tentava ridicularizar, taxando de “douto socialismo”, “o pior de todos os governos despóticos!” (BAKUNIN, 2001, p. 62) – e seu sujeito – o proletariado, taticamente liderado pelos Partidos Operários - ele contrapunha a solidariedade espontânea (“paixão instintiva” era o termo de sua predileção), típica das camadas mais humildes do proletariado, que eventualmente poderia ganhar expressão na consolidação de comunidades regionais horizontalmente administradas, articuladas eventualmente por um regime federativo. Por fim, sua crítica a qualquer forma de hierarquia – baseada na ideia de que o poder político (que para ele é quase sinônimo de partidário e estatal) necessariamente “despersonifica” e corrompe – era contrária à tática proposta por Marx, Engels e seus aliados na condução da Associação Internacional dos Trabalhadores. Para Bakunin, eles representavam o setor mais aburguesado do proletariado. Seu herói, portanto era outro: “Por flor do proletariado quero dizer, principalmente, essa grande massa, esses milhões de não-civilizados, deserdados, miseráveis e analfabetos que o Sr. Engels e o Sr. Marx pretendem submeter ao regime paternal de um governo muito forte, sem dúvida, para a sua própria salvação, como todos os governos não foram estabelecidos, é evidente, no próprio interesse das massas. Por flor do proletariado, refiro-me precisamente a essa carne de governo eterno, essa grande canalha popular, que, sendo mais ou menos virgem de toda civilização burguesa, traz em seu seio, em suas paixões, em seus instintos, em suas aspirações, em todas as necessidades e misérias de sua posição coletiva, todos os germes do socialismo do futuro, e que só ela é hoje bastante poderosa para inaugurar e fazer triunfar a Revolução Social.” (BAKUNIN, 2001, p. 60-1). Mas Bakunin foi vítima do seu desprezo pela política convencional e, talvez, do excesso de igualitarismo econômico (termo que ele gostava de destacar, já que, em todos os outros domínios, ele era um defensor da espontaneidade e da diversidade). Uma postura excessivamente antissistêmica para a época? 11 Curiosamente, isto decorreu da derrota da primavera dos povos que, de um lado, enfraqueceu as tradições socialistas mais arraigadas (ligadas aos artesãos em luta contra o sistema de máquinas, pequenos camponeses, e sistemas de pensamento mais formalmente elaborados, inspirados em personalidades como Charles Fourier, Saint-Simon e Proudhon) e, de outro, aprimorou o senso tático de Marx e Engels, empenhados desde então a analisar com mais acuidade o papel da luta de classes na História, para entender melhor os motivos da derrota (CLAUDIN, 1976). 36 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS - MUNDO forçados a deslocar para o primeiro plano a defesa da propriedade e da ordem, opondo-se, portanto, à revolução e, por conta disto, reforçaram sua afinidade com o conservadorismo. O próprio pensamento conservador não saiu incólume. Pressionados por todos os flancos, especialmente pelas reivindicações populares, os conservadores foram forçados a admitir as reformas e, até mesmo, quando no poder (as diversas restaurações), implementá-las, com o alegado objetivo de reduzir o ritmo das mudanças para garantir a estabilidade. No plano formal, a questão que dividia o campo político dizia respeito à fonte da soberania: mesmo com a resistência do pensamento conservador, a zona de consenso era de que a soberania brota do povo. Mas os impasses persistiam: como se define o povo? E como o poder que dele emana deve ser institucionalizado? Em outros termos, retendo a generalizada percepção de que o progresso era a tendência, essa mesma pergunta podia ser formulada de outro modo: qual o sujeito histórico que deveria controlar os rumos da sociedade (ou, pelo menos, o ritmo das mudanças)? Uma ideologia12 não pode prescindir de um protagonista. Para os liberais, a despeito das imensas controvérsias internas, o protagonista é o indivíduo autônomo (e, portanto, o povo ou a sociedade é, essencialmente, 12 Ideologia não pode ser confundida com visão de mundo (Weltanschauung). “Modernidade é a combinação de uma determinada realidade social com uma determinada Weltanschauung, ou visão de mundo, que substituiu e até sepultou uma outra combinação, que nós denominamos Ancien Régime.[...] Neste sentido, uma ideologia não é, em si mesma, uma Weltanschauung, mas uma das respostas possíveis a esta nova Weltanschaaung que chamamos de modernidade.” (WALLERSTEIN, 2002, p. 83-4). O ponto é que ideologias só fazem sentido no interior de visões que sejam imanentes e admitam a endogeneidade da mudança social: elas representam metaestratégias políticas destinadas a tentar controlar as mudanças (WALLERSTEIN, 2011, p. 1; 2002, p. 86-90). Para tentar destacar isto, Wallerstein criou a exótica categoria Geocultura (uma analogia com “Geopolítica”), entendida como um conjunto de ideias, valores e normas que são amplamente aceitas no conjunto do sistema-mundo e, deste modo, constrange as ações sociais em seu interior (2007a cap. 4). Quem tem familiaridade com a obra de Mannheim irá perceber sua influência. E ela não reside apenas na clara afinidade entre a Geocultura e o sentido “total” de ideologia: a ideia de que os momentos transitórios são caracterizados por rupturas fundamentais na unidade do pensamento típico de uma dada época – convertendo deste modo as ideologias em armas políticas – é bastante trivial na sociologia do conhecimento. Curiosamente, ao discutir ideologia, Wallerstein não cita Mannheim: as únicas referências a ele são feitas em outro âmbito, mediante a comparação entre as concepções de utopia em Mannheim, Engels e Thomas More (cf. WALLERSTEIN, 1991, p. 170-84). Esta é uma temática que precisa ser desenvolvida, e isto envolverá um diálogo mais intenso com a “velha” sociologia do conhecimento e o que os adeptos das Relações Internacionais costumam denominar de “teoria crítica”. A este respeito, ver Cox (1996, cap. 6). 37 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO concebido como um agregado de indivíduos). Os conservadores, por sua vez, elegem os grupos tradicionais como os portadores legítimos da soberania (os indivíduos são meros portadores de padrões de conduta social profundamente arraigados, quase inconscientes). Os socialistas tendem a inverter a forma de se pensar: o agente histórico por excelência é – ou deveria ser – o conjunto da sociedade, pois a própria ideia de indivíduo é a expressão de um certo desenvolvimento da sociedade. Estas três ideologias, embora distintas, respondiam a pressões instrumentais que, no fim das contas, geraram um ponto aglutinador. O meio para realizar as promessas do liberalismo e do socialismo – ou para evitar a desordem generalizada, de uma perspectiva conservadora – é a tomada do Estado. E esta manobra pode ser também legitimada defensivamente: para impedir que os adversários consolidem definitivamente o seu poder ou, nos casos de grande instabilidade social, julga-se necessário tomar as rédeas do Estado antes que alguma coalizão rival se consolide e o faça. Contudo, independentemente da tática (ofensiva ou defensiva), todo movimento, para ter alguma chance de sucesso, precisa criar estruturas burocráticas capazes de arrecadar recursos, consolidar lideranças, coordenar e educar grupos numerosos para a ação política. Na visão de Wallerstein, historicamente, todos os movimentos antissistêmicos que tomaram o poder só conseguiram introduzir, com graus de sucesso e de profundidade variáveis, reformas que simplesmente retardaram a manifestação das contradições do capitalismo. No limite, portanto, a crítica de Wallerstein é congruente com a empreendida pelos anarquistas mais radicais, em sua incessante denúncia contra a cooptação que é inerente às práticas do poder.13 Com o 13 Como já sugeri, esta era a tônica de Bakunin contra a suposta tática marxista de conquista do Estado pela ação vanguardista dos partidos operários. Há claros pontos de convergência com o aspecto crítico implícito na veemente retomada da ideia de antipoder, empreendida por John Holloway (2003). Talvez por força do seu ofício, Wallerstein busca se distanciar das posições exclusivamente militantes: em tese, há um espaço positivo na agenda intelectual, mas ela deve ser capaz de assimilar democraticamente o discurso de todos os grupos de interesse (de um modo que, curiosamente, lembra a Ética Discursiva habermasiana). Mas este espaço é, a seu ver, curiosamente, restrito. Durante a fase de funcionamento regular, o sistema não admite contraposições essenciais – afinal, capitular frente à instrumentalização derivada do liberalismo “centrista” não foi o resultado de todas as lutas intelectuais desde 1789 a 89? Na 38 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS - MUNDO primado das táticas – isto é, da razão instrumental – os meios se converteram em fins, e isto bloqueou a reação contra o capitalismo. Pelo menos até 1968. Retornarei a esse ponto. Mas um reparo é necessário: as diferenças entre as três “ideologias” são muito mais importantes do que os elementos que elas podem possuir em comum.14 Esta tentativa de inventar uma unidade essencial na Geocultura do sistema-mundo – a redução das três ideologias em uma, expressa na vitória do liberalismo “centrista” – é arbitrária e, de tão simplista, atenta contra a credibilidade da perspectiva do sistema-mundo. Os desdobramentos acima descritos, contudo, não operam apenas no âmbito das ideologias. A suposta consolidação da Geocultura do sistemamundo moderno envolveu a transposição da luta política para duas outras arenas: os movimentos sociais antissistêmicos e as ciências sociais. A distinção entre estas arenas é um procedimento eminentemente analítico, fase de crise a situação é diferente. Por conta da imprevisibilidade intrínseca destas situações, o que nos resta é uma orientação moral: a luta na direção de um sistema igualitário e democrático, na medida exata que um sistema democrático só pode ser igualitário (WALLERSTEIN, 2002, p. 35). E, neste aspecto, ressurge o constante diálogo de Wallerstein com a tradição do pensamento anarquista: em Utopístics, a forma organizacional das unidades imaginadas por ele como o padrão de um sistema moralmente superior possui o mesmo estilo de instituição celebrado pelos anarquistas (e alguns marxistas “autonomistas”): os modelos de autogestão, locais e descentralizadas, orientados para atender as demandas da comunidade. E, com uma pitada de Proudhon e Braudel, as inter-relações entre as múltiplas “empresas” produtivas não lucrativas poderiam ser mediadas pelo mercado, não o antimercado do capitalismo, mas o mercado de concorrência perfeita (o “mercado verdadeiro”) (WALLERSTEIN, 1998a, p. 74-5). Essas formas de organização de orientação mais artesanal e espontânea sempre exerceram fascínio sobre intelectuais humanistas – especialmente oriundos das fileiras da classe média, que ascenderam socialmente na grande expansão do sistema universitário ocorrida a partir da década de 1950 - e de bem nascidos diletantes. 14 O volume 4 de The Modern World System, um livro importante, repleto de insights frutíferos e fundado em cima das questões que realmente são essenciais, infelizmente, reproduz e intensifica o que After Liberalism tinha de pior: uma espécie de análise combinatória das diversas formas possíveis de discurso ideológico, levando em conta alguns parâmetros: sujeito histórico, relação com a noção de progresso e os eventuais pontos de oposição e de aproximação. Para Wallerstein – em linha, como veremos, com um dos elementos da perspectiva idiográfica - todas as ideologias são negativas, já que elas se formam por oposição. No entanto, por conta da oposição ferrenha, para manter a polaridade, elas podem gerar combinações: e foram estas combinações, sempre mediadas pela tentativa de controlar o Estado, que resultaram na preponderância do liberalismo “centrista”, e, desse modo, na criação de uma unidade, a Geocultura. 39 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO pois, a despeito de certa autonomia, elas são profundamente articuladas e interagem de forma dinâmica. A própria imprecisão do termo “movimentos antissistêmicos” expressa isto. No vocabulário da perspectiva do sistema-mundo este termo designa reações radicais contra o sistema ou, pelo menos, a alguns de seus elementos centrais, em suas mais variadas formas. E a lista é imensa e heterogênea: contracultura, feminismo, movimento verde, insurreições (como Chiapas, por exemplo), extremismo religioso etc. Não entrarei aqui em detalhes sobre esta dimensão da discussão. O fato de os movimentos antissistêmicos se expressarem também no plano da ciência é significativo: revela as peculiaridades do sistemamundo moderno (como dito, na Idade Média estes movimentos assumiam uma linguagem teológica). Mas, em um paradoxo aparente, Wallerstein repete à exaustão que um movimento antissitêmico é um movimento para a transformação do sistema, mas, ao mesmo tempo, é um produto do sistema (WALLERSTEIN, 2001, p. 58-64; 2007a, p. 64-5). Tendo em vista o conjunto de sua obra (as reflexões sobre este tema são recorrentes, porém esparsas), o argumento básico é o seguinte: na fase de formação do sistema – durante a consolidação de sua geocultura - tais movimentos realmente apresentam uma possibilidade significativa de transformação. O resultado desta luta é decisivo para definir as estruturas do sistema, em todas as dimensões da realidade social. No entanto, durante o seu funcionamento regular, tais movimentos – a despeito de sua retórica - não conseguem ultrapassar os marcos do sistema. Isso muda, naturalmente, na fase da crise terminal (que, em sua opinião, vivemos desde 1968): a janela para transformações fundamentais está, portanto, aberta (WALLERSTEIN, 1998a, especialmente p. 1-33).15 Em suma: os movimentos antissistêmicos se mesclaram com a batalha ideológica 15 Este é mais um ponto frágil. Em alguns momentos, Wallerstein dá a entender que era possível, entre 1879-1848, um resultado diferente da polêmica “vitória” do liberalismo centrista. No entanto, quando ele discute as tendências seculares e, principalmente em seus textos posteriores à década de 1990, a tendência de sua argumentação muda: a derrota das reações é tida como inevitável, pois o sistema estava em sua fase de funcionamento regular. Mas, misteriosamente, depois do colapso do socialismo real, Wallerstein parece ter tido acesso aos desígnios (até então) secretos da divina Providência: agora é diferente, pois, ao se aproximar das assíntotas – algo já em curso desde 1968, mas que deve ocorrer definitivamente por volta de 2025 o sistema entrará definitivamente na fase de bifurcação. Agora – e somente agora – o futuro está aberto. 40 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS - MUNDO que, no sistema-mundo moderno, irradiou-se para o plano das Ciências Sociais em constituição. É aqui que concentraremos as nossas atenções. Mas alguns pequenos reparos e adições devem que ser feitas ao modo como Wallerstein e seus discípulos tendem a reconstituir esse evento (WALLERSTEIN, 2011, p. 219-73; 1991, parte 1). A discussão empreendida nos séculos XVIII e XIX não é inédita: o que muda é o terreno onde ela pretende ser empreendida. Longe de inventar sistemas de pensamento essencialmente novos, esta época testemunhou a secularização das grandes questões discutidas há séculos pelos grandes teólogos. Desde o seu início, a escolástica foi marcada por duas grandes polêmicas. De um lado, a tensão entre a Razão e a Fé (se são domínios separados ou conjugados e, sobretudo, na polêmica referente ao papel dos sentidos – isto é, da dimensão empírica - na busca da verdade) e, de outro, a espinhosa questão dos Universais, transposta da tradição grega (Platão e Aristóteles) para o pensamento cristão, mediante o contraste entre o realismo medieval e seu antípoda, o nominalismo (LEITE Jr., 2001). Como era de se esperar, dada a tendência transcendental e a centralidade na dimensão religiosa, estes problemas abstratos se referiam a questões pragmáticas, tais como o papel específico da Igreja e da liturgia na condução da sociedade e, de especial significado, o espaço do livre-arbítrio16 (GRANGER, 1962, p. 7-43). Frente a uma visão de mundo imanente, permeada pela noção de progresso, estes problemas fundamentais passaram a se expressar de forma distinta. Concomitantemente às profundas transformações institucionais que sepultaram a estrutura organizacional e as próprias aspirações da Universidade Medieval (baseada no diletantismo e na busca da Verdade, do Bom e do Belo), uma grande tendência se materializou: o desmembramento entre as “ciências” e as Humanidades, que rapidamente estimulou a capciosa antítese nomotético-idiográfica. A base do conhecimento científico é a alegada universalidade dos fenômenos que visa compreender. Logo, por definição, não é possível uma ciência do singular. Por ter se cristalizado incialmente nas ciências posteriormente 16 O pensamento liberal é herdeiro direto deste tipo de tensão, na medida em que tem como base uma questão bastante similar: como combinar a dimensão da liberdade individual com uma sociedade progressivamente baseada na interdependência? 41 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO batizadas de naturais, a visão nomotética não produziu tanta celeuma. A questão mudou quando, a partir do século XVIII, tentou-se aplicar de forma mais sistemática este princípio ao estudo da sociedade. A reação imediata dos humanistas baseou-se na tese de que, ao contrário dos objetos físicos (e dos animais irracionais, que respondem a instintos básicos), o homem, mesmo sujeito a constrangimentos minimamente niveladores, toma decisões individuais espontâneas (de novo, o livre-arbítrio), possui imaginação e, pode-se aduzir, tais decisões são sempre tomadas em um contexto específico que, portanto, influencia os resultados. A reação dos humanistas engendrou o que se convencionou denominar visão ideográfica. Toda realidade social em uma dada época17 é específica e organicamente integrada. Levando isto ao limite, chega-se a duas implicações interligadas: i) uma época - ou qualquer segmento da realidade - não pode ser reduzida a nenhum componente essencial (o procedimento padrão da orientação nomotética); ii) por conta disto, não existe nenhum critério objetivo, no sentido de transcender as situações concretas, que pode ser utilizado como parâmetro para comparar períodos diferentes. Esse aspecto, naturalmente, se radicalizado, abre o caminho para uma variante muito peculiar do relativismo: há, evidentemente, em todas as épocas, uma tensão entre pontos de vista distintos, ancorados em torno de alguns pontos de gravitação.18 Essencialmente, todas as ideologias em disputa, além de necessariamente 17 Ponto onde já começa a polêmica: quais são os limites de uma época ou de uma sociedade? A escola histórica alemã, por exemplo, de forte inclinação ideográfica, claramente queria demarcar as diferenças entre a sociedade germânica (cujos limites eram, também, bastante indefinidos) e a anglo-saxã, embora, evidentemente, ambas fossem contemporâneas. 18 A identificação e análise destes pontos aglutinadores, onde as polarizações ficam mais expressivas e, portanto, ganham sentido é um vasto campo de pesquisas, ainda insuficientemente explorado. Fernando Novais dá um exemplo de tema aglutinante: “A evolução das idéias políticas na Época Moderna, aliás, dá lugar a problemas peculiares: nenhum setor da produção cultural revela mais claramente a sua natureza ideológica que o pensamento político, ça va de soi; difícil, sim, é demarcar o elemento comum na oposição contínua que os teóricos mantêm entre si. Talvez se pudesse acompanhar as vicissitudes da ‘teoria do contrato’, desde os jesuítas espanhóis e os polemistas protestantes franceses no século XVI, passando pelos clássicos da revolução inglesa (Locke, especialmente), até Rousseau. A ideia do ‘contrato social’ seria o terreno comum de entrecruzamento e oposições entre os vários teóricos” (NOVAIS, 2005, p. 164). 42 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS - MUNDO parciais e enviesadas, são, no cerne, negativas: se definem pelo choque e pelo antagonismo; é exatamente este contraste que possibilita a mudança e, no limite, permite, dentro do horizonte da idiografia, a percepção da mudança social.19 Mas a idiografia representava claramente uma reação defensiva: os ideais de uma ciência positiva e generalizável estavam progressivamente extravasando o seu leito de origem – a mecânica celeste, em moldes newtonianos – e se aproximando cada vez mais do estudo sistemático da sociedade. Além da capacidade de persuasão por conta de seu forte conteúdo empírico, as ciências naturais – devido a seus efeitos práticos evidentes - não dependiam exclusivamente do sistema universitário para se reproduzirem institucionalmente (WALLERSTEIN, 2011, p. 221-6). E, exatamente por conta de sua popularidade, estes cientistas eram muito bem vistos na nova estrutura universitária em constituição.20 A tradição ideográfica, contudo, conseguiu resistir a esta pressão, lutando pela revitalização da Universidade – um ponto de apoio fundamental para saberes distantes da prática – e, ao mesmo tempo, gerando verdadeiros focos de resistência nas faculdades e departamentos de História, Letras, Artes e Humanidades em geral. Em um aspecto, contudo, a reação ideográfica contava com um apoio mais amplo: com a crescente identificação da soberania com o povo, cada Estado tinha de inventar o seu (HOBSBAWM, 1990, p. 103-17). E para fazê-lo era necessário homogeneizar minimante as tradições “populares” e, simultaneamente, fabricar uma história, uma geografia e uma literatura nacionais. Neste aspecto, os historiadores, classicistas e especialistas em literatura se 19 Não é possível associar a idiografia exclusivamente com o relativismo absoluto: afirmar que eventos isolados só podem ser efetivamente compreendidos se situados organicamente em sua época não impede, necessariamente, a qualificação das épocas. O pensamento idiográfico não recusa, necessariamente, conceitos gerais como Feudalismo, Capitalismo, Liberalismo, etc. O pensamento idiográfico se opõe a filosofias da história lineares e a formas de pensamento reducionistas, que tentam decodificar a realidade em elementos invariantes e, por conta disto, universais (BENDIX, 1967; COX, 1996, p. 65-6). 20 Este impulso teve força para afastar as nascentes ciências sociais do campo das Humanidades, mas, para o bem do espírito humano, não foi suficiente para abolir a distinção entre os domínios da natureza e da sociedade (uma tendência que, como veremos, ressuscitou no final do século XX e, tragicamente, adentrou no XXI): por mais que alguns desejassem, por motivos que deveriam ser óbvios para qualquer pessoa dotada de bom senso, os cientistas sociais jamais foram plenamente integrados à hard science. (C.G.R.C.S., 1996, p. 17-9; 21). 43 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO tornaram fundamentais. Enfim, a tradição ideográfica saiu dos restritos círculos intelectuais que a cultivavam – de forma diletante, muitas vezes - e encontrou uma possibilidade de aplicação prática: 21 a construção da nação ficou a seu cargo. Esta tarefa exigia recursos e a criação de uma estrutura institucional mínima, cuja expressão burocrática mais evidente envolvia a definição dos currículos obrigatórios do sistema educacional e, de forma congruente, a padronização (e controle indireto) sobre os meios de comunicação.22 O relatório da Comissão Gulbenkian para a reestruturação das ciências sociais – presidido por Wallerstein - resume muito bem esta situação: No decurso do século XIX, as várias disciplinas como que se abriram em leque cobrindo toda uma gama de posições epistemológicas. Num dos extremos situava-se a matemática (uma atividade de natureza não empírica), e logo encostadas a ela as ciências naturais experimentais (perfiladas, por sua vez, numa espécie de ordem decrescente segundo o respectivo grau de determinismo – a física, a química, a biologia). No extremo oposto achavam-se as humanidades (ou artes e letras), começando pela filosofia (contraponto da matemática enquanto atividade não empírica), seguida do estudo das práticas artísticas formais (as literaturas, a pintura e a escultura, a musicologia), que na sua prática concreta se aproximavam muitas vezes da própria história, ao prefigurarem-se como uma história das artes. Por fim, entre as humanidades e as ciências naturais ficava o estudo das realidades sociais, com a história (ideográfica) a situar-se junto das faculdades de artes e letras ou mesmo no seu interior e com as “ciências sociais” (nomotéticas) 21 Para os países que se situavam no epicentro da competição mundial, a etnografia tornouse um saber importante: tanto para preservar as regiões anexadas quanto para favorecer a penetração e a conquista de novos povos. 22 “A ‘questão nacional’, como os velhos marxistas a chamavam, está situada na intersecção da política, da tecnologia e da transformação social. As nações existem não apenas como funções de um tipo particular de estado territorial ou da aspiração em assim se estabelecer – amplamente falando, o Estado-Cidadão da Revolução Francesa – como também no contexto de um estágio peculiar de desenvolvimento econômico e tecnológico. A maioria dos estudiosos, hoje, concordaria que as línguas padronizadas nacionais, faladas ou escritas, não podem emergir nessa forma antes da imprensa e da alfabetização em massa e, portanto, da escolarização em massa.” (HOBSBAWM, 1990, p. 19). Logo, portanto, desde o ensino básico ao superior, criaram-se condições institucionais mínimas para a preservação das disciplinas de orientação ideográfica. 44 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS - MUNDO na proximidade das ciências da natureza. Postos perante uma separação cada vez mais rígida dos saberes em duas esferas diferentes, cada uma delas com a sua ênfase epistemológica própria, os estudiosos das realidades sociais viram-se como que entalados e profundamente divididos por estas questões epistemológicas. (C.G.R.C.S., 1996, p. 24). Assim, a despeito da resistência dos humanistas, pelo menos até 1968, as ciências sociais de inspiração nomotética predominaram. As pretensões universalistas das ciências sociais dependiam, contudo, da clara e precisa delimitação do seu objeto. O ganho em generalização, portanto, depende da redução da escala dos fenômenos e seu confinamento dentro de fronteiras estanques. É evidente que isto traz problemas teóricos. Até onde reduzir? Ou, em outros termos, como traçar as fronteiras do conhecimento? A princípio, para as orientações epistemológicas fundadas na distinção radical entre o domínio do conhecimento científico - tido como autônomo e ligado essencialmente à capacidade de imaginação dos cientistas (WALTZ, 2002, p. 19-20, 24) - e a “realidade”, a demarcação dos objetos é arbitrária: o único critério de validade – utilitário, portanto - é a aceitação e o emprego dos recortes pela comunidade científica. Contudo, no fim das contas, o modo como o pensamento liberal segmenta a realidade acabou comandando a delimitação dos objetos das ciências de inspiração nomotética: o mercado, objeto da Economia, o Estado, que entrou para a alçada da Ciência Política e a “sociedade civil”, domínio da Sociologia (WALLERSTEIN, 2011, p. 243; WOLF, 2010, p. 7-19). É evidente que, no interior de cada uma destas disciplinas, há um intenso e acalorado debate, com focos de resistência ideográfica, bem como variantes que se intitulam “heterodoxas”, isto é, que visam calibrar o excesso de formalismo e abstração com incursões pela História, com o objetivo de fundamentar e dar mais concretude aos conceitos. 23 23 Há, inclusive, tentativas de fusão entre os domínios. No âmbito da Economia, isto se expressa nas diversas ressurreições da Economia Política (que tenta estabelecer uma simbiose com a política, com a “intrusão” da História) e, em um terreno mais inclinado à nomotética, do Neoinstitucionalismo (que tenta aproximar a Economia e a Política (reduzida ao funcionalismo e à “teoria dos jogos”, uma aproximação favorecida pela suposta homologia entre os seus métodos)). São comuns também as tentativas de combinação entre a sociologia e a ciência política (sociologia do poder (Michael Mann e, e em menor grau Charles Tilly 45 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Entretanto, a despeito das reações, o movimento dominante foi no sentido de uma delimitação cada vez mais rigorosa dos objetos, que tinha como objetivo não somente dominá-los racionalmente, mas, sobretudo, interferir na realidade para tentar dar conta, sempre de forma segmentada, dos “problemas sociais” e, desse modo, dar continuidade ao progresso da sociedade.24 O cientificismo consolidado no final do século XIX, portanto, tinha algumas fontes comuns de inspiração, que lhe conferiam uma certa unidade epistemológica: i) a empiria como base da comprovação das teorias, ii) as pretensões de objetividade, mediante a clivagem da realidade, fundamentada na separação entre sujeito e objeto do conhecimento; iii) as noções de equilíbrio e circulação; e iv) o princípio da simetria temporal, isto é, a ideia de que o tempo é um parâmetro externo aos fenômenos, configurando-se portanto como uma simples medida.25 Enfim, na batalha entre a generalização absoluta e o particularismo, as ciências sociais, estimuladas pelas ciências naturais, tenderam para uma posição nomotética, que só podia se realizar (mais afinado com uma ciência política retrospectiva)), a macrossociologia histórica, etc.). Mas estes esforços – que, geralmente, tem como horizonte a interdisciplinaridade, e não a transdiciplinaridade almejada pela perspectiva do sistema-mundo – jamais foram capazes de ameaçar seriamente o mainstream em cada uma das grandes ciências sociais nomotéticas. 24 “As ciências sociais emergentes recortam, pois, esferas da existência – econômica, social, política, cultural – para poder conceituar sobre o seu objeto, isto é, para poder dominá-lo racionalmente. [...] Quanto mais rigoroso o recorte do objeto, mais precisa a conceitualização, e finalmente mais eficaz a sua aplicação. Efetivamente há uma relação intrínseca entre a cientificidade e a capacidade de intervenção no real: das ciências exatas para as humanas já existe um diferencial. No interior das ciências humanas, se compararmos, como às vezes se faz, a economia com a sociologia, isso fica manifesto. A história, por sua vez, configura uma situação-limite, uma vez que carece de sentido “história aplicada.” (NOVAIS; FORASTIERI, 2011, p. 22). 25 No calor dos acontecimentos, a tese da reversibilidade dos fenômenos - desdobramento lógico de um universo mecânico baseado na simetria temporal – contudo, encontrou maior resistência entre os adeptos das ciências sociais, principalmente entre os reformistas: embriagados pela ideia de progresso, como eles poderiam imaginar a possibilidade de um retorno às velhas condições? A modernidade era vista, portanto, como um ponto de mutação irreversível. Boaventura de Sousa Santos chamou a atenção para este aspecto curioso: “Na mecânica Newtoniana, o mundo da matéria é uma visto como uma máquina cujas operações podem ser determinadas precisamente por meio de leis físicas e matemáticas – um mundo eterno e estático pairando em um espaço vazio, um mundo onde o racionalismo cartesiano torna cognoscível pela divisão em suas partes constituintes. Esta idéia de um mundo-máquina era tão forte que se tornou na grande hipótese universal da era moderna. É surpreendente, até mesmo paradoxal, que esta forma de conhecimento pudesse se tornar um dos pilares da ideia de progresso que impregnou o pensamento europeu desde o século dezoito e que se converteu no símbolo intelectual da ascensão da burguesia.” (SANTOS, 1992, p. 17 - grifos meus). 46 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS - MUNDO segmentando a realidade social em esferas da existência autônomas, fato que caminhou a par com a burocratização da Universidade, dividida em departamentos e faculdades especializadas nos novos ramos do conhecimento. É este modelo, gestado essencialmente na França, EUA, Grã-Bretanha e, de certo modo, na Alemanha, que tendeu a se difundir na segunda metade do século XX, nas condições excepcionais criadas nos “Anos Dourados”. As determinações da conjuntura: 1945-1968 A perspectiva do sistema-mundo surgiu deliberadamente como um contraponto à “teoria da modernização” que, como se sabe, tem como fundamento a degeneração de um dos principais legados do iluminismo: a tese do progresso automático (WALLERSTEIN, 1998b, p. 106). Embora mais explícita na ciência econômica e na sociologia, esta “teoria” se difundiu por praticamente todos os ramos das ciências sociais, induzida pela crescente importância estratégica da vasta zona não ocidental e, também, por conta da expansão do sistema universitário para além dos países centrais. A teoria, que se propunha universal, tinha de dar conta de duas “anomalias”: o mundo não ocidental e o terceiro mundo (WALLERSTEIN, 2007b, cap. 2). Como assimilar realidades tão distintas a uma teoria concebida essencialmente com base na trajetória dos países desenvolvidos? A saída foi relativamente simples. Todos os Estados/Sociedades Nacionais representam simultaneamente um conteúdo geral e singular. O caráter geral reside na sequência de estágios a serem atravessados, enquanto o caráter particular deriva, fundamentalmente, das diferenças com relação aos países desenvolvidos (que representam a unidade de referência), entendidas essencialmente como obstáculos à evolução: ao oferecerem resistência, explicam o atraso relativo da sociedade em questão (ARRIGHI, 1998, p.114-6; WALLERSTEIN, 1991, p. 266-72). Além de uma clara antagonista, a perspectiva do sistema-mundo é herdeira direta de três grandes debates que ocuparam o centro da discussão acadêmica entre 1945 e 70: i) o surgimento da CEPAL e a consolidação da “teoria” da dependência; ii) o debate sobre a transição do feudalismo ao 47 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO capitalismo;26 e iii) os desdobramentos da “velha” tensão entre a História e as Ciências Sociais, travada fundamentalmente pela escola dos Annales. A filiação mais explícita é, evidentemente, com a teoria da dependência. Não somente pelo fato da distinção entre centro e periferia – e os diversos mecanismos de exploração derivados diretamente desta assimetria fundamental - representar um dos elementos fundamentais desta perspectiva. Outro aspecto é igualmente importante: demonstrando um desconforto com o establishment, a teoria da dependência expressou a recusa dos intelectuais do terceiro-mundo em aceitarem acriticamente as teorias econômicas dominantes, fato que não somente lançou um desafio direto à teoria da modernização como, ao mesmo tempo, abriu a possibilidade de elevar o diálogo entre a História, a Sociologia, a Ciência Política e a Economia. O “clássico” debate sobre a transição, travado originalmente entre Maurice Dobb e Paul Sweezy nas páginas da revista Science & Society teve também um papel fundamental. A própria ideia de transição retomava problemas teóricos decisivos: há uma dinâmica discernível na fase de transição? Ou ela é governada totalmente pelo acaso? Se existe dinâmica, onde ela se situa: no impacto do comércio de longa distância sobre os padrões de consumo da nobreza, nos mercados locais e nas aldeias (i.e. a dissolução da “economia natural”). Ou, essencialmente, a dinâmica deriva da disputa entre as classes sociais pelo excedente, luta que desencadeia revoltas gerais que só terminam com a conquista do Estado e, na sequência, com o desenvolvimento das forças produtivas? As implicações políticas do debate 26 Immanuel Wallerstein (2004, p. 11-2), recentemente, fez menção a 4 debates: os três acima citados mais a polêmica em torno do “Modo Asiático de Produção”. Situado na Guerra Fria, este debate tinha implicações políticas muito claras: se não há uma sucessão unilinear e inexorável de Modos de Produção, é legítimo refletir se a URSS encontra-se mesmo na fase de transição ao Comunismo ou se, pelo contrário, ela deu origem a um novo Modo de Produção (muito similar ao asiático, isto é, um modo de produção redistributivo, onde o poder público era o organizador da economia), fato que exigiria transformações significativas nos prognósticos do Partido Comunista da URSS sobre o seu futuro e sobre o futuro dos países do terceiro mundo. O interesse deste debate para a perspectiva do sistema-mundo é duplo: i) por romper com a ideia de sucessão automática, mediante estágios predefinidos, esta discussão ajudou a contestar as variantes “marxistas” da teoria da modernização; ii) o debate, pelo menos indiretamente, alimentou movimentos antissistêmicos mais radicais, que passaram a denunciar um suposto conluio americano-soviético para manter o status quo na década de 1960. 48 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS - MUNDO eram nítidas: o próprio Sweezy, ao abrir a sua crítica a Dobb, afirmou explicitamente em 1950 que o interesse pela passagem do feudalismo ao capitalismo derivava da situação contemporânea, isto é, a transição ao socialismo. Por fim, e para nós isto é mais importante, o debate sobre a transição era marcado por outra sobreposição de problemas: ao lado das questões específicas da transição, na essência, a discussão envolvia concepções distintas sobre o Materialismo Histórico e, mais particularmente, sobre o conceito de Modo de Produção. Quais mecanismos fazem um novo modo de produção brotar das contradições internas do velho? A transição se processa mediante o progresso das forças produtivas, que entram em contradição com as relações de produção ou é a mudança nas relações de produção que explica o desenvolvimento das forças produtivas?27 Outro tema importante, implícito em toda a discussão, diz respeito à polêmica em torno da unidade da análise. A mudança ocorre – e, portanto, só pode ser compreendida - no plano do conjunto ou, pelo contrário, ela é a resultante de múltiplas transições, onde as diversas sociedades mudam no seu próprio ritmo, predominantemente em função de seus atributos internos?28 No primeiro caso, as dificuldades residem em pelo menos dois pontos. Primeiro, como combinar a análise das subunidades – os Estados em consolidação – com o movimento do conjunto; ou, em outros termos, como estabelecer as mediações entre a determinação geral e o movimento das partes? Segundo, como definir critérios para a periodização do conjunto? Se isso já 27 Essa questão se mescla com outra: qual é o papel específico da luta de classes durante um período transitório? Ela conduz à transição (fato que implica grau considerável de indeterminação) ou, pelo contrário, ela se processa dentro de limites estabelecidos pelas combinações entre as forças produtivas e as relações de produção? O conflito entre as camadas dominantes – e sua transformação - pode ser mais decisivo na transição do que as tentativas de insubordinação das camadas inferiores da sociedade? 28 Questão que, imediatamente, leva a outra: nas variantes do marxismo que não tomam axiomaticamente a economia como a base da dinâmica social (e da mudança), há alguma esfera da existência social que determina a posição ou o movimento das demais e, portanto, conduz a transição? Na primeira fase da polêmica sobre a transição, mesmo as versões mais economicistas do materialismo histórico abriram caminho para incorporar as transformações induzidas pela política. Na segunda fase, contudo, Guy Bois tentou reforçar a posição mais ortodoxa, questionando o marxismo “político” derivado de Dobb e reforçado por Robert Brenner (MARIUTTI, 2004). 49 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO é difícil em um modo de produção consolidado, as dificuldades aumentam tremendamente quando o problema envolve um período transitório. No segundo caso, a tendência foi buscar uma saída falsamente conciliatória, sustentando que a transição envolve um amplo leque temporal (do século XV ao XIX), que é pontuada por diversas revoluções burguesas, que progressivamente sedimentam o capitalismo nas diversas formações sociais. De uma forma bastante original, Immanuel Wallerstein combinou os aspectos mais relevantes da perspectiva de Dobb29 com as principais questões levantadas por Sweezy, em especial a sua insistência em afirmar que as explicações deveriam levar em conta não só os países isoladamente, mas, sobretudo, a sua integração a uma unidade mais ampla, o sistema mediterrânico Europeu. Assim, o debate sobre a transição teve uma dupla função: ao promover uma reflexão metodológica sobre o Materialismo Histórico, flexibilizou as ortodoxias marxistas e, ao mesmo tempo, favoreceu um diálogo mais intenso entre a Economia e as demais Ciências Sociais. 29 Dobb enfatizou um aspecto decisivo: não há nenhuma relação linear entre o desenvolvimento do comércio e o afrouxamento dos laços servis, rumo ao trabalho assalariado. A expansão do comércio foi acompanhada tanto pelo reforço como pela dissolução da servidão. O caráter decisivo não era o comércio, mas que classe social desenvolvia as relações mercantis ou se associava ao mercador: onde o produtor direto teve acesso aos mercados, a tendência foi no sentido do trabalho livre. Mas onde a nobreza se associava ao mercador, a tendência era o reforço da servidão. Embora Dobb fosse um ferrenho defensor do papel crucial das transformações internas – para a Grã-Bretanha pelo menos – na condução da transição, isso abriu caminho para uma interpretação apta a destacar a dimensão transnacional da luta de classes. Isto, além de ampliar a discussão para os movimentos do conjunto, possibilita destacar os vínculos entre a forma de controle sobre o trabalho, o sistema político e o poder do Estado: “Por que há uma coincidência temporal entre diferentes modos de organização do trabalho – escravidão, ‘feudalismo’ [i.é., o reforço da servidão na Europa Oriental], trabalho assalariado e auto-emprego [pequeno produtor independente] – no interior da Economia-Mundo? Por que cada forma de controle de trabalho se ajusta melhor a tipos particulares de produção. E porque estes modos estavam concentrados em zonas distintas da economia-mundo [...]? Porque as formas distintas de controle sobre o trabalho afetam significativamente o sistema político (a força do aparato de Estado em particular) e as possibilidades de uma burguesia autóctone prosperar. A economia-mundo estava precisamente baseada no pressuposto de que existiam estas três zonas [periferia, semi-periferia e centro] e que elas possuíam efetivamente diferentes formas de controle sobre o trabalho. Se não fosse deste modo, não seria possível assegurar o tipo de fluxos de excedentes que permitiu que o sistema capitalista existisse.” (WALLERSTEIN, 1974, p. 87). 50 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS - MUNDO Estas tendências corriam paralelamente com a ruidosa retomada da polêmica entre a História e as Ciências Sociais, sediada predominantemente na França. Em todas – e são várias - as reconstituições da gênese da perspectiva do Sistema-Mundo, Wallerstein enfatiza o peso de Braudel, mas sem dar a devida ênfase ao seu primeiro e mais significativo grande interlocutor: Claude Lévi-Strauss. No final da década de 1940, em um famoso artigo (“História e Etnologia”), retomado posteriormente em Antropologia Estrutural [1958], Lévi-Strauss passou a defender ostensivamente a necessidade de se desfazer dos “saberes tradicionais” (as disciplinas isoladas, encerradas em si mesmas) mediante a criação de um espaço interdisciplinar de pesquisa, fundado em uma análise sincrônica, apta a captar invariantes ocultas pela superfície dos acontecimentos (RODRIGUES, 2009). O problema é que, para Lévi-Strauss, era a etnologia - irmanada com a linguística - que deveria conduzir a discussão. Caberia à História apenas organizar os dados e os acontecimentos referentes às expressões conscientes da vida social, isto é, operar na superfície. Braudel redarguiu, salientando que a historiografia inspirada em Marc Bloch e Lucien Febvre já havia aberto caminho para a interdisciplinaridade e, sobretudo, para a superação da reflexão situada dominantemente no nível dos acontecimentos. Contra as alegadas invariâncias universais ressaltadas por Lévi-Strauss,30 Braudel intensificou o seu diálogo com a sociologia e a economia (que, rapidamente ocupou uma posição central), bem como estruturou o seu programa de pesquisas em torno da questão da temporalidade, com clara ênfase na Longa Duração, isto é, o nível da realidade onde dominam os elementos inconscientes da vida social, mas que não são imóveis, pois variam no tempo extremamente lento das civilizações.31 30 Infelizmente, não há espaço para aprofundar este tema aqui. Mas a função de Levi-Strauss não foi apenas a de antípoda de Braudel. O renomado antropólogo publicou nos Annales em algumas ocasiões e tendeu a se aproximar mais ainda, ao atenuar as diferenças entre o (seu) estruturalismo e a História da segunda geração dos Annales. Ironicamente, a continuidade da aproximação entre a antropologia - uma certa antropologia pelo menos - e a Nova História destruiu esse diálogo, mediante a “dissolução” das estruturas. Se a qualidade dos interlocutores é um critério para avaliar a vitalidade de uma corrente do pensamento, a substituição de LéviStrauss por Marhsal Sahlins diz muito sobre a relevância da Nova História. 31 As implicações políticas desta visão são evidentes: o tempo curto – de uma geração, por exemplo - não é capaz de produzir nenhuma mudança fundamental. As ditas “revoluções” 51 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Aqui reside, portanto, o elemento central: as estruturas sociais são móveis, de desgaste muito lento, fato que de saída inviabiliza a absolutização dos modelos estáticos, típica das posições mais ortodoxas das ciências sociais. Tais modelos têm a sua função, mas somente serão úteis se confrontados com a dimensão das temporalidades e seus ritmos variáveis de mudança. É, portanto, no plano da longa duração que a perspectiva do sistema-mundo pretende se situar. Outro elemento, que deriva diretamente da reflexão mais madura de Braudel, envolve a diferenciação entre a lógica transparente do mercado livre e a opaca zona dos privilégios e do monopólio. A peculiaridade é que esta distinção é transposta para a estruturação da economiamundo. No centro concentram-se as posições monopolistas – os poderes financeiro (elemento pouco desenvolvido por Wallerstein, mas enfatizado por Arrighi32), tecnológico e militar - enquanto a periferia está sujeita às pressões similares às do mercado livre, que, portanto limitam a sua capacidade. Esta mesma estruturação se repete no interior das várias sociedades, onde os monopólios sociais – associados ao racismo e os diversos preconceitos recriados pelo capitalismo, que segmentam a força de trabalho - persistem como uma forma de perpetuação das camadas dominantes. Esses elementos são suficientes para darmos o passo decisivo: a definição abstrata de sistema-mundo para, na sequência, esboçarmos as só arranham a superfície: por mais espetaculares que possam parecer, toda a poeira que elas levantam acaba por se assentar mais ou menos no mesmo lugar. E esse viés conservador foi se acentuando, principalmente após ascendência intelectual de Jean Paul Sartre, com um programa de pesquisa orientado pela subjetividade e centrado na ação política imediata. A única brecha aberta por Braudel neste sentido aparece em suas alusões à espontaneidade que ressurge sistematicamente nas economias de mercado “genuínas”, que ressurgem somente para serem engolidas e metabolizadas pelo “capitalismo”. Logo, esta posição abre um fosso intransponível entre Braudel e Wallerstein. 32 Giovanni Arrighi, em O Longo Século XX (1996) afirmou que a principal categoria do livro, os ciclos sistêmicos de acumulação, foram inspirados na reflexão de Braudel. Mas isto, na realidade, o afasta da problemática a qual pretende se filiar. Fernand Braudel jamais tentou reformar conceitos ou modalidades de reflexão, introjetando elementos da “história” para corrigir o excesso de abstração. Este procedimento tornou-se padrão entre as diversas ciências sociais que se pretendem “heterodoxas”. Curiosamente, foi exatamente este papel que Levi-Strauss tentou atribuir à história: um ponto de apoio para uma reflexão essencialmente sincrônica. Por extensão, portanto, não é difícil notar que esta apropriação de Braudel por Arrighi é, no mínimo questionável. 52 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS - MUNDO características essenciais do sistema-mundo moderno. Wallerstein define sistema-mundo como um sistema social que possui limites espaço-temporais, estruturas, regras de legitimação e elevado grau de coerência. É dinâmico, pois os grupos que existem em seu interior estão constantemente envolvidos em uma luta para modelar o sistema em seu proveito. Sinteticamente: o que caracteriza um sistema-mundo é o fato de a sua dinâmica ser, em grande medida, interna (autocontida). Deste modo, o próprio sistema representa a unidade em torno da qual qualquer análise deve estruturar-se. O sistema-mundo moderno é, contudo, uma economia-mundo capitalista, regida por uma “lei do valor”, que determina a distribuição da maior parcela do excedente para aqueles que dão prioridade à diretriz fundamental do sistema: a acumulação incessante de capitais. Assim, acumular por acumular representa o princípio nuclear que orienta todo o sistema e lhe confere sentido.33 O sistema-mundo moderno configura um todo espaço-temporal, cujo escopo espacial coincide com o eixo da divisão social do trabalho que integra as suas partes constituintes. Este eixo se materializa em uma complexa cadeia de mercadorias onde, para cada processo de produção, existem alguns vínculos para diante e para trás, responsáveis pela interdependência da rede mundial de valorização do capital. Por intermédio desta rede, diversas formas de controle e de remuneração do trabalho são subsumidas ao capital: o trabalho compulsório (e o infantil), as cooperativas de produtores independentes e as economias familiares semiproletarizadas (onde o salário é a menor parcela das diversas fontes de renda da família) são alguns exemplos.34 Deste modo, a divisão do trabalho que articula a economia-mundo 33 Naturalmente, Wallerstein matiza esta afirmação: isto não quer dizer que todos os seus membros operam implacavelmente com base nesta “lei do valor”. Mas, em congruência com os fundamentos do sistema, todas as instituições da economia-mundo capitalista são designadas para recompensar materialmente os que aderem ao seu princípio básico e, indiretamente, para punir os que não o fazem (WALLERSTEIN, 2001). 34 Wallerstein não concebe a multiplicidade de regimes de trabalho como um mero anacronismo ou um resquício pré-capitalista. Pelo contrário. Seu papel na valorização do capital é análogo ao exercido pelas disparidades geográficas entre zonas de salários elevados/baixos salários, criadas artificialmente pelo controle internacional sobre a mobilidade da mão de obra: o recurso ao trabalho compulsório e ao emprego da força de trabalho parcialmente 53 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO não é somente ocupacional, mas também regional: ela reflete uma hierarquia de tarefas que demandam níveis distintos de qualificação e de capitalização, determinando assim a transferência extensiva da mais-valia da periferia para o centro. Mas o quadro é um pouco mais complexo. Entre o centro e a periferia da economia-mundo existe uma zona intermediária, razoavelmente favorecida pela divisão mundial do trabalho: a semiperiferia. Por combinar características dos dois extremos que polarizam a economia-mundo capitalista, ela atua como uma zona periférica para os Estados do centro e, simultaneamente, como centro com relação à periferia. Esta posição intermediária reduz a tensão entre os extremos e, deste modo, ajuda a preservar o sistemamundo moderno.35 Mas, além disto, ela proporciona também uma função dinamizadora: nos períodos de contração econômica, quando a luta para açambarcar um quinhão do excedente mundial em declínio se intensifica, convertida em mercadoria ajuda a estabelecer limites às reivindicações dos trabalhadores assalariados com maior poder de barganha, ao mesmo tempo em que gera fontes alternativas de valorização. 35 “O sistema-mundo capitalista precisa de um setor semi-periférico por duas razões: uma primariamente política e outra político-econômica. A razão política é muito direta e até mesmo elementar. Um sistema baseado na recompensa desigual precisa estar constantemente preocupado com a rebelião dos oprimidos. Um sistema polarizado com um pequeno setor distinto de status superior e de rendimentos elevados confrontado com um setor relativamente homogêneo de baixo status e baixo rendimento que inclui a maioria avassaladora dos indivíduos leva rapidamente à formação de classes für sich e à luta aguda e desintegradora. O principal meio político capaz de evitar estas crises é a criação de setores “intermediários”, que tendem a acreditar que estão melhores do que os de baixo, ao invés de pensar que estão piores do que o setor superior. Este mecanismo óbvio, operacional em todo tipo de estrutura social, possui a mesma função em sistemas-mundo.” (WALLERSTEIN, 1979, p. 69). A razão “político-econômica” é um pouco mais complexa e, sobretudo, controversa. A semiperiferia possibilita novas zonas de investimento, por conta de sua situação peculiar: uma capacidade de consumo mais elevada do que a da periferia, mas com custos de remuneração do trabalho menores do que o centro. Uma maior gradação das trocas desiguais atenua a tensão entre o progresso tecnológico incessante e as pressões ao aumento salarial nos países centrais. (Ibid, p. 69-71). A referência óbvia aqui é a Arghiri Emmanuel (1972). “Sem trocas desiguais, não seria lucrativo expandir o escopo da divisão do trabalho. E sem esta expansão, não seria lucrativo manter uma economia-mundo capitalista, que neste caso iria se desintegrar ou ser revertida em um império-mundo.” (WALLERSTEIN, 1979, p. 71). O segundo elemento importante é, exatamente, a sugestão de que os estratos intermediários operam simultaneamente como forças moderadoras e mistificadoras: dificultam a criação de uma consciência de classe ou alguma forma de identidade entre o grande grupo de oprimidos. 54 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS - MUNDO alguns estados semiperiféricos podem tirar proveito de sua constituição híbrida e ameaçar o centro do sistema, promovendo deste modo transformações significativas nas estruturas de poder e de riqueza internacionais.36 Por fim, resta demarcar o escopo temporal do sistema-mundo moderno. A duração de todo sistema é marcada por três “períodos” que devem ser distinguidos: a sua gênese; o período de “funcionamento normal” (relativamente longo); e o seu declínio (WALLERSTEIN, 1988; 1998a). A gênese e a derrocada de um sistema-mundo caracterizam-se pelo fato de seus desdobramentos serem intrinsecamente imprevisíveis. O período de desenvolvimento regular, pelo contrário, é presidido por contradições internas que modelam a sua evolução. É neste período que se desenvolvem as perspectivas sincrônicas e se consolida uma visão de mundo dominante – uma Geocultura – que, como vimos, resiste e absorve os movimentos antissistêmicos.37 Abstratamente, a crítica mais óbvia a tal definição é quanto ao seu caráter hermético: se tomarmos a reconstituição do sistema-mundo moderno feita por Wallerstein, será que realmente podemos falar em contradições internas? Afinal, durante a dita fase de funcionamento regular, parece não existir muita saída, pelo menos não no estilo marxiano, i.e., mediante a superação das contradições, onde o velho cria as condições para a emergência do “novo”. Se relembrarmos as intromissões de um vocabulário oriundo 36 Fernand BRAUDEL, ao mesmo tempo em que critica Wallerstein por estar “hipnotizado” pelo século XVI, neste aspecto, em particular, reconhece a importância da semiperiferia: “Assim, através de todos os avatares políticos da Europa, por causa deles ou a despeito deles, constituiu-se precocemente uma ordem econômica européia, ou melhor, ocidental, ultrapassando os limites do continente, utilizando as suas diferenças de voltagem e as suas tensões. Bem cedo o “coração” da Europa viu-se cercado por uma semiperiferia próxima e um periferia longínqua. Ora, essa semiperiferia que oprime o coração, que o obriga a bater mais depressa – o norte da Itália em redor de Veneza nos séculos XIV e XV, os Países Baixos em torno de Antuérpia – é talvez a característica essencial da estrutura européia. Ao que parece, não há semiperiferia em torno de Pequim, de Delhi, de Ispahan, de Istambul, até de Moscou.” (BRAUDEL, 1997, p. 45) [vol. 3]. 37 Ao longo de sua obra, Wallerstein foi modificando ligeiramente os recortes temporais que demarcou em 1974, culminando na criação do conceito de “longos períodos sobrepostos” (WALLERSTEIN, 2011, p. xii). Mas, no que diz respeito à consolidação e funcionamento regular da Geocultura, o período é 1789-1873/1914. Depois de 1914 o primado do liberalismo reformista começou a ser ameaçado, e as rupturas mais decisivas começaram a aparecer a partir de 1968. 55 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO da física, os sistemas-mundo parecem estar sujeitos a duas tendências distintas que disparam a sua fase terminal: a entropia (como, por exemplo, o colapso do Império Romano) ou, de forma alternativa, a ultrapassagem das assíntotas, isto é, um afastamento dos pontos de equilíbrio que leva o sistema para a zona de bifurcação, tornando-o intrinsecamente imprevisível. Concretamente, a polêmica é outra: como demarcar o início do sistema - o debate sobre a transição ao capitalismo – e, sobretudo, como saber se realmente estamos na fase terminal do sistema-mundo moderno?38 Quanto ao primeiro problema, a posição de Wallerstein é bastante clara: todos os elementos do capitalismo surgiram no longo século XVI (1450-1640) e, de forma intrinsecamente imprevisível no decorrer do processo, este período 38 Outro ponto polêmico, que não poderemos aprofundar aqui, diz respeito à periodização dos ciclos que compõem o sistema-mundo moderno: de um lado, a polêmica tese da articulação dos ciclos de longa (tendências seculares), média (Kondratieff) e curta duração. De outro, a celeuma em torno dos ciclos hegemônicos (disputa que extravasa o campo da perspectiva do sistema-mundo) e seu vínculo com os “ciclos sistêmicos de acumulação” (Arrighi). Aprofundei este tema em Mariutti (2008, p. 45-86). Contudo, um aspecto importante é necessário destacar aqui. Um limite básico à discussão sobre os ciclos econômicos é sua evidente capitulação ao status quo. Ernest Mandel destaca isto ao repudiar veementemente a discussão sobre os ciclos de Kondratieff. Há, na opinião de Mandel, uma diferença fundamental entre a passagem da fase ascendente para a descendente e a reversão da fase descendente para a ascendente. Um certo caráter automático só se verifica no primeiro caso. A explicação para isto repousa na tendência à queda da taxa de lucro, que é imanente à economia capitalista: o pico da fase ascendente é caracterizado pela superprodução, a qual intensifica o problema da realização da mais-valia e acaba por reverter as expectativas de lucratividade. Esta inversão das expectativas produz a queda dos investimentos e a redução do ritmo da economia (fase B). Já a passagem da fase de declínio para a nova fase de expansão só pode ocorrer se for provocada por choques sistêmicos exógenos, capazes de gerar a expansão súbita do mercado e transformar positivamente as condições de acumulação capitalista. De acordo com Mandel (1996, p. 618-21), estes choques ocorreram três vezes na história: a) em 1848, com as revoluções burguesas e a descoberta do ouro na Califórnia; b) depois de 1893, com a escalada de investimentos no mundo colonial (imperialismo) em conjunto com a descoberta de jazidas de ouro na África do Sul; c) a partir de 1940 nos EUA e 1948-9 na Europa Ocidental e no Japão, devido ao acúmulo dos resultados de longo prazo do fascismo e da guerra. As implicações políticas deste ajuste teórico são evidentes: a única característica automática do capitalismo é sua tendência à autodestruição. A irrupção de crises é um atributo normal do modo de produção capitalista: a solução destas crises é que envolve sempre transformações importantes no regime de acumulação, as quais sempre são modeladas pela luta de classes. Assim, uma situação de crise é sempre crítica, no sentido de exigir uma reforma significativa do capitalismo ou a sua supressão. 56 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS - MUNDO estabeleceu uma nova estrutura, que se consolidou com a grande expansão que se seguiu à “crise do século XVII”.39 O segundo problema, evidentemente, é muito mais importante e impossível de resolver teoricamente: ou melhor, a posição tomada irá refletir ações políticas efetivas, que, portanto, irão moldar nosso futuro imediato. Podemos até duvidar que a crise começou em 1968. Mas são fortes os indícios de que vivemos em um momento marcado por incertezas fundamentais e, portanto, passível de sofrer transformações radicais – para o bem e para o mal. Simplesmente por ter formulado o problema nestes termos, Wallerstein e a perspectiva do sistema-mundo são uma referência fundamental no debate sobre os rumos da nossa sociedade. Voltarei mais uma vez a esse ponto, logo à frente. Perspectivas teóricas: para além do sistema-mundo moderno Como sugeri, a publicação de The Modern World-System I é, inequivocamente, o marco inicial da perspectiva do sistema-mundo. A rota fixada originalmente por Wallerstein tinha como eixo básico a intervenção na realidade social, amparada por uma análise da economia-mundo contemporânea, escorada em uma reconstituição de seus elementos fundamentais, nutrida pela História. Tal empreitada tem como premissa fundamental a ideia, cara a Benedeto Croce, de que toda História é sempre contemporânea: O passado só pode ser contado como realmente é, não como foi. Pois recontar o passado é um ato social do presente, feito por homens do presente e que afeta o sistema social do presente. A “verdade” muda porque a sociedade muda. Em cada momento dado, nada é sucessivo, tudo é contemporâneo, mesmo o que é passado. E no presente somos todos irremediavelmente o produto do nosso meio, do nosso ofício, da 39 Termo que, naturalmente ele rejeita: em sua visão, devemos conceber esse fenômeno não como uma crise, mas como uma retração dentro de uma estrutura que se consolidou no ápice de uma expansão precedente (isto é, a expansão que se seguiu à crise do XIV, que encerrou o feudalismo e liberou os elementos que se combinaram, forjando o capitalismo). 57 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO nossa personalidade e do nosso papel social, bem como das pressões estruturais dentro das quais nós operamos. (WALLERSTEIN, 1974, p. 9). Esta premissa continua sendo basilar. Mas o fato de toda história ser contemporânea, evidentemente, não deve ser entendida de forma estreita: não se pode rejeitar a priori nenhum tema histórico, por mais remoto que seja. Dentre os diversos temas de interesse do analista social, a questão central não é o que se estuda, mas como. E uma série de estudos nas últimas décadas extravasou a ênfase original na economia-mundo capitalista, tentando transpor as categorias forjadas para dar conta deste fenômeno para o estudo de outros sistemas-mundo. Uma tarefa que não é nem um pouco trivial (AMIN, 1991; CHASE-DUNN, 1992). Nesta linha, Before European Hegemony é um exemplo vívido de expansão do escopo e de variação temática que, essencialmente, não rompe com as preocupações referentes aos problemas sociais do presente. O ponto de partida da pesquisa, que levou a autora a escrever o livro, é potencialmente frutífero: munida de diversos estudos gerais (com claro destaque para Willian McNeill), Janet Abu-Lughod passou a investigar as diversas conexões – em todas as esferas da vida social - entre grandes entidades geo-históricas (sistemas-mundo?) distintas, isto é, os múltiplos circuitos – que transcendem o comércio - que articulavam (frouxamente, é importante insistir) as grandes civilizações da Eurásia, cerca de 1250-1350. O ponto alto do livro é, exatamente, a discriminação das conexões entre diversos “sistemas e subsistemas” em uma ampla zona geográfica, que envolvia uma parcela da Europa, do Oriente Médio (no qual, coerentemente, ela inclui o Norte da África) e a zona costeira e as estepes asiáticas. Se ela mantivesse a inspiração original – o estudo dos diversos circuitos entre sistemas-mundo em um período específico – o livro ganharia em qualidade.40 Mas não foi o que ela acabou fazendo. O seu verdadeiro mote é desmistificar as explicações civilizacionais pautadas pela alegada superioridade 40 Samir Amin (1991, p. 357-9), por exemplo, faz isto de forma muito mais rigorosa. 58 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS - MUNDO dos valores e/ou instituições Ocidentais. Contudo, é perfeitamente possível criticar o eurocentrismo sem exagerar na imaginação, sugerindo a existência de um efêmero sistema-mundo (a expressão é dela) que não possui uma unidade em nenhuma esfera da existência social. Sem cerimônias, ela explicita esta manobra em vários pontos do livro. Como ilustração, segue o trecho mais conspícuo: Finalmente, dada a existência deste incipiente sistema mundial onde nenhuma unidade prevalece na cultura, religião ou nos arranjos econômico-institucionais [!!], é difícil aceitar uma explicação puramente ‘cultural’ para a dominância [do Ocidente]. [...] O fato de que o ‘Ocidente venceu’ no século XVI [uma afirmação estranha, para quem conhece o argumento de Wallerstein, ou mesmo de Braudel], onde o sistema precedente abortou, não pode ser utilizado para argumentar convincentemente que apenas as instituições e a cultura do Ocidente poderiam ter triunfado. (ABU-LUGHOD, 1989, p. 354). Uma página antes: “Explicações que se concentram em características tecnológicas, culturais, psicológicas ou até mesmo econômicas especiais da sociedade europeia não são suficientes, já que elas tendem a ignorar as mudanças contextuais no sistema preexistente.” (Ibid, p. 353). Um pouco antes disto, outro malabarismo: “O propósito deste capítulo conclusivo não é apenas sintetizar nossas descobertas sobre o século XIII, mas para formular uma questão de muito maior significado, a saber. Por que sistemas mundiais fracassam?” (Ibid, p. 352). Nesta visão (que também é profundamente anacrônica), o Ocidente só triunfou porque este amplo e heterogêneo “sistema mundial”41 perdeu a coesão, principalmente por conta do declínio do Oriente, que abriu caminho para a conquista ocidental, a qual reformulou os circuitos anteriores, subordinando-os à força, pela sucessão de potências europeias. 41 Sintomaticamente, em todo o livro, a autora utiliza a expressão world system, ao invés de world-system. Aí reside a fragilidade teórica fundamental do livro: o exagero na elasticidade do termo sistema retira o seu conteúdo concreto, fazendo com que praticamente tudo possa ser agregado ao estudo. 59 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Mas, sem dúvida alguma, o exemplo mais tragicômico é o extravagante e incoerente Reorient que, infelizmente, chegou a influenciar o último livro de Giovanni Arrighi (2008). Há alguma história por trás deste livro. Frank pegou carona em algumas “reflexões” anteriores, tais como, por exemplo, Wilbert Moore que, na década de 1960, defendeu a criação de uma “sociologia global”, isto é, apta a abranger todo o globo terrestre, que deve ser compreendido como um “supersistema”, que articula em graus variáveis todos os sistemas menores (MOORE, 1996). Como, infelizmente, o papel aceita tudo, Frank consegue ir mais longe, ao afirmar que o presente sistema mundial tem quase 5.000 anos, pois surgiu por volta de 2500 a.C. (talvez mais cedo!), com as conexões “sistêmicas” estabelecidas entre a Ásia Oriental, a Europa Ocidental e o sul da África, que formaram uma unidade que já recebeu várias designações, tais como “ecúmeno”, “ilha da terra” e “civilização central” (FRANK, 1990; FRANK; GILLS, 1992)42 Em Reorient – para alívio do leitor - os marcos temporais são menores. Seguindo a trilha aberta por Janet Abu-Lughod, Frank se concentra na economia “global” situada entre 1400 e 1800, onde o “centro” mudou da Ásia para a Europa (FRANK, 1998). Como parece ter se tornando uma prática comum entre os adeptos da perspectiva do sistema-mundo (caracterização que parece não agradar mais a Frank, já que ele adotou uma perspectiva dita globológica43 (sic)), o livro termina com uma profecia: estamos a testemunhar o retorno do centro da economia global à Ásia, mais especificamente para a China (e não para o arquipélago capitalista asiático, centrado em torno do Japão, como havia profetizado Giovanni Arrighi, no início dos anos 90). Frank, representando os oprimidos não europeus, procura desmascarar o mito de origem da ciência ocidental: a excepcionalidade do 42 Para a crítica desta posição ver Amin (1991, p. 351-3; 377-85); Arrighi (1999); e Wallerstein (1999). 43 Ibid, p. XV. O termo não é dele, mas de Albert Bergesen (1982). Porém, Frank levou esta ideia às últimas consequências. Ele afirma que escreveu Reorient com o propósito de substituir a ciência eurocêntrica inaugurada por Marx e Weber (grotescamente apelidados de “Marx Weber”) pela globologia: o único método realmente holístico, capaz de superar o falso universalismo eurocêntrico (FRANK, 1998, p. 12-34). 60 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS - MUNDO Ocidente como a base da formação do capitalismo. Na realidade, a ascensão do Ocidente não teve nada de excepcional, pois tratou-se apenas de mais um episódio na longa e intermitente sucessão de centros da economia global. Ele vai além.44 Foi, na verdade, o declínio do Oriente que possibilitou que os europeus ocupassem o centro da economia-mundo no século XIX, com a autoproclamada “Revolução Industrial” (FRANK, 1998, p. 264-7). Para o autor não faz sentido usar este termo, pois não houve revolução alguma: os europeus, com base na exploração da prata americana e do tráfico de escravos africanos, simplesmente emularam - através da substituição de importações (sim, esse é o termo que ele usa!) - as técnicas industriais do Oriente (ibid, p. 276-320; 327-339 (particularmente p. 334-9)). Em uma seção intitulada “Subindo nos Ombros dos Asiáticos” Frank usa uma frase de efeito que traduz seu argumento básico: “Então, como ocorreu a ascensão do Ocidente? A resposta, literalmente em uma palavra, é que os Europeus compraram [com a prata dos americanos e com o trabalho compulsório dos africanos] para si um assento, ou melhor, um vagão inteiro, no trem asiático” (ibid, p. 277). Este estilo de interpretação dispensa comentários. A perspectiva do sistema-mundo sempre disputou espaço com outras correntes que visam dar ênfase aos efeitos dos processos sistêmicos sobre as unidades menores. Sua peculiaridade, contudo, nunca repousou na lógica sistêmica per se, mas sim na aspiração de criar uma ciência social unitária, fundada na articulação entre o tempo e o espaço, em constante diálogo com a História. É esse diálogo que visa garantir a concretude dos fenômenos, isto é, a delimitação de suas fronteiras temporais e, essencialmente, a sua duração. Logo, a tendência a ampliar a noção de sistema, para tentar dar conta do maior número possível de interações é um claro descaminho. Uma vez tomada esta trilha, os grandes marcos divisórios – como, por exemplo, a própria consolidação do sistemamundo moderno – desaparecem e a própria ideia de mudança social perde o seu sentido, pois é dissolvida na atemporalidade. Ampliando ao máximo o perímetro espaçotemporal, sempre é possível identificar “conexões sistêmicas”, inclusive as que transcendem a dimensão social (CHASE-DUNN, 44 Ou aquém: como apontei, essa ideia já tinha sido exposta por Janet Abu-Lughod. 61 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 1992, p. 317-9). O limite desta tendência é a Big History, isto é, a fantástica tentativa de reconstituir a história do mundo partindo do Big Bang aos dias atuais, inclusive com projeções para o futuro: será que, frente a um mundo superpopuloso, a humanidade repetirá as “épicas” migrações do paleolítico, só que na escala do sistema solar? (CHRISTIAN, 2005, parte 6).45 Acredito que até mesmo Gunder Frank ficaria acanhado frente a tal disparate. Desapontado com certeza, pois não há nenhuma referência no livro ao sistema de 5000 anos que ele alega ter descoberto. A Big History parece ser totalmente refratária à curta duração. O que está em jogo, portanto, são as próprias noções de sistema e de totalidade. Este tipo de reflexão sempre gira em torno de clichês, tais como, por exemplo, o todo é maior do que a simples soma das partes ou, alternativamente, de que não se pode confundir totalidade com plenitude. Ambos os chavões são corretos, mas nem um pouco evidentes e, o que é mais relevante, suscitam múltiplas interpretações. Os adeptos da Nova História – mesmo os da novíssima, acusados frequentemente de fazer uma história em migalhas – são defensores intransigentes da totalidade. Mas nunca a totalidade perseguida pela perspectiva do sistema-mundo, e sim outro tipo de totalidade, baseada em procedimento diverso: as “migalhas” são tratadas como totalidades: 45 O livro, intitulado Maps of time: an introduction to Big History, é realmente surpreendente. O relato começa com a origem do universo. O ritmo se acelera com o surgimento do planeta Terra, quando, depois de uma parte mais monótona (a história natural da terra antes da vida), o autor discorre sobre o surgimento das primeiras formas de vida elementares, que evolvem para os grandes ecossistemas, até o surgimento da humanidade e da vida social (também elementar). O problema é que a humanidade passou milênios vivendo em “mundos” separados, até o advento da modernidade que, progressivamente unifica a humanidade (globalização!!). Mas o futuro é incerto... Nada garante que a globalização irá sobreviver. Se os constrangimentos ambientais não destruírem o capitalismo, provavelmente a humanidade irá começar a colonização da Lua e do sistema solar. O autor é cético com a possibilidade de ultrapassar estes marcos, por conta das grandes distâncias e da sugestão de Einstein de que nada pode ir mais rápido que a velocidade da luz (cf. p. 484). No entanto, nada impede a humanidade de produzir “arcas espaciais” lançadas para o desconhecido: se elas forem mais confortáveis do que os asteroides ou planetas eventualmente encontrados, os tripulantes podem viver nelas indefinidamente. Mas, mesmo confinada ao sistema solar, será que a unidade da sociedade humana resistirá às distâncias siderais? O isolamento no cosmo irá, tal como na ilha de Galápagos, produzir a especiação? Quem tiver interesse nestes problemas, deve consultar o livro! 62 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS - MUNDO Deve-se destacar também a redefinição que [os adeptos da Nova História] fazem da concepção de totalidade. “Totalidade” passa a ser empregada em um sentido diverso daquele normalmente utilizado no campo da história, como se pode observar no texto de Braudel [...]. Não se trata das grandes visões de conjunto, se uma abordagem que procura a inteligibilidade do singular dentro de um contexto que articule as esferas da existência. Trata-se agora de, uma vez eleito o objeto de investigação, recortado de um real multifacetado, considera-lo em si como uma totalidade. Desconsideram-se por esta via os amplos quadros conceituais. (NOVAIS; FORASTIERI, 2010, p. 63-4). Enfim, tanto os cultores da história em migalhas quanto os adeptos da Big History provavelmente concordariam com os clichés acima aludidos. Mas as suas problemáticas são fundamentalmente distintas. No primeiro caso, alguns historiadores conseguem, focando em alguns eventos isolados, captar as dimensões mais gerais. No outro extremo (Big History, Globologia), ao invés de totalidade, o termo mais usado é sistema. E a tendência é estender ao máximo o campo de visão (no tempo e no espaço), com base em uma lógica chamada geralmente de evolucionária, tomada de empréstimo do Darwinismo e que rapidamente se difundiu para o estudo dos sistemas complexos. Aqui há uma profusão de exemplos. David Christian baseia todo o seu “mapa do tempo” nesta lógica. A própria Janet Abu-Lughod, embora com um pouco mais de pudor, só foi capaz de vislumbrar o seu efêmero sistema-mundo do século XIII usando uma variante deste tipo de raciocínio, que ela batizou como teoria dos “vetores”, apta a explicar “transformações sistêmicas”.46 George Modelsky, para poder fundamentar a sua teoria dos 46 Corretamente, ela afirma que as relações de determinação em um sistema são complexas: elas não podem ser concebidas a partir de variáveis discretas, tidas como independentes. A transformação se expressa em mudanças na direção e configuração dos grandes vetores (que, invariavelmente, ela usa como sinônimo de tendência). Estas mudanças são, entretanto, a resultante do efeito cumulativo de múltiplas variações em vetores menores que, embora independentes, são influenciados pelas pressões do sistema. Até aqui, nada de novo. O problema básico, que a afasta definitivamente da perspectiva do sistema-mundo, é a sua noção de ciclo: eles variam também em função do seu grau de organização ou de desorganização. Em outros termos: o sistema ascende quando a conexão entre as suas partes aumenta – i.e, ele torna-se mais reticulado – e declina quando as conexões se esgarçam (ABU-LUGHOD, 1989, p. 368-9). 63 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO ciclos hegemônicos – rival direta da perspectiva do sistema-mundo – tentou definir melhor esta lógica. Em sua opinião, a característica fundamental das análises fundamentadas neste tipo de lógica é a ênfase na dinâmica dos processos (nas mais variadas escalas), e não o foco nos atributos das unidades. Tal postura teórica afasta-se, em seu julgamento, da física clássica (mecânica) e se aproxima da perspectiva que ele julga típica das ciências biológicas:47 A mudança da mecânica para a biologia – isto é, uma mudança entre metaparadigmas [!!] – envolve a passagem da estática para a dinâmica. A análise se desloca de uma realidade time-free para uma realidade time-prone que implica a irreversibilidade e portanto abre caminho para a história [...] Empregamos esta analogia porque, em nosso ponto de vista, sistemas biológicos e sociais são sujeitos a processos evolucionários e por este motivo guardam certas similitudes. Eles são sistemas complexos que exibem pressões seletivas, assim como cooperação e sinergia; e suas transformações são baseadas na informação e inovação. (MODELSKI; POZNANSKI, 1996). Por esta via, o caminho aberto para a História existe apenas no plano da retórica. Este tipo de lógica, aparentemente polivalente, na realidade, apaga as diferenças entre os sistemas físico-naturais e a sociedade.48 O tempo todo ela está falando das frouxas e intermitentes ligações entre sistemas-mundo (que se processam no que Wallerstein chamou de Arena Externa), e não de um sistema-mundo dotado de dinâmica própria. Foi esta trilha que, como já adiantei, tragicamente, Gunder Frank et caterva seguiu. 47 Na verdade, quando ele fala em biologia, refere-se principalmente ao darwinismo – particularmente do estudo dos padrões de seleção natural – e, aparentemente, aos estudos sobre ecossistemas complexos. 48 A ideia não é, naturalmente, tentar reforçar a “velha” clivagem entre ciências naturais e sociais, muito menos continuar a tratar a natureza como uma exterioridade meramente passiva, reversível e atemporal. Qualquer tentativa coerente de aproximação entre estes dois conjuntos deve partir de suas diferenças. Projetar traços sociais na natureza não resolve o problema, do mesmo modo que a tradição original – tratar a sociedade como se ela fosse “natural” (eliminando as idiossincrasias e a subjetividade, em prol da quantificação) – criou mais dificuldades do que soluções. A grande questão, contudo, não diz respeito somente se ou como será possível unir as ciências sociais às naturais: o verdadeiro desafio é reconstruir a centralidade das humanidades, subordinando as tendências pragmáticas e o culto à tecnologia à de uma sociedade melhor e mais igualitária. Em suma: as preocupações de Rousseau – a relação entre 64 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS - MUNDO E, infelizmente, esta tendência veio para ficar, com elevado poder de contágio até mesmo sobre a perspectiva do sistema-mundo. Uma coisa é respeitar a natureza e lutar para criar formas de desenvolvimento social ecologicamente sustentáveis. Outra, mediante uma infantil reação ao cientificismo iluminista, é tentar ver inteligência na natureza (ou em sistemas complexos). É relevante o fato de, recentemente, em diversos casos, a Hard Science ter se aproximado das características típicas das ciências sociais de inspiração ideográfica, mediante a adoção do princípio da incerteza (que implica a diluição da separação radical entre sujeito e objeto, aceitando que os instrumentos de medida perturbam e alteram os fenômenos), a ênfase na irreversibilidade, instabilidade e na não linearidade. Mas este movimento é muito menos profundo do que parece, pois ele simplesmente encoraja um raciocínio probabilístico,49 que está contaminando inclusive as próprias ciências sociais de orientação ideográfica, exatamente, devo repetir, por diluir a separação entre fenômenos naturais e sociais.50 Os cientistas deveriam ciência e virtude; como reduzir o hiato entre o que a sociedade efetivamente é e o que ela poder ser - devem ser reconduzidas ao centro do debate público (SANTOS, 1992, p. 9-11; 34-5). 49 “Ao longo das últimas décadas, um conceito novo tem conhecido um êxito cada vez maior: a noção de instabilidade dinâmica associada à de ‘caos’. Este último sugere desordem, imprevisibilidade, mas veremos que não é assim. É possível, porém, como constataremos nestas páginas, incluir o ‘caos’ nas leis da natureza, mas contanto que generalizemos esta noção para nela incluirmos as noções de probabilidade e irreversibilidade. Em suma, a noção de instabilidade obriga-nos a abandonar a descrição de situações individuais (trajetórias, funções de onda) para adotarmos descrições estatísticas. É, pois, no plano estatístico que podemos evidenciar o aparecimento de uma simetria temporal quebrada.” (PRIGOGINE, 2002, p. 8) (Grifo meu). Prigogine foi capaz de assimilar alguns conceitos e insights típicos das ciências humanas, que são incorporados à sua “teoria” das estruturas dissipativas e da ordem mediante flutuações, que desembocam na ideia da bifurcação e da geração espontânea de novos sistemas. Pergunto: há alguma contribuição no sentido inverso, isto é, isso contribui de alguma maneira para renovar a tradição hermenêutica das ciências sociais? O único efeito positivo parece operar no ego dos humanistas e cientistas sociais: frequentemente acusados de estarem atrasados com relação à Hard Science, o advento da teoria do caos mostrou que, na verdade, eles podem ocupar uma posição de vanguarda. 50 As ciências sociais, ao se constituírem, tentaram analisar a sociedade de forma análoga à natureza. Esta tendência se inverteu: “Este fato não só começou a mudar o equilíbrio de poder vivido nas lutas internas das ciências sociais como contribuiu também para reduzir a distinção rígida que vê as ciências naturais e as ciências sociais como dois ‘superdomínios’ totalmente apartados. No entanto, e ao contrário de anteriores tentativas no mesmo sentido, esta diminuição das contradições entre as ciências naturais e sociais não implicou conceber a 65 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO aprender com a prática dos humanistas, filósofos e historiadores, e não o contrário, como tem ocorrido: a parceria com a “teoria” da complexidade – também conhecida como teoria do caos – é, neste sentido, catastrófica, pois, em última análise, o que se faz é, além de incorporar alguns conceitos das ciências sociais, estender a lógica utilizada no estudo dos sistemas complexos para a sociedade. Mas tal lógica, por definição, não explica o propósito dos fenômenos e, principalmente, apenas permite controlar minimamente seus efeitos. Em uma síntese elegante: “As leis da ciência moderna são baseadas em um tipo de causalidade formal que dá prioridade ao como-issofunciona em detrimento de quem-é-o-ator ou qual-é-o-propósito das coisas” (SANTOS, 1992, p. 17). A teoria do caos não irá nos ajudar a mudar essa tendência. Simplificando um pouco, podemos dizer que a teoria da complexidade tende a oscilar entre duas orientações distintas: i) majoritariamente, os fenômenos do mundo real são caóticos, isto é, instáveis. Deste modo, a análise destes fenômenos, cujas possibilidades de previsão são limitadas, deve fundamentar-se, como já foi adiantado, dominantemente em estimativas probabilísticas, em um ambiente de profunda incerteza; e ii) no seio da aparente onipresença do caos, contudo, existem sistemas abrangentes, porém dotados de ordem interna, isto é, baseados em leis determinísticas, que geram padrões discerníveis. No entanto, impulsionados por suas próprias leis (ou sofrendo a influência de outros sistemas ou fenômenos externos51), todo e qualquer sistema tende a desagregar-se, isto é, a entrar na “fase de bifurcação”: as oscilações tornam-se mais abruptas e progressivamente aleatórias. Quando se atinge este ponto, as leis que ordenavam o sistema não são mais capazes de fazê-lo. A partir daí, um ou vários novos sistemas podem surgir. Mas enquanto um novo conjunto de leis internas não for consolidado, a trajetória do sistema é intrinsecamente imprevisível (BIRKEN, 1999; humanidade como algo de mecânico, mas antes o conceber a natureza como algo de ativo e criativo” (C.G.R.C.S., 1996, p. 91-2). Uma posição deísta, plenamente compatível com a moda de alguns adeptos da Hard Science aceitarem a tese do “design inteligente”. 51 E essa é sempre a dificuldade: definir o que é interno e o que é externo, a natureza das determinações ou influências internas. Tudo depende de como se delimitam as fronteiras. 66 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS - MUNDO EKELAND, 1998; PRIGOGINE, 1996). Wallerstein se aproximou deste tipo de reflexão para tentar reforçar seu argumento mais polêmico: a tese de que vivemos, desde 1968, uma crise fundamental do capitalismo, que provavelmente irá gerar um novo sistema. Estamos, portanto, vivendo a fase de bifurcação do “capitalismo histórico”.52 Não é necessário, contudo, aproximar-se da teoria da complexidade para salientar este aspecto. De fato, os períodos de crise são paradoxais: por conta da deterioração das coações estruturais, a liberdade dos atores sociais aumenta. Mas este acréscimo da liberdade intensifica a imprevisibilidade, logo, como lidar com essa liberdade ampliada torna-se a questão política decisiva. E, neste aspecto, sem capitular a modismos transpostos das ciências naturais, a perspectiva do sistema-mundo pode contribuir significativamente para a construção de uma sociedade melhor. Em primeiro lugar, por sua ênfase no imbricamento entre a Ciência, a Moral e a Política (WALLERSTEIN, 1998, p. 1-33), ela possibilita um diagnóstico bastante preciso das contradições fundamentais da sociedade em que vivemos, que se traduz na necessidade de reformular radicalmente os padrões científicos e, sobretudo, a prática política contemporânea. A restauração conservadora, cujas raízes remontam à década de 1970, tentou responder a estas contradições pela truculência política e pela exasperação dos direitos de propriedade dos plutocratas, que desencadearam forças de fragmentação difíceis de serem contidas, e que 52 “Pode-se descrever uma crise sistêmica como a situação em que o sistema chegou a um ponto de bifurcação, ou ao primeiro de sucessivos pontos de bifurcação. Ao se afastarem de seus pontos de equilíbrio, os sistemas chegam a essas bifurcações, onde múltiplas soluções para a instabilidade, por oposição a uma única, se tornam possíveis. Nesses pontos, o sistema vê-se diante de uma escolha entre possibilidades. A escolha depende tanto da história do sistema como da força imediata de elementos externos à sua lógica interna. Esses elementos externos, chamados “ruídos”, são ignorados quando os sistemas estão funcionando normalmente. Em situações distantes do ponto de equilíbrio, porém, os efeitos das variações aleatórias provocadas pelos “ruídos” são ampliados, justamente por causa do aumento do desequilíbrio. Agindo caoticamente, o sistema se reconstruirá radicalmente, de maneiras imprevisíveis, mas que conduzem a novas formas de ordem. Nestas condições, pode haver (e normalmente há) não só uma, mas uma cascata de bifurcações, até que um novo sistema, isto é, uma nova estrutura dotada de relativo equilíbrio de longo prazo, se estabeleça e mais uma vez entremos em uma situação de estabilidade determinística. O novo sistema emergente é diferente do velho e, provavelmente, mais complexo.” (WALLERSTEIN, 1995, p. 135-6). 67 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO presidem as diversas manifestações da crise atual. Crise que, se permanecermos nos moldes usuais da ciência social vigente (especialmente em sua versão mais empobrecedora, o “debate” entre ortodoxia e heterodoxia), sequer pode ser compreendida. Mas, como tentei sugerir aqui, a crítica deve ser reflexiva, isto é, incidir também sobre as premissas teóricas, no caso, sobre a própria perspectiva do sistema-mundo. Neste sentido, uma (re)aproximação maior com o materialismo histórico é fundamental. As provocações gratuitas e a forma jocosa como Wallerstein retrata o marxismo podiam fazer algum sentido na década de 1970 e 80,53 quando o marxismo, além de perder a liga com os movimentos sociais, se encastelou na Universidade e, desse modo, fragmentou-se em diversas especialidades isoladas (geografia marxista, sociologia marxista, economia marxista etc.). Contudo, a despeito deste descaminho, o ímpeto básico por detrás da perspectiva do sistema-mundo é muito similar ao marxismo: uma crítica radical da ordem vigente, baseada na fusão entre a reflexão teórica e os movimentos sociais, mediante uma tentativa de fusão entre a História e as Ciências Sociais. Por conta disto, muito antes da perspectiva do sistema-mundo, o marxismo se propôs como um esforço de criar um saber unitário, apto a superar a antinomia nomotético-ideográfica e, desse modo, superar o conhecimento “generalizante-setorializante” engendrado pelas Ciências Sociais. A posição do marxismo neste debate sempre foi sui generis: 53 Parte das provocações não são realmente provocações. Refletindo sobre os movimentos antissistêmicos pós 1968, Wallerstein fez uma declaração que, aos desavisados pode parecer surpreendente: “O marxismo é completamente diferente [da terceira geração da escola dos Annales]. Ele foi concebido como uma ideologia, não de conjuntura, mas de estrutura. Ele se atribuiu a pretensão de ser a ideologia de todas as forças anti-sistêmicas do mundo da economia capitalista e de ser a ideologia da transição mundial do capitalismo para o socialismo. Sua causa parece bem defendida. À medida que se desenvolverem as forças políticas antisistêmicas, o marxismo se expandirá, enquanto ideologia. Um dia talvez descubramos que o marxismo subitamente tornou-se o Weltanschauung universal do capitalismo defunto e do sistema que o sucederá, exatamente como o cristianismo foi o Weltanschauung do falecido Império Romano e do período que o sucedeu a partir da proclamação de Constantino.” (WALLERSTEIN, 1989, p. 28). Esta declaração, que despertou a fúria dos marxistas mais cientificistas, capta os atributos essenciais do materialismo histórico, isto é, um movimento de contestação simultaneamente teórico e prático, criado pelas contradições do capitalismo, e que tem como inspiração básica e razão de ser a sua superação. Logo, por mais que os liberais e reacionários tentem enterrar o materialismo histórico, jamais conseguirão: somente o fim do capitalismo poderá realizar esta tarefa. 68 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS - MUNDO Para tanto, importa sondar ainda mais a fundo o processo de formação das ciências sociais: elas se constituem, recortando esferas da existência, e desprendendo-se da filosofia e da história, em momentos da nossa História ocidental nos quais demandas exigem a explicação de determinados fenômenos, inseridos naquelas esferas existenciais. Se essa constatação pode considerar-se consensual em história das ciências, nem sempre se atenta, ao nosso ver, para o pressuposto inexoravelmente implicado na asserção: qual seja, o processo (de formação das ciências sociais) envolve o reconhecimento da impossibilidade de conceitualização simultânea de todas as esferas da existência. Ora, atuando no centro do processo – in the heart of the matter – Marx parte axiomaticamente do pressuposto contrário: todo seu imenso esforço visa conceituar todas as esferas da existência, para elaborar uma teoria da História. (NOVAIS; FORASTIERI, p. 46-7). Por teoria da história devemos entender uma compreensão básica de sua dinâmica, e não a preocupação prévia de, diante da realidade social, tentar decantar uma filosofia da História unilinear que, congruente com a noção de progresso, supostamente irá conduzir a Humanidade a um telos predeterminado.54 Para concluir, é necessário esclarecer melhor este ponto. É precisamente neste sentido que o materialismo histórico é original: ele se apresenta como uma teoria da história. Uma teoria essencialmente indeterminista, já que o dinamismo vem da luta de classes. Mas tal luta é travada dentro de estruturas históricas, que se desgastam na exata medida em que as polarizações sociais vão sendo transformadas.55 No entanto, estas estruturas possuem 54 Nestes termos, a questão sempre foi referente ao telos (e ao sujeito histórico mais apropriado para a sua concretização): a razão, a abundância material, a democracia ou, nos termos da Guerra Fria, saber qual era efetivamente o “último estágio”: o capitalismo (deturpado pelas ameaças totalitárias - primeiro o nazismo e depois o comunismo) ou o socialismo real (que não realizava suas potencialidades por conta do cerco capitalista). 55 Aqui há mais uma inovação: o conflito social é a força transformadora por excelência. Sempre que uma classe dominante afirma seus valores, sua visão de mundo e cristaliza seus mecanismos de dominação, ela acaba por gerar, como fruto do seu próprio movimento, a possibilidade das classes subalternas também definirem uma visão de mundo própria. Portanto, ainda permanece decisiva a distinção entre “classe em si” e “classe para si”, estabelecida por Georg Lukács e sutilmente incorporada por Wallerstein. 69 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO uma certa duração: a expressão disto é, exatamente, o modo de produção (da vida), que reúne as condições legadas pelas civilizações passadas (decompostas pela luta de classes), as quais se materializam em novas configurações sociais: estruturas familiares, costumes, normas, técnica etc. Estes elementos se articulam dinamicamente às condições geográficas (o homem é, em parte, moldado pela natureza que o cerca, mas também é capaz de transformá-la. É exatamente esta capacidade que o diferencia dos demais animais).56 De forma sintética: um modo de produção incide sobre a plenitude da vida social, mas, ao mesmo tempo, é redutível a um nexo dominante. Descobrir este nexo é a tarefa fundamental: ele se revela, essencialmente, no modo como as diversas esferas da existência se combinam. E é exatamente neste ponto que surge a compatibilidade entre o Materialismo Histórico e a Perspectiva do Sistema-Mundo. O fato é que a concepção ampliada de Modo de Produção jamais desapareceu do marxismo. No máximo, podemos dizer que ela foi eclipsada pela conversão do marxismo às estruturas burocráticas da Universidade Moderna.57 O problema é que as mesmas forças que neutralizaram o 56 O modo como Wallerstein reconstrói a crise do feudalismo – i.é., mostrando como todas as esferas da existência se transformam - e como esta crise gesta as estruturas do capitalismo durante o longo século XVI é compatível com esta concepção ampliada de Modo de Produção (cf. WALLERSTEIN, 1974, cap. 1). Um trecho sintético ilustra isto: “A economia da Europa feudal passava nesse período [séculos XIV e XV] por uma crise interna profunda, que sacudia seus alicerces sociais. As classes dominantes destruíam umas às outras, em grande escala. O sistema da propriedade da terra, base da estrutura econômica, se desfazia, e a reorganização em curso apontava para uma distribuição muito mais igualitária. Os pequenos camponeses demonstravam grande eficiência como produtores. As estruturas políticas ficavam em geral mais fracas, e a preocupação com a luta fratricida entre os politicamente poderosos deixava pouco tempo para reprimir a força crescente das massas populares. O cimento ideológico do catolicismo estava sob grande pressão; movimentos igualitários nasciam no seio da própria Igreja. As coisas estavam de fato desmoronando” (WALLERSTEIN, 1995, p. 39). 57 Esta conversão teve duas raízes. A mais evidente é a tentativa de reduzir o marxismo a uma “teoria econômica” ou, alternativamente, reforçar o caráter “infraestrutural” da Economia. A segunda, em uma aparente reação à primeira, levou os marxistas de gabinete – um produto da expansão do sistema universitário na era de Bretton Woods – a se refugiarem no plano da cultura (com uma ênfase inicial – e muito frutífera - na crítica literária britânica, mas que, infelizmente, logo desandou em vulgatas), usando táticas de guerrilha – crescentemente pernósticas - contra o arrivismo das classes médias “aburguesadas”, que, em sua maioria, esses mesmos intelectuais fazem parte. Foi exatamente a combinação destas duas tendências que gerou a crítica de Wallerstein ao “marxismo”. 70 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS - MUNDO potencial antissistêmico do marxismo estão atuando sobre a perspectiva do sistema-mundo. Logo, se não sucumbir ao formalismo excêntrico da teoria da complexidade, ou a qualquer outro modismo “sistêmico”, esta perspectiva pode estabelecer uma relação simbiótica com o Materialismo Histórico e todas as formas genuinamente progressistas do pensamento, recolocando deste modo a História – e a luta social - no centro do debate sobre o futuro de nossa sociedade. Referências ABU-LUGHOD, Janet. Before European Hegemony: the world system A. D. 1250-1350. Oxford: Oxford U. Press, 1989. AMIN, Samir “The Ancient World-Systems versus the Modern Capitalist World-System”. Review XIV, n.3, 1991. ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim. São Paulo: Boitempo, 2008. ________ “Capitalism and the Modern World-System: rethinking the nondebates of the 1970’s”. Review XXI, n. 1, 1998. ________ O Longo Século XX: Dinheiro, poder e as origens do nosso tempo. Trad. port. São Paulo: Unesp, 1996. BAKUNIN, Mikhail. Escritos contra Marx. São Paulo: Imaginário, 2001. 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No final dos anos 90, com um extenso crescimento econômico nos Estados Unidos e sem sérios desafiantes ao seu poder militar 58 Beverly Silver é Doutora em Sociologia pela State University of New York - Binghamton e Professora do Departamento de Sociologia da Johns Hopkins University. Giovanni Arrighi (1937-2009) é Doutor em Economia pela Universidade Bocconi (Itália) e Professor do Departamento de Sociologia da Johns Hopkins University. 77 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO global, tornou-se comum ouvir previsões sobre um iminente “Segundo Século Americano”. Tais previsões alcançaram um ponto alto após a crise financeira do Leste Asiático, de 1997. Porém, a mesa virou. Primeiro, com a explosão da bolha do mercado de ações da Nova Economia nos Estados Unidos, em 2000 e 2001, seguida pela derrocada no Iraque e o fracasso do projeto da administração Bush para um Novo Século Americano. Com a crise financeira instalada nos Estados Unidos, em 2008, e o rápido crescimento da China, as discussões sobre o Segundo Século Americano se desvaneceram. Em lugar disso, especulações sobre um iminente Século Chinês iniciaram. Ao mesmo tempo, a especulação sobre a extinção do domínio global americano alcançou níveis que não eram vistos desde a década dos anos 70, quando a derrota dos Estados Unidos no Vietnã, os choques do petróleo e a estagflação econômica produziram uma percepção de crise profunda. Como podemos dar sentido a essa frenética alteração de percepções sobre a era da história do mundo em que estamos entrando? Neste capítulo, argumentamos que uma comparação com períodos passados que são amplamente análogos ao presente pode ajudar a explicar a mudança de percepções e a dissipar o nevoeiro global que ainda nos rodeia59. Mas, com que período poderíamos comparar o presente? Tornou-se relativamente comum indicar semelhanças entre o início e o final do século vinte. Em ambos os períodos, o capital financeiro chegou a uma posição dominante na economia global em relação ao capital investido na produção. Nos dois períodos, além do mais, a financeirização das atividades econômicas mostrou-se desestabilizadora, culminando em grandes crises, especialmente em 1929 e 2008. Esses dois períodos de financeirização são certamente análogos. Porém, a ascensão das finanças a um papel dominante no capitalismo mundial não aconteceu somente nos finais dos séculos dezenove e vinte. Como o historiador francês Fernand Braudel já havia mencionado, a financeirização do 59 Neste capítulo apresentamos um resumo de alguns dos mais importantes resultados de nossas pesquisas prévias. Aqui preferimos omitir desde citações extensas até a riqueza do material teórico e histórico em que foram construídas nossas análises anteriores. Para uma versão completa dos argumentos apresentados neste capítulo (incluindo referências bibliográficas extensas) ver Arrighi (1996; 2008); Arrighi; Silver (2001a; 2001b); Silver; Arrighi (2003); Silver (2005). 78 O FIM DO LONGO SÉCULO XX capital tem sido uma característica recorrente do capitalismo histórico desde sua origem. Ao escrever na década de 1970 (isto é, antes do início da última fase de financeirização), Braudel identificou três períodos de expansão financeira sistêmica: em meados do século dezesseis (centrada nas cidadesestado italianas), em meados do século dezoito (centrada na Holanda) e no final do século dezenove (centrada no Reino Unido) (BRAUDEL, 1997). Neste capítulo, tomamos esses três casos de expansão financeira como as comparações históricas apropriadas para compreender o atual (quarto) período de expansão financeira sistêmica. Como hoje, cada um desses períodos passados de financeirização foi precedido por um longo período de expansão material da economia global, ou seja, um período em que o capital fluiu predominantemente para o comércio e a produção, em vez de para a especulação e a intermediação financeira. Gênova, Holanda, Reino Unido e os Estados Unidos alcançaram sucessivamente a preeminência global assumindo a liderança numa grande expansão material da economia global (como foi o caso, por exemplo, da época dourada do fordismo e keynesianismo liderada pelos Estados Unidos nas décadas de 1950 e 60). Em certo ponto, essas expansões materiais alcançaram seus limites (por motivos que serão discutidos mais tarde) e, quando isso aconteceu, o poder dominante da época conduziu uma transferência do investimento em comércio e produção para a intermediação e a especulação financeira em todo o sistema. Uma fase de expansão material seguida por uma fase de expansão financeira constitui o que nós chamamos de século longo ou ciclo sistêmico de acumulação (CSA). Podemos identificar quatro séculos longos ou CSAs parcialmente superpostos: (1) um ciclo genovês-ibérico, que vai desde o século quinze até o início do século dezessete; (2) um ciclo holandês, que se estende desde finais do século dezesseis até finais do século dezoito; (3) um ciclo britânico, que vai desde a metade do século dezoito até o início do século vinte; e (4) um ciclo norte-americano, que vai desde finais do século dezenove até o presente. Cada ciclo é denominado de acordo com o (e definido pelo) complexo particular de agentes econômicos e governamentais que conduziram o sistema capitalista mundial na direção de expansões materiais e financeiras que juntas constituem o século longo. 79 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Nos três casos discutidos por Braudel, as expansões financeiras levaram a um dramático ressurgimento do poder e da prosperidade do país capitalista líder naquele momento (ex. uma segunda época dourada para os holandeses; a Belle Époque Vitoriana dos britânicos). Contudo, em cada um dos casos, o ressurgimento da prosperidade e poder mundial foram de curta duração. Para Braudel, as sucessivas mudanças de capitalistas genoveses, holandeses e britânicos para longe do comércio e da indústria, e em direção às finanças, significaram para cada um deles que a expansão material tinha chegado à sua “maturidade”, era um “sinal de outono”. A financeirização mostrou-se como prelúdio de uma crise terminal da hegemonia mundial e o surgimento de um novo centro geográfico de poder militar e econômico mundial. Será que o mesmo padrão está se repetindo atualmente? Estamos experimentando o “outono” da hegemonia mundial americana? Neste capítulo, argumentamos que a crise financeira de 2008 é um dos últimos indicadores de que isso está realmente acontecendo. Da mesma maneira que seus antecessores genoveses, holandeses e britânicos, o capital americano mudou de forma crescente para o setor financeiro e para longe do comércio e da produção, na medida em que a maior expansão material em escala mundial, criada pelo fordismo-keynesianismo, alcançou seu limite na década dos anos oitenta. Ao mudar o foco para a área financeira, os Estados Unidos foram bem-sucedidos em atrair capitais de todas as partes do mundo, financiando, assim, uma enorme expansão do mercado de ações e de suas forças armadas. A União Soviética colapsou perante tamanha pressão, enquanto os Estados Unidos experimentaram sua própria belle époque nos anos de Reagan-Clinton. Ao final dos anos noventa, a crise dos anos setenta parecia ser parte de uma memória distante e as previsões de um Segundo Século Americano se tornaram comuns. Contudo, da perspectiva deste capítulo, aqueles que previram um iminente Segundo Século Americano estavam confundindo esse “outono” da hegemonia mundial americana com uma “nova primavera”. Em outras palavras, estamos testemunhando o final do longo século vinte, um século longo que foi desde a expansão financeira do final do século dezenove até a expansão financeira atual. Um século longo que é coextensivo ao surgimento, 80 O FIM DO LONGO SÉCULO XX florescimento pleno e declínio da era da história capitalista mundial centrada nos Estados Unidos. Este capítulo também aborda a questão de se o “outono” do poder militar e econômico mundial americano pode ser visto (em retrospectiva) como a “primavera” de um novo poder militar e econômico mundial, como já tinha acontecido nas três expansões financeiras prévias. No restante deste capítulo, comparamos o período presente de financeirização com os períodos prévios, e comparamos o longo século vinte com séculos longos anteriores. Fazemos isto em três etapas principais. Na seção seguinte, identificamos as semelhanças entre os três períodos prévios de financeirização, indicando os padrões de recorrência ao longo do tempo. Na seção posterior, enfocamos os padrões de evolução. Isso porque os séculos longos não devem ser entendidos como fenômenos primariamente recorrentes (cíclicos). Em lugar disso, as expansões financeiras que marcaram o início e o fim de cada século longo foram períodos de reorganização fundamental do sistema mundial. Mostramos de que forma essas reorganizações sucessivas produziram um padrão evolucionário em que o complexo empresarial-governamental dominante aumentou através do tempo em tamanho, poder e complexidade, incluindo a complexidade social. Os padrões de recorrência e evolução resumidos nas duas seções a seguir ajudam a estreitar o leque de futuros alternativos possíveis que se abrem para nós neste momento. Porém, como afirmamos na última seção do capítulo, existem boas razões para pensar que não podemos simplesmente projetar o futuro a partir dos padrões de recorrência e evolução do passado. A última parte do capítulo identifica anomalias significativas que poderiam fazer com que resultados futuros se desviem dos padrões passados, e conclui com uma discussão sobre “futuros possíveis”. Recorrência Um tema repetido no segundo e terceiro volumes da trilogia “Civilização Material, Economia e Capitalismo” de Fernand Braudel, a qual nos leva em um extenso passeio desde o século quinze até o século dezoito, é que o ressurgimento periódico das finanças tem sido uma característica do capitalismo 81 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO histórico desde seus primórdios. “O capital financeiro”, escreveu Braudel, “não era criança recém-nascida nos anos 1900”. Em lugar disso, ele menciona que houve pelo menos duas ondas anteriores de expansão financeira. Foram períodos em que “o capital financeiro estava [...] em posição de assumir o controle e dominar, pelo menos por um tempo, todas as atividades no mundo dos negócios”. A primeira onda de financeirização começou por volta de 1560, quando os principais grupos da diáspora de negócios genovesa se retiraram gradualmente do comércio para especializar-se nas finanças; a segunda onda começou por volta de 1740, quando os holandeses começaram a retirar-se do comércio para tornarem-se “os banqueiros da Europa” (BRAUDEL, 1997, v. 3, p. 157; 164; 242-3; 246; 604). Vistas desta perspectiva, as expansões financeiras que começaram nos finais dos séculos dezenove e vinte são a terceira e quarta onda de um processo sistêmico-mundial recorrente. Durante e depois da Grande Depressão de 1873-1896, quando ficou claro que “a viagem fantástica da revolução industrial” tinha criado uma superabundância de capital monetário que não poderia ser totalmente reinvestido com lucro nas atividades industriais, os ingleses se retiraram cada vez mais da indústria para se especializar nas finanças. Na época em que Braudel estava escrevendo sua trilogia, a quarta (que é a atual) onda de financeirização ainda não havia começado, mas hoje, podemos reconhecer a repetição do mesmo fenômeno: isto é, quando nas últimas décadas do século vinte ficou claro que a era dourada do fordismokeynesianismo tinha criado uma superabundância de capital em dinheiro que não poderia ser totalmente reinvestido com lucro nas atividades industriais, o capital americano mudou o foco da produção industrial para as finanças. Em meados da década de noventa, a parte do total dos lucros corporativos dos Estados Unidos que, em escala mundial, correspondia a finanças, seguros e bens imóveis (FIRE, em inglês) havia superado a parte correspondente aos lucros da indústria (KRIPNER, 2005, p. 173-208). É útil reformular as ideias de Braudel sobre o ressurgimento periódico do capital financeiro à luz da fórmula geral do capital de Karl Marx (1959), que com frequência é entendida como descrevendo a lógica das decisões de 82 O FIM DO LONGO SÉCULO XX investimento por parte dos capitalistas individuais60. Os capitalistas transformam seu dinheiro em bens (ex.: máquinas, trabalho) com a expectativa de obter uma quantidade maior de capital em dinheiro em algum ponto futuro no tempo. Eles não participam da produção como um fim em si mesmo. Se os capitalistas não acreditam que seus capitais em dinheiro aumentarão ao investir na produção ou se esta expectativa não se realiza sistematicamente, então, eles tenderão a sair da produção e mudar para formas mais flexíveis (líquidas) de investimento. Porém, a formulação de Marx também pode ser entendida como a descrição de uma lógica sistêmica. Existem fases em que a tendência dominante entre os capitalistas é investir seu capital monetário em produção e comércio, conduzindo, assim, às diferentes fases de expansão material global. Contudo, o próprio sucesso de qualquer expansão material acaba levando a uma superacumulação de capital. Isto reduz a taxa de retorno das atividades que previamente tinham alimentado a expansão material. O aperto nos lucros resulta em uma mudança: a tendência dominante entre os capitalistas passa a ser a conservação de uma parte cada vez maior de seus capitais na forma líquida, criando as “condições de oferta” para expansões financeiras do sistema como um todo. Portanto, as expansões financeiras são sintomáticas de uma situação em que o investimento na expansão do comércio e produção já não serve ao propósito de aumentar o fluxo de caixa da classe capitalista de forma tão efetiva como as transações puramente financeiras. Como já mencionado, as expansões financeiras passadas restauraram temporariamente o poder e as fortunas dos estados capitalistas líderes de cada época (o que foi visto mais recentemente na belle époque da era ReaganClinton). Como isto aconteceu? Em termos muito amplos, a desaceleração da expansão material associada com o início da expansão financeira provocou um aperto nas posições fiscais dos estados, que por sua vez começaram 60 A fórmula geral do capital de Marx é MCM’, onde M é capital em dinheiro investido em C (mercadorias, incluindo trabalho, maquinaria e matéria-prima), e M’ é capital em dinheiro acumulado pelo capitalista depois que os bens produzidos são vendidos. Se M’ for maior do que M, então o capitalista teve lucro. Se M’ for consistentemente menor do que M, então não haverá lucro, nem incentivo para que os capitalistas invistam na produção, seja como indivíduos ou como classe (MARX, 1959). 83 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO a competir mais intensamente pelo capital circulante que se acumulava nos mercados financeiros, alimentando o “lado da demanda” da equação da expansão financeira. O poder hegemônico mundial dos diferentes momentos (holandeses, britânicos e americanos), devido à sua contínua centralidade nas redes das altas finanças, está mais bem posicionado para transformar a intensificação da concorrência pelo capital circulante em vantagem para si e para ter acesso privilegiado à liquidez superabundante que se acumula nos mercados financeiros mundiais. Isto ficou claro nos anos oitenta e noventa, quando os Estados Unidos foram bem-sucedidos em atrair capital circulante do mundo inteiro, alimentando um longo boom no país e provocando severas crises de endividamento em outros lugares do mundo. A primeira grande crise de dívida aconteceu na América Latina no início da década de oitenta, produzindo o que as Nações Unidas apelidaram de “a década perdida do desenvolvimento”. Seguiram depois as crises do Leste Europeu e do Leste Asiático. No passado, uma nova expansão material do sistema aconteceu apenas quando havia um poder hegemônico capaz de criar as precondições institucionais globais necessárias (financeiras, geopolíticas e sociais). Quando isto aconteceu, como nas décadas de cinquenta e sessenta, em que as instituições globais patrocinadas pelos Estados Unidos ofereciam certo grau de segurança e previsibilidade, os capitalistas rotineiramente aplicavam seus lucros de volta para continuar expandindo o comércio e a produção. Porém, tais condições institucionais globais não são criadas rápida ou facilmente. No passado, as potências em declínio perdiam suas habilidades para manter as condições institucionais globais necessárias antes que as potências ascendentes tivessem capacidade ou inclinação para assumir a função de líder. Assim, os períodos de transição de um século longo para outro foram, historicamente, períodos de crises econômicas e guerras generalizadas. Este foi claramente o caso da primeira metade do século vinte com a transição da hegemonia britânica para a hegemonia americana. Podemos ver sinais de um dilema semelhante sendo enfrentado pelo mundo hoje. É muito interessante que Marx, em sua discussão sobre acumulação primitiva, registrou um padrão histórico em que as expansões do sistema financeiro recorrentemente desempenhavam o papel central de transferir o 84 O FIM DO LONGO SÉCULO XX capital excedente dos centros geográficos em declínio para os centros do comércio e produção capitalista em ascensão. Marx observou uma sequência que começou em Veneza, que “na sua decadência” emprestou grandes quantidades de dinheiro para a Holanda, então, a Holanda emprestou “enormes quantidades de dinheiro, especialmente para sua grande rival Inglaterra” quando a primeira “deixou de ser a nação preponderante no comércio e na indústria” (MARX, 1959, p. 775-6). Finalmente, a Inglaterra estava fazendo o mesmo vis-à-vis os Estados Unidos nos dias de Marx. Portanto, as expansões do sistema de crédito tiveram uma importância crucial no recomeço da acumulação de capital em um novo centro geográfico seguidamente ao longo da existência do capitalismo histórico ou, para usar a nossa terminologia, as expansões financeiras tiveram uma importância crucial no surgimento de cada novo ciclo sistêmico de acumulação. Dito ainda de outra forma, as expansões financeiras foram historicamente períodos de transição hegemônica e no decurso delas uma nova liderança emergiu intersticialmente, e, ao longo do tempo, reorganizou o sistema, estabelecendo o cenário para uma nova expansão material em escala mundial. As expansões financeiras não têm sido somente o “outono” da hegemonia existente, elas também têm marcado a “primavera” de uma nova grande fase do desenvolvimento capitalista sob uma nova liderança61. Em outras palavras, foi o início de um novo século longo com um centro geográfico diferente. Mas devido ao fato de que este processo não foi nem simples nem tranquilo, as expansões financeiras culminaram em períodos bastante longos de caos sistêmico generalizado. Evolução Na seção anterior enfocamos as semelhanças entre os séculos longos. Se fôssemos tirar conclusões baseadas somente nos padrões da recorrência, então, poderíamos concluir que agora estamos no “final do outono” em 61 Podemos imaginar este processo como um conjunto de curvas-S sobrepostas. A sobreposição indica o fato de que um novo ciclo sistêmico de acumulação emerge ao mesmo tempo em que o regime dominante está chegando a seus limites. 85 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO relação à hegemonia mundial estadunidense e no “início da primavera” de um século longo com centro geográfico diferente (talvez no Leste Asiático). Além disso, poderíamos estar preocupados com a possibilidade de estarmos entrando (ou já termos entrado) em um período mais ou menos longo de caos sistêmico e de sofrimento humano contínuo e generalizado. Não obstante, precisamente porque o sistema global evoluiu através do tempo, estamos limitados em relação ao que podemos concluir sobre o presente ou futuro próximo se enfocarmos somente os padrões de recorrência. Nesta seção, enfocamos o padrão de evolução. A figura 1 resume um padrão histórico de evolução que pode ser visto através do enfoque nas características cambiantes dos containers de poder que abrigaram as sedes das agências capitalistas líderes (isto é, o complexo capital-Estado dominante) dos quatro sucessivos séculos longos: a República de Gênova, a República Holandesa, o Reino Unido e os Estados Unidos62. Um aspecto chave do padrão evolucionário mostrado na figura 1 é a tendência no aumento do tamanho, poder e complexidade do complexo capitalEstado dominante de um século longo para outro. Na época da expansão material centrada em Gênova, a mencionada república era uma cidade-Estado. Era pequena em tamanho, simples em organização, com uma profunda divisão social, muito indefesa militarmente e, conforme a maioria dos critérios, um estado fraco comparado com as demais grandes potências da época. A riqueza de Gênova fez dela um alvo tentador para a conquista, porém, devido à falta de um poder militar significativo, os genoveses dependiam da proteção dos monarcas ibéricos, dos quais eles “compravam” proteção. Em contraste, a República Holandesa era uma organização muito maior e mais complexa do que a República de Gênova. Na época da expansão material centrada na Holanda, ela tinha poder suficiente para ganhar a independência da Espanha imperial, para criar um império altamente lucrativo de postos comerciais no exterior e para manter sob controle as ameaças militares da Inglaterra e da França. Por isso, 62 Para uma análise histórica detalhada dos padrões evolucionários resumidos nesta seção, ver Arrighi (1996); Arrighi; Silver (2001a). 86 O FIM DO LONGO SÉCULO XX diferentemente dos genoveses, os holandeses não tinham que comprar proteção de outros estados, eles “produziam” sua própria proteção. Em outras palavras, os holandeses “internalizaram” os custos de proteção que os genoveses tinham externalizado, como é mostrado na figura 1. Organização governamental líder Tipo de regime/ciclo Extensivo Custos internalizados Produção Transação Reprodução Intensivo Proteção NorteAmericano Sim Sim Sim Não Sim Sim Não Não Sim Não Não Não Não Não Não Não Estado-Mundo Britânico Estado-Nação Holandês Genovês Cidade-Estado Figura 1: Padrões evolucionários do capitalismo mundial Na época da expansão material centrada na Grã-Bretanha, o Reino Unido era um estado nacional plenamente desenvolvido, com um império territorial e comercial de abrangência mundial que deu para sua classe capitalista e grupos dominantes um comando sem precedentes sobre os recursos naturais e humanos do mundo. Como os holandeses, a classe capitalista inglesa não precisava de ajuda das potências estrangeiras para proteger-se (isto é, ambos haviam internalizado seus custos de proteção). Contudo, como “oficina do mundo”, a Grã-Bretanha não precisava de outros para obter as manufaturas sobre as quais se assentava a lucratividade de suas atividades comerciais. Os Ingleses foram além dos holandeses ao internalizarem os custos de produção. Finalmente, os Estados Unidos eram um complexo militar-industrial continental com poder para garantir proteção efetiva para si mesmo e seus aliados, assim como fazer sérias ameaças de estrangulação econômica ou 87 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO aniquilação militar contra seus inimigos. Esse poder, combinado com o tamanho, a insularidade e a riqueza natural do país, permitiu que sua classe capitalista internalizasse os custos de proteção e produção, como já tinha sido feito pela classe capitalista britânica. Porém, eles foram pioneiros na formação das corporações multinacionais integradas verticalmente; a classe capitalista americana também foi capaz de internalizar os “custos de transação”, ou seja, internalizar os mercados dos quais dependia a autoexpansão de seu capital. Se fôssemos tirar conclusões baseadas nos padrões da evolução discutidos até agora, então, poderíamos predizer que a organização capital-Estado que lideraria qualquer ciclo sistêmico de acumulação futuro seria necessariamente de tamanho e complexidade maiores do que os dos Estados Unidos. Não é plausível que qualquer dado país consiga preencher esses requisitos. Por exemplo, a China é muito maior, mas também muito mais pobre do que os Estados Unidos, apesar de décadas de rápido crescimento econômico. Assim, a evolução futura delineada na figura 1 é um movimento em direção a algum tipo de “Estado-mundo”. Contudo, a clara tendência linear em relação a maior tamanho e complexidade é parcialmente moderada por outro padrão histórico, que está resumido na figura 1 como um tipo de pêndulo que vai e volta entre regimes de acumulação “intensivos” e “extensivos”. As companhias comerciais Holandesas, tal como a Companhia das Índias Orientais (VOC), eram organizações formalmente mais complexas que as redes familiares de negócios da diáspora capitalista genovesa. Porém, as empresas familiares nas quais floresceu a indústria têxtil britânica eram formalmente menos complexas do que as companhias comerciais holandesas. Além do mais, o sucesso do capital britânico em escala mundial dependeu da recriação, em formas novas e mais complexas, da combinação de estratégias e estruturas do capitalismo cosmopolita genovês e do territorialismo global ibérico. Do mesmo modo, as corporações multinacionais estadunidenses eram formalmente mais complexas que as empresas familiares britânicas, embora o sucesso do capital estadunidense em escala mundial tenha dependido da recriação em formas novas e mais complexas das estratégias e estruturas do capitalismo corporativo holandês. Quais são as implicações para o presente desse movimento pendular entre regimes “extensivos” (cosmopolita-imperiais) e regimes “intensivos” 88 O FIM DO LONGO SÉCULO XX (corporativo-nacionais) sobrepostos a uma tendência linear de complexidade crescente? Se o padrão fosse mantido no futuro, então, poderíamos esperar que as estratégias e estruturas do complexo capital-Estado líder do próximo século longo serão “extensivas” em comparação com o regime norte-americano “intensivo”. Contudo, elas terão uma maior complexidade formal do que as que predominaram na expansão material sistêmica centrada na Inglaterra no século dezenove. Por enquanto, somente vamos mencionar que os sistemas de subcontratação em múltiplos níveis e outras formas flexíveis de produção associadas ao pós-fordismo (as quais foram, não por acaso, amplamente originadas no Leste Asiático) podem ser vistos como sinais de um movimento pendular na direção “extensiva”63. Apesar desse movimento pendular, ainda é clara a tendência linear de complexidade crescente. Os problemas com a projeção desta tendência linear para o futuro aparecem mais claramente quando levamos em conta a atual divisão no controle dos recursos financeiros e militares globais, sendo que o primeiro está concentrado no Leste Asiático e o último está concentrado nos Estados Unidos. Esta divisão é um fenômeno sem precedentes e cujas implicações discutiremos na próxima seção. Anomalias Uma importante anomalia da presente transição é a bifurcação sem precedentes na localização geográfica dos poderes financeiro e militar. As corporações multinacionais estadunidenses têm investido maciçamente na China, repetindo o padrão histórico observado por Marx em que os centros em declínio transferem capital excedente para os centros em ascensão. Contudo, em uma ruptura importante com padrões do passado, o fluxo líquido do capital excedente, desde o início da expansão financeira liderada pelos Estados Unidos, tem sido do centro econômico em ascensão para o centro econômico em declínio, mais notoriamente na forma de compras maciças de bônus 63 Para saber mais sobre este ponto, ver Arrighi (1996); Arrighi; Silver (2001a, cap. 2 e conclusão). 89 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO do Tesouro Americano realizadas pelo Leste Asiático, primeiro pelo Japão e depois pela China. Da mesma forma que nas transições hegemônicas do passado, o hegemon em declínio (os Estados Unidos) se transformou de maior nação credora em maior nação devedora. Essa transformação, no caso dos Estados Unidos, aconteceu em escala e velocidade sem precedentes (ver figura 2). Ainda assim, os recursos militares de relevância global estão concentrados esmagadoramente nas mãos dos Estados Unidos. Não há sinais críveis de que os estados em ascensão econômica, incluindo a China, tenham a intenção de desafiar diretamente o poder militar dos Estados Unidos. Porém, ainda sem um desafio direto, os Estados Unidos não mais possuem os recursos financeiros necessários para dar suporte ao seu aparato militar no mundo (e agora conseguem fazer isso somente entrando numa dívida externa cada vez mais profunda). Além disso, como ficou claro no fracasso do projeto da administração Bush para um Novo Século Americano, a projeção do poder militar não tem sido particularmente efetiva em submeter o mundo à vontade dos Estados Unidos nem no combate à escalada de crises políticas e sociais no nível do sistema. Figura 2: Saldo das transações correntes no balanço de pagamentos Fonte: Baseado em dados do Fundo Monetário Internacional, World Economic Outlook Database, 2010, http://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2010/01/weodata/index.aspx) 90 O FIM DO LONGO SÉCULO XX O cenário futuro sugerido pelo padrão histórico resumido na figura 1 em relação ao aparecimento de um Estado-mundo pressupõe que o mesmo teria acesso, de certa forma, ao capital excedente global que hoje em dia se encontra localizado no Sul Global, especialmente no Leste Asiático. A recente expansão das reuniões do G7 dos países mais ricos para incluir grandes países do Sul Global (por exemplo, os encontros do G20) significa mais ou menos o reconhecimento explícito deste pré-requisito e sugere, pelo menos, um reconhecimento parcial de que o projeto de um Estado-mundo dominado pelo Norte e Ocidente do mundo (por exemplo, baseado primariamente em uma aliança entre os Estados Unidos e Europa Ocidental) já não é mais politicamente viável. Agora, o Ocidente encontra-se sem um dos dois mais importantes ingredientes de sua fortuna nos últimos 500 anos: o controle sobre o capital excedente. Esta é uma enorme anomalia em relação às transições hegemônicas prévias, sendo que todas elas aconteceram no interior do Ocidente e do Norte Globais. A ascensão da China e os cenários alternativos futuros Se um Estado-mundo dominado pelo Ocidente parece pouco provável, quais são as possibilidades da China se tornar o centro de uma nova expansão material do capitalismo em escala mundial no século XXI? Primeiro, é importante eliminar considerações irrelevantes deste debate. Após a crise financeira do Leste Asiático de 1997/1998, muitos observadores consideraram a ascensão do Leste Asiático uma miragem. Hoje, é comum ouvir previsões de uma iminente crise financeira na China, a qual revelaria que as avaliações feitas sobre a ascensão do país foram exageradas. A ocorrência de uma grande crise financeira na China é uma questão em aberto. Porém, qualquer crise que venha a acontecer seria de pouca relevância para se entender se o centro de acumulação de capital em nível mundial tem sido e continuará sendo a China. Como já mencionamos na conclusão de Caos e Governabilidade no Moderno Sistema Mundial, historicamente, as crises financeiras mais profundas foram experimentadas nos centros emergentes de 91 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO acumulação de capital em escala mundial (Londres em 1772 e Nova York em 1929), pois sua força financeira superava a sua capacidade institucional para gerenciar o crescente influxo de capital. Não teria sentido argumentar que a crise de Wall Street de 1929-31 e a Grande Depressão subsequente foram sinais de que o epicentro de acumulação de capital não estava se transferindo para os Estados Unidos na primeira metade do século vinte. Igualmente, não teria sentido aplicar o mesmo argumento para as crises financeiras do final do século vinte e início do século vinte e um no Leste Asiático. Porém, como já mencionamos, as expansões materiais sistêmicas anteriores somente deslancharam quando a potência econômica em ascensão foi capaz de se tornar hegemônica, no sentido gramsciano da palavra. Isto é, conduzir o mundo à criação de arranjos institucionais globais (financeiros, geopolíticos e sociais) capazes de prover a segurança necessária para uma expansão material ampla. Devido ao fato de que o sistema mundial evoluiu em aspectos importantes de um século longo para o seguinte, a natureza dessas instituições globais também mudou. Atualmente, da mesma forma que no passado, as barreiras para uma nova expansão material são tanto sociais como econômicas. Como já argumentamos em Caos e Governabilidade no Moderno Sistema Mundial, as sucessivas hegemonias tiveram que achar maneiras de acomodar demandas de uma gama cada vez mais ampla e profunda de movimentos sociais. Assim, o padrão evolucionário de aumento de tamanho, escopo e complexidade, descrito anteriormente, implica, também, aumento da complexidade social. A consolidação da hegemonia estadunidense após a Segunda Guerra Mundial (e o início da expansão material sistêmica) não dependeu somente da preponderância dos poderes econômico e militar do país. Dependeu também da implementação de políticas formuladas para acomodar, ao menos em parte, os movimentos de liberação nacional, socialistas e trabalhistas em massa da primeira metade do século vinte. As soluções capitaneadas pelos Estados Unidos - o contrato social de consumo em massa para os trabalhadores do Norte Global, a descolonização e promessa de desenvolvimento para o Sul Global - foram apenas soluções temporárias, já que eram insustentáveis no contexto do capitalismo histórico. Isso porque implementar totalmente essas 92 O FIM DO LONGO SÉCULO XX soluções provocaria um encolhimento dos lucros devido a seus efeitos redistributivos substanciais. De fato, a crise inicial da hegemonia estadunidense do final dos anos sessenta aos anos setenta foi em grande medida um evento político-social, desencadeado por protestos sociais ao redor do mundo, à medida que movimentos sociais do Primeiro e do Terceiro Mundos agiram para demandar o que, essencialmente, seria o cumprimento mais rápido das promessas sociais implícitas e explícitas da hegemonia estadunidense. Esta crise, que marcou o final da expansão material liderada pelos Estados Unidos, foi tanto um evento econômico quanto político-social. Mais precisamente, estes dois elementos da crise estavam entrelaçados. A expansão financeira do final do século vinte resolveu temporariamente essas crises entrelaçadas para os capitalistas e o governo dos Estados Unidos, levando o país para a belle époque dos anos noventa. A financeirização (a retirada maciça de capitais do comércio e da produção em direção à intermediação e à especulação financeiras) teve um efeito debilitante nos movimentos sociais ao redor do mundo, mais notavelmente através do mecanismo da crise da dívida no Sul Global e das demissões em massa no coração do movimento trabalhista no Norte Global. Se todos os séculos longos anteriores pressupunham uma reorganização política e social fundamental do sistema global (por exemplo: o fim do comércio de escravos no Atlântico sob a hegemonia britânica e o fim do colonialismo formal sob a hegemonia americana), o que o tipo de análise realizado neste capítulo sugere sobre o modelo de reorganizações fundamentais que seriam requeridas atualmente? Primeiro, uma nova hegemonia mundial (fosse liderada por um único estado, uma coalizão de estados ou um estado-mundo) teria que acomodar e promover uma maior igualdade entre o Norte Global e o Sul Global devido ao poder financeiro deste último. Se a tendência linear de aumento da complexidade social continuar no futuro, então, essa equiparação entre Norte e Sul aconteceria, pelo menos em parte, através da incorporação de um conjunto mais profundo e amplo de movimentos sociais da base da hierarquia social (a ampla agitação social na China, nos centros urbanos e nas áreas rurais, desde o fim da década dos noventa e os esforços do governo chinês para responder a ela, podem 93 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO ser precursores de outro movimento em direção a uma maior complexidade social em escala mundial). Porém, o que isto significaria mais concretamente? Esta pergunta nos remete a um terceiro ponto, destacado na figura 1, mas que ainda não discutimos. Todas as hegemonias mundiais anteriores foram baseadas na externalização dos custos de reprodução do trabalho e da natureza. Ou seja, a lucratividade em todas as expansões materiais passadas dependeu do tratamento da natureza como um insumo sem custo para a produção. Além disso, a lucratividade dependeu de pagar-se somente para uma pequena minoria dos trabalhadores do mundo o custo total (ou quase total) da reprodução de sua força de trabalho. Ao invés disso, uma grande parcela destes custos de reprodução foi colocada sobre as famílias e comunidades envolvidas em atividades não remuneradas (tais como a agricultura de subsistência ou o trabalho doméstico não remunerado aplicado no cuidado de crianças, doentes e idosos). A externalização dos custos de reprodução da natureza foi levada ao extremo no longo século vinte com o modelo de produção e consumo em massa associado ao American way of life, o qual é altamente intensivo em uso de recursos e em desperdício. Ademais, desenvolvimento para todos ou seja, que todos pudessem alcançar o estilo de vida dos norte-americanos - era uma promessa explícita da hegemonia dos Estados Unidos (institucionalizada, entre outras formas, através do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas). Ficou claro, pela primeira vez, que esta promessa era “falsa” durante a crise dos anos setenta, sendo os choques no preço do petróleo um indicador particularmente relevante. Mahatma Ghandi já tinha reconhecido o problema em 1928: “O imperialismo econômico de uma única e minúscula ilha-nação (Inglaterra) está hoje mantendo o mundo acorrentado. Se uma nação inteira de 300 milhões (a população da Índia naquela época) se encaminhasse para uma exploração econômica similar, devoraria o mundo como se fossem gafanhotos” (apud GUHA, 2000, p. 22). O insight de Ghandi há mais de oitenta anos atrás permanece fundamental ainda hoje: a ascensão do Ocidente foi baseada em um modelo ecologicamente insustentável, o qual foi possível somente enquanto 94 O FIM DO LONGO SÉCULO XX a grande maioria da população mundial estivesse excluída desse mesmo caminho. Devido à mudança na distribuição geográfica do poder econômico em escala mundial discutida anteriormente, não é claro como o acesso a esse estilo de consumo poderá ser limitado somente a uma pequena percentagem do total da população mundial. Porém, qualquer tentativa séria de generalizar o estilo de vida estadunidense só pode conduzir a conflitos ecológicos, políticos e sociais que mais provavelmente formarão a base para um longo período de caos sistêmico do que para uma nova expansão material. O modelo de acumulação que dirigiu a expansão material do longo século vinte não pode prover a base para uma nova expansão material no século vinte e um. Qualquer nova expansão material em escala mundial pressupõe um modelo ecológico, geopolítico e social diferente não somente daquele do longo século vinte, mas também daqueles dos séculos longos anteriores. Isto pressupõe um caminho alternativo ao uso intensivo de recursos que caracteriza o modelo ocidental de desenvolvimento capitalista: um modelo que absorva mais trabalhadores, que desperdice menos recursos, e que não esteja baseado na exclusão da vasta maioria da população mundial de seus benefícios64. Chegamos ao final do longo século vinte. Permanece em aberto a pergunta se vamos considerar razoável nos referirmos à conjuntura que finalmente aparecerá como outro “século longo” do capitalismo histórico ou se vamos perceber, em retrospectiva, que também chegamos ao final do capitalismo histórico. Enquanto isso, um longo e profundo período de caos sistêmico (análogo, mas não idêntico, ao caos sistêmico da primeira metade do século vinte) permanece como uma possibilidade histórica real. Embora o fim do longo século vinte seja inevitável, não há nada de inevitável em ele terminar catastroficamente. Evitar esta última possibilidade é a nossa urgente tarefa coletiva. 64 Para conhecer razões para pensar que a China pode ter capacidade de aproveitar o legado da era comunista e a herança da “revolução industriosa” da época imperial para formar um novo modelo híbrido, que constitua um caminho alternativo possível, ver Arrighi (2008). 95 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Referências ARRIGHI, Giovanni. O Longo Século XX: Dinheiro, Poder e as Origens do Nosso Tempo. Rio de Janeiro: Contraponto; UNESP, 1996. _______. Adam Smith em Pequim. São Paulo: Boitempo, 2008. ARRIGHI, Giovanni; SILVER, Beverly. Caos e Governabilidade no Moderno Sistema Mundial. Rio de Janeiro: Contraponto e UFRJ, 2001a. _______. “Capitalism and World (Dis)Order,” Review of International Studies, n. 27, 2001b. BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo. Séculos XV-XVIII (3 Vol.) São Paulo: Martins Fontes, 1997. _______. Forças do Trabalho: movimentos de trabalhadores e globalização desde 1870. São Paulo: Boitempo, 2005. GUHA, Ramachandra. Environmentalism: A Global History. New York: Longman, 2000. p. 22. HOBSBAWM, Eric. The Age of Extremes: A History of the World 19141991. New York: Pantheon, 1995. p. 558-59. KRIPNER, Greta R. “The Financialization of the American Economy” Socio-Economic Review, n. 3, p. 173-208, 2005. MARX, Karl. Capital. V. 1;1867; repr. Moscow: Foreign Languages Publishing House, 1959. SILVER, Beverly; ARRIGHI, Giovanni. “Polanyi’s ‘Double Movement’: The Belle Époques of British and U.S. Hegemony Compared,” Politics and Society, v. 31, n. 2, p. 325-55, 2003. 96 CAPÍTULO 4 Continuidades e transformações na evolução dos sistemas-mundo C HRISTOPHER C HASE -D UNN E R OY K WON 65 Hall e Chase-Dunn (2006; consultar também CHASE-DUNN E HALL, 1997) modificaram os conceitos desenvolvidos pelos estudiosos do sistema-mundo moderno para construir uma perspectiva teórica que permitisse comparar o sistema moderno com sistemas-mundo regionais anteriores. Trata-se da perspectiva evolucionária e comparativa dos sistemas-mundo. A ideia principal é que a evolução sociocultural só pode ser explicada se considerarmos que as organizações políticas66 realizam interações 65 Christopher Chase-Dunn é Doutor em Sociologia pela Stanford University. Roy Kwon é Doutor em Sociologia pela University of California - Riverside. Ambos são pesquisadores do Institute for Research on World-Systems da University of California - Riverside. Os autores agradecem a Kirk Lawrence e Thomas D. Hall pela ajuda com este artigo, que resultou de pesquisa financiada pela National Science Foundation dos Estados Unidos. 66 Neste capítulo, o termo “organização política” aparece como tradução para o português do termo inglês polity, o qual se refere genericamente a organizações, governos ou sistemas políticos (sendo o Estado nacional um tipo de polity). 97 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO importantes entre si desde a Idade Paleolítica. Hall e Chase-Dunn propõem um modelo geral das causas contínuas da evolução da tecnologia e da hierarquia dentro das organizações políticas e em sistemas interligados de organizações políticas (sistemas-mundo). Este é o chamado modelo de reiteração, que é impulsionado por pressões populacionais que interagem com a degradação ambiental e conflitos entre as organizações políticas. Este modelo de reiteração descreve forças causais básicas que estavam em operação na Idade da Pedra e que continuam a operar no sistema global contemporâneo (ver também CHASE-DUNN E HALL, 1997, Capítulo 6; FLETCHER et al., 2011). Estas são as continuidades. A ideia mais importante que advém desta perspectiva teórica é que as mudanças transformacionais nas instituições, estruturas sociais e lógicas de desenvolvimento são causadas principalmente pelas ações de indivíduos e organizações dentro de comunidades políticas que são semiperiféricas em relação a outras organizações políticas no mesmo sistema. Esta ideia é conhecida como a hipótese de desenvolvimento semiperiférico. À medida que os sistemas-mundos regionais se tornaram espacialmente maiores e as organizações políticas que se inserem nesses sistemas cresceram e se tornaram mais hierárquicas internamente, as relações entre as organizações políticas também passaram a ser mais hierárquicas, porque foram criados novos meios de extração de recursos de povos distantes. Assim, hierarquias centro/periferia emergiram de sistemas entre as organizações políticas que foram baseados em trocas de maior igualdade. A semiperifericidade é a posição de algumas das organizações políticas em uma hierarquia centro/ periferia. Algumas das organizações políticas que estão localizadas em posições semiperiféricas tornaram-se os agentes que formaram soberanias, estados e impérios maiores por meio de conquistas (organizações políticas semiperiféricas que defendiam suas fronteiras), e alguns dos estados especializados no comércio entre os impérios tributários desenvolveram a produção para fins de troca nas regiões em que operavam. Assim, tanto a escala espacial e demográfica da organização política quanto a escala espacial das redes comerciais foram ampliadas por organizações políticas semiperiféricas, o que acabou resultando no sistema global em que vivemos agora. O sistema-mundo moderno surgiu quando uma região que era periférica e, mais tarde, tornou-se semiperiférica (Europa), desenvolveu 98 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS - MUNDO um centro interno de estados capitalistas que se tornou, por fim, capaz de dominar as organizações políticas de todas as outras regiões do planeta. Este sistema eurocêntrico foi o primeiro no qual o capitalismo se tornou o modo predominante de acumulação, apesar de cidades-estados capitalistas semiperiféricas existirem desde a Idade do Bronze nos espaços entre os impérios tributários. Esse sistema eurocêntrico se expandiu em uma série de ondas de colonização e incorporação (Figura 1). A mercantilização se expandiu na Europa, evoluiu e se aprofundou em ondas desde o século XIII, razão pela qual os historiadores discordam sobre quando o capitalismo se tornou o modo predominante. Desde o século XV, o sistema moderno presenciou quatro períodos de hegemonia em que a liderança no desenvolvimento do capitalismo foi alçada a novos patamares. O primeiro período foi conduzido por uma coalizão entre os capitalistas financeiros genoveses e a Coroa Portuguesa (WALLERSTEIN, 2011 [1974]; ARRIGHI, 1994). Posteriormente, as hegemonias foram organizações políticas: os holandeses no século XVII, os ingleses no século XIX e os Estados Unidos no século XX (WALLERSTEIN, 1984a). A própria Europa, e todas as quatro regiões hegemônicas modernas, foram ex-semiperiferias que ascenderam, primeiramente, ao status de centro e, em seguida, ao de hegemonia. Figura 1: Ondas de colonização e descolonização desde 1400 - Número de colônias estabelecidas e número de independências Fonte: Henige (1970). Em vermelho: independências nacionais; em azul: colônias estabelecidas 99 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Entre esses períodos de hegemonia, havia períodos de rivalidade hegemônica em que vários candidatos lutaram pelo poder global. O núcleo (core) do sistema-mundo moderno permaneceu multicêntrico, o que significa que vários estados soberanos se aliavam e competiam entre si. Houve sistemas mundiais regionais anteriores que experimentaram um período de império central ampliado em que um único império se tornou tão grande que não havia fortes candidatos à predominância. Isso não acontecia no sistema-mundo moderno até o momento em que os Estados Unidos se tornaram a única superpotência após a dissolução da União Soviética, em 1989. A sequência de hegemonias pode ser compreendida como a evolução da governança global no sistema moderno. O sistema interestatal, de acordo com a institucionalização no Tratado de Paz de Westfália em 1648, ainda é um aspecto institucional fundamental da organização politica do sistema moderno. O sistema de estados teoricamente soberanos foi expandido a fim de incluir as regiões periféricas em duas grandes ondas de descolonização (Figura 1), o que acabou resultando em uma situação na qual todo o sistema moderno se tornou composto de estados nacionais soberanos. O leste da Ásia foi incorporado a esse sistema no século XIX, embora aspectos do antigo sistema estatal tributário-comercial do Leste Asiático não tenham sido completamente suprimidos por tal incorporação (HAMASHITA, 2003). Proporcionalmente ao sistema como um todo, cada uma das hegemonias suplantou a hegemonia anterior em tamanho. E cada uma desenvolveu as instituições de controle econômico e político-militar que guiaram o sistema ampliado, de modo que o capitalismo penetrou cada vez mais fundo em todas as áreas do planeta. E após as Guerras Napoleônicas nas quais a Grã-Bretanha finalmente derrotou seu principal concorrente, a França, as instituições políticas globais começaram a emergir acima do sistema internacional de Estados nacionais. O primeiro protogoverno mundial foi o Concerto da Europa, uma flor frágil que acabou murchando quando seus principais proponentes, a Grã-Bretanha e o Império Austro-Húngaro, discordaram sobre como lidar com a revolução mundial de 1848. O Concerto foi seguido pela Liga das Nações e, em seguida, pelas Nações Unidas e as instituições financeiras internacionais de Bretton Woods (o Banco Mundial, 100 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS - MUNDO o Fundo Monetário Internacional e, finalmente, a Organização Mundial do Comércio). A globalização política evidente na trajetória de governança global evoluiu porque os poderes constituídos travavam uma disputa pesada entre si pelo poder geopolítico e por recursos econômicos, mas também porque a resistência surgiu no interior das organizações políticas centrais e nas regiões não centrais. A série de hegemonias, as ondas de expansão colonial e de descolonização e o surgimento de um protoestado mundial ocorreram quando as elites globais tentaram competir entre si para conter a resistência vinda de baixo. Já foram mencionadas as ondas de descolonização. Outras forças importantes de resistência foram as revoltas de escravos, o movimento sindical, a extensão da cidadania a homens sem nenhuma propriedade, o movimento feminista, e outros movimentos sociais e rebeliões relacionados. Estes movimentos afetaram a evolução da governança global, em parte devido às rebeliões, muitas vezes agrupadas temporalmente, formando o que se denominou “revoluções mundiais” (ARRIGHI et al., 1989). A Reforma Protestante na Europa foi um exemplo precoce que desempenhou um grande papel no aumento da hegemonia holandesa. A Revolução Francesa de 1789 estava conectada temporalmente com as revoltas nos EUA e no Haiti. A rebelião de 1848 na Europa foi sincrônica com a Rebelião de Taiping, na China, e foi associada a essa pela difusão de ideias, como também foi associada a várias novas seitas cristãs que surgiram nos Estados Unidos. 1917 foi o ano dos bolcheviques na Rússia, mas também a mesma década viu a Revolta Nacionalista Chinesa, a Revolução Mexicana, a Revolta Árabe e a greve geral em Seattle liderada pela organização sindical Industrial Workers of the World nos Estados Unidos. 1968 viu a revolta dos estudantes nos EUA, Europa, América Latina e os Guardas Vermelhos na China. Em 1989, os movimentos ocorreram, principalmente, na União Soviética e Europa Oriental, mas uma sociedade civil global emergente aprendeu importantes lições sobre o valor dos direitos civis para a democracia capitalista, sem a necessidade de justificativa. Neste capítulo, a revolução mundial atual (CHASE-DUNN E NIEMEYER, 2009) será discutida como o contramovimento global. A grande 101 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO questão enfocada aqui é que a evolução do capitalismo e da governança global é uma reação importante à resistência e às rebeliões vindas de baixo, o que ocorreu de fato no passado e é provável que continue a ocorrer no futuro. Boswell e Chase-Dunn (2000) afirmam que o capitalismo e o socialismo têm interagido dialeticamente entre si em um ciclo de feedback positivo semelhante a uma espiral. Os movimentos trabalhistas e socialistas eram, obviamente, uma reação à industrialização capitalista, mas a hegemonia dos EUA e das instituições globais pós-Segunda Guerra Mundial também foi estimulada, de forma relevante, pela Revolução Mundial de 1917 e pelas ondas de descolonização. O destacado livro de Giovanni Arrighi, Terence Hopkins e Immanuel Wallerstein (1984) sobre as revoluções mundiais apontou que os revolucionários raramente atingiram suas demandas imediatamente. Em vez disso, “os conservadores esclarecidos” implantaram as exigências de uma revolução prévia, a fim de esfriar os desafios de uma revolução mundial atual. Esta é a maneira pela qual as revoluções mundiais produzem a evolução da governança global. Horizontes temporais Então, o que a perspectiva comparativa e evolutiva dos sistemas-mundo nos diz sobre as continuidades e as transformações da lógica do sistema? E o que se pode dizer sobre a crise financeira mais recente e o contramovimento global contemporâneo a partir das perspectivas de longo prazo? Os acontecimentos recentes são apenas outro período de expansão e colapso financeiro e declínio da hegemonia? Ou será que eles constituem, ou são o prenúncio, de uma profunda crise estrutural do modo capitalista de acumulação? O que significam os acontecimentos recentes para a evolução do capitalismo e sua possível transformação em uma modalidade diferente de acumulação? 102 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS - MUNDO 50.000 Anos A partir da perspectiva dos últimos 50.000 anos, a grande novidade é demográfica e ambiental. Após lenta expansão, com altos e baixos cíclicos em determinadas regiões durante milênios, a população humana entrou em uma onda íngreme ascendente nos últimos dois séculos. Os seres humanos vêm degradando o meio ambiente em âmbito local e regional a partir do momento em que começaram a usar os recursos naturais de modo intensivo. Mas nos últimos 200 anos da produção industrial, a degradação ambiental por meio do esgotamento de recursos e da poluição ampliou-se em âmbito mundial, sendo o aquecimento global a maior consequência. A transição demográfica para uma população de tamanho equilibrado começou nos países centrais industrializados no século XIX e se espalhou de forma desigual para as regiões não centrais no século XX. Medidas de saúde pública reduziram a taxa de mortalidade; o maior grau de escolaridade e o trabalho feminino fora do lar estão diminuindo a taxa de fertilidade. Mas é provável que o número total de seres humanos continue a aumentar por várias décadas. No ano 2000 havia cerca de seis bilhões de seres humanos na Terra. Mas quando parar de aumentar, o número de pessoas será 8, 10 ou 12 bilhões. Essa explosão populacional foi possível devido à industrialização e à utilização em larga escala de combustíveis fósseis não renováveis. Os combustíveis fósseis são luz solar antiga previamente capturada, que levou milhões de anos para se formar, à medida que as plantas e as florestas cresceram, morreram, e foram compactadas, gerando petróleo e carvão. A chegada do pico de produção de petróleo está próxima, e é quase certo que os preços da energia subirão novamente após uma longa queda. O recente colapso financeiro está relacionado a essas mudanças de longo prazo no sentido de que foi causado em parte por setores da elite global que tentavam proteger seus privilégios e riquezas, através da busca de um maior controle sobre os recursos naturais e do excesso de expansão do setor financeiro. Mas as não elites também estão envolvidas. A expansão habitacional, a suburbanização e o fato de que um número pequeno de pessoas vive em casas maiores têm sido mecanismos importantes, especialmente nos Estados Unidos, para 103 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO a incorporação de algumas das não elites ao projeto de globalização hegemônica do capitalismo corporativo. A cultura do consumismo tornou-se fortemente arraigada para aqueles que realmente consomem mais, e é também um forte anseio daqueles que esperam aumentar seu consumo aos níveis observados nas regiões centrais. 5.000 Anos O principal significado do horizonte temporal de 5.000 anos é apontar-nos para a ascensão e o declínio dos modos de acumulação. As organizações políticas humanas em pequena escala foram integradas principalmente por estruturas normativas institucionalizadas como relações de parentesco – os assim chamados modos de acumulação baseados em relações de parentesco. O clã era a economia e a organização política, e era organizado como uma ordem moral de obrigações que permitiram a mobilização e a coordenação do trabalho social, e que regulava a distribuição. A acumulação baseada no parentesco foi baseada em linguagens compartilhadas e sistemas de significados, construção de consenso através da comunicação oral e reciprocidade institucionalizada na partilha e nas trocas. À medida que cresceram, as organizações políticas baseadas no parentesco lutaram entre si e as organizações políticas que produziram desigualdades institucionalizadas tiveram vantagens de seleção sobre aquelas que não o fizeram. O parentesco em si se tornou hierárquico dentro das soberanias, tomando a forma de linhagens classificadas ou clãs cônicos. Os movimentos sociais que utilizam discursos religiosos têm sido importantes forças de mudança social há milênios. Sociedades baseadas no parentesco muitas vezes reagiram à demanda populacional por recursos através da défaisance (“revogação”) - um subgrupo emigrava, geralmente após surgirem reclamações em termos de violação da ordem moral. As migrações eram, sobretudo, reações ao uso excessivo dos recursos locais causado pelo crescimento populacional e competição por esses recursos. Quando novas terras desocupadas ou apenas ligeiramente ocupadas (mas ricas em recursos) tornaram-se acessíveis, 104 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS - MUNDO os seres humanos passaram a se deslocar, ocupando todos os continentes, exceto a Antártida. Assim que um pedaço de terra era ocupado, uma situação de “circunscrição” elevava o nível de conflito dentro e entre as organizações políticas, produzindo um regulador demográfico (FLETCHER et al., 2011). Nestas circunstâncias, foram estimuladas inovações tecnológicas e organizacionais, e a concorrência entre as organizações políticas selecionou, com veemência, novas estratégias bem-sucedidas, levando ao surgimento da hierarquia, da complexidade e de novas lógicas de reprodução social. Há cerca de cinco mil anos, os primeiros estados e cidades surgiram na Mesopotâmia, sobrepondo-se às instituições baseadas no parentesco. Este foi o início dos modos tributários de acumulação no qual o poder do Estado (coerção legítima) se tornou o principal organizador da economia, o mobilizador do trabalho e o acumulador de riqueza e poder. Inovações similares ocorreram em grande parte de forma independente no Egito, no vale do Rio Amarelo (Huang-Ho), no vale do Rio Indo, e mais tarde na Mesoamérica e nos Andes. Os modos de produção tributários evoluíram à medida que os estados e impérios se tornaram maiores e as técnicas do imperialismo, permitindo a exploração de recursos distantes, foram aprimoradas. Este era, principalmente, o trabalho de estados semiperiféricos que defendiam suas fronteiras (ALVAREZ et al., 2011). Aspectos dos modos de produção tributários (lançamento de impostos, coleta de tributos, acumulação por desapropriação) ainda existem entre nós, mas têm sido largamente subordinados e subservientes à lógica da acumulação capitalista. Crises e contramovimentos estavam frequentemente envolvidos nas guerras e conquistas que trouxeram uma mudança social e uma evolução dos métodos de tributação. O modo tributário tornou-se predominante no sistema-mundo da Mesopotâmia no início da Idade do Bronze (cerca de 3000 a.C.). O sistema mundial regional do Leste Asiático ainda era predominantemente tributário na Era Comum do século XIX, tendo durado aproximadamente 5.000 anos. O modo baseado em parentesco durou ainda mais tempo. Todos os grupos humanos foram organizados em torno de versões diferentes dos modos baseados em parentesco no período Paleolítico e, na verdade, desde que a cultura 105 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO humana surgiu pela primeira vez com a linguagem. Se datarmos o início do fim dos modos baseados em parentesco a partir da predominância do modo tributário da Mesopotâmia (3000 a.C.), esta primeira alteração qualitativa na lógica básica de reprodução social levou mais de 100.000 anos. 500 Anos Isto nos leva ao modo capitalista. Definimos o modo capitalista de acumulação, com base na acumulação privada dos lucros que retornam à produção de mercadorias, em vez de impostos ou tributos.67 Conforme já dito, as primeiras formas de capitalismo surgiram na Idade do Bronze, na forma de pequenos estados semiperiféricos que se especializaram no comércio e na produção de mercadorias. Foi apenas no século XV que esta forma de acumulação tornou-se predominante em um sistema mundial regional (Europa e suas colônias). O capitalismo nasceu na semiperiferia, mas na Europa, mudou-se para o centro, e os precursores que posteriormente desenvolveram o capitalismo eram antigas organizações políticas semiperiféricas que alcançaram a hegemonia. As crises econômicas e revoluções mundiais foram elementos importantes na evolução do capitalismo e das instituições de governança global durante séculos. Assim, em comparação com os modos anteriores, o capitalismo ainda é jovem. Existe há cerca de milênios, mas tem sido predominante em um sistema-mundo há menos de oito séculos. Por outro lado, muitos têm observado que a mudança social, em geral, tem se acelerado. O aumento da arrecadação de tributos com base na coerção institucionalizada levou mais de 100.000 anos. O próprio capitalismo acelera a mudança social, porque 67 O capitalismo é uma combinação de propriedade privada nos meios de produção, troca mercantil e produção de mercadoria visando lucro. Naturalmente há muitas variedades de capitalismo. Desejamos incluir especialmente o que tem sido chamado capitalismo periférico, que é o uso de trabalho forçado (escravidão, servidão) para a produção de mercadoria. O capitalismo de Estado pode existir quando a propriedade não privada dos meios de produção permite a uma elite contolar a sociedade e se apropriar de grandes parcelas dos lucros. 106 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS - MUNDO revoluciona a tecnologia rapidamente, impulsionando outras instituições; e as pessoas se adaptaram às reconfigurações rápidas da cultura e das instituições. Por isso, é plausível que as contradições do capitalismo podem levá-lo a atingir seus limites muito mais rápido do que fizeram os modos tributários e os baseados no parentesco. Transformações entre os modos Para Immanuel Wallerstein (2011 [1974]), o capitalismo começou no longo século XVI (1450-1640), expandiu-se em uma série de ciclos e tendências de crescimento, e agora está se aproximando de “assíntotas” (limites máximos), pois algumas de suas tendências criam problemas que não podem ser resolvidos. Assim, para Wallerstein, o sistema mundial tornou-se capitalista e, em seguida, expandiu-se até se tornar totalmente global, e agora está enfrentando uma grande crise porque certas tendências de longo prazo não podem ser acomodadas dentro da lógica do capitalismo (WALLERSTEIN, 2003). As transformações evolutivas de Wallerstein surgem no início e no final. Há um foco na expansão e aprofundamento, bem como ciclos e tendências, mas não há a periodização dos estágios de evolução do sistema-mundo do capitalismo (CHASE-DUNN, 1998, Cap. 3). Isto é muito diferente da representação tanto de Arrighi dos sucessivos (e sobrepostos) ciclos sistêmicos de acumulação, quanto das teorias marxistas mais antigas, dos estágios do desenvolvimento nacional. A ênfase de Wallerstein recai sobre o surgimento e desaparecimento de “sistemas históricos”, onde o capitalismo é definido como “acumulação incessante”. Alguns atores mudam de posição, mas o sistema permanece basicamente o mesmo à medida que se expande. Mais cedo ou mais tarde, suas contradições internas encontrarão limites, e acredita-se que esses limites estejam se aproximando nas próximas cinco décadas. Segundo Wallerstein (2003), as três tendências de crescimento ao longo prazo (efeito teto) que o capitalismo não pode controlar são: 1. o aumento dos salários reais ao longo prazo; 2. os custos de longo prazo dos insumos materiais; e 107 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 3. o aumento de impostos. Todas as três tendências de crescimento causam a queda da taxa média de lucro. Os capitalistas elaboram estratégias para combater essas tendências (automação, a fuga de capitais, a ameaça de corte de empregos, os ataques ao estado-providência social e aos sindicatos), mas na verdade não podem detê-las no longo prazo. A desindustrialização em um lugar leva à industrialização e ao surgimento de movimentos operários em outro lugar (SILVER, 2003). A queda da taxa de lucro significa que o capitalismo, como uma lógica de acumulação, terá de enfrentar uma crise estrutural inconciliável durante os próximos 50 anos, e algum outro sistema surgirá. Wallerstein chama as próximas cinco décadas de “A Era de Transição”. Wallerstein acredita que as perdas recentes por parte dos sindicatos de trabalhadores e dos pobres sejam temporárias. Ele pressupõe que os trabalhadores acabarão por descobrir como se proteger contra as forças do mercado globalizado e do “nivelamento por baixo”. Isso talvez subestime um pouco as dificuldades de mobilização efetiva do trabalho organizado na era do capitalismo globalizado, mas, no longo prazo, Wallerstein provavelmente tem razão. Os sindicatos globais e os partidos políticos poderiam dar aos trabalhadores os instrumentos eficazes para a luta por salários e condições de trabalho livres da exploração das corporações globais se fosse possível superar as questões Norte/Sul que dividem os trabalhadores. Wallerstein é intencionalmente vago (assim como Marx) a respeito da natureza organizacional do novo sistema que substituirá o capitalismo, mas tem certeza de que não será mais o capitalismo. O sociólogo percebe o declínio da hegemonia norte-americana e a crise do capitalismo global neoliberal como fortes indícios de que o capitalismo não pode mais se ajustar às suas contradições sistêmicas. Wallerstein afirma que a história mundial já entrou em um período caótico e imprevisível de transformação histórica. Deste período de caos, surgirá um sistema não capitalista novo e qualitativamente diferente. Pode ser um estado autoritário (tributário) global que preserve os privilégios da elite global ou talvez um sistema 108 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS - MUNDO igualitário em que instituições sem fins lucrativos sirvam às comunidades (WALLERSTEIN, 1998). Estágios do desenvolvimento capitalista mundial: ciclos sistêmicos de acumulação A descrição evolucionária de Giovanni Arrighi (1994) dos “ciclos sistêmicos de acumulação” resolveu alguns dos problemas da noção de Wallerstein de que o capitalismo mundial iniciou no longo século XVI e, em seguida, passou por ciclos repetitivos e tendências. A descrição de Arrighi é explicitamente evolucionária, mas ao invés de postular “estágios do capitalismo”, examinando cada país para verificar a passagem de tais fases (como fez a maioria dos marxistas mais antigos), ele postula ciclos globais de acumulação até certo ponto sobrepostos, no qual o capital financeiro e o poder do Estado assumem formas novas e gradualmente penetram em todo o sistema. Este foi um grande avanço em relação tanto aos ciclos mundiais quanto às tendências de Wallerstein e às fases marxistas nacionais tradicionais de abordagem ao capitalismo. Os “ciclos sistêmicos de acumulação” de Arrighi (1994; 2006) se distinguem mais uns dos outros do que os ciclos de expansão e contração e tendências seculares de crescimento, de Wallerstein. Além disso, Arrighi (2006) explorou com mais profundidade as diferenças entre o atual período de declínio da hegemonia norte-americana e as décadas do final do século XIX e do início do século XX, quando a hegemonia britânica estava em declínio. A ênfase recai menos no início e no fim do sistema mundo-capitalista e mais sobre a evolução de novas formas institucionais de acumulação e a crescente incorporação de modos de controle à lógica do capitalismo. Arrighi (2006), seguindo uma dica de Andre Gunder Frank (1998), viu a ascensão da China como presságio de um novo ciclo sistêmico de acumulação em que a “sociedade de mercado” acabará por vir a substituir o capital financeiro voraz como a principal forma institucional na próxima fase da história mundial. Arrighi não discute o fim do capitalismo e o surgimento de uma outra 109 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO lógica básica de reprodução social e de acumulação. Sua análise está mais alinhada com a literatura dos “tipos de capitalismo” e das “modernidades múltiplas”, com a ressalva de que ele está analisando todo o sistema ao invés de separar as sociedades nacionais. Arrighi vê o desenvolvimento da sociedade de mercado na China como uma consequência das diferenças entre o Leste Asiático e os sistemas eurocêntricos antes de eles se fundirem no século 19, e também como resultado da Revolução Chinesa. Embora a discussão que promove das noções de Adam Smith a respeito do controle social sobre o capital financeiro seja interessante, Arrighi é vago em relação a quais forças poderiam contrabalançar o poder do capital financeiro. Na China, obviamente, são o Partido Comunista e a nova classe de mandarins tecnocratas - algo que se assemelha, na forma, à discussão de Peter Evans sobre a importância dos tecnocratas no “Estado desenvolvimentista”, brasileiro, japonês e coreano, embora Arrighi não tenha dito desta maneira. Arrighi também fornece uma análise mais explícita de como a situação do mundo atual é semelhante e diferente do período de declínio do poder hegemônico britânico antes da Primeira Guerra Mundial (consulte um resumo em CHASE-DUNN; LAWRENCE, 2011, p. 147-151). A versão de Wallerstein é mais apocalíptica e mais milenar. O velho mundo está acabando. O novo mundo está começando. Na bifurcação sistêmica que se aproxima, o que as pessoas fazem pode ser prefigurativo e causal do mundo vindouro. Wallerstein (1984b) concorda com a análise proposta pelos estudantes da Nova Esquerda em 1968 (e um grande número de ativistas do movimento de justiça global atual), na qual a tática de tomada do poder estatal tem se mostrado inútil devido aos resultados decepcionantes da Revolução Mundial de 1917 e aos movimentos de descolonização (porém, veja abaixo). Globalização econômica Quanto ao fato de o recente colapso em si ser ou não uma crise estrutural ou o início de um longo processo de transformação, é importante examinar 110 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS - MUNDO as tendências recentes na globalização econômica. Já existe algum sinal de que a economia mundial tenha entrado em um novo período de desglobalização semelhante ao que ocorreu na primeira metade do século XX? Immanuel Wallerstein afirma que a globalização vem ocorrendo há quinhentos anos, e por isso há pouca coisa que seja verdadeiramente nova com relação ao assim chamado estágio do capitalismo global que, segundo se acredita, teria surgido nas últimas décadas do século XX. Bem antes do surgimento da globalização na consciência popular, a perspectiva dos sistemas-mundo tinha por foco a economia-mundo e o sistema de polities que interagem, em vez de sociedades nacionais individuais. A globalização, no sentido de expandir e intensificar redes econômicas, políticas, militares e de informação cada vez maiores, tem crescido há milênios, embora de forma heterogênea e em ondas. A globalização é tanto um ciclo quanto uma tendência (Figura 2). A onda de integração global que varreu o mundo nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial é melhor compreendida através do estudo das semelhanças e diferenças em comparação com as ondas de expansão do comércio internacional e de investimentos estrangeiros que ocorreram nos séculos anteriores, especialmente na última metade do século XIX. Wallerstein defende a ideia de que a hegemonia norte-americana continua em declínio, tendo interpretado o unilateralismo dos EUA na administração de Bush como uma repetição dos erros anteriores de hegemonias declinantes que tentaram substituir a vantagem econômica comparativa pela superioridade militar (WALLERSTEIN, 2003). A maioria daqueles que rejeitavam a ideia do declínio hegemônico norte-americano durante o período que Giovanni Arrighi (1994) chamou de belle époque da financeirização passou a concordar com a posição de Wallerstein, na esteira da atual crise financeira global. Wallerstein afirma que quando são levados em conta os ciclos e as tendências do sistema mundial e a dança das cadeiras que é o desenvolvimento desigual do capitalismo, a “nova fase do capitalismo global” não parece muito diferente de períodos anteriores. 111 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Figura 2: Globalização do Comércio (1820-2009): Importações Mundiais como uma percentagem do PIB mundial Fontes: Chase-Dunn et al. (2000); Banco Mundial (2011)68 68 Utilizando as estimativas nacionais de importações em moedas nacionais de Mitchell (1992, 1993, 1995), Chase-Dunn et al. (2000) criaram uma medida da globalização do comércio entre 1795 e 1995. Apesar de Chase-Dunn et al. terem explorado a possibilidade de converter estas estimativas de importação em unidades monetárias comparáveis usando taxas de câmbio (FX, em inglês) entre as moedas dos diversos países e o dólar norte-americano, esta estratégia se mostrou irreal, pois pressupõe que as conversões de divisas refletem com precisão o valor relativo dos bens e serviços em diferentes países. Embora uma solução popular para sanar as “deficiências” das taxas de câmbio tenha sido converter essas medidas em paridades do poder de compra (PPC) - que calculam o preço de uma cesta doméstica de bens a fim de gerar uma estimativa mais relativa das moedas nacionais (FIREBAUGH, 2003), Korzeniewicz e Moran (2009, p. 60-3) mostram que as estimativas das PPC são irrealistas para uma pesquisa que examine longos períodos de tempo a menos que os pesos para as PPC sejam recalculados para períodos anteriores de tempo. Dadas as questões associadas à conversão de moeda, Chase-Dunn et al. cuidadosamente compilaram a estimativa da globalização do comércio calculando, separadamente, o nível de abertura de cada nação ao comércio internacional . Para realizar esse cálculo, é computado o nível de abertura comercial de uma nação (importações/PIB), usando moedas locais no numerador e denominador, eliminando-se, assim, a necessidade de converter moedas locais em dólares ou outras unidades comparáveis. Esses estudiosos, em seguida, tomaram a proporção de abertura comercial de cada nação (comércio/PIB) e ponderaram as razões multiplicando-as pela população de um país, que é estimada como uma proporção da população mundial (para uma descrição mais detalhada, consulte CHASE-DUNN et al., 2000, 112 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS - MUNDO A Figura 2 é uma versão atualizada da série de globalização do comércio publicada em Chase-Dunn et al., (2000), e mostra a onda do século XIX de grande integração do comércio global, uma onda curta e volátil entre 1900 e 1929, e o boom do período pós-1945, que se caracteriza como a “fase do capitalismo global.” A figura indica que a globalização é tanto um ciclo quanto uma tendência irregular. Houve períodos significativos de desglobalização no final do século XIX e na primeira metade do século XX. Pode ser observado o declínio acentuado do nível de integração do comércio mundial em 2009. A tendência de crescimento no longo prazo tem sido instável, com quedas ocasionais, como a ocorrida na década de 1970. Mas as recessões desde 1945 têm sido seguidas por períodos de retomada que restauraram a tendência geral de crescimento da globalização do comércio. A grande diminuição da globalização do comércio, na esteira da crise financeira global de 2008, representa uma redução de 21% em relação ao ano anterior, a maior reversão em globalização do comércio desde a Segunda Guerra Mundial. A questão é se esta forte queda representa ou não uma inversão da tendência de crescimento observada desde a metade do século passado. É este o início de um novo período de desglobalização? A crise financeira de 2007-2008 A recente crise financeira gerou uma vasta literatura acadêmica e uma grande reflexão popular sobre suas causas e seu significado para o passado e para o futuro da sociedade mundial. Esta contribuição pretende situar a crise atual e a rede contemporânea de movimentos sociais transnacionais e de regimes nacionais progressistas em uma perspectiva histórico-mundial e evolucionária. O ponto principal é determinar com precisão as semelhanças p. 84-86). No entanto, enquanto as estimativas de Chase-Dunn et al. sobre a globalização do comércio terminam em 1995, a Figura 2 amplia as estimativas usando dados dos Indicadores de Desenvolvimento Mundial (WORLD BANK, 2009, 2010). Também foram comparados os dados de Chase-Dunn aos dados comerciais do Indicador de Desenvolvimento Mundial de comércio para o período de 1960 a 1995, sendo encontrado um elevado grau de semelhança entre essas medidas. Legenda da figura: Importações mundiais/PIB mundial. 113 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO e diferenças entre a crise atual e as respostas com períodos anteriores de deslocamento e ruptura no moderno sistema-mundo e em sistemas-mundo anteriores. Esta análise é relatada em Chase-Dunn e Kwon (2011). As conclusões são de que as crises financeiras são business as usual para a economiamundo capitalista. As teorias de uma “nova economia” e de uma “sociedade em rede” foram, sobretudo, justificativas para a financeirização. A grande diferença é o tamanho da bolha e a maior dependência da enorme economia norte-americana e do dólar por parte do resto do mundo. Apesar da bolha financeira global ter sido reinflada com sucesso, até certo ponto, através do resgate de Wall Street financiado pelo governo, os problemas estruturais básicos não foram resolvidos; no entanto, foram evitados (até agora) um colapso de verdade, a deflação e a retirada de cena da massa inflada de títulos que constituem a bolha financeira. Esta não é uma situação estável, mas também não é o fim do capitalismo. A Revolução Mundial atual A revolução mundial contemporânea é semelhante às anteriores, mas também diferente. Nossa conceituação da Nova Esquerda Global inclui entidades da sociedade civil: indivíduos, organizações de movimentos sociais, organizações não governamentais (ONGs), mas também os partidos políticos e regimes nacionais progressistas.69 Nesta seção, discutiremos as relações entre os movimentos e os regimes populistas progressistas que surgiram na América Latina nas últimas décadas, a Primavera Árabe, que começou na Tunísia, em dezembro de 2010, a antiausteridade e o movimento Ocuppy Wall Street, que surgiu em 2011. Em nosso entendimento, os regimes 69 Conceituamos a sociedade civil global e o conjunto de cidadãos do mundo como todos aqueles que têm a intenção de causar impacto no sistema-mundo como um todo. Isto inclui alguns atores cujos objetivos não são compatíveis com os grupos que identificamos como parte da Nova Esquerda Global. Referimo-nos a alguns dos atores da elite global, cujo principal objetivo é proteger seus privilégios e bens, assim como alguns movimentos fundamentalistas religiosos. 114 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS - MUNDO latino-americanos da “Maré Cor-de-Rosa” (Pink Tide) são uma parte importante da Nova Esquerda Global, embora se saiba que as relações entre os movimentos e os regimes são tanto de apoio quanto de conflito. Os limites das forças progressistas que se uniram na Nova Esquerda Global são difusos e o processo de inclusão e exclusão é contínuo (SANTOS, 2006). As regras de inclusão e exclusão que estão contidas na Carta de Princípios do Fórum Social Mundial, embora ainda debatidas, não mudaram muito desde sua formulação em 2001.70 A Nova Esquerda Global emergiu como resistência e como crítica ao capitalismo global (LINDHOLM; ZUQUETE, 2010). É uma coalizão de movimentos sociais que inclui encarnações recentes dos velhos movimentos sociais que emergiram no século XIX (trabalho, anarquismo, socialismo, comunismo, feminismo, ambientalismo, paz, direitos humanos) e os movimentos que surgiram nas revoluções mundiais de 1968 e 1989 (direitos dos homossexuais, anticorporativismo, comércio justo, causa indígena) e até mesmo os movimentos mais recentes, como slow food/food rights, justiça global/alterglobalização, antiglobalização, saúde e HIV e mídia alternativa (REESE et al., 2008). O foco explícito no Sul Global e na justiça global é um pouco semelhante a algumas instâncias anteriores da Esquerda Global, especialmente da Internacional Comunista, da Conferência de Bandung e dos movimentos anticoloniais. A Nova Esquerda Global contém vestígios e elementos reconfigurados de esquerdas globais anteriores, mas é uma constelação de forças qualitativamente diferente, porque: 1. existem elementos novos, 2. os movimentos antigos foram reformulados, e 3. uma nova tecnologia (a Internet) está sendo usada para mobilizar protestos em tempo real e tentar resolver os problemas Norte/Sul dentro dos movimentos e das contradições entre os movimentos. Há também um processo de aprendizagem em que os sucessos e fracassos anteriores da Esquerda Global estão sendo levados em conta, a fim 70 Desde 2005, o Grupo de Pesquisa em Movimentos Sociais Transnacionais da Universidade da Califórnia-Riverside realiza estudos sobre os movimentos que participam do Fórum Social Mundial. A página do projeto na Internet pode ser visitada no endereço <http:// www.irows.ucr.edu/research/tsmstudy.htm>. 115 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO de que não se repitam os erros do passado. Muitos movimentos sociais reagiram ao projeto de globalização neoliberal tornando-se transnacionais para enfrentar os desafios que, obviamente, não são locais ou nacionais (REITAN, 2007). Mas alguns movimentos, especialmente aqueles que compõem a Primavera Árabe, estão focados principalmente na mudança de regime em âmbito local. As relações dentro da família de movimentos antissistêmicos e entre os regimes populistas latino-americanos da Maré Cor-de-Rosa são tanto cooperativas quanto competitivas. As questões que dividem os possíveis aliados precisam ser trazidas à tona e analisadas para que seja possível melhorar os esforços de cooperação e tornar mais eficaz uma ação coletiva global progressiva. A Maré Cor-de-Rosa O Fórum Social Mundial (FSM) não é a única força política que comprova o surgimento da Nova Esquerda Global. O FSM está incorporado dentro de um contexto sócio-histórico mais amplo que está desafiando a hegemonia do capital global. Foi esse contexto mais amplo que facilitou a organização do FSM em 2001. Os protestos anti-FMI dos anos oitenta e a rebelião zapatista de 1994 foram precursores da revolução mundial atual que desafiou a ordem capitalista neoliberal. E o Fórum Social Mundial foi concebido explicitamente como um projeto contra-hegemônico em contraponto ao Fórum Econômico Mundial (um encontro anual de elites globais fundado em 1971). A história mundial tem ocorrido em uma série de ondas. A expansão capitalista tem fluido e refluído, e contramovimentos religiosos, humanistas e igualitários surgiram em uma luta dialética cíclica, que Polanyi (1944) denominou duplo movimento, enquanto Boswell e Chase-Dunn (2000) criaram o termo “espiral do capitalismo e do socialismo”. Esta espiral do capitalismo e do socialismo descreve as ondulações da economia global que se alternavam entre a mercantilização expansiva em toda a economia global e os movimentos de resistência em prol dos trabalhadores e outros grupos 116 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS - MUNDO oprimidos. O projeto Reagan/Thatcher de globalização capitalista neoliberal ampliou o poder do capital transnacional. Esse projeto atingiu seus limites ideológicos e materiais, aumentou a desigualdade dentro de alguns países, agravou a rápida urbanização no Sul Global - o chamado Planeta Favela (DAVIS, 2006), atacou o Estado-Providência e as proteções institucionais aos pobres, e acarretou a crise financeira global. Uma rede global de movimentos antissistêmicos surgiu para desafiar o neoconservadorismo, o neoliberalismo e o capitalismo corporativo em geral. Esta rede progressista é composta de movimentos sociais cada vez mais transnacionais, bem como um número crescente de governos populistas na América Latina, os chamados regimes da Maré Cor-de-Rosa (Pink Tide). A Maré Cor-de-Rosa é composta de regimes populistas de esquerda que chegaram ao comando do Estado na América Latina, alguns dos quais defendem a transformação estrutural dramática da economia política global e da civilização mundial. Uma diferença importante entre esses regimes e vários regimes de esquerda que os antecederam nas regiões não centrais é que vieram para comandar governos por meio de eleições populares em vez de revoluções violentas. Isso significa uma diferença importante em relação às revoluções mundiais anteriores. A expansão da democracia eleitoral para as regiões não centrais tem sido parte de uma maior incorporação política das ex-colônias no sistema interestatal europeu. Este desenvolvimento evolucionário do sistema político global tem sido causado principalmente pela industrialização das regiões não centrais e o aumento da classe trabalhadora urbana em países não centrais (SILVER, 2003). Embora grande parte da “democratização” do Sul Global consistiu principalmente no surgimento de uma “poliarquia”, em que elites manipulam eleições a fim de manter o controle do Estado (ROBINSON, 1996), em alguns países, os regimes de esquerda da Maré Cor-de-Rosa chegaram ao poder através de eleições. Esta é uma forma muito diferente de se estabelecer regimes do que o caminho tomado pelos regimes de esquerda anteriores nas regiões não centrais. Com poucas exceções, os regimes de esquerda anteriores chegaram ao poder do Estado por meio de guerra civil ou golpe militar. 117 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO As ideologias dos regimes latino-americanos da Maré Cor-de-Rosa têm sido tanto socialistas quanto indigenistas, com combinações distintas em diferentes países. O grande fio condutor da Maré Cor-de-Rosa, como uma marca distintiva do populismo de esquerda, é a revolução bolivariana liderada pelo presidente venezuelano, Hugo Chávez. Mas várias outras formas de ideologias políticas progressistas também estão à frente de estados latinoamericanos; por exemplo, o indigenista e socialista Evo Morales, Presidente da Bolívia, ou os Fidelistas em Cuba, que permanecem no poder. O Partido dos Trabalhadores ainda desempenha um papel importante no Brasil, embora os presidentes eleitos tenham sido políticos pragmáticos, em vez de líderes revolucionários. No Chile, estão no poder os sociais-democratas. Os sandinistas na Nicarágua e a FMLN em El Salvador foram eleitos líderes nacionais. De forma unilateral, a Argentina bravamente reestruturou as próprias obrigações da dívida em 2005. O Presidente do Peru é um esquerdista. E vários sociais-democratas de estilo europeu governam algumas ilhas do Caribe. A maioria desses regimes é apoiada pela mobilização das populações historicamente subordinadas, incluindo os indígenas, os pobres e as mulheres. A ascensão dos desprovidos de voz e o desafio ao capitalismo neoliberal parecem ter seu epicentro na América Latina antes do surgimento da Primavera Árabe. Apesar das diferenças importantes de ênfase, esses regimes latino-americanos têm muito em comum, e, como um todo, constituem um importante bloco da Nova Esquerda Global. Concordamos com a avaliação que William I. Robinson (2008) fez da Revolução Bolivariana e o potencial desta para liderar a classe trabalhadora global em um desafio renovado para o capitalismo transnacional. A ascensão da esquerda populista tomou conta de quase toda América do Sul e de uma parte considerável da América Central e do Caribe. Por que a América Latina foi o local tanto dos regimes populistas de esquerda quanto da maioria dos movimentos sociais transnacionais que contestam a globalização capitalista neoliberal, até recentemente? Sugerimos que parte da explicação deve-se ao fato de que a América Latina é uma região do mundo que tem muitos países semiperiféricos. Estes países têm mais opções para 118 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS - MUNDO buscar estratégias independentes do que os países periféricos, principalmente os da África. Mas alguns dos países da Maré Cor-de-Rosa na América Latina também são periféricos. Houve um efeito regional que não parece ocorrer na África ou na Ásia. Talvez o fenômeno da Maré Cor-de-Rosa e os movimentos sociais antineoliberais se concentraram na América Latina porque os Estados Unidos são o maior defensor das políticas neoliberais. A América Latina tem sido o “quintal” neocolonial dos Estados Unidos, e a maioria dos povos da América Latina percebe os Estados Unidos como o “colosso do Norte”. Os EUA têm sido o país hegemônico titular durante o período do projeto de globalização capitalista, e por isso o desafio político para o neoliberalismo tem sido mais forte nessa região do mundo. A África e a Ásia têm uma relação mais complicada com as ex-potências coloniais e com a hegemonia norte-americana. O Presidente da Venezuela Hugo Chávez talvez seja o defensor mais contundente de uma alternativa ao capitalismo global, e sua defesa é bastante facilitada pelas enormes reservas de petróleo venezuelanas. O Banco del Sur (Banco do Sul) que Chávez fundou, por exemplo, recebeu a adesão de muitas nações da Maré Cor-de-Rosa e visa substituir o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial no financiamento de projetos de desenvolvimento nas Américas. O objetivo é tornar-se independente das instituições capitalistas financeiras sediadas no Norte Global. Os primeiros Programas de Ajuste Estrutural impostos à América Latina pelo Fundo Monetário Internacional na década de oitenta foram uma espécie de “terapia de choque” que incentivaram os neoliberais nacionais a atacar o “estado-providência”, os sindicatos e os partidos trabalhistas. Em muitos países, estes ataques resultaram na redução e simplificação das indústrias urbanas, e os trabalhadores do setor formal perderam seus empregos e foram obrigados a entrar na economia informal, inchando o “planeta favela” (DAVIS, 2006). Isto é a formação de uma classe trabalhadora globalizada, conforme descrito por Bill Robinson (2008). Em vários países, o inchaço do setor urbano informal foi mobilizado por líderes políticos em novos movimentos e partidos populistas, e em alguns deles, os movimentos acabaram por ser bem-sucedidos na eleição de seus líderes ao poder nacional, criando 119 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO os regimes da Maré Cor-de-Rosa. Assim, os Programas de Ajuste Estrutural neoliberais provocaram contramovimentos que resultaram nos regimes da Maré Cor-de-Rosa. A própria existência do Fórum Social Mundial deve muito ao regime da Maré Cor-de-Rosa no Brasil. A transição de um regime autoritário no país na década de oitenta politizou e mobilizou a sociedade civil, contribuindo para as eleições de presidentes esquerdistas. Um deles foi Fernando Henrique Cardoso, famoso sociólogo brasileiro que foi um dos fundadores da teoria da dependência. A cidade brasileira de Porto Alegre, onde as primeiras reuniões do Fórum Social Mundial foram realizadas, havia sido um reduto do Partido dos Trabalhadores brasileiro. O Fórum Social Mundial nasceu em Porto Alegre com a ajuda indispensável do Partido dos Trabalhadores e seu ex-líder, que havia sido eleito Presidente do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva. A tendência política da Maré Cor-de-Rosa foi um elemento importante no contexto e nas condições que permitiram o surgimento do Fórum Social Mundial. As relações entre os movimentos sociais transnacionais progressistas e os regimes da Maré Cor-de-Rosa têm sido tanto colaborativas quanto conflituosas. Já citamos o importante papel desempenhado pelo Partido dos Trabalhadores brasileiro na criação do Fórum Social Mundial. No entanto, para muitos militantes nos diversos movimentos, o envolvimento em lutas para a conquista e a manutenção do poder nos estados existentes é uma armadilha que, provavelmente, apenas reproduzirá as injustiças do passado. Esse tipo de preocupação é apontado pelos anarquistas desde o século XIX, mas agora os autonomistas da Itália, Espanha, Alemanha e França também ecoam estas preocupações. E o movimento zapatista no sul do México, uma das faíscas que desencadeou o movimento de justiça global contra o capitalismo neoliberal, recusou-se terminantemente a participar da política eleitoral mexicana. De fato, a Nova Esquerda liderada por estudantes na Revolução Mundial de 1968 defendeu uma abordagem crítica semelhante aos velhos partidos e estados da esquerda e ao envolvimento na política eleitoral. Conforme mencionado acima, Immanuel Wallerstein (1984b; 2003) concorda com esta posição política antiestatista. Esta recusa a forma 120 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS - MUNDO tradicional de fazer política se consagrou na Carta de Princípios do Fórum Social Mundial, onde os representantes de partidos e governos estão teoricamente proibidos de participar das reuniões do FSM.71 As organizações de esquerda e movimentos mais antigos são muitas vezes retratados como irremediavelmente eurocêntricos e antidemocráticos pelos neoanarquistas e autonomistas, que ao invés disso preferem formas de redes participativas e horizontalistas de democracia e evitam a liderança de intelectuais proeminentes, bem como de chefes de Estado existentes. Assim, quando Lula, Chávez e Morales tentaram participar do FSM, grandes multidões se reuniram para protestar contra a presença desses líderes. Os organizadores do FSM têm encontrado fórmulas conciliatórias, como colocar os discursos dos políticos da Maré Cor-de-Rosa em locais adjacentes, mas separados. Uma exceção a esse tipo de disputa é o apoio de autonomistas europeus e anarquistas ao regime de Evo Morales na Bolívia (por exemplo, LÓPEZ; IGLESIAS TURRION, 2006). Muitos dos ativistas do movimento Ocuppy Wall Street, que começou em Nova York no outono de 2011, têm uma atitude semelhante para com a organização formal e a hierarquia. O movimento se autodescreveu como “sem liderança” e centrou-se na tomada direta e democrática de decisões em grupos que se encontram cara a cara. A América Latina tem sido o epicentro da revolução mundial contemporânea. Se os movimentos e os regimes progressistas pudessem trabalhar juntos, forneceriam um modelo que estimularia outras regiões do planeta. Os desafios são enormes, mas a maioria da humanidade necessita de instrumentos organizacionais para democratizar a governança global, e o Fórum Social Mundial foi concebido para ser o local a partir de onde tais instrumentos poderiam ser organizados. 71 A Carta de Princípios do Fórum Social Mundial não permite a participação de representantes de organizações que estão envolvidas ou que defendem a luta armada. Tampouco os governos, as instituições confessionais ou os partidos políticos devem enviar representantes para o FSM. Consulte a Carta de Princípios do Fórum Social Mundial na página <http://wsf2007. org/process/wsf-charter>. 121 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO A crise e os movimentos antissistêmicos Quais foram os efeitos da crise financeira global sobre os contramovimentos e os regimes progressistas nacionais? O slogan do Fórum Social Mundial “Um Outro Mundo é Possível” parece muito mais atraente agora do que quando o projeto de globalização capitalista estava em expansão. O discurso crítico foi levado mais a sério por um público mais amplo. O geógrafo marxista David Harvey foi entrevistado pela BBC. Os discursos milenaristas dos regimes da Maré Cor-de-Rosa e os movimentos sociais radicais parecem estar pelo menos parcialmente confirmados. O triunfalismo do “fim da história” e as teorias da “nova economia” parecem ter sido varridos para o lixo. A perspectiva dos sistemas-mundo tem encontrado maior apoio, pelo menos entre os primeiros críticos, como os marxistas mais tradicionais. A insistência de Wallerstein, Arrighi e outros de que a hegemonia dos EUA está em declínio há muito tempo já encontrou ampla aceitação. Em um nível mais prático, a maioria das organizações de movimentos sociais e ONGs vêm enfrentando mais dificuldade em arrecadar fundos, mas isso tem sido contrabalançado por uma participação mais ampla (ALLISON et al., 2011). O movimento ambientalista está enfrentando alguns contratempos porque tem vindo à tona a questão da elevada taxa de desemprego. De forma geral, a cúpula de Copenhague foi considerada um fracasso. O amplo entendimento de que os custos energéticos vão continuar a subir aumentou o número de pessoas que apoia o desenvolvimento da energia nuclear, apesar dos custos ambientais em longo prazo. Mas o terremoto no Japão , o tsunami e a crise nuclear em 2011 levaram o governo alemão à declaração de um futuro não nuclear. Além disso, a alternativa radical do ambientalismo indígena ganhou impulso (WALLERSTEIN, 2010). A Conferência Mundial dos Povos sobre Mudança Climática e Direitos da Mãe Terra, realizada em Cochabamba, na Bolívia, em abril de 2010, discutiu a Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra, um referendo Popular Mundial sobre Mudança Climática, e o estabelecimento de um Tribunal de Justiça Climática. A reunião foi assistida por 30.000 ativistas de mais de 100 países e recebeu o apoio financeiro dos governos da Bolívia e da Venezuela. 122 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS - MUNDO A Primavera Árabe, o Verão Europeu e o Movimento Ocuppy Wall Street Os movimentos que varreram o mundo árabe desde dezembro de 2010 também fazem parte da revolução mundial atual e podem desempenhar um papel na Nova Esquerda Global. Como em revoluções mundiais anteriores, o contágio e as novas tecnologias de comunicação têm sido elementos importantes. E, como nas revoluções mundiais anteriores, movimentos bastante diferentes, estimulados por diferentes condições locais, convergem na hora de desafiar os poderes constituídos. Os movimentos da Primavera Árabe foram bastante diferentes dos movimentos de justiça global, tendo por principais alvos os regimes autoritários nacionais, em vez do capitalismo global. Jovens manifestantes usaram a rede social Facebook para organizar principalmente protestos pacíficos que conseguiram fazer com que vários antigos regimes arraigados renunciassem. Os países em que esses movimentos foram bem-sucedidos não são os países mais pobres da África e do Oriente Médio. Ao contrário, foram os países semiperiféricos, em que um grupo grande de mobilização de jovens tem acesso às mídias sociais. Em muitos casos, os velhos autocratas estavam tentando implantar programas de austeridade para que pudessem tomar mais dinheiro emprestado do exterior, o que preparou o cenário para os movimentos de massa. Mas os movimentos da Primavera Árabe não levantaram, explicitamente, as questões da austeridade e da dependência financeira global.72 As questões levantadas pelos movimentos da Primavera Árabe estavam relacionadas principalmente à democracia nacional, não à justiça global. Mas o exemplo das massas de jovens unidos contra regimes impopulares se espalhou rapidamente para os estados centrais de segundo nível da Europa. A Espanha e a Grécia testemunharam grandes manifestações antiausteridade que foram inspiradas na Primavera Árabe. Essas manifestações foram dirigidas a regimes nacionais impopulares, mas também à estrutura financeira 72 A intervenção da OTAN na Líbia exibiu a ilegitimidade tanto de Khadafi quanto do nascente Estado global que o depôs. 123 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO global que tem exercido pressão sobre a austeridade draconiana e as novas privatizações no contexto da crise financeira global. Os programas de austeridade são as condições impostas pelo capital financeiro global para reinflar as estruturas de acumulação desses países europeus centrais de segundo nível. As rebeliões populares antiausteridade poderiam também provocar um colapso ainda maior se os investidores financeiros e respectivos agentes institucionais perdessem a fé na capacidade do sistema de reproduzir as estruturas existentes de acumulação. Os movimentos antiausteridade também se espalharam para alguns dos estados centrais onde crises fiscais graves levaram ao desmantelamento dos serviços públicos. O surgimento do movimento Ocuppy Wall Street, na cidade de Nova York, e sua rápida disseminação até pequenas cidades dos EUA e outras cidades do mundo todo, mostra que a resistência popular ao capital financeiro global é de fato generalizada (CHASE-DUNN; CURRAN-STRANGE, 2012). O que há de realmente errado com o capitalismo? Os movimentos e regimes que procuram transcender o capitalismo devem ter ideias claras sobre o que há realmente de errado com o capitalismo e como é possível corrigir estas deficiências. Estamos de acordo com Arrighi (2006) quanto à ideia de que os mercados em si não são o problema em relação ao capitalismo. O uso de ideias como a mercantilização e a privatização por políticos neoliberais para atacar os sindicatos e o estado-providência tende a causar uma reação excessiva contra os mercados e a mercantilização. Os mercados são úteis para fornecer sinais sobre demandas, pois as pessoas votam com seu dinheiro. As revoluções mundiais anteriores criticaram a mercantilização como um problema central do capitalismo. Esta foi uma maneira de mobilizar as massas alienadas quanto à impessoalidade das interações de mercado e às enormes desigualdades que pareciam ser produzidas por trocas mercantilizadas. O modelo de John Roemer (1994) de socialismo de mercado, no qual as ações de grandes empresas são distribuídas 124 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS - MUNDO igualmente para cada cidadão e podem ser trocadas por ações que são consideradas mais rentáveis, continuaria a exercer pressão sobre as grandes empresas para que essas fossem eficientes e obtivessem lucros, distribuindo as recompensas de forma mais igualitária para toda a população. Isto resolve o problema das “restrições orçamentárias brandas” em economias planificadas, como a União Soviética e a República Popular da China, pois as empresas devem vender produtos em um mercado competitivo e devem competir entre si pelo capital. Ainda não se experimentou tal modelo. Os experimentos na distribuição de cupons realizados durante a “terapia de choque” neoliberal na Europa Oriental após a queda do comunismo eram piadas cruéis através das quais as velhas oligarquias comunistas puderam estabelecer-se como novas proprietárias capitalistas dos grandes meios de produção. Apesar de concordarmos que não se deva experimentar o “socialismo” organizado como uma economia de comando centralizado baseada na propriedade estatal, acreditamos que outros modelos de socialismo podem muito bem desempenhar um papel importante no futuro, pois o capitalismo produz e reproduz níveis inaceitáveis de desigualdade. Boswell e Chase-Dunn (2000) imaginam uma forma plausível de socialismo em nível mundial que combina o socialismo de mercado de Roemer com instituições globais que reduzem as relações centro/ periferia e conferem algum poder aos trabalhadores na periferia. A revolução mundial de 1917 também atacou o individualismo como um dos males do capitalismo, o que foi um grande erro. A proteção dos direitos da pessoa humana é um valioso elemento da modernidade que não deveria ser atacado pelos socialistas. É um erro chamá-la de “individualismo burguês” e denegrir as proteções legais dos indivíduos que foram asseguradas em algumas constituições e aplicadas por alguns Estados. A racionalidade coletiva e a validação das comunidades humanas não exigem a rejeição do individualismo como um valor. Esse foi um erro reativo dos movimentos anteriores. As grandes populações já se tornaram aculturadas às trocas via mercado e aos direitos individuais. A cultura do consumismo não é um problema porque o mercado é alienante. O problema está no fato de que tal cultura foi organizada como desperdício perdulário dos recursos naturais e como poluição. Os movimentos neossocialistas precisam 125 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO construir novas versões de racionalidade coletiva que respeitem os direitos dos indivíduos. As grandes questões do século 21 serão a degradação ambiental, as desigualdades norte/sul e a crise de governança global, devido ao declínio da hegemonia dos EUA. As desigualdades podem ser tratadas por meio da estratégia de socialismo de mercado ou por uma versão global do keynesianismo, ou uma mistura dos dois. Ambos exigiriam instituições legítimas e com grande capacidade de governança global. Crises de degradação ambiental, tais como o aquecimento global e a justiça climática, também exigirão instituições globais legítimas e eficazes. E a degradação ambiental causa disputas pelos recursos. Essas disputas podem ser reduzidas por meio da resolução de conflitos por instituições democráticas de governança global. O capitalismo é um problema ambiental porque as empresas capitalistas tendem a externalizar os custos ambientais de suas operações. Uma mudança exigirá instituições reguladoras que tenham a capacidade de fazer cumprir as decisões tomadas democraticamente a respeito do uso dos recursos naturais e a respeito de quem vai pagar pela limpeza da poluição. Conclusões Assim sendo, os desenvolvimentos recentes constituem o início da crise terminal do capitalismo ou o início de outro ciclo sistêmico de acumulação? Conforme mencionado acima, o capitalismo predominante não existe há tanto tempo, do ponto de vista da sucessão de lógicas de reprodução social qualitativamente diferentes. Mas o capitalismo em si acelera a mudança social. As contradições do capitalismo especificadas por Wallerstein acabarão atingindo níveis nos quais elas não poderão ser controladas. Mas quando isso vai acontecer? Declarações de uma transformação iminente rumo a um modo qualitativamente diferente, mais humano e sustentável de acumulação são úteis para a mobilização de movimentos sociais. No entanto, o milenarismo corre o risco de desapontar quando a nova era utópica não chegar. Porém, são necessários experimentos no socialismo de mercado e 126 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS - MUNDO em comunidades ambientalmente saudáveis a fim de se demonstrar que essas formas de vida social são viáveis. Acreditamos que tanto uma nova etapa do capitalismo quanto uma transformação sistêmica qualitativa são possíveis nas próximas três décadas, mas um novo estágio do capitalismo é mais provável. Foi observado acima que a evolução da governança global ocorre quando os conservadores esclarecidos implementam as demandas de uma revolução mundial anterior com o propósito de arrefecer as pressões vindas de baixo que são trazidas à tona na revolução mundial corrente. Pensamos que o resultado mais provável da crise atual e da revolução mundial será uma forma de keynesianismo global em que parte da elite global, estimulada por revoltas e crises, formará um conjunto mais legítimo e democrático de instituições de governança global a fim de melhorar alguns dos problemas do século 21. Se o declínio da hegemonia dos EUA for lento, como tem sido desde os anos setenta, e se as crises financeira e ambiental forem escalonadas no tempo e os conflitos entre grupos étnicos e nações também forem escalonados, os conservadores esclarecidos e seus aliados terão, dessa forma, a chance de construir outra ordem mundial que, mesmo permanecendo capitalista, atenda aos desafios atuais, pelo menos parcialmente. Mas caso essas situações ocorram no mesmo período, os movimentos terão a chance de mudar radicalmente o modo de acumulação para alguma forma de socialismo global. Enquanto isso, de uma forma ou outra, os movimentos precisam esclarecer o que há de errado com o capitalismo e o que poderia ser feito para substituí-lo. Mesmo que a transformação rumo a uma comunidade coletivamente racional global não ocorra desta vez, a propagação das ideias e das demandas sinalizará a direção certa. Referências ALLISON, Juliann; BRECKENRIDGE-JACKSON, Ian; GUENTHER, Katja M. et. al. “Is the economic crisis a crisis for social justice activism/”. Policy Matters v. 5, n. 1 (Spring), 2011. Disponível em: <http://policymatters.ucr.eduAlexis>. 127 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO ALVAREZ, Hiroko Inoue; LAWRENCE, Kirk;, COURTNEY, Evelyn et al. “Semiperipheral Development and Empire Upsweeps Since the Bronze Age” IROWS Working Paper #56, 2011. Disponível em: <http://irows.ucr.edu/ papers/irows56/irows56.htm>. AMIN, Samir. Capitalism in an Age of Globalization. London: Zed Books, 1997. ARRIGHI, Giovanni. The Long Twentieth Century. London: Verso, 1994. _______. 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O objetivo deste artigo é reavaliar a base empírica da desigualdade global diante das transformações contínuas que têm caracterizado a economia-mundo durante os últimos vinte anos e na crise atual, e oferecer uma explicação crítica das atuais tendências da desigualdade 73 Doutor em Sociologia pela State University of New York - Binghamton. Professor da University of Maryland. 137 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO mundial, a partir de alguns insights teóricos mais gerais de Giovanni Arrighi sobre o desenvolvimento da economia-mundo.74 Tendências da desigualdade mundial e o impacto da crise atual Escrito logo após o colapso da União Soviética e do Bloco do Leste, o artigo de Arrighi (1991, p. 39) indicou que as desigualdades crescentes da renda mundial, que intensificaram apesar da industrialização bem-sucedida em muitas regiões da economia-mundo, eram a origem das “grandes revoltas políticas de nossos dias”. De acordo com Arrighi (1991, p. 40), em um esforço para aumentar o controle sobre a riqueza, os governos nacionais do século 20, no mundo inteiro, adotaram as estratégias de desenvolvimento prevalecentes, “internalizando dentro de seus domínios algumas características dos países mais ricos, tais como a industrialização e a urbanização”. No entanto, embora tenha sido bem-sucedida para algumas nações (como o Japão, entre as décadas de 1950 e 1960, ou a Coreia do Sul, entre os anos 70 e 80), essa trajetória de desenvolvimento “não modificou a hierarquia geral da riqueza” na economia-mundo. Para apresentar essas tendências, Arrighi, em sua contribuição para a revista New Left Review, em 1991, comparou tendências no compartilhamento da renda entre diferentes segmentos das populações da economiamundo. O primeiro segmento incluiu o que Arrighi (1991, p. 42) denominou núcleo orgânico: nações que, nos 50 anos anteriores a 1991, e de forma contínua, “ocuparam as primeiras posições na hierarquia global da riqueza”: diversos países da Europa Ocidental (Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Noruega, Suécia, Dinamarca, Finlândia, Alemanha Ocidental, Áustria, Suíça, França e Reino Unido), da América do Norte (Canadá e Estados Unidos) 74 Nosso foco recai no impacto da crise nas desigualdades mundiais de renda mais do que na trajetória da crise em si. Para uma visão geral da última, consulte o artigo de BLACKBURN, Robin. “The Subprime Crisis” (A Crise do Mercado Subprime), New Left Review, p. 63-106, mar-abr. 2008. 138 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA : EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA e da Oceania (Austrália e Nova Zelândia). Entre os países neste segmento “rico” da economia-mundo, os Estados Unidos assumiram a liderança logo após a Segunda Guerra Mundial, mas uma convergência considerável ocorreu entre esses países de alta renda após os anos 1950. Arrighi observou que, durante esse período de 50 anos, houve alguns casos notáveis de crescimento bem-sucedido por parte de países que no mesmo período passaram a ser considerados, de forma geral, os “milagres” econômicos de seu tempo: Japão e Coreia do Sul, na Ásia; Itália e Espanha, na Europa; Brasil, na América Latina. Para diferenciar essas trajetórias, Arrighi também avaliou o desempenho econômico relativo das nações que faziam parte do bloco socialista, antes dos anos 1990. No entanto, o ponto principal da análise de Arrighi, em seu artigo de 1991, foi a avaliação da trajetória da brecha que separa as nações pobres das ricas. Neste sentido, Arrighi (1991, p. 49) aponta que ocorreu, na verdade, uma redução significativa da participação da grande maioria das populações do mundo na renda mundial durante boa parte do período após a Segunda Guerra Mundial, de forma que “a tendência das desigualdades de renda durante os últimos 50 anos foi de declínio entre as regiões ricas, mas de aumento para as regiões mais pobres”. Houve uma mudança dessas tendências durante os cerca de vinte anos que se seguiram à publicação do artigo de Arrighi em 1991? Para avaliar essa questão, este artigo reproduz o tipo de exercício empírico realizado por Arrighi: são utilizados os dados da renda nacional para o cálculo do produto nacional bruto per capita (PNBPC) de diversos segmentos da população (POP) no mundo inteiro, expressados como uma porcentagem dos valores equivalentes para o que Arrighi denominou de “núcleo orgânico”. Esse cálculo serve para medir até que ponto as populações de países e/ou regiões específicas alcançaram os níveis de renda das populações das nações de alta renda. A tabela 1 mostra que houve uma década (entre a metade dos anos 1990 e meados dos anos 2000) em que o crescimento econômico foi mais rápido na América do Norte do que no resto do mundo “ocidental” (incluindo Austrália e Nova Zelândia). Entretanto, a posição geral relativa das nações “ocidentais” mais ricas do mundo não mudou drasticamente entre o começo 139 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO dos anos 1990 e meados dos anos 2000; na verdade, há indícios constantes de uma convergência crescente entre as nações de alta renda. Tabela 1: Comparação do Desempenho Econômico no “Ocidente” de Arrighi (Centro Orgânico) I, Europa Ocidental (12) II, América do Norte (2) 1973 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2006 2007 PNBPC 79,5 98,4 73,4 94,5 98,9 88,9 95,1 96,1 97,5 POP 49,6 48,0 47,0 46,2 45,2 44,2 43,4 43,3 43 PNBPC 123,0 103,0 126,5 106,9 103,2 112,0 106,2 105,0 103,7 POP 47,1 48,6 49,5 50,1 51,0 52,0 52,6 52,8 52,9 79,4 80,9 82,7 76,1 69,5 65,7 71,4 75,9 78,3 3,3 3,4 3,6 3,7 3,8 3,8 3,9 4,0 4,0 III, Austrália e N. Zelândia (2) PNBPC POP Observações: Os dados de PNBPC (produto nacional bruto per capita) e POP (população) são razões para seus equivalentes do núcleo orgânico de Arrighi (Áustria, Benelux e países escandinavos, Alemanha, Suíça, França, Reino Unido, Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia) Fonte: Cálculos do autor baseados no Banco Mundial (2010) E quanto aos cinco países que apareceram como os casos promissores mais notáveis de crescimento bem-sucedido nos anos 1980 e começo dos anos 1990? Conforme a tabela 2, abaixo, o Japão, aclamado por autoridades e formuladores de políticas como um modelo de sucesso econômico nos anos 1980, quando parecia estar ultrapassando rapidamente os Estados Unidos e as outras nações ocidentais do centro, alcançou altos índices no PNBPC relativo na metade dos anos 1990, e declinou, posteriormente, em consequência da estagnação econômica virtual (especialmente em comparação ao desempenho dos países ocidentais discutidos anteriormente). Em geral, os níveis de PNBPC relativo do Brasil e da Itália se mantiveram entre o começo dos anos 1990 e meados dos anos 2000 (com pequenas diferenças entre os dois países em momentos específicos nos períodos de maior ou menor crescimento). Por outro lado, por conta de oportunidades e estratégias relativamente diferentes de crescimento, tanto a Coreia do Sul quanto a Espanha continuaram a alcançar o “núcleo orgânico” durante todo o período (com crescimento mais acentuado após o começo dos anos 2000). 140 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA : EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA Tabela 2: Comparação do Desempenho Econômico nos “milagres econômicos” de Arrighi 1973 1985 1990 2000 2005 2006 2007 PNBPC 61,7 82,8 82,4 123,8 153,4 116,8 97,3 POP 21,7 22,5 22,6 22,3 21,6 21,1 20,5 PNBPC 7,4 14,6 17,7 27,9 41,0 33,0 39,8 POP 6,8 7,4 7,6 7,7 7,8 7,8 7,7 PNBPC 55,7 65,0 58,5 83,1 75,1 70,4 76,3 POP 11,0 10,9 10,6 10,2 9,8 9,5 9,4 PNBPC 36,4 48,7 33,7 55,2 55,3 52,0 63,6 POP 3,3 3,4 3,6 3,7 3,8 3,8 3,9 PNBPC 13,5 17,6 11,9 12,5 14,2 13,0 9,7 POP 20,7 23,4 25,5 27,0 27,9 28,9 30,0 1. Leste da Ásia 1.1. Japão 1.2. Coreia do Sul 2. Sul da Europa 2.1 Itália 2.2 Espanha 3. América Latina 3.1 Brasil Observações: Os dados de PNBPC (produto nacional bruto per capita) e POP (população) são razões para seus equivalentes do núcleo orgânico de Arrighi (consulte a Tabela 1) Fonte: Cálculos do autor baseados no Banco Mundial (2010) O padrão misto de trajetórias de crescimento econômico com grau maior e menor de êxito também caracteriza a maioria das regiões do mundo. Como indicado na tabela 3, abaixo, para muitas nações, os anos 90 e a década seguinte trouxeram convergências insignificantes ou insuficientes com o núcleo orgânico. Por exemplo, este foi o caso da América Latina (com exceção do Brasil), que de forma geral perdeu bastante terreno durante os anos 70 e 80, atingindo o patamar mais baixo no começo dos anos 90. Posteriormente, a média relativa do PNBPC para a América Latina com um todo mostrou 141 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO alguma recuperação em relação ao núcleo orgânico, aproximando-se da posição relativa que ocupava em meados dos anos 80, mas sem recuperar a posição alcançada nos anos 1970. Tabela 3: Comparação do Desempenho Econômico no “Sul “e “Leste” de Arrighi 1973 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2006 2007 PNBPC 18,1 17,6 14,4 10,0 13,3 13,9 12,7 13,5 14,6 POP 32,7 37,1 40,0 42,5 45,3 47,1 48,4 48,6 48,8 PNBPC 12,2 15,5 19,7 21,2 23,4 POP 8,4 8,1 7,7 7,7 7,6 I. América Latina, excluindo o Brasil II. Hungria e Polônia III. Oriente Médio e Norte da África PNBPC 9,4 10,0 8,6 8,0 7,1 6,9 7,4 8,1 8,9 POP 22,8 26,1 29,1 31,6 33,6 35,6 38,4 38,8 39,2 PNBPC 3,5 4,7 2,4 1,5 1,0 0,9 1,1 1,3 1,4 POP 3,3 3,4 3,6 3,7 3,8 3,8 3,9 4,0 4,0 IV. África Sub-Sahariana IV.1. Ocidental e Oriental lV.2. Meridional e Central PNBPC 12,2 11,3 8,8 7,1 5,9 4,2 4,7 5,0 5,0 POP 149,1 168,5 183,0 196,3 206,9 218,1 228,3 230,0 231,7 V. Sul da Ásia PNBPC 2,6 2,2 2,2 1,8 1,5 1,5 1,8 1,9 2,1 149,1 168,5 183,0 196,3 206,9 218,1 228,3 230,0 231,7 PNBPC 3,8 5,5 5,4 4,7 6,6 4,5 5,0 5,3 5,9 POP 33,4 37,9 40,7 43,2 45,1 46,9 48,9 49,2 49,5 POP VI.Sudeste da Ásia VII. China PNBPC POP 2,8 2,8 1,7 1,5 2,0 3,1 4,4 4,8 5,4 177,4 189,2 197,0 204,9 207,9 209,9 209,1 208,7 208,3 Observações: Os dados de PNBPC (produto nacional bruto per capita) e POP (população) são razões para seus equivalentes do núcleo orgânico de Arrighi (consulte a tabela 1) Fonte: Cálculos do autor baseados no Banco Mundial (2010) 142 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA : EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA Houve um declínio relativo bastante longo também no Oriente Médio e na África do Norte, mas isto ocorreu nas duas últimas décadas do século 20, com uma pequena recuperação do terreno perdido depois de 2001. Os padrões eram comparáveis aos da África Subsaariana e da maior parte do sul da Ásia. Desse modo, a maioria das nações periféricas e semiperiféricas tiveram pouco êxito em alcançar a média do PNBPC do núcleo orgânico nos anos 1990 e 2000, assim como havia ocorrido nos 50 anos precedentes, conforme explica Arrighi em seu artigo de 1991. Obviamente, essas tendências sinalizam apenas uma parte limitada da história das tendências atuais na desigualdade da renda mundial. Com certeza, o que mais impressiona nas últimas duas décadas, desde o artigo de Arrighi, em 1991, são as taxas extremamente altas de crescimento econômico vivenciadas por grande parte da população mundial, primeiramente na China, mas posteriormente ocorrendo de modo significativo também na Índia (vide tabela 3). Abaixo, a tabela 4 indica que, nos últimos vinte anos, a China tem crescido a uma taxa média anual impressionante, de cerca de 10%. Na Índia, as taxas de crescimento têm oscilado mais do que na China, mas foi registrada uma taxa média anual de crescimento do PIB também notável, de 6,3%. Tabela 4: Taxas de Crescimento Anual do PIB para a Índia e China, 1990-2009 China Índia 1990 3,8 5,6 1991 9,2 2,1 1992 14,2 4,4 1993 14,4 4,9 1994 13,1 6,2 1995 10,9 7,4 I996 10,0 7,6 1997 9,3 4,6 1998 7,8 6,0 1999 7,6 6,9 (Continua) 143 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO (Conclusão) China Índia 2000 8,4 5,7 2001 8,3 3,9 2002 9,1 4,6 2003 10,0 6,9 2004 10,1 7,9 2005 10,4 9,2 2006 11,6 9,8 2007 13,0 9,4 2008 9,6 7,3 2009 8,7 5,7 Observação: Preços constantes Fonte: Fundo Monetário Internacional (2010) Qual tem sido o impacto geral das atuais tendências de crescimento econômico na estratificação social global? Para avaliar essa questão, a figura 1, abaixo, exibe duas estimativas distintas da trajetória da desigualdade entre países durante as últimas quatro décadas, mensuradas com os coeficientes de Gini, e calculadas através dos dados de produto interno bruto do Banco Mundial (2010), em dólares americanos constantes (ano 2000) e ponderados pelas estimativas populacionais elaboradas pela mesma instituição.75 Os coeficientes de Gini, que são medidas de desigualdade razoavelmente intuitivas e amplamente utilizadas, podem oscilar entre 0 (completa igualdade) e 1 (completa desigualdade). 75 Arrighi e Drangel (1986), e também Korzeniewicz e Moran (2000 e 2009), afirmam que as medidas de renda FX, ajustadas pelo mercado Forex, são as mais adequadas para a análise da desigualdade global, especialmente em estudos longitudinais. 144 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA : EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA Figura 1: Coeficientes de Gini para desigualdade entre países: 1973-2008 Observação: com a China, tamanho da amostra = 117 países; 86% da população do mundo em 2000 Fonte: Cálculos dos autores baseados no Banco Mundial (2010) As tendências sugeridas pelos coeficientes de Gini na figura 1, acima, realmente confirmam que houve certo declínio nas desigualdades da renda mundial durante os últimos 20 anos. Por volta de 1990, as desigualdades entre países atingiram o pico, com o coeficiente de Gini chegando a 0,755. Esse é um nível de desigualdade muito alto (igual ou maior do que o coeficiente de Gini observado na distribuição de renda dentro dos países mais desiguais no mundo – como o Brasil ou a África do Sul). Após 1990, o coeficiente de Gini começou a declinar, alcançando o nível baixo 0,708 em 2008 (embora ainda seja considerado alto para o padrão de distribuição de renda dentro de países). Desse modo, entre 1980 e 2008, utilizando a base de dados FX, os respectivos coeficientes de Gini diminuíram 6,2%. A China e, mais recentemente, a Índia, realmente causaram um impacto significativo na configuração de tendências na desigualdade entre países. De acordo com as tendências exibidas na figura 1, caso a China seja excluída do rol de nações no referido cálculo, desaparecerá uma grande parte da queda dos coeficientes de Gini para o período em análise: com a exclusão 145 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO da China, os coeficientes de Gini para o período como um todo são consideravelmente menores, o pico na desigualdade entre países (0,717) é alcançado entre 2001 e 2002 e a queda da desigualdade, entre 2002 e 2008, é 1,1%, um resultado bem mais modesto. No entanto, isso não significa que a queda das desigualdades da renda mundial entre os países seja superestimada pela inclusão da China e da Índia. De fato, esses dois países reúnem cerca de 40% da população mundial em seus territórios; por essa razão, o desempenho relativo de ambos realmente molda de forma significativa as tendências relevantes da distribuição de renda mundial. Assim, conforme observado por Aglietta (2008, p. 61-2), o crescimento da China e da Índia é como “uma grande bifurcação do capitalismo”, pois o crescimento contínuo desses dois países nas próximas décadas, mesmo que a taxas um pouco mais baixas do que as observadas nos últimos 20 anos, conseguiria, após algumas gerações, “quase reverter a brecha criada pela revolução industrial, pelo colonialismo e o imperialismo do século 19, seguidos da guerra e das revoluções do século 20”. Além disso, não há dúvida alguma de que o rápido crescimento econômico da China e da Índia nos últimos 20 anos realmente transformou os mercados mundiais de trabalho, nos quais “[a] oferta mundial de mão de obra quase dobrou com a abertura da [China e Índia] ao comércio exterior desde meados dos anos 1990” (AGLIETTA 2008, p. 72). Por isso, Anderson (2007, p. 5) sugere que “a emergência da China como a nova oficina do mundo [representa] não somente a rápida expansão de uma economia nacional gigantesca, mas também uma mudança na estrutura do mercado mundial”. Historicamente, sempre houve mobilidade de nações individualmente; por exemplo, a Suécia no final do século 19, o Japão logo após a Segunda Guerra Mundial, ou a Coreia do Sul, nos anos 1970 e 1980. No entanto, no passado, a mobilidade ascendente das nações individuais ocorreu dentro de um cenário em que a desigualdade sistêmica subsistiu ou se tornou ainda mais pronunciada. A vasta extensão da China e da Índia faz com a que a história agora seja diferente, pois a mobilidade efetiva desses países, mesmo que limitada a esses dois casos, implicaria uma mudança na lógica que prevaleceu até agora na economia-mundo. 146 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA : EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA Embora os dados existentes desafiem a noção de que as desigualdades globais continuaram crescendo ou permaneceram inalteradas durante os últimos 20 anos, algumas ressalvas importantes devem ser observadas em relação à hipótese de convergência. Embora tenha ocorrido um declínio na desigualdade entre países nos últimos 20 anos, os principais coeficientes de Gini permanecem muito altos, mesmo com o impressionante crescimento da China (e, por um período menor, da Índia). A título de exemplo, talvez não haja uma única nação no mundo que tenha um nível de desigualdade dentro do país tão alto quanto os níveis exibidos na figura 1 (atualmente, os níveis mais altos de desigualdade dentro dos países são encontrados na África do Sul, no Zimbábue, na Bolívia e no Brasil). Além disso, embora seja necessária, sem dúvida, a inclusão da China e da Índia em qualquer avaliação dessas tendências, é preciso levar em consideração o fato de que as disparidades entre os países remanescentes permanecem altas quando se avalia como as diversas populações no mundo inteiro percebem os padrões contemporâneos de mudança. Tabela 5: Taxas de crescimento reais e projetadas para países selecionados e grupos de nações, 2005-2015 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 G7 2,4 2,6 2,2 0,2 -3,4 2,4 2,3 2,3 2,3 2,2 2,1 União Europeia 2,2 3,4 3,1 0,9 - 4, 1 1,0 1,8 2,2 2,3 2,2 2,1 Europa Central e Oriental 5,9 6,5 5,5 3,0 -3,7 2,8 3,4 4,0 4,0 4,0 4,0 Ásia em desenvolvimento 9,0 9,8 10,6 7,9 6,6 8,7 8,7 8,6 8,6 8,6 8,5 China 10,4 11,6 13,0 9,6 8,7 10,0 9,9 9,8 9,7 9,6 9,5 Índia 9,2 9,8 9,4 7,3 5,7 8,8 8,4 8,0 8,1 8,1 8,1 Oriente Médio e Norte da África 5,4 5,7 5,6 5,1 2,4 4,5 4,8 4,8 4,7 4,8 4,8 África Sub-Sahariana 6,3 6,5 6,9 5,5 2,1 4,7 5,9 5,5 5,6 5,5 5,4 Hemisfério ocidental 4,7 5,6 5,8 4,3 -1,8 4,0 4,0 4,3 4,2 4,1 4,0 Observação: Taxas calculadas com preços correntes; taxas projetadas em itálico Fonte: Fundo Monetário Internacional (2010) 147 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Qual impacto pode ser esperado da atual crise econômica nas tendências observadas na distribuição mundial da renda? Conforme sugere a tabela 5, abaixo, a expectativa é de que as taxas do crescimento econômico na China e na Índia permaneçam altas em um futuro próximo: o Fundo Monetário Internacional (FMI) projeta uma taxa média de crescimento anual de 9,6%, para a China, e de 7,8%, para a Índia, no período de 2008 a 2015. Essas taxas são menores do que o ápice das taxas de crescimento econômico obtidas em 2006 (Índia) ou em 2007 (China), mas permanecem espetacularmente altas para os padrões mundiais. O rápido crescimento econômico não se limitou apenas à Índia e à China. Diversos países foram privilegiados pela recente alta do preço das matérias primas (por exemplo, este é o caso da Argentina, onde as taxas de crescimento após o colapso econômico do começo dos anos 2000 se aproximaram do que os observadores locais na região chamaram de “taxas chinesas”). Além disso, as taxas médias de crescimento na América Latina e na África continuaram acima do patamar alcançado nas duas últimas décadas do século 20. Em contraste, a crise foi acompanhada de contração econômica e desemprego crescente no centro. De acordo com as projeções do FMI, as taxas médias do crescimento econômico no G-7 (Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e Estados Unidos) decresceram de 2,5%, em 2006, para 2,3%, em 2007, e para 1,1%, em 2008, havendo a expectativa de que continuem baixas, retornando a uma variação de 2,3 a 2,4% no período de 2010 a 2015. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, houve um declínio constante nas taxas de crescimento econômico entre 2005 e 2008-9, de aproximadamente 3% para quase 0,5%, embora aqui a recuperação tenha sido projetada para alcançar níveis mais altos entre 2011 e 2013 do que no restante dos países do G-7. A atual crise econômica foi especialmente acentuada em alguns dos países que haviam atingido elevadas taxas de crescimento econômico na 148 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA : EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA década de 90 e início dos anos 2000: os assim chamados PIGS (Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha). Durante o ano de 2010, Grécia e Portugal se destacaram entre os países cujas dificuldades fiscais resultaram em um declínio significativo de mercado em toda a Europa, o que exigiu a elaboração de planos especiais de salvamento pela União Europeia. Mas a crise também teve um forte impacto nos outros dois países. A taxa média de crescimento do PIB na Irlanda no período 1995-2000 foi de 9,6%, mas ficou abaixo de 3% em 2008-9. Na Espanha, o PIB cresceu a uma média mais modesta de 3,8% entre 1997 e 2007, mas ficou abaixo de 2% nos dois anos seguintes. Sendo assim, qual é o impacto total dessas tendências de crescimento econômico sobre a desigualdade global? Para avaliar essa questão, reproduzimos o exercício apresentado anteriormente na figura 1 para a estimativa da evolução hipotética de coeficientes de Gini globais em um futuro próximo. Para realizar este exercício, combinamos as projeções de crescimento econômico feitas pelo FMI com dados de renda do Banco Mundial utilizados na figura 1 (a amostra resultante para a figura 2 é diferente da amostra utilizada na figura 1). As ressalvas usuais se aplicam aqui: estas projeções são apenas estimativas e, no caso do FMI, essas estimativas são bastante otimistas em relação ao ritmo provável de recuperação econômica nos próximos anos. Entretanto, em vista dessas ressalvas, as estimativas permitem ao menos uma avaliação preliminar do provável impacto da atual crise econômica sobre a desigualdade global. Conforme indicado pela figura 2, adiante, se as estimativas projetadas forem, de alguma forma, precisas, é provável que as desigualdades entre os países continuem a diminuir no futuro próximo. De acordo com essas estimativas, pode-se esperar que as desigualdades entre os países diminuam a cada ano, de hoje até 2015: desse modo, na nova série exibida na figura 2, espera-se que a desigualdade entre países diminua do coeficiente de Gini máximo de 0,762, alcançado em 1990, para 0,676 em 2015: um declínio total bastante significativo, de 11,3%. 149 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Figura 2: Coeficientes de Gini para desigualdade entre países: 2000-2015 Observação: com a China e a Índia, tamanho da amostra = 174; 97% da população do mundo em 2000 Fonte: Cálculos dos autores baseados no Banco Mundial (2010); os números após 2009 são projeções baseadas no FMI (2010) As mesmas ressalvas observadas anteriormente também se aplicam aqui. Essas mudanças da desigualdade entre países estão sendo impulsionadas principalmente pela China e pela Índia (o declínio do coeficiente de Gini entre 2000 e 2015 é 9,6%, com a inclusão de todos os países, 3,8%, excluindo-se a China, e 2,1%, excluindo-se a China e a Índia). Assim, será fundamental manter altas taxas de crescimento econômico nestes dois países para que essas desigualdades entre países continuem a diminuir no futuro. Isso exigirá a contínua atualização tecnológica e organizacional, uma tarefa incitada por líderes políticos e formuladores de políticas nesses dois países, mas sem garantias de resultados.76 Além disso, conforme já observado, o crescimento econômico no caso da China foi associado a um aumento substancial na 76 Consultar, como exemplo, o artigo de John Pomfret, Beijing tries to push beyond ‘Made in China’ status to find name-brand innovation (Pequim tenta superar o status ‘Made in China’ para a inovação de marcas), The Washington Post, 24 maio 2010). Disponível em: <http:// www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2010/05/24/AR2010052404126.html>. 150 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA : EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA desigualdade no país: isso pode não apenas se tornar uma fonte de demandas políticas em prol de uma maior equidade dentro do país, dificultando uma trajetória simples de crescimento contínuo, mas também acabar propiciando um novo aumento na desigualdade mundial como um todo.77 Há questões que permanecem em aberto no que tange à evolução das desigualdades entre países nas outras regiões do mundo (especialmente na África e na América Latina). Aqui, não está claro se outros países de renda baixa e média serão capazes de seguir o mesmo caminho, por exemplo, encontrar sinergias com o crescimento da China e da Índia por meio da produção de alimentos e matérias-primas, ou se o próprio sucesso da China e da Índia prejudicará as oportunidades de crescimento econômico em outros lugares.78 Além disso, devemos destacar também que mesmo depois de vinte e cinco anos de crescimento extraordinário nas regiões periféricas, as desigualdades entre países continuariam em um nível extremamente alto – poucos países do mundo apresentam coeficientes de Gini acima de 0,676 (o nível em que as desigualdades entre países permaneceria em 2015, se as projeções otimistas para a China e a Índia se mantivessem conforme as projeções do FMI). Talvez os governos dos países ricos também fiquem tentados a adotar políticas destinadas a reverter essas mudanças relativas na desigualdade da renda mundial. Em primeiro lugar, especialmente em resposta à crise econômica, os formuladores de políticas de instituições financeiras internacionais e organizações multilaterais em 2010 defenderam a adoção de políticas de ajuste nas nações ricas e um crescimento econômico mais lento na China. Captando alguns aspectos desta estratégia dupla, o jornal The Washington Post observou que “o fluxo da dívida dos EUA com o Banco Popular da China atuou como uma espécie de cartão de crédito coletivo gigante, financiando consumidores nos Estados Unidos e impulsionando modelos de 77 O Professor Ho-Fung Hung, do Departamento de Sociologia da Universidade Johns Hopkins, está desenvolvendo a pesquisa desta última questão em seu estudo atual. 78 Como exemplo, para uma avaliação pessimista do impacto da produção chinesa de matériaprima no continente africano, consultar: <http://www.elpais.com/articulo/portada/nuevos/ amos/Africa/elpepusoceps/20100509elpepspor_9/Tes>. 151 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO negócios de grandes varejistas, como o Wal-Mart”, e resumiu as descobertas recentes do FMI, indicando que [...] para manter a economia global sob controle, o povo norte-americano e o resto do mundo desenvolvido precisam trabalhar mais antes de se aposentar, pagar impostos mais elevados e esperar menos do governo. E as importações baratas que ocupam as prateleiras de mega-redes como o Wal-Mart e a Target? Elas precisam ser mais caras.79 Os planos de ajuste estão gerando grande descontentamento popular em toda a Europa, e é provável que esse descontentamento se intensifique caso os supostos benefícios desses ajustes sejam ofuscados por efeitos negativos e/ou a “equiparação” mais acelerada de países como a China e a Índia. Por outro lado, ainda não há sinais de que os governos dos Estados Unidos e de outras nações ricas tenham sido particularmente eficazes em convencer seus homólogos chineses a desacelerar o crescimento.80 Uma segunda reação possível seria uma onda renovada de protecionismo direcionada aos países que estão se industrializando rapidamente. Apesar da existência de alguns defensores dessa estratégia, incluindo, por vezes, organizações sindicais nos países mais ricos, houve um avanço conjunto e indiscriminado muito pequeno no sentido de restringir os mercados. Assim, o Fórum Mundial do Comércio observa que “os acordos internacionais, como a estrutura da OMC e as promessas do G20, contribuíram para limitar o efeito das pressões protecionistas sobre as barreiras comerciais. Apesar dos temores em relação ao crescente protecionismo, [...] a grande maioria dos 79 <http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2010/04/23/AR2010042305258. html>. 80 Assim, um artigo recente publicado no The New York Times (26 out. 2010) indica que “o governo de Obama, diante de uma relação conturbada com a China, no que diz respeito a taxas alfandegárias, comércio e questões de segurança, está tornando sua abordagem com Pequim cada vez mais rígida, procurando aliados para o confronto com esta nova potência agressiva assertiva, que, segundo relatos oficiais, informa ter poucas intenções de negociar com os Estados Unidos. Extraído e traduzido do site: <http://www.nytimes.com/2010/10/26/ world/asia/26china.html?hp>. 152 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA : EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA países não criou barreiras ao comércio.”81 No entanto, grupos de interesse podem ser suficientemente poderosos em áreas específicas da produção e do comércio para impor este tipo de restrições, e/ou um aprofundamento da crise econômica poderia dar vazão a uma maior demanda por protecionismo. Uma terceira área em que, de fato, houve uma reação mais evidente por parte das nações ricas corresponde à migração internacional. Nesse ponto, muitos países da Europa e os Estados Unidos empregaram esforços políticos para a adoção de políticas mais restritivas em relação aos imigrantes. Embora, ao contrário do ocorrido no final do século XIX e início do século XX, essa já não seja mais a arena primária que está gerando o processo atual de convergência limitada entre nações ricas e pobres, é possível especular que focalizar nos migrantes adquire importância simbólica nos esforços para conter a erosão percebida das fronteiras nacionais na atual transformação dos arranjos institucionais globais. Independentemente da intensidade com que essas reações surgem no centro, o que deve ser discutido é se as transformações recentes na distribuição mundial da renda avançaram longe demais para serem revertidas por meio das políticas adotadas nos países de alta renda. Para Hung (2009, p. 24), é muito cedo para dizer se a China poderá servir de base para o crescimento, já que “a contenção dos salários no longo prazo restringe o crescimento do poder de consumo da China.” Por outro lado, Aglietta (2008, p. 71) destaca que “juntas, as exportações da China para os Estados Unidos e a Europa não somam mais do que 40% do total”, e que “as exportações representam cerca de 40% do PIB da China”; portanto, é improvável que qualquer redução na demanda por essas exportações nos Estados Unidos e na Europa, seja em decorrência de uma desaceleração econômica ou por qualquer outro motivo, não teriam mais do que um leve impacto no crescimento da China.82 81 Disponível em: <http://www.weforum.org/en/initiatives/gcp/GlobalEnablingTradeReport/ index.html>. Acesso em: 28 maio 2010. 82 Gowan (2009, p. 28) também afirma que “as economias do leste asiático, principalmente a da China, serão cada vez mais essenciais para as tendências macroeconômicas globais, ao passo que o longo histórico de centralidade dos Estados Unidos se enfraquecerá durante um longo grande período de estagnação.” 153 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Giovanni Arrighi e o repensar das desigualdades de renda mundial Como o trabalho de Giovanni Arrighi nos ajuda a pensar sobre essas transformações nas desigualdades na distribuição da renda mundial? Para alguns formuladores de políticas e teóricos das ciências sociais que são fortes defensores da globalização, essas tendências no crescimento econômico fornecem clara evidência de que as desigualdades entre países estão em declínio à medida que os mercados e a industrialização se espalham pelo mundo inteiro. Assim, Sala-I-Martin (2006), brincando com o título de um artigo anterior de Pritchett (1997), simplesmente rotula as tendências atuais como Convergence, Big Time (algo como “Convergência, chegou a hora”). Também Firebaugh (2003, p. 190) argumenta que o aumento da desigualdade entre países antes da década de 60 e o subsequente declínio podem ser atribuídos às diferentes taxas de industrialização nas nações ricas e pobres: como a industrialização se firmou, em primeiro lugar, nas nações inicialmente mais ricas, os ricos tornaram-se mais ricos e a desigualdade disparou entre as nações. Agora, como a industrialização está se espalhando para as nações mais pobres, as regiões pobres estão colhendo os benefícios do crescimento industrial e a desigualdade está diminuindo entre as nações. Estas avaliações otimistas evocam o paradigma há muito tempo estabelecido que deu forma aos estudos sobre a “modernização”. Desde meados do século XX, as diversas abordagens da “modernização” argumentaram que da mesma forma que as nações passam por uma transição dos arranjos rurais (ou agrícolas/tradicionais) para os urbanos (ou industriais/modernos), a desigualdade entre os países é causada pelo fato de algumas nações tomarem a dianteira no processo de industrialização, enquanto outras ficam para trás. Conforme a famosa hipótese do U invertido de Simon Kuznets (1955), o aumento na desigualdade deveria ser meramente transitório e durar apenas o tempo suficiente para que as nações atrasadas alcançassem as que estavam 154 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA : EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA na liderança.83 Esta linha de interpretação entendia as nações como entidades independentes e autônomas que embarcam, embora com diferenças temporais, em um processo universal de transformação da tradição para a modernidade. O grau relativo de comando sobre a renda era percebido como uma consequência da modernização, e a obtenção da riqueza pelas nações indicava o êxito relativo em adotar elementos essenciais da modernização (como a urbanização e a industrialização). Ao longo do tempo, à medida que todas as nações avançassem em direção a práticas e modos de pensamento universais, esperava-se que a convergência ocorresse e que a desigualdade entre as nações declinasse. Perspectivas mais críticas constantemente contestam essa avaliação otimista das tendências atuais. Alguns destes críticos argumentam que assim que passamos dos agregados contábeis da renda nacional para as experiências reais dos pobres e desfavorecidos em todo o mundo, descobriremos que “a desaceleração global cobrou um pedágio mais elevado e desproporcional nos setores mais vulneráveis: os grandes exércitos de trabalhadores mal remunerados, com baixo nível de escolaridade e sem recursos que formam as superpovoadas profundezas da economia mundial” (BREMAN, 2009, p. 29). Mas de forma ainda mais direta, alguns observadores críticos contestam até mesmo a amplitude do declínio das desigualdades da renda mundial. Por exemplo, Milanovic (2005) observa que, enquanto a desigualdade global (combinando dados sobre a desigualdade entre países e dentro dos países) manteve-se relativamente estável, a desigualdade entre países diminuiu ligeiramente durante as últimas duas décadas do século XX. No entanto, o autor indica que este declínio é menor se forem levadas em consideração as crescentes disparidades regionais dentro da China, e desaparece completamente se a China for excluída da amostra. Da mesma forma, Wade (2004, 83 Como um exemplo simples deste argumento, consulte Firebaugh (2003, p. 174), que acredita que “o aumento (durante grande parte do século XIX e na primeira metade do século XX), a redução (na segunda metade do século XX) e o decréscimo da desigualdade entre nações são explicadas, essencialmente, pela disparidade na expansão da industrialização para nações pobres. […] Já que a industrialização se iniciou nas nações mais ricas, a expansão da globalização estimulou o nível de desigualdade entre nações. […] Agora, no entanto, a difusão da industrialização visa compactar a desigualdade entre nações.” 155 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO p. 581; ver também WADE, 2008) argumenta que, quando medida pela renda média per capita ajustada pelas paridades do poder de compra, a desigualdade entre países diminuiu, “mas retire a China e mesmo essa medida indicará um aumento da desigualdade”. Por fim, mesmo ao reconhecer que pode ter havido um crescimento econômico significativo em países como a China ou a Índia, os observadores críticos contra-argumentam que este crescimento enfrenta limites imediatos, e é improvável que dure por muito tempo.84 Subjacente a estas perspectivas críticas, há a compreensão de que o crescimento da “globalização” ou dos mercados ao longo das últimas duas décadas ainda é marcado por padrões persistentes de polarização e desigualdade. Aqui, as perspectivas contemporâneas se conectam às abordagens mais antigas e críticas do papel dos mercados na perpetuação das desigualdades. Entre essas abordagens mais antigas, Raul Prebisch (p. ex., 1950) e Arghiri Emmanuel (1972) argumentam que a diferença de riqueza entre nações ricas e pobres foi mantida e/ou aprofundada pelas interações do mercado, pois as diferenças salariais entre o centro e a periferia estavam na origem da deterioração dos termos de intercâmbio (Prebisch) ou da troca desigual (Emmanuel) entre produtos periféricos e centrais.85 Em diferentes graus, a noção de que o mercado é uma arena importante para o desdobramento da troca desigual, e de que a troca desigual constitui a principal força que molda as desigualdades entre as nações centrais e periféricas, é fundamental para muitas formulações das abordagens do sistema-mundo e da dependência – especialmente aquelas que tendem a perceber as desigualdades principalmente 84 Nessa mesma linha, Balakrishnan (2009, p. 5) argumenta que “a taxa de crescimento da China, em razão do mercado de exportação, estagnará, porque os mercados estarão esgotados. Ainda não está claro se o país pode mudar o foco para a acumulação baseada no mercado doméstico sem um decréscimo significativo no crescimento. Apenas após um longo processo sociopolítico de transformação e produção de uma demanda doméstica compensatória é que as bases sólidas do crescimento sustentável serão lançadas para a população de 1,25 bilhão de habitantes.” 85 Representações mais simplistas desses argumentos concluem que para as nações, o status central ou periférico na economia mundial corresponde, respectivamente, à produção manufatureira e à produção de matérias primas. Arrighi (1986; 1990) contestou tal conclusão, criticando qualquer noção de que a manufatura ou a industrialização correspondam necessariamente ou estejam ligadas ao desenvolvimento ou a uma fatia maior da renda mundial. 156 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA : EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA como resultado da exploração (de uma classe por outra ou de países pobres por países ricos).86 A obra de Giovanni Arrighi nos obriga a pensar criticamente sobre estes argumentos. Comecemos pela troca desigual. Depois de lembrar aos leitores que o conceito de “troca desigual” tal como desenvolvido por Emmanuel “refere-se ao comércio entre estados caracterizados por níveis salariais diferentes, mas com a taxa de lucro e nível de produtividade iguais”, Arrighi observa que, apesar do papel histórico que essas trocas podem ter desempenhado no aprofundamento da desigualdade entre as nações, nada impede que a troca desigual mude de posição e proporcione vantagens comparativas à periferia. Assim, [um] país que vende commodities que incorporam mão de obra com altos salários em troca de commodities que possuem mão de obra com baixos salários pode continuar fazendo isso e colher os benefícios da troca apenas na medida em que a relação da produção e do consumo entre os dois tipos de commodity seja de complementaridade em vez de concorrência. Se por qualquer razão a relação de complementaridade enfraquecer e a de concorrência tornar-se mais forte, neste sentido, a troca desigual torna-se a arma do país “explorado” para obter riqueza, poder e bem-estar em relação ao país “explorador” e, possivelmente, em detrimento do mesmo. (ARRIGHI, 1990, p. 12-14). Nesta discussão dos processos de troca desigual, Arrighi reitera uma abordagem que pode ser encontrada em toda a sua obra: processos que parecem ser uma característica constitutiva do regime social se caracterizam, na verdade, pela especificidade histórica. O caráter e as consequências da troca desigual, por exemplo, diferem significativamente, dependendo de estarmos focalizando na metade do século XX ou no início do XXI (assim como a hegemonia dos holandeses no século XVII difere, em aspectos significativos, 86 Assim, para Andre Gunder Frank (1979, p. 22-3), “três séculos de comércio desigual baseado em valores desiguais [..] sugaram uma grande quantidade de capital das colônias e das populações do “Novo Mundo”, capital que a Europa investiu em desenvolvimento econômico e que, por sua vez, consolidou o subdesenvolvimento da América Latina no século XIX.” 157 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO da hegemonia britânica no século XIX, ou a crise da década de 30 em relação a dos anos 2000). A troca desigual pode ter aprofundado as desigualdades da renda mundial na década de 50, mas hoje pode servir de instrumento para que a população nos países mais pobres busque renda relativa maior. Por mais contestador que seja esse retrato da troca desigual, a obra de Giovanni Arrighi leva ainda mais longe esses argumentos. Com base em ideias de seu trabalho anterior sobre a África, Arrighi (1990, p. 16) argumentou que os “[p]rocessos de exclusão são tão importantes quanto os processos de exploração” para o entendimento da “pobreza da maioria da população mundial” e do caráter básico da economia-mundo capitalista. Assim, por exemplo, Arrighi (1991, p. 58) enfatizou o papel central desempenhado pela exclusão e pela riqueza oligárquica na promoção da desigualdade entre países durante grande parte do século XX: “[a] riqueza do Ocidente é análoga à riqueza oligárquica de Harrod. Não pode ser generalizada porque se baseia em processos relacionais de exploração e de exclusão que pressupõem a privação relativa continuamente reproduzida da maioria da população mundial”. Além disso, esses processos de exclusão resultaram não necessariamente apenas, ou mesmo principalmente, dos esforços dos capitalistas, mas dos esforços dos próprios trabalhadores, o que pode ser encontrado claramente na obra de Arrighi (1967) sobre A Economia Política da Rodésia. Nessa obra, ele argumentou que trabalhadores brancos organizados da Rodésia usavam a própria força para “perpetuar as condições em que se baseava seu poder, ou seja, a falta de (a) um exército de reserva de população branca; (b) uma população africana branca estável; e, acima de tudo, (c) um sistema efetivo de educação e formação para os africanos” (ARRIGHI 1967, p. 26). Forçando essa exclusão, e ao lado da burguesia nacional e mesquinha, esses interesses estavam em conflito com os da Companhia Britânica da África do Sul (representando, no esquema de Arrighi, os interesses do capitalismo internacional). Como consequência, para Arrighi (1967, p. 27), “houve uma coincidência dos interesses dos africanos (trabalhadores e camponeses) e do capitalismo internacional, pois ambos se beneficiariam de uma maior concorrência no mercado de força de trabalho qualificada”. 158 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA : EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA Os argumentos de Arrighi encontram fortes paralelos com a descrição feita por Adam Smith (1976) da relação entre cidade e campo no surgimento do capitalismo. Como nos países ricos de hoje, para os habitantes da cidade, no relato de Smith, era mais fácil se associar coletivamente em comparação com os habitantes do campo e, de fato, eles usaram a associação corporativista para regulamentar a produção e o comércio nas cidades com o objetivo de restringir a concorrência externa. Enquanto tais arranjos tendiam a aumentar os salários que os empregadores da cidade pagavam aos trabalhadores, “em compensação, [esses empregadores] puderam vender seus produtos a preços mais altos; portanto, dava na mesma, como se costuma dizer; e nas relações entre uma classe e outra dentro da cidade, nenhuma delas saía perdendo por causa destes regulamentos” (SMITH, 1976, I, p. 139). Além disso, como resultado desses acordos, em suas relações com o campo (“e todo o comércio que apoia e enriquece cada cidade consiste nesse último tipo de relações”) os moradores da cidade foram os “grandes ganhadores” capazes de “comprar, com uma quantidade menor de seu trabalho, a produção de uma quantidade maior de trabalho do campo” (SMITH, 1976, I, p. 139-140). O que Smith descreve é um processo de exclusão seletiva: por meio de arranjos institucionais que estabeleceram um pacto social que restringia a entrada nos mercados, os moradores da cidade atingiram uma combinação virtuosa de crescimento, autonomia política e equidade relativa, que simultaneamente transferiu as pressões competitivas para o campo. A partir dessa perspectiva, o estabelecimento de pactos sociais caracterizados por equidade relativamente maior em nações ricas (ou na Rodésia de Arrighi) e o surgimento de alta desigualdade entre países (ou entre os trabalhadores brancos e os trabalhadores africanos na Rodésia) não são processos separados: ao invés disso, são o resultado de mecanismos institucionais fundamentais que dão suporte à desigualdade mundial. Por exemplo, o reforço das barreiras nacionais à entrada no decorrer do século XX foi parte integrante de um esforço para limitar as pressões competitivas e/ou reduzir a desigualdade nas nações mais ricas, e foi um processo crucial que levou ao desenvolvimento de alta desigualdade entre nações ao longo do mesmo século. 159 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Evidentemente, isso não pretende sugerir que a distribuição global desigual de vantagens e desvantagens competitivas resulte exclusivamente da maneira com que as disposições institucionais das nações ricas transferiram as pressões competitivas de um local para outro. Certamente, a história é muito mais complicada. Na medida em que as disposições institucionais das nações ricas reforçavam e protegiam os direitos de propriedade, as áreas sob esse regime ofereciam incentivos fenomenais aos produtores potenciais, incentivos que estavam ausentes em outros lugares. Aqui, como nas cidades de Adam Smith (1976, I, p. 426), a “ordem e o bom governo e, com eles, a liberdade e a segurança dos indivíduos, foram, desta forma, estabelecidos [...], em um momento em que os ocupantes de terras [em outros lugares] estavam expostos a todo tipo de violência”.87 Além disso, uma vez tendo conquistado certa vantagem competitiva, as nações mais ricas costumavam dispor de uma quantidade muito maior de recursos – o que Arrighi denominou “riqueza oligárquica” – para manter e ampliar essa vantagem (por exemplo, por meio da inovação tecnológica e uma atualização mais constante da qualificação da força de trabalho). Mas quando o foco recai apenas nas nações ricas, como é a prática da maioria das ciências sociais, os arranjos institucionais dessas nações de fato parecem, assim como aqueles das cidades de Adam Smith, ser caracterizados principalmente pela inclusão. Sob este foco, a estratificação social e a desigualdade parecem ser, basicamente: (a) a partir de uma perspectiva mais próxima do mainstream, o resultado da realização individual, medido por critérios universais, nos domínios (por exemplo, educação, mercado de trabalho) caracterizados pelo acesso relativamente irrestrito; (b) em uma versão crítica, a expressão de processos de exploração ligando as populações contidas dentro desses arranjos institucionais. Neste sentido, as perspectivas críticas, do mesmo modo que aquelas mais próximas do mainstream, têm se concentrado em processos considerados 87 “Portanto, qualquer propriedade acumulada pela parcela industriosa da população rural se refugiou, naturalmente, nas cidades, que se tornaram os únicos santuários em que poderia ser assegurada àqueles que a adquiriram” (SMITH, 1976, I, p. 427). 160 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA : EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA endógenos àquilo que consideraríamos as nações ricas. Elvin (2008, p. 108), por exemplo, critica Arrighi por ignorar que “a ‘revolução’ ocidental não foi apenas uma ‘revolução’ no sentido de uma mudança qualitativa que associamos a este termo; foi, acima de tudo, um processo que, embora posto em movimento há mais de duzentos anos, continua ainda hoje”, sustentado pelo “fluxo contínuo na tecnologia de descobertas científicas” e “pelas atitudes mentais e análise que são engendradas pela exposição, ao longo da vida, à ciência moderna”. Numa perspectiva diferente, mas complementar, Walker e Buck (2007, p. 40) consideram a China como sendo “ainda [muito] pré-capitalista qualquer que seja a medida”, tendo apenas começado o caminho para o desenvolvimento capitalista. Não é surpreendente que a desigualdade e a estratificação pareçam processos determinados principalmente por arranjos institucionais circunscritos às fronteiras nacionais (normalmente, como no exemplo acima, as das nações ricas): como na cidade e no campo de Smith, a interação desses arranjos com os processos de exclusão seletiva só pode ser observada quando mudamos nossa unidade de análise com o intuito de abarcar os incluídos e os excluídos. 88 É por isso que a obra de Giovanni Arrighi sempre contrapôs uma narrativa mais holística e relacional, às vezes para desafiar as perspectivas dominantes, mas com a mesma frequência, para contestar também as interpretações propostas pelas abordagens mais críticas.89 88 Essas perspectivas críticas se desenvolveram desde cedo. Sorokin, depois de analisar dados referentes ao declínio da população das ilhas do Pacífico durante o século XIX, argumentou que “esses fatos mostram que, em vez de melhorar, o nível de bem-estar social e econômico no século XIX sofreu declínio e causou a extinção de tais povos. Por sua vez, em parte, o desenvolvimento econômico da Europa no século XIX, ocorreu, em parte em razão da exploração e do saque. O que foi benéfico para um grupo, foi desastroso para os demais. Ignorar esses outros grupos — centenas de milhares de pessoas na Índia, na Mongólia, na África, na China, ou seja, os nativos de todos os continentes e ilhas não europeus, para alguns dos quais o progresso da Europa custou muitíssimo e que, durante o último século, tiveram crescimento ínfimo no padrão de vida — e fomentar a teoria da ‘espiral permanente do progresso’ com base em alguns países europeus é completamente subjetivo, parcial e fantasioso.” Cf. Sorokin (1927, p. 31). 89 Considerando os conceitos de Arrighi sobre a desigualdade mundial, vê-se que a perspectiva relacional está na raiz de sua análise teórica, a qual não é, como afirmam discussões recentes, um simples “resumo dos argumentos de Brenner” sobre a taxa descendente do lucro de países de alta renda. Cf. Elvin (2008, p. 108). 161 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Ao focar no estado-nação como a unidade de análise relevante, tendemos a enfatizar a variedade de estratégias – desde a aquisição do capital humano até a mobilização política – que foram implantadas com o objetivo de conseguir a mobilidade social e/ou lutar contra a exploração. Baseado principalmente na trajetória histórica que esses processos seguiram nas nações ricas, este tipo de enfoque moldou as duas perspectivas de estudo da estratificação e da desigualdade: o mainstream e as correntes críticas. Mas, uma vez que reconhecemos que a exclusão desempenha o papel essencial identificado por Arrighi (ou, nessa questão, por Adam Smith) na formação tanto da desigualdade quanto da estratificação social, temos de reconhecer também que, para as pessoas ao redor do mundo, a busca por maior igualdade implica a luta pela inclusão e contra as formas predominantes de acumulação de oportunidades (como aquelas construídas ao longo do século XX em torno das identidades nacionais). Com efeito, numa perspectiva global e, sobretudo, entre o final do século XIX e início do século XXI, a violação das fronteiras por meio da migração tem sido uma das principais estratégias de mobilidade social para os que estão em posição inferior nas distribuições de renda (tanto dentro das nações quanto entre elas). Assim, seria um erro retratar a migração exclusivamente, ou mesmo primariamente, como uma consequência indesejada de diversas formas de deslocamento que acompanham a expansão capitalista.90 Assim como a exclusão com base na identidade nacional foi essencial para a desigualdade e para a estratificação social conforme estas se desenvolviam ao longo do século XX, a violação das fronteiras foi uma das principais formas assumidas pelas lutas por inclusão. É por esta razão que a migração internacional constituía o mais importante fator isolado na promoção da convergência econômica entre as nações no final do século XIX e início do século XX, e também porque esses fluxos sofreram uma interrupção 90 Por exemplo, ao explicar o crescimento das cidades durante “a criação da classe operária inglesa”, Walker e Buck (2007, p. 41) indicam que “todos os camponeses, trabalhadores braçais, artesãos e pequenos manufatureiros foram forçados a se deslocar, pois seus meios de subsistência foram destruídos, seja pela pelo cercamento das terras, apropriação de suas terras ou pela competição do mercado, criada por fazendas e fábricas mais produtivas.” 162 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA : EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA substancial durante o período entre guerras, e porque eles nunca recuperaram os níveis relativos alcançados na virada do século anterior (O’ROURKE; WILLIAMSON, 1999). Mas a própria existência de restrições baseadas na identidade nacional gerou condições para sua eventual contestação. Neste sentido, as próprias disparidades crescentes entre a renda das nações ao longo do tempo geraram fortes incentivos (por exemplo, a redução drástica de salários nos países pobres) (a) para a migração contínua, mesmo quando praticada contra as regras institucionais; e (b) de crucial importância no final do século XX, a “terceirização” de empregos qualificados e não qualificados para países periféricos em um “desvio de mercado” que, de fato, supera as restrições do século XX aos fluxos do trabalho. Foi isso que transformou a busca efetiva do crescimento econômico nacional na China e na Índia na mais importante força isolada de promoção da convergência econômica entre as nações do final do século XX e do início do século XXI, por meio de impactos que foram ampliados pela atual crise econômica.91 Perry Anderson observa que as altas taxas de crescimento, “em meio ao aumento drástico da desigualdade, criaram [na China,] uma classe média substancial ligada ao status quo e uma convicção ideológica mais generalizada, estendendo-se além da classe média, dos benefícios da iniciativa privada”. Se quisermos nos basear em Arrighi, essa interpretação não avança o suficiente. Se a exclusão foi, de fato, essencial para as desigualdades de renda do mundo na forma como estas desigualdades se desenvolveram durante grande parte dos séculos XIX e XX, então as tendências atuais de crescimento econômico na China e na Índia, a expansão dos mercados e a globalização, na verdade, podem ser resultado das lutas dos povos periféricos para transformar a desigualdade mundial. Isso ocorre porque, como bem compreendido por Fernand Braudel, e ecoado na obra de Giovanni Arrighi e de outros que atuam em uma perspectiva crítica semelhante, as lutas pela inclusão, muitas vezes, implicam ou até mesmo exigem a expansão dos mercados.92 91 O próprio Arrighi afirmou que muitos procuraram superar o abismo da desigualdade da renda mundial por meio da migração. 92 É por isso que Aglietta (2008, p. 62) afirma que “as economias de mercado e o capitalismo estão ligados, mas não são idênticos. O paradigma do mercado é formado pelo comércio entre iguais; [...]. O capitalismo é uma força de acumulação. [..] A desigualdade está em sua essência”. 163 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Conclusão O fato de que a crise está sendo vivenciada como promotora de mobilidade ascendente em algumas áreas do mundo (por exemplo, a China e a Índia), mas como mobilidade descendente em outros (por exemplo, o centro rico), mostra a importância de se refletir sobre as alterações das desigualdades da renda mundial em termos relacionais.93 A partir dessa perspectiva relacional, o declínio atual das desigualdades da renda mundial levanta questões difíceis para as forças progressistas ao redor do globo. A continuidade da expansão dos mercados é boa porque fornece maior inclusão para algumas das populações mais pobres do mundo por meio do rápido crescimento econômico, ou é má porque provavelmente as até então privilegiadas classes trabalhadoras nas nações mais ricas vivenciam uma deterioração de sua posição relativa (e, talvez, até mesmo absoluta) como resultado dessas alterações? Ou, parafraseando Aglietta, como as forças progressistas devem reagir às vantagens e desvantagens inerentes ao ajuste dos “mecanismos de governança internacional” para a nova “geografia” emergente da desigualdade mundial? (AGLIETA, 2008, p. 74). Essas questões sempre são difíceis de responder. É por esta razão que, diante da persistência das desigualdades do mundo, há quase quarenta anos Arghiri Emmanuel nos advertiu a tomar cuidado com “o perigo de que, ao concentrarmos nosso ardor revolucionário dentro de [um] grupo minoritário de países, talvez nos encontremos na tempestade do amanhã, ao lado da minoria. Não será a primeira vez na história que Roma terá caído, não pelos golpes dos romanos, mas sob os dos ‘bárbaros’” (EMMANUEL, 1972, p. 340). Vinte anos mais tarde, Giovanni Arrighi ecoou preocupações semelhantes, indicando que as desigualdades da renda mundial continuaram a gerar um dilema para as forças progressistas em países ricos, pois “ou os socialistas ocidentais se unirão aos seus companheiros orientais e sulistas, criando um projeto intelectual e um programa político capaz de transformar o atual caos sistêmico em uma nova ordem mundial de igualdade e 93 Faz-se quase desnecessário afirmar que tal perspectiva nos conduz a um lugar bem diferente do que aqueles apregoados pelas panaceias otimistas com raízes no paradigma da modernização. 164 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA : EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA solidariedade, ou seus apelos ao progresso mundial e à justiça social perderão toda a credibilidade que ainda lhes resta.” (ARRIGHI, 1991, p. 65). Após vinte anos, nem tudo permanece igual. Ocorre, agora, uma transformação substantiva nas desigualdades da renda mundial que está gerando dilemas difíceis; e as forças progressistas no Ocidente ainda deverão delinear as estratégias ou alinhamentos políticos que podem fornecer respostas confortáveis para esses dilemas. Mas no meio dessas transformações contínuas, devemos atentar mais do que nunca para as advertências de Emmanuel e Arrighi: na busca de proteção para os países ricos que sofrem os efeitos negativos da diminuição das desigualdades da renda mundial, devemos ter cuidado para que as forças progressistas não se posicionem novamente como defensoras da exclusão para a maioria do mundo. Referências AGLIETTA, Michel. Into a New Growth Regime (A caminho de um novo regime de crescimento). New Left Review, n. 54, p. 62, nov.-dez. 2008. ANDERSON, Perry. “Jottings on the Conjecture.” New Left Review, n. 48, p. 5-37, nov.-dec., 2007. ARGHIRI, Emmanuel. 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New York: Academic Press, 1980. 168 CAPÍTULO 6 Das eras douradas aos “tempos bicudos” do capitalismo mundial: práticas empresariais e ilicitudes como estrutura A NTONIO J OSÉ E SCOBAR B RUSSI 94 No dia da Criança de 2010, o conhecido programa de TV Mais Você trouxe como principal atração nada menos que Xuxa Meneguel, presença mais que apropriada para a devida homenagem que então se prestava aos ‘baixinhos da rainha’. Entre os diversos destaques que realçavam a importância artística e o sucesso comercial da convidada, foi lembrado que Xuxa havia vendido até aquela data mais de 28 milhões de discos, número astronomicamente alto em qualquer comparação possível no mercado fonográfico brasileiro. Perguntada sobre as razões de tamanho sucesso, Xuxa respondeu que esse número só pôde ser alcançado porque sua carreira artística começou antes da chegada da pirataria sonora, fenômeno que forçou 94 Doutor em Sociologia pela State University of New York - Binghamton. Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. 169 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO o redirecionamento do mercado musical para os shows ao invés de venda de discos/CDs. Na mesma direção, o jornal Correio Braziliense, de 18/7/2010, publicou matéria de página sobre o crime organizado intitulada “A capital do estoura-peito”. Nesse texto, fomos informados que a venda ilegal de cigarros respondia por 43,6% do mercado de cigarros do Distrito Federal e que a Receita Federal deixava de arrecadar um total de dois bilhões de reais anualmente com a venda de cigarros contrabandeados em todo o Brasil. Também ficamos sabendo que as formas de sonegação são ricas e variadas, indo do velho e conhecido descaminho nas fronteiras até ao contrabando empresarial organizado por importadoras mantidas através de liminares na justiça – as liminares e suas “indústrias”.95 Outras notícias nesse e em outros periódicos mostram a montanha de dinheiro e de impostos que comerciantes e governos perdem com vendas ilegais de produtos de informática, celulares, câmaras fotográficas, roupas, perfumes, relógios e muitos outros itens de consumo pessoal. É importante lembrar também que essa invasão de produtos ilegais, que presenciamos com crescente indiferença por todo o país, de modo algum se afigura como um fenômeno brasileiro, latino-americano ou mesmo como algo típico da periferia da economia mundial. Longe disso. A presença de produtos ilegais – contrabandeados e/ou pirateados – em praticamente todos os mercados do mundo constitui hoje um dos traços mais marcantes da homogeneização do mercado mundial, evidenciando quão profunda é a permeabilidade das redes de produção e de tráfico por praticamente todos os continentes. É possível afirmar que, ao lado da corrupção política e do mercado das drogas, o comércio ilegal de produtos contrabandeados e/ou pirateados constitui o aspecto mais realçado e difundido da conexão lucro e ilegalidade nesse período de refluxo econômico por que passa a economiamundo capitalista. 95 Por descaminho entende-se a entrada no país de produtos sem o pagamento de taxas e impostos de importação. Contrabando refere-se à entrada de produtos proibidos de serem comercializados no país. Serão utilizados aqui indistintamente porque o que importa na análise é o conteúdo ilícito presente no negócio. 170 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL A literatura sobre o tema também faz referências ao que se manifesta como a parte visível desse mercado ilegal que cresce por toda parte. A esse respeito, é indispensável lembrar dois aspectos complementares que quase não são associados à difusão generalizada desses ilícitos. O primeiro é a estreita proximidade entre essas atividades ilegais e um agravado processo de imigração em escala mundial que dispersa comunidades de imigrantes por várias regiões do mundo, muitas delas vendo parte de seus membros transformarem-se em importadores, mercadores ou mesmo consumidores desses produtos. O segundo ponto relevante a ser lembrado é que a disseminação de tais ilícitos no contexto do capitalismo mundial não pode ser desconectada de íntima conexão com o universo das atividades ocupacionais informais. Entretanto, tal moldura não tem apresentado sempre os mesmos contornos no sentido de se reconhecer a imigração e a informalidade como partes constitutivas daquelas práticas ilícitas. Levando em conta a peculiaridade do momento atual, o presente trabalho pretende destacar esse tipo de ilegalidade e as atividades econômicas a ela associadas de dois modos complementares. Primeiro, pretende identificá-los como parte da estrutura mesma do capitalismo histórico, i.e., como processos historicamente recorrentes, embora com atores sociais, ambientes sociopolíticos e processos instrumentais particularizados e, segundo, demonstrar que a atual composição do ilícito com a imigração e a informalidade ocorre apenas no âmbito do atual momento de retração sistêmica. No entanto, é importante antecipar que os conteúdos diferenciados das configurações históricas de ilicitudes na vida econômica vêm mantendo semelhanças em pelo menos três aspectos, a saber: 1) surgem sempre como “inovações” ético-empresariais a princípio fortemente questionadas por seus contemporâneos; 2) envolvem as periferias do sistema-mundo como partes fundamentais do processo; e, por fim, com o passar do tempo, 3) transformam-se em práticas correntes, amplamente reconhecidas e largamente difundidas. Se essa interpretação apresenta fundamentos de algum modo consistentes, então a banalização do ilícito – e sua subsequente transformação em regras de conduta – pode ser tratada como manifestação recorrente de processos mais longos. Consequentemente, o sentido de sua ocorrência, contemporaneamente associada à informalidade, 171 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO pode conter informações de interesse para um mais completo entendimento da crise que o mundo vem atravessando. Os anos dourados das Províncias Unidas When the prize from the [Santa. Catarina] was recently put up for sale, who did not marvel at the wealth revealed? Who was not struck with amazement? Who did not feel that the auction in progress was practically the sale of a royal property, rather than of a fortune privately owned? (Hugo Grotius, De Jure Praedae Commentarius) Mesmo não tendo sido os primeiros a organizarem uma companhia de comércio – a Companhia Britânica das Índias Orientais foi fundada em 1600 – os holandeses sem dúvida foram os que avançaram mais completamente na organização desse tipo de empreendimento. A Companhia Holandesa das Índias Orientais tornou-se, desde sua fundação, a maior e mais importante empresa comercial de seu tempo, sendo hoje reconhecida como a primeira megacorporação multinacional que se tem notícia. Além disso, suas práticas organizacionais, gerenciais, políticas e ideológicas foram tão inovadoras, a ponto de impulsionar as Províncias Unidas a transformarem-se na primeira entidade político-econômica a abrigar e manter por longo tempo um projeto de hegemonia política e econômica na economia-mundo capitalista (WALLERSTEIN, 1974). O ponto de partida desse avanço, no entanto, vai ocorrer mais de trinta anos depois do início de uma guerra de oitenta anos (1568-1648) que as Províncias Unidas travaram contra o império espanhol em sua luta pela independência. Wilson (2009, p. 254) corretamente associa a decolagem da companhia à captura do cargueiro português Santa Catarina em 1603, o que “pode ter servido como a causa imediata da formação da Companhia Holandesa das Índias Orientais (a VOC), a corporação acionária que teve a função 172 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL politicamente útil de coordenar as operações corsárias menores, desorganizadas e menos eficientes dos mercadores provinciais holandeses independentes”.96 Mesmo reconhecendo o pequeno equívoco de Wilson de associar a captura daquele navio e a apropriação de sua carga com a criação da VOC, porque “a fusão das companhias pioneiras competidoras em uma corporação monopolista” ocorreu um ano antes, em 20 de março de 1602 (BOXER, 1965, p. 23-4), é de qualquer modo inquestionável que a recémorganizada corporação incorporou extensivamente a pilhagem entre suas atividades mais lucrativas. Além disso, o efeito legitimador que os argumentos elaborados por Hugo Grotius na defesa do saque do cargueiro português, publicado nos Comentários sobre a Lei do Saque e da Pilhagem,97 visava muito mais a estender a validade desses atos através dos oceanos como um dos principais instrumentos à disposição das Províncias Unidas em sua luta para afirmarem-se como poder hegemônico na economia mundial (WILSON, 2009). Nesse sentido, o desdobramento consequente das mudanças trazidas por Grotius a partir do que deveria ser esperado de um bom marinheiro holandês em alto mar foi o estabelecimento das fundações de uma nova ética ajustada aos avanços, ao Oriente e ao Ocidente, das companhias de comércio holandesas. Ademais, também antecipava as dimensões nacionais da guerra no sentido de que a partir de então essas passariam a ser combatidas por todos os meios à disposição de uma nação – a esse respeito é necessário atentar para a relação simbiótica entre o estado mercantilista e os monopólios comerciais – desse modo transformando as guerras em uma dimensão nacional do poder (no sentido de que elas se tornam responsabilidade social dos interesses organizados em um estado nacional) ao invés de confinadas a assuntos dinásticos ou religiosos. Desse modo, De Indis pode também ser entendido como uma antecipação pontual das consequências abrangentes trazidas pela Paz de Westfália quase meio século depois, quando o tratado estabeleceu a autonomia que os estados devem ter em seus assuntos 96 As referências apresentadas neste texto foram traduzidas pelo autor (AB). 97 Segundo Wilson (2009, p. 239) o título original desse texto seminal era De Indis (Sobre as Índias), mas passou a ser mais conhecido por De Jure Praedae Commentarius (Comentários sobre a Lei do Saque e da Pilhagem). O texto foi escrito entre fins de 1604 e novembro de 1606. 173 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO internos. Desse modo, primeiro o livro e depois o tratado foram organizados para servir como fundações político/ideológicas da primazia holandesa no mundo, porque consolidaram a legitimidade das escolhas políticas dos estados componentes do sistema interestatal e porque estava garantido o recém-elaborado princípio de um estado perseguir e defender seus interesses nacionais. Resumindo, o conjunto da premissa que suportava a ideia de direito nacional à liberdade e à soberania estava baseado na noção de direito subjetivo, que afirmava que o homem como um indivíduo livre e soberano poderia trabalhar e lutar por seu direito, desde que sua ação e objetivos não ignorassem o direito natural como inato ao homem e à humanidade. Tal entendimento da autonomia do indivíduo servia como o ponto central de toda a racionalização que Grotius desenvolveu para fundamentar o direito holandês de organizar um império comercial. Com isso, a pilhagem do Santa Catarina pelo capitão holandês a serviço da VOC, Jacob Van Heemsskerck, no amanhecer do dia 25 de fevereiro de 1603, foi considerada um ato legítimo de um agente de um estado livre e independente que tinha plena autoridade para atacar indiscriminadamente navios privados ou estatais que pudessem representar ameaça aos interesses holandeses. De acordo com tal entendimento, uma companhia de comércio poderia legitimamente envolver-se em uma guerra privada contra outros mercadores ou mesmo contra agentes de outro estado para impor a acima mencionada lei subjetiva, dirigida contra qualquer medida que pudesse ameaçar seus direitos de navegação e comércio. Além disso, as penalizações impostas pela ideia de Mare Clausum (Mar Fechado), pelas restrições à navegação que esse princípio ocasionava aos fluxos regulares do comércio, serviam como plena justificação ao direito de pilhagem que os interesses prejudicados poderiam utilizar por reparação às perdas da companhia, dos empregados, dos acionistas e do estado holandês. A ausência de um sistema judicial no lugar onde essas confrontações ocorriam – o alto mar – justificava o inquestionável direito de uma guerra justa ser travada como um modo de impor a lei natural, que nesse caso seria o direito de cada um buscar seu interesse, tal como o de comercializar livremente. Em uma palavra, Mare Liberum (Mar Livre) era uma abençoada justificativa da guerra. 174 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL A pilhagem do Santa Catarina não serviu apenas como referência para a construção de uma nova ética política/empresarial à disposição das Províncias Unidas em sua luta por hegemonia na economia mundial. Duas outras consequências – uma direta e outra simbólica – intimamente interligadas à pirataria mundial floresceram diretamente desse saque e da talentosa defesa daquele ato que Grotius publicou um ano depois. A primeira veio com as riquezas que o mencionado saque trouxe para a VOC. Estimou-se em mais de três milhões de florins – ou gulden – (em torno de trezentas mil libras esterlinas) o valor do carregamento leiloado em Amsterdam no ano seguinte (VAN ITTERSUM, 2006, p. 511). Essa espantosa quantidade de dinheiro, e ainda mais importante, o baixo custo para obtê-la, é reconhecida como tendo servido como bom argumento às companhias corsárias holandesas menores e menos eficientes para que unissem seus esforços, conforme a afirmação de Wilson transcrita acima (p. 254). A partir desse episódio as pilhagens da companhia transformaram-se em outra fonte legítima de altos lucros para a VOC, difundindo-se também a outras companhias de comércio dos outros estados europeus.98 A segunda consequência veio da grande quantidade de porcelana chinesa embarcada no cargueiro português. Foram tão bem aceitas e as peças alcançaram preços tão altos nos leilões em Amsterdam que “o termo Kraac porcelein (porcelana de cargueiro) foi aplicado à Ming azul e branco por várias décadas” (BOXER, 1965, p. 174). A demanda cresceu tão rapidamente por todo o norte da Europa que as importações de porcelana do Extremo Oriente podiam ser contadas aos milhões de peças em menos de 50 anos após sua chegada à Holanda. A procura por porcelana era tanta que por volta de “1614 os holandeses começaram a imitar as cerâmicas Ming azul e branca e em 50 anos as cerâmicas de Delft estavam produzindo imitações bastante razoáveis das peças de porcelanas chinesas e japonesas.” (BOXER, 1965, p. 175). Com isso, a segunda consequência do saque do Santa Catarina deriva da excitação que sua carga acabou por produzir nas comunidades holandesas, estimulando o desenvolvimento de uma longa 98 É importante lembrar que a diferença entre pirata e corsário é que o último age autorizado por um poder estatal enquanto o primeiro empreende uma ação privada. 175 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO e duradoura indústria de imitação que por mais de 150 anos copiou a cor e o estilo – um dos significados de pirataria – da porcelana do Extremo Oriente (BOXER, 1965, p. 175). Se a montagem de um monopólio comercial evitou uma dolorosa concorrência doméstica entre as companhias holandesas do início do século XVII, uma decisão que não afetou os sentimentos morais dos habitantes das Províncias Unidas, o mesmo não pode ser estendido às vastas prerrogativas e direitos concedidos à empresa, especialmente com o que tais privilégios podiam alcançar. Na verdade, se se considerar os campos de ação da companhia poder-se-ia facilmente notar que as atribuições e a autonomia da VOC alcançavam extensões tão vastas que mais de uma vez a empresa foi vista como um estado dentro do estado. Entretanto, se tal concentração de poder era vista como indispensável para assegurar à VOC poderio suficiente para desempenhar suas atividades comerciais em terras distantes – entre seus direitos encontram-se autorização para estabelecer tratados e alianças, construir fortificações, alistar pessoal civil, militar e naval de quem se exigia juramento de lealdade à companhia e ao estado, e mesmo declarar “guerras defensivas” (BOXER, 1965, p. 24) – é de qualquer modo necessário enfatizar que o desdobramento de considerações ético-morais baseadas nesses tópicos estimulou conflitos desde a criação da corporação. Muitos acionistas potenciais decidiram não se envolver com tal empresa devido ao risco do comportamento da companhia tender perigosamente para ações agressivas e belicosas. A respeito dessas suspeitas de parte dos investidores em aceitar engajamentos da companhia em guerras, mesmo defensivas, Boxer afirma que: Contudo, a autorização para travar guerra foi suficiente para afastar parte dos investidores das companhias pioneiras, que preferiam vender suas cotas ao invés de transferirem-nas à VOC, pois como mercadores eles tinham organizado aquelas companhias unicamente para engajarem-se honradamente em comércio pacífico e amistoso e não para entregarem-se a quaisquer ações hostis ou agressivas. Esses críticos corretamente perceberam que a VOC seria frequentemente induzida a fazer uso da espada tanto quanto da caneta. (BOXER, 1965, p. 24). 176 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL O mesmo autor menciona Snouk Hurgronje, um importante acadêmico islâmico do século XIX, que justificava o desconforto daqueles pios mercadores holandeses para com o comportamento da VOC no Oriente com o seguinte comentário a respeito da Companhia Holandesa das Índias Orientais: O primeiro ato da tragédia Holanda-Índia chama-se ‘Companhia’, e começa quase exatamente com o século XVII. Os principais atores merecem nossa admiração por sua indomável energia, mas o objetivo pelo qual trabalhavam e os meios que empregavam para alcançá-los, eram de tal espécie que nós, mesmo com plena aceitação do princípio que devemos julgar seus atos de acordo com os padrões daquele tempo, temos dificuldade de conter nossa aversão. A ‘experiência’ teve início de tal modo que os habitantes da Ásia entraram em contato com a escória da nação holandesa, que os tratavam com desprezo quase insuportável, e cuja tarefa era devotar todos seus esforços para o enriquecimento de um grupo de acionistas na mãe pátria. Os funcionários dessa companhia fretada, mantinham tudo sob controle para seus empregadores mas, não menos gananciosos por ganhos que eles, mostravam um ambiente de corrupção que obscurecia o pior de quanto os povos orientais são disso acusados. (BOXER, 1965, p. 50). Simultâneos aos indescritíveis excessos da companhia sobre as populações asiáticas, os rendimentos provenientes do contrabando apresentavam-se como talvez a mais importante fonte de rendimento daquela “escória da nação holandesa” (the dregs of the Dutch nation), de acordo com os duros termos que Hurgronje utilizou para descrever o pessoal da VOC. A importância do contrabando no conjunto das políticas da VOC de modo algum se devia a terem os holandeses iniciado tal prática como um empreendimento econômico regular, pois “tomando por base expressões oficiais de preocupação com a atividade, parece que um substancial comércio ilícito vinha existindo desde pelo menos meados do século XVI” (JONES, 2001, p. 17). Se os mercadores holandeses não podem ser responsabilizados por terem introduzido tais práticas ilícitas na economia-mundo europeia, do mesmo modo também não podem ser acusados de serem os únicos a praticarem-nas extensivamente 177 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO em seus negócios com o Oriente. Nesse assunto os portugueses levaram o prêmio por terem iniciado tais práticas no seu comércio com as Índias, que continuavam em pleno funcionamento mais de cem anos depois. De Vries (2010, p. 717) estimou que um terço de todos os carregamentos trazidos à Europa pelos portugueses por volta de 1620 “representava descaminho comercial”. Nesse caso, por que mencionar essas práticas ilícitas da VOC se eram tão antigas e disseminadas por toda a Europa? O que se quer ressaltar com esses atos ilegais no âmbito das rotinas da companhia é que desde seu início essas práticas tornaram-se parte complementar dos pagamentos que a empresa fazia à sua força de trabalho. Apesar de o contrabando ter sido antigo e onipresente no cenário econômico europeu, não tendo por isso vínculos de origem com a expansão do comércio holandês de longa distância, um traço profundamente enraizado nas atividades empresariais da VOC por toda sua existência pode ser aqui identificado. Desde os primeiros tempos da companhia, o contrabando ou o “comércio privado” tornou-se parte do pagamento de seu pessoal. Tão disseminada foi essa atividade que “do Governador Geral ao camareiro comercializavam por fora e todos sabiam disso” (BOXER, 1965, p. 201). Boxer afirma que os diretores da companhia não podiam ou não queriam pagar salários razoáveis e, ao lado de seus valores muito baixos, a companhia ainda retinha parte do pagamento de seu pessoal de origem holandesa no Oriente. De acordo com ele, essas práticas serviam como possível prevenção de deserção porque os empregados da empresa não queriam perder quantias razoáveis de salário retidas em poder da companhia. Adjacente à disseminada corrupção da VOC em suas atividades comerciais a leste e a oeste, sua política salarial longa de dois séculos procurava manter sua força de trabalho em ação através da expectativa de ganhos que o contrabando poderia proporcionar-lhes. Assim, ao lado das mudanças de entendimento a respeito da pilhagem e das inovações pertinentes à guerra trazidas pelas novas interpretações contidas no conceito de Mare Liberum, é necessário acrescentar a inovação trazida pelo contrabando como suplementação salarial. Com entendimento tão original acerca da recompensa do trabalho certamente estamos muito distantes da piedosa ética cristã prevalecente no período medieval assim como 178 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL de qualquer fundamento ético das virtudes do trabalho ascético ressaltadas pela visão weberiana do Calvinismo. O século americano: crime e recompensa Take up with the white man’s burden Send forth the best ye breed Go bind your sons to exile To serve your captives’ need To wait in heavy harness – On fluttered folk and wild – Your new-caught, sullen peoples, Half devil and half child… The White Man’s Burden (Rudyard Kipling) O segundo período aqui tratado a abrigar a gestação de novos fundamentos ético-morais no conjunto das práticas empresariais da economia mundial capitalista teve início imediatamente após o final da guerra civil americana, depois da posse do presidente Ulisses Grant em 1869 e estendendo-se até a primeira década do século XX. Se o período da dominância comercial holandesa durante o século XVII foi reconhecido como a Era Gloriosa do capitalismo triunfante em seu momento batavo de expansão, o período que teve início com o avanço das estradas de ferro em direção ao oceano Pacífico durante a Guerra Civil americana, adentrando por territórios que se tornariam o espaço continental dos Estados Unidos da América, chamou a atenção de ninguém menos que Mark Twain, escandalizado pelo frenesi que tomava conta do mundo dos negócios e pela contagiante amoralidade que o acompanhava. A lembrança aqui desse aclamado romancista se deve a um de seus romances, cujo título The Gilded Age: A Tale of Today acabou por denominar o último quartel do século XIX nos Estados Unidos: A Era da Aparência.99 99 O sentido literal da expressão significa “A era banhada a ouro”, no sentido de um tempo que apresentava bela, mas ilusória aparência. Foi emprestado de King John, de Shakespeare: “To 179 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO O núcleo diferenciador do período apresenta duas dimensões complementares. De um lado, uma irrefreável expansão da corrupção – em todas as formas e direções – intimamente associada à organização de grandes empreendimentos, cujas origens desdobravam-se a partir das conexões que a grande finança era capaz de desenvolver com o estado. Tal proximidade ocorreu com o propósito de facilitar política, coercitiva e financeiramente o vertiginoso crescimento das estradas de ferro, que avançavam em direção ao Pacífico ainda durante a Guerra Civil. Como consequência, a crescente competição entre financistas e especuladores – ao lado de tensões que emergiam entre as elites políticas ansiosas pelos benefícios trazidos pelos investimentos ferroviários – reforçava e alargava aquela zona cinzenta de ilegalidade, a qual gradualmente passou a ser entendida pelo senso comum como o real sentido de negócios (businesses). Nesse contexto, a corrupção apresentava dois eixos: o político e o financeiro. No núcleo político, a despeito dos esforços revisionistas dos novos historiadores políticos (ALLEN; ALLEN, 1981, apud ARGERSINGER, 1985-6, p. 670-1), ainda não se conseguiu rejeitar consistentemente a interpretação prevalecente que reconhece quão disseminada era a corrupção política depois de 1870 nos Estados Unidos (ARGERSINGER, 1985, p. 6). De uma maneira geral, o que nos interessa mais diretamente a respeito da corrupção durante aquele período era a capilaridade que alcançou, sobrepondo-se a partidos, vínculos pessoais e instituições do estado. Diferenciava-se da corrupção mais familiar associada à máquina política do século XIX em vários aspectos. Era, antes de tudo, não partidária. As estradas de ferro buscavam amigos em ambos os partidos. Segundo, não estava concentrada nas eleições democráticas, que eram caras e difíceis de controlar. Terceiro, dependia tanto de lobistas como de autoridades eleitas. (WHITE, 2003, p. 23). A propagação dessas práticas pode ser demonstrada pelo farisaísmo disseminado na comunidade empresarial da época, quando homens de gild refined gold, to paint the lily... is wasteful and ridiculous excess.” Há ainda o sentido pejorativo que contrasta uma era dourada ideal e outra, menos valiosa, com apenas tênue cobertura de ouro sobre metal barato, sentido que acabou prevalecendo para identificar os excessos daqueles anos. In: The Complete Works of Mark Twain, Delphy Classics, The Novels, Prefácio. 180 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL negócios não se incomodavam em continuamente expor o visível contraste entre suas mais que suspeitas atitudes empresariais e as pias práticas religiosas que publicamente exibiam. Destaques dessa desfiguração foram Jay Cooke, o financista, e Harvey Fisk, o banqueiro da Central Pacific Railroad (WHITE, 2003, p. 20). A esse respeito, não constitui atenuante reconhecer que o americano comum do século XIX embaralhava o julgamento da economia e de práticas políticas com virtudes morais e religiosas sendo, portanto, incapaz de distinguir os fundamentos éticos eventualmente específicos desses campos. O que é importante enfatizar, nesse caso, é que aqueles especuladores ao menos “reconciliavam moralidade e ações abraçando uma moralidade de consequências. Como nos negócios, a moralidade reduzia-se a um mínimo que significava aumento na riqueza” (WHITE, 2003, p. 20). O mesmo autor assegura que a importância da informação ou sua manipulação – no sentido da difusão dos escândalos – não eram novidades na década de 1870, quando a economia americana crescia aos saltos. O que era novo naquela época era “a escala dos mercados e das corporações privadas que os manipulavam, a rapidez e a disseminação da informação e o tamanho da audiência que atingiam, e as novas tecnologias que tornavam tudo isso possível.” Em tal ambiente “caráter entre os financistas da Gilded Age… não era sinônimo de honestidade; tinha muito mais a ver com exaltação, confiança, determinação e força.” (p. 24). A partir do momento em que, seguindo aquele avanço explosivo, tal moralidade esparramou-se pelos poros da sociedade americana e consolidou-se como um padrão para avaliar e julgar o comportamento humano, um de seus resultados mais importantes foi fornecer uma nova medida de caráter e de sucesso que se identificava com o tamanho da riqueza material que alguém possuía. Assim, tornou-se quase que natural estender o mesmo princípio da moralidade de consequência para outros níveis de julgamento, como os relacionados ao desempenho do governo, por exemplo, tão identificados que esses julgamentos estavam com aqueles princípios de poder e riqueza sem qualquer outra consideração. 181 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Não faz parte dos propósitos deste trabalho avançar por todas as mudanças que abalaram a sociedade norte-americana após o final da guerra civil. O que deve ser brevemente mencionado, no entanto, é que a Era Banhada a Ouro – ou da Aparência (Gilded Age) – foi marcada por um período de profunda mudança social, ancorada em um intenso processo de urbanização, resultado da expansão da industrialização. Esse movimento fez emergir e rapidamente expandir uma nova classe média enquanto essa mesma expansão “[...] eclipsava largamente a ‘velha’ classe média de pequenos empreendedores, moralistas, vivendo para si mesmos em suas pequenas e isoladas comunidades.” (WIEBE, 1967 apud MAHONEY, 2005, p. 357). A dispersão/ dissolução dos laços tradicionais de identidade e de coesão social, causada pela migração e pela mobilidade vertical e horizontal dela derivadas, acabavam por enfraquecer os benefícios que a nova solidariedade no local de trabalho supostamente criava nesse novo ambiente – emprego, promoção e carreira – tornando-os menos úteis e confiáveis em vista de sua fluidez (MAHONEY, 2005). Em tal cenário social […] havia sido forjado um sentimento de identidade autossuficiente, confiante e independente, apartado da necessidade de aprovação, apoio ou referência de amigos, pois tais contatos eram de curta duração e pouco confiáveis com o passar do tempo. Resistindo à solidão, à anomia e a uma ansiedade desconfortante com respeito à brutalidade, com narrativas pessoais mais elaboradas e identidades mais fortemente articuladas, mantendo rotinas ocupadas e ativas e mergulhando no trabalho (tais comportamentos) surgem com regularidade no decorrer de tais contextos sociais. De fato, pode-se afirmar que a identidade referenciada a partir da classe havia sido desfeita e que (as pessoas) sentiam-se caminhando em direção a uma espécie de limbo social com pouco ou nenhum sentimento de pertencimento a qualquer entidade social concreta e que a luta para definir-se socialmente era travada a partir de dentro. Crescentemente, em meio ao anonimato, procurava-se o núcleo da identidade dentro de si mesmo. (MAHONEY, 2005, p. 363). 182 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL E era dessa classe média tradicional,100 que atravessava um momento de rápida e radical transformação, que provinha a maior parte dos funcionários do estado no período posterior à Guerra da Secessão, com promoções para postos mais altos na carreira militar, em novas ocupações civis e em postos diplomáticos principalmente na América Latina e na Europa (MAHONEY, 2005, p. 360). Assim, era essa base social instável, porém ascendente, que fornecia os novos funcionários para os quadros militares e civis que serviriam o estado durante a Gilded Age. Em uma palavra, se esse contexto de instabilidade social, anomia e conflitos inter e intraclasses foi o ambiente onde o grande negócio e as corporações foram criados e prosperaram, então é possível concluir que essa Gilded Age, com seu ambiente especulativo e fraudulento e de intenso crescimento econômico, foi o berço de formulações fundamentais da política externa dos Estados Unidos, o Corolário Roosevelt e seu desdobramento imediato, a Diplomacia do Dólar. Desse modo, ambas as inovações devem ser entendidas como o resultado dessa “refundação” ético/moral que se espraiou pela sociedade americana durante aqueles “Anos Dourados”. Com efeito, os tempos de improvisação e inconsistências que marcaram a política externa americana no final do século XIX estavam sendo progressivamente substituídos por um modelo mais universal e impessoal que dificultava os poderosos lobbies das grandes corporações de intervirem diretamente nas decisões do estado. Nesse caso, no entanto, a maior autonomia do estado não afastou as corporações de beneficiarem-se dos resultados dessas políticas que fortaleciam o poder estatal. Isso porque, a reinterpretação da Doutrina Monroe (Corolário Roosevelt) abria as portas da América Latina aos interesses corporativos americanos e, ao reforçar o direito exclusivo 100 Essa breve referência às classes médias e o silêncio a respeito da classe operária deve-se ao fato de as primeiras terem tradicionalmente sido consideradas como fornecedoras de quadros burocráticos ao governo federal e a seus estados constitutivos, assim como para as corporações que cresciam no final nas últimas décadas do século XIX. Com referência à classe operária, além de estar ausente dessa mobilidade social ascendente que floresceu durante aqueles anos nos Estados Unidos, sua principal importância na política externa foram suas demandas que acabaram por produzir o que Poulantzas uma vez chamou de “efeitos pertinentes na estrutura”, que significava, aqui, que a Diplomacia do Dólar assegurava mercados para as mercadorias produzidas domesticamente evitando, assim, possíveis conflitos e dificuldades trabalhistas. 183 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO de intervenção nos assuntos latino-americanos com o argumento de evitar a desordem e o atraso, apresentava ao mesmo tempo os Estados Unidos ao mundo como o portador da boa vontade e o defensor dos legítimos interesses da comunidade internacional. 101 O ponto de partida para a abertura de tal janela para o futuro, ou ao menos para parte dele, ocorreu em 1905 com a desvinculação do governo americano da proteção e motivação continuada que vinha exercendo desde 1892 na defesa dos interesses da San Domingo Improvement Company (SDIC) – que também se estendia à San Domingo Finance Company e à Company of the Dominican Central Railway. “As três companhias tinham os mesmos funcionários e mantinham escritórios nos mesmos endereços no Baixo Manhattan.” (VEESER, 2003, p. 304). As mudanças buscavam substituir as mais que constantes intimidações, ocupações militares e apropriações das arrecadações e dos rendimentos alfandegários dos países da América Central por mecanismos de controle mais discretos e eficientes porque organizados a partir da supervisão dos banqueiros de Nova York e operados por respeitados conselheiros econômicos americanos. O que é interessante destacar, nos limites deste trabalho, é que a longa e insolúvel instabilidade dominicana e a contínua assistência do governo americano à SDIC mostrava, de um lado, a importância dos interesses privados em modelar a política externa americana durante aquele período e, de outro, tornava evidente que os interesses imediatos de uma companhia não podiam abrigar uma solução per se, mesmo com utilização intensiva de força militar. Desse modo, a cooperação governamental juntamente com a participação de fundos privados passaram a ser vistas como essenciais à organização de um plano de longo prazo para o pagamento dos débitos do país através de recursos financeiros privados e garantias providenciadas pelos estados envolvidos (no caso, os Estados Unidos). A esse respeito, Veeser (2003, p. 325) enumera os fundamentos da Diplomacia do Dólar como seguem: a) 101 O poema de Kipling, cuja primeira estrofe serviu de epígrafe a esta seção, traz como subtítulo “Os Estados Unidos e as Ilhas Filipinas” (The United States and the Philippine Islands) com o ano 1899, portanto imediatamente após a anexação/aquisição das Filipinas pelos Estados Unidos, em consequência da vitória sobre a Espanha na guerra de 1898. 184 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL a entrada da alta finança de Nova York no financiamento de débitos externos impagáveis; b) a introdução de conselheiros econômicos para a montagem de planos de estabilização que deveriam ser adotados pelos estados devedores; c) supervisão estatal das instituições financeiras envolvidas e da situação fiscal do estado devedor; e d) supervisão direta dos rendimentos do estado devedor por parte de agentes do governo americano. Assim, […] os laços entre o ramo (do) executivo, (de) destacados economistas e (de) grandes instituições financeiras – os músculos da Diplomacia do Dólar – foram claramente forjados durante o refinanciamento do débito dominicano entre 1905-7… A reabilitação econômica da República Dominicana, patrocinada pelo governo (americano) mas financiada pela iniciativa privada, tornou-se o modelo para trazer estabilidade às turbulentas nações latino americanas. (VEESER, 2003, p. 325). Com esses novos acabamentos foram lançadas as fundações do novo padrão internacional de coexistência entre credores e devedores. Havia terminado o período de alegação de precedência por “direitos especiais” por companhias bem representadas em Washington em benefício de um princípio maior de harmonia entre as superpotências e grandes credores. Em uma palavra, foram estabelecidas novas regras de coexistência e compromissos para um novo período expansivo baseado em investimentos diretos de grandes corporações pelo mundo nos assim chamados países hospedeiros. Os interesses das corporações eram legalmente garantidos pelos dois princípios do direito internacional amplamente desenvolvidos em períodos precedentes: o princípio da arbitragem e o princípio da extraterritorialidade. No primeiro caso, as partes contratantes concordavam em reconhecer o julgamento de uma terceira parte na eventualidade de uma disputa e, em caso de violação de contratos, o segundo princípio era invocado para proteger os direitos ameaçados.102 Não por acaso, esses princípios foram tema de detalhados estudos efetuados por John Basset Moore, a mais importante 102 A invasão da Nicarágua em 1912 é um bom exemplo de como esses dois princípios eram combinados, ao menos no caso das relações dos Estados Unidos com os países do Caribe. 185 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO autoridade americana sobre Direito Internacional da época, profunda e duplamente envolvido com o tema como representante oficial do governo americano e como advogado e consultor da SDIC. Não é apenas uma curiosa coincidência que Moore, como Grotius 300 anos antes, também era uma autoridade em extraterritorialidade. Entretanto, diferentemente de seu par holandês, que caiu em desgraça morrendo no exílio, Moore não experimentou o ostracismo, tendo servido em organizações internacionais como delegado dos Estados Unidos até a década de 1930 (VEESER, 2003, p. 306). Para os propósitos deste trabalho, no entanto, deve ser lembrado que seu desempenho como defensor dos interesses da SDIC foi mais importante que suas contribuições acadêmicas. Considerando sua dupla militância de representante do Departamento de Estado na arbitragem do problema da República Dominicana enquanto, ao mesmo tempo, também atuava como Conselheiro contratado defendendo os interesses da SDIC, é inevitável que se reconheça que tal combinação ilegal “sugere que Washington via os interesses da SDIC e dos Estados Unidos como suficientemente próximos para permitir que a mesma pessoa representasse a ambos” (VEESER, 2003, p. 307). Como era de se esperar, o resultado da arbitragem foi favorável à companhia e ficou estabelecido que, no caso de suspensão do pagamento dos débitos, o governo americano enviaria agentes autorizados para coletar a totalidade dos rendimentos das alfândegas dos portos dominicanos. Veeser faz o seguinte comentário a respeito dessa arbitragem: Moore foi bem sucedido em ganhar uma forte demonstração de apoio do governo dos Estados Unidos para as demandas privadas da SDIC. Em São Domingos, a decisão do tribunal foi recebida como um completo desastre. O Presidente Carlos Morales Languasco… chamou-a de ‘o mais sério problema que a República enfrentou desde sua fundação.’ Em poucas semanas de funcionamento, o Ministro da Finança anunciou a impossibilidade econômica de cumprir a obrigação. (VEESER, 2003, p. 307). Além de representar o Departamento de Estado em uma corte de arbitragem – um tema de sua especialidade acadêmica – enquanto defendia 186 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL uma das partes envolvidas, os interesses profissionais do Senhor Professor Moore escorregavam do caminho ético quando ele incisiva e continuamente advogava a prioridade de seu cliente em receber tudo o que o governo dominicano devia à SDIC antes de quem quer que fosse. Além disso, ele insistia com as autoridades americanas em duas proposições adicionais: a primeira defendia a ocupação da ilha se ficasse evidente a incapacidade do governo dominicano de saldar seus débitos e, a segunda, procurava evitar que o governo americano reexaminasse o conjunto dos débitos dominicanos (VEESER, 2003, p. 320). Em ambos os casos, seus interesses pessoais convergiam para a defesa irrestrita dos interesses da SDIC, independentemente de qualquer consideração ético/legal. O exemplo dominicano ressalta as fundações de um novo padrão empresarial traçado no contexto da emergência e subsequente predominância do desenho organizacional que as corporações multinacionais gradualmente esboçariam como núcleo dinâmico da economia-mundo capitalista sob a hegemonia americana. Tendo surgido em um contexto em que o sucesso econômico ou pessoal dependia, acima de qualquer coisa, de laços de proteção, do calibre das conexões políticas e das ambições paroquiais conectadas ao estado, a comunidade empresarial começava a enfrentar uma dimensão mais impessoal e global do poder político, baseada em objetivos mais abrangentes e de mais longo prazo; uma política global típica de um poder global sem, no entanto, desconsiderar a importância do poder privado. Entretanto, se as novas relações que o estado americano desenvolvia com as corporações americanas experimentavam mudanças importantes tais como as mencionadas acima, o mesmo não ocorria nas relações entre as corporações americanas e os estados da América Latina. Alegações de quebra de contratos, direitos violados ou outras justificativas legais continuaram a legitimar invasões e ocupações na América Latina durante o século XX, com argumentos recorrentes de violação de contratos ou outras ameaças ao lucro empresarial americano. É verdade que, com o passar dos anos, invasões diretas tornaram-se menos frequentes enquanto golpes militares apoiados pelos Estados Unidos cresciam similarmente, em boa medida devido à necessidade de se criar distância asséptica entre os interesses americanos eventualmente envolvidos e agitações políticas no estrangeiro. Entretanto, mesmo considerando 187 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO essas diferenças mais superficiais, permanece clara a emergência de “inovações” ético-morais a governar as relações entre estados trazidas pelo Corolário Roosevelt e sua subsequente Diplomacia do Dólar, ambos os desdobramentos bem-sucedidos germinados durante aqueles anos dourados. O que é necessário ressaltar, ainda, é que o comportamento aético da “Gilded Age” compunha o estoque de práticas empresariais pronto para ser utilizado pelas corporações americanas uma vez iniciada sua expansão para a periferia. Um exemplo oportuno a ser lembrado é a limitação da legislação antitruste posta em prática pelo Sherman Act de 1890, que não se estendia aos investimentos americanos no exterior, os quais cresceriam aos saltos a partir daquele ano. Informalidade e ilicitudes: novo padrão à vista? Some are real wrecks and lack imagination. They just don’t want to understand that they have to take their situation seriously, as if they had a real job. They have to dress properly, go out in the morning, and find the way of getting hold of some money. My point is: Do you like smack? Well, get up, shave, get dressed, and go to work like everybody else. The suggestive value of the idea of the bazaar is that it alludes to a variety of individuals interacting in a market where commodities and services are bought and sold irrespective of their being legal or illegal... The bazaar is an urban space in which openness to strangers and acceptance of differences are essential in establishing communal life... Part time work, temporary jobs, self-employment, semi-legal occupations, and the hidden activities conducted within the parallel economies combine to blur conventional distinctions between employment and unemployment...The bazaar… (is) the place where legality and illegality meet, overlap, and mix. Vincenzo Ruggiero, Crime and Markets 188 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) referentes ao tamanho do setor informal no Brasil indicavam que, apesar de declinante na última década, seu tamanho relativo girava próximo a 50% da população ocupada em todas as três definições que o Instituto utiliza para identificar o setor (variou de um mínimo de 44,3% a um máximo de 46,2% em 2011, dependendo da metodologia utilizada).103 À primeira vista, tal proporção de trabalhadores distantes dos padrões oficiais de ocupação e emprego pode causar surpresa a respeito da real situação do emprego e do trabalho no Brasil. A esse respeito, o Centro Internacional de Pesquisa sobre a Mulher estimou que em 1980 aqueles que trabalhavam fora ou adjacente às atividades típicas do industrialismo, entendido como ocupações fordistas que incluem estabilidade no emprego e proteção social, alcançavam proporções que iam de 50% a 70% da força de trabalho mundial (TABAK, 2000, p. 71). Seguindo a mesma direção, Claudia von Werlhof conseguiu ser ainda mais incisiva ao afirmar que em 1983 “oitenta a noventa por cento da população mundial consistiam de mulheres, camponeses, artesãos, pequenos comerciantes e trabalhadores assalariados que não podiam ser chamados de livres nem de proletários.” (BROAD, 2000, p. 35). Essa afirmação autorizou a autora a reconhecer que “portanto, não são os 10% dos ‘trabalhadores livres assalariados’ mas os 90% dos trabalhadores não assalariados que têm sido sempre o ‘pilar’ da acumulação por todo o sistema-mundo” (BROAD, 2000, p. 35). Para propósitos ilustrativos essas indicações são suficientes para mostrar que os números dos não formalmente envolvidos em atividades econômicas no Brasil não diferem dos encontrados em outros lugares do mundo ou que – e isso é realmente importante – o que à primeira vista parecia ser sobrevivência típica da tradição ou, pior, do subdesenvolvimento, precisa de fato ser entendido como dimensão sistêmica fundamental do processo de acumulação de capital. Para efeito de mais precisão, é oportuno apresentar neste momento mais detalhamentos a respeito de informalidade. 103 Informações detalhadas a respeito das definições e composições do setor informal que o IBGE utiliza estão em IPEADATA, no site <www.ipeadata.gov.br>. Os dados utilizados estão na tabela 4.1.9 da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio, IBGE-PNAD 2011, tabela 4.1.9. 189 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Em linhas bastante gerais, os estudos sobre informalidade ressaltam um de dois referenciais típicos para o setor: a) o conjunto dos envolvidos, proprietários ou não, em micro ou pequenas unidades empresariais, com relações de trabalho pouco precisas e mais frequentemente distantes daquelas legalmente regulamentadas; e b) emprego à margem das leis trabalhistas (sem carteira assinada, pagamento e aquisição de direitos etc.). Esses referenciais convergem em pelo menos dois aspectos, quais sejam: 1) compartilham dimensões imprecisas, porém pontualmente visíveis de irregularidade perante a lei e, por isso mesmo, 2) permanecem o mais das vezes ausentes das contas públicas. Uma terceira interpretação parte da irregularidade e unifica o setor a partir desses mesmos referenciais. O resultado desse realce do irregular presente nesses entendimentos de informalidade é que todas as definições terminam por reforçar denominações como “economia subterrânea”, “negra”, “submersa”, “das sombras”, que trazem quase explicitamente a apartação dessas incontáveis atividades dos preceitos da norma, da regulação, em uma palavra, da lei. Entretanto, se a inobservância variável de aspectos legais está presente como parte importante dos limites demarcatórios do setor, essa disjunção de modo algum se apresenta como suficiente para seu entendimento. A esse respeito, Cacciamali (2000) identifica dois complementos indispensáveis para o entendimento mais recente do marco definidor do informal, ambos descolados da preponderância dos conteúdos de legalidade dessas práticas: 1) que as atividades ali desenvolvidas orientam-se fundamentalmente para o mercado e, 2) que o que prevalece como traço definidor “são as formas de organização das unidades produtivas” ao invés “das características das pessoas envolvidas ou do seu trabalho” (CACCIAMALI, 2000, p. 157). Com isso, excluem-se aquelas atividades orientadas à subsistência ou esporadicamente dirigidas ao mercado ao mesmo tempo em que também são desconsideradas as unidades, ramos ou setores que descumprem ou mesmo desobedecem à legislação trabalhista ou empresarial de um determinado estado, e que são tidas como informais apenas por atuarem fora da lei.104 Desse modo, são 104 É importante lembrar que atividades informais inscritas nessa definição podem perfeitamente estar organizadas de acordo com o que é típico do setor ao mesmo tempo em que 190 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL esses os referenciais que, de acordo com a autora, geraram algumas das importantes interpretações acerca do tema, das quais ela ressalta as perspectivas dualista e estruturalista dos estudos sobre informalidade. A esse respeito, é suficiente afirmar aqui que os estudos do informal de cunho mais estrutural concebem essas atividades como parte de um todo hierarquizado e integrado de um mesmo processo mundial de acumulação de capital que, em síntese, pode ser aqui entendido como parte da diversificação dos modos de exploração e de expropriação das classes subalternas, globalmente implementados e localmente particularizados. Exemplos dessa orientação são os estudos fundamentados na noção de desenvolvimento dependente e nas do subdesenvolvimento, embora sejam sempre algo arbitrárias separações rígidas desses dois grupos. Mesmo assim, pode-se arriscar dizer que os estudos de marginalidade105, bastante comuns na década de 1970, são exemplos de trabalhos do primeiro tipo de orientação (CASTELL, 1971; QUIJANO, 1971; KOWARICK, 1975) e os de procedência cepalina e alguns de orientação marxista – especialmente quando tratam do subemprego e do desemprego urbano no quadro do subdesenvolvimento – entre os do segundo grupo. Desse segundo grupo, a contribuição de Furtado a respeito da subocupação ou desocupação da força de trabalho rural e urbana no contexto de economias de base agrícola e heterônomas e o famoso estudo de Baran sobre o subdesenvolvimento são exemplos referenciais do que pretendo ressaltar.106 desobedecem à legislação econômica prevalecente. Essa composição com o ilegal é o que é mais frequente. 105 A referência aos estudos de marginalidade pretende apenas situar no tempo a preocupação que mais se aproxima da vertente estrutural dos estudos atuais de informalidade bem como de suas fundamentações teóricas. Uma interessante comparação entre marginalidade e informalidade pode ser encontrada em: QUIJANO. “The Growing Significance of Reciprocity from Below: Marginality and Informality under Debate”. In: TABAK; CRICHLOW (Eds.). Informalization: Process and Structure, Baltimore: The Johns Hokins University Press, 2000. 106 Ver BARAN. A Economia Política do Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1972 (há várias edições). Especialmente importante é o tratamento da hipertrofia da intermediação nas economias subdesenvolvidas, uma das formas da subocupação da força de trabalho. Quanto a Furtado, dentre vários trabalhos que tratam do tema, pode-se citar FURTADO. Subdesenvolvimento e Estagnação na América Latina. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1966 (há outras edições). 191 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Entretanto, se existe proximidade quando esses estudos de cunho mais estrutural abordam esses agrupamentos populacionais ocupacionalmente não regulamentados no contexto da periferia (subemprego, marginalidade, informalidade), as semelhanças terminam quando essas abordagens confrontam com a difusão/universalização dessas atividades, inclusive para os países desenvolvidos ou centrais. De um lado, os que vinculam a informalidade como associada à estagnação e à tradição, enfim, ao subdesenvolvimento, encontram dificuldades intransponíveis para abrigar em suas análises essa expansão inesperada do informal em sociedades economicamente mais homogêneas e estáveis, como o que se observa hoje no centro do capitalismo mundial. De outro, os estudos estruturais que se desenvolveram a partir da matriz do pensamento crítico107 conseguem incorporar essa nova realidade da informalidade nos países centrais como parte de um processo mais recente de globalização, de crise, de mudança estrutural, específica do “momento atual”. Cacciamali descreve essa abordagem do seguinte modo: O ponto de partida é o processo de acumulação capitalista em nível mundial, seus aspectos espaciais e institucionais, as relações de subordinação que são engendradas e suas especificidades nacionais e locais. A partir do conhecimento e interpretação sobre esses contextos, analisam-se seus efeitos sobre as formas de organização da produção, do trabalho assalariado e de outras formas de inserção dos trabalhadores. Este enfoque parte da análise dos condicionantes internacionais e macroeconômicos para circunscrever, como objeto de estudo, as características e as relações do setor informal, ou um dentre os seus diferentes estratos. Admite, além disso, que os atores do setor informal possam não ter como lógica a busca do lucro, mas apenas a sobrevivência de seus proprietários. (CACCIAMALI, 2000, p. 158). Outros analistas, também voltados para a novidade da ocorrência da informalidade no centro, interpretam esse mesmo processo, a partir de outras manifestações, como outro traço da pós-modernidade, a sociedade pós-industrial. Em termos bastante gerais, essa abordagem se caracterizaria, em 107 Refiro-me, aqui, à extensa produção parcialmente inspirada nos estudos sobre imperialismo, nos desdobramentos do dependentismo, no terceiro mundismo e no neomarxismo. 192 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL seus aspectos fundamentais, como derivada da desorganização do paradigma produtivo do taylorismo e do fordismo e de sua substituição por um novo modo de organização da vida econômica. Essa transformação se desenvolve a partir de um intenso dinamismo tecnológico emanado principalmente dos avanços das telecomunicações e da informática, que estimulam a inovação, a adaptabilidade e a rapidez dos agentes aos estímulos provenientes do mercado. Entretanto, não são alguns, muitos ou qualquer agente indistintamente os que se ajustam a essa flexibilização indispensável à rapidez e imediata adaptação às demandas do mercado global. Para essa interpretação, as organizações empresariais mais ajustadas a esse tipo de ambiente irrequieto e instável são exatamente aquelas empresas manufatureiras ou de serviços, pequenas, enxutas, flexíveis e facilmente adaptáveis às estimulações do mercado, com prevalência do trabalho intelectual sobre a repetição mecânica típica do fordismo de um lado e, eis aqui a novidade, liberadas das restrições da regulação do estado de bem-estar social fordista. Essa orientação teórico-interpretativa de funcionalização das novas demandas globais aos horizontes abertos pelas inovações e pela valorização sistêmica do informal e pela padronização imposta pelas corporações globais, é basicamente apoiada por estudos fundados nos princípios inovadores e positivos da globalização. Complementarmente, utilizam-se também dos trabalhos derivados das teses duais, agora adaptadas às dimensões do empreendedorismo e da inovação como fundamentos dinâmicos da economia pós-fordista. Em que pesem as interpretações originárias do informal desenvolvidas pela orientação dualista, visto em um primeiro momento como sobrevivência do tradicional no moderno ou como coexistência pouco ou nada funcional dessa mesma polaridade – visão que atribuía ao peso dessa mesma coexistência a razão do atraso nacional – os estudos de dualidade dirigem-se agora a reinterpretar o universo da informalidade sob novos prismas. Exemplo dessa nova abordagem de estudos que não mais ressaltam os aspectos disfuncionais sistemicamente considerados (desemprego, exploração do informal, concorrência intercapitalista), mas que buscam identificar e ressaltar os traços inovadores dessa outra metade da economia foi o bastante comentado trabalho de Piore e Sabel (1984). 193 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Do que foi comentado até o momento pode-se identificar pelo menos dois aspectos a respeito dos estudos da informalidade. Primeiro, que o tema vem sendo repensado de acordo com as teorizações mais recentes a respeito da emergência de novas realidades econômico/sociais, como o caso da globalização e/ou do potencial inovador que se pretende presente no setor. O esforço de contínua atualização interpretativa do objeto significa, no mínimo, que o tema vem assumindo importância crescente, fato reconhecido por praticamente todos os estudiosos do assunto (TABAK, 2000, p. 2). Em segundo lugar, estimulados pela veloz expansão do trabalho informal nos países centrais, os estudos de informalidade vêm tratando essa expansão como respostas “estruturais” – seja de mais exploração da força de trabalho ou de solução organizacional inovadora – a esse período de instabilidade econômica e de crise iniciada a partir da década de 1970. Em nenhum momento, no entanto, a perspectiva autodenominada estrutural tem abordado a universalização do informal como um conteúdo estrutural/sistêmico de fato, como algo cuja emergência transcende o tempo recente da globalização ou da crise do final do século passado e, menos ainda, como recorrência sistêmica de prazos muito mais longos. Na realidade, em que pese a diversidade de processos e causas por trás dessa expansão da informalidade nos países centrais – subcontrato, impostos excessivos, superpopulação relativa, migrações nacionais e internacionais – uma característica pode ser apontada como recorrente nesses processos de informalização: o surgimento ou a expansão do trabalho precário ou casual. A esse respeito, Tabak (2000) demonstra com muita pertinência que a busca de “flexibilização” da força de trabalho não pode ser vista como resultado recente da globalização ou mesmo deste último acirramento da competição intercapitalista do final do século XX. De fato, não foram outras as razões senão a busca por mão de obra mais “flexível” que compeliram as corporações no período após a Segunda Guerra Mundial a iniciarem um movimento de industrialização na periferia, em um primeiro momento em algumas regiões privilegiadas – o Brasil sendo uma delas – e, posteriormente, por todas as latitudes do planeta. Além disso, em pelo menos dois outros períodos históricos muito mais remotos ocorreram processos denominados 194 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL de “ruralização das manufaturas”, quando pequenas e remotas aldeias foram invadidas por significativa transferência de manufaturas em busca de mão de obra camponesa abundante e mais barata. Tal movimento se deu, primeiramente, no período entre 1350-1450 e, novamente, entre 1650 e 1750, justamente épocas de recessão ou estagnação que sucederam longos períodos de grande expansão populacional (WALLERSTEIN, 1997; BRAUDEL, 1981, apud TABAK, 2000, p. 7). O autor avança ao ponto de denominar de “ruralização do urbano” o presente movimento de informalização para realçar que a recorrência dessa mais recente busca por flexibilização comporta peculiaridades quando comparada com as precedentes. De fato, não há como negar que o atual processo de debilitação do trabalho só pode ocorrer nos limites da economia-mundo capitalista considerando que, de um lado, territórios, populações e riquezas de qualquer espécie não existem mais do lado de fora dessa unidade, nas arenas externas do sistema. Por outro lado, os contingentes populacionais rurais, amplamente majoritários até meados do século XX, migraram maciçamente para áreas urbanas, inviabilizando a reprodução de movimentos para o rural, tais como os ocorridos em épocas passadas apontados acima (TABAK, 2000, passim 1-19). Assim, com o urbano transformado no único lugar de concentração de excedentes populacionais passíveis de recrutamento com vistas ao barateamento dos custos de produção das corporações, somente ali poderia ocorrer a liberação de parte da força de trabalho daquelas atividades oficialmente reguladas e legalmente protegidas. Somente ali vai ocorrer o refluxo das atividades fordistas, sempre acompanhado da desmontagem das organizações sindicais dos trabalhadores. Consequentemente, também será no mesmo ambiente urbano que estará concentrada a busca e a incorporação de novos contingentes de trabalhadores sob nova e precária relação flexível. Sumariando, nessa mais recente busca de alívio concorrencial desencadeada sistemicamente pelas corporações, o espaço urbano (seus desempregados e sua população excedente) apresenta-se como única e última opção em vista, por não haver mais populações de algum modo disponíveis fora do urbano, mesmo que seja para essa qualidade de ocupação flexível. Essa é uma das características típicas da flexibilização pós-fordista 195 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO que, embora recente, deve ser vista, em seus determinantes últimos, como parte dessa longa recorrência, que precisamos ter objetivamente conectada se pretendemos entender informalização como estrutura. Nessa direção, ela faria parte de um movimento de declínio que sucedeu um longo período de intensa expansão da vida econômica, cujo intervalo estendeu-se da segunda metade do século XVIII ao final da década de 1960 (BRAUDEL, 1984). Seja como for, creio ser possível agora rascunhar tentativamente um esboço de alcance mais estrutural para a ocorrência de alterações nas valorações dos comportamentos dos agentes econômicos, ou de parte deles, na dinâmica da economia-mundo capitalista. É indispensável alertar que a ocorrência de novos referenciais éticos em fases ou momentos específicos dos ciclos sistêmicos de acumulação de modo algum pressupõe que se transformem em normas predominantes de comportamento dos agentes econômicos de um eventual ciclo sistêmico de acumulação emergente. Assim, o fato da hegemonia holandesa apresentar tamanha identidade com o ambiente das companhias de comércio não quer dizer que comportamentos e princípios que aparecem em outras fases de crise e de reorganização sistêmica inevitavelmente tenham que afirmar-se também como o padrão ético do ciclo sistêmico que surge. Mostram-se mais como conjunto de comportamentos que destoam dos prevalecentes, apresentando-se como opções que podem ser descartadas quando contrapostas a outras formas de proceder percebidas como mais eficientes no longo prazo ou mais afinadas aos tratos culturais predominantes naqueles contextos socioambientais. Não é o caso de insistir nessa direção, até porque o surgimento e difusão desses novos princípios éticos na vida econômica comentados acima, tudo indica, tendem a surgir em momento de crise e de reorganização sistêmicas: o primeiro nas Províncias Unidas durante as décadas que precederam a hegemonia holandesa, ainda durante a Guerra dos Oitenta Anos; o segundo nos EUA depois da Guerra da Secessão e simultâneo ao início do declínio da hegemonia inglesa e aos distúrbios econômicos e políticos que o acompanharam; e, por fim, o terceiro durante o atual declínio da hegemonia americana, com a banalização mundialmente difusa do ilícito e do ilegal na 196 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL “economia de bazar” 108, de acordo com a feliz metáfora de Ruggiero (2000, p. 29). É possível, ainda, afirmar que essas novas formas de ação que ultrapassam os limites do legal, esses novos comportamentos voltados para expandir a lucratividade empresarial ocorreram e estão ocorrendo motivados por justificativas e atitudes que procuram a expansão e o controle de mercados: primeiramente os holandeses enquanto disputavam e, em seguida, expandiam, organizavam e controlavam o mercado mundial no século XVII; depois, com a organização das corporações americanas durante e imediatamente após aqueles “Anos Dourados” cuja tarefa era controlar e unificar o mercado americano no final do século XIX para, em seguida, expandir seus interesses econômicos para a periferia adjacente da América Latina no início do século XX e além; e finalmente, nos turbulentos dias de hoje, quando as grandes corporações procuram estender suas vendas aos mais pobres dos cinco continentes, trazendo-os à sua órbita, porque constituem a última fatia de mercado para ser conquistada no contexto da crise iniciada na década de 1970. A esse respeito Telles (2009, p. 160) afirma que: São esses circuitos transnacionais de migração que permitem a circulação de bens e mercadorias que, sem esses novos migrantes, não chegariam aos mercados populares do Norte ou do Sul. Essa é a tese defendida por Alain Tarrius: os grandes atores econômicos da mundialização mobilizam os pobres como consumidores, como clientes e também como passadores, fora das regras oficiais e ao largo das convenções comerciais, fazendo os produtos chegarem aos países pobres e às populações pobres dos países ricos. De acordo com o fio condutor desse texto temos, então, que a presente crise oferece uma situação até então inédita de tantas quantas foram 108 “ (A)s dinâmicas urbanas hoje redefinidas sob o impacto de formas de circulação de bens e riquezas que seguem os amplos circuitos da migração por onde se estruturam redes transnacionais de um proliferante comércio ambulante. São redes que atravessam fronteiras, articulam centros comerciais espalhados em vários pontos do planeta e se territorializam sob as diversas modulações do chamado mercado informal em expansão nos centros urbanos [...] em particular nas cidades de fronteira, situadas nos pontos de conexão entre esses vários circuitos, muitas delas ponto de chegada de vagas migratórias anteriores e que agora se redefinem nessa cartografia mutante do mundo contemporâneo.” (TELLES, 2009, p. 159). 197 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO aqui comentadas, qual seja a da transformação dos trabalhadores informais na vanguarda desse novo desenho ético/moral a disseminar-se pela economia mundial. Ao realçar a superposição do informal e do ilícito como mecanismo de acumulação de capital em escala mundial, o momento atual oferece-nos a superposição de dois movimentos que até então apresentavam trajetórias independentes: as inovações ético/empresariais para expandir e controlar mercados e a utilização de trabalhadores informais para diminuir os custos da força de trabalho. Em outras palavras, o primeiro ocorria como uma espécie de motor ou combustível da expansão sistêmica e o segundo como intensificador do processo de exploração do trabalho. O que temos agora com a junção dessas duas pulsões é o envolvimento das periferias nessas “novidades” ético-morais de banalização do ilícito como fundamento aprisionador do trabalho precário no processo de acumulação de capital. Entretanto, tal inclusão não acontece com a incorporação de não proletários, como no passado. Agora, os trabalhadores informais expropriados do mundo, os verdadeiros proletários, foram chamados para a tarefa de incrementar a acumulação em escala mundial. Desse modo, estamos presenciando a simultaneidade de uma busca de se expandir para dentro ao mesmo tempo em que se intensifica a exploração do trabalho precarizado nos mesmos limites internos da economia-mundo capitalista. Não há mais outro lugar a conquistar ou populações a explorar. Isso demonstra como a expansão do capital é refém desses dois movimentos – diminuir custos de produção e expandir mercados. Com isso, uma solução encontrada pelo mundo corporativo reconhece a necessidade de se esquivar do pagamento de taxas e impostos, custos que só podem ser evitados pela acomodação das rotinas empresariais com práticas ilegais e com o devido cuidado de manter os transgressores formalmente desvinculados desses movimentos. Não existem elementos suficientemente seguros para que seja possível afirmar o que nos aguarda o futuro. Uma possibilidade sinaliza a banalização da ilicitude como um comportamento temporalmente circunscrito ao período de crise por que passa hoje a economia mundial. Neste caso, o que temos por certo é que a tendência à expansão do informal apresenta-se como de bem longa duração. Aqui, o crescimento da informalidade não mostra sinais 198 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL sequer de estabilização em termos sistêmicos, pois não parece haver opção para a crescente massa de trabalhadores urbanos irregularmente ocupados em escala mundial. Assim, se não houver opção de sobrevivência para essa massa urbana ocupacionalmente desconectada de trabalho regular podemos estar certos que o ilícito fará parte ainda por longo tempo do nosso cotidiano. Uma segunda possibilidade, estendida a partir da limitação de caminhos oferecida pela primeira, indica o avanço da informalidade e a banalização do ilícito como alternativa de sobrevivência e de acomodação moral dos que crescentemente se submetem ao trabalho “flexível”, precário e instável. A falta de opções à disposição dos gestores públicos e da gerência corporativa inviabilizaria possíveis reações, quer dos estados quer das corporações. No primeiro caso, pela deterioração da governabilidade resultante da falta de resposta à decomposição do trabalho, pelo encolhimento de suas receitas e a resultante dissolução do estado de bem-estar. No âmbito empresarial, o previsível encolhimento do mercado provocado pela inevitável diminuição da massa salarial em escala global dificultará ao limite o eventual efeito restaurador de destruições criadoras provocadas por inovações. Um possível desdobramento dessa progressiva desordem entrópica pode surgir dessa tensão hoje latente entre o poder estatal e o capital pela apropriação da parcela do excedente social (taxas e impostos versus lucros) de todo modo indispensável a qualquer propósito restaurador, quer do estado quer do capital. Nesse caso, estaríamos frente ao início da apartação conflituosa de uma união que gerou, embalou e há quinhentos anos vem nutrindo o capitalismo como sistema mundial. Conclusão O intuito desse trabalho foi o de apresentar uma moldura interpretativa de um tipo de ilegalidade que está se expandindo globalmente e que, em uma primeira aproximação, inclui pirataria (e violação de patentes) e contrabando. O principal objetivo do estudo foi o de demonstrar que essas atividades ilícitas não são produtos de processos gestados, alimentados 199 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO e disseminados pelo atual estágio da economia mundial. Na verdade, essa tem sido a principal abordagem que a maioria dos estudos a respeito de ilicitudes vem tendo, especialmente aqueles voltados à compreensão da expansão de um tipo de trabalho precário ou temporário, que tem crescido como consequência da desregulação imposta pelas políticas implementadas pelos governos Reagan/Thatcher desde o início dos anos 1980 (RUGIERO, 2000). A visão desenvolvida aqui apresenta interpretação bastante diversa a respeito da emergência e da difusão que práticas ilícitas vêm apresentando no cenário econômico mundial. A intenção foi demonstrar que processos similares ocorreram ao menos duas vezes na história do capitalismo enquanto um sistema mundial, quando da emergência de novas éticas/práticas empresariais. Essas novas formas de gerenciar e operar atividades empresariais não foram imediatamente reconhecidas nem aceitas como legítimas nos ambientes em que emergiram e em que primeiramente iniciaram suas operações. Depois de algum tempo, entretanto, essas mesmas “inovações” passaram progressivamente a tornar-se parte do estoque disponível de práticas à disposição dos agentes econômicos tornando-se progressivamente predominantes por longo período de tempo. De modo bastante conciso foi demonstrado o impacto na economia mercantil holandesa no início do século XVII, com a inovadora organização, em termos de poder econômico e político, de um empreendimento monopolista de comércio com o Oriente – a VOC – e a racionalização de suas práticas mercantis e organizacionais, àquela época eticamente condenáveis (captura de navios, expropriação de cargas, institucionalização do contrabando e da escravidão), feitas por Hugo Grotius, um jurista talentoso que posteriormente foi reconhecido como o fundador do Direito Internacional. À época de sua criação, e mesmo depois, o comportamento da companhia continuava a ser reprovado por muitos de seus contemporâneos, ligados como estavam a ações empresariais mais convencionais e costumeiramente reconhecidas. Entretanto, nada impediu o modelo de operação da companhia holandesa de prosperar e de servir por dois séculos como a referência às companhias de comércio europeias. De modo similar, ao final da guerra civil americana observou-se a emergência de um ambiente empresarial também novo, principalmente 200 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL devido à difusão de suas principais características – corrupção, especulação, agiotagem, suborno e toda sorte de irregularidades empresariais – que penetravam no tecido social da nação, atraindo à sua órbita partes significativas do estado americano. Uma vez mais os componentes éticos do mundo dos negócios e os desdobramentos econômicos que vieram a estimular durante aquele novo período da história econômica do país109, conhecida como a Era da Aparência (Gilded Age), serviu como um pré-requisito para o desenvolvimento do capitalismo industrial corporativo nos Estados Unidos e para as políticas que o estimularam – o Corolário Roosevelt e a Diplomacia do Dólar. Essa genuína herança daquele ambiente ético/moral precedente marcou o perfil que as corporações americanas utilizariam para crescer, especialmente na periferia da economia mundial. Tal conjunto de fatores acabou por determinar, em um primeiro momento, as ações do Estado e das operações empresariais nos Estados Unidos para, em seguida, estender-se pelo continente americano e além. Essa nova ética empresarial tornou-se fundamental para alavancar o capital americano para seu bem-sucedido empreendimento de organizar “seu” ciclo sistêmico de acumulação. Além disso, tal como no caso holandês, houve também na ascensão americana um ideólogo que racionalizou a legislação da arbitragem e atualizou os direitos de extraterritorialidade, pavimentando juridicamente o caminho americano para a hegemonia. Pode-se encontrar a versão americana de Hugo Grotius na figura de John Basset Moore. Esses exemplos de “inovações” éticas suportam a visão de que o que é pensado contemporaneamente a respeito das práticas empresariais ilícitas encontra paralelo no passado, especialmente em relação ao período de suas ocorrências e pelo menos em algumas de suas principais manifestações. No primeiro caso, pode-se notar que as “inovações” e transformações econômicas ocorridas nas Províncias Unidas na passagem do século XVI para o 109 Foram essas práticas desonestas que inspiraram Mark Twain a resumi-las como segue: “Qual é o principal objetivo do homem? ... Ficar rico. De que modo? Desonestamente, se pudermos; honestamente se precisarmos.” Comentando a respeito do autor dessa famosa frase, Jeff Randall fez o seguinte comentário: “Se fossem distribuídos prêmios por cinismo, Twain certamente teria recebido uma medalha de ouro. Esse comentário, publicado pela primeira vez no The New York Tribune em 1871, era típico de um escritor que acreditava que a verdade era o bem mais valioso, e que por isso deveríamos ‘economizá-la’.” (RANDALL, Jeff. Disponível em: <www. telegraph.co.uk/ finance/newsbysector/banksandfinance>). 201 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO XVII e nos Estados Unidos no final do século XIX e início do XX emergiram no contexto de crise de hegemonia e de declínio econômico sistêmico. Em ambos os casos podem ser entendidos como medidas anticíclicas que vieram para expandir e controlar mercados, em primeiro lugar, e utilizar a força de trabalho não proletária das periferias, em segundo. Desse modo, a resultante transformação econômica trazida por essas “inovações” éticas surgiu a partir da expansão para as periferias (ou para as arenas externas) da economia-mundo capitalista. O mesmo fenômeno pode agora ser observado no caso da atual banalização do ilícito, que também apresenta a mesma intenção explícita, que é a de ampliar e manter mercados ao mesmo tempo em que manifesta a necessidade de trabalho casual, itinerante e precário para reduzir custos e enfrentar o acirramento da concorrência em escala mundial. Esse tipo de trabalho, no entanto, encontra-se agora também disponível nas áreas urbanas do centro. Por fim, os tempos de expansão, opulência e ocaso do Capitalismo Mundial sintetizados nas peculiaridades da florescência holandesa, americana e oriental (chinesa?) assemelham-se às fases que usualmente costumamos dividir o tempo de nossas vidas. Juventude, maturidade e velhice podem bem ser os sentidos desses três momentos do sistema-mundo capitalista tratados acima. Assim, como na vida das pessoas, o século XVII teve todo um mundo para conquistar; o século XIX todo um mundo para explorar; e o XXI terá todo um passado para recordar e lamentar... Referências ALLEN, Howard W.; ALLEN, Kay Warren. “Vote Fraud and Data Validity.” In: CLUBB, Jerome M.; FLANIGAN, WILLIAM H.; ZINGALE, Nancy H. (eds.). Analysing Electoral History: A guide to the Study of American Vote Behavior. Beverly Hills, California: Sage Publications, 1981. ARGERSINGER, Peter H. “New Perspectives on Election Fraud in the Gilded Age”. Political Science Quarterly, vol. 100, n. 4, p. 669-687, Winter 1985-6. BARAN, Paul. A Economia Política do Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1972. 202 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL BOXER, C.R. The Dutch Seaborne Empire: 1600-1800. New York: Alfred Knopf, 1965. BRAUDEL, Fernand. 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(Anibal Quijano and Immanuel Wallerstein) We face the challenge of integrating big structures, large processes and huge comparisons into history. (Charles Tilly) 110 Doutor em Economia pela Universidade Autónoma do México. Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina. O autor agradece os comentários e sugestões de Ricardo Zortéa Vieira, Luiz Mateus da Silva Ferreira, Fábio Pádua dos Santos, Rosângela de Lima Vieira e Felipe Amin Filomeno, que foram fundamentais para melhorar a argumentação geral. Não foi possível incorporar todas as sugestões, mas a elas voltaremos na continuação da pesquisa. 207 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Com o lançamento, em 1974, do primeiro volume de O Moderno Sistema-Mundo, Immanuel Wallerstein iniciou uma perspectiva – e não uma teoria - de análise que está longe de estar acabada. Nestes trinta e oitos anos, diversos pesquisadores inspiraram-se nos trabalhos que Wallerstein e Terence Hopkins nuclearam no Fernand Braudel Center e desenvolveram suas próprias linhas de pesquisa, porém conservando um núcleo duro comum, que caracteriza a EPSM: 1) não tomar a sociedade ou economia nacional como unidade de análise; 2) não aceitar o pressuposto de que a realidade pode ser adequadamente compreendida pelas várias disciplinas (economia, sociologia, geografia etc...) separadamente; 3) aceitar que o sistema capitalista mundial e o sistema interestatal são duas entidades que nasceram juntas e interligadas111; 4) adotar as concepções braudelianas do tempo como duração dos acontecimentos e processos, e ver a história como dialética das durações, ou seja, como resultado da mútua interação dos tempos curto (acontecimento), médio (conjuntura) e longo (estrutura), sendo este último o tempo mais adequado para estudar as mudanças sociais relevantes. Os vários capítulos deste livro estão a comprovar que a perspectiva da Análise dos Sistemas-Mundo admite uma grande variedade de projetos de pesquisa, tanto no que se refere ao tema propriamente, quanto no que se refere aos tempos e espaços, respeitados os princípios acima destacados. Como o nome mesmo diz, o que diferencia a EPSM é a perspectiva com que se apreende o mundo. Desde que adotamos a Perspectiva dos Sistemas-Mundo, estamos buscando interpretar a formação e a evolução da economia e da sociedade no Brasil como concretização, em um espaço determinado, da formação e expansão do sistema-mundo capitalista. Neste ensaio faremos isso para o longo século XVI (1450-1650). Com este propósito, procuraremos estabelecer conexões entre acontecimentos históricos para revelar as forças sistêmicas que 111 “Four our own time, it is hard to imagine the construction of any valid analysis of long termstructural change that does not connect particular alterations, directly or indirectly, to the two interdependent master processes of the era: the creation of a system of national states and the formation of a worldwide capitalist system. We face the challenge of integrating big structures, large processes and huge comparisons into history.” (TILLY, 1984, p. 147). 208 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) condicionaram as histórias portuguesa e brasileira. Nesta grande e fascinante empreitada, assumimos o risco de ter gerado um texto muito descritivo e pouco analítico. Os acontecimentos históricos de que tratamos, embora possam ser conhecidos pelos historiadores dos respectivos períodos ou regiões, não se encontram reunidos para compor o quadro sistêmico em quem se situam Portugal e sua colônia na América. Ademais, consideramos também que esta sistematização provavelmente será útil aos leitores não tão familiarizados com a história mundial. Conforme afirmou Caio Prado Júnior (2008[1945], p. 280, grifos nossos), provavelmente se referindo ao momento em que escrevia, “não há mais, verdadeiramente, no mundo contemporâneo, história econômica deste ou daquele país, mas unicamente a de toda a humanidade.” Ousando discordar do mestre Caio Prado, nossa intenção neste capítulo é mostrar que talvez desde o século XVI, pelo menos, seja possível perceber a unificação da história da humanidade. Mas essa percepção impõe uma mudança radical de perspectiva, tal como a que foi desenvolvida por Immanuel Wallerstein, Fernand Braudel e Giovanni Arrighi, os três gigantes da Economia Política dos Sistemas-Mundo (EPSM) e cujas obras foram nossa fonte de inspiração e de informação para este ensaio. Entre estes autores há convergências e também grandes divergências. Entre as coincidências, está a perspectiva histórico-mundial e a longa duração como a temporalidade relevante para estudar as mudanças sociais. Entre as divergências, merece destaque o sentido dado à expressão economia-mundo. Tomada emprestada de Braudel, ela é usada por Wallerstein para designar o sistema social histórico cuja evolução, desde seu surgimento no longo século XVI até 1914, ele apresentou nos quatros volumes de The Modern World-System, distanciando-se consideravelmente do que Braudel chama de economia-mundo, principalmente porque o historiador francês não se referia a um sistema social. Vale observar que se bem considerava válido o esforço de Wallerstein, Braudel pondera que nele a história estava por demais sistematizada.112 Tampouco o sistema social 112 Quando escreveu “o modelo da economia-mundo certamente é valido”, Braudel fez uma apreciação positiva do primeiro volume de O Moderno Sistema-Mundo, mas mostrou uma certa discordância ao dizer que que os volumes seguintes dariam a oportunidade de “voltar à 209 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO histórico que Wallerstein (2001) denomina economia-mundo capitalista ou capitalismo histórico coincide com o sistema capitalista mundial descrito por Giovanni Arrighi em O Longo Século XX. Não temos tempo aqui para detalhar as diferenças, bastando dizer que, enquanto Wallerstein descreve a economia-mundo em sua totalidade, tanto em termos de estruturas quanto em sua dimensão espacial, que estaria segmentada em centro, semiperiferia e periferia, o sistema capitalista mundial de Arrighi no livro supracitado se refere somente aos círculos capitalistas – o terceiro andar no esquema tripartite de Braudel113 – e sua relação com o Estado. Sendo diferentes as entidades descritas pelos três autores, também o serão as respectivas cronologias. Não obstante, podemos constatar aproximações principalmente entre Wallerstein e Arrighi, talvez porque tanto os ciclos sistêmicos de acumulação quanto a economia-mundo sejam fenômenos capitalistas e espacialmente coincidentes. De fato, como veremos mais adiante, Arrighi propõe que foi no período 1450-1650 que se deu a formação do sistema social capitalista e sua afirmação como sistema mundial. O período é, para Wallerstein, o do surgimento da economia-mundo capitalista.114 A cronologia de Braudel é substancialmente diferente, na medida em que para boa fundamentação, às novidades e às limitações de uma visão sistemática, talvez demasiado sistemática, mas que se revelou fecunda.” (BRAUDEL, 1998, p. 58). 113 Devemos ter em mente que, bem à sua maneira, sem a precisão que os teóricos requerem, Braudel define o capitalismo por oposição às outras duas esferas da vida econômica: a vida material (economia de subsistência?) e economia de mercado ou economia, onde compradores e vendedores conhecem as condições em que ocorrerão as transações. No topo – em uma posição privilegiada - deste esquema tripartite, está o capitalismo, que se diferencia das outras esferas por uma série de características: O agente, sua lógica e motivação; a escala dos negócios; a não fixação a nenhuma atividade específica (indústria, comercio, finanças), pois o agente capitalista atua em qualquer uma delas, simultaneamente ou deslocando-se de uma para outra com agilidade, buscando os maiores lucros; a preferência pelo o monopólio; a ojeriza à concorrência; e por último, mas não menos importante, por estar sempre aliado ao estado, até porque “estado e capitalismo são duas forças mais ou menos gêmeas.” (BRAUDEL, 1998, p. 392). Para maiores detalhes, ver as introduções dos livros I e II de Civilização Material, Economia e Capitalismo, a conclusão do livro III e os capítulos 3 (A produção ou o capitalismo em casa alheia) e 4 (O Capitalismo em Casa) do Livro II. 114 “[...] consideraremos 1450-1640 a unidade de tempo significativa, durante a qual se criou uma economia-mundo capitalista, que sem dúvida, era, como diz Braudel ‘vasta mas débil’.” (WALLERSTEIN, 1999, p. 94). 210 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) ele a economia-mundo europeia existiria desde o final do século XIV, quando se inicia o século veneziano, cujo marco inicial foi 1378 e o final 1498.115 A América Latina e o Brasil, como se pode ver na epígrafe deste texto, são duas entidades116 que nascem juntas com a economia-mundo capitalista. Ou seja, a história desta região após 1492 é inseparável da história da economia-mundo e vice-versa. O mesmo não se pode dizer, por exemplo, da Índia e da China, que embora sendo muito anteriores ao surgimento da economia-mundo, a ela foram incorporadas bem mais tarde. Dada a referida inseparabilidade, e dado que o sistema social que chamamos de economia-mundo se concretiza no espaço e no tempo, estudá-lo ou descrever seu desenvolvimento implica necessariamente falar de espaços e tempos determinados, sendo o Brasil e a América Latina um destes espaços. A relação entre América Latina e uma certa economia capitalista mundial não deixou de ser percebida pelos cientistas sociais latino-americanos, tanto cepalinos quanto dependentistas, como o demonstram as relações feitas entre a transferência de prata e outros produtos latino-americanos e o desenvolvimento do capitalismo na Europa, desde a chamada acumulação primitiva até a revolução industrial. Não obstante esta menção a uma entidade maior, o sistema capitalista mundial, as relações estabelecidas por tais autores aconteciam entre nações ou economias nacionais, o que impedia partir da inseparabilidade absoluta afirmada por Quijano e Wallerstein. Defendemos que tal inseparabilidade emerge naturalmente quando adotamos os princípios metodológicos enunciados anteriormente O estudo da América Latina deve partir da condição colonial. No caso do Brasil, este suposto implica que a formação da economia-mundo capitalista e de seu sistema interestatal atingiram o território americano através do filtro português, tanto no que se refere ao Estado quanto à acumulação de capital. Em outras palavras, entender a forma como o Estado português se inseriu no sistema interestatal e como o território português foi incorporado 115 Veneza teve “um longo século de preponderância indiscutível (1378-1498)” (BRAUDEL, 1998, p. 131). 116 Deve ser notado que Quijano e Wallerstein se referem à América Latina como um constructo geosocial, que resultou do amálgama cultural, econômico, político e ecológico posterior a 1492. 211 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO aos processos mundiais de acumulação de capital é o que nos permitirá esclarecer as mudanças que os dois processos mencionados por Tilly (1984) - a criação de um sistema de estados nacionais e a forma de um sistema capitalista mundial - provocaram no território que hoje é o Brasil. A esse respeito, nos esforçaremos para defender a seguinte tese: em Portugal, apesar da precocidade do Estado nacional, da presença expressiva de comerciantes de longa distância, e do envolvimento do Estado e da sociedade em redes capitalistas, o Estado e a sociedade do Antigo Regime conseguiram resistir às mudanças provocadas pela formação da economia-mundo capitalista. Esta resistência impediu o pleno desenvolvimento de ideias e práticas capitalistas no Estado, na economia e na Sociedade, criando uma distância com o que acontecia primeiro nas cidades-Estados italianas e depois no norte da Europa. Nossa narrativa procura mostrar que, se no primeiro século XVI (1450-1550) Portugal colabora para, e se beneficia do, surgimento da economia-mundo, situando-se próximo do centro, no século seguinte, enquanto se intensificava a lógica capitalista na economia-mundo e surgiam estados nacionais muito poderosos, em Portugal, tanto nos negócios públicos quanto nos privados prevaleciam instituições pré-capitalistas. Como resultado, por volta de 1650, o Estado português praticamente não conta no jogo de poder europeu e sua economia depende essencialmente do tráfico de escravos e da economia escravista açucareira (FURTADO, 1995) na América. A esta altura, a condição de quase-Estado e de uma economia fundada na escravidão colocavam Portugal – e sua colônia americana - na condição de periferia da economia-mundo. Para dar conta desta tarefa, começaremos mostrando a precocidade do protagonismo do Estado e do comércio em Portugal (seção II), protagonismo que é praticamente contemporâneo ao surgimento do capitalismo como sistema social histórico (seção III). Começa aqui a resistência portuguesa à expansão das ideias e das práticas e capitalistas (seção IV), resistência que prosseguirá em meios às mudanças na economia-mundo na segunda metade do século XVI, as quais levantarão novos e maiores obstáculos para Portugal (seção V). Na seção VI, o objeto de estudo é a colônia americana, que vai ser incorporada à economia-mundo através da cadeia mercantil 212 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) do açúcar. Na seção VII, o relato volta-se novamente para o centro da economia-mundo, que vai ser deslocado para o norte da Europa, mais precisamente para as Províncias Unidas, com destaque para Amsterdam. Na seção VIII, com a qual fechamos este capítulo, mostraremos que tanto nas suas consequências - talvez a mais sobressalente sendo a transformação do capitalismo em sistema mundial - quanto no seu desenvolvimento, os processos que colocaram as Províncias Unidas no centro da acumulação capitalista mundial transformaram Portugal num quase-estado sustentando por uma economia baseada na produção de escravos (África) e na sua utilização (América) para a fabricação de açúcar e outros produtos primários destinados à exportação. A precocidade do protagonismo do Estado e do comércio em Portugal A partir do século XIII, quando os venezianos e genoveses voltam-se para o oeste do Mediterrâneo (Barcelona, Sevilha, Marrocos e Lisboa117), a ligação marítima entre o Mediterrâneo e o Mar do Norte atinge Portugal, em cuja capital multiplicam-se as colônias estrangeiras. “Lisboa e, para além de Lisboa, Portugal inteiro ficam pois, em parte, sob controle dos estrangeiros” (BRAUDEL,1998, p. 125, grifos nossos). No último quartel deste mesmo século, mais precisamente em 1279, pelo Tratado de Alcanizes firmado com o Reino de Castela, Portugal define suas fronteiras, que podem ser consideradas as mais antigas da Europa. Estas fronteiras foram reafirmadas um século depois, quando a Revolução de Avis (1383-85), com o decidido apoio da burguesia comercial, derrotou a nobreza territorial que se aliara ao Reino de Castela. 117 “[...] no século XIII, quando chegam por primeira vez a Portugal, os italianos se esforçam por atrair os povos ibéricos para o comércio internacional. Uma vez ali, os italianos passariam a jogar o papel de iniciadores dos esforços colonizadores ibéricos, pois tendo chegado tão cedo, “foram capazes de conquistar posições-chave na península ibérica”. ” (WALLERSTEIN, 1999, p. 71). Wallerstein também cita Virginia Rau (1957, p.718), para quem em 1317, “a cidade e o porto de Lisboa seriam o grande centro do comércio genovês.” 213 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Portanto, já no final do século XIV, existem em Portugal os dois agentes propulsores da criação do moderno sistema-mundo: o estado territorial e os capitalistas. Nesta perspectiva, para entendermos a posição de Portugal na economia-mundo, faz-se necessário elucidar o tipo de Estado e suas relações com a burguesia que, como em todas as partes, dedicava-se fundamentalmente ao comércio e às finanças. O protagonismo da burguesia mercantil na Revolução de Avis levou o jovem Celso Furtado a interpretá-la como uma revolução burguesa, que teria resultado na “ascensão completa e definitiva da burguesia” e na criação de um Estado semelhante às “repúblicas mercantis italianas.” (FURTADO, [1948] 2001, p. 27-28). Escrevendo nove anos depois, Faoro ([1957] 2008), fez uma avaliação mais acertada do Estado português pós-1385 e do lugar nele ocupado pela burguesia. De fato, da Revolução de Avis não renasceu a nobreza territorial e nem um regime senhorial, mas ao mesmo tempo, o novo rei (D. João I) recuperou o domínio de grande parte das terras e com outra fonte de poder, o carisma, se sobrepôs à burguesia, “tornando-a de patrocinadora da monarquia, em servidora” (FAORO, [1958] 2008, p. 58, grifos nossos). Numa espécie de estatismo precoce, “o Estado, em nome do rei, [eleva-se], em agente econômico, extremamente ativo”, abrindo novas oportunidades através da expansão marítima, e mesmo de “certas atividades industriais novas” internas, para compensar a queda das receitas provenientes da agricultura e do comércio internos (GODINHO, 1968, p. 45 apud FAORO, 2008, p. 60). A burguesia comercial, ou melhor, indivíduos pinçados desta classe, participavam destas iniciativas, mas não em posição de comando: Ela [a burguesia] estava dentro do Estado. Mas o domínio político não lhe foi confiado com a demissão do soberano. A burguesia conquistou o seu lugar: mas sobre ela, havia uma cabeça, dona de maior riqueza, a proprietária virtual de todo o comércio, cabeça com ideias, projetos e planos, saídos das mãos dos juristas, armados de raciocínios, cheios de enredos, armadilhas e sofismas, capazes de erguer, por toda a parte, a sombra da forca. (FAORO, 2008, p. 59, grifos nossos). 214 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) O estado que submete e se sobrepõe à burguesia não é de maneira nenhuma hostil ao comércio, todo o contrário. Tampouco deixa que este se desenvolva fora de suas garras: o comércio era, na verdade, atividade do Estado, que podia delegá-la ou confiá-la a particulares, mediante concessão de privilégios. O monopólio era sempre virtual, sempre possível, mas só em alguns casos estabelecido de fato. (FAORO, 2008, p. 73 , grifos PAV). O caráter mercantil do Estado também se expressava nos grandes privilégios concedidos aos comerciantes estrangeiros que recebiam “cartas de segurança” ou “carta de segurança real”, as quais davam a seu titular a garantia de que suas atividades não seriam impedidas, nem seus bens confiscados, mesmo que seu país de origem estivesse em guerra com Portugal (FAORO, 2008, p. 71). Assim, o Estado português, ao controlar direta ou indiretamente as atividades comerciais em seus domínios ultramarinos, centraliza os recursos com os quais literalmente compra a fidelidade dos nobres e do clero, também interessados em conservar a sociedade de Antigo Regime, que se manterá até as primeiras décadas do século XIX. Nesta sociedade, “o mais aparente é a divisão em estados ou ordens – clero, nobreza, braço popular. É uma divisão jurídica, por um lado; é por outro, uma divisão de valores e de comportamentos que estão estereotipados, fixados de uma vez para sempre, salvo raras exceções. Cada qual ocupa uma posição numa hierarquia rígida, segundo tem, ou não, títulos e tem, ou não, direito a certas formas de tratamento” (GODINHO, 1971, p. 56) No topo desta sociedade, está seu defensor máximo, o monarca absoluto e dirigente do estado patrimonial e estamental, cuja reprodução, assim como da sociedade do Antigo Regime, é incompatível com a preeminência da burguesia. Ao contrário do que propôs o jovem Celso Furtado, estamos longe de uma revolução burguesa e, como veremos adiante, Portugal se assemelha muito pouco às repúblicas italianas, onde, quase simultaneamente à formação do Estado patrimonialista e estamental lusitano que subjugava a burguesia, instaurava-se a relação inversa. 215 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO O surgimento do capitalismo como sistema social histórico Durante os conflitos que por cerca de um século (1340-1454) jogaram as cidades-Estado italianas umas contra as outras, Gênova, Veneza e Florença passaram a funcionar como centros de poder na Europa. Além disto, foi no contexto destas lutas... [...] que o capitalismo nasceu como um sistema social histórico. A intensificação da concorrência intercapitalista e a crescente interpenetração dessa concorrência e da luta pelo poder, dentro das cidades-Estados e entre elas, não enfraqueceram, mas, ao contrário, fortaleceram o controle desses Estados por parte dos interesses capitalistas. (ARRIGHI, 1996, p. 94, grifos nossos). Como decorrência do controle exercido sobre o estado, desenvolveu-se em Veneza e em Gênova “um sistema essencialmente capitalista de gestão do Estado e da guerra” (ARRIGHI, 1996, p. 37), o que equivale dizer, não só que estas atividades também ficaram submetidas aos cálculos de custo-benefício financeiro, mas também que a economia e o estado seriam dirigidos pela lógica da acumulação incessante de capital. Qual era a posição de Portugal na economia-mundo de Braudel ou no sistema capitalista arrighiano? A resposta só pode ser encontrada em Braudel, pois como anotamos acima, os desenvolvimentos concretos nas várias regiões da economia-mundo não são tratados em O Longo Século XX. [...] Portugal terá sofrido, ao longo de todos os seus sucessos, o fato de não ser o centro de uma economia-mundo estabelecida a partir de Europa. Embora privilegiada em vários aspectos, a economia portuguesa deriva da periferia da economia-mundo. (BRAUDEL, 1998, p. 124-125, grifos PAV). Como é de seu feitio, Braudel não esclarece com precisão o que entende por periferia e por isso seria mais adequado classificar Portugal como 216 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) uma zona secundária. Para nossa argumentação, importa destacar a inserção de Portugal nesta economia-mundo (BRAUDEL) comandada por Veneza. E dado que é exatamente no período posterior à revolução de Avis que em Veneza e Gênova as classes capitalistas estão assumindo o controle do estado, Portugal está de fato se inserindo de maneira subordinada no sistema capitalista. Parece-nos relevante destacar esta interpretação, pois ela nos alerta para um aspecto importantíssimo da expansão marítima ibérica e da criação de seus impérios coloniais, qual seja, a de que esta expansão e impérios já se inseriram, não numa simples expansão do capitalismo comercial, como afirmavam Celso Furtado e Caio Prado Júnior em seus escritos sobre a formação econômica do Brasil, mas dentro de um sistema capitalista, o qual - mesmo que incipiente, principalmente porque a esta altura ainda não se havia constituído o sistema interestatal - tenderá a condicionar os processos políticos e econômicos em todo o mundo, inclusive a formação e a evolução dos estados territoriais,118 tais como os Estados ibéricos, e seus impérios.119 No que segue vamos procurar mostrar as particularidades da inserção do Estado e da economia portuguesas na economia-mundo capitalista no século XVI. A resistência portuguesa ao pleno desenvolvimento do capitalismo No decorrer do século XV, enquanto nas cidades-estado italianas a lógica capitalista estava num acelerado processo de afirmação tanto nos 118 No que toca à estratégia de acumulação de poder, que é o objetivo último de qualquer Estado, Arrighi (1996) distingue os estados territorialistas – aqueles que através da conquista de territórios buscam ampliar seu poder – dos estados capitalistas, aqueles que buscam acumular riqueza como meio para ampliar seu poder. 119 Ao inserir Portugal e Brasil na entidade que ele denomina o Antigo Sistema Colonial (ASC), Novais (1995 [1979]) avança em relação a Caio Prado e Celso Furtado. Na perspectiva aqui adotada, o próprio ASC seria um subsistema do todo que é a economia-mundo capitalista. 217 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO negócios privados quanto públicos, e, em outras partes da Europa, os agentes capitalistas ampliavam seus espaços nos Estados territoriais em formação, o Estado lusitanto resistia a estas inovações120. E o fazia pela simples razão de que ele próprio e a sociedade estamental portuguesas seriam inevitavelmente abalados pelas transformações provocadas pelo desenvolvimento do capitalismo. Posto que o avanço capitalista se mostrava como inevitável, a defesa do Estado Estamental Patrimonial e da sociedade do Antigo Regime fez com que Portugal se atrasasse relativamente às regiões e estados que trilharam o caminho capitalista aberto pelas Repúblicas italianas. Mas nem por isso, ou talvez por isso mesmo, um Estado territorialista e uma sociedade guiada por valores medievais deixavam de ser úteis aos acumuladores de capital, necessitados de oportunidades de negócios e de proteção. Para entender esta utilidade de Estados e sociedades não capitalistas devemos ter claro, e aqui estamos seguindo Wallerstein, que a economia-mundo é uma junção de dois subsistemas: o econômico, formado pelas cadeias mercantis que perpassam unidades políticas e que admitem em suas várias etapas, diferentes relações de trabalho, formas de propriedade e níveis tecnológicos; e o político, formado pelas unidades políticas, cada uma com suas peculiaridades no tocante à forma de governo e estrutura social. Poderíamos dizer que a plasticidade que Braudel define como um dos traços do agente capitalista, também se observa no sistema, pois a economia-mundo capitalista pode conviver com as mais diversas formas de sociedade e de governo, bastando que lhe sejam dadas as condições para a acumulação de capital. Parece-nos que assim se explica a convivência dos capitalistas genoveses com os Estados ibéricos, que sendo estruturalmente territorialistas, serviram, “graças à combinação de fanatismo religioso e espírito político de iniciativa” (ARRIGHI, 1996, p. 121), aos capitalistas genoveses oferecendo-lhes oportunidades de investimentos e também proteção. 120 “Os povos peninsulares vão permanecer enredados nas estruturas, agora arcaizantes, que tinham feito sua glória mas estavam inteiramente desajustadas. Em contraste com as civilizações industrializadas, não apenas os povos subdesenvolvidos mas ainda os povos com estruturas persistentes de antigo regime; alguns, em vias de desenvolvimento, outros, recusando a modernidade para cuja eclosão até tinham contribuído.” (GODINHO, 1971, p. 56). 218 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) Este fanatismo religioso também conhecido como espírito de cruzada, “era uma excelente garantia de que a expansão ibérica por águas desconhecidas prosseguiria, sem se estorvada por constantes cálculos racionais sobre custos e benefícios.” (ARRIGHI, 1996, p. 126). Em contrapartida, os genoveses ofereciam o capital e o know-how financeiro e comercial que viabilizariam a expansão ultramarina ibérica. Formou-se assim uma associação, que se consolidou com os “grandes descobrimentos” e que também libertou o capitalismo genovês “de sua longa crise”, dando lugar à expansão material do primeiro Ciclo Sistêmico de Acumulação, o genovês121 (ARRIGHI, 1996, p. 126). Dado que estes ciclos são fenômenos capitalistas e são produto da associação entre estado e capitalismo, associação na qual o princípio capitalista do lucro máximo é legitimado e mesmo imposto pelo estado, a associação capital genovês-estados ibéricos, insere estes estados no sistema capitalista. Mas esta é uma inserção a contrapelo, porque os estados ibéricos não incorporam ou melhor, não se submetem eles próprios aos ditames capitalistas. Tendo como referência o que se passava na cidades-estados italianas, o Estado português pode ser classificado como territorialista, pois embora não desprezasse o comércio e mesmo convivesse bem com os capitalistas, suas iniciativas continuaram dando de ombros para os balanços de lucros e perdas financeiras. Já os capitalistas não se movem, pelo menos, prioritariamente, por ideologias ou considerações de poder e sim por possibilidades de lucros baseados em cálculos racionais, o que é mais um motivo para se aliarem a estados guiados por políticas e ideologias muito distintas. A divisão do trabalho entre os estados ibéricos (proteção) e capitalistas genoveses (acumulação) foi benéfica para ambas as partes, que não colheram só resultados positivos. De fato, a especialização na acumulação do dinheiro fez os genoveses se descuidarem de sua força militar e induziu os estados ibéricos 121 Com este conceito Arrighi (1996) designa os diferentes fases das estratégias de acumulação de poder e de capital que foram levadas a cabo por agentes capitalistas desde o século XV até o presente. Um grupo de capitalistas em aliança com um estado consegue por um determinado período liderar os processo de acumulação e exercer a hegemonia. Este período é o que Arrighi (1996) denomina Ciclo Sistêmico de Acumulação. 219 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO a não internalizarem e manterem sob seu controle os nódulos das cadeias mercantis e dos circuitos financeiros que eram a fonte de suas receitas. Em outras palavras, reforçou a lógica territorialista do Estado e a tradição senhorial dos governantes e das aristocracias ibéricas, 122 o que, se lhes permitiu sucesso no curto prazo (digamos um século), foi desastroso no longo prazo, pois esta mesma especialização na proteção levou-os a serem ultrapassados pelos estados que estavam já estavam adotando uma mescla de práticas territorialistas e capitalistas. Esta perda de competitividade ficou patente na Espanha, o estado mais poderoso do século XVI, mas foi ainda mais danosa para Portugal, que nunca exerceu poder sobre outros estados e que, diante das mudanças, não teve como manter o império que precocemente construiu entre 1450 e 1550. Ao identificar as características políticas e a lógica econômica anticapitalista do estado português, não pretendemos dizer que elas eram equivocadas, mas sim que se tornavam rapidamente anacrônicas, na medida em que, primeiramente nas cidades-estado italianas e depois nos Países Baixos123, o princípio capitalista do lucro máximo passava a ser adotado não só nos negócios privados, como também nos negócios públicos, mormente na gestão do estado e da guerra. Em suma, embora a aristocracia portuguesa tenha tido habilidade para criar o primeiro estado nacional na Europa, que foi desde cedo condescendente com os comerciantes, ou talvez exatamente por conta deste sucesso, não conseguiu reformar e adaptar este Estado, de modo a prepará-lo “para enfrentar eficazmente os desafios suscitados pela subsequente ascensão de poderosos complexos capitalistas-territorialistas, formados pela aliança entre classes capitalistas cosmopolitas altamente especializadas (as 122 Godinho (1971, p. 7) avalia que os fatores que impedem a modernização na Península Ibérica “remontam [...] geralmente, há séculos não recentes, e a chave dos problemas que nos debatemos parece estar nessa economia e sociedade agrícola e mercantilizada, nobiliárquico-eclesiástica e de abortada burguesia, mas poderosa oligarquia que os descobrimentos geraram.” 123 “[...] Ao fim e ao cabo, apesar de todos os matizes que possamos introduzir, a nova república [As Províncias Unidas] se transformou na primeira verdadeira nação capitalista e burguesa, com uma identidade nacional muito mercantil fortemente marcada.” (SMIT, J.W. 1970, p. 52-53 apud WALLERSTEIN, 1999, p. 295, nota 206). 220 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) chamadas “nações”124) e Estados terrritorialistas igualmente especializados” (ARRIGHI, 1996, p. 186). Em oposição ao que sucedeu naqueles lugares em que os capitalistascomerciantes de fato estavam no topo da hierarquia social, em Portugal não só a burguesia comercial jamais dirigiu o estado e a sociedade, como também a própria atividade comercial e a acumulação de riqueza por esta via nunca gozaram do prestigio social que desfrutaram nas cidades-estado italianas já no século XIV e mais tarde nas Províncias Unidas.125 Em Portugal, em lugar de moldar a sociedade à sua imagem e semelhança, como mais tarde diriam Marx e Engels em O Manifesto do Partido Comunista, a própria burguesia comercial se adaptou aos valores da nobreza126, contribuindo assim para o “o descrédito ao negócio e ao trabalho manual, em favor de valores que consagraram à ociosidade letrada.” (FAORO, 2008, p. 78). Isso porque, apesar de praticar o comércio, o português se guiava por ideias e valores medievais “adversos ao tráfico do dinheiro e ao comércio. Os interesses econômicos se subordinavam à salvação da alma, verdadeiro fim da vida, entendida a atividade econômica como integrante da conduta moral, ditada pela moral teológica.” (FAORO, 2008, p. 78). Nesta passagem, Faoro aponta, com razão, a Igreja como uma força anticapitalista, mas ela só tinha esta força porque estava entranhada no estado127, o qual, como vimos, se 124 “A partir da última década do século XV e, mais claramente, no curso do século XVI, as burguesias, primordialmente organizadas em cidades-estado, - inclusive a veneziana – deixaram de desempenhar o papel de classes capitalistas dominantes na economia mundial européia. Esse papel passou a ser cada vez mais desempenhado pelas burguesias expatriadas, organizadas em “nações” cosmopolitas, que se especializavam nas altas finanças e no comércio de longa distância e deixavam que as organizações territorialistas cuidassem da produção.” (ARRIGHI, 1996, p. 186). 125 “O desprezo pelo comerciante e por sua profissão estava profundamente enraizado na sociedade portuguesa, como, aliás, em muitas outras. As raízes desse desprezo estavam na hierarquia medieval [...]” (BOXER, 2002, p. 331). 126 “[...] a burguesia mercantil não precisou adotar um modo de agir e pensar absolutamente novo, ou instituir uma nova escala de valores, sobre os quais firmasse permanentemente seu predomínio. Procurou antes associar-se às antigas classes dirigentes, assimilar muitos dos seus princípios, guiar-se pela tradição, mais do que pela razão fria e calculista.” (HOLLANDA, 1986, p. 8). 127 Com a morte do Rei D. Sebastião em 1579, o primeiro na linha de sucessão era seu tio-avô, o Cardeal D. Henrique, que foi aclamado rei. 221 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO servia do comércio, mas ao mesmo tempo não permitia o desenvolvimento de instituições favoráveis ao florescimento do capitalismo. Em suma, estado e Igreja – não sem contradições em alguns momentos - criavam barreiras à acumulação sem fim do dinheiro, como se pode ver na relação contraditória com os judeus, que não se deixavam dominar e se mantinham, portanto, fora do controle do Estado e do estamento, mas de cujos capitais o Estado necessitava (FAORO, 1998, Alecanstro, 2000). Sem embargo, “a monarquia portuguesa persegue e pilha sua burguesia mercantil judaica e pseudojudaica [...] investida de um papel chave na modernização. As consequências dessa revanche da aristocracia contra os comerciantes – dessa derrota política da burguesia mercantil – marcam indelevelmente a sociedade lusitana e luso-brasileira.” (ALENCASTRO, 2000, p. 26-27, grifos nossos) Jaime Cortesão (2006, p. 69) identificou alternâncias seculares nas posições destas forças. Após a Revolução de Avis e até a segunda metade do século XV, uma “burguesia de mercadores e armadores de navios [...] acabou por impor ao Estado a lei de seus interesses e as directivas políticas da expansão do mundo.” Mas a nobreza recuperou sua posição justamente com as conquistas e o monopólio real das especiarias. Mal preparada para o “grande comércio cosmopolita” a burguesia cede lugar à “nobreza de comando e espada, que revalidara os seus préstimos e reverdecera os louros nas lutas de África e do Oriente, beneficiária, quase exclusiva, do tráfico dos produtos orientais, voltou a partilhar progressivamente com o alto clero e em prejuízo do resto da nação, riqueza, privilégios e poderio político.” Esta retomada arcaizante vai até o fim dos Quinhentos, pois a partir dos Seiscentos o açúcar brasileiro vai dar outra oportunidade à “burguesia marítima” (CORTESÃO, 2006, p. 70). Embora advertindo que “este esquema rítmico talvez [seja] demasiado simples”, Godinho (1971) o aceita com uma boa aproximação aos processos de travagem da modernização capitalista por parte do clero e da nobreza e também do estado português. Para este grande historiador, o exagerado peso das classes improdutivas e a mentalidade arcaica e voltada para o passado, impediram Portugal e Espanha de avançar para o “o capitalismo plenamente desenvolvido” trazido 222 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) pela revolução industrial do final do século XVIII, atrasando-se relativamente ao restante da Europa Ocidental. Até aqui temos procurado demonstrar que a pré-condição para Portugal ter avançado para o capitalismo plenamente desenvolvido do final do século XVIII, era que o Estado e a sociedade tivessem aderido à lógica capitalista desde que esta iniciou sua ascensão no século XIV, caso em que ter-se-iam criadas as bases ideológicas, financeiras e técnicas para o referido avanço. Em lugar dessa adesão, houve rechaço, o que nos leva a afirmar que a incapacidade portuguesa para acompanhar as mudanças, ou melhor, a decisão de resistir elas, é muito anterior ao “capitalismo plenamente desenvolvido” mencionado por Godinho mais acima, podendo ser percebida, como vimos, no momento mesmo da transição do capitalismo enquanto poder disperso para a condição de poder concentrado (formação do sistema capitalista) na segunda metade do século XV, portanto no mesmo período em que a burguesia comercial estava em ascensão em Portugal. É que esta ascensão só parece como tal quando o quadro de referência é a própria península ibérica. Quando comparada à transição que acabamos de mencionar, o ímpeto burguês em Portugal é medíocre, porque se deu em meio a instituições que não permitiram o pleno florescimento das ideias, das práticas e instituições capitalistas, razão pela qual Portugal não pode comandar e talvez nem mesmo se apropriar da maior parte dos lucros comerciais e financeiros que a expansão ultramarina proporcionou; e por consequência, permaneceu em uma posição semiperiférica128 na nascente economia-mundo. O caso da pimenta ilustra bem esta tese. O estado patrimonialista e estamental (FAORO), o espírito de cruzada, as ideias econômicas medievais e a necessidade de buscar recursos no exterior para manter a sociedade do Antigo Regime, foram suficientes, para realizar a inacreditável façanha de romper o monopólio veneziano 128 Estamos adotanto aqui a conceituação de Wallerstein (1999), baseando-nos sobretudo no poderio do Estado Português, que não era um estado desprezível na virada do século XV para o XVI, e também na acumulação de riqueza que, embora não possamos medir, era também apreciável. 223 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO sobre as especiarias asiáticas. Este feito revolucionou o comercio mundial e colocou Lisboa no centro do comércio de especiarias, deslocando Veneza. Não obstante, quando Veneza declina não é Lisboa que ocupa seu lugar e sim Antuérpia, o que se explica, afirma Braudel, porque “Lisboa se mantém prisioneira de uma certa economia-mundo na qual está já inserida e que lhe determina um lugar.” (BRAUDEL,1998, p. 126, grifos nossos). E que lugar é este? A cadeia mercantil da pimenta ajuda a responder esta pergunta. As especiarias eram pagas com prata, obtida “graças ao conluio entre o rei de Lisboa, dono das especiarias, e os mercadores da Alta Alemanha”(BRAUDEL,1998, p. 131). Este “conluio” ilustra bem a posição de Portugal ou do estado português na cadeia mercantil mundial da pimenta que muito simplificadamente, pode ser assim representada: Fornecedores na Ásia ÎPortugal (Casa da Índia) ÎComerciantes129 em AntuérpiaÎ consumidores. No sentido Inverso o caminho da prata era: Capitalistas-comerciantes alemães Î Portugal ÎÁsia. Portanto, os concessionários do monopólio real traziam as especiarias da Ásia até a Casa da Índia em Lisboa, ou até a Feitoria de Antuérpia após 1508,130 e as vendiam a comerciantes sediados principalmente em Antuérpia, que se encarregavam da distribuição. Resta saber se a primeira fase da cadeia (Ásia-Casa da Índia, também chamada de contrato asiático) era a mais lucrativa, o que provavelmente acontecia, pelo menos até 1530131, ou seja, enquanto Portugal manteve o monopólio da compra da pimenta e das especiarias na Ásia. O fato concreto é que os lucros da segunda fase (Casa 129 Estes comerciantes, como vinham fazendo desde o século XIII, controlavam o comércio externo de Portugal: “Em 1533, mais de 50.000 peças de tecido saem de Antuérpia com destino a Portugal e Espanha. Os navios da Zelândia e da Holanda tornaram-se senhores da ligação Flandres-Espanha a partir de 1530 [...]” (BRAUDEL,1998, p. 134). 130 Esta feitoria existia antes em Bruges, de onde teria sido transferida para Antuérpia. Sobre a Feitoria de Bruges, diz Azevedo (1988, p. 120) que ela “rematou a transformação da monarquia com fundamento na agricultura em potência comercial. O rei, que era o principal senhorio agrário, era agora também o principal mercador.” A Casa da Índia funcionava no andar inferior do palácio real. “Como qualquer mercador da escola antiga, D. Manuel estabeleceu a residência no local do seu comércio.” (AZEVEDO, 1988, p. 110). 131 “Na década de 1530, os turcos puderam chegar outra vez ao golfo Pérsico, e a partir de então, declina a participação portuguesa no comércio [com o Levante].” (WALLERSTEIN, 1999, p. 480). 224 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) da Índia-consumidores finais, também chamada de contrato europeu), não eram apropriados pelos portugueses e sim pelos capitalistas-comerciantes que distribuíam as especiarias. E não o eram porque o negócio da pimenta era uma atividade do Estado, um monopólio real que era exercido na prática pelos nobres investidos dos poderes para atuar como autoridades na Ásia e como comerciantes. Se aceitamos que no caso da pimenta os maiores lucros ficavam no centro, então teríamos mais um elemento para sustentar a hipótese da posição semiperiférica de Portugal. Assim, quando chega à América, no alvorecer do século XVI, Portugal está na semiperiferia da economia-mundo, enquanto seus territórios ultramarinos podem ser classificados como periferia, tanto pela ausência de Estado, quanto pela drenagem da riqueza que caracterizam a condição colonial. Para o Império Português o contexto mundial será ainda mais desfavorável nas primeiras décadas do século, porque a partir de 1530 Veneza recupera sua posição no mercado de pimenta, de modo que, mesmo Portugal sendo ainda um fornecedor importante, “na nova conjuntura, a pimenta já não é, no mesmo grau, o motor inigualável. Portugal, não conseguiu garantir o monopólio. Houve partilha, quase por igual, com Veneza132, e essa partilha, de certo modo consolida-se” (BRAUDEL,1998, p. 133). Na segunda metade do século XVI, a economia-mundo vai passar por outras mudanças que alterarão rapidamente as condições em que se darão a competição interestatal e a intercapitalista. Para estas mudanças nos voltaremos agora. As mudanças na economia-mundo na segunda metade do século XVI: novos e maiores obstáculos para Portugal Para Portugal, talvez a mudança mais ameaçadora foi o surgimento de poderosos estados territoriais, os quais, durante o século 132 O comércio do Mediterrâneo, principalmente oriental, ressurge a partir de 1540, “em parte devido à incapacidade portuguesa para controlar o comércio do Oceano Índico em parte a algumas vantagens competitivas venezianas sobre Portugal, e em parte à debilidade portuguesa na Europa, assim como à crise da Espanha nos Países Baixos.” (WALLERSTEIN, 1999, p. 307), 225 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO XVI133 se afirmarão como as unidades políticas da era moderna, em substituição ao sistema medieval de governo, que já não podia sobreviver ao “salto qualitativo havido na luta europeia pelo poder desde meados do século XV” (ARRIGHI, 1996, p. 41). Esta reorganização do poder estava mais adiantada no noroeste da Europa, onde o emprego, em proporções variáveis, das lógicas territorialista e capitalista resultou na “formação de mini-impérios compactos cujos melhores exemplos foram os Estados dinásticos francês, inglês e sueco” (ARRIGHI, 1996, p. 41). França, Inglaterra e as Províncias Unidas disputavam entre si e com Portugal as terras do novo mundo. Foi no calor desta disputa e das guerras que elas implicavam que se forjaram os modernos estados europeus134, e, mais importante ainda, o sistema interestatal, este já no século XVII. O aparecimento do Estado Territorial não é uma questão meramente política. Estas entidades não poderiam constituir-se sem uma base financeira cuja criação as colocou definitivamente no centro das atividades econômicas: Quer tenha pretendido ou não, o Estado se converteu no empresário mais importante do século [XVI]. Dos Estados dependem as guerras modernas, com sua constante e crescente necessidade de efetivos humanos e dinheiro; o mesmo ocorre com as maiores empresas econômicas: A Carrera de Índias, com base em Sevilha, a rota entre Lisboa e as Índias Orientais, a cargo da Casa das Índias, quer dizer, do rei de Portugal. (BRAUDEL, 1987, I, p. 596). 133 “Na verdade, os impérios de um tipo ou de outro ainda predominavam na Europa na época da abdicação de Carlos V, em 1557. Neste momento os estados nacionais começaram a ganhar relevância. E conseguiram-no por dois motivos afins: primeiro, a comercialização e acumulação de capital em estados maiores como a Inglaterra e a França reduziram as vantagens na guerra dos pequenos estados mercantis; e segundo, a guerra expandiu-se em custo e em escala [...]. Os esforços dos estados menores para defenderem-se os transformaram, absorveram ou combinaram em estados nacionais.” (TILLY, 1996, p. 270/1). 134 “Em essência, os estados nacionais sempre aparecem em concorrência um com o outro, e adquirem as suas identidades por contraste com estados rivais; pertencem a sistemas de estado” (TILLY, 1996, p. 72). Esta é uma parte da explicação que dá o autor para as características dos estados. Tais características são também moldadas nas relações que os formadores dos estados estabelecem com as classes e grupos sociais sobres os quais exercerão seu poder e dos quais extrairão os meios materiais e financeiros necessários à constituição de exércitos e burocracias estatais. 226 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) Dada a inseparável relação entre as atividades do estado e da acumulação de capital, as lutas interestatais eram sempre lutas econômicas, na medida em que na maioria das vezes estavam em disputa as rotas comerciais, os territórios produtores de especiarias e de metais preciosos e os povos a serem tributados ou escravizados. Nos diz Perry Anderson que o balanço do poder europeu no início do século XVI era muito diferente dos séculos anteriores, pois a “Espanha e a França – ambas vítimas da invasão inglesa no período precedente – eram agora monarquias dinâmicas e agressivas, que disputavam entre si a conquista da Itália. A Inglaterra fora rapidamente superada por elas” (ANDERSON, 2004, p. 121). Inconformado com esta situação, o Estado inglês tentou, sem sucesso, recuperar poder e prestígio através de expansões territorialistas, mas no processo sua marinha passou à liderança na utilização “dos grandes navios de guerra, equipados com armas de fogo, que por volta de 1500, revolucionaram o poder naval na Europa” (ARRIGHI, 1996, p. 190, grifos nossos). Note-se que esta alteração na correlação de forças nos mares ocorre justamente quando Portugal chega ao Oceano Índico para dominar os poderes locais com uma tecnologia militar marítima inferior àquelas das novas potencias ocidentais, inferioridade que se revelará no momento em que estas potências se lançarem sobre as fontes das especiarias. A ascensão do industrialismo, entendido “como um longo processo, que remonta a meados do século XVI e prossegue até o triunfo final do Estado industrializado, no fim do século XIX” (NEF, 1934, p. 22-3, apud ARRIGHI, 1996, p. 193), também dever ser mencionada entre as mudanças iniciadas na segunda metade do século XVI e que, ao se consolidarem atuariam como dissolventes do mundo conhecido por Portugal. Nesta primeira fase (segunda metade do XVI), o industrialismo gerou novos centros manufatureiros na Inglaterra e nos Países Baixos135 Não menos importantes nas 135 A guerra entre os Habsburgo e os Valois (1521-29) desarticulou a economia de Antuérpia, mas após a paz de Cateau-Cambrésis (1559), apesar de reveses no comércio e nas finanças, “Antuérpia procurou e encontrou a sua salvação na indústria. Os capitais, como já não encontrassem pleno emprego na atividade comercial ou nos empréstimos públicos, voltaram-se para as oficinas. Verificou-se um progresso extraordinário, em Antuérpia e nos Países Baixos, da indústria de panos, dos tecidos e das tapeçarias.” (BRAUDEL,1998, p. 137). 227 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO fases seguintes da economia-mundo, foram a adoção do princípio da moeda forte, a ordenação das finanças estatais e a estabilização da libra entre 1560-61, medidas que junto “com a subsequente criação da Real Bolsa de Valores [...] marcaram o nascimento de um novo tipo de ‘aliança memorável’ entre o poder do dinheiro e poder das armas. Marcaram o início do nacionalismo nas altas finanças”(ARRIGHI, 1996, p. 195). Se é verdade que nesta época o Estado inglês não tinha nem condições nem disposição para disputar a supremacia europeia com a Holanda não o é menos que todas estas inovações não só colocavam em novos termos a competição interestatal e intercapitalista – levantando sérios desafios a estados essencialmente territorialistas como Portugal – como também preparavam a Inglaterra para superar seus concorrentes quando a Holanda declinasse, além, é claro, de terem contribuído para este declínio. Vamos resumir o que até agora tentamos expor. Em que pese a disposição para o comércio e a tolerância com os comerciantes que se observa desde pelo menos a refundação do Estado português pela dinastia Avis em 1385, e que também se expressou na conquista de Ceuta (1415) e em toda expansão ultramarina, até o auge desta em 1530, esta expansão e as vantagens decorrentes se sustentaram em instituições políticas e econômicas fortemente medievais, como também em técnicas marítimas que estavam sendo superadas rapidamente. Neste mesmo período, em regiões com as quais Portugal mantinha estreito contato, aconteciam transformações revolucionárias: o surgimento do capitalismo como sistema social e estados territoriais poderosos e dispostos a adotar práticas capitalista para aumentar seu poder. Como dissemos, todas as conquistas territoriais e econômicas lusitanas acabavam de uma maneira ou outra, contribuindo para o fortalecimento das estruturas capitalistas em outros estados, estruturas que em seus territórios o estado português teimava em sufocar. Por exemplo, o açúcar dos Açores que era exportado desde a década de 1460 para Bruges, passa a sê-lo para Antuérpia, onde, entre 1535-37 “constituem-se manufaturas em novos ramos: refinarias de sal e de açúcar [...]” (BRAUDEL,1998, p. 134, grifos nossos). Em meio a todas estas mudanças, os portugueses chegaram às terras americanas em 21 de abril de 1500. Na próxima seção vamos ver como estas terras foram inseridas na economia-mundo. 228 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) A incorporação do território americano à economiamundo através da cadeia mercantil do açúcar Durante praticamente trinta anos, o único empreendimento econômico digno de nota na América Portuguesa foi a extração da madeira tintorial chamada pau-brasil. A Coroa arrendou o negócio a consórcios de comerciantes que conseguiam que os ameríndios, em troca de ferramentas de metal e outros objetos, cortassem e trouxessem a madeira até o porto. Entretanto, como vimos antes, o processo de constituição das novas e agressivas potências europeias, – principalmente a França – extravasava para as latitudes americanas, o que instou a Coroa Portuguesa a ocupar de fato suas possessões no Novo Mundo136. E fê-lo, dividindo, em 1534, o território a ela pertencente em 14 lotes, cada um medindo entre 30 e 100 léguas (uma légua equivalendo a 6,6 km) no sentido Norte-Sul e com extensão limitada pela linha imaginária do tratado de Tordesilhas no sentido Leste-Oeste. Foram criadas 14 capitanias, doadas em caráter hereditário a 12 capitãesdonatários, que tinham amplos poderes em suas respectivas capitanias e tinham por obrigação povoar, cultivar e proteger as terras recebidas, resguardando-as de invasores estrangeiros. Como se sabe, somente duas capitanias prosperaram, basicamente em função da produção de açúcar, cujo desenvolvimento inseriu firmemente a América portuguesa na cadeia mercantil do açúcar, contribuindo assim para fortalecer a economia-mundo, cujas mudanças políticas e econômicas passariam a determinar os processos no território americano. Na próxima subseção vamos apontar as mudanças mais salientes provocadas na América portuguesa por sua inserção na cadeia mercantil do açúcar. 136 “Não era só o temor de corsários franceses e visitas ambiciosas de castelhanos, que voltavam a atenção de portugueses para o Brasil. Também o surto econômico-financeiro, o entusiasmo por negócios além-oceano, notícias trazidas de metais preciosos nos domínios de Carlos V e mais fatores oriundos das mesmas causas despertavam interesse para regiões americanas, que circunstâncias várias tinham impedido de devidamente apreciar.” (PRADO, 2007, p. 112). 229 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO a) O potencial analítico da cadeia mercantil137 O alcance espacial de uma economia-mundo é dado pela variedade e extensão de suas redes de produção e troca, que em linguagem mais técnica Wallerstein e Hopkins (2000) denominaram “cadeias mercantis” (commodity chains). Com este conceito os autores designam “processos produtivos interligados que têm cruzado múltiplas fronteiras e que sempre apresentaram dentro deles diferentes formas de controle do trabalho.” (WALLERSTEIN; HOPKINS, 2000, p. 221). Mais especificamente, uma cadeia mercantil é composta por todas as fases e ou processos necessários à produção e comercialização de uma mercadoria, desde seus insumos até o consumo final. As cadeias mercantis constituem uma peculiar divisão mundial do trabalho e o conceito de divisão do trabalho é, por sua vez, um dos pilares de toda a argumentação de Wallerstein, porquanto é precisamente a existência de diferentes atividades (a divisão técnica do trabalho), em diferentes regiões (divisão espacial do trabalho) realizadas por diferentes grupos étnicos (divisão étnica do trabalho) com diferentes remunerações (desigualdade de renda) que permitiu o florescimento da economia-mundo europeia. Um aspecto da divisão técnica do trabalho é o emprego de diferentes formas de controle do trabalho (expressão que Wallerstein usa para designar o que na sociologia conhecemos por relações de trabalho), as quais implicam e mesmo dão lugar a estratificações políticas, econômicas e sociais, “que por sua vez tiveram diferentes consequências políticas para os “Estados”, quer dizer, para as arenas da ação política” (WALLERSTEIN, 1999, p. 118). Como veremos, estas divisões ocorreram na cadeia mercantil do açúcar: atividades de refino e comercialização, mais rentáveis e provavelmente empregando trabalho assalariado, na Europa; atividades de plantio e processamento primário, menos rentáveis e utilizando trabalho forçado, na colônia. Esta segmentação na cadeia mercantil é o que vai caracterizar estes dois espaços, respectivamente, como centro e periferia da economia-mundo. 137 Baseado em Vieira (2010). 230 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) O conceito de cadeia mercantil também impede separar o que a busca do lucro e do poder uniram e, ao mesmo tempo, força situar num mesmo continuum governantes, negociantes, consumidores e trabalhadores dos vários espaços ou jurisdições políticas onde estão localizadas as atividades em que se decompõem os processos de produção, comercialização e consumo de uma mercadoria. Para o Estado português e para os capitalistas-comerciantes a eles associados, a implantação de alguns nódulos da cadeia mercantil do açúcar na América portuguesa foi a continuação – em outro espaço geográfico – de uma atividade iniciada no Arquipélago da Madeira, em mais ou menos 1450138, depois nos Açores e, por último, em São Tomé.139 Em termos técnicos, alguns nódulos da cadeia, mais precisamente, a plantação da cana e sua transformação em açúcar, foram transferidos de um território português para outro. Outros nódulos e atividades – tão necessários e importantes quanto a plantação da cana e o fabrico do açúcar – eram realizados em outras partes do mundo por agentes não portugueses. Tal era o caso do transporte, da comercialização, do financiamento e do consumo, assim como o fornecimento de muitos dos insumos, dos equipamentos e da mão de obra. Também o refino do açúcar era levado a cabo fora da colônia e da metrópole.140 b) As consequências da implantação na América Portuguesas da cadeia mercantil do açúcar Obra dos capitães donatários com a participação direta de capitalistas comerciantes de várias nacionalidades, e com o apoio do estado 138 Talvez mesmo antes, no Algarve, pois “no começo do século quinze, encorajados pela Coroa Portuguesa, os genoveses tentaram implementar a produção de açúcar no Algarve.” (PEREIRA, 1995 apud GALLOWAY , 2005, p. 34). 139 Sobre a relevância da experiência obtida em São Tomé para a agromanufatura do açúcar na América Portuguesa ver, entre outros, Schwartz (1988). 140 O desenho da cadeia mercantil do açúcar e da distribuição global de seus nódulos encontra-se em Vieira (2010). 231 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO português, esta transferência se consolidou entre 1534 e 1570141, principalmente nas Capitanias de Pernambuco e Bahia, de modo que de 1570 “até a metade do século XVII, os açúcares brasileiros dominaram o mercado europeu” (SCHWARTZ, 2004, p. 161). De acordo com Jean Martiné, neste ano, enquanto São Tomé fornecia 70% do açúcar que aportava em Antuérpia, o Brasil enviava 15%, percentual que subiu para 86% em 1590-99, caindo o número de São Tomé para 2% (STOLS, apud SCHWARTZ, 2004, p. 260). Quais foram suas principais consequências? Em primeiro lugar, o sucesso da produção de açúcar atraiu para a colônia um número crescente de portugueses e como já vimos, também o Estado português, o qual, como fazia na metrópole, procurou controlar as transformações que a acumulação capitalista provocaria na sua colônia. Ora, os colonizadores portugueses carregavam consigo os valores, práticas, técnicas e mesmo instituições142 de uma sociedade medieval na qual a estratificação e a desigualdade estavam organizadas em termos de ordens ou estados. Para nossos propósitos, por agora é suficiente saber que “a nobreza dominava a sociedade e determinava padrões de desempenho e de comportamento [...] [e] em certo sentido, definia-se a nobreza por aquilo que a pessoa não fazia. Dedicar-se a trabalho braçal, ser dono de loja, artesão e outras ocupações ‘inferiores’ era para os plebeus.” (SCHWARTZ, 1988, p. 210)143 Para eles, a colônia era uma oportunidade para acumular cabedais com o fito de retornar à terra-mãe144 e ascender na hierarquia social, o que, sinteticamente, 141 Para uma quantificação da evolução do número de engenhos e do volume produzido ver, entre outros, Ferlini (2003), Mauro (1997) e SCHWARTZ (1988; 2004). 142 “Vibra, nas normas jurídicas que orientaram a distribuição do solo aos colonos, a velha lei consolidatória de D. Fernando I (provavelmente) de 1375 [...]” (FAORO, 2008, p. 146). 143 “Um fato que não se pode deixar de tomar em consideração no exame da psicologia desses povos [ibéricos] é a invencível repulsa que sempre lhes inspirou toda moral fundada no culto ao trabalho. [...] É compreensível, assim, que jamais se tenha naturalizado entre gente hispânica a moderna religião do trabalho e o apreço à atividade utilitária. Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobiliante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia.” (HOLANDA, 1986[1936], p. 9). 144 Alencastro (2010) faz uma distinção entre homem colonial e homem ultramarino. Enquanto o primeiro acumula nas colônias para desfrutar em Portugal, o segundo circula e acumula em várias partes do reino, mas fixa-se numa delas, onde investe seus capitais e ascende socialmente. A América é onde mais se verificou a segunda opção. 232 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) significava se tornar um nobre, investir em bens raízes e viver de rendas próprias e do estado.145 Para o Estado português, tal como estava constituído, tratava-se de aumentar as fontes de receita e, ao mesmo tempo, manter sob rígido controle todos as classes sociais, o que exigia conter os impulsos individualistas, tanto no plano político quanto no econômico, principalmente neste último, porque, como sabemos e certamente também o sabiam os dirigentes estatais e a nobreza portuguesa, a expansão da economia de mercado e do capitalismo fatalmente criariam, além da burguesia capitalista, novas classes – assalariados e as classes médias – cujas demandas políticas acabariam por revolucionar o próprio estado. Mas as ações dos indivíduos e do estado seriam determinadas e/ou condicionadas, como já dissemos, pelas respectivas posições nos nódulos da cadeia mercantil do açúcar transplantados para as terras americanas, ou mais exatamente, pelas características econômicas, técnicas e sociais e pelas lucratividades destes nódulos. As características mais marcantes destes nódulos e que condicionaram as ações estatais e privadas foram a produção para exportação, o latifúndio e o trabalho escravo, que em conjunto, possibilitavam grandes volumes de produção146 e de lucros,147 que eram maiores nos nódulos controlados pelos capitalistas-comerciantes localizados na Europa. Parece-nos que a escravidão, que pode ser considerada a relação mais desigual entre dois seres humanos148, conformou toda a ordem econômica, 145 Para uma análise da preferência da elite mercantil luso-brasileira pelos bens raízes e pelo modus vivendi aristocrático nas primeiras décadas do século XIX, ver Fragoso e Florentino (2001). 146 Não deve ser negligenciado o fato de que a produção do açúcar na colônia americana aumentou significativamente a oferta na Europa, contribuindo para diminuir os preços, aumentar a demanda e provocar mudanças importantes nos hábitos alimentares e culturais. Ver a respeito, Stols (2004). 147 Analisando a contabilidade de alguns engenhos baianos, Schwartz (1988) concluiu que a maioria dos proprietários eram remediados e não abastados senhores, como afirmou Furtado (1995). 148 Como qualquer outra relação humana, a relação escravo-senhor é definida ou estruturada pela proporção de poder que cada uma das partes tem sobre a outra. Neste sentido, a relação de escravidão se distingue das demais 1) pela extrema desproporção de poder que envolve e também pelo volume e forma de coerção necessário para criar e manter a relação; 2) pelo caráter 233 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO política, social e mesmo cultural da colônia. Considerado um não ser social149 e uma espécie sub-humana,150 o escravo era normalmente tratado como não merecendo – e não precisando – receber alimento, roupa e abrigo em quantidades e qualidades equivalentes às dos trabalhadores livres. Além dessa condição inerente à natureza da escravidão, quando esta é a base de uma economia essencialmente exportadora, a tendência ao rebaixamento das condições de reprodução do trabalhador-escravo é reforçada pela própria lógica capitalista da atividade. Sendo a demanda totalmente externa, o trabalhador-escravo é visto pelo dono dos meios de produção somente como um custo, que deve – e pode - ser reduzido ao mínimo, porque a expansão da agromanufatura do açúcar não precisa dele como consumidor. E dado que a subsistência deste trabalhador é obtida na própria unidade açucareira ou via importação, não há outros empresários prejudicados pelo baixíssimo consumo dos escravos. Em suma, produção para exportação e escravidão se reforçavam mutuamente. A escravidão e a produção para exportação se conjugaram com o latifúndio. Como o escravo é destituído de qualquer propriedade – inclusive de seu corpo – obviamente o suposto da distribuição da terra o excluía completamente. Como decorrência, deve ter parecido perfeitamente “natural” que as classes dominantes gozassem do monopólio da terra, o bem fundamental numa sociedade agrária, tanto para a sobrevivência material quanto para a participação na vida política. Se inicialmente este monopólio supunha o escravo, individualizado da coerção. Na medida em que o escravo estava despossuído de poder frente a outro indivíduo, a despossessão é a alternativa à morte, em geral violenta. Contudo, se ao aceitar a escravidão o indivíduo permaneceu vivo, ao mesmo tempo ele perdeu todos os laços materiais, afetivos e sociais com a terra e a comunidade natais. Ver a respeito, Patterson (1982). 149 Seguindo a Patterson, no âmbito das relações pessoais, a escravidão pode ser definida como “a dominação permanente e por meio da violência, de pessoas desonradas e desenraizadas espacial e socialmente (natally alienated). ” (PATTERSON, 1982, p. 13 itálicos no original). 150 Se Patterson (1982) destaca a questão do poder, Davis (2006) considera crucial na caracterização da escravidão a dimensão objeto de propriedade (property chattel element), que seria uma consequência da animalização ou bestialização dos escravos. A tendência de negar que os escravos são dotados de todas as características humanas, permite aos senhores sobrecarregá-los com esforços físicos comumente atribuídos aos animais de carga (DAVIS, 2006). 234 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) quando este foi substituído pelo trabalho livre, a lógica da distribuição desigual não se alterou significativamente, no mínimo no século seguinte ao fim da escravidão151. Resta ainda mencionar mais um traço estrutural da economia e da sociedade coloniais que decorre da produção para a exportação e também da natureza do Estado e da economia em Portugal. Como vimos, a autopreservação do Estado português obrigava-o a conter a acumulação de capital e as mudanças que o livre desenvolvimento da lógica capitalista provoca em todos os âmbitos da vida econômica, política e cultural. Nisto, o estado se aliava à nobreza e ao clero, que compartilhavam esta ojeriza ao programa burguês. Estas características do Estado português se expressavam na colônia através da quase obsessão com a cobrança de impostos, com a preocupação em controlar e legislar sobre tudo e evitar o florescimento de atividades econômicas autônomas que pudessem se desenvolver ao lado e mesmo conectadas à economia exportadora e que dariam lugar ao surgimento das classes médias – comerciantes, artesãos e pequenos industriais – que provocariam mudanças políticas e sociais. Nunca é demais lembrar que a ação estatal se dava sobre uma economia escravista exportadora, que dificultava ou mesmo impedia o florescimento de uma economia de mercado, o que também era obstaculizado pela ação dos capitalistas-comerciantes (portugueses ou não) que intermediavam a oferta (do açúcar) e a demanda (suprimentos e mão de obra) geradas pela agromanufatura do açúcar na colônia152. Ainda que esquematicamente, esperamos ter evidenciado que a inserção do território americano na cadeia mercantil mundial do açúcar liderada por capitalistas-comerciantes europeus, ao ser realizada através do 151 A não realização de uma Reforma Agrária e a existência do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra sustentam esta afirmação. 152 Celso Furtado (1995, p. 55) menciona os interesses dos exportadores holandeses e portugueses que se beneficiavam “dos fretes excepcionalmente baixos que podiam propiciar os barcos que seguiam para recolher açúcar” e também “a preocupação política de evitar o surgimento na colônia de qualquer atividade que concorresse com a economia metropolitana.” 235 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO trabalho escravo, do latifúndio e da produção para exportação, gerou uma sociedade com altíssimos graus de desigualdade e de eficiência econômica153 fortemente controlada pelo Estado português, e cuja contraparte foi o apequenamento do mercado, que só passou a ser significativo na segunda metade do século XVIII. Além da economia escravista primário-exportadora, a insignificância do mercado também se devia à ausência, por razões óbvias, de uma das forças propulsoras do mercado nacional, o Estado. Por sua vez, o Estado lusitano, por suas características estruturais, não era proclive à prática do mercantilismo, dado que sua seiva vital sempre foi o comércio de longa distância. Por isso também não desenvolveu, mesmo no território metropolitano, um forte mercado interno, cuja inexistência certamente ajudou a debilitar o próprio Estado, pois, Estado nacional forte e mercado nacional não são fenômenos separados.154 A condição colonial, o trabalho escravo, a transferência de excedente para o centro, caracterizam a colônia americana como periferia. Ao longo dos séculos de expansão da agro-manufatura do açúcar155 esta posição foi reforçada, como veremos na próxima seção, por mudanças ocorridas na economia-mundo capitalista nas duas últimas décadas do século XVI conjugadas a uma conjuntura política específica de Portugal. As Províncias Unidas e a consolidação da economiamundo capitalista Sob a liderança de Amsterdam, a economia-mundo capitalista vai passar por uma segunda fase de consolidação e de expansão, tanto em termos 153 O açúcar, o engenho e a escravidão desempenharam papéis cruciais na definição e conformação da sociedade brasileira [...] porque os princípios em que se assentou a sociedade açucareira foram amplamente compartilhados, adaptáveis a novas situações e sancionados pela Igreja e pelo Estado (SCHWARTZ, 1988, p. 209). 154 Ver a respeito o capítulo 4 de Braudel (1995, p. 265) que escreve: “Não é de estranhar que tenha havido necessariamente na origem do mercado nacional uma vontade política centralizadora: fiscal, administrativa, militar ou mercantilista.” 155 Até ser superado pelo café na primeira metade do século XIX, o açúcar foi o mais importante produto de exportação da colônia portuguesa da América. 236 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) quantitativos quanto qualitativos. Os capitalistas passam a dirigir um estado mais poderoso que as cidades-Estado italianas, e ao mesmo tempo introduzem inovações revolucionárias nas práticas políticas (gestão do estado e da guerra) e econômicas. Nestas últimas, as inovações nas técnicas comerciais, industriais e financeiras estenderão para as Américas, África e Ásia as cadeias mercantis comandadas desde Amsterdam, o que, por um lado, criará oportunidades para as potências rivais, e por outro, imporá constrangimentos para os estados atrasados. Na continuação, resumiremos este processo. Enquanto Portugal expandia suas conquistas para a África, Ásia e América, os flamengos consolidavam sua supremacia no Báltico156, que era “uma espécie de América ao alcance da mão.” (BRAUDEL,1998, p. 189). Devido principalmente à superioridade “nas questões técnicas do desenho naval e organização industrial” (PARRY, 1967, p. 189, apud WALLERSTEIN, 1988, p. 68), os holandeses se adiantam aos ingleses, franceses e hanseáticos e expandem suas redes comerciais para o sul da Europa e chegam ao Mediterrâneo: Já em 1530, no máximo em 1550, as urcas flamengas asseguram majoritariamente os tráficos entre o Norte [da Europa] e os portos de Portugal e Espanha. Logo transportarão cinco sextos das mercadorias trocadas entre a península Ibérica e o Atlântico norte. (BRAUDEL 1998, p. 189, grifos nossos). Nesta altura, Portugal ainda não reexporta para a América porque a ocupação é incipiente, mas começará a fazê-lo praticamente daí pra diante. Em todo caso, “Espanha e Portugal não poderiam sobreviver na paz ou na guerra sem os cereais e outros produtos do Báltico transportados por navios holandeses, e a prata espanhola fluía em grandes quantidades para Amsterdam, que pela metade do século [XVII] tinha se tornado the European bullion market” (DAVIS, 1973, p. 183). 156 “By 1500 the Dutch had become leaders in the Baltic trade and were steadily increasing their share of it.” (DAVIS, 1973, p. 178). 237 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Outra mudança fundamental foi a bancarrota financeira do Império Espanhol em 1557, seguida do início da Revolução Batava (1559), que redundou na criação da República das Províncias Unidas (PU) em 1579, ano em que, tentando reconquistar o Marrocos, morreu D. Sebastião, o rei português. Este foi um acontecimento significativo, pois a crise sucessória deu ensejo a que a Espanha anexasse Portugal em 1580157, dando lugar ao que a historiografia conhece como União Ibérica. Como a guerra entre as PU e Espanha perdurou até 1648, a União Ibérica fez com que Portugal e sua Colônia americana fossem diretamente envolvidos nos conflitos hispanoholandeses. Todos estes acontecimentos iniciaram uma nova fase na economiamundo. No decorrer da crise gerada pela bancarrota de Felipe II, além de Antuérpia perder sua posição de centro comercial e financeiro da economiamundo, “em toda a Flandres, a crise reforça tendências calvinistas, principalmente entre os trabalhadores especializados” que são reprimidos pelo governo espanhol e migram para países protestantes. “Em 1585 sobreveio o afundamento da indústria e do comércio de Flandres [...] a revolta dos Países Baixos, que combinava agitação política e social que se seguiu a este desastre, criou a base política viável na metade norte158 dos Países Baixos para seu papel como centro do comércio mundial a partir do fim do século XVI” (WALLERSTEIN, 1999, p. 262/3). A vitória das Províncias Unidas sobre o Império Espanhol acabou por consolidar o Estado Nacional como a unidade política da economia-mundo capitalista, o que ficaria formalmente estabelecido em 1648 no Tratado de Westfália. Como decorrência, emerge o sistema interestatal, de importância 157 Merece ser sublinhado que no contexto de estados dinásticos que eram Portugal e Espanha, casamentos entre nobres dos dois reinos eram bastante comuns. Felipe II, rei de Espanha, era filho de uma rainha portuguesa. Daí que, “a união peninsular, apesar de rejeitada e temida por muitos, não pode deixar de estar no horizonte das dinastias ibéricas. [...] Só não se adivinhava quando, nem a beneficio de quem , embora o poder dos Habsburgos se destacasse cada vez mais.” (RAMOS et al., 2010, p. 256). 158 A parte sul, os Países Baixos, que permaneceu fiel à Espanha, corresponde mais ou menos à Bélgica atual. 238 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) transcendental, porque cria laços e compromissos políticos e jurídicos entre os estados, que “ficariam entrelaçados em uma situação constante de tensão econômica e militar, competindo pelo privilégio de explorar as áreas periféricas (e debilitar seus aparelhos estatais), e permitindo a certas entidades jogar um papel intermediário especializado como potências semiperiféricas” (WALLERSTEIN, 1999, p. 279). Ao mesmo tempo, Espanha, Portugal, e outras partes da Europa, caíram para uma situação periférica.159 Se Braudel (1998, p. 279) está correto ao afirmar que para a Holanda “o essencial ficou resolvido antes de 1585”160, podemos dizer que as décadas de 1580 e 90 foram de consolidação das bases do que viria ser a hegemonia161 holandesa sobre a economia-mundo: In the 1590s, at the same time that de Dutch ships first penetrated to the Mediterranean Sea and Indian Ocean, they also began trading in Equatorial West Africa, South America, and the Caribbean. (DE VRIES; DER WOUDE, 1997, p. 396). 159 “No século XVII, muitas áreas semiperiféricas perderam terreno – Espanha, Portugal, a antiga espinha dorsal da Europa (desde Flandres passando pela Alemanha ocidental e meridional, até o norte da Itália), porém outras tantas ganharam, em especial Suécia, Brandenburgo-Prusia e as colônias “setentrionais” da América do Norte britânica (Nova Inglaterra e as colônias do Atlântico médio).” (WALLERSTEIN, 1998, p. 248). 160 “[...] o autor do impulso suplementar que colocaria Amsterdam na primeira fila, uma vez mais foi a Espanha, destruindo o sul dos Países Baixos, onde a guerra se prolongou, retomando Antuérpia, em 18 de agosto de 1585, destruindo, sem querer, a força viva da concorrente de Amsterdam e fazendo da jovem República o ponto de reunião obrigatório da Europa protestante, deixando-lhe, ainda por cima, um amplo acesso à prata americana.” Para avaliar a relevância da prata para o sucesso holandês é mister saber que um pouco antes Braudel havia dito: “com toda a evidência a fortuna da Holanda foi construída a partir do Báltico e da Espanha ao mesmo tempo.” (BRAUDEL, 1998, p. 192). 161 Wallerstein (1998, p. 52), entende por hegemonia a condição em que um estado do centro tem uma eficiência econômica superior à dos outros estados centrais, condição que faz do estado hegemônico o maior beneficiário de um mercado mundial inteiramente livre e que permite que esta superioridade, por um breve período de tempo, seja “simultaneamente [...] produtiva, comercial e financeira sobre todas as outras potências do centro.” A Holanda teria desfrutado desta posição “provavelmente entre 1625 e 1675”. (idem) Como sabemos, Arrighi (1996) usa o termo hegemonia para designar a liderança moral, política, militar e econômica exercida por um estado sobre o sistema mundial. Para ele a hegemonia holandesa teria vigorado de 1640 a 1780. 239 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Portanto, a partir do controle exercido sobre os tráficos comerciais do Báltico, no final do século XVI, os capitalistas flamengos – sediados principalmente nas Províncias da Holanda e da Zelândia - haviam estendido suas operações para todo o mundo, com exceção da Ásia, a fonte das especiarias, que seria seu próximo alvo. Puntoni (1999) observa que a decisão de atacar diretamente as fontes das especiarias se deu no contexto da guerra econômica através da qual a Espanha pretendia dobrar as Províncias Unidas. Este pode ter sido mais um motivo para que os comerciantes holandeses, insatisfeitos com os altos preços das especiarias, decidissem que já era tempo de deixarem de ser intermediários dos portugueses, agora súditos do rei espanhol162. Além disso, tinham percebido que “o sistema colonial português era claramente fraco, economicamente tentador e um alvo político adequado”. (DE VRIES; DER WOUDE, 1997, p. 383). Avaliação semelhante é feita por Rich (1967, p. XII, apud WALLERSTEIN, 1999, p. 285), para quem a “administração e as técnicas financeiras portuguesas” não estavam à altura das possibilidades de negócios na e com a Ásia. Conscientes da fragilidade portuguesa, de cujas práticas na Ásia estavam bem informados, e tendo provado serem inteiramente capazes de estender suas redes comerciais por quase todo o mundo, por volta de 1595, um grupo de comerciantes holandeses decidiu ir para a ofensiva. Várias expedições foram enviadas sem sucesso marcante até que, em 1597, Jacob van Neck empreende uma exitosa expedição, que patenteia a debilidade dos portugueses, coloca os ingleses como secundários na Ásia e aumenta de tal maneira a oferta de pimenta que derruba os preços a ponto de arruinar seus concorrentes holandeses163 (DE VRIES; DER WOUDE, 1997, p. 383). A 162 A monarquia portuguesa, que detinha o monopólio das especiarias, concedia o direito de exploração a determinados comerciantes. Em 1591, o concessionário era um consórcio formado por comerciantes de várias nacionalidades (alemães, italianos e portugueses baseados em Antuérpia), que forneciam para os comerciantes holandeses através de seus agentes em Amsterdam e Middelburg, embora o porto preferido fosse Hamburgo (DE VRIES; DER WOUDE, 1997, p. 383). 163 Davis (1973, p. 183) confirma esta análise. Os holandeses chegaram ao Oceano Índico preparados para lutar e bem informados sobre os portugueses, que há muito se sentiam seguros e por isso operavam com navios praticamente sem defesa. A superioridade militar batava foi suficiente para excluir portugueses e ingleses das praças mais rentáveis e também para “aterrorizar os nativos”, obrigando-os a negociar nos termos propostos. 240 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) obsessão para entrar no negócio estimulou 14 frotas privadas com 65 navios no total, entre 1598-1602. No entanto, a percepção de que a intensa competição ameaçava ser destrutiva, provocou a intervenção dos Estados Gerais, do Grande prevendário Johan van Oldenbarnevelt e de Maurício de Nassau, no sentido de unificar os esforços, o que levou à criação, em 20 de março de 1602, da Verenigde Oostindische Compagnie - VOC, a Companhia das Índias Orientais. “A partir de então,” afirma Braudel (1998, p. 194), “passou a haver uma só política, uma só vontade, uma só orientação nos assuntos da Ásia: a da companhia que, verdadeiro império, colocou-se sob o signo da expansão contínua.” Comentando esta inovação organizacional, Arrighi (1996, p. 159, grifos PAV) conclui que a nova empresa... [...] combinou o que os portugueses já haviam levado para o oceano Índico (um poderio naval superior e um vínculo organizacional direto com os mercados europeus de produtos orientais) com o que faltara à iniciativa ibérica, a saber: a obsessão com o lucro e com a “economia”, em vez da cruzada; a evitação sistemática de envolvimento militares e aquisições territoriais que não tivessem uma justificativa direta ou indireta na “maximização” do lucro”.164 Aliás, a capacidade para inovar parece ter sido um dos fatores do sucesso holandês e foi destacada por vários historiadores. Este aspecto da inovação nos interessa sobremaneira pelo contraste com as práticas lusitanas, que, por serem típicas do Antigo Regime, são conservadoras e evitam a todo custo as inovações. Por isso, podemos qualificá-las de anticapitalistas. Wallerstein (1998, II, p. 52) mostra que o sucesso na pesca do arenque e do bacalhau envolveu a invenção, por volta de 1400, de um novo barco, o Haringbuis ou Buss e que a supremacia no Mar Báltico estimulou a eficiência na construção naval. Mas os holandeses eram também os mais eficientes 164 Analisando o comércio português de especiarias, Lane (1979, p. 19/20) concluiu que a opção de basear o comércio no uso da força – elevando os custos de proteção dos concorrentes - aumentou a renda do estado no curto prazo. Ele calcula que, no longo prazo (50-100 anos), uma política comercial mais pacífica seria mais vantajosa. Daí que a via seguida pelos portugueses “não oferece um caso claro de sucesso de uso da força para aumentar a prosperidade da nação.” 241 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO na agricultura, o que é espantoso, considerando as condições geológicas da região. Exatamente devido à escassez de terras, desenvolveram a agricultura intensiva, de sorte que Romano (1962, p. 519, apud WALLERSTEIN, 1998, p. 56) designou o período 1590-1670 de “século agrícola holandês.” Christensen (1941, p. 19, apud WALLERSTEIN, 1999, p. 301) diz que entre 1590165 e 1600 “os holandeses criaram um sistema comercial completamente novo.” Esta capacidade para a inovação comercial expressa uma característica distintiva dos capitalistas dos Países Baixos, onde as várias rotas comerciais fluviais, que eram mais concorrentes do que complementares, “enriqueciam territórios independentes, os quais disputavam violentamente entre si para assegurar vantagens fiscais e econômicas do comércio inter-regional.” (DE VRIES; DER WOUDE, 1997, p. 14). Portanto, não estamos na presença de simples comerciantes, mas de verdadeiros inovadores, se temos em mente que “o esforço muito característico do comerciante de procurar novos objetos de troca e novos canais de troca, [...] faz dele um inovador.” (HICKS, 1969, 45, apud ARRIGHI, 1996, p. 228, grifos nossos). A busca de novos objetos de troca e novos canais de troca, mais a criação de um novo tipo de empresa (a Companhia das Índias Orientais-VOC, por exemplo), deram aos capitalistas holandeses a supremacia no mercado mundial durante todo o século XVII. Em seu estudo da hegemonia holandesa, Wallerstein (1998, II) destaca a superioridade industrial, que em geral é ofuscada pelo excessivo peso atribuído ao seu sucesso comercial e financeiro e à “Revolução Industrial” britânica, em geral considerada o primeiro caso de sucesso industrial: Pode-se dizer que, em fins do século XVI, os Países Baixos do Norte estavam em vias de conseguir uma eficiência produtiva que permitiria às Províncias Unidas transformarem-se por volta de 1600, no principal (claro que não o único) centro de produção da economia-mundo europeia. No setor agrícola se especializou em produtos que requeriam grande destreza e davam altos lucros, e no setor industrial Holanda se colocou na dianteira da indústria têxtil e construção naval, 165 “O verdadeiro salto adiante de Amsterdam não ocorreu antes de 1590.” (WALLERSTEIN, 1999, p. 305). 242 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) as duas principais indústrias da época, e desempenhou um papel essencial e, às vezes, dominante, em outras indústrias. Esta eficiência produtiva permitiu às Províncias Unidades criar sua rede comercial e colocar-se como “armazém do mundo” (WALLERSTEIN, 1998, p. 62, grifos nossos). Sobre a condição de aramzém do mundo, Braudel (1996, pg.199) diz que a grande quantidade de mercadorias comercializadas pelos holandeses em portos da Índia e da China “engrenam-se num sistema coerente, baseado, tal como na Europa, na eficácia das ligações marítimas, do crédito e dos adiantamentos da metrópole e na procura sistemática de situações de monopólio.” Esta posição de atacadista e monopolista global exige e permite que Amsterdam tenha informações sobre os preços de custo e de venda de uma mercadoria em várias partes do mundo, cuja comparação permite a decisão mais lucrativa. Por exemplo, “o açúcar da China ou de Bengala, por vezes do Sião, depois, a partir de 1637, o de Java, [é] alternadamente pedido ou recusado por Amsterdam, conforme seu preço seja ou não capaz de rivalizar, na Europa, com o do açúcar do Brasil ou das Antilhas” (BRAUDEL, 1998, p. 201, grifos nossos). Para Arrighi (1996, p. 155), a condição da primazia nestas três áreas foi a “internalização prévia e contínua dos custos de proteção pela classe capitalista holandesa, organizada no Estado holandês.” Ao trazer para dentro do estado holandês os meios necessários para exercer a violência, “os holandeses puderam fazer a lógica de ação capitalista influir nos custos de proteção no mundo extra-europeu.” (ARRIGHI, 1996, p. 157). Mas para além desta racionalidade capitalista, o estado holandês precisava ser suficientemente forte para subjugar seus adversários. E o era, com suas particularidades, pois não se tratava de um estado centralizado como a Inglaterra e a França.166 Ao contrário, apresentava alto grau de descentralização, com as sete Províncias 166 Dada a proeminência de Amsterdam, pode-se pensar, como faz Braudel (1998, p. 157), que estamos diante do derradeiro caso de uma cidade ser centro da economia-mundo capitalista. A partir daí, só estados nacionais ocupariam este lugar. 243 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO (Holanda, Zelândia, Frísia, Groningen, Güeldres, Overijssel e Utrecht) gozando de grande autonomia, o mesmo acontecendo com as cidades de cada província.167 No entanto, sob a hegemonia da Holanda168 e de Amsterdam dentro dela, esta estrutura aparentemente instável foi capaz de manter certa paz interna e ser suficientemente coesa e forte na política externa. Tanto no plano militar quanto no político, as Províncias Unidas jogaram um papel destacado na Guerra dos Trinta anos. Foi em Haia, diz Braudel que se “ata[ra]m e desata[ra]m os fios da diplomacia” e também onde foi organizada a intervenção da Dinamarca (1626), da Suécia (1629) e da França (1635). O combate tenaz e vitorioso contra o Império Espanhol valeu às Províncias Unidas a posição de liderança no sistema interestatal formalizado em 1648 pelo Tratado de Westfália169, o qual, ao sepultar a ideia de um poder acima dos estados nacionais soberanos, deu início a “um novo sistema mundial de governo” (ARRIGHI, 1996, p. 43). Este Estado estava incondicionalmente a serviço da acumulação capitalista, como expressa um francês cujo depoimento é reproduzido por Braudel (1998, p. 187): Na Holanda [PU], o interesse do Estado pelas coisas do comércio é o do particular, caminham no mesmo passo [equivale a dizer que o Estado e a sociedade mercante são uma e a mesma coisa, acrescenta Braudel]. O comércio é absolutamente livre, não se ordena absolutamente nada aos mercadores, eles não têm outras regras a seguir que não a dos seus interesses; [...] quando o particular parece fazer por seu comércio qualquer coisa contrária ao Estado, o Estado fecha os olhos e faz de conta que não percebe. 167 Braudel (1998, p. 167) aponta um efeito colateral positivo desta descentralização que contrasta com Portugal: “A tolerância acabou por se instalar e se reforçar, ao mesmo tempo que as liberdades individuais, favorecidas pela fragmentação da autoridade política.” Sobre a relação da liberdade individual com a acumulação de capital, ver Méchoulan (1992). 168 A Holanda cobria quase 60% dos gastos do governo e Amsterdam a metade da quota holandesa (WALLERSTEIN, 1998, p. 86). 169 Tilly (1996, p. 244) termina sua análise do Tratado de Westfália com a seguinte asserção: “Portanto, o término da Guerra dos Trinta Anos consolidou o sistema europeu de estados nacionais.” 244 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) Esta aliança entre uma classe capitalista inovadora a ponto de poder ser considerada revolucionária e um estado dotado de grande poder não apenas fez com que esta classe capitalista liderasse e fosse a maior beneficiária dos processos de acumulação em nível mundial, como também provocou mudanças estruturais na economia-mundo capitalista: Esta reorganização [pela oligarquia capitalista holandesa] do espaço político a bem da acumulação de capital marcou o nascimento, não só do moderno sistema interestatal, mas também do capitalismo como sistema mundial. (ARRIGHI, p. 1996, grifos nossos). Parece-nos necessário chamar atenção para a parte grifada da citação. Arrighi está dizendo que a criação – sob a liderança da burguesia holandesa - de um sistema interestatal favorável à acumulação de capital fez com que, de sistema social histórico – surgido na primeira metade do século XIV quando as classes capitalistas das cidades-estado italianas passaram a controlar também os respectivos aparelho estatais - , o capitalismo se transformasse em sistema mundial. Em outras palavras, o princípio capitalista do lucro máximo (para Braudel e Arrighi) ou da acumulação incessante de capital (Wallerstein) passa a ser legitimado e favorecido pelos estados individualmente e pelo sistema interestatal. Em uma linguagem menos formal, diríamos que a partir de então (1648), o capitalismo se consolida como a forma de organização econômica, por dizer assim, oficial, do sistema interestatal, e contará com o apoio do estado para moldar a vida social à sua imagem e semelhança e, não menos importante, punir os recalcitrantes, sejam indivíduos, organizações ou mesmo regiões inteiras, incluindo, é claro, países.170 170 Nesta perspectiva, a criação do sistema interestatal parece ter sido decisiva para que o sistema social chamado capitalismo histórico (WALLERSTEIN) atinjisse o grau de organização “no qual aqueles que operaram segundo essas regras [acumulação incessante de capital] produziram um impacto tão grande sobre o conjunto que acabaram criando condições às quais os outros foram forçados a se adaptar ou cujas consequências passaram a sofrer. É o sistema social em que o alcance dessas regras (a lei do valor) se ampliou cada vez mais, em que sua imposição se tornou cada vez mais firme e sua penetração no tecido social cada vez maior, mesmo quando teve de enfrentar uma oposição social mais enfática e organizada.” (WALLERSTEIN, 2001, p. 18). 245 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Portugal e sua Colônia americana no processo de consolidação da economia-mundo capitalista Acima havíamos visto que, desde a década de 1530, o mercado mundial de pimenta havia mudado, em prejuízo da posição portuguesa. Além disso, em meados do século, uma crise “propaga-se eletricamente pelas super-estruturas mercantilizadas de todo o globo” provocando uma “autêntica viragem de estrutura” no império português (GODINHO, 1983, p. 216), que se viu acossado na Ásia, na África, nos mares171 e na América (o alçamentos dos nativos e o fracasso do sistema de Capitanias). A Feitoria de Antuérpia foi fechada em 1549, provavelmente em decorrência da diminuição do comércio ocorrida entre 1545 e 1550. Nesta conjuntura de diminuição das receitas, agravou-se o déficit do Estado português, que não deixou de existir nem mesmo nos “tempos áureos” da pimenta. (AZEVEDO, 1988). Segundo este autor, primeiro foram os comerciantes a adiantarem os recursos para financiar as frotas das especiarias e também para objetivos militares - e comerciais - que nunca foram separados. Em 1544, as dívidas do rei em Flandres eram maiores que as receitas, o que o obrigava a renovar os empréstimos, até que em 1560, uma lei consolida unilateralmente a dívida (principal e juros), proíbe novos empréstimos e determina que os antigos deixem de render juros. O pagamento seria feito em qualquer lugar do reino quando houvesse recursos (AZEVEDO, 1988, p. 131). Estamos, portanto, diante de um estado financeiramente débil, que numa conjuntura de encolhimento da participação no comércio de longa distância, já não conta mais com as receitas provenientes das guerras172, que 171 É tão intenso o corso francês que as viagens marítimas portuguesas estiveram a ponto de serem suspensas em 1552 (GODINHO, 1983). 172 “As guerras tinham de ser incessantes, por constituírem a principal indústria. Além das presas havia as contas” ou melhor o roubo através das prestações de contas. Os comandantes adiantavam de seu bolso as somas precisas [necessárias], e depois nos relatórios punham cento por dez [...]” (AZEVEDO, 1988, p. 163). 246 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) foram importantes, inclusive no negócio das especiarias173, e que continuava sendo (o estado) depauperado pela nobreza174. Ao mesmo tempo, está deslanchando a produção de açúcar na colônia americana, que a partir da década de 1570 passa a depender cada vez mais dos trabalhadores-escravos africanos. O açúcar e os escravos vão ser as principais fontes da riqueza dos comerciantes e do estado português. Num circulo virtuoso para os beneficiados – autoridades e comerciantes envolvidos – e destrutivo para as populações africanas, o aumento da demanda por açúcar puxava a oferta de escravos e esta por sua vez impulsionava aquela, de modo que a partir do terceiro quarto do século XVII, as receitas estatais e privadas na metrópole e na colônia dependerão crescentemente destas duas mercadorias175, razão pela qual “de oravante a economia portuguesa desenvolve-se sobretudo no quadro do Atlântico” (GODINHO, 1983, p. 219). Sem embargo, esta dependência em relação à África e ao Brasil não é admitida nas altas cúpulas lusitanas, cuja atração pelo comércio talvez impedia ver a produção como fonte de vultuosas riquezas. Ora, a produção do açúcar e de escravos demanda técnicas, instrumentos, conhecimentos e recursos humanos que há séculos são familiares aos portugueses, os quais podem continuar obtendo receitas de um comércio de trânsito, ou seja, de mercadorias – o açúcar, os escravos e todas as outras trocadas pelas duas primeiras - que apenas tocam o território lusitano, não provocando, nem exigindo mudanças nas instituições políticas, econômicas e sociais domésticas176. Ao assentar-se 173 “A verdade é que só à época da conquista a Índia pagava seu custo; não porém das rendas normais de um Estado, mas do eventual, do proveniente das guerras.” (AZEVEDO, 1988, p. 151). 174 “Índia e África, se empobreciam o Estado, enriqueciam a casta nobre, que desfrutavas os governos, capitanias de fortalezas e armadas, e os proventos inerentes, além do soldo, aos ofícios.” (AZEVEDO, 1988, p. 152). 175 Em seu esforço para destacar a relevância do tráfico de escravos – e da África - na formação do Brasil, Alencastro (2000, p. 78) parece esquecer que sem açúcar não haveria o tráfico. Por isto, o tráfico não é o principal esteio econômico do Império português do Ocidente e sim o tráfico junto com o açúcar, pois como lucidamente destacava um contemporâneo, “o Brasil leva todo este Reino atrás de si bem como as rendas reais porque sem o Brasil não há Angola”. (NARBONA Y ZÚÑIGA, 1950, p. 169, apud MELLO, 2003, p. 29). 176 “A exportação para as colónias do Ultramar de produtos agrícolas metropolitanos conjuga-se com a nova prosperidade dos tratos brasileiros e angolanos e com a economia salineira 247 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO em técnicas e procedimentos que podem ser considerados arcaicos frente às inovações que descrevemos na seção anterior, esta “nova prosperidade” (Godinho) não podia ser mais que de curta duração e inclusive prejudicial, na medida em que elidia a necessidade da mudança. É justamente durante o processo de viragem para o Atlântico que, no vácuo de poder provocado pela morte de D. Sebastião em 1579, Portugal vai ser anexado ao Império Espanhol. Na grande síntese que faz ao final dos quatro volumes de sua obra magna, e que temos citado, o grande historiador português passa ao largo do virtual desaparecimento do Estado lusitano durante a União Dinástica. Mas este é um acontecimento de enormes consequências e que merece cuidadosa análise, se temos em mente a relevância da formação e expansão dos estados nacionais para a conformação econômica, tecnológica e ideológica (o nacionalismo, por exemplo) do moderno sistema-mundo, e claro, para a posição das várias regiões na hierarquia mundial do poder e da riqueza.177 Nesta ordem de ideias, o virtual desaparecimento do estado português por um período de sessenta anos provavelmente criou dificuldades ainda maiores para Portugal adaptar suas práticas e instituições políticas, ideológicas e econômicas àquelas que a economia-mundo começava a conhecer sob a liderança das forças capitalistas holandesas, reforçando assim a tendência à periferização. Ademais, apoiada pelos comerciantes cosmopolitas em troca de maior liberdade de ação em um espaço mais amplo e de novas oportunidades comerciais, a ausência de um estado nacional, ela mesma um indicador da condição periférica, suprime o principal agente de criação do nacionalismo político e econômico, que pode ser vislumbrado na revolta dos Países Baixos, onde as classes dominantes, num lampejo de “oposição ‘nacionalista’”, suspeitaram que o espaço de interesse do Imperador Espanhol era muito vasto que os dessas classes (WALLERSTEIN, 1999, p. 289). Como (graças à qual se obterá a prata de Sevilha por intermédio das frotas nórdicas) para que a economia e a sociedade portuguesa recuperem a prosperidade, sob outra forma embora.” (GODINHO, 1983, p. 219). 177 Em Vieira (2010) expusemos nossa visão das relações mútuas entre estado, ciência e ideologia enquanto causa e consequência do desenvolvimento da economia-mundo capitalista. Sobre as relações entre a busca de poder e o avanço da tecnologia na história, o livro clássico é The Pursuit of Power, de William H. McNeill. 248 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) vimos, em Portugal, além de não existir tal conflito, havia, ao contrário, uma “evolução cultural-ideológica e social” comum entre as classes dominantes ibéricas (GODINHO, 1983, p. 218). Se este abortamento de sentimentos nacionalistas pode ser tomado como uma conjectura, não o foi a imposição das orientações ideológicas (antissemitismo e o anticapitalismo) e dos interesses geopolíticos castelhanos, que não eram necessariamente os do Estado lusitano, como também parece ter sido o envolvimento na guerra da Espanha contra as Províncias Unidas, com quem, se consideramos os Países Baixos como um todo, Portugal mantinha relações comerciais há séculos. Pelo seu alcance temporal (1580-1663) e espacial, praticamente o mundo todo,178 a guerra entre Espanha e as Províncias Unidas debilitou Portugal política, econômica e militarmente. A guerra comercial foi iniciada em 1585, quando Filipe II determinou o confisco de um grande número de navios holandeses ancorados no porto de Lisboa (PUNTONI, 1999, p. 34) e continuou em 1591 com a proibição de qualquer navio estrangeiro negociar em portos do Reino. Não obstante, dados os laços comerciais entre Portugal e os Países Baixos, autoridades e comerciantes lusitanos de tudo fizeram para evadir as proibições espanholas e continuaram fazendo negócios com os batavos179. No caso do açúcar, os negócios com os Países Baixos vinham desde mais ou menos 1460, primeiro em Bruges, depois em Antuérpia e, após 1585, em Amsterdam180. 178 “De 1580 a 1663, a guerra que opôs os Portugueses e os Espanhóis aos Holandeses foi um verdadeiro conflito mundial, cujos teatros de operações se alargaram desde os campos da Flandres e do Mar do Norte até regiões tão afastadas como o estuário do Amazonas, o interior de Angola, a ilha do Timor e a costa do Chile. Esta guerra era muito moderna, pois os seus desafios eram, antes de mais, econômicos: o cravo-da-índia e a noz-moscada das Molucas, a canela do Ceilão, a pimenta do Malabar, a prata do México, do Peru e do Japão, o ouro da Guiné, o açúcar do Brasil e os escravos negros da África Ocidental.” (LABOURDETTE, 2008, p. 379). Entre as mercadorias em disputa, cabe acrescentar o sal, matéria-prima essencial para indústria da pesca holandesa e para obtenção de outras mercadorias. Quando deixaram de receber o sal de Setúbal (Portugal), os comerciantes o foram comprar na Venezuela, domínio espanhol. 179 Para detalhes destes desvios às proibições ver Holanda e Pantaleão (2007), principalmente p. 183 e seguintes. 180 O açúcar não era, diz Mello (2010, um negócio propriamente holandês, uma vez que era controlado por judeus sefarditas portugueses que, fugindo da inquisição espanhola, se haviam 249 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO O processo de transformação das Províncias Unidas em entreposto comercial mundial impunha deslocar Portugal do comércio de especiarias, mas o mesmo não precisava acontecer com o açúcar, pois as respectivas posições na cadeia mercantil – grosso modo, com os portugueses na produção e os holandeses no refino, financiamento e comercialização - já estavam de longa data assentadas, de modo que os últimos não tinham interesse em imiscuir-se na produção. Assim, faz sentido pensar que, na ausência da União Ibérica, seriam menos convincentes os argumentos de parte dos comerciantes holandeses a favor da ocupação dos territórios produtores de açúcar. De fato, o primeiro ataque holandês à América portuguesa ocorreu em 1598, depois que Filipe III autorizou confiscos de navios holandeses cujos tripulantes foram aprisionados (Holanda e Pantaleão, 2007), o que não impediu a continuidade do comércio. O mesmo Felipe III decidiu, em 1605, que todos os comerciantes das Províncias Unidas, incluindo os nascidos em solo lusitanto, deviam ser expulsos de Portugal. Não obstante, com a participação de comerciantes de Setúbal e São Miguel dos Açores, os holandeses mantinham um entreposto na Ilha da Madeira, que atendia o Brasil e outras partes. Puntoni (1999) faz um detalhado estudo da criação da Verenigde West Indische Compagnie –WIC, a Companhia das Índias Ocidentais, de seus interesses e também das disputas entre grupos de capitalistas em torno do controle do comércio de açúcar, ficando evidente que havia quem preferisse o comércio e quem defendesse a guerra181 contra a Espanha e neste caso, a tomada da colônia açucareira da América. Com essa finalidade, que ganhava força com os prejuízos causados pelos embargos comerciais promovidos pela Espanha, os partidários da guerra propuseram, em 1607, criar a mudado para Antuérpia e daí para Amsterdam quando a primeira cidade foi retomadas pelos Espanhóis em 1585. Estes comerciantes, chamados também de marranos, se envolveram desde o início na agromanufatura do açúcar na colônia americana, financiando, produzindo e comercializando. 181 Mello (2010) afirma que atualmente é dado como certo que a WIC não foi criada por iniciativa dos judeus sefarditas e sim de um grupo de comerciantes calvinistas que deixou os Países Baixos Espanhois depois de 1585, entre os quais Willem Ussenlicx, que liderou o processo de criação da Companhia. Oposto aos comerciantes baseados em Amsterdam que eram propensos ao comércio pacífico, principalmente com Portugal, este grupo, diz Mello (2010, p. 14) “pode ser razoavelmente referido como um partido da guerra.” 250 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) Companhia de Comércio das Índias Ocidentais, mas o projeto perdeu sentido com a assinatura da trégua em 1609. Durante a trégua, informa Mello (2010, p. 13, grifo nosso), “cerca de 50 mil caixas de açúcar, equivalentes grosso modo a 1 milhão de arrobas, desembarcavam anualmente nos portos das Províncias Unidas, suprindo nada menos que 29 refinarias.” A preeminência neerlandesa no comércio com Portugal é também atestada por de de Vries e der Woulde (1997, p. 397) para quem, em 1609, pelo menos 50% do comércio de Portugal com Brasil era destinado às Províncias Unidas, principalmente Amsterdam. Estes números evidenciam, para o caso de uma mercadoria específica, o açúcar, como o processo de transformação de Amsterdam em Centro Comercial Mundial se fez em detrimento de outros comerciantes e regiões, neste caso, os comerciantes portugueses,182 que por isso, como observa Labourdette (2008), defendiam a retomada da guerra. A trégua expirou em abril de 1621 e em junho a WIC já estava consti183 tuída. Em maio de 1624 Salvador foi ocupada até que os portugueses a recuperaram em março de 1625. Em 1630, Recife e Olinda foram tomadas e aí os holandeses permaneceram até 1654, tendo ampliado suas conquista para as capitanias da Paraíba, Itamaracá e Rio Grande do Norte.184 Para suprir suas necessidades de mão de obra escrava, tomaram dos portugueses o Forte de São Jorge da Mina (1637) e ocuparam Luanda em 1641, envolvendo-se diretamente no tráfico de escravos185. Portanto, além de ver diminuída sua participação no comércio do açúcar durante a trégua, depois dela Portugal perdeu Pernambuco, o maior 182 De fato, durante a trégua a economia neerlandesa “passou a dominar entre metade e 2/3 da navegação entre Portugal e o Brasil, de maneira autorizada ou clandestina.” (MELLO, 2003, p. 27). 183 De Vries & Der Woude (1997) destacam que, além da busca de lucro, a WIC tinha também a missão de combater a Espanha católica, o que, se afastou investidores em Amsterdam, ganhou adeptos em outras províncias. 184 No prosseguimento da pesquisa vamos abordar as consequências desta ocupação para a região, principalmente para Recife e Olinda. 185 Para detalhes do envolvimento dos holandeses com o tráfico de escravos ver Puntoni (1999). 251 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO produtor no Brasil186, sofreu os efeitos do corso praticado pela WIC,187 e, a partir da década de 1640, passou a enfrentar a competição das colônias caribenhas da Inglaterra, França e Províncias Unidas, que se iniciaram na agromanufatura açucareira com os incentivos técnicos, financeiros e comerciais dos holandeses.188 Os mercados dos dois primeiros países foram se fechando para o produto luso-brasileiro,189 mormente depois das políticas mercantilistas, do que trataremos mais adiante. Tirando vantagem de a Espanha estar em guerra com as Províncias Unidas e a França e ainda enfrentar a revolta da Catalunha, Portugal recuperou sua autonomia em 1640. Não obstante, a guerra contra a Espanha190 continuou e além disso Portugal teria que enfrentar a Holanda caso quisesse recuperar o Nordeste Brasileiro e Angola. Todos estes desafios, aos quais devem ser adicionada a própria reestruturação do aparelho de Estado, envolviam gastos enormes e teriam que ser enfrentados num quadro de grandes penúrias econômicas e financeiras, aumentadas pela interrupção da entrada da prata americana causada pelo conflito com a Espanha. 186 As perdas de Portugal não corresponderam a ganhos para os holandeses, porque a conquista e a reação posterior desmantelaram a produção, de modo que em 1654 a produção pernambucana era apenas 10% do total da colônia. Mesmo durante o período de paz (1640-45) esse percentual não passou de 20%, muito longe dos 60% do final do século XVI (SCHWARTZ, 1988, p. 158). 187 “Embora essas perdas já fossem graves durante as décadas de 1620 e 1630, no decênio seguinte tornaram-se arrasadoras. Em 1647 e 1648, perderam-se 130 navios baianos, já carregados ou ainda rumando para a capitania.” (SCHWARTZ, 1988, p. 159). “No reino a falência rondava a maioria das seguradoras” e o Pe. Antonio Vieira chegou a sugerir a suspensão da navegação, no que não foi acatado por D. João VI (MELLO, 2003, p. 131). 188 McCusker e Menard (2004) argumentam que tem havido uma excessiva ênfase na influência dos holandeses em prejuízo do papel exercido pelos comerciantes britânicos. 189 “Na década de 1630, aproximadamente 80% do açúcar vendido em Londres provinha do Brasil [...], em 1670 essa proporção caiu para 40% e, em 1690, para apenas 10%” (SCHWARTZ, 1988, p. 163). 190 Felipe IV, rei de Espanha, se dispôs a reconhecer o domínio das Províncias Unidas sobre “o Brasil holandês, do Ceará ao São Francisco”, se a França e as Províncias Unidas se abstivessem de apoiar os regimes rebeldes da Catalunha e de Portugal (MELLO, 2003, p. 35), o que nos parece um exemplo eloquente da não coincidência dos interesses de Portugal e da Espanha que mencionamos mais acima. 252 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) Não obstante, de agora em diante o Estado português – ainda que precisando ele próprio se afirmar – podia “concentrar-se em seus objetivos nacionais, em lugar de vê-los permanentemente subordinados às considerações políticas e estratégicas do equilíbrio de poder na Europa” (MELLO, 2003, p. 36). Segundo o mesmo autor seriam três os objetivos estratégicos: o reconhecimento internacional do Estado e da Dinastia dos Bragança; a segurança das fronteiras nacionais; a recuperação dos espaços perdidos na Ásia, na África e na América. Embora já em 1618, em Diálogos das Grandezas do Brasil, Ambrósio Fernandes Brandão afirmasse que o Brasil era muito mais rentável para Portugal do que a Índia, somente depois de 1640 estavam dadas as condições (a possibilidade de definir os interesses nacionais) e a motivações (a premência de garantir a sobrevivência do Reino) para que a colônia portuguesa se transformasse em prioridade política, colocando-se a recuperação do Brasil Holandês como objetivo imediato (MELLO, 2003). Dadas a incapacidade financeira e militar, as iniciativas tinham que ser diplomáticas, com o primeiro resultado sendo uma trégua assinada com os holandeses em 12 de junho de 1641, que valeria por 10 anos e que “congelava o status quo territorial, previa a cooperação naval contra a Espanha e autorizava a compra de armas e munições bem como recrutamento de tropas” (MELLO, 2003, p. 39). Estes termos dão uma ideia da fragilidade do Estado português, que para enfrentar um inimigo (a Espanha) na sua fronteira, se aliava e recorria a outro.191 Talvez comece aqui a via crucis portuguesa de tentar existir como nação em um mundo de Estados muito poderosos. Nesta conjuntura, mesmo tendo que adotar iniciativas aparentemente contraditórias, como na sua aproximação com a Holanda, Portugal só tinha o caminho diplomático, pois, 191 Para sobreviver, a monarquia portuguesa tentava ganhar a proteção da França e para isso propôs, em 1647, o casamento de D. Teodósio (filho de D. João IV) com uma Bourbon. A negativa francesa e o desespero do monarca português o levaram “a adicionar o compromisso dramático de abdicar da Corôa, retirando-se para a cidade de Angra (Ilha Terceira), onde ficaria com o domínio dos Açores e do Estado do Maranhão e Grão-Pará. Na menoridade do príncipe herdeiro, o próprio duque de Orleães, o pai da noiva, seria o regente de Portugal.” (MELLO, 2003, p. 101). 253 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO ao recuperar a autonomia em 1640, não dispunha de exército, nem corpo diplomático e nem prestígio internacional. A situação econômica era também de queda das rendas públicas e privadas. O estado e o povo português voltam-se, então, para a colônia americana, na medida em que “a prosperidade [e] a própria existência do Reino europeu passam a depender exclusivamente dela” (PRADO JR., 2008[1945], p. 49), que passou a ser alvo de diversas medidas destinadas a submetê-la política, administrativa e economicamente: Criação em 1642 e instalação em 1643, do Conselho Ultramarino, que centralizaria a política colonial; restrições à participação de não portugueses no comércio colonial; fundação, em 1649192, da Companhia Geral do Comércio do Brasil, que recebeu o monopólio do comércio entre Metrópole e Colônia. Uma das consequências desse monopólio foi a proibição da produção e do comércio de vinho de mel e aguardente de cana. No caso do sal, alguns comerciantes também tinham a exclusividade do comércio, e para “impedir o contrabando, proíbe-se sua produção no Brasil (1665)” (PRADO JR., 2008, p. 54). Segundo este autor, para não haver concorrência com a Metrópole ou com a Índia não era permitido o cultivo da oliveira, da canela e da pimenta193. Mais ilustrativa ainda da posição atribuída à Colônia na economia política da Metrópole e desta na economia-mundo, foi a reação à notícia da descoberta de ferro no Maranhão. Embora depois se revelasse falsa, a informação teve uma resposta imediata: foi proibida a exploração, sob argumento de que prejudicaria enormemente o comércio do Reino, que não era produtor e sim o intermediário entre os países fabricantes e a Colônia, dessa que era “a melhor mercadoria que se negociava na colônia.” (PRADO JR., 2008, 192 As agruras do Estado Português eram tão grandes, que, para viabilizar a Companhia, D. João IV enfrentou o Santo Ofício e recorreu aos comerciantes judeus, cujos bens, mesmo daqueles condenados pelo Santo Oficio, ele proibiu sequestrar. Acrescente-se que a sugestão de acudir aos capitalistas judeus foi do Pe. Antonio Vieira (REIS, 2003). 193 Provavelmente Caio Prado está se referindo à pimenta do reino, da qual hoje “o Brasil é um dos maiores produtores [...], oscilando entre a segunda e terceira posição no mercado mundial. Das 50 mil toneladas por ano, o País exporta 45 mil, principalmente para a Europa e para os Estados Unidos.” Disponível em: <http://www.ceplac.gov.br/radar/pimentadoreino. htm>. Acesso em: 17 maio 2012. 254 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) p. 55). Não temos motivo para duvidar da veracidade deste relato, que é plenamente compatível com um dos traços estruturais da economia portuguesa, a prática do chamado comércio de trânsito, quer dizer, a intermediação entre regiões produtoras e consumidoras, e que, se bem possibilitou certa prosperidade, ao ser constrangido pelas instituições políticas e ideológicas, cristalizou forças que impediram o florescimento primeiro do capitalismo comercial e, depois, do industrial e do financeiro. Em outras palavras, não permitiu o desenvolvimento de uma expressiva produção doméstica, seja na metrópole, seja na Colônia, e como consequência, ampliou o atraso em relação aos países mais adiantados economicamente. No quadro do conflito generalizado que foi a Guerra dos Trinta Anos e não dispondo de meios próprios para alcançar nenhum dos três objetivos estratégicos vitais retrocitados, “para sobreviver como metrópole colonial Portugal deveria ligar seu destino a uma grande potência, o que significava necessariamente alienar parte de sua soberania.” (FURTADO, 1995, p. 32) A tutela da Grã-Bretanha, potência então ascendente, foi formalizada no tratado de 1642, que concedia privilégios comerciais, jurídicos e religiosos aos súditos ingleses e também autorizava a nomeação de “comissários para tratar das concessões aos ingleses no comércio brasileiro, o que representou a primeira batida formal dos ingleses à porta da América do Sul portuguesa” (MANCHESTER, 1973, p. 20, grifos nossos).194 Ao encolhimento econômico, político e militar da Metrópole se contrapõem as potencialidades da Colônia e a agressividade daqueles que em África, em Portugal e no Brasil percebiam as mútuas relações entre o tráfico de escravos e a produção de açúcar e que por isso viam a urgência de recuperar Angola195, desde 1641 sob controle dos Holandeses. Tanto para não 194 O mesmo autor ressalta que o acordo não teve consequências práticas relevantes, mas “foi, na verdade, a base de todos os tratados subsequentes” e seus termos serviram de argumentos para Oliver Cromwell impor novas exigências em 1654, e para a Monarquia restaurada fazer o mesmo em 1661 (MANCHESTER, 1973, p. 20, grifos nossos). Celso Furtado (1995, p. 33) observa que o acordo de 1654 foi imposto na sequência de uma ataque marítimo britânico a Portugal, precisamente quando este país se encontrava em guerra com Espanha e Holanda. 195 Alecanstro (2000) faz um estudo detalhado dos grupos, motivações e consequências da recuperação de Angola. 255 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO provocar os holandeses quanto por carecer de meios, a Coroa portuguesa delegou aos colonos luso-brasileiros196 a retomada, que após várias tentativas, ocorreu, num primeiro estágio, em 1648. Esta vitória, de importância transcendental197 para Portugal, fortaleceu o grupo que defendia a via armada para tirar os holandeses do Nordeste brasileiro, enfraquecendo aqueles que, em troca da paz, considerada absolutamente necessária para a segurança do Reino, cogitavam entregar Pernambuco aos ocupantes. Neste último grupo, despontava o Pe. Antonio Vieira, quem, segundo Mello (2003, p. 165), avaliava como próxima de zero a probabilidade de Portugal recuperar militarmente o Brasil Holandês.198 Em 1650, em que pese o sucesso na África (1648) e as vitórias em Pernambuco199, bem como a maior segurança no transporte internacional proporcionada pela Companhia Geral de Comércio criada em 1649, “não se abalara a régia convicção acerca da necessidade de entregar 196 Salvador de Sá foi o grande líder desta empreitada, tanto no processo de convencimento da urgência da reconquista, iniciado em 1643, quanto na arregimentação dos recursos e ainda na liderança militar. Alencastro (2000, p. 234), afirma que 70% das despesas da expedição (onze navios, quatro patachos e cerca de dois mil homens) foram cobertas pelos “negreiros e fazendeiros fluminenses”, o que dá uma medida da relevância por eles atribuída ao controle do tráfico de escravos. Relevância que se torna mais notável quando se tem mente que no mesmo momento os holandeses ocupavam o nordeste brasileiro e ameaçavam atacar a Bahia e Rio de Janeiro. Simultaneamente, para escravizar os nativos, Raposo Tavares se embrenha no interior, numa expedição de três anos (1648-51) que de São Paulo, atravessa o Centro-Oeste, e seguindo pelos rios Mamoré, Madeira e Amazonas, chega à foz deste último. (ALENCASTRO, 2000). Como se vê, fluminenses e paulistas buscam em lugares diferentes a mão de obra que – como mercadoria e energia – sustenta a colônia nesta conjuntura de escassez de força de trabalho devida ao domínio holandês sobre Angola. 197 Além de retomar o fluxo de escravos, que revitalizariam a economia açucareira e que também seriam trocados pela prata peruana, a retomada de Luanda “desestabilizou o adversário [os holandeses] em todas as frentes, obrigando-o a recuar em todas as frentes do Atlântico Sul.” (ALENCASTRO, 2000, p. 231). 198 Essa avaliação se baseava no seguinte balanço das respectivas forças navais: As Províncias Unidas possuíam 14.000 navios e 200.000 marinheiros, Portugal 13(!) navios e 4.000 marinheiros. Na Ásia, a Cia. das Índias Ocidentais disporia de mais de 100 barcos de guerra, o Estado da Índia, nenhum. No Brasil, a proporção seria de 60 para 7. A superioridade holandesa em equipamentos e quadros militares era enorme. E no terreno diplomático, Portugal não tinha amigos e as PU não tinham inimigos. Apesar de considerar irreais os números esgrimidos por Vieira, o historiador pernambucano não nega a desigualdade de forças (MELLO, 2003). 199 Em Recife, as forças luso-brasileiras venceram os holandeses em 1648 e 1649, nos combates conhecidos como as batalhas de Guararapes, nome do monte onde se deram os confrontos. 256 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) o Nordeste, de vez que, dependente do Ultramar, Portugal necessitava ter paz com a principal potência marítima, como ainda eram reputados os Países Baixos às vésperas da sua primeira guerra com a Inglaterra” (MELLO, 2003, p. 190, grifos nossos). Esta avaliação era correta na medida em que baseava-se na relação de forças entre Portugal e as Províncias Unidas, mas não refletia o novo equilíbrio de forças na Economia-Mundo, onde a balança começava a pesar mais para o lado da Inglaterra e da França. Como expressão do novo equilíbrio de poder, o parlamento britânico aprovou em 1651 a Lei de Navegação, que determinava que as mercadorias destinadas à Inglaterra fossem transportadas em navios ingleses ou dos portos de origem. Para Davis (1973) esta foi “a primeira reação séria da Europa ao sucesso holandês” e para Wallerstein (1998), a primeira situação de perigo experimentada pela hegemonia holandesa. Inconformadas, em 1652 as Províncias Unidas declararam guerra à Inglaterra, da qual saíram derrotadas em 1654. Ora, nem mesmo as Províncias Unidas dispunham de recursos para sustentar várias frentes de batalha, uma delas contra um poderosíssimo inimigo (a Inglaterra), de modo que foram negados os recursos pedidos pela Companhia das Índias Ocidentais para defender o Brasil Holandês, que desde 1645 enfrentava a revolta dos luso-brasileiros que haviam derrotado os holandeses nas já mencionadas batalhas de Guararapes. A negativa desguarneceu Recife e D. João IV aproveitou a ocasião para ordenar o bloqueio do porto desta cidade pelos navios da Companhia Geral do Comércio enquanto o exército luso-brasileiro atacava por terra. O Brasil Holandês capitulou em janeiro de 1654, quando os batavos “já não dispunham de um poder naval incontestável na Europa, tendo sido obrigados a se submeter aos limites impostos pelas políticas coloniais da França e da Inglaterra nas Índias Ocidentais e na América do Norte” (DAVIS, 1973, p. 184, grifos nossos). Temendo a reação das Províncias Unidas, Portugal assinou, ainda em 1654, um novo tratado com a Inglaterra, mas só o ratificou em 9 de Junho de 1656, sob a ameaça de uma esquadra inglesa ancorada em Lisboa. O tratado repetia treze cláusulas do Tratado de 1642 e concedia mais vantagens 257 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO econômicas em seus domínios em troca de benefícios “em questões referentes à paz e amizades mútuas”. A Inglaterra não se comprometia claramente em prover assistência militar, “enquanto Portugal se tornou virtualmente um vassalo comercial da Inglaterra” (MANCHESTER, 1973, p. 26), condição reafirmada no Tratado de 1661. Estes tratados apenas expressam a gigantesca desproporção de poder político, econômico e militar entre as duas partes, desproporção iniciada na primeira metade do século XVI e aumentada durante a União Dinástica e que não parara de crescer nos dois séculos seguintes. De fato, assim como o primeiro Ato de Navegação (1651) demonstrava que durante a reorganização econômica, política e ideológica da Economia-Mundo pelas Províncias Unidas, a Inglaterra havia desenvolvido capacidades que lhe permitiram desafiar a potência hegemônica, iniciando assim a luta pela hegemonia, no outro lado da distribuição do poder econômico e político, a submissão praticamente total de Portugal aos interesses ingleses revela que este país estava totalmente despreparado para aproveitar as novas oportunidades criadas pela mencionada reorganização. Por isso, no decorrer dela, Portugal caiu para uma posição periférica na economia-mundo. Maiores seriam as dificuldades no futuro, pois, a partir mais ou menos de 1640, Grã-Bretanha, juntamente com a França, reorientarão a economia-mundo, reestruturando “radicalmente a geografia política do comércio mundial [através da] nova síntese de capitalismo e territorialismo criada pelos mercantilismos francês e britânico no século XVIII”, cujos três pilares foram “a colonização direta, a escravatura capitalista e o nacionalismo econômico” 200 (ARRIGHI, 1996, p. 49). Vemos que as duas potências rivais 200 Embora a síntese possa ter ocorrido só no século XVIII, a colonização direta se inicia com a tomada aos espanhóis de diversas ilhas caribenhas. Barbados foi ocupada pelos ingleses em 1627 e começou a exportar açúcar na década de 1640. Os Franceses ocuparam Guadalupe (1635) e Martinica (1635), cujas exportações de açúcar atingiram proporções importantes a partir de 1670. Com o açúcar, instalou-se a escravidão. Os atos de navegação podem ser considerados os marcos iniciais das politicas mercantilistas. Desenvolveu-se assim “um novo modelo de exploração colonial, baseado na exportação de manufaturas européias a um ritmo crescente e seguro” (HOBSBAWM, 1990, p. 29-30). Para o historiador britânico esse novo colonialismo foi “a maior conquista da crise do século XVII” e substituiu o colonialismo português e espanhol que se guiava por uma lógica econômica medieval, oposta ao capitalismo (HOBSBAWM, 1990, p. 63). 258 A ECONOMIA - MUNDO , PORTUGAL E O “BRASIL” NO LONGO SÉCULO XVI (1450-1650) se servem, renovando-as, de práticas conhecidas dos portugueses (a colonização direta e a escravatura), agora articuladas com o mercantilismo manufatureiro, para o qual as colônias são vitais, como fornecedores de matérias-primas e consumidoras de manufaturados metropolitanos, contribuindo duplamente para o aumento do poder e da riqueza dos respectivos estados nacionais na economia-mundo. Como ocorre com os inovadores, as duas potências praticam políticas que não estão ao alcance da maioria: Toda a história da Europa nos séculos XVII e XVIII ilustra esta incapacidade de um Estado frágil, dependente ou muito pequeno para conduzir uma política de intervenção e de desenvolvimento econômico. (DEYON, 2004, p. 38). Embora este autor não tenha sequer mencionado Portugal (a Espanha sim é analisada) entre os casos que ilustram esta afirmação, esta se aplica ipsis litteris ao Portugal do fim da década de 1650, quando este país pode ser considerado periferia da economia-mundo. Como sabemos, nos séculos seguintes, esta posição de impotência política e econômica não pôde ser revertida. Referências ALENCASTRO, Luiz F. de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Brasiliense, 2004. ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. 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Professora da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Marília. 265 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO os resultados do estudo da cadeia mercantil do café com as proposições teóricas da Economia Política do Sistema-Mundo. De início será composta a revisão bibliográfica do referencial teórico: primeiramente da abordagem da Economia Política dos Sistemas-Mundo e em seguida das cadeias mercantis, para substanciar a base sobre a qual se edifica esta pesquisa. O detalhamento relativo à cadeia mercantil do café seguirá em conjunto com a revisão bibliográfica da temática. A partir desse percurso será construída e analisada a cadeia mercantil desse grão no período estudado. Elementos do referencial teórico A abordagem da Economia Política dos Sistemas-Mundo (EPSM) tem como arquitetos teóricos três autores: o historiador Fernand Braudel, o sociólogo Immanuel Wallerstein e economista Giovanni Arrighi. O conjunto de suas obras constitui um arquétipo histórico do capitalismo válido para pensar o processo que construiu as bases econômicas do mundo atual202. Para demonstrar essa proposta interpretativa, de início Fernand Braudel (1902-1985), nos oferece alguns conceitos primordiais para a compreensão da EPSM. O primeiro deles é sua concepção das diferentes temporalidades como elemento fundamental para a compreensão histórica. Três são as durações vitais – longa, média e curta – para análises históricas que explicam a dialética entre as estruturas, conjunturas e os fatos históricos. Braudel ainda empreendeu uma descrição histórica do capitalismo como um conjunto de estratégias de superação das imposições do mercado para garantir lucros excepcionais. E no decorrer de suas pesquisas, ele apresentou o conceito de economia-mundo inicialmente na obra O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico à época de Philipe II (1949), para especificar o universo econômico 202 Cf. VIEIRA, R. L. O arquétipo do capitalismo: uma construção. In: Colóquio Brasileiro em EPSM - Economia Política dos Sistemas-Mundo, 4, Florianópolis: UFSC, 2010. Disponível em: <http://www.gpepsm.ufsc.br/html/ arquivos/o_arquetipo_do_capitalismo_%20 uma_construcao.pdf>. Acesso em: 02 ago. 2011. 266 A CADEIA MERCANTIL DO CAFÉ PRODUZIDO NO BRASIL ENTRE 1830 E 1929 daquela região. Contudo, foi na obra Civilização Material, Economia e Capitalismo (1979) que aprofundou tal conceito. Para explicá-lo e exemplificá-lo, Braudel analisa várias economias-mundo ao longo da história para depois apresentar suas quatro principais características: são de longa duração temporal; têm limites definidos; possuem um centro econômico; e seu espaço de atuação é hierarquizado. O conceito de economia-mundo é decorrente de sua concepção de capitalismo: monopolista, adaptativo e livre para escolhas mais lucrativas. O centro de cada economia-mundo deslocou-se ao longo dos cinco séculos do capitalismo. Assim, há uma sequência clássica para os vários centros econômicos desde o século XVI: Veneza, Antuérpia, Gênova, Amsterdã, Londres e Nova York. O apogeu de cada uma delas apresenta um equilíbrio frágil, cujas mudanças provocam alterações profundas no conjunto do sistema203. Por sua vez, Immanuel Wallerstein estudou o conceito de economiamundo de Braudel e o propôs como um modelo de análise na obra The modern world-system (1974). Para tanto retomou a concepção de hierarquia e adotou as posições de “centro”, “periferia” e “semiperiferia” dentro do sistema mundial. Para ele, este se caracteriza pela dicotomia entre capital e trabalho, e pela acumulação de capital entre agentes em concorrência, num equilíbrio sempre ameaçado por fricções internas. Neste contexto, a divisão internacional do trabalho e do capital a partir do centro hegemônico condiciona as possibilidades dos demais membros do sistema. Segundo Wallerstein, a perspectiva dos Sistemas-Mundo surgiu da combinação do conceito de economia-mundo de Fernand Braudel com a análise centro-periferia da CEPAL, em diálogo com postulados de Karl Polanyi e Raúl Prebish (WALLERSTEIN, 2005a, p. 32-34). E para ele, as análises a partir da perspectiva da Economia dos Sistemas-Mundo devem observar dois subsistemas: o político (Estados nacionais) e o econômico (cadeias mercantis). Ambos são indissociáveis, pois se inter-relacionam constantemente. Aos Estados cabe o papel de facilitar a implementação de estruturas 203 Para detalhamento ver VIEIRA, R. Fernand Braudel: a relação do método historiográfico e o conhecimento histórico. Assis: 2002. Tese de doutorado. 267 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO políticas, sociais e culturais para o desenvolvimento econômico. A análise dos processos econômicos a partir das cadeias mercantis permite a observação da rede de processos de trabalho e de produção, cujo resultado é um produto pronto para o consumo. Elas são caracterizadas por serem geograficamente extensas, complexas e passarem por mudanças constantes. Outro aspecto relevante dessa perspectiva consiste no fato de que os estudos a partir da economia-mundo e, portanto, das próprias cadeias mercantis, exigem que se observem sempre as posições dentro de uma perspectiva relativa. Em Giovanni Arrighi, observa-se que há uma retomada dos percursos de Braudel e Wallerstein. No livro O logo século XX (1994), Arrighi reconstrói o processo histórico das economias-mundo e retrata o ciclo norte-americano como produto dos ciclos precedentes; e assim reafirma a ideia de longa duração do capitalismo – tão cara a F. Braudel. Suas pesquisas apresentam os quatro Ciclos Sistêmicos de Acumulação (CSA) de Arrighi: Gênova – do século XV ao início do XVII; Holanda – do fim do século XVI até grande parte do XVIII; Inglaterra – segunda metade do século XVIII e início do XX; e Estados Unidos – do fim do século XIX até hoje. Uma característica dos CSAs é a sua divisão em duas fases: primeiro crescimento material, seguido de crescimento financeiro. Em decorrência disso há concomitância dos ciclos econômicos durante o processo de passagem de um centro hegemônico para outro, pois o desenvolvimento material de um novo centro ocorre durante a fase do desenvolvimento financeiro do ciclo “anterior”. Destacadas as balizas teóricas sobre as quais se pretende (re)construir a cadeia mercantil do café produzido no Brasil no período 1830-1929, apresentamos a seguir contribuições de alguns pesquisadores que vêm desenvolvendo seus trabalhos a partir do conceito de cadeia mercantil. Para Talbot (2004, p. 6), “uma cadeia mercantil é uma unidade intermediária de análise, maior do que o Estado-nação, mas menor do que todo o sistema-mundo”. As cadeias mercantis, como um sistema inter-relacionado de processos de produção e transações econômicas da produção até o consumo, são o aspecto concreto da economia-mundo capitalista, pois demonstram 268 A CADEIA MERCANTIL DO CAFÉ PRODUZIDO NO BRASIL ENTRE 1830 E 1929 a extensão da economia-mundo, bem como as diferentes posições das várias economias envolvidas naquela cadeia mercantil, explicando assim a condição de maior ou menor autonomia de cada elo da cadeia. E a cadeia mercantil reproduz outra característica fundamental dos sistemas-mundo como unidade de análise: a contradição entre a unidade global do sistema econômico e a fragmentação territorial do sistema político dos estados-nações. Os estados tentam regular o processo de produção que ocorrem em seu território, mas constrangidos porque esses processos são ligados a outras localidades e diferentes estados-nações. (TALBOT, 2004, p. 7). Segundo ele, os estudiosos de cadeias mercantis perceberam que os movimentos em tais cadeias podem ser de origem de fatores internos ou externos, por exemplo: sofisticação da tecnologia, alianças entre o local e o transnacional, mercado externo, questões domésticas. Por isso, segundo ele, “Gellert (2003) enfatiza a importância das alianças políticas entre estados e capital local para as regiões de commodities de exportação, bem como as alianças entre o local e o transnacional como determinantes no sucesso para mover-se na cadeia.” (TALBOT, 2004, p. 13). E ainda segundo Talbot, o estudo das cadeias mercantis permite a superação do foco no Estado-nação como unidade de análise, fugindo assim da falácia identificada pelos analistas dos Sistemas-Mundo (TALBOT, 2004, p. 18). Na introdução do livro Commodity chains and global capitalism, Gereffi e Korzeniewicz, utilizam o conceito de cadeia mercantil de Hopkins e Wallerstein de 1986: “uma rede de processo de trabalho e produção, cujo resultado final é um produto acabado”. Defendem que as cadeias mercantis reformulam a base conceitual e as categorias necessárias para analisar o novo padrão de organização global, ligando famílias, empresas e estados um ao outro dentro da economia-mundo. E “essas redes são situacionais, socialmente construídas, e localmente integradas, ressaltando o enraizamento social da organização econômica” (GEREFFI; KORZENIEWICZ, 1994, p. 2) No mesmo livro, o texto de Hopkins e Wallerstein “Commodity Chains: construct and research” descreve os elementos que devem ser 269 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO observados na construção de uma cadeia mercantil. Sugerem a utilização de um gráfico no qual cada etapa específica do processo deve estar separada em uma caixa, com suas respectivas indicações geográficas, sendo que cada etapa possui sua própria cadeia mercantil, um tipo de propriedade associada e de formas de trabalho, e por fim as relações entre cada unidade constituinte (HOPKINS; WALLERSTEIN, 1994, p. 18-19). Em outro texto intitulado “Conclusions about commodity chains”, Hopkins e Wallerstein salientam o papel dos governos – locais ou nacionais – na inserção de seus produtos em grandes cadeias mercantis, por exemplo, com políticas de protecionismo. Destacam ainda que a economia-mundo capitalista revela-se por meio deste tipo de radiografia como um movimento rápido das relações; todavia, sempre reproduz a ordem básica que permite a infinita acumulação de capital, ou pelo menos até agora reproduziu esta ordem básica. (HOPKINS; WALLERSTEIN, 1994a, p. 50). A inserção da América Latina na economia-mundo capitalista ocorre desde a sua gênese. Steven Topik, Carlos Marichal e Zephyr Frank, na introdução do livro From silver to cocaine – latin american commodity chains and the building of the world economy, 1500-2000, com o texto intitulado “Commodity chains in theory and in Latin American history”, descrevem com clareza essa situação: a América Latina tem estado ativamente envolvida no comércio global desde que um marinheiro genovês com a cartografia, marinheiros e experiência portuguesa em navegar para a África, em navios espanhóis parcialmente financiados por banqueiros italianos chegaram ao que seria conhecido como o “novo mundo”. (TOPIK; MARICHAL; FRANK, 2006, p. 1). Ou seja, o empreendimento das “grandes navegações e descobrimentos” como consequência de um processo econômico global e demonstrando a América Latina desde a gênese de sua inserção na história europeia necessariamente como parte da economia-mundo capitalista. 270 A CADEIA MERCANTIL DO CAFÉ PRODUZIDO NO BRASIL ENTRE 1830 E 1929 Feito o percurso com os subsídios teóricos fundamentais que norteiam a presente pesquisa - a economia-mundo capitalista e mais especificamente o conceito de cadeia mercantil -, serão analisados agora aos elementos centrais relativos ao tema da cadeia mercantil do café no Brasil no período de 1830 a 1929. Revisitando as análises da cafeicultura brasileira A história do Brasil ainda é pouco estudada sob o prisma da Economia Política dos Sistemas-Mundo e por conseguinte das cadeias mercantis. Contudo, pesquisas por esse viés poderiam contribuir para uma compreensão mais profunda do “lugar” do Brasil na condição de periferia do sistema capitalista. A pesquisa pioneira de Pedro Antonio Vieira204 da cadeia mercantil do açúcar, apesar de muito recente, torna-se referência para novos empreendimentos que intencionam desbravar esse caminho. Em seu texto “A inserção do ‘Brasil’ nos quadros da economia-mundo capitalista no período 15501800: uma tentativa de demonstração empírica através da cadeia mercantil do açúcar”, explicita o conceito de cadeia mercantil que também será utilizada na presente pesquisa. Como se concretiza a economia-mundo? Ou ainda, qual a extensão ou o território de uma economia-mundo? A concretização e a extensão de uma economia-mundo é medida pela variedade e extensão de suas redes de produção e troca que em linguagem mais técnica Wallerstein e Hopkins (2000) denominaram “cadeias mercantis” (commodity chains). Com este conceito os autores designam “processos produtivos interligados que têm cruzado múltiplas fronteiras e que sempre apresentaram dentro deles diferentes formas de controle do trabalho.” (Wallerstein e Hopkins, 2000, p. 221) Mais especificamente, uma cadeia mercantil é composta por todas as fases e ou processos 204 Professor da Universidade Federal de Santa Catarina, onde coordena o Grupo de Pesquisa da Economia Política dos Sistemas-Mundo. 271 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO necessários à produção e comercialização de uma mercadoria, desde seus insumos até o consumo final. (VIEIRA, 2010, p. 504-5). O trabalho desenvolvido por Vieira (2010, p. 524) apresenta a cadeia mercantil do açúcar, cujas “atividades implicadas na produção, comercialização e consumo do açúcar se espalhavam pela América, Europa, África e Ásia, formando uma verdadeira rede de negócios com muitas conexões”. Além do aspecto espacial, apresenta os inúmeros produtos partícipes da cadeia do açúcar, como equipamentos, farinha de mandioca, aguardente e principalmente os escravos. Seguindo essa mesma trilha, pretende-se montar a cadeia mercantil do café produzido no Brasil. A relevância desse grão para a economia, estado e sociedade brasileiras no século XIX é indiscutível. O período de desenvolvimento e apogeu como produto altamente rentável nas exportações nacionais pode ser identificado entre 1830 e 1929. Uma vez que sua produção em escala comercial se inicia com a presença da Família Real Portuguesa no Brasil205, e vai até a grande crise do capitalismo ao final da década de 20 do século passado206. Este período histórico, na cronologia de Arrighi, é o Ciclo Sistêmico de Acumulação Britânico, porém coincidindo com a passagem dele para o norte-americano, e caracteriza-se por transformações profundas no mundo, lideradas pela potência hegemônica – a Grã-Bretanha – que alteraram substancialmente a situação política, econômica e social da colônia portuguesa da América, tais como: a transferência da corte portuguesa para o Brasil (1808), a passagem da condição colonial à de Reino Unido (1815) e dessa para Império independente (1822), a ascensão do café como principal produto de exportação, o fim do tráfico de escravos (1850), a transição para o trabalho assalariado, a imigração europeia, a modernização da 205 “D. João VI e os fidalgos que o acompanhavam estimularam o uso do café e o seu plantio. Taunay, em sua ‘propagação da cultura cafeeira’, relata um episódio interessante sobre a distribuição de sementes pelo próprio monarca, aos nobres da Corte, insistindo para que as cultivassem” (SIMONSEN, 1938, p. 20). 206 1929: o crack da Bolsa de Nova York e a crise econômica subsequente atingiram diretamente a produção e a comercialização do café. Assim, são queimadas ou lançadas ao mar cerca de 40% da produção brasileira do início da década de 1930. Cf. Martins; Johnston (1992, p. 58). 272 A CADEIA MERCANTIL DO CAFÉ PRODUZIDO NO BRASIL ENTRE 1830 E 1929 infraestrutura, dos serviços bancários e dos transportes (ferrovias) e o início da industrialização. Todas essas transformações são constituintes do processo de incorporação do Brasil, na condição de periferia, à economia-mundo centrada na Inglaterra. Segundo Talbot (2011, p. 73-74), essa condição periférica se deu pela necessidade brasileira de bens de capital, sob a forma de ferrovias, e pelo controle da exportação de café por empresas europeias e norte-americanas. Embora possa parecer algum exagero, pode-se afirmar, com respaldo na bibliografia, que o aumento das exportações de café foi uma força indutora de outras mudanças estruturais na sociedade e na economia brasileiras: São Paulo e as classes sociais ligadas aos negócios do café passaram a hegemonizar a política e a economia nacionais no último quartel do século XIX; a imigração transformou a composição étnica e cultural do país; a urbanização permitiu o surgimento das classes médias; os transportes foram revolucionados com as ferrovias; os serviços bancários avançaram enormemente com o financiamento da produção, da comercialização e dos estoques. Se por um lado estas transformações não podem deixar de serem vistas como “desenvolvimento”, simultaneamente elas reforçaram o que Caio Prado chamou “o sentido da colonização”. Ou seja, na divisão internacional do trabalho, coube ao Brasil a produção de produtos primários para atender demandas externas. Assim se pode observar que o fato da expansão cafeeira acontecer no período da hegemonia britânica certamente imprimiu marcas específicas à continuidade do sentido da colonização. Para identificar estas características estruturantes e se observar seus efeitos contraditórios na expansão cafeeira e no desenvolvimento econômico e social brasileiro, faz-se necessário adotar uma perspectiva sistêmica desta expansão. Em outras palavras, é preciso considerar que as atividades ligadas ao café, realizadas em território brasileiro, estavam conectadas a outras localizadas em outras partes do mundo e a outros interesses econômicos. Em suma, é preciso adotar o conceito de cadeia mercantil e proceder ao desenho de seus elos ou nódulos. Este procedimento permitirá compreender o lugar do Brasil na nova conjuntura representada pelo Ciclo de Acumulação Britânico, que para alguns se afigura como imperialista e para outros neocolonial. 273 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Por outro lado, o estudo da formação e distribuição espacial da cadeia mercantil do café certamente permitirá lançar novas luzes sobre um período fundamental na história brasileira, caracterizado pela formação do estado nacional, pela modernização econômica e suas consequências em termos políticos, sociais e mesmo culturais. Um aspecto da vida brasileira para o qual o estudo da cadeia mercantil mundial do café contribuirá é a observação mais clara da inserção nacional nos processos políticos e econômicos mundiais. Pois os nódulos fundamentais da cadeia mercantil do café ou eram controlados por agentes britânicos – o comércio e o financiamento, por exemplo – ou se localizavam no exterior, como é o caso do consumo, realizado majoritariamente nos EUA. Esta simples menção à extensão da cadeia mercantil para os dois estados mais poderosos da época – Inglaterra e Estados Unidos – parece suficiente para chamar a atenção às implicações geopolíticas da inserção internacional do Brasil através da cadeia mercantil do café. Em outras palavras, ao abrigar nódulos de uma cadeia mercantil cujos outros liames se localizavam em centros hegemônicos, o Brasil não dispunha de autonomia para tomar decisões sobre o café, sobretudo se estas decisões afetavam os interesses daqueles estados e/ou de seus capitalistas e cidadãos. Apenas como ilustração pode ser mencionada a decisão do governo norte-americano, durante o período da chamada valorização do café, de obrigar os agentes comerciais a liquidarem os estoques reguladores existentes nos EUA, estoques que eram usados para manter elevados os preços. Portanto, o desenho mais detalhado possível da localização espacial da cadeia mercantil do café, levará a uma identificação mais precisa dos nódulos localizados no Brasil e fora dele, permitindo saber quais conexões – em termos de rentabilidade e dinamismo – se localizavam no país ou não; o que lançará luz sobre o alcance das políticas governamentais para o setor. Simultaneamente, na medida em que conseguirmos rastrear a origem dos insumos, máquinas, equipamentos, financiamento e o destino dos lucros, será possível diagnosticar com mais precisão as regiões nacionais e internacionais que foram dinamizadas pelos negócios do café. Além disso, devemos lembrar que, se a partir de 1815 a Grã-Bretanha exerce sem contestação a hegemonia mundial, no último quartel deste mesmo 274 A CADEIA MERCANTIL DO CAFÉ PRODUZIDO NO BRASIL ENTRE 1830 E 1929 século esta posição começa a ser contestada. Contestação que desembocou nas duas guerras mundiais, ao fim das quais os EUA substituem a Inglaterra como epicentro hegemônico, dando início ao quarto ciclo sistêmico arrighiano. Consequentemente trata-se de verificar em que medida a cadeia mercantil do café foi afetada por essas alterações. A bibliografia sobre a temática do café é vasta. O café como tema de estudo, por historiadores, economistas e outros cientistas sociais, apresenta-se recorrente. Todos os autores clássicos e contemporâneos que fizeram estudos de história econômica brasileira analisaram o tema. A peculiaridade da presente pesquisa é analisar o objeto dentro da perspectiva da Economia Política do Sistema-Mundo com a elaboração da cadeia mercantil desse produto. Celso Furtado, na obra Formação Econômica do Brasil, destaca a importância do café no desenvolvimento do país. No primeiro decênio da independência o café já contribuía com 18 por cento do valor das exportações do Brasil, colocando-se em terceiro lugar depois do açúcar e do algodão. E nos dois decênios seguintes já passa para o primeiro lugar, representando mais de quarenta por cento do valor das exportações. (FURTADO, 1997, p. 113). Ao longo do livro, Furtado apresenta os clássicos períodos da produção cafeeira nacional dentro da perspectiva da condição de dependência do Brasil em relação ao capital internacional. E ao tratar da política de valorização do café, ele afirma que esta foi “financiada do exterior” (FURTADO, 1997, p. 193). Caio Pardo Jr., no livro História Econômica do Brasil, analisa a produção cafeeira dentro do contexto imperialista – sobretudo inglês. E associa a política de valorização do café com os interesses de empresas e banqueiros ingleses e o consequente endividamento. Ele oferece uma posição importante para o delineamento da cadeia mercantil cafeeira e o capital internacional: a economia cafeeira nas suas diferentes fases, desde a produção até o consumo será largamente explorada pelo capitalismo internacional. Através do financiamento da produção, do comércio, da exportação, ele retirará uma primeira parcela de lucros, pois embora estas 275 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO operações se realizem no próprio país, elas se acham direta ou indiretamente em suas mãos, seja por bancos e firmas comerciais da mesma procedência nacional, seja por casas brasileiras a ele ligadas. Depois que o café é embarcado, a exploração do capital estrangeiro se torna naturalmente maior e mais fácil; aí vem o transporte, a distribuição nos países consumidores, a industrialização do produto (torração, moagem e outras manipulações). É todo um grande aparelhamento comercial e industrial que o café brasileiro vai alimentar; e os lucros de todos esses processos sucessivos (em que entra boa parte de mais-valia brasileira) canalizam-se para a remuneração dos capitais internacionais neles invertidos. (PRADO JÚNIOR, 1994, p. 272). Na mesma página Prado Jr. afirma: “praticamente e de uma forma completa, é impossível avaliar a parte da riqueza produzida pelo café brasileiro que permanece no país”. Assim, se pode observar que ambos os autores enfatizam a participação do capital internacional na cadeia produtiva e comercial do café. No livro, Santos, o porto do café (1969), de José Ribeiro de Araújo Filho, há informações importantes sobre a exportação do café, em detalhes e com muitos dados. Também está presente a ideia de que o comércio do café esteve “sempre” nas mãos de estrangeiros. Até o princípio do século, o domínio na exportação de café pelo porto de Santos pertencia a firmas europeias, de Hamburgo, do Havre, de Antuérpia, de Roterdan; depois esse domínio passou a firmas norteamericanas, embora as europeias continuassem representando certa importância. De qualquer forma, é digno de nota o fato de o brasileiro não ir além do seu próprio porto para vender a sua principal riqueza. [...] esperando que os compradores venham a nossa casa, ao invés de irmos à sua procura como em geral acontece no comércio internacional. (ARAÚJO FILHO, 1969, p. 163). Por outro lado, Sergio Silva – no livro Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil – apresenta uma reflexão teórica interessante na qual demonstra a supremacia do capital mercantil, o que leva a burguesia cafeeira a exercer múltiplas funções. “No Brasil, o capital comercial não se apresenta de 276 A CADEIA MERCANTIL DO CAFÉ PRODUZIDO NO BRASIL ENTRE 1830 E 1929 uma maneira autônoma, enquanto capital comercial puro; ele domina diretamente a produção e a submete às suas exigências” (SILVA, 1976, p. 61). Ele elucida ainda que “a dominação do capital comercial explica-se pela posição ocupada pelo Brasil no seio da economia mundial” (ibid., p. 62), de cuja divisão do trabalho o Brasil participa como fornecedor de produtos primários e consumidor de manufaturados, o que reitera o pensamento de Caio Prado Jr. Embora não utilizem a abordagem aqui desenvolvida, as análises desses autores contribuem indelevelmente para a perspectiva da cadeia mercantil. Outro autor, referência para pensarmos questões da temática do café é Antônio Delfim Netto, que no livro O problema do café no Brasil, também faz algumas indicações da presença do capital internacional nos negócios cafeeiros: o principal banqueiro do cafeicultor era o comissário. Os recursos dessa classe de comerciantes, apesar de serem muito ponderáveis, foram insuficientes para sustentar, sem aperturas, as novas necessidades monetárias da economia. Esta circunstância transformou também o comissário numa classe dependente de financiamentos e quebrou-lhe o poder de resistência diante dos exportadores. O comissário que, dispondo de capital, podia estocar o produto e realizar uma certa regularização da oferta, viu-se diante da necessidade de colocar imediatamente o produto que lhe chegava às mãos a fim de poder cumprir os seus próprios compromissos. Esta inversão de papéis deu ao exportador – geralmente agente de grandes empresas estrangeiras – a capacidade de comprimir ainda mais os preços do produto. (DELFIM NETTO, 1979, p. 18). Novamente tem-se aqui explicitada a centralidade dos exportadores e seus agentes financeiros na cadeia mercantil do café. A revisão desses autores nacionais, de diferentes abordagens, feita até aqui salienta o papel fundamental do capital internacional na produção cafeeira. O que expõe a cadeia mercantil do café necessariamente como transnacional, tal como defende Wallerstein (2005b). Esta premissa exige que se faça uma incursão nos aspectos relativos à presença do capital e de empresas estrangeiras na cadeia mercantil do café. 277 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Nesse sentido torna-se obrigatória a leitura do livro 150 anos de café, de Martins e Johnston, no qual encontramos a história da empresa Johnston, fundada nos anos 30 do século XIX para intermediar o comércio em geral e de café em particular. Segundo seus autores, o fato de não ser preciso haver uma conexão nítida entre os mercados onde as exportações da América Latina eram vendidas e a nacionalidade dos comerciantes que lidavam com elas resultou no aparecimento de casas britânicas em toda a América Espanhola e no Brasil, à procura de oportunidades de negócios. Portanto, o negócio que Edward Johnston fundou não era de modo algum singular. O desenvolvimento do comércio internacional no século XIX dependia cada vez mais de uma cadeia de intermediários para transferir a propriedade de bens do produtor para o consumidor. (MARTINS; JOHNSTON, 1992, p. 151). Observa-se, assim – na cadeia mercantil do café – a presença pragmática do capital e de empresas de capital internacional. Tal fato ocorre nas transações de grande porte, como é o caso acima, de comercialização de grandes quantidades de café; na construção das ferrovias; e na maquinaria necessária para a preparação do café para comercialização. Quanto a esse último aspecto igualmente se evidencia a presença internacional na cadeia produtiva do café. Para tratar desse aspecto, a obra Arquitetura do café, de André Argollo oferece um estudo sobre todo processo produtivo, inclusive sobre as máquinas nacionais ou importadas para o “beneficiamento” do café, no qual também o capital internacional se favoreceu. Já o estudo de Luiz Cláudio Ribeiro, no texto “A invenção como ofício: as máquinas de preparo e benefício do café no século XIX” (2006), apresenta também a maquinaria nacional, inventadas ou “inovadas” no Brasil. E para essas é necessário aço temperado para sua fabricação, o que novamente remete à importação, ou seja, a outro elo da cadeia produtiva do café que se localiza no exterior. Mas, como adiantamos acima, há outras questões da relação entre o café e o desenvolvimento nacional que merecem ser aprofundadas: 1) a origem dos insumos, máquinas e equipamentos; 2) os agentes – trabalhadores e 278 A CADEIA MERCANTIL DO CAFÉ PRODUZIDO NO BRASIL ENTRE 1830 E 1929 empresários – envolvidos em cada uma das fases da cadeia, sua nacionalidade e remuneração; e 3) os limites e possibilidades da ação estatal. Esboço da cadeia mercantil do café O esboço descritivo da cadeia mercantil do café, a seguir, tem por objetivo uma primeira aproximação do objeto da pesquisa para expor sua complexidade e demonstrar sua importância para a abordagem da Economia Política do Sistema-Mundo e a inserção do Brasil na economia-mundo capitalista. Processos Etapas NO BRASIL 1ª fase baixo desenvolvimento técnico e intensa utilização de mão de obra Produção (exigência inicial: grandes extensões de terra) Transporte Instrumentos Maquinaria Insumos Desmatamento, plantio, alfanjes (foice), enxadas, carpa, poda, colheita, cestos de taquara, peneiras, secagem, despolpamento, pilão, monjolo, terreiro, descascamento, ventilação, animais para tração, água e catação, brunimento e armazéns, sacas ensaque Atividades Carpideira de tração animal, engenhos de pilões hidráulicos, terreiros 2ª fase desenvolvimento técnico As atividades se repetem, impermeáveis (material de porém com a utilização de construção), ventiladores, em substituição a uma máquinas cai a quantidade despolpadores, parte da mão de obra descascadores, de mão de obra máquinas modernas (de processo contínuo), vapor, eletricidade NO EXTERIOR Torrefação e moagem NO BRASIL Intensa utilização de mão de obra de carregadores NO BRASIL Comissário, corretores, importadores NO EXTERIOR Redes de comércio atacadistas e varejistas Torradores, moinhos, embalagens Tropas de muares, carroças e carretões Embarcações para transporte de cabotagem Trens Armazéns, navios Comercialização Armazéns, transportes 279 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO O processo produtivo Segundo Francisco Eduardo Pires Souza207, observam-se duas grandes fases no processo produtivo do café. De início o baixíssimo desenvolvimento técnico e consequentemente a utilização de mão de obra em larga escala; e posteriormente o desenvolvimento técnico substituindo parte da mão de obra. Na primeira fase, que se caracteriza pelo baixo desenvolvimento técnico e utilização de mão de obra em larga escala, as atividades são: desmatamento – no caso de mata virgem208; plantio – que poderia ser direto (com sementes) ou indireto (com transplante); carpa – ocorria três vezes ao ano; poda – manual, comumente após a colheita; e colheita. Todas são atividades com a utilização de grande quantidade de mão de obra, escrava inicialmente e livre posteriormente. As ferramentas são: alfanjes (foice), enxadas, cestos de taquara, peneiras. O combate a pragas e/ou adubação quase não ocorriam, pois exigiriam grande quantidade de mão de obra; o mais comum era a adubação verde (resultado da carpa). O beneficiamento possuía uma série de atividades: secar em terreiro (alguns lavavam depois de seco e secavam novamente); despolpamento e descascamento – para isso eram necessários o pilão e o monjolo, e podia ser feito com trabalho humano ou também com tração animal; a ventilação consistia em abanar com peneiras de taquara ou com ventiladores manuais; a catação de impurezas era feita com peneiras e finalizada a dedo (atividade preponderantemente de mulheres com filhos pequenos e dos mais velhos); o brunimento era o processo de polir em pilões; e finalmente ensacar – trabalho manual. Todas são atividades com a utilização de grande quantidade de mão de obra. E a produtividade exigida dos escravos foi tendencialmente crescendo. 207 SOUZA, Francisco Eduardo Pires. A evolução das técnicas produtivas no século XIX: o engenho de açúcar e a fazenda de café no Brasil. Campinas: 1978. Dissertação de Mestrado IFCH/UNICAMP. 208 Importante lembrar que o acesso às terras no Brasil é um capítulo particular de análise, cuja síntese se pode fazer a partir de um único termo: concentração. Para a análise do tema, ver: Prado Jr. (1994); Costa, (2007). 280 A CADEIA MERCANTIL DO CAFÉ PRODUZIDO NO BRASIL ENTRE 1830 E 1929 Enquanto em 1840 os escravos eram responsáveis por 2.000 cafeeiros, em 1880 esse número chegou a 7.000 pés de café. A segunda fase209 do processo produtivo se caracteriza pelo desenvolvimento técnico e diminuição da mão de obra. Nesta fase as atividades de desmatamento, plantio, poda e colheita não sofrem modificações; a exceção fica para a carpa. Em São Paulo na década de 80 é introduzida a carpideira de tração animal, somente para terrenos propícios. Ela apresentava grande produtividade: 1 hora para 6 horas de enxada. As alterações mais substanciais ocorrem no processo de beneficia210 mento . Por volta de 1840/50 já são utilizados os engenhos de pilões hidráulicos e os terreiros impermeáveis, embora estes mais raramente dados os altos custos. Há difusão do engenho de pilão para via seca, na proporção de um 1 pilão para 12 monjolos e, portanto, suprindo 90 homens. A ventilação, por sua vez também apresenta uma relação de grande substituição de mão de obra em relação ao abano manual: o uso de ventiladores por uma hora substituía de 16 a 20 homens em 10 horas de trabalho. Há novas gerações de máquinas, mas trata-se de processo ainda descontínuo. O processo contínuo por via seca – década de 60 – se dá com a introdução das máquinas de Albion Coffe Huller & Cia, com a instalação da fábrica pioneira de Willian van Vleck. O mesmo processo era utilizado pela via úmida após a fase de despolpamento. Ao longo da década de 60, vários mecanismos são aperfeiçoados: despolpadores, descascadores e ventiladores. A utilização de mão de obra em larga escala diminui – nessas atividades –, porém permanece na colheita, 209 Não é possível estabelecer uma data precisa para o início do desenvolvimento técnico; o que se tem são informações de quando alguma inovação já ocorreu e foi documentada. Além disso, se deve considerar que o processo de inovação técnico ocorre de forma irregular e espontânea. 210 Principais fontes: ARGOLLO, André. Arquitetura do café. Campinas: Editora da UNICAMP; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004. RIBEIRO, Luiz Cláudio. “A invenção como ofício: as máquinas de preparo e benefício do café no século XIX”. In: Anais do Museu Paulista. Universidade de São Paulo, Museu Paulista. v.14, n.1, p.121-165. jan/jun 2006. SOUZA, Francisco Eduardo Pires. Op. cit. 281 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO na catação e na secagem. O uso de terreiro impermeável foi pouco usado, pois exigia grande investimento inicial para a compra de cimento, tijolos e/ ou ladrilhos. Em 1883, os engenhos de pilões são ultrapassados pelas “máquinas modernas”, ou seja, pelo processo contínuo. A máquina “brasileira” é muito produtiva: uma máquina que beneficiava 450 kg de café por hora custava 3 contos de réis – substituindo o trabalho de muitos escravos – embora com a mesma quantia não se comprasse nem 2 escravos em idade de trabalho (SOUZA, 1978, p. 144-151). Para o processo produtivo do café em sua primeira fase eram necessárias em grande quantidade a água e madeira; na fase seguinte são as chapas e peças metálicas, além de vapor, madeira para as caldeiras e eletricidade. Após o processo de beneficiamento o café era embalado em sacos de estopa ou juta de 60kg, armazenado (armazém ou tulha) e transportado. A questão da mão de obra na lavoura A passagem da mão de obra escrava para a livre se dá paulatinamente e de maneira descontínua nas décadas que precederam a abolição (1888). Segundo Ítalo de Aquino211 esta passagem se deu em três fases: 1) de 1790 a 1847 – predomínio de trabalho escravo; 2) de 1847 a 1888 – conjugação conflituosa de formas de trabalho; 3) a partir de 1888 até 1930 – consolidação do trabalho livre212. De qualquer forma se pode observar da descrição do processo produtivo que houve uma superexploração da mão de obra na lavoura cafeeira. E a partir dessa categorização, no período de nosso estudo prevalecem as duas últimas fases. Ou seja, a transição da escravidão para o trabalho livre e a afirmação dele. 211 Cf. AQUINO. “Apontamentos sobre a história do café em São Paulo: das origens a 1930, pp. 69-70. In: ODÁLIA; CALDEIRA (Orgs.). História do Estado de São Paulo: a formação da unidade paulista. São Paulo: Editora UNESP; Imprensa Oficial: Arquivo Público do Estado, 2010. Volume II, p. 61-82. 212 Cf. WITTER. “Imigrante, um fator de transformação da sociedade brasileira – São Paulo (1850-1914). In: ODÁLIA; CALDEIRA. Op. cit., p. 120-134. 282 A CADEIA MERCANTIL DO CAFÉ PRODUZIDO NO BRASIL ENTRE 1830 E 1929 Durante o processo de transição do trabalho escravo para livre, segundo Renato Marcondes (2005), há uma concentração de escravos na região cafeeira213. Em 1803 eram 162 mil escravos na região – 24% da população; em 1829 eram 235 mil – 29,7%; e em 1854 eram 419 mil – 28%. A descrição desses escravos – a grande maioria era de adultos (entre 15 e 49 anos) e do sexo masculino; e a expressiva concentração de muitos escravos para poucos proprietários (1,5% dos proprietários possuíam 22,4% dos cativos) – confirma sua utilização no trabalho nas grandes fazendas de café (MARCONDES, 2005, p. 152-171). Com o advento a lei de 1850, sobre a proibição do tráfico de escravos, há novos rearranjos internos para atender a região cafeeira. Ocorreu o deslocamento de expressivos plantéis, de regiões em que a economia estava em crise – como é o caso do nordeste, para as províncias em franco desenvolvimento da cafeicultura (MARCONDES, 2005, p. 152 e ss.). Deste modo, na construção da cadeia mercantil do café para esse período se deve incluir os elementos que contribuíram tanto para a obtenção de “novos” escravos – até o advento da lei de 1850, ou pouco depois dela. Refere-se aqui aos produtos utilizados na troca por escravos, como descrito por Pedro Vieira (2010). Trata-se de produtos nacionais como aguardente, fumo e farinha, e internacionais como tecidos, utensílios metálicos e armas. Por outro lado a reprodução da força de trabalho escrava, indispensável quando se observa o deslocamento significativo dela para a região sudeste, também exige alimentos, aguardente e tecidos. Contudo, isso não foi suficiente, exigindo a implementação de políticas particulares e/ou governamentais de imigração para atender às fazendas. O exemplo irrefutável foi a construção da Hospedaria dos Imigrantes em São Paulo, inaugurada em1887, para acomodar cerca de 4 mil imigrantes, por cerca de 8 dias, até eles serem encaminhados para as fazendas de café (WITTER, 2010, p. 119-134). 213 Renato Marcondes refere-se ao Vale do Paraíba fluminense, mineiro e paulista. 283 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Tendo São Paulo como referência, estudiosos da imigração – sobretudo pelos documentos da Hospedaria – puderam quantificar a imigração. No texto “São Paulo: transição demográfica e migrações”, Baeninger e Bassanezi apresentam dados significativos: estima-se que entraram 909.417 imigrantes estrangeiros entre 1887 e 1900, sobretudo italianos, espanhóis e portugueses: em menor proporção, alemães, austríacos, suíços, entre outros (Camargo, 1981). Em 1900, a população estrangeira representava 21% da população total de São Paulo. [...] Entre 1901 e 1920, o Estado recebeu 823.642 imigrantes europeus e mais 584.322 no período 1921-1934. (BAENINGER e BASSANEZI, 2010, p. 157). As mesmas autoras chamam a atenção ainda para o fato de que, “entre 1921 e 1940, o volume de entrada de migrantes brasileiros no estado de São Paulo chegou a superar o de estrangeiros no mesmo período, respectivamente 690 mil e 660 mil” (ODÁLIA; CALDEIRA, 2010, p. 158). Ambas, a imigração e a migração interna foram em sua expressiva maioria para atender aos grandes proprietários rurais, como afirma Paiva em “Políticas de colonização em São Paulo (1890-1945) – Núcleos coloniais e áreas de colonização: subsídios à grande propriedade”, o fracasso das iniciativas colonizadoras implica uma recusa em permitir aos camponeses outra função social além da que foi historicamente preestabelecida pelas elites agrárias, qual seja, superar sua função como trabalhadores para o latifúndio (PAIVA, 2010, p. 117). De fato, o que temos para o período da presente pesquisa é o trabalho intensivo nos cafezais, no início de escravos africanos; depois, deles e de imigrantes (por breves anos no sistema de parceria); depois, de assalariados (com diferentes formas de assalariamento); e por fim de imigrantes e migrantes. Mantendo-se assim as condições necessárias para uma produção em larga escala, e garantindo a acumulação de um lado e a exploração do outro. 284 A CADEIA MERCANTIL DO CAFÉ PRODUZIDO NO BRASIL ENTRE 1830 E 1929 A inserção do elemento mão de obra na cadeia mercantil do café leva à necessidade de se verificar os aspectos para sua manutenção. Assim, seja para os escravos, seja para trabalhadores livres, duas estratégias foram fundamentais: a produção de alimentos e tecidos nas próprias fazendas e o comércio de curtas e longas distâncias para atender a esse mercado. A autoprodução requeria então o plantio de alimentos (principalmente milho e feijão) e de algodão; e o deslocamento de trabalhadores para funções relacionadas a essa produção. As grandes fazendas conseguiam realizar essa diversificação de tarefas, mas às vezes insuficiente, dado seu contingente de trabalhadores. Propriedades sensivelmente menores encontravam dificuldades para deslocar braços dos cafezais. Assim o comércio regional ou mesmo inter-regional foi fundamental no atendimento da subsistência dos trabalhadores. Sobre o comércio interno para atender a essa demanda, Renato Marcondes (2005, p. 144-151) elenca os principais produtos: açúcar, aguardente, arroz, fumo, milho, farinha de mandioca, derivados animais (toucinho, charque e laticínios), gado, carneiros, porcos, cavalos, lenha, carvão, material de construção, produtos têxteis, siderúrgicos, metalúrgicos, artefatos de couro, metais e fibras. Assim, para efeito da elaboração da cadeia mercantil do café é indispensável a alocação de um ou mais elos mercantis internos que atendiam o fluxo de subsistência do complexo cafeeiro. Consequentemente há de se relatar que esse comércio interno exigia tropas de muares e navegação de cabotagem para sua efetivação, portanto outro elemento a ser incluído na referida cadeia mercantil. Antes do consumo final havia ainda a fase de torrefação e moagem, que não era feita no Brasil. Primeiramente a torra era feita pelo próprio consumidor, mas com o desenvolvimento de grandes empresas torrefadoras e da qualidade das embalagens, houve mais facilidade para o consumo; com a venda do produto pronto para o preparo da bebida o consumo cresceu consideravelmente (DELFIM NETTO, 1979, p. 9-10). 285 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Transporte, comércio e consumo Quando se pensa a questão do transporte na cadeia mercantil do café, no período de 1830 a 1929, é preciso dividi-lo em dois momentos distintos, porém complementares. De início o transporte tradicional: tropas de muares, navegação de cabotagem e navios; e o transporte moderno: trens e navios a vapor. As diferenças são muitas, mas certamente a mais significativa para a finalidade mercantil é a relação volume/velocidade desenvolvida. Deve-se notar que a modernização teve efeitos no transporte do próprio café das fazendas até os portos, como também dos produtos nacionais ou não, para as fazendas – inclusive dos próprios trabalhadores até elas. Com a construção das ferrovias a partir de 1867214, a via férrea passa a fazer os trechos mais longos em direção ao porto de Santos. Contudo, os transportes de muares ou mesmo de cabotagem não são completamente suprimidos. Em Santos, da estação ferroviária até armazéns/porto, eram utilizadas carroças e carretões e muitos homens. O custo do transporte foi barateado com a utilização das vias férreas na seguinte proporção215: com muares o gasto era de 440 réis por arroba de café; por trem era de 140 réis. As ferrovias trazem consigo outro elo para o desenho da cadeia mercantil do café: o investimento externo. Elas contaram com o financiamento, a engenharia e o trabalho estrangeiro, sobretudo inglês. Explicita-se aqui outro elo fundamental dessa cadeia: a esfera financeira. Ainda no tocante ao transporte do café até às zonas consumidoras, ressalva-se o desenvolvimento de navios a vapor, nesse período, como fator positivo para as exportações, tanto por sua tonelagem como por sua velocidade. Consequentemente, nas mãos de grandes empresas de transporte capazes desse investimento. O comércio do café, talvez seja o aspecto mais complexo de toda a cadeia mercantil do café. Isso decorre de serem muitos os sujeitos envolvidos formando uma rede de difícil delineamento. 214 Início das atividades da primeira ferrovia em solo paulista a São Paulo Railway. Detalhamento da malha ferroviária, ver Martins (2008, p. 160-172). 215 Cf. PETRATI-TEIXEIRA (2010, p. 239). 286 A CADEIA MERCANTIL DO CAFÉ PRODUZIDO NO BRASIL ENTRE 1830 E 1929 A partir da pesquisa, pode-se fazer uma descrição ainda significativamente imperfeita dessa rede: havia o comissário216 (tratava a compra com os fazendeiros pela porcentagem de 3%); ao receber o café, ele ficava responsável por classificá-lo, de acordo com os tipos, para exportação. Muitas das empresas comissárias tinham seus próprios armazéns. Para depois, através de seus corretores e “zangões”, que trabalham também por porcentagem, negociar os lotes preparados com as grandes firmas exportadoras, hoje predominantemente norte-americanas, ontem alemãs, inglesas, francesas. São essas casas exportadoras as que embarcam, finalmente, o café para o seu destino, isto é, os países importadores. (ARAÚJO FILHO, 1969, p. 148). O processo de comercialização se altera em parte com a criação da Bolsa do Café em Santos (1917), que passa a operar também com negócios futuros. Também a instalação dos “Armazéns Gerais” (1903), para uso dos fazendeiros que não quisessem fazer negócios através dos comissários e preferissem tratar diretamente com os exportadores ou seus corretores, trouxe uma inovação. A comercialização do café passou por fases mais livres e outras com intervenções estatais, de pequeno a grande porte. A Política de Valorização do Café, segundo Caio Prado Jr. (1994, p. 229-231), foi uma forma de atender aos interesses de empresas e banqueiros ingleses. Para Celso Furtado a política de valorização do café foi financiada do exterior217. O processo de comercialização ainda deve ser esclarecido e detalhado, pois o que se intui é que os comissários e corretores muitas vezes eram de empresas exportadoras, ou mantinham vínculos estritos com elas. Tais empresas às vezes também faziam o papel de banco para os fazendeiros, como foi o caso da Brazilian Warrant & Co. Ltd., depois rebatizada como Brazilian Warrant Agency & Finace Co. Ltd. (MARTINS; JOHNSTON, 1992). Esta 216 Para descrição detalhada ver Araújo Filho (1969, p. 147-148). 217 Cf. FURTADO, 1997, p. 186-194; Araújo Filho, no livro Santos, o porto do café (1969, p. 164-166), apresenta detalhes importantes sobre a política de valorização do café. 287 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO empresa passou inclusive a ter fazendas de café. A função financeira, o acesso ao mercado externo e os armazéns lhe permitiam uma função bastante ativa na comercialização do café. A presença de bancos e outras agências financeiras nos negócios do café é um capítulo importante na construção dessa cadeia mercantil, que, dadas as condições desse primeiro esboço, não será desenvolvida no momento218. O mercado consumidor mundial tendeu a crescer ininterruptamente a partir dos anos 20 do século XIX, e as exportações aumentaram em grandes proporções, como se pode ver abaixo. Década Exportações brasileiras de café em milhares de sacas de 60 kg 1821-30 3.178 1831-40 10.430 1841-50 18.367 1851-60 27.339 1861-70 29.103 1871-80 32.509 1881-90 51.631 Fonte: Caio Prado Jr. (1994, p. 160) Na década de 1830-1840, o produto assumiu a liderança das exportações do país, com mais de 40% do total; o Brasil tornou-se, em 1840, o maior produtor mundial de café. Na década 1870-1880, o café passou a representar até 56% do valor das exportações; e no final do séc. XIX representava 65% do valor das exportações, chegando a 70% na década de 1920. Os principais mercados consumidores eram Estados Unidos, França, Grã Bretanha, Alemanha e Itália. Segundo Renato Marcondes as exportações brasileiras no período 1872-3, levando em conta a origem e o destino das exportações de café, tem a seguinte distribuição: 218 Cf. Prado Jr. (1994, p. 222 e seguintes); Marcondes; Hanley (2010, p. 103-131); Silva (1976. p. 29-40). 288 A CADEIA MERCANTIL DO CAFÉ PRODUZIDO NO BRASIL ENTRE 1830 País consumidor Porto de embarque % EUA São Paulo Rio de Janeiro 9,5 51 Alemanha São Paulo Rio de Janeiro 6 25,6 São Paulo 42,6 Rio de Janeiro 8 Grã Bretanha E 1929 Fonte: Marcondes (2005, p. 143) E segundo o mesmo historiador, nesse período o café atingiu a cifra de 94,5% das exportações brasileiras. Configura-se assim não apenas a importância do café para a economia brasileira nesse período, mas a hegemonia desse produto para a economia nacional. Decorre daí uma dependência da economia brasileira em relação à sua exportação. O que leva a políticas de manutenção do processo e inclusive a interferência para sanar possíveis problemas advindos das alterações – sobretudo de preços – de sua comercialização. A chamada “política de valorização de preços” teve algumas edições. Em dada conjuntura enquanto medida regional – foi o caso de São Paulo –, ou mesmo nacional. Tais medidas tentavam sobrepor o preço de mercado, através de estoques reguladores que garantissem o preço considerado adequado. “No período de 1906 a 1910 tinham sido retirados do mercado livre cerca de 8.500.000 sacas” (PRADO JR., 1994, p. 232). E em 1924 “adota-se um largo esquema de valorização permanente.” (ibid., p. 234). Do qual o resultado se conhece pelos 40% dos estoques queimados ou jogados ao mar em consequência da crise de 1929 (MARTINS; JOHNSTON, 1992, p. 58). Segundo Prado Jr. (1994, p. 235), tais estratégias de valorização levaram ao acúmulo de estoques e “os banqueiros e demais interessados internacionais que atrás da cortina manobravam o Instituto [do Café], recolherão da manobra consideráveis proveitos”. A seguir apresenta-se o gráfico com o delineamento da cadeia mercantil do café brasileiro no período 1830-1929, seguindo as indicações de Wallerstein. 289 290 BRASIL EUROPA EUA EUROPA ÁFRICA EUA BRASIL Colheita Cestos Peneiras LEGENDA Desmatamento plantio, carpa e poda Ferramentas Foice Enxadas Animais Lavagem Separação Farinha Aguardente Imigrantes Sacas Transporte Animais Carroças Embarcações Ferrovias Navios Mercadorias para a subsistência dos trabalhadores: milho, feijão, algodão e outros Ensacamento Armas Tecidos Utensílios Beneficiamento Descascamento Catação Brunimento Madeira Mercadorias usadas na troca por escravos Fumo Secagem Escravos Despolpamento Máquinas Engenho Madeira Ferramentas Máquinas Máquinas Animais Roda Ě͛ĄŐƵĂ Outras ferramentas Peneiras Tanques Abanadores e Ventiladores FINANCIAMENTOS C A D E I A M E R C A N T I L D O C A F É (1 83 0 - 1 92 9 ) Consumidores Torrefação Moagem Distribuidores EUROPA EUA Moagem Torrefação Distribuidores Consumidores O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO A CADEIA MERCANTIL DO CAFÉ PRODUZIDO NO BRASIL ENTRE 1830 E 1929 Considerações finais Como se pode observar no percurso apresentado, o estudo detalhado da cadeia mercantil do café oferece subsídios fundamentais para a análise da inserção do Brasil na economia mundial, bem como as inter-relações dessa inserção com os demais processos internos sejam econômicos mesmo, sociais ou políticos. Retoma-se a premissa de Wallerstein de que as análises a partir da perspectiva da Economia dos Sistemas-Mundo exigem a observação de dois subsistemas: o político (Estados nacionais) e o econômico (cadeias mercantis). O esboço da cadeia mercantil do café demonstrou-se extenso, complexo e o gráfico apresentado é apenas uma tentativa de retratá-la de forma global, pois as mudanças constantes não podem ser reveladas em um gráfico. Também deve ser destacado o fato de os aspectos financeiros da cadeia mercatil do café desse período ainda exigirem pesquisa específica. O período de 1830 a 1929 se caracteriza nas análises da Economia Política dos Sistemas-Mundo como o ápice da hegemonia financeira britânica, tornando-se, assim o principal agente fianciador não apenas do processo produtivo do café, como também da infraestrutura a ele correlacionada, como no caso das ferrovias. Por outro lado, a passagem do centro hegemônico da Inglaterra para os Estados Unidos também aparece na cadeia mercantil do café, sobretudo pelo fato de máquinas de beneficiamento utilizadas aqui serem de origem norte-americana e por constituírem-se no principal mercado consumidor. A pesquisa confirma a necessidade de uma análise sistêmica quando se almeja evidenciar as relações econômicas capitalistas, sobretudo as cadeias mercantis. O que permite observar o grau de autonomia de um dado Estado em relação à sua(s) commoditie(s). No caso, a cadeia mercantil do café brasileiro, demonstra que o nódulo dessa cadeia fixado no Brasil – o processo produtivo – não possui a autonomia que outras abordagens poderiam supor. Pode-se afirmar que não havia um controle nacional completo sobre esse nódulo, apesar de uma aparência contrária. Tal limitação decorre do fato de que parte das ferramentas e das máquinas utilizadas no processo de beneficiamento serem importadas e de 291 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO que mesmo para as fabricadas no Brasil eram necessários algum tipo de matéria-prima (como o aço, por exemplo) ou mesmo peças prontas, para sua produção.Também se deve reafirmar o elemento financeiro externo tendo um protagonismo incalculável em relação ao nódulo brasileiro. Por outro lado destaca-se a cadeia mercantil interna para sustentar a produção cafeeira, que ao ser construída irá se espalhar por uma parte considerável do território, demonstrando a integração local proporcionada pela cadeia do café. Ainda se faz necessário sublinhar o fato de que o domínio da exportação por empresas europeias e norte-americanas permitia-lhes o controle sobre o processo produtivo, o que reitera a posição periférica do Brasil na economia-mundo capitalista. Assim, no período estudado, apesar de atingir a condição de maior produtor mundial de café e de este ser um produto com mercado consumidor crescente, não coube ao Brasil a parcela mais significativa dos lucros advindos. Por fim, a questão das alianças políticas entre o Estado e o Capital, como fundamento para o sucesso prolongado da produção cafeeira no Brasil. Dentre elas destacam-se o apoio nas políticas de imigração para atender à demanda por mão de obra e a política de valorização do café, que jogou para o Estado os custos da tentativa de se sobrepor às oscilações do mercado, garantindo em ambos os casos a acumulação de cafeicultores e comerciantes – nacionais ou não. A pesquisa feita aponta para a necessidade de se enveredar mais profundamente nessa discussão, inclusive no que tange ao aspecto financeiro envolvido na cadeia mercantil do café. Há de se dar continuidade a pesquisas de aspectos da cadeia mercantil do café aqui apenas esboçados, para que esta seja mais ampla e profunda. Referências AARAÚJO FILHO, José Ribeiro. Santos o porto do café. Rio de Janeiro: Fundação IBGE, 1969. 292 A CADEIA MERCANTIL DO CAFÉ PRODUZIDO NO BRASIL ENTRE 1830 E 1929 ARRIGHI, Giovanni. O Longo Século XX: dinheiro, poder e as origens Tde nosso tempo. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Editora UNESP, 1996. ARGOLLO, André. Arquitetura do café. Campinas: Editora da UNICAMP; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004. BAENINGER, Rosana; BASSANEZI, Maria Silvia Casagrande. São Paulo: transição demográfica e migrações. In: ODÁLIA, Nilo; CALDEIRA, João Ricardo C. (Orgs.) História do Estado de São Paulo: a formação da unidade paulista. São Paulo: Editora UNESP; Imprensa Oficial: Arquivo Público do Estado, 2010. 3 volumes, Volume 2, p. 153-168. BRAUDEL, Fernand. 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São Paulo: Editora UNESP; Imprensa Oficial: Arquivo Público do Estado, 2010. 3 volumes. 296 CAPÍTULO 9 A mudança institucional em perspectiva histórico-mundial: competição transnacional e propriedade intelectual na agricultura de soja da América do Sul F ELIPE A MIN F ILOMENO 219 Introdução Uma das principais contribuições da Análise dos Sistemas-Mundo tem sido demonstrar que tomar sociedades ou economias nacionais como unidade e/ou objeto de análise pode ser prejudicial à compreensão da mudança social, pois frequentemente os fenômenos sociais que se procura 219 Doutor em Sociologia pela Johns Hopkins University. Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina. Este artigo é baseado na tese de doutorado do autor, intitulada “The Social Basis of Intellectual Property Regimes: Biotechnology in South American Soybean agriculture”, a qual foi realizada com apoio da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e da Comissão Fulbright (EUA) (FILOMENO, 2012a). 297 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO explicar (ou que são usados como fonte de explicação) têm escopo temporal e espacial diverso daquele dos Estados nacionais (WALLERSTEIN, 1996). Um campo de pesquisa em que este problema é flagrante é o estudo da mudança institucional, especialmente na tradição do institucionalismo histórico e crítico, representada por acadêmicos como Barrington Moore Jr., Evelyne Huber, Theda Skocpol e Dietrich Rueschemeyer. Seja em pesquisas que procuram demonstrar as causas da mudança institucional ou em estudos que procuram demonstrar seus efeitos, esta tradição geralmente toma suas variáveis dependentes e independentes como congruentes com os limites dos Estados nacionais. Como exemplo recente do primeiro tipo de estudos, tem-se o volume editado por Mahoney e Thelen (2010), em que uma teoria da mudança institucional é apresentada, tendo como suporte empírico estudos de caso que explicam a transformação de instituições nacionais (o sistema nacional de saúde do Brasil, o sistema de documentação de propriedade fundiária do Quênia, as regras do parlamento dos Estados Unidos etc.). Como exemplo do segundo tipo de estudos, tem-se o volume editado por Chang (2007), em que diferenças em níveis de desenvolvimento econômico nacional são explicadas a partir de diferenças em instituições nacionais. Nestes dois conjuntos de trabalhos, as instituições sociais, suas causas e efeitos são, na maior parte das vezes, tratados como atributos de países. Quando a dimensão internacional é considerada, ela aparece apenas na forma de “choque” ou “contexto” externo, o que, na prática, acaba significando tratar variáveis internacionais como mais um atributo nacional. Assim é, por exemplo, quando Skocpol (1979) afirma que o envolvimento de um Estado nacional em guerras aumenta a probabilidade de ocorrência de uma revolução nacional em seu interior. Embora esta tradição acadêmica tenha oferecido importantes contribuições para a compreensão da mudança institucional, ela é insuficiente para tratar situações em que as relações entre as unidades nacionais estudadas, e/ou entre elas e o sistema histórico-mundial que as mesmas integram, explicam a mudança institucional ocorrida (isto é, situações em que as causas, efeitos e/ou a própria instituição social em estudo são, ao menos em parte, transnacionais). Em termos mais amplos, esta perspectiva “circunscreve 298 A MUDANÇA INSTITUCIONAL EM PERSPECTIVA HISTÓRICO - MUNDIAL a teoria social ao impor um formato nacional sobre processos que podem ser mais bem compreendidos num contexto internacional” (McMICHAEL, 1992, p. 356, tradução livre). Com o objetivo de contribuir para superar esta limitação, apresenta-se neste capítulo um estudo que incorpora três trajetórias nacionais de mudança institucional em um processo histórico-mundial de mudança institucional. Especificamente, a análise apresentada demonstrará que o fortalecimento dos direitos de propriedade intelectual (PI) sobre variedades vegetais observado desde os anos 1990 na agricultura de soja da América do Sul (Argentina, Brasil e Paraguai) constitui a formação, em nível regional, de uma tendência sistêmica de fortalecimento dos direitos de PI iniciada ao redor de 1980 pelos EUA. Mais ainda, será demonstrado que este processo tem sido favorecido pela competição transnacional entre agentes estatais e produtores rurais dos três países por tecnologia e mercados estrangeiros. Neste sentido, tanto relações transnacionais estabelecidas entre atores localizados em diferentes países quanto relações estabelecidas entre eles e o sistema-mundo são utilizadas para demonstrar que aquilo que, à primeira vista, pode parecer um processo nacional de mudança institucional é, em realidade, formativo de um processo histórico-mundial de mudança institucional. Metodologicamente, a formulação deste argumento envolveu uma estratégia conceitualizada por Philip McMichael (1990) como comparação incorporada. Através dela, o pesquisador “progressivamente constrói um todo, como um procedimento metodológico, ao dar contexto a um fenômeno histórico. De fato, o ‘todo’ emerge através da comparação de partes como instâncias de um todo que se forma” (McMICHAEL, 1990, p. 386, tradução livre). No presente estudo, o emprego deste método seguiu a constatação de que Argentina, Brasil e Paraguai apresentam regimes distintos de PI sobre variedades vegetais na agricultura de soja. No Brasil e no Paraguai, os direitos das empresas e institutos de pesquisa que criam novas variedades vegetais foram fortalecidos, com a implicação de que o direito dos produtores rurais de reservar sementes colhidas em seus próprios campos para cultivo futuro foi restringido. Por outro lado, na Argentina, uma proteção mais fraca à PI em variedades vegetais se mantém há anos, com os produtores rurais 299 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO conservando o direito de reservar sementes. Neste país, regras fortalecendo a PI sobre sementes foram criadas, mas não são efetivamente aplicadas; só mais recentemente há indicações de que uma mudança efetiva na legislação naquela direção possa acontecer. Na busca de uma explicação para estas diferenças, os três casos nacionais foram estudados individual e sucessivamente, através de análises narrativas da trajetória de seus regimes de PI sobre variedades vegetais. Ao se estudar o caso argentino, constatou-se que parte de seus condicionantes causais estava nos níveis regional e sistêmico, ou seja, nas interações com atores localizados em outros países. Em seguida, ao se estudar o caso paraguaio, o mesmo foi constatado, e, depois, também no caso brasileiro. Ao final desta sequência de estudos de caso, tinham-se então três narrativas históricas nacionais que apresentavam interseções substanciais, pois parte da explicação da trajetória de cada país estava em suas relações com os outros dois e com o sistema-mundo. Assim, colocando-se estas três histórias nacionais sequencialmente em perspectiva comparada, revelava-se a dimensão transnacional e sistêmica do processo de mudança institucional observado em cada país. À medida que se passava da Argentina para o Paraguai, e depois para o Brasil, era possível não apenas verificar como distintas condições nacionais levavam a distintas instituições nacionais, mas também justapô-las como peças de um quebra-cabeça, o que, ao final, revelava um todo. Neste caso, a totalidade histórico-mundial que se formava através da comparação era o processo regional predominante de fortalecimento da PI em variedades vegetais, integral à tendência sistêmica iniciada em torno de 1980. Esta análise é apresentada abaixo em duas seções. Na primeira, mostra-se como a competição entre países em desenvolvimento e a coerção exercida pelos EUA sobre eles durante negociações internacionais sobre PI contribuiu para a formação de uma tendência sistêmica de fortalecimento da PI envolvendo Argentina, Brasil e Paraguai. Na segunda, mostra-se como a competição entre sojicultores e agentes estatais da Argentina, Brasil e Paraguai por sementes transgênicas patenteadas pela transnacional Monsanto favoreceu a emergência de reformas legislativas e mecanismos de controle 300 A MUDANÇA INSTITUCIONAL EM PERSPECTIVA HISTÓRICO - MUNDIAL que aumentaram o escopo e a eficácia dos direitos de PI sobre sementes na região. Embora na análise da criação de tratados internacionais (seção 2) a importância de relações através de países seja mais clara, o estudo mostrará que também na análise da formação de leis e contratos de abrangência nacional tais relações são fundamentais. A análise que segue é baseada em entrevistas e observações pessoais realizadas pelo autor nos três países, dados quantitativos, documentos oficiais, material jornalístico e literatura acadêmica referente ao tema. Como se viu no parágrafo anterior, relações de coerção e competição através de países são as variáveis enfatizadas neste trabalho como explicativas do processo de mudança institucional estudado. Entretanto, a pesquisa realizada também revelou como distintos padrões nacionais de relacionamento entre o Estado, produtores rurais e empresas de sementes explicam diferenças na constituição da tendência sistêmica de fortalecimento da PI em cada país (em especial, sua celeridade no Brasil e no Paraguai e sua relativa obstrução na Argentina). Este componente doméstico da pesquisa não será apresentado neste capítulo, mas pode ser encontrado em outros trabalhos do autor (FILOMENO, 2011; FILOMENO, 2012b). Portanto, o que se propõe aqui não é a substituição do foco no nível nacional por estudos que focam no nível histórico-mundial, mas uma perspectiva ontológica e metodológica mais complexa, que considere tanto “processos individuais [nacionais] parcialmente autônomos quanto fortes efeitos de interação social causados por [...] estruturas [sistêmicas] criadas coletivamente” (TILLY, 2008, p. 7, tradução livre). O declínio da hegemonia dos Estados Unidos e a tendência sistêmica de fortalecimento dos direitos de propriedade intelectual Segundo Van Grasstek (1990), as potências hegemônicas tornam-se mais interessadas no tema da PI quando sua posição hegemônica na economia 301 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO mundial fica ameaçada. Historicamente, isto acontece em um estágio avançado de seu período hegemônico, quando outros países emergem como ameaças competitivas. Neste momento, a demanda por maior proteção à PI surge como estratégia defensiva de proteção da potência hegemônica contra a erosão de seu domínio econômico internacional. De fato, a perda de competitividade internacional da indústria estadunidense ao longo dos anos 1960 e 1970 gerou uma onda de ressentimento nos EUA contra o “roubo” de PI. A partir do início dos anos 1980, tribunais americanos passaram a favorecer detentores de patentes como nunca antes (CHANG, 2001, p. 4). Mais ainda, o governo dos EUA – atendendo aos interesses de suas corporações transnacionais – passou a demandar, de outros países, reformas legislativas e mecanismos de controle que ampliassem o escopo e a efetividade de direitos de PI. Em 1986, o governo dos EUA colocou a PI como tema a ser incluído na Rodada Uruguai de negociações do GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio) (CHANG, 2001, p. 4). Aos esforços norte-americanos, somaram-se os do Japão, da Comunidade Europeia e do Canadá, formando um grupo que ficou conhecido como “the Quad”. Do lado oposto das negociações, encontrava-se o “Grupo dos Dez” países em desenvolvimento que adotaram uma postura dura de oposição aos países centrais nos temas de serviços, investimento e PI naquelas negociações. Para os governos destes países, direitos de PI não eram um tema de comércio internacional e sua inclusão nas negociações do GATT requeriria uma emenda formal ao acordo (RODRÍGUEZ, 2003, p. 509). Entre estes países, estavam o Brasil e a Argentina. Em reação, o governo dos EUA empregou duas estratégias. A primeira foi iniciar as negociações em um grupo pequeno de países centrais que concordavam com o fortalecimento da PI e com sua inclusão nas negociações do GATT. Novos membros foram incorporados paulatinamente ao grupo à medida que o interesse original dos países centrais se tornava consensual (DRAHOS, 2002, p. 770). A segunda estratégia foi utilizar sanções comerciais como meio de obter concessões dos governos de países em desenvolvimento que se opunham aos EUA em matéria de proteção internacional à PI (CHANG, 2001, p. 4). Seu fundamento 302 A MUDANÇA INSTITUCIONAL EM PERSPECTIVA HISTÓRICO - MUNDIAL legal era a Seção 301 do Trade Act, de 1974, que autoriza o presidente dos EUA a retaliar contra práticas de governos estrangeiros que ameacem o comércio internacional norte-americano. Conjuntamente, estas duas estratégias diminuíram a capacidade dos governos dos países em desenvolvimento de formar uma coalizão contra a Quad e os colocaram como concorrentes no acesso ao mercado de consumo norte-americano (especialmente aqueles que necessitavam de receitas de exportação para solucionar problemas de endividamento externo). Por sua posição contrária à inclusão da PI nas negociações do GATT, a Argentina foi objeto de coerção dos EUA, aparecendo na “lista negra” da Seção 301 de 1989 a 1995 e sendo processada por esta razão em três casos durante o período (RODRÍGUEZ, 2003, p. 511–512). Em 1995, o governo argentino, sob a administração de Carlos Menem, finalmente assinou o adendo ao tratado de criação da Organização Mundial do Comércio relativo à PI – o Acordo sobre Aspectos da Propriedade Intelectual Relativos ao Comércio (TRIPS, na sigla em inglês). As concessões feitas pelo país foram uma resposta à coerção dos EUA e usadas como moeda de troca em demandas por vantagens em outras áreas, como o acesso a mercados internacionais para exportações agrícolas argentinas (RODRÍGUEZ, 2003, p. 510, 514). Em seguimento à assinatura do tratado, o parlamento argentino aprovou uma nova lei de patentes em 1995 (Ley de Patentes de Invención y Modelos de Utilidad), mas que ficou aquém das expectativas dos EUA e de obrigações estabelecidas no TRIPS (FELIX, 2009, p. 581). Por isso, a pressão dos EUA continuou (incluindo uma disputa na Organização Mundial do Comércio) (EDELMAN, 1999, p. 2), até que, em dezembro de 2003, o parlamento argentino aprovou uma nova lei que adaptava a legislação patenteária do país às exigências do governo norte-americano e do TRIPS (FELIX, 2009, p. 582). O Brasil, que ao longo dos anos 1980 tinha se alinhado consistentemente a outros países em desenvolvimento com o objetivo de excluir a PI das negociações do GATT, também sofreu pressão do governo dos EUA na forma de sanções comerciais e, mais sutilmente, de assistência técnica legal na área de PI (HERMANN, 2004). Após a eleição de Fernando Collor de 303 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Mello em 1989, a diplomacia brasileira suspendeu sua oposição aos EUA e o poder executivo enviou ao Congresso Nacional um projeto para uma nova lei patenteária com claro viés de fortalecimento dos direitos de PI. A expectativa do governo era de que a nova lei estimularia investimentos em P&D e daria ao país acesso à tecnologia mais avançada (SCHOLZE, 1998, p. 48–49). Assim, a reforma na legislação de PI era vista como um instrumento na competição internacional por investimentos e tecnologia. Em 1992, o novo presidente Itamar Franco mostrou-se receptivo a demandas de grupos de interesse que se opunham ao projeto de lei enviado por Collor, estimulando o governo dos EUA a impor novas sanções contra exportações brasileiras ao final daquele ano (HERMANN, 2004, p. 80). Isto foi bastante problemático para o Brasil, que naquele momento tentava resolver seu problema de endividamento externo. As novas pressões levaram à assinatura do TRIPS pelo Brasil em 1994. Com a eleição de Fernando Henrique Cardoso naquele ano, o governo brasileiro abandonou a postura mais nacionalista adotada por Franco e retornou à orientação neoliberal iniciada por Collor, o que favoreceu a aprovação de uma nova lei patentária coerente com o TRIPS em 1996 (Lei de Propriedade Industrial). Finalmente, o Paraguai, apesar de ser país signatário do TRIPS, demorou até o ano 2000 para implementar reformas que adaptassem a legislação nacional às obrigações do tratado. Em 1993, uma nova lei de PI já havia sido mencionada no plano de ajuste estrutural financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BRUN, 2010, p. 63), o que sugere o uso de condicionalidades em financiamentos externos na promoção de reformas em PI. Porém, apenas em novembro de 2000 uma nova lei patentária foi aprovada pelo parlamento paraguaio (Ley de Patentes de Invenciónes). Mesmo depois disso, o governo norte-americano continuou a monitorar a postura do país em PI. Por exemplo, em abril de 2008, um acordo bilateral de assistência técnica em PI foi assinado pelos dois governos para promover o fortalecimento dos direitos de PI no Paraguai. O TRIPS tem provisões importantes relativas à PI na biotecnologia agrícola. Os EUA são sede de corporações transnacionais líderes neste setor, 304 A MUDANÇA INSTITUCIONAL EM PERSPECTIVA HISTÓRICO - MUNDIAL como a Monsanto, a DuPont e a Pioneer. Conforme afirmado por Chase-Dunn et al. (2008, p. 1), muitos acreditam que a vantagem competitiva que os EUA ainda têm na biotecnologia pode contribuir substancialmente para o prolongamento da hegemonia econômica norte-americana pelas próximas décadas. Não é surpresa, portanto, que o governo estadunidense tenha pressionado pela inclusão no TRIPS de regras que garantissem a proteção da PI na área de biotecnologia. De fato, o acordo determina que países signatários ofereçam proteção à PI em variedades vegetais através de patentes, de um sistema efetivo sui generis ou de uma combinação de ambos. Na Argentina, a legislação pós-TRIPS permite o patenteamento de micro-organismos e genes, mas não o patenteamento de plantas inteiras. Variedades vegetais podem ser protegidas com “direitos do obtentor”, nos termos da Ley de Semillas y Creaciones Fitogeneticas, de 1973. Esta modalidade de proteção à PI é mais fraca do que as patentes, pois implica três exceções ao direito do obtentor: o direito do produtor rural reservar sementes para uso próprio sem consentimento do ou pagamento ao obtentor da variedade correspondente; o direito dos fitomelhoradores de utilizar variedades vegetais existentes para o desenvolvimento de novas variedades sem consentimento do, ou pagamento ao, obtentor da variedade original; o direito do Estado de declarar certas variedades como de uso público restrito em circunstâncias especiais (como emergência nacional). Hoje, a aplicação da legislação de patentes a variedades vegetais na Argentina ainda é incerta (GUTIÉRREZ; PENNA, 2004, p. 8), especialmente sobre variedades geneticamente modificadas. O fato de a lei de patentes (garantindo PI sobre genes) e a lei de sementes (garantindo direitos do obtentor sobre variedades vegetais) serem aplicadas ao mesmo objeto concreto (a semente) gera inconsistências que têm impedido a utilização de uma proteção dupla a variedades transgênicas baseada nas duas leis (WITTHAUS, 2006). No Brasil, a Lei de Propriedade Industrial permite patentes de microorganismos geneticamente modificados e dos processos biotecnológicos necessários à sua obtenção. Entretanto, o todo ou a parte de organismos vivos não podem ser patenteados. Isto significa que genes não podem ser objetos 305 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO de patenteamento. Variedades vegetais, sementes e animais (incluindo transgênicos) também não podem ser patenteados, pois não são micro-organismos. Porém, a regra legal que permite patentes de processos biotecnológicos de modificação genética também permite que os detentores de tais patentes proíbam terceiros de produzir e comercializar produtos diretamente obtidos através de tais processos. Esta regra tem sido usada para proteger a PI sobre plantas transgênicas, especialmente a soja transgênica “round up ready” (RR), cuja tecnologia transgênica é patenteada pela Monsanto em vários países. Finalmente, no Paraguai, a nova lei de patentes permite o patenteamento de micro-organismos e genes, mas não de plantas ou animais em sua inteireza. Contudo, o TRIPS não é o único, nem foi o primeiro, acordo internacional a versar sobre PI em variedades vegetais. Em 1961, a Convenção Internacional da União para a Proteção de Novas Variedades Vegetais (UPOV) foi criada para promover um sistema efetivo de proteção a variedades vegetais baseado na modalidade de direitos do obtentor. A convenção UPOV foi emendada em 1972, 1978 e 1991. Seguindo a tendência sistêmica de fortalecimento da PI, a ata de 1991 aumentou significativamente a proteção e o escopo dos direitos do obtentor. Por exemplo, a proteção mínima para a maior parte das espécies vegetais foi estendida de 15 para 20 anos, o direito do produtor rural reservar sementes para uso próprio foi tornado discricionário (quando antes era implicitamente assumido), e o conceito de variedade essencialmente derivada foi introduzido. De acordo com este conceito, se uma variedade protegida é utilizada na obtenção de uma nova variedade que seja substancialmente derivada da inicial, o fitomelhorador necessita de autorização do proprietário da cultivar original para comercializar a nova variedade obtida. A ata da UPOV de 1972 inspirou a primeira lei sobre PI em variedades vegetais da América do Sul: a Ley de Semillas y Creaciones Fitogeneticas argentina. A ata de 1991 determinou que países que desejassem participar da UPOV somente assinando a ata imediatamente anterior (a de 1978) teriam até abril de 1999 para fazê-lo. Após este prazo, apenas a ata de 1991 poderia 306 A MUDANÇA INSTITUCIONAL EM PERSPECTIVA HISTÓRICO - MUNDIAL ser assinada. Para evitar adesão à ata mais restritiva de 1991, o Congresso Nacional argentino ratificou em setembro de 1994 a ata de 1978. Do ponto de vista do TRIPS, o regime baseado na lei de sementes argentina é adequado, pois constitui um sistema sui generis de proteção. No Brasil, a ratificação do TRIPS estimulou a criação de legislação específica para a PI em variedades vegetais inspirada pela ata da UPOV de 1978. Em face de pressão dos EUA na forma de sanções comerciais, foi aprovada, em 1997, a Lei de Proteção de Cultivares (VELHO, 1995, p. 9–10), garantindo no Brasil, pela primeira vez, a proteção da PI em variedades vegetais na forma de direitos do obtentor. Para evitar a adesão à ata de 1991, em 1999 o parlamento brasileiro ratificou a ata da UPOV de 1978. Ainda assim, a Lei de Proteção de Cultivares incorporou conceitos da ata de 1991, como o instituto da variedade essencialmente derivada. Segundo Araújo (2010, p. 57), a aprovação da lei também foi motivada pela necessidade de harmonizar a legislação brasileira à dos parceiros do Mercosul, pois já em 1997 todos os membros do bloco, à exceção do Brasil, eram signatários de alguma ata da UPOV e o crescente comércio agrícola intrabloco estimulava a harmonização das normas. Da perspectiva do TRIPS, a Lei de Proteção de Cultivares constitui um sistema sui generis de proteção da PI em variedades vegetais. No caso de cultivos transgênicos, a Lei de Propriedade Industrial (garantindo patentes sobre o processo biotecnológico de inserção de genes em variedades convencionais) e a Lei de Proteção de Cultivares (garantindo direitos do obtentor sobre as variedades vegetais em que os genes são inseridos) têm sido utilizadas combinadamente pela Monsanto e outras empresas para justificar seus direitos e práticas de controle de PI. No Paraguai, uma lei instituindo direitos do obtentor foi aprovada pelo parlamento em 1994 (Ley de Semillas y Protección de Cultivares). Ela foi o resultado do trabalho de uma comissão formada em 1991 pelo Ministério de Agricultura e Pecuária, que contou com a colaboração de Carmen Gianni, coordenadora de PI do Instituto Nacional de Sementes da Argentina (INASE) (SENAVE 2009, p. 50; entrevista com Asociación de Productores de Semillas do Paraguay – APROSEMP, Assunção, Março de 2011). Na 307 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO elaboração da lei, a comissão levou em consideração a legislação paraguaia existente e leis estrangeiras, especialmente as dos países vizinhos com os quais o Paraguai tinha acordos regionais (SENAVE 2009, p. 50). O Tratado para a Liberalização e Expansão do Comércio Regional de Sementes da ALADI (Associação Latino-Americana de Integração), o Tratado de Assunção (do Mercosul), e as atas da UPOV são mencionados na exposição de motivos anexada à lei (SENAVE 2009, p. 45–6). Os legisladores ainda registraram que um dos objetivos da lei era facilitar o acesso de sementes oriundas do Paraguai a mercados estrangeiros (SENAVE 2009, p. 50). Finalmente, também para evitar adesão à ata da UPOV de 1991, o parlamento paraguaio ratificou em 1996 a ata de 1978. Portanto, o processo de formulação da lei de cultivares paraguaia foi fortemente dependente da legislação de países vizinhos e tratados internacionais e, assim como na Argentina e no Brasil, influenciado pela necessidade de acesso a mercados estrangeiros. Em suma, a criação de leis para a proteção da PI em variedades vegetais na Argentina, Brasil e Paraguai na década de 1990 foi parte constituinte de um processo histórico-mundial de mudança institucional desencadeado pelos EUA em reação a pressões competitivas que a própria indústria norte-americana vinha sofrendo. A constituição deste processo no nível regional dos três países em análise envolveu coerção da parte dos EUA e foi favorecida pela falta de cooperação entre governos de países em desenvolvimento durante negociações internacionais e pela competição existente entre eles por acesso a mercados e investimentos estrangeiros. Portanto, foi através desta teia de relações de coerção e competição através de fronteiras nacionais, e não simplesmente a partir de processos políticos domésticos, que foram criadas as leis de patentes e proteção de cultivares na Argentina, no Brasil e no Paraguai. Competição transnacional e propriedade intelectual na agricultura de soja da América do Sul Desde o último quartel do século XX, a agricultura de soja tem se expandido dramaticamente na América do Sul, a ponto de tornar-se uma 308 A MUDANÇA INSTITUCIONAL EM PERSPECTIVA HISTÓRICO - MUNDIAL das principais indústrias da região (ROBINSON 2008, p. 51). Atualmente, Argentina, Brasil e Paraguai são respectivamente, o terceiro, segundo e quarto maiores exportadores de produtos de soja do mundo, perdendo apenas para os EUA. Juntos, os três países foram responsáveis por 97% da produção de soja na América do Sul entre 2008 e 2010 (dados da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação). À medida que se expandiu, a sojicultura também se tornou um espaço para a constituição da tendência sistêmica de fortalecimento da PI na região. Desde que Argentina, Brasil e Paraguai adaptaram suas legislações ao TRIPS e à ata da UPOV de 1978, empresas multinacionais de biotecnologia agrícola, apoiadas pelo governo dos EUA, têm demandado, de governos e produtores rurais dos três países, proteção crescente à PI em variedades vegetais. Um dos principais atores neste campo tem sido a Monsanto, que há vários anos tem abordado diretamente agentes do Estado e produtores rurais da região com diferentes estratégias para obter reconhecimento e proteção mais fortes para seus direitos de PI (especialmente os sobre a tecnologia da soja RR). Por razões que ultrapassam os limites deste capítulo, o sucesso desta empreitada tem sido diferente na Argentina, no Brasil e no Paraguai, porém, mesmo na Argentina, onde a multinacional tem enfrentado maior resistência da parte de sojicultores e do Estado, há indicações de possíveis mudanças na legislação em favor da Monsanto e em direção a um fortalecimento da PI. Uma condição crucial para o sucesso geral da Monsanto na região tem sido a competição entre sojicultores e agências estatais da Argentina, Brasil e Paraguai por acesso a novas tecnologias e investimentos da multinacional em P&D. Em realidade, a competição internacional entre sojicultores foi uma das razões iniciais para a Monsanto demandar maior proteção à PI em sementes na América do Sul. Em Julho de 2000, Tony Anderson – presidente da American Soybean Association, que representa sojicultores dos EUA, declarou que seus concorrentes sul-americanos desfrutavam de vantagens que o governo e o Congresso dos EUA deveriam eliminar o mais rápido possível (LA NACIÓN, 23/07/2000). Ele se referia especificamente ao fato 309 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO de que sojicultores argentinos não pagavam royalties à Monsanto pela soja RR, enquanto os americanos pagam. Não só o Estado argentino nunca reconheceu a patente da Monsanto sobre a tecnologia da soja RR, como a lei de sementes do país autoriza produtores rurais a reservar sementes para uso próprio futuro sem pagamento de royalties. Por isso, para Anderson, sojicultores americanos estariam financiando as atividades de P&D da Monsanto para o benefício de concorrentes que não arcam com sua parte do custo (LA NACIÓN, 23/07/2000). Pressionada em seu país de origem, a Monsanto passou a intensificar seus esforços para obter maior reconhecimento e proteção à PI em sementes na América do Sul. Nas subseções a seguir, são analisados dois momentos em que a competição transnacional entre sojicultores e agências estatais da Argentina, Brasil e Paraguai foi especialmente importante para o fortalecimento dos regimes de PI sobre variedades vegetais na agricultura de soja sul-americana. O primeiro foi entre 2004 e 2005, quando sojicultores do Brasil e do Paraguai submeteram-se a um sistema privado de coleta de royalties implementado pela Monsanto, enquanto exportadores de soja argentinos eram processados pela transnacional na Europa por suposta infração de direitos de PI. O segundo momento começa no final da década de 2000, quando a Monsanto anuncia planos para liberar uma nova variedade de soja transgênica no Brasil e no Paraguai, mas não na Argentina, devido aos conflitos de PI que estavam ocorrendo neste país. Antes, porém, apresenta-se a seguir uma avaliação quantitativa das pressões competitivas que levaram sojicultores e governos a ceder às pressões da Monsanto. O gráfico a seguir mostra a variação da participação da Argentina, do Brasil e do Paraguai na produção mundial de soja de 1975 a 2010. Em termos relativos, todos os três viram suas participações crescerem a cada ano (o que aconteceu principalmente às custas da participação dos EUA), mas em ritmos diferentes (exceto para a Argentina, de 1990 a 1995, e para o Brasil, de 1980 a 1985, quando suas participações diminuíram). 310 A MUDANÇA INSTITUCIONAL EM PERSPECTIVA HISTÓRICO - MUNDIAL Figura 1: Participação na produção mundial de soja: Argentina, Brasil e Paraguai, 1975– 2010 (valores em logaritmo normal) Fonte: cálculo do autor baseado em dados da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação Depois que o cultivo de soja RR foi autorizado pelo Estado na Argentina em 1996, o país recuperou-se de uma diminuição de sua parcela na produção mundial de soja, obtendo um aumento em sua participação de 9.56% (1995) para 12.48% (2000)220. Para o Brasil e o Paraguai, é difícil apontar os efeitos da adoção da soja RR, pois antes deste cultivo ser oficialmente autorizado em meados dos anos 2000, sementes de soja RR vinham sendo trazidas da Argentina e cultivadas ilegalmente nos dois países desde a segunda metade da década de 1990. De qualquer modo, quando o Brasil e o Paraguai autorizaram o uso de soja transgênica, sua parcela na produção mundial de soja havia crescido apenas 17.54% e 0.54% respectivamente de 2000 a 2005 (contra um crescimento de 43% da participação argentina), o que pode ter motivado a autorização do cultivo de soja RR nos dois países. 220 Este aumento também é explicado por fatores outros que a adoção de soja RR, como a expansão da fronteira agrícola e novos métodos de produção. 311 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO Entretanto, o mais importante é que, de 1975 a 2010, a Argentina foi o país cuja participação na produção mundial de soja mais cresceu (20 vezes), o que ajuda a entender porque sojicultores e governantes deste país têm sido os menos sensíveis ao risco de perder competitividade caso empresas estrangeiras se neguem a liberar novas tecnologias no país ou caso empresas locais não invistam o suficiente em P&D por causa da baixa proteção à PI. Por outro lado, o Brasil tem sido o país mais ameaçado pela concorrência de seus vizinhos regionais, os quais têm sido bastante eficazes em se aproximar da fatia brasileira na produção mundial de soja. Logo, é compreensível que sojicultores e agências estatais deste país atribuam maior importância a novas tecnologias que possam garantir a competitividade internacional da sojicultura brasileira e, por isso, sejam mais inclinados a fazerem concessões a empresas estrangeiras de biotecnologia agrícola na forma de maior proteção à PI. Finalmente, o Paraguai, apesar de ter aumentado substancialmente sua parcela na produção mundial de soja, é um país pequeno sem acesso ao mar, portanto, também particularmente carente de tecnologias capazes de aumentar a competitividade de seus sojicultores em relação a seus grandes vizinhos sul-americanos, o que também enseja um fortalecimento da PI no país. Competição transnacional e implantação do sistema de coleta de royalties da Monsanto Em 2001, a Monsanto, que desde 1995 vinha tentando obter uma patente sobre a soja RR na Argentina, foi finalmente derrotada na corte suprema do país. Desde então, há um conflito intermitente entre a empresa, de um lado, e o Estado argentino e sojicultores do outro. Em retaliação à derrota judicial, em 2004 a Monsanto suspendeu suas atividades de pesquisa e comercialização de soja na Argentina. A medida foi seguida de ameaças, da parte da transnacional, de iniciar ações judiciais contra produtores e exportadores de soja da Argentina em países de destino em que a Monsanto tivesse patentes sobre a soja RR. As ameaças se intensificaram no primeiro semestre de 2005, estimulando o secretário de agricultura da Argentina – 312 A MUDANÇA INSTITUCIONAL EM PERSPECTIVA HISTÓRICO - MUNDIAL Miguel Campos – a convocar uma ação concertada dos países do Mercosul em relação ao tema da PI em sementes. Àquela altura, no entanto, organizações de produtores rurais do Brasil e do Paraguai já haviam sido abordadas pela Monsanto para discutir o problema. Assim que o cultivo de soja RR tomou grandes proporções nos dois países e debates sobre sua legalização começaram, a Monsanto foi rápida em demandar compensação financeira pelo uso de sua tecnologia. No Paraguai, sojicultores inicialmente se recusaram a pagar royalties para a multinacional e demorou cerca de um ano e meio até que um acordo entre as duas partes fosse efetivado (entrevista com Cámara Paraguaya de Exportadores de Cereales y Oleaginosas – CAPECO, Asunção, Março de 2011). Em face da relutância dos sojicultores, a Monsanto os advertiu de que poderia cobrar royalties nos portos de destinação da soja paraguaia (LA NACIÓN (Py), 04/02/2005). Como na Argentina, o gene RR nunca foi patenteado no Paraguai, por isso a empresa justificou suas demandas com patentes obtidas na Europa. Estas pressões motivaram as principais entidades do agribusiness paraguaio a apresentarem uma proposta à Monsanto em Setembro de 2004 (entrevistas com APROSEMP, Asociación de Produtores de Soja – APS, e Servicio Nacional de Calidad y Sanidad y de Semillas – SENAVE, Assunção, Março de 2011). Nela, APROSEMP, APS, CAPECO, Coordinadora Agricola del Paraguai – CAP e Federación de Cooperativas de Producción – FECOPROD propunham um mecanismo de coleta de royalties sobre o valor total da produção do sojicultor e efetuada no momento da venda de sua colheita a trading houses ou indústrias moageiras221. Este era exatamente o método de pagamento que vinha sendo demandado pela Monsanto na região. Com ele, a origem das sementes (reservada de colheitas passadas pelo próprio produtor, comprada no mercado formal, ou obtida de fornecedores piratas) é irrelevante, pois a empresa apropria parte do valor total da colheita do produtor. Além disso, o mecanismo elimina na prática o direito do produtor cultivar sem custo sementes reservadas para uso próprio. Por 221 O documento, obtido em pesquisa de campo em Asunção em Março de 2011, é intitulado Acuerdo marco sobre incorporación de biotecnología agrícola e é assinado por APROSEMP, APS, CAP, CAPECO e FECOPROD. 313 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO outro lado, as organizações paraguaias demandavam que 10% da receita da Monsanto com royalties fosse investida em um fundo para o financiamento da P&D em biotecnologia agrícola no Paraguai. Na carta enviada juntamente à proposta, as referidas entidades afirmaram que a biotecnologia é um fator “crítico e essencial” ao desenvolvimento da agricultura paraguaia (p. 1) e que “uma perda na qualidade de nossos produtos decorrente de avanços tecnológicos que se façam disponíveis em outros países afetará severamente nossa economia ao deteriorar nossa competitividade no mercado internacional” (p. 2, tradução livre). Após mais algumas negociações, em 8 de Março de 2005, aquelas entidades apresentaram uma nova proposta a Monsanto222. Nela, APROSEMP, APS, CAPECO, CAP, FECOPROD e UNICOOP afirmavam que sua aceitação do modelo originalmente proposto pela multinacional era válida apenas enquanto suas regras não implicassem desvantagens competitivas para produtores rurais paraguaios. Referência específica foi feita a acordos que eventualmente fossem feitos em outros países do Mercosul, Chile e Bolívia (p. 1). Sua preocupação era provavelmente não assumir obrigações e royalties maiores que aqueles que eventualmente fossem assumidos por sojicultores brasileiros ou argentinos. Estas afirmações, assim como as mencionadas no parágrafo anterior, mostram como as decisões das entidades do setor agrícola paraguaio foram influenciadas pela concorrência transnacional entre sojicultores do Mercosul. Afinal, sua proposta foi aceita pela Monsanto (incluindo a demanda de apoio à P&D local) e royalties foram cobrados já sobre a safra de 2004/5. Os paraguaios foram em breve seguidos pelos brasileiros. Em Março de 2003, a presidência da república, sob o comando de Luís Inácio Lula da Silva, emitiu a primeira medida provisória autorizando excepcionalmente a comercialização de uma safra anual de soja contendo grãos RR cujo cultivo ainda não fora permitido no país. No mesmo ano, a Monsanto enviou carta a sojicultores brasileiros e exportadores advertindo que comercializar soja RR sem pagar royalties poderia levar à retenção do produto em destinações es222 Carta endereçada a Enrique Grazzini e Alberto Barbero (executivos da Monsanto), assinada por APROSEMP, APS, CAP, CAPECO, FECOPROD e Central Nacional de Cooperativas – UNICOOP. 314 A MUDANÇA INSTITUCIONAL EM PERSPECTIVA HISTÓRICO - MUNDIAL trangeiras como resultado de ações judiciais da empresa (IstoÉ DINHEIRO, 25/06/2003). A carta foi alvo de críticas da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (FARSUL), dos Ministérios do Meio-Ambiente e da Casa Civil, e do governo do Estado do Paraná (IstoÉ DINHEIRO, 25/06/2003). Entretanto, em Janeiro de 2004, a Monsanto anunciou um acordo firmado entre a empresa e sojicultores do Rio Grande do Sul para a coleta de royalties, prometendo em troca investir parte da receita em projetos de pesquisa locais (FOLHA ON LINE, 29/01/2004). De fato, em Abril de 2004, a Monsanto e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) assinaram um contrato de cooperação técnica para o desenvolvimento de cultivares de soja adaptadas à geografia brasileira contendo o gene RR. Em suporte às ações da transnacional no país, havia um conjunto de patentes correspondendo a diferentes componentes da tecnologia RR que foram obtidas no Brasil (a primeira emitida em Agosto de 1999 e a última em Abril de 2007) (RODRIGUES, 2009, p. 81-2). Porém, somente em Abril de 2005 a FARSUL aceitou de fato um acordo proposto pela Monsanto, segundo o qual produtores rurais deveriam começar imediatamente a pagar royalties no valor de 1% do valor recebido por saca de soja no momento de venda da colheita a indústrias moageiras ou trading houses (SUL RURAL, abril de 2005). O acordo abriu o caminho para a extensão deste sistema ao resto do país. Segundo um representante da FARSUL, a disponibilidade de tecnologia de ponta tem um custo que precisa ser compensado e os direitos da Monsanto estão fundamentados na legislação brasileira (entrevista, Maio de 2011). Portanto, assim como os paraguaios, os sojicultores brasileiros envolvidos no acordo estavam preocupados em garantir acesso a novas tecnologias. Além disso, tal como no Paraguai, a aceitação do pagamento de royalties foi estimulada pela intenção da Monsanto de apoiar P&D local em biotecnologia agrícola. Em relação à cooperação com a EMBRAPA, um acordo assinado em 2004 determinou que parte dos royalties pagos por sojicultores à Monsanto pelo uso do gene RR em variedades de soja desenvolvidas pela EMBRAPA seria utilizada para financiar projetos da agência. Uma vez que produtores rurais do Brasil e do Paraguai se submeteram às pressões da Monsanto (obtendo concessões na forma de apoio à pesquisa 315 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO local e promessas de acesso a novas tecnologias), ficou difícil para o governo argentino obter apoio efetivo de seus pares do Mercosul na disputa com a transnacional. O conselho de ministros da agricultura do bloco (Conselho Agropecuário do Sul) reuniu-se em Assunção em primeiro de Abril de 2005 para debater o tema. A reunião ocorria no mês após a assinatura do acordo entre organizações paraguaias e a Monsanto e no mesmo mês em que um acordo similar fora obtido com a FARSUL no Brasil. Ao final do evento, os ministros dos países membros apresentaram uma declaração comum (CAS/ RES.01, IV Extraordinária-2005) afirmando que, de acordo com a ata da UPOV de 1978, royalties devem ser pagos apenas no momento da compra de sementes pelo produtor rural e não no momento da venda de sua colheita. Contudo, dias antes da reunião em Assunção, o subsecretário para relações internacionais do Ministério da Agricultura e Pecuária do Brasil – Lino Cólsera – já havia declarado à imprensa que a proposta feita pelo governo argentino de uma postura comum contra a Monsanto ainda precisava ser estudada em cada país, tomando-se em consideração suas próprias leis, e que o governo brasileiro acreditava que royalties deviam ser pagos (AGÊNCIA RURAL, 05/04/2005). Fontes argentinas informaram que os governos do Brasil e do Paraguai retrocederam da posição firmada em Assunção depois de intensa pressão da Monsanto e para evitar prejudicar seu poder de barganha relativamente à multinacional (NEWELL, 2009, p. 43). Portanto, a coerção da Monsanto e a competição intrarregional prevaleceu sobre a iniciativa argentina de cooperação entre os três países, facilitando a implementação de um mecanismo privado de coleta de royalties que implicou um fortalecimento significativo da PI na agricultura de soja da região. Uma nova soja transgênica e os regimes de propriedade intelectual na Argentina, Brasil e Paraguai Em setembro de 2007, a Monsanto anunciou o investimento de US$ 28 milhões em pesquisas no Brasil para o desenvolvimento de uma nova variedade de soja transgênica resistente ao inseto Anticarsia gemmatalis, que 316 A MUDANÇA INSTITUCIONAL EM PERSPECTIVA HISTÓRICO - MUNDIAL ataca lavouras na América do Sul e causa perdas anuais de US$ 300 milhões no Brasil, valor que pode chegar a US$ 1 bilhão se perdas de produtividade forem incluídas (FOLHA ON LINE, 05/09/2007). Na nova variedade, genes de uma bactéria que produz substâncias com propriedades inseticidas (Bacillus thuringienssis – Bt) são adicionados à sequência genética da soja RR, razão pela qual a nova variedade se chama soja RRBt. De acordo com a Monsanto, esta tecnologia aumentará a produtividade das lavouras de 7 a 11% (CORREIO DO POVO, 27/08/2008). Se estas estimativas forem precisas, produtores rurais que não adotarem sementes RRBt tornar-se-ão menos competitivos no mercado mundial de soja. Esta possibilidade tem sido usada pela Monsanto para obter concessões do Estado e sojicultores argentinos nos conflitos sobre PI. Em 2007, Alfonso Alba – presidente da Monsanto do Brasil – afirmou que a empresa decidiu investir na pesquisa da nova variedade no Brasil porque o país demonstrou respeito à PI e que, pela razão oposta, a nova tecnologia não será liberada na Argentina (FOLHA ON LINE, 05/09/2007). Num comunicado à imprensa, de 9 de Abril de 2010, a companhia afirmou que Embora a Monsanto tenha obtido patentes que protegem os novos eventos biotecnológicos [soja RRBt], a data de lançamento na Argentina ainda é incerta, por não contar o país com um sistema eficiente de reconhecimento da propriedade intelectual de tecnologias autógamas que proteja e garanta os investimentos em pesquisa e desenvolvimento das empresas sementeiras e biotecnológicas. Distinta é a situação do Brasil e do Paraguai, já que em ambos países se conta com um sistema eficaz e eficiente de reconhecimento à propriedade intelectual. [...] No Brasil e no Paraguai, espera-se lançar esta tecnologia em 2011.” (MONSANTO, 09/04/2010, tradução livre). Atualmente, a empresa está aguardando que governos de países importadores de soja autorizem a importação de soja RRBt, o que permitirá sua liberação comercial no Brasil e no Paraguai (CISoja, 16/05/2011). Conforme Palucito (2007, p. 12), esta questão é de grande preocupação não apenas para os produtores rurais argentinos, mas para o país como um todo, pois a soja é o principal produto de exportação do país. Ademais, 317 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO entre 2009 e 2010, o Brasil superou a Argentina no número de eventos transgênicos autorizados pelo Estado e em área cultivada com variedades transgênicas. De acordo com fontes da Asociación Semilleros Argentinos – ASA, que representa empresas sementeiras e de biotecnologia agrícola na Argentina, estes fatos tiveram um impacto na posição de organizações de produtores rurais e do governo em matéria de PI na agricultura: ambos tornaram-se um pouco mais favoráveis ao fortalecimento da PI (entrevista em Buenos Aires, Agosto de 2010). Segundo as mesmas fontes, a mudança de opinião foi mais visível da parte do governo: “Eles se perguntaram: O que podemos fazer para que o Brasil não nos ultrapasse?” (entrevista em Buenos Aires, Agosto de 2010, tradução livre). De fato, em Dezembro de 2009, o ministro da agricultura da Argentina, Julián Domínguez, afirmou que o projeto para uma nova lei de sementes será atualizado de modo que o país possa alcançar uma posição mais competitiva vis-à-vis seus vizinhos regionais (LA NACION, 26/12/2009). Em Setembro de 2010, foi a vez do secretário da agricultura Lorenzo Basso afirmar que o governo já havia finalizado um projeto modificando a lei de sementes, o qual seria logo submetido ao Congresso Nacional para garantir que novas tecnologias de sementes cheguem na Argentina ao mesmo tempo em que no Brasil (CADENA 3, 07/09/2010). Em relação aos produtores rurais, fontes da ASA afirmam que, após o anúncio da liberação da soja RRBt no Brasil e no Paraguai, mesmo a Federación Agraria Argentina (FAA) – entidade representante de pequenos produtores e mais fortemente contrária a reformas na legislação de PI – passou a aceitar que o direito dos produtores rurais de reservar sementes para uso próprio seja, de alguma forma, restringido apenas aos pequenos produtores. De fato, durante o seminário Jornada Biotecnología Agraria y Desarrollo Nacional promovido pela FAA em Buenos Aires, em agosto de 2010, o presidente da organização – Eduardo Buzzi – afirmou que “o direito de reservar sementes deve ser mantido para pequenos e médios produtores, e os demais, que puderem pagar, devem pagar, e isto deve ser contemplado pela nova lei [de sementes]” (observação pessoal, Buenos Aires, Agosto de 2010). Apesar disso, Aldo Casella (especialista em PI que colabora com a FAA) afirma que a Monsanto está utilizando a soja RRBt para pressionar a Argentina e 318 A MUDANÇA INSTITUCIONAL EM PERSPECTIVA HISTÓRICO - MUNDIAL que, sendo este um dos principais mercados para sementes de soja, nenhuma companhia abster-se-ia de oferecê-las no país por causa de uma suposta ineficácia do regime argentino de PI sobre variedades vegetais (entrevista, Agosto de 2010). Por outro lado, a Confederación Intercooperativa Agropecuaria (CONINAGRO) – uma das principais organizações do setor rural argentino, representando produtores médios organizados em cooperativas – foi mais clara na adoção de uma postura mais flexível em relação ao direito de reservar sementes para uso próprio: “o direito de reservar sementes com praticamente nenhuma restrição além do produtor ter comprado legalmente a semente original terá de ser eventualmente reconsiderado” (CONINAGRO, 2010, p. 28, tradução livre). De acordo com a entidade, em 2009, negociações entre a ASA e as principais organizações de produtores rurais resultaram num consenso de que as partes concordam em trabalhar juntas para formular um sistema que permita o acesso, incorporação, difusão e uso correto de novos desenvolvimentos biotecnológicos e a geração de novas variedades vegetais que permitam à Argentina continuar a liderar o desenvolvimento tecnológico [...]. Nós entendemos que isto é necessário para manter a competitividade da Argentina no mercado mundial. Com o objetivo de evitar atrasos na incorporação de novas tecnologias que dêem mais competitividade aos produtores. (CONINAGRO, 2010, p. 30). Deveras, recentemente, alguns produtores rurais do noroeste da Argentina assinaram contratos privados com empresas de sementes para obter acesso a novas tecnologias, incluindo a soja RRBt (LA NACION, 20/08/2011). Nos contratos, os produtores abdicam do direito de reservar sementes sem pagar royalties. Por esta razão, tais acordos têm sido fortemente criticados pela FAA. Se, afinal, uma nova lei de sementes fortalecendo direitos de PI sobre variedades vegetais for aprovada na Argentina – aproximando-a do Brasil e do Paraguai – a Monsanto terá novamente conseguido mobilizar a concorrência transnacional entre sojicultores e agentes estatais do Mercosul a seu favor. Para isto, tem contribuído a falta de cooperação entre as organizações 319 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO de produtores rurais dos três países em matéria de PI. Representantes da Associação dos Produtores de Soja do Mato Grosso (APROSOJA) afirmam que a cooperação com associações rurais da Argentina e do Paraguai neste tema ainda é muito incipiente (entrevista com APROSOJA, Junho de 2010). Representantes da FARSUL afirmam desconhecer a situação atual da Argentina e do Paraguai em disputas e reformas sobre PI em sementes (entrevista com FARSUL, Maio de 2010). Na Argentina, um representante da CONINAGRO especialista no tema afirma existir apenas uma troca ocasional de informações com entidades brasileiras, mas não uma cooperação sistemática (entrevista com CONINAGRO, Buenos Aires, Agosto de 2010). Finalmente, segundo Aldo Casella, a FAA também não desenvolve trabalho colaborativo na área de PI com entidades brasileiras ou paraguaias (entrevista, Agosto de 2011). Enquanto isso, a Monsanto continua a mobilizar a competição entre sojicultores de diferentes países a seu favor. Por exemplo, em Fevereiro de 2010, em evento promovido pela Câmara de Comércio Paraguai-Estados Unidos, um representante da empresa afirmou que o Paraguai deveria acelerar a adoção de biotecnologia, pois o Brasil tomou a liderança neste processo, aumentando a competição nos mercados mundiais (ÚLTIMA HORA, 12/02/2010). Conclusão Se fosse seguida a prática de tomar Estados nacionais como unidades de análise independentes, a explicação das diferenças entre os regimes de PI sobre variedades vegetais da Argentina, do Brasil e do Paraguai teria consistido na identificação de condições nacionais que distinguissem a Argentina dos outros dois países e, portanto, pudessem explicar a persistência de um regime de PI relativamente mais fraco neste país. Embora tal método possa oferecer parte da resposta para o problema em análise (vide, por exemplo, FILOMENO, 2011), aplicado exclusivamente, ele negligenciaria um importante condicionante da mudança institucional observada nos três países: a competição transnacional entre produtores rurais e agências estatais da 320 A MUDANÇA INSTITUCIONAL EM PERSPECTIVA HISTÓRICO - MUNDIAL Argentina, do Brasil e do Paraguai por tecnologia, mercados e investimentos estrangeiros. Mais ainda, tal estratégia metodológica ignoraria que esta competição transnacional (e suas implicações para os regimes de PI dos três países) é formativa de uma tendência sistêmica de fortalecimento da PI, associada ao declínio da hegemonia dos EUA desde os anos 1980. Seguindo a pista oferecida por Van Grasstek (1990), a análise acima mostrou como esta tendência emergiu a partir das relações de competição e coerção estabelecidas entre atores estatais e empresariais de diferentes países, em especial EUA, Argentina, Brasil e Paraguai. A análise também revelou que a Monsanto conseguiu fazer, em nível regional e setorial, o que o governo dos EUA fez em nível internacional: obter concessões de países em desenvolvimento concorrentes através de ameaças de exclusão de acesso a mercados e tecnologias, e preferindo negociações bilaterais, ao invés de multilaterais, para reduzir o poder de barganha e possibilidades de cooperação daqueles países. Esta estratégia de “dividir para conquistar” levou à reprodução, na agricultura de soja da América do Sul, da tendência sistêmica de fortalecimento da PI iniciada pelos EUA. Entretanto, o resultado final deste processo transnacional de mudança institucional dependerá de ações a serem tomadas pelos governos e organizações de produtores rurais do Mercosul, especialmente na Argentina, onde um regime de PI relativamente mais fraco ainda é vigente. Isto inclui não somente mobilizações em nível doméstico, mas também a possibilidade de cooperação transnacional entre Estados e associações rurais sul-americanas em matéria de PI. Em vista disto, a conclusão metodológica deste trabalho é que a comparação incorporada, ao permitir a consideração de fenômenos sociais de dimensão histórico-mundial sem ignorar a priori condicionantes de nível nacional ou subnacional, constitui um “happy medium” que “rejeita o a-historicismo de polaridades como o globalismo e o localismo, entendendo ambos como campos sociais mutuamente condicionados” (McMICHAEL 1992, p. 352, tradução livre). Ao se passar – na análise histórico-comparativa – de um caso para o outro, pode-se não apenas identificar causas nacionais de efeitos nacionais (como em FILOMENO, 2011), mas também verificar se tais causas e efeitos são realmente nacionais. No presente trabalho, tal estra- 321 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO tégia permitiu ao pesquisador identificar condicionantes histórico-mundiais constituídos por relações entre os casos estudados. Assim, ao mesmo tempo em que se pôde identificar variáveis locais ou nacionais de distinta importância, pôde-se também “descontruir”, ao longo da pesquisa, os Estados nacionais como objetos de análise enquanto se “incorporava” um processo social histórico-mundial (a tendência sistêmica de fortalecimento da PI). No nível ontológico, este método rompe a dicotomia entre o holismo e o individualismo. No primeiro, macroestruturas sociais (como o sistemamundo) são tidas como autorreproduzíveis através do comportamento funcional dos atores que as integram (como Estados nacionais). No segundo, o processo decisório de atores individuais independentes (Estados, empresas, pessoas) é a realidade social básica e única, sendo as estruturas sociais um mero epifenômeno. Aqui, ao contrário, propôs-se uma perspectiva relacional, em que, nas palavras de Charles Tilly, não se excluem de início “processos individuais [nacionais] parcialmente autônomos” nem “fortes efeitos de interação social causados por [...] estruturas [sistêmicas] criadas coletivamente” (TILLY, 2008, p. 7, tradução livre). Afinal, se, conforme Douglass North (1990, p. 3), instituições são as “regras do jogo em uma sociedade”, é importante reconhecer analiticamente que o “campo” em que este jogo acontece é construído pelos próprios jogadores em múltiplos níveis de interação, que não correspondem necessariamente a uma “sociedade nacional” ou a um “sistema-mundo” reificados a priori. Referências AGÊNCIA RURAL. “Argentina envolve Brasil na briga com a Monsanto.” 5 abr. 2005. Disponível em: <http://www.agrural.com.br/index.php?option=com_co ntent&task=view&id=448&Itemid=233>.Acesso em: 11 maio 2011. ARAÚJO, José Cordeiro de. 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