nova competência da justiça do trabalho - Anamatra
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nova competência da justiça do trabalho - Anamatra
NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 2ª tiragem 1 2 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 1ª edição — janeiro, 2005 1ª edição — 2ª tiragem — março, 2005 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 3 Grijalbo Fernandes Coutinho Marcos Neves Fava coordenadores NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 2ª tiragem R 4 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Nova competência da justiça do trabalho / Grijalbo Fernandes Coutinho, Marcos Neves Fava, coordenadores. — São Paulo: LTr, 2005. Vários autores ISBN 85-361-0658-1 1. Competência (Justiça do trabalho) — Brasil 2. Justiça do trabalho — Brasil I. Coutinho, Grijalbo Fernandes. II. Fava, Marcos Neves. 05-0153 CDU-347.98:331(81) Índice para catálogo sistemático: 1. Brasil: Competência: Justiça do trabalho: Direito 347.98:331(81) Produção Gráfica e Editoração Eletrônica: IMOS LASER Capa: ROGERIO MANSINI Impressão: BOOK (Cód. 3093.2) © Todos os direitos reservados R EDITORA LTDA. Rua Apa, 165 — CEP 01201-904 — Fone (11) 3826-2788 — Fax (11) 3826-9180 São Paulo, SP — Brasil — www.ltr.com.br Março, 2005 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 5 Este livro é dedicado à magistratura do trabalho brasileira, com a certeza de que, preparada e sensível, abraçará competentemente as alterações constitucionais da Emenda n. 45. 6 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 7 Colaboradores Alípio Roberto Figueiredo Cara — Juiz de Direito no Estado de São Paulo. Coordenador das bases de dados do Jurid. Amauri Mascaro Nascimento — Advogado em São Paulo. Professor aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Cláudio Armando Couce de Menezes — Juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região. Cláudio Mascarenhas Brandão — Juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região/BA. Mestrando em Direito pela UFBA. Professor de Direito Processual do Trabalho da UNIFACS — Salvador/BA. Professor de Direito Empresarial da FTE — Salvador/BA. Edilton Meireles — Juiz do Trabalho da 23ª Vara do Trabalho/SSa/Ba. Mestre e Doutor em Direito (PUC/SP). Francisco Rossal de Araújo — Juiz do Trabalho. Mestre em Direito Público (UFRGS). Doutorando em Direito do Trabalho (Universidade Pompeu Fabra — Barcelona). Professor Universitário — graduação e pós-graduação. Pesquisador do CETRA — Centro de Estudos do Trabalho (POA). Grijalbo Fernandes Coutinho — Juiz do Trabalho em Brasília-DF. Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho — ANAMATRA. João Oreste Dalazen — Ministro do Tribunal Superior do Trabalho. Professor Assistente da Universidade de Brasília (UNB). Jorge Luiz Souto Maior — Juiz do Trabalho, titular da 3ª Vara de Jundiaí/ SP. Professor livre-docente de Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (USP). José Affonso Dallegrave Neto — Advogado. Mestre e Doutor em Direito pela UFPR. Professor da APEJ e da FIC. Professor convidado da Faculdade de Direito de Lisboa. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e da Academia Nacional de Direito do Trabalho. José Eduardo de Resende Chaves Júnior — Juiz do Trabalho, titular da 21ª Vara de Belo Horizonte. Doutorando em Direitos Fundamentais, pela Universidad Carlos III de Madrid. 8 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO José Hortêncio Ribeiro Júnior — Juiz do Trabalho Substituto do Eg. Tribunal Regional do Trabalho da 23ª Região. Presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 23ª Região — AMATRA XXIII. Especialista em Direito Processual do Trabalho e Direito Processual Civil. Vice-diretor da Escola Judicial do TRT da 23ª Região. Coordenador e Professor do Curso Preparatório à Magistratura do Trabalho de Mato Grosso. Professor de Direito Processual do Trabalho no IELF — SP e da Escola Superior de Direito de Mato Grosso. Júlio César Bebber — Juiz do Trabalho Titular da 2ª Vara do Trabalho de Campo Grande — MS. Professor de Direito Processual do Trabalho da Escola da Magistratura do Trabalho de Mato Grosso do Sul. Mestre em Direito do Trabalho. Leonardo Dias Borges — Juiz Titular da 18ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro. Márcio Túlio Viana — Juiz do Trabalho aposentado. Professor de Direito do Trabalho da UFMG. Marcos Neves Fava — Juiz do Trabalho Substituto na 2ª Região. Mestrando em Direito do Trabalho pela USP. Professor de Processo do Trabalho na Faculdade de Direito da Fundação Armando Álvares Penteado — FAAP. Diretor de Cultura e Ensino da ANAMATRA — Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, no biênio 2003/2005. Mauricio Godinho Delgado — Juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (Minas Gerais). Professor de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da PUC — Minas (Doutorado, Mestrado, Especialização e Graduação). Paulo Luiz Schmidt — Juiz do Trabalho no RS. Vice-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho — ANAMATRA (2003/ 2005). Presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região — AMATRA IV (2004/2006). Reginaldo Melhado — Juiz do Trabalho no Paraná. Professor. Doutor em Filosofia do Direito pela Universidade de Barcelona. Sandra Lia Simón — Procuradora-Geral do Trabalho. Saulo Tarcísio de Carvalho Fontes — Mestre em Direito pela UFPE. Professor da Escola Superior da Magistratura do Trabalho do Maranhão. Juiz do Trabalho Titular da Vara de Chapadinha-MA. Vicente José Malheiros da Fonseca — Juiz Togado de Carreira do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (Belém — Pará). Professor de Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho na Universidade da Amazônia (UNAMA), inclusive em curso de pós-graduação. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 9 Sumário Apresentação ......................................................................................... Grijalbo Fernandes Coutinho e Marcos Neves Fava 11 A reforma do judiciário e a competência da Justiça do Trabalho ......... Alípio Roberto Figueiredo Cara 15 A competência da Justiça do Trabalho para a relação de trabalho ........ Amauri Mascaro Nascimento 24 Algumas questões relativas à nova competência material da Justiça do Trabalho ................................................................................................. Cláudio Armando Couce de Menezes e Leonardo Dias Borges 38 Relação de trabalho: Enfim, o paradoxo superado ............................. Cláudio Mascarenhas Brandão 54 A nova Justiça do Trabalho — Competência e procedimento ............ Edilton Meireles 62 A natureza jurídica da relação de trabalho (Novas competências da Justiça do Trabalho — Emenda Constitucional n. 45/04) ................... Francisco Rossal de Araújo O mundo que atrai a competência da Justiça do Trabalho ................ Grijalbo Fernandes Coutinho 82 122 A reforma do judiciário e os novos marcos da competência material da Justiça do Trabalho no Brasil ............................................................... 148 João Oreste Dalazen Justiça do Trabalho: A justiça do trabalhador? .................................... Jorge Luiz Souto Maior Primeiras linhas sobre a nova competência da Justiça do Trabalho fixada pela Reforma do Judiciário (EC n. 45/2004) ............................. José Affonso Dallegrave Neto 179 191 A Emenda Constitucional n. 45/2004 e a competência penal da Justiça do Trabalho ............................................................................................ 220 José Eduardo de Resende Chaves Júnior Competência laboral — Aspectos processuais .................................. José Hortêncio Ribeiro Júnior 236 A competência da Justiça do Trabalho e a nova ordem constitucional ... Júlio César Bebber 252 10 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO As relações de trabalho sem vínculo de emprego e as novas regras de competência ..................................................................................... 259 Márcio Túlio Viana O esmorecimento do Poder Normativo — Análise de um aspecto restritivo na ampliação da competência da Justiça do Trabalho ........ 276 Marcos Neves Fava As duas faces da nova competência da Justiça do Trabalho ............. Mauricio Godinho Delgado 292 Os direitos sociais do art. 7º da CF — Uma nova interpretação no Judiciário Trabalhista ............................................................................ 306 Paulo Luiz Schmidt Da dicotomia ao conceito aberto: As novas competências da Justiça do Trabalho ............................................................................................ Reginaldo Melhado 309 A ampliação da competência da Justiça do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho .............................................................................. 341 Sandra Lia Simón Acidente de trabalho — Competência da Justiça do Trabalho: Os reflexos da Emenda Constitucional n. 45 ............................................ 356 Saulo Tarcísio de Carvalho Fontes Justiça do Trabalho — Nova competência .......................................... Vicente José Malheiros da Fonseca 375 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 11 Apresentação Este livro é a fotografia do início de uma revolução. Após mais de uma década de debates, de idas e de vindas, aprimorando-se no dialético e sempre imprevisível caminho do processo legislativo, promulgou-se, em oito de dezembro de 2004, a Emenda Constitucional n. 45, que finaliza a chamada “Reforma do Judiciário”. Tal reforma não ocorreu isoladamente, porque se seguiu às reformas Administrativa e da Previdência, na busca da reconstrução do Estado Democrático de Direito. O processo foi longo e difícil. O Congresso Nacional e a própria sociedade civil aprenderam com os passos da Reforma, perscrutando e amadurecendo o modelo de Judiciário exigido pelos novos tempos. Inúmeras e substanciais foram as alterações no Poder Judiciário, dentre as quais reverberam a introdução da súmula vinculante e a organização do Conselho Nacional de Justiça, órgão de controle administrativo externo dos Tribunais da República. Quanto às atribuições da Justiça do Trabalho, as mudanças não foram menos radicais. Estrutura-se, a partir da nova ordem constitucional, uma nova Justiça, com atribuições originais e com notória ampliação de sua competência, de acordo com o novel texto do artigo 114 da Carta Política. De plano, a competência da Justiça do Trabalho estendeu-se do julgamento das lides decorrentes dos contratos de emprego para a decisão de todas as que derivem das relações de trabalho. Caminhase da limitada espécie ao amplíssimo gênero, na busca do aproveitamento de sua vocação social e de sua agilidade, correspondentes sonoras dos anseios sociais. Qualquer litígio que decorra do trabalho humano tem, agora, sua solução submetida à apreciação desse ramo do judiciário, promovido, enfim, de “justiça do emprego” a Justiça do Trabalho. O Texto da Emenda, sufragando jurisprudência que já se erigia, esclareceu ser da Justiça Laboral o encargo de decidir todas as questões decorrentes das relações de trabalho, tais como os pedidos de indenização de danos materiais ou morais, os habeas corpus, os habeas 12 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO data e os mandados de segurança, quando versarem sobre matéria de sua competência. Outras questões correlatas ao trabalho foram deslocadas de diferentes esferas do Judiciário para a competência da Justiça do Trabalho, como as lides sindicais, as ações decorrentes dos atos da fiscalização das relações do trabalho e as decorrentes do exercício da greve. Faz-se, com isto, a conjunção da necessidade imperiosa de racionalização do Estado com o proveito da especialização, como homenagem ao princípio esculpido no artigo 37, caput, da Constituição Federal, o da eficiência. Afetos aos descumprimentos das normas da legislação trabalhistas, os Juízes do Trabalho são mais indicados para tratarem das ações que decorram da autuação administrativa dos infratores dessas mesmas normas. Imbuídos da conflituosidade típica do embate entre capital e trabalho, a eles precisam ser entregues as lides decorrentes da atuação sindical, desde sua formação — legitimidade, representatividade, enquadramento sindicais — até o exercício mais eloqüente de sua luta, identificado com a greve. Afeiçoados às características do trabalho, nenhum sentido havia em lhes sonegar as lides resultantes de quaisquer contratos de trabalho, não somente os de emprego. Emerge do novo artigo 114 uma Justiça Social, aparelhada pela Constituição dos instrumentos necessários à proteção do núcleo fundante das relações sociais hodiernas: o trabalho. A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho — ANAMATRA —, completando vinte e oito anos de atuação, participou ativa e relevantemente do processo legislativo de que resultou a Reforma do Judiciário, oferecendo idéias, debatendo propostas, apresentando modelos alternativos, acompanhando incansavelmente os infinitos passos que caracterizam a criação das leis. Seus diretores e associados freqüentaram sessões públicas de debates, interagiram com os parlamentares, produziram documentos, anteprojetos, sugestões de emendas, justificativas, levantamento de dados. A Associação caminhou junto com o povo brasileiro, por todos os degraus do procedimento legislativo, fazendo-se agente do esboço do novo Poder Judiciário. Nem sempre teve suas sugestões acolhidas, como é natural no processo democrático, mas nunca se calou, como é exigível de uma entidade de seu porte. Este livro coroa a primeira fase da ampliação da competência da Justiça do Trabalho derivada da Reforma do Judiciário. Diz-se primeira NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 13 fase, porque concretizar o que foi entabulado no seio dialético da democracia representativa será atividade que se desdobra nas decisões quotidianas, nas audiências, nos despachos, nas sessões de julgamento. Um trabalho ainda maior do que o até aqui desenvolvido, que não tem prazo para se encerrar. Ocupada em propiciar elementos de conformação da nova ordem constitucional aos Juízes do Trabalho e à comunidade jurídica envolvida com as questões laborais, a ANAMATRA, com pressa, organizou a edição do presente livro. Fê-lo em brevíssimo tempo, contando com a capacidade dos autores dos artigos que compõem a coletânea. Mas, antes e além de tal capacidade, contou com a coragem dos que se dispuseram a pronunciarse antes de assentada a poeira da explosão causada pela promulgação da Emenda. Inúmeras obras virão. Os autores dos artigos deste livro, por certo, pronunciar-se-ão outras vezes acerca deste tema, revendo ou confirmando as primeiras idéias que externaram na efervescência dos atos da história. Já fizeram, no entanto, com sua coragem, história. A eles é imensamente grata a ANAMATRA. A eles serão gratos os que trabalham com o direito laboral, porque seus argumentos auxiliarão na construção da nova ordem jurídica. À Editora LTr, que ocupa lugar de histórico destaque no mercado editorial especializado, registra-se o agradecimento da Associação, por encampar o projeto com presteza, competência e profissionalismo exemplares. Augura-se que este material mostre-se proveitoso aos primeiros dias da revolução competencial, estimulando a reflexão, semeando o debate, desenhando o panorama doutrinário exigido pelos novos tempos, tudo em proveito da construção de um novo Poder Judiciário mais eficiente e de uma sociedade cada vez mais justa. ANAMATRA, verão de 2004-2005. Grijalbo Fernandes Coutinho Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho — ANAMATRA Marcos Neves Fava Diretor de Ensino e Cultura da ANAMATRA 6 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 15 A Reforma do Judiciário e a Competência da Justiça do Trabalho Alípio Roberto Figueiredo Cara (*) A competência material da Justiça do Trabalho é estabelecida no art. 114 da Constituição Federal. Antes da reforma instituída pela Emenda Constitucional n. 45, o artigo em comento tinha a seguinte redação: “Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas.” Analisando esse artigo, a doutrina apontava três regras constitucionais referentes à competência material da Justiça do Trabalho: a) Competência material natural ou específica; b) Competência material decorrente; c) Competência material executória. A primeira regra, “competência material específica”, referia-se à competência da Justiça especializada para conhecer e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores. Já a competência material decorrente, nas palavras de Rodolfo Pamplona Filho, era entendida como forma para solucionar controvérsias decorrentes de outras relações jurídicas diversas das relações de emprego, já que “a Justiça do Trabalho só será competente se presentes dois requisitos: a expressa previsão de uma lei atributiva dessa competência e se a relação jurídica derivar de uma relação de trabalho”. Quanto à terceira regra, atribui à Justiça do Trabalho a competência para executar suas próprias sentenças. (*) Juiz de Direito no Estado de São Paulo e Coordenador das bases de dados do Jurid. 16 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO A Emenda Constitucional n. 45, publicada no último dia 31 de dezembro, desmembrou e alterou a redação do artigo 114 da Constituição Federal, in verbis: “Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I — as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; II — as ações que envolvam exercício do direito de greve; III — as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores; IV — os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição; V — os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado o disposto no art. 102, I, o; VI — as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho; VII — as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho; VIII — a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir; IX — outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.” Como se vê na comparação entre a nova e antiga redação, houve profunda modificação, especialmente no que se refere à “competência material natural ou específica”, a qual não se limita mais a tão-somente “conhecer e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores”. Por força da nova redação, essa competência natural passou a abranger “as ações oriundas da relação de trabalho”, inclusive aquelas que envolvam “os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. Não há mais a antiga limitação, exigindo que o dissídio (ou lide) ocorra entre “trabalhadores e empregadores”. Diante disso, em princípio poder-se-iam apresentar como desnecessários e sem sentido o disposto nos incisos VI e IX do mencionado art. 114, aparentemente e de certa forma ignorando regra de hermenêutica no sentido de que a lei não contém palavras inúteis. Ora, se a ação NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 17 visando à indenização, por dano moral ou patrimonial, decorre (ou é oriunda) da relação de trabalho, à evidência que, por força do disposto no inciso I, a competência só poderia ser da Justiça do Trabalho. Parece que aqui a intenção do legislador foi pôr fim à controvérsia sobre o tema existente na jurisprudência. O mesmo se diga quanto ao inciso IX, ao estabelecer a competência para “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei”, pois estar-se-ía repetindo o que já é evidente e assim determina o inciso I, como competência natural. Se antes esse “na forma da Lei” se justificava com a finalidade de resolver, ou melhor, contornar a limitação da competência trabalhista então existente, em conflito com inúmeros casos que envolviam a relação de trabalho, mas tinham como partes pessoas que não se enquadravam como empregadores ou empregados, com a nova redação do inciso I aparentemente esse inciso IX também seria dispensável. Mas, ao que parece, o legislador ou está fazendo distinção entre “ações oriundas da relação de trabalho” e “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho”, que não implique necessariamente em uma ação ou, acolhendo o ditado de que é “melhor prevenir do que remediar”, sua real intenção pode ter sido deixar em aberto à lei ordinária a possibilidade de ampliar ainda mais a competência da Justiça do Trabalho, havendo necessidade específica. Mas o ponto de maior polêmica, envolvendo essa recente alteração do artigo 114, a questão da ampliação da competência, já está se fazendo presente em artigos publicados na Internet. Para Grijalbo Fernandes Coutinho (1), Juiz do Trabalho em Brasília, e presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), a nova competência da Justiça do Trabalho passa a ser ampla, alcançando toda e qualquer lide que envolva relação de trabalho: “Havendo relação de trabalho, seja de emprego ou não, os seus contornos serão apreciados pelo juiz do trabalho. Para esses casos, evidentemente, aplicará a Constituição e a legislação civil comum, considerando que as normas da CLT regulamentam o pacto entre o empregado e o empregador. Como conseqüência, a Justiça do Trabalho passa a ser o segmento do Poder Judiciário responsável pela análise de todos os conflitos decorrentes da relação de trabalho em sentido amplo. (1) No artigo “Enfim, Justiça do Trabalho”, publicado in http://www.anamatra.org.br/opiniao/artigos/artigos.cfm, acessada em 20.12.04. 18 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Os trabalhadores autônomos, de um modo geral, bem como os respectivos tomadores de serviço, terão as suas controvérsias conciliadas e julgadas pela Justiça do Trabalho. Corretores, representantes comerciais, representantes de laboratórios, mestres-de-obras, médicos, publicitários, estagiários, contratados do poder público por tempo certo ou por tarefa, consultores, contadores, economistas, arquitetos, engenheiros, dentre tantos outros profissionais liberais, ainda que não empregados, assim como também as pessoas que locaram a respectiva mão-de-obra (contratantes), quando do descumprimento do contrato firmado para a prestação de serviços, podem procurar a Justiça do Trabalho para solucionar os conflitos que tenham origem em tal ajuste, escrito ou verbal. Discussões em torno dos valores combinados e pagos, bem como a execução ou não dos serviços e a sua perfeição, além dos direitos de tais trabalhadores, estarão presentes nas atividades do magistrado do trabalho.” (site da Anamatra) Já para Fernando Henrique Pinto(2), Juiz de Direito da 1ª Vara da Comarca de São Sebastião/SP, as modificações introduzidas pela Emenda Constitucional 45 não autorizam interpretação tão ampliativa quanto à competência, in verbis: “Quanto às modificações da Reforma do Judiciário, existem algumas manifestações, de respeitáveis fontes, no sentido de que a competência para o processo e julgamento de serviços prestados por profissionais liberais, como dentistas, engenheiros e advogados, a seus respectivos clientes, teria sido transferida da Justiça Comum dos Estados para a Justiça do Trabalho. Mas, com todo o respeito, não se consegue enxergar, por maior esforço interpretativo que se faça, onde está escrito que as relações de prestação de serviço, que na verdade são relações de consumo, não de emprego, teriam experimentado essa modificação de competência. Dizem que a mudança ocorreria pela expressão “relação de trabalho”, indevidamente elevada a uma exponencial interpretação ampliativa. Mas, em primeiro lugar, em matéria de competência funcional constitucional, não se admitem interpretações ampliativas dessa magnitude, sob pena de quebra do princípio do Juiz Natural para o pro(2) No artigo “Reforma do Judiciário e Competência da Justiça do Trabalho”, in https:// secure.jurid.com.br/jurid/jurid.exe/carregahtml?arq=detalhe.html&ID=7473, acessado em 7 de janeiro de 2005. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 19 cesso. E em segundo lugar — e o mais óbvio, deve-se lembrar que na redação originária do art. 114 da Constituição Federal sempre existiu, desde 1988, a expressão ‘relação de trabalho’, de modo que não há qualquer novidade”. E continua: “Em síntese, passaram à competência da Justiça do Trabalho, como novidade ou esclarecimento, o processo e julgamento das lides envolvendo servidores estatutários dos entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho, e os dissídios coletivos em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público. Relações entre profissionais liberais ou pessoas jurídicas prestadoras de serviço e seus clientes permanecem com a natureza de consumo, não de trabalho, até que lei posterior eventualmente diga o contrário.” Com a devida vênia, a reforma pode até não ter ampliado a competência da Justiça do Trabalho tanto quanto sustentado pelo ilustre Presidente da Anamatra, porém, no meu entender, tampouco foi tão limitada como sustentado pelo não menos ilustre Juiz de Direito. Penso que a questão não se resume a sustentar que a expressão “relação de trabalho” já existia na redação originária, o mesmo ocorrendo com a expressão “na forma da lei”, também já existente, mas agora inserida no inciso IX. O que importa, na verdade, não é o que já existia, mas sim o que deixou de existir, ou seja, a anterior limitação da competência natural aos “dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores”. E é justamente a partir dessa competência primeira e mais relevante, denominada doutrinariamente como “natural ou específica”, é que a questão deve ser enfocada. Parece-me clara a nova redação: “Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I — as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes...”. Assim, pela primeira e específica regra constitucional sobre a competência trabalhista, originando a ação da relação de trabalho, e sem necessidade de qualquer “interpretação ampliativa” a competência, e portanto o Juiz Natural, é da Justiça especializada, ainda que para a decisão da causa o Magistrado do Trabalho tenha que se valer do 20 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Código Civil, Código de Defesa do Consumidor, Código de Processo Civil ou qualquer outro dispositivo de direito material ou processual, até porque, por expressa determinação legal, o direito comum, material ou processual, é “fonte subsidiária do direito do trabalho, naquilo em que não for incompatível com os princípios fundamentais deste” (CLT, arts. 8º e 769). A tal respeito, como escreve Rodolfo Pamplona Filho, “permitindonos um trocadilho, é preciso lembrar que a Justiça é do Trabalho, e não da CLT! Se não for superada a mentalidade retrógrada que pretende ser do Poder Judiciário laboral somente dissídios previstos na Consolidação das Leis do Trabalho, dever-se-ia negar logo, entre outras medidas, o cabimento de ações de procedimentos especiais na Justiça do Trabalho, como, por exemplo, a consignação em pagamento, eis que está prevista somente nos arts. 972/984 do Código Civil e 890/900 do Código de Processo Civil, sem qualquer norma específica no texto consolidado”. Tal entendimento já encontrava suporte também na jurisprudência, antes mesmo da reforma: “EMENTA — Justiça do Trabalho Competência: Constituição, art. 114: ação de empregado contra o empregador visando à observação das condições negociais da promessa de contratar formulada pela empresa em decorrência da relação de trabalho. 1 — Compete à Justiça do Trabalho julgar demanda de servidores do Banco do Brasil para compelir a empresa ao cumprimento da promessa de vender-lhes, em dadas condições de preço e modo de pagamento, apartamentos que, assentindo em transferir-se para Brasília, aqui viessem a ocupar, por mais de cinco anos, permanecendo a seu serviço exclusivo e direto. 2 — À determinação da competência da Justiça do Trabalho não importa que dependa a solução da lide de questões de direito civil, mas sim, no caso, que a promessa de contratar, cujo alegado conteúdo é o fundamento do pedido, tenha sido feita em razão da relação de emprego, inserindo-se no contrato de trabalho”. (Ac. STF — Pleno — MV — Conflito de Jurisdição n. 6.959-6 — Rel. (designado): Min. Sepúlveda Pertence — J. 23.5.90 — Suscte. Juiz de Direito da 1ª Vara Cível de Brasília; Suscdo. Tribunal Superior do Trabalho — DJU 22.2.91, p. 1.259). E ainda: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUÍZOS DE DIREITO E TRABALHISTA. RESÍDUO DE PAGAMENTO. SERVIÇO DE CONSTRUÇÃO CIVIL CONTRATADO POR METRAGEM. COMPETÊNCIA CONS- NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 21 TITUCIONAL DA JUSTIÇA TRABALHISTA QUE NÃO SE RESTRINGE À RELAÇÃO DE EMPREGO. I — Havendo dissenso entre a Justiça do Estado e a Justiça do Trabalho, o pedido e a causa de pedir definem a natureza da lide e, por conseqüência, a competência ratione materiae para dirimi-la. II — O artigo 114 da Constituição Federal não impõe à Justiça do Trabalho atuação exclusiva nas ações versando sobre relação de emprego. Ao contrário, atribui-lhe competência para julgar “...na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho...”. Compete às varas do trabalho conciliar e julgar os dissídios resultantes de contratos de empreitada em que o empreiteiro seja operário ou artífice (CLT, art. 652, a, III). Conflito conhecido e declarada a competência do juízo suscitante. (STJ — CC 32433/MA — Conflito de Competência 2001/0081977-7, Relator(a) Ministro Castro Filho (1119) Órgão Julgador S2 - Segunda Seção — Data do Julgamento 26.9.2001 — Data da Publicação/Fonte DJ 29.10.2001, p. 179 — JBT vol. 56, p. 231, e Jurid XP Biblioteca Jurídica Digital, 11ª edição, setembro/outubro 2004). No corpo do primeiro Acórdão acima mencionado, ressalta o relator: “Para saber se a lide decorre da relação de trabalho não tenho como decisivo, data venia, que a sua composição judicial penda ou não de solução de temas jurídicos de direito comum, e não, especificamente, de direito do trabalho. O fundamental é que a relação jurídica alegada como suporte do pedido esteja vinculada, como o efeito à causa, à relação empregatícia, como me parece inquestionável que se passa aqui, não obstante o seu conteúdo específico seja o de uma promessa de venda, instituto de direito civil”. E nesse mesmo julgamento, em seu Voto lembrou o Ministro Moreira Alves, sobre a competência trabalhista que, em relação a pensões de viúvas de bancários, a Corte Suprema entende que, “embora essas questões versassem sobre direito previdenciário, estavam elas vinculadas ao contrato de trabalho”. Assim, ao que parece, houve sim profunda e relevante alteração na competência trabalhista em razão da matéria, de natureza absoluta e constitucional, pelo que, ante a hierarquia, terá que prevalecer sobre toda e qualquer legislação inferior (e súmulas, até o momento não vinculantes) que disponham de forma diversa. Bom lembrar que, em se tratando de competência absoluta, prevalece o interesse público consistente na obrigatoriedade do julgamento pelo juízo do trabalho, sob pena de nulidade absoluta, não se aplicando o princípio da perpetuação da jurisdição. 22 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Certamente o assunto ainda vai causar muita polêmica, especialmente quanto à competência para julgamento de ações acidentárias; ações que ao mesmo tempo envolvam o conceito de relação de trabalho/ consumo/prestação de serviços; empreitadas (as pequenas já são há muito da competência da Justiça do Trabalho — art. 652, III, da CLT); locação de mão-de-obra; contratos com profissionais liberais; ação de reintegração de posse em caso de comodato instituído concomitantemente e por força de relação de trabalho; ação de despejo, quando a locação for estabelecida em razão da relação de trabalho (sobre esta, vide Lei n. 5.889/73, art. 9º); e, penso, até mesmo ações contra a Previdência Social, em que o autor pede seja declarado o exercício de trabalho sem registro em Carteira, para fins de averbação do tempo de serviço. Dentre algumas das ações citadas, breves anotações a respeito: a) Ações acidentárias. Atribuída atualmente à Justiça Comum estadual por entendimento jurisprudencial do STF (do qual diverge em parte do TST), não parece ser possível manter o entendimento da Corte Suprema, à qual incumbe, como a todos os Magistrados, velar pelo cumprimento da Constituição. Estabelecida a competência constitucional da Justiça do Trabalho, para “as ações oriundas da relação de trabalho”, não se vê como um acidente ou doença ocorridos durante aquela relação poderá deixar de ser julgado pela Justiça especializada, sem flagrante nulidade e até mesmo inconstitucionalidade. Lembre-se que o inciso IX do novo art. 114 permite incluir “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei”, e não excluir o que pelo inciso I do mesmo artigo é estabelecido como competência natural. Assim, decorrendo o acidente da relação de trabalho, a competência é da Justiça especializada. b) Relação de trabalho, relação de consumo, prestação de serviço. Certamente uma das questões mais controvertidas, mas não se pode excluir a priori a competência trabalhista apenas porque haveria necessidade de aplicar-se o CDC. A competência de uma ou outra Justiça poderá variar de acordo com o caso concreto. Ocorrendo uma lide que envolva o que se considera “relação de trabalho” e, ao mesmo tempo, uma “relação de consumo”, penso que caberá o julgamento à Justiça especializada, pois tem competência exclusiva quanto à primeira, mas não se vê impedida de incidentalmente apreciar a segunda, aplicando se necessário o CDC, diante do que dispõe os arts. 8º e 769, da CLT. A Justiça NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 23 Comum, por outro lado, não teria competência para decidir matéria envolvendo a relação de trabalho. Nos casos de relação típica de consumo, v.g., aquisição de uma mercadoria com defeito, não haveria qualquer dúvida quanto à competência da Justiça Comum. A solução só aparecerá quando doutrina e jurisprudência consolidarem o conceito e abrangência das respectivas figuras, especialmente no que toca à “prestação de serviço”. Existe diferença entre esta e uma “prestação de trabalho”? Uma “prestação de trabalho” equivale a uma “relação de trabalho”? Em princípio não parece existir diferença entre a “prestação de trabalho” e a “relação de trabalho” que atrai a competência especial. Antes da reforma a questão até poderia ser resolvida afirmando-se que a prestação de serviço seria de competência da Justiça do Trabalho, desde que estivesse sujeita às leis trabalhistas; e, em caso contrário, a competência seria da Justiça Comum (art. 593 do novo CC), mas após a reforma essa afirmação é de constitucionalidade duvidosa. c) Comprovação de tempo de serviço sem registro em Carteira. A competência era da Justiça Federal e Juízes de Direito, estes sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal (CF, art. 109, § 3º), ante a existência, no pólo passivo, da autarquia federal (CF, art. 109, I). Mas o próprio art. 109, I, estabelece como exceção, entre outras, as causas cuja competência seja da Justiça do Trabalho: “Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: I — as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho.” Assim, resta saber se uma ação visando a comprovar o exercício de trabalho sem registro em carteira pode ser tida como “oriunda da relação de trabalho”, conforme art. 114, I, da CF. Ao meu ver a resposta é afirmativa, já que o objeto da ação é a própria declaração de existência da relação de trabalho que o autor afirma ter existido. Mas existem muitas outras ações que, ao menos em tese, envolvem a “relação de trabalho” e, feitas tais considerações, só resta esperar pelo entendimento dos doutrinadores e principalmente pela jurisprudência, já que as primeiras decisões judiciais a respeito não tardarão. 24 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO A Competência da Justiça do Trabalho para a Relação de Trabalho Amauri Mascaro Nascimento (*) Introdução A Reforma do Poder Judiciário (2004) tem repercussões, e amplas, sobre a competência material da Justiça do Trabalho, de tal modo que surgirão, com toda certeza, inúmeras discussões e, também, divergências a respeito da melhor interpretação a ser dada aos novos dispositivos constitucionais, não só porque o intérprete sempre inicia a sua avaliação, como corretamente ensina Arthur Kaufmann, em Filosofia do Direito, fiel à assertiva de que todo compreender começa com uma pré-compreensão, e que está sujeita a todo tipo de influência sociológica, antropológica, ideológica, jurídica e, até mesmo, de conveniência. Propomo-nos, com essa ressalva, a examinar, numa perspectiva o quanto possível estritamente jurídica, a nova configuração legal da matéria num dos seus aspectos, o da relação de trabalho. Estas observações devem ser recebidas como propostas para um debate que certamente vai se desenvolver por algum tempo e só depois do qual as diretrizes mais seguras poderão ser sentidas . Configuração legal e características A Constituição Federal de 1988 (art. 114) ao fixar a competência da Justiça do Trabalho, declarou: “Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores... e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho...”. (*) Advogado em São Paulo. Professor aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 25 Dispõe o novo texto legal da Reforma do Poder Judiciário (2004): “Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I — as ações oriundas da relação de trabalho, ... IX — outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.” Esse é o novo contexto legal que passa a ser interpretado com a finalidade de encontrar, na comparação com o anterior, os pontos de contato e os de diferença. Questões iniciais para o Juiz A primeira questão, e que influirá no equacionamento das novas diretrizes, ampliando-as ou não, é o significado da expressão relação de trabalho, que tanto pode ser compreendida como indicativa de todo um universo de relações jurídicas ou contratos de atividade nos quais o objeto preponderante do vínculo jurídico é a atividade mesma da pessoa que presta serviços para outra, para uma empresa ou para uma pessoa física, portanto, gênero, como, também, o que não nos parece acontecer, relação de trabalho como sinônimo de relação de emprego. A segunda está na tarefa de separar da relação de trabalho, outras relações que com a mesma não se confundem e que por tal motivo não podem ser enquadradas em seu âmbito, o que leva a discussão para os parâmetros da diferença entre relação de trabalho e relação de consumo, relação de trabalho e mandato ou representação, relação de trabalho e fornecimento, relação de trabalho e compra e venda e tantos outros negócios jurídicos que existem em nosso universo do Direito, tarefa que, tanto quanto a anterior, provocará divergências, repercutindo, diretamente, na atuação prática das Varas do Trabalho diante das questões que serão apresentadas para a solução da natureza jurídica do vínculo que está sendo apreciado, um vez que dessa definição dependerá a admissão ou não da competência da Justiça do Trabalho. Ressalte-se, sob essa perspectiva, que relação de consumo, de acordo com o Código do Consumidor, pode ter como objeto, também, a prestação de serviços, porém neste caso, de acordo com o mesmo diploma legal indicado, prioriza-se como relação de trabalho e não de consumo o vínculo que se enquadrar nessa hipótese. 26 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Com efeito, dispõe o Código do Consumidor, art. 3º, § 2º: “Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.” Questão diferente, e já habitual, será a tarefa do Juiz, diante de relações de emprego controvertidas, ao avaliar as características de cada caso concreto, nele ver se há um vínculo de emprego autêntico encoberto com o figurino de outro contrato por estarem presentes os requisitos da definição de empregado (CLT, arts. 3º e 2º ), ou se não se trata de vínculo empregatício, embora sendo um contrato de trabalho, que também será da sua competência, para, na primeira hipótese, desqualificar a deturpação contratual, e no segundo caso, julgar a questão com base nas leis que regem o respectivo tipo de contrato ou relação de trabalho. A alteração da competência A alteração da competência constitucional material da Justiça do Trabalho pela Reforma do Poder Judiciário quanto aos tipos de vínculos de trabalho que podem ser submetidos à sua apreciação, reside num ponto: a competência que era para dissídios entre trabalhadores e empregadores, passa a ser para ações oriundas da relação de trabalho, não se limitando mais a questões de trabalho contra empregadores, mas de todo prestador pessoa física contra todo tomador do trabalho da pessoa física, o que abrangerá prestações de serviços autônomos, serviços eventuais e outros tipos, mudança que vai exigir algum tempo para que possa ser devidamente assimilada. Pensamos, em linhas gerais, que toda relação de trabalho para a qual a competência agora é da Justiça do Trabalho, deve preencher requisitos básicos: a ) profissionalidade, o que significa que se trata de um serviço prestado profissionalmente e não com outra intenção ou finalidade, pressupondo, portanto, remuneração; b) pessoalidade para significar que o trabalho deve ser prestado por pessoa física diretamente, sem auxiliares ou empregados, porque, neste caso, teríamos na figura do prestador um verdadeiro empregador ; c) a própria atividade do prestador do serviço como objeto do contrato, ou, no caso de resultados contratados pelos serviços, a preponderância destes aspectos, dos serviços, sobre outros, com o que ficariam fora da competência do judiciário trabalhista os contratos de fornecimento e incluídas as pequenas empreita- NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 27 das de serviços; d) a subordinação ou não passa a não definir a competência, porque o judiciário trabalhista será competente em ambos os casos, influindo, se os serviços forem subordinados, para o enquadramento jurídico diante do poder de direção sobre o mesmo exercido, levando-o para a esfera da relação de emprego e se inexistente a subordinação, competente, também, será a Vara do Trabalho, porém para apreciar a questão como prestação de serviços autônomos ou outra; e) a eventualidade ou não, igualmente, passa a não ter importância sob a perspectiva da competência, porque se os serviços forem contínuos ou não eventuais, estar-se-ão no âmbito da relação de emprego, e se forem eventuais estarão na esfera da prestação de serviços eventuais, em ambos os casos competente à Justiça Trabalhista, mudando, apenas o enquadramento jurídico a ser dado ao caso concreto. A experiência não é nova, nem sob a perspectiva do direito comparado, nem internamente em nosso ordenamento jurídico, porque algumas relações de trabalho que não são relações de emprego já vinham sendo julgadas pela Justiça do Trabalho, de modo que, sob esse prisma, o que houve foi uma ampliação e uma inversão de critérios legais, passando a retirar a necessidade de lei especial, antes necessária, para que uma relação de trabalho pudesse ser conciliada e julgada pela Justiça do Trabalho. Em alguns países a jurisdição trabalhista limita-se às questões entre empregado e empregador e em outros, de modo mais amplo, abrangem outras relações de trabalho como o trabalho autônomo, as relações de trabalho para a Administração Pública etc. Na Espanha, a Sala Social da Justiça Ordinária é competente para ações individuais e coletivas de empregados e empregadores entre si, como, também, para dissídios interobreiros. Na Itália, o Código de Processo Civil (art. 409) atribui competência aos juízes que solucionam os dissídios individuais não só em questões de trabalho subordinado, mas, também, nas “relações de agência, de representação comercial e outras relações de colaboração que se concretizem através de uma prestação de trabalho continuado e coordenado, prevalentemente pessoal, ainda que não subordinado”, bem como “às relações de trabalho dos dependentes dos entes públicos que desenvolvam, exclusiva ou prevalentemente, atividade econômica” e para as questões desse mesmo pessoal, ainda que não se trate de ente que desenvolva atividade econômica, mas desde que a lei não atribua competência a outro Juiz. A delimitação da competência da Justiça do Trabalho em outros países apresentou problemas sobre os quais houve certa divergência de 28 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO ordem teórica, embora, no plano operacional, não existisse muita discussão, salvo em um ou outro ponto. É que sendo muitas as relações jurídicas que se entrelaçam com o trabalho em suas diferentes manifestações e inúmeros os conflitos que podem suscitar, desde as diversas relações individuais até as diferentes relações coletivas, dessa diversidade resultaram questões de competência e, mais especificamente, dos tipos de lides que não são atribuídos à sua apreciação. Relação de trabalho e relação de emprego Há diferença entre relação de trabalho e relação de emprego ? De acordo com os modelos teóricos doutrinários, sim. Mais de uma perspectiva pode ser dada à questão. A primeira, que não elucida nossa questão, é a diferença entre contrato de trabalho e relação de trabalho, perspectiva que, para o nosso tema, não é o fundamental, porque a discussão que nesse ponto se trava na doutrina tem a única finalidade de responder duas questões: primeira, se o contrato faz nascer a relação de emprego ou se esta é que é a causa daquele; segunda, o debate entre contratualismo e anticontratualismo, que nada mais é que saber qual é a natureza jurídica do vínculo de emprego, tem natureza contratual ou se tem natureza institucional, não sendo esse o nosso problema. A segunda, que é importante para o nosso tema, é saber se relação de trabalho é o mesmo que contrato ou relação de emprego ou se, ao contrário, é um gênero que compreende todo tipo de relação individual de trabalho de pessoa física para pessoa física ou jurídica excedente da esfera do emprego, e esse é o ponto central. Sabido é que não há apenas um tipo básico de vínculo jurídico de trabalho — entre quem trabalha e o tomador de serviços que nem sempre será empregador quando está sendo beneficiado pelo trabalho de alguém, como a prestação de serviços autônomos, o trabalho temporário, o trabalho eventual, o trabalho avulso, o rural, o doméstico e a empreitada do operário. O direito material do trabalho direcionou-se mais como fenômeno da sociedade industrial, do trabalho prestado para uma organização, como direito dos empregados, mas nunca foi unicamente isso, porque até mesmo para uma organização outros tipos de trabalho ou contratos NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 29 de atividades podem existir não se confundindo com o emprego, tantas são as necessidades que uma organização complexa tem e que procura atender de diferentes modos contratuais. Pode-se, assim, dizer que para uma organização prestam serviços empregados e outros tipos de trabalhadores, coexistindo diversas relações de trabalho com características e configurações próprias, o que ocorre não só para uma organização mas, também, para pessoas físicas nos atos da sua vida rotineira. O direito processual do trabalho não pode deixar de acompanhar, no Brasil, essa força expansionista quanto à competência jurisdicional para as questões de trabalho. Há uma lógica comparativa entre o direito do trabalho, que abrange não só o empregado, mas outros tipos de trabalho, e o direito processual do trabalho ao definir a competência da jurisdição trabalhista não só para questões de empregados, mas de outros tipos de trabalho. Nessa perspectiva fica melhor compreendida a diferença entre relação de trabalho, como gênero, e relação de emprego, como espécie, e as novas diretrizes constitucionais que abrem as portas da jurisdição trabalhista para aquela, sem prejuízo da continuidade das suas atribuições para a solução destas que continuarão sob o manto da sua proteção. Princípio da competência específica e princípio da competência derivada Parece-nos, assim, que os novos princípios constitucionais podem ser resumidos do seguinte modo: a) primeiro é o princípio da competência específica, que se traduz na atribuição à Justiça do Trabalho, do poder para conhecer e decidir as ações oriundas de relações de trabalho que são os dissídios individuais entre trabalhadores e empregadores e as demais relações de trabalho, assim consideradas aquelas em que uma pessoa física presta serviços a uma pessoa jurídica ou física, mediante as formas contratuais previstas em nosso ordenamento jurídico; b) mediante lei infraconstitucional, segundo o princípio da competência decorrente, solucionar as demais controvérsias que resultem de relações de trabalho, o que exigirá uma reforma da legislação trabalhista. O saudoso Min. Orlando Teixeira da Costa já sustentava: “Ante o Texto Constitucional de 1988, não há dúvida que qualquer litígio entre trabalhadores e empregadores pode ser objeto de apreciação pela Justiça 30 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO do Trabalho, pois a Lei Magna equiparou, para fins processuais, a simples relação de trabalho aos contratos individuais de trabalho. Aliás, face a essa redação, a Carta Política chegou a ser redundante, quando, mais adiante, insistiu, de modo tradicional, que, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho também seriam objeto da competência da Justiça do Trabalho. Estabelecido que a competência seria para conciliar e julgar litígios decorrentes da relação de trabalho e não apenas de relação de emprego, não havia necessidade da especificação final, no caput do art. 114”. Não se diga que o Juiz do Trabalho não pode aplicar o Código Civil, porque se assim fosse não poderia condenar alguém a pagar indenização de dano moral a outra pessoa, não poderia decidir questões de pequenas empreitadas, não aplicaria as disposições legais sobre defeitos dos negócios jurídicos, assim por diante. Logo, o que acontecerá será uma ampliação, mas não uma inovação em sua possibilidade de aplicar a lei comum que já faz subsidiariamente. O Código Civil rege os contratos de prestação de serviços de transporte, de agência ou representação comercial, de corretagem, de fornecimento, de mandato, de administração e de cooperados, atividades prestadas por pessoas físicas de modo continuado ou não. A Justiça do Trabalho agora poderá decidi-las. Não são relações de emprego, mas poderão ser, como tal, com base nos dispositivos que definem o seu conteúdo obrigacional previsto no Código Civil, apreciadas pelo Juiz do Trabalho. Relações de trabalho que não são relações de emprego O Código Civil (art. 1.216) declara que “toda a espécie de serviço ou trabalho lícito, material ou imaterial, pode ser contratada mediante retribuição”. Serão mencionados aqui os principais contratos. Sem apresentar uma relação fechada e definitiva, seguem as que passam a ser expostas. Primeiro, e em maior número, o contrato de prestação de serviços, o trabalho autônomo, por conta própria, relação jurídica regida pelo Código Civil (arts. 593 a 609). Dispõe o Código Civil (art. 593), que a prestação de serviços que não estiver sujeita às leis trabalhistas ou a lei especial reger-se-á pelos seus dispositivos. Com isso, o critério é o da priorizarão da relação de emprego. Ausentes os seus requisitos, então, haverá prestação de servi- NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 31 ços do Código Civil. Os advogados preferem ingressar com processo na Justiça do Trabalho, afirmando que há contrato de emprego mesmo que exista um instrumento escrito de contrato de prestação de serviços. Se a prova demonstrar que não há subordinação, o Juiz negará a existência da relação de emprego. Há casos, no entanto, de inequívoca configuração da prestação de serviços e não da relação de emprego. Exs:. O dentista que faz o tratamento dentário de alguém, o médico que faz a cirurgia do paciente e dele recebe e o consultor que do seu escritório e com plena autonomia presta assessoria eventual a alguém. O poder de direção exercido sobre o trabalho de alguém é fundamental para a definição das duas formas de atividade profissional, inexistente no trabalho autônomo que configura a prestação de serviços do direito civil, presente na relação de emprego do direito do trabalho. Segundo, o contrato de transporte, aquele em que alguém, mediante remuneração, transporta a de um lugar para outro, pessoas ou coisas (CC, art. 730). Ex:. transporte da mudança em caminhão de motorista, transporte de frutas e verduras, o perueiro que, em seu veículo, transporta pessoas do ponto de ônibus, motorista de ônibus escolar, piloto de helicóptero que leva o executivo para uma reunião, taxista que faz corrida em seu automóvel e não recebe o boleto de pagamento que lhe foi dado pela empresa usuária etc. Portanto, a finalidade do contrato de transporte é o deslocamento de uma pessoa ou de uma coisa e o porte ou frete é o preço do transporte pago ao transportador. O transportador pessoa física que trabalha por sua conta será autônomo e não empregado. Porém, se trabalhar continuadamente para outrem sob o seu poder de direção e pelo mesmo remunerado, pode configurar-se relação de emprego, se houver subordinação. Há processos na Justiça do Trabalho nos quais se discute se o fretista rodoviário ou motorista carreteiro — nome dado ao caminhoneiro que ganha por viagem — é empregado ou não. Tudo depende da sua liberdade em exercer a atividade. O tacógrafo destina-se à aferição de velocidade, mas às vezes é argumento utilizado para provar subordinação. A liberdade de contratar carga de retorno, ao contrário, pende para o contrato de transporte. Terceiro, o contrato de agência e distribuição. É o contrato pelo qual alguém comercializa produtos para terceiros (CC, arts. 710 a 721). Ensina Sílvio Venosa, em Direito Civil, vol. 3, que o Código Civil não foi muito claro, mas diferencia agência de distribuição a partir da disponibilidade da coisa em mãos do sujeito. Se a pessoa tem a coisa que comercializa, será distribuidor, caso contrário, será agente. Há, nos meios 32 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO artísticos e de futebol, a figura chamada empresário, do atleta profissional ou do artista, que se encarrega de obter negócios, para o artista shows em que se apresentará, para o atleta a sua transferência de um para outro clube de futebol, mediante uma percentagem, situações que configuram o contrato de agência e não de distribuição. Quarto, a representação comercial. “Exerce a representação comercial autônoma a pessoa jurídica ou a pessoa física, sem relação de emprego, que desempenha, em caráter não eventual por conta de uma ou mais pessoas, a mediação para a realização de negócios mercantis, agenciando propostas ou pedidos, para transmiti-las aos representados, praticando ou não atos relacionados com a execução dos negócios” (Lei n. 4.886, de 1965). O representante comercial é autônomo, trabalha por conta própria, sem subordinação. Mas há vendedores empregados que, também, fazem mediação para realização de negócios. A diferença está no poder de direção sobre a atividade exercida pelo vendedor, inexistente em se tratando de representante comercial autônomo. Nos casos concretos, para se concluir se há ou não o poder de direção, portanto a subordinação, avaliam-se dados como: 1) freqüência na empresa; 2) cumprimento de roteiro de visitas, elaborado pelo próprio vendedor ou por uma empresa para qual as vendas são feitas; 3) presença obrigatória em reuniões; 4) recebimento de ordens diretas; 5) advertências pela execução inadequada do serviço; 6) fiscalização sobre a sua atividade; 7) zona fechada e cadastro de clientes fornecido pela empresa ou pertencentes ao vendedor; 8) exclusividade; 9) despesas da atividade e veículo próprio. Ex:. O ambulante que vende no Viaduto do Chá por conta própria não é empregado, mas se alguém o financia e dirige a sua atividade, ficando com os lucros e pagando uma percentagem, será empregado. Quinto, corretagem. Pelo contrato de corretagem, uma pessoa não ligada a outra em virtude de mandato, de prestação de serviços ou por qualquer relação de dependência obriga-se a obter para a segunda um ou mais negócios, conforme instruções recebidas (CC, arts. 722 a 729). Quem se obriga a obter negócios é o corretor. Há corretagens exercidas por pessoas jurídicas e por pessoas físicas. Quanto a estas, se estiverem configurados os elementos da definição de emprego, haverá relação de emprego. Será comitente ou dono do negócio, aquele que contrata a intermediação do corretor, pagando-lhe uma comissão. A corretagem não é um contrato de atividade. É um contrato de resultado. Só haverá o pagamento da comissão se concluído o negócio. Há corretores NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 33 oficiais, como os investidos de ofício público a exemplo dos corretores de mercadorias, de navios, de operações de câmbio, de seguros, de bolsa de valores, e corretores livres. A profissão de corretor de imóveis é disciplinada por lei (Lei n. 6.530, de 1978, privativa de quem tenha título técnico em transações imobiliárias). Questão que surge nos processos trabalhistas é a dos corretores que trabalham para imobiliária, cumprindo horários, plantões, comparecendo diariamente e sob ordens constantes de serviço. Sexto, o contrato de administração. Administradores são os membros do conselho de administração da sociedade anônima e os membros da diretoria, não são empregados, mas mandatários eleitos para o exercício da administração por um período. De acordo com o Enunciado n. 269, do TST, o empregado eleito para ocupar cargo de diretor tem o respectivo contrato de trabalho suspenso, não se computando o tempo de serviço deste período, salvo se permanecer a subordinação jurídica inerente à relação de emprego. Os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções (CC, art. 1.016). Não podem fazer parte do Conselho Fiscal da sociedade limitada os empregados (CC, art. 1.066, § 1º). O contrato social pode permitir administradores não sócios, portanto uma administração de profissionais remunerados para esse fim (CC, art. 1.061). Sétimo, os contratos de cooperados. Cooperativa é uma sociedade prevista pelo Código Civil (arts 1.093 a 1.096) e por legislação especial. Tem peculiaridades. Não é uma sociedade lucrativa. Dispensa o capital social. As quotas de cada cooperado são intransferíveis a terceiros estranhos à sociedade, ainda que por herança. O quorum para as assembléias é fundado no número dos presentes à reunião. Os cooperados são sócios. Há diversos tipos de cooperativas: de crédito, de produção, de consumo e, o que interessa no nosso caso, as cooperativas de trabalho que têm por finalidade o fornecimento de mão-de-obra para empresas. A Constituição brasileira, no art. 174, § 2º, estimula o cooperativismo. A Lei n. 5.764, de 16.12.1971, define a Política Nacional de Cooperativismo, e, no art. 90, dispõe: “Qualquer que seja o tipo de cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados”, diretriz reproduzida pela CLT. O art. 442, parágrafo único dispõe que qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe 34 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO vínculo de emprego entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela. A discussão sobre cooperativas de trabalho ganhou dimensão em razão das práticas abusivas. A experiência foi desastrosa no meio rural com a criação de cooperativas formais, na prática inexistentes, para fraudar a legislação trabalhista. Essa situação levou a Justiça do Trabalho a distinguir situações para coibir a fraude com base no art. 9º, da CLT, segundo o qual é nulo todo ato destinado a desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação da lei trabalhista. Desse modo, se a empresa para a qual os serviços da cooperativa são fornecidos exercer subordinação direta dos seus chefes sobre os cooperados, a Justiça do Trabalho, acionada pelos interessados, poderá declarar relação de emprego direta com a tomadora dos serviços. Ressalve-se que há cooperativas de trabalho que prestam serviços à população, são autênticas e não foram criadas para burlar a lei trabalhista. E as cooperativas são uma forma de organização do trabalho que pode contribuir para a absorção dos excluídos do mercado de trabalho. O que se combate não são as cooperativas, mas a precarização do trabalho por algumas delas. Entretanto, não deixam de ser uma forma de terceirização, de descentralização das atividades da empresa, mas não são ilegais. Oitavo, o arrendamento e a parceria rural. Não há dispositivos sobre esses contratos no Código Civil vigente. O Estatuto da Terra, no entanto, refere-se ao arrendamento rural e às diversas formas de parceria. São contratos de direito agrário. Em princípio, não são regidos pelo direito do trabalho. Todavia, se for acobertada uma relação de trabalho subordinado com um contrato de parceria ou arrendamento, prevalecerá a realidade da relação jurídica, portanto o vínculo empregatício, por força do disposto na CLT, art. 9º, considera nulo todo ato destinado a impedir, desvirtuar ou fraudar a aplicação da legislação trabalhista. Parece-nos que o contrato de fornecimento não é uma relação de trabalho, porque o seu objeto não é a atividade do exercente. É um contrato atípico, não disciplinado pela legislação, pelo qual uma parte se obriga, mediante um preço, a entregar a outra em prestações periódicas, coisas. Segundo Venosa, cuida-se de um contrato que busca o abastecimento ou provisão do fornecido que necessita das coisas de forma constante ou periódica. Fornecedor será o abastecedor e fornecido será o abastecido. O fornecedor pode obrigar-se não só a entregar NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 35 coisas, mas, também, a prestar um serviço. Ex.: fornecimento de câmbios de motor de automóvel para a montadora ou de refeições prontas para a empresa . O fornecimento não configura relação de emprego, porque há autonomia na execução do contrato. Podem surgir problemas trabalhistas quando uma cooperativa é fornecedora de uma empresa. Em princípio, não se tratará de terceirização ilícita, porém, dependendo do grau de autonomia da cooperativa e dos cooperados, pode surgir o vínculo empregatício direto com o tomador, se houver subordinação direta. Quanto ao mandato, é um contrato de representação e não, propriamente, uma relação de trabalho, embora conjugue os dois aspectos, mas como este, a relação de trabalho, meramente secundária em relação àquele, a representação, que é o seu verdadeiro ou principal objeto. A competência da Justiça do Trabalho para decidir outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei (art. 114, IX) O inc. IX, do novo art. 114, tem como correspondente precedente a parte final do caput do revogado art. 114 da CF de 1988 . Comparados os dois textos pela sua redação, verifica-se que a diferença gramatical é pequena. Porém, a diferença substancial é grande, uma vez que para o sistema legal anterior competia à Justiça do trabalho, mediante lei, conhecer outros litígios decorrentes de relações de trabalho, e agora desapareceu a necessidade de prévia e expressa autorização legal para que se aprecie uma relação de trabalho. Foi por tal razão que passou, já no regime anterior, a ser da competência da Justiça do Trabalho decidir pequenas empreitadas, consoante o disposto na CLT, art. 652, a, III, ao definir como de sua competência julgar as questões entre o empreiteiro operário ou artífice e os tomadores dos seus serviços, no que nenhuma inconstitucionalidade configurou-se diante da ressalva constitucional acima citada; as ações de trabalhadores temporários e empresa tomadora e empresa cedente, por força do disposto no art. 19 da Lei n. 6.019, de 1974, salvo quanto a questões entre ambas as empresas, a cedente e a cessionária por se tratar de lide de direito civil entre duas pessoas jurídicas; as demandas de avulsos (CLT, art. 643), aliás, também, porque os seus direitos materiais foram, pela Constituição de 1988, equiparados aos dos empregados na forma do disposto no art. 7º, parágrafo único, da Lei Maior. 36 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Não havia fundamento legal para abrir as portas da Justiça do Trabalho para outras relações de trabalho, salvo se, como no caso de cooperados, a cooperativa fosse mero suporte formal de um verdadeiro vínculo de emprego, caso em que, com base no art. 9º da CLT, concluísse que houve fraude. A competência para outras relações de trabalho era a exceção dependente de autorização legal. Parece-nos que deixa de ser assim quando o caput do novo art. 114 atribuiu o poder de julgar a relação de trabalho à Justiça do Trabalho. Mas, como entender, ao mesmo tempo, competência para a relação de trabalho (caput) e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho? (inc. IX). Entendemos que houve primeiro uma inversão. O que só podia ser julgado em caráter excepcional mediante lei autorizante, passou a não mais depender de uma lei atributiva de competência. Segundo, uma ampliação, porque enquanto antes só podiam ser julgadas, como regra geral, questões entre trabalhadores e empregadores, agora podem ser decididas todas as questões de relação de trabalho, mesmo aquelas cujo pólo passivo do vínculo não venha a ser empregador. E por outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei, o que nos parece viável entender é que, diante da ampliação do quadro da competência para toda relação de trabalho e tendo em vista a amplitude desse quadro, poderá o legislador, a seu critério, ampliar, ainda mais, a competência do Judiciário Trabalhista, por exemplo, no futuro para previdência complementar ou oficial. Uma confusão deve ser evitada quanto a diversos tipos de controvérsias oriundas das relações de trabalho, para as quais não há necessidade de lei autorizando a atuação judicial trabalhista, porque estão enquadradas no conceito amplo de controvérsia oriunda de relação de trabalho, o que dispensa, portanto, a legislação específica necessária para a competência derivada. Vale dizer que há, desde logo, a atribuição plena ao judiciário trabalhista para decidi-las com fundamento no caput do art. 114. É o caso das ações destinadas a julgar se há conduta de boa-fé na negociação coletiva, as ações de repressão à conduta anti-sindical, as ações de anulação de cláusula de contrato coletivo e outras . Como observações finais, ressalte-se que se abre nova e fustigante perspectiva para a Justiça do Trabalho mostrar a sua capacidade para atuar em nosso ordenamento jurídico que não se resume às alterações NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 37 de competência agora ocorridas, mas, também, ao modo como, ao longo do tempo, a jurisdição trabalhista reagirá diante dos desafios que lhe são feitos e que constituem uma oportunidade para mostrar que nela realmente estuda-se, interpreta-se e aplica-se o direito na sua plenitude e não se resolve apenas questões de horas extras, sem dúvida importantes, mas que podem, como outras questões de igual nível, passar por uma triagem conciliatória antes de se tornarem processos judiciais. Oportuno seria, em nosso entendimento, especializar as Varas. A especialização aumenta a produtividade pelo conhecimento mais fácil do especialista sobre a questão que aprecia. Deve ser grande o número de processos na Justiça Comum sobre essas questões e se forem transferidos para a Justiça do Trabalho haverá a necessidade de aparelhar o órgão jurisdicional trabalhista para recebê-las, não só as em curso, se assim for decidido, mas as que ingressarão futuramente, em especial após a reforma sindical. Surgirão problemas de eficácia imediata da lei nova que desafiarão as interpretações, questão de hermenêutica que não pode ser examinada nos limites e com as finalidades do presente estudo. Outra questão é o rito processual a ser adotado para a solução das relações de trabalho regidas pelo Código Civil e julgadas pela Justiça do Trabalho e a resposta, a se repetir o que tem sido feito em relação às empreitadas, ao trabalho temporário e ao trabalho eventual, será a adoção do rito ordinário aplicado a toda reclamação trabalhista. 38 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Algumas Questões Relativas à Nova Competência Material da Justiça do Trabalho Cláudio Armando Couce de Menezes (*) Leonardo Dias Borges (**) I. Introdução Há mais de meio século veio a lume a Consolidação das Leis do Trabalho. Isto ocorreu no ano de 1943, época em que o Brasil vivia sob o império da Constituição de 1937. Nesta ocasião, podemos encontrar a Justiça do Trabalho colocada dentro da Constituição. Todavia, esta Justiça não era considerada como um ramo do Poder Judiciário.(1) (2) Foi somente com o advento da Constituição Federal de 1946 que a Justiça do Trabalho passou a ser integrada ao Poder Judiciário e aos seus juízes foram asseguradas, no plano constitucional, as garantias previstas para as demais magistraturas, como a vitaliciedade, a inamovabilidade e a irredutibilidade de vencimentos. Todavia, a estrutura paritária foi mantida.(3) Como se pode perceber, a integração da Justiça do Trabalho no Poder Judiciário era uma conseqüência natural da evolução histórica dos acontecimentos. A Justiça do Trabalho já possuiu competência para processar e julgar os processos oriundos de questões que envolvessem diaristas e mensalistas da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territóri(*) Juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região. (**) Juiz Titular da 18ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro. (1) O artigo 139 da Constituição Federal de 1937 declarava que “para dirimir conflitos oriundos das relações entre empregadores e empregados, reguladas na legislação social, é instituída a justiça do trabalho, que será regulada em lei e à qual não se aplicam as disposições desta Constituição relativas à competência, ao recrutamento e às prerrogativas da justiça comum”. A Constituição de 1934 também fez menção expressa a Justiça do Trabalho, também, sem considerá-la como um órgão do Poder Judiciário. (2) Como autorizado pelo texto acima, somente em 1941, foi organizada, por meio de lei ordinária, a Justiça do Trabalho, porém, como sugerido pela Constituição de 1937, como órgão não judicial. (3) Dispunha o artigo 94 da Constituição Federal de 1946: “O Poder Judiciário é exercido pelos seguintes órgãos: (...) V — Juízes e tribunais do trabalho”. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 39 os, dos Municípios e das entidades autárquicas, que trabalhassem nas suas organizações econômicas, comerciais ou industriais em forma de empresa, desde que não fossem funcionários públicos ou não gozassem de garantias especiais, até que a Lei n. 1.890, de 13.6.1953, retirou diversas destas questões do âmbito da competência material da Justiça do Trabalho. Diversas matérias relativas ao Instituto de Previdência Social já foram objeto de apreciação da Justiça do Trabalho. A Lei n. 5.638, de 3.12.1970, modificada pela Lei n. 6.825, 22.9.80, passou a atribuir à Justiça Federal Comum a competência para decidir ações trabalhistas em que fossem partes a União, suas autarquias e as empresas públicas federais. O Estatuto do Trabalhador Rural, anterior a Lei n. 4.214, de 2.3.1963, pretendeu instituir um Conselho Arbitral para dirimir as questões trabalhistas.(4) Como se vê, estes são alguns exemplos de que a competência material da Justiça do Trabalho foi se perdendo na linha do tempo. Ocorre que a história mais uma vez demonstrou que todas as questões que envolvem, direta ou indiretamente, a relação de trabalho — e não apenas a relação de emprego — devem ficar concentradas em um único lugar, sendo este lugar, sem dúvida, a Justiça do Trabalho. A Emenda Constitucional n. 45, promulgada em 8.12.2004, apenas cuidou de realizar um acerto de contas histórico, devolvendo para a Justiça do Trabalho matérias que dela jamais deveriam ter saído, além de ter-lhe acrescido outras tantas questões competenciais. O aumento da competência material da Justiça do Trabalho vem se alargando em termos de interpretação doutrinária e em sede de aplicação jurisprudencial. Se percebe, facilmente, a ocorrência gradativa de ampliação da competência da Justiça do Trabalho. O próprio Tribunal Superior do Trabalho sedimentou a tese ampliativa da competência por meio de diversos Enunciados, como, ad instar, o de número 18 (quadro de carreira); o 189 (abusividade de greve); o 300 (cadastramento do PIS). Além de diversas Orientações Jurisprudenciais, a respeito deste aumento de competência, como nos dá notícia, por exemplo, a Orientação Jurisprudencial n. 26 (complementação de pensão requerida por viúva de exempregado); a n. 138 (competência residual, transposição para o Regime Jurídico Único); a n. 141 (descontos previdenciários e fiscais); a n. 210 (seguro-desemprego); a n. 327 (dano moral). (4) Este Conselho jamais chegou a funcionar. 40 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Se a idéia já foi a de restringir a competência material da Justiça do Trabalho, para limitá-la ao campo apreciativo das relações entre empregados e empregadores, tal visão não mais se sustenta. Não há mais, no atual estágio em que vivemos, justificativa plausível para a manutenção do entendimento no sentido de se considerar a restritividade da Justiça do Trabalho no campo de sua atuação jurisdicional. O legislador vem se mostrando sensível a essa nova realidade. Em termos constitucionais, há pouco(5) tempo tivemos a missão de executar as contribuições sociais previstas no artigo 195, I, alínea a e inciso II, da Constituição Federal.(6) A reforma do Poder Judiciário, conquanto tenha trazido alguns pontos que foram prejudiciais para a magistratura como um todo(7), não há como negar que a Justiça do Trabalho foi a mais prestigiada. A começar pelo acréscimo do número de Ministros do Tribunal Superior do Trabalho(8), o término da discussão acerca da competência para processar e julgar habeas corpus, a manutenção do chamado poder normativo, entre tantas outras questões. Mas o destaque mesmo fica por conta do aumento da competência material da Justiça do Trabalho. Inúmeras matérias que até então eram da competência da Justiça Estadual, como as ações que envolviam a representação sindical, as ações que versavam sobre a relação de trabalho e matérias a ela conexas, agora fazem parte da Justiça do Trabalho. Questões processadas na Justiça Federal comum passam para a Justiça do Trabalho, como as execuções fiscais trabalhistas, seus mandados de segurança e as ações declaratórias de negação do débito.(9) É preciso, todavia, se ter cuidado com algumas questões, que, com certeza, trarão inicialmente mais dúvidas, mais perplexidades do que soluções; entretanto, o tempo cuidará de colocar tudo em seu devido lugar. (5) Isso se deu por força da Emenda Constitucional n. 20, de 15.12.1998. (6) Não importa, neste passo, que a intenção tenha sido apenas a de arrecadar dinheiro para os cofres públicos, o que merece ser ressaltado é que o legislador entendeu que a Justiça do Trabalho, de todos os ramos do Poder Judiciário, poderia exercer tal mister melhor do que qualquer outra. E, diga-se de passagem, mostrou-se, neste campo, “campeã”. (7) Como o chamado “controle externo” ou a súmula vinculante. (8) De dezessete Ministros voltaram aos vinte e sete que existiam antes do término da representação classista. (9) Frise-se que da Justiça Federal comum já havia saído as execuções fiscais do INSS, por força da EC n. 20/98, como já dito anteriormente. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 41 Para resolver enigmático problema que é o ajuste da competência, faz-se necessário munir os Tribunais e os operadores do direito dos meios necessários para tanto. O uso indiscriminado de ações, que aparentemente são da Justiça do Trabalho e que, em verdade não são, constitui terreno minado, onde com frequência seremos todos vítimas de acidentes, se não estivermos com os equipamentos necessários. Dedicaremos, por conseguinte, algumas poucas linhas para certas questões que estão, até este momento, atormentando inúmeros operadores do direito, como a que trata da utilização ou não do Código de Processo Civil, para as ações que eram de competência da Justiça estadual, o mandado de segurança em primeiro grau de jurisdição, e a incidência da Lei de Execução Fiscal (Lei n. 6.830/80). II. A Consolidação das Leis do Trabalho ou o Código de Processo Civil? A CLT — para ficarmos apenas no campo processual — foi ideologicamente construída para buscar o equilíbrio nas relações jurídicas desiguais. Buscou-se privilegiar o hipossuficiente(10), de modo a lhe possibilitar melhores mecanismos para a reparação de uma lesão a seu direito subjetivo que por ventura lhe tenha sido causado pelo patrão. Assim, facilitou-se o acesso à justiça, sem a necessidade de contratação de advogado; em caso de ausência do “reclamante” o “processo é arquivado”, na ausência do “reclamado” se declara a revelia e a possibilidade de se aplicar a confissão presumida; para recorrer, o “reclamante” nada paga — quando muito, no caso de improcedência de seus pedidos, as custas —; já o “reclamado”, se desejar recorrer, além das custas, ainda necessita efetuar um depósito recursal; o juiz pode promover a execução ex officio, além de tantas outras facilidades no campo processual, em favor do hipossuficiente. O processo civil, ao contrário do que já foi preconizado, pugna pela igualdade(11). Uma das idéias fundamentais que informa todo o processo civil, é aquela cristalizada no princípio da igualdade. Esta é vista com tanta contudência, dentro do sistema processual civil, que o prof. (10) Geralmente o empregado, sendo que atualmente quase sempre é o desempregado. (11) “Art. 125 — O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, competindo-lhe: I — assegurar às partes igualdade de tratamento (...).” 42 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Arruda Alvim dedicou inúmeros tópicos de sua obra a ela. Disse o professor que “em nosso sistema jurídico o principal princípio, o princípio motor é precisamente o da igualdade de todos perante a lei, ao qual se agregam todos os demais que, em conjunto, formam o quadro componente dos princípios constitucionais vigentes”.(12) E mais adiante: “este princípio da igualdade de todos perante a lei se projeta densamente no Código de Processo Civil, como não poderia deixar de ser, dado que se trata de um princípio constitucional ao qual todo o ordenamento jurídico necessariamente está vergado”.(13) Celso Agrícola Barbi também enaltece a igualdade, como forma de um processo civil mais justo.(14) Nesta mesma esteira poderíamos mencionar outros tantos processualistas.(15) Ora, não há como compatibilizar, de modo equiparativo, ideologicamente o processo civil e o processo do trabalho. Tanto isto é fato, que a própria Consolidação das Leis do Trabalho quando admite a aplicação supletória do Código de Processo Civil, exige, entre outros requisitos, a total compatibilidade da norma processual comum. Por conseguinte, pensamos que nas ações cíveis há de ser aplicado o Código de Processo Civil, deixando a Consolidação das Leis do Trabalho para as ações reguladas por ela, CLT. Esse já é o mecanismo utilizado pelos juízes do Estado quando no exercício da jurisdição trabalhista. Dispõe o texto da reforma, nos moldes ideológicos do que já dispunha o anterior, que nas comarcas não abrangidas pela jurisdição trabalhista, esta será exercida pelos juízes do Estado. Ora, é plenamente lógico e racional que eles exerçam a jurisdição trabalhista aplicando a CLT e exerçam a jurisdição cível aplicando o CPC. Qual a dificuldade? Qual o mistério? Mutatis mutandis o raciocínio é o mesmo. Haveremos de continuar utilizando a CLT, para os casos regulados por ela e o CPC, para as ações cíveis. É evidente que alguns tantos problemas, de ordem puramente operacional, surgirão inicialmente. Por exemplo: em caso de decisão interlocutória poderá haver o agravo de instrumento, aviado diretamente (12) Código de Processo Civil Comentado, São Paulo: RT, vol. V, p. 30, 1975. (13) Ob. cit. p. 34. (14) Comentários ao Código de Processo Civil, Rio de Janeiro: Forense, vol. I, 8ª ed., p. 314. (15) Achamos, contudo, desnecessária essa tarefa. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 43 no Tribunal? E os embargos infringentes, como ficam? Os honorários de advogado, deverão ser considerados? O ingresso no Judiciário deverá ser feito por intermédio de preparo, por tabela a ser estabelecida pelo TST? Os autos deverão receber autuação diferente? Não faz sentido aplicar-se a CLT para as ações cíveis. Já imaginaram como ficarão as pautas de audiências!? Se formos aplicar, rigorosamente, a CLT para todas as ações, as contestações (rectius respostas) deverão ser entregues em audiência, designadas para quando? Aí sim, será um verdadeiro caos!? Inúmeras questões serão levantadas inicialmente, como é, naturalmente, de se esperar. Ainda por exemplo: no caso de um autor ingressar com uma ação pretendendo o reconhecimento do vínculo de emprego e seus consectários e, na impossibilidade deste, o pagamento pelas comissões tratadas, já na qualidade de autônomo. Como promover a instrução processual? O advogado vai registrar os seus “protestos” ou vai agravar? Quantas testemunhas serão ouvidas? Seria o caso de indeferimento da inicial por incompatibilidade de pedidos? Este é um pequeno exemplo do que pode ocorrer. Faz parte... De outro lado, se fizermos uma reflexão vamos verificar que em determinadas situações a Justiça do Trabalho já aplica o Código de Processo Civil para as ações, naturalmente, cíveis. É o que acontece, por exemplo, com a ação rescisória. Aplica-se quase que a totalidade das regras procedimentais que constam no Código de Processo Civil, sem que alguém pense que seja um absurdo. No mandado de segurança aplica-se a sua lei, sem qualquer questionamento quanto a isto. Por que não ser assim com as demais ações cíveis? Pensar em sentido contrário significa quebrar a unidade e a harmonia que devem presidir os dispositivos legais vigentes. As normas processuais existem para atender as normas materiais. Logo, o processo do trabalho — assim entendido o que se encontra na CLT — atende ao direito material do trabalho, não podendo deixar de ser diferente com relação às ações cíveis. É verdade que os Cartórios (ou seriam Secretarias?) ainda não estão preparados para o recebimento de tantos processos. É verdade que há falta de funcionários (já havia antes da reforma!). É verdade que em muitas comarcas sequer há espaço físico para tanto papel. Tudo deverá ser devidamente adaptado e preparado, inclusive os próprios Magistrados. Tudo faz parte da nova Justiça do Trabalho. São os novos tempos. Não há como fugir da realidade. Somente recepcioná-la. 44 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO III. O mandado de segurança Em sua nova redação, o artigo 114, no inciso IV, passa a autorizar a impetração de mandado de segurança quando o ato questionado envolver matéria sujeita à jurisdição trabalhista. Na Justiça do Trabalho, em diversas ocasiões, o mandado de segurança vinha sendo utilizado como sucedâneo recursal, em absoluta desarmonia aos princípios norteadores do sistema trabalhista, mormente em face do princípio da irrecorribilidade das decisões interlocutórias. Alguns justificam tal postura pelo fato de somente ser cabível o mandado de segurança contra ato de uma única espécie de autoridade, qual seja, o magistrado. Assim, se este pratica ato abusivo ou ilegal, ainda que tenha este ato natureza de decisão interlocutória, o mandado de segurança seria, então, o único remédio jurídico a ser utilizado, combatendo-se, assim, uma decisão teratológica, com uma interpretação igualmente teratológica do instituto, já que não se pode deixar o cidadão sem resposta para tais situações. Ademais, apenas em face dos atos praticados pelos próprios Juízes do Trabalho conhecia a Justiça do Trabalho o mandado de segurança. A reforma do Judiciário alterou esse panorama, posto que ao trazer para a Justiça do Trabalho os executivos fiscais decorrentes das multas aplicadas pelo Ministério do Trabalho(16), o caminho natural do mandado de segurança passou a ser o primeiro grau de jurisdição trabalhista. Isso sem falar do mandado de segurança em discussões relativas à representação sindical, na qual haja uma ilegalidade ou abusividade cometida pelo poder público.(17) Temos, assim, um elastecimento quanto ao campo de aplicação do mandado de segurança, na Justiça do Trabalho. Isto porque os casos em que se vinha admitindo o mandado de segurança continuarão sendo apreciados pelos tribunais. A novidade reside no processamento do mandado pelo primeiro grau de jurisdição. É provável, com isso, que se passe a fazer uma nova interpretação de velhos temas, já que a mudança de ambiente do mandado de segu(16) “Art. 114 — Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: (...) VIII — as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho (...).” (17) Note-se que pelo novel Texto Constitucional a competência para o mandado de segurança é ampla, ou seja, sempre que o ato questionado envolver matéria sujeita à jurisdição da Justiça do Trabalho. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 45 rança pode levá-lo a uma nova exegese. Assim, poderemos ter novas respostas para velhas perguntas, como, por exemplo, quem pode impetrar mandado de segurança na Justiça do Trabalho, uma vez que o artigo primeiro, da Lei n. 1.533/51 se utiliza a expressão “alguém”, abrindo, em tese, a possibilidade de impetração a toda e qualquer pessoa? O mandado de segurança coletivo também poderá ser utilizado? E se for possível a sua utilização, esta modalidade de writ somente pode ser manuseada por pessoa jurídica, em prol de seus membros ou associados com anuência destes? Ou será que uma coletividade, um grupo de pessoas, por meio de um feixe de vontades convergentes, não poderia impetrar o mandado de segurança?(18) Na acepção do Texto Constitucional de 1988 o sindicato deve ser considerado como ente coletivo para fins de legitimação do mandamus? Pensamos que sim, mas apenas na defesa “de direitos”; jamais “de interesses”, uma vez que estes fogem ao alcance da norma que regula o mandado de segurança.(19) Um partido político poderia impetrar mandado de segurança na defesa de direitos violados ou ameaçados de determinado sindicato, nas causas de competência da Justiça do Trabalho, na medida em que a lei se utiliza, como já dito, da expressão “alguém”? A propósito, que um partido político possa impetrar mandado de segurança ninguém duvida, já que o Texto Constitucional de 1988 enumera, explicitamente, o partido político como ente legitimado a impetração do mandamus. Todavia, daí a admitir um determinado partido político a ajuizar mandado de segurança na defesa de direitos de um agrupamento de pessoas, vestidas de sindicato, é outra questão. Vejam que complicador... Podemos dizer que dependendo da interpretação a ser dada, uma certa conturbação quanto ao alcance da legitimação ativa para o uso do mandado de segurança poderá, em primeiro momento, surgir. Encontraremos, por ser perfeitamente compreensível, algumas dificuldades — que até hoje ainda pontificam na Justiça Federal Comum — quanto ao alcance do vocábulo “autoridade”. O que significa autoridade pública? Ora, o direito brasileiro admite mandado de segurança contra (18) Quer nos parecer que não, já que o mandado de segurança coletivo, estabelecido pela Constituição Federal de 1988, deve ser restrito às pessoas jurídicas, em favor de seus membros ou associados. De qualquer sorte... (19) Nunca é demais lembrar que estamos no campo do mandado de segurança e não no terreno da ação civil pública. 46 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO ato de qualquer autoridade, é o quanto basta para se gerar, em tese, uma certa confusão. De outro lado, vale ressaltar que o artigo 5º, da Lei n. 1.533/51 estabelece que “não se dará mandado de segurança quando se tratar: I — de ato de que caiba recurso administrativo com efeito suspensivo, independente de caução; II — de despacho ou decisão judicial, quando haja recurso previsto nas leis processuais ou possa ser modificado por via de correição; III — de ato disciplinar, salvo quando praticado por autoridade incompetente ou com inobservância de formalidade essencial”. Em se tratando de writ em face de autoridade judicial, já estamos escolados quanto ao alcance da norma, havendo farta jurisprudência trabalhista com relação ao tema; bem como até que ponto uma reclamação correicional ou um agravo de petição servem de óbice a impetração do mandado. Agora, todavia, passaremos a ter outras situações, como, por exemplo, o ingresso na via judicial, por meio do mandado de segurança, significará a desistência do recurso administrativo?(20) Se a decisão judicial for favorável ao impetrante, ela inutiliza e absorve a decisão administrativa desfavorável?(21) Quanto ao procedimento a ser adotado, em sede de mandado de segurança, não hesitamos em pugnar pela exclusão integral do regramento processual encontrado na Consolidação das Leis do Trabalho. Verdadeira ação que é, o mandado de segurança mostra-se constituído de várias fases, que vai desde a propositura, passando pelas informações, até a sentença. O procedimento documental adotado para o mandado de segurança em tudo se afasta do procedimento trabalhista a que estamos acostumados a trabalhar. Este procedimento documental desobriga a produção de provas em juízo, ou seja, não há dilação probatória, havendo obrigatoriedade do impetrante instruir a petição inicial com todos os documentos que fundamentam suas alegações. Qualquer dúvida com relação à materialidade do fato impede o seu conhecimento, por absoluta ausência de um pressuposto processual objetivo; que é, justamente, a liqüidez, a certeza, a incontestabilidade dos fatos. (20) Parece-nos que não. (21) Quer nos parecer que sim, inclusive, nesse caso, se dará a reintegração do lesado em seus direitos, devolvendo-lhe tudo o que foi subtraído com a prática ilegal ou abusiva. Até porque a sentença concessiva da segurança repercute no âmbito administrativo. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 47 A sentença que negar ou conceder a ordem será guerreada pela via recursal. Na hipótese de negação do mandamus há de ser interposta a apelação, de iniciativa do impetrante. No caso de concessão do writ, além do recurso voluntário, haverá necessidade de remessa dos autos à instância superior(22), ressaltando-se que a sentença proferida em mandado de segurança pode ser executada provisoriamente, quando a ordem é concedida. O Ministério Público terá presença mais constante em primeiro grau de jurisdição. Enfim, tudo com sabor de novidade. III. A lei de execução fiscal No âmbito das novidades, temos ainda uma parcela das execuções fiscais que passam para a Justiça do Trabalho. O artigo 114, em seu inciso VII, permite agora a competência para processar e julgar “as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho”. Este dispositivo não autoriza apenas as execuções, mas, como versado claramente, todas “as ações”. Assim, os mandados de segurança, as ações de conhecimento, além das próprias execuções, também, passam para a Justiça do Trabalho. Neste passo analisaremos apenas as questões que tratam da execução. Todos que operam com o direito sabem que a execução é um procedimento burocrático, formal e que enseja inúmeras manobras protelatórias, permitindo-se que o devedor estenda a resolução do processo pelo máximo de tempo, levando a população a idéia de que a Justiça descansa mais do que o bicho preguiça. Exemplo emblemático é o caso “Naya”— do famigerado edifício Palace I que desabou e até agora poucos receberam alguma coisa —, entre tantos outros que vem contribuindo para que a pressão social, a doutrina e julgados mais recentes, induzam o legislador a rever velhos dogmas legislativos, com uma radical mudança ideológica na percepção dos fenômenos modernos, formados com base em situações e premissas completamente diversas daquelas em que a maior parte das leis foi confeccionada. (22) Na linguagem da Lei: “A sentença, que conceder o mandado, fica sujeita ao duplo grau de jurisdição (...)”, art. 12. 48 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Fala-se — e não é de hoje — de crise no processo executório. Todavia, olvidam-se, de um modo geral, que essa crise não é causada apenas por fatores intrínsecos, como a própria burocracia, altamente formalística, que envolve, de modo obsoleto, a execução. Fatores extrínsecos, fora do campo de atuação do magistrado, também contribuem para a lentidão do processo executório. A começar, no âmbito civilista, pelas inúmeras vozes que encontram necessidade de tratar o ser humano não pelo simples enfoque de mero consumidor, mas em face de seus valores individuais, modificando-se, pois, a triste tendência atual de não mais se valorar o homem como indivíduo em si. Isto porque se parte de uma interessante premissa de que no mundo moderno ou no universo ótico neoliberal, o cidadão deve ser enfocado de acordo com as necessidades mercadológicas; portanto, sempre visto como um consumidor em potencial. E como esta potencialidade varia de acordo com o poder aquisitivo do consumidor, ele, cidadão, será sempre medido pelo critério da quantidade. Explicase, lamentavelmente, por que tem mais valor a pessoa que tiver mais riqueza material, já que, quanto mais dinheiro, mais apto a consumir estará o indivíduo. Logo, pouco importam as virtudes do ser humano, como ser bom pai de família, bom magistrado, bom médico ou um cidadão honesto. O que vale é a quantidade de dinheiro que aquele indivíduo possui, levando-se em conta o critério de sinais de riqueza exterior, para que possa ser atraído pelo jogo do marketing e se integrar como um homem de “valor”. O critério, como se vê, é puramente quantitativo, fugindo, pois, por completo, ao âmbito do controle do magistrado, no exercício de suas atribuições funcionais. E isso, na prática, leva o devedor a dever cada vez mais, pois que para manter “as aparências” de tudo é capaz!? Já foi época em que dever era uma grande desonra; pois que atualmente é uma grande desfaçatez. Nos primórdios do direito romano (manus injectio), depois de trinta dias da condenação do devedor, este poderia ser conduzido, pelo credor, de modo violento se necessário fosse, ao juízo, que depois de uma exortação punha sua mão em qualquer parte do corpo do devedor, exteriorizando sua apreensão pessoal. A partir de então, ou o devedor quitava a dívida contraída, ou o credor o conduzia à prisão, no caso domiciliar, acorrentando-o, para posteriormente apregoar o importe da dívida, por três feiras, a fim de que algum parente ou amigos do devedor pudesse solver a obrigação contraída. Na hipótese NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 49 de ninguém aparecer, o credor poderia matar o devedor ou vendê-lo como escravo. Mas não é só. Se fosse o caso de haverem inúmeros credores, estes poderiam esquartejar o corpo do devedor, repartindo-o entre eles os pedaços. Não precisamos dizer que nessa época o devedor procurava de todas as formas evitar as dívidas e as que porventura contraísse, buscava ao máximo a sua quitação. Aliás, mesmo quando o devedor cumpria a obrigação, havia uma marcação violenta em sua dignidade, uma vez que a infâmia, a degradação da honra do devedor no meio social, que se aplicava ao indivíduo arruinado, eram registros característicos da velha execução. Ocorre que, com o evoluir da sociedade, a execução passou a ter limites, deixando, com isso, de ser pessoal para ser real, ou seja, não mais se permite que o devedor possa ser preso por dívidas contraídas. É evidente que essa humanização executória trouxe inúmeros benefícios aos indivíduos: todavia, a referida humanização também tem o seu lado negativo, como tudo na vida. É que a partir da modernização do processo (23) se passou a criar um novo ambiente social. Atualmente, ser devedor não é mais uma vergonha; ao contrário, muitas vezes deparamos, inclusive na grande mídia, com relatos de devedores que orgulhosamente declaram que “devem, não negam, mas somente pagarão quando puderem — se é que vão algum dia pagar”. Logo, ser devedor não é mais um sinal de desonra. (24) Bem observado por Roger Perrot que a exacerbação do respeito à liberdade individual e à vida privada tornaram vantajosa a posição de devedor.(25) Mas não é só. Como já registrado por Leonardo Greco: “Há também um novo ambiente econômico. O patrimônio das pessoas não é mais essencialmente imobiliário. Houve uma extraordinária diversificação dos bens e dos tipos de investimentos pos(23) E isso se deu com a bonorum cessio, na fase da cognitio extraordinaria, na qual se estabeleceu a impossibilidade da execução pessoal. (24) Às vezes até de orgulho! Dependendo da índole do devedor, é claro. Certa vez, caminhando pelo calçadão de uma praia, no Rio de Janeiro, em sentido oposto ao meu passou um indivíduo em cuja camisa estava escrito: “Sou devedor, com muito orgulho. Azar dos meus credores”! (25) “L‘ffetività dei provvedimenti giudiziari nel diritto civile, commerciale e del laboro in Francia”. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano: Giuffrè, ano XXXIX, n. 4, p. 854, dez. 1985. 50 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO síveis, o que aumentou a dificuldade de conhecê-los. Ganhos com a inflação e com as elevadas taxas de juros praticada no mercado financeiro tornaram particularmente lucrativo o inadimplemento da suas obrigações pelo devedor, que gira com o dinheiro do seu credor, auferindo grandes benefícios.”(26)(27) Como se percebe, todas essas questões acabaram por contribuir para a facilidade da inadimplência. A sensação de impunidade trabalhista acabou por incentivar o mau pagador, que usualmente diz ao obreiro: “vá buscar os seus direitos na Justiça!” Ele vai, e não consegue encontrá-los! Pois bem, todos os complicadores do processo executório, até então apenas trabalhista, passam também para o campo do processo de execução fiscal. A Lei de Execução Fiscal — n. 6.830/80 — não é nova dos operadores da área trabalhista, eis que supletoriamente já vinha sendo utilizada ao processo de execução trabalhista, como nos dá notícia o artigo 889 da CLT. Assim, esta é a fonte formal de direito supletoriamente natural, na execução trabalhista, mormente se considerarmos que a Consolidação possui menos de vinte artigos sobre execução. A lei que trata da cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública tem o nítido escopo de impor uma maior agilização aos processos referentes à execução fiscal, mormente, porque traz um procedimento especial, diferente daquele que se pode encontrar na execução comum por obrigação de pagar quantia certa, incluso no Código de Processo Civil. Portanto, com as mesmas intenções que orientam o processo de execução trabalhista. Daí por que ela, Lei de Execução Fiscal, é utilizada como fonte subsidiária do processo executório trabalhista. Agora, contudo, a Lei n. 6.830/80, não será utilizada como fonte subsidiária de um determinado processo, mas como norma primária, fundamental. Isto porque passa a Justiça do Trabalho a ter (26) “A execução e a efetividade do processo”. Revista de Processo, São Paulo, n. 94, ano 24, p. 36, abr./jun. 1999. (27) É o que ocorre, por exemplo, com os bancos. É muito mais negócio pagar o que devem após anos de processo, já que com o dinheiro da dívida contraída fazem empréstimos com juros elevadíssimos, quando, em contrapartida, pagam de juros, nas execuções trabalhistas, 1% (um por cento) ao mês não capitalizados! Não é um absurdo? NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 51 competência para executar as dívidas fiscais decorrentes das “penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho”. (28) Todas as críticas que a doutrina faz em face da legislação executória em apreço, provavelmente, também serão aproveitadas pela Justiça do Trabalho, como, por exemplo, os exagerados privilégios outorgados, pela lei, em favor da Fazenda Pública, como a questão relativa a não observância fiel a igualdade de tratamento (art. 125, I, do CPC); a necessidade de se intimar pessoalmente o representante da Fazenda Pública, ao passo de o advogado do executado ser intimado por edital. A possibilidade de a Fazenda substituir os bens penhorados em termos amplíssimos, quando ao particular o franqueamento a esta substituição é restrito; a interrupção da prescrição do crédito fiscal, com o simples despacho liminar ordinatório, não havendo, no particular, necessidade de se promover a citação, tornando-se, esta interrupção temporal, perpétua, no caso de não se encontrar bens a penhorar ou não se encontrando o próprio devedor, entre tantas outras prerrogativas processuais. O magistrado trabalhista, com efeito, já está acostumado a dar tratamento diferenciado a uma das partes contentoras, posto que assim é a natureza do próprio processo do trabalho. Nas execuções fiscais, a manutenção desse tratamento não será de difícil compreensão, sendo que o raciocínio é no sentido de que o hipossuficiente não é uma pessoa física, geralmente ex-empregado, mas a própria Fazenda Pública. Se a Lei n. 6.830/80 é, para muitos, ideologicamente incompatível com o Texto Constitucional moderno, posto que em matéria de processo, outorga privilégios e prerrogativas a determinados litigantes e isto somente se tolera como exceção, ou seja, no indiscutível interesse público ou social, é outra questão. O fato é que o Juiz do Trabalho não terá dificuldades em entender e aplicar a norma em apreço, no seu campo ideológico. As dificuldades que por ventura possam ser encontradas, são aquelas diretamente relacionadas aos empecilhos de todo e qualquer processo executório. Mas não quanto ao entendimento da norma. No que diz respeito à ambientação da magistratura, não vislumbramos maiores dificuldades. Isto porque trata-se de um processo eminentemente documental e repetitivo. A matéria é sempre a mesma. Assim, o procedimento não varia de um caso para outro. São todos iguais. Se(28) Art. 114, inciso VII, da Constituição Federal. 52 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO quer há, na prática, audiência. A citação, a contestação, o saneamento, a correção da moeda, os juros, as matérias dos embargos, enfim, tudo em série. O Tribunal não será assediado por agravo de instrumento, posto que as decisões interlocutórias, em causas de alçada, assim como no processo do trabalho, não toleram recursos. As dificuldades ficam por conta daquilo que já conhecemos, como, a falta de funcionários, instalações precárias, a falta de espaço físico para a guarda dos autos, maior fluxo de advogados na Justiça do Trabalho, entre outras questões que não são novidades. IV. Conclusão Como podemos observar, nos três temas escolhidos, dentre tantos outros existentes, a Justiça do Trabalho terá uma face nova, completamente diferente de tudo o que já se viu. Devemos, assim, todos nós, operadores do direito, prepararmo-nos para os novos tempos. Difíceis, sem dúvida; entretanto, ainda que possa parecer paradoxal, melhores. Aliás, têm colegas que ainda acham que a competência deveria ter sido mais ampliada, com as questões criminais, por exemplo.(29) Por fim, vale lembrar as palavras do Professor Ovídio Baptista, exemplo de jurista inovador, para quem novas medidas para uma melhor prestação jurisdicional, nunca podem ser olvidadas: “Embora se deva reconhecer o inegável mérito das tentativas de modernização de nosso processo ..., todas elas, como já dissemos, serão incapazes de produzir uma transformação significativa em nossa experiência judiciária. Sem uma profunda e corajosa revisão de nosso paradigma, capaz de torná-lo harmônico com a sociedade complexa, pluralista e democrática da experiência contemporânea, devolvendo ao juiz os poderes que o iluminismo lhe recusara, todas as reformas de superfície cedo ou tarde resultarão em novas desilusões”. E mais adiante continua o mestre: “Como temos insistido em dizer, é indispensável, e mais do que indispensável, urgente, formar juristas que não sejam, como agora, técnicos sem princípios, meros intér(29) Não devemos nos esquecer que além de toda a matéria já aprovada, que já faz parte da nossa realidade trabalhista, ainda retornou, para a Câmara dos Deputados, duas questões que ainda ampliarão mais a competência, quais sejam: a execução, de ofício, das multas por infração à legislação trabalhista, reconhecida em sentença que proferir e a execução, de ofício, dos tributos federais incidentes sobre os créditos decorrentes das sentenças que proferir. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 53 pretes passivos de textos, em última análise, escravo do poder (Michel Villey, Lençons d`histoire de la philosophie du droit, Paris, 1957, p.109), pois o servilismo judicial frente ao império da lei anula o Poder Judiciário que, em nossas circunstâncias históricas, tornou-se o mais democráticos dos três ramos do Poder estatal, já que, frente ao momento da crise estrutural e endêmica vivida pelas democracias representativas, o livre acesso ao Poder Judiciário, constitucionalmente garantido, é o espaço mais autêntico para o exercício da verdadeira cidadania”.(30) (30) Jurisdição e Execução, Rio de Janeiro: RT, 1996, p. 210. 54 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Relação de Trabalho: Enfim, o Paradoxo Superado Cláudio Mascarenhas Brandão (*) Enfim, chega-se ao final da tão propalada Reforma do Poder Judiciário. Doze anos se passaram, na verdade quase treze, desde o seu início por meio de proposta apresentada pelo então Deputado Hélio Bicudo (PT/SP) em 26 de março de 1992, à qual foram apensadas outras que tratavam de idêntico tema, até a promulgação da EC n. 45/04, no dia 8 de dezembro último. Viviam-se os estertores da Era Collor;(1) Lula combatia ferozmente na oposição; iniciava-se o processo de demarcação das terras indígenas;(2) realizou-se uma das mais importantes conferências das Nações Unidas sobre meio ambiente (Rio-92)(3) ; Jânio Quadros falecera;(4) o Judiciário era combatido pela morosidade. Hoje, Lula é Presidente; Genoíno é governo; continua a luta dos índios pela demarcação de suas terras; a preservação do meio ambiente permanece na pauta das tratativas da ONU; o Judiciário continua sendo taxado de moroso. Tal como uma adolescente, a “Emenda do Judiciário” chega marcada por incertezas (limites da competência da Justiça do Trabalho, para alguns); ansiedades (da população quanto ao futuro do Poder Judiciário); acaloradas discussões (súmula vinculante) e muita expectativa quanto ao seu futuro. (*) Juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região/BA. Mestrando em Direito pela UFBA. Professor de Direito Processual do Trabalho da UNIFACS — Salvador/BA. Professor de Direito Empresarial da FTE — Salvador/BA. (1) A revista Veja publicou em 10.5.92 as denúncias de Pedro Collor de Mello sobre o “esquema PC” e a CPI para investigar as denúncias contra Paulo César Farias é instalada em 26.5.92. (2) Na verdade, iniciado no ano anterior, com a demarcação do Parque Nacional do Xingu, em 25 de janeiro de 1991. (3) A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 3 a 14.6.92. (4) Em 16.2.92. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 55 Num ponto, contudo, merece destaque e encômios da magistratura trabalhista e, por que não afirmar da sociedade brasileira: a ampliação da competência da Justiça do Trabalho. Rompe, definitivamente, com os laços do passado, da vetusta Justiça do Emprego, para tornar-se, verdadeiramente, a Justiça do Trabalho, ou melhor, de todo o trabalho, ou, melhor ainda, das variadas formas do trabalho humano. Com esses olhos deve ser vista e apreciada a nova redação do inciso I do art. 114. Inicialmente, despida de preconceitos e de visão restritiva. Não se pode analisar o futuro com os olhos no passado, senão para colher as experiências positivas. Nada há que possa comparar o novo modelo do Judiciário Trabalhista com aquele dos anos 40. Não se trata mais da justiça voltada para a aplicação das leis destinadas à regulamentação do contrato de emprego. O juiz do trabalho (verdadeiramente do trabalho) de hoje deve assumir com firmeza as suas novas atribuições e lutar para a preservação da competência que lhe foi outorgada. Aos tribunais cabe a tarefa inicial de imprimir uma visão prospectiva, igualmente firme na defesa dos novos paradigmas de atuação da Justiça Laboral, refutando qualquer tentativa de mitigar a interpretação trazida pelo novel dispositivo. E o que há de novo? Pode-se efetivamente extrair a ilação de que há novos paradigmas a serem observados? A resposta efetivamente há de ser positiva. Interpretação histórica Deve-se recorrer, inicialmente, à interpretação histórica na tentativa de alcançar a vontade manifestada pelo legislador (no caso o constituinte derivado). Ciente da existência de um novo mundo do trabalho, especialmente marcado pela crise do emprego e utilização de novos modelos na cessão de mão-de-obra de terceiro, a Carta Magna vem atender a esse anseio da sociedade, dotando o ramo especializado do Judiciário de competência que os abarque de forma plena. A comparação das versões pelas quais passou o texto em foco a tanto conduz. Na relação original — caput do art. 114 — a competência era definida a partir da identificação dos sujeitos da relação jurídica ali contemplada: de um lado o trabalhador, o sujeito ativo, aquele que exe- 56 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO cuta o trabalho, e, de outro, o empregador, o que aufere o resultado propiciado pelo labor. Ou seja, a referência ao último limitava o alcance do vínculo citado no dispositivo, que era considerado pela doutrina e jurisprudência como o definido no art. 442, da CLT. No curso da tramitação da emenda, numa de suas versões, precisamente no relatório apresentado pela Deputada Zulaiê Cobra Ribeiro (PSDB/SP), chegou a constar a expressão relação de emprego, a qual foi alterada por emenda que contou com o decisivo apoio do Deputado Mendes Ribeiro (PMDB/RS) e da liderança do PT; aprovada no Plenário da Câmara, introduziu o texto que constituiu o núcleo daquele que foi promulgado. Ora, se possuíssem o mesmo conteúdo, não existiria razão para que fosse modificada a redação (originariamente do art. 115). Se o foi, uma única conclusão pode ser extraída: buscou-se ampliar o alcance da regra. Relação de trabalho e relação de emprego No texto atual, contudo, o que se vê é a introdução de um novo conceito, uma nova denominação — relação de trabalho. Indaga-se: seriam, então, expressões sinônimas? Sem embargo de reconhecer que existem autores que as compreendem de forma sinônima, a exemplo de Octavio Bueno Magano,(5) no Brasil, e Mario de La Cueva,(6) no México, não é menos verdadeiro salientar que posições contrárias também são encontradas, como afirma José Augusto Rodrigues Pinto, que opta pela denominação “contrato de emprego” exatamente para marcar o caráter subordinado do vínculo por ele gerado, que irá assinalar, de forma indelével, essa modalidade de contrato. O contrato de trabalho somente poderia ser utilizado como denominação se viesse seguido do adjetivo subordinado.(7) Orlando Gomes, ao tratar do contrato que define a força do trabalhador com vínculo de subordinação como objeto, apesar de reconhecer (5) MAGANO, Octavio Bueno. Manual de Direito do Trabalho, v. II, 2ª ed. São Paulo: LTr, 1988, p. 19-24. (6) CUEVA, Mário de La. Derecho Mexicano del Trabaho, t. 1, 3ª ed. México: Porrua, 1949, p. 425-457. (7) PINTO, José Augusto Rodrigues. Curso de Direito Individual do Trabalho, 4ª ed. São Paulo: LTr, 2000, p. 154. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 57 que a denominação “contrato de trabalho conquistou foros de cidade”, afirma que contrato de emprego é uma denominação muito mais adequada, inclusive por eliminar a ambigüidade que o termo trabalho suscita, por sua amplitude. É muito mais restritivo, dele derivando-se as denominações dos seus sujeitos, empregado e empregador, além de traduzir de forma mais expressiva o seu conteúdo, que é o trabalho subordinado.(8) Não é outra a conclusão extraída de Mauricio Godinho Delgado. Ao fazer o confronto entre relação de trabalho versus relação de emprego, salienta que há nítida distinção entre ambas; a primeira possui um caráter genérico e, por isso, refere-se a todas as relações jurídicas que são marcadas pelo fato de ter como prestação essencial aquela centrada em outra obrigação de fazer, consubstanciada em labor humano; refere-se, assim, a toda modalidade de contratação de trabalho humano modernamente admissível, englobando, portanto, a segunda, a relação de emprego, que é encarada, do ponto de vista técnico-jurídico, apenas como uma das suas modalidades próprias; é um tipo legal e específico, inconfundível com os demais tipos de relação de labor, embora seja considerada, ainda segundo o mesmo autor, como a mais relevante forma de pactuação de prestação de trabalho, do ponto de vista econômico-social.(9) Também Evaristo de Moraes Filho e Antônio Carlos Flores de Moraes compreendem que a expressão contrato ou relação de emprego é a mais adequada para caracterizar o labor com vínculo subordinado, embora reconheçam que o uso consagrou a denominação relação de trabalho.(10) No mesmo sentido Mozart Victor Russomano. Ao explicar a distinção entre as duas espécies de relação jurídica (de trabalho e de emprego), afirma que a primeira é o gênero da qual a segunda é uma das suas espécies e, de forma simples, diz: “a relação de emprego sempre, é relação de trabalho; mas, nem toda relação de trabalho é relação de emprego, como ocorre, v. g., com os trabalhadores autônomos (profissionais liberais, empreitadas, locações de serviços, etc.)”.(11) (8) GOMES, Orlando. Curso de Direito do Trabalho: de acordo com a Constituição de 1988, 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 133. (9) DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2002, p. 279-280. (10) MORAES FILHO, Evaristo; MORAES, Antônio Carlos Flores de. Introdução ao Direito do Trabalho, 5ª ed. rev. e atual. São Paulo: LTr, 1991, p. 214. (11) RUSSOMANO, Mozart Victor. Curso de Direito do Trabalho. 9ª ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2002, p. 69-70. 58 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Fundamento constitucional Uma outra pergunta, então, se impõe: a partir da interpretação dos dispositivos contidos no Texto Constitucional, haveria fundamento para se concluir que seria uma nova espécie de relação jurídica a ampliar os limites da competência, traçados na EC n. 45/04, ou, de modo contrário, se pode considerar que a expressão relação de trabalho equivale à velha relação de emprego? A resposta advém a partir da própria redação trazida pela Emenda Constitucional em referência, quando deixou de lado os parâmetros até então delineados (trabalhador e empregador) para adotar um outro, cujos limites são prioritariamente traçados pelo conteúdo do vínculo e não mais pela identificação dos seus sujeitos. Ao dispor sobre a proteção em face da dispensa arbitrária ou sem justa causa, como direito assegurado ao empregado, no art. 7º, I, ainda carente de regulamentação — e espera-se que um dia deixe de ser apenas previsão para tornar-se norma efetiva —, o constituinte valeu-se da expressão “relação de emprego”, exatamente para precisar o alcance do preceito. Ora, se fossem expressões de idêntica significação, nada justificaria a adoção de um outro conceito, sabendo-se que o legislador, em especial o constituinte, neste caso o derivado, deve preferentemente valerse de conceitos jurídicos precisos exatamente para afastar qualquer possibilidade de dúvida na sua interpretação. Alcance da expressão Isso quer dizer que na Constituição Federal são utilizadas duas denominações diferentes: a primeira, de conteúdo restrito, identifica o vínculo que ata o empregado e o empregador; a segunda, de alcance dilatado, para, rompendo com essas amarras, contemplar outras espécies de relações jurídicas marcadas pelo fato de possuírem, como seu conteúdo, a prestação de serviço. Portanto, não há como se explicar a inserção de duas denominações distintas para configurar supostamente a mesma relação jurídica, salvo se se admitir a diferença entre ambas. Esse argumento, por si só, já autoriza a ilação que se pretende extrair no sentido de ser a regra do art. 114, I, representativa das rela- NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 59 ções jurídicas que envolvem as formas de labor humano, sem que se lhe possa limitar o alcance. Por isso, pode-se perfeitamente concluir que a Justiça Especializada deixa de ser a “justiça do trabalho” na adjetivação que tradicionalmente se lhe dava, no sentido de corresponder à justiça que envolve o labor de natureza subordinada, para significar, desta feita, a “justiça dos trabalhos”, isto é, das variadas formas de trabalho independentemente do direito material aplicável. A expressão utilizada (relação de trabalho) representa o vínculo que se estabelece entre a pessoa que executa o labor — o trabalhador propriamente dito, o ser humano que empresta a sua energia para o desenvolvimento de uma atividade — e a pessoa jurídica ou física que é beneficiária desse trabalho, ou seja, aufere o resultado proveniente da utilização da energia humana por parte daquele. Estariam aí incluídas as atividades executadas por trabalhadores das mais variadas espécies: além daquela de natureza subordinada, que já era tradicionalmente submetida ao crivo de apreciação desse ramo do Judiciário, ter-se-ão, agora, as diversas outras modalidades que ficaram afastadas, a exemplo daquela realizada pelo trabalhador autônomo; pelo trabalhador eventual; pelo trabalhador que executa serviço de natureza gratuita (na hipótese de lesão à integridade física, por exemplo); pelo estagiário (da qual advém efeitos patrimoniais ou não em virtude dos quais pode possuir uma demanda em face do tomador dos seus serviços – expressão utilizada para identificar a pessoa que obtém o resultado da atividade por ele executada), como o seguro para cobertura de acidentes pessoais que por lei está a cargo da pessoa jurídica que o contrata. O representante comercial e o empresário, neste caso, quando prestam serviços individualmente para pessoa física ou jurídica, sem o auxílio de terceiros, também são outros exemplos. O servidor público em sentido amplo, pois, independentemente da natureza do vínculo criado com a administração pública, de natureza estatutária ou não, inexistem dúvidas no que toca ao objeto da relação jurídica mantida: o trabalho, a execução de um serviço. O raciocínio que se deve ter em mente, a lógica a ser utilizada na interpretação, parte do confronto entre as duas versões do dispositivo: na antiga, nenhuma forma de trabalho poderia estar submetida à competência da JT, à exceção daquele de natureza subordinada, salvo quando houvesse lei especial que a definisse, em face da ressalva contida na ex- 60 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO pressão “e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho”, na parte final do caput do mesmo art. 114. Significava dizer que apenas o trabalho subordinado estava albergado pela norma constitucional, salvo quando houvesse lei que, de modo expresso, atribuísse tal encargo, a exemplo do ocorrido com o trabalho temporário (Lei n. 6.019/74) ou o empreiteiro operário ou artífice (art. 652, III, da CLT), diante da subjetivação que decorria das expressões trabalhador e empregador, limitadoras do alcance do dispositivo constitucional e da exceção já referida. Agora, a compreensão do preceito deve ser outra: quando se utiliza de expressão de sentido amplo, o que se pode concluir é que a regra deve ser inclusiva: todos os trabalhos estão aqui referenciados, ressalvados apenas aqueles casos previstos na própria norma constitucional. Trabalho E o que é, então, trabalho? Para Daphnis Ferreira Souto é “todo esforço que o homem, no exercício de sua capacidade física e mental, executa para atingir seus objetivos em consonância com princípios éticos”(12) e, juridicamente, corresponde à “atividade física ou intelectual exercitada pelo homem com o fim de realizar uma produção”(13) ou o “efetivo exercício de uma profissão, um emprego ou uma ocupação”.(14) Para Arnaldo Süssekind, “toda energia humana, física ou intelectual, empregada com um fim produtivo, constitui trabalho”.(15) Após destacar o caráter complexo do vocábulo e dissertar sobre as múltiplas correntes quanto à sua origem, Evaristo de Moraes Filho e Antônio Carlos Flores de Moraes formulam, com apoio em Radbruch, um conceito genérico que abrangeria todos os possíveis ângulos que pudesse ostentar, oriundos do conhecimento humano, tais como a fisiologia, a psicologia, a psicotécnica, a economia, o direito, a filosofia, etc., vendo-o como “objetivamente correlativo de impulso, isto é, de aplicação da força impulsiva a qualquer produção ou realização de um fim humano”.(16) (12) SOUTO, Daphnis Ferreira. Saúde no Trabalho: uma revolução em andamento. São Paulo: SENAC, 2003, p. 37. (13) Ibid., p. 41. (14) Ibid., loc. cit. (15) SÜSSEKIND, Arnaldo. Curso de Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.3. (16) MORAES FILHO, Evaristo de; MORAES, Antônio Carlos Flores de. Op. cit., p. 17-18. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 61 Conclusão Em rápidas pinceladas, essa é a interpretação que se julga adequada para os novos limites traçados competência atribuída à Justiça do Trabalho: relação jurídica que tem na execução do trabalho o seu objeto. E por que o paradoxo superado? Porque não se justificava a existência de uma justiça especializada na solução de conflitos dessa natureza, mas que se restringia, primordialmente, à apreciação de uma de suas espécies: o trabalho subordinado. Nunca é tarde para corrigir equívocos e a Emenda Constitucional n. 45, no apagar das luzes do ano de 2004, vem a fazê-lo. Espera-se, contudo, que triunfe essa interpretação, despida de preconceitos que, via de regra, se identifica em relação à Justiça do Trabalho. 62 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO A Nova Justiça do Trabalho — Competência e Procedimento Edilton Meireles (*) 1. Introdução Nosso espaço, por questões editoriais, é limitado. Tratarei, portanto, da competência da Justiça do Trabalho, em face da Reforma do Poder Judiciário, de forma quase telegráfica, procurando açambarcar diversas questões que merecem reflexões. Nesta introdução, no entanto, não posso deixar de lembrar que, mais remotamente, as novas competências da Justiça do Trabalho antecipam, no aspecto processual (numa inversão da ordem natural), a reconfiguração do direito do trabalho, para incluir em seu objeto, não só o trabalho subordinado, mas todo o trabalho prestado por pessoa física. Sobre essa tendência, é indispensável a leitura do Relatório da Comissão Boissonnat (Le travail dans vingt ans. Paris: Odile Jacob, 1995)(1) e do Relatório Supiot (Au-delà de l’emploi. Transformations du droit du travail et devenir du droit du travail em Europe. Paris: Flammarion, 1999)(2). Diria, ainda, nesta quadra, que a Reforma do Judiciário visa a reforçar a natureza social de nossa Constituição, com a valorização do trabalho humano (art. 1º, inciso IV, c/c caput do art. 170 da CF), ao estabelecer um órgão judicial próprio e especializado, com status constitucional, para julgar as suas causas, sem esquecer que o constituinte fez a opção por prestigiar o contrato de emprego como modelo preferencial nesse desiderato (inciso VIII do art. 170 da CF). (*) Juiz do Trabalho da 23ª Vara do Trabalho/SSa/Ba. Mestre e Doutor em Direito (PUC/SP). (1) Publicado no Brasil com o título 2015 Horizontes do Trabalho e do Emprego, Jean Boissonnat, São Paulo: LTr, 1998. (2) Publicado no vernáculo português sob o título Transformações do trabalho e futuro do trabalho na Europa, Coimbra: Coimbra Editora, 2003. Recomendo, ainda, a leitura do livro Um futuro para el trabajo em la nueva sociedad laboral, Ramón Jáurigui Atonido et alii, Valencia: Tirant lo Blanch, 2004. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 63 É certo, porém, que o reformador constitucional, em matéria processual, foi muito mais além do emprego, ao estabelecer a competência, em razão da matéria (grosso modo) para um órgão especializado do Poder Judiciário Nacional. 2. Da competência Para pensarmos a nova Justiça do Trabalho é indispensável, antes de tudo, que esqueçamos o que ela era em matéria de competência. O que era, provavelmente, jamais voltará a ser. É preciso ter a mente aberta para repensar e entender a nova Justiça do Trabalho, sem preconceitos e sem medo para bem cumprir a missão constitucional originada do constituinte derivado. Fazendo uma comparação um tanto quanto forçada, diria que antes a Justiça do Trabalho era um médico especializado. Ao lado dela, tínhamos (e ainda temos) um médico clínico (a Justiça Estadual, grosso modo, com competência para todas as ações, contra todos) e um médico clínico especializado (a Justiça Federal, com competência para todas as ações em face de uma categoria de pessoas). Contudo, com a Reforma do Judiciário, o juiz do trabalho, em sua nova competência, deixa de ser um médico especializado, para se tornar, tal como o juiz federal, um médico clínico especializado (grosso modo, em face da matéria). Seria uma espécie de médico geriatra: clínico (para todas as ações/doenças) e, ao mesmo tempo, especializado (em face de determinadas pessoas em suas relações de trabalho, em regra). Pensando o nosso Judiciário como um todo, em relação ao processo civil, diria que o juiz federal ocupa uma vara especializada da Fazenda Nacional, o juiz do trabalho uma vara especializada social (ou do trabalho em sentido amplo) e o juiz estadual uma vara com competência remanescente (ou vara de família, vara comercial, etc). E a essa conclusão chegamos a partir da análise do novo art. 114 da CF, que transformou a Justiça do Trabalho numa nova Justiça. 2.1. Relação de trabalho e seu objeto (incisos I e VI) Numa definição bem aceita, e bastante objetiva, tem-se uma relação de trabalho quando uma pessoa física presta serviços a outrem. E, para ficar bem claro, relação de emprego, por sua vez, é a relação de 64 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO trabalho na qual a pessoa física presta serviços a outrem de forma subordinada (salariado). Aquela gênero, esta espécie. Contudo, não basta a mera prestação de serviços a outrem, por parte de uma pessoa física, para que daí surja uma relação de trabalho. É preciso que o objeto da relação jurídica seja o trabalho. Para uma melhor compreensão, podemos nos valer da classificação dos contratos quanto ao objeto. Carlos Alberto Bittar, por exemplo, classifica os contratos quanto ao objeto em: de alienação de bens, de transmissão de uso e de gozo, de prestação de serviços, de conteúdo especial e os associativos(3). Esclarece, ainda, que “os contratos de prestação de serviços são os que envolvem a utilização de energia pessoal alheia, em si, ou na consecução de coisas materiais ou imateriais definidas (produção de bens, ou criações intelectuais)”(4). Compreendem não só o contrato de emprego como “o serviço, ou a obra final (como na empreitada, ou na encomenda de obra intelectual, em que o objetivo é o resultado específico do trabalho: a obra ou a criação)”(5). Já Orlando Gomes — no que nos interessa — classifica os contratos pela sua função econômica (objeto) em: de troca, associativos, de prevenção de riscos, de crédito e de atividade(6), advertindo que “o mesmo negócio é incluído em categorias distintas, se exerce dupla função... Mas como a disciplina dos negócios se particulariza de acordo com a sua função prática, o conhecimento e a classificação das principais categorias interessam ao jurista para a fixação do regime a que se devem subordinar ” (7). Essa mesma advertência, aliás, é ressaltada por Carlos Alberto Bittar, que reconhece que “cada grupo de contratos conserva certos pontos de contato”(8). Dentre os contratos de atividade, o mestre Orlando Gomes exemplifica com o: de prestação de serviços, de empreitada, de mandato, de agência, de comissão, de corretagem e o de depósito(9). Destaca, porém, que os de fazer (prestar um serviço) também se incluem na (3) Direito dos contratos e dos atos unilaterais. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990, p. 96. (4) Ibidem, mesma página. (5) Ibidem, p. 96-97. (6) Contratos, 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 93-94. (7) Ibidem, p. 98. (8) Ob. cit., p. 97. (9) Ob. cit., p. 98. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 65 categoria de contratos de troca (fazer algo em troca de outro fazer ou em troca de uma obrigação de dar)(10), já que “realizam-se para a circulação de riquezas”(11), sem que, com isso, deixem de ser, também, contratos de atividade. Cabe destacar, outrossim, que nos contratos associativos (de sociedade, de parceria, etc.) a eventual “prestação de um dos contratantes não é a causa da contraprestação do outro”(12), já que as partes “reúnemse em torno de objetivos comuns, comungando esforços e bens para a sua consecução e mantendo-se, sob liames espirituais e patrimoniais, vinculados à pessoa jurídica decorrente (na sociedade), ou à relação originária”(13), daí por que eles não são tidos como contratos de atividade. Contudo, a Carta Magna não fala em contrato de trabalho (de atividade), mas, sim, em relação de trabalho, o que faz pressupor que procura, acobertar outras situações jurídicas que envolvem a prestação de serviço e que não se revelam por meio do contrato de atividade. Cabe esclarecer, inclusive, que toda relação jurídica se estabelece em função de um fato gerador (fatos jurídicos). E o contrato é apenas um dos fatos jurídicos capazes de gerar uma relação jurídica. Encontra-se acobertado pela definição da relação de trabalho, assim, todo e qualquer tipo de contrato de atividade em que o prestador de serviço seja uma pessoa física. Nesta categoria, portanto, incluem-se os contratos de emprego, de estágio, de trabalho voluntário, de trabalho temporário, de atleta não-profissional (inciso II do parágrafo único do art. 3º da Lei n. 9.615/98), de prestação de serviço, de empreitada, de depósito, de mandato, de comissão, de agência e distribuição, de corretagem, de mediação, de transporte, de representação comercial e outros porventura existentes. Pode-se, ainda, incluir no seu conceito, a depender do caso concreto, as relações jurídicas decorrentes da gestão de negócios e da promessa de recompensa (“do desempenho de certos serviços”, art. 854 do CC), enquanto atos unilaterais de vontade geradores de relações de trabalho. Incluem-se, outrossim, no conceito de relação de trabalho, outras situações jurídicas nas quais haja um ser humano prestando serviço a (10) (11) (12) (13) Ibidem, p. 94-95. Ibidem, p. 94. Ibidem, p. 96. BITTAR, Carlos Alberto, ob. cit., p. 97. 66 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO outrem, tendo por objeto o trabalho, como aquelas decorrentes da prestação de serviços do diretor e/ou do administrador da sociedade, dos membros dos conselhos fiscais e de administração das pessoas jurídicas, do administrador das demais pessoas jurídicas, etc. Inclui-esse, ainda, nesse conceito os serviços prestados pelos servidores estatais (em sentido amplo, civis e militares), que mantêm uma relação de trabalho de natureza profissional, em caráter não-eventual ou eventual, sob vínculo de dependência com a Administração Pública. São os servidores públicos civis e militares, os empregados públicos, os contratados por excepcional interesse público, os que firmam contratos de prestação de serviços com a Administração Pública, os empreiteiros (pessoa física), etc. Neste rol, no entanto, não se inclui os agentes políticos, já que estes não mantêm com o Estado uma relação “de natureza profissional, mas de natureza política. Exercem munus público. Vale dizer, o que os qualifica para o exercício das correspondentes funções não é a habilitação profissional, a aptidão técnica, mas a qualidade de cidadãos, membros da civitas e, por isto, candidatos possíveis à condução dos destinos da Sociedade”(14). O mesmo se diga dos “requisitados para prestação de atividade pública, quais os jurados, membros de Mesa receptora ou apuradora de votos quando das eleições, recrutados para o serviço militar obrigatório, etc. Estes agentes exercem um munus público”(15), além dos “delegados de função ou ofício público, quais os titulares de serventias da Justiça não oficializadas”(16). Destaque-se que, dentre os “requisitados” pelo Poder Público, podem ser incluídos os membros de comissões (de licitação, de concurso, etc.), membros de conselhos (da Criança e Adolescentes, da República, etc.), o interventor nas liquidações extrajudiciais, os ocupantes de funções honoríficas e os auxiliares da justiça (perito, depositário, administrador, conciliador, síndico da massa falida, comissário na concordata, jurados, juízes temporários, etc.). Frise-se, todavia, que por não ter por objeto o trabalho, não se incluem no conceito de relação de trabalho as relações jurídicas formadas por laços matrimoniais ou de companheirismo (união estável), as (14) MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo, 17ª ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p. 229-230. (15) Ibidem, p. 232. (16) Ibidem, mesma página. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 67 decorrentes do exercício do poder familiar, inclusive em face da adoção, da tutela e da curatela, bem como em face das relações societárias (inclusive em cooperativas), associativas (relação de associação ou filiação) e de gestão da coisa comum (condomínio e co-propriedade), ainda que, nessas hipóteses, uma pessoa física possa prestar serviços a outrem. Deixando clara a abrangência dessa competência, o reformador constitucional (de modo dispensável, aliás) ainda preceituou que à Justiça do Trabalho cabe julgar “as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho” (inciso VI do art. 114). Esse dispositivo, ao certo, serviu muito mais para acabar com as controvérsias quanto à competência para julgamento dos feitos em que se pede o ressarcimento de danos morais e materiais, inclusive quando decorrentes do acidente de trabalho. Daí se tem, por exemplo, para dirimir dúvidas, que celebrado um contrato de prestação de serviços entre o paciente e o médico, eventual litígio decorrente dessa relação de trabalho deve ser julgado pela Justiça do Trabalho. Se se pretender, outrossim, uma indenização decorrente de erro médico, da mesma forma, competirá à Justiça do Trabalho o julgamento da ação de ressarcimento respectiva. O mesmo se diga quanto a qualquer outra relação de trabalho, a exemplo daquela formada pelo advogado e seu cliente, podendo o causídico, por exemplo, cobrar seus honorários na Justiça do Trabalho ou o cliente pedir indenização por danos causados por aquele. Da mesma forma, a ação de indenização proposta pela sociedade contra o seu administrador será da competência da Justiça do Trabalho, etc. Em algumas situações, no entanto, a competência se revelará de tormentosa definição. Isso porque, em diversas hipóteses, a prestação de serviços é contratada junto à pessoa jurídica, mas efetivada pela pessoa física. Exemplos que podem gerar controvérsia: um médico que presta serviços em seu consultório celebra uma relação de trabalho com seu paciente. Já o médico que presta serviços por intermédio de uma clínica ou hospital não firma um contrato de trabalho com o paciente. Este último, em verdade, contrata os serviços da clínica ou do hospital. Relação, portanto, tipicamente comercial-empresarial. Lógico, no entanto, que nesta última hipótese pode restar demonstrada uma situação de fraude. Somente no caso concreto se definirá a existência da relação de trabalho ou não. Contudo, pode-se afirmar que, se a prestação de serviços é realizada através da pessoa jurídica, não estamos diante de relação de trabalho. 68 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Cabe lembrar, todavia, que o empresário (antiga firma individual) não é pessoa jurídica. Quanto ao direito material a ser aplicado, óbvio que, a cada contrato ou relação jurídica, aplicam-se as regras próprias que os disciplinam. E se o serviço é lançado no mercado de consumo, tendo como destinatário final o tomador dos serviços, ao vínculo de trabalho respectivo ainda se aplicam as regras do Código de Defesa do Consumidor. Por fim, advirto que, como bem lecionou o Min. Sepúlveda Pertence, ao votar na ADIn 492, já em 1992, quando se decidiu quanto à inconstitucionalidade da lei ordinária que assegurou a competência da Justiça do Trabalho para apreciar os litígios envolvendo os servidores estatutário, “outros argumentos, que se trazem, atinentes à composição, à natureza, às inclinações da Justiça do Trabalho [reforçados pela inércia da tradição], com todas as venias, trazem um pré-conceito a que não adiro” e que podem conduzir às interpretações restritivas deste dispositivo. 2.2. Relação de trabalho — Exclusão (inciso I) Bem servindo como parâmetro interpretativo da regra geral, o inciso I do art. 114 da CF exclui da competência da Justiça do Trabalho as ações em que sejam parte “os servidores ocupantes de cargo criado por lei, de provimento efetivo ou em comissão, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações públicas”. Essa exceção confirma que os servidores efetivos e em comissão também mantêm relação de trabalho com os tomadores de seus serviços (o Poder Público)(17), embora os litígios não estejam acobertados pela competência da Justiça do Trabalho. Ocupante de cargo é o trabalhador que firma uma relação institucional com a Administração Pública, submetido ao regime administrativo. A CF, por meio da Reforma do Poder Judiciário, no entanto, apenas exclui os ocupantes de cargo efetivo (civil/militar) e em comissão (cf. art. 9º da Lei n. 8.112/90, no âmbito federal) da competência da Justiça do Trabalho. Logo, os servidores estatais temporários, inclusive os contratados por excepcional interesse público, devem propor suas ações na Justiça do Trabalho. E nesta competência trabalhista incluem-se também todos os demais servidores (em sentido amplo) que não mantêm uma relação de natureza estritamente institucional com a Administração Pública, a exemplo (17) Ao contrário do que decidiu o STF na ADIn 492. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 69 dos dirigentes empresariais (de autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista, etc.) e dos trabalhadores sem relação de emprego (estagiários, voluntários, avulsos, etc.), já que estes também são prestadores de uma atividade, mantendo verdadeiramente relações de trabalho. Vale relembrar, todavia, que os agentes políticos, os agentes “requisitados para prestação de atividade pública” e os “delegados de função ou ofício público” não se inserem no conceito de relação de trabalho. 2.3. Outros litígios decorrentes da relação de trabalho (inciso IX) Em aparente contradição, que pode conduzir a interpretações restritivas, o reformador dispôs, ainda, que compete à Justiça do Trabalho conhecer de “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei”. É preciso, portanto, para que a competência seja exercida pela Justiça do Trabalho em relação a essas outras controvérsias, que haja uma lei (ordinária ou complementar — LOMAN, por exemplo) disciplinando a matéria. Mas a pergunta que se faz é: quais seriam essas “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho” não abrangidas pelo inciso I do art. 114 da CF e que precisam, para ser da competência da Justiça do Trabalho, de uma lei assim preceituando (“na forma da lei” )? A resposta é simples, respondida pelas hipóteses já existentes. Basta lembrar o litígio que decorre do cumprimento de normas coletivas, envolvendo, por exemplo, o sindicato profissional e a empresa empregadora na cobrança das receitas sindicais. Neste caso, não estamos diante de uma relação de trabalho (entre sindicato e empresa). Contudo, o pressuposto fático-jurídico que dá origem ao conflito sindicato-empresa é uma relação de trabalho (a relação de emprego). Em suma, se não existisse uma relação de emprego, na qual é gerada a receita sindical, não haveria litígio entre sindicato e empresa. Logo, em última análise, este litígio (sindicato-empresa) decorre de uma relação de trabalho(18). Situação semelhante ocorre entre os empregados e as empresas de previdência privada, cujos litígios encontram respaldo numa relação de trabalho. Como decidiu o Excelso STF, em relato do Min. Cordeiro Guerra, à luz do Texto Constitucional anterior, mas plenamente aplicável ao atual, “a Constituição da República, é certo que estabelece a competência da Justiça do Trabalho para dissídios entre empregados e empre(18) STF, RE 287.227-0, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU de 2.3.2001. 70 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO gadores; mas estende-a também a outras controvérsias oriundas da relação de emprego, desde que a lei disponha sobre essa competência extraordinária; e esta norma de lei, exigida para o caso de complemento a aposentados e viúvas, encontra-se na regra de competência das JCJ no art. 652, a, n. IV, que a estabelece para os ‘demais dissídios’ concernentes ao contrato individual de trabalho, como é o caso destes suprimentos financeiros pelo empregador, oriundos de norma estatutária da empresa, com eficácia residual, após extinta a relação de emprego”(19). O dissídio surgido daí decorre do contrato individual do trabalho, atraindo a competência da Justiça do Trabalho (art. 652, alínea “a”, inciso IV, CLT). “Nesse dissídio, no entanto, não se debate a relação de emprego, porque já extinta, mas postulam-se os efeitos daquela condição regulamentar estatuída para vigência ulterior pelo regulamento da empresa empregadora”(20). Esta cláusula, em si, “passa a integrar a relação contratual com o empregador”, atraindo a competência da Justiça Laboral, pois se concretiza como “dissídios concernentes ao contrato individual de trabalho”(21). Outro exemplo (pitoresco) em que a lei pode atrair para Justiça do Trabalho a competência respectiva, para bem revelar a importância desse dispositivo em comento: o empregado que tem o parente ofendido pelo empregador pode demandar, por danos morais, na Justiça do Trabalho (litígio entre trabalhador e empregador). O parente ofendido, no entanto, demanda na Justiça Comum. A lei, então, poderá, considerando a relação de trabalho existente, assegurar à Justiça do Trabalho esta competência, já que a controvérsia tem como pressuposto fático-jurídico último a relação de trabalho. Cabe, portanto, destacar que inexiste qualquer incompatibilidade entre os incisos I e IX do art. 114 da CF, já que naquele primeiro se estabeleceu, com plena eficácia e aplicação imediata, a regra de competência da Justiça do Trabalho para os litígios que decorram diretamente da relação de trabalho (litígio diretamente vinculado à relação de trabalho). Já o inciso IX trata da possibilidade de, por meio de lei infraconstitucional, estabelecer-se essa mesma competência para outras controvérsias que tenham como pressuposto fático-jurídico uma relação de trabalho (litígio indiretamente vinculado à relação de trabalho). (19) STF, RE 91.259-2-SP, Rel. Min. Cordeiro Guerra. (20) STF, AiRg 82.214-3-ES, Rel. Min. Clóvis Ramalhete. (21) Ibidem. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 71 É óbvio, portanto, que o inciso IX não iria contradizer a regra geral do inciso I do art. 114 da Constituição Federal que, por sua vez, não está sujeita à qualquer regulamentação para sua eficácia ou aplicação pelos órgãos judicantes. 2.4. As ações que envolvam o exercício do direito de greve (inciso II) O inciso II do novo art. 114 da CF assegura também à Justiça do Trabalho a competência para as ações que envolvam o exercício do direito de greve. As ações podem ser coletivas (conforme referência expressa do § 3º do art. 114 da CF) ou individuais. Quanto a estas, não havendo qualquer restrição, qualquer ação poderá ser proposta, envolvendo qualquer pessoa, desde que haja conexão com o exercício do direito de greve. Assim, por exemplo, poderá a empresa prejudicada ou qualquer outro interessado propor a ação reparatória, em face de uma greve abusiva, etc. Pode ser uma lide entre empresa e sindicato, entre empresa e os grevistas (lide empregatícia), entre empresas e sindicalistas responsáveis pela greve, entre o usuário do serviço paralisado (e prejudicado) e o sindicato e/ou grevistas e/ou empresas, etc. Tudo na Justiça do Trabalho. Em interpretação sistemática, entretanto, é certo que esse dispositivo não atrai para a Justiça do Trabalho as ações que envolvam o exercício do direito de greve por parte dos servidores públicos ocupantes de cargo efetivo ou em comissão. 2.5. Representação sindical (inciso III) Em face da Reforma, a Justiça do Trabalho passou, ainda, a ter competência para as ações sobre o direito de representação sindical, “entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores”. Aqui, em face mesmo de a matéria ser diretamente vinculada ao direito laboral, assegurou-se a competência do juiz do trabalho para as causas em que se discute o poder de representação de uma entidade sindical. Essa competência, por sua vez, não desperta grandes controvérsias. O Texto Constitucional, no entanto, é aparentemente restrito. Fala em sindicato e não, em entidade sindical. Tal opção pode conduzir à interpretação de que, se o litígio envolver outra espécie de entidade sindi- 72 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO cal (federação, confederação ou mesmo centrais sindicais), a matéria não estará sujeita à competência da Justiça do Trabalho, o que seria, data venia, uma contradição do sistema. Vale lembrar, inclusive, que o art. 8º da CF também se utiliza da expressão “sindicato”, mas se entende que ela quis se referir às “entidades sindicais”, quando tratou das questões ali postas. 2.6. Mandados de segurança, habeas corpus e habeas data (inciso IV) Procurando consolidar a velha jurisprudência, inclusive do STF, no que se refere ao mandado de segurança, ao mesmo tempo buscando respaldar o entendimento doutrinário e jurisprudencial dos juslaboralistas e tribunais trabalhistas, quanto à competência para conhecer do habeas corpus, a Reforma do Judiciário, expressamente, estabelece a competência da Justiça do Trabalho, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição. Inovando, porém, assegurou, ainda, a competência da Justiça do Trabalho para conhecer do habeas data, “quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição”. A competência funcional para conhecer do habeas data, por falta de regulamentação ou até que ela surja, será do juiz de primeiro grau. Já em relação ao mandado de segurança e habeas corpus, em já havendo regulamentação, sabe-se que a competência é dos tribunais em relação aos atos praticados pelos juízes do trabalho. Será do juiz de primeiro grau, no entanto, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição e a autoridade apontada como coatora não for juiz do trabalho. Ressalte-se, porém, que, em relação a determinadas autoridades (presidente, ministros, etc.), a CF estabelece expressamente o foro privilegiado, sem exceções. Aqui cabe lembrar, aliás, que o STF, em decisão datada de 1993 (e lá se vão mais de onze anos!), em acórdão elucidativo, decidiu, em mandado de segurança impetrado contra ato do Presidente da República, que, mesmo contra ato praticado na relação de emprego, é possível a impetração do writ. Isso porque “a atividade Estatal é sempre pública, ainda que inserida em relações de Direito Privado e sobre elas irradiando efeitos; sendo, pois, ato de autoridade, o Decreto Presidencial que dispensa servidor público, embora regido pela legislação trabalhista, a sua desconstituição pode ser postulada em Mandado de Segurança. 2. Legitimação passiva do Presidente da República se a questionada dis- NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 73 pensa do impetrante foi objeto de decreto, que o arrolou nominalmente entre os dispensados, reduzindo-se o ato subseqüente de rescisão do contrato de trabalho a mera execução material de ordem concreta do Chefe do Governo. 3. Mandado de Segurança contra ato do Presidente da República, embora versando matéria trabalhista. A competência originária para julgar Mandado de Segurança é determinada segundo a hierarquia da autoridade coatora e não segundo a natureza da relação jurídica alcançada pelo ato coator. A competência do Supremo Tribunal Federal, órgão solitário de cúpula do Poder Judiciário Nacional, não se pode opor à competência especializada, ratione materiae, dos seus diversos ramos” (22). Em seu voto condutor, o Min. Rel. Sepúlveda Pertence adotou lições de Agustin A. Gordillo, para quem “a administração é sempre pessoa de direito público, que realiza operações públicas, com fins públicos e dentro dos princípios e das formas de direito público, ainda que revista seus atos com formas que são comuns ao direito privado e use dos meios que este autoriza e para objetos análogos” (23). A partir de tais lições, portanto, é que o STF — como lembrado — asseverou que “sendo, pois, ato de autoridade, o Decreto Presidencial que dispensa servidor público, embora regido pela legislação trabalhista, a sua desconstituição pode ser postulada em Mandado de Segurança”. E, como afirmado pelo Min. Carlos Velloso, “o entendimento em sentido contrário seria meramente preconceituoso, data venia” (24). E o entendimento acima mencionado voltou a ser reafirmado, de forma implícita, pelo Excelso STF, como, por exemplo, no AGRMS 21.200DF, quando decidiu que “a competência para processar e julgar mandado de segurança impetrado por ex-empregado contra o empregador, muito embora sociedade de economia mista, de estatura federal, em fase de liquidação, é da Justiça do Trabalho, por enquadrar-se no artigo 114 da Constituição Federal ” (25). Logo, essa competência, para o mandado de segurança, já vinha sendo reconhecida pelo próprio STF, para as causas estritamente trabalhistas (empregado x empregador), conquanto, contraditoriamente, encontrava resistência na própria Justiça do Trabalho. (22) STF, MS 21.109-DF, TP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 19.2.1993. (23) Apud MUKAI, Toshio. Direito administrativo e empresas do Estado. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 36. (24) Voto proferido no MS 21.109-DF, p. 463 dos autos. (25) TP, Rel. Min. Marco Aurelio, DJU 10.9.1993. 74 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO No que se refere ao mandado de segurança, esse dispositivo, aliado ao estabelecido no inciso VII (quanto às penalidades administrativas aplicadas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização), retira, em parte, a competência da Justiça Federal para conhecer dessa espécie de ação, quando a autoridade coatora for a autoridade federal (inciso VIII do art. 109 da CF). Ainda que neste outro dispositivo constitucional não se faça a ressalva, tal como a existente no inciso I do art. 109 (no que se refere às ações de competência da Justiça do Trabalho), não é razoável supor que a emenda constitucional, ao atrair para a Justiça do Trabalho todas as “ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho” (inciso VII) e o mandado de segurança “quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição” (inciso IV), quis excluir o mandamus no qual a autoridade apontada como coatora é uma autoridade federal (lembrando que aqui não estamos tratando do mandado de segurança de competência dos tribunais superiores, expressamente elencados na CF). Outrossim, é óbvio que as leis estaduais de organização judiciária não podem excluir da competência da Justiça do Trabalho os mandados de segurança, os habeas corpus e os habeas data mencionados na CF, ainda que a autoridade coatora seja o governador, o prefeito ou qualquer outra autoridade estadual ou municipal. 2.7. Conflitos de competência (inciso V) e execução previdenciária (inciso VIII) Quanto à solução dos conflitos de competência entre órgãos integrantes da Justiça do Trabalho e a execução das contribuições previdenciárias decorrentes das sentenças que proferir, a Reforma do Judiciário não acrescentou qualquer novidade. Dispensável, por ora, qualquer novo comentário, considerando o objetivo deste trabalho. 2.8. Ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores (inciso VII) Em face, ainda, da matéria de mérito discutida nas ações que cuidam das penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho, entendeu-se por bem atribuir ao juiz do trabalho a competência respectiva. Aqui, transfere-se para a Justiça do Trabalho a competência para a execução fiscal das multas respectivas (impostas em face da atuação NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 75 do Ministério do Trabalho), bem como para qualquer ação na qual se discute essa matéria, inclusive o mandado de segurança contra ato da autoridade fiscal(26) e a ação declaratória de inexistência de débito. Outro exemplo de ação que pode ser ajuizada, é a proposta contra a União visando a anular atos praticados por seus agentes fiscais da Delegacia Regional do Trabalho no exercício do poder de polícia(27). Ficam de fora, no entanto, da competência da Justiça do Trabalho as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos prestadores de serviços (profissionais liberais) pelos órgãos de fiscalização das respectivas profissões, a exemplo da OAB e dos Conselhos de Medicina, Engenharia, Enfermagem, etc. A lei ordinária, porém, com fundamento no inciso IX do art. 114 da CF, poderá atrair para a Justiça do Trabalho essas outras controvérsias, quando elas se refiram ao exercício da profissão numa relação de trabalho. 3. Do procedimento Questão de importância capital se refere ao procedimento a ser adotado nas ações que passaram a ser da competência da Justiça do Trabalho. Essa controvérsia é ao certo a mais relevante e complexa em decorrência das conseqüências, ao menos em curto prazo, que dela advêm, principalmente se for levado em consideração que há uma tendência dos juízes do trabalho em aplicar as regras procedimentais disciplinados na CLT para toda e qualquer espécie de ação proposta na Justiça do Trabalho. Essa posição, no entanto, somente encontra respaldo jurídico em se tratando de “dissídios oriundos das relações entre empregados e empregadores, bem como de trabalhadores avulsos e seus tomadores de serviços em atividades reguladas na legislação social”, ante a expressa determinação do art. 643 da CLT para que se aplique, nas ações respectivas, a “forma estabelecida pelo processo judiciário do trabalho”. Ainda que restritivo esse preceito, sempre se adotou o mesmo procedimento para as ações de pequena empreitada, para as ações propostas (26) Vide comentários ao inciso IV. (27) Exemplo extraído a partir da decisão do STJ no CC 42514, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. em 22.9.2004. 76 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO pelos sindicatos cobrando suas contribuições sindicais, em face do empregador (litígio entre sindicato e empresa e não, entre empregado e empregador) e em outras que sempre tiveram curso na Justiça do Trabalho. Em princípio, portanto, estou certo que haverá uma tendência do juiz do trabalho em querer aplicar esse mesmo procedimento a toda e qualquer nova ação proposta na Justiça do Trabalho, à exceção daquelas de ritos especialíssimos, a exemplo do mandado de segurança, habeas corpus e habeas data. Acho até, de lege ferenda, que isso seria o ideal, com algumas exceções, até por entender como satisfatório, à prestação jurisdicional efetiva, o rito da ação trabalhista. É preciso lembrar, no entanto, que a CLT cuida do procedimento a ser adotado na ação trabalhista. E, para entendê-lo, é preciso lembrar que o processo do trabalho está para o direito processual civil, assim como os procedimentos especiais elencados no CPC. Para melhor compreensão dessas idéias e de forma resumida, diria que vislumbro apenas duas espécies de ações judiciais: a civil e a penal. Na jurisdição civil, no entanto, pode-se distinguir a ação com rito ordinário das ações com ritos especiais. Pode-se dizer, então, que ação civil ordinária é aquela tratada no CPC como procedimento comum. Excluo dessa classificação o procedimento sumário, já que ele possui rito diverso daquele tido como comum-ordinário. Classifico-o, aqui, portanto, como uma ação de procedimento especial, assim como todos os demais procedimentos especiais que encontram no procedimento comum-ordinário suas regras subsidiárias (parágrafo único do art. 272 do CPC). Incluo, assim, entre as ações com ritos especiais não só o procedimento sumário e os procedimentos especiais tratados no Livro IV do CPC, como, também, todas as outras ações de natureza civil que possuem ritos específicos, tratados na legislação esparsa e mesmo no CPC, e que têm as regras do procedimento comum-ordinário como fontes subsidiárias. Aqui, portanto, incluo, entre outros, o mandado de segurança, a ação rescisória, a ação cautelar, a ação de execução, a ação judicial que corre perante a Justiça Eleitoral e a ação trabalhista. A ação trabalhista, em verdade, é um procedimento especial, disciplinado em legislação específica (esparsa, em relação ao CPC). Tem, inclusive, as regras do procedimento ordinário como fonte subsidiária (CPC), desde a teoria geral do processo aos meios de impugnação às decisões judiciais. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 77 E mesmo o único princípio não comum a estes dois ramos do direito processual e que diferenciaria o processo laboral do civil, que é o princípio da proteção ao hipossuficiente — princípio este de direito material que contagia o processo trabalhista —, mesmo ele, hoje, já é inerente ao processo do consumidor. Sim, porque da mesma forma que o princípio da proteção ao hipossuficiente na relação de emprego contagia o processo do trabalho, a ponto deste ter regras que visam a compensar a inferioridade do trabalhador, mesmo na relação processual, a exemplo das regras de inversão do ônus da prova, ele mesmo (o princípio protetor) é encontrado na ação civil que tem por objeto a relação jurídica de consumo. Tanto isso é verdade que o princípio de direito material de proteção ao consumidor contamina a ação civil que cuida dos seus litígios, o que se exemplifica com a regra de inversão do ônus da prova. Mas o processo é instrumental. Ele faz atuar o direito material. Logo, o processo do trabalho, como já dito acima, está contaminado pelo princípio protetor do direito do trabalho (dos empregados)(28). Ele foi criado tendo em vista a relação jurídica de emprego. E o procedimento especial trabalhista (sumário e sumaríssimo), com especial ênfase na celeridade, na economia processual, na inversão do ônus da prova, concentração dos atos processuais, restrições processuais (descabimento de intervenção de terceiros, irrecorribilidade das interlocutórias, dentre outras), etc., justifica-se em face da natureza da relação de direito material que lhe é subjacente. Em suma, são os valores inerentes à relação de emprego que justificam o rito da ação trabalhista. Incorreto pensar, portanto, que o rito se justifica em face do órgão julgador (porque na JT, deve ser rito da CLT). Não à toa que perante o juiz de direito, no exercício da jurisdição trabalhista, é adotado o rito da CLT nas reclamações trabalhistas, assim como tal ocorria junto à Justiça Federal, quando esta tinha competência para julgar essas causas em relação à União, suas autarquias e suas empresas públicas (art. 125, I, da CF de 1967/69). Como lembram Orlando Gomes e Elson Gottschalk, “nunca será demasia insistir na necessidade de distinguir situações jurídicas, que não devem ser confundidas. O Direito do Trabalho não protege todos os economicamente fracos, mas, sim, uma grande parte dos que têm esta condição, aqueles, precisamente, que têm o estado jurídico de empregados, ou (28) Neste sentido, por todos, cf. FERRAZ, Sérgio. A norma processual trabalhista. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 24-64. 78 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO seja, de trabalhadores subordinados. Outros há, também, economicamente, fracos, que precisam de proteção jurídica. Mas essa proteção não pode ser a mesma que dispensa aos empregados, pela razão mui simples de que as medidas de tutela do Direito do Trabalho são tomadas no pressuposto de que o trabalhador é subordinado a alguém”(29). Ainda que a tendência seja de inserir no objeto do direito do trabalho outras categorias de trabalhadores, dando-lhes, ao menos, um mínimo de proteção, é certo que esta jamais poderá se igualar àquela dispensada aos empregados, inclusive em seus reflexos no direito processual, em face da condição desses últimos, de trabalhadores subordinados, e, portanto, em situação mais desfavorável do que os não-subordinados. É preciso, ainda, destacar que há uma gama tão grande de relações jurídicas de trabalho que passaram para a competência da Justiça do Trabalho, além de outras causas não diretamente derivadas da relação de trabalho (fiscais, administrativas, etc.), sujeitas a princípios de direito material diversos e distintos, que não se pode, precipitadamente, querer igualá-los à relação de emprego para efeito de aplicação do direito processual. Daí por que, como ensina Cândido Rangel Dinarmarco, “a realidade dos conflitos e das variadas crises jurídicas em que eles se traduzem gera a necessidade de instituir procedimentos diferentes entre si, segundo peculiaridades de diversas ordens, colhidos no modo de ser dos próprios conflitos, na natureza das soluções ditadas pelo direito substancial e nos resultados que cada espécie de processo propõe-se a realizar... Sempre, o procedimento deve ser adaptado à realidade dos conflitos e das soluções buscadas”(30). Exemplo se pode dar em relação aos contratos firmados pelos prestadores de serviços, inclusive profissionais liberais. Quando alguém contrata outrem para prestar serviços de forma autônoma, sem exercer sua atividade em favor do destinatário final ou lançada no mercado de consumo, sujeita-se, tão-somente, às regras materiais do Código Civil. Se, entretanto, esta mesma pessoa fornece sua atividade “no mercado de consumo, mediante remuneração” (§ 2º do art. 3º do CDC), prestando-a a um destinatário final (art. 2º do CDC), a esse contrato se aplicam, também, as regras de defesa do consumidor (inclusive de proteção processual). A relação continua sendo de trabalho, mas sujeita às regras (29) Curso de direito do trabalho, 16ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, nota de rodapé 24, p. 126. (30) Instituições de direito processual civil, vol. III. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 332-333. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 79 materiais de direito civil (direitos e deveres dos contratantes, etc.) e também às de proteção do consumidor (responsabilidade civil, cláusulas abusivas, propaganda enganosa, etc.). Assim, tem-se que, se a relação for de natureza somente civil, as partes devem ser tratadas em equilíbrio, em igualdade de condições ou, quando muito, protegendo-se o trabalhador (prestador de serviços). Se, entretanto, a relação também for de consumo (civil-consumidor ou comercial-consumidor), o CDC manda proteger o tomador dos serviços e não o prestador da atividade. Podem ser lembradas, ainda, as ações que envolvam exercício do direito de greve (inciso II do art. 114). Em face desse dispositivo, na Justiça do Trabalho podem, v.g., ser ajuizadas ações pelas empresas prejudicadas pela greve abusiva ou por qualquer outro interessado que tenha sido atingido pelo movimento paredista. Neste caso, então, poderse-á estar diante de lide formada entre pessoas que não merecem qualquer proteção especial, tendo em vista sua qualidade (empresa x sindicato; usuários do serviço paralisado x sindicato, etc.). O mesmo se diga das ações propostas contra a União, relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho. Aqui, ao certo, poder-se-á cuidar tanto da ação de execução fiscal, como de qualquer outra ação (anulatória, declaratória, mandado de segurança, etc.), entre o empregador e a União. Descabido, assim, data maxima venia, querer impor às partes, nestas ações, o rito próprio da ação trabalhista, só porque proposta perante a Justiça do Trabalho, quando sequer, nas referidas causas, se está diante de algum hipossuficiente. E as ações entre sindicatos, entre sindicatos e seus filiados e entre sindicatos e empresas sobre representação sindical? Já em algumas hipóteses essa situação se mostra gritante, como, por exemplo, em relação à execução fiscal das multas administrativas aplicadas pela Delegacia Regional do Trabalho, pois não há justificativa razoável para a adoção do rito da execução trabalhista contrário daquele estabelecido para o executivo fiscal (Lei n. 6.830/80). A partir desses exemplos se pode verificar, então, que não há harmonia de princípios que justifique a aplicação do mesmo rito processual (da CLT) a toda ação judicial de competência da Justiça do Trabalho. Obviamente, ainda, que não se pode querer mesclar os dois ritos (exemplo: citação, audiência, contestação, provas, etc., conforme à CLT; 80 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO recursos, conforme o CPC), sob pena de se violar o devido processo legal e se instalar a mais completa e caótica prestação jurisdicional, pois ninguém, ao certo, saberá o que deve ser aplicado desse ou daquele diploma processual, sem falar na absoluta insegurança jurídica daí advinda. Outrossim, cabe destacar que inexiste lei a respaldar o entendimento de que às novas ações se deve aplicar o rito consolidado, lembrando, mais uma vez, que o art. 643 da CLT submete ao procedimento ali previsto apenas as ações entre empregado e empregador e as ações dos avulsos(31). Concordo, porém, que deve ser editada, com máxima urgência, lei disciplinando essa matéria, sob pena de se instalar verdadeiro caos na Justiça do Trabalho, em face da disparidade de entendimentos que, ao certo, serão adotados pelos juízes e tribunais, gerando prejuízo à própria imagem da Justiça do Trabalho. Indispensável, portanto, a edição da nova lei a que se refere ao art. 113 da CF. Em suma, nada justifica mudar o procedimento só porque se alterou o órgão competente para julgar a causa, ao menos sem que haja lei expressa neste sentido(32). Data maxima venia, tal procedimento por parte dos juízes (mudança dos ritos sem lei autorizando), em todos os casos, seria violador do princípio do devido processo legal e do próprio Estado Democrático de Direito. Já foi dito, no entanto, que a adoção do rito procedimental previsto no CPC e na legislação esparsa conduzirá a um verdadeiro tumulto administrativo-jurisdicional, num primeiro momento, já que a Justiça do Trabalho não está preparada, em todos os sentidos, para tão radical mudança. Contudo, não podemos ser levados, por este despreparo momentâneo, para caminhos à margem da lei ou, simplesmente, a adotar posições (políticas) do que entendemos ser o ideal em termos de prestação jurisdicional. Tudo isso poderá conduzir a um maior desprestígio da Justiça do Trabalho. (31) Cabe ressaltar, porém, que o art. 789 da CLT, quanto ao regime das custas, estabelece que devem ser adotadas as regras ali mencionadas “nos dissídios individuais e nos dissídios coletivo do trabalho, nas ações e procedimentos de competência da Justiça do Trabalho...”. Assim, às novas ações de competência da JT se aplicam as regras da CLT, quanto as custas processuais, inclusive quanto ao seu recolhimento quando da interposição do recurso (seja ele qual for). (32) A exemplo do Projeto de Lei do Senado n. 288, em trâmite na Câmara dos Deputados, que prevê para as ações ali mencionadas (representantes comerciais, corretor, transportador, empreiteiro, etc.) a adoção do rito procedimental regulado na CLT. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 81 É preciso, portanto, perceber, em sua profundidade, a grandeza da mudança, aceitando-se, quer queira ou não, o entendimento de que a Justiça do Trabalho deixou de ser apenas uma “justiça da CLT”, inclusive em sua parte processual. Assim, data venia dos doutos que se posicionam em contrário, às novas ações de competência da Justiça do Trabalho, até ulterior alteração legislativa, aplicam-se as regras procedimentais previstas no CPC e na legislação processual esparsa, em toda sua extensão e com todas as suas conseqüências, inclusive quanto ao sistema recursal. Cabe lembrar, ainda, que, em se tratando de matéria de ordem pública, definidora de competência material, todos os feitos em curso na Justiça Comum e na Justiça Federal, inclusive nos respectivos Juizados Especiais, devem ser remetidos à Justiça do Trabalho. Tudo isso implica, de imediato, na necessidade de alteração dos regimentos internos dos tribunais, pois a eles compete conhecer dos recursos cíveis pertinentes, inclusive dos embargos infringentes. Situação curiosa resta em torno do recurso para o TST. É que o recurso especial somente é cabível para o STJ contra decisões proferidas pelos TRF’s e TJ’s. Outrossim, a CLT apenas prevê o recurso de revista para as causas ali disciplinadas. Logo, até que lei trate da matéria, as causas cíveis de competência da JT são irrecorríveis para o TST, comportando, porém, em matéria constitucional, o recurso extraordinário, diretamente para o STF. Em relação ao Juizado Especial, este poderá ser criado no âmbito da Justiça do Trabalho, desde que haja autorização dada por lei ordinária. Até lá, as causas que seriam da competência dos Juizados Especiais ficam sujeitas aos ritos disciplinados no CPC, no âmbito da Justiça do Trabalho, inclusive aquelas ações em curso antes da promulgação da Emenda da Reforma do Judiciário. Por fim, lembro que, até que haja lei dispondo em contrário, “quando, para cada pedido, corresponder tipo diverso de procedimento, admitir-se-á a cumulação, se o autor empregar o procedimento ordinário” (§ 2º do art. 292 do CPC). Assim, não sendo mais a Justiça do Trabalho uma “justiça da CLT”, em havendo cumulação da ação trabalhista (procedimento especial) com outra ação de procedimento diverso, dever-seá adotar o rito ordinário previsto no CPC(33). (33) Conforme lembrado anteriormente, no Projeto de Lei do Senado n. 288, em trâmite na Câmara dos Deputados, está previsto que as ações ali mencionadas (representantes comerciais, corretor, transportador, empreiteiro, etc.), quando cumuladas com a ação trabalhista, devem adotar o rito procedimental regulado na CLT. Tudo depende da lei, portanto. 82 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO A Natureza Jurídica da Relação de Trabalho (Novas Competências da Justiça do Trabalho — Emenda Constitucional n. 45/04) Francisco Rossal de Araújo(*) Introdução O objetivo do presente estudo é traçar os limites jurídicos da relação de trabalho. O tema normalmente é abordado pela doutrina tradicional(1) como preliminar ao estudo da relação de emprego. Em geral, afirma-se que a relação de trabalho é gênero, da qual a relação de emprego, notadamente caracterizada pela subordinação, é espécie(2). Entretanto, com a promulgação da Emenda Constitucional n. 45/04 que, entre outras modificações, altera a competência em razão da matéria da Justiça do Trabalho, a distinção teórica entre relação de trabalho e relação de emprego, adquire relevância. Por via reflexa, ao definir-se o conteúdo jurídico da relação de trabalho, estar-se-á definindo a competência material da Justiça do Trabalho. A conexão entre a definição jurídica de relação de trabalho — tema de direito material — e a atribuição de competência da Justiça do Trabalho — tema de direito processual — é muito importante e serve para demonstrar como um ramo da ciência jurídica pode influenciar em outro, apesar da pretendida separação teórica entre direito material e direito processual. Na verdade, a referida distinção só tem sentido no plano metodológico, e não deve servir como um fim em si mesma. A interpenetração dos campos do direito material e direito processual é freqüentemente admitida e, inclusive, destacada no princípio da instrumentalida(*) Juiz do Trabalho. Mestre em Direito Público (UFRGS). Doutorando em Direito do Trabalho (Universidade Pompeu Fabra — Barcelona). Professor Universitário — graduação e pósgraduação. Pesquisador do CETRA — Centro de Estudos do Trabalho (POA). (1) Nesse sentido, ver VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de. Relação de Emprego — Estrutura Legal e Supostos, 2ª ed., São Paulo: LTr, 1999. (2) Cf. GENRO. Tarso. Direito Individual do Trabalho, 2ª ed., São Paulo: LTr, 1994, p. 89/90. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 83 de processual(3). A definição material de relação de trabalho influenciará diretamente na regra de atribuição de competência do art. 114, I, VI e IX, da Constituição Federal, que dispõe ser competente a Justiça do Trabalho para conciliar e julgar as ações decorrentes das relações de trabalho, as ações de indenização por dano moral ou patrimonial decorrentes da relação de trabalho e outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei(4). Além do tema específico das relações de trabalho, a Emenda Constitucional n. 45/04 também amplia a competência da Justiça do Trabalho para outros campos, entre eles as ações envolvendo a fiscalização do trabalho (art. 114, VII, Constituição Federal), o direito de greve (art. 114, II, Constituição Federal), ações sobre representação sindical (art. 114, III, Constituição Federal), conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista (art. 114, V, Constituição Federal), mandados de segurança, habeas corpus e habeas data (art. 114, IV, Constituição Federal) e execução de contribuições sociais (art. 114, VIII, Constituição Federal). Entretanto, a presente exposição limita-se ao aspecto da definição jurídica da relação de trabalho e suas conseqüências práticas no julgamento de lides trabalhistas, buscando saber qual a Justiça competente para resolvê-las. Retornando ao caráter mais amplo da definição de trabalho, é inegável que existem relações do tema com aspectos econômicos e sociológicos. Ramos específicos da Economia e da Sociologia se dedicam ao estudo das relações de trabalho como fator econômico (Economia do Trabalho) e como fator social (Sociologia do Trabalho). Nesse estudo serão utilizados alguns conceitos de ordem econômica e sociológica, em especial na primeira parte, quando será analisada a questão do tra(3) Sobre o tema, ver DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 11ª ed., São Paulo: Malheiros, 2003. (4) O texto legal é o seguinte: “Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I. as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; ... VI. as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho; ... IX. outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.” A questão relativa aos servidores públicos, origem de controvérsia, será referida na quarta parte do presente estudo. 84 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO balho como um dos fatores de produção e a divisão social do trabalho. Por não se tratar de um artigo de Economia ou Sociologia, os conceitos utilizados apenas terão o caráter auxiliar na fundamentação de um conceito jurídico de relação de trabalho. O objetivo central é a análise jurídiconormativa. A estrutura do presente artigo está dividida em quatro partes: a primeira, tratará da definição de trabalho, em seus aspectos econômicos e sociológicos; a segunda, tratará de estabelecer um marco jurídico para a relação de trabalho; a terceira, fará a definição jurídica de relação de trabalho; e a quarta terá a finalidade de resolver controvérsias a respeito da competência material da Justiça do Trabalho. I. Definição de trabalho Nesta primeira parte, buscar-se-á entender o trabalho humano como um fator de produção, na concepção econômica tradicional, que relaciona os fatores de produção como sendo terra, trabalho, capital, tecnologia e capacidade empreendedora. Após, será analisada a onerosidade do trabalho, em sentido sociológico, caracterizando-o como esforço humano voltado para a caracterização de um fim, distinguindo-o de um trabalho feito por máquinas ou animais e do trabalho gratuito. Por último, serão analisadas algumas questões relativas à divisão social do trabalho, tanto sob o ponto de vista econômico como sob o ponto de vista sociológico. A. O trabalho como fator de produção A produção é a atividade econômica fundamental. Seu processo ocorre pela mobilização de cinco recursos, denominados fatores de produção: reservas naturais (fator terra), recursos humanos (fator trabalho), bens de produção (fator capital), capacidade tecnológica e capacidade empresarial(5). As reservas naturais, renováveis ou não, encontram-se na base de todos os processos de produção. Incluem o solo, subsolo, águas, pluviosidade, clima, flora, fauna e mesmo fatores extraplanetários como o sol. Em princípio, todas as reservas naturais são finitas, mas a sua dimensão real está relacionada com o conhecimento que o ser humano dispõe (5) As idéias fundamentais sobre fatores de produção são encontradas em ROSSETTI, José Paschoal. Introdução à Economia, 17ª ed., São Paulo: Atlas, 1997, p. 91 e ss. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 85 sobre a sua utilização. Dito de outro modo, se o ser humano descobre formas de explorar as reservas naturais de maneira mais racional (reciclando materiais, por exemplo), é possível que as reservas naturais levem mais tempo para se esgotar. O certo é que o fator terra (reservas naturais) constitui um conjunto determinado e finito de macrodisponibilidades, que podem ter sua exploração expandida de acordo com o desenvolvimento da ciência e da técnica. Os recursos humanos (fator trabalho) constituem a parcela da população que pode ser economicamente mobilizável. Apenas uma parte da população total encontra-se em condições de trabalhar. Nenhuma matéria-prima ganha significado econômico se não houver trabalho humano para transformá-la. Mesmo nas situações mais simples, como no caso da coleta, é preciso que um ser humano desenvolva algum tipo de esforço físico e/ou intelectual, para retirar o bem da natureza com a finalidade de trocá-lo, vendê-lo ou consumi-lo. Apenas a população, a partir de uma faixa etária vai compor o mercado de trabalho, caracterizando a população economicamente ativa. O mercado formal de trabalho contempla as relações contratuais de trabalho, em grande parte determinadas pelas forças de mercado, ao mesmo tempo que são objeto de legislação específica que as regula. O mercado informal de trabalho é aquele que funciona com um mínimo de influência governamental(6). Os limites inferiores e superiores do mercado de trabalho (quem entra e quem sai) são dados, ou por razões normativas (capacidade para o trabalho, aposentadoria, etc.), ou por razões naturais (acidentes, mortes, inexistência de vontade de trabalhar, etc.). A noção de que o mercado de trabalho é diferente de outros mercados, porque a demanda de mão-de-obra é derivada, é fundamental para a definição da relação de trabalho sob o ponto de vista jurídico. Em sua concepção econômica, o trabalho constitui um insumo para a produção de outros bens, não constituindo um produto final pronto para ser produzido(7). Sendo demanda derivada e fazendo parte do preço final de outros produtos, é possível que a remuneração pelo trabalho não corresponda totalmente ao valor que ele cria, ao transformar matérias-primas ou constituir-se em serviços, sendo apropriado o valor excedente pelo proprietário dos meios de produção sob a forma de lucro. Essa constatação eco(6) Cf. GREMAUD, Amauri Patrick e outros. Manual de Economia, 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 381/383. (7) Cf. MANKIW, N. Gregory. Introdução à Economia. Rio de Janeiro: Campus, 2001, p. 398. 86 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO nômica desmistifica a afirmação jurídica de que o salário é a contraprestação retributiva pelo trabalho desempenhado ou, em termos de direito das obrigações, é uma obrigação de dar que faz o adimplemento de uma obrigação de fazer. Embora essa afirmação seja válida sob o ponto de vista jurídico, havendo adimplemento total da obrigação, sob o ponto de vista econômico, ela não é correta, pois se o empregado recebesse de volta todo o valor correspondente ao seu trabalho, o proprietário dos meios de produção não teria lucro, o que contraria um dos fundamentos do sistema econômico capitalista. Portanto, a noção jurídica de relação de trabalho não corresponde exatamente à noção econômica de relação de trabalho. O mercado de trabalho é um mercado de fatores de produção e não um mercado de produtos. Sua demanda é derivada, e não originária. A variação no mercado de produtos afeta o mercado de trabalho e viceversa. Havendo pouca demanda no mercado de determinado produto, pode haver desemprego ou, ao contrário, havendo maior demanda, será necessário produzir mais e empregar maior quantidade de mão-de-obra. Visto pelo outro lado, havendo escassez de mão-de-obra (mercado derivado) poderá resultar em um encarecimento dos produtos, pois será necessário pagar melhores salários para produzi-los. Os bens de produção (fator capital) constituem o conjunto de riquezas acumuladas pela sociedade, tais como máquinas, equipamentos, ferramentas e instrumentos de trabalho, construções, edificações e toda a infra-estrutura econômica em geral. Será capital se esse conjunto servir para produzir novos bens e serviços(8). A formação do capital se dá pelo investimento líquido, que é o resultado de todo o investimento bruto menos a depreciação natural dos bens. Somente se transformará em capital capaz de produzir novos bens e serviços, o excedente sobre os gastos de manutenção do capital existente. De um certo ponto de vista, é possível afirmar que o capital é o valor do trabalho acumulado, mais o valor das matérias-primas. A idéia de capital pode ser didaticamente exposta do exemplo do camponês que habita uma cabana distante de uma fonte de água(9). Se ele deseja saciar sua sede, deverá deslocar-se até a fonte e apanhar a água com as suas mãos. Com tempo e com alguns recursos (trabalho, (8) Cf. ROSSETTI, José Paschoal, ob. cit., p. 121/125 e GREMAUD, Amauri Patrick e outros, ob. cit., p. 19. (9) O exemplo foi colhido na obra de GREMAUD, Amauri Patrick e outros, ob. cit., p.19. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 87 matéria-prima, tecnologia), poderá fabricar um balde e um reservatório e, com eles, diminuir o número de idas à fonte. Poderá, também, canalizar a água e ter um abastecimento mais cômodo do referido bem, abrindo possibilidade de utilizar de outra forma o tempo que normalmente gastava para ir à fonte, ou mesmo utilizar a água para outros fins (movimentar um moinho, por exemplo). O capital, portanto, é o acúmulo de vários fatores que possibilita potencializar a produção. O quarto fator de produção é a capacidade tecnológica (tecnologia), que é constituída pelo conjunto de conhecimento e habilidades que dão sustentação ao processo de produção(10). De nada adianta a existência de recursos naturais (terra), recursos humanos (trabalho) e bens de produção (capital), se não houver conhecimento e técnica a interligar os fatores de produção. Portanto, a capacidade tecnológica é o elemento dinâmico dos fatores de produção, ou, dito de outro modo, é o elo que liga terra, trabalho e capital. A capacidade tecnológica implica em capacitação para atividades de pesquisa e desenvolvimento, para desenvolver e implantar novos projetos e para operar atividades de produção. Esses três aspectos reunidos, desembocam nos processos de invenção e inovação introduzidos no mercado, implicando na mudança de materiais, processos e produtos. Para produzir, o mercado e o poder público precisam investir em formação cultural, ciência e tecnologia, potencializando a capacidade de invenção e inovação. Por último, o quinto fator de produção é a capacidade empresarial. A energia empreendedora é quem mobiliza todos os fatores e faz as escolhas valorativas, traçando os rumos a seguir. Esse fator de produção determina qual parcela da população será mobilizada, quais os padrões tecnológicos que serão empregados. Recursos humanos, capital, reservas naturais e tecnologia só geram fluxo de produção quando mobilizados e combinados. O elemento motivador da capacidade empreendedora é a obtenção do lucro (benefícios). A capacidade empreendedora possui certas características, como a visão estratégica, voltada para o futuro, capaz de antever novas realidades e direcionar a atividade produtiva para o caminho escolhido. Poderse-ia exemplificar com a relação entre artistas e mecenas no Renascimento (Leonardo da Vinci e Michelangelo, por exemplo). É certo que a (10) Cf. ROSSETTI, José Paschoal, ob. cit., p. 131. 88 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO genialidade é do artista, mas os meios e a determinação da obra foram direcionados pelo mecenas que anteviram a potencialidade criadora do artista e resolveram nela investir. Também é importante relacionar a capacidade empreendedora com a baixa aversão aos riscos do negócio e ao espírito inovador, capaz de quebrar paradigmas. A capacidade empreendedora somente se verifica se o empreendedor tiver acesso aos quatro outros fatores de produção e souber coordená-los e organizá-los para atingir um fim. A finalidade do empreendimento é que tem caráter valorativo e seus efeitos podem ser diretos e indiretos. Por exemplo, um determinado empreendedor tem por objetivo produzir determinado bem em sua terra natal, da qual saiu quando pequeno e que ainda permanece em situação de atraso econômico em relação à metrópole, na qual o empreendedor foi realizar seus estudos. A finalidade do empreendimento é gerar lucro (objetivo direto), mas isso não impede que sejam alcançados objetivos indiretos, como melhor distribuição de renda e desenvolvimento social da comunidade, atendendo a fatores de responsabilidade social (objetivo indireto). Em síntese, a produção de bens e serviços é o objetivo da atividade econômica e para que ocorra é necessário que estejam presentes, simultaneamente, cinco fatores: terra, trabalho, capital, tecnologia e capacidade empreendedora. O papel das relações de trabalho é fundamental para a produção, pois a atividade econômica deve ser orientada para a satisfação de necessidades do ser humano. A atividade econômica não é um fim em si mesma, mas responde ao fruto da racionalidade humana, visando a garantir meios de subsistência e conforto para o ser humano. B) O trabalho como esforço humano voltado para a realização de um fim Os seres humanos trabalham para atingir algum objetivo(11). Para os físicos, Trabalho é igual a força necessária para mover determinado objeto multiplicada pela distância (W= F.d). Toda a modificação da situação inercial de um objeto pode ser medida pela relação entre a força empregada para deslocá-lo e o deslocamento efetivamente realizado. Não importa se realizado por um ser humano, ou não. O problema é saber qual a concepção moral do trabalho, considerando a moral como atributo do ser humano, e como essa concepção se (11) Cf. OLEA, Manuel Alonso. Introdução ao Direito do Trabalho, 4ª ed., São Paulo: LTr, 1984. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 89 transforma em concepção jurídica. Dito de outro modo, como o ser humano vê o trabalho como imperativo categórico(12) de uma conduta e como o Estado regula essa atividade de forma heterônoma (externa ao indivíduo), buscando disciplinar a atividade e estabelecendo forma jurídicas para a sua realização (contratos, atos administrativos, etc.) e sanções para o caso de descumprimento de normas (indenizações, nulidades, etc.). A definição de trabalho varia no tempo e no espaço, mas, de um modo geral, pode-se afirmar que o trabalho é uma ação realizada por seres humanos que supõe um determinado gasto de energia, destinado a algum fim material ou imaterial, conscientemente desejado e que tem a sua origem e/ou motivação na insatisfação ou existência de uma privação ou necessidade por parte de quem o realiza(13). O trabalho é o método mediante o qual o homem transforma a natureza criando, ao mesmo tempo, riqueza e construindo a sua própria realidade. De certo modo, a história é o processo de criação, satisfação e nova criação de necessidades humanas a partir do trabalho(14). A atividade laboral constitui uma atividade essencial da espécie humana. É a atividade que possibilita a reprodução e a sobrevivência da espécie em um determinado nível de satisfação de necessidades. Tratase de uma atividade comum a todas as sociedades, adotando formas diversas em cada uma delas ao passar do tempo(15). O trabalho assalariado, tal como hoje se apresenta, apenas passou a ser a forma hegemônica de trabalho por conta alheia há muito pouco tempo (final do séc. XIX, na segunda Revolução Industrial). Mesmo na primeira Revolução (12) A expressão “imperativo categórico” é utilizada no sentido cunhado por Kant, significando o agir do indivíduo em conformidade com seus padrões morais. (13) Cf. AIZPURU, Mikel e RIVERA, Antonio. Manual de Historia Social Del Trabajo, Madrid: Ed. Siglo Veinteuno, 1994, p. 13. Para estudo mais aprofundado sobre as diversas perspectivas da definição de trabalho, ver FRIEDMANN, Georges e NAVILLE, Pierre. Tratado de Sociologia del Trabajo. México: Ed. Fondo de Cultura Económica, 1985, vol. I, p. 13/36 e SANTOS ORTEGA, J. Antonio. Sociologia del Trabajo, Valencia: Ed. Tirant lo Blanch, 1995, p. 36/40. Uma análise crítica do trabalho como categoria fundamental pode ser encontrada em OFFE, Claus. Trabalho e Sociedade, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 13/41. O referido autor comenta as definições de trabalho em MARX, DURKHEIM e HABERMAS, entre outros. Para uma análise comparativa do processo de divisão social do trabalho em Marx e Durkheim, ver FINKEL, Lucila. La Organización Social del Trabajo, Madrid: Ed. Pirámide, 1996, p. 13/26. (14) Cf. AIZPURU, Mikel e RIVERA, Antonio, ob. cit., p. 13. (15) Cf. RECIO, Albert. Trabajo, Personas, Mercados. Barcelona: Ed. Icaria, 1997, p. 25. Para a análise da evolução histórica, ver CARRO IGELMO, Alberto José. Historia Social del Trabajo, Barcelona: Ed. Bosch, 1986. 90 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Industrial (segunda metade do séc. XVIII), fenômeno tipicamente localizado na Inglaterra, o trabalho assalariado não era forma predominante nos processos de produção no mundo inteiro. Somente quando o Capitalismo(16) se fortalece e se expande como sistema econômico predominante, impondose sobre as forma remanescentes de Feudalismo (Europa) e outras formas arcaicas de produção (outras partes do mundo) é que o trabalho assalariado vai assumir posição dominante nas formas de relação de trabalho. A forma comum de trabalho que ocupou maior tempo na história da humanidade e ainda hoje é comum em locais onde a forma de produção capitalista não está totalmente implementada é o trabalho de auto-subsistência. Por trabalho de auto-subsistência entende-se o trabalho desenvolvido no interior de pequenos grupos (comunidades parentais, famílias no campo, etc.) para obter o conjunto de bens necessários à sua sobrevivência e algum conforto. Envolve atividades como coleta, caça, pesca, agricultura rudimentar e a produção de alguns artefatos em um contexto global que permita a sobrevivência do próprio grupo. É possível que nesses grupos exista algum grau de divisão social do trabalho, demarcando-se algumas atividades específicas para cada indivíduo(17). O trabalho de auto-subsistência contém os cinco elementos da produção econômica fundamental, possibilitando inclusive trocas entre indivíduos e/ou grupos dos excedentes materiais, mas sempre de forma primitiva ou rudimentar. Assim, encontram-se no trabalho de auto-subsistência o acesso aos recursos naturais (terra), a existência de recursos humanos (trabalho), a acumulação de alguns bens de produção (capital), a capacidade tecnológica para manipular fatores (tecnologia) e o espírito de coordenação e motivação (capacidade empreendedora). As comunidades rurais baseadas na agricultura ou criação animal são exemplos típicos de trabalho de autosubsistência. A característica do trabalho de auto-subsistência é o seu exercício livre e o não desenvolvimento da noção de lucro pela apropriação da mais-valia gerada pelo trabalho excedente(18). (16) A definição adotada para Capitalismo é a de que constitui um sistema econômico, baseado na propriedade privada dos meios de produção, liberdade de mercado e iniciativa, trabalho assalariado e lucro. (17) Ver RECIO, Albert, ob. cit., p. 27/28. (18) A noção de mais-valia é a relação entre trabalho necessário (para gerar a riqueza capaz de remunerar o trabalhador) e trabalho excedente (para gerar riqueza sob a forma de lucro do proprietário dos meios de produção). A expressão célebre de maisvalia deve-se a Karl Marx. A edição consultada foi MARX, Karl. O Capital, 2ª ed., São Paulo: Nova Cultural, 1985. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 91 Também o trabalho pode ser forçado, ou seja, todas as atividades laborais desenvolvidas por algum meio de coação. No trabalho forçado, a pessoa, de forma individual ou coletiva, trabalha por conta alheia, sendo que o beneficiário usufrui todo o resultado do labor. O exemplo mais importante de trabalho forçado é a escravidão. O senhor dos escravos beneficia-se com todo o resultado econômico do trabalho e apenas tem o dever de subsistência com o escravo, que nada mais é do que seu próprio interesse com relação à força motriz de sua atividade econômica. Historicamente, além da escravidão, existiam outras formas de trabalho forçado, como algumas formas de dominação colonial (como os nativos africanos e índios americanos, obrigados a trabalhar em obras de infra-estrutura que favoreciam à colonização) ou complexos sistemas de legitimação (feudalismo e servidão) em sociedades estamentais(19). Alguns Estados modernos ainda obrigam os presidiários a prestarem trabalhos forçados como forma de sanção ou como forma de compensação (redução da pena). Neste último caso, a norma legal admite a possibilidade de trabalho forçado, sendo lícita a sua exigência. Tal situação não pode ser confundida com variantes modernas de trabalho análogo ao escravo ou escravidão por dívidas, que constituíam prática social, mas são considerados ilícitos pelo ordenamento jurídico. Um terceiro tipo é o trabalho mercantil. Neste, o objetivo do trabalho não é a produção direta dos meios de subsistência para seus próprios produtores (trabalho de auto-subsistência) ou para seus amos e senhores (trabalho forçado). O objetivo do trabalho mercantil é a produção de bens de consumo, de forma livre e mediante retribuição (remuneração pelo trabalho). O trabalho mercantil só existe quando estão presentes algumas instituições, como um sistema organizado de trocas (mercado de produtos), existência de moeda (meio comum de troca) e a existência de alguma instituição política que garanta e avalize a validade da moeda em circulação(20). O trabalho mercantil é livre e remunerado, embora possa ser disciplinado por normas jurídicas e estabeleçam limites, modalidades e forma de contratação. O trabalho mercantil pode ser autônomo ou assalariado. (19) Cf. RECIO, Albert, ob. cit., p. 29. (20) Cf. RECIO, Albert, ob. cit., p. 30. Para compreensão do sistema de trocas, ver ROSSETTI, José Paschoal, ob. cit., p. 168/183 e STIGLITZ, Joseph E. Economía, Barcelona: Ed. Ariel, 1995, p. 945/967. Sob o ponto de vista histórico, ver WEATHERFORD, Jack. A História do Dinheiro, São Paulo: Ed. Negócio, 1999. 92 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO O trabalho autônomo não deixa de ser uma forma evoluída do trabalho de subsistência. A diferença é que no trabalho autônomo moderno existe a moeda (meio comum de troca), que substitui a apropriação direta de bens da natureza. Alguém trabalha e, em vez de apropriar-se diretamente da mercadoria, recebe uma unidade monetária de valor, com a qual pode comprar os bens que necessita. Assim como o trabalho de autosubsistência, o trabalho autônomo é livre, os trabalhadores realizam um serviço para o comprador dos serviços em troca de remuneração. Os trabalhadores autônomos controlam todo o processo laboral e são proprietários dos meios de produção que utilizam. Um artesão, por exemplo, compra a matéria- prima e a transforma em produto, fazendo a comercialização deste no mercado, estabelecendo o seu preço. O resultado da comercialização é apropriado pelo trabalhador. Por outro lado, o trabalho assalariado é aquele em que alguém trabalha sob as ordens de outro, e a pessoa implicada aporta exclusivamente sua atividade laboral em troca de remuneração (dinheiro). A forma jurídica de relação de trabalho assalariado é o contrato. A questão relativa à natureza jurídica da relação de trabalho será analisada em capítulo específico, inclusive com relação à sua onerosidade. C. Divisão social do trabalho Após a análise sobre o trabalho como fator de produção (aspecto econômico) e como meio de realização de um fim almejado pelo ser humano, é preciso considerar um aspecto fundamental da forma do ser humano trabalhar dentro de um grupo social racionalmente organizado. O estudo desta circunstância denomina-se divisão social do trabalho(21). Nenhum ser humano vive sozinho em sociedade e tampouco é autosuficiente no que diz respeito à capacidade de prover bens para a sua subsistência. Seria pouco provável a existência de um ser humano totalmente isolado, a não ser pela circunstância de algum acidente. Mesmo assim, esse ser humano hipoteticamente isolado poderia sobreviver por algum tempo, mas significaria o fim da espécie, pois não poderia procriar. (21) A referência obrigatória sobre o tema é SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1996, volumes I e II, em que o autor analisa os fenômenos de divisão social do trabalho no início da Revolução Industrial (segunda metade do século XVIII). Também é obrigatória a visão dos clássicos MARX, Karl. O Capital, 2ª ed., São Paulo: Nova Cultural, 1985 e DURKHEIM, Emile. La División del Trabajo Social. 3ª ed., Madrid: Ed. Akal, 1995. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 93 Trata-se de uma hipótese improvável, sendo certo que todo o ser humano, por ser animal gregário, tende a necessitar da cooperação e cooperar com outros seres humanos, para conseguir a sua auto-subsistência. Em toda a natureza existem animais gregários que, em maior ou menor grau, dividem as tarefas dos indivíduos dentro dos grupos. Nessas espécies, para facilitar a sobrevivência, determinados indivíduos se especializam em determinadas funções, obtendo, com esse procedimento, resultados mais satisfatórios para o grupo(22). Em todas as sociedades humanas conhecidas existe maior ou menor grau de divisão social do trabalho, que pode desenvolver-se em distintos níveis: cooperação para manter os indivíduos que não estão em condições físicas de garantir a subsistência (crianças, idosos e enfermos); cooperação na transmissão de conhecimentos tecnológicos que permitam aos diversos indivíduos alcançar certo grau de desempenho produtivo; cooperação de diversas pessoas para obter um determinado resultado positivo(23). A cooperação para obter um resultado positivo pode ocorrer por duas formas: a primeira, pelo fato de que o trabalhador não conseguiria o resultado se necessariamente não contasse com a ajuda dos demais. Isso ocorre com atividades que exijam mobilização de grande número de pessoas (remoção de obstáculos naturais, colheitas em certo prazo, etc.). Somente a coordenação e especialização do trabalho permitem alcançar o resultado que seria impossível ao indivíduo isolado(24). A segunda, é a circunstância de que um indivíduo sozinho pode alcançar determinado resultado, sendo capaz de realizar todos os processos envolvidos na produção de um bem. Entretanto, se esse processo de produção for decomposto em várias atividades distintas, e sendo cada atividade exercida por uma pessoa especializada, o resultado produtivo será muito mais eficiente. O exemplo clássico desse segundo aspecto da cooperação, para obter um resultado positivo está na descrição das atividades de manufatura de alfinetes, feita por Adam Smith(25). Nessa pas(22) O exemplo mais conhecido e didático são as abelhas e as formigas. Entretanto, a especialização de tarefas é extremante comum entre mamíferos gregários, herbívoros ou carnívoros. (23) Cf. RECIO, Albert, ob. cit., p. 22/23. (24) Idem, p. 23. (25) O exemplo está mencionado no clássico “A Riqueza das Nações”, já mencionado e é paradigmático para ressaltar a importância das primeiras reflexões sobre divisão social do trabalho e seus reflexos econômicos. Sobre o tema, ver FINKEL, Lucila. La Organización Social del Trabajo, Madrid: Ed. Pirámide, 1996, p. 14/15. 94 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO sagem, está descrita a atividade do mestre artesão que fazia todo o alfinete, em comparação com a fábrica de alfinetes, onde cada trabalhador exercia uma tarefa distinta, no processo de produção de alfinetes, como esticar o arame, cortá-lo, fazer a ponta e a cabeça, etc. Para um objeto tão simples como um alfinete, Adam Smith identifica dezoito operações distintas, para completar o processo de fabricação. Entretanto, ao passar da concentração de todas as tarefas em um só artesão para a divisão das atividades entre vários trabalhadores, os resultados produtivos são impressionantes: enquanto um trabalhador isolado podia produzir ao redor de 20 alfinetes por dia, a simples separação de tarefas, a colaboração entre trabalhadores e o uso da maquinaria, permitem produzir 48.000 alfinetes por dia, ou seja, 240 vezes mais. O incremento de produtividade decorrente da divisão social do trabalho ocorre por várias razões: a) o aumento da destreza dos trabalhadores, como conseqüência de suas atividades se limitarem a uma só operação; b) a economia de tempo, que de outra forma se perderia ao passar de uma atividade para a outra; e c) uso de máquinas que facilitam e reduzem o trabalho, permitindo que um só trabalhador realize o trabalho de muitos. A divisão social do trabalho cresce à medida que se torna complexa a sociedade. Os indivíduos necessitam de bens que não são capazes de obter sem a colaboração de outros indivíduos. Em qualquer sociedade é necessário desenvolver mecanismos que favoreçam a cooperação. Quanto maior seja o volume de uma sociedade e mais ampla a divisão social do trabalho, mais complexos serão os problemas de coordenação das atividades desenvolvidas pelos diversos indivíduos e as atividades de coordenação adquirirão maior importância(26). Nesse ponto é que a divisão social do trabalho adquire uma face jurídica. As normas jurídicas vão disciplinar aspectos relevantes da divisão social do trabalho, dentro de uma sociedade. Existem experiências históricas de formas jurídicas dessa regulação, algumas descentralizadas e outras centralizadas. As formas jurídicas descentralizadas de regulação da divisão social do trabalho correspondem à economia de mercado, no qual indivíduos trocam a produção realizada em um mercado, utilizando como instrumento jurídico os contratos (compra e venda, troca, etc.). Nas formas centralizadas, o processo de coordenação da divisão social do trabalho é realizado por um ente centralizado (como a (26) Cf. RECIO, Albert, ob. cit., p. 23/24. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 95 experiência da antiga União Soviética e outros países que tiveram experiência com socialismo histórico(27)). No mercado de trabalho é utilizada a forma contratual. Essa forma contratual está submetida a uma normatividade que a disciplina. Na execução de um contrato de trabalho, além das obrigações derivadas do contrato em si, o tomador do trabalho (credor) tem à sua disposição o poder disciplinar, o poder diretivo e o poder de hierarquizar as distintas atividades. O poder diretivo, o poder disciplinar e o poder hierárquico são as três expressões da chamada subordinação subjetiva (poder de dar ordens ao empregado), que é a base da relação de trabalho assalariado no sistema capitalista. A subordinação é o traço principal do contrato que expressa o trabalho assalariado(28). Um outro aspecto da divisão social do trabalho é o fato de que ela limita o nível de controle que cada indivíduo tem sobre as decisões e os objetivos do processo produtivo. Quando se depende dos outros, o grau de controle sobre o processo produtivo dar-se-á pela forma jurídica como se regula o processo produtivo, uma vez que o poder de decisão sobre a forma de produzir ou sobre o que produzir poderá ter maior ou menor grau de liberdade. As normas de uma sociedade tendem a definir os diferentes graus de influência social sobre as decisões econômicas básicas, o que se traduz em distintos graus de controle dos indivíduos sobre o processo produtivo(29). A isso se denomina de interferência do Estado na Economia (Poder normatizador) e, indiretamente, na regulação da Divisão Social do Trabalho. Como resumo dessa primeira parte, pode-se afirmar que a relação de trabalho é um dos cinco fatores de produção (terra, trabalho, capital, tecnologia e capacidade empreendedora) e constitui um esforço humano visando a uma finalidade, a sua subsistência ou a satisfação de uma necessidade. Como o ser humano não vive isolado, o seu trabalho está relacionado com o trabalho de outros seres humanos e só com especia(27) A expressão “socialismo histórico” é aqui utilizada como experiência empírica de uma determinada sociedade, em contraposição à expressão “socialismo científico”, que é reservada para as especulações teóricas. (28) Cf. VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de, ob. cit., p. 462/464. Sobre o poder disciplinar, ver COUTINHO, Aldacy Rachid. Poder Punitivo Trabalhista, São Paulo: LTr, 1999. Uma reflexão mais aprofundada sobre subordinação e liberdade pode ser encontrada em SUPIOT, Alain. Crítica del Derecho del Trabajo. Madrd: Ed. Ministerio del Trabajo y Asuntos Sociales, 1996, p. 135/147. (29) Cf. RECIO, Albert, ob. cit., p. 24. 96 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO lização e coordenação de atividades é que se consegue que os bens gerados por uns cheguem aos demais de forma a garantir a subsistência de todos de forma mais eficaz possível. A sociedade cada vez mais complexa exige a normatização das relações de trabalho, estabelecendo pautas de conduta e sanções para o caso de descumprimento. No sistema capitalista, a normatização das relações de trabalho se dá pelo contrato, que estabelece os referenciais mínimos como sujeito, objeto e conteúdo. Também as normas legitimam certos poderes sociais decorrentes da divisão social do trabalho, como os poderes de direção, punição e hierarquização, que constituem o traço característico do trabalho assalariado (subordinação). As normas jurídicas disciplinam o contrato em si e o contrato em relação aos demais indivíduos. Embora possa ser vista sob os ângulos econômico (fator de produção), sociológico (divisão social do trabalho) e jurídico (subordinação), a relação de trabalho é desses paradigmas sociais multifacetados, que sempre permitem um novo ângulo de abordagem. Nos próximos segmentos do presente trabalho serão aprofundadas as questões jurídicas, sem esquecer de que pode ser simplesmente um reflexo dos aspectos econômicos e sociológicos. II. Marco jurídico da relação de trabalho A segunda parte deste estudo tem por objetivo estabelecer qual o marco jurídico da relação de trabalho. Na primeira parte foi visto que o trabalho é considerado como fator de produção sobre regulação normativa em si mesma (contrato) ou em relação aos demais indivíduos (divisão social do trabalho). O objetivo agora é refletir sobre os temas jurídicos específicos, procurando situar a relação de trabalho dentre os paradigmas jurídicos definidos. O presente capítulo abordará, na primeira parte, a distinção entre trabalho subordinado e trabalho autônomo como pressuposto para a análise e seu reflexo na interpretação da reforma constitucional protagonizada pela Emenda Constitucional n. 45/04. Depois, de forma rápida e objetiva, serão analisadas as dicotomias continuidade/eventualidade, pessoa física/pessoa jurídica como prestadora de trabalho e, por último, onerosidade/gratuidade(30). (30) As referências doutrinárias sobre tais temas utilizadas neste capítulo foram expostas pelo autor na obra. A Boa-fé no Contrato de Emprego, São Paulo: LTr, 1996. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 97 A. Trabalho autônomo e trabalho subordinado A expressão “relação de trabalho”, constante do art. 114, I, da Constituição Federal, que atribui competência para a Justiça do Trabalho, não refere se se trata de trabalho autônomo ou subordinado. O trabalho, sob o aspecto econômico, é um fator de produção que pode ser utilizado tanto de forma autônoma como subordinada (dependência econômica + poder de direção). Para um economista, a produção de um determinado bem visando satisfazer uma necessidade humana poderá ser feita tanto por uma empreitada (trabalho autônomo) quanto por uma relação de emprego (trabalho subordinado).A única certeza é de que as duas formas jurídicas (autônomo e subordinado) estão em um contexto normativo de liberdade de contratar. Do contrário, apareceriam formas de trabalho forçado ou coativo como a escravidão e a servidão(31). Portanto, o trabalho livre (em sentido lato, opondo-se ao trabalho coativo) poderá ser autônomo ou subordinado. O trabalho autônomo caracteriza-se por constituir vínculo jurídico fundado na predeterminação da prestação, que não sofrerá intervenção do credor do trabalho e na circunstância de que o poder jurídico reservado ao prestador encerra o poder de auto-organizar o próprio trabalho, com ou sem o concurso de outrem(32). Quanto ao primeiro aspecto, significa que o trabalho autônomo em geral tem por objetivo um resultado e não a atividade em si. O credor estabelece com o devedor uma determinada meta e a atividade é o meio para se atingir a finalidade. É o que ocorre, por exemplo, nos contratos de empreitada ou mandato. Embora possam existir situações dúbias, considerando a dificuldade de se definir, no caso concreto, o que é meio e o que é fim, o certo é que o critério tem alguma utilidade, pelo menos para estabelecer uma prescrição relativa. O segundo aspecto, a auto-organização do trabalho, também deve ser analisado com cautela e sempre dentro de parâmetros concretos. O trabalhador autônomo desenvolve seu trabalho com organização própria, (31) Definir trabalho autônomo e trabalho subordinado constitui uma das tarefas mais difíceis do Direito do Trabalho. Tal objetivo não é o centro deste estudo e as considerações sobre o tema aqui realizadas apenas servem como suporte para reflexões sobre um tema de Direito Constitucional e Direito Processual, que é o estudo da competência material da Justiça do Trabalho no Brasil. Sobre o tema, a obra de referência é de autoria de Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena, já citada, que constitui o estudo mais alentado sobre relação de emprego na doutrina brasileira. (32) Cf. VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de, ob. cit., p. 482. 98 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO iniciativa e discricionariedade, escolhendo o modo, o tempo, o lugar e a forma de execução. A iniciativa de auto-organização enfatiza a liberdade do prestador que pode dispor da sua atividade, inclusive para mais de um contratante. O autônomo atenderá a contento os diversos credores de serviços(33). A subordinação pode ser vista sob aspecto subjetivo e sob aspecto objetivo. O aspecto subjetivo da subordinação caracteriza-se pela consciência de cumprir ordens, por parte do trabalhador e pela justificação legal destas ordens por parte do empregador. Os poderes do empregador são amparados pelo ordenamento jurídico, expressando-se sob as três vertentes conhecidas: poder diretivo, poder disciplinar e poder hierárquico. O empregador tem para si legitimado o poder de estabelecer a forma, o modo, o tempo e os desígnios do contrato, apropriando-se com amparo legal, dos resultados excedentes da prestação de trabalho, sob a forma de lucro. É certo que estes poderes de direção, disciplina e hierarquia não são ilimitados, tendo o empregador que exercê-los dentro de parâmetros também estabelecidos por normas jurídicas. Assim, o poder disciplinar encontra seu limite nas normas sobre o respeito à integralidade física do empregado e aos seus direitos de cidadão (liberdade, privacidade, etc). Além disso, o poder disciplinar deve respeitar a adequação da sanção imposta no âmbito contratual com a gravidade da falta (proporcionalidade). Também o poder diretivo encontra limites no próprio contrato, pois o empregado contrata como um cidadão livre, e a remuneração deve ser proporcional ao contratado, bem como não está obrigado a cumprir ordens ilegais(34). Por último, o poder hierárquico também encontra limitações nas normas constitucionais(35) e legais(36) a respeito da isonomia. O aspecto objetivo da subordinação consiste na inserção do (33) Idem, p. 483. (34) Todo contrato deve ter objeto lícito, possível, determinado ou determinável (art. 104, do Código Civil). Embora o contrato de emprego seja um contrato de atividade, no qual se admite certo grau de indeterminação (vide art. 456, parágrafo único, da CLT), o empregador não pode estabelecer indeterminadamente o objeto da prestação, sob pena de caracterizar-se um contrato leonino. Também o objeto do contrato de emprego subordinado deve submeter-se aos dispositivos gerais de licitude do objeto, com especial atenção à cláusula geral de nulidade no art. 9º da CLT e no art. 166, III e VI, do Código Civil, no que tange a contrato com motivos ilícitos ou que tenham por finalidade fraudar lei imperativa. (35) Art. 7º, XXX, XXXI e XXXII, Constituição Federal. (36) Arts. 460 e 461, CLT. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 99 trabalho do devedor nos desígnios econômicos do credor. Existe um constante círculo de expectativas entre credor e devedor: o credor (empregador) precisa que o empregado aliene sua força de trabalho para que possa impulsionar os demais fatores de produção; o devedor (empregado) precisa de seu emprego, pois dele depende economicamente para a sua subsistência ou, se não depende, dele obtém remuneração para satisfazer algumas de suas necessidades pessoais. Trata-se de uma participação interpretativa da atividade-trabalho na atividade da empresa(37). A relação de trabalho mencionada no art. 114, I, da Constituição Federal não distingue entre trabalho autônomo e trabalho subordinado. Se houvesse alguma restrição apenas ao âmbito do trabalho subordinado, a expressão correta seria “relação de emprego”, pois esta é espécie da relação de trabalho que, por seu turno, constitui gênero. Portanto, a competência da Justiça do Trabalho é para solucionar ações envolvendo relações de trabalho no sentido lato, estejam elas inseridas num contexto de auto-organização do trabalho (trabalho autônomo) ou num contexto de consciência de cumprir ordens, interando-se nos desígnios econômicos da empresa (trabalho subordinado). Na terceira parte deste estudo será realizada a definição jurídica de relação de trabalho. É difícil encontrar na bibliografia tal definição, pois a maioria dos autores parte do pressuposto de que se conhece que a relação de trabalho é gênero da qual a relação de emprego é espécie. B. Continuidade e eventualidade No Direito do Trabalho brasileiro, a continuidade constitui elemento da relação de emprego. Embora não se tenha na legislação trabalhista uma definição de relação de emprego(38), ou definição de empregado contida no art. 3º da CLT, refere-se à prestação não eventual de serviços. Contínuo ou não eventual, o contrato de emprego tem uma relação com o tempo, sendo uma obrigação contínua ou de trato sucessivo(39). A (37) Cf. VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de, ob. cit., p. 477. As expressões credor/ devedor referem-se às obrigações salariais. Poderiam ser invertidas no caso da obrigação ser o trabalho. (38) A única referência defeituosa sobre o tema está no art. 442, da CLT, que possui uma definição “circular”, sem explicitar os elementos do vínculo de emprego. O texto legal é o seguinte: “Contrato individual de trabalho é o acordo, tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego”. (39) As obrigações quanto ao tempo de sua execução dividem-se em obrigações instantâneas, obrigações diferidas e obrigações contínuas ou de trato sucessivo. 100 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO expressão “trabalho não eventual” ou “continuidade” constitui um conceito jurídico indeterminado(40), ou conceito valorativo, que tem de ser preenchido no caso concreto. Pode ocorrer que um contrato inicialmente previsto para ser instantâneo ou de execução diferida, se transforme em um contrato de trato sucessivo, porque as partes não ajustando contínuas atividades, que somadas, acabam por modificar-lhe a natureza. De qualquer forma, como regra hermenêutica, no contrato de emprego presume-se a continuidade, devendo ser demonstrada a existência de termo resolutivo(41). Podem existir relações de emprego por prazo indeterminado e por prazo determinado, assim como podem existir relações de trabalho (não subordinado) por prazo indeterminado ou por prazo determinado. As relações de representação comercial são típicas relações de trabalho não subordinado ou autônomas, que podem ser pactuadas por tempo determinado ou indeterminado(42). Outro exemplo é a empreitada de lavor que normalmente é pactuada por tempo determinado, em virtude da característica de consistir na realização da obra determinada, mas pode, conforme o caso, não ter uma data certa para o seu término, apenas possuindo uma expectativa de realização aproximada. A Justiça do Trabalho tem competência para apreciar ações envolvendo litígios decorrentes de relações de trabalho eventual ou contínuo, seja ele subordinado ou não. Até a promulgação da Emenda Constitucional n. 45/04, a competência restringia-se à relação de emprego nãoeventual (salvo exceções previstas em lei). Como a não-eventualidade é um requisito para a caracterização do vínculo de emprego, na prática a competência da Justiça do Trabalho era majoritariamente voltada para relações não-eventuais, ou seja, com continuidade. Como o contrato de emprego contém uma obrigação de fazer específica (atividade), as obrigações vão aparecendo e desaparecendo no seu decorrer, com contínuos adimplementos recíprocos. O contrato é um só, mas as obrigações se sucedem. (40) Sobre os conceitos jurídicos indeterminados ver HENKE, Horst Eberhard. La Cuestión de Hecho. Buenos Aires: Ed. Ediciones Jurídicas Europa-America, 1979. (41) Na verdade, dentro da teoria geral do negócio jurídico, os elementos acidentais devem ser enunciados expressamente. Os elementos essenciais (capacidade, manifestação de vontade sem vícios e objeto lícito) não precisam de cláusula expressa por situarem-se no plano da validade. Os elementos acidentais (modo, termo e condição), por situarem-se no plano da eficácia, precisam de enunciação expressa. Um contrato por tempo determinado é, na verdade, um contrato a termo, ou seja, sua eficácia encontra-se submetida a um evento futuro e certo (termo final). (42) Ver Lei n. 4.886/65, art. 27, c. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 101 Entretanto, a relação de trabalho não tem como elemento essencial a continuidade. Pode perfeitamente haver uma relação de trabalho que ocorra apenas em um só dia ou num único final de semana, como, por exemplo, o trabalho em um evento, festa ou feira de exposição. Será uma relação de trabalho que não caracteriza uma relação de emprego, porque não tem um de seus elementos que é a continuidade. Outro exemplo comum de trabalho eventual são os “chapas” e os “biscateiros”, ou mesmo pequenas empreitadas normalmente chamadas de prestação de serviços, comuns na construção civil, manutenção de prédios, instalações elétricas e hidráulicas, etc. Todo este variado espectro de relações de trabalho de caráter eventual pode gerar conflitos, inadimplementos, nulidades, etc. O ramo do Judiciário que resolverá os conflitos daí resultantes será a Justiça do Trabalho por força do art. 114, I, da Constituição Federal. C. Pessoa física e pessoa jurídica como prestadoras de trabalho. A questão da pessoalidade. Outra relevante questão a ser enfrentada, dentro do estudo da relação de trabalho, é a característica de ser ou não intuitu personae, com relação à figura do prestador de trabalho e quais os reflexos que isso gera na fixação da competência. Em outras palavras, a questão é saber se a pessoalidade, seja o trabalho autônomo ou subordinado, é elemento da relação de trabalho em sentido lato. Para se ter a resposta a este questionamento é preciso buscar a definição de pessoa, distinguir pessoa natural de pessoa jurídica e analisar se pessoas jurídicas podem ser partes em uma relação de trabalho em sentido lato como o previsto no art. 114, I, da Constituição Federal. Não há dúvida de que uma pessoa física (ou pessoa natural) pode ser parte de uma relação de emprego (trabalho subordinado) e que estão expressamente excluídas as pessoas jurídicas como prestadoras de trabalho. Os textos legais, que definem empregador e empregado na CLT (arts. 2º e 3º), autorizam essa conclusão ao utilizarem as expressões “prestação pessoal de serviços” e “considera-se empregado toda a pessoa física...”. Portanto, dentro da relação de emprego tradicional o problema encontra-se resolvido(43). (43) Para aprofundar-se sobre a noção de pessoalidade na relação de emprego, ver VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de, ob. cit., p. 350/357 e MORAES FILHO, Evaristo de. Do Contrato de Trabalho como Elemento da Empresa. São Paulo: LTr, 1993. 102 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO A questão encontra-se em aberto no que tange à relação de trabalho (em sentido lato), porque não há conceituação desse instituto sob o ponto de vista jurídico. O conceito de trabalhador envolve a noção de pessoa e pessoalidade. Dispõe o Código Civil que toda a pessoa é capaz de direitos e obrigações (art. 1º). A personalidade é a aptidão para contrair obrigações e exercer direitos e a capacidade é a medida jurídica da personalidade. Somente uma pessoa capaz pode praticar plenamente os atos da vida civil, embora toda a pessoa possa ser sujeito de direitos e obrigações. A existência da pessoa natural inicia com o nascimento com vida e termina com a morte(44). O trabalhador pessoa natural tem por pressuposto a capacidade para contratar, pois o contrato para ser válido, exige agente capaz (pessoa com personalidade dimensionada para praticar atos jurídicos). Como na maioria dos casos se pensa em relação de trabalho como sendo relação de emprego, ou seja, trabalho subordinado, a tendência é pensar que o trabalhador pessoa física tem a consciência de cumprir ordens. A consciência é um atributo de um indivíduo e não existiria em pessoas jurídicas, pois estas constituem uma abstração jurídica. Logo, as relações de trabalho subordinadas (relações de emprego), necessariamente têm de ser pessoais com relação ao empregado, pois pessoas jurídicas não teriam a consciência de cumprir ordens. As pessoas jurídicas são uma abstração do mundo jurídico. Tratase de um conceito jurídico definitório, que cria uma definição auxiliar, abstrata, que será utilizada para regular determinadas relações previstas pelo ordenamento jurídico(45). O Código Civil estabelece que as pessoas jurídicas, para adquirirem o benefício da autonomia patrimonial em relação aos seus membros e para obterem reconhecimento de existência válida, precisam ter seus atos constitutivos levados a registro (art. 45, Cód. Civil). (44) As noções de Direito Civil utilizadas são encontradas em GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil, 10ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1991. (45) Uma visão original da distinção entre pessoa natural e pessoa jurídica pode ser encontrada em KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. Para o autor, a distinção não tem razão de ser porque em ambos os casos o que importa é como as normas jurídicas regulam a conduta dos indivíduos. Para Kelsen, o Direito não se interessa pelo indivíduo de carne e osso, mas apenas o reflexo de seu agir no mundo normativo. A pessoa jurídica seria apenas uma técnica normativa que prevê casos em que as normas disciplinam a conduta de um grupo de indivíduos e não a conduta de um indivíduo isoladamente. No fundo, as normas regulam condutas de indivíduos, vistas de forma isolada ou agrupada. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 103 Uma pessoa jurídica regularmente constituída pode ter fins econômicos, ou não. Pela sistemática adotada pelo Código Civil de 2002, as sociedades necessariamente têm fins econômicos (art. 981), enquanto que as Fundações e Associações não tem o intuito de lucro (art. 53 e art. 62, parágrafo único)(46). Se não houver resultado econômico ou onerosidade, como será visto no próximo tópico, não existe relação de trabalho, seja ela autônoma ou subordinada. Se o trabalho é considerado um fator de produção, sendo uma das formas principais da atividade econômica, conforme analisado na primeira parte deste estudo, não é possível que exista relação de trabalho a título gratuito. Essa conclusão exclui as pessoas jurídicas de natureza não econômica (associações e fundações) da possibilidade teórica de fazerem parte de uma relação de trabalho como prestadoras de trabalho. Resta analisar a possibilidade das sociedades (com fins econômicos) serem parte de relações de trabalho como prestadoras de trabalho. As sociedades têm por objeto a comum intenção de dividir perdas e lucros (affectio societatis). A definição, por si só, exclui que possam praticar trabalho subordinado, pois a definição legal de empregado não é compatível com a circunstância de assumir os riscos da atividade econômica. Pelo contrário, no trabalho subordinado é o empregador que assume tal risco (art. 2º, da CLT). Portanto, sociedades (pessoas jurídicas que visam fins econômicos) não podem realizar trabalho subordinado, porque este é incompatível com os riscos do negócio, em nosso sistema jurídico(47). Subsiste, em teoria, a questão da relação de trabalho autônoma poder ser praticada por pessoa jurídica. Na prática, a hipótese teórica englobaria todas as empresas prestadoras de serviço, empresas de representação comercial, empreitadas de lavor contratadas por pessoas jurídicas, relações entre clientes e clínicas médicas, odontológicas, etc. No fundo, a questão seria saber se a relação de trabalho pode ser sinônimo de prestação de serviço. (46) O texto legal é o seguinte: art. 53 — “Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos”. art. 62 ... parágrafo único. “A fundação somente poderá constituir-se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência”. (47) Os riscos do negócio não se confundem com algumas formas de remuneração variável, como a participação nos lucros e resultados. Nesse caso, o empregado participa de forma limitada nos benefícios, mas não sofrerá redução remuneratória no caso de não haver lucro. 104 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Em primeiro lugar, é preciso verificar o disposto no Código Civil sobre o contrato de prestação de serviço. A matéria está disciplinada nos artigos 593 a 609, do Código Civil de 2002, e veio a substituir a antiga denominação de contrato de locação de serviços. O contrato de prestação de serviços nada mais é do que a antiga locatio conductio operarum, sendo que o próprio Código Civil dispõe que será aplicado apenas de forma subsidiária quando não houver legislação especial pertinente(48). Embora tenha mudado a denominação, o novo Código Civil praticamente não alterou o disposto sobre a locação de serviços, perdendo boa oportunidade para atualizar as normas civis sobre um fenômeno cada vez mais freqüente, como a prestação de serviços. Na prática, o contrato de prestação de serviços continua sendo um contrato intuitu personae, como se pode ver dos artigos 595, 601 e 607 do Código Civil(49), estando em desuso. Infelizmente, a legislação civil não está apta para resolver o problema teórico da distinção entre relação de trabalho e prestação de serviço, nem o problema se uma pessoa jurídica que vise lucro pode ser parte numa relação de trabalho. A solução terá de ser encontrada na origem dos institutos jurídicos envolvidos, em especial nas finalidades da sociedade empresária. Como se sabe, a sociedade necessariamente tem fins econômicos e objetiva a repartição de lucros e perdas. No plano interno da sociedade pode ocorrer que, não obstante todos os esforços dos sócios, o empreendimento econômico não prospere e não haja resultado para compartilhar. Houve trabalho (em sentido lato) destinado à consecução de um fim, mas este fim não se realizou e esta circunstância está dentro dos riscos inerentes a todo o empreendimento econômico. Pode ter ocorrido algum evento climático, alguma falha na estratégia de marketing ou simplesmente o produto lançado não agradou ao mercado. Houve trabalho, houve esforço para realizar um fim, mas não há benefícios para dividir. Assim, dentro de uma sociedade o que impera é a noção de risco, não se constituindo relação de trabalho(50). (48) O texto legal é o seguinte: art. 593. “A prestação de serviço, que não estiver sujeita às leis trabalhistas ou à lei especial, reger-se-á pelas disposições deste Capítulo”. Sobre a adaptação da locatio conductio operarum aos tempos atuais ver SUPIOT, Alain, ob. cit., p. 135/147. (49) Os referidos artigos dispõem, respectivamente, sobre as partes saberem ler ou escrever, sobre os serviços compatíveis com as suas forças e condições e sobre o rompimento do contrato por morte de uma das partes. Como se vê, todos esses dispositivos legais se referem as características de pessoalidade. (50) Em Direito Mercantil, a remuneração dos sócios pode ocorrer pelo trabalho (pro labore) ou pelo capital investido (distribuição de lucros e resultados). Ver, sobre o tema, COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, vol. III. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 105 No plano externo, a sociedade pode prestar serviço para outra empresa ou mesmo para uma pessoa física. No caso, quem contrata o serviço não está interessado na pessoa que vai realizá-lo, mas no resultado da contratação. Os contratos de prestação de serviço, em regra, não são obrigações de resultado. Um critério que poderia ser proposto para diferenciar prestação de serviço de relação de trabalho é o de que as relações comerciais entre duas empresas são atos de comércio e consistem na troca de produtos e serviços e não na troca de trabalho. O trabalho faria parte do produto ou serviço, mas entraria apenas como mais um dos custos de produção, como a matéria-prima, aluguéis, impostos, propaganda, etc. Nas relações de trabalho, o trabalho seria a mercadoria em si. Dito de outra maneira, o trabalho é endógeno ao produto ou serviço, tendo preço em si. A prestação de serviços seria o trabalho mais outros custos, acrescida do lucro. Esse critério econômico apresenta falhas e não pode ser utilizado para explicar por que uma pessoa jurídica, que visa ao lucro, não pode praticar relações de trabalho. É possível que uma pessoa física preste serviços, cobre pelo trabalho (eventual ou autônomo) e no preço do serviço inclua custos de deslocamento, propaganda, impostos que tenha que recolher sobre o serviço prestado, etc. Ao contrário das relações de emprego (trabalho subordinado), as relações de trabalho, em sentido lato, podem visar ao lucro. Uma empreitada de lavor, quando fixado o preço, leva em consideração o lucro e outros custos para a realização do contratado. Portanto, se uma pessoa física pode fazer parte de relações de trabalho e auferir lucros, uma pessoa jurídica poderia perfeitamente fazê-lo e isso não impediria de caracterizar a existência de uma relação de trabalho entre duas pessoas jurídicas (credor e devedor). Outro critério que poderia resolver a questão da pessoa jurídica com fim lucrativo não poder fazer parte da relação de trabalho é o critério da aleatoriedade dos ganhos (risco). As pessoas jurídicas constituem-se de sócios que têm a comum intenção de dividir os lucros e perdas. Entre eles, quando pactuados os atos constitutivos, nunca se sabe qual o montante que cada sócio vai ganhar. Sabe-se apenas o percentual que, nas sociedades, sempre será uma parte do capital social proporcional à propriedade. Se o empreendimento der lucro, divide-se o montante nos percentuais previstos no contrato social. Se der prejuízo, cada um arca com o seu percentual. Existe uma certa aleatoriedade sobre o montante líquido, embora sejam conhecidos os percentuais. Tudo depende do futuro da sociedade, que é incerto. Na relação de trabalho, o montante seria conhecido desde o princípio e não existiria aleatoriedade. 106 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Esse critério seria parcialmente válido para as relações de emprego (trabalho subordinado), em virtude da existência de dispositivo legal que garante o salário mínimo, mesmo no caso do salário do empregado ser fixado por comissão, peça ou tarefa (art. 78, da CLT) e dispositivo legal que determina parte do pagamento do salário em dinheiro (artigos 458, § 1º; 463; 81 e 82, da CLT). Nas relações de emprego existem o sinalagma (obrigações contrárias e equivalentes) e a comutatividade (a parte sempre sabe o mínimo que vai receber, independentemente do empreendimento ter ou não ter lucro). A questão é saber se a relação de trabalho, em sentido lato, é comutativa ou aleatória. Sendo um contrato que estipula uma obrigação de fazer em contraposição de uma obrigação de dar, a relação de Trabalho (lato sensu) por definição não tem nenhuma relação necessária com a circunstância de ser comutativa ou aleatória. Embora quem contrata o trabalho em outro de regra fixe uma retribuição, seja em dinheiro ou in natura, pode ocorrer dessa retribuição estar condicionada ao risco do negócio. O exemplo mais conhecido é o da representação comercial. Tratase de uma relação de trabalho em sentido lato, na qual a parte que trabalha só recebe se efetivar as vendas. As normas legais não garantem nenhum mínimo mesmo no caso de inexistência de vendas. O representante comercial pode ter trabalhado, visitado clientes, mas não efetivou nenhuma venda e, por isso, não receberá nenhuma contraprestação. O critério da aleatoriedade (risco) não serve para justificar que a relação de trabalho tenha de ser pessoal. Fracassadas as tentativas de se encontrar um critério jurídico ou econômico para definir a relação de trabalho como sendo uma relação intuitu personae, resta o critério epistemológico (estudo do método de determinada disciplina). No campo do Direito do Trabalho, seja de forma autônoma ou subordinada, contínua ou eventual, só tem sentido o estudo do trabalho humano e produtivo(51). O objeto da disciplina exclui o estudo de formas de trabalho que não sejam humanas (animais e máquinas) ou que não sejam onerosas (trabalho gratuito ou altruístico). Trabalho humano é aquele realizado pelo homem, seja no manejo da matéria (trabalho manual), seja pelo uso de símbolos (trabalho intelectual)(52). (51) Sobre o conteúdo valorativo do trabalho humano ver ARAÚJO, Francisco Rossal. “O Direito do Trabalho e o Ser Humano”, in Continuando a História (Amatra IV), São Paulo: LTr, 1999. (52) Cf. OLEA, Manuel Alonso, ob. cit., p. 16. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 107 O ser humano para trabalhar interpõe a sua força física para transformar a matéria, utilizando-se, ou não, de ferramentas. As máquinas e os animais são ferramentas controladas pelo homem. O trabalho intelectual se dá pela exteriorização de símbolos, que constituem uma linguagem direcionada e compreendida por outros seres humanos. Naturalmente, nenhum trabalho humano é puramente manual ou intelectual. O mais comum é a coexistência de ambas as modalidades(53). Se a definição do objeto da relação de trabalho é pressuposto, ou seja, parte da limitação arbitrária das premissas a serem estudadas, excluindo outras formas de trabalho que não o trabalho humano, poder-se-ia afirmar que as relações de trabalho realizadas por pessoas jurídicas, por serem entes abstratos criados como conceito auxiliar do ordenamento jurídico, não estão incluídas no âmbito de investigação das relações de trabalho. Dito de outro modo, apenas o trabalho humano direto, manual ou intelectual, autônomo ou subordinado, eventual ou contínuo, é que seria objeto da relação de trabalho. Esforços realizados por animais, máquinas ou entes abstratos (pessoas jurídicas) não seriam objetos das relações de trabalho. No caso das máquinas e animais, somente seriam objeto das relações jurídicas se estivessem relacionados ou administrados por seres humanos. No caso dos entes abstratos — pessoas jurídicas são compostas por seres humanos ou por outras pessoas jurídicas — seriam objeto de estudo das relações de direito comercial ou mercantil. A separação do objeto de estudo seria uma questão de método e classificação. A conseqüência desta afirmativa é o pressuposto de que a pessoalidade é requisito essencial da relação de trabalho (elemento pressuposto). No que diz respeito a matéria de competência da Justiça do Trabalho (art. 114, I, Constituição Federal), o corolário é que os litígios decorrentes das relações de trabalho somente serão resolvidos pela Justiça do Trabalho quando as relações de trabalho forem intuitu personae. A expressão “prestação de serviços” ficaria reservada para relações entre pessoas jurídicas e teria natureza civil ou mercantil. Apenas caberia a ressalva de que, no caso concreto, uma pessoa jurídica pode ser desviada de sua finalidade com o intuito de mascarar uma relação de trabalho (gênero) ou uma relação de emprego (espécie). Isso ocorre nos casos em que o tomador do trabalho, com a intenção de afastar um possível vínculo de emprego, obriga o trabalhador a constituir uma pessoa jurídi(53) Idem, p. 16/17. A CLT proíbe a distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual (art. 3º, parágrafo único). 108 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO ca com algum sócio (parente ou amigo). A pessoa jurídica, nesse caso, é fictícia, pois, na realidade, o trabalho é prestado pessoalmente e o sócio fictício nunca presta serviços. Esse caso de simulação ou fraude se resolve com a declaração de nulidade e o reconhecimento do real contrato existente. Em resumo, o critério econômico do lucro e o critério jurídico da aleatoriedade não são suficientes para determinar que a relação de trabalho tenha o elemento da pessoalidade como seu caracterizador. Como único critério válido, resta o critério pressuposto (critério epistemológico) da própria definição do objeto de estudo caracterizador da relação de trabalho. A relação de trabalho envolve trabalho humano, pessoal, manual ou intelectual, excluindo o trabalho de animais, máquinas e entes abstratos (pessoas jurídicas). D. Trabalho oneroso e trabalho gratuito Os contratos podem ser onerosos ou gratuitos no que se refere ao critério da economicidade. Como a relação de trabalho, em sentido lato, tem natureza contratual, ela também pode ser onerosa ou gratuita. Um contrato oneroso é aquele em que a prestação tem valor economicamente avaliável. O preço é a expressão monetária do valor. Ambas as partes suportam esforços econômicos nos contratos onerosos, sendo que, na relação de trabalho, o esforço econômico do devedor do trabalho é o trabalho em si (manual ou intelectual) e o esforço econômico do credor do trabalho é a remuneração. A remuneração, tanto na relação de trabalho em sentido lato (trabalho autônomo ou eventual) quanto na relação de trabalho em sentido estrito (trabalho subordinado) pode ser em espécie ou in natura. A diferença é que na relação de emprego (trabalho subordinado) ao menos uma parte deve ser paga em espécie(54), enquanto que na relação de trabalho, em sentido lato, não há limitação para um mínimo a ser pago em espécie. As normas da CLT são protetivas ao recebimento do salário (trabalho subordinado) e estão inspiradas na Convenção n. 95 da OIT. Tais regras visam a eliminar o denominado truck system, uma espécie de servidão por dívidas, comum nos princípios da Revolução Industrial, em que os trabalhadores eram remunerados in natura e assumiam dívidas para adquirir produtos de subsistência nos armazéns de propriedade do patrão. (54) Ver item anterior da presente exposição. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 109 O trabalho que é o fundamento da disciplina do Direito do Trabalho e das relações de trabalho em geral (sentido lato ou sentido estrito), é o trabalho oneroso. O ser humano que trabalha, o faz empregando seu esforço com finalidade imediata de obtenção de bens materiais necessários à sua subsistência(55). Portanto, as relações de trabalho estão fundadas nas relações de economicidade, sendo esta a presunção. As relações de trabalho são presumivelmente onerosas e a gratuidade deve ser considerada como excepcional. A gratuidade terá interpretação restrita, atendendo-se ao caso concreto e, em peculiar, à condição das pessoas e à peculiar situação em que se encontrem(57). É possível que existam relações em que o ser humano desenvolva esforço físico ou intelectual, visando a um determinado fim que não seja a sua subsistência ou que não tenha significação econômica. O trabalho altruístico, o lazer e os jogos são exemplos de possibilidade de esforço sem onerosidade. Entretanto, sempre haverá atenção especial para o caso concreto, porque uma atividade que é considerada lazer para muitos (como jogar futebol, por exemplo), pode converter-se em uma atividade profissional com significado econômico conforme a circunstância. Da mesma forma, os exemplos de atividades de um médico ou de um dentista que desempenham seu trabalho em parte do tempo sem cobrar remuneração por motivos de solidariedade ou altruísmo. No exemplo do futebol, se presume a atividade de lazer e deve ser provada a onerosidade. No caso do médico e do dentista, se presume a onerosidade devendo ser provada a gratuidade. Para conectar com o tema da competência em razão da matéria, prevista no art. 114, I, da Constituição Federal, a Justiça do Trabalho terá competência para dirimir litígios decorrentes de relações de trabalho onerosas. Eventualmente se discutirá em alguma lide se o trabalho era oneroso, ou não, mas esse tema confunde a matéria de competência com o mérito, sendo competente a Justiça do Trabalho para examiná-la. Também será competente a Justiça do Trabalho para analisar as lides envolvendo o inadimplemento de relações de trabalho, sem que isso se confunda com inexistência de onerosidade. III — Uma definição jurídica de relação de trabalho A terceira parte deste estudo visa a resumir as exposições anteriores expostas sobre a concepção geral de trabalho (econômica e socio(55) Cf. OLEA, Manuel Alonso, ob. cit., p. 19. (57) VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de, ob. cit., p. 674/675. 110 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO lógica), tratada na parte I e sobre os institutos jurídicos que se interseccionam com a relação de trabalho (autonomia, subordinação, pessoalidade, continuidade e onerosidade), tratados na parte II, na tentativa de definir juridicamente a relação de trabalho. Diferentemente das partes anteriores, a presente exposição será breve e propositiva. Relação de Trabalho, no sentido jurídico, é um contrato. Nesse sentido, regido pelo princípio da economicidade e da autonomia da vontade (pacta sunt servanda), embora normas jurídicas possam trazer restrições a essa autonomia com maior ou menor intensidade. As relações de trabalho subordinado tendem a ter maior restrição à autonomia da vontade e as relações de trabalho autônomo tendem a ter menores restrições à autonomia da vontade. A relação de trabalho sempre será onerosa e intuitu personae em relação ao prestador do trabalho, quer o trabalho seja autônomo ou subordinado, contínuo ou eventual. Quanto à forma, trata-se de um contrato consensual (solo consensu), ou seja, não exige forma, salvo se a lei expressamente o exigir. Como todo e qualquer contrato, exige agente capaz, objeto lícito e manifestação de vontade sem vícios. As relações de trabalho são sinalagmáticas e comutativas, embora uma parte da contraprestação possa ser relacionada ao risco (produtividade, percentuais, peças, tarefas, etc.). IV — Relação de trabalho e regra de competência A quarta e última parte desta exposição tem por objetivo conectar a definição de relação de trabalho com o tema da competência em razão da matéria. O motivo da interpretação do art. 114, da Constituição Federal, em especial o seu inciso I, e também os incisos VI e IX, que também utilizam a expressão relação de trabalho(58). Em linhas gerais, o Texto (58) Existem algumas particularidades, principalmente no que toca aos servidores públicos. Na proposta original que tramitou pelo Congresso, a Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar ações oriundas das relações de trabalho, abrangidos os entes de direito público e externo e a administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, “exceto os servidores ocupantes de cargos criados por lei, de provimento efetivo ou em comissão, incluídas as autarquias e fundações públicas dos referidos entes da federação” (grifado). Ocorre que esta parte grifada recebeu modificações no Senado e, por esse motivo, retorna à Câmara dos Deputados para nova votação. Até o presente momento, portanto, a Justiça do Trabalho tem competência amplíssima para processar e julgar lides envolvendo relações de trabalho, incluindo todo o setor privado (trabalho autônomo ou subordinado, NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 111 Constitucional fixa a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar ações oriundas das relações de trabalho, ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes de relação de trabalho e outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei. A estrutura desta última parte será subdividida em um tópico inicial sobre noções gerais de jurisdição e competência e um segundo tópico sobre a inversão de paradigma trazida pela Emenda Constitucional n. 45/04, no que toca à competência em razão da matéria de relações de trabalho. A. Noções gerais de jurisdição e competência A jurisdição e a competência são temas clássicos na Teoria Geral do Processo e o objetivo, desta pequena abordagem, é apenas lembrar de alguns preceitos fundamentais para orientar o raciocínio a respeito do tema específico que está sendo analisado (Competência Material da Justiça do Trabalho). Muitos autores referem o tema com mais profundidade e consistência e serviram de base para a presente exposição(59). contínuo ou eventual, oneroso e pessoal). Entretanto, como a matéria relativa ao setor público ainda voltará a ser discutida no Congresso Nacional e considerando que existe muita polêmica a respeito do tema, deixa-se de abordar o assunto até que o texto legal definitivo venha a ser definido, o que se espera para a primeira metade de 2005. (59) As obras consultadas sobre o tema, para as linhas gerais são ARAÚJO CINTRA, Antonio Carlos de e outros. Teoria Geral do Processo, 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 113/130 e MARQUES, José Frederico. Instituições de Direito Processual, São Paulo: Millenium, 2000, vol. I, p. 257/296. Sobre os princípios de processo na Constituição Federal, ver NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios de Processo Civil na Constituição Federal. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000; TUCCI, Rogério Lauria e outros. Constituição de 1988 e Processo, São Paulo: Saraiva, 1989; e PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil, 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. As obras gerais de Teoria Geral do Processo que tratam sobre o tema, que foram consultadas são: CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, 3ª ed. Campinas: Bookseller, 2002, volume II; COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del Derecho Procesal Civil, 3ª ed. Buenos Aires: Depalma, 1990; CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil, Campinas: Bookseller, 1999, volume I; CARNELUTTI, Francesco. Instituciones del Proceso Civil. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-America, 1989, vol. I e ECHANDIA, Devis. Teoria General Del Proceso, Buenos Aires: Universidad, 1984, vol. I. Sobre o tema específico da instrumentalidade do processo e seus reflexos na jurisdição e obra consultada foi DINAMARCO, Cândido Rangel . A Instrumentalidade do Processo, 11ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 92/192. 112 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 1. Jurisdição A jurisdição é uma das funções do Estado, juntamente com a função normativa (legislativa) e a administrativa (executiva). Essa tripartição do poder político do Estado é a base do Estado do Direito(60). Pela jurisdição, o Estado substitui os titulares dos interesses em conflito e, de forma imparcial, busca a solução. Pela jurisdição ocorre a pacificação dos conflitos. O Estado desempenha uma função sempre por meio de um processo(61). A jurisdição é, ao mesmo tempo, poder, função e atividade. Como poder, é a manifestação do poder estatal, decidindo imperativamente e impondo as decisões. A jurisdição, nesse sentido, é heterônoma, pois as partes não encontram a solução em si (autocomposiçao), mas têm de se submeter ao decidido por um terceiro (Estado). Como função, a jurisdição é o encargo que os órgãos estatais têm de promover na pacificação de conflitos interindividuais, mediante a realização do direto justo e por meio do processo(62). Como atividade, é o complexo de atos do juiz no processo, exercendo o poder e cumprindo a função que a lei lhe comete. O poder, a função e a atividade somente transparecem legitimamente por intermédio de um processo devidamente estruturado (devido processo legal)(63). A finalidade da jurisdição é garantir que as normas de direito material (direito substancial) efetivamente produzam os efeitos por elas preconizados. Em outras palavras, a jurisdição faz a concreção judicial, atuando lastreada na existência de um devido processo legal, de forma instrumental. Sem jurisdição as normas de direito material não teriam eficácia(64). A afirmação é no sentido de que a finalidade da jurisdição é a atuação da vontade concreta da lei e justa composição da lide(65). (60) A denominação clássica da teoria da divisão dos poderes do Estado está em MONTESQUIEU, Barão de Charles de Secondat. O Espírito das Leis, São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 171/183. (61) Cf. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, ob. cit., p. 113. Para ECHANDIA, Devis, ob. cit., p. 73, a jurisdição em sentido estrito constitui a função pública de administrar a justiça, emanada da soberania do Estado e exercida por um órgão especial. (62) Cf. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo e outros, ob. cit., p. 13 e COUTURE, Eduardo J., ob. cit., p. 30/31. (63) Idem. (64) Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel, ob. cit., p. 92/180. O autor faz uma longa e completa exposição sobre as relações entre Jurisdição e Poder. (65) Idem, p. 185. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 113 A existência de uma lide é uma característica predominante da jurisdição, embora em caráter excepcional possa haver jurisdição sem lide(66). Por definição, os órgãos jurisdicionais são inertes, também sendo excepcionais os procedimentos de ofício. A jurisdição é imutável, adquirindo tal condição por via do instituto jurídico da coisa julgada (art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal). Em resumo, são características da jurisdição a existência de lide, a inércia e a imutabilidade. Entre seus princípios, citam-se os princípios da investidura, aderência a território, indelegabilidade, inevitabilidade, inafastabilidade e do juiz natural(67). A investidura está conectada com a idéia de que somente poderá ser exercida a jurisdição por quem regularmente tenha sido investido na autoridade de juiz. Ato praticado por pessoa não investida nessa autoridade é ato inexistente. O Estado tem a pretensão de exercer o monopólio da jurisdição. Aderência ao território significa que a jurisdição é exercida nos limites da soberania do país. Para que a jurisdição seja exercida fora do território soberano, deve contar com a colaboração de outro Estado. A indelegabilidade significa que é vedado a qualquer um dos Poderes delegar as suas atribuições. A Constituição fixa o conteúdo das atribuições do “Poder Judiciário” e não pode a lei ou qualquer outro ato normativo ou administrativo suprimir-lhe ou modificar-lhe o conteúdo. Também, internamente, nenhum juiz pode, por iniciativa própria, delegar a jurisdição a outro órgão. Por inevitabilidade, entende-se o princípio de que, uma vez que buscam a Jurisdição, as partes sujeitam-se aos resultados do processo, de acordo com o disposto na Constituição e na lei. A situação de ambas as partes diante do Poder Jurisdicional é de sujeição. A inafastabilidade significa que nenhuma norma jurídica pode excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV, Constituição). Em princípio, também é conhecido como liberdade de acesso à Jurisdição(68). (66) Cf. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, ob. cit., p. 115. O autor refere-se a polêmica afirmação de Carnelutti, para o qual sempre haverá lide na Jurisdição. Sobre a jurisdição voluntária, ver LUCENA, João Paulo. Natureza da Jurisdição Voluntária. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996. (67) Cf. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, ob. cit., p. 118/120 e MARQUES, José Frederico, ob. cit., p. 277/278. (68) Cf. NERY JÚNIOR, Nelson, ob. cit., p. 94/103. 114 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO O princípio do juiz natural significa que ninguém pode ser privado do julgamento por juiz independente e imparcial, indicado pelas normas constitucionais e legais. Nenhum juiz pode ser retirado do processo de julgamento de uma causa, nem mesmo por seus superiores hierárquicos, salvo nos casos previstos em lei. Além disso, são proibidos os tribunais de exceção (art. 5º, XXXVII, CF). 2. Competência A competência é a medida da jurisdição. O poder estatal da jurisdição é indivisível e indelegável sob o ponto de vista do Estado em relação a outros entes, mas em relação ao Estado em si mesmo, é necessário encontrar critérios que possibilitem o exercício racional do poder. Sob o ângulo funcional, a competência nada mais é do que o princípio da divisão social do trabalho aplicado à jurisdição. Trata-se de um critério de racionalização de serviço e distribuição de tarefas, como qualquer outro em qualquer grupo humano que trabalhe com certo objetivo. Razões de ordem prática obrigam o estado a distribuir o poder jurisdicional entre vários juízes e tribunais, visto não ser possível que um só órgão conheça todos os litígios e resolva todas as causas(69). Essa distribuição de poder obedece a certos critérios, visando a atender não só os interesses do Estado (Poder Judiciário), mas também o particular. Todos os juízes exercem a jurisdição numa certa medida e em certos limites(70). Os critérios para fixar a competência podem ser espaciais, materiais ou funcionais. O poder jurisdicional é exercido dentro dos limites da soberania do Estado, sendo a competência internacional o primeiro dos critérios espaciais. Depois, como a Constituição prevê que a República do Brasil é um ente federativo, o critério espacial interno subdivide a competência entre União, Estados e Municípios. Essa subdivisão vertical pode ser interpenetrada por outro critério de divisão de competência que é o critério material. Por razões de ordem prática ou política judiciária, certas matérias são de competência determinada de certos órgãos, sejam eles federais ou estaduais. Por último, também interpenetram essa rede as competências funcionais e em razão da pessoa. A primeira refere-se à hierarquia dos órgãos jurisdicio(69) Cf. MARQUES, José Frederico, ob. cit., p. 319. (70) Cf. CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e Competência, 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 45. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 115 nais e a segunda dispõe que certas pessoas em certas funções têm foro privilegiado ou definido. Todos esses critérios devem ser definidos por lei, pois do contrário caracterizar-se-ia foro de exceção, o que contraria norma constitucional expressa. A conexão e a prevenção são institutos jurídicos relacionados com a competência, mas com ela não se confundem. A conexão é um fator de alteração de competência e a prevenção é um critério temporal para prevalência da competência de um órgão jurisdicional sobre o outro(71). A competência material da Justiça do Trabalho, como órgão jurisdicional, foi fixada na Constituição de 1946. Antes disso, em termos constitucionais, a Justiça do Trabalho tinha caráter administrativo(72). Somente na Constituição de 1946 é que a Justiça do Trabalho adquiriu natureza jurisdicional (art. 123), embora legislação infraconstitucional do mesmo ano já dispusesse sobre o tema com idêntica inclinação (Decreto-lei n. 9.797, de 9 de setembro de 1946). As Constituições de 1967 (art. 134), a Emenda Constitucional n. 01 de 1969 (art. 142) e a Constituição de 1988 (art. 114), mantiveram a natureza jurisdicional da Justiça do Trabalho. B. A inversão de paradigma da Emenda Constitucional n. 45/04 Até a Emenda Constitucional n. 45/04, a competência em razão da matéria da Justiça do Trabalho tinha como norma jurídica fundamental o art. 114 da Constituição Federal, sendo complementada por legislação infraconstitucional, em especial o art. 652 da CLT. O artigo 114 da Constituição dispunha que a Justiça do Trabalho era competente para “ conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, em, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes das relações de trabalho”. Da forma como estava redigido, o Texto Constitucional após lenta interpretação jurisprudencial e desenvolvimento legal, permitia algumas conclusões: a) a expressão “trabalhadores” permitia uma maior abrangência do que a expressão “empregados” e era utilizada para permitir uma ampliação da competência em razão da matéria para outras relações de trabalho que (71) Cf. MARQUES, José Frederico, ob. cit., p. 326. (72) A Justiça do Trabalho teve previsão na Constituição de 1934 (art. 122), mas com âmbito administrativo. A mesma sistemática prevaleceu na Constituição de 1937 (art. 139). 116 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO não a relação de emprego (trabalho subordinado), como, por exemplo, a relação de trabalho avulso(73); b) a expressão “e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho...” vinha sendo utilizada como porta de abertura para que outros temas passassem a fazer parte da competência em razão da matéria da Justiça do Trabalho, como, por exemplo, as indenizações por dano moral decorrentes das relações de trabalho, danos patrimoniais, etc.; e c) ficava ressalvada a questão relativa a servidores públicos estatutários (cargos de provimento efetivo ou de confiança regidos estatutariamente) e dos acidentes de trabalho (art. 643, § 2º, da CLT). A respeito das relações de trabalho, afirmava-se que, em face do Texto Constitucional em vigor, não é mister que as relações de trabalho (não vinculadas à relação de emprego) sejam reguladas por lei especial para que se submetam à competência da Justiça do Trabalho. Ou seja, ações relativas a controvérsias surgidas em relações de trabalho não reguladas por lei, poderiam ser da competência da Justiça do Trabalho, desde que houvesse lei, (complementar ou ordinária) adjetiva fixando a competência nesse sentido. A Justiça do Trabalho não seria órgão jurisdicional para analisar as lides decorrentes do “emprego”, uma vez que todas as ações relativas às relações de trabalho (autônomo ou subordinado, contínuo ou eventual) poderiam ser apreciadas pela Justiça do Trabalho desde que houvesse lei nesse sentido(74). A justificativa para a exigência de lei dispondo no sentido de fixar competência para relações de trabalho era de natureza gramatical. Ao utilizar a conjunção aditiva “e”, na expressão “e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho...”, o Texto Constitucional limitava a ampliação de competência para temas relativos à relação de trabalho à existência de norma jurídica infraconstitucional com hierarquia de lei (lei complementar, lei ordinária ou medida provisória). Assim, controvérsias decorrentes de uma relação de trabalho típica, como as pequenas empreitadas de lavor, eram de competência da Justiça do Trabalho por expressa atribuição de lei (art. 652, a, III, da CLT) e as controvérsias decorrentes de uma outra relação de trabalho típica, como a representação comercial, não eram de competência da Justiça do Trabalho, porque não existia norma infraconstitucional dispondo nesse sentido. (73) A CLT dispunha, mesmo anteriormente à Constituição de 1988, nesse sentido, nos artigos 652, V e 643, § 3º. (74) Essa é a posição de BATALHA, Wilson de Souza Campos. Tratado de Direito Judiciário do Trabalho, 3ª ed. São Paulo: LTr, 1995, vol. I, p. 334. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 117 Outro ponto que se discutia a respeito da competência em razão da matéria da Justiça do Trabalho em função do texto do art. 114 da Constituição, era o fato de que, segundo alguns(75), o Texto Constitucional reproduzia o vício da legislação ordinária, não estabelecendo, na verdade, competência em razão da matéria, mas competência em razão da pessoa. Isso ocorreria porque o texto utilizava a expressão “litígios entre trabalhadores e empregadores”, o que poderia levar a confusões, pois nem todos os litígios entre trabalhadores e empregadores teriam natureza trabalhista. Essa questão era altamente polêmica e levou a manifestações do STF sobre o tema da competência, ficando estabelecido o critério de que o Texto Constitucional deveria ser interpretado de forma mais ampla, e que as questões trabalhistas de competência da Justiça do Trabalho não se limitavam à matéria trabalhista da relação de emprego subordinada em sentido estrito, mas poderiam envolver questões relativas à responsabilidade civil decorrente da relação de emprego, por exemplo. O objetivo não era retirar parcela da competência da Justiça Comum, mas sim estender a competência da Justiça do Trabalho para a solução completa dos conflitos que são inerentes às relações trabalhistas(76), estabelecendo uma perspectiva mais abrangente de relação de trabalho. No fundo, essa nova perspectiva estava baseada na interpretação de que um mesmo fato jurídico pode sofrer a incidência de várias normas jurídicas, dando origem a direitos subjetivos de distinta natureza. Como a competência deve existir para auxiliar na solução racional de conflitos e, na medida do possível, harmonizar os critérios de direito material com os critérios de direito processual (o processo é o instrumento de realização do direito material), não seria razoável compartimentalizar excessivamente a competência em relação a um litígio que, no fundo, tem a mesma origem: a relação de trabalho(77). (75) Cf. GIGLIO, Wagner. Direito Processual do Trabalho, 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 38. (76) Cf. FLORINDO, Valdir. Dano Moral e o Direito do Trabalho, São Paulo: LTr, p. 75. (77) A jurisprudência do TST apresenta posições nesse sentido: “Inscreve-se na competência material da Justiça do Trabalho o conflito de interesses entre o empregado e empregador cuja origem repousa diretamente no contrato de emprego, ainda que seja indenização civil. Situação em que o empregador demandado, ao designar o reclamante para trabalhar no exterior, assegurou-lhe contratualmente o ressarcimento de prejuízos advindos do desfazimento do comércio mantido por sua consorte na cidade do Rio de Janeiro” (RR 220.843/95.5 — TST — Rel. Min. Oreste Dalazen). Da mesma forma o STF tem entendido nesse sentido: “Justiça do Trabalho: Competência: Ação de reparação de danos decorrentes da imputação caluniosa irrogada ao trabalhador pelo empregador a pretexto de justa causa para a despedida e, assim, decorrente da relação de trabalho, não importando deva a controvérsia ser dirimida à luz do 118 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO O STF firmou posição quanto à competência da Justiça Comum para julgar os litígios decorrentes dos acidentes de trabalho, que, em tese, também são ações decorrentes de litígios que envolvem as relações de trabalho. A Súmula n. 501 cristaliza essa jurisprudência desde 1969, sendo mantido o entendimento mesmo com a Constituição de 1988(78). Pouco a pouco, porém, o STF vinha invertendo no raciocínio da leitura gramatical do art. 114 da Constituição, dando mais abrangência à expressão “e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho”, como revelam os acórdãos anteriormente citados. Feita a análise da situação anterior à Emenda Constitucional n. 45/04, examina-se a situação posterior à sua promulgação. Em primeiro lugar, é preciso ressaltar as mudanças de redação e descobrir se mudanças dessa natureza trazem conseqüências práticas em matéria competência. Constata-se que o estilo de redação suprimiu a expressão “conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores...” e a trocou pela expressão “compete à Justuiça do Trabalho processar e julgar... I — as ações oriundas da relação de trabalho...”. A primeira conseqüência é de que a referência às pessoas do trabalhador e do empregador foi substituída pela referência à matéria relação de trabalho. Além disso, a expressão relação de trabalho reaparece de forma expressa nos incisos VI e IX do mesmo artigo, referindo-se ao dano moral e patrimonial e outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho. Por essa razão a importância de se definir juridicamente o que é relação de trabalho. Em segundo lugar, na redação anterior, depois de fixar a competência geral para litígios entre trabalhadores e empregadores, o art. 114 conectava a expressão “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho” à expressão “na forma da lei”. Como foi visto nos parágrafos anteriores, esta era a base da afirmação de que a Justiça do Trabalho somente seria competente nesses casos se houvesse legislação esDireito Civil” (RE 238737/ SP — São Paulo — 1ª Turma — Rel. Min. Sepúlveda Pertence); “Justiça do Trabalho: Competência: Ação de ressarcimento de danos causados por descontos indevidos sobre o salário do empregado por ocasião da rescisão do contrato de trabalho e, assim, decorrente da relação de trabalho, não importando deva a controvérsia ser dirimida à luz do Direito Civil” (RE 249740 — 1 — Amazonas — 1ª Turma — Rel. Min. Sepúlveda Pertence). (78) O texto da Súmula n. 501 é o seguinte: “Compete à justiça ordinária estadual o processo e o julgamento, em ambas as instâncias, das causas de acidente do trabalho, ainda que promovidas contra a União, suas autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista”. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 119 pecífica a respeito, atribuindo-lhe a competência. Entretanto, analisandose a nova redação do art. 114, verifica-se que o inciso não atrela a competência da Justiça do Trabalho para ações oriundas da relação de trabalho (em sentido lato) à expressão na forma da lei. Isso acontece apenas no inciso IX, quando o Texto Constitucional se refere a “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho”. A conseqüência lógica de tal modificação é importantíssima, pois a partir da Emenda Constitucional n. 45/04, a competência da Justiça do Trabalho para ações decorrentes da relação de trabalho é a regra geral. Não é necessária norma especial para atribuíla. Dito de outro modo, a nova redação do art. 114, ao separar os temas por incisos, desatrelou a competência para ações oriundas da relação de trabalho da necessidade de existência de lei. A própria Constituição, que é a norma jurídica hierarquicamente mais relevante, o faz expressamente! Ocorreu uma mudança de paradigma para a interpretação da competência da Justiça do Trabalho (competência em razão da matéria). Quando se tratar de controvérsia decorrente da relação de trabalho (autônomo ou subordinado, eventual ou contínuo, pessoal e oneroso) a regra geral de interpretação é de que a competência será da Justiça Laboral, por força do inciso I, do art. 114, da Constituição Federal. Os incisos VI e IX do art. 114 da Constituição apenas reforçam essa afirmação. O inciso VI, que se refere aos danos morais e patrimoniais decorrentes da relação de trabalho, abre a competência para matérias que não são parcelas trabalhistas típicas, como a responsabilidade civil. Está inserido na perspectiva antes narrada da jurisprudência do STF, que apontava o critério de que a competência material da Justiça do Trabalho não se limita a analisar lides envolvendo interpretação de normas trabalhistas típicas, mas também de lides trabalhistas que envolvam interpretação de outros ramos do Direito, como o Direito Civil, por exemplo(79). Para que ocorra uma lide trabalhista não é necessário que o direito subjetivo envolvido tenha origem em uma norma trabalhista em sentido estrito. Basta que o direito subjetivo surja no contexto de um vínculo contratual trabalhista. (79) Caberá aos intérpretes e julgadores especificar se os danos decorrentes de acidentes do trabalho, que envolvam o questionamento direto de culpa ou dolo do empregador (indenização civil, e não previdenciária) não acabarão por serem analisados pela Justiça do Trabalho em virtude de constituírem “danos morais e patrimoniais decorrentes da relação de trabalho”, na forma do art. 114, VI, da Constituição. 120 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO O inciso IX tem uma dimensão prospectiva, inserindo-se na técnica legislativa apropriada para os Textos Constitucionais, no sentido de permitir a adaptação interpretativa a novos fatos sociais. Assim, quando expressa que a Justiça do Trabalho também será competente para processar e julgar “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho”, o Texto Constitucional contém uma cláusula geral que permite a adaptação do raciocínio hermenêutico a novos fatos sociais não previstos. As cláusulas gerais são textos normativos que permitem a oxigenação dos dispositivos legais, permitindo a entrada no sistema jurídico de conteúdo valorativo e de novos fatos advindos das mudanças sociais. Como se sabe, o fato social anda mais rápido que o Direito, sendo prudente que o texto legal deixe em aberto novas perspectivas para o futuro. Por essa razão, a palavra “outras” permite que o julgador ou intérprete analise o caso concreto e verifique, na aplicação direta da lei, se ele se enquadra como definição de relação de trabalho. Alguma interpretação mais apressada poderia sugerir, inclusive, que o inciso IX seria desnecessário, em função da amplitude dos incisos I (relação de trabalho em sentido lato) e VI (danos morais e patrimoniais decorrentes da relação de trabalho). Entretanto, a existência do inciso IX tem duas características benéficas para a interpretação sistemática do art. 114 da Constituição: a) resolve o problema da competência em razão da matéria estar vinculada à necessidade de existência de norma expressa, pois essa condicionante não existe no inciso I, apenas existindo no inciso IX; b) serve como cláusula geral para permitir a longevidade do sistema normativo, permitindo que, no futuro, sempre se encontre a possibilidade de valorar o que constitui “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho”. Aliás, foi a circunstância dessa última expressão constar no final da redação anterior do art. 114 da Constituição, que permitiu o avanço hermenêutico a partir de 1988. Por último, uma lembrança quanto ao argumento da existência de normas jurídicas anteriores à Emenda Constitucional n. 45/04, que disponham sobre competência em razão da matéria da Justiça do Trabalho. Em termos de hermenêutica constitucional, a compatibilidade de normas de hierarquia inferior com a superveniência de normas de hierarquia superior chama-se recepção. Como as normas de hierarquia superior são o fundamento de validade das normas de hierarquia inferior, somente se houver compatibilidade das normas inferiores com as normas superiores é que aquelas permanecerão válidas. Em outras palavras, deverá ser analisado se a norma inferior preexistente é compatível com a Emenda Cons- NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 121 titucional. Sabe-se que a EC n. 45/04 inverteu o paradigma para a competência em razão da matéria da Justiça do Trabalho, fixando a competência desse órgão jurisdicional como competência geral, em se tratando de relações de trabalho (em sentido lato), e não mais residual dependente de lei expressa. Portanto, toda a lei que se enquadrar nessa premissa será válida, do contrário deve ser entendido que é incompatível com os novos termos da Constituição e, portanto, não tem validade. 122 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO O Mundo que Atrai a Competência da Justiça do Trabalho Grijalbo Fernandes Coutinho (*) 1. O trabalho no velho mundo capitalista Consistentemente com o que reza a superstição no tocante à sobrevivência dos felinos, o capitalismo parece ter sete vidas e, exteriorizando verdadeira faceta de camaleão, a cada movimento do sistema produtivo altera o modo de exploração para manter o domínio absoluto da selva humana, sempre com as garras afiadas de leão na busca de suas presas indefesas. Da fase comercial-artesanal evoluiu para o período da industrialização, convicto de que, detentor da propriedade das máquinas, nada seguraria sua fúria na maximização dos lucros em detrimento da força de trabalho. Na atualidade, há predominância do regime capitalista financeiro, sendo o processo produtivo, em todas as áreas de atividade, marcado pela automação, fruto da revolução tecnológica em curso há pelo menos trinta anos. Como força naturalmente antagônica, o trabalho foi sacudido a cada mudança, competindo-lhe encontrar alternativas de impacto para resistir aos comandos arbitrários e segregacionistas do capital. As revoluções do século XVIII — a Americana, a Francesa e a Industrial Inglesa —, ainda que perseguindo objetivos imediatos distintos, tinham a pretensão comum de assentar no poder a burguesia. Essa ausência de sintonia não podia perdurar por tanto tempo. Numa visão marxiniana, o poder político, como epifenômeno, apenas é reflexo dos fatores econômicos ou das condições materiais fornecidas pela economia(1). O detentor do poder econômico exerce o poder político. Ocorreram três fantásticas revoluções que, do ponto de vista político-econômico, mudaram a feição da humanidade, rompendo com regi(*) Juiz do Trabalho em Brasília-DF. Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho — ANAMATRA. (1) MARX, Karl & ENGELS, F. Manifesto Comunista. Fortaleza: Datacopy Editoração, 2003. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 123 mes opressores, autocráticos e ultrapassados, compatibilizando os seus elementos para alçar ao poder a emergente burguesia, cumprindo essa última, assim, no dizer de Marx e de Engels, um papel eminentemente revolucionário, ao eliminar as relações feudais, patriarcais e idílicas(2). Num eterno movimento de mudanças e de avanços da história, o novo regime foi colocado em xeque antes do que se esperava, especialmente na Europa do século XIX, nas revoluções de 1830, de 1848 e na Comuna de Paris, em 1871(3). É que se, por um lado, o regime dos senhores feudais e de seus apoiadores políticos deu lugar ao das liberdades individuais, por outro lado, tornou possível uma nova exploração econômica capaz de exteriorizar com maior nitidez as desigualdades sociais. Assinalaram Marx e Engels que “a sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classe. Não fez senão substituir novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta às que existiram no passado”(4). Os explorados e exploradores não desapareceram, passaram a estar revestidos de novas feições. Diante da absoluta indiferença do Estado frente aos inúmeros problemas decorrentes da liberdade de contratação dos capitalistas, do laissez-faire de Adam Smith e da mão invisível do mercado como marco regulatório absoluto das relações entre o capital e o trabalho, proliferaram mecanismos que permitiram aos detentores dos meios de produção sugar as últimas gotas de sangue dos trabalhadores. Repudiando o liberalismo como modelo de gerenciamento das relações sociais, o francês Lacordaire declarou que “entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, é a liberdade que escraviza, é a lei que liberta”. É sob essa perspectiva, inserindo o trabalho no seu contexto histórico, com ênfase nas revoluções por ele provocadas, que devemos avaliar a sua importância ou não para a sociedade atual. Desde que o homem passou a viver em sociedade, o trabalho é o componente mais importante nas relações entre tribos e classes, elemento que distingue a posição social, econômica e política de seus membros. Nas épocas das primeiras tribos, o controle do trabalho era determinado pela idade das pessoas, quando os mais velhos, por terem (2) MARX, Karl & ENGELS, F. Ob. cit. (3) WEFFORT, Francisco (Org.). Os clássicos da política, vol. 2, 10ª ed., 5ª impressão. São Paulo: Ática, 2002, p. 231. (4) Ob. cit., p. 15. 124 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO cumprido o ritual anterior, usufruíam da força de trabalho dos mais jovens, sem que desse fato resultasse qualquer exploração econômica, senão apenas uma rotina opressora determinada pelo fator tempo. Há também a época do comunismo primitivo, com a divisão da produção entre todas as pessoas, sem nenhuma exploração econômica. A primeira efetiva exploração do trabalho em larga escala ocorre na sociedade escravagista, pela qual o homem esteve sujeito à mais degradante condição de vida do ser humano, seja pela coerção física, seja pela coação econômica. Devemos anotar que na decantada democracia direta ateniense, de poucos séculos antes de Cristo, o serviço escravo, fruto do domínio dos inimigos de guerra e do empobrecimento de pessoas antes consideradas cidadãs, era encarado com extrema naturalidade e até como indispensável para que os cidadãos pudessem cuidar de tarefas outras, menos desgastantes e mais voltadas para o desenvolvimento do intelecto. O filósofo Sócrates pôs o dedo em várias feridas da democracia decadente, assumindo postura crítica que o levou à pena de morte; mas não se rebelou contra a escravidão reinante, apesar de considerar que todas as pessoas são capazes de entender as verdades filosóficas, bastando para isso que usem da razão, sendo que o escravo tinha a mesma razão que um cidadão livre(5). Com Sólon, sobrevém a introdução de leis que estabelecem limites à exploração do trabalho escravo, com a eliminação do direito do patrono sobre os familiares dos clientes e de suas terras(6). A sociedade romana, herdeira da cultura helenística, abusou do trabalho escravo para consolidar o império que dominou o mundo, inclusive no período da República. Logo, a História da Antigüidade está, lamentavelmente, entrelaçada com os serviços forçados. Nos modelos seguintes de sociedade, o trabalho humano continuou a ser explorado, mas com a predominância de características distintas da escravidão. O feudalismo é o regime da submissão dos vassalos aos senhores proprietários de terras, esses apoiados pela nobreza. Outras formas de trabalho surgiram com as Cruzadas, mediante a expansão do comércio, fazendo surgir uma nova classe detentora do poder econômico, em substituição ao domínio, até então, pertencente (5) ABRÃO, Bernardette Siqueira (Org.). Os Pensadores, História da Filosofia. Mirtes Ugeda Coscodai (Revisão). São Paulo: Nova Cultural, 1999. (6) MAIOR, Jorge Luiz Souto. O Direito do Trabalho como Instrumento de Justiça Social. São Paulo: LTr, 2000, p.38. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 125 aos senhores feudais: a burguesia. Os iluministas perceberam que havia impossibilidade de uma convivência pacífica entre a ordem política dos reis e o regime capitalista da liberdade individual, inclusive da contratação da força de trabalho, materializando essa incongruência na famosa Enciclopédia(7), cujo resultado final foi a deflagração de uma das maiores revoluções políticas de todos os tempos: a francesa. 2. O liberalismo e as relações de trabalho A revolução industrial na Inglaterra, no século XVIII, consolida outra fase do capitalismo, revelando, porém, formas cruéis de exploração do trabalho, mediante jornadas de até 16 (dezesseis) horas diárias, inclusive de mulheres e de menores, sem qualquer proteção à saúde ou de cunho social. As reações propiciaram o surgimento das primeiras normas de proteção ao trabalho. Marx, o maior estudioso do capitalismo e também o mais crítico, vislumbrava na apropriação do excedente não remunerado da força de trabalho(8), pelos patrões, a que denominou de mais-valia, toda a base de sustentação desse regime, a ser enfrentado na luta pelo fim das classes sociais e pela instauração do socialismo, estágio para a sociedade comunista. Aliás, o estudo preciso dos vários tipos de sociedade está, mais uma vez, em Marx, ao dividi-la em quatro períodos fundamentais, quais sejam, o comunismo primitivo, o escravismo, o feudalismo e o capitalismo, na obra “A Ideologia Alemã”, citada por Enric Monpó Martinez (“Marx, Engels e a Revolução na Rússia”). Foram as inúmeras lutas de comunistas, socialistas, sindicalistas e de trabalhadores que fizeram ruir as bases que deram sustentação ao liberalismo clássico. Em algumas situações, como é o caso da revolução russa de 1917, comandada por Vladimir Lenin e Leon Trotsky, fizeram sucumbir o próprio regime capitalista. O receio da instalação da sociedade comunista funcionou como principal elemento de pressão por mudanças na forma do Estado arbitrar os conflitos entre capital e o trabalho, bem como chamou à ordem a sua participação nas atividades consideradas essenciais. Desprezar a importância dos comunistas no surgimento do Direito do Trabalho é algo semelhante a negar o papel de Newton no desenvolvimento da ciência física. (7) FONTES, Luiz R. Salinas. O Iluminismo e os reis filósofos, 4ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996, p. 46. (8) MARX, Karl. O Capital. Publicações LBI. 126 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 3. O Estado do bem-estar social e o ressurgimento do Estado Liberal O Estado do bem-estar social, com forte presença no século XX, abandona os dogmas liberais, para compreender que a sua intervenção é fundamental para minimizar as desigualdades, fixar políticas públicas em favor das classes menos favorecidas e não permitir que a sociedade seja refém do mercado capitalista de maneira absoluta. John Keynes, o pensador desse novo ciclo, influenciou profundamente na formação de estados sociais, em contraposição à crescente destruição das relações humanas e econômicas provocadas pelo liberalismo. Mesmo assim, devemos considerar que, não obstante os avanços conquistados, o movimento operário jamais alcançou o êxito do pleno emprego e da distribuição da renda de maneira mais equilibrada, porque a própria lógica do capitalismo, seja qual for o matiz, desautoriza a construção de modelos capazes de impor efetiva democracia entre patrões e empregados. O liberalismo jamais deixou de existir como pensamento econômico-político, mas teve até o início dos anos 70, do século passado, reduzido impacto de penetração nos formadores de opinião, destacando-se as teses lançadas pelo economista norte-americano Milton Friedman. No Brasil, o ministro do regime militar, Roberto Campos, gritou até o último momento de sua vida pelo afastamento do Estado das atividades por ele consideradas como da alçada exclusiva de particulares e do mercado. A chegada ao poder da conservadora Margareth Thatcher na Inglaterra e do republicano Ronald Reagan nos EUA, nos anos 80, consagra, com maior velocidade, o processo de desmonte do Estado do bem-estar social, com a privatização de empresas estatais e de funções essenciais, diminuição do tamanho do Estado, retirada de garantias trabalhistas, além de tantas outras alterações. Mas nada parece ter sido ocasional. Huw Beynos descreve a estratégia do principal assessor de Margareth Thatcher, Alan Budd, professor de economia da conceituada London Business Scholl, tendo o último declarado que “aumentar o desemprego foi um jeito bastante interessante de reduzir a força da classe trabalhadora. O que foi engendrada — em termos marxistas — foi a crise do capitalismo, que recriou o exército industrial de reserva e sempre permitiu aos capitalistas terem lucro”(9). Segundo Beynos, o depoimento (9) SANTANA, Marco Aurélio & RAMALHO, José Ricardo (Orgs.) Além da fábrica. O sindicalismo tem futuro no século XXI? Texto de Huw Beynos. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 54. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 127 de Budd foi confirmado por outro assessor, o professor de história moderna da Universidade de Oxford, Norman Stone, que retrata os anos 80 como o período do contra-ataque do capitalismo(10). Devemos relembrar que as revoluções industrial e francesa, ainda que com ausência de intencionalidade, criaram as condições próprias para o estabelecimento das primeiras normas de proteção ao trabalho. Para os sábios capitalistas, entre “o mal maior do comunismo” e o de alguma concessão de direito, é evidente que a última alternativa era mais interessante, porque salvava a essência. O professor e juiz Jorge Luiz Souto Maior constata que o papel inicial do direito do trabalho era, realmente, impedir a emancipação da classe operária, mas ao longo dos anos trouxe ao cenário a sua virtude de ser agente de distribuição de cidadania aos trabalhadores(11). No Brasil, as primeiras leis trabalhistas surgiram entre o final do século XIX e início do século XX, para algumas categorias específicas, por influência do movimento sindical, de forte conotação anarquista e também comunista, muito pela imigração européia presente na plantação de café e em outras atividades. Houve notória ampliação de direitos a partir dos anos 30, mas ainda insuficiente para atender às demandas já resolvidas em outros países. O professor Amauri Mascaro Nascimento descreve a importância do movimento anarquista nas primeiras greves no Brasil, bem como as suas idéias de uma sociedade “sem governos, sem leis”(12). Depois veio a Consolidação das Leis do Trabalho — CLT, em 1943, que ampliou, nas perspectivas de alcance e de quantidade, os direitos trabalhistas, tais como as férias anuais remuneradas, a jornada semanal, o salário mínimo, o descanso semanal e a contratação do trabalhador por prazo indeterminado como regra, dentre outras garantias. Há estudiosos da sociedade brasileira convictos de que o Estado de bem-estar social nunca chegou em nosso País — mesmo no período compreendido entre os anos 40 e 70 do século XX, época de maior profusão dos direitos sociais e da industrialização nacional —, seja pelo alto nível de exclusão de setores da classe trabalhadora, seja pela falta (10) SANTANA, Marco Aurélio & RAMALHO, José Ricardo. Ob. cit., p. 54. (11) MAIOR, Jorge Luiz Souto. O Direito do Trabalho como Instrumento de Justiça Social. São Paulo: LTr, 2000, p. 20. (12) NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 42. 7ª ed. 128 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO de políticas voltadas para corrigir as distorções e desigualdades que marcam a história das relações entre as classes no Brasil. O fato é que, de algum modo, no interregno antes mencionado, o liberalismo aqui não reinou como ideologia da liberdade absoluta de exploração. 4. O neoliberalismo e o novo mundo do trabalho É inegável que o Estado do bem-estar social sofreu abalo a partir dos anos 70, com a crise do petróleo de 1973 e do próprio capitalismo, trazendo transformações na forma de organização da produção capitalista, o enfraquecimento do movimento sindical e o fim do “socialismo” no Leste Europeu. A revolução tecnológica dos últimos anos reduziu inúmeras tarefas e retirou muitos postos de trabalho. A liturgia neoliberal, hegemônica desde então, passou a impor a imolação do Direito do Trabalho perante o altar do mercado globalizado. Não obstante a mudança de rumo no modo de produção capitalista, de um modelo fordista-taylorista para o digital-toyotista, o trabalho vivo não desaparecerá, na precisa lição do professor Ricardo Antunes, pois sempre haverá necessidade do esforço humano, até mesmo para o funcionamento das máquinas que reduzem as atividades laborais. De um modelo que produzia em grande quantidade, passamos a outro, dirigido a setores específicos e apenas para o consumo imediato, mediante alta tecnologia que reduz a utilização da mão-de-obra, com o enfraquecimento sindical pela terceirização, pelo trabalho de equipe e pelos programas de qualidade total instalados em pequenos núcleos para legitimar a grande massa de desempregados(13). Com melancólicos recordes de concentração de renda, salários indecentes e milhões de excluídos, o Brasil assistiu recentemente à principal investida contra os direitos dos trabalhadores, sob um pretexto: o de que o negociado deveria prevalecer sobre o legislado, abstraindo-se a lição de Laccordaire adrede enunciada. A autonomia privada coletiva deve ser consagrada como preceito de emancipação social dos trabalhadores, e não como instrumento de precarização de seus direitos. O resultado da negociação não pode significar a perda das garantias históricas dos cidadãos brasileiros, resultado de muitas lágrimas e sangue. São conquistas que, por isso, não podem ser consideradas mero anacronismo. (13) ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho, 8ª ed. Campinas: Unicamp, 2002. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 129 A revolução tecnológica enfrentada nas três últimas décadas foi capaz de produzir avanços científicos tão fantásticos quanto devastadores para as relações de trabalho, deixando, segundo dados da OIT, um bilhão e duzentos milhões de pessoas no mundo trabalhando sem vínculo de emprego ou simplesmente desempregadas. Em face do uso da microeletrônica e de outros recursos, algumas tarefas foram absorvidas por esse novo processo produtivo, reduzindo-se a utilização da mão-deobra humana e dizimando-se muitos postos de trabalho. Como sempre agiu, o capital não teve embaraços para incrementar novos meios de produção, passando da forma taylorista-fordista de organização da produção para o modelo digital-toyotista, de viés essencialmente automatizado, dirigido apenas para fatias específicas de consumidores e limitado à demanda imediata, com a substituição de grandes fábricas por empresas em rede(14). A automação veio acompanhada do trabalho de equipe e terceirizado, desintegrando trabalhadores e esfacelando a organização sindical. Hoje é cada vez mais comum a repartição do processo produtivo em vários núcleos pequenos, quebrando o sentido de homogeneidade da classe trabalhadora. Uma coisa é organizar milhares de trabalhadores numa mesma base, outra bem diferente é conseguir uni-los, quando já estão separados de maneira conceitual e física. A terceirização agrava esse quadro a partir do rompimento do vínculo laboral com a empresamatriz, que consegue arranjar uma outra pessoa jurídica para cuidar das tensões sociais de sua alçada. Aliás, com esse procedimento, impõe verdadeira clausura às reivindicações de natureza trabalhista. Além do notório rebaixamento salarial dos empregados das empresas terceirizadas, a face mais dura do dito fenômeno da atualidade das relações entre o capital e o trabalho, que pode, sim, ser evitada, está no golpe que representa à organização coletiva dos trabalhadores, reduzindo todos, e não apenas os terceirizados, a meros reprodutores do sistema, com voz reivindicatória incapaz de produzir resultados mínimos de satisfação real obreira, enquanto classe antagônica ao capital. Ora, a estratificação e a fragmentação dos novos modos produtivos do sistema capitalista, nem de longe, representam compartilhamento efetivo do desempenho das atividades empresariais por um número maior (14) GOMES, Álvaro (Org.). Aspectos sociais — Mercado de Trabalho — O trabalho no século XXI — Considerações para o futuro do trabalho. Texto de Ricardo Antunes (“As metamorfoses do mundo do trabalho”). São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2001. 130 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO de empreendedores, pois estes não passam de meros intermediários ou de verdadeiras correias de transmissão do lucro dos grandes negócios. O trabalho terceirizado é, portanto, uma das escancaradas correias de transmissão da mais-valia, carregado de conteúdo ideológico contra o sentimento de solidariedade entre iguais. Para confirmar o afirmado, basta verificar a outra face do capital no mundo globalizado, por meio da união de conglomerados, nacionais e estrangeiros, para eliminar a concorrência e aumentar a margem de lucros. Antes concorrentes, bancos, cervejarias, empresas de telecomunicações, segmentos do ramo da aviação, grupos petrolíferos, além de tantos outros, unem-se sob a mesma sigla, sem que do fato resulte uma expansão da base da força de trabalho, exponenciando, na verdade, o segregacionismo, com o enxugamento dos postos de serviço e transferência de outros para empresas terceirizadas ou para a locação da mão-de-obra autônoma. Existem defensores do fim da sociedade dependente do trabalho, que invocam outra alternativa para enfrentar as adversidades. Robert Kurz, principal teórico do grupo alemão Krisis, sentencia que “um cadáver domina a sociedade. O cadáver do trabalho. A sociedade dominada pelo trabalho não passa por uma simples crise passageira, mas alcançou o seu limite absoluto. A venda da mercadoria força de trabalho no século XXI será tão promissora quanto a venda de diligência no século XX ”(15). De forma mais moderada, Domenico de Masi recomenda para a sociedade pós-industrial maior tempo para os trabalhadores destinado “a outra coisa”, o que denominou de tempo liberado para as atividades criativas(16). Apesar das reviravoltas e do caráter destrutivo inerente ao capitalismo, da reestruturação promovida na economia para manter intacto o regime, com diminuição do espaço para os pequenos e médios empreendedores, o trabalho desmente sistematicamente as alternativas neoliberais, os seus agentes, a social-democracia e os que imaginam um mundo sem a utilização da força de trabalho humana(17). 5. As novas relações sociais e a Justiça do Trabalho Como demonstrado, o mundo do trabalho tem sofrido profundas alterações nas últimas décadas. O trabalho em massa, padronizado e (15) Grupo Krisis. Manifesto contra o trabalho. São Paulo: Conrad Livros, p. 15. (16) DE MASI, Domenico. O ócio criativo, 7ª ed. Rio de Janeiro: Sextante — GMT Editores, 2003, p. 15. (17) ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho — Ensaio sobre a afirmação e a negação do Trabalho, 6ª reimpressão. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 131 formal, tem convivido com novas formas de ocupação em relação às quais a legislação social e o aparato do Judiciário não têm se mostrado devidamente atualizados para atender e solucionar as demandas de fração cada dia mais considerável da população economicamente ativa. Falamos de um mundo do trabalho sensivelmente transformado pela implementação de novos padrões produtivos, que impuseram mutações no tradicional paradigma trabalhista até então conhecido. Segundo o DIEESE, esse novo ambiente de trabalho é caracterizado pela alta rotatividade, instabilidade, pouco dinamismo na geração de novas vagas, descontinuidade da trajetória profissional e, em especial, precarização das formas de contratação de mão-de-obra, fazendo recrudescer, assim, a informalidade. Dados oficiais do IBGE (Pesquisa Mensal de Emprego — PME, de dezembro de 2003) dão conta de que mais de 40 milhões de brasileiros trabalham sem qualquer vínculo formal de emprego. Reportagem do Jornal Folha de São Paulo, do dia 12 de setembro de 2004 (Caderno “Empregos e Negócios”), sob o título “Pessoa Jurídica”, noticia que tem sido comum a exigência, por parte de empresas, da constituição de pessoa jurídica pelo trabalhador para que, só assim, possa ser admitido. É registrado que, nos dias atuais, o mercado de trabalho tem utilizado com enorme freqüência a seguinte frase: “Temos total interesse no seu serviço, mas, para trabalhar aqui, você precisa ter registro de pessoa jurídica”(18). O resultado disso é a exclusão desses milhões de trabalhadores, vinculados à denominada “economia informal”, do sistema de proteção social (trabalhista, previdenciário e de seguridade social), inclusive quanto ao acesso à Justiça do Trabalho. Isso porque a Justiça Especializada do Trabalho é formal e historicamente vinculada aos contratos de trabalho celebrados e regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho — CLT, ou seja, aos contratos formais de emprego, nunca lhe tendo sido atribuída ampla competência para julgar as querelas oriundas de outras modalidades de trabalho, até o surgimento da Emenda Constitucional n. 45/04. Por essa razão, a ampliação da competência material da Justiça do Trabalho é um dos aspectos mais relevantes da Reforma do Poder Judiciário. (18) “Pessoa Jurídica” — Caderno Empregos e Negócios. Folha de São Paulo. 12 de setembro de 2004. 132 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 6. A ampliação da competência da Justiça do Trabalho e a Emenda Constitucional n. 45/04 Com o término do processo de reforma do Poder Judiciário, é evidente que a população aguarda uma nova dinâmica no funcionamento do aparelho estatal incumbido de distribuir justiça, desde o fim da morosidade à transparência dos atos praticados por magistrados, no exercício dos ofícios judicantes e administrativos. O processo revisional parlamentar não foi capaz de enfrentar alguns dogmas que conduziriam a Justiça a adquirir legitimidade real. Ainda que conservadora seja a reforma, os juízes devem adotar prontas medidas, judiciais, políticas e administrativas, para atender aos anseios da imensa maioria do povo brasileiro, notadamente direcionadas aos dois objetivos acima referidos. Se assim é sob a perspectiva mais global, pelo menos no que se refere à Justiça do Trabalho, a tônica da reforma foi extremamente avançada. Quando foi criada a Justiça do Trabalho como órgão do Poder Judiciário, a realidade do mundo do trabalho era bem distinta da atual, asseguradora da regência da CLT para expressivo número de trabalhadores. Hoje, no entanto, conforme dados do IBGE, cerca de 50% da mão-deobra — ou seja, 40 milhões de brasileiros — trabalha sem nenhum vínculo formal de emprego. A insensatez do novo modo de produção capitalista pune duplamente o cidadão brasileiro, antes amparado pela proteção celetista. Por um lado, deixa-o cada vez mais distante dos direitos sociais conferidos aos empregados, e, por outro, não permite que procure o Judiciário especializado em causas do trabalho para resolver os litígios enfrentados com o seu tomador de serviços, mesmo que apenas queira dirimir questões vinculadas a um contrato autônomo e não esteja a reclamar nenhum direito exclusivo de empregado. Num cenário menos selvagem, deveriam estar garantidos a todos os trabalhadores os direitos sociais humanos, previstos no artigo 7º, da Constituição Federal, bem como o acesso ao ramo do Judiciário que tem como especialidade a conciliação e o julgamento dos conflitos entre o capital e o trabalho. Atacando o núcleo da reforma levada a efeito, a ANAMATRA e as AMATRAS, durante anos, elegeram como prioridade pontual a ampliação da competência da Justiça do Trabalho, para dar maior racionalidade ao sistema, numa época de profundas transformações do mundo do trabalho. Ainda que a reforma não tenha atribuído todo o regime de NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 133 competência perseguido pelos juízes do trabalho, são notórios os avanços conquistados. É de grande relevância a ampliação da competência da Justiça do Trabalho, seja qual for o regime contratual a que esteja submetido o trabalhador, para analisar todas as controvérsias oriundas da força de trabalho humana, pela sua natural vocação social e pela própria espe-cialização na matéria. A divisão de competências entre Justiças para julgar o valor do trabalho, além da notória irracionalidade, consagra a fragmentação obreira verificada na fábrica da nova ordem econômica, reduzindo milhões de pessoas ao patamar dos que não têm acesso ao Judiciário que julga as causas dos trabalhadores. Logo, “os sem-direitos-trabalhistas” também podiam ser chamados de “os sem-justiça”. Ainda que o Parlamento não tenha atribuído à Justiça do Trabalho toda a competência necessária para o seu melhor aproveitamento, há alterações significativas, de modo a propiciar aos trabalhadores brasileiros não-empregados e aos respectivos tomadores de serviços a via da Justiça do Trabalho para a solução dos seus conflitos. Em vez da restrição do original do artigo 114 da Constituição, que disciplinava a relação “entre trabalhadores e empregadores”, o texto promulgado manda julgar “as ações oriundas da relação de trabalho”, sem delimitar os atores do processo. Havendo relação de trabalho, seja de emprego ou não, os seus contornos serão apreciados pelo juiz do trabalho. Para os demais casos, evidentemente, aplicará a Constituição e a legislação civil comum, considerando que as normas da CLT regulamentam o pacto entre o empregado e o empregador. Como conseqüência, a Justiça do Trabalho passa a ser o segmento do Poder Judiciário responsável pela análise de todos os conflitos decorrentes da relação de trabalho em sentido amplo. Os trabalhadores autônomos, de um modo geral, bem como os respectivos tomadores de serviço, terão as suas controvérsias conciliadas e julgadas pela Justiça do Trabalho. Corretores, representantes comerciais, representantes de laboratórios, mestres-de-obras, médicos, publicitários, estagiários, contratados pelo poder público por tempo certo ou por tarefa, consultores, contadores, economistas, arquitetos, engenheiros, dentre tantos outros profissionais liberais, ainda que nãoempregados, assim como as pessoas que locaram a respectiva mão-deobra (contratantes), quando do descumprimento do contrato firmado para a prestação de serviços, podem procurar a Justiça do Trabalho para solu- 134 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO cionar os conflitos que tenham origem em tal ajuste, escrito ou verbal. Discussões em torno dos valores combinados e pagos, bem como a execução ou não dos serviços e a sua perfeição, além dos direitos de tais trabalhadores, estarão presentes nas atividades do magistrado do trabalho. 7. O papel do intérprete De modo particular, no âmbito da Justiça do Trabalho, é inegável a mudança positiva levada a efeito pelo Congresso Nacional. Destaca-se, nesse cenário, a disposição que autoriza ao juiz do trabalho julgar novas causas, quais sejam, todas as controvérsias que envolvam o trabalho humano. A leitura restritiva da nova competência da Justiça do Trabalho, sem nenhuma dúvida, impedirá uma verdadeira revolução nesse segmento do Poder Judiciário. A postura não deve encontrar respaldo majoritário entre os operadores do Direito. Isso porque, ao contrário do texto revogado, a disposição nova não mais limita o seu campo de atuação aos conflitos entre “trabalhadores e empregadores”, explicitando, de maneira clara, que “os dissídios oriundos da relação de trabalho” são da alçada do judiciário trabalhista (art. 114, inciso I, da Constituição, com a redação que lhe deu a emenda). A boa exegese se revela incompatível com a possibilidade de estabelecer equivalência absoluta entre as relações de emprego e de trabalho, ainda mais quando se pretende que a amplitude da última se transforme, de forma mitigada, numa das espécies de sua origem. Definitivamente, a relação de emprego ainda não conseguiu abranger a relação de trabalho. Desnecessário esforço hermenêutico profundo, com todas as vênias, para percebermos a intenção do constituinte derivado em dar aos magistrados do trabalho papel político mais racional na distribuição da justiça em atenção aos direitos de todos os trabalhadores. Essa foi a tônica dos debates envolvendo a reforma do Poder Judiciário. As duas Casas do Parlamento brasileiro estavam cônscias do novo desenho que estava sendo dado para a principal competência material da Justiça do Trabalho. Por isso, a expressão “relação de trabalho” não pode ser enxergada como um eufemismo, uma redação meramente equivalente ao texto anterior. Pelo contrário, a nova redação carrega toda uma trajetória de modernização do papel da Justiça do Trabalho, aspecto que não pode ser agora simplesmente ignorado ou tangenciado por um simples jogo de palavras. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 135 Essa é a razão de se interpretar as normas jurídicas englobando um sentido filosófico, livrando-se da mera dogmática para entender a função política do comando judicial. A ventilada hipótese da declinação de competência pode nos levar a um retrocesso ainda maior do que as nossas Cortes produziram em 1992, quando deixamos de julgar os servidores públicos estatutários. É de maior intensidade o prejuízo, quando observamos as atuais tendências do mundo do trabalho, que esgarça e precariza as condições sociais, impondo a milhões de trabalhadores relações de trabalho não subordinadas, esvaziando, cada vez mais, os ditos conflitos de emprego. Recusar nova competência, diante do quadro crescente de outras relações que não a de emprego, é apostar no imprevisível ou mesmo na autofagia da instituição, uma vez que ela poderá se distanciar do seu propósito ontológico, qual seja, albergar as lides que envolvam os atores sociais do trabalho. O incremento da carga de trabalho dos magistrados deverá ser equacionado de forma racional e científica, valendo-se, cada dia mais, dos modernos instrumentos de trabalho, mesmo porque já pôde a Justiça do Trabalho demonstrar sua própria capacidade de superação ao longo de sua história. O Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ministro Vantuil Abdala, ao conceder entrevista ao jornal da ANAMATRA, declarou que “com a promulgação da reforma, teremos competência para julgar todas as causas que envolvem relações de trabalho e não apenas de emprego como ocorre hoje. As intensas mudanças na economia e no mercado de trabalho resultaram em grandes transformações na relação capital-trabalho, exigindo da Justiça do Trabalho maior sintonia com a nova realidade”. Não é diferente a opinião do Ministro Antônio José de Barros Levenhagen, tendo ele acentuado no mesmo periódico que “a ampliação da competência da Justiça do Trabalho no âmbito da reforma do Judiciário significará a consolidação da emancipação institucional do Judiciário do Trabalho”(19). O ex-presidente da ANAMATRA, o jurista Antônio Carlos Faccioli Chedid, registra que “longe da perfeição e do desejado, a reforma do Judiciário, apesar disso, no âmbito da Justiça do Trabalho, trouxe profunda e esperançosa modificação, posto que não tenha acolhido os anseios da população, dos magistrados e advogados, no que concerne à sua nova competência. A inovação de fundo, contudo, pois expurga o dissídio, adotando a ação, faz do trabalho (seja a laborterapia ou aquele (19) ANAMATRA, Informativo Especial n. 57, 3 de dezembro de 2004. 136 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO dedicado à finalidade religiosa ou econômica, desenvolvido pelo empregado ou trabalhador, ou mesmo empregador ou profissional liberal, autônomo e assim por diante) o centro nevrálgico de sua competência. Basta hoje que as partes se unam através de uma relação de trabalho, assim considerado o dispêndio de energia-trabalho para outrem, mediante uma contraprestação, sem a ignóbil invocação da existência de requisitos formais para dirimir o local da solução do conflito. A competência, cultura jurídica e dedicação dos magistrados federais do trabalho demonstrará, a curto prazo, o acerto do constituinte, pois doravante todos, sem exceção (empregado, trabalhador, empregador, profissional liberal, autônomo, biscateiro, representante comercial e tudo mais que a dinâmica dos fatos vividos e sofridos tipificar), poderão “usufruir” de uma jurisdição célere e efetiva. A nova roupagem permitirá a este ramo do Judiciário, agora, avançar um pouco além do direito tarifado (trabalhista puro) para solucionar também os conflitos de interesses, com ressarcimento ou indenização pela lesão ao direito individual e coletivo.”(20) O Juiz Reginaldo Melhado, ex-diretor da ANAMATRA, autor da magnífica obra “Poder e Sujeição”, editada pela LTr, não vacila ao defender a ampliação da competência da Justiça do Trabalho, a partir da leitura do novo artigo 114, da Constituição Federal: “um dos poucos aspectos realmente positivos na Reforma do Judiciário foi a ampliação da competência da Justiça do Trabalho. Pondo fim a um paradigma carcomido pelo tempo, esse alargamento competencial permitirá a reconstrução política da Justiça do Trabalho. A regra constitucional em vigor funda a competência trabalhista nos sujeitos da relação de emprego: os trabalhadores e seus empregadores. Agora, com a reforma, não se levam em conta esses atores, mas a relação jurídica ontologicamente considerada. Logo, já não importa quem são os atores do litígio: interessa apenas que eles sejam oriundos da relação de trabalho. Só por alguma peripécia de hermenêutica esse grande avanço pode ser negado. Espero que os próprios juízes do trabalho se dêem conta disso, e reconheçam a extraordinária revolução conceitual da reforma. Ou vamos ver uma triste história se repetindo, e agora, a um só tempo, como farsa e tragédia”(21). Quando da promulgação da reforma do Judiciário, no dia 8 de dezembro de 2004, os constituintes fizeram questão de pontuar como (20) ANAMATRA, Informativo Especial n. 57, 3 de dezembro de 2004. (21) Idem. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 137 uma das medidas mais significativas, sem nenhuma dúvida, a que atribuiu à Justiça do Trabalho competência para apreciar todas as causas oriundas do trabalho humano. Emitiram pronunciamento nesse sentido, dentre outros, o Presidente do Senado e do Congresso Nacional, Senador José Sarney, o Presidente da Câmara, Deputado João Paulo Cunha, e o Relator da PEC no Senado, Senador José Jorge. Antes, por meio de declarações encaminhadas ao jornal da ANAMATRA, também se posicionaram os parlamentares Ana Júlia Carepa e Maurício Rands, além dos advogados Nilton Correia e Roberto Caldas(22). Os Procuradores do Trabalho, representados pelo Presidente da ANPT, Sebastião Vieira Caixeta, e pela Procuradora-Geral do Trabalho, Sandra Lia Simón, enalteceram a ação levada a efeito pelo Parlamento. Com o novo texto do artigo 114, da Carta Política, não mais subsistem as premissas encontradas pelo Supremo para limitar a atuação da Justiça do Trabalho ao âmbito da legislação trabalhista e ao pacto regulamentado pela Consolidação das Leis do Trabalho — CLT. No julgamento da ADIn n. 492-1 (sessão de 12 de novembro de 1992), o STF, por maioria de votos, decidiu que a competência em questão, para o enfrentamento dos litígios individuais, estava restrita aos casos envolvendo o direito do empregado. Assim procedeu, em síntese, por considerar que os únicos atores da relação estavam definidos pelo caput (“trabalhadores e empregadores”), e pela existência de representação classista paritária, de empregados e de empregadores, em todos os órgãos da Justiça do Trabalho(23). As Emendas Constitucionais 24/99 e 45/04 eliminaram as duas objeções, de modo que o tema, como posto em discussão, deve encontrar amplo respaldo no Tribunal Superior do Trabalho e no Supremo Tribunal Federal. 8. O sentido político da ampliação da competência Estamos, como visto anteriormente, diante de profundas alterações no mundo do trabalho, que a cada dia, lamentavelmente, reduz a participação da força de trabalho nas relações de emprego. Mas a Justiça do Trabalho, que deveria ser o ramo do Judiciário próprio para dirimir todas as nuances do valor do trabalho prestado por homens e mulheres, (22) ANAMATRA, Informativo Especial n. 57, 3 de dezembro de 2004. (23) ADIn n. 492-1 — STF — Distrito Federal — Requerente: Pocurador-Geral da República. Requerido: Congresso Nacional. Julgada no dia 12 de novembro de 1992. 138 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO subordinado ou não, foi utilizada durante anos de maneira tímida pela sociedade brasileira. Não foi por outra razão que, observando o interesse público por uma maior racionalidade na prestação jurisdicional, a ANAMATRA lutou com todas as suas forças para ampliar a competência da Justiça do Trabalho, certa, ainda, de que o modelo ultrapassado colocaria em xeque a existência do referido segmento como órgão autônomo do Poder Judiciário, lançando os seus deletérios efeitos, logo em seguida, para a diminuição da legislação social protetora. Cabe-me, na condição de Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, trazer à tona manifestações de ex-Presidentes da entidade, que revelam especial preocupação com eventual declinação de competência dos juízes do trabalho, diante dos novos tempos da Justiça Laboral: “Outro desafio é continuar a conscientização da magistratura para o alargamento de sua competência. Eu já ouvi vozes dizendo que não houve nenhuma alteração do Texto Constitucional, temos que ter cuidado porque são vozes nefastas à instituição e à própria sociedade. Essa é a competência, essa é a novidade, esse é o dever que agora tem a magistratura. A responsabilidade daqui pra frente é extraordinária, o futuro está nas mãos dos juízes. Se voltarmos para aquela visão antiga que os juízes do trabalho tinham de que para nada eram competentes, a Justiça do Trabalho pode desaguar em nada” (Antônio Carlos Facioli Chedid — Gestão 1987/1989).(24) “É necessário o empenho das associações no sentido de afirmar na prática esse ganho político. Parece-me que a sobrevida da Justiça do Trabalho passa por aí. Essa ampliação de competência é extremamente importante para que o Judiciário Trabalhista se firme como ramo indispensável do Judiciário e que nós continuemos ampliando essa instituição cidadã” (Ivanildo da Cunha Andrade — Gestão 1993/1995).(25) “A aprovação da Emenda Constitucional n. 45/04, que introduz modificações na estrutura do Poder Judiciário Brasileiro, representa para a Justiça do Trabalho exemplar aperfeiçoamento, uma vez que autoriza a ampliação de sua competência jurisdicional, reservando a esse segmento especializado o conhecimento das demandas que envolvam todas as modalidades do trabalho humano. (24) ANAMATRA, Informativo n. 59, de 23 de dezembro de 2004. (25) Idem. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 139 As transformações vivenciadas no último século no campo das relações de trabalho não poderiam admitir a permanência dos limites de competência da Justiça do Trabalho aos litígios decorrentes da relação de emprego. O juiz do trabalho é vocacionado, pela experiência e pelo conhecimento jurídico, para o julgamento dessas demandas. Por isso, ganha o Poder Judiciário e ganha a sociedade”. (Beatriz de Lima Pereira — Gestão 1997/1999).(26) “Essa trajetória demonstra que a questão da competência está diretamente ligada à sobrevivência da Justiça do Trabalho. Uma justiça especializada que reduz o seu campo de atuação está condenada a ser uma justiça mínima, menor (a partir daí, não custa muito ser retomada a proposta de extinção). O momento é crucial para a magistratura trabalhista. Podemos formar jurisprudência declinando de competência. Seremos, então, especialistas em litígios patrão-empregado — dividindo, obviamente, a nossa atuação com estas comissões de conciliação prévia que estão por aí. Ou, ao revés, podemos ser mais do que uma justiça especializada; podemos ser uma justiça especial. Aquela que trata de todos os litígios envolvendo trabalho — matéria-prima e, ao mesmo tempo, o calcanhar de Aquiles do sistema capitalista. O que queremos? A palavra está com o juiz do trabalho” (Gustavo Tadeu Alkmim — Gestão 1999/2001).(27) “O que se espera, agora, é que, vencida a guerra, não nos permitamos derrotar em nossas próprias hostes. É claro que o alcance das novas regras constitucionais dependerá dos contornos que a sua interpretação, especialmente nas cortes trabalhistas, vier a ter. Estou certo que os juízes do trabalho lutarão para preservar o que, com tanto esforço, alcançaram”.(28) “O juiz não deve abrir mão dessa competência ampliada, interpretando o texto de forma restritiva, ou prestando uma jurisdição defeituosa que termine por desautorizar o seu papel como definidor desses litígios que vão surgir das novas matérias que vieram para a nossa competência. Acho que o momento é muito grave e os juízes tem que ter consciência desse papel na definição e na consolidação dessas conquistas. Espero que os juízes do trabalho não abdiquem desse papel ” (Hugo Cavalcanti Melo Filho — Gestão 2001/2003).(29) (26) (27) (28) (29) ANAMATRA, Informativo Especial n. 57, 3 de dezembro de 2004. Idem. Idem. ANAMATRA, Informativo n. 59, de 23 de dezembro de 2004. 140 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Não seremos autofágicos, com certeza, reafirmando a cada decisão a ampliação da competência da Justiça do Trabalho, sem perder o sentido da principiologia orientadora do Direito do Trabalho e o caráter protetor da legislação social frente às desigualdades que permeiam a relação entre o capital e o trabalho. Essa visão social da magistratura trabalhista, agora autorizada por norma constitucional, irá além do pacto entre empregado e empregador. Os juízes do trabalho estão aptos para julgar as demandas que tratam dos conflitos de todas as relações de trabalho, assim como os litígios entre sindicatos, os mandados de segurança, o habeas corpus e o habeas data, as ações de indenização por dano moral ou patrimonial e as ações que envolvam o exercício do direito de greve. Além da especialidade na matéria, dos contornos que serão atribuídos aos contratos de trabalho de natureza civil, numa época em que o recente Código Civil rompeu com a filosofia liberal clássica individualista para incorporar noções do direito social do trabalho como valores indisponíveis, nada melhor do que a atuação do magistrado social em tal esfera, que deve estar acompanhada de princípios informadores da celeridade, da prestação jurisdicional justa e da efetividade de suas decisões. Pelo menos um passo à frente foi dado na Reforma do Poder Judiciário recentemente concluída. 9. Ainda a racionalidade da redistribuição da competência Estivemos tratando da racionalidade sociológica-política de se concentrar em um único ramo do Judiciário, especializado, a solução de todo e qualquer conflito relacionado ao trabalho. Deve ser realçado, ademais, que essa nova redistribuição de competência também atende à racionalidade técnica e econômica do sistema. Parece elementar que a concentração, na Justiça do Trabalho, da solução de qualquer conflito atinente ao trabalho pessoal prestado por pessoa física, com abstração de qualquer outro elemento tipificador de especial modalidade de contrato de trabalho — v.g., eventualidade, onerosidade, alteridade e subordinação, ou não —, implicará em se conferir enorme eficiência ao sistema. Se não por outras razões, pela eliminação ou, ao menos, substancial redução de conflitos de competência. Nada mais comum, no regime anterior, que o Juiz do Trabalho, ao acolher a tese de inexistência de vínculo empregatício deduzida pelo NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 141 tomador de serviços, se visse tolhido de, concomitantemente, pôr termo ao conflito, sendo compelido a remeter as partes à solução que lhes propiciasse o Juízo Comum, Estadual ou Federal. Iniciava-se para as partes, então, mais um novo périplo, no mais das vezes interminável, a considerar o grau de assoberbamento dos outros ramos do Judiciário, desestimulando, com freqüência, a própria continuidade da busca da prestação jurisdicional pelo interessado. Agora, viabiliza-se a solução de uma única feita, bastando a dedução de pedidos alternativos ou sucessivos, ou, na pior das hipóteses, se necessária uma nova ação, a perspectiva de uma tramitação mais célere, a partir da distribuição por dependência para o julgamento pelo mesmo juízo que já terá tratado da matéria, inclusive com trânsito em julgado, quanto a aspectos relevantes da relação de trabalho trazida à apreciação. O regime antecedente, como se sabe, afastava a possibilidade da aplicação de diversos institutos relacionados à intervenção de terceiros, na medida em que se configuravam conflitos paralelos contrapondo atores que não eram (simultaneamente) empregado e empregador. Nesses casos, a solução dos conflitos paralelos tinha que ser remetida também ao Juízo Comum. Agora, nada mais obsta a que no mesmo feito todas essas controvérsias sejam, desde logo, dirimidas, pois a competência não mais se define em face dos atores envolvidos, mas apenas da relação de trabalho subjacente, seja ela subordinada ou não, onerosa ou não, eventual ou não. Essas considerações evidenciam que o ganho de eficiência do sistema é notório, ainda que em curto prazo não se possa avaliar qual sua expressão em termos de descongestionamento dos demais ramos do Judiciário. Estamos convictos, contudo, que a redistribuição de competência tanto mais se impunha quando se analisava o atual quadro de demandas e de capacidade de solução dos diversos ramos do Judiciário. Inegavelmente, a Justiça do Trabalho encontra-se em situação de equilíbrio, que lhe permite absorver novas demandas, desafogando as co-irmãs, que, sob uma perspectiva global (desconsideradas especificidades de algumas Justiças Estaduais), encontram-se em situação verdadeiramente caótica. Estudo levado a efeito para a ANAMATRA em 2002 pelo seu atual Diretor de Direitos e Prerrogativas, Rodnei Doreto Rodrigues, a partir do Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário, encontrado na página do 142 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO STF na internet, considerando o “movimento forense nacional” do período 1990/2001, chegou às seguintes conclusões: a) Desde 1999, as Varas do Trabalho vinham julgando número superior às ações anualmente ajuizadas, o mesmo ocorrendo, desde 1996, salvo pequeno retrocesso em 2000, com os Tribunais Regionais; b) A primeira instância da Justiça dos Estados vinha julgando números inferiores a 70% das ações ajuizadas, embora tenha havido um salto para 86,3% em 2001; também os Tribunais de Alçada e de Justiça longe estavam de dar vazão à demanda; c) A primeira instância da Justiça Federal não vinha conseguindo julgar sequer 60% das ações anualmente ajuizadas; ao passo que a segunda instância também estava longe de atender à demanda, tendo obtido melhores resultados, da ordem de 75%, nos anos de 2000 e 2001; d) O desempenho da Justiça do Trabalho de primeira instância, consistentemente observado no período de 1999/2001, evidenciava que estava prestes a zerar o saldo de ações recebidas e não julgadas no período fechado de 1990/2001; e) A primeira instância da Justiça Comum dos Estados acumulou um saldo de 20.398.958 ações recebidas e não julgadas no período 1990/2001. Considerando-se o desempenho de 2001 — julgamento de 7.908.303 ações —, tardaria cerca de 2,6 anos (quase 2 anos e 7 meses) para julgar todo o saldo pendente do período, ainda que não mais recebesse uma ação sequer; f) A Justiça Federal de primeira instância acumulou um saldo de 3.882.044 ações recebidas e não julgadas no período de 1990/2001. Considerando-se o desempenho de 2001 — julgamento de 584.818 ações — tardaria cerca de 6,64 anos (quase 6 anos e 8 meses) para julgar todo o saldo pendente, ainda que não recebesse qualquer ação. Por outra, se dobrasse o seu desempenho (dobrando o quadro de juízes, por exemplo, e assim julgando 1.169.636 ações anuais), mantido o mesmo número de ações novas recebidas em 2001 (1.102.095) nos anos seguintes, passaria a atender à demanda, com um saldo positivo de 106.541 julgamentos anuais. Mesmo assim, levaria cerca de 36,5 anos para zerar o déficit acumulado no período 1990/2001. Mantidas as mesmas condições, se fossem triplicados os quadros, ainda assim seriam demandados cerca de 5 anos e 2 meses para se anular o saldo acumulado no mesmo período. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 143 Essa realidade não se modificou substancialmente nos últimos anos. O levantamento mais acurado recentemente concluído pelo Supremo Tribunal Federal, sob os auspícios do Presidente Nelson Jobim, revela a situação seriíssima em que se encontra a Justiça Federal. A ANAMATRA aguarda com ansiedade os resultados do levantamento relativo ao desempenho da Justiça do Trabalho, que, seguramente, haverão de evidenciar a situação de equilíbrio ora relatada. Estatísticas mais recentes, divulgadas na página do TST na internet, indicam os seguintes resultados relativamente às Varas do Trabalho: Anos Autuados Julgados/Conciliados Resíduo 1999 1.877.022 1.919.041 940.881 2000 1.722.541 1.897.050 773.860 2001 1.742.523 1.799.849 721.184 2002 1.614.255 1.601.269 738.377 2003 1.706.778 1.640.958 820.877 Nota-se que o resíduo acumulado em 2003 corresponde à metade da produção no mesmo ano, de sorte que, a se considerar um prazo médio de julgamento de 6 meses na primeira instância, seria perfeitamente natural tal saldo. Devemos ressaltar que, na verdade, os prazos médios de julgamento em grande número das Varas do País não supera dois meses. A rigor, existem alguns desequilíbrios nos grandes centros, notadamente São Paulo e Rio, que não têm sido aquinhoados com estrutura minimamente adequada nos últimos anos, tanto em termos materiais como de pessoal. Isso, na prática, acaba dando espaço para as reiteradas críticas produzidas pela mídia, no sentido de uma morosidade que na imensa maioria dos foros trabalhistas do País não ocorre. Não é por outra razão que a ANAMATRA, recentemente, instituiu uma comissão especial para identificar e pugnar pela adoção de medidas destinadas à eliminação desses desequilíbrios estruturais, que acabam por dar combustível aos críticos da Justiça do Trabalho. Percebe-se que nos anos de 2002 e 2003 houve um reduzido déficit na solução das ações ajuizadas, perfeitamente explicável, seja pelo enorme aumento de demanda provocada pela absorção da competência 144 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO para a execução das contribuições previdenciárias decorrentes das decisões proferidas pela Justiça do Trabalho, seja pela redução de quadros em decorrência de aposentadorias precoces induzidas pelas recentes reformas previdenciárias. Entretanto, esse pequeno “retrocesso” (déficit de apenas 65.820 ações não solucionadas em 2003) será facilmente superado pela implantação das novas 269 Varas do Trabalho, que será ultimada no corrente ano, com a criação de 538 novos cargos de juízes do trabalho. Se considerarmos que em 2003 existiam 1.109 Varas com 2.294 juízes, teremos uma ampliação da capacidade de produção próxima de 25%, equivalente a cerca de 400.000 novas ações anuais. É o quanto basta para a eliminação do déficit e para a absorção das novas demandas derivadas da ampliação de competência pela recente Reforma do Judiciário, sem qualquer ruptura do equilíbrio já atingido. Os números ora apresentados revelam que a redistribuição de competência atende a um imperativo de racionalidade do sistema, desafogando a Justiça Comum Estadual e Federal, cuja capacidade de atendimento de suas demandas se mostra insustentável. Mais que isso, revela o enorme equívoco em que incorreu o Senado Federal ao abrir a possibilidade de subtração da competência destinada à Justiça do Trabalho para dirimir os conflitos relativos aos estatutários, ao aprovar emenda que ensejou o retorno dessa matéria a nova apreciação pela Câmara dos Deputados. 10. Síntese O capital jamais esmorece na eterna busca da maximização dos ganhos, pela apropriação do excedente não remunerado da força de trabalho. A evolução tecnológica propicia aos detentores dos meios de produção modificações nos sistemas produtivos, que sempre têm em mira a ampliação de seus lucros, pela via da redução da participação do trabalho nos resultados da produção. Essa redução de participação, invariavelmente, se dá pela diminuição da remuneração do trabalhador ou do aumento da produtividade (ensejador da redução dos postos de trabalho sem prejuízo da produção). A reação dos trabalhadores tarda, mas sempre sobrevem a partir do momento em que se organizam adequadamente. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 145 Por isso, o retardamento dessa reação também se insere nas eternas estratégias do capital, que adota, patrocina e estimula mecanismos inibidores, coibidores e/ou impeditivos da organização dos trabalhadores. Em épocas anteriores, a reação dos trabalhadores se processou por meios violentos, revolucionários. Mais recentemente foram encontrados mecanismos menos traumáticos, caracterizados pelo intervencionismo estatal na mitigação dos conflitos entre o capital e o trabalho, conferindo certo equilíbrio a essa relação que pendularmente oscila em favor do primeiro. Quando se imaginava que havia sido encontrada uma solução para esse eterno embate, por meio do welfare state e da adoção da relação de emprego como paradigma do vínculo entre os atores individuais do conflito, mais uma vez a onda liberal renasce, agora como tsunami, a partir do terremoto gerado pela evolução da informática. O avanço das comunicações, da robótica, do processamento das informações, tudo isso e muito mais, vêm determinar um enorme ganho de produtividade das empresas, bem assim a internacionalização de suas atividades, tornando os Estados, ao menos momentaneamente, incapazes de desempenhar o papel de equilíbrio entre o capital e o trabalho, pelas restrições à sua soberania sobre as atividades de empresas alienígenas, determinadas pelo clima competitivo que se estabelece em âmbito global. Esse ganho de produtividade acaba por determinar uma enorme redução dos postos de trabalho, ampliando-se o desemprego, com os decorrentes efeitos deletérios sobre a remuneração dos trabalhadores, ensejados pelo aumento da oferta de trabalho propiciada pelo exército de desempregados. A terceirização passa a ser outra das estratégias de fragmentação da organização dos trabalhadores e de redução de seus ganhos. A relação de emprego, cada vez mais, deixa de ser o paradigma do liame a vincular os atores individuais do eterno embate. Emergem ou aperfeiçoam-se outras formas de exploração do trabalho humano. O direito do trabalho, construído para disciplinar a relação paradigmática de emprego, já não mais responde às demandas emergentes dos novos conflitos que se originam a partir das novas formas de relação de trabalho. Mesmo para as tradicionais relações laborais, ainda que autônomas, o Judiciário Comum, assoberbado com tantas outras demandas, não consegue oferecer resposta eficiente e adequada. 146 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Num quadro dessa natureza, nada mais conveniente e racional do que cometer a um especial ramo do Judiciário a exclusividade da competência para a solução de todos os conflitos emergentes no mundo do trabalho, tendo-se apenas em conta, como elementos invariavelmente definidores da matéria, a prestação pessoal de serviços por pessoa física, independentemente de outros tipificadores de particular modalidade de relação de trabalho (v.g., subordinação ou não, eventualidade ou não, onerosidade ou não, alteridade ou não). Ninguém como o juiz do trabalho se encontra tão apto a tratar desses conflitos. Em seu dia-a-dia, invariavelmente, sempre lidou com esses elementos diferenciadores das peculiares relações de trabalho, como matéria prejudicial de mérito nas situações em que o tomador de serviços impugna a configuração da pretendida relação de emprego. De outro lado, não terá a menor dificuldade em lidar com situações em que o caráter tuitivo deva ser considerado não em favor do prestador, mas sim do tomador de serviços, como sói ocorrer em relações de consumo que também configurem relações de trabalho. A abrangência de todos os conflitos relacionados ao mundo do trabalho se revela conveniente, até mesmo para especializar o juiz na identificação e solução de situações outras, em que não haja qualquer desequilíbrio entre as partes da relação de trabalho, de sorte a aplicar em cada caso o direito material mais consentâneo, seja ele o direito do trabalho, seja o do consumidor, seja, enfim, o direito comum, sempre à luz dos princípios e normas constitucionais prevalentes. Essas considerações consubstanciam as razões sociológico-políticas justificadoras da redistribuição de competência material, viabilizada pela recente Reforma do Judiciário. Em boa hora o Parlamento teve a exata noção da relevância de se cometer à Justiça do Trabalho a competência material para dirimir todos os conflitos “oriundos da relação de trabalho”, qualquer que seja a modalidade, independentemente de quem sejam seus atores. Agora apenas resta à sociedade, sobretudo aos próprios juízes do trabalho, pugnar para que nenhum “acidente de hermenêutica” determine qualquer retrocesso nessa conquista, que é dela, pelo qual se subtraiam, ainda que parcialmente, matérias que o processo legislativo claramente evidenciou terem sido destinadas à competência da Justiça do Trabalho pela vontade do constituinte derivado. A racionalidade da redistribuição de competência de que se trata nesse escrito não se resume à vertente sociológico-política. Ela, também, se revela sob a perspectiva técnica e econômica. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 147 A atribuição de exclusiva competência à Justiça do Trabalho para dirimir todos os conflitos oriundos da relação de trabalho, seguramente provocará a redução de conflitos de competência entre os diversos ramos, freqüentemente suscitados naquelas situações chamadas de zonas gris, ou seja, em face de situações limítrofes que dificultavam a identificação do peculiar liame de trabalho que relacionava as partes contratantes. No mesmo sentido, será desnecessária a fragmentação do processo para soluções parciais por mais de um ramo do Judiciário, nos casos em que estejam envolvidos interesses de terceiros, sendo certo que, no velho regime, não se podia admitir a intervenção de terceiros no processo do trabalho, pois isso importava em contraposição de partes que não eram, uma e outra, empregado e empregador. A partir do momento em que a competência se define em função, não mais dos atores envolvidos, mas da relação de trabalho subjacente, passa a inexistir óbice à aplicação dos tradicionais institutos do processo comum. Somente esses exemplos já são reveladores de expressivos ganhos de eficiência do sistema implementados pela nova atribuição competencial. Não bastasse isso, as estatísticas globais revelam que a Justiça do Trabalho encontra-se muito mais equilibrada que os demais ramos do Judiciário, seja no âmbito estadual, seja federal, quando consideradas as demandas a que estão sujeitas e a capacidade de solução das ações. Com efeito, a situação da Justiça Federal e da Estadual, ao menos em termos de números globais, é extremamente grave, em muitos casos caótica. Estando mais equilibrada, a ampliação de sua capacidade em cerca de 25%, como decorrência da instalação de novas Varas, a ser ultimada neste ano, conferir-lhe-á potencial para absorver novas demandas que a ampliação de competência acarretará. Com isso, de outra parte, promover-se-á um alívio nos demais ramos, com evidente ganho geral do sistema em eficiência e produtividade. Essas últimas considerações evidenciam, portanto, que a redistribuição de competência, a par da racionalidade sociológico-política, também confere racionalidade técnico-econômica ao sistema judiciário nacional, confluindo, assim, no sentido dos anseios nacionais de modernização do Poder Judiciário, na medida em que será determinante de maior celeridade, eficiência e efetividade da prestação jurisdicional. 148 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO A Reforma do Judiciário e os Novos Marcos da Competência Material da Justiça do Trabalho no Brasil João Oreste Dalazen (*) 1. Introdução A Constituição Federal de 1988, como se recorda, revelou-se muito avara e precária ao regular em um único preceito (art. 114) a competência material da Justiça do Trabalho no campo do dissídio individual, tema sobremodo complexo e intrincado para ser tratado com tamanha parcimônia. A recente publicação da Emenda Constitucional n. 45, de 31.12.2004, que implantou a primeira etapa da Reforma do Poder Judiciário, no particular, constitui um formidável avanço, não obstante se ressinta ainda de imperfeições. Além de suprir algumas graves lacunas atinentes à competência para conflitos trabalhistas típicos, contemplou a Justiça do Trabalho com um vigoroso e alentador fortalecimento institucional, mormente ao ampliar-lhe sobremodo a competência material. De fato, a EC em comento inovou significativamente na disciplina constitucional da competência material da Justiça do Trabalho, seja mediante um inédito detalhamento, decerto visando a evitar ao máximo os indesejáveis conflitos e exceções de competência, seja atribuindo-lhe competência para julgar outras lides de natureza diversa, absolutamente estranhas à sua clássica competência para o conflito obreiro-patronal. Percebe-se ainda do novo teor do art. 114 da Constituição Federal que a Justiça do Trabalho revelou-se merecedora de confiança do Congresso Nacional, pois lhe atribuiu competência para julgar lides de natureza diversa que tenham o trabalho como fundamento. (*) Ministro do Tribunal Superior do Trabalho. Professor Assistente da Universidade de Brasília (UNB). NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 149 Em essência, a nova redação emprestada pela EC n. 45/2004 ao art. 114 da Constituição Federal convolou a Justiça do Trabalho no juízo natural para o qual devem convergir todos os conflitos decorrentes do trabalho pessoal prestado a outrem, subordinado, ou não, assim como diversas lides conexas decorrentes da execução de um contrato de emprego. 2. Lides oriundas da relação de trabalho 2.1. Exegese histórica do art. 114, i, da CF/88 Seguramente a mais notável inovação repousa na competência material da Justiça do Trabalho para lides oriundas da relação de trabalho. Note-se que o Texto Constitucional anteriormente aludia a “dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores”, bem como conferia competência, “na forma da lei”, para “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho”. Por isso, sob o signo de tal mandamento constitucional, fixou-se o entendimento de que a própria Constituição Federal atribuiu à Justiça do Trabalho dirimir os litígios entre empregados e empregadores (conflitos trabalhistas típicos), mas reservou-se à lei a possibilidade de estender tal competência a litígios emergentes entre não-empregado e não-empregador vinculados por uma relação de trabalho em sentido lato. Logo, duas conclusões então se extraíram: a) para os conflitos individuais emanados de relação de emprego, a fonte da competência material da Justiça do Trabalho era a própria Constituição Federal; b) diversamente, para os conflitos individuais (atípicos) emanados da relação de trabalho, a fonte da competência material da Justiça do Trabalho era a lei ordinária. Sobrevindo a EC n. 45/2004, não se vincula mais a competência material da Justiça do Trabalho estritamente à lide emanada da relação de emprego e entre os respectivos sujeitos. Vinca-se dita competência à lide advinda da relação de trabalho. A questão é tormentosa e atormentadora, pois, consiste em saber se a locução “da relação de trabalho” no novo Texto Constitucional pode significar “da relação de emprego”. A absoluta pertinência da indagação ainda mais se acentua quando se atende para a circunstância de que o texto ora aprovado incorre em grave contradição. 150 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Com efeito. Ao mesmo tempo em que o inciso I do art. 114 declara competir à Justiça do Trabalho julgar os dissídios em geral emergentes de “relação de trabalho”, o inciso IX estatui que a Justiça do Trabalho pode julgar “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei”. Poder-se-ia objetar que se a competência da Justiça do Trabalho para “relação de trabalho” repousará no próprio Texto Constitucional (inciso I), não haveria porquê se contemplar em outro inciso (IX) a possibilidade de a lei ordinária estender essa competência a outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho. Poder-se-ia redargüir que de duas, uma: ou o inciso I alude impropriamente à relação de trabalho, pretendendo referir-se tão-somente à relação de emprego, única circunstância em que se compreenderia e justificar-se-ia a norma do inciso IX ao contemplar a possibilidade de a lei estender a competência para outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, tal como sucedia em face da redação originária do art. 114; ou o inciso I cometeu à Justiça do Trabalho competência para o litígio advindo mesmo de qualquer “relação de trabalho” em sentido amplo, hipótese em que o inciso IX despontaria ocioso, a toda evidência. Inequivocamente, o art. 114 inc. I padece de uma redação defeituosa e tecnicamente imprópria, que bem se explica no processo legislativo, que redundou na EC n. 45/2004. Na Comissão Especial da PEC n. 96/1992 da Câmara dos Deputados, votou-se e aprovou-se parecer da Relatora, Dep. Zulaiê Cobra, em que, coerentemente, preservava-se o sistema originário do art. 114 da CF/88: na proposta do que seria o art. 115 inc. I reportava-se explicitamente a dissídio de relação de emprego e em outro inciso (VIII) repisava-se a diretriz de que a lei poderia alargar a competência da Justiça do Trabalho para outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho. Sucede, todavia, que em Plenário, a Câmara dos Deputados aprovou destaque para substituir a locução “relação de emprego” por “relação de trabalho”(1). Olvidou-se, no entanto, de suprimir (porque inútil e incompatível com o destaque apresentado e aprovado) o inciso (VIII da PEC, atual IX) pelo qual a lei poderia estender a competência da Justiça do Trabalho para outras controvérsias derivantes da relação de trabalho. E o Senado Federal manteve a locução “relação de trabalho”. (1) Destaque de Votação em Separado n. 116, do Dep. Nelo Rodolfo (PMDB-SP). NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 151 Aprofundando-se mais no processo legislativo, constata-se que no Senado Federal apresentou-se Emenda de Plenário(2), em que se propugnava o restabelecimento do texto aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados com a locução relação de emprego. A Emenda, contudo, sequer foi votada, o que dá bem a medida da absoluta falta de receptividade à proposição. Outro aspecto sumamente importante do processo legislativo está em que o Senado Federal manteve a locução “relação de trabalho”, mas aprovou emenda para excluir da competência material da Justiça do Trabalho “os servidores ocupantes de cargos criados por lei, de provimento efetivo ou em comissão, incluídas as autarquias e fundações públicas”. Ora, essa exceção à regra da competência da Justiça do Trabalho para as lides derivantes de “relação de trabalho” é indubitavelmente reveladora de que não quis o Senado Federal cifrar a referida competência às lides emergentes de relação de emprego, porquanto, se assim fosse, naturalmente não se faria necessária a exclusão dos servidores públicos estatutários. Com efeito, se a competência da Justiça do Trabalho persistisse restrita às lides provenientes de relação de emprego, não haveria porquê excepcionar os estatutários de tal competência, porque obviamente não mantêm relação de emprego com o Estado. Sintomático desse manifesto intuito do legislador é também o fato de que, diferentemente da redação anterior do art. 114, a atual não repisa a referência a dissídio entre trabalhadores e empregadores. O silêncio eloqüente acerca dos sujeitos em que se pode configurar um dissídio advindo da relação de trabalho também sinaliza, iniludivelmente, que se objetivou mesmo a expansão dos domínios da Justiça do Trabalho, de maneira a inscrever em sua esfera muitos outros litígios derivantes de relação de trabalho, em sentido lato, em que não haja vínculo empregatício. Transparece nítida e insofismável, assim, à luz de uma interpretação histórica do processo legislativo da EC n. 45/2004, que a mens legislatoris foi a de repelir a identificação da competência material da Justiça do Trabalho estritamente com os dissídios emergentes da “relação de emprego”. Houve, sim, deliberada vontade do Congresso Nacional, expressa em sucessivos momentos, de alargar os horizontes da atuação da Justiça do Trabalho, sobretudo no que se renegou a locução “da relação de emprego”, preferindo-se a esta a locução, muito mais ampla e genérica, “da relação de trabalho”. (2) Emenda de Plenário n. 136 do então Senador Artur da Távola (PSDB-RJ). 152 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 2.2. Conceito de relação de trabalho A estrita vinculação do novel art. 114 inc. I da CF/88 às lides “oriundas da relação de trabalho” bastaria para ser o fator determinante em si do reconhecimento da competência material da Justiça do Trabalho para muito além do dissídio individual entre empregado e empregador. O vocábulo “relação”, do ponto de vista filosófico, indica “o modo de ser ou comportar-se dos objetos entre si”(3). No tocante ao trabalho humano, seja subordinado, seja autônomo, acha-se “relacionado” de diferentes modos, visto que notoriamente pode ser objeto de distintas relações jurídicas, contratuais, ou não, entre as quais: relação jurídica estatutária entre servidor público e o Estado, contrato de emprego, contrato de empreitada, contrato de prestação de serviços, contrato de parceria, contrato de representação mercantil, etc. Por isso, no plano do Direito Privado, reportam-se alguns doutrinadores aos contratos, denominando-os genericamente “contratos de atividade”. Daí o pertinente e abalizado escólio de Amauri Mascaro Nascimento: “Relação de trabalho é um gênero, do qual a relação de emprego ou contrato de trabalho é uma das modalidades, aspecto de fácil compreensão diante das múltiplas formas de atividade humana e que o Direito procura regulamentar em setorizações diferentes. Podese, mesmo, falar em divisão jurídica do trabalho com implicações no problema da competência dos órgãos jurisdicionais.” Patente, por conseguinte, que para efeito de ditar a competência material da Justiça do Trabalho, a locução relação jurídica de trabalho é utilizada com alcance mais abrangente que relação jurídica de emprego. 2.3. Lide da relação de trabalho afeta à Justiça do Trabalho Que se há de entender, então, por “relação de trabalho”, para efeito de determinação da competência material da Justiça do Trabalho? Convenci-me de que o novel Texto Constitucional, ao estatuir que incumbirá à Justiça do Trabalho equacionar dissídio oriundo da “relação de trabalho” (art. 114, inciso I), confiou-lhe: a) os conflitos trabalhistas emergentes de uma relação de emprego, pois esta é uma espécie de relação de trabalho; (3) ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia, 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 153 b) também toda lide advinda dos contratos de atividade em geral, contanto que se cuide de prestação pessoal de serviço a outrem; c) a lide que envolva servidor público, qualquer que seja o regime, inclusive o estatutário. Examinemos de forma particularizada esses casos. 2.3.1. Dissídios individuais da relação de emprego Patente que a norma constitucional do art. 114 inc. I, conquanto se reporte às lides que dimanam da “relação de trabalho”, não preexcluiu a competência do Judiciário Trabalhista para os litígios derivantes de relação de emprego: não pode ser outra a inferência lógica se se tiver presente que se contém no conceito de “relação de trabalho” o de “relação de emprego”. Como se sabe, e é da tradição do Direito brasileiro, há uma umbilical correlação entre conflitos trabalhistas típicos — havendo-se por tais os que nascem de uma relação de emprego — e competência material da Justiça do Trabalho: a competência material da Justiça do Trabalho persiste repousando essencialmente na solução dos conflitos trabalhistas. A auspiciosa novidade está em que a nova norma constitucional, consoante já se anotou, não mais circunscreve a competência da Justiça do Trabalho aos dissídios “entre trabalhadores e empregadores”, como o fazia a redação anterior. Assim, porque o suposto da determinação da competência é unicamente a controvérsia derivar da “relação de trabalho”, o novo Texto Constitucional preenche uma omissão de que se ressentia a disciplina da competência material da Justiça do Trabalho: os litígios da relação de emprego e que não envolvam os seus sujeitos. De sorte que, presentemente, inscrevem-se na competência da Justiça do Trabalho, ao revés do que sucedia antes (por falta de permissivo legal e constitucional): a) os dissídios interobreiros, a exemplo do que se passa, às vezes, entre os empregados que celebram contrato de equipe, a respeito de salário; b) os dissídios interpatronais sobre obrigação que decorre do contrato de emprego, tal como se verifica na lide entre o empregador sucessor e o sucedido, ou entre o empregador subempreiteiro e o empreiteiro principal (art. 455 da CLT); c) quaisquer outras lides a propósito de direitos e obrigações que decorram da relação de emprego, mesmo que não se estabeleçam entre empregado e empregador, como se dá com a ação civil pública “trabalhista”, ou com o dissídio sobre complementação de aposentadoria entre empregado e entidade de previdência privada fechada instituída pelo empregador, quando a complementação de aposentadoria não é criada pelo empregador. 154 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Situação peculiar é a do trabalhador eventual avulso: desenvolve trabalho subordinado não configurador de relação empregatícia. A Constituição Federal, contudo, assegura ao avulso direitos iguais aos do trabalhador com vínculo permanente (art. 7º, parágrafo único). Há, pois, relação de trabalho assimilada à de emprego e regida pelo Direito do Trabalho. Antes da atual redação emprestada ao art. 114 inc. I da CF/88, a MP n. 2164/01 atribuiu competência à Justiça do Trabalho para as lides entre uma espécie de avulso, o trabalhador portuário, e os operadores portuários ou o Órgão Gestor de Mão-de-Obra (OGMO). Entendo que, em face do novo Texto Constitucional, cabe à Justiça do Trabalho solucionar todos os dissídios por direitos e obrigações da relação de trabalho do avulso, a saber: a) entre o avulso e o tomador dos serviços; b) entre o avulso e o sindicato (que lhe coordena e dirige as atividades) ou o OGMO; c) entre o sindicato e o tomador dos serviços. 2.3.2. Contrato pessoal de atividade Igualmente pode recair na órbita da Justiça do Trabalho o labor prestado “sem subordinação”, objeto de uma relação de trabalho em sentido amplo, quer haja sido formalizada, quer não. É o trabalho autônomo ou por conta própria. Muitos contratos de atividade, mediante os quais se exterioriza o trabalho humano autônomo ou por conta própria, podem provocar o surgimento de lide afeta à competência da Justiça do Trabalho. A aludida competência, todavia, a meu juízo, não enlaça todo contrato de atividade: respeita somente à lide derivante da prestação pessoal de serviço a outrem. Por quê? Porque a tônica da competência traçada no novo art. 114 inc. I, em meu entender, há de guardar uma certa simetria ou paralelismo com a competência para os dissídios emergentes de relação de emprego. É a similitude de condições socioeconômicas entre a figura do empregado e a do autônomo que dita essa competência da Justiça do Trabalho. Ambos têm em comum a circunstância de subsistirem da “alienação” pessoal da força de trabalho a outrem. Tal traço de identidade entre o empregado e o autônomo é que justifica submeterem-se ambos a uma jurisdição que é “do Trabalho”, a exemplo do que já sucede há décadas com o pequeno empreiteiro, operário ou artífice (CLT, art. 652, a, inc. III). Esse, pareceme, o espírito da norma constitucional em foco. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 155 Daí se segue, por exemplo, que um contrato de empreitada entre pessoas jurídicas, ou mediante o qual uma pessoa jurídica obriga-se junto a uma pessoa física a executar determinada obra, sob certo preço, transcende da competência da Justiça do Trabalho, por não se tratar de serviço avençado e prestado diretamente por pessoa física. Diga-se o mesmo de um litígio que aflore em um contrato de prestação de serviços entre um plano de saúde e o cliente, ou entre um banco na qualidade de prestador de serviços e pessoa física (por exemplo, ao receber tributos mesmo de não cliente). Se, entretanto, a lide deriva de labor pessoal, embora autônomo, inscreve-se na competência material da Justiça do Trabalho, ante a inafastável incidência do art. 114 inc. I da CF/88. É o que pode suceder em numerosos contratos firmados por pessoa física, tais como de prestação de serviços, de corretagem, de representação comercial (denominado de contrato de agência e distribuição no Código Civil de 2002), ou nos contratos celebrados entre o corretor de seguros e o respectivo tomador de serviços, ou entre o transportador rodoviário autônomo e a empresa de transporte rodoviário de bens ou o usuário desses serviços, ou entre o empreiteiro pessoa física e o dono da obra, nos contratos de pequena empreitada, ou entre o parceiro ou o arrendatário rural e o proprietário, ou entre cooperativas de trabalho e seus associados, ou entre cooperativas de trabalho ou seus associados e os tomadores de serviços. Por conseguinte, a título ilustrativo, profissionais liberais (médicos, advogados, odontólogos, economistas, arquitetos, engenheiros, entre tantos outros) podem agora demandar e ser demandados, nesta qualidade jurídica, na Justiça do Trabalho. Desse modo, valoriza-se e moderniza-se a Justiça do Trabalho, bem assim retira-se o máximo proveito social de sua formidável estrutura. Afora isso, supera-se a arraigada e superada concepção de constituir a Justiça do Trabalho meramente uma Justiça do emprego. Questão relevante que se põe aqui consiste em averiguar se tal competência alcançaria também a relação contratual de consumo, reguladas pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90). Sabe-se que a relação contratual de consumo pode ter por objeto a prestação pessoal de serviços e, assim, também constituir relação de trabalho em sentido amplo (art. 3º, § 2º, do CDC). A prestação de serviço advocatício, a prestação de serviço médico para uma cirurgia estética ou reparatória, o serviço de conserto ou assistência técnica, entre infindáveis de outros exemplos, caracterizam relação de consumo. 156 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Há relação de consumo desde que presente uma relação jurídica em cujos pólos estejam as figuras do consumidor-fornecedor, tendo por objeto um produto ou um serviço. O art. 2º do CDC reputa “consumidor toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. É consumidor, portanto, aquele que “contrata a prestação de serviços, como destinatário final, pressupondo-se que assim age com vistas ao atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de uma outra atividade negocial”(4). Sucede, no entanto, que se pode visualizar a relação contratual de consumo não apenas sob o ângulo do consumidor/destinatário do serviço, mas também sob o prisma da virtual pessoa física prestadora (fornecedor) do serviço. Cuida-se, a meu juízo, de uma relação jurídica de natureza bifronte: do ângulo do consumidor/ destinatário do serviço, relação de consumo, regida e protegida pelo CDC; do ângulo do prestador do serviço (fornecedor), regulada pelas normas gerais de Direito Civil. Evidentemente, que nessa relação contratual tanto pode surgir lesão a direito subjetivo do prestador do serviço (fornecedor) quanto do consumidor/destinatário do serviço. Entendo que a lide propriamente da relação de consumo, entre o consumidor, nesta condição, e o respectivo prestador do serviço, visando à aplicação do Código de Defesa do Consumidor, escapa à competência da Justiça do Trabalho, pois aí não aflora disputa emanada de relação de trabalho. É lide cujo objeto é a defesa de direitos do cidadão na condição de consumidor de um serviço e, não, como prestador de um serviço. Afora isso, em geral a relação de consumo traduz uma obrigação contratual de resultado, em que o que menos importa é o trabalho em si. Entretanto, sob o enfoque do prestador do serviço (fornecedor), é forçoso convir que firma ele uma relação jurídica de trabalho com o consumidor/destinatário do serviço: um se obriga a desenvolver determinada atividade ou serviço em proveito do outro mediante o pagamento de determinada retribuição, ou preço. Se, pois, a relação contratual de consumo pode ter por objeto a prestação de serviços e, assim, caracterizar também, inequivocamen(4) FILOMENO, José Geraldo Brito. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Comentado pelos autores do anteprojeto. 5ª ed., 1999, p. 25. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 157 te, uma relação de trabalho em sentido amplo, afigura-se-me inafastável o reconhecimento da competência material da Justiça do Trabalho para a lide que daí emergir, se e enquanto não se tratar de lide envolvendo a aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Vale dizer: se não se cuida de litígio que surge propriamente da relação de consumo, mas da relação de trabalho que nela se contém, regulada pelo Direito Civil, não atino para a razão de descartar-se a competência da Justiça do Trabalho. É o que se dá, por exemplo, na demanda da pessoa física prestadora de serviços em favor de outrem pelos honorários ou preço dos serviços contratados. Eis por que reafirmo que a circunstância de haver subjacente à lide uma relação contratual de consumo não obsta a que profissionais liberais e autônomos em geral doravante demandem, nesta qualidade jurídica, na Justiça do Trabalho, uma vez que o façam como sujeitos de uma relação jurídica que também é de trabalho e a lide não seja concernente a direitos do consumidor. 2.3.3. Servidor público O texto promulgado e publicado da EC n. 45/2004 conferiu competência material à Justiça do Trabalho para os dissídios decorrentes de “relação de trabalho” em geral, inclusive com ente público (art. 114, inc. I). É certo que a redação aprovada no Senado Federal excepcionou de tal competência “os servidores ocupantes de cargos criados por lei, de provimento efetivo ou em comissão, incluídas as autarquias e fundações públicas dos referidos entes da federação”. A exceção em tela, porém, porque resultante do acatamento de emenda de mérito introduzida no Senado, voltou à apreciação da Câmara dos Deputados. Exatamente por isso, do texto promulgado não consta a aludida exceção. Preliminarmente, devo realçar que não diviso, ao contrário de alguns, inconstitucionalidade formal na norma constitucional promulgada (art. 114, inc. I). A toda evidência, não se poderia promulgar a redação integral aprovada no Senado, porque não aprovada na Câmara a exclusão da competência da Justiça do Trabalho para os estatutários. Promulgou-se e publicou-se estritamente a redação tal como aprovada nas duas Casas do Congresso Nacional: competência para as lides oriundas de “relação de trabalho” em geral. 158 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Sem sombra de dúvida, a redação ora vigente mudou radicalmente a competência da Justiça do Trabalho para o servidor público, que até então estava circunscrita ao servidor público celetista. Está claro que a alusão a dissídios decorrentes de “relação de trabalho” com ente público é indicativa de que se transferiram para a órbita da Justiça do Trabalho todos os dissídios de servidor público, qualquer que seja o regime jurídico: celetista, ou estatutário. A exegese em comento apóia-se em múltiplos fundamentos. Em primeiro lugar, insta ter presente o alcance mais amplo e abrangente da locução “relação de trabalho”. Ora, inconteste que entre o servidor e a Administração Pública forma-se uma relação de trabalho em sentido amplo. Tanto isso é exato que, para afastar a mencionada competência, o Senado Federal necessitou aprovar uma exceção expressa a tal regra. Em segundo lugar, em favor dessa exegese milita a interpretação histórica. Como visto, ao longo da tramitação da PEC no Congresso Nacional foram rejeitadas as emendas apresentadas para substituir a locução “relação de trabalho” por relação de emprego. Impende rememorar que o art. 240, e, da Lei n. 8.112/90 já cometeu tal competência material outrora à Justiça do Trabalho, que somente não subsistiu porque declarada a inconstitucionalidade material do preceito pelo Supremo Tribunal Federal(5). Contudo, as razões básicas que ditaram a aludida declaração de inconstitucionalidade material flagrantemente não mais subsistem, a começar da circunstância óbvia de que não há confronto de lei ordinária com norma constitucional. E mesmo que houvesse esse confronto, apenas para argumentar, não remanesce qualquer dos motivos invocados para a declaração de inconstitucionalidade material. Com efeito: a) o texto atual do art. 114, inc. I, não mais alude a dissídio entre “trabalhador” e empregador; b) tampouco consta a representação classista da estrutura da Justiça do Trabalho; c) ademais, declarou-se então a inconstitucionalidade também à luz de uma norma constitucional hoje inexistente (art. 39), que previra regime jurídico único dos servidores públicos. De outra parte, sustento que há ponderáveis razões em prol da novel diretriz do art. 114, inc. I. (5) ADIn n. 492-1, DF, Rel. Min. Carlos M. Velloso. DJU de 12.3.93. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 159 É forçoso convir que não se afigura razoável a sistemática prevalecente antes da EC n. 45/2004 de cindir-se a competência consoante o regime jurídico. Recorde-se que no caso do servidor público federal, por exemplo, a limitação da competência da Justiça do Trabalho até 11.12.90 (Lei n. 8.112, de 10.12.90) levava o servidor, muitas vezes, a demandar sucessivamente na Justiça do Trabalho e na Justiça Federal por um mesmo direito, o que poderia gerar, inclusive, decisões conflitantes. Além disso, essa dualidade de competência gerou um quadro perverso para o servidor e um privilégio injustificável à Administração Pública. Por quê? Porque ensejou à Administração Pública, ao sabor de suas conveniências, eleger o segmento do Poder Judiciário competente, mediante mudança do regime jurídico do servidor. De maneira que sobejam motivos para se confiar à Justiça do Trabalho a solução do litígio entre o servidor público estatutário e a Administração Pública, o que se dará, naturalmente, sob o enfoque integral do Direito Público. Igualmente não pode pairar mais dúvida acerca da competência da Justiça do Trabalho para a lide entre ente público e servidor contratado por tempo determinado, sob a égide do art. 37 inciso IX da CF/88, “para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público”. 2.4. Fundamentos para a ampliação da competência da Justiça do Trabalho Observa-se no Direito Comparado uma tendência abrangente e expansionista da concepção de conflito trabalhista, com natural repercussão na competência da Justiça do Trabalho que, por isso mesmo, experimenta crescente ampliação, em maior ou em menor medida, aqui e acolá, de modo a romper a identificação exclusiva e absoluta desse segmento do Poder Judiciário com a lide entre empregado e empregador(6). (6) Em Portugal, por exemplo, vinca-se a competência material dos tribunais do trabalho lusitanos a conhecer dos seguintes conflitos individuais jurídicos (“questões”), entre outros (Lei n. 38, de 23.12.87, art. 64): a) “emergentes de relações de trabalho subordinado e das relações estabelecidas com vistas à celebração de contrato de trabalho”; b) “emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais”. Na Espanha, a competência material dos órgãos da Ordem Social atinge (os arts. 1º e 2º da Lei de Procedimento Laboral de 1990): a) dissídios entre empregado e empregador como conseqüência do contrato de emprego, incluídos pactos acessórios e preliminares deste (pré-contrato de trabalho); b) lides referentes à Seguridade Social, inclusive de proteção por desemprego. 160 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO No Brasil, a aludida tendência já se detectara da comparação do art. 142 da Constituição Federal de 1969 com a redação originária do art. 114 da Constituição Federal de 1988. A EC n. 45/2004, ao implementar nova ampliação da competência da Justiça do Trabalho, reafirma essa tendência. É imperativo reconhecer que a globalização da economia capitalista e os avanços tecnológicos, com o conseqüente e dramático aumento do desemprego, têm contribuído para exibir um panorama exuberantemente diversificado das formas de prestação de trabalho. Diminui o emprego formal em todos os quadrantes e cresce o trabalho informal, assim como crescem também formas alternativas de prestação de trabalho por conta própria, em condições muitas vezes até bastante assemelhadas a um contrato de emprego. A realidade indisfarçável é que milhões de brasileiros hoje prestam serviços a outrem como autônomos, fenômeno que parece tender a acentuar-se também em face de políticas econômicas neoliberais que vêm fustigando e ameaçando a própria sobrevivência do Direito do Trabalho. Não se pode esquecer igualmente que esta é uma República que tem entre seus fundamentos o valor social do trabalho (CF/88, art. 1º, IV). Segundo a Constituição Federal, a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e a ordem social tem como base o primado do trabalho (arts. 170 e 193). Se assim é, transparece muito mais consentâneo com esse princípio e com as exigências da cidadania atribuir-se à Justiça do Trabalho todas as causas derivantes de trabalho pessoal prestado em favor de outrem. Por quê? Porque comparativamente mais célere, desburocratizada e acessível, em cotejo com a Justiça comum. É inegável que, em confronto com o processo civil, o processo perante a Justiça do Trabalho, apesar de todos os pesares, ainda outorga tutela jurisdicional relativamente com maior presteza e eficiência, pois é marcado pela informalidade e acentuada oralidade, inclusive pela irrecorribilidade das decisões interlocutórias. A dispensa de advogado e a gratuidade dos atos processuais em geral também o distinguem do processo civil. É inegável igualmente a maior sensibilidade e especialização do Juiz do Trabalho para dirimir conflitos resultantes do trabalho humano pessoal prestado a outrem. Inquestionável que o Juiz do Trabalho transita com muito maior familiaridade nessa área. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 161 Por outro lado, não se pode perder de vista que, muitas vezes, a situação do trabalhador autônomo, do ponto de vista social e econômico, equipara-se à de um verdadeiro empregado. Realmente, há inúmeros contratos de atividade em que a situação do prestador de serviços ostenta características bastante similares à do pequeno empreiteiro, cujo dissídio já era confiado à Justiça do Trabalho antes da Emenda Constitucional n. 45/2004 (CLT, art. 652, a, III). São casos de pessoas que, embora não ostentem tecnicamente a qualidade de empregadas, também dependem do próprio trabalho por conta própria para sobreviver e estão vinculadas a uma relação de trabalho. Freqüentemente, inclusive, a prestação de trabalho situa-se em zona fronteiriça ao contrato de emprego propriamente dito. É o que sucede, como sabemos, nos contratos de representação comercial, de parceria agrícola, ou de parceria pecuária, no contrato de prestação de serviço (médico, ou advogado, p. ex.), no contrato de sociedade, nas cooperativas de trabalho, etc. Trata-se de casos, comuníssimos no foro, de trabalhadores situados numa zona cinzenta, em que o suposto empregado Reclamante, se não obtiver êxito na pretensão de reconhecimento de vínculo empregatício, vê-se na contingência, após anos de espera, de ingressar com outra ação, na justiça estadual, para demandar por direitos da qualidade de autônomo. Ora, isso não faz muito sentido se se pensar em economia e em celeridade processual e, sobretudo, no interesse do jurisdicionado e da sociedade em alcançar uma pronta resposta para o conflito. Parece muito mais razoável e consentâneo com a rapidez, exigida na solução do litígio, que se concentre a competência apenas num único segmento do Poder Judiciário, quer para a demanda na qualidade de autônomo, quer para a demanda na qualidade de empregado, até porque, insisto, freqüentemente há dúvida fundada quanto à natureza da relação jurídica que vincula os litigantes. Assim, doravante, em casos que tais, bastará que o Reclamante formule um pedido principal, com suporte no vínculo empregatício, e um pedido sucessivo, com suporte em outro contrato de atividade, para que a Justiça do Trabalho, de todo modo, equacione o litígio. Naturalmente, o reconhecimento da competência material da Justiça do Trabalho para julgar o pedido sucessivo, formulado na qualidade 162 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO de trabalhador autônomo, deriva de igual competência para o pedido principal, que também poderá ser deduzido, nessa qualidade. Por derradeiro, havia uma justificativa política, sumamente relevante, em favor da ampliação da competência da Justiça do Trabalho: a necessidade de fortalecimento político da instituição, de uns tempos a esta parte, combalida pela proposta de extinção. E esse fortalecimento foi alcançado, alargando-se os domínios da Justiça do Trabalho para o dissídio individual. Naturalmente, competência é poder. Bem se compreende também a ampliação dos domínios da Justiça do Trabalho, quando se atende para o fato de que tal providência, no fundo, apenas contrabalança a relativa perda de competência normativa dos Tribunais do Trabalho e que, inclusive, tende a ser extinta. Não ignoro algumas objeções sérias levantadas a propósito. Argumenta-se, por exemplo, que uma dilatação desse porte na competência material da Justiça do Trabalho comprometeria sua especialização. Está claro que, como todos sabemos, em suas origens, a Justiça do Trabalho constituiu e constitui uma jurisdição especial, destinada a solucionar um conflito especial, mediante a aplicação de um direito material e de um direito processual (do Trabalho) igualmente especiais. Evidentemente que esta é, sempre foi e sempre será a missão por excelência da Justiça do Trabalho. Todavia, a Justiça do Trabalho, como tudo na vida, precisava evoluir e acompanhar o dinamismo da sociedade, sob pena de soçobrar ante os novos ventos de modernidade. Ademais, a especialização natural no conflito oriundo da relação de emprego não é, e nunca foi, incompatível com uma competência paralela para as lides decorrentes de relação de trabalho. Conforme escrevi alhures, o que qualifica de especial uma jurisdição é o concurso simultâneo de dois elementos contemplados em lei: a) uma especialização da função jurisdicional, cometendo-a especificamente, ou precipuamente, à resolução de lides de uma determinada natureza; isto é, conflitos de interesses subjacentes a determinada relação jurídica; b) a existência de um corpo de juízes que, compondo uma organização administrativa própria e à margem do quadro da magistratura NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 163 ordinária, esteja permanentemente investido da cognição (rectius: competência material) para certo grupo de controvérsias. Ora, nada disso a Justiça do Trabalho perdeu no que se lhe ampliou a competência para as lides oriundas de relação de trabalho. Impende realçar que o art. 8º, parágrafo único, da CLT sempre permitiu ao Juiz do Trabalho a invocação subsidiária do direito comum para solucionar o litígio tipicamente trabalhista, o que denota, como assinala Magano, o repúdio do legislador em cavar um fosso isolacionista em torno do Direito do Trabalho (Manual de Direito do Trabalho). Não se deve esquecer também que o dissídio do pequeno empreiteiro sempre foi julgado pela Justiça do Trabalho sob a ótica do Direito Civil (CLT, art. 652, inc. III). Do mesmo modo, mediante aplicação do Direito Civil a Justiça do Trabalho já julgava, com freqüência, sob o beneplácito do Supremo Tribunal Federal, dissídio entre empregado e empregador por dano moral. Incursões no Direito Previdenciário a Justiça do Trabalho já se vê na contingência de promover, aqui e acolá, ainda que incidentalmente, em virtude da competência constitucional atual para execução de contribuições previdenciárias decorrentes de débitos trabalhistas, ou de cláusula de acordo ou convenção coletiva de trabalho. Não creio, assim, que mesmo essa expressiva ampliação de competência afete a especialização da Justiça do Trabalho. Haverá necessidade, sim, de uma reciclagem intelectual do Juiz do Trabalho. Um aprimoramento técnico-jurídico, mormente no âmbito do Direito Civil, do Direito Comercial e do Direito Administrativo, mas não a ponto de implicar uma perda na especialização da Justiça do Trabalho para o dissídio derivante da relação de emprego. De que necessitam os juízes do trabalho, a partir da EC n. 45/ 2004, em maior ou em menor medida, é superar o vezo de propender para identificar, aqui e acolá, um vínculo empregatício, ou de solucionar as lides apenas sob a ótica das normas e princípios do Direito do Trabalho. Essa postura simplificadora e reducionista do complexo e vasto fenômeno das relações jurídicas de trabalho haverá de ser suplantada, sob pena de a Justiça do Trabalho desprestigiar-se e desmoralizar-se perante a sociedade. É extreme de dúvidas que a competência material que se outorgou à Justiça do Trabalho exigirá dela que lance um novo olhar sobre os 164 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO litígios a que será chamada a dirimir, olhar muitas vezes bem diverso daquele mediante o qual está habituada a compor os conflitos trabalhistas tradicionais. Outra objeção que tem sido apresentada sustenta que a ampliação de competência congestionaria ainda mais a Justiça do Trabalho, já a braços com dificuldades para fazer frente às causas entre empregado e empregador. O argumento impressiona, mas a mim não convence. É certo que, antes da ampliação de competência em apreço, já se detectavam alguns pontos isolados de estrangulamento na outorga da prestação jurisdicional trabalhista, sobretudo no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho. Dois aspectos, todavia, são ponderáveis: 1º) o TST obviamente não é a Justiça do Trabalho e a sua delicada situação, do ponto de vista da demora no julgamento dos recursos, apesar de todos os esforços envidados, pode e certamente será solucionada mediante outras medidas adequadas; 2º) inegavelmente, ainda que em caráter pontual, há Varas do Trabalho e alguns Tribunais Regionais do Trabalho subaproveitados. Ademais, penso que a relativa morosidade na entrega da prestação jurisdicional trabalhista, a par de pontual, pouco tem a ver com a amplitude da competência material da Justiça do Trabalho. Decorre muito mais de outras e diversificadas causas, tal como um sistema recursal irracional. Basta confrontar-se a recorribilidade das decisões proferidas nos nossos dissídios submetidos ao rito sumaríssimo com a recorribilidade muita mais restrita nos Juizados Especiais Cíveis da Justiça Estadual e da Federal em que nos inspiramos... 3. Dissídios individuais sindicais O sindicato assume diferentes posições no processo trabalhista, ou seja, nele intervém em distintas qualidades jurídicas. Cifrando-se a abordagem ao âmbito estrito do dissídio individual, constata-se que o sindicato demanda em juízo, ou é demandado, fundamentalmente, ostentando três díspares qualidades jurídicas. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 165 Na primeira, o sindicato move a ação em nome próprio, mas deduz em juízo pretensão jurídica trabalhista em prol dos associados, ou dos integrantes da categoria profissional (CF/88, art. 8º, inc. III), atuando como substituto processual. A segunda forma de atuação judicial do sindicato, no plano do dissídio individual, dá-se mediante representação legal, postulando em juízo em nome e em favor dos integrantes da categoria que nominar, associados, ou não (CLT, arts. 513, a, e 791, § 1º). Os litígios entre empregador e sindicato profissional, quer na qualidade de substituto processual, quer na qualidade de representante legal, sempre se encartaram pacificamente na competência material da Justiça do Trabalho, o que hoje se embasa na norma insculpida no art. 114 inc. I da CF/88. Há, contudo, uma terceira qualidade jurídica sob a qual o sindicato pode intervir na relação processual: em nome próprio e na defesa de direito próprio (naturalmente, dele, sindicato). Em semelhante circunstância, o sindicato figura em juízo como suposto titular de um direito pessoal, isto é, defendendo interesse dele como pessoa jurídica e não de quaisquer integrantes da categoria representada. Os dissídios individuais sindicais desta última espécie podem apresentar-se em juízo sob multiformes facetas, no direito brasileiro, destacando-se as seguintes subespécies: a) os intersindicais não coletivos; b) os intra-sindicais; c) os sindicais sobre contribuições. Até sobrevir a EC n. 45/2004, os dissídios individuais sindicais para defesa de interesse próprio da entidade somente se inscreviam na competência material da Justiça do Trabalho brasileira quando se originassem do cumprimento de acordo coletivo ou de convenção coletiva de trabalho (Lei n. 8.984, de 7.2.95), bem assim quando derivassem de sentença normativa ou de acordo em dissídio coletivo (art. 114 fine da CF/88 em sua redação originária). O art. 114 inc. III da CF/88, com a redação imprimida pela EC n. 45/2004, passou a atribuir à Justiça do Trabalho competência para “as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores”. Lastimavelmente, o mencionado preceito constitucional não disse tudo e nem disse bem para o fim a que se propôs. A norma comporta duas leituras. 166 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Ante uma primeira e puramente literal interpretação, a mais indigente de todas, seria tímido, no particular, o avanço: ampliaria a competência material da Justiça do Trabalho apenas para nela inscrever também a disputa intersindical de representatividade. Essa exegese, todavia, não pode prevalecer, porquanto limitaria demasiadamente uma norma bem mais abrangente. Semelhante exegese restritiva há de ceder passo ao evidente escopo da norma constitucional de cometer à Justiça do Trabalho competência não apenas para as lides sobre representação sindical, como também para quaisquer outras que envolvam o direito sindical, ainda que não estritamente “sobre representação sindical”, contanto que intra-sindicais, intersindicais, ou entre sindicato e empregador. Sabe-se que há muitos outros dissídios individuais que emergem do direito sindical, além dos conflitos sobre representação sindical, referidos no texto de forma meramente exemplificativa e não exaustiva. Soaria irracional e logicamente incompreensível persistir proclamando a incompetência da Justiça do Trabalho para instruir e julgar os demais litígios emergentes da vida sindical, que, inclusive, cresceram desmedidamente após a CF/88 e tendem a aumentar, se se implantar, um regime de plena liberdade sindical em nosso País, como se anuncia. Com efeito, as mesmas razões que ditaram a expansão dos domínios da Justiça do Trabalho para os conflitos sobre representação sindical concorrem para o reconhecimento de igual competência para todos os demais dissídios individuais sobre direito sindical. Resulta manifesto que aos Tribunais do Trabalho devem ser reputados os juízos naturais de causas dessa espécie, quando menos pela notória especialização requerida no julgamento. Em meu entender, o novel art. 114 inc. III da CF/88 atribuiu uma competência material genérica à Justiça do Trabalho para quaisquer dissídios intra-sindicais, intersindicais, ou entre sindicato e empregador, que envolvam a aplicação do direito sindical, de que é mero exemplo a disputa intersindical de representatividade. Sob tal perspectiva, pois, examina-se a seguir a vasta gama concebível de situações. 3.1. Intersindicais não coletivos Consideram-se dissídios intersindicais não coletivos, como sugere a própria denominação, os dissídios individuais que opõem sindicatos atuando na tutela de direito pessoal da entidade. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 167 Comuníssimos entre sindicatos concorrentes nos sistemas de pluralidade sindical, esses dissídios igualmente tornaram-se freqüentes no direito brasileiro depois que sobreveio a CF/88. Exemplos emblemáticos de dissídios intersindicais não coletivos são os seguintes: a) os de representatividade; b) os declaratórios de vínculo jurídico-sindical entre sindicato e federação; c) os cautelares, como o que objetiva sustar os efeitos de convenção coletiva de trabalho. 3.1.1. Intersindicais de representatividade As lides intersindicais cujo objeto consista na declaração do direito de representação legal da categoria econômica, ou da categoria profissional, em caráter definitivo e com o atributo da coisa julgada, foram deslocadas da Justiça Estadual para a Justiça do Trabalho, consoante resulta do art. 114 inc. III da CF/88. Em realidade, os sindicatos demandam na tutela de uma pretensão jurídica própria — o reconhecimento do direito de representar legalmente a categoria profissional, ou a categoria econômica — e não buscando resguardar interesses da categoria. Observava-se neste ponto uma das muitas e graves lacunas da regulação constitucional da competência material da Justiça do Trabalho no direito positivo brasileiro. Ora, nada justificava excluir da órbita do Judiciário Trabalhista tais dissídios, porquanto são solucionados por normas e princípios do Direito do Trabalho. 3.1.2. Dissídio declaratório de vínculo jurídico-sindical O dissídio intersindical não coletivo, por vezes, trava-se entre sindicato e entidade sindical de grau superior, objetivando um pronunciamento declaratório de vínculo jurídico-sindical, de maneira a que o primeiro possa filiar-se à segunda. Litígio dessa natureza recai agora na competência da Justiça do Trabalho, em face do art. 114 inc. III da CF/88, pois se equaciona à luz do direito sindical. 3.2. Dissídios intra-sindicais Reputam-se dissídios intra-sindicais, ou internos, os dissídios individuais em que se digladiam um sindicato, atuando na tutela de direito 168 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO pessoal da entidade, e um associado, ou membro da categoria profissional, ou da categoria econômica. Atualmente, no direito brasileiro, os casos mais comuns de disputas intestinas envolventes do sindicato são os seguintes: a) por direitos trabalhistas de dirigente sindical licenciado; b) para anulação de eleição sindical, ou de assembléia geral sindical; c) para cobrança de contribuições sindicais. No Brasil, até surgir a EC n. 45/2004, as lides intra-sindicais, em princípio, escapavam à competência do Judiciário Trabalhista, dada a deficiente, fragmentária e assistemática disciplina legal da matéria. Hoje dá-se o inverso, conforme se aborda mais pormenorizadamente a seguir. 3.2.1. Dirigente sindical licenciado A lei brasileira considera “de licença não remunerada” e, portanto, de suspensão da execução do contrato, o tempo em que o empregado afasta-se do trabalho para o desempenho de cargo de administração sindical (CLT, art. 543, § 2º). Possibilita, no entanto, à assembléia geral do sindicato arbitrar “uma gratificação nunca excedente da importância de sua remuneração na profissão respectiva”, quando o empregado, para o exercício do mandato, tiver de ausentar-se do trabalho (CLT, art. 521, parágrafo único). Configura-se algumas vezes dissídio individual entre o dirigente sindical licenciado e o seu próprio sindicato, tendo por objeto obrigações de natureza trabalhista (como férias, 13º salário e salário), em que se haveria sub-rogado o sindicato, enquanto suspenso o contrato de emprego. Por mais insólito que fosse, máxime em se tratando de um conflito trabalhista regulado tão-somente pelo Direito do Trabalho, o litígio interno entre o sindicato e o seu dirigente afastado transcendia da competência material da Justiça do Trabalho. Presentemente, porém, o art. 114 inc. III da CF/88 dá suporte ao reconhecimento da competência material da Justiça do Trabalho para equacioná-lo. 3.2.2. Dissídio para anulação de eleição sindical A lide de que participem o sindicato e/ou o respectivo Presidente, de um lado, e integrante da categoria, de outro, cujo objeto princi- NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 169 pal seja declarar a invalidade de procedimento de eleição sindical, até recentemente estranha à competência material da Justiça do Trabalho, passa a recair em seu domínio em virtude do que reza art. 114 inc. III da CF/88. 3.2.3. Dissídio para anulação de assembléia geral sindical O dissídio individual entre membro da categoria e o próprio sindicato, pleiteando a anulação de assembléia geral da entidade de classe, sob alegação de irregularidade, surpreendentemente também não se amoldava à competência material da Justiça do Trabalho brasileira até a EC n. 45/2004. A hipótese hoje subsume-se ao art. 114 inc. III da Constituição Federal, até porque ventila tema estritamente de direito sindical e constitui teoricamente um conflito trabalhista, ainda que atípico. 3.3. Sindicais sobre contribuições Dentre as fontes de receita das entidades sindicais, sobrelevam as seguintes contribuições: a) desconto ou contribuição assistencial, ou “taxa de reversão salarial”, prevista em norma coletiva; b) contribuição confederativa (CF/88, art. 8º, inc. IV); c) contribuição sindical (CLT, arts. 548, a, e 578); d) mensalidade do associado (CLT, art. 548, b). As mencionadas contribuições constantemente provocam dissídios individuais envolvendo as entidades sindicais: ora entre sindicato profissional e empregador, ora entre sindicato e associado, ora entre sindicato e membro da categoria econômica, ou da categoria profissional. Cuidando-se sempre de litígios regulados e dirimidos apenas por normas e princípios do Direito do Trabalho, em face do art. 114 inc. III da Constituição Federal passaram a gravitar, todos, na órbita da Justiça do Trabalho, ainda quando não assentados em instrumento normativo. Vale dizer: a circunstância de a cobrança — por exemplo, de contribuição assistencial, ou de contribuição confederativa — lastrear-se apenas em deliberação de assembléia geral da categoria não mais tem o condão de retirar a causa da competência da Justiça do Trabalho, mesmo que o dissídio trave-se entre sindicato patronal e membro da categoria econômica(7). (7) Superada, em meu entender, a Orientação Jurisprudencial n. 290 da SDI do TST em sentido contrário. 170 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Não permanece mais à margem da Justiça do Trabalho sequer a cobrança executiva da contribuição sindical propriamente dita visto que promovida pelas entidades sindicais em face de um empregador. Sabe-se que, disciplinada em lei de modo minucioso (CLT, arts. 578 a 610), a cobrança judicial da contribuição sindical opera-se mediante execução de título extrajudicial, com os privilégios da Fazenda Pública, exclusive “foro especial” (CLT, art. 606 e §§). Uma vez que se trata de lide entre sindicato e empregador, toca agora à Justiça do Trabalho, em virtude do que reza o art. 114 inc. III da CF/88, executar o empregador inadimplente em contribuição sindical, a requerimento do interessado. Naturalmente, a contribuição sindical não gera apenas execução de título extrajudicial. Com efeito, as lides intersindicais de representatividade, multiplicadas pela vigente Constituição Federal, não raro suscitam dúvida sobre a quem efetuar o recolhimento desse tributo, provocando, em decorrência, um litígio paralelo sobre a contribuição sindical (às vezes, também sobre o desconto assistencial). Surge, então, uma ação de consignação em pagamento intentada pelo empregador em desfavor de dois ou mais sindicatos que disputam entre si a primazia da representação legal da categoria. A exemplo de qualquer outra controvérsia entre sindicato e empregador, a lide da ação de consignação em pagamento entre empresa e sindicato passa a integrar a competência material da Justiça do Trabalho, seja ante o que reza art. 114 inc. III da CF/88, seja porque respeita a um instituto de Direito Sindical. A jurisprudência em contrário do STJ e do STF não foi recepcionada pelo novel mandamento constitucional. 4. Lides de penalidades administrativas impostas aos empregadores Uma das mais importantes inovações introduzidas pela EC n. 45/2004 repousa no art. 114 inc. VII da Constituição Federal, no que se outorgou competência material à Justiça do Trabalho para processar e julgar “as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho”. Trata-se de lide conexa à derivada da relação de emprego. Com efeito, é lide que advém do desrespeito à legislação trabalhista, sob cuja NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 171 ótica precipuamente será solucionada. Assim, não havia mesmo razão alguma para escapar à órbita da jurisdição especializada trabalhista. O mandamento constitucional em foco rompe com tradicional entendimento sufragado pela jurisprudência consistente em atribuir tais causas à esfera da Justiça Federal. Doravante, malgrado figure a União em um dos pólos da relação processual, a lide é da competência material da Justiça do Trabalho. A competência em tela é para qualquer ação, seja a execução de título extrajudicial proposta pela Fazenda Pública federal, seja qualquer demanda intentada pelo empregador, visando a invalidar a sanção administrativa que lhe haja infligido a fiscalização das Delegacias Regionais do Trabalho. A aludida competência abrange, pois, entre outras, a ação anulatória e também o mandado de segurança impetrado contra ato da autoridade administrativa do Ministério do Trabalho. Não havendo norma expressa que inscreva o mandado de segurança na competência originária dos Tribunais Regionais, inquestionável que se submete ele às regras gerais de determinação de competência funcional: será impetrado perante as Varas do Trabalho, com recursos para as Cortes superiores. Penso que, num primeiro momento, a tramitação dessas causas haverá de pautar-se pelo procedimento comum ordinário, traçado pela legislação processual trabalhista, com as necessárias adaptações, salvo causa para a qual a lei preveja rito especial disciplinado em legislação específica (caso do mandado de segurança). 5. Lides decorrentes de dano moral ou patrimonial — Acidente de trabalho O art. 114, inc. VI da CF/88, acrescentado pela Emenda Constitucional n. 45/2004, igualmente alastrou o espectro de atuação da Justiça do Trabalho para o dissídio individual cujo objeto seja indenização por dano moral ou patrimonial decorrente da relação de trabalho. Eis aí um dos mais auspiciosos avanços no aprimoramento da competência material da Justiça do Trabalho brasileira, sobretudo porque ensejará uma repressão mais eficaz à chaga social do trabalho escravo, pontualmente ainda identificado em nosso País. 172 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Como se recorda, a jurisprudência, inclusive do STF, já se inclinava francamente favorável ao reconhecimento da acenada competência, seja para numerosos casos de indenização por danos materiais(8), seja para o ressarcimento por danos morais em geral. O novo art. 114, inc. VI, da CF/88 consagra definitivamente o entendimento de que recaem na competência material da Justiça do Trabalho quaisquer lides por atos ilícitos civis causados pelo empregador ao empregado, ou vice-versa, em tal condição. Se, pois, o dano mantém uma relação direta, de causa e efeito, com o contrato de emprego, de tal modo que a causa de pedir do pedido de indenização repousa na qualidade jurídica ostentada pelos sujeitos do conflito intersubjetivo de interesses (empregado e empregador, agindo nesta condição), inarredável a competência da Justiça do Trabalho, ao menos a partir da EC n. 45/2004, para solucionar a lide. A meu juízo, o aspecto central da inovação constitucional repousa na competência para o ato ilícito atribuído ao empregador em face de acidente de trabalho. Até sobrevir a EC n. 45/2004, todos sabemos, a jurisprudência amplamente dominante negava essa competência à Justiça do Trabalho para as causas entre empregado e empregador, tendo por objeto indenização proveniente de acidente de trabalho (Súmula n. 15 do STJ). Mesmo no caso específico de dano moral decorrente desse infortúnio, a jurisprudência tendia a negar competência material à JT, não obstante iterativas decisões do Supremo Tribunal Federal, do STJ e do TST reconhecessem genericamente essa competência à Justiça do Trabalho caso o dano moral não adviesse de acidente de trabalho. Penso que o novo art. 114 inc. VI da CF/88 provoca uma reviravolta no quadro da competência para o dissídio entre empregado e empregador por indenização patrimonial e moral decorrente de acidente de trabalho. O novel panorama referente à competência para as ações resultantes de acidente de trabalho exige a compatibilização de dois preceitos constitucionais: o comentado art. 114 inc. VI e o art. 109 inc. I, que exclui da competência da Justiça Federal as causas de acidente de trabalho, cometendo-as, por exclusão, à Justiça Estadual. Entendo que é imperativo distinguir duas situações em matéria de acidente de trabalho para efeito de determinação da competência. (8) Na monografia Competência Material Trabalhista expus ampla casuística. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 173 A primeira é a das chamadas ações acidentárias, isto é, lides previdenciárias derivantes de acidente de trabalho, promovidas em desfavor do INSS. Assim, se a ação tem por objeto prestações previdenciárias e nela figura como sujeito passivo o INSS, inequivocamente inscreve-se na competência da Justiça Comum dos Estados, em face do que estatuem o art. 109, inc. I, da CF/88 e o art. 19, inc. II, da Lei n. 6.367, de 19.10.1976. A segunda situação é a das lides entre empregado e empregador por indenização de dano patrimonial e/ou de dano moral causado pelo acidente de trabalho. Para estas últimas lides, a Justiça do Trabalho passou a ser o juízo natural, apesar de a solução do litígio operar-se, evidentemente, mediante a aplicação das normas do Direito Civil. Uma vez que a pretensão é a de obter uma indenização pelo dano supostamente advindo da conduta culposa ou dolosa do empregador, ao provocar o acidente, a hipótese amolda-se plenamente ao novo art. 114 inc. VI da Constituição Federal. Afora isso, o mandamento constitucional em apreço não distingue a natureza do ato ilícito ou a natureza do pedido de indenização para o fim de fixação da competência. Não se pode ignorar também que o acidente de trabalho é um mero desdobramento do labor pessoal e subordinado prestado a outrem e, em decorrência, gera uma causa acessória e conexa da lide trabalhista típica. De sorte que não há mesmo razão jurídica ou lógica para que as lides decorrentes de acidente de trabalho entre empregado e empregador transcendam da competência da Justiça do Trabalho. A rigor, parece-me que constituiria até um contra-senso admitir-se a competência material da Justiça do Trabalho para causas em geral entre empregado e empregador em que se discuta indenização por danos materiais ou por danos morais e, ao mesmo tempo, negar-se semelhante competência caso o ato ilícito em que se funda a ação fosse o acidente de trabalho. Seria admitir competência da Justiça do Trabalho para o gênero, não para a espécie... Observe-se que, no Direito Comparado, a Alemanha, inclui na competência da Justiça do Trabalho “controvérsias de direito privado pro- 174 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO venientes de conduta antijurídica, desde que esta esteja em correlação com o contrato de trabalho”. 6. Lides do exercício do direito de greve A greve, como fenômeno de patologia social inerente ao mundo do trabalho humano, rende ensejo, no ordenamento jurídico brasileiro, a ações individuais e a ações coletivas. A EC n. 45/2004, ao emprestar nova redação ao art. 114 da CF/88, pôs em realce essa duplicidade de ações de natureza diversa geradas pela greve, com repercussão na determinação da competência. De um lado, ao encetar uma readequação do Poder Normativo da Justiça do Trabalho, o art. 114, §§ 2º e 3º manteve-o de forma muito mitigada, restringindo a duas as hipóteses de ações coletivas: 1ª) greve em atividades essenciais, mediante provocação do Ministério Público do Trabalho; 2ª) dissídio coletivo de natureza econômica, suscitado em conjunto pelos sindicatos patronal e profissional, quando uma das partes recusar-se à negociação coletiva ou à arbitragem privada. De outro lado, o art. 114 inc. II prescreveu que compete à Justiça do Trabalho processar e julgar “as ações que envolvam exercício do direito de greve”. A interpretação sistemática das aludidas normas constitucionais parece conduzir induvidosamente à conclusão de que o art. 114 inc. II concerne às ações individuais entre empregado e empregador, nesta condição, em virtude do exercício do direito de greve, porquanto das ações coletivas a que a greve também possa dar causa já tratam os §§ 2º e 3º do art. 114. Estou convencido de que o art. 114 inc. II passou a encartar na competência material da Justiça do Trabalho as ações possessórias entre empregado e/ou sindicato e empregador em face do exercício do direito de greve. Como se sabe, a lei brasileira autoriza a defesa judicial da posse, fundamentalmente, mediante três ações: ação de manutenção de posse, em caso de turbação; ação de reintegração de posse, em caso de esbulho; e interdito proibitório, em caso de justo receio de violência iminente que possa molestar ou esbulhar a posse. Em qualquer dessas situações, se a turba- NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 175 ção, o esbulho ou a violência iminente à posse deriva do exercício do direito de greve, a competência para equacionar a lide vem de ser deslocada da Justiça estadual para a Justiça do Trabalho. Há muito que sustento essa competência da Justiça do Trabalho(9). Com efeito. Algumas vezes, o empregado ou um grupo determinado de empregados ocupa ou ameaça ocupar a fábrica, o escritório, a loja, a agência bancária, ou, enfim, o estabelecimento do empregador, no curso de uma greve, como meio de pressão para obter o acolhimento de reivindicações trabalhistas. Outras vezes, mediante o uso ou ameaça de violência, inibe-se o acesso ao estabelecimento, impedindo-se o exercício do direito ao trabalho, ou de obstando-se o exercício de atividade econômica ou profissional. Situações que tais autorizam o manejo de ação possessória, agora perante a Justiça do Trabalho. Se o dissídio alusivo à posse do imóvel, apesar de alheio a uma prestação derivada do contrato de trabalho, indubitavelmente fere-se entre empregado e empregador, ambos agindo nesta condição, não havia porquê mesmo negar-se competência ao Judiciário Trabalhista. Em semelhante circunstância, quem atinge o direito de posse é o empregado atuando como tal, ainda que sob a liderança do respectivo sindicato. O conflito de interesses trava-se, no fundo, por um comportamento trabalhista qualquer do empregador, agindo igualmente como tal. No caso, o comprometimento do direito à posse não constitui senão um seriíssimo incidente ou desdobramento do exercício do direito de greve. Sabe-se que o dissídio coletivo não é a via idônea nem a que propicia remédio jurídico expedito para a defesa da posse, o que pode alcançar-se apenas com liminar em ação possessória. No entanto, seria ilógico e inexplicável que à Justiça do Trabalho fosse dado conhecer e julgar do dissídio coletivo para pacificar a greve, que igualmente lhe fosse dado equacionar os dissídios individuais para a caracterização de justa causa por excesso deste ou daquele empregado no movimento paredista e não se lhe reconhecesse competência para examinar um outro aspecto do mesmo fato social: a turbação, o esbulho ou a violência à posse do empregador em virtude da greve. (9) Vide FRANCO FILHO, Georgenor de Sousa. Competência Material Trabalhista, São Paulo: LTr, 1994, 256 p. 176 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Semelhante dicotomia da competência para os diferentes aspectos trabalhistas do mesmo fato social poderia, inclusive, ensejar pronunciamentos decisórios conflitantes entre a Justiça do Trabalho e a Justiça comum, o que só deporia contra o Poder Judiciário, causandolhe desprestígio. Basta ter em vista o seguinte exemplo: suponha-se que três empregados dirigentes sindicais hajam sido acusados de ocupar violentamente uma fábrica, no curso de greve; no inquérito para apuração de falta grave, na Justiça do Trabalho, julga-se incomprovado esse fato; na Justiça comum, em ação de reintegração de posse, dá-se liminar e ganho de causa definitivo ao empregador, concluindo-se de forma diametralmente oposta. A nova competência da Justiça do Trabalho, portanto, é medida ditada pelo mais elementar bom senso, sobretudo a fim de obviar o risco de decisões discrepantes, em casos que tais. Mas o campo de incidência do art. 114 inc. II da CF/88 não se cinge às possessórias intentadas pelo empregador em decorrência do exercício do direito de greve. Enlaça igualmente na competência da Justiça do Trabalho quaisquer ações individuais trabalhistas propostas por empregados ou entidades sindicais em face do empregador e destinadas à prevenção e à repressão de conduta anti-sindical patronal que aflore no curso de uma greve. Sabe-se que caracteriza conduta anti-sindical qualquer ato do empregador que afronte a liberdade ou a atividade sindical. Assim por exemplo, uma despedida massiva de natureza retaliatória ou discriminatória, em virtude de participação em greve, configura conduta anti-sindical passível de repressão na Justiça do Trabalho. Ações desse jaez, hoje incomuns, tendem a proliferar num ambiente de plena liberdade sindical, sob os auspícios da desejável ratificação da Convenção n. 87, da OIT, em direção ao que marchamos inexoravelmente. Embora questionável, a uma primeira análise parece-me que a competência funcional para as ações de que cogita o art. 114 inc. II da Constituição Federal deva ser reservada ao Tribunal do Trabalho a que competir, em tese, o julgamento do dissídio coletivo de greve. Conquanto omissa a lei a respeito, penso que se impõe essa solução ao menos por duas razões básicas: a um, porque se já instaurado dissídio coletivo decorrente de greve, a lei manda distribuir por dependência causa de qualquer natureza, quando se relacionar por conexão ou continência com outra já ajuizada (CPC, art. 253 inc. I); a dois, porque, de todo modo, a qualquer tempo o dissídio coletivo poderá ser ajuizado; se as- NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 177 sim é, haveria risco de decisões conflitantes se se adotar a cisão da competência entre o Tribunal e a Vara do Trabalho para o exame de aspectos do mesmo exercício do direito de greve em concreto. 7. Juízo crítico — Omissões — Conclusão Como visto, é certo que a nova redação do art. 114 da Constituição Federal introduziu alguns avanços significativos na disciplina da competência material da Justiça do Trabalho. Cabe agora à Justiça do Trabalho, que tanto lutou para implementar a reforma do Poder Judiciário, reformar-se para cumprir a notável missão de que vem de ser investida. Desafortunadamente, todavia, o conjunto de normas dos diversos incisos da atual redação do art. 114 está longe de espelhar uma regulamentação ideal, pois se ressente de importantes imperfeições técnicas e, sobretudo, de graves omissões. Em primeiro lugar, salta à vista que o texto está vazado de uma redação infeliz e tecnicamente imprópria ao dispor, repetidas vezes (art. 114), que compete à Justiça do Trabalho processar e julgar “as ações” que menciona. Evidentemente, a Justiça do Trabalho soluciona “dissídios” ou lides que lhe são submetidos mediante o exercício do direito de ação. Não julga, portanto, “ação”, cujo conceito é diverso. Em segundo lugar, como busquei demonstrar, há grave contradição entre os incisos I (relação de trabalho) e IX (relação de trabalho, na forma da lei) do art. 114. Em terceiro lugar, também é profundamente infeliz o art. 114 inc. V ao atribuir competência à Justiça do Trabalho para julgar “conflito de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista”. Naturalmente, os conflitos de competência não são julgados pela Justiça do Trabalho, mas unicamente pelos Tribunais do Trabalho, porquanto tão-somente os tribunais têm ascendência hierárquica sobre os órgãos em conflito para determinar o competente no caso concreto. Baralhou-se aí flagrantemente a disciplina da competência material da Justiça do Trabalho com a disciplina da competência funcional ou hierárquica dos tribunais do trabalho, o que é muito diverso. Sobretudo, todavia, o texto aprovado incorre também em várias e graves omissões no particular. Com efeito, não inscreve na competência da Justiça do Trabalho: 178 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO a) dissídio individual oriundo do cumprimento das decisões da Justiça do Trabalho (art. 114 fine na redação originária da CF/88); são as chamadas lides derivadas, que, em boa hora, a atual Carta Magna, colmatando grave lacuna da Constituição anterior, havia confiado à Justiça do Trabalho, e que a autorizava processar e julgar, por exemplo, os embargos de terceiro(10); b) silencia completamente sobre a competência dos Tribunais do Trabalho para o dissídio coletivo de natureza jurídica. De tudo quanto se expôs pode-se concluir que, malgrado importantes aperfeiçoamentos, persiste insatisfatório, deficiente e lacunoso o disciplinamento normativo constitucional da competência material da Justiça do Trabalho. Não é difícil antever, lastimavelmente, que tal circunstância decerto conspirará contra a desejável celeridade e efetividade do processo do trabalho, bem assim concorrerá para ratificar, uma vez mais, o acerto da afirmativa de Henri de Page: “As questões sobre competência são a praga da Justiça.” (10) Felizmente, o Senado Federal aprovou o acréscimo do inciso X ao art. 114, restabelecendo e até ampliando a competência da JT para “os litígios que tenham origem no cumprimento de seus próprios atos e sentenças, inclusive coletivas”. O texto, todavia, retorna à Câmara dos Deputados. Daí por que, no interregno entre a publicação da EC n. 45/2004 e a eventual aprovação dessa norma pela Câmara, teremos um período em que a Justiça do Trabalho irá ressentir-se dessa seriíssima lacuna. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 179 Justiça do Trabalho: A Justiça do Trabalhador? Jorge Luiz Souto Maior (*) A recente Reforma do Judiciário, acatando o clamor advindo dos próprios juízes trabalhistas, acabou por ampliar a competência da Justiça do Trabalho. O atual art. 114(1) da Constituição Federal, modificado pela Emenda Constitucional n. 29/04, assim dispõe: “Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I — as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, exceto os servidores ocupantes de cargos criados por lei, de provimento efetivo ou em comissão, incluídas as autarquias e fundações públicas dos referidos entes da federação; II — as ações que envolvam exercício do direito de greve; III — as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores; IV — os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição; V — os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado o disposto no art. 102, I, o; VI — as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho; VII — as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho; VIII — a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir; IX — outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.” (*) Juiz do Trabalho, titular da 3ª Vara de Jundiaí/SP. Professor livre-docente de Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (USP). (1) O artigo foi escrito às vésperas da promulgação da EC n. 45 e desconsiderou a inclusão dos servidores estatutários na competência da Justiça do Trabalho. 180 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Vou tentar ater-me, na presente análise, a um dos aspectos da alteração, qual seja, a menção feita no inciso I de que a Justiça do Trabalho é competente para julgar os conflitos oriundos da “relação de trabalho”, sem a limitação que antes havia no sentido de que em um dos pólos dessa relação estivesse um empregador, o que fazia pressupor que a relação de trabalho, sujeita à jurisdição trabalhista, era, unicamente, a relação de emprego, conforme caracterizada nos arts. 2º e 3º da CLT (trabalho prestado por uma pessoa física a uma outra pessoa física ou jurídica, de forma não eventual, subordinada e remunerada). Com a presente alteração, portanto, não apenas os conflitos oriundos das relações de emprego são da competência da Justiça do Trabalho, mas também os conflitos que nasçam de quaisquer relações de trabalho. Há, no entanto, vários problemas que decorrem dessa inovação e que precisam ser enfrentados. Esses problemas são tão complexos, que a presente análise não pode ser tida senão como uma primeira impressão sobre o tema, sujeita aos necessários complementos e discordâncias da doutrina, para que possa ser, futuramente, repensada. O primeiro problema diz respeito, exatamente, ao alcance da expressão “relação de trabalho”. Sabe-se que a Justiça do Trabalho é uma justiça especial, organizada fora dos padrões da Justiça Comum. Por princípio, os conflitos de interesses são julgados pela Justiça Comum. Esta competência natural da Justiça Comum só é quebrada por dispositivo constitucional que transfira a competência, para apreciar determinados conflitos, a uma das Justiças especializadas da estrutura judiciária. Se é assim, parece-me de plano ter incorrido em grave erro o legislador ao remeter para a justiça especial do trabalho certos conflitos, sem a especificação precisa quanto a quais conflitos se refere. Há uma impropriedade de ordem lógica na proposição ao se atribuir a uma justiça especializada uma competência baseada em termos genéricos. Quais conflitos, efetivamente, estão abrangidos na expressão “relação de trabalho”? Perguntam-se todos! Uns têm a resposta na ponta da língua e dizem logo que esta indagação é despropositada, mas, para outros, a resposta não é tão evidente, e é possível prever uma certa divergência quanto ao sentido da expressão. Por exemplo, o conflito oriundo da relação jurídica que se forma entre um médico e seu cliente está sujeito à jurisdição da Justiça do Trabalho? E o conflito entre pas- NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 181 sageiro e taxista? E o conflito entre o advogado e seu cliente? E o conflito entre duas empresas, em que uma se compromete a prestar serviços à outra? E o conflito entre uma empresa e um ente estatal, no que se refere à execução de serviços determinados? E o conflito da prestação de serviço de um encanador a um condomínio ou a uma residência? E o conflito entre um escritor e a editora? E o conflito entre o “dono da obra” e a construtora? E o conflito entre uma oficina mecânica e o dono do automóvel? E o conflito entre o proprietário de um computador e a empresa de computação, ou um técnico, que lhe presta assistência? Lembre-se, ademais, que dessas relações podem resultar conflitos de interesses no que tange à execução do contrato, mas também ações por perdas e danos por responsabilidade civil. Imaginem várias outras situações que possam ser, razoavelmente, inseridas no contexto destas indagações e suponham, então, uma realidade, que está por vir, brevemente, em que cada um dos juízes estaduais, por este Brasil afora, dando as suas respostas a todas as indagações sugeridas e remetendo, em seguida, para a Justiça do Trabalho, os processos em curso, que estejam abrangidos, segundo sua convicção, à jurisdição trabalhista e imaginem, em seguida, por que não se deve prender as asas da imaginação, cada um dos juízes do trabalho, que recebam esses processos, avaliando os casos sob a sua ótica e suscitando, ou não, conflitos negativos de competência. E, neste aspecto, abre-se um parêntese para formular outra indagação: qual o órgão competente para a solução deste conflito de competência? Antes da Reforma era o Superior Tribunal de Justiça, agora, parece-me que se pode, razoavelmente, dizer que a competência é da Justiça do Trabalho, no caso do Tribunal Superior do Trabalho, pois nos termos do inciso é da competência desta Justiça “processar e julgar os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista”, e como se está determinando, em concreto, se uma determinada questão trabalhista é da Justiça do Trabalho ou da Justiça Comum se está reconhecendo que as duas Justiças têm jurisdição trabalhista, ainda que com alcances distintos, e, assim o conflito entre ambas, nesta matéria de ordem trabalhista, é da competência da Justiça do Trabalho. Além do mais, seria mesmo ilógico que fosse a Justiça Comum, neste momento crucial, quem determinasse a delimitação da competência da Justiça do Trabalho. De todo modo, o importante é perceber que embora o mesmo texto da Reforma do Judiciário, que fixou a presente alteração, tenha estabelecido como direito do cidadão a “razoável duração do processo” (art. 5º, 182 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO inc. LXXVIII), esqueceu-se o legislador, ou não quis lembrar, que um dos principais motivos de retardo da lides é, precisamente, a discussão que se trava em torno de algumas divergências de ordem processual (os tais incidentes processuais) e a controvérsia em termos de competência que se trava entre os diversos seguimentos da Justiça representa um grave dano para a celeridade processual, conforme já destacara, há muito tempo, Mauro Cappelletti, em seus estudos sobre o acesso à justiça. O fato é que as reformas processuais no afã de ajudar a eliminar algumas barreiras do acesso à Justiça, podem, paradoxalmente, criar outras (vide exemplo das Leis ns. 9.957/00 e 9.958/00). Eis, portanto, um importante dado do qual a sociedade precisa ter conhecimento: um dos maiores culpados pela demora do processo é o próprio legislador, que legisla mal, muitas vezes criando mais conflitos do que esclarecendo as relações sociais. Voltando a questão proposta, de definir o alcance da expressão “relação de trabalho”, a primeira observação que fica, portanto, é a de que cabe à doutrina e à jurisprudência, conseqüentemente, posicionarem-se a respeito, enfrentando a difícil tarefa de fixar um sentido mais preciso à mencionada expressão. Nesta discussão, por óbvio, estarão em pólos opostos os que pretendem atribuir um sentido mais amplo à expressão e os que a querem ver restritivamente. Os motivos, de uns e de outros, serão múltiplos, mas estarão sempre escudados pela linguagem jurídica. As armas dessa linguagem serão extraídas, com maior intensidade, da hermenêutica jurídica, ou, mais propriamente, da utilização das técnicas de interpretação. Os que almejam o sentido amplo poderão valer-se da interpretação histórica, dizendo que como o texto atual retirou o limite fixado pela competência em razão das pessoas (extração da palavra “empregador” do Texto Constitucional, como apontado anteriormente), houve a nítida intenção do legislador em ampliar a competência da Justiça do Trabalho. Poderão dizer, também, que onde o legislador não discrimina não cabe ao intérprete fazê-lo. Dirão, ainda, que a expressão é inequívoca: relação de trabalho é relação de trabalho, e, portanto, todo conflito que envolve trabalho esta sujeito à jurisdição trabalhista. Os contrários a esta idéia poderão utilizar o argumento de que o art. 114 constitui uma exceção à regra no critério de fixação de competências e, portanto, por aplicação de princípio hermenêutico, deve ser interpretado restritivamente, pois assim se consideram as normas que criam exceções no sistema jurídico. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 183 Outros argumentos, evidentemente, podem ser utilizados por uns e por outros. O fato é que, como dito, a questão não é nítida e, portanto, não está isenta de discussões. Com relação à posição que pende para a ampliação irrestrita da competência, uma constatação, no entanto, faz-se necessária. O dispositivo constitucional em análise não faz distinção entre pessoas físicas ou jurídicas enquanto realizadoras de trabalho para fins de fixar a competência e se o sentido da expressão não pode ser restringido pelo intérprete como se poderia fazê-lo para afastar os conflitos entre empresas, conforme mencionado nos exemplos acima? Assim, forçosamente, se atrairiam para a competência da Justiça do Trabalho todos os conflitos em que a prestação de um serviço, ou execução de trabalho, fosse o objeto da vinculação, independente da condição das partes do negócio jurídico realizado. Esta conclusão, no entanto, levaria a um absurdo, ferindo todo e qualquer raciocínio baseado nos pressupostos da lógica, valendo recordar, por oportuno, que se trata de princípio fundamental da hermenêutica que a interpretação da lei não pode conduzir ao absurdo. Onde está o absurdo? O absurdo é que se levarmos a fundo esta proposição, constataremos que há trabalho em praticamente todas as relações sociais. Restariam para a Justiça Comum, por conseguinte, os conflitos decorrentes das relações de família, sucessão, comércio (sem prestação de serviço), e defesa da propriedade. Em suma, a Justiça do Trabalho seria a Justiça Comum e a Justiça Comum passaria a ser a Justiça especial. Por mais que se queira ampliar o poder da jurisdição trabalhista (baseado na equivocada idéia de que competência é poder) uma tal conclusão não tem como ser sustentada. Neste aspecto é importante, ainda, acrescentar que a estrutura do Judiciário trabalhista não comporta a sobrecarga de trabalho que daí adviria e mesmo que se imaginasse que o advento da ampliação da competência serviria, justamente, para conseguir a melhora na estrutura do Judiciário trabalhista, esta, a estrutura, não vem da noite para o dia e, além disso, jamais virá na proporção da real necessidade e ainda que venha, quando vier o caos já estará instalado e nunca mais será recuperado. Esta advertência, um tanto apocalíptica, aliás, serve igualmente, embora com menor alarde, para a hipótese em que se entenda de modo restrito a expressão “relação de trabalho”. 184 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Os teóricos, muitas vezes, estão alheios à realidade e, na avaliação dos efeitos da aplicação de uma lei, a realidade não poderia jamais ser desconsiderada. No último ano, vivenciei a experiência de uma Vara com serviços acumulados. Conclusão: para pôr os serviços em dia, não basta trabalhar muito (de forma até sobre-humana). Numa Vara, serviço chama serviço. Assim, tentando tirar o atraso do serviço, produz-se em dobro, mas o resultado é que o volume do serviço aumenta em quádruplo e, conseqüentemente, o atraso permanece ou até aumenta (e as forças de trabalho se esgotam). Apenas com mutirão e programação a longo prazo é que as coisas podem voltar ao normal. Sem servidores suficientes, sem estrutura física e sem aparelhamento tecnológico não é possível sequer vislumbrar uma luz no fim do túnel. Em suma, ampliar competência, sem antes criar a estrutura compatível é matar por asfixia. O pior dessa situação é que quem morre é o verdadeiro “paciente” da Justiça do Trabalho, o ex-empregado, que teve sua força de trabalho explorada no contexto empresarial de outrem e que não recebeu seus direitos trabalhistas, com caráter alimentar. Deve-se reconhecer, ademais, que sequer a Justiça do Trabalho tem sido eficiente para cuidar dos interesses desse “paciente” e há uma imensa gama de lides trabalhistas reprimidas exatamente por este motivo. A Justiça do Trabalho cumpriria melhor seu papel se buscasse a eficiência na execução desse relevante serviço social: fazer valer, em concreto, os direitos trabalhistas. Não se pode esquecer, a propósito, que se existe uma justiça especializada em questões trabalhistas, isto se deve a uma razão de ordem histórica. A Justiça do Trabalho, pelo mundo afora, foi criada para que se formassem juízes especializados em questões sociais, que pudessem julgar os conflitos oriundos do conflito capital-trabalho fora dos parâmetros marcados pelo direito civil e o seu pacta sunt servanda. Claro, pode-se questionar: nos dias de hoje, dadas as mudanças no mundo do trabalho, haveria ainda a luta entre o capital e o trabalho, que exija uma Justiça especializada voltada a regular esses interesses, protegendo o trabalhador? Ou, ao contrário, não estariam os “parceiros sociais” aptos a regular os seus próprios interesses, devendo, então, a Justiça do Trabalho procurar uma outra razão para existir? Partindo do pressuposto de que nos dias presentes, diante das diversas formas tecnológicas de produção, é muito difícil a identificação plena do empregado típico, aquele previsto na CLT, que presta serviços de forma não eventual, subordinada e remunerada a um empregador, e como os trabalhos são pulverizados e não sendo tarefa fácil até saber NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 185 para quem se está prestando serviços, passa a ser verdadeiro desafio reconhecer a relação de emprego, e sendo este tipo de trabalho cada vez mais freqüente, quando se pensa na sobrevivência da Justiça do Trabalho, chega-se, inevitavelmente, à conclusão de que se deve ampliar a sua competência. Esta visão, no entanto, data venia, pelo menos por um aspecto é equivocada, pois embora tenha como pressuposto a nobre preocupação de preservar da Instituição, deixa de lado a importante questão de se avaliar a qual finalidade ela estará servindo. Obtém-se o argumento lógico e até econômico da preservação da Justiça do Trabalho (aliás, sobre o prisma econômico parece que estamos indo muito bem, pois após a Emenda Constitucional n. 28 e arrecadação dos créditos previdenciários que decorrem das nossas decisões, estamos dando lucro para os cofres públicos), mas despreza-se o diálogo acerca da função precípua da Justiça do Trabalho, ao mesmo tempo em que legitima a neo-opressão do capital sobre o trabalho, que se baseia na ideologia de que na modernidade não há mais o conflito entre o capital e o trabalho, sendo capital e trabalho partícipes de um mesmo empreendimento, autênticos parceiros. Entretanto, para quem observa, cotidianamente, a realidade das relações de trabalho, não há como negar que a lógica do conflito persiste, e até de forma ainda mais perversa, pois que se esconde atrás de uma ideologia hegemônica, que nos obstrui o acesso ao mundo dos fatos. Por exemplo, é lugar comum a idéia de que a tecnologia gerou o desemprego em massa, mas no Brasil quem emprega são as pequenas e médias empresas onde ainda está muito longe de chegar a tal Revolução tecnológica. Além disso, quem, lembrando do seu árduo cotidiano na Vara do Trabalho, pode dizer que já passou um dia de audiências sem constatar pelo menos um caso em que a reclamada quase gasta mais dinheiro para contestar a reclamação do que gastaria para pagar o direito demandado (muitas vezes apenas verbas rescisórias incontroversas). Se forem 3 ou 4 reclamadas, na hipótese de terceirização, então, essa equação será certamente negativa. O fato é que a opressão do capital sobre o trabalho se mantém, mas tem sido camuflada por um certo fatalismo imposto pelas “exigências advindas dos avanços tecnológicos”, pelo implemento de “novas técnicas administrativas” e por uma interminável “crise econômica” (de onde advém expressões incompreensíveis, tais como, “superávit” primário, índices “Dow Jones” e Nasdaq, a fúria de um certo senhor Mercado e o acalanto estonteante de uma espécie de deusa, a Globalização). 186 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Abstraídas as peculiaridades do novo tempo, a opressão do capital sobre o trabalho existe e negar este dado é o primeiro passo para permitir que ela continue operando, impunemente. Ora, se assim é, parece-me que antes de brandir a bandeira da elevação da competência da Justiça do Trabalho, para atingir conflitos de trabalhadores não empregados, é importante, relembrar que a lógica da existência de uma justiça especializada reside, exatamente, na necessária capacidade que os julgadores devem ter para compreender os conflitos que, naturalmente, se originam do choque de interesses entre o capital e o trabalho. O direito na era dos direitos humanos tem no desafio contínuo de impor uma ética humanitária à lógica do capital a sua razão de existir, e a Justiça do Trabalho, como aplicadora e criadora desse direito, também tem a razão própria de sua existência vinculada a este objetivo e não ao de dar lucro aos cofres da União ou de, simplesmente, legitimar as novas técnicas produtivas. Em recente palestra proferida na Escola da Magistratura da 15ª Região, Campinas, o professor Antoine Jeammaud, importante jurista francês, destacava o papel recentemente assumido pela Corte de Cassação francesa, no sentido de impor limites ao propósito do lucro fácil e imediato buscado pelo atual capitalismo financeiro, fixando parâmetros, pelo menos, para o incremento de um “capitalismo responsável”. Neste sentido, por exemplo, mesmo sem uma previsão legal específica a jurisprudência impôs ao empregador o dever de especificar na carta de dispensa os fatos que motivaram a sua decisão de dispensar o empregado (que segundo a lei devem refletir uma causa real e séria), não se podendo fugir do limite fático fixado na carta em eventual discussão judicial sobre a dispensa. Antes, portanto, de nos curvarmos a certas evidências, que nos são impostas retoricamente e de forma até estratégica quando se põe em jogo a extinção da Justiça do Trabalho, desviando o foco de nossa atenção, pois a sobrevivência fala mais alto que qualquer ideal, pareceme necessário sair do dilema da sobrevivência e passar a examinar, com maior cuidado e coragem, a realidade imposta pelos atuais modos de produção, buscando a efetiva proteção da figura humana do trabalhador em face daquele que explora o seu trabalho. A Justiça do Trabalho não enfrentará este desafio apenas atraindo para si competência para julgar conflitos de trabalhadores não empregados, porque para os não empregados a proteção trabalhista ou não se justifica ou se impõe, e neste caso, então, o que se tem, na verdade, é NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 187 uma fraude ao direito trabalhista, denominando-se de trabalhador não empregado um autêntico empregado. Claro que, diante das novas formas de produção, essa configuração às vezes é difícil, mas este é o real desafio a ser enfrentado, vislumbrando, juridicamente, a quem pertence a obrigação pelo adimplemento dos direitos trabalhistas, inscritos na órbita dos direitos humanos, vale lembrar. Assim, parece-me que não está autorizada a interpretação ampliativa da expressão relação de trabalho. O mais correto mesmo, portanto, é dizer que, malgrado a intenção do legislador, não se ampliou a competência da Justiça do Trabalho para julgar conflitos, no âmbito das relações individuais, oriundos de outras relações de trabalho que não se caracterizam como relação de emprego. Mas, já prevendo que uma tal interpretação não prevalecerá, diante dos interesses pragmáticos em jogo, não posso deixar, então, de apresentar uma interpretação que, baseada na lógica do malmenor, possa permitir uma ampliação da competência da Justiça do Trabalho, no que se refere a outros tipos de relação de trabalho, sem eliminar, completamente, a sua razão de ser, enquanto estrutura especial do Poder Judiciário. Nesta linha de preocupação, no entanto, primeiramente, é crucial deixar fincado o pressuposto de que a Justiça do Trabalho não pode perder o foco de sua atenção, que é regular (processar e julgar) os conflitos de interesses entre o capital e o trabalho (e num mundo capitalista este conflito, ainda que por formas diversas e cada vez mais inovadoras, sempre existirá, a não ser que seja superado por sistemas de produção verdadeiramente socialistas, em que trabalho e capital fundem-se nas mãos das mesmas pessoas). Em segundo lugar, não prevalecendo a negativa da ampliação da competência, há de se reconhecer, pelo menos, que a competência da Justiça do Trabalho limita-se, natural e logicamente, às relações de trabalho que sejam próximas de uma relação de emprego, nas quais se possa vislumbrar uma espécie de exploração do trabalho alheio para a consecução de objetivos determinados (sendo marcante o conflito capital-trabalho ainda que com outra roupagem). Como critérios determinantes dessa limitação, alguns aspectos devem ser, necessariamente, observados: a pessoalidade na prestação de serviços (ainda que sob a forma de pessoa jurídica); a precariedade empresarial do prestador de serviços; e a exploração da mão-de-obra para a satisfação dos interesses empresariais ou econômicos de outrem. 188 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Dos exemplos supracitados, portanto, estariam fora do âmbito da competência da Justiça do Trabalho, os conflitos oriundos das relações jurídicas que se formam entre um médico e seu paciente; entre o passageiro e o taxista; entre o advogado e seu cliente; entre duas empresas, em que uma se compromete prestar serviços à outra (a não ser que os serviços sejam prestados pessoalmente e for marcante a precariedade empresarial da prestadora); entre uma empresa e um ente estatal, no que se refere à execução de determinados serviços (com a mesma ressalva anterior); entre o “dono da obra” e a construtora; entre uma oficina mecânica e o dono do automóvel; entre o proprietário de um computador e a empresa de computação, que lhe presta assistência. A competência estaria ampliada, portanto, para julgar conflitos como: representante comercial; o trabalhador autônomo, cujo trabalho é explorado economicamente por outrem (um médico e o Hospital; um advogado e o escritório de advocacia; um escritor e o jornal), o trabalhador autônomo que presta serviços e que constitui uma atividade empresarial precária (o encanador; o jardineiro; o pequeno empreiteiro etc.). Em suma, a existência da Justiça do Trabalho continua se relacionando à regulação de conflitos entre o capital e o trabalho, atingindo, a partir de agora, outras formas de exploração da mão-de-obra que se foram criando ao longo dos anos e que não se incluem, por qualquer razão, no padrão jurídico da CLT. Quanto à matéria a ser perseguida, por óbvio, esta não se limita aos direitos trabalhistas. O direito discutido em tais relações, alheias às relações de emprego, é o direito civil. Quanto a isto, no entanto, não vislumbro nenhum problema, pois o juiz do trabalho, como nenhum outro, está mais acostumado com a interdisciplinaridade, estando apto a lidar com o direito civil. Aliás, diante das recentes mudanças sofridas pelo direito civil, que remexeu vários de seus dogmas liberais, pareceme até mesmo que os juízes do trabalho estão muito mais aptos a lidar com os novos princípios do direito civil (sobretudo boa-fé, abuso de direito e debilidade presumida da parte economicamente mais frágil) que o próprio juiz civilista. Neste sentido, ademais, no julgamento dessas novas questões a jurisprudência poderá, até mesmo, incrementar a aplicação de certos direitos trabalhistas às ditas relações jurídicas, o que se fará, certamente, em benefício da salubridade da sociedade. Neste sentido, cabe lembrar que vários direitos trabalhistas, como remuneração justa, limitação da jornada de trabalho, igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, não discriminação de qualquer natu- NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 189 reza, por exemplo, são direitos inscritos na Declaração Universal dos Direitos do Homem, não sendo, portanto, direitos exclusivos de trabalhadores empregados. Fugindo um pouco do objetivo proposto neste texto, mas com ele guardando estreita ligação, não posso deixar de expressar minha convicção no sentido de que, em decorrência do acatamento da idéia de que a solução dos conflitos oriundos de outras relações de trabalho passou à Justiça trabalhista, por conseqüência inevitável estão abrangidos nesta competência os conflitos decorrentes de acidente do trabalho. Na verdade, desde à promulgação da Constituição de 1988 esta competência já seria da Justiça do Trabalho, mas por uma interpretação equivocada chegou-se à conclusão diversa. O fato é que, agora, com a ampliação da competência da Justiça do Trabalho para outras lides, que não apenas trabalhistas stricto sensu, atrai-se para a Justiça do Trabalho a aplicação de outros direitos materiais, que regulam essas relações. Não há, portanto, o impedimento que antes se via, equivocado, vale dizer, da Justiça do Trabalho julgar conflitos aplicando outros direitos que não o trabalhista. Ora, se a Justiça do Trabalho pode a partir de agora solucionar um conflito de um trabalhador autônomo, nos moldes acima ditos, aplicando o direito civil, com muito mais razão, deve esta mesma Justiça solucionar o conflito que se origina da relação de emprego típica, ainda que para tanto tenha que se valer de regras do direito comum. Seria completamente ilógico dizer que a Justiça do Trabalho regula todos os conflitos do trabalho, para proteção das diversas formas de exploração do trabalho, e, ao mesmo tempo, sustentar que está fora da competência do trabalho a pretensão do empregado (o trabalhador subordinado) de ser indenizado pela ocorrência de acidente do trabalho, ainda mais lembrando-se que os acidentes do trabalho constituem-se, talvez no principal fundamento histórico (fonte material) para o surgimento da legislação trabalhista. Além disso, embora no itinerário da votação da Emenda o inciso em que se atribuía, expressamente, essa competência à Justiça do Trabalho fora deixado de lado, o texto do atual art. 114, em seu inciso VI, não deixa margem à dúvida quanto a ser da competência da Justiça do Trabalho a apreciação das ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho. Por fim, sobressalta a completa falta de noção do legislador no que se refere à alteração que impôs na matéria. No inciso I, diz que a Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar as ações oriundas da 190 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO relação de trabalho e no inciso IX, mantendo o que já havia no antigo art. 114, fixou que também são da competência da Justiça do Trabalho “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei”. Ora, antes a menção tinha sentido porque se pretendia trazer para a Justiça do Trabalho a competência para julgar outras matérias que fossem decorrentes das relações de emprego, ou seja, que a Justiça do Trabalho, julgando conflitos típicos trabalhistas, pudesse processar e julgar, igualmente, conflitos de interesses não restritamente trabalhistas. Agora, como as demais relações de trabalho, que não a de emprego, regulam-se pelo direito civil, toda matéria jurídica pertinente às ditas relações é, naturalmente, da Justiça do Trabalho e, por conseqüência e com maior razão, também toda matéria jurídica que decorra das relações de emprego. Assim, pelo menos sob o aspecto dos conflitos individuais, não tem o menor sentido a fórmula contida no inciso IX. Reparese que o inciso em questão não trata dos tipos de relação de trabalho, sujeitos à competência da Justiça do Trabalho, como se está debatendo neste texto, mas de “outras controvérsias”, como se a matéria aplicável à Justiça do Trabalho estivesse, ainda, limitada às relações de emprego. Pois bem, ainda que contrário à idéia, o fato é que a ampliação da competência da Justiça do Trabalho no que se refere a outras relações de trabalho, embora politicamente equivocada, parece, juridicamente, inevitável. Ainda que possam advir benefícios com a mudança, estes só se efetivarão se os necessários limites quanto à interpretação da expressão “relação de trabalho” forem respeitados. Sem uma verificação atenta dos efeitos perversos que podem vir em razão da busca indiscriminada e desmedida de elevação de poder, pela ampliação ilimitada da competência, ao invés de estarmos salvaguardando os interesses da Justiça do Trabalho, na verdade, poderemos estar confundindo com os nossos interesses pessoais os interesses da sociedade, e conduzindo a Justiça do Trabalho a um caos estrutural e a uma completa perda de identidade quanto a suas reais funções, alimentando os argumentos (neoliberais e tendenciosos) dos que pregam a sua extinção, o que sequer precisará se dar formalmente, pois que já terá ocorrido na essência. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 191 Primeiras Linhas sobre a Nova Competência da Justiça do Trabalho Fixada pela Reforma do Judiciário (EC n. 45/2004) José Affonso Dallegrave Neto (*) Introdução Após 13 anos de tramitação no Congresso e a realização de inúmeros debates acerca da matéria, por parte dos representantes do Executivo, da Magistratura e da Advocacia, foi promulgada a Emenda Constitucional n. 45/2004, a qual ficou alcunhada como “Reforma do Judiciário”, albergando alguns pontos de consenso, sem prejuízo de posterior complemento de outras questões salutares por parte do poder constituinte derivado-reformador(1) . Para os operadores do direito do trabalho, as alterações foram substanciais, implicando sensível aumento da competência material da Justi(*) Advogado. Mestre e Doutor em Direito pela UFPR. Professor da APEJ e da FIC. Professor convidado da Faculdade de Direito de Lisboa. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e da Academia Nacional de Direito do Trabalho. (1) Segundo escólios de Gisela Maria Bester, há um problema de incoerência terminológica acerca do poder instituído, derivado, constituído ou reformador. “Ora, afastar a imprecisão terminológica é tarefa fácil, bastando considerar que, em primeiro lugar, ele não pode ser constituinte, porque nada constitui, ao contrário, é constituído; em segundo lugar, dizer apenas que é instituído, constituído ou derivado está certo, porquanto realmente ele é instituído, constituído ou derivado do poder constituinte originário, mas não faz jus à sua função, à sua vocação original, pela qual é definido, qual seja, a de reformar a Constituição. Logo, o mais correto é dizê-lo instituído, derivado ou constituído, mas não separadamente, e sim juntando ao nome a sua função, qual seja, reformador ou de reforma. Afastada qualquer dúvida a respeito de sua denominação, temo que o poder constituído reformador é instituído pelo poder constituinte originário e deste retira força e a legitimidade para reformar a Constituição de um Estado, (...) a qual pode ser realizada via revisão ou emendas. In: Direito Constitucional, volume 1. Fundamentos teóricos. São Paulo: Manole, 2005, p. 195/ 196. Preferimos a expressão poder constituinte-derivado reformador para demonstrar que ele é derivado do poder constituinte (originário) e é reformador pelas razões expendidas pela professora Gisela Bester. 192 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO ça do Trabalho, conforme ilação da simples leitura da nova redação do art. 114 da CF. Outras questões circunscritas ao direito laboral também merecem menção a título ilustrativo, tais como: — Retorno à composição original para o Tribunal Superior do Trabalho: dos atuais 17 Ministros a Casa retorna aos 27 Ministros previstos na CF/88 e que foi reduzida em razão da extinção do cargo de ministros classistas. — Instalação de Varas Itinerantes do Trabalho, nos termos do art. 115, § 1º. — Exigência de três anos de atividade jurídica para o ingresso na carreira de magistrado, nos termos do art. 93, inciso I. — Vedação do exercício da advocacia por três anos para os juízes aposentados ou exonerados no juízo ou Tribunal do qual se afastaram, art. 95, inciso V. 1. A nova redação do artigo 114 da CF Dada a importância do tema e por questão didática, registramos um quadro comparativo entre a redação anterior e posterior à EC n. 45/ 2004, relativa ao art. 114 da Constituição Federal: Art. 114. Compete à Justiça do Tra- Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios balho processar e julgar: individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas. I — inexistente I — as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 193 II — inexistente II — as ações que envolvam exercício do direito de greve; III — inexistente III — as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores; IV — inexistente IV — os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição; V — inexistente V — os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado o disposto no art. 102, I, o; VI — inexistente VI — as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho; VII — inexistente VII — as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho; VIII — inexistente VIII — a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir; IX — inexistente IX — outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei. § 1º Frustrada a negociação coletiva, as partes poderão eleger árbitros. § 1º Não alterado § 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem, é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo, podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho. § 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente. 194 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO § 3º Compete ainda à Justiça do Trabalho executar, de ofício, as contribuições sociais previstas no artigo 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir. § 3º Em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público, o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do Trabalho decidir o conflito. (NR) Como se vê, são inúmeras e relevantes as alterações do referido dispositivo que amplia a competência material da Justiça do Trabalho em prestígio a esse órgão judicante. Resta saber, no entanto, se foram acertadas as modificações e se, efetivamente, a justiça laboral encontra-se aparelhada de forma suficiente e proporcional ao alargamento de sua alçada ou, ao contrário, a Justiça do Trabalho ficará congestionada em detrimento da célere solução do crédito alimentício que agora disputará espaço na pauta com outras espécies de lides. Isso talvez só o tempo possa esclarecer, contudo alguns questionamentos e comentários, ainda que incipientes, merecem ser delineados nesse instante de recém-promulgação de tão importante Emenda Constitucional. 2. Competência para julgar as ações dos servidores públicos — Exegese do art. 114, inciso I Após flagrante hesitação, o texto promulgado deixa claro que a nova competência da Justiça do Trabalho inclui todas as formas de relação de trabalho e não mais apenas as relações de emprego entre trabalhadores e empregadores, bem como as relações de trabalho que envolvam entes de direito público externo e de toda a administração pública direta e indireta em seus três níveis(2). Observa-se que havia, no texto anterior, exclusão expressa dos funcionários públicos estatutários, assim constando: I — AS AÇÕES ORIUNDAS DA RELAÇÃO DE TRABALHO, ABRANGIDOS OS ENTES DE DIREITO PÚBLICO EXTERNO E DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIRETA E INDIRETA DA UNIÃO, DOS ESTADOS, DO DISTRITO FEDERAL E DOS MUNICÍPIOS, EXCETO OS SERVIDORES OCUPANTES DE CARGOS CRIADOS POR LEI, DE PROVIMENTO EFETIVO OU EM COMISSÃO, INCLUÍDAS AS AUTARQUIAS E FUNDAÇÕES PÚBLICAS DOS REFERIDOS ENTES DA FEDERAÇÃO. (2) Nível municipal, estadual e federal. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 195 A supressão da segunda parte do dispositivo em epígrafe encerra eloqüente sentido de trazer para a alçada da Justiça do Trabalho todos os servidores públicos, celetistas e estatutários, ocupantes de cargos criados por lei de provimento efetivo ou em comissão. Não nos parece adequada essa opção legislativa, máxime porque os servidores estatutários são informados por princípios próprios do Direito Administrativo que em nada se identificam ou se aproximam das relações de trabalho travadas entre particulares. Parecenos que a solução adequada era justamente aquela que já se encontrava assente na doutrina e na jurisprudência: — servidores públicos estatutários federais, competência da Justiça Federal; — servidores públicos estatutários estaduais e municipais, competência da Justiça Estadual; — servidores públicos celetistas — competência da Justiça do Trabalho. Veja-se que em relação ao servidor celetista, o regime jurídico é híbrido, na medida em que mescla regulamento e princípios próprios do empregado celetista com alguns princípios constitucionais da administração pública, previstos na Carta Constitucional. Logo, diante dessa característica, é plenamente justificável que apenas os litígios do servidor celetista sejam instruídos e julgados pela Justiça do Trabalho. Sob os mesmos argumentos, é inadmissível que os estatutários pertencentes ao Direito Administrativo sejam atraídos para uma justiça especializada que examina precipuamente contratos de trabalho. Repare que o viés contratual é bem diferente do viés estatutário, no que tange à aplicação de normas, princípios e soluções. Tal fato, por si só, já justificaria o afastamento da competência da justiça trabalhista para examinar questões de servidor público estatutário. Contudo, mantida a supressão da parte final do inciso I do art. 114, todos as ações de servidores públicos, celetistas e estatutários, passam a ser julgadas pela Justiça do Trabalho. 3. Competência para julgar as ações oriundas das relações de trabalho — Exegese do art. 114, incisos I e IX No que diz respeito à primeira parte do inciso I, do art. 114, verificase abrupta majoração de competência material. Se antes a Justiça do Trabalho se limitava a pronunciar-se sobre dissídios individuais entre 196 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO trabalhadores e empregadores, doravante passa a ter competência para julgar as ações oriundas das relações de trabalho. Pela redação anterior à EC n. 45/2004, somente as relações de emprego e “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho” estavam abrangidas pela Justiça do Trabalho. Tal inferência se dava pela expressão “litígio entre trabalhadores e empregadores... e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho”. Note que o vocábulo “empregadores”, em sua acepção jurídica, é aquele previsto no art. 2º, da CLT. Vale dizer, empregador é o sujeito que admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço de empregado regido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Destarte, antes da Reforma do Judiciário, a Justiça do Trabalho tinha competência para julgar, em regra, os conflitos decorrentes da relação de emprego (celetista) e, excepcionalmente, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, desde que expressamente previstas em lei, como, por exemplo, os contratos de empreitada em que o empreiteiro seja operário ou artífice, conforme previsão do art. 652, III, da CLT; litígios do trabalhador avulso portuário e o OGMO (órgão gestor de mão-de-obra), conforme previsão do art. 643, § 3º, da CLT ou mesmo os dissídios que tenham origem no cumprimento de convenções ou acordos coletivos, mesmo quando ocorram entre sindicatos ou entre sindicato de trabalhadores e empregador, na forma do art. 1º da Lei n. 8.984/95. Agora o que se vê é outra delimitação constitucional vista como regra geral no art. 114, inciso I — “ações oriundas da relação de trabalho” — e complementada pelo inciso IX — “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei”. As exceções previstas em lei permanecem as mesmas, todavia mudou-se radicalmente a regra geral. Se antes a competência da justiça trabalhista estava adstrita à relação celetista de emprego, agora envolve toda e qualquer relação de trabalho. Ganha relevo a velha distinção doutrinária entre relação de trabalho como gênero, do qual a relação de emprego é espécie que abrange tãosomente o trabalho subordinado. Dessa vez a baliza não se prestará para restringir a alçada da Justiça do Trabalho, mas para delimitar de forma abrangente o que se entende por relação de trabalho, prevista na primeira parte do inciso I do art. 114 da CF, em sua nova redação. Considerando que o conceito de relação de trabalho é aquele que pressupõe qualquer liame jurídico entre dois sujeitos, desde que tendo por objeto a prestação de um serviço, autônomo ou subordinado, não há NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 197 dúvidas que não só os contratos celetistas estão nele abrangidos, mas boa parte dos contratos civis e comerciais. Assim, os litígios decorrentes do chamado contrato de prestação de serviço regulamentado pelos artigos 593 a 609 do atual Código Civil passam a ser julgados pela Justiça do Trabalho e não mais pela Justiça Comum. Antes da alteração dada pela EC n. 45, competia à Justiça do Trabalho apreciar somente os casos em que se pleiteava a declaração de nulidade de contratos afins usados de forma dissimulada para fraudar direitos trabalhistas. Nesses casos, decretava-se a nulidade do contrato civil ou comercial tido como fraudulento (art. 9º da CLT) e, ao mesmo tempo, declarava-se a relação de emprego caso estivessem preenchidos os requisitos do art. 3º da CLT. Por conseguinte, condenava-se o contratante-empregador a pagar todas as verbas previstas na legislação trabalhistas até então sonegadas ao contratado-empregado por força da dissimulação contratual. Doravante, será possível ingressar na Justiça do Trabalho não só para buscar a declaração da relação de emprego em face da fraude perpetrada, mas, de forma sucessiva, no caso do juízo entender ser legítimo o contrato autônomo de prestação de serviço, postular direitos previstos no Código Civil, como, por exemplo, o aviso prévio de 7 (sete) dias assegurado no parágrafo único do art. 599 ou mesmo a indenização equivalente à metade do período faltante, fixada no art. 603 do CC para os casos de despedida sem justa causa em contrato de prestação de serviço com termo certo. Não se ignore que a velha máxima que estabelece que “o ordinário se presume e o extraordinário se comprova” veio expressamente enunciada no novo Código Civil — sem precedente no Código de 1916 — declarando que a relação de emprego se presume, podendo as partes, em casos especiais, submeterem-se a outros regulamentos e, se assim não ocorrer, serão regidas pelas disposições do Capítulo VII — Da prestação de serviço, do Título VI, do Livro I, das Obrigações, do Código Civil. Nesse sentido é a regra do art. 593 do CC: “A prestação de serviço, que não estiver sujeita às leis trabalhistas ou a lei especial, reger-se-á pelas disposições deste Capítulo.” O mesmo se diga com relação ao contrato de Empreitada, regulamentado pelos artigos 610 a 626 do Código Civil. Os litígios decorrentes das relações de trabalho próprias da Empreitada serão objeto de análise da justiça trabalhista, seja ela fraudulenta ou legítima. Assim, será 198 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO comum, por exemplo, a discussão em sede da Justiça do Trabalho acerca da legitimidade da suspensão da obra, pelo empreiteiro, nos casos arrolados no art. 625 do CC ou mesmo o valor de acréscimo a que o empreiteiro terá direito, pelo dono da obra, na hipótese do parágrafo único do art. 619 do CC. Dentre os demais contratos de trabalho lato sensu regidos pelo Código Civil ou por leis esparsas, além das já comentadas prestação de serviço e empreitada, também outros contratos que tenham por objeto a prestação de trabalho passam a ser julgados pela justiça trabalhista, podendo mencionar os casos do mandato oneroso, agenciamento e distribuição, comissão, corretagem, cooperativa de trabalho ou de mão-de-obra, transportador autônomo, parceria rural, representante comercial autônomo, execução de contrato de honorários médicos ou advocatícios, etc. Ressalve-se que, em qualquer caso, o trabalho há que ser realizado por pessoa física. Caso o contrato seja formalmente celebrado com a pessoa jurídica do contratado, porém, na prática, a relação de trabalho for executada intuito personae, ainda que de forma autônoma, a competência para julgar os litígios daí decorrentes será da Justiça do Trabalho, a exemplo do que já ocorria com as empreitadas previstas no art. 652, III, CLT. Se se tratasse de grande empreitada, a competência era e continuará sendo da Justiça Comum, contudo em se tratando de pequena empreitada em que a pessoa do empreiteiro não se limita a celebrar formalmente o contrato, mas é o próprio operário ou artífice, a competência era da Justiça do Trabalho e assim continuará sendo por força da nova redação do art. 114, I, da CF. Em igual situação jurídica encontram-se as firmas individuais ou mesmo o caso de alguns representantes comerciais autônomos, cuja relação de trabalho é ostensivamente identificada com a pessoa física do contratado ou do representante e não propriamente com a empresa de representação comercial. Estas pequenas corporações unipessoais, a despeito de serem rotuladas de empresas (sociedades por quotas limitadas), empresas não são em seu sentido técnico e teleológico, podendo, quando muito, serem chamadas de paraempresas. 3.1. O novo conceito de empresa e sua distinção com a paraempresa Registre-se que o conceito liberal e proprietista de empresa, como o meio pelo qual o empresário obtém lucro em manifestação de um direito absoluto de propriedade, modifica-se diante do novel quadrante trazido pela Constituição Federal de 1988 e pelo Código Civil de 2002. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 199 Hodiernamente, a verdadeira e lídima empresa é vista como uma instituição social, sendo inelutável sua função social e de valorização do trabalho, conforme se depreende da aplicação do art. 170, e incisos, da Carta Constitucional, sobretudo porque é nela que se aloca a maior parte da mão-de-obra produtiva do país, porque é ela a fornecedora de bens e serviços necessários à sociedade e ela que arrecada os tributos que compõem o patrimônio do Estado(3). Ademais, na mesma proporção que se defende a diminuição do tamanho do Estado e o alargamento da iniciativa privada, como quer a ideologia Neoliberal, deve-se também pugnar pela maior responsabilidade social da empresa. E isso não é apenas uma questão de lógica, mas de coerência científica (se é que existe coerência na ideologia e na racionalidade do mercado). Nessa esteira funcional, justifica-se a postura do legislador em impor limitações na atuação do empresário, tais como a disregard doctrine e a ultra vires societatis; vedação à concorrência desleal prevista na lei antitruste; coibição de propaganda enganosa e o controle de qualidade dos produtos e serviços, previstos no Código de Defesa do Consumidor; efetividade do cumprimento da legislação trabalhista; coibição de atos atentatórios à dignidade humana (mobbing, assédio sexual, dispensas discriminatórias e abusivas), etc. Não foi por acaso que o novo Código Civil substituiu a figura do comerciante pela do empresário. Tal movimento iniciado na Itália e desembocado no novo Código Civil brasileiro demonstra o processo de modificação da concepção de sujeito das relações jurídicas econômicas. Para Francesco Galgano, enquanto as relações de comércio pressupõem um modo de operar do sujeito individual em relação a outro sujeito individual, o conceito de empresa revela a relação entre indivíduo e sociedade. Ao produzir riqueza, o empresário está trazendo um resultado útil a toda a coletividade e, nessa medida, quanto maior sua função de agente criador de prosperidade econômica para a coletividade, mais se justifica um tratamento vantajoso por parte do ordenamento jurídico. Assim, a prosperidade coletiva (v.g.: geração de empregos e riquezas) deve ser identificada como resultado natural da atividade do empresário(4). (3) RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Sociedade de economia mista e empresa privada: estrutura e função. Curitiba: Juruá, 1999, p. 171. (4) GALGANO. Francesco. Diritto commerciale: l’imprenditore. 5ª ed. Bologna: Zarichelli, 1996, p. 105. Apud: RIBEIRO, Márcia Carla Pereira, obra citada, p. 172. 200 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Nesse sentido o novo Código Civil, por inspiração do Código Civil italiano(5), conceitua a figura do empresário: Art. 966: Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. O conceito de empresa propriamente dito foi omitido pelo novo Código Civil; entretanto, pode ser encontrado na Lei n. 4.137/62, que trata da repressão ao abuso do poder econômico, cujo artigo 6º reza: “considerase empresa toda a organização de natureza civil ou mercantil destinada à exploração por pessoa física ou jurídica de qualquer atividade com fins lucrativos”. A doutrina se aproxima desse conceito legal ao estabelecer que a empresa é a “unidade organizada e organizadora de um conjunto de meios materiais e humanos tendentes à obtenção de um fim”, nas palavras de Campz Ruíz (6). Como se vê, o papel do empresário é o de estruturar a produção ou circulação de bens ou serviços para oferecê-los ao mercado consumidor com preços competitivos e qualidade comprovada. Para tanto é preciso articular quatro fatores de produção: capital, insumos, tecnologia e mãode-obra(7). Diante de tais conceitos e premissas, cumpre perquirir como se classificam as paraempresas, ou seja, aquelas pequenas firmas individuais ou pessoas jurídicas que atuam de forma unipessoal e que nem de longe se aproximam do conceito legal que vincula a empresa à idéia de uma organização, vez que nelas não se encontram presentes nem capital, nem insumos, nem tampouco tecnologia, sendo a mão-de-obra restrita à própria pessoa do “sócio” ou “empresário”. Daí a nossa opção onomástica em denominá-las com o prefixo para que equivale a “quase”; logo paraempresa dá a exata idéia de quase-empresa no sentido técnico-jurídico e teleológico. Há uma distância abissal entre essa pequena e unipessoal paraempresa que, na prática, se confunde com o próprio prestador e execu(5) O art. 2.082 do Código Civil italiano enuncia que empresário é quem exercita profissionalmente atividade econômica organizada com o fim de produção ou de troca de bens ou de serviços. (6) RUÍZ, Camps. Régimen laboral de la transmisión de empresa. Valencia: Tirant Lo Blach, 1993, p. 23/24. (7) COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 3/4; NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 201 tor do serviço, e aquelas empresas que efetivamente cumprem os fins estabelecidos pelo legislador. É exatamente em relação aos litígios oriundos do trabalho prestado por essas pequenas paraempresas que a Justiça do Trabalho passa a ter competência material para instruir e julgar. São, pois, os casos das pequenas firmas ou (para)empresas de representação comercial ou prestadores de serviço constituídos formalmente em sociedades de quotas limitadas, mas que na prática a sede da empresa é a sua própria residência, o sócio é a sua própria irmã ou esposa, na maioria das vezes uma dona-de-casa que só emprestou o nome, mas que jamais atuou na sociedade. Ora, a capa formal travestida de pessoa jurídica ou empresa serve apenas para aparentar uma (fictícia) empresa em face da exigência do contratante ou mesmo para ocupar brechas (desvirtuadas) da legislação. O Judiciário Trabalhista não pode ficar inerte diante dessa manobra que salta aos olhos, dando o mesmo tratamento jurídico que aquele dado às grandes e legítimas empresas. Não se perca de vista, a propósito, os princípios da primazia da realidade econômica e do interesse social que informam o direito econômico. Segundo Washington Peluso Albino de Souza, “ao regulamentar o modo de manifestação dos atos e fatos econômicos, e ajustá-los à ideologia adotada, a norma de Direito Econômico deve obedecer fundamentalmente à realidade econômica, em vez de distorcê-la”. Aludido enunciado é complementado pelo princípio do interesse social que o mesmo autor descreve: “O direito econômico toma o interesse social como fundamento dos seus juízos de valor e por esta orientação procura realizar os princípios da Justiça Distributiva”(8). Parece-nos que acertou o constituinte derivado-reformador ao ampliar a alçada da Justiça do Trabalho em relação a essas demandas que, até então, encontravam-se reprimidas e contidas diante do alto ônus financeiro exigido pela Justiça Comum, máxime o pagamento imediato de custas processuais, taxa de distribuição e honorários advocatícios antecipados. Doravante, trazendo tais questões para a alçada da Justiça do Trabalho haverá sensíveis vantagens para o jurisdicionado, seja porque não há taxa de distribuição e as custas processuais são pagas pelo vencido, após a prolação da sentença, seja porque os honorários são pagos ao final e em percentual incidente sobre o valor do êxito, seja porque na mesma ação trabalhista será possível pleitear a nulidade de (8) SOUZA, Washington Peluso Albino. Direito econômico. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 174/175. 202 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO um contrato civil fraudulento (arts. 3º e 9º da CLT) com o conseqüente pagamento das verbas trabalhistas e, sucessivamente, em caso de reconhecimento de validade dos contratos civis, postular as verbas típicas daí decorrentes. A fim de que a delimitação do conceito de relação de trabalho não fique apenas a cargo da doutrina e da jurisprudência, impende aprovar o Projeto de Lei que tramita no Congresso Nacional e que altera redação da CLT para assim constar: Art. 652 — § 1º: Compete ainda ao juiz do trabalho processar e julgar os litígios decorrentes de relações de trabalho que, não configurando vínculo de emprego, envolvam: I — representante comercial autônomo e tomador de serviços; II — corretor e tomador de serviços; III — transportador autônomo e empresa de transporte ou usuário de serviços; IV — empreiteiro e subempreiteiro, ou qualquer destes e o dono da obra, nos contratos de pequena empreitada, sempre que os primeiros concorrerem pessoalmente com seu trabalho para a execução dos serviços, ainda que mediante o concurso de terceiros; V — parceiro ou arrendatário rural e proprietário; VI — cooperativas de trabalho e seus associados; VII — cooperativas de trabalho ou seus associados e os respectivos tomadores de serviços. § 2º O juiz decidirá os litígios a que se refere o § 1º deste artigo com base no direito comum, observadas as normas processuais constantes desta Consolidação das Leis do Trabalho. § 3º Quando for controvertida a natureza da relação jurídica e o juiz não reconhecer a existência de contrato de emprego alegado pela parte, poderá ele decidir a lide com fulcro nas normas de direito comum, desde que, observados os princípios do contraditório e da ampla defesa, seja o provimento jurisdicional compatível com o pedido. Impende consignar que também estão afastados da nova competência da Justiça do Trabalho os litígios decorrentes dos serviços, objeto dos contratos firmados entre fornecedores e consumidores. A Lei n. 8.078/ 90, conhecida como Código de Defesa do Consumidor (CDC), ao mesmo tempo que define o consumidor, em seu art. 1º, como toda pessoa física ou jurídica que utiliza o serviço (ou produto) na qualidade de destinatário NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 203 final, define também o fornecedor, em seu art. 3º, como toda pessoa física ou jurídica que desenvolve atividades de produção, distribuição ou comercialização (de produtos ou) de prestações de serviço. O § 2º do art. 3º da Lei n. 8.078/90 não deixa margem à dúvida quando delimita que o serviço, objeto do contrato de consumo, é aquele que não decorre de relações de caráter trabalhista: Art. 3º, § 2º, do CDC: “Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”. A grande distinção está em saber se o contratante do trabalho contrata o prestador de serviço para viabilizar sua empresa (relação de trabalho) ou o contrata para usufruir exclusivamente de seu serviço na qualidade de destinatário final (contrato de consumo). Da mesma forma, resta investigar se o contratado é um fornecedor de serviço ao público em geral (mercado de consumidores) ou se guarda um intenso grau de dependência econômica para com o seu contratante, que com ele celebra um contrato de trabalho. Os contratos de consumo é o mais acabado exemplo dos contratos padronizados e de adesão, fruto da massificação da sociedade encetada com as sucessivas Revoluções Industriais (máquina a vapor, eletricidade e automação). Destarte, leis como o CDC “apenas intentam colmatar a lacuna existente no sistema legislativo, que havia sido concebido ao tempo do Estado liberal, para ajustá-lo à nova realidade econômico-social da era em que vivemos, e sobretudo para adequá-lo à contratação padronizada, desconhecida noutros tempos”(9). 3.2. Rito, prescrição e princípios incidentes sobre o objeto da nova competência Quanto ao rito, uma vez sendo a ação da competência da Justiça do Trabalho, adotar-se-á o Procedimento Comum Ordinário de que trata o art. 763 da CLT, caso o valor atribuído à causa seja superior a 40 salários mínimos, sendo o rito sumaríssimo dos artigos 852-A e seguintes se o valor da causa for superior a 2 e inferior a 40 salários mínimos e, finalmente, será o Procedimento Comum Sumário de que trata a Lei n. 5.584/70, se o valor dado à causa for de até 2 salários mínimos. Não (9) NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais. São Paulo: Saraiva: 1994, p. 74. Sobre o tema “a massificação da sociedade e seus reflexos nos contratos”, consultar a mesma obra nas páginas 69 a 74. 204 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO há como adotar os Procedimentos Especiais previstos no CPC, visto que estes comportam interpretação restrita, sendo possível aplicá-los somente nos casos expressamente previstos em lei. Vale dizer: somente de lege ferenda se cogita a incidência dos ritos especiais e desde que assim previstos expressamente não comportando, pois, aplicação analógica ou extensiva. Quanto ao prazo prescricional, aplica-se a regra do art. 7º, XXIX, da CF. Observa-se que o caput do art. 7º dirige-se a todos os trabalhadores de forma geral e o seu inciso XXIX, ao estatuir o prazo prescricional de cinco anos, faz expressa menção aos “créditos resultantes das relações de trabalho” e não apenas às relações de emprego. Ademais, deve-se recordar que o instituto da prescrição fulmina pretensão judicial e não direito material propriamente dito. Logo, a partir do instante que se traz para a alçada da Justiça do Trabalho o exame da ação decorrente da relação de trabalho, a pretensão posta em juízo terá natureza trabalhista, atraindo a regra geral do crédito trabalhista e seu prazo prescricional qüinqüenal (art. 7º, XXIX, CF). Finalmente, quanto à aplicação do quadro principiológico do Direito do Trabalho, sobretudo o da proteção ao prestador de serviço, verifica-se que tal enunciado não é exclusivo da relação de emprego e pode perfeitamente alcançar o pequeno empreiteiro ou o prestador de serviço hipossuficiente, a exemplo do que já ocorre em outros contratos civis: proteção ao consumidor; ao locatário e ao aderente nos contratos de adesão. O mesmo se diga quanto ao princípio da primazia da realidade sobre a forma que já vem previsto em algumas espécies de contratos civis, inclusive com a validade da prova exclusivamente testemunhal em contratos de pequeno valor (art. 227 do CCB) aliada à boa-fé como elemento de integração das lacunas dos negócios jurídicos (art. 113 do CCB) e o princípio da instrumentalidade das formas (art. 244 do CPC). 4. Competência para julgar as ações que envolvam exercício do direito de greve — Exegese do art. 114, inciso II Nesse particular, não há maiores alterações, vez que nos termos da Lei de Greve a competência material para julgar as ações que envolvam tanto o exercício do direito constitucional de greve (art. 9º e seu § 1º, da CF), quanto à responsabilidade civil e trabalhista decorrente de atos abusivos e ilícitos praticados no curso da greve (§ 2º do art. 9º) já eram e continuarão sendo da Justiça do Trabalho. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 205 Oportuna é a transcrição dos arts. 8º, 14 e 15 da Lei n. 7.783/89: Art. 8º A Justiça do Trabalho, por iniciativa de qualquer das partes ou do Ministério Público do Trabalho, decidirá sobre a procedência, total ou parcial, ou improcedência das reivindicações, cumprindo ao Tribunal publicar, de imediato, o competente acórdão. Art. 14. Constitui abuso de direito de greve a inobservância das normas contidas na presente Lei, bem como a manutenção da paralisação após a celebração de acordo, convenção ou decisão da Justiça do Trabalho. Art. 15. A responsabilidade pelos atos praticados, ilícitos ou crimes cometidos, no curso da greve, será apurada, conforme o caso, segundo a legislação trabalhista civil ou penal. Conforme se observa da leitura dos arts. 8º e 14, compete à Justiça do Trabalho decidir sobre a legalidade da greve em relação aos requisitos contidos na Lei n. 7.983/89, bem como a procedência total ou parcial das reivindicações. O TST tem posição pacífica sobre o tema desde a edição da Súmula 189: “a Justiça do Trabalho é competente para declarar a abusividade, ou não, da grave”. Quanto ao tema, registremse também as orientações da Seção de Dissídios Coletivos, OJ-SDC ns. 10, 11, 12 e 13, do TST. Em relação à responsabilidade pelos atos ilícitos praticados pelos grevistas durante o movimento paredista, o art. 15, acima transcrito, se reporta aos efeitos apurados segundo a legislação trabalhista, civil ou penal. Quanto à repercussão jurídica decorrente do cometimento de crime ou contravenção penal, a Justiça do Trabalho nunca teve e continua não tendo jurisdição criminal, devendo a matéria ser examinada na Justiça Comum. Veja-se que até mesmo a nova competência para julgar habeas corpus encontra-se adstrita aos atos sujeitos à jurisdição trabalhista como é o caso da prisão do depositário infiel em execução trabalhista. Exegese do novo art. 114, IV, da CF. Contudo, em relação aos efeitos trabalhistas decorrentes dos atos ilícitos da greve, como, por exemplo, a caracterização de rescisão por justa causa (art. 482 da CLT), ou mesmo para apurar a responsabilidade civil decorrente de dano causado pelo empregado grevista (art. 462, § 1º, da CLT), a competência já era e continuará sendo da Justiça do Trabalho, conforme se observa dos arestos abaixo relacionados: Greve: danos à empresa. Participação ativa do empregado. Configuração da justa causa. Havendo deliberada participação do empregado em greve inclusive com ocupação do estabelecimento impõe-se o 206 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO reconhecimento da justa causa por tratar-se de ato lesivo ao direito de propriedade. O direito de permanecer na posse dos bens que garantem a produção é do empregador como uma compensação do risco da atividade econômica que o mesmo assume. (TRT 21ª Região — Acórdão n: 3.418 — Decisão em 5.7.1994 — RO 2925/92). A participação em greve é direito assegurado ao trabalhador, porém dentro dos limites estabelecidos pela Lei n. 7.783/89, segundo a qual as manifestações e atos de persuasão utilizados pelos grevistas não poderão impedir o acesso ao trabalho nem causar ameaça ou dano à propriedade ou à pessoa. No caso dos autos, a prova testemunhal demonstrou que o reclamante, juntamente com outros funcionários, dirigiu palavras de baixo calão aos colegas que pretendiam trabalhar durante a greve, o que acarreta dano moral em face do constrangimento causado por essa atitude. Ademais, também ficou demonstrado que alguns grevistas, dentre eles o reclamante, bateram com as mãos nos vidros do carro da empresa e, embora o veículo não tenha sofrido avarias, está configurada a ameaça de que fala a lei. Recurso de revista conhecido e provido. (TST — RR 695400 — Ano: 2000 — Oriundo da 9ª Região — Quinta Turma — DJ — DATA: 6.2.2004). A novidade efetivamente vislumbrada no art. 114, II, da CF, está na inclusão da competência da Justiça do Trabalho para julgar eventuais litígios que decorram de atos ilícitos praticados em razão da greve, tendo como agente o sindicato dos trabalhadores ou mesmo os trabalhadores que não mantenham vínculo de emprego com a empresa que sofreu danos patrimoniais ou morais. Nesses casos a competência que antes era da Justiça Comum — porque fora dos limites da relação de emprego — passa a ser da Justiça do Trabalho, conforme dicção mais ampla do novo art. 114, II, da CF, em complemento com os incisos I, III, IV e VI do mesmo dispositivo. 5. Competência para julgar as ações sobre representação sindical — Exegese do art. 114, inciso III A Emenda Constitucional n. 45/2004 acertou ao trazer para a órbita da Justiça do Trabalho a competência material para julgar as ações sobre representação sindical decorrentes de conflitos entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores e entre sindicatos e empregadores. Diante do novo art. 114, III, da CF, restou superada a Orientação Jurisprudencial da Seção de Dissídios Coletivos, OJ-SDC, n. 04, do TST que dispõe: NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 207 “Disputa por titularidade de representação. Incompetência da Justiça do Trabalho. A disputa intersindical pela representatividade de certa categoria refoge ao âmbito da competência material da Justiça do Trabalho.” Observa-se um processo de evolução legislativa que desembocou na alteração do art. 114, III, da CF, mas que foi iniciado com o art. 1º da Lei n. 8.984/95, o qual dispõe: “Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios que tenham origem no cumprimento de convenções coletivas de trabalho ou acordos coletivos de trabalho mesmo quando ocorram entre sindicatos ou entre sindicato de trabalhadores e empregador.” Veja-se que tal diploma legal teve o condão de cancelar a Súmula 334 do TST, que dispunha ser incompetente a Justiça do Trabalho para julgar ação movida pelo sindicato que pleiteia, em nome próprio, o recolhimento de desconto assistencial previsto em convenção ou acordo coletivo. De imediato, vozes se levantaram acerca da duvidosa inconstitucionalidade do art. 1º da Lei n. 8.984/95, em face da então redação do art. 114 da CF. Contudo, a doutrina assentou posição de que o caput do então artigo constitucional assegurava legitimidade, ao estatuir que a Justiça do Trabalho tem competência para julgar “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho”. Nesse sentido, com precisão assinalou Luiz Eduardo Gunther: “Portanto, para verificação da constitucionalidade da Lei n. 8.984/ 95, resta ver se as convenções e acordos coletivos de trabalho objetivam resolver controvérsias decorrentes de relação de trabalho. Parece, assim, que na expressão ‘outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho’ podem-se também incluir os sindicatos como possuindo legitimidade para postularem na Justiça do Trabalho o cumprimento de convenções ou acordos coletivos”(10). Registre-se que o Supremo Tribunal Federal também se pronunciou pela legitimidade e legalidade da Lei n. 8.984/95, conforme ementa que se transcreve: “A Lei n. 8.984/95, editada com base no art. 114 da Constituição Federal, retirou do âmbito residual deixado à Justiça Comum dos (10) GUNTHER, Luiz Eduardo. Lineamentos sobre o direito sindical brasileiro. In: Transformações do Direito do Trabalho. Coordenadores Aldacy Rachid Coutinho, José Affonso Dallegrave Neto e Luiz Eduardo Gunther. Curitiba: Juruá Editora, 2000, p. 646/647. 208 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Estados a ação de sindicato de trabalhadores contra empregador, tendo por objeto o adimplemento de obrigação assumida em convenções ou acordo coletivo de trabalho, incluindo-as na órbita da Justiça Trabalhista. Incidência imediata da nova regra de competência às demandas em curso. Recurso extraordinário que não se conhece, mantidos o acórdão recorrido que fixara a competência da Justiça do Trabalho para julgar a causa. Recurso extraordinário não conhecido”. (RE 143.722-7-SP, Ac. 1ª Turma, Revista LTr, São Paulo, novembro de 1995, p. 1.518-1.519). A nova redação do art. 114, inciso III, é diversa da mencionada Lei n. 8.984/95 no que tange ao objeto delimitado, contudo ambas transferem, da Justiça Comum para a Justiça do Trabalho, a competência material para apreciar matérias envolvendo entidades sindicais. Nada mais acertado, vez que as normas relativas a enquadramento sindical e legitimidade encontram-se previstas apenas na CF (art. 8º) e na CLT (arts. 570 a 577), estando, pois, o juiz do trabalho mais credenciado a examinar os conflitos daí resultante, se comparado com o juiz cível. 6. Competência para julgar os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, envolvendo matéria sujeita à jurisdição trabalhista — Exegese do art. 114, inciso IV As três garantias individuais arroladas no inciso IV do art. 114 são chamadas pela doutrina de remédios constitucionais no sentido de meios postos à disposição dos indivíduos e cidadãos para provocar a intervenção das autoridades competentes, visando sanar as ilegalidades e abusos de poder em detrimento de direitos e interesses individuais, sendo que, alguns desses remédios provocam a atividade jurisdicional sendo, então, alcunhados de ações constitucionais (11). O mandado de segurança previsto no art. 5º, LXIX, se presta a proteger direito líquido e certo, quando o responsável pela ilegalidade ou pelo abuso de poder for autoridade pública ou agente no exercício de atribuições do Poder Público. É cabível por exclusão ao habeas corpus e habeas data, o que vale dizer que somente se interpõe o writ quando o direito não estiver amparado por tais remédios. (11) SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 386. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 209 O habeas corpus encontra-se previsto no art. 5º, LXVIII, da CF, servindo para proteger a liberdade de locomoção de todo aquele que sofre ou se ache ameaçado em seu direito de ir e vir, decorrente de ato ilegal ou abuso de poder. Finalmente, a terceira garantia apontada é o habeas data contemplado no art. 5º, LXXII, da CF. Trata-se de remédio constitucional que se presta para proteger a intimidade do indivíduo em relação ao conhecimento de informações relativas a sua pessoa, constantes dos registros ou banco de dados públicos ou mesmo para retificar tais dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo. Observa-se pela atenta leitura do novo art. 114, IV, da CF, que a competência da Justiça do Trabalho para apreciar esses três remédios constitucionais se limita a coibir apenas e tão-somente atos que envolvam matéria sujeita à sua jurisdição. Assim, o mandado de segurança no processo do trabalho é cabível, por exemplo, contra ato do juiz que determina a penhora em dinheiro em execução provisória, nos casos em que o impetrante (executado) nomeou outros bens para constrição (OJ-SDI-II n. 62) ou mesmo para cassar liminar concedida em ação civil pública (OJ-SDI-II n. 58). Quanto ao habeas data vislumbra-se o seu cabimento na Justiça do Trabalho contra informação errônea constante, por exemplo, nos cadastros do MTE que deverá ser notificado na qualidade de impetrado para informar dados da pessoa de determinado fazendeiro em relação à autuação em crime de trabalho forçado. Também é possível vislumbrar a interposição de habeas data na Justiça do Trabalho na hipótese de notificar a Vara ou Tribunal do Trabalho para informar o depoimento de testemunha ou decisão que envolveu ou fez menção à intimidade de terceiro em ação que apura, por exemplo, dano moral decorrente de assédio sexual, transitada em segredo de justiça. Finalmente, o habeas corpus é cabível apenas contra ato que determina prisão civil de depositário tido por infiel, mas que, por exemplo, deixou de assinar o termo de compromisso no auto de penhora e que, por isso, é acolhida a pretensão do remédio constitucional (OJ-SDI-II n. 89). Registre-se que nos demais casos em que possa ocorrer prisão proveniente de um processo trabalhista, a competência será sempre da Justiça Federal, vez que, inevitavelmente, a prisão será decorrente da prática de crime, fator que afasta a competência da Justiça do Trabalho que não detém competência para matéria criminal. São, pois, os casos 210 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO da prisão por desobediência (art. 330, CP), prisão por desacato (art. 331, CP), prisão por falso testemunho ou falsa perícia (art. 342, CP). Nessas situações, havendo flagrante, poderá ocorrer a detenção do suposto autor para lavrar o respectivo auto(12) pela autoridade que tenha atribuição para tanto. Em seguida, o auto deverá ser encaminhado ao Juiz Federal que remeterá ao Ministério Público para oferecimento da denúncia, se for o caso(13). Consigne-se, ainda, o curioso caso em que o advogado ou qualquer cidadão podem dar “voz de prisão” ao magistrado trabalhista, quando do flagrante abuso de autoridade ocorrido, por exemplo, em audiência. Nessa situação, aplicar-se-á a regra do art. 301 do Código de Processo Penal. Eventual prisão do juiz trabalhista diante da incidência de tal crime, poderá ser atacada por habeas corpus interposto não na Justiça do Trabalho, mas na Justiça Federal Comum. Como se vê a ampliação da competência da Justiça do Trabalho para esses três remédios constitucionais (habeas corpus, habeas data e mandado de segurança) encontra-se limitada aos atos de sua jurisdição. Tal opção normativa veio ratificar uma tendência jurisprudencial. Acertou o constituinte derivado-reformador ao pacificar o tema sob a ótica constitucional, vez que, imaginar o contrário, levando tais questões para a órbita da Justiça Federal, implicaria inadmissível cisão da jurisdição trabalhista com graves prejuízos à celeridade processual tão necessária à tutela das garantias individuais(14). 7. Competência para julgar os conflitos de alçada entre órgãos com jurisdição trabalhista — Exegese do art. 114, inciso V Urge lembrar que o nome adequado é “conflito de competência” e não “conflito de jurisdição” como equivocadamente faz menção a CLT e alguns doutrinadores. É que a jurisdição é sempre una e indivisível, ao contrário da competência que “é a quantidade de jurisdição cujo exercício é atribuído a cada órgão, ou seja, a medida da jurisdição”, na conhecida lição de Liebman (15). (12) Auto de prisão em flagrante. (13) SOBRINHO, Aderson Ferreira. O habeas corpus na justiça do trabalho. São Paulo: LTr, 2003, p. 97. (14) SOBRINHO, Aderson Ferreira. Obra citada, p. 97. (15) LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil, vol. 1. Tradução de Cândido Rangel Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 55. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 211 Nos termos do art. 115 do CPC, haverá conflito de competência, quando dois ou mais juízes se declararem competentes ou se considerarem incompetentes ou quando entre eles surgir controvérsia acerca da reunião ou separação de processos. O conflito poderá ser suscitado ao Presidente do Tribunal mediante petição por qualquer das partes ou pelo Ministério Público ou de ofício pelo próprio juiz. A nova redação do art. 114, V, da CF, confere alçada para a Justiça do Trabalho examinar os conflitos de competência apenas entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvando o disposto no art. 102, I, o, da CF, que impõe ao STF o julgamento dos conflitos entre: o STJ e quaisquer tribunais; entre Tribunais Superiores; ou entre estes e qualquer outro tribunal. Aludida regra já vinha contemplada no art. 808, alíneas “a” e “b”, da CLT, inclusive com a mesma ressalva do art. 102, I, o, da CF, a qual faz menção a alínea “d” do referido dispositivo celetário. Assim, o conflito de competência será resolvido pelo TRT, quando suscitado entre Varas e entre Juízes de Direito, ou entre umas e outras nas respectivas regiões. Será do TST a competência do conflito suscitado entre Tribunais Regionais ou entre Varas e Juízos de Direito sujeitos à jurisdição de Tribunais Regionais diferentes. Destarte, a nova redação do art. 114, V, apenas ratificou em plano constitucional a diretriz fixada no art. 808 da CLT. 8. Competência para julgar as ações de indenização por dano moral ou patrimonial decorrentes da relação de trabalho — Exegese do art. 114, inciso VI O Supremo Tribunal Federal já decidiu que o dano moral resultante da relação de emprego é matéria de alçada da Justiça do Trabalho: “Justiça do Trabalho. Competência: Ação de reparação de danos decorrentes da imputação caluniosa irrogada ao trabalhador pelo empregador a pretexto de justa causa para a despedida e, assim, decorrente da relação de trabalho, não importando deva a controvérsia ser dirimida à luz do Direito Civil”. (STF, 1ª T., RE n. 238.737-4, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, unânime, Diário da Justiça n. 226, Seção 1, 25/ 11/98, p. 22). Em igual sentido o TST editou orientação jurisprudencial posicionando-se pela competência da Justiça do Trabalho para solver litígios referentes à indenização por dano moral, desde que “decorrente da relação de trabalho”: 212 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO OJ-SDI-I n. 327 – Dano Moral. Competência da Justiça do Trabalho. “Nos termos do art. 114 da CF/88, a Justiça do Trabalho é competente para dirimir controvérsias referentes à indenização por dano moral, quando decorrente da relação de trabalho”. (DJU de 09.12.2003). Como se vê, a nova redação do art. 114, VI, da CF, ratificou o entendimento uniforme da jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, sendo incontroversa a competência da Justiça do Trabalho que, de agora em diante, atinge todas as ações que pleiteiam indenização por dano material ou moral decorrentes da relação de trabalho. Não se duvida mais acerca da larga expressão relação de trabalho em contraposição ao vocábulo restritivo relação de emprego. Destarte, eventual dano, moral ou material, decorrente da pequena empreitada, da prestação de serviço e de todos os demais contratos de trabalho lato sensu, descritos nos comentários feitos ao art. 114, inciso I, deverá ser pleiteado na Justiça do Trabalho. O mesmo se diga quanto aos danos, material e moral, provenientes de atos ilícitos praticados durante a greve: a competência passa a ser da justiça trabalhista, ex vi legis: art. 114, I, II e IX, da CF. Também passam a ser julgados pela Justiça do Trabalho os chamados danos pré ou pós-contratuais decorrentes da relação de trabalho, como, por exemplo, aqueles manifestados na entrevista para a vaga de emprego ou mesmo após a rescisão contratual, quando da busca de referência profissional ao ex-empregador. Observa-se que, a partir da nova redação do art. 114, VI, da CF, cai por terra o argumento de que a competência seria da Justiça Comum, na medida em que “no dano pré-contratual a relação de emprego sequer havia se formada e no dano pós-contratual o contrato já havia se expirado”. É que, se antes da EC n. 45/2004 a competência da Justiça do Trabalho se dava apenas para litígios decorrentes da relação de emprego, doravante ela se estende a todas as ações de indenização por dano moral ou patrimonial decorrentes da relação de trabalho. Lamentavelmente a Reforma do Judiciário perdeu a chance de esclarecer qual é a competência material para apreciar as ações indenizatórias decorrentes de acidente do trabalho, em que o empregado move contra o empregador, nos termos da parte final do art. 7º, XXVIII, da CF. O Superior Tribunal de Justiça entende que a competência é da Justiça Comum nos termos de sua Súmula de n. 15. Já o Tribunal Superior do Trabalho, em inúmeras decisões esparsas, defende a competência da Justiça do Trabalho. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 213 8.1. Competência para julgar as ações decorrentes de acidente de trabalho A fim de compreendermos essa hesitação jurisprudencial das altas cortes (STJ e TST) em relação ao conflito de competência para julgar as ações acidentárias, faz-se mister perquirir as alterações constitucionais sobre o tema no curso da história. Pelas Cartas Constitucionais de 1946, 1967 e Emenda n. 1 de 1969, a competência para apreciar dano material originário de acidente do trabalho era expressamente atribuída à Justiça Comum. Oportuno transcrever o art. 142 da CF/67 e alterações dadas pela Emenda n. 1/69 e Emenda n. 7/77: Art. 142 — Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregadores e empregados e, mediante lei, outras controvérsias oriundas de relação de trabalho. § 1º A lei especificará as hipóteses em que as decisões, nos dissídios coletivos, poderão estabelecer normas e condições de trabalho. § 2º Os litígios relativos a acidentes do trabalho são da competência da justiça ordinária dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, salvo exceções estabelecidas na Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Havia, pois, expressa previsão constitucional para a Justiça Comum apreciar litígios relativos a acidentes do trabalho, ao ponto do STF, à época, editar a Súmula 501: “Compete à Justiça Ordinária Estadual o processo e o julgamento, em ambas as instâncias, das causas de acidente do trabalho, ainda que promovidas contra a União, suas autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista.” Com a promulgação da Carta de 1988, a situação se modificou. A melhor exegese do artigo 114 da CF/88, correspondente ao art. 142 da CF/67, leva à conclusão de que a competência material da Justiça do Trabalho alcança as ações acidentárias movidas pelo empregado contra seus empregadores: Art. 114 da CF/88: Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público (...), na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas. 214 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Como se vê, de forma oposta à tradição das Constituições Federais pretéritas, a Carta de 1988 deixou, adrede, de reproduzir a regra do § 2º do art. 142 da CF/67; fê-lo, obviamente, porque o constituinte não quis mais destinar à Justiça Comum dos Estados os litígios atinentes aos acidentes do trabalho. Atualmente o Tribunal Superior do Trabalho tem posição pacífica sobre o tema, no sentido de avocar para a Justiça do Trabalho a competência material para solver lides que envolvam danos materiais e morais relacionados a acidente do trabalho: “COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS DECORRENTES DE ACIDENTE DE TRABALHO. Assinale-se ser pacífica a jurisprudência desta Corte sobre a competência do Judiciário Trabalhista para conhecer e julgar ações em que se discute a reparação de dano moral praticado pelo empregador em razão do contrato de trabalho. Como o dano moral não se distingue ontologicamente do dano patrimonial, pois em ambos se verifica o mesmo pressuposto de ato patronal infringente de disposição legal, é forçosa a ilação de caber também a esta Justiça dirimir controvérsias oriundas de dano material proveniente da execução do contrato de emprego.” (TST — 4ª T., RR n. 620.720, Rel. Min. Antônio José de Barros Levenhagen, julg. em 27.9.00, in DJU de 29.6.01, p. 836). Ocorre que, mesmo após a modificação trazida pela CF/88, há quem continue sustentando a competência da Justiça Comum, mediante interpretação equivocada do art. 109, I, da atual Carta da República, in verbis: “Art. 109 — Aos juízes federais compete processar e julgar: I — as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidente de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho.” Encabeçada pelos ministros do STJ, a referida corrente entende que, em não havendo competência da Justiça Federal para julgar a lide acidentária, é da Justiça Estadual a competência residual para tanto. O tema é, inclusive, objeto da Súmula 15 do STJ: “Compete à Justiça Estadual processar e julgar os litígios decorrentes de acidentes do trabalho”(16). A afirmação de que a Justiça Comum Estadual detém competência residual é correta, porém tais exegetas incorrem em erro, quando nela incluem os litígios acidentários civis. Deveras, o que compõe a compe(16) O referido verbete foi editado em 14.11.90 no DJU. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 215 tência residual da Justiça Comum não são as lides acidentárias contra o empregador, mas tão-somente aquelas movidas contra o INSS. Nesse sentido é a dicção do art. 129, II, da Lei n. 8.213/91, in verbis: “Os litígios e medidas cautelares relativos a acidentes do trabalho serão apreciados: I — na esfera administrativa, pelos órgãos da Previdência Social, segundo as regras e prazos aplicáveis às demais prestações, com prioridade para conclusão; e, II — na via judicial, pela Justiça dos Estados e do Distrito Federal, segundo o rito sumaríssimo, inclusive durante as férias forenses, mediante petição instruída pela prova de efetiva notificação do evento à Previdência Social, através de Comunicação de Acidente do Trabalho — CAT.” Roland Hasson bem observa que o art. 129 da Lei n. 8.213/91, ao fixar a competência da Justiça Estadual, dirige-se apenas aos litígios que envolvem o INSS: “Tanto é verdade que o seu próprio inciso primeiro determina que as demandas relativas a acidentes do trabalho serão apreciadas, na esfera administrativa, pelos órgãos da Previdência Social. Ora, como admitir que (o art. 129) versa também sobre a Justiça do Trabalho, se é impossível que o trabalhador acidentado demande administrativamente contra o empregador, buscando reparação fundada em responsabilidade não previdenciária?”(17) Data venia é artificial a fixação da competência da Justiça Comum, especialmente quando o que se vê na prática é o acidente do trabalho resultante do descumprimento de normas de segurança, higiene e saúde do trabalho contempladas nos artigos 154 a 223 da CLT. Felizmente, o constituinte de 1988 corrigiu a distorção jurídica, deixando propositadamente de incluir na competência da Justiça Comum a lide acidentária(18). Assim, considerando inexistir, doravante, qualquer norma conservando a exclusão da Justiça Trabalhista como fazia a CF/67, é induvidosa a competência material do órgão judicante especializado(19). Mais que isto: parece-nos emblemática a localização da norma que assegura o direito à reparação civil acidentária no rol dos direitos (17) HASSON, Roland. Acidente do trabalho & Competência. Curitiba: Juruá, 2002, p. 162/163. (18) Conforme visto anteriormente, ao contrário do art. 142, § 2º, da CF/67, a atual CF/88, art. 114, não encerra a exclusão da Justiça do Trabalho para as questões acidentárias. (19) Nesse sentido também se posiciona PINTO, José Augusto Rodrigues. Processo trabalhista de conhecimento. 3ª ed. São Paulo: LTr, 1994, p. 113. 216 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO tipicamente trabalhistas — artigo 7º, XVIII, da CF/88 — fato que reforça a competência material da Justiça do Trabalho. Com base nessa inferência, o STF vem admitindo a competência material da Justiça do Trabalho para apreciar pedidos voltados à preservação do meio ambiente do trabalho: Competência. Ação civil pública. Condições de trabalho. Tendo a ação civil pública como causa de pedir disposições trabalhistas e pedidos voltados à preservação do meio ambiente do trabalho e, portanto, aos interesses dos empregados, a competência para julgá-la é da Justiça do Trabalho. (STF, Rel. Min. Marco Aurélio, RE 20620/MG, DJU, 17.9.99). Por derradeiro, registre-se o recém-editado(20) verbete do STF que pacificou o tema: Súmula 736: “Compete à Justiça do Trabalho julgar as ações que tenham como causa de pedir o descumprimento de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores.” Destarte, a despeito da omissão do novo art. 114, CF, pode-se inferir que é da Justiça do Trabalho a competência para julgar as ações acidentárias, máxime porque o art. 114, IV, fala em reparação do dano decorrente da relação de trabalho, caso que abrange o acidente do trabalho. Ademais, considerando que os danos decorrentes dos acidentes do trabalho estão diretamente relacionados à execução do contrato de trabalho, depreende-se que a Súmula 736 do STF se aplica às ações acidentárias movidas pelo empregado contra a empresa, mormente porque a culpa do empregador, nessa hipótese, quase sempre resulta da não-observância das normas regulamentares de segurança, higiene e saúde no ambiente de trabalho, previstas na legislação trabalhista(21). 9. Competência para julgar as ações relativas às penalidades administrativas impostas pelos órgãos de fiscalização — Exegese do art. 114, incisos VII Eis aqui outra novidade sensível e acertada. Antes da Emenda Constitucional n. 45/2004, cabia à Justiça Federal Comum examinar e julgar as ações movidas pelas empresas em face da União Federal em (20) DJ 9.12.2003. (21) OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. 3ª ed. São Paulo: LTr, 2001, p. 267. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 217 relação à tentativa de desconstituição das multas que lhe foram impostas pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Aludida opção legislativa era incompreensível, sendo mais razoável atrair essa matéria para a esfera da Justiça do Trabalho, sobretudo porque tais penalidades estão previstas na CLT e se manifestam no descumprimento de normas cogentes incidentes sobre a relação de emprego. Não se pode negar que o juiz federal do trabalho (justiça especializada) se encontra mais habilitado a examinar a correta autuação e aplicação de multas trabalhistas por parte do MTE, se comparado com o juiz federal ordinário. Não são raros os casos em que as decisões da Justiça Federal encontravam-se em flagrante descompasso com as Súmulas do TST acerca da mesma matéria, conforme se depreende da ementa abaixo: MULTA — Art. 71, da CLT — DESCANSO INTRAJORNADA — HORA EXTRA — FGTS. 1. O artigo 71, da Consolidação das Leis do Trabalho, malgrado em seu caput consagre a unicidade de intervalo intrajornada de labor, põe compreensão diversa no seu parágrafo 2º, ao pluralizar a palavra “intervalo”. Assim, mostra-se razoável a interpretação que exclui o pagamento de horas extras no fracionamento de descanso intraturno, afastando-se do Enunciado n. 118/TST. Por isso, inexiste contribuição para o FGTS sobre tal lapso, eis que não há trabalho extraordinário, daí ilícita a imposição de multa por falta do recolhimento da exação. 2. Ademais, a cominação de multa administrativa requer explícita motivação, mormente quando aplicada quase no seu valor máximo, sob pena de ficar ilícita. 3. Apelação provida. (TRF 1ª Região — Apelação Cível 199901000284230 — 3ª Turma Suplementar — DJ 3.7.2003 — pág. 227 — Relator Juiz Evandro Reimão dos Reis). A partir de agora, o mesmo órgão que decidirá sobre a natureza jurídica da verba sonegada e seus reflexos ou mesmo sobre o real alcance da norma da CLT será também competente para examinar as ações das empresas que visam desconstituir as penalidades impostas pelos auditores fiscais do MTE. Haverá salutar e necessária uniformização hermenêutica da norma trabalhista descumprida tanto para os efeitos da sentença condenatória em prol do trabalhador, quanto para os efeitos de incidência de multas administrativas. 10. Competência para processar a execução das contribuições sociais decorrentes das sentenças que proferir — Exegese do art. 114, inciso VIII Redação idêntica constava do § 3º da redação anterior do art. 114, da CF. Agora encontra-se no inciso VIII do mesmo dispositivo, assim grafado: 218 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: VIII — a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir. Oportuna é a transcrição dos referidos incisos do art. 195 da Constituição Federal: Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: I — do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: Alínea “a” — a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe presta serviço, mesmo sem vínculo empregatício; (...) II — do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuições sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201. Observa-se que os aludidos dispositivos constantes do art. 195, inciso I, a, e inciso II referem-se apenas às contribuições previdenciárias. Contudo, o Tribunal Superior do Trabalho, por meio da OJ-SDI-I n. 141 estendeu a competência da Justiça do Trabalho tanto para os descontos previdenciários quanto fiscais(22). Fê-lo de forma gratuita e sem respaldo na Constituição Federal. Não se perca de vista que a fixação da competência material não decorre de simples desejo do órgão judicante, mas da expressa vontade (e declaração) do constituinte. Com efeito, a aludida OJ-SDI-I n. 141 deve ser cancelada a fim de prestigiar a retórica inação do constituinte derivado-reformador que, por duas vezes, não quis estender à Justiça do Trabalho a alçada para executar imposto de renda ou qualquer outro desconto fiscal. São elas: Emenda Constitucional n. 20/1998, que introduziu o § 3º ao art. 114 e agora a EC n. 45/2004 que repete a mesma redação do antigo § 3º, desta vez no novo inciso VIII, ambos do art. 114, da CF. Ambas se limitam a fixar a competência da Justiça do Trabalho para contribuições previdenciárias. (22) OJ-SDI-I n. 141: “Descontos previdenciários e fiscais. Competência da Justiça do Trabalho”. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 219 Ademais, cabe lembrar que tal prerrogativa é do Poder Executivo e não do Judiciário. Assim, cabe à União Federal, por intermédio dos auditores e procuradores do Ministério da Fazenda, proceder a regular execução perante o órgão da Justiça Federal Comum, inclusive com prazo prescricional mais largo, se comparado ao crédito trabalhista. Conclusão Não há como negar que a Justiça do Trabalho foi prestigiada pela Reforma do Judiciário, diante de sensível alargamento de sua competência material. Cabe, no entanto, um adequado aparelhamento desse órgão judicante, com aumento do orçamento para contratação imediata de novos magistrados e serventuários, sob pena de congestionamento da pauta, o que será lesivo ao jurisdicionado, detentor do crédito trabalhista. Aos operadores do direito do trabalho, o desafio consiste no aprimoramento teórico da ciência jurídica por profícuo estudo interdisciplinar. Somente assim estaremos credenciados a dar efetiva resposta às novas demandas que estão por vir. 220 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO A Emenda Constitucional n. 45/2004 e a Competência Penal da Justiça do Trabalho (*) José Eduardo de Resende Chaves Júnior (**) I. Introdução A Emenda Constitucional n. 45, promulgada em 8 de dezembro de 2004, mas só publicada no Diário Oficial da União em 31 de dezembro do mesmo ano, no que tange à Justiça do Trabalho (JT) teve o objetivo manifesto de abandonar a raiz clássica do Direito do Trabalho, isto é, a relação de trabalho juridicamente subordinada. Antes da Emenda, a competência da JT estava quase que toda ela concentrada no ora revogado caput do artigo 114; com a promulgação, o caput desdobrou-se em nove incisos. Este estudo sustenta a tese de que este desdobramento, levado a efeito pela referida Emenda Constitucional, conferiu competência penal à Justiça do Trabalho. O cerne da fundamentação da presente proposição consiste na articulação dos incisos I, IV e IX do novel artigo 114 da Constituição da República, que deságua em duas conseqüências: (i) mutação do critério subjetivo para o objetivo, no que toca à definição de competência trabalhista e (ii) atribuição da competência penal à Justiça do Trabalho, além daquela simplesmente hierárquica, tanto pela natureza da infração, nos termos do art. 69, III, do Código de Processo Penal, como pela relação de adequação legítima entre o processo penal-trabalhista e a Justiça do Trabalho. Ademais disso, sustenta-se que a competência penal da Justiça do Trabalho poderá ser ampliada, pela via ordinária, sem necessidade de emenda constitucional. (*) Agradeço ao meu pai, o advogado José Eduardo de Resende Chaves, a imprescindível ajuda na elaboração deste estudo, tendo contribuído com observações e idéias decisivas para a concepção final do trabalho. (**) Juiz do Trabalho, titular da 21ª Vara de Belo Horizonte. Doutorando em Direitos Fundamentais pela Universidad Carlos III de Madrid. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 221 II. Da mutação do critério de definição de competência da Justiça do Trabalho A anterior ordem constitucional firmava a competência trabalhista, em relação aos litígios decorrentes do contrato de trabalho, em função da pessoa — trabalhador e empregador — não em razão da natureza da matéria. Não é demais ressaltar que, a esse critério, deve-se aditar, naturalmente, o requisito de que a controvérsia decorresse da relação de emprego. Em outras palavras, a competência da Justiça do Trabalho não decorria apenas de um litígio que tivesse origem na relação de trabalho subordinado, mas que, além disso, fosse qualificado pela condição jurídica das pessoas envolvidas: empregador e trabalhador. Nesse sentido, a competência material da Justiça do Trabalho — ou seja, aquela que decorresse da relação de emprego sem envolver necessariamente o trabalhador e o empregador — somente se aperfeiçoava mediante lei específica. O Excelso Supremo Tribunal Federal, em sua composição plenária, já havia assentado entendimento dessa ordem(1), fixando que a “determinação da competência da Justiça do Trabalho não importa que dependa a solução da lide de questões de Direito Civil, mas sim, no caso, que a promessa de contratar, cujo alegado conteúdo é o fundamento do pedido, tenha sido feita em razão da relação trabalhista, inserindo-se no contrato de trabalho”(2). Nessa acepção, o termo relação de emprego preferia ao de contrato de trabalho, pois o último denotava uma equivocada e conservadora visão contratualista, no sentido de que a competência da Justiça do Trabalho estaria jungida estritamente a cláusulas contratuais, perdendo, assim, toda a abrangência do fenômeno jurídico atinente à relação de emprego. A visão contratualista mais avançada da relação de emprego capta tal fenômeno, não por um enfoque de conteúdo, porquanto não tem o contrato de trabalho conteúdo específico, mas sim pelo aspecto de sua realização operacional (3). (1) STF CJ 6.959-6 (DF) — Ac. Sessão Plenária, 23.05.90 — Rel. Ministro Sepúlveda Pertence — Revista LTr, 59-10/1370. (2) Idem, relator Min. Sepúveda Pertence. (3) Cf. CORRADO, Renato, apud MARANHÃO, Délio. Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: FGV, 1966, p. 29. 222 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO É importante ressaltar que não impressiona a objeção no sentido de que o critério da pessoa, para se firmar a competência trabalhista, iria importar, se levado às últimas conseqüências, na assunção de competência penal pela Justiça do Trabalho, por exemplo, nos casos de crimes de ação penal privada envolvendo o trabalhador e o empregador. A Justiça do Trabalho não tinha competência penal, porquanto o Ministério Público é o dominus litis. A demanda penal não ocorre entre o réu e a vítima. Mesmo na ação penal privada, consoante o magistério de Ada Pellegrini Grinover(4), o ofendido, na queixa-crime (ação privada) não é o titular do ius puniendi, mas apenas é extraordinariamente legitimado à ação. Trata-se, pois, de típica substituição processual penal, que, como tal, não altera a competência da lide(5). Após a Emenda Constitucional n. 45/04 a situação ganhou contornos bem distintos. Com a elisão dos vocábulos “empregador” e “trabalhador” do art. 114 da Constituição, a competência da Justiça do Trabalho deixou de se guiar pelo aspecto subjetivo (sujeitos ou pessoas envolvidas na relação de emprego), para se orientar pelo aspecto meramente objetivo, qual seja, ações oriundas da relação de trabalho, sem qualquer referência à condição jurídica das pessoas envolvidas no litígio. Assim, a ação penal oriunda da relação de trabalho, que processualmente se efetiva entre o Ministério Público e o réu, passou a ser da competência da Justiça do Trabalho, em decorrência da referida mutação do critério de atribuição. Isso porque o critério objetivo, dessa forma, se comunica com a natureza da infração, que é uma das formas de fixação da competência, nos termos do artigo 69, III, do Código de Processo Penal. III. Do inciso IX do artigo 114 da Constituição e a “Adequação Legítima” da atribuição de competência penal para a Justiça do Trabalho O primeiro óbice que se apresenta à tese afirmada no tópico anterior — competência penal decorrente da assunção do critério objetivo — (4) Cf. As Nulidades no Processo Penal, 5ª ed. revista e ampliada. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, p. 60. (5) A exemplo das demandas em que o sindicato, como substituto processual, litiga contra o empregador sem alteração da competência trabalhista. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 223 consiste na alegação de inexistência de atribuição manifesta de competência penal à Justiça do Trabalho. Antes, contudo, de se examinar se existe ou não tal manifestação em nível constitucional, é importante verificar se a atribuição de competência penal depende de tal requisito de explicitação. Consoante reconhece a doutrina, não existe qualquer essencialidade técnica nos critérios de definição de competência, que são definidos segundo a experiência prática secular(6), já que eles variam de país para país.(7) No ordenamento brasileiro, de uma maneira geral, o critériomor é extremamente pragmático, com a consideração concreta de dados objetivos da causa. De uma maneira geral tais dados são captados a partir da respectiva categoria jurídica, destacando-se, sobretudo, a natureza da relação jurídica que envolva a demanda (crime, ato ilícito civil, relação de emprego, etc.)(8). A despeito de se tomar a categoria jurídica como critério definidor da competência, nem sempre ela é observada, e isso se passa por uma infinidade de razões de ordem pragmática ou política, à conveniência assistemática do legislador. O que se percebe é que os intentos de sistematização dos critérios definidores da competência resultam inócuos. Todos os estudos a respeito ressaltam o caráter mais descritivo do que sistêmico da distribuição de competência entre os mais diversos ramos do Judiciário, distribuição essa que envolve até o Poder Legislativo. Nessa ordem de idéias, embora a tradição tenha consagrado a visão de que a competência para a categoria jurídica “crime” deva vir explicitada na Constituição, para fins de atribuição de competência penal, não existe qualquer fundamento científico ou dogmático a amparar tal entendimento. O que parece é que se confunde o princípio da reserva legal, que vigora em sede de Direito Penal material, para efeitos da condenação criminal, com a definição, própria do Direito Processual Penal, do ramo judiciário encarregado de proceder ao julgamento da lide. (6) Cf. CINTRA, A.C.A.; GRINOVER, A. P.; DINAMARCO, C. Teoria geral do processo, 7ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990, p. 205. (7) Cf. CINTRA (1990) ob. cit., p. 205 e 207. (8) Cf. CINTRA (1990) ob. cit., p. 207/208 224 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Ícone da inexistência do critério da atribuição específica é a própria competência penal da Justiça Estadual, que não se encontra inserida de forma manifesta ou latente na Carta Constitucional. Não há objetar nem mesmo com o caráter residual da competência da Justiça Comum, pois se a competência penal dependesse de atribuição manifesta obviamente que seria um contra-senso afirmar que uma competência específica (penal) resultaria do mesmo critério de definição da competência genérica. Além disso, a competência penal da Justiça Eleitoral — que é também um ramo Especial como a Justiça do Trabalho — não se encontra atribuída especificamente na Constituição, senão no Código Eleitoral. Como veremos nos tópicos que se seguem, a competência penal da Justiça Eleitoral, em sede constitucional, restringe-se ao habeas corpus de natureza hierárquica e funcional, previsto no art. 121, § 4º, inciso V. Por outro lado, ainda que a distribuição de competência não seja dotada de uma essencialidade técnica, isso não significa que ela não deva observar um critério mais racional de atribuição. A teoria processual desafia, naturalmente, um mínimo de racionalidade e adequação à realidade, sob pena de transformar-se em puro e desordenado arbítrio. É nesse sentido, pois, que se entende a conceituação de competência perpetrada por Celso Neves, que abandona a tradicional “medida da jurisdição”, concebendo-a como a relação de “adequação legítima” entre o processo e o órgão judiciário, ou seja, uma noção concreta, pragmática, porém, racional de competência(9) . A idéia do processualista paulista é superar as conceituações quantitativas da competência — competência enquanto medida — para caminhar em direção a uma conceituação qualitativa. A conceituação qualitativa, segundo Celso Neves, tem um aspecto subjetivo e outro objetivo. Do ponto de vista subjetivo, a competência é definida como atributo para o exercício da jurisdição, decorrente da investidura legítima. Do ponto de vista objetivo, que aqui nos interessa mais especificamente, como a relação necessária, de adequação legítima, entre o processo e o órgão jurisdicional(10). Nessa perspectiva de consideração da competência penal, enquanto relação de adequação legítima entre o processo e o órgão judiciário, a (9) Cf. CINTRA (1990) ob. cit., p. 204. (10) In Comentários ao Código de Processo Civil, vol. VII, 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, prolegômenos, p. XII. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 225 competência penal da Justiça do Trabalho decorre da própria necessidade de defragmentação judiciária do fenômeno trabalho. Em tendo sido alçado à condição de verdadeiro fundamento da República, nos termos do inciso IV do artigo 1º da Carta Magna, o valor social trabalho(11) desafia tutela judiciária abrangente e concreta, no sentido bobbiano, de que a evolução dos direitos partiu da universalidade abstrata, para a atingir a fase de sua concreção. Para tanto, a proteção judiciária do valor social trabalho, para se tornar eficaz e concreta, há de se fazer de forma a evitar a fragmentação, que só enseja procedimentos que conspiram contra a integridade do cumprimento das normas de tutela do trabalho humano. Daí que a adequação legítima corresponde, perfeitamente, ao critério de fixação da competência penal, atinente à natureza jurídica da infração, previsto pelo inciso III do art. 69 do Código de Processo Penal, em outras palavras, a Justiça que lida com a proteção do trabalho é que, sem dúvida, tem maior grau de adequação e legitimidade para avaliar o teor ofensivo das condutas reprimidas pela ordem penal-trabalhista. Por outro lado, parece nos decisivo ressaltar, novamente, que o inciso IX do artigo 114 da Constituição permite, perfeitamente, que norma ordinária processual confira competência penal à Justiça do Trabalho. O precitado inciso III do art. 69 do Código de Processo Penal, desse modo, constitui, assim, a norma de integração da competência penal da Justiça do Trabalho, em interpretação conforme a Constituição – rectius: conforme a Constituição integrada pela Emenda n. 45/04. Por qualquer lado, portanto, em que se analise a questão, é patente no ordenamento jurídico que há atribuição, manifesta ou latente, de competência penal à Justiça do Trabalho. III. Do inciso IV do art. 114 da Constituição e a natureza jurídica do habeas corpus Não obstante inexista fundamento jurídico a sustentar a tese de que a competência penal desafia atribuição específica na Constituição, e, além do mais, ainda que se desconsiderasse a atribuição de competência penal à justiça trabalhista pelo art. 69, III, do CPP, em face do que (11) Na própria dicção da Constituição do precitado inciso IV do art. 1º. 226 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO dispõe o inciso IX da Constituição, cumpre ressaltar que a novel competência, prevista pelo inciso IV do mesmo art. 114, em articulação à competência objetiva prevista pelo inciso I do mesmo artigo, também se constitui como esse requisito da atribuição manifesta da competência penal à Justiça do Trabalho. Muito se discute na doutrina a natureza jurídica do habeas corpus, todavia a polêmica centra-se na questão acerca do caráter recursal ou não dessa medida. Para o nosso estudo interessa outro aspecto, qual seja, a natureza penal ou não desse instituto. Sem dúvida, em sua origem no direito brasileiro, o habeas corpus tinha uma natureza que transcendia o caráter penal. Como não havia outro instrumento de defesa dos direitos e liberdades civis, com a eficácia liminar, a doutrina, pregada por Rui Barbosa, o admitia inclusive para hipóteses não-penais(12). Com o advento do mandado de segurança, contudo, o caráter penal do habeas corpus ficou ressaltado, pois as questões meramente econômicas ou civis poderiam, a partir de então, ser tuteladas por essa nova medida judicial criada. Dessa forma, não obstante a possibilidade da impetração do habeas corpus contra prisão civil (depositário infiel ou em caso de alimentos), ou mesmo contra prisão administrativa, o Supremo Tribunal Federal acabou por consolidar o entendimento, por meio do Conflito de Competência n. 6979-1-DF, que a ação autônoma de impugnação, denominada habeas corpus, tem desenganada (sic) natureza penal: “Sendo o habeas corpus, desenganadamente, uma ação de natureza penal, a competência para seu processamento e julgamento será sempre de juízo criminal, ainda que a questão material subjacente seja de natureza civil, como no caso de infidelidade de depositário, em execução de sentença. Não possuindo a Justiça do Trabalho, onde se verificou o incidente, competência criminal, impõe-se reconhecer a competência do Tribunal Regional Federal para o feito”. (STF-CC6979-1-DF-Ac. TP, 15.08.91, Relator Min. Ilmar Galvão). O entendimento consagrado pelo Supremo Tribunal não desconsiderou, portanto, que o habeas corpus possa ser impetrado contra prisão (12) Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, n. 17, p. 189. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 227 civil ou administrativa, mas que ainda nesses casos, o que define sua natureza penal é a sua própria teleologia — a proteção da liberdade de ir e vir — e não o ato impugnado. Consoante se pode observar dos votos dos Ministros no referido conflito de competência e, principalmente do voto do Ministro Celso de Mello, ainda que a o ato tenha origem extrapenal a natureza da medida é de ação penal. No mesmo sentido, o magistério de Tourinho Neto, que entende que o habeas corpus tem natureza de ação cautelar, de ação constitutiva ou mesmo declaratória, mas sempre penal, in verbis: “Trata-se de garantia individual destinada a fazer cessar o constrangimento ou a simples ameaça de constrição à liberdade de locomoção (...) se o habeas corpus não é recurso, no sentido técnico da expressão, qual seria sua natureza jurídica? Às vezes, como nas hipóteses dos incs. II, III, IV e V do art. 648 (do Código de Processo Penal), é uma verdadeira ação penal cautelar, pois visa a impedir que o desenrolar moroso do processo, ou de qualquer outra providência que possa ser tomada, venha carretar maior restrição ao status libertatis do paciente. Nas hipóteses dos incs. VI e VII, se houver sentença com trânsito em julgado, funciona ele como verdadeira ação penal constitutiva, pois visa a extinguir uma situação jurídica. Seu caráter, aí, seria semelhante ao de uma ação rescisória. Todavia, nessas mesmas hipóteses (VI e VII), se a decisão não transitou em julgado, ou o processo não foi instaurado, porque na fase das investigações, a ação seria declaratória, porquanto teria por finalidade a declaração da inexistência de uma relação jurídico-material. E, dependendo da hipótese concreta, o habeas corpus, com fundamento no inc. I, poderá ter a natureza de ação penal cautelar, de ação penal constitutiva ou até mesmo declaratória.”(13) Também do ponto de vista da Constituição, e a despeito do contorno constitucional do habeas corpus como garante da liberdade fundamental de locomoção, Alexandre de Morais, conclui pelo caráter penal da medida: “É uma ação constitucional de caráter penal e de procedimento especial, isenta de custas e que visa a evitar ou cessar violência (13) TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal I. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 407/408. 228 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO ou ameaça na liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.”(14) Dessa forma, não há falar, nem mesmo, na hipótese do inciso IV do art. 114 da Constituição, em competência penal latente, já que ela é manifesta, no sentido consagrado pela Excelsa Corte. É verdade que tal inciso, contudo, é passível de leitura restritiva, qual seja, a de que a competência penal da Justiça do Trabalho limitarse-ia ao habeas corpus. Todavia, tal entendimento incide e insiste no equívoco, já ressaltado, de que a competência penal desafia atribuição específica. Nem se alegue, por outro lado, que o argumento hermenêutico de que não há na lei palavras inúteis, militaria a favor da tese restritiva, pois a tal argumento pode-se contrapor o chamado argumento “a maiori ad minus” (15), similar ao argumento “a fortiori”, e que consiste em se partir de uma afirmação mais extensa para uma menos extensa. Em termos da argumentação concreta da presente hipótese, o argumento consiste em afirmar que se inclusive o habeas corpus, que constitui o maior bastião da liberdade, é da competência da Justiça do Trabalho, com mais razão há de ser a dos demais procedimentos penais, que sequer alcançam alçada constitucional. Ou seja, se todo o sistema de definição prévia e específica do direito penal decorre da finalidade de proteção do alto valor constitucional da liberdade física, não seria razoável que se estendesse, em caráter de exceção, a competência penal justamente para o instituto que decide de uma forma mais patente e manifesta a liberdade do ser humano, sonegando-a em procedimentos com menor grau de transcendência política. É importante sublinhar que, ainda que o habeas corpus tenha como objetivo a liberdade e não a pena, a sua denegação tem notória, concreta, efetiva — e até desenganada, na dicção do STF — conotação penal. Essa conotação penal, especificamente na seara trabalhista, é mais profunda que se pensa. Chama atenção, inclusive, a conceituação mais técnica do habeas corpus no Código de Processo Penal — art. 647 — em que se nota a visceral correspondência entre os núcleos do tipo (14) MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 1999, p. 128. (15) Cf. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito – técnica, decisão dominação. São Paulo: Atlas, 1988, p. 312. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 229 penal-trabalhista e a conduta do agente que justifique a impetração da medida. O art. 647 do CPP dispõe como núcleo da ação sofrida pelo paciente a locução “sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal”. Na maioria dos artigos que definem o crime contra organização do trabalho o núcleo do tipo é sempre “constranger sob violência ou grave ameaça” alguém a alguma coisa. Em grande parte dos delitos penais-trabalhistas, como, por exemplo, o de aliciamento de trabalhadores, o de redução à condição análoga à de escravo (especialmente os incisos I e II do § 1º do art. 149-A) e até o de atentado contra a liberdade de trabalho, o bem jurídico tutelado é o mesmo do habeas corpus, ou seja, a própria liberdade física de locomoção. Saliente-se, por fim, que a opção por um ou outro critério hermenêutico diz respeito muito mais à adequação político-social da decisão do que propriamente ao desate técnico-jurídico da controvérsia. A teoria da argumentação jurídica tem se revelado ineficaz quanto à hierarquização de critérios exegéticos. Como concluiu, há muito, Chaïm Perelman, na lógica jurídica o decisivo é a definição da premissa, a qual não se processa por meio de um mecanismo lógico. E aqui, como se viu, a adequação político-social encontra-se, sem dúvida, na Justiça do Trabalho. IV. Do inciso I, d, do art. 108 da Constituição e a competência hierárquica A nosso sentir, outro indicativo da existência manifesta da competência penal oriunda do inciso IV do art. 114, acrescido pela Emenda Constitucional n. 45/04, decorre da análise do inciso I, d do art. 108 do Diploma Constitucional, que trata da competência dos Tribunais Regionais Federais. O referido dispositivo constitucional dispõe expressamente sobre a competência funcional e hierárquica para julgar o habeas corpus contra ato de juiz federal. Nisso tal dispositivo se distingue muito do dispositivo contido no mencionado inciso IV do art. 114, por duas razões. Em primeiro lugar, porque sua inserção se faz sentir — ao contrário do inciso I, d, do artigo 108 da Constituição — na esfera de competência originária e ordinária de primeiro grau. Em segundo lugar, porquanto, na formulação do inciso IV, in fine, do art. 114, há uma outra referência manifesta à competência penal: a 230 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO conexão entre o habeas corpus e a matéria correlata, ainda que tal atribuição tenha se expressado de maneira extensiva e conectada(16) à competência para julgar o habeas corpus.(17) Em não se tratando de competência funcional e hierárquica como está disposto no inciso do art. 108, I, d, não se vislumbra outra hipótese de matéria sujeita à competência do juiz do trabalho de primeiro grau, que não aquela decorrente dos atos de processamento da competência penal-trabalhista, pois na hipótese de prisão civil decorrente de ato do juiz, a competência é, de forma indiscutível, do Tribunal Regional do Trabalho. Poder-se-ia imaginar a hipótese do cabimento de habeas corpus diretamente ao juiz de primeiro grau, que não se tratasse de competência originária dos tribunais, para os casos, por exemplo, de prisão, pela autoridade policial, de sindicalista em meio a movimento paredista. Todavia, mesmo, nessa hipótese, não há como desconectar a competência penal da competência para o habeas corpus, pois o fato gerador da medida decorreria sempre de uma conduta passível de ser capitulada em algum tipo penal(18), já que o exercício de greve, por si só, não constitui crime, ao contrário, trata-se de liberdade fundamental. Se se tratar de crime comum, ainda que decorrente da relação de trabalho, a competência para o habeas corpus é da Justiça Comum; se se tratar de crime penal-trabalhista(19), a competência é, sem dúvida, do juiz do trabalho de primeiro grau. O sistema resultaria caótico se fosse dado ao juiz do trabalho apenas conceder ou negar uma ordem de soltura, intervindo na jurisdição e no processo virtual ou efetivamente instaurado perante outro juízo. Para marcar bem a nota distintiva da competência penal conexa ao habeas corpus, nos termos do inciso IV, seria produtivo distinguir-se (16) Dispõe o inciso IV, in fine, do art. 114 da Constituição: “(...) habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição” (grifo nosso). (17) Saliente-se, novamente, a grande identidade que existe entre o bem jurídico tutelado pelo habeas corpus e vários dos delitos penais-trabalhistas, consoante se viu no tópico anterior. (18) Tanto da conduta dos grevistas, patrões, como até da autoridade policial. (19) A distinção, para efeitos de competência, entre crime comum e crime da esfera penal-trabalhista será perpetrada no tópico seguinte. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 231 uma modalidade de atribuição manifesta de competência: a competência penal manifesta, por extensão. Em síntese, a competência penal que decorre do inciso IV do artigo 114 da Constituição transcende a competência penal hierárquica para o habeas corpus e, além disso, se estende para os crimes que decorram da relação de trabalho. V. Da limitação da competência penal da Justiça do Trabalho A tese da assunção da competência penal pela Justiça do Trabalho não significa, contudo, que todo delito criminal oriundo da relação de trabalho seja da sua competência. Não obstante a referida mutação do critério subjetivo para o critério objetivo, a competência da Justiça do Trabalho somente pode atender aos requisitos de adequação e legitimidade se se configurar, de forma restritiva, não como competência penal comum, mas como tutela jurídica processual de caráter especial, ou seja, como competência penal-trabalhista. Vejamos. Se levado a extremo a tese da competência objetiva, estaria inserida na esfera trabalhista, inclusive, a ação penal para julgamento de homicídio praticado pelo empregado contra o patrão, decorrente de desentendimento na execução dos meios de trabalho. Todavia, a prevalecer tal entendimento, a finalidade da especialização de tal ramo do Judiciário perderia sentido e adequação. A saída para esse aparente dilema é a concepção de que a competência penal e não-penal (ou econômica) da Justiça do Trabalho se guia pela teleologia da descompensação jurídica da relação de poder e sujeição(20) que existe de fato na prestação de trabalho sob dependência e subordinação econômicas. Andou bem, pois, o constituinte ao estender a tutela judiciária especial (que estava restrita à subordinação “jurídica”, a todo tipo de trabalho prestado sob subordinação econômica. A extensão dessa tutela judiciária “específica” da relação de “poder e sujeição” deve ser não apenas abrangente, mas também eficaz, de (20) Como ressalta Reginaldo Melhado, o conceito de “subordinação jurídica” é o aparato jurídico utilizado pelo capital para legitimar e encobrir o seu poder privado de sujeitar o trabalho. Cf. in Poder e Sujeição – os fundamentos da relação de poder entre capital e trabalho e o conceito de subordinação jurídica. São Paulo: LTr, 2003, p. 216. 232 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO forma a abarcar tanto o aspecto proativo, promocional e econômico, como também o aspecto punitivo. Nessa ordem de idéias, o suposto paradoxo de conjugar a perda do foco de tutela específica com a necessidade de lidar com o fenômeno trabalho de uma forma mais abrangente se resolve na restrição da competência penal para as hipóteses em que o tipo penal, na sua delineação hipotética, dependa da relação de trabalho exercido sob dependência econômica. Assim, o homicídio ocorrido em razão de desentendimento quanto à execução dos meios de trabalho não se desloca para a competência trabalhista, porque o tipo penal homicídio se aperfeiçoa, do ponto de vista hipotético e formal, independentemente da noção de relação jurídica de trabalho. A relação de trabalho pode apenas ou não, dependendo da hipótese, ser circunstância de aumento de pena, na forma do art. 226, II, do Código Penal. Por outro lado, os crimes contra a organização do trabalho, previstos nos artigos 197 a 207 do Código Penal, bem assim o crime de redução à condição análoga à de escravo (Código Penal, art. 149) dependem, na qüididade de sua configuração formal, da noção jurídica da relação de trabalho subordinado, ou seja, sem a noção de subordinação econômica do trabalho, tais crimes sequer se configurariam em tese. Mais tecnicamente, fundados na lição de Damasio de Jesus, podermos afirmar que a competência penal da Justiça do Trabalho se limita aos casos em que a existência da relação de trabalho, sob subordinação econômica, constitui elementar do fato típico e não mera circunstância do crime. Damásio de Jesus explica que circunstâncias são “determinados dados que, agregados à figura típica fundamental, têm a função de aumentar ou diminuir as suas conseqüências, em regra, a pena”(21). Já a elementar, ou elemento específico do tipo, desclassifica (atipicidade relativa) ou destipifica (atipicidade absoluta) o fato como crime. Assim, a relação necessária de adequação legítima somente se aperfeiçoa quando a relação de trabalho economicamente subordinado surge na própria elementar da tipificação penal, já que a mera circuns- (21) In Direito Penal, 1º Vol. Parte Geral, 13ª ed., revista/ampliada. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 139. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 233 tância é assessória, não justificando, assim, a necessidade de uma tutela judiciária especializada. O requisito da integração da elementar do tipo penal coincide, dessa maneira, com o critério de atribuição de competência penal pela natureza da infração, nos termos do inciso III do art. 69 do Código de Processo Penal. O crime de assédio sexual, portanto, previsto pelo artigo 216-A do Código Penal, também é da competência da Justiça do Trabalho, já que a subordinação decorrente da relação de trabalho é elemento específico do tipo. Nesse sentido se delineia a distinção entre crime comum, circunstancialmente decorrente da relação de trabalho, e delito penal-trabalhista. É importante sublinhar, ainda, que o disposto no art. 109,VI, da Constituição da República, que dispõe expressamente a competência da Justiça Federal para os crimes contra a organização do trabalho, não inibe as conclusões ora expendidas, senão vejamos. É que a despeito da literalidade de tal dispositivo, a jurisprudência, consolidada na Súmula n. 115 do extinto Tribunal Federal de Recursos, consagrou que a competência da Justiça Federal, para essas hipóteses, somente se configura quando se trate de lesão penal de transcendência coletiva e com repercussão geral na organização do trabalho, concebida como sistema. Em face disso, o que se sustenta aqui é que apenas os crimes contra a organização do trabalho, de aspecto individualizado, é que se deslocariam da competência da Justiça Estadual, para a Justiça do Trabalho. Em face, contudo, da própria “adequação legítima” já acenada, é fundamental que o constituinte desloque ou revogue o mencionado inciso VI do art. 109 da Constituição, a fim de que o fenômeno trabalho tenha um tratamento penal holístico, inclusive do ponto de vista coletivo. Assinale-se, por fim, que em face do que dispõe o inciso IX do artigo 114 da Constituição da República, e das razões ora expendidas, especialmente a inexistência de um critério de atribuição penal específica na Constituição, simples lei ordinária poderá trasladar para a Justiça do Trabalho os crimes em que a relação de trabalho subordinado, a despeito de não compor a elementar da figura típica, for conexa, acessória ou circunstancial ao elemento específico do tipo penal, tais como nos crimes contra a ordem previdenciária, previstos nos artigos 168-A e 337-A do Código Penal. 234 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Evidentemente, os crimes, cuja competência esteja atribuída diretamente na Constituição, não poderão ser deslocados para a competência da Justiça do Trabalho pela via ordinária, ainda que tenham a relação de trabalho como integrantes da elementar penal, ou que mantenham com ela relação de conexão ou assessoriedade, em razão do sistema de hierarquia das normas jurídicas. VI. À guisa de conclusão De uma forma bem objetiva, sintetizamos as seguintes conclusões acerca da competência penal da Justiça do Trabalho: 1. A Emenda Constitucional n. 45/04, ao suprimir as figuras do “empregador” e “trabalhador” da delineação da competência da Justiça do Trabalho, transmutou o critério de atribuição da competência trabalhista, da perspectiva subjetiva para a objetiva; 2. Tal transmutação para o critério objetivo significou a assunção da competência penal pela Justiça do Trabalho, além daquela simplesmente hierárquica, tanto pela natureza da infração, nos termos do art. 69, III, do Código de Processo Penal, como pela relação de adequação legítima entre o processo penal-trabalhista e a Justiça do Trabalho; 3. Não existe fundamento dogmático ou doutrinário a sustentar a tese de que a competência penal desafia atribuição manifesta na Constituição, uma vez que a atribuição de competência pode se efetivar também de forma latente; 4. Tendo o Supremo Tribunal Federal definido a natureza penal da ação de habeas corpus, o inciso IV do art. 114 da Constituição é indicativo de que à Justiça do Trabalho foi atribuída bem mais do que simples competência penal-trabalhista latente; 5. A conexão entre o habeas corpus, de competência originária de 1º grau, e a matéria sujeita à jurisdição da Justiça do Trabalho, como consta do inciso IV do art. 114 da Constituição, é também indicativo de um plus em relação à mera atribuição penal latente; nesse caso, a atribuição de competência penal-trabalhista é manifesta, ainda que por extensão; 6. Somente os crimes cuja elementar do tipo penal forem compostos pela relação de trabalho economicamente subordinado é que estão na esfera penal da Justiça do Trabalho; os crimes cujas circunstâncias NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 235 decorram da relação de trabalho, somente poderão se deslocar para a competência da Justiça do Trabalho com a específica autorização de lei ordinária; da mesma forma, os crimes contra a ordem previdenciária, nos termos do inciso IX do art. 114 da Constituição; 7. Diante disso, delineia-se a distinção entre crime comum, circunstancialmente decorrente da relação de emprego (v.g. art. 226, II, do Código Penal) e delito penal-trabalhista (v.g. crimes contra organização do trabalho; redução à condição análoga à de escravo e assédio sexual). 8. Os crimes contra a organização do trabalho que antes da EC 45/04 eram da competência da Justiça Estadual, nos termos da Súmula 115 do extinto TFR, deslocam-se para a competência da Justiça do Trabalho; os crimes contra a organização do trabalho, concebida de uma forma coletiva e como sistema, continuam na órbita da Justiça Federal, em face do que dispõe o art. 109, VI, da Constituição. 236 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Competência Laboral — Aspectos Processuais José Hortêncio Ribeiro Júnior (*) I. Breve intróito Não podemos tratar o novo como velho e nem o velho como novo. Com amparo nesse raciocínio é que tentaremos tecer algumas considerações sobre a amplitude da competência consagrada na nova dicção do artigo 114 da Constituição Federal, implementada pela Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004, bem como trataremos de alguns efeitos imediatos que referida alteração trará às relações processuais. A Justiça do Trabalho sofreu a maior de todas as suas mudanças. Mais que nunca foi estabelecida uma competência de natureza especial e como tal há de ser tratada. A novel regra do artigo 114 da Constituição Federal não pode ser enquadrada em qualquer dos antigos critérios de determinação de competência, sob pena de não ser compreendida sua real extensão. Nesse pequeno trabalho tentaremos trazer à reflexão a necessidade de pautarmos novos dados para a vinculação da lide à Justiça do Trabalho, adentrando ainda no cotejo de alguns elementos indispensáveis à absorção dos novos feitos pelo Poder Judiciário Trabalhista. II. Do critério constitucional de determinação da competência da Justiça do Trabalho A Jurisdição, enquanto poder estatal, possui sua natureza una e indivisível, estando presa a todo o território nacional. Seu exercício, no (*) Juiz do Trabalho Substituto do Eg. Tribunal Regional do Trabalho da 23ª Região. Presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 23ª Região — AMATRA XXIII. Especialista em Direito Processual do Trabalho e Direito Processual Civil. Vice-diretor da Escola Judicial do TRT da 23ª Região. Coordenador e Professor do Curso Preparatório à Magistratura do Trabalho de Mato Grosso e Professor de Direito Processual do Trabalho no IELF — SP e da Escola Superior de Direito de Mato Grosso. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 237 entanto, é fracionado, sendo atribuído a diferentes Órgãos que compõem a estrutura do Poder Judiciário. A este fracionamento do exercício do Poder Jurisdicional denominamos de competência. Para vinculação da lide ao Órgão Jurisdicional, valemo-nos dos clássicos critérios de determinação da competência, todos eles calcados em fatos que a lei reputa como relevantes e suficientes para determinar os limites da atividade jurisdicional de determinado órgão, a exemplo da competência em razão da matéria, do território, do valor da causa, da função (nos campos vertical e horizontal) e da pessoa. No entanto, a regra do artigo 114 da Constituição Federal não encontra suporte fático estanque nos critérios acima declinados. A simples análise de seu conteúdo denotada a existência de competências definidas pela matéria, consoante inciso II, mas também aferimos competências funcionais, conforme inciso IV do mesmo dispositivo constitucional. Mas o ponto central do presente trabalho está assentado na análise da competência trazida pelo inciso I, que atribui a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar “as ações oriundas da relação de trabalho”. Nesse diapasão, antes mesmo de adentrarmos na discussão acerca da amplitude do termo “relação de trabalho”, imprescindível se faz uma breve reflexão sobre o critério que devemos utilizar para determinarmos referida competência. De plano, afastamos, por completo, qualquer tendência em afirmar que referida norma encontre enquadramento como hipótese de competência material. Na realidade, mesmo antes da alteração sofrida, o artigo 114 da Constituição Federal não determinava apenas a competência material do Poder Judiciário do Trabalho. Este entendimento já havia sido assentado pelo Excelso Supremo Tribunal Federal. Sempre oportuno lembrar a clássica decisão proferida nos autos do processo n. CJ 6959/DF, em que restou definida a competência da Justiça do Trabalho para julgamento de danos materiais decorrentes da relação de emprego. Em referida decisão, já havia sido assentado que “a determinação da competência da Justiça do Trabalho não importa que dependa a solução da lide de questões de direito civil, mas sim, no caso, que a promessa de contratar, cujo alegado conteúdo e o fundamento do pedido, tenha sido feita em razão da relação de emprego, inserindo-se no contrato de trabalho” (1). (1) Processo CJ 6959, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, publicado do DJ de 22 de fevereiro de 1991, p. 1.259. 238 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Da análise de referido acórdão, extrai-se que a competência da Justiça do Trabalho, mesmo antes da EC 45, não era definida pela matéria, mas sim pela gênese do dissídio. Nascia, portanto, a competência contratual, ou seja, caberia à Justiça do Trabalho julgar os dissídios decorrentes do contrato de trabalho, pouco importando a natureza da referida demanda, se respalda no Direito do Trabalho ou no Direito Civil. A jurisprudência e a doutrina progrediram, assentando a competência do Poder Judiciário do Trabalho em questões contratuais, pré-contratuais e pós-contratuais(2). Sendo assim, afere-se que há muito houve o abandono do raciocínio de que a regra do artigo 114 da Constituição Federal trouxesse mera previsão de competência material. Tal realidade é novamente afirmada com a alteração ora em análise. Ocorre que a Emenda Constitucional 45 elasteceu o espectro da competência da Justiça do Trabalho. A partir de sua vigência, ao Poder Judiciário do Trabalho compete não apenas o julgamento de demandas decorrentes do contrato de trabalho, mas todas as questões emergentes da relação de trabalho lato sensu. Daí nasce a necessidade de nova definição do critério de determinação da competência da Justiça do Trabalho, na medida em que não mais se restringe ao contrato de emprego. Na realidade, ao preconizar a competência para as causas decorrentes da relação de trabalho, assentou o Texto Constitucional a atuação da Justiça do Trabalho para todas as demandas em que houvesse uma relação jurídica de trabalho. Daí por que a denominação de competência laboral. Desta feita, há de ser aplicado o mesmo raciocínio que outrora era empreendido na interpretação do artigo 114 da Constituição Federal. Para a determinação da competência da Justiça do Trabalho, irrelevante se faz a análise da natureza da matéria, se trabalhista, administrativa, civil ou mesmo afeta ao campo do direito do consumidor. O elemento que define a competência passa a ser a existência de uma relação de trabalho, conforme passaremos a analisar no tópico seguinte. (2) Nesse sentido vinha decidindo o Colendo Tribunal Superior do Trabalho, fixando a competência da Justiça do Trabalho para o julgamento de danos verificados antes da formação do contrato de trabalho, ou mesmo após o seu termo, conforme julgamento extraído do Processo n. RR-640818-2000, publicado no DJU de 29 de agosto de 2003, 4ª Turma, Relator Ministro Antônio José de Barros Levenhagen. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 239 III. Da competência laboral Conforme já definimos, a nova regra do artigo 114 não reflete hipótese de competência material. Esta premissa é imprescindível para que possamos definir o novo campo de atuação da Justiça do Trabalho. De acordo com a nova regra constitucional, compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar as causas decorrentes da relação de trabalho, nascendo, assim, aquilo que denominamos de competência laboral. Imprescindível, nesse momento, definirmos o conceito de relação de trabalho, partindo inicialmente da definição do termo trabalho. Adotando a conceituação a de Tostes Malta, o trabalho é esforço destinado à produção de riqueza(3). Deste conceito extraem-se dois elementos de grande relevância. O primeiro na presença da atividade humana e o segundo na predestinação desta atividade à produção. A mesma linha de raciocínio é seguida por Evaristo de Moraes Filho(4), segundo o qual para a boa definição de trabalho há a necessidade conjugação dos elementos: a) trabalho humano, inteligente e moral; b) livre; c) associado; d) dividido; e) regulamentado; f) unido ao capital e g) protegido por lei. Já a professora Maria Helena Diniz define trabalho como sendo “o conjunto de atividades humanas, intelectuais ou braçais que geram uma utilidade” (5). As definições acima pautadas permitem a extração de alguns elementos que são próprios do conceito de trabalho. Naquilo que interessa ao presente estudo, poderíamos assentar o conceito de trabalho como sendo fruto da atividade humana, com a utilização das energias alheias em favor de alguém, que dele se beneficia, mediante retribuição. O conceito tratado não encontra qualquer restrição às hipóteses de relação de emprego. Aliás, há muito, a doutrina aponta a relação de trabalho como sendo gênero da qual a relação de emprego seria apenas espécie. Na realidade, desse conceito extraem-se três elementos. Um prestador de serviços(autônomo, eventual, avulso, subordinado, etc), um tomador de serviços(que pode ser pessoa física ou jurídica) e uma relação (3) TOSTES MALTA, Christovão Piragibe. Rudimentos de Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas, 1966, p. 11. (4) MORAES FILHO, Evaristo de. Introdução do Direito do Trabalho, vol. I. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1956, p. 102. (5) DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico, vol. 4. São Paulo: Editora Saraiva, 1998, p. 591. 240 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO jurídica de labor. Esta relação jurídica é denominada relação de trabalho, que pode ser classificada de acordo com suas características. Por outro lado, o conceito de relação jurídica passa pelo laço intersubjetivo, regulado pelo ordenamento jurídico, da qual emergem conseqüências obrigatórias no plano da existência. Com efeito, ao tratarmos de relação de trabalho, podemos conceber que estão aqui abrangidas todas as relações intersubjetivas, de natureza eficacial ou básica(6), cujo objeto seja a prestação de serviço por pessoa física, em favor de alguém, que dele se beneficia, mediante retribuição. Nesse contexto, podemos concluir que a acepção de relação de trabalho engloba o trabalho subordinado, os prestadores de serviço regulamentados pelo artigo 593 e seguintes do Código Civil de 2002, o empreiteiro, o depositário, o mandatário, enfim, todos os trabalhadores que firmem contratos de natureza civil, administrativa ou trabalhista e cujo objeto seja a prestação de trabalho em favor de outrem. Para essas causas, em havendo uma pessoa física figurando no vértice ativo da relação jurídica de trabalho, estará assentada a competência do Poder Judiciário Trabalhista, pouco importando a natureza da matéria que ali esteja sendo discutida. Daí a concepção que acima declinamos, no sentido de que o novel critério de determinação da competência da Justiça do Trabalho há de ser o laborativo, não mais se concebendo a vesga visão do artigo 114 da Constituição Federal, como sendo mera hipótese de definição de competência material. IV. Relação de trabalho x Relação de consumo Para a determinação da competência da Justiça do Trabalho, pouco importa a natureza da matéria que esteja sendo discutida, fazendose mister apenas o cotejo de sua gênese, ou seja, se decorrente de uma relação de trabalho. Sendo assim, deparamo-nos com um feixe de rela(6) Na concepção de Pontes de Miranda, as relações jurídicas podem ser de natureza básica ou eficacial, pontuando que “Para as relações jurídicas básicas não é preciso que delas nasçam logo direitos e deveres. Pode mesmo dar-se não nasçam nunca. Para as outras, que são relações intra-jurídicas, em vez de relações inter-humanas, que se juridicizaram, o ser e o ter algum efeito hão de, pelo menos coincidir no início delas. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti in Tratado de Direito Privado, Parte Geral, vol. I. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1970, p. 118. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 241 ções jurídicas regidas pelas diversas ramificações do Direito, todas doravante abrangidas pela égide do artigo 114 da Constituição Federal. Deixando à margem as relações jurídicas cujas competências restam incontroversas, a exemplo das relações de emprego, avulsos e eventuais, passamos ao cotejo das relações jurídicas que, apesar de sua natureza excepcional, também estarão submetidas à apreciação da Justiça do Trabalho, desde que fundadas em uma relação de trabalho. O primeiro ponto a ser ultrapassado está assentado nas relações enquadradas como de consumo, estando, portanto, materialmente regidas pelo Código de Defesa do Consumidor. Tal análise se faz necessária, na medida em que referida norma alça não só a aquisição ou utilização de produtos, mas também a prestação de serviços. Estes serviços, por vez, podem ser prestados por pessoas físicas ou jurídicas. Na primeira hipótese, teremos um contrato de prestação de serviços, no qual uma pessoa física assume a obrigação de prestar determinado trabalho em favor de contratante, mediante retribuição e com destinação final. A própria definição acima declinada evidencia que, mesmo na hipótese de estabelecimento de uma relação de consumo, haverá uma relação de trabalho antecedente e, como tal, deverá estar sujeita à competência da Justiça do Trabalho. Importa registrar que a Lei n. 8.078/90 não possui normas processuais que definam competências. Trata-se, na verdade, de um instrumento legal de proteção ao consumidor (CF, art. 5º, inciso XXXII), com indiscutível alcance social, aplicável a todas as relações jurídicas em que haja prestação de serviço a consumidor com destinação final, exceto as de natureza trabalhista. Com efeito, tecendo uma interpretação teleológica, conclui-se que todas as relações de trabalho, contratadas diretamente com o consumidor final dos serviços, estarão sujeitas às disposições do Código de Defesa ao Consumidor, pouco importando a natureza dessas relações, feita apenas a exceção quanto às relações de emprego. Assim, teremos relações comerciais e civis sujeitas à incidência do Código de Defesa ao Consumidor, como norma tutelar, sem que isso afete o campo da determinação da competência. Essa breve digressão se faz necessária apenas para destacar que a caracterização da relação de consumo emergente, de determinada relação de trabalho, não afasta a competência do Poder Judiciário Trabalhista. Isto porque, conforme já tratamos alhures, a novel regra constitucional não assenta competência em razão da matéria, mas sim em razão do labor. 242 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO A relação de consumo, como não poderia deixar de ser, trata-se de uma relação jurídica secundária, sendo sempre antecedida de uma outra relação jurídica. Veja-se, por exemplo, que na aquisição de um aparelho de televisão, antes de ser estabelecida a relação de consumo, há a formação de um contrato de compra e venda. Do mesmo modo, ao contratar a execução de determinado serviço, antes do aperfeiçoamento da relação de consumo, haverá a formação de um contrato de prestação de serviços. Estas circunstâncias evidenciam que a relação de consumo, apesar de eficacial, reclama a existência de uma relação jurídica prévia que não deixa de existir pela sua submissão às disposições da Lei n. 8.078/90. Essa circunstância já vem sendo reafirmada em constantes decisões do Superior Tribunal de Justiça, nas quais conclui pela aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de leasing, ou mesmo de depósitos decorrentes de poupanças. Com efeito, emerge, com segurança, a conclusão de que o enquadramento de determinada relação jurídica como de consumo, não desnatura sua substância inicial, permanecendo os regramentos do contrato firmado pelas partes, mas sujeitos às normas protetivas da Lei n. 8.078/90. Por todos esses fundamentos, podemos concluir que o enquadramento de determinada prestação de serviços, como relação de consumo, jamais poderá afastar a competência da Justiça do Trabalho, desde que a relação jurídica básica seja de trabalho e que o prestador dos serviços seja pessoa física. A expressão “serviço” é definida por Eduardo Grabriel Saad (7) como a atividade humana que, na ótica deste Código, exerce-se sem vínculo empregatício e, de conseguinte, com autonomia, mas sempre remunerada. Referido autor aponta que as relações de trabalho abrangidas pelo Código de Defesa do Consumidor são aquelas autônomas, firmadas a partir de contratos de locação de serviços. Veja-se que para referidas relações de trabalho a natureza de consumo somente se materializa em momento posterior, não transfigurando a essência do contrato firmado previamente. Esta circunstância é facilmente verificada quando citamos a hipótese do representante comercial, regido pela Lei n. 4.886/65 e que tem suas relações submetidas às disposições do CDC. No entanto, é incontroverso que se trata de uma relação de trabalho, indiscutivelmente submetida à novel competência da Justiça do Trabalho. (7) SAAD, Eduardo Grabriel. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: LTr, 1999, p. 89. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 243 Desta feita, não é a circunstância de estar a relação jurídica protegida pelo Código de Defesa do Consumidor que irá afastar a competência da Justiça do Trabalho. Havendo relação de trabalho, a demanda submeter-se-á à jurisdição trabalhista. Assim, por exemplo, os efeitos de um contrato de prestação de serviços cirúrgicos firmado pessoalmente por um médico com seu cliente estarão sujeito à competência da Justiça do Trabalho. Note-se que o objeto desse contrato está afeto a uma relação de trabalho, abrangida, portanto, pela norma do artigo 114 da Constituição Federal. Vale dizer que, caso o cliente não pague o valor contratado pelos serviços, a execução do referido contrato deverá ser feita perante a Justiça do Trabalho. Do mesmo modo, todos os efeitos que o cliente pretenda desse contrato de prestação de serviços(que encerra uma relação de trabalho) estarão sujeitos à competência do Poder Judiciário do Trabalho, inclusive a pretensão reparatória decorrente do erro médico, pressuposto que encontra eco no próprio inciso VI do artigo 114 da Norma Constitucional. Em resumo, todas as demandas decorrentes de relações de trabalho, inclusive as prestadas por profissionais liberais submetidos a regimes próprios, tais como advogados, agrimensores, contabilistas, engenheiros, farmacêuticos, médicos, químicos e outros, deverão ser julgadas pelo Poder Judiciário do Trabalho, na medida em que sua submissão ou não às disposições do Código de Defesa do Consumidor não afeta o campo da competência, corolário próprio da natureza secundária da relação de consumo. V. Do deslocamento de competência — Exceção ao princípio da perpetuatio jurisdictionis Nos termos do artigo 87 do Código de Processo Civil, a competência é determinada no momento em que a ação é proposta, sendo irrelevante as alterações de fato ou de direito ocorridas posteriormente. Referido dispositivo consagra o princípio da perpetuatio jurisdictionis, que somente encontra exceção nas hipóteses de extinção dos órgãos ou na alteração da competência material ou hierárquica. No caso, a alteração perpetrada pela Emenda Constitucional 45 trouxe supressão de competências materiais tanto da Justiça Estadual quanto da Justiça Federal. Daí deflui a inequívoca ilação de que todos os feitos que lá tramitam e que possuem a relação de trabalho como rela- 244 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO ção jurídica básica, deverão ser encaminhados para o Poder Judiciário Trabalhista, feita a exceção apenas quanto aos processos de execução baseados em títulos executivos judiciais, conforme será tratado no tópico seguinte. VI. Dos processos de execução baseados em títulos executivos judiciais oriundos de processos cognitivos Quanto às execuções definitivas de títulos executivos judiciais, não há que se falar em deslocamento da competência. Isto porque, para referidos feitos, a competência executória é definida pelo critério funcional, não estando, portanto, albergada pelas exceções do artigo 87 do Código de Processo Civil. A competência executória para os títulos executivos judiciais provenientes de atividade jurisdicional vem definida pelo artigo 575, II, do Código de Processo Civil, que determina seja a mesma processada perante o juízo ou tribunal que conheceu originariamente da causa. Notese que o elemento central de definição da competência está assentado no aspecto funcional, ou seja, será competente para a causa o juiz ou tribunal que tiver funcionado originariamente na causa. Nesse diapasão, concluímos que as execuções para títulos executivos judiciais não se encontram excepcionados pela disposição do artigo 87 do CPC, devendo, portanto, atentar ao princípio da perpetuatio jurisdictionis. Nesse caso, havendo o título transitado em julgado, deverá a execução continuar a ser processada perante o órgão que conheceu originariamente da causa, não havendo o deslocamento da competência por força da alteração do artigo 114 da Constituição Federal. Registre-se, outrossim, que este raciocínio somente é aplicável às execuções de natureza definitiva, na medida em que o elemento que define o lastro da competência funcional está assentado no trânsito em julgado do título. Desta forma, para as execuções de natureza provisória, também haverá a necessidade de remessa dos autos para o Judiciário Trabalhista. O professor Araken de Assis(8) registra que “o artigo 575, II, estabelece uma competência funcional e, portanto, absoluta”, imperando o interesse público em ver a sentença executada pelo juízo que conheceu origi(8) ASSIS, Araken de. Manual do Processo de Execução, 6ª ed. São Paulo: Editora RT, 2000, p. 195. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 245 nariamente da causa, sob o raciocínio que este teria as melhores condições de implementar a necessária efetividade à atividade jurisdicional. No mesmo sentido é a cátedra de Cândido Rangel Dinamarco(9), ao pontuar que “é funcional a competência executiva (a) dos ‘tribunais superiores, nas causas de sua competência originária’ e (b) do ‘juízo que decidiu a causa em primeiro grau de jurisdição’”. Pauta referido autor que a competência executória para os títulos executivos judiciais, provenientes de processos cognitivos, constitui competência automática, resultando na ilação de que o juízo que conheceu originariamente da causa será sempre o competente para processar a execução respectiva. Quanto a este tema, merece ser observada a diversidade de entendimentos pautados pelo Superior Tribunal de Justiça, manifestando, inclusive, posicionamentos conflitantes entre a Segunda e Terceira Turma. A Eg. Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça posiciona-se no sentido que ora defendemos, ou seja, que a competência executória, por possuir natureza funcional, não encontra abrigo nas exceções do artigo 87 do CPC. Nesse sentido é o conteúdo do julgamento proferido nos autos do conflito de competência CC n. 30912 — RJ, em que foi relator o Ministro José Arnaldo da Fonseca(10). Nesse caso, conforme se depreende dos termos da fundamentação trazida, a alteração da competência material da Justiça do Trabalho não ensejou o deslocamento da competência executória para a Justiça Federal. Por outro lado, ao analisarmos o conteúdo do julgamento proferido nos autos do Processo n. 34.312-RS, em que foi relator o Ministro Castro Filho(11), verificamos posicionamento diametralmente oposto. Em referi(9) DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, vol. IV. São Paulo: Editora Malheiros, 2004, p. 91. (10) CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUÍZOS FEDERAL E TRABALHISTA. PROCESSO DE EXECUÇÃO. SENTENÇA TRABALHISTA. MUDANÇA DE REGIME. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DO CONHECIMENTO. Ainda que tenha havido a mudança de regime do servidor, o fato é que a sentença foi prolatada antes de tal alteração, e deve ser executada no juízo do processo de conhecimento. (CC 30912-RJ, 3ª Turma, Relator Ministro José Arnaldo da Fonseca, publicado no DJ do dia 8 de outubro de 2001, p. 161). (11) CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA DO TRABALHO E JUSTIÇA ESTADUAL. EXECUÇÃO DE SETENÇA PROFERIDA POR JUIZ ESTADUAL. TRABALHADOR PORTUÁRIO. ÓRGÃO GESTOR DE MÃO-DE-OBRA — OGMO. I — Compete à Justiça do Trabalho executar sentença, já transitada em julgado, proferida pela Justiça Comum do Estado antes da alteração dos artigos 643 e 652 da CLT, que fixaram a competência da Justiça Especializada para processar e julgar as ações envolvendo trabalhador portuário e o Órgão Gestor de Mão-de-Obra — OGMO, decorrentes da relação empregatícia. 246 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO do julgado, determinou-se o deslocamento da competência executória para a Justiça do Trabalho, não obstante a sentença transitada em julgado tivesse sido proferida pela Justiça Comum, verificando, assim, que a Eg. Segunda Turma do STJ tratou a competência executória como se fosse de natureza material, incorrendo, permissa venia, em equívoco na aplicação da regra do artigo 87 do CPC. Resta ainda afastar a incidência à hipótese da regra contida na Súmula 10 do Superior Tribunal de Justiça. Referida súmula trata do elastecimento da competência territorial da Justiça do Trabalho para as localidades que outrora tinham a jurisdição laboral exercida pelos órgãos da Justiça Comum. Sabemos que a competência residual da Justiça Comum, definida inclusive pela atual regra do artigo 112 da Constituição Federal, somente é estabelecida pela ausência, na localidade, de órgãos da Justiça do Trabalho. Nessa situação, por força do Texto Constitucional, o Juiz de Direito, enquanto exerce a jurisdição trabalhista, pertence à estrutura do Poder Judiciário do Trabalho. Tanto assim que a referidos feitos deverão ser aplicáveis os preceitos do Processo do Trabalho, sendo a competência recursal exercida pelos demais órgãos do Judiciário Trabalhista. Com efeito, havendo a instalação do Órgão trabalhista na localidade, automaticamente deixa de existir a competência da Justiça Estadual, estabelecida em razão da localidade. Verificamos, assim, que tal situação em muito se distancia da hipótese implementada pela Emenda Constitucional n. 45. Em suma, a competência executória será sempre definida pelo juízo prolator da decisão originária que houver transitado em julgado. Logo, os processos de execução definitiva que se encontrem perante o Judiciário Federal e Estadual não deverão ser recebidos para Justiça do Trabalho, na medida em que referida competência não encontra enquadramento nas exceções do artigo 87 do CPC. No entanto, quanto aos títulos executivos extrajudiciais, considerando que sua determinação não segue o critério funcional, deverão os mesmos ser encaminhados para a Justiça do Trabalho, inclusive quanto II — Inteligência da exceção prevista no artigo 87, segunda parte, do Código de Processo Civil. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo da 2ª Vara do Trabalho de Rio Grande — RS. (CC 3412-RS, 2ª Turma, Relator Ministro Castro Filho, publicado no DJ do dia 10.6.2002, p. 139). NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 247 às ações de execução de penalidades administrativas impostas pelas Delegacias Regionais do Trabalho, corolário lógico da regra do artigo 114, inciso VII, da Constituição Federal. VII. Das normas processuais aplicáveis às novas competências Dúvidas poderiam surgir acerca da norma processual aplicável às novas relações jurídicas submetidas à jurisdição trabalhista. Poder-se-ia partir, permissa venia, do equivocado raciocínio de que para as causas estranhas à relação de emprego seriam aplicáveis as disposições próprias do processo civil. Esta concepção defluiria do equivocado conceito do Processo do Trabalho como sendo o instrumento utilizado pelo Estado para a solução dos conflitos de natureza trabalhista. Afirmamos ser equivocada essa ilação, porque o Processo do Trabalho serve não apenas para a solução dos conflitos trabalhistas. Em verdade, a definição do Processo do Trabalho transcende o aspecto material. O Processo do Trabalho pode ser corretamente definido como sendo o instrumento utilizado pela Justiça do Trabalho para a solução dos conflitos submetidos à sua Jurisdição. Assim, mesmo no caso de causas estranhas ao contrato de trabalho, ser-lhe-ão aplicadas as disposições do Direito Processual do Trabalho, inclusive com seus princípios e regras próprias. Tal circunstância reclamará a adequação procedimental dos novos feitos recebidos pela Justiça do Trabalho, notadamente nas causas submetidas aos juizados especiais cíveis e federais. A partir do momento em que nos deparamos com a vigência da Emenda Constitucional 45, de 8 de dezembro de 2004, todos os feitos recebidos pela Justiça do Trabalho deverão ser enquadrados dentro da multiplicidade de procedimentos previstos para o Processo do Trabalho, sempre observado o sistema de isolamento dos atos processuais. VIII. Da prescrição a ser observada Questão que não demanda maiores ponderações está assentada no prazo prescricional a ser observado para as novas causas sujeitas à competência da Justiça do Trabalho. Falamos que a matéria não demanda maiores considerações, na medida em que a prescrição possui natureza jurídica de direito material. Desta feita, estando a regra do artigo 7º, 248 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO inciso XXIX, da Constituição Federal voltada às relações de emprego, não seria aplicável às novas relações jurídicas inseridas no espectro da competência da Justiça do Trabalho. Para estas causas, teremos que observar os prazos prescricionais previstos para as relações jurídicas materiais, podendo, portanto, reclamar incidência das regras dos artigos 205 e 206 do Código Civil. IX. Jus postulandi e os honorários advocatícios Nesse tópico, incumbe-nos analisar se às novas relações de trabalho, estranhas à relação de emprego, será aplicável o jus postulandi previsto no artigo 791 da Consolidação das Leis do Trabalho. Tal análise se faz imprescindível, haja vista a necessidade de aferirmos a potencialidade de condenações em verbas honorárias. A capacidade postulatória constitui a qualidade atribuída ao indivíduo de postular em juízo. Como regra geral referida capacidade constitui prerrogativa exclusiva dos advogados, consoante dicção do artigo 1º da Lei n. 8.906/94. Ocorre que, para determinadas demandas, a legislação ordinária estende a capacidade de postular em juízo, atribuindo-a a pessoas não inscritas nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil. É o que ocorre com a norma do artigo 791 da Consolidação das Leis do Trabalho, que atribui ao empregado e ao empregador a capacidade de reclamarem pessoalmente e acompanharem suas reclamações dentro do Poder Judiciário Trabalhista. Em resumo, o jus postulandi constitui a capacidade atribuída ao empregado e ao empregador de postularem em juízo sem que haja a necessidade de presença do advogado. Sabese que esta peculiaridade não constitui exclusividade da Justiça do Trabalho, sendo também verificada no âmbito dos juizados de pequenas causas e na impetração do habeas corpus, mas sempre dentro do princípio do devido processo legal. Nesse contexto nasce a necessidade de delimitação da extensão subjetiva do jus postulandi. Pois bem. Da exegese do artigo 791 da CLT, temos uma nítida restrição aos titulares do jus postulandi no âmbito da Justiça do Trabalho, na medida em que o texto consolidado estende referida capacidade apenas aos empregados e aos empregadores. Vale dizer que apenas aqueles que estejam envolvidos por uma relação jurídica de emprego é que serão alcançados pela norma em comento. Do contrário, não haven- NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 249 do entre os litigantes uma relação jurídica de emprego, ainda que no campo da manifestação do interesse abstrato do autor, não haveria que se falar em capacidade postulatória, sendo imprescindível a contratação de um advogado. Esta ilação é de grande relevância, na medida em que, com a ampliação da competência do Judiciário Trabalhista, teremos diversas demandas cujas relações jurídicas não tocam a esfera do contrato de trabalho. Assim, para referidas relações jurídicas, não haveria que se falar em jus postulandi, pressuposto que tornaria obrigatória a contratação do advogado. Releva destacar que o artigo 791 da CLT não estende a capacidade postulatória para as partes no âmbito da Justiça do Trabalho, mas apenas ao empregado e ao empregador. Para as demandas estranhas às relações de emprego, não há que se falar em incidência desta norma, na medida em que não há empregado ou empregador. Esta conclusão traz efeitos diretos sobre a questão atinente aos honorários advocatícios. Isto porque, o fundamento central para afastar a verba honorária, como efeito direto da sucumbência na Justiça do Trabalho, é construído, a partir da contratação facultativa do profissional, diante da norma do artigo 791 da CLT. Como corolário, para as demandas submetidas à nova competência do Judiciário Trabalhista que não estejam embasadas em uma relação de emprego, imprescindível será a contratação do advogado, emergindo a obrigação da parte sucumbente em arcar com os honorários advocatícios da parte vencedora, nas estreitas dicções do artigo 20 do Código de Processo Civil, aplicado de forma subsidiária ao Processo do Trabalho. X. Conclusões A par das considerações acima tecidas, podemos extrair as seguintes conclusões: a) Para a determinação da competência da Justiça do Trabalho, irrelevante se faz a análise da natureza jurídica da matéria que esteja sendo objeto do litígio, bastando apenas que sua gênese esteja assentada em uma relação de trabalho. Logo, a disposição do artigo 114, inciso I, da Constituição Federal não comporta enquadramento como sendo norma definidora de competência material. Na realidade, referido dispositivo constitucional institui um novo critério que deve ser observa- 250 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO do na determinação da competência do Poder Judiciário Trabalhista, qual seja, o critério laboral, que no corpo do presente texto definimos como competência laboral; b) As relações de trabalho pautadas pelo artigo 114, inciso I, da Constituição Federal devem ser compreendidas como sendo todas as relações intersubjetivas, de natureza eficacial ou básica, cujo objeto seja a prestação de serviço por pessoa física, em favor de alguém, que dele se beneficia, mediante retribuição, não havendo qualquer restrição quanto à sua natureza; c) O fato da relação de trabalho estar submetida às normas tutelares do Código de Defesa do Consumidor não afeta a competência da Justiça do Trabalho, na medida em que a relação jurídica de consumo possui natureza secundária, não alterando a relação jurídica de trabalho precedente; d) A alteração perpetrada pela Emenda Constitucional n. 45 trouxe supressão de competências materiais, tanto do Poder Judiciário Estadual quanto do Federal. Logo, todos os feitos que lá tramitam e que possuem a relação de trabalho como relação jurídica básica deverão ser encaminhados para o Poder Judiciário Trabalhista, decorrência própria da norma do artigo 87 do CPC; e) Os processos de execução baseados em título executivo judicial, provenientes de processos cognitivos e de natureza definitiva, não deverão ser encaminhados para a Justiça do Trabalho, ainda que no processo de conhecimento tenha sido discutida demanda envolvendo relação de trabalho. Isto porque a competência executória possui natureza funcional, não estando, portanto, abrangida pelas exceções do artigo 87 do CPC; f) Quanto aos títulos executivos extrajudiciais, considerando que para a determinação da competência não é observado o critério funcional, as execuções respectivas deverão ser encaminhadas para a Justiça do Trabalho, inclusive quanto às ações de execução de penalidades administrativas impostas pelas Delegacias Regionais do Trabalho; g) O Processo do Trabalho constitui o instrumento utilizado pela Justiça do Trabalho para a solução dos conflitos submetidos à sua jurisdição. Desta feita, para as novas demandas contempladas pela ampliação da competência do Judiciário Trabalhista, dever-se-á aplicar o Direito Processual do Trabalho, com a adequação procedimental respectiva, observando-se o prazo prescricional regente da relação material; NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 251 h) Considerando que o jus postulandi previsto no artigo 791 da CLT restringe a capacidade postulatória aos empregados e aos empregadores, para as novas demandas submetidas à competência da Justiça do Trabalho, e que não estejam embasadas em uma relação jurídica de emprego, imprescindível será a contratação de advogado, emergindo a obrigação da parte sucumbente em arcar com os honorários advocatícios da parte vencedora. 252 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO A Competência da Justiça do Trabalho e a Nova Ordem Constitucional Júlio César Bebber (*) 1. Considerações Preliminares A Emenda Constitucional n. 45 deu nova redação ao art. 114 da CF, de molde a ampliar (consideravelmente) a competência da Justiça do Trabalho. A novidade do assunto e a falta de um amplo debate antecipado imprime sérias dificuldades no seu trato. Isso, entretanto, tem pouca relevância a partir do instante em que compreendemos que o absoluto não existe; trata-se de uma miragem. Daí por que me sinto à vontade para declinar as primeiras impressões a respeito de alguns assuntos relacionados com o mencionado dispositivo constitucional (ora com abordagem técnica, ora tendo em conta simples opção política), ciente de que jamais estarão depuradas de imperfeições. 2. Critério da Competência da Justiça do Trabalho A competência(1), ou seja, a parcela da jurisdição que pode ser efetivamente exercida por um órgão do Poder Judiciário (CPC, art. 86)(2) é selecionada em razão da matéria, das pessoas, da função, do valor da causa e do território (ou foro)(3). (*) Juiz do Trabalho Titular da 2ª Vara do Trabalho de Campo Grande — MS. Professor de Direito Processual do Trabalho da Escola da Magistratura do Trabalho de Mato Grosso do Sul. Mestre em Direito do Trabalho. (1) “Competência é o conjunto de atribuições jurisdicionais de cada órgão ou grupo de órgãos, estabelecidas pela Constituição e pela lei” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, v. I. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 407). (2) “Isso significa que todos os juízes têm jurisdição, mas dentro de certos limites” (HOMMERDING, Adalberto Narciso. Vinte e Uma Lições de Teoria Geral do Processo. Porto Alegre: Fabris, 2003, p. 137). (3) As regras de competência acham-se inscritas na Constituição Federal, no Código de Processo Civil, na Consolidação das Leis do Trabalho, em leis federais extravagan- NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 253 O constituinte derivado, tendo em vista o interesse público de administração da justiça, estabeleceu a competência da Justiça do Trabalho mediante a adoção do critério material — ratione materiae(4) — (ou seja: segundo a natureza da relação jurídica de direito material afirmada)(5), limitando-a, em casos específicos, a certas pessoas que se apresentam para litigar. 3. Escopo Objetivo da Ampliação da Competência Antes de emitir considerações específicas sobre o art. 114 da CF cumpre-me definir o escopo objetivo da ampliação da competência da Justiça do Trabalho. A importância dessa definição é tamanha que a considero a pedra de toque para análise desse novo momento histórico. Dizer (como já ouvi) que o alargamento da competência da Justiça do Trabalho traduz distribuição de tarefas no Judiciário é pensamento simplista que ignora a inteligência do legislador e menospreza a importância (social e política) da reforma efetivada. tes, nas Constituições Estaduais, nos Códigos de Organização Judiciária dos Estados, em leis estaduais e nos Regimentos Internos dos Tribunais. (4) Especificamente no que pertine à relação de emprego, sempre que a pretensão deduzida em juízo apresentar o contrato de trabalho como antecedente e presupposto necessário da situação de fato, a competência será da Justiça do Trabalho. Nesse sentido, aliás, a orientação adotada pela Corte di Cassazione da Itália: ¾ ogni volta che il rapporto di lavoro si presenti come antecedente e presupposto necessario della situazione di fatto in ordine alla quale viene invocata la tutela in sede giudiziale (Cass. 2479/1992). (5) “A determinação da competência faz-se sempre a partir do modo como a demanda foi concretamente concebida ¾ quer se trate de impor critérios colhidos nos elementos da demanda (partes, causa de pedir, pedido), quer relacionados com o processo (tutelas diferenciadas: mandado de segurança, processo dos juizados especiais cíveis etc.), quer se esteja na busca do órgão competente originariamente ou para os recursos. Não importa se o demandante postulou adequadamente ou não, se indicou para figurar como réu a pessoa adequada ou não (parte legítima ou ilegítima), se poderia ou deveria ter pedido coisa diferente da que pediu etc. Questões como esta não influenciam na determinação da competência e, se algum erro dessa ordem houver sido cometido, a conseqüência jurídica será outra e não a incompetência. Esta afere-se invariavelmente pela natureza do processo concretamente instaurado e pelos elementos da demanda proposta, in statu assertionis” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, vol. I. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 417-8). 254 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Penso, então, que a ampliação da competência da Justiça do Trabalho deve-se à: a) exigência de acesso do jurisdicionado a uma estrutura judiciária mais ágil e a um processo simplificado; b) necessidade de uma nova postura na solução de certos conflitos, para os quais o juiz do trabalho está vocacionado. 4. Relação de Trabalho O novo art. 114 da CF menciona quatro vezes a expressão relação de trabalho (incisos I, VI, VII e IX) e, como não a define, caberá à doutrina e à jurisprudência fazê-lo. Os conceitos até então adotados na doutrina especializada não servem para o novo momento histórico(6). Isso porque se faz referência à expressão relação trabalho com escopo único de mencionar o gênero do qual a relação de emprego (contrato de trabalho) é espécie(7). Tendo em vista, então, o escopo objetivo da ampliação da competência da Justiça do Trabalho (supra, n. 3), parece-me adequado definir “relação de trabalho” como toda situação jurídica que emerge direta ou indiretamente do serviço prestado por pessoa natural ou jurídica para outra pessoa natural ou jurídica, mediante ou sem remuneração. (6) “A Ciência do Direito enxerga clara distinção entre relação de trabalho e relação de emprego. A primeira expressão tem caráter genérico: refere-se a todas as relações jurídicas caracterizadas por terem sua prestação essencial centrada em uma obrigação de fazer consubstanciada em labor humano. Refere-se, pois, a toda modalidade de contratação de trabalho humano modernamente admissível. A expressão relação de trabalho englobaria, desse modo, a relação de emprego, a relação de trabalho autônomo, a relação de trabalho eventual, de trabalho avulso e outras modalidades de pactuação de prestação de labor (como trabalho de estágio, etc.). Traduz, portanto, o gênero a que se acomodam todas as formas de pactuação de prestação de trabalho existentes no mundo jurídico atual. A relação de emprego, entretanto, é, do ponto de vista técnicojurídico, apenas uma das modalidades específicas de relação de trabalho juridicamente configuradas. Corresponde a um tipo legal próprio e específico, inconfundível com as demais modalidades de relação de trabalho ora vigorantes” (DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2002, p. 279-80). (7) Segundo Délio Maranhão, pode-se fazer “a seguinte distinção terminológica: ‘relação jurídica de trabalho’ é a que resulta de um contrato de trabalho, denominando-se ‘relação de emprego’ quando se trata de um contrato de trabalho subordinado. Quando não haja contrato, teremos uma simples ‘relação de trabalho’ (de fato)” (SÜSSEKIND, Arnaldo. MARANHÃO, Délio. VIANNA, Segadas. TEIXEIRA, Lima. Instituições de Direito do Trabalho. 21ª ed. São Paulo: LTr, 2003, p. 231). NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 255 Disse: a) situação jurídica, por ser expressão que abrange a relação de emprego e a prestação civil lato sensu, o que abarca, inclusive, a relação de consumo (CDC, art. 3º, § 2º); b) que emerge direta ou indiretamente do serviço, para expressar a situação jurídica que se origina da própria prestação de serviços (v. g., os honorários médicos derivam diretamente dos serviços médicos prestados), ou que a tem como antecedente e pressuposto necessário da situação de fato (v. g., a indenização fundada em erro médico se origina diretamente do fato lesivo que, por sua vez, tem a prestação de serviços médicos como antecedente e pressuposto necessário dessa situação de fato); c) prestado por pessoa natural ou jurídica para outra pessoa natural ou jurídica, porque a Constituição Federal não limita quem deve ser prestador e tomador de serviço; d) mediante ou sem remuneração, porque da prestação de serviço gratuito também podem surgir conflitos que devem ser solucionados. 5. Processamento das Causas Não-Trabalhistas Se um dos escopos do alargamento da competência da Justiça do Trabalho é a de proporcionar ao jurisdicionado uma estrutura judiciária mais ágil e um processo simplificado (supra, n. 3), outra não pode ser minha assertiva senão a de que às causas submetidas à Justiça do Trabalho, independentemente da natureza jurídica material litigiosa, aplicam-se as regras do processo do trabalho, salvo quanto às causas de procedimento especial, como, v. g., o mandado de segurança e o habeas corpus. Não faz o menor sentido transferir para a Justiça do Trabalho a solução de certas causas para que sejam aplicadas a elas as mesmas regras processuais que as regiam. Isso representaria o fim da especialização da Justiça do Trabalho, uma vez que é exatamente no sistema processual que reside essa especialização. O novo modelo constitucional não merece ser visto de modo simplista. Não podemos interpretar a profunda e importante transformação trazida com a Emenda Constitucional n. 45 como mera mudança — mudou por mudar. O alargamento da competência da Justiça do Trabalho repre- 256 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO senta muito mais que isso. Representa o progresso, a modernidade e o desejo de algo novo: uma nova estrutura, um novo processo e uma nova postura na solução de causas antes submetidas à Justiça Comum. As causas de competência da Justiça do Trabalho, portanto — salvo quanto às de procedimento especial —, devem observar todos os princípios, peculiaridades e técnicas do processo do trabalho (jus postulandi, procedimento ordinário ou sumaríssimo, sistema recursal — depósito recursal pelo tomador de serviços, etc.). 6. Litígios Sindicais Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores e entre sindicatos e empregadores (CF, art. 114, inc. III). Algumas observações são necessárias: a) dentro de um espírito interpretativo aberto, temos que o vocábulo “sindicatos” deve ser entendido como entidades sindicais, o que compreende, também, as federações e confederações; b) a competência da Justiça do Trabalho abrange as ações: (i) sobre representação sindical. A proliferação de sindicatos gera concorrência pela mesma representação. Desse modo, surgindo o conflito, caberá à Justiça do Trabalho solucioná-lo mediante critérios (quantitativos, qualitativos, institucionais, ideológicos, funcionais, estruturais) de fixação da representatividade(8); (ii) entre sindicatos. Entre as entidades sindicais podem ocorrer litígios, sendo mais comuns aqueles em que há disputa de arreca(8) REPRESENTAÇÃO SINDICAL. TRABALHADORES EM POSTOS DE SERVIÇO DE COMBUSTÍVEIS E DERIVADOS DE PETRÓLEO (FRENTISTAS). Organização em entidade própria, desmembrada da representativa da categoria dos trabalhadores no comércio de minérios e derivados de petróleo. Alegada ofensa ao princípio da unicidade sindical. Improcedência da alegação, posto que a novel entidade representa categoria específica que, até então, se achava englobada pela dos empregados congregados nos sindicatos filiados à federação nacional dos trabalhadores no comércio de minérios e derivados de petróleo, hipótese em que o desmembramento, contrariamente ao sustentado no acórdão recorrido, constituía a vocação natural de cada classe de empregados, de per si, havendo sido exercida pelos ‘frentistas’, no exercício da liberdade sindical consagrada no art. 8º, II, da CF (STF-RE-202.097-4-SP, 1ª T., Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU 4.8.2000). NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 257 dação ou rateio das receitas sindicais (contribuição confederativa, contribuição sindical, contribuição assistencial e contribuição associativa) e declaração de vínculo jurídico-sindical (v. g., entre sindicato e federação, em que aquele pretende a declaração judicial da sua representatividade profissional ou econômica, a fim de obter filiação junto a esta); (iii) entre sindicatos e integrantes da categoria — trabalhadores ou empregadores (v. g., ação anulatória de decisão assemblear ou de eleição sindical; ação de cobrança de receitas sindicais). 7. Danos Materiais e Morais Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho (CF, art. 114, inc. VI). As observações que julgo necessárias são as seguintes: a) como o dispositivo constitucional é aberto, abrange todos os danos originados pela própria prestação de serviços, ou que a tem como antecedente e presupposto necessário da situação de fato (v. g., danos decorrentes de erro médico e do acidente do trabalho); b) embora o dispositivo constitucional faça referência unicamente aos danos patrimoniais e morais (individual e coletivo)(9), não exclui outras modalidades de danos como, v. g., os danos: (i) estéticos.(10) A beleza natural da pessoa é o seu cartão de visita e, em alguns casos, o seu instrumento de trabalho. A lesão dura(9) “A vida humana não é apenas um conjunto de elementos materiais. Integram-na, outrossim, valores imateriais, como os morais. A Constituição empresta muita importância à moral com valor ético-social da pessoa da família, que se impõe ao respeito dos meios de comunicação social (artigo 221, inciso IV). Ela, mais que as outras, realçou o valor da moral individual, tornando-a mesmo num bem indenizável (artigo 5º, incisos V e X). A moral individual sintetiza a honra da pessoa, o bom nome, a boa fama, a reputação que integram vida humana como dimensão imaterial. Ela e seus componentes são atributos, em os quais a pessoa fica reduzida a uma condição animal de pequena significação. Daí por que o respeito à integridade moral do indivíduo assume feição de direito fundamental” (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 7ª ed., São Paulo: RT, p. 179). (10) Admissível a indenização, por dano moral e dano estético, cumulativamente, ainda que derivados do mesmo fato (STJ-REsp-40.259-RJ, 3ª T., Rel. Min. Waldemar Zveiter, 25.4.1994). 258 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO doura à beleza física (causadora do enfeiamento) caracteriza o dano estético; (ii) biológicos. É o dano causado à saúde, entendida esta como bem-estar psicofísico da pessoa. O empregador tem a obrigação de tutelar a integridade física e psíquica do empregado mediante a utilização de todos os instrumentos disponíveis pela ciência e pela técnica.(11) A lesão à saúde (bem-estar psicofísico) do empregado caracteriza o dano biológico. 8. Mandado de Segurança Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar os mandados de segurança (...) quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição (CF, art. 114, inc. IV). As observações que julgo relevante nesse item são as seguintes: a) passa a Justiça do Trabalho a ter competência para os mandados de segurança contra atos administrativos praticados no âmbito ou em decorrência da relação de trabalho;(12) b) é das Varas do Trabalho a competência para julgar mandados de segurança contra atos administrativos praticados no âmbito ou em decorrência da relação de trabalho, em que seja questionada manifestação ou omissão de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público. (11) A Corte di Cassazione da Itália responsabilizou o empregador pelo excesso de horas de trabalho imposta ao empregado que, por isso, veio a sofrer danos à saúde (sentença n. 8267/1997). (12) Como a Justiça do Trabalho, antes da reforma constitucional, julgava apenas as relações de emprego, admitia-se unicamente mandados de segurança contra atos jurisdicionais. É que na relação de emprego nenhuma das partes pratica ato de autoridade, ainda que uma delas seja órgão público. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 259 As Relações de Trabalho sem Vínculo de Emprego e as Novas Regras de Competência Márcio Túlio Viana (*) 1. Observação inicial ao Colega Convocado pelo nosso presidente Grijalbo para participar dessa coletânea, no meio de um dezembro cheio de atropelos, não tive tempo suficiente para estudar e amadurecer as idéias. Além do mais, estou muito longe de ser um especialista em Direito Civil, se é que sou especialista em alguma coisa. Minhas deficiências são grandes. Assim, as conclusões a que chego são bem simples, têm valor muito limitado e possivelmente contêm equívocos. De todo modo, espero que possam ter alguma utilidade para um começo de debate. A abordagem que faço aqui é bem genérica. É mais um convite para pensarmos juntos. Ficaram de fora várias questões — entre as quais as relações estatutárias no setor público, reincluídas à última hora no texto da PEC, mas cujo destino final, até agora, ninguém sabe. Naturalmente, complementações e críticas serão sempre bem-vindas. 2. Introdução Como nos ensina Oléa(1), o trabalho produtivo — voltado para as nossas necessidades — pode ser realizado por conta própria ou alheia. É por conta própria quando os frutos se conservam nas mãos do produtor, que os consome ou os transfere, mais tarde, para um outro. É por conta alheia quando os frutos vão sendo transferidos no exato momento em que estão sendo produzidos. Para aquele autor, até mesmo a empreitada se realiza por conta própria, pois é só num segundo momento, depois de concluído todo o (*) Juiz do Trabalho aposentado. Professor de Direito do Trabalho da UFMG. (1) Introdução ao Direito do Trabalho. Coimbra: Coimbra Edit., 1968, passim. 260 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO trabalho, que os frutos se deslocam de uma pessoa para outra. O seu objeto são os frutos e não a força-trabalho em si(2). Ao longo da História, até às vésperas da I Revolução Industrial, o trabalho por conta alheia, quase sempre, foi também forçado. Já o homem livre, quando trabalhava, fazia-o por conta própria. Na Grécia, o camponês lavrava a sua terra, ajudado pelo escravo. No Egito, o homem livre só cedia o seu braço — em troca de sandálias e azeite — quando as cheias do Nilo inundavam a sua lavoura e o faraó o chamava para construir pirâmides. Em Roma, por volta do século III, os altos tributos e a insegurança fizeram com que os pequenos proprietários trocassem as suas terras por proteção. Nascia o sistema do colonato, precursor da servidão medieval. No colonato, e depois na servidão, o homem era meio-livre, meioescravo. Daí por que o trabalho também se misturava: em alguns dias, por conta própria; em outros, por conta alheia. Quando por conta alheia, era gratuito, já que também forçado. Mais tarde, nas cidades medievais, foi nascendo outra mistura: o trabalho ao mesmo tempo livre e por conta alheia. Mas foi só com o sistema capitalista que essa contradição se acentuou, tornando-se mais radical(3) e massiva. No começo, o empresário distribuía a matéria-prima entre os camponeses e suas famílias. Mais tarde, vendo que era difícil controlá-los, e que o mercado exigia uma racionalidade crescente, resolveu reuni-los na fábrica. Tanto numa fase, como na outra, foi o contrato que legitimou o paradoxo do homem livre que se subordina. Mas talvez só tenha conseguido fazê-lo porque esse paradoxo era (e é) muito mais aparente que real. Se fosse realmente livre para vender (ou não) a sua liberdade, o trabalhador a manteria — inviabilizando o sistema. Desse modo, para que o sistema se perpetue, é preciso não só que haja liberdade formal para contratar, mas que falte liberdade real para não contratar(4). (2) Op. cit., p. 88. (3) É que, nas corporações, nem sempre havia liberdade de escolha do ofício; por outro lado, o trabalho por conta alheia não impedia que o aprendiz se tornasse mestre, e passasse a trabalhar por conta própria. (4) A propósito do poder no contrato de trabalho, cf. MELHADO, Reginaldo. Poder e Sujeição, São Paulo: LTr, 2003; e BACARAT, Eduardo Milléo. A boa-fé no Direito Individual do Trabalho, São Paulo: LTr, 2003, passim. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 261 E foi assim que — antes mesmo do contrato — a lei expulsou o camponês, enquanto a máquina vencia o artesão. Sem outros meios para produzir, além das próprias mãos, ambos aceitaram então se submeter. As relações de poder tinham se tornado menos visíveis, mas nem por isso menos fortes. O Direito do Trabalho é obra desses homens que se perderam, por já não terem o que perder. Mas talvez ele próprio não tivesse nascido, ou crescido tanto, não fosse aquela fábrica cada vez mais concentrada, com seus produtos previsíveis, as suas máquinas grandes e potentes e os seus trabalhadores em massa, homogêneos e estáveis. Foi essa espécie de fábrica que fez com que todos se sentissem iguais e se unissem. Foi ela que viabilizou a resistência operária, semente da qual brotariam as normas de proteção. Assim, mais que um subproduto do sistema, o Direito do Trabalho foi conseqüência de seu modo de ser, que chegou ao ápice nos “anos gloriosos” do capitalismo. E tanto foi assim que ele próprio se moldou à imagem e semelhança daquela fábrica, produzindo em massa as suas leis estáveis e iguais, os seus princípios fortes e rígidos, o seu contrato-padrão e sem prazo. E foi também assim que ele se apresentou com as suas regras minuciosas e abundantes, imitando o trabalho parcelado, uniforme e em série. Hoje, como sabemos, a nova fábrica se desconcentra, organizando-se em rede. Para isso, articula-se não só com outras menores e hipermodernas, mas também com empresas tayloristas e pequenas oficinas de fundo de quintal. Com freqüência, utiliza-se de empregados informais, ou empregados alheios. Às vezes, serve-se até do trabalho escravo. Mas o fenômeno mais original talvez não seja esse — e sim a utilização crescente de trabalhadores autônomos, não só falsos, mas também reais. De fato, o sistema vem aprendendo e ensinando como extrair maisvalia por tabela, usando cada vez mais o trabalho do artesão, do profissional liberal, do cooperado ou do estagiário. Todos eles, trabalhadores livres, exploram-se livremente para ganhar os contratos(5) . A razão é simples: já é possível produzir sem reunir. Graças aos avanços da técnica, a nova empresa pode controlar à distância o processo. Com isso, pode voltar — sem problemas — ao modelo primitivo, quando encomendava tecidos às famílias de camponeses. E é assim, (5) Para uma análise mais cuidadosa, cf. o nosso artigo “Terceirização e sindicato: um enfoque para além do direito”, in Revista LTr. São Paulo: LTr, outubro 2003. 262 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO mudando o seu modo de ser, que ela inviabiliza a resistência operária, neutralizando a principal fonte de criação do Direito. Como se dizia (e todos sabem), nem sempre esses trabalhadores à distância são empregados. Em muitos casos, realmente assumem os riscos do negócio. Seja como for, porém, devem sempre se adequar às rígidas diretrizes da empresa-mãe, da qual dependem economicamente. Desse modo, apenas em termos formais é que a fábrica se horizontaliza. Em termos reais, continua vertical, na medida em que detém sobre os parceiros invisíveis relações de domínio. Esse fenômeno é ainda mais presente, quando se trata de um trabalhador isolado, ou uma empresa familiar, ou ainda uma cooperativa de produção. Assim é, por exemplo, que “na criação de aves (...), a agroindústria estabelece os padrões de construção do aviário, fornece os pintinhos, as vacinas, a ração, a assistência técnica necessária e garante a recompra dos lotes de frangos prontos para o abate numa faixa de preços por ela estabelecidos (descontando, obviamente, os gastos que ela teve ao fornecer todos os insumos que acabamos de mencionar). Ao produtor rural cabe arcar com os custos de construção e manutenção dos aviários, com a compra dos equipamentos adicionais que se fazem necessários para proteger a saúde dos pintinhos, com a depreciação do patrimônio ou sua obsolescência, e com um trabalho intenso, de domingo a domingo, que envolverá inclusive toda a sua família”(6). Assim, o que vemos renascer é o trabalho por conta própria, mas com um novo traço. Na medida em que vai ocupando os espaços deixados pelo trabalho por conta alheia, contamina-se com os seus ares, tornando-se — também ele — uma mistura. Agora, já não é apenas o trabalhador livre que se faz empregado e, portanto, dependente; é o próprio autônomo que trabalha sem autonomia — não só técnica como econômica(7). Não é por outra razão que a doutrina italiana o tem chamado de “autônomo de segunda geração”(8). (6) GENNARI, Emilio. Op. cit., p. 46. (7) É claro que essa falta de autonomia é relativa e variável. Por outro lado, quanto ao aspecto econômico, é sempre bom notar que muitos dos atuais autônomos não o são por livre escolha — mas simplesmente porque estão desempregados. (8) PERULLI, P.; SABEL, C. “Rappresentanza del lavoro autonomo e coordinamento economico. Il caso degli enti bilaterali dell’artigianato”, in BOLOGNA, S.; FUMAGALLI, A. (org). Il lavoro autonomo di seconda generazione — scenari del postfordismo in Italia, Milão: Interzone, 1997, p. 249. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 263 De certo modo, é como se a relação de subordinação extrapolasse o plano empregador-empregado e os limites do vínculo de emprego, deslocando-se para a esfera empresa-empresa. É uma subordinação diferente, pois convive com o seu contrário, mas não deixa de expressar a mesma (e intensa) relação de poder. Pois bem. Para muitos, toda essa realidade multiforme e contraditória indica que estamos ainda numa fase de transição. No futuro, tudo se reordenará. Teremos apenas fábricas enxutas, automatizadas, com alguns técnicos de avental branco e outros tantos botões. O maior problema será gerir o ócio. Preferimos acreditar, porém, que o futuro já esteja presente; e que todas essas colagens do novo e do velho, tão naturais num mundo pósmoderno, tenham vindo para ficar. É desse modo que o sistema consegue reduzir custos, gerir incertezas e atender — com produtos sempre novos — aos múltiplos e cambiantes desejos que ele próprio semeia. E se a realidade, hoje, tem múltiplas faces, o Direito do Trabalho terá de refleti-las, para que possa, em seguida, refletir-se nelas — corrigindo as suas maiores distorções. Nesse sentido, terá mesmo de ser flexível, tal como a nova empresa tem sido; mas mantendo firme o seu princípio protetor, tal como ela faz com a sua lógica de acumulação. E para isso de três, uma: ou o Direito do Trabalho: (a) transforma em jurídica a dependência econômica, estendendo ao autônomo os direitos do empregado(9); ou (b) protege de forma diferenciada o trabalho por conta própria; ou (c) garante ao homem que trabalha, ainda que sem trabalho, uma existência digna. Tal como tem acontecido com a própria competência, que vem se alargando, é crescer para não morrer. A nosso ver, das três alternativas (que não necessariamente se excluem), a ideal é a terceira. Ela considera a realidade cambiante da vida do trabalhador, que hoje pode ser servente, amanhã pedreiro, depois camelô, de novo servente, em seguida aprendiz(10), no outro mês moto-boy e mais tarde, talvez, um alcoólatra de bar ou um malabarista de rua. Nessa perspectiva, o Direito do Trabalho serviria de costura a esses recortes de vida, com proteção variada e variável(11) . (9) A propósito, cf. MACHADO, Sidney. (“A subordinação jurídica na relação de trabalho: uma perspectiva reconstrutiva” (tese de doutorado em Direito do Trabalho, Curitiba: Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, 310 p., 2003, passim). (10) Ainda que, informalmente, fora da idade-limite. (11) Mais ou menos nesse sentido, por exemplo, o chamado “Relatório Supiot”. 264 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO No entanto, numa perspectiva mais próxima, ou menos idílica, as duas primeiras alternativas são também interessantes. E as novas regras de competência podem significar um primeiro passo, embora não se saiba ainda se para a frente ou para trás. 3. Um primeiro risco a ser enfrentado Diz o inciso I do novo art. 114 que cabe à Justiça do Trabalho julgar: “as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.” O problema é que, mais adiante, o inciso IX dá-lhe competência para: “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.” Pelo visto, houve uma distração geral. Ao se modificar a redação do inciso I, esqueceu-se de suprimir o inciso IX. De todo modo, como o texto está posto, resta interpretá-lo. A primeira pergunta que se faz é: haverá alguma diferença entre “ações oriundas” (inciso I) e “controvérsias decorrentes” (inciso IX) da relação de trabalho? Em outras palavras: haverá controvérsias que não sejam ações? É difícil imaginar essa possibilidade. Se a controvérsia vai a juízo, é porque há uma ação; se não há ação (como na jurisdição voluntária), também inexiste controvérsia. O único caso de controvérsia sem ação que nos vem à mente é aquele em que, frustrada a negociação coletiva, as partes vão a juízo, de comum acordo. Mas a hipótese foge ao comando do inciso IX, pois não está “na forma da lei”, e sim da própria Constituição, ou mais precisamente do § 3º, do mesmo artigo. Daí o risco, levantado pelo colega José Eduardo de Resende Chaves Júnior, de que, no futuro, os tribunais abram os olhos para o inciso IX, fechando-os para o inciso I. E tudo ficaria como antes. Naturalmente, embora possível de ocorrer, uma interpretação desse gênero seria absurda. É que, como lembrava, a regra do inciso IX já existia. Só veio a constar da emenda, porque a sua posição topográfica mudou. Ora, se uma norma preexistente entra em choque com a nova, é esta que prevalece. Trata-se de revogação tácita. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 265 Note-se que a norma mais antiga também serve para ajudar o intérprete a conhecer a mais nova. Como ensina Maximiliano, ela “exerce uma função semelhante à do elemento histórico e, assim, contribui para a exegese da moderna. Verifica-se o que foi que se pretendeu explicar, ou dilatar, e colhe-se deste modo alguma orientação para a descoberta do conteúdo e alcance da nova regra. Não se fica, entretanto, adstrito ao sentido da norma primitiva: o hermeneuta adquire a liberdade do historiador: investiga autonomamente; em torno do preceito vetusto procura elementos para demonstrar a razão de ser do mais moderno”(12). Nem se argumente que “a lei não contém palavras inúteis”. Como se sabe, o brocardo traz apenas uma presunção relativa: “Se de um trecho não se colige sentido apreciável para o caso, ou transparece a evidência de que as palavras foram insertas por inadvertência ou engano, não se apega o julgador à letra morta, inclinase para o que decorre do emprego de outros recursos aptos a dar o verdadeiro alcance da norma(13).” De resto, na lição de Canotilho, dentre os princípios que informam a hermenêutica constitucional estão o da máxima efetividade, segundo o qual se deve atribuir à norma o sentido que maior eficácia lhe dê; e o da força normativa da Constituição, que pelo qual se deve priorizar a solução que possibilita a sua atualização(14). 4. As relações excluídas e as incluídas Quais os tipos de trabalho que se excluem da nova competência? Em princípio, deve-se excluir todas as hipóteses de trabalho por conta própria — com a ressalva que faremos adiante. Assim, ficam de fora as hipóteses em que o trabalhador faz a sua obra e a consome, ou — num momento subseqüente ao de sua produção — transfere a sua propriedade, como acontece com o artesão da feira. É que, no primeiro caso, não há qualquer relação, muito menos jurídica; e, no outro, a relação não é de trabalho, mas de compra e venda ou qualquer outra que importe alienação do domínio. (12) Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio/São Paulo: Freitas Bastos, 1965, p. 275. (13) Idem, p. 263. (14) Direito Constitucional, Coimbra: Almedina, 1991, p. 235. 266 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Quais as relações incluídas na nova competência? A resposta exige algumas colocações mais genéricas. Como sabemos, o contrato de locação, no Direito Romano, compreendia três espécies: a locatio rei, a locatio operis faciendi e a locatio operarum. A primeira correspondia à locação de coisas; a segunda, à empreitada e a terceira, à locação de serviços. Em nosso Direito, a locação de serviços, na trilha da tradição romana, não distinguia o trabalho subordinado e o autônomo. Foi só mais tarde que a relação de emprego desgarrou-se das outras modalidades de prestação de serviços, tornando-se o núcleo do Direito do Trabalho. O novo Código Civil trocou a denominação “locação de serviços” por “prestação de serviços”, que já era a preferida pela doutrina. Nessa expressão genérica, Orlando Gomes, em obra clássica, já incluía os contratos de prestação de serviços stricto sensu, de trabalho eventual e de trabalho desinteressado (ou voluntário)(15). Ora, se nos lembrarmos dos pressupostos da relação de emprego — pessoa física, pessoalidade(16), subordinação, onerosidade e não-eventualidade — veremos que falta pelo menos um deles em cada um daqueles contratos. Assim é que, na prestação de serviços stricto sensu, está ausente o pressuposto da subordinação; no trabalho eventual, falta, naturalmente, a não-eventualidade; no trabalho voluntário, a onerosidade. Daí por que esses contratos criam relações de trabalho, mas não de emprego. Pois bem. Para efeito de competência da Justiça do Trabalho, até a pessoalidade(17) pode faltar. Já o pressuposto da pessoa física deve estar presente, pelo menos em princípio(18). Aliás, ele está implícito nos art. 593 e segs. do Código Civil, que tratam da prestação de serviços. (15) Contratos. Rio: Forense, 1986, p. 323. O autor incluía também o trabalho doméstico, mas este, como sabemos, já não se encontra regulado pela lei civil. (16) Em geral, a doutrina insere no pressuposto da pessoalidade não só o caráter intuitu personae da relação, no que diz respeito ao empregado, como também a sua qualidade de pessoa física. Já Mauricio Godinho Delgado, em seu excelente Curso de Direito do Trabalho (São Paulo: LTr, 2004, passim), prefere separá-los. Adotamos a sua lição. (17) No sentido estrito, utilizado por Delgado (ver nota supra). (18) A propósito de possíveis exceções, v. o item 5, infra. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 267 A propósito daqueles artigos, porém, é preciso observar que eles não esgotam as hipóteses de competência da Justiça do Trabalho. Aliás, o próprio Código Civil, ao tratar do contrato de prestação de serviços, ressalva leis especiais. E ele mesmo disciplina, em outros capítulos, hipóteses análogas, como é o caso do mandato. Pela mesma razão, também não podemos reduzir o campo de competência àqueles contratos arrolados por Orlando Gomes. Em outras palavras, a “relação de trabalho” pode não derivar de um contrato de prestação de serviços. Seria a empreitada uma relação de trabalho? Como vimos, Olea a inclui entre os trabalhos por conta própria. É que desse contrato decorre uma obrigação de resultado, não de meio. Ainda assim, o fato é que a execução do trabalho pelo empreiteiro (pessoalmente ou sob sua direção) é importante. Em certa medida, o contrato é celebrado intuitu personae. Só não é assim se prever, expressamente, a hipótese de subempreitada(19) . É por isso que a empreitada não se confunde com o contrato de fornecimento, em que importa apenas a entrega do produto final. De mais a mais, como sabemos, a própria CLT já incluíra a pequena empreitada na competência da Justiça do Trabalho. E se o fez, foi exatamente por considerar que se tratava de uma relação de trabalho. Não fosse isso, a norma seria inconstitucional(20). Pois bem. Sabemos que, até antes da emenda, alguns autores incluíam na competência da Justiça do Trabalho, apenas as empreitadas de pequeno valor. Outros entendiam que o importante é tratar-se de “operário ou artífice”, como diz literalmente a CLT. E outros, por fim, somavam os dois critérios. No entanto, diante dos termos da emenda, a única condição exigível para a competência será a presença de um operário ou artífice na relação. Pouco importa o valor estipulado para o trabalho. A mesma conclusão vale, naturalmente, se se tratar do trabalho intelectual, artístico ou técnico, que nem todos os autores incluem na empreitada(21). Ainda que se trate, por exemplo, do projeto de um grande arquiteto, a competência será da Justiça do Trabalho. (19) Nesse sentido, o colega e professor Manuel Cândido Rodrigues, doublé de juslaboralista e civilista. (20) É que o texto primitivo da CF, como se lembra, e já foi dito, permitia que a lei estendesse a competência nas hipóteses de “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho”. (21) Como é o caso de Orlando Gomes. 268 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Pergunta-se: será assim apenas na empreitada de lavor, ou também na mista, em que o empreiteiro entra com o trabalho e os materiais? Se a controvérsia envolver o trabalho, em si, penso que a resposta é afirmativa. Também na empreitada mista a competência será nossa. É verdade que essas conclusões (como quase todas as outras) podem ser questionadas. Pode-se argumentar, com razão, que a Justiça do Trabalho não foi criada para resolver questões como essas — envolvendo partes iguais. Tanto a sua estrutura, como o processo com o qual atua, o direito que aplica e até o perfil de seus juízes se relacionam com um certo tipo de conflitos, cujo traço marcante é a desigualdade entre as partes. O que a justifica, como Justiça Especial, não é tanto o fato-trabalho, mas a condição hipossuficiente do trabalhador. E esse seu papel poderá ser até inviabilizado pelo acúmulo daquelas outras ações. De outro lado, porém, pode-se observar que, se antes havia uma coincidência entre o empregado e o pobre, entre o operário e o trabalhador por conta alheia, o fato é que, com o passar do tempo, até as profissões liberais foram se proletarizando. As razões foram várias — desde o taylorismo, que separou o saber do fazer, até as próprias normas de proteção, que acabaram atraindo os antigos autônomos. Não foi por outra razão que a própria denominação “Direito Operário”, tão comum até o início do século XX, caiu em completo desuso. Além disso, não é tão certo que ações como aquelas sejam em número tão grande assim. E não se pode tomar como base de comparação as atuais reclamatórias trabalhistas. Se a Justiça do Trabalho, mesmo hoje, já conta com demandas em excesso, não é por lidar com uma relação de trabalho como outra qualquer, mas porque na relação com que lida: a) o salário, em regra, sucede ao trabalho, o que faz do patrão o devedor mais freqüente; b) esse devedor, ao contrário do que acontece na esfera civil (inclusive nas outras relações de trabalho), é a parte mais poderosa da relação, na medida em que tem em suas mãos a fonte de sobrevivência do credor — especialmente em países como o nosso, onde falta proteção ao emprego. Assim, também ao contrário do que acontece entre o dentista e o seu cliente, ou o taxista e o passageiro, o devedor-patrão pode tranqüilamente não pagar a conta. Em outras palavras: ao longo da relação de emprego, o Direito não se cumpre espontaneamente, pelo menos em termos integrais. Chega manco, torto ou faltando pedaços ao seu destina- NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 269 tário. Também por isso, as ações que provavelmente inundarão a Justiça do Trabalho serão as “relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização”, previstas no inciso VII. Na verdade, o ideal seria que a Justiça do Trabalho julgasse apenas as pequenas causas, dos pequenos trabalhadores e dos pequenos avisos prévios, pois são exatamente elas as mais importantes — já que podem envolver até um risco de vida para as famílias mais pobres. Mas — até por uma questão de coerência — o critério teria de ser o mesmo, tanto para as relações de emprego, como para o trabalho autônomo. A mesma razão invocada para excluir as relações de trabalho entre o arquiteto e o seu cliente teria de servir para afastar as lides de executivos-empregados e jogadores de futebol. Além disso, diminuir por via hermenêutica ou mesmo legal o texto da Constituição, especialmente num contexto precarizante, é sempre um risco — pois cria uma espécie de precedente para futuras novas investidas, em outros campos. Seja como for, a grande importância das novas regras não diz respeito a essas situações — que, como disse, talvez nem sejam tão freqüentes — mas aos novos autônomos sem autonomia, especialmente aos que servem à empresa em rede. É o que veremos a seguir. 5. A nova competência e o trabalho autônomo individual Antes, normalmente, a opção era ser empregado ou passar fome. Só os que tinham certa condição financeira, ou um dom muito especial, atreviam-se a procurar uma terceira via — o trabalho por conta própria. O próprio movimento sindical valorizava a relação de emprego, que era o seu ambiente natural. Aliás, várias das utopias que rompiam com o sistema, como a de Marx, viam no trabalho por conta alheia não só o lugar da exploração, mas a semente da revolução. Daí por que a imagem do trabalhador autônomo era às vezes associada com a de um homem alienado e egoísta(22). Hoje, para um número crescente de trabalhadores, a única opção possível tende a ser o trabalho autônomo. Mas — como vimos — com uma diferença: ele passa a se articular, muito mais do que antes, com a (22) A propósito, cf. BIHR, Alain. Da grande noite à alternativa, São Paulo: Boitempo, passim. 270 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO grande empresa, que o utiliza em lugar do trabalho subordinado. E se ela o faz, é exatamente porque já consegue, de algum modo, controlá-lo à distância — não só do ponto de vista técnico, mas econômico. Daí a grande importância da reforma. Ela oferece pelo menos a Justiça do Trabalho a esse homem que já não tem sequer a condição formal de explorado, que lhe garantia a aplicação da CLT. Pergunta-se: será possível avançar um passo além, e aproveitar a oportunidade para se lhe deferir alguns (ou todos os) direitos trabalhistas? Ou, formulando a questão de outro modo será possível considerar empregados alguns desses autônomos e, dando um passo adiante, proteger também os que não fossem empregados? 1. A primeira questão nos remete ao principal pressuposto da relação de emprego — a subordinação. Se mais uma vez observarmos a História, veremos que ao longo do tempo, e até recentemente, tanto o conceito de subordinação, como o de salário, foram se alargando. Pessoas antes não tidas como empregadas (como trabalhadores em domicílio, por exemplo), e parcelas antes não consideradas salariais (como gratificações, prêmios e fringe benefits) entraram para a órbita do Direito do Trabalho, que reproduzia o movimento includente da empresa e do próprio sistema. Hoje, a tendência se inverte nos dois planos. Não só a lei, em alguns casos, passa a ignorar a subordinação, enquanto critério de inclusão (caso do estagiário, por exemplo), como a prática jurisprudencial, pouco a pouco, parece dar importância crescente ao ajuste meramente formal da autonomia. Ao mesmo tempo, tanto a lei como a jurisprudência vão excluindo a natureza salarial de várias parcelas. Esse movimento excludente do Direito reflete igual tendência do sistema que — como vimos — hoje transforma empregados em não empregados, reais ou falsos. E essa tendência não poupa, sequer, alguns países avançados como, por exemplo, a Itália de Berlusconi. Com efeito. Há já bastante tempo, o Código de Processo Civil daquele país estabeleceu o mesmo rito das ações trabalhistas para as hipóteses em que a “colaboração” do prestador se fazia de forma continuativa e coordenada, ainda que não subordinada. Mais ou menos a partir dos anos 90, essa regra começou a ser utilizada como suporte para legitimar — na prática — os chamados “contratos de NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 271 colaboração continuada”, ou mais sinteticamente “co.co.co.”, que, na observação irônica de uma autora(23), fazia lembrar galinhas de granja. Esses contratos — que não asseguravam praticamente nenhum direito além do salário pactuado e envolviam muitas vezes trabalho subordinado — multiplicaram-se por todo o país, como uma espécie de praga. Em algumas atividades (como o magistério, por exemplo) e em algumas faixas etárias (todos os jovens, exceto quando operários) tornaram-se virtualmente obrigatórios(24). Desse modo, longe de traduzir um aumento, o famoso trabalho parassubordinado implicou uma redução no conceito de subordinação. Só mesmo restringindo o significado daquela palavra foi possível criar, em seguida, um terceiro gênero, capaz de absorver todos aqueles trabalhadores fronteiriços que — de outro modo — seriam considerados empregados. Pois bem. A nosso ver, essa é uma boa oportunidade para tentar inverter essa tendência, entre nós, (re)construindo o mesmo conceito, de uma forma mais ampla ainda que no passado. Para isso, será preciso (re)valorizar não só a dependência econômica, como a integração da atividade do prestador na atividade da empresa, tema tratado com maestria por Ribeiro de Vilhena(25). 2. A segunda questão nos remete não às diferenças, mas aos pontos de semelhança entre o trabalho por conta própria e o trabalho por conta alheia. Com isso, quero chamar a atenção dos Colegas para o fato de que, na essência, as hipóteses de prestação de serviços se tocam de perto com o contrato de trabalho. Até a subordinação pode estar presente, como em certas hipóteses de trabalho eventual ou voluntário. Aliás, é o que também acontece no contrato de estágio, que poderíamos incluir naquele rol de Orlando Gomes. Exatamente por isso é que a lei civil imita, em várias situações, a trabalhista — ou vice-e-versa (26) — prevendo, por exemplo, limites (23) Roberta Bortone em artigos e conferências. (24) Há cerca de dois anos, o governo conservador de Berlusconi transformou quase todas as hipóteses de “co.co.co.” em “trabalhos a projeto”, que na essência precarizam do mesmo modo a situação dos trabalhadores fronteiriços e mesmo alguns que tendencialmente seriam considerados empregados. (25) Relação de Emprego, São Paulo: LTr, 2002, passim. (26) Na verdade, foi a civil que veio antes, no tocante aos exemplos citados a seguir. 272 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO máximos para a prestação de serviços a termo, aviso prévio na hipótese de não haver prazo e a resolução do contrato por justa causa. Mas a própria doutrina civilista vai além, admitindo alguns implantes tipicamente trabalhistas na prestação de serviços. O saudoso mestre mineiro Caio Mário da Silva Pereira dá um exemplo: “Ocorre (...) o dever de proteção e segurança, mesmo fora do campo do Direito do Trabalho”(27). Como, hoje, as fronteiras entre aquelas duas formas de trabalho estão se diluindo, podemos ensaiar novos passos na mesma direção. Naturalmente, trata-se de uma tarefa difícil, mas não impossível. Como ferramentas, poderíamos utilizar não só o princípio da isonomia, como também — mais uma vez — os da máxima efetividade e da força normativa das Constituições, já mencionados supra(28). A propósito, é interessante notar que, quando a CLT deu competência aos juízes do trabalho para a pequena empreitada, vários autores passaram a defender a idéia de que tais direitos seriam os mesmos dos empregados. Esse ponto de vista, embora minoritário, parte de uma visão mais global, ou mais unitária, da ordem jurídica; e pode nos ajudar a usar o processo quase às avessas do modo tradicional, servindo de instrumento não apenas de efetivação, mas de produção do direito material. 6. A nova competência e as cooperativas de produção Vimos que a relação de trabalho pode conter a empreitada — mas, por outro lado, envolve pessoas físicas. Ainda assim, talvez seja possível, com novo esforço de interpretação, estender a competência da Justiça do Trabalho para alguns contratos intermediados por pessoa jurídica. Suponhamos, por exemplo, que uma grande empresa, fabricante de bolsas, queira terceirizar(29) para uma cooperativa de produção uma (27) Instituições de Direito Civil, vol. III. Rio: Forense, 1999. (28) Ainda a propósito do tema, cf. a dissertação de mestrado da colega mineira Rosemary de Oliveira Pires, que parte dos termos amplos contidos na Constituição (“São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais...”) para concluir que se deve assegurar aos cooperados aquele mesmo patamar mínimo que é garantido aos empregados. Embora divirja da autora no tocante às cooperativas de mão-de-obra (que me parecem sempre ilícitas, por natureza, e prejudiciais ao trabalhador), a idéia, como um todo, merece ser discutida. (29) É o que podemos chamar de “terceirização externa”, e que os economistas chamam de subcontratação ou out-sourcing. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 273 parte de seu ciclo produtivo. Para isso, faz uma espécie de licitação. Para ganhar o contrato, a cooperativa comprime ao máximo os seus custos, precarizando as condições do trabalho para além do limite do razoável — e desatendendo ao princípio da remuneração diferenciada (naturalmente, para mais), proposto por Delgado(30). A meu ver, seria interessante que a Justiça do Trabalho atuasse nessas hipóteses, no mínimo para garantir segurança e higiene no trabalho. Com isso, talvez consiga evitar que a megaempresa externalize selvagemente a própria concorrência, deflagrando uma espécie de guerra entre as contratadas. Haveria uma espécie de regulação indireta, inibindo contratos leoninos — que acabam provocando a auto-exploração do trabalho. Como justificar essa competência, em termos jurídicos? Como sabemos, entre a cooperativa e os seus membros, a relação é societária — mas implica, ou pode implicar, uma prestação de serviços. Na verdade, quase sempre, a cooperativa é mera intermediária entre o trabalhador e a empresa em rede. É esta que distribui as encomendas, traça as diretrizes da produção, fixa os critérios de qualidade total e recebe em sua porta o produto que ela própria fazia, ou poderia ter feito. E o que acontece em relação à cooperativa, também ocorre em relação à empresa que encomenda os produtos. O que ela faz, no fundo, é apenas expulsar e em seguida reaproveitar os trabalhadores que tinha (ainda que não as pessoas, naturalmente), nas funções que se ligam diretamente ao seu ciclo produtivo. Em substância, portanto, o que há é uma relação de trabalho, ainda que com a mediação da cooperativa e sem um contrato formal que a expresse. Mas em face de quem a ação seria proposta? Aparentemente, em face da cooperativa. Mas nesse caso o problema não se resolveria, pois a reparação viria do fundo comum — vale dizer, dos próprios cooperados, inclusive o autor da ação. Por isso, o ideal será responsabilizar a grande empresa, estendendo à hipótese as regras do grupo econômico (art. 2º, § 2º, da CLT). Mas pergunta-se: como utilizar essas regras da CLT, se não se trata de relação de emprego? (30) DELGADO, Mauricio Godinho. Op. cit., passim. 274 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Para contornar o problema, bastaria aplicar diretamente a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, como sugere o colega Luiz Otávio Linhares Renault (31). Mas surge então outra pergunta: de que serviria uma ação como essa, se o cooperado (ou o autônomo isolado) não tem direitos trabalhistas? Teríamos de seguir a mesma trilha já exposta no item acima. Tarefa mais difícil ainda, mas igualmente possível. Outra idéia seria de tentar enquadrar a hipótese no Enunciado n. 331 do TST, como já vem fazendo o Ministério Público do Trabalho, em algumas ações recentes(32). 7. Outras possibilidades mais tranquilas Com menos dificuldade, será possível estender a competência da Justiça do Trabalho para hipóteses de responsabilidade pré ou pós-contratual — que muitos já consideravam nossa(33). No tocante ao processo, uma possibilidade real é o aproveitamento do mesmo rito para as novas demandas. Até algumas regras de direito material que se refletem no processo — como a exigência de recibo para provar o pagamento — podem e devem ser utilizadas, especialmente no caso de autônomos sem autonomia. Também para eles, as regras relacionadas a custas e honorários advocatícios devem prevalecer. Mas talvez seja o caso de não as aplicarmos nas grandes causas. Ensaiando um exercício de futurologia, talvez se possa concluir que a Justiça do Trabalho — bem mais acessível, em todos os sentidos — deverá se tornar muito mais presente que a Comum no setor informal da economia. Nesse campo, o número de processos tende, pois, a aumentar. É também possível que muitas dessas demandas em potencial mudem de natureza: o mesmo trabalhador que antes iria à Justiça Comum, pleiteando verbas de natureza civil, agora passa a pedir verbas trabalhistas, seja porque o setor de atermação (onde ainda existe) o instrui, seja porque o seu advogado tenderá a ser trabalhista. (31) Da qual a própria figura do grupo econômico, como vem regulada na CLT, é uma forma de aplicação. (32) Na verdade, o Enunciado trata da terceirização interna, mas no fundo o problema é o mesmo — e igual deve ser a solução. (33) Nesse sentido, a colega Wilméia da Costa Benevides (“A Responsabilidade PréContratual no Direito do Trabalho”, dissertação de mestrado, UFMG, 1999). NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 275 8. O risco de um passo atrás Num contexto em que toda inovação, mesmo com viés progressista, tende a ser lida ao contrário, a nova competência sobre relações de trabalho traz pelo menos dois riscos. O primeiro — já discutido — é o da inércia. Pode ser, realmente, que o inciso IX acabe inviabilizando o I. O segundo, ainda mais grave, é o de acentuar aquela nova tendência de se jogar os casos de fronteira na vala comum da prestação de serviços. Com efeito. Sabendo que o reclamante (que se diz empregado) pode continuar se utilizando da Justiça do Trabalho, ainda que perca a primeira causa (para pedir reparações civis), alguns colegas menos observadores podem se sentir mais tranqüilos e (ainda que inconscientemente) optar pela via mais fácil. Naturalmente, todos esses riscos e dúvidas nos tornam mais responsáveis(34) . Daí a necessidade de aprofundar os debates sobre o tema. (34) A propósito da função social do juiz e do Direito, cf., por todos, SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. O Direito do Trabalho como Instrumento de Transformação Social, São Paulo: LTr, 1999. 276 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO O Esmorecimento do Poder Normativo — Análise de um Aspecto Restritivo na Ampliação da Competência da Justiça do Trabalho Marcos Neves Fava (*) I. Introdução Promulgada em oito de dezembro de 2004, a Emenda Constitucional 45 marca, historicamente, a implementação de mais de uma década de debates para realização da chamada “Reforma do Judiciário”. Como bem aduziu, na cerimônia de promulgação, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Nélson Jobim, não é a melhor ou a pior, mas a reforma feita pelo Povo Brasileiro, por meio da dialética possível e típica do processo legislativo. É, agora, uma realidade, que necessita ser apreendida — e aprendida — pelos militantes do direito, que tomarão posse, paulatinamente, dos efeitos provocados pela alteração do Texto Maior. Da enorme gama de matérias relevantes que decorrem da modificação da Carta Magna, a que diz respeito à ampliação da Justiça do Trabalho irrompe, inegavelmente, uma verdadeira revolução. Com efeito, a introdução da expressão “relação de trabalho” (artigo 114, I, da Nova Constituição), como vetor da competência da Justiça Especializada provoca transformações radicais – de raízes fundas, etimologicamente – no universo do Direito do Trabalho, do Processo do Trabalho e da Justiça do Trabalho. Vozes iniciam suas lições, desde já, dividindo-se entre a interpretação mais abrangente possível de tal ampliação e a restritiva, parcela de opinião para a qual pouca, ou nenhuma, modificação houve. Na certeza de que tal modificação, a par das novas atribuições contidas nos demais incisos do artigo 114, implica alargamento majestoso no (*) Juiz do Trabalho Substituto na 2ª Região. Mestrando em Direito do Trabalho pela USP. Professor de Processo do Trabalho na Faculdade de Direito da Fundação Armando Álvares Penteado — FAAP. Diretor de Cultura e Ensino da ANAMATRA — Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, no biênio 2003-2005. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 277 objeto de atenção da Justiça do Trabalho, reserva-se a este breve artigo um aspecto restritivo da Emenda Constitucional recém-promulgada. Com efeito, a restrição encontra-se no § 2º do art. 114, que tem, agora, a seguinte dicção: “Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente.” Que se compara com a anterior, vazada assim: “Recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem, é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo, podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho.” Vislumbra-se, na modificação, sensível redução do Poder Normativo da Justiça do Trabalho, que representa, para alguns, o nó central do sistema de proteção do trabalhador instituído pelo ordenamento pátrio. A Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho — ANAMATRA — reforça sua vocação pública de participação ativa na construção de uma sociedade mais justa, tomando a iniciativa de fazer publicar este livro, com estudos acerca do tema. Em razão da premência do tempo, o presente artigo, que tem por objeto a configuração do poder normativo, ante a nova ordem constitucional, não ultrapassa a barreira das ponderações preliminares. II. Poder normativo A clássica divisão das atribuições do poder, lançada por Aristóteles, em sua Política, e detalhada por Montesquieu, no “O Espírito das Leis”, impõe a visão moderna da organização do Estado, separando-se as funções estatais por sua atribuição a um dos três Poderes, que funcionam intimamente ligados, mas como órgãos autônomos e independentes. Registre-se que a idéia de “tripartição dos poderes” merece crítica, porque o poder, em si, é uno e indivisível; as funções, sim, dividem-se, segundo a vocação de cada órgão, definindo-se como “um modo particular e caracterizado de o Estado manifestar sua vontade”(1). (1) BASTOS, Celso Ribeiro de. Curso de Direito Constitucional, 18ª ed., São Paulo: Saraiva, 1997, p. 340. 278 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO O sistema de divisão das funções entre os órgãos do Estado estabeleceu-se nas Constituições de quase todo o mundo, associando-se à idéia de um engenhoso mecanismo de pesos e contrapesos, como explica Dalmo de Abreu Dallari: “Segundo essa teoria, os atos que o Estado pratica podem ser de duas espécies: ou são atos gerais ou são especiais. Os gerais, que só podem ser praticados pelo poder legislativo, constituem-se na emissão de regras gerais e abstratas, não se sabendo, no momento de serem emitidas, a quem elas irão atingir. Dessa forma, o poder legislativo, que só pratica atos gerais, não atua concretamente na vida social, não tendo meios para cometer abusos de poder nem para beneficiar, nem para prejudicar a uma pessoa ou a um grupo particular. Só depois de emitida a norma geral é que se abre a possibilidade de atuação do poder executivo por meio dos atos especiais. O executivo dispõe de meios concretos para agir, mas está igualmente impossibilitado e atuar discricionariamente, porque todos os seus atos estão limitados pelos atos gerais praticados pelo legislativo. E se houver exorbitância de qualquer dos poderes surge a ação fiscalizadora do poder judiciário, obrigando cada um a permanecer nos limites de sua respectiva esfera de competência”(2). Adotando o mecanismo referido, por ordem constitucional, os poderes são, entre nós, “independentes e harmônicos entre si” (artigo 2º, Constituição Federal) e tal fundamento aquilata-se pela qualidade de cláusula pétrea, consoante estabelece o artigo 60, § 4º, III, da Carta Maior. Ao Executivo incumbe a chefia de Estado, a chefia de governo e os atos de administração, enquanto ao Legislativo atribui-se o dever de legislar e fiscalizar, contábil e financeiramente, o Executivo, encarregando-se, o Judiciário, da atividade de dizer o direito aplicável ao caso concreto, para a solução das lides que lhe são apresentadas. A Constituição Federal estatui, entretanto, para os mesmos poderes, funções que não lhe são características, como se dá com o julgamento do Presidente da República pelo Senado Federal (artigo 52, I) ou quando o Legislativo dispõe sobre sua organização, o provimento de cargos e a atribuição de remuneração e férias (atividades típicas do Executivo); o Executivo legisla por meio das medidas provisórias (artigo 62) ou das leis delegadas (artigo 68), cria e extingue cargos (artigo 84, VI) e julga os litígios administrativos, no âmbito de sua atuação; o Judiciário, por fim, organiza-se admi(2) DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da Teoria Geral do Estado, 16ª edição atualizada e ampliada. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 184-185. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 279 nistrativamente, ao conceder licenças, férias e estruturar seu quadro funcional (medidas típicas do Executivo) e legisla, quando, por força do artigo 96, I, a, cria seus regimentos internos. Daí considerar-se que cada um dos poderes da República realiza funções típicas ou atípicas(3). Ocorrerá o exercício destas últimas apenas quando qualquer dos Poderes receberem expressa autorização do poder constituinte originário, como nos exemplos referidos no parágrafo anterior. Como pondera Walter Ceneviva(4), a delegação de funções não típicas constituiu solução inevitável, vez que o funcionamento estanque de cada Poder, exercendo exclusivamente suas atividades constitucionais ordinárias, não seria suficiente a atender as demandas sociais. Por se tratar de desvio excepcional dos trilhos da organização constitucional do Estado, a referida expressa atribuição deve surgir em situações “muito próximas do inevitável”(5), evitando-se promiscuidade arriscada e comprometedora(6) da independência dos Poderes. Uma das expressivas exceções ao método de organização estatal da tripartição de poderes coincide com o “poder normativo” atribuído à Justiça do Trabalho para decisão dos litígios coletivos. Embora a doutrina assinale sua instituição na Constituição Federal de 1937(7), a primeira Carta Política(8) que concebe a jurisdicionalização da Justiça do Trabalho, a de 1946, foi a que trouxe, expressamente, a autorização de deslocamento da competência legislativa, de forma específica, para o Judiciário, na solução de conflitos coletivos, in verbis: “Artigo 123 – Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregados e empregadores, e as (3) LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 7ª ed., revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Método, 2004, p. 191. (4) CENEVIVA, Walter. Direito Constitucional Brasileiro, 2ª ed., ampliada. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 40. (5) PINTO, José Augusto Rodrigues. Direito Sindical e Coletivo do Trabalho, 2ª ed., São Paulo: LTr, 2002, p. 372. (6) Walter Ceneviva, op. cit, p. 40: “o princípio da tripartição ainda se mostra útil à democracia, mas tem encontrado sérios óbices para o cumprimento de sua finalidade quando o sistema verificador da ação dos poderes e o equilíbrio entre eles é apenas formal, jurídico, mas abstrato, pois um dos Poderes (em geral o Executivo) domina os demais”. (7) HINZ, Henrique Macedo. O Poder Normativo da Justiça do Trabalho. São Paulo: LTr, 2000, p. 51. (8) Registre-se que, antes da Constituição de 1946, o Decreto-lei n. 1.237 de 1939 outorgava aos órgãos, então administrativos de solução dos conflitos trabalhistas, o poder de criação de normas. 280 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO demais controvérsias oriundas das relações do trabalho regidas por legislação especial. § 1º Os dissídios relativos a acidentes do trabalho são da competência da Justiça Ordinária. § 2º A lei especificará os casos em que as decisões, nos dissídios coletivos, poderão estabelecer normas e condições de trabalho”(9). A Constituição Federal de 1967 manteve idêntica redação, no primeiro parágrafo do artigo 134: “§ 1º A lei especificará as hipóteses em que as decisões nos dissídios coletivos poderão estabelecer normas e condições de trabalho”. Com a Emenda Constitucional 1, de 1969, a matéria deslocou-se para o § 2º do artigo 142, com idêntica redação. Não comporta este ligeiro estudo a análise das controvérsias, já superadas historicamente, sobre o impedimento de delegação da função típica — objeção levantada por Pontes de Miranda(10) — ou sobre a solução encontrada pelos Tribunais para aplicá-lo, mesmo em face de lei específica que desenhasse as hipóteses de cabimento, nos termos da Constituição. Com efeito, a história já demonstrou superação dessas objeções e o poder normativo grassa, há décadas, estabelecendo normas e condições de trabalho, com fulcro no processo introduzido pela Consolidação das Leis do Trabalho, a partir do artigo 856. Importa ver, desde logo, que a autorização constitucional de transferência do poder legiferante para o Judiciário – em matéria laboral e diante da existência de conflito coletivo – vem fundada na expressão “estabelecendo normas”. Estabelecer, ensina-o Aurélio, é “criar, instituir, fundar”(11). O cerne da autorização constitucional inculca-se no verbo estabelecer (12), que se traduz pelo poder criativo do instituto em análise. (9) Disponível em www.presidenciadarepublica.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituicao46.htm acessado em 30 de dezembro de 2004, sem grifos. (10) A tese de Pontes de Miranda e sua refutação encontram-se bem alinhadas no artigo “Pontes de Miranda e o Poder Normativo dos Tribunais do Trabalho” de Orlando Teixeira da Costa, in Revista da Academia Nacional de Direito do Trabalho, São Paulo: LTr, 1991, vol. 1, p. 193. (11) HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque de. Auríelo Século XXI — o Dicionário da Língua Portuguesa, 3ª ed., totalmente revista e ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 825, segundo sentido do vocábulo. (12) No que, aliás, não se afasta literalmente de sua origem na “Carta Del Lavoro” de Benito Mussolini, Lei 1926/563, artigo 13. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 281 Define-se o poder normativo como aquele “constitucionalmente conferido aos Tribunais Trabalhistas de dirimirem os conflitos coletivos de trabalho mediante o estabelecimento de novas e mais benéficas condições de trabalho, respeitadas as garantias mínimas já previstas em lei”(13). Ou, como leciona José Augusto Rodrigues Pinto(14): “é a competência determinada a órgão do poder judiciário para, em processo no qual são discutidos interesses gerais e abstratos, criar norma jurídica destinada a submeter à sua autoridade as relações jurídicas de interesse individual concreto na área da matéria legislada”. De sua indiscutível natureza jurisdicional, segundo Octavio Bueno Magano(15), emana a sentença normativa, que é, como sintetiza Mauricio Godinho Delgado(16) “ato-regra (Duguit), comando abstrato (Carnelutti), constituindo-se em ato judicial (aspecto formal) criador de regras gerais, impessoais, obrigatórias e abstratas (aspecto material). É lei em sentido material, embora preserve-se como ato judicial, do ponto de vista de sua produção e exteriorização”. O poder normativo pode, ainda, ser concebido como uma forma de integração do direito, como faz Pedro Vidal Neto(17), ampliando a atividade integradora de intérprete que exerce o Juiz nos dissídios coletivos, para que a eqüidade funcione como um meio de preenchimento de lacunas, nos dissídios coletivos. Nestes termos: “A atividade judiciária não se reduz à subsunção lógica e silogística, mas envolve a criação de normas jurídicas, que se desenvolve na aplicação e na interpretação do direito. Resumidamente pode-se lembrar que o juiz não se exime de julgar, alegando a inexistência de norma jurídica adequada ao caso. Cabe-lhe descobrir a regra apropriada, mediante mecanismos de integração do direito, i.e., recorrendo à analogia, aos princípios gerais do direito e à eqüidade. Desse modo, são supridas as lacunas do direito”. Esta peculiar forma de solução dos conflitos coletivos adotada pelo Brasil encontra-se, de há muito, no cerne de acirrado debate sobre a (13) MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva, Processo Coletivo do Trabalho, 2ª ed., São Paulo: LTr, 1996, p. 13. (14) Direito Sindical e Coletivo do Trabalho, 2ª ed., São Paulo: LTr, 2002, p. 370. (15) “O Poder Normativo da Justiça do Trabalho” in Revista LTr, São Paulo: LTr, setembro de 1991, volume 55, n. 9, p. 1.027. (16) Direito Coletivo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2001, p. 33. (17) Poder Normativo da Justiça do Trabalho. São Paulo: LTr, 1983, p. 156. 282 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO necessidade de sua manutenção. Relembra José Carlos Arouca(18) que, na história, o poder normativo antecipou o conteúdo das convenções e acordos coletivos: “As decisões da Justiça do Trabalho determinavam o conteúdo das poucas convenções, que Cid José Sitrângulo desvendou através do tempo: No período de 1947 a 1952, eram apenas 5 cláusulas, três altamente restritivas: a) aumento salarial (vez ou outra por faixas salariais); b) compensação dos aumentos concedidos na vigência do dissídio anterior; c) exclusão dos abonos; d) exclusão dos repousos remunerados; e) condicionamento do reajuste à assiduidade. Adiante, no período de 1953 a 1964, o avanço foi insignificante: a) reajustamento salarial; b) aplicação proporcional para os empregados admitidos após a data-base; c) piso salarial; d) teto de aumento; e) compensação dos aumentos anteriores à data-base; f) condicionamento do reajuste à capacidade econômica da empresa, ou sua capacidade financeira, ou ainda a sua capacidade econômico-financeira. Assim, se para os trabalhadores o piso foi bom, ruim foram as demais cláusulas. No período de 1965 a 1976, até onde chegou o levantamento, os acréscimos foram: a) fornecimento de comprovantes de pagamento; b) fornecimento gratuito de uniformes, quando necessários para a prestação do trabalho; c) estabilidade provisória para a gestante até dois meses após a licença compulsória; d) salário do substituto igual ao do empregado despedido sem justa causa; e) contribuição em favor do sindicato para a realização de obras sociais”. Resta bem demonstrada a importância do instituto, ao garantir o avanço das normas protetivas do trabalhador, sem a fiança legislativa, pelas decisões dos Tribunais do Trabalho, com função criadora, dita normativa. Justificam, alguns, sua mantença, sob os argumentos de que: a) o modelo alimenta uma valiosa fonte formal de normas jurídicas trabalhistas e b) supre a falta ou a insuficiência de organização de algumas categorias, para reivindicação de seus interesses. Na trincheira oposta, por “traduzir fórmula de intervenção do Estado na gestão coletiva dos conflitos trabalhistas”(19), o poder normativo tem sido duramente criticado. José Augusto Rodrigues Pinto, embora reconhecendo que, no plano individual, o apelo social da manutenção do poder legiferante dos Tribunais do Trabalho possa tutelar validamente (18) “Instrução Normativa n. 4 — Uma Questão de Vida ou de Morte” in Revista Síntese, Porto Alegre: Síntese, junho de 2003, vol. 168, p. 5. (19) DELGADO, Mauricio Godinho. Direito Coletivo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2001, p. 33. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 283 interesses não protegidos por outras vias, assevera que “numa visão de conjunto, é nocivo para o amadurecimento do sindicalismo”(20). O polêmico instituto foi inserido, conclua-se, repetindo, no sistema constitucional pátrio de 1988, pela expressão “estabelecer normas e condições”. III. Alterações implementadas pela Emenda 45 1. Quanto à condição de ajuizamento. O pressuposto para o ajuizamento do dissídio coletivo é a impossibilidade de conciliação espontânea das partes, por meio de negociação coletiva, aspecto que prevalece no Texto Atual, que havia sido mantido no § 1º do pretérito artigo 114. A regra está, também, fixada na CLT, a partir de 1967, já que o teor do artigo 616, § 4º, passou a estabelecer, com a vigência do Decreto-lei n. 229: “Nenhum processo de dissídio coletivo de natureza econômica será admitido sem antes se esgotarem as medidas relativas à formalização da Convenção ou Acordo correspondente”. Há evidente aproximação entre o resultado positivo da autocomposição — o acordo coletivo de trabalho ou a convenção coletiva de trabalho — e a sentença normativa — mecanismo de heterocomposição — que é fruto de seu resultado negativo. No magistério de Amauri Mascaro Nascimento(21): “A tal ponto é a proximidade entre as duas figuras que a doutrina alemã sustenta que a sentença normativa é o sucedâneo da convenção coletiva frustrada. O conflito coletivo do trabalho tem nas convenções coletivas de trabalho uma forma de auto-solução e nas sentenças normativas uma forma de heterossolução, à falta do ajuste de vontades entre os interessados”. As cláusulas que as partes não foram capazes de redigirem por comum acordo resultam impostas pelo Estado, na forma de sentença normativa. A identificação entre os dois institutos justifica o posicionamento legal de exigência do esgotamento da via negocial e, portanto, das possibilidades de solução do conflito por autocomposição. O Tribunal Superior do Trabalho, já há alguns anos, vem dando importância e magnitude efetivas a tal pressuposto, considerando-o funda(20) Direito Sindical e Coletivo do Trabalho, 2ª ed., São Paulo: LTr, 2002, p. 373. (21) Curso de Direito Processual do Trabalho, 10ª ed., atualizada. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 361. 284 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO mental para o conhecimento da ação de dissídio coletivo, extinguindo, sistematicamente, sem análise do mérito, os dissídios que afloram sem negociação prévia consumada: “Ação coletiva. Exaurimento das tentativas de negociação direta prévia não configurado. Ausência de comprovação do edital de convocação da assembléia-geral dos trabalhadores. Quorum legal para a realização da assembléia-geral (art 612, CLT) não demonstrado. Extinção do processo sem julgamento do mérito”(22). A “recusa à negociação” emparelha-se à “recusa à arbitragem” para, juntas, estabelecerem o pressuposto de instauração do dissídio coletivo, confirmando-se a jurisprudência construída nos últimos anos no cerne do Tribunal Superior do Trabalho e já mencionada, por exemplo. Bom é que e se compreenda que a “recusa” deve ser conceito ampliado, para conter todas as formas de sabotagem da legítima negociação coletiva, aderindo-se a esta, para fins de validade, os princípios da boa-fé e da razoabilidade. Daí o acerto na observação de José Carlos Arouca(23), de que todas as condutas anti-sindicais de esvaziamento da efetiva negociação devem ser tomadas como “recusa”: o agendamento tardio das sessões de negociação, a oferta desarrazoada, a alegação, em defesa, de que não houve exaurimento da via negocial, quando não formula, o suscitado, qualquer proposta conciliatória, a negativa de legitimidade passiva etc. 2. Quanto à iniciativa do ajuizamento. O terceiro parágrafo do artigo 114 da Constituição Federal matém o mecanismo de entrega ao Ministério Público do Trabalho a iniciativa do dissídio, na hipótese de greve em atividade essencial. A CLT, artigo 856, previa a representação da Procuradoria ao Presidente do Tribunal Regional do Trabalho, na hipótese de “ocorrer suspensão do trabalho”. O Texto Emendado, portanto, é mais restritivo do que o processo coletivo anterior, na medida em que, para legitimação do Parquet, necessário que haja greve e que o movimento se dê em atividade essencial “com possibilidade de lesão do interesse público”. Na ocorrência de movimentos paredistas em atividades nãoessenciais ou mesmo nas essenciais, se a organização dos trabalhadores evitar a possibilidade de lesão ao interesse público, não mais (22) TST RODC 578444 — SDC — Relator Ministro Gelson de Azevedo, DJU 6.10.2000, p. 13. (23) “Instrução Normativa n. 4 — Uma Questão de Vida ou de Morte” in Revista Síntese. Porto Alegre: Síntese, junho de 2003, vol. 168, p. 8. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 285 poderá o Ministério Público do Trabalho ajuizar — antes “representar” — o dissídio coletivo. Redução ainda maior, no entanto, opera-se em decorrência da hermenêutica do § 2º, que estabelece “recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica”. Cumpre ver, a princípio, que a expressão “às mesmas” — isto é, as “partes” — que substitui, no Texto de 88, a expressão “respectivos sindicatos” não implica qualquer modificação substancial. Com efeito, não alterado o artigo 8º da Constituição Federal, a participação dos sindicatos mantém-se obrigatória na negociação coletiva e, assim, as “partes” referidas correspondem aos respectivos sindicatos, na negociação para convenção coletiva de trabalho e ao sindicato de empregados, na formação do acordo coletivo de trabalho. A locução que se segue merece atenção. Diz o Texto modificado pela Emenda 45 que as partes poderão ajuizar dissídio coletivo “de comum acordo”. Um aparente contra-senso: se os negociadores não chegam a um denominador comum, resolvendo o conflito, é porque há impasse. Ora, se há impasse, muito difícil é que uma das partes, pelo menos, acene com interesse de aforamento do dissídio. O emperramento da negociação, no mais das vezes, provoca a reação da greve, mas o movimento de suspensão do trabalho, como visto linhas acima, não ensejará representação do Ministério Público do Trabalho para instauração da instância, exceto em se tratando de atividade essencial e com possibilidade de prejuízo ao interesse público. Vislumbra-se plausível, pois, que em dado processo de negociação, as partes não cheguem a acordo, ecloda a greve e nenhuma delas, por não haver consenso quanto à utilidade da intervenção estatal, possa socorrer-se da via judicial. A alteração em comento mostra-se substancial e revolucionária, na medida em que afasta — depois de mais de seis décadas de aplicação do modelo acolhido pela Constituição Federal de 1988 — o Estado como meio obrigatório de solução dos conflitos coletivos, para que funcione como uma espécie de arbitragem pública, eleita por ambos os envolvidos no litígio. Mecanismo muito semelhante resultou do Fórum Nacional do Trabalho, instituído para dar início à Reforma Sindical. Embora o texto final da comissão de sistematização não tenha sido, até a data de redação deste artigo, publicado, circularam algumas versões dos cinco 286 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO anteprojetos, um dos quais cuida da “arbitragem pública”(24), também facultativa. Rejeite-se, desde logo, que o princípio da inevitabilidade da jurisdição — artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal — inquinaria de inválida a cláusula de instauração de instância por mútuo acordo, porque não há garantia legal do direito ao acordo, isto é, ao resultado positivo da negociação coletiva. Apenas se ambas as partes envolvidas no conflito coletivo elegerem o Estado como árbitro para sua contenda é que ocorrerá a instauração do dissídio coletivo. 3. Quanto à natureza do dissídio. Relevante notar que o § 2º do artigo 114 em comento limita a natureza do dissídio ajuizável apenas aos de natureza econômica. Sedimentada encontra-se na doutrina brasileira a tipologia dos dissídios coletivos, identificados como jurídicos (de revisão ou de interpretação) e econômicos (ou de interesse)(25). Em razão de suas preponderância e relevância, os últimos são classificados como primários ou originários, e os primeiros, como secundários, ou derivados. A redação atual limita à hipótese de dissídio econômico a intervenção do Judiciário nos conflitos coletivos. Nesta espécie, segundo a doutrina que se construiu ao longo das décadas de vigência do poder normativo, o objeto do processo é “criar norma, pouco importando seja inédita ou substitutiva de outra criada em dissídio anterior da mesma espécie”, enquanto os derivados têm por objetivo “rever a norma anterior ou interpretá-la para aplicação em concreto”(26). Antes de analisar a nova configuração do poder criativo de normas, cumpre registrar que a Constituição Federal vigente, desde 31 de dezembro de 2004, isto é, a revista pela Emenda Constitucional 45, extinguiu as formas de processo coletivo de revisão ou interpretação. 4. Quanto aos limites da decisão. Questão tormentosa mostrouse, ao longo das décadas de vigência do poder normativo no Brasil, a fixação de limites para seu exercício. Antigo decisório da Suprema Cor(24) Os textos podem ser encontrados em www.apub.org.br/plsresind.htm, acessado em 27 de setembro de 2004. (25) Assim o reconhece, entre vários, Amauri Mascaro Nascimento, Curso de Direito Processual do Trabalho, 10ª ed., atualizada, São Paulo: Saraiva, 1989, p. 316, antes de apresentar sua pessoal preferência em classificar os dissídios em salariais e nãosalariais, constitutivos e declaratórios, voluntários e coactos etc. (26) PINTO, José Augusto Rodrigues, Direito Sindical e Coletivo do Trabalho, 2ª ed., São Paulo: LTr, 2002, p. 378. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 287 te Trabalhista, relatado por Coqueijo Costa, procura estabelecer, com analogia geográfica, tais limites: “Poder normativo. 1. O poder normativo, atribuído à Justiça do Trabalho, limita-se, ao norte, pela Constituição Federal; ao sul, pela lei, a qual não pode contrariar; a leste, pela eqüidade e o bom senso; e a oeste, pela regra consolidada no art. Setecentos e sessenta e seis, conforme a qual nos dissídios coletivos serão estipuladas condições que assegurem justo salário aos trabalhadores, mas ‘permitam também justa retribuição às empresas interessadas’”(27). O Supremo Tribunal Federal, em mais de uma decisão, restringiu a operação do poder normativo, concluindo que as cláusulas criadas nas sentenças normativas “a despeito de configurarem fonte de direito objetivo, revestem o caráter de regras subsidiárias, somente suscetíveis de operar no vazio legislativo, e sujeitas à supremacia da lei formal (art. 114, § 2º, da CF)(28)”. Segundo o Pretório Excelso, a criação de normas por meio do deslocamento da competência legislativa ocorreria apenas no vazio da lei e, ainda, quando não houvesse “reserva legal”. Vale dizer, para todos os aspectos do direito do trabalho já regulados pela lei ou pela Constituição Federal, não se poderia inovar pela via do dissídio coletivo primário, assim como não se poderia invadir a competência do Legislativo, quando o ordenamento apontasse para a lei como fonte formal de determinado direito. Exemplo da primeira hipótese é o valor da hora extraordinária, já estabelecido em 50% pela Constituição Federal; exemplo da última é o aviso prévio proporcional ao tempo de serviço “nos termos da lei” previsto no inciso XXI do artigo 7º da Carta Política. Rápida leitura de qualquer sentença normativa, no entanto, leva à conclusão de que os Tribunais do Trabalho, tanto os Regionais, quanto o Superior, nunca acolheram a interpretação restritiva da Suprema Corte, à vista da grande quantidade de cláusulas normativas que repetem as palavras da lei, que aumentam os adicionais de horas extraordinárias, noturno, de insalubridade ou periculosidade, e que criam novas espécies de garantia de emprego, à revelia do inciso primeiro do artigo 7º constitucional. O texto anteriormente vigente, como já visto, autorizava os Tribunais do Trabalho a “estabelecer normas e condições respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho”. A criação das normas, por interpretação estritamente gramatical, prendia(27) TST RODC n. 30/82, em 27.5.82, T. Pleno, Rel. Min. Coqueijo Costa. DJ 12.8.82. (28) RE 197.911-9, 1ª Turma, Rel. Min. Octávio Gallotti, proferido em 24.9.1996. 288 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO se apenas aos limites da lei e das convenções vigentes. Por óbvio que, neste quadro, não importavam as cláusulas convencionais já ultrapassadas, não mais vigorantes, porque a referência a elas dá-se ao lado da lei, sem qualquer qualificativo especial, tudo em atendimento ao princípio da condição mais benéfica(29), norteador do direito do trabalho. Havendo lei ou convenção — válida e vigente — para as categorias em litígio, ao Tribunal vedava-se a formulação de cláusula menos benéfica. O texto atual da Constituição, no entanto, impõe como limites a lei e as disposições mínimas “convencionadas anteriormente”. Refere-se, pois, às normas resultantes da negociação coletiva entre as partes litigantes. Indica as cláusulas de convenção não vigentes no momento do litígio, mas que as partes já aceitaram, no passado, como válidas e aplicáveis. Desta perspectiva, ao contrário do entendimento sufragado pelo Supremo, o tema “adicional de horas extraordinárias” poderia ser tratado em dissídio coletivo econômico, desde que, em convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho anterior, as partes já tivessem fixado adicionais diferentes ao constitucional. A medida valoriza o “livre jogo da negociação”(30), outorgando maior responsabilidade aos pactos coletivos, que poderão, em tempo futuro, servir de base para a decisão judicial. A maior das restrições ao poder normativo, no entanto, merece análise em separado, dado seu caráter revolucionário. IV. Esvaziamento do poder criativo A expressão “estabelecer normas”, repetida nas Constituições de 1946, 1967, na Emenda 01 de 1969 e na Carta Cidadão de 1988, foi extirpada pela Emenda 45, o que aniquila o poder de criar normas. Aos Tribunais do Trabalho, quando provocados por ambas as partes, de (29) Por todos, transcreva-se a lição de DELGADO, Mauricio Godinho, Princípios de Direito Individual e Coletivo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2001, p. 43: “O presente princípio dispõe que o operador do Direito do Trabalho deve optar pela regra mais favorável ao obreiro em três situações ou dimensões distintas: no instante da elaboração da regra (princípio orientador da ação legislativa, portanto), ou no contexto de confronto entre regras concorrentes (princípio orientador do processo de hierarquização de normas trabalhistas) ou, por fim, no contexto de interpretação das regras jurídicas (princípio orientador do processo de revelação do sentido da regra trabalhista)”. (30) Expressão de CARRION, Valentin. Comentários à CLT, 26ª ed., atualizada e ampliada por Eduardo Carrion, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 672, nota 3 ao artigo 856. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 289 comum acordo, decidirão o dissídio coletivo econômico, baseando seu pronunciamento com observância das garantias mínimas legais e nas cláusulas que já vigeram entre as partes litigantes. Suponha-se que as categorias em dissenso tenham, em período anterior, fixado, por meio de negociação coletiva, cláusulas de: reposição salarial com base na variação do IPC, adicional noturno de 25%, de horas extraordinárias de 55% e estabilidade por acidente de trabalho. Frustrada a negociação coletiva corrente, rejeitada a arbitragem, acorrem ao Judiciário — repita-se, por mútuo acordo —, podendo obter a reafirmação dessas mesmas cláusulas. Este passa a ser, com a redação impressa pela Emenda 45, o poder criativo da normatização judicial trabalhista. Impossível, outrossim, que, sem qualquer preexistência de cláusulas convencionais, a invenção por parte dos Tribunais Trabalhistas. Afaste-se, desde logo, o argumento de que o inciso IX do mesmo artigo 114, que dá competência para a Justiça do Trabalho solucionar “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho na forma da lei”, poderia ser evocado para manutenção do poder normativo amplo, socorrendo-se da CLT (lei vigente e, por esse argumento, recepcionada pela Emenda). Por primeiro, porque há regra específica sobre o tema na própria Constituição, contida no segundo parágrafo do artigo 114 e, é cediço, a norma especial prevalece sobre a geral, embora não a revogue, por regra de hermenêutica, bem traduzida na lição de Carlos Maximiliano: “Jus singulare atende a particulares condições morais, econômicas, políticas ou sociais, que se refletem na ordem jurídica, e por esse motivo subtrai determinadas classes de materiais, ou de pessoas, às regras do Direito Comum, substituídas de propósito por disposições de alcance limitado, aplicáveis às relações especiais para que foram prescritas”(31). Por um segundo motivo, no entanto, deve ser rechaçado o argumento de que o poder normativo poderia ser mantido pelo inciso IX do artigo 114, a saber: o desaparecimento da autorização constitucional de implementação de normas pelo Judiciário. Com efeito, ao retirar da Constituição Federal a autorização aos Tribunais para “estabelecer normas”, a Reforma do Judiciário subtraiu o alicerce criativo da Justiça Laboral. Em tempos de assembléia constituinte (para a Carta de 1988), quando se discutia a manutenção do poder (31) Hermenêutica e Aplicação do Direito, 3ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1946, p. 275. 290 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO normativo, Evaristo de Moraes Filho(32), ao lutar pela conservação do instituto, alertava: “A Justiça do Trabalho, porém, tem peculiaridades que não devem ser esquecidas no Texto Constitucional, precisamente por serem peculiaridades. Praticamente ela ficará ineficiente e se tornaria inoperante para julgar os dissídios coletivos se não se lhe desse a competência normativa. E esta a lei ordinária não poderá dar, assim o entendo, se antes não o houver feito de modo expresso a Constituição que estamos elaborando” (sem grifo no original). Por excepcional, a “competência normativa”, típica do Poder Legislativo, não pode ser instituída por via de lei ordinária, porque tal diploma confrontar-se-ia com a Lex Major, perdendo, de pronto, sua eficácia. O temor apresentado por Evaristo de Moraes Filho confirmou-se, décadas depois do encerramento dos trabalhos constituintes, com a promulgação da Emenda em análise. Se não há raiz constitucional a permitir a transposição da atividade típica do Legislativo ao Judiciário, inexiste poder normativo da Justiça do Trabalho. Como a dicção da nova regra permite a observância das condições antes fixadas em convenções coletivas, resta, residualmente, alguma autorização de criação — retius, de ratificação — de normas inexistentes no ordenamento positivo, mas que tenham, como conditio sine qua, vigorado, antes, entre as partes. Mesmo na hipótese de ajuizamento do dissídio coletivo pelo Ministério Público do Trabalho — restrita à existência de greve em serviço essencial e com possibilidade de lesão do interesse público —, a nova ordem constitucional não prevê poder criativo, já que o terceiro parágrafo do artigo 114 apenas refere ao dever da Justiça do Trabalho de “decidir o conflito”. V. Conclusões A revolução da competência da Justiça do Trabalho instituída pela Reforma do Judiciário e promulgada na forma da Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004 (publicada em 31 de dezembro do mesmo ano), ampliou sobremaneira as atribuições da Justiça Laboral, mas restringiu sua atuação nos dissídios coletivos. A partir desta nova ordem: (a) os dissídios coletivos poderão ter conteúdo apenas econômico — retius, de interesse — e não mais de interpretação ou revisão; (32) “A Sentença Normativa” in BERNARDES, Hugo Gueiros (coordenador), Processo do Trabalho — Estudos em Memória de Coqueijo Costa. São Paulo: LTr, 1989, p. 184. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 291 (b) dependerão da frustração da negociação coletiva e da arbitragem; (c) somente serão ajuizados por acordo entre as partes litigantes; (d) a Justiça do Trabalho, ao decidi-los, não poderá criar ou estabelecer normas não existentes no ordenamento positivo ou nos acordos coletivos e convenções coletivas antes vigentes entre as mesmas partes. Restou, pois, reduzidíssimo o poder criativo dos Tribunais Trabalhistas, alimentados, ao longo de décadas, por “amplíssima criatividade” no estabelecimento de novas condições de trabalho, à margem da lei positiva. Tão radical modificação do direito do trabalho brasileiro tende a supervalorizar a negociação coletiva, desampara as categorias inorganizadas e estabelece um novo patamar de responsabilidade nas tratativas entre empregadores e empregados. Urge que tal medida faça-se suceder de providências que tornem a representação sindical legítima e mais efetiva, sob pena de ter constituído apenas involução das conquistas históricas dos trabalhadores. O tempo fará, como sempre, seu juízo definitivo. Quer da análise agora desenvolvida, quer das inovações contidas na Emenda Constitucional n. 45. 292 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO As Duas Faces da Nova Competência da Justiça do Trabalho Mauricio Godinho Delgado (*) I. Introdução A Emenda Constitucional n. 45, de dezembro de 2004, ao implementar a chamada Reforma do Judiciário, trouxe significativas modificações à competência da Justiça do Trabalho. Por meio de nova redação ao artigo 114 da Carta Magna, ampliou substancialmente o estuário de lides aptas a serem conhecidas e julgadas pelo ramo justrabalhista especializado. A reforma, contudo, é produto de seu tempo, em especial da década de 1990, período de forte acentuação no país do ideário de descomprometimento do Estado perante as necessidades sociais. Nesta linha, o novo art. 114 denota com muita clareza as marcas dessa época, ao menos em parte de seu conteúdo normativo. De fato, pode-se perceber no recente Texto Constitucional, ao lado de um avanço no processo de efetividade da mais genérica e testada política de distribuição de renda e poder na sociedade capitalista — o Direito do Trabalho —, um antitético direcionamento pela trilha do desprestígio deste ramo jurídico. Há, em síntese, no texto reformado do art. 114 uma face inegavelmente positiva (incisos II e seguintes), que enfatiza a concentração neste ramo judicial especializado da competência de natureza empregatícia, seja a nuclear (lides entre empregadores e empregados), sejam as inúmeras conexas a tal relação jurídica. Há, entretanto, no mesmo texto, em seu inciso I, uma (pouco) sutil face negativa, que, sem dúvida — intencionalmente ou não — incorpora a tradicional cultura de desprestígio ao Direito do Trabalho, que tem caracterizado os excludentes Estado e sociedade brasileiros. (*) Juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (Minas Gerais). Professor de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da PUC — Minas (Doutorado, Mestrado, Especialização e Graduação). Autor da obra Curso de Direito do Trabalho (3ª edição, São Paulo: LTr, 2004) e diversos outros livros e artigos nesta área temática. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 293 Na verdade, a competência judicial especializada seria elemento decisivo a um sistema institucional voltado a buscar eficácia social para o ramo justrabalhista (efetividade), a partir da constatação de constituir esse ramo do Direito a mais ampla, eficiente e democrática política social já construída nas sociedades capitalistas em favor das mais largas camadas populacionais. No Brasil, esse sistema institucional estaria integrado pela Justiça do Trabalho, Ministério Público do Trabalho, Ministério do Trabalho e Emprego (em especial, auditoria fiscal trabalhista), a par dos sindicatos e empresas, na sociedade civil. Por esta razão, a correta competência do ramo judicial especializado torna-se tema de crucial relevância para a consecução das idéias basilares de democracia e justiça social no Brasil. II. Face positiva do novo art. 114: concentração da competência empregatícia As Constituições brasileiras, desde 1946, passaram a regular a competência da Justiça do Trabalho, concentrando-a nas lides entre empregados e empregadores. Até 1988, porém, os diplomas constitucionais não permitiram reunir no segmento judicial especializado o diferenciado conjunto de lides conexas à relação de emprego, tais como, intersindicais, previdenciárias reflexas, lides vinculadas aos atos da fiscalização administrativa trabalhista, etc. É como se a ordem constitucional temesse que tal concentração de competência no âmbito da Justiça do Trabalho conferisse força demasiada ao sistema trabalhista do país, atenuando o relativo isolamento que a mesma política oficial sempre buscou conferir ao Direito do Trabalho. A Carta de 1988, de certo modo, começou a romper com essa tradição. De fato, fixou em seu art. 114 regra competencial bastante alargada, abrangendo qualquer lide que tivesse como sujeitos recíprocos, trabalhador e empregador, independentemente da natureza da própria lide. Desse modo, abriu caminho, por exemplo, para a incorporação da competência judicial quanto a indenizações por danos de caráter moral ou material entre empregador e empregado. A interpretação construtiva da norma da Carta de 1988 poderia ter conduzido à ampliação ainda maior da competência especializada, em face da largueza do comando constitucional; entretanto, como se sabe, a jurisprudência preferiu manter-se nos limites da leitura acima exposta. 294 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO A Emenda Constitucional n. 45, de dezembro de 2004, avançou no caminho progressista aberto pelo texto original de 1988, estendendo, sem dúvida, a competência da Justiça do Trabalho para lides conexas à relação de emprego, ou seja, que não tenham rigorosamente empregador e trabalhador como sujeitos recíprocos de pretensões e obrigações. É o que se passa, ilustrativamente, no tocante às “ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores” (art. 114, III). Também é o que ocorre quanto às “ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho” (art. 114, VII). A nova emenda absorveu, obviamente, o avanço anterior na mesma direção produzido pela EC n. 20, de 1998, no que tange à competência para “execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir” (art. 114, VIII). A EC n. 45/2004, finalmente, afastou dúvida competencial ainda percebida nos anos seguintes a 1988 em certas correntes jurisprudenciais, firmando, de vez, o poder jurisdicional da Justiça do Trabalho. É o que se passa com os “mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição” (art. 114, IV). É o que se verifica também quanto às “ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho”. Na mesma direção — embora aqui nenhuma dúvida fosse pertinente existir — a competência da Justiça do Trabalho para julgar as “ações que envolvam exercício do direito de greve” (art. 114, II) e os “conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado o disposto no art. 102, I, o” (art. 114, V). O avanço político, cultural, institucional e jurídico trazido pela nova emenda constitucional, no plano dos dispositivos ora citados, é simplesmente manifesto. Por meio do alargamento da competência da Justiça do Trabalho a Carta Magna passa a reconhecer, indubitavelmente, a existência de um sistema institucional justrabalhista, como instrumento voltado à busca da efetividade do Direito do Trabalho. Conforme já explicitado, a competência judicial especializada é elemento decisivo à existência e articulação de todo um sistema institucional voltado a buscar eficácia social (efetividade) para o ramo jurídico trabalhista. Esta busca de efetividade justifica-se em face da constata- NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 295 ção de constituir o Direito do Trabalho a mais ampla, eficiente e democrática política social já construída nas sociedades capitalistas em favor das mais largas camadas populacionais. No Brasil, esse sistema institucional estaria integrado, à luz do exposto, pela Justiça do Trabalho, Ministério Público do Trabalho, Ministério do Trabalho e Emprego (em especial, auditoria fiscal trabalhista), a par dos sindicatos e empresas, na sociedade civil. Por esta razão é que se afirmou ter a correta competência do ramo judicial especializado crucial importância para a consecução das idéias basilares de democracia e justiça social no Brasil. Na presente medida, isto é, no instante em que concentrou na Justiça do Trabalho a competência para conhecer e julgar lides nucleares e conexas que tenham fulcro na relação de emprego, a nova emenda constitucional fez despontar sua face progressista, democrática e direcionada à busca da justiça social. Um sistema justrabalhista racional, eficiente e interconectado é, sem dúvida, alavanca imprescindível para a conquista da efetividade do Direito do Trabalho no país. III. Face negativa do novo art. 114: incorporação da cultura de desprestígio ao Direito do Trabalho A reforma do Judiciário, entretanto, produto de 12/13 anos de articulações políticas no Congresso, lamentavelmente, também, evidenciou a assimilação da cultura de desprestígio do Direito do Trabalho, tão exacerbada ao longo dos anos de 1990 no país. No Brasil — conforme será melhor examinado no item IV, a seguir — sempre foi recorrente o isolamento e certo desprestígio cultural do ramo justrabalhista, em contraponto com o largo prestígio e inserção social alcançados na história dos países capitalistas europeus mais avançados. Tais isolamento e desprestígio exacerbaram-se na década de 1990 na realidade brasileira, em meio ao ideário de descomprometimento social do Estado, aqui veiculado laudatoriamente desde o início daqueles anos (ideário que já manifestara sua força na Europa Ocidental pós1970). Os efeitos deletérios deste desprestígio e isolamento disseminaram-se ainda mais em decorrência do apelo da variante intelectual especificamente brandida contra as conquistas da Democracia Social no Ocidente, qual seja, a idéia do fim da sociedade do trabalho, da centralidade do trabalho e do emprego no mundo capitalista. 296 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Nesse contexto, o Direito do Trabalho — a mais significativa conquista das grandes massas populacionais na economia e sociedade capitalistas ocidentais, a mais eficiente e generalizada política de distribuição de renda e poder na história do capitalismo — passou a ser acentuadamente desgastado, em irresistível blitzkrieg de críticas, as quais, curiosamente, originavam-se desde os segmentos mais conservadores da sociedade, passando pelas novas vertentes de renovação ideológica do sistema hegemônico, despontando até mesmo de certas searas oriundas do clássico pensamento democratizante e distributivista gestado nos séculos XIX e XX. O estratagema de implosão das conquistas socioeconômicas alcançadas pelas macropopulações nas sociedades capitalistas, das políticas públicas distributivistas de poder e renda, supunha a derruição da matriz filosófico-cultural de todo o avanço da Democracia Social no Ocidente, qual seja, a noção de sociedade do trabalho, a centralidade do trabalho e emprego, o trabalho e o emprego como valores, fundamentos e princípios do Direito contemporâneo. No Brasil — onde sequer se havia construído qualquer projeto de Democracia Social, com suas conquistas e garantias em benefício das grandes maiorias populacionais —, a reunião, na década de 1990, do velho padrão cultural excludente aqui hegemônico, com as novas vertentes intelectuais justificadoras do descompromisso social, tudo conduziu a um movimento irreprimível de fustigação e desprestígio do Direito do Trabalho. A Emenda Constitucional n. 45, infelizmente, expressa isso. O inciso I do novo art. 114, ao retirar o foco competencial da Justiça do Trabalho da relação entre trabalhadores e empregadores (embora esta, obviamente, ali continue incrustada) para a noção genérica e imprecisa de relação de trabalho, incorpora, quase que explicitamente, o estratagema oficial dos anos 90, do fim do emprego e do envelhecimento do Direito do Trabalho. A emenda soa como se o trabalho e o emprego estivessem realmente em extinção, tudo como senha para a derruição do mais sofisticado sistema de garantias e proteções para o indivíduo que labora na dinâmica socioeconômica capitalista, que é o Direito do Trabalho. A perda do foco no emprego — e seu ramo jurídico regulador — retira o coração e a mente da Justiça do Trabalho do seu papel social imprescindível, de contribuir para a construção da justiça social no conjunto do sistema institucional a que pertence. A história demonstra que NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 297 não se constrói justiça social no âmbito da desigual sociedade capitalista sem um amplo, diversificado, genérico, democrático, porém equilibrado, mecanismo de distribuição de poder e renda, como o Direito do Trabalho. O novo inciso constitucional expressa, ainda, certo preconceito contra as dezenas de milhões de trabalhadores que laboram com os elementos da relação de emprego (ainda que não formalmente reconhecidos, todos eles, como empregados): é como se a Emenda n. 45/2004 considerasse injustificável o direcionamento de tamanhos recursos públicos para um segmento do Judiciário basicamente voltado às lides de tais empregados, usualmente das camadas menos favorecidas da população. Nesta linha algo preconceituosa (muito própria à ideologia de descompromisso social dos anos 90, registre-se), seria necessário otimizar a atuação da Justiça do Trabalho, direcionando-a também a grupos sociais integrados de modo distinto ao mercado econômico, sem traços de subordinação aos respectivos tomadores de serviços (profissionais liberais e outros agentes autônomos, por exemplo). Ora, trata-se de um equívoco, inclusive do ponto de vista estatístico: não há, nas economias capitalistas, número tão grande de efetivos profissionais autônomos, uma vez que jamais deixou de ser nelas maciça a prevalência do universo de empregados, mesmo na realidade mais recente. Pelos dados europeus de fins dos anos 80 e meados da década de 1990, tomando-se como parâmetro Alemanha e França, verifica-se não existir sequer 15% de trabalhadores que não sejam reais empregados ou servidores públicos, consideradas suas populações ocupadas. Na verdade, no capitalismo, a tendência é que cerca de 80% ou mais dos trabalhadores ocupados laborem, sim, com os elementos da relação de emprego — razão por que se justifica, sim, a todas as luzes, um sistema institucionalizado do Estado voltado essencialmente às questões próprias a este decisivo universo social(1). (1) No tocante à Alemanha, expõe Wolfgang Däubler: “Nas estatísticas, os autônomos aparecem como exceção relativamente insignificante. Apenas 8,53% de todas as pessoas economicamente ativas excerciam em maio de 1987 uma atividade autônoma. 1,78% eram colaboradores familiares que podem ser encontrados sobretudo na agricultura, no varejo e em atividades artesanais. 80,62% de todos os ativos eram operários e empregados. 9,07% eram funcionários públicos e militares. Assim, praticamente nove entre dez pessoas economicamente ativas são assalariadas, pois de lá para cá não houve mudanças maiores nesta relação. Enquanto a condição de funcionário público se fundamenta em ato administrativo, sendo regulamentada exclusivamente por lei, estão os operários e empregados sujeitos ao direito do trabalho”. In Direito do Trabalho e Sociedade na Alemanha, São Paulo: LTr/Fundação Friedrich 298 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO À medida que incorpora a renitente (e hoje renovada) cultura de desprestígio ao Direito do Trabalho no país, flexibilizando o foco central de atuação do ramo especializado do Judiciário, em detrimento de seu imprescindível clássico papel (ao invés de, essencialmente, aprofundar tal função social), o inciso I do novo art. 114 da Constituição revela sua face negativa, como expressão da avalanche cultural anti-social, típica dos anos 90 no Brasil. IV. A tradição histórica brasileira de desprestígio do Direito do Trabalho A tradição histórica a que veio servir o novo inciso I do art. 114 da Constituição da República demarca-se pelo singular desprestígio e isolamento do Direito do Trabalho ao longo da evolução histórica do capitalismo no Brasil. Em contraponto à vitoriosa experiência democrática européia ocidental, aqui cuidou-se de refrear a expansão do ramo justrabalhista especializado ao conjunto da economia e sociedade, certamente objetivando atenuar seu comprovado efeito distributivo de poder e renda no contexto socioeconômico. De fato, uma rápida análise histórica sobre a evolução justrabalhista em nosso país evidencia, irrefutavelmente, como a recusa sistemática à generalização do Direito do Trabalho em nossa economia e sociedade tem constituído um dos mais poderosos veículos de exclusão social das grandes maiorias neste país. Na verdade, parece claro que o decisivo segredo acerca da dantesca exclusão social neste país reside no fato de o desenvolvimento capiEbert/ILDES, 1997, p. 41-42 (grifos acrescidos). Note-se que o autor, embora fundando-se em dados de 1987, afirma, em sua obra de fins dos anos 90, não ter havido “mudanças maiores nesta relação”. De todo modo, a obra Perfil da Alemanha, editada pela Societäts-Verlag, de Frankfurt/Meno, daquele país, em 1996, dispõe que os “trabalhadores, empregados, aprendizes e funcionários públicos, isto é, os chamados assalariados, perfazem na Alemanha 89,5 por cento dos 36,1 milhões de pessoas ativas (29,7 milhões nos antigos estados e 6,7 milhões nos novos estados). Além dos assalariados, há 3,3 milhões de autônomos, que atuam como empregadores. Ao lado dos 488.000 familiares que os ajudam, os autônomos empregam também um grande número de assalariados” (ob. cit., p. 386). No tocante à França, referindo-se ao ano de 1996, expõe Jean-Claude Javillier que a população assalariada, regida pelo direito do trabalho, atinge em torno de 19,5 milhões de pessoas, sendo de 22,5 milhões a população ativa ocupada, em um contexto de uma população total de 58,4 milhões. In Manuel Droit du Travail, Paris: LGDJ, 1998, p. 50. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 299 talista aqui, ao longo do século XX, ter se realizado sem a compatível generalização do Direito do Trabalho na economia e sociedade brasileiras, o que não permitiu a sedimentação de um eficaz, amplo e ágil mecanismo de distribuição de renda e poder no contexto socioeconômico. Se isto era patente na chamada República Velha, tem-se de admitir que, mesmo no período em que o Direito do Trabalho erigiu-se como inequívoca política pública oficial — entre os anos 30 a 1964 —, mesmo nesta época o Estado cuidou de não permitir a efetiva generalização desse ramo jurídico especializado, deixando-o cuidadosamente segregado a um pequeno segmento do mundo do trabalho. Esse isolamento do Direito do Trabalho acentuou-se a partir de 1964, tornando-se então indissimulável seu desprestígio no concerto das políticas públicas autoritárias. Na década de 1990, tais isolamento e desprestígio — que têm respondido diretamente pela brutal e inflexível concentração de riqueza e poder no cenário socioeconômico brasileiro — ganham sofisticadas cores culturais, por meio da disseminação no plano institucional e da sociedade civil do conveniente discurso sobre o suposto envelhecimento de tal ramo jurídico. 1. Dados históricos brasileiros Ainda que seja forçoso reconhecer que o período iniciado na década de 1930 até 1945, não obstante os graves efeitos da ideologia e prática autoritárias então dominantes, tenha se demarcado por significativo processo de inclusão social, o fato é que, também, nessa época o Direito do Trabalho não se generalizou para o conjunto do mundo laborativo brasileiro. É que este período preservou a clássica tendência de forte exclusão oriunda da história precedente, uma vez que a modernização justrabalhista ficou restrita, à época, apenas aos segmentos urbanos da sociedade brasileira. Ora, conforme sabemos, a legislação trabalhista estruturada ou ampliada naquela fase histórica não se aplicou aos trabalhadores rurais, não obstante cerca de 70% da população do país ainda estivesse situada no campo naqueles tempos. Não há dúvida de que esse processo de inclusão social, via Direito do Trabalho, sistematizado a partir de 1930, com repercussões até o início da década de 1960, foi de grande relevância e impacto socioeconômico — se contraposto às características da 300 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO sociedade e economia anteriores à década de 30 —; entretanto, não deixou de ser um processo significativamente limitado, por abranger, ao menos em seu início, não mais do que 1/3 da população brasileira(2). Com o Governo João Goulart, no início dos anos 60, surgiu o Estatuto do Trabalhador Rural (Lei n. 4.214, de 1963), diploma que estendeu a legislação trabalhista ao campo — algo que poderia ter modificado o curso dessa renitente estratégia de exclusão social que tanto caracteriza a história brasileira. Porém, como é de conhecimento geral, essa extensão normativa manteve-se mais teórica do que efetivamente prática nas décadas seguintes, dado que o Estado não demonstrou possuir o interesse político ou os instrumentos institucionais necessários para realizar, eficazmente, o generalizado cumprimento do Direito do Trabalho. Efetivamente, não só se verifica, desde 1964, por 20 anos, a instauração de um regime político autoritário assumidamente impermeável a qualquer política pública sistematizada de inclusão social (e, portanto, sem maior interesse na generalização do Direito do Trabalho), como o próprio aparelho institucional público encarregado de efetivar tal ramo jurídico era ainda claramente incipiente, com modesta presença no território nacional. É o que se passava com a Justiça do Trabalho, constituída de poucos juízes e praticamente instalada apenas em grandes cidades; com o Ministério do Trabalho, com presença muito reduzida no interior do país; finalmente, do mesmo modo, com o Ministério Público do Trabalho, que sequer possuía a estrutura e atribuições alargadas, de órgão agente, só despontadas com a Constituição de 1988. Tudo isto sem falar na profunda repressão dirigida ao movimento sindical durante a ditadura — o que tinha o condão de silenciar esta importante fonte de apoio à efetividade do ramo justrabalhista. O processo de inclusão social das grandes maiorias, pela via clássica das democracias ocidentais, que foi aquela conectada à generalização do Direito do Trabalho, não se implementou no Brasil mesmo depois da edição do Estatuto do Trabalhador Rural (1963), em decorrência de tais razões políticas, institucionais e, até mesmo, práticas. Curiosamente, nesse mesmo período, desponta um processo social e econômico de grande celeridade e impacto, que poderia, por (2) O Censo de 1940, “o primeiro a dividir a população brasileira em rural e urbana, registra que 31,1% dos habitantes estavam nas cidades”. Almanaque Abril — Brasil 2003, São Paulo: Abril, 2003, p. 166. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 301 outros caminhos, ainda que transversos, ter influenciado na superação dessa grande chaga da exclusão social das grandes maiorias no Brasil. É que houve, desde 1964, uma acentuação da anterior dinâmica de industrialização e urbanização do país, em decorrência das características do sistema econômico que foi impulsionado pela política oficial do regime autoritário então implantado. O fato é que, em 1960, ainda tínhamos mais de 50% da população situada no campo, ao passo que nos anos seguintes a urbanização generalizou-se, atingindo cerca de 55% em 1970, em torno de 67% em 1980, para alcançar mais de 80% no Censo do ano 2000(3). Não se desconhece a existência de questionamentos aos critérios de enquadramento estatístico seguidos pelo IBGE, baseados na circunstância de que segmentos importantes das populações das pequenas cidades muitas vezes vivem em função da economia e realidade rurais, não sendo, pois, inteiramente urbanizados. Não obstante tais críticas, ponderando que seja atenuada a força dos dados oficiais, não pode haver mais dúvidas, hoje, de que, pelo menos, um percentual superior a 70/75% da população brasileira enquadra-se, inegavelmente, no segmento urbano. Isso significa que tivemos nos últimos 40 anos (mesmo considerado o regime autocrático recente, por contraditório que seja — a história nunca é tão simples, afinal) uma oportunidade simplesmente espetacular de realizarmos um processo de inclusão social pela via clássica do Direito do Trabalho, no curso dessa tendência acentuada de urbanização. A nova força de trabalho, por meio das levas de migrações ocorridas, chegaria às cidades e se incorporaria ao mercado laborativo, em um contexto de regência jurídica pelo Direito do Trabalho, uma vez que, no meio urbano, as estruturas institucionais e operativas desse ramo normativo já se encontravam razoavelmente montadas e em funcionamento. Se incorporados os novos trabalhadores, em sua maioria, ao sistema socioeconômico pelo caminho justrabalhista clássico, parte significativa da resistente chaga de exclusão social característica do Brasil teria sido forçosamente mitigada. Entretanto, como se conhece, essa oportunidade notável não se concretizou nas últimas décadas. O que se verificou nesse período foi um processo de quase esterilização da taxa de inserção dos indivíduos no Direito do Trabalho, por meio do surgimento — acentuado na década (3) Eis alguns dados das taxas de urbanização da sociedade brasileira, segundos os respectivos censos realizados oficialmente no país: 1940: 31,1%; 1960: 44,67%; 1970: 55,92%; 1980: 67,6%; 2000: 81,25%. Almanaque Abril — Brasil 2003, São Paulo: Abril, 2003, p. 147 e 166. 302 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO de 1990 e anos seguintes — de formas alternativas de contratação laborativa, todas elas, não por coincidência, assegurando um patamar civilizatório muito mais acanhado do que aquele garantido pelo Direito do Trabalho. Em conseqüência, vivencia-se hoje quadro constrangedor de exclusão social. 2. Cenários da exclusão social brasileira Os dados do IBGE, pela Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios, de 2001, evidenciam que apenas pouco mais de 23 milhões de pessoas estão explicitamente regidas pelo Direito do Trabalho no país, não obstante o largo universo de mais de 75 milhões de pessoas ocupadas integrantes da população economicamente ativa (já não computando neste rol os mais de 7 milhões de desempregados). Portanto, menos de 30% do pessoal ocupado no Brasil corresponde, formalmente, a empregados, em contraponto ao índice de 80% que caracteriza a realidade européia exposta. A própria pesquisa do IBGE detecta a existência de nada menos do que cerca de 18 milhões de empregados sem carteira assinada no país! Isso significa que os dados oficiais demonstram a presença de aproximadamente 41 milhões de trabalhadores que deveriam estar sob inquestionável regência do ramo jurídico trabalhista. Ao lado desse impressionante número de reais empregados, existem ainda quase 17 milhões de pessoas enquadradas pelo IBGE como trabalhadores autônomos, a par de mais 9 milhões de pessoas inseridas naquilo que a estatística oficial chama de economia familiar, no setor de subsistência, ou, simplesmente, trabalhadores não remunerados. Tratase, pois, segundo os dados oficiais, de aproximadamente 26 milhões de trabalhadores não-empregados — quase 35% do pessoal ocupado no país. Ora, o descompasso de tais números (35% do pessoal ocupado, em contraponto a menos de 15% no parâmetro europeu comparado) evidencia que, neste grupo de 26 milhões de pessoas, existem, sem dúvida, inúmeros trabalhadores que se enquadrariam mais corretamente como efetivos empregados. Em síntese, mesmo não considerados os verdadeiros profissionais autônomos, os efetivos trabalhadores eventuais, o grupo de indivíduos realmente inseridos na economia familiar de subsistência e/ou sem remuneração, o que desponta desses dados oficiais é a inquestionável NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 303 existência de algumas dezenas de milhões de pessoas ocupadas no Brasil, a quem se denega o patamar civilizatório básico de inclusão socioeconômica assegurado pelo Direito do Trabalho(4). V. Direito do Trabalho como instrumento de civilização A grave exclusão social das grandes maiorias no Brasil (dezenas de trabalhadores sem as proteções mínimas da ordem jurídica trabalhista) entra em choque com os padrões minimamente aceitáveis de evolução do sistema capitalista no mundo ocidental. Padrões hoje vigorantes, registre-se, mesmo após a maciça crítica ideológica desferida ao Direito do Trabalho nas últimas décadas do século XX. O que fica bastante claro é que esta grosseira defasagem econômico-social brasileira encontra-se no fato de o Direito do Trabalho não ter ainda cumprido no país seu notável papel civilizatório, afirmado nos países de capitalismo central. De fato, se tomados dois parâmetros bastante ilustrativos (Alemanha e França), com dados aplicáveis à década recém-encerrada — portanto, dados bastante pertinentes ainda —, ver-se-á que o Direito do Trabalho tem sido, no desenrolar do sistema econômico-social contemporâneo, o grande instrumento de inclusão social das grandes massas populacionais dos países capitalistas desenvolvidos. Enfocadas as situações de Alemanha e França, percebe-se que mais de 80% da população economicamente ativa daqueles países (já excluído o percentual de desempregados) insere-se no mercado laborativo capitalista com as proteções inerentes ao Direito do Trabalho. Mais de 80% do pessoal ocupado nesses dois países, mesmo após 20 anos do fluxo desregulamentador insaciável, oriundo da década de 1970, encontra-se, sim, regido pelo Direito do Trabalho naquelas sociedades desenvolvidas(5). Isso significa que o Direito do Trabalho foi o grande instrumento que as democracias ocidentais mais avançadas tiveram para implemen(4) Os dados da citada Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (Pnad), do IBGE, de 2001, encontram-se em: Almanaque Abril — Brasil 2003, São Paulo: Abril, 2003, p. 136 e 138. (5) Os dados relativos à Alemanha foram retirados de Wolfgang Däubler, Direito do Trabalho e Sociedade na Alemanha, São Paulo: LTr/Fundação Friedrich Ebert/ILDES, 1997, p. 41-42. Também da obra Perfil da Alemanha, Frankfurt/Meno: Societäts-Verlag, 1996, p. 386. Os dados relativos à França foram retirados de Jean-Claude Javillier, Manuel Droit du Travail, Paris: LGDJ, 1998, p. 50. A explicitação de todos estes dados encontra-se na nota de rodapé n. 1 do presente texto, para onde remetemos o leitor. 304 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO tar a integração social de suas populações, a distribuição de renda e de poder em suas economias e sociedades, enfim, garantir a consecução da democracia social em seus respectivos países. Um poderoso e eficaz instrumento que conseguiu exatamente estabelecer uma forma de incorporação do ser humano ao sistema socioeconômico, em especial daqueles que não tivessem (ou tenham) outro meio de afirmação, senão a própria força de seu labor. O que a realidade histórica do próprio capitalismo demonstra é que o Direito do Trabalho consiste no mais abrangente e eficaz mecanismo de integração dos seres humanos ao sistema econômico, ainda que considerados todos os problemas e diferenciações das pessoas e vida social. Respeitados os marcos do sistema capitalista, trata-se do mais generalizante e consistente instrumento assecuratório de efetiva cidadania, no plano político-social, e de efetiva dignidade, no plano individual. Está-se diante, pois, de um potente e articulado sistema garantidor de significativo patamar de democracia social. Em síntese, naqueles países líderes do capitalismo, considerada sua população economicamente ativa ocupada, mais de 80% dos trabalhadores estão regidos pelo Direito do Trabalho, ao passo que, no Brasil, tradicionalmente cerca de 60/70% dos trabalhadores ocupados estão, ao revés, excluídos do Direito do Trabalho. Claro que não se vai desconhecer a existência de outras formas de labor que escapam, a princípio, ao padrão empregatício tradicional. Porém, tais formas alternativas não alcançam, de modo algum, o relevo, a extensão e o impacto alardeados pela ideologia de descomprometimento social de fins do século XX. É que nestes dados europeus expostos já estão consideradas estas outras formas de labor, uma vez que os números dizem respeito à segunda metade da década de 1990, já incorporando todos os efeitos da propagandeada crise trabalhista européia pós1970. Ou seja, mesmo em seguida a duas décadas de ação coordenada em favor da desarticulação institucional e normativa das conquistas democráticas do Estado de Bem-Estar Social na Europa, os dois importantes países mencionados preservam cerca de 80% de sua força de trabalho ocupada dentro dos marcos do Direito do Trabalho. O que tudo demonstra é que o Brasil ainda não enfrentou seu grande desafio, que tem maior abrangência e impacto social do que qualquer outro: assegurar efetividade ao Direito do Trabalho, em face do diagnóstico de ser baixíssimo aqui (menos de 30%) o percentual de integração NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 305 das pessoas na sociedade econômica, pela via civilizatória desse ramo jurídico especializado. Reenfatize-se, pois, que há uma singularidade no desenvolvimento econômico-social brasileiro: aqui em torno de somente 1/3 dos trabalhadores ocupados é regido pelo Direito do Trabalho, em contraponto ao percentual-padrão de mais de 80% de relevantes países capitalistas. Quer dizer, por mais que se intente justificar tratar-se de realidade nacional incomunicável, a defasagem de dados e situações é simplesmente brutal. Está-se diante de uma discriminação acentuada, gravíssima, posto que neste país milhões de pessoas laboram em dinâmica, qualificada pelos elementos integrantes da relação de emprego, porém sem que tenham garantido o patamar civilizatório mínimo característico do Direito do Trabalho. Observe-se que não se está falando de discriminação contra setores especiais da população, segmentos isolados (o que seria também grave, obviamente), porém trata-se de discriminação contra cerca de 2/3 do pessoal ocupado no Brasil, algo que escapa inteiramente ao padrão mínimo de desenvolvimento da civilização ocidental. Tudo isso demonstra, ainda, haver largo espaço para a atuação do Direito do Trabalho no Brasil, como instrumento civilizatório fundamental para a construção da democracia social e também da cidadania neste país. 306 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Os Direitos Sociais do Art. 7º da CF — Uma Nova Interpretação no Judiciário Trabalhista Paulo Luiz Schmidt (*) Recentemente o Congresso nacional promulgou a parte mais substancial da PEC 29/2000, que trata da reforma do Poder Judiciário. Tramitando desde 1992, chega aos dias atuais completamente diferente da forma apresentada pelo então deputado Hélio Bicudo (PT/SP). Privilegiando a concentração do poder no vértice superior da pirâmide judiciária, além de buscar domesticar administrativamente as instâncias inferiores, o texto revela indisfarçável tentativa de tornar previsível a decisão judicial de qualquer instância, pela criação de mecanismos que concentram a dicção do direito na cúpula. Embora apontada equivocadamente como panacéia para todos os males do Poder Judiciário — que sabidamente são muitos —, é certo que os maiores e principais desses problemas não serão atacados com o novo texto. Demora excessiva, pouca eficácia da prestação jurisdicional, meios materiais e de pessoal aquém das necessidades, falta de transparência e de democracia interna são problemas que não serão resolvidos pelas alterações propostas por essa Reforma, e continuarão aguardando outras medidas legislativas, especialmente as infraconstitucionais. De todo modo, há aspectos positivos nessa Emenda Constitucional n. 45, denominada de “Reforma do Poder Judiciário”. Um dos mais promissores é a ampliação da competência da Justiça do Trabalho. Se vários outros aspectos podem ser verificados, o inc. I do novo art. 114, com a redação que lhe dá a EC n. 45, deve merecer atenção desde logo pelo muito que socialmente poderá representar. O texto original do art. 114 da CF/88 diz expressamente que “Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores...”. A expressão “trabalhadores” induziu alguns, desde logo, a entender que estava alargada a competência material dessa justiça especializada. O STF, contudo, jul(*) Juiz do Trabalho no RS. Vice-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho — ANAMATRA (2003/2005). Presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região — AMATRA IV (2004/2006). NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 307 gando o Conflito de Jurisdição n. 6.829-SP (Rel. Min. Octávio Gallotti, em 15.3.89), deixou claro que o art. 114 da CF “apenas diz respeito aos dissídios pertinentes a trabalhadores, isto é, ao pessoal regido pela Consolidação das Leis do Trabalho”. Essa posição da Suprema Corte foi ratificada no julgamento da ADIn 492, ajuizada pelo Procurador-Geral da República e que atacava especificamente as alíneas “d” e “e” do art. 240 da Lei n. 8.112/90, que previam aos servidores públicos civis o direito de negociação coletiva e de ajuizamento, individual e coletivamente, frente à Justiça do Trabalho. Tem-se claro que a intenção do constituinte originário era, efetivamente, de alargar o manto protetivo do judiciário trabalhista ao crescente contingente de trabalhadores que, já naquela época, se encontrava à margem de qualquer proteção social. Contudo, a utilização da expressão “empregador” efetivamente afastou o gênero e limitou o alcance a essa espécie de tomador de serviço que contrata trabalhador como empregado. A realidade social de 1988, passados mais de 16 anos da promulgação da Constituição Federal, agravou-se. Hoje, o contingente de trabalhadores que forçadamente habita a informalidade já supera o número daqueles que estão com o seu vínculo minimamente formalizado, segundo algumas estatísticas. Logo, ampliar a competência da Justiça do Trabalho para ações oriundas de qualquer tipo de “relação de trabalho” é não só uma necessidade urgente, mas uma medida necessária que poderá representar, para milhões de trabalhadores brasileiros, uma porta de entrada para um mínimo de dignidade. Pode alguém perguntar se esses trabalhadores não tinham, até então, acesso à justiça? E a resposta, formal como não poderia deixar de ser, é afirmativa. Ocorre, contudo, que no judiciário comum, predomina o princípio da igualdade das partes, não se reconhecendo — como no Judiciário do Trabalho — a desigualdade real intrínseca às relações de trabalho. Lá, interpreta-se a lei como se o trabalhador estivesse em pé de igualdade com o empresário, o que inibe e tolhe a própria capacidade de litigar em juízo. Mas não é só isso. A alteração constitucional, agora aprovada, mostra a sensibilidade do legislador ante a realidade social agravada nesse novo contexto de desproteção social crescente em todos os sentidos. Ao trazer para a Justiça do Trabalho as demandas decorrentes das mais variadas e diferentes relações de trabalho, não está alterando apenas o lugar e o juiz perante o qual apresentará a sua reclamação. Está alterando, isso sim, a forma de enfrentar o problema da desproteção social em muitos aspectos. 308 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Não se imagina que perante o Judiciário Trabalhista deverá valer, apenas, o direito posto no contrato que, no caso das relações trabalhistas não empregatícias (eventuais, autônomas, de empreitada, etc.), sequer existe formalmente. No Direito do Trabalho, vige o princípio do contrato-realidade. Tratando-se de ramo especializado cujo escopo principal é o da proteção, não é difícil imaginar que o Judiciário Trabalhista encontrará forma e meio de aplicar os direitos sociais previstos na Constituição Federal em favor de todos os trabalhadores brasileiros, pois é disso que trata a nossa Carta Maior. Com efeito, diz o caput do art. 7º da CF que “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:”, e não apenas dos empregados. Não é demasia lembrar que, entre os ditos direitos sociais assegurados, está a própria relação de emprego. É certo que nem todos os direitos previstos nos trinta e quatro incisos do art. 7º da CF teriam aplicação indiscriminada ou ampla, visto que vários dentre eles são específicos e típicos dos trabalhadores empregados. Outros, contudo, a exemplo de remuneração mínima, irredutibilidade, proteção do rendimento, salário-família, duração do trabalho, aposentadoria e assistência social podem, perfeitamente, ser assegurados aos trabalhadores em geral que, à margem da formalidade, recorrerem à Justiça do Trabalho. Fora da Consolidação das Leis do Trabalho, exceto uma ou outra lei esparsa regulamentar de alguma categoria profissional, pouco ou nada há de legislação ordinária que assegure a essa massa imensa de trabalhadores algum direito. Assim, aplicar os direitos sociais previstos no art. 7º da CF a todos os trabalhadores brasileiros, e não apenas aos empregados, renovará a voz cidadã da Constituição da República e suprirá, de algum modo, o imenso vácuo legislativo existente. Cabe, pois, aos operadores do direito, a importante tarefa de construir uma doutrina e uma jurisprudência que atendam à urgente necessidade de resgatar uma imensa massa de trabalhadores atualmente excluída de qualquer proteção legal. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 309 Da Dicotomia ao Conceito Aberto: As Novas Competências da Justiça do Trabalho Reginaldo Melhado (*) Advertência ao leitor Há dois mil anos, proibido de regressar à Roma, Júlio César cruzou o Rubicão, antigo rio que separava a Gália Cisalpina da Itália. A travessia foi crucial na estratégia política e militar do general romano e permaneceu para sempre na história. Atravessar o Rubicão até hoje significa superar o dilema, enfrentar o desafio. Em tupiniquim corrente e fluente, também, pode traduzir-se pelo velho ou vai ou racha. Depois de ameaçada de extinção, e ainda sob a espreita alicantina de setores retrógrados do neofeudalismo, a que chamam globalização, a Justiça do Trabalho está diante do seu Rubicão e sua decisão será transcendental. Em síntese, a ela — não só a ela, mas a ela antes de tudo e de todos, e fundamentalmente a ela — caberá enfrentar o dilema: ser a Justiça do (des)empregado atada a um paradigma da velha Revolução Industrial, ou a Justiça social, voltada para o universo do trabalho e capaz de defrontar-se com a brutalidade do capitalismo contemporâneo. Tupi or not tupi, that´s the question, disse certa feita Oswald de Andrade, parodiando o famoso poeta inglês. Numa imitação burlesca da genial bela paródia: ser ou ser, enfim, uma Justiça do trabalho, ou uma Justiça do (des)emprego. Eis aqui onde está o nosso busílis shakespeariano. Não há hermenêutica asséptica. Na interpretação da Emenda n. 45 interpenetram-se altos valores éticos e profundas considerações técnico-administrativas, mas também diferentes orientações ideológicas, o comodismo, o medo ao novo, a preguiça mental. No interior da comunidade jurídica, é majoritário o sentimento de que a competência da Justiça do Trabalho deve ser ampliada. Entre os (*) Juiz do trabalho no Paraná. Professor. Doutor em Filosofia do Direito pela Universidade de Barcelona. 310 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO fundamentos dessa ampliação, sobressaem-se três distintas trilhas argumentativas: (a) as razões de ordem institucional — a que poderíamos chamar corporativistas, (b) as de caráter técnico e (c) as de natureza sociológica. As primeiras visam preservar a Justiça do Trabalho enquanto instituição. Partem da premissa de que competência é poder e visam fortalecer um segmento do Judiciário antes ameaçado de extinção. Os argumentos de caráter técnico objetivam o saneamento de distorções na distribuição de competências entre os vários ramos da Justiça e a racionalização do sistema (não faz muito sentido que o magistrado da Justiça Comum julgue ações relativas ao exercício do direito de greve ou a matéria sindical). Essas razões são relevantes, mas o fundamental são os argumentos de ordem, digamos, sociológica: o capitalismo alterou profundamente a organização da produção e a forma de expansão e incremento do capital, e nesse contexto o paradigma do contrato de emprego tradicional se esgarça e tende a perder a hegemonia construída desde a Revolução Industrial. A nova realidade inclui o teletrabalho, o sistema de múltiplas camadas da economia japonesa, os diversos modelos de contrato já praticados na Europa, o poder disciplinar (às vezes aparentemente inexistente) turbinado por recursos cibernéticos. Todo um contexto em que a empresa capitalista ganha outros contornos, as velhas fronteiras Estado se esvaem e os operadores do direito se vêem obrigados a reprogramar conceitos e categorias vetustas. O conflito entre capital e trabalho e a mais valia de que cuidava o velho filósofo alemão não se fazem apenas por intermédio do contrato de emprego. A compra e venda de força de trabalho sempre se realizou por outras formas, embora até aqui venha sendo hegemônico o paradigma do contrato de emprego. A lógica é que essas mutações do modelo de exploração capitalista cresçam tendencialmente. Sucumbirão o Direito do Trabalho e o seu direito processual, se os juristas continuarem atados ao conceito ortodoxo de subordinação jurídica e não forem capazes de compreender as novas dinâmicas do poder nas relações de produção capitalistas. Não se trata, portanto, de ampliar a competência, porque isso é melhor para a Justiça do Trabalho: trata-se de fazer o que é melhor para a sociedade e especialmente para os segmentos explorados do sistema. Com efeito, uma advertência franca e honesta deve ser feita ao prezado leitor. As idéias defendidas nas breves linhas que seguem pressupõem a tomada de posição em favor de um outro conceito de Justiça do Trabalho. Não pelo gosto da novidade (as novidades do mundo de hoje excitam a nostalgia), mas por estar convencido de que esta é a NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 311 melhor alternativa política. Não para os juízes, enquanto corporação, nem para o Judiciário, como instituição, e sim para o exercício da cidadania, da qual é requisito elementar o acesso à Justiça (ágil e eficaz) e a uma ordem jurídica justa. Com base nessa premissa política ou filosófica, à continuação, com efeito, passo a examinar o novo perfil da Justiça do Trabalho decorrente da Reforma do Judiciário. Não se cuidará de um amplo leque de temas em razão dos limites deste trabalho. Essas idéias, outrossim, são apenas as primeiras impressões e, na realidade, uma provocação à crítica e ao debate. A experiência de alguns outros países Diversos outros sistemas normativos adotam normas de atribuição de competência material com formato semelhante ao que foi abraçado pela Emenda n. 45, em relação aos juízos especializados em matéria laboral. É muito interessante a denominação dada aos órgãos especializados em matéria laboral na Espanha. O chamado “Juzgado de lo Social” (ou juízo de matéria social, numa tradução livre) é encarregado da jurisdição relativa “à rama social do Direito em conflitos individuais e coletivos”(1). Sua competência é definida com base nos sujeitos da relação, mencionando os litígios entre empregadores e empregados(2), mas também abrange toda a matéria de previdência social e previdência complementar, inclusive os contratos de seguro que derivam da relação empregatícia ou de convênios coletivos. Alcança, ainda, qualquer matéria sindical(3) e as relações entre cooperativas de trabalho e seus associados. A lei espanhola exclui da competência desses juízos, entretanto, os funcionários públicos estatutários e a tutela sindical e do direito de greve a eles relativos. No sistema português os tribunais do trabalho (denominação dada aos juízos de primeiro grau) têm competência “em matéria cível” — logo, (1) Real Decreto Legislativo 2/1995 (Ley de Procedimiento Laboral), art. 1. (2) Art. 2, alínea a. (3) Enumeram-se, entre outras, as seguintes questões: (a) constituição e reconhecimento da personalidade jurídica dos sindicatos e associações empresariais, seu funcionamento interno, sua relação com filiados, impugnação e modificação de normas estatutárias; (b) responsabilidade dos sindicatos e associações empresariais por infração à legislação social; (c) tutela de direitos sindicais; (d) eleições sindicais. 312 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO excluem-se as questões penais — para conhecer, em primeiro lugar, das questões “emergentes das relações de trabalho subordinado” e “relativas à anulação e interpretação” dos instrumentos coletivos de trabalho(4). Ademais, essa competência compreende um amplo leque de matérias relacionadas ao mundo do trabalho, que vão desde os acidentes de trabalho e doenças profissionais (incluindo, nesses supostos, o fornecimento de medicamentos e serviços clínicos, aparelhos de prótese, etc.) até os litígios entre sindicatos ou instituições de previdência, e até mesmo sua liquidação e partilha de bens, passando pelo direito de greve e pelos contratos equiparados aos de trabalho. No sistema italiano, a competência do juízo laboral compreende as “controvérsias relativas” a: (a) relações de trabalho subordinado, (b) relações agrárias — assemelhadas ao que conhecemos em nosso sistema como parceria e arrendamento, (c) relações de colaboração — mediante trabalho não-subordinado —, como de representação comercial ou agência, e finalmente as (d) relações de trabalho dos empregados de entes públicos que desenvolvem (de modo exclusivo ou prevalecente) atividade econômica, ou que não sejam competência de outro juízo especial(5) (Código de Processo Civil da Itália, arts. 409 e 413). Oriundo e decorrente: nem pleonasmo, nem atecnia Muitos argumentam que o inciso I do art. 114 da Constituição não contém qualquer ampliação real da competência da Justiça do Trabalho. Lêemno como se quisera o legislador referir-se apenas às relações de emprego. Sustenta-se para isso que o dispositivo constitucional alude às “ações oriundas da relação de trabalho” no inciso I, mas no seu inciso IX faz referência a “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei”. Logo, se a reforma pretendesse alcançar todas relações de trabalho, em sentido amplo, não haveria razão de ser para o inciso IX. A vontade do legislador — essa enigmática entidade que fala pela boca do jurista — seria remeter à lei formal outras espécies de litígios, que não as por ele mesmo enumeradas. As premissas dessa argumentação foram “o tripé ideológico em que se apóia a dogmática jurídica” a que alude Fernando Coelho(6): (4) Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, art. 64, letras a e b. (5) Há aqui uma espécie de competência residual. (6) COELHO, Luís Fernando. Teoria crítica do direito, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, p. 251-252. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 313 monismo, estatalidade e racionalidade. A premissa da racionalidade é falsa, porque norma jurídica não é fruto de uma operação intelectual ou científica, e sim resultado de um embate político. Nela nem sempre há uma racionalidade orgânica. O positivismo jurídico — sobretudo o de viés kelseniano — se assenta na idéia de um sistema de normas jurídicas com unidade e coerência, univocamente válidas e legítimas, centrado sobre si mesmo, que extrai dele próprio, de modo autofágico, sua validade(7). Isso leva o jurista a — de modo eqüidistante e isento, neutro — sempre buscar a vontade do legislador(8). Ocorre que o tal sistema compreende normas jurídicas conflitantes — sem contar que algumas refogem ao seu âmbito, ou nascem fora do Estado, e se interpenetram, no turbilhão do pluralismo jurídico — e disso às vezes resulta incoerência. A razão desse fenômeno, que revela a falsificação do positivismo, repousa na natureza dialética do próprio Estado e do processo legislativo. A lei é resultado de uma dada correlação de forças entre classes sociais, dentro e fora do espaço legislativo; decorre de pressões, choques de interesses, concessões, crises. A Emenda n. 45 é rebento desse espetáculo contraditório que deu à luz o novo texto do art. 114. No início das discussões da reforma do Judiciário, a Justiça do Trabalho desaparecera (no relatório do Deputado Aloysio Nunes Ferreira, homem do governo — e da maioria — de então). Depois, exsurgiria no relatório da Deputada Zulaiê Cobra, mas agora com sua competência voltada para julgar “as ações oriundas da relação de emprego”, tendo o texto do relatório a mesma estrutura técnica que viria a aparecer na Emenda n. 45. Assim, o inciso I e o inciso IX pareciam encadeados logicamente: o primeiro aludia à relação de emprego e o último a “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei”. Um complexo jogo de pressões, pesos e contrapesos, com a Anamatra na sua vanguarda(9), acabou por determinar a mudança (7) KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito, São Paulo: Martins Fontes, 1991. (8) Como se o legislador fosse um ser racional e não um amontoado de parlamentares que, muita vez, sequer se inteiram do que estão votando. Lembro Bismark: se as pessoas soubessem como são feitas as salsichas e as leis, não consumiriam as primeiras e nem respeitariam as segundas. (9) O trabalho da Anamatra, diga-se de passagem, não pode ser confundido com um lobby. Sua luta pela ampliação da competência da Justiça do Trabalho foi levada a efeito à luz do dia, honestamente. Foi objeto de congressos, seminários e eventos políticos. Foi debatida dentro e fora dos tribunais, com entidades representativas da sociedade civil e parlamentares. Enfim, foi produto do trabalho crítico de magistrados como, por exemplo, Tadeu Alkmin, Hugo Cavalcanti e Grijalbo Coutinho, entre tantos outros, comprometidos com a idéia de um juiz-cidadão. 314 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO do termo que, finalmente, viria a prevalecer no inciso I: relação de trabalho e não relação de emprego. Não obstante, o inciso IX foi mantido. Aparentemente, ele é desnecessário e sobrepõe a mesma matéria. Como veremos a seguir, porém, ele não é pleonástico, nem contém qualquer atecnia, e pode ser compreendido a partir deste contexto político. A dogmática moderna dá resposta a essa questão: a norma constitucional é sempre eficaz, como preceito maior, que insufla legitimidade no sistema normativo. Não há norma constitucional desprovida de atualidade e vinculatividade(10). O dilema do suposto conflito entre os incisos I e IX do art. 114 pode ser resolvido no próprio campo da argumentação dogmática. Note-se que, enquanto o inciso I do art. 114 menciona as ações oriundas da relação de trabalho, o inciso IX incorpora controvérsias decorrentes dela. Que diferença há entre os vocábulos oriundo e decorrente? Lexicologicamente, “oriundo” tem o sentido de originário, natural. A raiz latina da palavra guarda alguma relação com “oriente” (oriens, orientis), que designa a nascente do sol (oriente é o leste, a parte do céu onde nasce o Sol). O adjetivo “decorrente” significa aquilo que decorre, que se origina(11). Vale dizer: no inciso I está a relação de trabalho ontologicamente considerada; ela própria em seu estado natural. O substrato é o próprio trabalho. Já no inciso IX há menção à controvérsia decorrente dela, numa relação mediata e indireta, que dependeria de lei formal para extensão de competência. Inscrevem-se nessas situações, por exemplo, as ações previdenciárias (aquelas em que se discutem benefícios da Previdência Social) ou as ações incidentais na execução trabalhista, como os embargos de terceiro e os embargos à arrematação(12). A chave, portanto, não está em distinguir ações (inciso I) e controvérsias (inciso IX), termos que se empregam no Texto Constitucional com o mesmo significado, e sim em definir o que é oriundo e decorrente. Como não há palavras inúteis na lei, segundo o dogma altissonante e reverberante da hermenêutica clássica, joio e trigo estão separados por sentidos próprios. (10) CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição, Coimbra: Coimbra, 1991, p. 49. (11) Vejam-se os respectivos verbetes em FERREIRA, Antônio B. H. Dicionário Aurélio Eletrônico, São Paulo: Nova Fronteira, 1994 e CAUDAS AULETE. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, 3ª ed., Rio de Janeiro: Delta, 1974. (12) Nestas últimas, aliás, o liame com a relação de trabalho, é materialmente indireto, colateral: os embargos não decorrem propriamente da relação de trabalho, mas da relação processual nascida do litígio oriundo dela. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 315 O paradigma carcomido da norma dicotômica e a revolução conceitual Desde sua instituição no plano constitucional, a Justiça do Trabalho sempre teve sua competência fixada com base em três elementos conceituais integrantes de uma mesma categoria. A ela competia “conciliar e julgar” (a) “dissídios individuais e coletivos” (b) entre “empregados” ou “trabalhadores e empregadores”, e, na forma da lei, outras controvérsias oriundas da (c) “relação de trabalho”. Essa fórmula já aparecia na Constituição de 1946 (art. 123), atravessou o regime militar com o Documento Constitucional de 1967 (art. 142) — reproduzido em 1969 no mesmo art. 142 —, e foi mantida na redemocratização do País em 1988 (art. 114). A Constituição de 1937, “decretada” por Vargas, dizia o art 139: “para dirimir os conflitos oriundos das relações entre empregadores e empregados, reguladas na legislação social, é instituída a Justiça do Trabalho”. A locução “conciliar e julgar” aparecia em todos os Textos Constitucionais (a partir de 1946), mas na Emenda n. 45 se adotou uma outra forma: “compete à Justiça do Trabalho processar e julgar”. Essa opção não impede a conciliação e, por outro lado, observa uma certa simetria no tratamento da matéria, pois locução “processar e julgar” aparece em diversos outros dispositivos da Constituição que tratam da competência de juízes e tribunais (vejam-se, entre outros, os arts. 102, 105, 108, 109, 124), e vem sendo adotada desde a primeira Constituição republicana, de 1891. Além disso, como dito anteriormente, ao longo dessa trajetória de mais de meio século a práxis constitucional definia a competência da Justiça do Trabalho (desde que ela surgiu como tal) com base no binômio “empregados e empregadores”. No texto original de 1988 a inovação consistiu no surgimento do vocábulo trabalhadores em lugar de empregados, notoriamente mais amplo. A maior abrangência do termo “trabalhador”, porém, acabou esvaziada pela outra palavrinha a ela associada na díade: os empregadores da outra ponta. Considerou-se assim que esses trabalhadores eram, na verdade, apenas os trabalhadores subordinados (rectius: empregados). Nesse sentido, aliás, firmou-se a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no histórico julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 492-1, que teve por objeto a Lei n. 8.112/90(13). (13) “Constitucional — Justiça do Trabalho — Competência — Ações de servidores públicos estatutários — CF, arts. 37, 39, 40, 41, 42 E 114 — Lei n. 8.112, de 1990, arts. 316 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO No acórdão, o relator do processo, Ministro Carlos Velloso, sublinhava: “trabalhador é, de regra, o que mantém relação de emprego, é o empregado, o que tem empregador”(14). Desde a Constituição de 1946, portanto, a competência em razão da matéria não era enunciada pela sua natureza jurídica e sim pelos seus sujeitos. Não se cuidava do litígio oriundo da relação de emprego, mas da lide entre trabalhadores e empregadores. É evidente que a relação jurídica entre empregados e empregadores só pode ser uma relação de emprego, mas, para que se estabelecesse a competência do Judiciário do Trabalho, era preciso que ambos estivessem na lide processual, ou que seus sujeitos ao menos como tal se afirmassem. Exatamente por essa razão, doutrina e jurisprudência sempre afastaram a competência da Justiça do Trabalho na intervenção de terceiros — oposição, nomeação à autoria e da denunciação da lide (sendo admitido, com ressalvas, o chamamento ao processo). A presença do terceiro na lide processual implicaria a possibilidade de um litígio entre outros sujeitos (por exemplo entre trabalhadores, ou entre empregadores)(15). Também nesse aspecto, em particular, a nova orientação conceitual nascida da Reforma do Judiciário deverá acarretar um outro rumo para a doutrina, solucionado injustiças, corrigindo distorções e trazendo enormes proveitos para a sociedade. Com a Emenda n. 45 deu-se fim ao binômio competencial (trabalhadores x empregadores) . Essa “despersonalização” da velha compe240, alíneas d e e — I. Servidores públicos estatutários: direito à negociação coletiva à ação coletiva frente à Justiça do Trabalho: inconstitucionalidade. Lei n. 8.112/90, art. 240, alíneas d e e. II. Servidores públicos estatutários: incompetência da Justiça do Trabalho para o julgamento dos seus dissídios individuais. Inconstitucionalidade da alínea e do art. 240 da Lei n. 8.112/90. III. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente” (STF — ADI 492-1 — DF — T P — Rel. Min. Carlos Velloso — DJU 12.3.1993). (14) Acórdão mencionado, às folhas 100. (15) TEIXEIRA FILHO, Manoel A. Litisconsórcio, assistência e intervenção de terceiros no processo do trabalho, 2ª ed., São Paulo: LTr, 1993, especialmente p. 167 a 169 e 240 a 251. No que se refere à nomeação, à autoria, o autor argumenta que, sendo seu pressuposto “a existência de demanda sobre determinada coisa, haveremos de inferir que o instituto em questão tem incidência exclusiva nas ações reais”; conclui assim, à luz do então vigente art. 114 da Constituição, que “a Justiça do Trabalho não possui competência para apreciar ações reais ou que visem obter reparação de prejuízos acarretados a certa coisa” (p. 192). NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 317 tência dicotômica implica em que a partir de agora qualquer litígio oriundo da relação de trabalho seja competência da Justiça especializada. Alguns exemplos podem ser mencionados nesse sentido. As ações promovidas pelo próprio sindicato “contra” uma empresa visando coibir prática de atos anti-sindicais, como o de proibir o trabalhador de filiar-se ao sindicato. A ação que visa impedir que filiação à entidade sindical constitua causa excludente da contratação de trabalhadores. A que objetiva impedir a interferência da empresa na atividade do sindicato. A ação de anulação de norma de convenção coletiva ou regulamento de empresa promovida pelo sindicato ou a ação do Ministério Público do Trabalho sobre trabalho infantil ou trabalho escravo(16). Os litígios entre a empresa e o INSS acerca da existência ou não de vínculo de emprego que enseje o pagamento das contribuições sociais respectivas(17). Ações do empregador “contra” entidade sindical que causa dano ao seu patrimônio. Demanda entre o empregador e agentes de higiene e segurança do trabalho. Os conceitos adotados em uma Constituição podem ser autônomos ou não(18). Há conceitos criados no Texto Constitucional (no caso brasileiro, por exemplo, o mandado de injunção), e conceitos nele empregados com um conteúdo semântico próprio. Há conceitos pré-constitucionais, que são meramente recebidos pela Constituição. O conceito de relação de trabalho já existia na literatura jurídica. Não há novidade nenhuma. O que muda com a Reforma do Judiciário é a estrutura conceitual de atribuição de competência. Nesse sentido, a nova arquitetura do art. 114 da Constituição, plasmada na Emenda n. 45, é uma autêntica revolução conceitual(19), se considerada a tradição dos últimos cinqüenta anos do direito constitucional brasileiro. Ela não se assenta mais no velho binômio (o dos dissídios (16) Aliás, parece-nos revogado, por incompatibilidade, o art. 405, § 2º, da CLT, que atribui competência ao juiz de infância e juventude (na denominação atual) a prévia autorização para o trabalho de menores nas ruas e praças. (17) Matéria essa conexa ao substrato competencial fixado no inciso VII do art. 114 da Constituição, como procuraremos demonstrar mais adiante. (18) CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição, Coimbra: Coimbra, 1991, p. 54 e seguintes. (19) Note bem o prezado leitor: a revolução é meramente conceitual, e só é revolucionária diante da tradição constitucional brasileira relativa à competência da Justiça do Trabalho. Em outros sentidos, a revolução parece um sonho cada vez mais distante. 318 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO entre trabalhador e empregador), e essa é a grande diferença conceitual a ser compreendida pelos operadores do direito. Até aqui, a competência material da Justiça do Trabalho era definida em razão dos sujeitos — das personagens, dos atores — integrantes da relação jurídica de direito material. Esse velho conceito foi superado. Cabe agora identificar se a ação é oriunda de uma relação de trabalho, já não importando se os sujeitos desse liame jurídico substantivo se apresentam na lide como empregados e empregadores, o que implica distinguir o conflito intersubjetivo de interesses e a lide processual a ele imanente. Isso descortina inovações transcendentais, inclusive no que toca à intervenção de terceiros (oposição, nomeação à autoria e da denunciação da lide) no processo do trabalho, tema que será enfrentado mais à frente. Com o novo desenho conceitual da competência material tem-se em mira a natureza mesma da relação jurídica de direito material — talvez como antes —, mas os contornos da lide processual não são mais delimitados pelos atores (trabalhadores e empregadores) que integram a relação substantiva. É assim também com outros novos conceitos da competência material (ações envolvendo o direito de greve, sobre a representação sindical, relativas a multas...), como veremos a seguir. O conceito de relação de trabalho Para compreender o alcance e a extensão da locução empregada na Emenda n. 45 (relação de trabalho), é preciso definir suas características mais relevantes. Para isso — e não estranhe o leitor que já opera com o Direito do Trabalho — será preciso revisitar categorias como subordinação, obrigações de caráter intuitu personae e de trato diferido, alteridade e onerosidade. Antes de mais nada preciso compreender a relação de trabalho como uma forma de exploração da força de trabalho no interior do sistema capitalista de produção e não como uma simples relação jurídica qualquer. Com efeito, a relação de trabalho é caracterizada, como veremos a seguir, pelo labor prestado de modo diferido, em caráter pessoal (conquanto diferentemente da pessoalidade característica do vínculo empregatício), via de regra oneroso, desprovido de subordinação jurídica (mas em geral com outras formas de subordinação) e quase sempre sem alteridade. Há relações jurídicas que implicam o cumprimento imediato das obrigações: as prestações dela resultantes são adimplidas num só NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 319 momento. Essas relações o direito civil classifica genericamente como espécie dos contratos de execução instantânea. Já nas relações de trato sucessivo, (a) o cumprimento das obrigações, por um dos sujeitos da relação, ou por ambos, pode dar-se periodicamente ou (b) o “fornecimento da prestação de um dos contratantes pode se fazer, por convenção entre as partes, através de pagamentos parcelados”(20). A relação de trabalho a que se refere o inciso I do art. 114 da Constituição, portanto, deve ser entendida como aquela em que o adimplemento da obrigação se faz de modo periódico. O termo periódico, aliás, sugere a idéia de intervalos regulares, o que talvez seja impróprio: tratase, melhor dizendo, de uma relação obrigacional continuada. Na terminologia clássica, enfim, uma relação diferida (dilatada no tempo, alongada). São relações jurídicas de execução instantânea típicas a compra e venda à vista, a doação, a permuta e muitos serviços que não se desenvolvem continuadamente e se plasmam como relação de consumo imediato. É o caso da relação jurídica entre o médico e o paciente, numa simples consulta, ou na realização de um determinado serviço profissional, como a cirurgia ou um exame. É uma relação de consumo que se esgota de imediato, num só momento. A mesma natureza caracteriza a consulta ao advogado ou dentista, o trabalho do taxista, o serviço do eletricista que faz um pequeno reparo, recebe o preço e ponto final. Nessa sorte de relações jurídicas incluem-se os serviços ocasionais do arquiteto, encanador, publicitário, jornalista freelancer (que faz apenas uma única matéria para jornal ou revista e recebe o pagamento correspondente). O consumidor, como destinatário final desses serviços, é a parte vulnerável do efêmero liame contratual. Aqui não há relação de trabalho (relação no sentido adequado: relação de trato sucessivo) e a competência para dirimir conflitos intersubjetivos exsurgidos dessas situações não é da Justiça do Trabalho. Também não se pode subsumir à regra do inciso I do art. 114, de que estamos tratando, aquelas relações jurídicas consideradas como de trato sucessivo apenas porque o pagamento se faz em prestações em parcelas periódicas (embora na classificação do direito civil elas o sejam). Na relação de trabalho (do inciso I) o diferimento — o caráter sucessivo — está centrado no elemento preeminente da relação, que é o próprio trabalho. Por exemplo: se o paciente contrata o médico para uma cirurgia, a prestação obrigacional com conteúdo de trabalho se esvai de pronto, (20) RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil, São Paulo: Saraiva, 1993, p. 38-39. 320 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO no próprio ato cirúrgico, e mesmo que o pagamento dos honorários se faça em prestações não haverá relação de trabalho para os efeitos da competência do Judiciário do Trabalho. Com efeito, a relação de trabalho(21) não se configura como fenômeno ocasional. É uma relação de trato sucessivo, que se estende por algum tempo. Como foi dito, não há relação de trabalho no vínculo jurídico pontual do médico que atende o cliente numa consulta, mas haverá essa relação se o profissional presta serviços a hospitais, cooperativas de trabalho — inclusive como seu associado —, empresas de medicina de grupo ou operadoras de planos de saúde(22). A relação é diferida tanto no que toca à prestação do trabalho como no que diz respeito à remuneração, normalmente fixada por consulta ou procedimento, mas não raro estabelecida por horas de serviço ou plantões. O mesmo se deve dizer do advogado que presta serviços de assessoria ou assistência a determinada empresa, em caráter continuado, percebendo sua remuneração — que nossa cultura jurídica denomina honorários — periodicamente, por unidade de tempo trabalho ou ato processual realizado. Também há relação de trabalho na prestação de serviços do publicitário contratado por tempo indeterminado ou por prazo certo, mas não quando o contrato visa apenas um serviço ocasional, como a criação de um folder ou um outdoor. O contrato de prestação de serviços — atendido o pressuposto da preeminência do fator trabalho — é um dos exemplos mais típicos de relação de trabalho sujeita à competência da Justiça do Trabalho. A própria definição do art. 593 do novo Código Civil deixa isso assentado: “a prestação de serviço, que não estiver sujeita às leis trabalhistas ou a lei especial, reger-se-á pelas disposições deste Capítulo”. A opção da norma jurídica — ou do “legislador”, como preferem os juristas — foi uma espécie de conceituação residual: se há preeminência do trabalho humano, mas não se configura o vínculo empregatício, trata-se de uma prestação de serviços e a disciplina é a do Código Civil (art. 593 e seguintes). Trata-se de uma regulação legal instituída “para atender, precisamente, a uma faixa residual de serviços e trabalhos que não está regulada pelo Direito do Trabalho nem pelo Direito Comercial, e que, pela natureza pessoal de que se reveste, com(21) Sempre para os fins hermenêuticos aqui perseguidos: a interpretação do inciso I do art. 114 da Constituição. (22) Relação de trabalho entre o médico e essas entidades e não com os pacientes atendidos. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 321 porta disciplina especial”(23). Repare o leitor, porém, que nem toda prestação de serviços se configura como relação de trabalho (ao menos para os efeitos da regra de competência de que estamos a cuidar). A relação somente se configura como tal se há preeminência do trabalho humano ontologicamente considerado. Não se enquadram nesse conceito, assim, os contratos de prestação de serviços entre pessoas jurídicas (exemplo das empresas que atuam no setor de limpeza e conservação, administração imobiliária, segurança e vigilância etc.). Uma forma simples de identificar a relação de trabalho é a lógica do inverso, à qual o operador do Direito do Trabalho já está habituado. Assim, será sempre possível reconhecê-la naquelas relações jurídicas que se encontram na famosa zona gris, nas quais a configuração do próprio vínculo empregatício é controvertida. Se um trabalhador promove ação trabalhista alegando ser empregado do réu e a relação jurídica é nebulosa, mas acaba por ser afastado na sentença o vínculo de emprego, é muito provável que se esteja diante de uma relação de trabalho típica. Se o reconhecimento do vínculo de emprego é afastado, por exemplo, porque não comprovada a subordinação jurídica, e estando delineados outros traços característicos do próprio emprego, como a pessoalidade, a não-eventualidade ou a alteridade, por certo tratar-se-á de uma relação de trabalho. Noutras palavras, no núcleo duro do inciso I do art. 114 estão as relações de compra e venda de força de trabalho realizadas segundo o estalão de diferentes modelos jurídicos. São abrangidos nessa regra os contratos de emprego, de prestação de serviços, de empreitada de lavor, o mandato oneroso, os contratos de comissão, agência, distribuição e representação comercial, entre outras relações típicas e atípicas. Em todos eles destacam-se alguns traços característicos que, para os efeitos do mencionado inciso I do art. 114 da Constituição, identificarão a relação de trabalho. Em conclusão, vamos sintetizar a seguir os traços que integram o possível perfil conceitual. O fator trabalho — trabalho humano — está no epicentro do conceito (é o próprio objeto do contrato). Em sua forma arquetípica, a relação de trabalho consubstancia um contrato de compra e venda pelo qual o trabalhador — empregado ou não — vende sua capacidade de trabalho como mercadoria. Na empresa capitalista, a mercadoria adquirida (força de trabalho) é destinada à ampliação do capital, que por seu turno não é (23) PEDUZZI, Maria Cristina I. “A prestação de serviços”, in FRANCIULLI NETTO, Domingos e outros, O novo Código Civil, São Paulo: LTr, 2003, p. 540. 322 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO outra coisa senão trabalho objetivado(24). O paradigma jurídico dessa relação, (ainda) hegemônico, é a forma-contrato da Revolução Industrial: o contrato de emprego. Fora do âmbito do processo de produção capitalista direto, ou paralelamente a ele, as outras formas de trabalho — que Marx denominaria trabalho improdutivo — não se destinam ao próprio incremento do capital, e por essa razão freqüentemente configuram modelos jurídicos distintos. O trabalho não-subordinado — vale dizer, o trabalho que não é objeto de um contrato de emprego clássico — abrange tanto o trabalho produtivo quanto o improdutivo, mas os sistemas de exploração da mais-valia no interior da chamada globalização incluem cada vez mais novos paradigmas não-plasmados na forma-emprego. A subordinação em sua feição clássica dá lugar a outras alternativas de controle e sujeição. Nelas a capacidade de trabalho também é adquirida pela empresa capitalista como mercadoria, mas agora para que “o objeto comprado se preserve em sua subjetividade, isto é: em certa medida esteja disposto ao trabalho por si mesmo e participe do processo cooperativo do trabalho”(25). Esses novos modelos potenciam a perda de subjetividade dos trabalhadores enquanto classe social imersa em mundo ideologicamente monocórdio. Surgem novas formas de implicação ideológica e laços de dependência mais sutis. Esse trabalho preponderantemente oneroso só em situações especiais se apresenta como gratuito. O trabalho prestado a título gratuito, tal como nas relações de família (o “trabalho” da dona de casa feito em favor dos filhos e do marido; o trabalho do marido e dos próprios filhos na célula familiar) ou no âmbito de atividades religiosas, por exemplo, não pode ser considerado como objeto das relações de trabalho a que se refere a competência da Justiça do Trabalho. As atividades relacionadas à fé e à caridade não configuram labor em sentido técnico. Há preeminência do conteúdo moral dessas relações. É possível, entretanto, que o trabalho não-oneroso possa ser objeto da relação de trabalho. É o caso, por exemplo, do serviço voluntário prestado na forma da Lei n. 9.608/98, que não é remunerado, mas pode ensejar direitos e deveres a ambas as partes (como o ressarcimento das despesas realizadas no desempenho das atividades ou o auxílio financeiro de que trata o seu art. 3º-A). (24) MARX, K. El capital. Crítica de la economía política, Livro I, 2ª ed. em espanhol, México: FCE, 1959, p. 316 a 323. (25) OFFE, C. e HINRICHS, K. “Economía social del mercado de trabajo: los desequilibrios de poder primario y secundario”, em C. Offe (org.). La sociedad del trabajo. Problemas estructurales y perspectivas de futuro, Madrid: Alianza, 1992, p. 68. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 323 Outro traço importante do conceito é o caráter de execução diferida. A relação de trabalho enverga um certo caráter obrigacional continuado: é uma relação de trato sucessivo. O adimplemento da prestação laboral não se dá num só momento. Isso se evidencia inclusive em alguns contratos típicos regulados no Código Civil, como o contrato de agência, pelo qual uma pessoa assume, “em caráter não eventual e sem vínculos de dependência” (isto é, sem vínculo empregatício) “a obrigação de realizar negócios, em zona determinada”, como verbi gratia a distribuição de mercadorias ou a celebração de contratos (art. 710). Essa não-eventualidade, também, é traço característico da prestação de serviços (vejam-se os arts. 597 a 599 do Código de 2002), entre outros contratos típicos. Há um caráter intuitu personae, embora muito menos rígido. O objeto do contrato é o trabalho pessoal, que entretanto pode receber, tangencialmente, o concurso da atividade de outros profissionais ou até empregados do contratado. À maneira dos italianos, poderíamos dizer que a prestação do trabalho pessoal “prevalecente”(26). No caso do contrato de prestação de serviços, por exemplo, o trabalhador pode fazer-se substituir por terceiro, desde que assim consinta a outra parte, segundo estabelece o art. 605 do novo Código Civil. No mandato oneroso, o mandatário não pode transferir a responsabilidade pela obrigação a terceiro, salvo mediante consentimento expresso, e é obrigado a indenizar os danos causados por culpa daquele “a quem substabelecer, sem autorização, poderes que devia exercer pessoalmente” (art. 667). Essa natureza intuitu personae não é afastada pelo trabalho prestado por meio da chamada empresa ou firma individual, que não possui personalidade jurídica própria e distinta da de seu titular, pessoa física. Ou seja: mesmo na contratação de firma individual essa pessoalidade pode estar presente. A subordinação jurídica tampouco é “elemento” dessa relação(27), mas o prestador de serviços se obriga ao cumprimento do contrato, a observar o plano da obra, as instruções do tomador de serviços, as diretrizes da empresa: enfim, pode haver — e freqüentemente haverá — subordinação econômica ou administrativa. O comissário, por exemplo, “é obrigado a agir de conformidade com as ordens e instruções do comi(26) Código de Processo Civil da Itália, art. 409, item 3. (27) A subordinação jurídica tampouco é elemento da relação de emprego: é simples característica aparente, que não se confunde com os elementos essenciais dessa relação jurídica. Caso o leitor se interesse sobre tema, remeto-o a um outro trabalho nosso: MELHADO, Reginaldo. Poder e Sujeição, São Paulo: LTr, 2003. 324 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO tente” (art. 695 do Código Civil). O empreiteiro de mão-de-obra há de respeitar as determinações do dono da obra e seus responsáveis técnicos. Ela não veste o manequim tradicional do Direito do Trabalho, mas é freqüentemente uma subordinação real, de outro perfil, alicerçada no poder daqueles que personificam o capital(28). Por fim, na relação de trabalho — excetuada uma sua espécie peculiar, a relação de emprego — em princípio não há o traço da alteridade: o trabalhador pode assumir os riscos de sua profissão ou atividade econômica. Essa entretanto não é um característica (negativa) essencial. Na empreitada, por exemplo, por exemplo, “se empreiteiro só forneceu mão-de-obra, todos os riscos em que não tiver culpa correrão por conta do dono” (art. 612 do novo Código Civil). Relação de trabalho e relação de consumo É irrelevante a distinção entre relação de consumo e relação de trabalho, que muitos têm buscado identificar como excludente da hipótese competencial fixada no inciso I do art. 114 da Constituição. Um mesmo fenômeno jurídico pode estar sob o influxo simultâneo de mais de uma norma. A subsunção nesses casos é dinâmica e multifacetada. Nelson Nery Jr. fala nisso, ao sublinhar que os microssistemas regulados pelo Código de Defesa do Consumidor ou pela CLT também podem ser alcançados pelo Código Civil, subsidiariamente e sempre que haja compatibilidade(29). Além disso, o CDC excetua de seu campo de incidência a relação “de caráter trabalhista” (rectius: relação empregatícia), mas não a relação de trabalho enquanto gênero. Em muitos casos não se trata sequer de “subsidiariedade”. O contrato de prestação de serviços é um exemplo. O art. 593 do Código Civil estabelece que só é alcançada pela sua disciplina “a prestação de serviço, que não estiver sujeita às leis trabalhistas ou a lei especial”. A mesma técnica de exceção é usada pelo Código de Defesa do Consumidor: serviço é qualquer atividade laboral destinada ao consumo, “salvo as (28) Sobre a estrutura, as raízes e os fundamentos do poder do capital sobre o trabalho o autor pede licença para, novamente, remeter o leitor eventualmente interessado para o exame o trabalho acima mencionado (MELHADO, Reginaldo. Poder e Sujeição, São Paulo: LTr, 2003). (29) NERY JÚNIOR, Nelson. “Contratos no Código Civil — apontamentos gerais”, in FRANCIULLI NETO, Domingos, MENDES, Gilmar F. e MARTINS FILHO, Ives G. S. O novo Código Civil, São Paulo: LTr, 2003, p. 414. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 325 decorrentes das relações de caráter trabalhista” (art. 3º, § 2º). Tanto o Código Civil como o CDC visam toda e qualquer prestação de serviços, mas excluem de seu âmbito tuitivo a que provém da relação de emprego(30). Com efeito, a todas as relações de trabalho não-reguladas pela legislação trabalhista — isto é, todas as que não se expressam como relação de emprego — aplicam-se o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código Civil (a menos que se entenda que este último, por ser norma posterior, prevalece sobre o primeiro, o que seria um equívoco). Uma peculiaridade importante do ponto de vista, digamos, sociológico, e que portanto deve ser levada em conta na modelagem do conceito jurídico, consiste em que o consumidor visado pelo CDC é alguém que, por meio do consumir, satisfaz uma necessidade pessoal. Não vai revender esses produtos ou serviços — não é simples intermediário — ou colocá-los na cadeia produtiva(31). Ele é o seu destinatário final. Assim, não se reputa consumidora uma empresa que adquire insumos para a fabricação de seus próprios produtos (a montadora de automóveis, por exemplo), pois esses são bens que integram a cadeia produtiva da adquirente. Ela não é a destinatária final do produto e logo não há relação de consumo em sentido técnico-jurídico. Não haverá relação de consumo, afastando-se a aplicação do CDC, sempre que a aquisição de bens ou serviços é feita com finalidade empresarial, como v. g. de montagem, intermediação, beneficiamento ou industrialização. Essa característica, aliás, é o que faz presumir uma certa “vulnerabilidade econômica” do consumidor(32) — o que poderíamos chamar hipossuficiência, na linguagem do Direito do Trabalho —, e justifica o caráter tutelar do sistema normativo especial. Não há relação de consumo entre a empresa industrial e o representante comercial autônomo que distribuir seus produtos, conquanto este forneça um serviço que é “consumido” pela primeira. Tampouco está presente relação jurídica dessa natureza entre a indústria e o (30) O Código Civil exclui também a prestação de serviço regulada por “lei especial” (enquanto o CDC só afasta da sua incidência as relações trabalhistas). Com efeito, à prestação de serviços do representante comercial autônomo, v. g., não seriam aplicáveis as normas gerais do Código Civil e sim as da Lei n. 4.886/65. Isso, entretanto, é discutível: as normas do novo Código Civil, especialmente as do seu arcabouço principiológico, também incidem sobre essas relações de trabalho. (31) FILOMENO, José Geraldo B. et alii. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, São Paulo: Forense, 8ª ed., 2004, p. 34. (32) Idem, ibidem, p. 35. 326 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO comerciante, que adquire os produtos por intermédio do representante autônomo para revendê-los. A relação de consumo somente se perfaz na ponta desse encadeamento lógico: entre o consumidor, que é o destinatário final, e os responsáveis pela produção, distribuição e comercialização do produto (CDC, art. 3º). No exemplo, entretanto, há nítida relação de trabalho apenas entre o representante comercial autônomo e a indústria por ele representada (regulada pela Lei n. 4.886/65). Na relação de trabalho — salvo quando configurado a relação de emprego — a hipossuficiência não é um requisito necessário (para dizêlo de alguma forma), mas ela aparecerá com freqüência. Não é por outra razão, com efeito, que muitas das relações de trabalho tipificadas no Código Civil são reguladas por diversas disposições de ordem pública (prestação de serviços, empreitada etc.). Relação de trabalho e servidores estatutários A Emenda n. 45 foi promulgada sem a ressalva introduzida pelo Senado Federal no inciso I do art. 114, visando excluir da esfera competencial da Justiça do Trabalho as ações envolvendo os chamados servidores estatutários. O texto originário da Câmara Federal, que restou consubstanciado na Emenda, afirma serem competência do Judiciário do Trabalho “as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”, sem a ressalva articulada pelo Senado, que diz: “exceto os servidores ocupantes de cargos criados por lei, de provimento efetivo ou em comissão, incluídas as autarquias e fundações públicas dos referidos entes da Federação”. Servidor ocupante de cargo criado por lei é servidor sujeito ao regime jurídico próprio, conhecido como estatutário. O servidor regido pela legislação trabalhista ocupa emprego e não cargo. Por lógica dedutiva, portanto, conclui-se que as ações promovidas pelos estatutários em face da administração direta e indireta, em todos os níveis, estão compreendidas nessa competência. O mesmo sucede, evidentemente, quando a ação é promovida pela administração em face daqueles servidores. Mesmo não estando em vigor a regra de exceção proposta pelo Senado Federal, poder-se-á discutir se os servidores estatutários estariam NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 327 ou não inseridos na competência atribuída pelo inciso I do art. 114. O texto alude para “as ações oriundas da relação de trabalho”. O vínculo entre a administração e o servidor estatutário seria uma relação de trabalho? Quem o respondeu, de maneira cristalina, é a Constituição de 1969 (que, lembremo-nos, antecedeu a de 1988). Dizia ela, no seu art. 110: “Os litígios decorrentes das relações de trabalho dos servidores com a União, inclusive as autarquias e empresas públicas federais, qualquer que seja o seu regime jurídico, processar-se-ão e julgar-se-ão perante os Juízes Federais, devendo ser interposto recurso, se couber, para o Tribunal Federal de Recursos.” Com a Constituição de 1988 essa norma expressa foi excluída, mas o modelo conceitual do texto originário atribuía competência à Justiça do Trabalho para julgar litígios entre trabalhadores e empregadores. Como só é empregador aquele que contrata pelo regime da CLT, aquele que se encontra num dos pólos da relação de emprego, segue-se que a competência da Justiça do Trabalho estava adstrita aos servidores públicos de regime celetista. Com a nova redação, esse modelo dicotômico foi afastado, como já foi dito anteriormente. Com efeito, os litígios entre a administração pública direta e indireta e seus servidores militares e civis, qualquer que seja o regime jurídico, também se inscrevem na competência do Judiciário do Trabalho(33). Não se incluem nessa competência, entretanto, as relações entre os agentes políticos e o próprio Estado. Encontram-se nessa categoria jurídica os membros do Poder Executivo (presidente da República, ministros, governadores, prefeitos e secretários), do Poder Legislativo (senadores, deputados e vereadores) e do Poder Judiciário (ministros dos tribunais superiores, desembargadores e juízes). Aqui não há relação de trabalho, mas exercício de poder público. Não há remuneração e sim subsídio. A competência, portanto, será da Justiça Comum, estadual ou federal. Repercussões desse novo conceito na intervenção de terceiros Durante muito tempo se discutiu se haveria lugar para a intervenção de terceiros — nomeação à autoria, oposição e denunciação da lide (33) Ressalvada a matéria penal. Sobre o tema, veja-se neste livro o trabalho de José Eduardo de Resende Chaves. 328 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO — no processo do trabalho. A doutrina e a jurisprudência dominantes sustentavam ser essa intervenção, regulada no CPC, incompatível com esse processo especializado, em face da regra de competência inscrita no art. 114 da Constituição: o litígio submetido à jurisdição especializada haveria de ter como únicos atores o trabalhador, de um lado, e o empregador, de outro. O conceito de parte no processo é muito mais aberto que o de parte na demanda, considerada esta como o conflito intersubjetivo de natureza material. Parte no processo diz com a relação jurídica processual. Podem ser parte no processo o Ministério Público, quando atua como custos legis e não é demandante nem demandado, o assistente, o substituto processual. A idéia de parte na demanda é distinta: diz com a relação jurídica materialmente considerada. A competência material da Justiça do Trabalho, no Texto Constitucional de 1988, e em todas as constituições anteriores (desde 1937), era estabelecida a partir dos sujeitos da relação jurídica material: empregados e empregadores. A Emenda Constitucional n. 45 supera esse dilema: a competência fixada no art. 114 é definida pela matéria: as ações oriundas da relação de trabalho (inciso I), que envolvam exercício do direito de greve (inciso II), de indenização por dano moral ou patrimonial (inciso VI), os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data envolvendo matéria sujeita à sua jurisdição (inciso IV) ou ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho (VII). O deslize atávico aparece apenas no inciso III, que se refere às ações sobre representação sindical — portanto, sobre esta matéria — “entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores”. Como no passado, a competência volta ao eixo dos sujeitos da relação jurídica. E agora a relação jurídica processual: “ações entre sindicatos”... Uma leitura apressada do dispositivo implicaria concluir que as ações entre o sindicato e o órgão responsável pelo registro dos atos constitutivos das entidades sindicais, mesmo envolvendo a matéria mencionada — a representação sindical — não seriam de competência da Justiça do Trabalho. A interpretação desse dispositivo somente poderá estar completa, porém, se levado em conta o conjunto competencial atribuído pelo art. 114 da Constituição. Assim, o mandado de segurança promovido contra ato de autoridade do Ministério do Trabalho, por exemplo, será de competência da Justiça do Trabalho, se envol- NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 329 ver, entre outras matérias, a própria representação sindical. Aqui, simultaneamente, atuarão os incisos I, III e IV do art. 114, considerados no seu substrato teleológico. Assim, os conflitos intersubjetivos originários da relação de trabalho, ou que envolvam o exercício do direito de greve, ou quaisquer outras matérias enumeradas no art. 114, estarão sob a esfera de competência da Justiça do Trabalho, mesmo que envolvam litígios ou demandantes colaterais. A nova construção conceitual da Emenda n. 45 permite, assim, equacionar injustiças freqüentes no modelo anterior. Na sucessão, o juiz do trabalho reconhecia a responsabilidade do sucessor em face das obrigações do contrato de emprego, mas jamais admitiria a denunciação da lide ao sucedido, mesmo que estivesse ele obrigado a indenizar àquele o prejuízo, em ação regressiva (hipótese do inciso III do art. 70 do CPC): a lide entre o réu e o litisdenunciado (que não eram, um em relação ao outro, empregado e empregador) refugiria à antiga competência trabalhista(34). Há uma relação de dependência entre o direito de regresso do sucessor e a responsabilidade do sucedido. É muito mais razoável que sucedido figure na relação processual e que nela se estabeleçam a natureza, a extensão e a proporção (se for o caso) da sua responsabilidade e a do sucessor. Nos casos, por exemplo, em que o contrato de emprego sub judice “atravessa” os períodos de titularidade de um e outro na empresa, o quantum de cada um já pode ser estabelecido desde logo, a despeito de serem sucessor e sucedido eventualmente responsabilizados solidariamente pelas obrigações oriundas do vínculo empregatício. (34) “SUCESSÃO DE EMPREGADORES — DENUNCIAÇÃO DA LIDE — CABIMENTO — PROCESSO DO TRABALHO — INVIABILIDADE — Em se tratando de denunciação da lide, a sentença, sob pena de nulidade, deve decidir não só a questão entre autor e réu, como entre este (denunciante) e o terceiro (denunciado), em face do que preconiza o artigo setenta e seis do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo do trabalho. Destarte, se a prestação jurisdicional deve dispor sobre ambas as demandas, sob pena de se revelar incompleta e, como tal, nula, é imperativa a conclusão de que, na relação jurídica de natureza instrumental e material, estabelecida entre empregado e empregador, não há lugar para terceiro, na condição de denunciado, quando sua pretensão é de natureza civil. Vê-se, portanto, que a discussão entre o sucessor denunciante e o sucedido denunciado escapa totalmente à competência da Justiça do Trabalho, adstrita, por força do que disposto no artigo 114 da Constituição Federal, tãosomente à composição dos litígios entre trabalhadores e empregadores, levando à inafastável conclusão acerca do não-cabimento da denunciação da lide no âmbito do processo do trabalho. Revista não conhecida” (TST — RR 288545/1996 — 4ª T. — Rel. Min. Milton de Moura França — DJU 4.12.1998 — p. 00326. Os grifos são de agora). 330 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO A antiga díade conceitual inviabilizava, também, a oposição prevista no art. 56 do CPC (“quem pretender, no todo ou em parte, a coisa ou o direito sobre que controvertem autor e réu, poderá, até ser proferida a sentença, oferecer oposição contra ambos”). Como se sabe, a oposição é uma ação de conhecimento promovida pelo terceiro (oponente) que postula o direito ou coisa objeto da demanda entre autor e réu (opostos). Sendo a pretensão do opoente resistida por ambos os opostos, o juiz decide a ação e a oposição (podendo fazê-lo inclusive na mesma sentença). Se um do opostos reconhece a procedência da pretensão deduzida, a lide tem seguimento entre opoente e o outro oposto (CPC, art. 58). Muitos autores consideram que essa regra do art. 58 do CPC — de prosseguimento do feito entre uma das partes (autor ou réu) e o opoente — descortinava a hipótese, no processo do trabalho, de um litígio entre dois trabalhadores ou dois empregados. Os exemplos revelados pela doutrina e pela jurisprudência são inúmeros, e podem ser mencionados aqui como simples ilustração. É o caso, v. g., do empregado que ingressa em juízo postulando condenação do empregador no pagamento de prêmio que, segundo regulamento interno, seria concedido ao vendedor que fizesse o maior número de vendas. Julgando-se no direito à mesma premiação, um outro empregado poderia ingressar com a oposição, com apoio no art. 56 do CPC. Se o réu na ação trabalhista, que nesse caso é o empregador, reconhece a procedência da pretensão deduzida pelo opoente, a lide teria seguimento entre este e o autor. Logo, entre dois trabalhadores (o opoente e o autor da ação), ficando o empregador excluído do feito. O mesmo problema poderia ocorrer quando, no bojo da oposição, dois trabalhadores demandassem promoção prevista em quadro de carreira da empresa(35). Há decisões de tribunais do trabalho no mesmo sentido. Essa orientação era tecnicamente irreprochável, na medida em que a competência outorgada pelo sistema constitucional à Justiça do Trabalho estava baseada num binômio: dissídios haveriam de se estabelecer entre trabalhadores e empregadores. O mesmo obstáculo alcançava a nomeação à autoria. A hipótese prevista no art. 62 do CPC tem incidência mais remota — se não impossível — perante a Justiça do Trabalho. Mas a do art. 63, ao contrário, poderia perfeitamente ensejar aplicação no processo do trabalho. Diz essa norma jurídica: “Aplica-se também o disposto no artigo anteceden(35) Vejam-se esses e outros exemplos em M. Antonio Teixeira Filho. Litisconsórcio, assistência e intervenção de terceiros no processo do trabalho, cit., p. 166 a 170. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 331 te (da nomeação à autoria) à ação de indenização, intentada pelo proprietário ou pelo titular de um direito sobre a coisa, toda vez que o responsável pelos prejuízos alegar que praticou o ato por ordem, ou em cumprimento de instruções de terceiro”. Digamos, por exemplo, que se trate de ação em que o empregador postula indenização pelos danos causados a veículo (que é coisa) que se encontrava sob a posse de seu empregado, e “contra” ele ingressa com a ação trabalhista. Como fundamento autor alega que o bem teria sido danificado por dolo ou culpa grave do empregado. Sustentando o réu (empregado), no processo, que praticou o ato por ordem ou em cumprimento de instruções de um seu superior hierárquico na própria empresa, poderia ele requerer a nomeação à autoria desse terceiro (art. 63 do CPC). Ocorre que, nos termos do art. 66, se o superior hierárquico, nomeado à autoria, aceitar a responsabilidade que lhe é atribuída, o processo “contra ele” continuará a correr. Em sendo o nomeado — superior hierárquico do réu originário — empregado, não estaríamos diante de qualquer problema. Mas se ele fosse apenas um administrador que presta serviços ao autor da ação como autônomo, ou mandatário, o velho problema estaria posto outra vez. Nessa hipótese, ter-se-ia a lide novamente entre dois sujeitos que não se apresentariam, um em face do outro, como empregado e empregador. Não obstante, com inovação conceitual edificada com a Emenda n. 45 esse problema desaparece, pois a lide, oriunda da relação de trabalho, seria competência da Justiça do Trabalho. O que a Justiça do Trabalho fazia nesses casos, lamentavelmente, e por não haver, de fato, outra solução tecnicamente aceitável, à luz do conceito então albergado no art. 114 da Constituição, era quase uma negativa de jurisdição. Afinal, o juiz do trabalho poderia constatar a responsabilidade do sucedido, em face das obrigações trabalhistas anteriores, mas sempre transferia a carga exclusivamente sobre os ombros do sucessor, e, olimpicamente, dizia-lhe que fosse procurar um outro seguimento da Justiça para tentar obter o ressarcimento devido, iniciando um novo e moroso e tormentoso processo. Com a nova arquitetura conceitual do art. 114 da Constituição, essa aberração pode ser finalmente afastada. Afinal, requerida a denunciação da lide àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda (CPC, art. 70, inciso III), pode o juiz do trabalho resolver o conflito e a responsabilidade por perdas e danos do sucedido, valendo sua sentença como título executivo (CPC, art. 76). 332 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Isso simplesmente porque superada a fase histórica da competência binomial da Justiça do Trabalho, voltando-se ela, hoje, para as ações originadas da relação de trabalho. Inclusive “as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho” (inciso VI). Assim, essa competência também compreende conflitos entre os sujeitos da relação de trabalho e terceiros, por acessoriedade, complementaridade ou dependência. Ações que envolvem o direito de greve A competência da Judiciário do Trabalho passou a abranger todas as ações que “envolvam exercício do direito de greve” (art. 114, inciso II, da Constituição). Não é novidade, porque o exercício do direito de greve está no cerne mesmo do Direito do Trabalho e a matéria sempre foi de competência do Judiciário do Trabalho, que continua decidindo a legalidade ou (conforme o eufemismo da lei) “abusividade” da movimento, assim como da conduta dos sujeitos envolvidos na relação jurídica. A inovação consiste, também aqui, em fixar a competência com base no thema juris, não importando quem sejam os sujeitos da relação de direito material envolvidos. Assim, as ações alcançadas pelo dispositivo constitucional em questão abrangem os litígios entre empregados e empregadores, entre sindicatos, entre sindicatos e empregados ou empregadores, entre sindicatos e administração pública, entre os grevistas e terceiros, etc. Não importam os atores, mas a matéria que deve estar enredada ao exercício do direito greve. Há numerosos exemplos que ilustram essa competência. A contratação de mão-de-obra com o objetivo de substituir trabalhadores em greve, fora hipóteses permitidas em lei, pode ser obstada judicialmente por ação promovida pelo sindicato da categoria em greve ou pelos próprios grevistas. O empregador pode buscar em juízo autorização para contratar trabalhadores por período razoável e necessário à continuidade dos serviços mínimos nas atividades essenciais à comunidade. O Ministério Público pode agir perante a Justiça para evitar danos ao patrimônio público em razão da greve. O sindicato pode insurgir-se contra embaraços criados ao exercício do direito de greve pela polícia ou por autoridades públicas (inclusive por meio do mandado de segurança e do habeas corpus). Um terceiro afetado pela greve — que não é empregado nem empregador, ou mesmo entidade sindical representativa desses sujeitos NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 333 — deverá discutir a causa na Justiça do Trabalho. Um exemplo é a administração de um Município diante da greve de condutores de ônibus de transporte público concedido a empresa: não é empregadora, nem empregada, mas titular de direito subjetivo legítimo como titular dos serviços explorados por concessão ou permissão. A responsabilidade dos trabalhadores e dos seus sindicatos, em razão de danos causados em razão do movimento paredista, só poderá ser buscada na Justiça do Trabalho. Eram comuns, até hoje, as ações de indenização por dano material e moral, contra sindicatos de trabalhadores, na Justiça Comum. Imputando conduta ilícita aos grevistas e seus sindicatos, e ilegalidade da própria greve, empresas pleiteavam na Justiça Comum a reparação de danos emergentes e lucros cessantes. A decorrência natural e necessária da greve é o prejuízo econômico ao empregador: a cessação das atividades é com esse fim. Se a parede não acarreta algum dano, decorrente da paralisação, ela é ineficaz. Nesses processos, o magistrado da Justiça Comum julgava a greve, como pressuposto necessário da decisão, decidindo ou não pela procedência da pretensão. Havia nisso uma fragmentação jurisdicional absurda, pois a conduta do próprio empregado, no curso da greve, só podia ser objeto de apreciação na Justiça do Trabalho. Por meio de interditos proibitórios, muitos bancos provocaram o malogro de recente greve dos bancários. Em diversas decisões foi determinada a abertura de agências, ao fundamento de que a realização de piquetes implicaria desrespeito à Lei de Greve. Houve caso em que juízes ordenaram a retirada de faixas e cartazes das empresas em interditos proibitórios postulados perante a Justiça Comum. Deu-se um fim a essa cisão competencial absurda, que levava o julgamento da greve à Justiça Comum pela via das ações possessórias ou indenizatórias. O inciso II do art. 114 da Constituição é amplíssimo: “ações que envolvam exercício do direito de greve”. O vocábulo empregado dá um sentido mais alargado do que o usual (ações oriundas, decorrentes, sobre...). Envolver, aqui, significa relacionar-se direta ou indiretamente com o exercício do direito de greve. Podem ser parte os empregados, os empregadores, o Ministério Público, o Poder Público, os trabalhadores não-empregados, o vizinho afetado pela greve. Já não pode mais haver dúvida sobre o juízo competente nessa matéria. Em português corrente: fim de papo! 334 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Ações sobre representação sindical O inciso III do art. 114 atribui competência à Justiça do Trabalho para processar e julgar “as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores”. Essa norma veio a racionalizar o sistema e corrigir aberrações. Ela coloca sob a competência do Judiciário do Trabalho as ações que versam sobre a disputa pela representação de categorias profissionais ou econômicas, ou por base territorial, entre sindicatos, mas também alcança um amplo leque de matérias conexas, que só podem ser compreendidas pela análise do conjunto de competências fixadas no art. 114. Melhor seria, entretanto, que a reforma constitucional houvesse optado por outra técnica legislativa, fixando a competência genérica sobre direito sindical, evitando este deslize atávico de fazer referência aos sujeitos da relação jurídica material subjacente ao litígio (“entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores”). O dispositivo em questão alude a sindicatos. Deve-se entender compreendidas nessa locução as entidades sindicais de qualquer grau. Ações envolvendo federações, confederações e centrais sindicais também são competência da Justiça do Trabalho, desde que versem sobre algumas das matérias fixadas no art. 114, ou sobre a representação dos trabalhadores e empregadores, inclusive aquela feita no próprio local de trabalho (art. 11 da Constituição) ou nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação (art. 10). Uma leitura restritiva da norma constitucional, limitando a competência aos sindicatos de primeiro grau — e, logo, excluindo todas as demais organizações — levaria ao ridículo: a Justiça Comum seguiria decidindo sobre matéria sindical, própria do Direito do Trabalho, e a competência estaria absurdamente cindida nesse campo específico do direito material. As disputas de base e de categoria dizem respeito ao reconhecimento da legitimidade de organizações sindicais de qualquer grau, quando a representação é postulada por mais de uma entidade. Como a lei não pode impedir a fundação de entidades sindicais, se não há ofensa ao princípio da unicidade (um único sindicato na base territorial), inúmeros litígios exsurgem freqüentemente nessa área. A competência da Justiça do Trabalho, agora, inclui as discussões sobre a legalidade de criação NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 335 da entidade, desde a realização dos atos constitutivos, como a convocação da assembléia de fundação, até o seu registro no órgão competente (Constituição, art. 8º, inciso I). Por representação sindical, porém, não se pode entender apenas essa matéria. Nela está subjacente, também, o próprio direito de sindicalização: se a vinculação ao sindicato se dá com base na atividade preponderante da empresa empregadora, ou na profissão do trabalhador, é algo que diz com a representação sindical: sua extensão e seu conteúdo mesmo, e o próprio direito de filiar-se ou não ao sindicato. Esse dispositivo constitucional abrange, também, discussões sobre a natureza jurídica da empresa empregadora e a representação de servidores públicos (da administração direta, autárquica e fundacional) e empregados de empresas públicas e de sociedades de economia mista. A eleição e o exercício de cargos de direção ou administração sindical sempre foram temas subsumidos à locução representação sindical. Ela aparece nesse sentido inclusive na Súmula n. 197 do STF (“O empregado com representação sindical só pode ser despedido mediante inquérito em que se apure falta grave”). O registro da candidatura a “cargo de direção ou representação sindical” é condição para adquirir-se a chamada estabilidade provisória do dirigente sindical (Constituição, art. 8º, inciso VII). Com efeito, essa eleição é tema competencial do Judiciário do Trabalho. Denomina-se o dirigente da entidade representante sindical, assim na chamada doutrina como na própria legislação(36). Com efeito, as ações sobre representação sindical abrangem aquelas que versam sobre eleições dos representantes sindicais. Dessa forma, estão incluídas na competência do Judiciário do Trabalho as questões que dizem com a regularidade dos editais de convocação das eleições sindicais, registro de canditatura, o quadro de associados em condições de votar, as regras estatutárias na disputas entre as chapas, as comissões eleitorais e um longo et cetera. Todas essas situações podem ser subsumidas, também, ao inciso I do art. 114 da Constituição, pois enfeixam controvérsias oriundas da relação de trabalho. Afinal, o direito sindical pressupõe a relação de trabalho (36) Vejam-se alguns exemplos: Constituição, art. 8º, inciso IV (“sistema confederativo da representação sindical”), inciso VIII (“cargo de direção ou representação sindical”), art. 233, já revogado (“na presença de seu representante sindical”). 336 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO (como gênero que abrange a relação empregatícia): não há sindicato fora do âmbito da relação de trabalho. Assim, a compreensão adequada do inciso III do art. 114 exige que se revisite o seu inciso I, analisado anteriormente. Nessa ordem de raciocínio é imperioso concluir-se que compete à Justiça do Trabalho o julgamento das causas que versem sobre os atos constitutivos, os processos eleitorais e a atuação das comissões de conciliação prévia de que tratam os arts. 625-A e seguintes da CLT, por atuação conjunta dos incisos I e III do art. 114 da Constituição. Pelas mesmas razões, estão contidas nessa mesma competência todas as questões concernentes à gestão dos sindicatos, que são atribuição dos representantes sindicais. Penalidades administrativas impostas aos empregadores O art. 114, inciso VII, da Constituição, faz referência às “ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho”. O texto inicial que aparecia no relatório da deputada Zulaiê Cobra era mais restritivo: mencionava as “penalidades administrativas impostas aos empregadores pelo Ministério do Trabalho”. Graças à intervenção da Anamatra, a versão final do relatório foi modificada pela parlamentar. A diferença é importante. As relações de trabalho não são fiscalizadas apenas pelo Ministério do Trabalho. Ele é apenas um dos órgãos responsáveis pela matéria. A penalidade a que se refere esse inciso pode ser imposta pela fiscalização de quaisquer outros órgãos públicos. As multas impostas pelo Ministério do Trabalho são as mais freqüentes. Abrangem o cumprimento das normas de proteção dos trabalhadores, uso de cartões de ponto fraudulentos, pagamento em atraso de salários, ausência do registro de empregados, o trabalho escravo, o fundo de garantia, as contribuições sindicais, as contribuições devidas ao SESC e SENAC, contribuições específicas de seguro de acidentes do trabalho e um sem-número de outras hipóteses. Multas aplicadas pela Previdência Social também estão abarcadas no inciso VII, mesmo quando relativas às suas contribuições, pois (a) elas são impostas aos empregadores e (b) o auditor fiscal do INSS fiscaliza relações de trabalho. A arrecadação — mediante desconto nos pagamentos feitos aos trabalhadores — e o recolhimento das contribuições previdenciá- NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 337 rias é responsabilidade da empresa empregadora. São muito comuns — até aqui na Justiça Federal — as causas em que a pessoa física ou jurídica discute na ação a própria existência da relação de emprego que deu fundamento à multa(37). O fiscal aplica a multa à empresa porque, a seu juízo, as contribuições não foram recolhidas. A empresa opõe-se à penalidade, verbi gratia, ao fundamento de que não há obrigação de recolher as contribuições, por não haver vínculo empregatício, ou por serem os trabalhadores empregados de terceiro prestadores de serviços. A discussão, antes comum na Justiça Federal, passa à competência do Judiciário do Trabalho. O inciso VII do art. 114 compreende as ações concernentes às multas ou quaisquer outras penalidades impostas ao empregador, como a interdição ou o embargo de obras. Digamos que o Ministério do Trabalho considere existente grave e iminente risco para os trabalhadores e, nos termos do art. 161 da CLT, resolva interditar o estabelecimento, ou um setor da empresa, ou mesmo o uso de máquina ou equipamento. A discussão sobre a procedência da medida e o levantamento da interdição deverão ser buscados na Justiça do Trabalho. O mesmo se dará nos casos de construção embargada. A competência da Justiça do Trabalho abrange também a insurgência contra inspeção do Ministério do Trabalho que imponha modificação nas instalações, obras ou equipamentos de segurança, como condição para a autorização do início ou da retomada das atividades da empresa. Nesse caso atuam simultaneamente os incisos I e VII do art. 114. Se a medida eleita pelo empregador for o mandado de segurança, o caso enfeixará também a regra do inciso IV do mesmo dispositivo. Essa mesma competência enfeixa ainda as multas aplicadas pelos conselhos de fiscalização profissional, entidades que têm natureza de autarquia federal e, portanto, podem promover a execução dos valores correspondentes com base na Lei n. 6.830/80. Nesses casos poderse-á discutir, por exemplo, a regularidade da inscrição da dívida, o pro(37) Veja este exemplo, e observe o leitor que se trata de um acórdão da Justiça Federal e não de um TRT, como parece: “Nos termos do artigo 3º da CLT, ‘considerase empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário’. Deste modo, os contratados da empresa para substituir em férias e licenças aos seus empregados regulares, possuindo subordinação hierárquica e realizando atividades precípuas daquela, não podem ser considerados como trabalhadores avulsos ou autônomos” (TRF 1ª R. — AC 199901000203751 — MG — 3ª T. — Rel. Juiz Conv. Saulo José Casali Bahia — DJU 29.6.2001 — p. 686). 338 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO cedimento administrativo pela qual ela foi imposta, a competência do próprio órgão, desde que a penalidade seja atinente ao exercício de determinada profissão (logo, de relação de trabalho). Títulos executivos e ações incidentais na cobrança de multas A competência insculpida no inciso VII do art. 114 compreende as “ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores”. Tratam-se aqui não só das ações de conhecimento, condenatórias, constitutivas, declaratórias ou mandamentais(38), promovidas pelo empregador em face dos órgãos de fiscalização das relações de trabalho, mas também as ações de execução promovidas pelos entes públicos respectivos, as medidas cautelares pertinentes e as ações incidentais. Assim, aplicada a multa pela fiscalização do Ministério do Trabalho, por exemplo, a Fazenda Nacional deverá promover a execução correspondente perante a Justiça do Trabalho. Para tanto, ela deverá instruir a petição inicial com a certidão de dívida ativa regularmente inscrita, que goza de presunção de certeza e liquidez e, portanto, é título executivo extrajudicial. Trata-se, aqui, de dívida ativa não-tributária, cobrada pela Fazenda Nacional na forma do art. 2º da Lei n. 6.830/80, com a qual, aliás, já se encontra o juiz do trabalho bastante familiarizado. O título executivo é a certidão de dívida ativa e deve conter os requisitos do § 5º do art. 2º da Lei n. 6.830/80: (a) o nome do devedor e dos co-responsáveis, (b) o valor da dívida, o termo inicial e forma de cálculo dos juros e demais encargos, (c) a origem, a natureza e o fundamento legal da dívida, (d) a data e o número da inscrição, no Registro de Dívida Ativa, e (e) o número do processo administrativo ou do auto de infração. Como dito anteriormente, os meios processuais de insurgência do empregador contra a penalidade são inúmeros. Ele pode ingressar com ação visando que o juiz declare a nulidade da multa imposta, por exemplo. Pode também opor-se à cobrança por meio da ação incidental de embargos à execução. Pode ainda impetrar mandado de segurança ou requerer provimentos de urgência de qualquer natureza. Para o delineamento da competência de que trata o art. 114 da Constituição, basta que haja nexo causal entre o objeto da penalidade e as relações de trabalho. (38) Muitos autores consideram ser de natureza mandamental as conseqüências do ato jurisdicional, suas repercussões no mundo fático, e não a ação em si mesma. Essa é uma discussão que não nos interessa aqui. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 339 Cobrança pela Fazenda Nacional do FGTS não-depositado Em razão do disposto nos incisos I e VII do art. 114, a Justiça do Trabalho passa a ter competência para conhecer das ações relativas às multas impostas aos empregadores em decorrência do descumprimento das normas do Fundo de Garantia(39). As infrações e as multas correspondentes estão previstas nos arts. 22 e 23 da Lei n. 8.036/90. Conforme previsto no art. 2º da Lei n. 8.844/94, é da Fazenda Nacional — ou da Caixa Econômica Federal, “mediante convênio” — a legitimidade para cobrança judicial das “contribuições” ao Fundo de Garantia, “multas e demais encargos”. Mas em se tratando do Fundo de Garantia a competência da Justiça do Trabalho não compreende apenas as multas. O próprio FGTS não-depositado regularmente pelo empregador pode ser objeto de cobrança — inclusive pela via executiva —pela Fazenda Nacional ou pela Caixa Econômica Federal, perante a Justiça do Trabalho, nos termos do art. 114, inciso I, da Constituição. Afinal, esses litígios são oriundos da relação de trabalho (porque a pressupõem), e o pagamento dos salários é o fato gerador da obrigação de depositar o Fundo de Garantia. Convém lembrar, sempre, que a competência do Judiciário do Trabalho já não se assenta no velho núcleo dicotômico: agora já não se requer um dissídio entre trabalhadores e empregadores, mas um litígio intersubjetivo oriundo da relação de trabalho, não importando quem sejam os sujeitos dessa relação jurídica. Além disso, se não se reconhecesse essa competência para a ação que visa à cobrança ou execução do próprio depósito do Fundo de Garantia, haveria uma insólita e absurda situação: as multas seriam discutidas no Judiciário do Trabalho e o principal na Justiça Federal. Ao defender seus interesses em juízo, a empresa pode sustentar, digamos, a inexistência mesma da relação de emprego (ou qualquer outro fundamento). Se se admitir essa hipotética e absurda bifurcação da competência, seria possível, em tese, que a Justiça Federal, examinando essa questão prejudicial, entendesse devido o principal (o próprio depósito), porque configurado o vínculo empregatício, e a Justiça do Trabalho, contrariamente, isentasse a suposta (39) “A fiscalização do Ministério do Trabalho possui competência para verificar o fiel cumprimento das normas de proteção dos trabalhadores, entre as quais se situa aquelas relacionadas ao recolhimento do FGTS” (TRF 1ª R. — AC 199901000203751 — MG — 3ª T. — Rel. Juiz Conv. Saulo José Casali Bahia — DJU 29.6.2001 — p. 686). 340 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO empregadora das multas, concluindo pela inexistência do vínculo de emprego. Ou vice-versa, que daria no mesmo: um autêntico imbróglio(40). A única solução razoável e sensata, portanto, consiste em reconhecer que Justiça do Trabalho detém competência para processar e julgar a cobrança ou execução dos depósitos do Fundo de Garantia, multas e demais encargos previstos, seja a ação promovida pelo próprio trabalhador, titular da conta vinculada, seja ela proposta pela Fazenda Pública da União ou pela Caixa Econômica Federal. O fundamento, nesse caso, repousa na interpretação combinada dos incisos I e VII do art. 114 do Texto Constitucional. (40) Essas situações são freqüentes na prática. Veja-se, à guisa de mera ilustração, este julgado do TRF da 4ª Região: “Execução fiscal — Embargos — FGTS — Odontólogos — Existência de relação empregatícia — Ausência de prova em contrário — Presunção de liquidez e certeza da CDA não elidida — Inversão sucumbencial — 1. Considera-se empregado, toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário (art. 3º da CLT). 2. A caracterização da relação de emprego se impõe quando se verifica na relação a teor do art. 3º da CLT: subordinação hierárquica, habitualidade e pessoalidade na prestação de serviços, mediante contraprestação salarial. 3. O contrato de trabalho, no Brasil, não requer forma solene e as normas legais que o regulam são imperativas, de ordem pública. Por isso, sempre que um trabalhador prestar serviços não eventuais a uma pessoa física ou jurídica, que assuma os riscos da atividade empreendida, dirija a prestação pessoal dos serviços e lhe pague os correspondentes salários — haverá contrato de trabalho entre ambos (arts. 2º e 3º da CLT). 4. Não basta a alegação de que os odontólogos eram prestadores de serviços autônomos, sendo necessário à embargante provar tal fato para elidir a necessidade de recolhimento para o FGTS. Inteligência do art. 3º da LEF. Caso em que os odontólogos em questão, ainda que inscritos no INSS como autônomos, prestavam serviços nas dependências do embargante, o que pressupõe uma subordinação hierárquica ou disciplinar. A não-eventualidade fica configurada, haja vista que as atividades desenvolvidas em prol de seus associados (serviços odontológicos) enquadravam-se perfeitamente na atividade-meio do sindicato/embargante. A contraprestação mensal pelos serviços prestados caracteriza-se pela lavratura de ‘recibos de salário’. 5. Não há como considerar-se o sindicato/embargante como mero repassador de verbas advindas de convênio firmado com o INSS, na medida que todos os documentos juntados à inicial embargatória, com o fito de confirmar a ausência de vínculo empregatício dos odontólogos com o sindicato/embargante, são posteriores à exação em questão, portanto, nenhuma prova fazem. 6. Liquidez e certeza da cártula não elididas pela embargante. 7. Ônus sucumbencial invertido. 8. Apelação provida” (TRF 4ª R. — AC 2000.04.01.037993-9 — SC — 2ª T. — Rel. Juiz Alcides Vettorazzi — DJU 23.1.2002 — p. 268). Ou ainda esta outra decisão, do mesmo tribunal: “ Como o recorrido tem produção 24 horas, o Ministério da Agricultura autorizou o trabalho de seus fiscais, em horário extraordinário, desde que a empresa fiscalizada pagasse o valor equivalente ao trabalho extra. Os pagamentos foram efetuados diretamente ao Ministério da Agricultura, razão pela qual afasta-se a hipótese de relação de emprego no âmbito privado, excluindo-se, portanto, a necessidade de recolhimento do FGTS, por não se enquadrar na hipótese em pauta” (TRF 4ª R. — AC 94.04.53910-4 — SC — 3ª T. — Relª Juíza Luiza Dias Cassales — DJU 16.9.1998 — p. 384). NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 341 A Ampliação da Competência da Justiça do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho Sandra Lia Simón (*) 1. Considerações iniciais Os acertos e equívocos da mais recente mudança no Judiciário — como de resto acontece com qualquer reforma da estrutura institucional do Estado — só poderão ser detectados depois de um período razoável de vivência sob o novo sistema. Essa afirmação é ainda mais pertinente em relação ao ponto principal da reforma da Justiça do Trabalho: a ampliação da sua competência. Só o tempo dirá se estavam certos os defensores desse incremento de tarefas ou se a razão pertencia àqueles que alertavam para o perigo de colapso, considerada a permanência dos crônicos problemas estruturais e as notórias deficiências do ordenamento processual trabalhista; se a ampliação foi estrutural ou meramente superficial, ao deixar-se de lado matérias de fundamental importância no mundo do trabalho, como a competência criminal e a para o julgamento das ações decorrentes de acidentes de trabalho, priorizando-se o papel de Instituição arrecadadora. Por isso, não se vai, neste artigo, fazer um exercício de futurologia. O que se pretende aqui é destacar alguns aspectos técnicos da reforma e, em especial, referenciá-los à atuação do Ministério Público do Trabalho. Não se trata de um trabalho de cunho científico, mas de um pequeno texto, a título de primeiras impressões — enfim, uma modesta contribuição ao início dos debates que certamente serão intensos e fecundos. 2. A nova redação do art. 114 (1) da Constituição Federal. Abordagem preliminar A parte inicial do inciso I do art. 114 da Constituição Federal assenta incumbir à Justiça do Trabalho processar e julgar “as ações oriun(*) Procuradora-Geral do Trabalho. (1) O artigo foi escrito às vésperas da promulgação da EC n. 45 e desconsiderou a inclusão dos servidores estatutários na competência da Justiça do Trabalho. 342 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO das da relação de trabalho”. Seguem-se uma norma de esclarecimento (“abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”), outra de exceção ao esclarecimento (“exceto os servidores ocupantes de cargos criados por lei, de provimento efetivo ou em comissão”) e outra de inclusão (“incluídas as autarquias e fundações públicas dos referidos entes da federação”). A técnica utilizada é questionável e reacende discussão doutrinária sobre as entidades que integram ou não a Administração Pública Indireta, tais como as autarquias e fundações. O inciso teria o mesmo sentido, com economia de palavras, e preservando a linguagem própria do mundo trabalhista, se fosse assim redigido: “os dissídios individuais e coletivos oriundos de relação de trabalho, excetuados aqueles que envolvam servidores públicos ocupantes de cargos criados por lei, de provimento efetivo ou em comissão”. De se registrar a retirada do vocábulo “conciliar” — presente em todos os artigos que definiam a competência da Justiça do Trabalho, desde a Constituição Federal de 1946 — e a expressão “bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas” — esta certamente desnecessária. De todo modo, uma primeira conclusão se impõe: a Justiça do Trabalho deixa ser a Justiça apenas do Direito do Trabalho, ou da relação de emprego, ou, como se queira, da relação de trabalho subordinado. Podese vislumbrar, desde já, o desafio que terão a doutrina e a jurisprudência para delimitar a extensão da expressão “relação de trabalho”. No que diz respeito ao setor privado, terão de ser dirimidos pela Justiça do Trabalho, independentemente do seu objeto específico, os conflitos que emergirem de todos os contratos aptos a ensejarem uma relação de trabalho, como, apenas exemplificativamente, os de prestação de serviço e mesmo de empreitada (sem qualquer dúvida, pelo menos, quanto à empreitada de lavor), regidos pelos arts. 593 a 626 do Código Civil. No que tange ao setor público, da mesma forma, toda controvérsia oriunda de prestação de serviços à administração deverá ser examinada pela Justiça do Trabalho, ressalvadas, unicamente, aquelas que envolvam ocupantes de cargos públicos e, por extensão, de funções de confiança (já que estas devem ser exercidas necessariamente por servidor que detenha cargo efetivo — Constituição Federal, art. 37, V). NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 343 A atuação do Ministério Público do Trabalho, no entanto, já vinha apontando nesse sentido, qual seja, o de abranger toda e qualquer relação laboral, independentemente da existência da clássica noção de trabalho subordinado, protegida pela Consolidação das Leis do Trabalho. Os exemplos dessa atuação ampliada são muitos e dos mais variados e vão além dos limitados contornos do Direito do Trabalho, pois envolvem a defesa dos Direitos Humanos decorrentes das relações laborais, em hipóteses como o combate ao trabalho das crianças nos lixões e o combate ao trabalho infantil doméstico, dentre outros. No primeiro caso, é patente a inexistência do “contrato de trabalho” tradicional, mas a realidade dos fatos não poderia afastar a atuação do Ministério Público, haja vista tratar-se de verdadeiro atentado aos mínimos princípios que caracterizam a dignidade da pessoa humana, o que por conseqüência atrairia a competência da Justiça do Trabalho para julgamento dos litígios decorrentes desta aberração. No segundo caso, tampouco há a caracterização clássica da “relação de emprego”, mas é igualmente necessária a atuação do Ministério Público do Trabalho, bem como da Justiça do Trabalho, quando provocada. Saliente-se que estas duas hipóteses são consideradas pela OIT — Organização Internacional do Trabalho como duas das piores formas de exploração do trabalho infantil. Contudo, a atuação ampliada do Ministério Público do Trabalho vai ainda mais além, abarcando questões permeadas de irregularidades típicas de relações de trabalho, no sentido amplo, mas igualmente sem a caracterização clássica do vínculo celetista, como, por exemplo, os contratos de estágio e a contratação de pessoas jurídicas individuais (que, em princípio, seria mera prestação de serviços, distante da proteção do Direito do Trabalho). Assim, a alteração constitucional, nesta parte, é absolutamente significativa, por — pelo menos — dois motivos: primeiro, porque não fez outra coisa senão legitimar a já consolidada atuação ampliada do Ministério Público do Trabalho, que a partir de agora, certamente, não mais encontrará os óbices que eventualmente encontrava ao provocar o Judiciário Trabalhista, pleiteando a concretização de princípios que corporificam a dignidade da pessoa humana, em especial, da pessoa que trabalha das mais diversas formas; segundo, porque dá à Justiça do Trabalho a possibilidade real e concreta de caracterizar-se como ramo do Judiciário que faz valer os Direitos Humanos Fundamentais, de forma muito mais pontual e objetiva. Aliás, a consolidação desta nova atuação servirá, inclusive para, posteriormente, ampliar-se ainda mais a competência da 344 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Justiça do Trabalho para o julgamento de todas as lides que envolvam acidentes do trabalho e, principalmente, todos os crimes decorrentes das relações de trabalho. Soa estranho ainda que, definida a competência da Justiça do Trabalho, no inciso I, com tal extensão, se mencionem, no inciso II, “as ações que envolvam exercício do direito de greve”, no inciso VI, se aluda às “ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho” e também, no inciso IX, se fale em “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei”. Parece-nos que tudo isso já se contemplava na expressão “ações oriundas da relação de trabalho”. Nem se diga que a menção ao direito de greve teve o objetivo de estender a competência para o exame, também, da greve no setor público: a restrição imposta no inciso I excluiria, de qualquer forma, a possibilidade da Justiça do Trabalho julgar a greve de servidores ocupantes de cargo público, ou seja, regidos pelo regime administrativo (estatutário). A questão do dano moral será abordada mais adiante. 3. O Ministério Público do Trabalho e a greve (art. 114, § 3º) O § 3º do art. 114 da Constituição Federal não se limita a elevar ao status constitucional a legitimidade já conferida por lei ao Ministério Público do Trabalho para ajuizar dissídio coletivo em caso de greve. O inciso VIII do art. 83 da Lei Complementar n. 75/93 elenca entre as atribuições do Ministério Público do Trabalho a de “instaurar instância em caso de greve, quando a defesa da ordem jurídica ou o interesse público assim o exigir”. Parece evidente que a aludida legitimação foi restringida: o manejo do dissídio, pelo MPT, só é possível, agora, quando a greve ocorre em atividade essencial (isto é, nos setores da economia elencados no art. 10, da Lei n. 7.783/89), e, ainda assim, desde que se possa vislumbrar lesão ao interesse público. A restrição é positiva e está em harmonia tanto com a garantia constitucional do direito de greve (art. 9º), quanto com as atribuições conferidas genericamente ao Ministério Público no art. 127. A interferência estatal só se justifica quando esse direito, exercido abusivamente, agride gravemente os interesses da comunidade. Conquanto não seja de fácil delimitação o conceito de “interesse público”, neste caso particular já há um norte legal a ser seguido: a mencionada Lei n. 7.783/89 obriga, “nos serviços ou atividades essenciais”, que se garanta, durante a greve, “a prestação dos serviços indispensá- NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 345 veis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade”, assim consideradas “aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”. Assim, apenas quando se evidenciarem tais circunstâncias, isto é, quando as partes envolvidas no conflito deixarem de observar esse regramento, poderá — na verdade, deverá — o Ministério Público do Trabalho intervir, ajuizando o dissídio coletivo. Mais se justifica ainda a concessão dessa legitimidade, na própria Constituição, se levarmos em conta que o § 2º, do art. 114, da Constituição Federal reduz, drasticamente, a possibilidade de intervenção da Justiça do Trabalho — e, por conseqüência, também do exercício do poder normativo — nos conflitos coletivos: necessário que o dissídio seja ajuizado pelas partes conflitantes, “de comum acordo”. Curial que se conclua, assim, que o Ministério Público do Trabalho não poderá agir, nessa matéria, em atenção ao mero interesse dos agentes envolvidos no conflito: sua atuação subordina-se à defesa do interesse da sociedade. No que tange à alteração, aqui analisada, o ponto mais interessante é o fato de que as ações possessórias de Interditos Probitórios deverão ser propostas na Justiça do Trabalho. Referido expediente tem sido largamente utilizado por empresas que pretendem a garantia da posse de seus bens imóveis, nos casos de greve (diversas foram as ações propostas por bancos, na última greve dos bancários, ocorrida neste ano de 2004, a mais longa de toda a história). Lamentavelmente, Juízes Estaduais declaravam-se competentes para a apreciação e julgamento de referidas ações possessórias, concedendo, inclusive, liminares para garantir a posse mansa e pacífica sobre os imóveis onde funcionam referidas empresas, afirmando tratar-se de matéria eminentemente possessória, sem qualquer conotação de natureza trabalhista. Por óbvio, não há decisão mais equivocada. As decisões oriundas de referidas ações terminavam, invariavelmente, sendo utilizadas como instrumento de pressão, verdadeira atitude anti-sindical e violadora do exercício do direito constitucional de greve, matéria eminentemente trabalhista. Tanto é verdade, que, com essas decisões, as empresas apenas impediam a aproximação dos grevistas das suas sedes e se recusavam terminantemente a participar de negociações. A propositura das ações de Interditos Probitórios na Justiça do Trabalho dará o verdadeiro enfoque da matéria, de cunho nitidamente laboral. E é o Juiz do Trabalho o órgão do Poder Judiciário sensível a tais questões, que considerará a questão posta dentro do contexto trabalhista, com todas as conseqüências que tal fato 346 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO possa gerar. Caberá ao Juiz do Trabalho a afirmação do direito de fazer a greve e de seu amplo exercício, desde que conduzido sem abusos ou exageros. Há, ainda, a possibilidade do Ministério Público do Trabalho atuar, como custos legis, em todas as ações que envolvam o exercício do direito de greve, pois se considerando tratar-se de direito constitucionalmente garantido e, dependendo da forma como esse direito é atacado, poderá haver a caracterização de verdadeiro ato anti-sindical, o que terminaria ferindo, ainda, outros direitos fundamentais. Mais ainda, o Ministério Público do Trabalho poderá, inclusive, atuar como órgão agente (como aliás, já ocorreu, na greve de bancários referida), provocando o Judiciário Trabalhista, para garantir o regular exercício do direito de greve, exatamente por conta das malfadadas liminares concedidas por Juízes de Direito, que na prática — por serem concedidas sem uma análise da questão laboral — funcionam como inibidoras da ação sindical (mesmo que esta ação seja pacífica) e como impeditivas do desenvolvimento das negociações coletivas, expediente dos mais almejados no Direito Coletivo do Trabalho. 4. Sindicatos (art. 114, III) A reforma contempla uma antiga reivindicação do meio trabalhista, especialmente o sindical. Define-se a Justiça do Trabalho como competente, agora, para julgar as ações relativas não apenas aos litígios decorrentes de convenções ou acordos coletivos (neste ponto, a Lei n. 8.984/95 já assentava a competência, ainda que envolvidos no conflito estivessem apenas os sindicatos ou o sindicato de trabalhadores e o empregador), mas, também, aqueles pertinentes à própria representação sindical. Não pode haver mais dúvida, também, que caberá à Justiça do Trabalho apreciar as questões envolvendo empregadores e seus respectivos sindicatos, e — o que talvez venha a se constituir no ponto mais polêmico — ainda as controvérsias entre os integrantes das categorias econômica e profissional (e não apenas os associados) e seus respectivos sindicatos, como aquelas, por exemplo, alusivas às eleições sindicais e à cobrança de contribuições sindicais, inclusive a estabelecida pelo art. 578 da CLT (neste particular, sepultadas estarão as Súmulas ns. 04 e 222 do STJ, 114 e 255 do antigo TRF). Insere-se, ainda, nesse âmbito de competência a apreciação de ações dirigidas à proteção do sindicato contra atos atentatórios à liber- NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 347 dade sindical ou condutas anti-sindicais, especialmente quando praticados pelo empregador, lembrando que, como diz o Juiz do Trabalho Marcos Neves Fava, “a proteção do sindicato envolve (...) o afastamento do Estado de seus atos constitutivos e de organização, a neutralização de atos contrários ao funcionamento sindical por parte dos empregadores e, também, a proteção dos trabalhadores representados pelo sindicato, quer na elisão das chamadas cláusulas sindicais, quer na efetiva busca da legitimidade do sindicato frente à coletividade de trabalhadores” (“Proteção da negociação coletiva. Liberdade sindical. Condutas anti-sindicais. Mecanismos de proteção”. In Genesis — Revista de Direito do Trabalho. Curitiba, n. 21, maio, 2003, p. 726). 5. Dano moral (art. 114, VI) A referência a “ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho”, no inciso VI do art. 114 da Constituição Federal, parece-nos desnecessária, como dito anteriormente. Se, por força da parte inicial do inciso I desse artigo, cabe à Justiça do Trabalho processar e julgar “as ações oriundas da relação de trabalho”, não é imaginável a necessidade de perquirir a natureza específica do dano, cuja reparação se busca, para se afirmar ainda mais essa competência. Entretanto, a menção, aqui, a dano “moral” talvez se justifique em razão da controvérsia que se estabeleceu na jurisprudência acerca da indenizabilidade desse dano no âmbito trabalhista. Enquanto a doutrina e a jurisprudência trabalhista posicionavam-se claramente pela competência da Justiça do Trabalho, obtendo, inclusive, o respaldo do STF nesse posicionamento — como paradigma, mencione-se o seguinte julgado (que, de resto, apenas especifica o que o STF já assentara, em plenário, de maneira genérica, quando do julgamento do Conflito de Jurisdição n. 6.959-6-DF, relatado também pelo Ministro Sepúlveda Pertence): “INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL — JUSTIÇA DO TRABALHO — COMPETÊNCIA. Ação de reparação de danos decorrentes da imputação caluniosa irrogada ao trabalhador pelo empregador a pretexto de justa causa para a despedida e, assim, decorrente da relação de trabalho, não importando deva a controvérsia ser dirimida à luz do Direito Civil” (STF-RE 238.737-4-SP — Ac. 1ª T. de 17.11.98 — rel. Min. Sepúlveda Pertence) — o STJ manteve posição dúbia acerca da matéria, ora decidindo pela competência da Justiça do Trabalho, quando o dano pudesse ser referido claramente a uma relação 348 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO trabalhista e nela se fundasse (“Conflito de competência. Justiça Estadual. Justiça do Trabalho. Danos morais decorrentes da relação de trabalho. O Juízo Trabalhista declarou-se incompetente para o julgamento da lide, extinguindo a ação quanto ao pedido de indenização por danos morais. Ajuizada outra ação na Justiça Comum Estadual, esta também afirmou incompetência, remetendo os autos ao Juízo Laboral. Caracterizado, assim, o conflito de competência, corretamente suscitado pelo Ministério Público do Trabalho, com a finalidade de garantir a prestação jurisdicional requerida. 2. A Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar ação de responsabilidade civil proposta por trabalhador contra ex-empregador em decorrência de danos morais e materiais ocasionados durante a relação empregatícia. Precedentes. 3. Conflito conhecido para declarar competente a 6ª Junta de Conciliação e Julgamento de Belo Horizonte/MG.” — CC 28571 — rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito — Ac. 2ª Seção , 27.6.2001 — DJ 12.11.2001, p. 124), ora definindo a competência da Justiça Estadual (“AGRAVO NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA — JUSTIÇA COMUM E TRABALHISTA —PEDIDO DE INDENIZAÇÃO — DANOS MORAIS E MATERIAIS — ACIDENTE DO TRABALHO — DOENÇA CONTRAÍDA EM RAZÃO DA EXECUÇÃO DE SERVIÇOS REPETITIVOS — RESPONSABILIDADE CIVIL — COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. I — Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar reclamatória trabalhista em que se pede dano moral, desde que este não seja proveniente de acidente do trabalho. II — Tendo a autora adquirido ‘LER - Sinovite e Tenossinovite’ em razão das tarefas repetitivas executadas nos serviços prestados durante longos anos à ré, o pedido de indenização por danos morais e materiais que postula, em razão de acidente de trabalho, fundado na responsabilidade civil da empresa, deve ser julgado na Justiça Comum Estadual, ex vi do disposto no art. 109, I, da Constituição Federal. III — Agravo no Conflito de Competência a que se nega provimento” — AgRg no CC 29413-MG — rel. Min. NANCY ANDRIGHI — Ac. 2ª Seção, 13.9.2000 — DJ 2.10.2000, p. 135). Por tal motivo, mesmo sendo desnecessária a menção expressa à competência da Justiça do Trabalho para o julgamento das ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrente da relação de trabalho, esse fato coloca termo final na divergência jurisprudencial causada pelo Superior Tribunal de Justiça. Importante, ainda, destacar que o Ministério Público do Trabalho diariamente pleiteia perante a Justiça do Trabalho, em diversas das ações NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 349 civis públicas que propõe, mas especialmente naquelas que têm por objetivo a erradicação do trabalho escravo, indenização por dano moral coletivo. E, na maioria das vezes, tem obtido sucesso, com condenações que, mais do que impingir uma penalidade ao escravagista, servem como verdadeiros inibidores da reiteração dessa vergonhosa prática, funcionando como ponto de partida para colocar a Justiça do Trabalho na vanguarda da defesa dos Direitos Humanos. Aliás, estes pedidos de indenização por dano moral coletivo, em qualquer matéria relacionada aos Direitos Humanos decorrentes das relações laborais, criam um inédito sistema de integração entre o Ministério Público do Trabalho e a Justiça do Trabalho, que favorece o cumprimento da ordem jurídica trabalhista, numa perspectiva muitíssimo mais efetiva. 6. Mandado de segurança, habeas corpus e habeas data (art. 114, IV) 6.1. Mandado de segurança Ninguém nega a competência da Justiça do Trabalho, mais especificamente dos tribunais do trabalho, para apreciar mandados de segurança, quando o ato impugnado provenha de autoridade judiciária trabalhista (CLT, art. 678, I, c, 3, Lei n. 7.701/88, arts. 2º, I, d, e 3º, I, b). A novidade, agora, é que a matéria passa, também, a ser fator relevante na determinação da competência. A Justiça do Trabalho — todos os seus órgãos, portanto, inclusive os de primeira instância — passará a julgar mandados de segurança “quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição”. Elementar que essa previsão não desnatura o conceito, também constitucional, de mandado de segurança (art. 5º, inciso LXIX), de modo que, a par de a matéria em discussão estar sujeita à jurisdição trabalhista, há que se verificar se o responsável pela apontada ilegalidade ou abuso de poder se trata de “autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público” e esteja agindo nessa condição. Desde logo se pode dizer que eventuais mandados de segurança envolvendo, por exemplo, a atuação do Ministério Público do Trabalho (em especial na condução de procedimentos administrativos, como os inquéritos civis) haverão de ser apreciados na Justiça do Trabalho. Dada a competência estabelecida no inciso VII, do art. 114, da Constituição Federal (“as ações relativas às penalidades administrativas impostas 350 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho”), o julgamento de mandados de segurança impetrados contra Auditores Fiscais, por exemplo, também caberá à Justiça do Trabalho. 6.2. Habeas corpus Mais uma norma destinada a sepultar, de vez, controvérsias acesas acerca da competência da Justiça do Trabalho. Em que pese os esforços de consagrados doutrinadores, demonstrando que, pelo menos no que pertine à prisão do depositário infiel, nada justifica que se diga incompetente a Justiça do Trabalho para julgar o habeas corpus, o Supremo Tribunal Federal acabou firmando posição em sentido contrário. Sobre o tema, pedimos licença para transcrever trecho de artigo (cuja leitura integral, aliás, recomendamos, dada a profundidade do trabalho) do Procurador do Trabalho Sebastião Vieira Caixeta, publicado recentemente na Genesis — Revista de Direito do Trabalho: “Não se pode negar, cientificamente, a competência da Justiça do Trabalho para julgar o habeas corpus impetrado em decorrência da prisão civil do depositário infiel. A questão será definitivamente resolvida com a promulgação do texto da Reforma do Poder Judiciário, que expressamente prevê a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar o habeas corpus. O mesmo não se pode dizer do writ relacionado à prisão criminal na Justiça do Trabalho. Já ficou evidenciado que vários tipos penais vinculam-se à atividade jurisdicional trabalhista, podendo haver, em conseqüência, prisões criminais decorrentes ou relacionadas com a atuação do juiz do trabalho. Batalha, sem aprofundar a questão, advoga que a competência para o habeas corpus deve ser atribuída aos Tribunais Regionais do Trabalho quando decorrente de falso testemunho ou desacato relacionados ao processo trabalhista. Silva, apesar de negar competência criminal à Justiça do Trabalho, defende a competência desta para julgar o habeas corpus impetrado de prisão por desacato ou por desobediência decretada pelo juiz do trabalho, o que soa contraditório porque a matéria debatida no writ, nessas hipóteses, relacionam-se com o direito penal em regra. Este autor já havia sustentado, de lege lata, a competência penal da Justiça Obreira, tendo mudado, ao que parece, de opinião. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 351 É mais consistente, todavia, o entendimento de que o Texto Constitucional não dotou a Justiça do Trabalho de competência criminal. A ampliação da competência para abarcar a penal reclama a reforma dos arts. 109 e 114 da Carta. Infelizmente, o Senado Federal não acolheu, no relatório aprovado em primeiro turno, a ampliação da competência da Justiça do Trabalho para esses crimes. Desse modo, a competência para julgar o habeas corpus das prisões criminais relacionadas ao exercício da jurisdição trabalhista ainda está afeta ao Tribunal Regional Federal e ao Superior Tribunal de Justiça, conforme seja apontado como autoridade coatora, respectivamente, o juiz da Vara do Trabalho ou do Tribunal Regional do Trabalho. Urge, todavia, seja implementada na Reforma do Poder Judiciário a competência penal da Justiça do Trabalho para os crimes decorrentes das relações de trabalho e os originados no exercício da jurisdição trabalhista, devendo a Câmara dos Deputados promover as modificações no texto que retorna àquela Casa” (“O habeas corpus e a competência da Justiça do Trabalho”. In Genesis — Revista de Direito do Trabalho. Curitiba, n. 143, novembro 2004). Ao menos quanto ao habeas corpus, portanto, avançou o constituinte derivado, com a presente reforma. Mas como mencionado anteriormente e endossando as palavras do Procurador do Trabalho e Presidente da ANPT — Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho, Sebastião Vieira Caixeta, é necessário um avanço mais profundo na ampliação da competência da Justiça do Trabalho, para abranger os crimes decorrentes das relações laborais. 6.3. Habeas data Já defendíamos a competência da Justiça do Trabalho para julgar o habeas data, mesmo na falta de previsão legal específica, em nosso livro A Proteção Constitucional da Intimidade e da Vida Privada do Empregado (São Paulo: LTr, 2000). Dada a relativa carência de estudos sobre este instituto e sua aplicação no âmbito trabalhista, supomos interessante reproduzir, aqui, algumas reflexões que então propuséramos, ao abordar, particularmente, a questão da manipulação dos dados pessoais do trabalhador: “Uma das manifestações mais significativas da intimidade e da vida privada é o direito de os indivíduos conhecerem as informações que outras pessoas ou entidades tenham sobre a sua pessoa (...). O direito à autodeterminação informativa está (...) intrinsecamente 352 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO relacionado com o direito à intimidade e à vida privada e diz respeito ao controle que o indivíduo deve ter sobre todos os dados, registros e informações que lhe digam respeito (...). Como direito integrante do rol das liberdades públicas, o direito à autodeterminação informativa deve ser exercido em face de todos, o Poder Público, a sociedade ou o particular. Conseqüentemente, deverá prevalecer no âmbito das relações de trabalho, durante ou antes que o contrato de trabalho se estabeleça. Nesse âmbito, merece especial atenção, por se tratar de relação onde o patamar de desigualdade é patente em virtude da subordinação jurídica do trabalhador” (op. cit., p. 162/164). Sobre os limites do poder de direção do empregador, no que pertine ao direito à autodeterminação informativa do empregado, anotáramos, com apoio em Santos Cifuentes (Derechos personalíssimos. 2ª ed. actual. ampl. Buenos Aires: Astrea, 1995): “a) O empregador não poderá sequer coletar os chamados dados ‘sensíveis’, considerados como aqueles relativos a religião, raça, ideologia, política, tipo físico, cor de pele, peso, tendências psíquicas, hábitos, vícios ou práticas pessoais, pois seria ‘fácil instrumento de ações de discriminação proibidas pela lei’. (...) b) Quanto aos dados ‘nominativos’, considerados aqueles identificadores da pessoa, tais como propriedades e contas bancárias, admite-se o armazenamento deles pela empresa apenas se estiverem relacionados com o contrato de trabalho ou se houver o consentimento do empregado. c) A divulgação dos dados pessoais do trabalhador só pode ser efetuada pelo empregador com o seu expresso consentimento, mesmo que já não seja seu empregado. d) O empregador não poderá impedir que o empregado tenha acesso aos seus dados. e) Extinto o contrato de trabalho, a manutenção dos dados na empresa depende de autorização do empregado, exceto para os casos previstos em lei (como, por exemplo, aqueles necessários para eventuais fiscalizações da Previdência Social ou do Ministério do Trabalho). f) A existência de erros ou falsidades nos registros do trabalhador dá a este o direito de efetuar a respectiva retificação. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 353 g) O empregador não pode utilizar os dados pessoais do empregado para finalidades estranhas à relação laboral. Nesse contexto, percebe-se que o empregado tem o direito de acessar a informação, conhecendo-a, corrigindo-a ou atualizando-a, assim como de exigir que cesse a sua utilização com outro objetivo ou a sua divulgação. (...) O direito de acesso aos dados pessoais do cidadão tem tanta importância que o constituinte brasileiro instituiu uma garantia específica para viabilizar a tutela jurisdicional do referido direito (...). É incontestável (...) a relação do habeas data com a salvaguarda dos direitos da personalidade, em especial com o direito à autodeterminação informativa, uma das manifestações do direito à intimidade e à vida privada. (...) Poderia o habeas data ser utilizado pelo empregado para ter acesso aos seus dados pessoais que estivessem em poder do empregador? A questão envolve o estudo do sujeito passivo da referida ação constitucional. (...) A expressão ‘entidades de caráter público’, segundo José Afonso da Silva, ‘não pode referir-se a organismos públicos, mas a instituições, entidades e pessoas jurídicas privadas que prestem serviços para o público ou de interesse público’. Para Jorge Radi Jr., o Texto Constitucional é claro no sentido de atribuir a característica de ‘público’ ao registro ou ao banco de dados e não à entidade. O legislador infraconstitucional explicitou o verdadeiro alcance da expressão, preceituando no art. 1º, parágrafo único, da Lei n. 9.507/ 97 que se considera de caráter público todo o registro ou banco de dados que contenha informações passíveis de transmissão a terceiros ou que não sejam de uso privativo do órgão ou entidade produtora ou depositária dessas informações. (...) a interpretação do art. 5º, inciso LXXII, da Constituição Federal deve ser extensiva, partindo-se do pressuposto de que se trata de verdadeira garantia do exercício de direito integrante do rol de liberdades públicas. Nesse sentido, seria um paradoxo admitir que as informações que o Estado possui acerca de um indivíduo possam ser acessadas/ retificadas através de habeas data, e aquelas constantes do banco de dados de uma empresa, não. O empregado estaria sendo prejudicado, pelo simples fato de ser empregado, pois não teria à sua disposição tão importante garantia constitucional, em verdadeira afronta ao princípio da igualdade. 354 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Atualmente, considerando-se que os detentores do poder econômico influenciam diretamente os indivíduos e as relações sociais — em algumas oportunidades, mais que o próprio Estado —, é imprescindível que a garantia constitucional do habeas data possa ser utilizada também em face dos particulares. (...) Pela expressão ‘entidades de caráter público’, portanto, devem-se compreender as empresas que, por quaisquer motivos, possuam registros ou bancos de dados de trabalhadores, sejam estes ‘terceirizáveis’ ou não. Uma vez existente o armazenamento de informações sobre os indivíduos, eles, no exercício do direito à autodeterminação informativa, deverão ter um meio de acesso aos mesmos. E o habeas data representa a forma mais efetiva e eficaz de fazer valer tal direito (...)” (op. cit., p. 164/165 e 196/200). 7. O Fundo de Garantia das Execuções Trabalhistas Uma das mais interessantes novidades trazidas pela emenda que reforma o Judiciário está inserida no seu artigo 3º: a determinação ao legislador ordinário no sentido de que crie um Fundo de Garantia das Execuções Trabalhistas. Todos os que militam na Justiça do Trabalho sabem o tormento em que às vezes se transforma o processo de execução, seja pelo longo tempo que demanda até a efetiva satisfação do credor — não raro, tempo superior ao do processo de conhecimento — seja pela impossibilidade de obter essa satisfação, por insolvência ou simples desaparecimento do devedor. Há um vastíssimo campo, aqui, para o legislador ordinário explorar, como, por exemplo, prever que o Fundo possa pagar imediatamente ao trabalhador e se sub-rogar na dívida perante o executado. O interessante a observar, ainda, é a previsão, já demarcada constitucionalmente, de que integrem esse Fundo as “multas decorrentes de condenações trabalhistas e administrativas oriundas da fiscalização do trabalho”. Um problema com que se defrontam os Membros do Ministério Público do Trabalho seja quando obtêm do investigado, no âmbito dos procedimentos administrativos por eles conduzidos, o compromisso de ajustamento da conduta às exigências legais, nos termos do § 6º, do art. 5º, da Lei n. 7.347/85, seja quando ajuízam ação civil pública, refere-se NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 355 à destinação da multa prevista no art. 11 da lei mencionada. À falta de disciplina específica, no âmbito trabalhista, do fundo a que alude o art. 13, também da lei citada, tem-se destinado a multa ao FAT — Fundo de Amparo ao Trabalhador, criado pela Lei n. 7.998/90 e alterado pela Lei n. 8.019/90. Como não existe a devida transparência sobre a destinação dos recursos do FAT, há, no âmbito do Ministério Público do Trabalho, discussão que tem se direcionado para a apresentação de anteprojeto de lei que institua um fundo específico para defesa dos direitos difusos e coletivos trabalhistas, para o encaminhamento das multas ajustadas em TAC’s (Termos de Ajustamento de Conduta) e objeto de condenações em ações civis públicas. Dependendo da forma como seja instituído e regulamentado e, principalmente, dependendo de como for administrado, seria possível analisar a hipótese também do direcionamento dessas multas ao referido Fundo de Garantia de Execuções Trabalhistas. 8. Conclusão Eis, portanto, algumas considerações iniciais sobre a Reforma do Judiciário, que se prestam única e exclusivamente como colaboração aos debates, como idéias para reflexão. Apenas com o transcorrer do tempo é que será possível avaliar o alcance e o acerto (ou desacerto) da alteração constitucional, que amplia a competência da Justiça do Trabalho. Apenas com a sedimentação e com a incorporação dessas novas matérias, é que haverá concretas e reais possibilidades de verificar se a reforma foi capaz de dar à Justiça do Trabalho aptidão para desempenhar seu papel de pacificadora das relações decorrentes do eterno embate capital/trabalho, para fazer concretos os princípios que norteiam a dignidade da pessoa humana, ou se a reforma apenas deu à Justiça do Trabalho um papel burocrático, com característica claramente arrecadadora. Enfim... . Apenas o tempo dirá se a reforma do Judiciário transformou a Justiça do Trabalho naquela que se faz necessária à sociedade. 356 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Acidente de Trabalho — Competência da Justiça do Trabalho: Os Reflexos da Emenda Constitucional n. 45 Saulo Tarcísio de Carvalho Fontes (*) I. Introdução Na atualidade, impera forte dissenso na doutrina e jurisprudência acerca da competência para dirimir litígios que se referem a indenizações decorrentes de acidente de trabalho e doença profissional. O que se pretende nesta abordagem é enfocar a adequada interpretação sobre a matéria, agora já sob a ótica do Texto Constitucional posterior à Emenda Constitucional n. 45, recentemente promulgada. Inicialmente, temos que reconhecer que o atual quadro jurisprudencial é bastante instável, as jurisprudências do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça insistem na competência da Justiça Estadual, já o Tribunal Superior do Trabalho e as diversas instâncias trabalhistas, bem como decisões de alguns Tribunais de Justiça vêm reconhecendo a competência da Justiça do Trabalho, quando se trata de indenização decorrente do acidente de trabalho em face do empregador. O fundamento central daqueles que defendem a competência da Justiça Comum Estadual é o texto inserto no art. 109, inciso I, da Constituição Federal que trata da competência dos juízes federais. Agregam outros argumentos secundários, tais como tradição legislativa constitucional e jurisprudencial, bem como se fundamentam na legislação ordinária sobre acidente de trabalho, que estabelece a competência da Justiça Estadual(1). (*) Mestre em Direito pela UFPE. Professor da Escola Superior da Magistratura do Trabalho do Maranhão. Juiz do Trabalho Titular da Vara de Chapadinha-MA. (1) O art. 129 da Lei n. 8.213/91 dispõe, in verbis: “Art. 129. Os litígios e medidas cautelares relativos a acidentes do trabalho serão apreciados: I — na esfera administrativa, pelos órgãos da Previdência Social, segundo as regras e prazos aplicáveis às demais prestações, com prioridade para conclusão; II — na via judicial, pela Justiça dos Estados e do Distrito Federal, segundo o rito sumaríssimo, inclusive durante as férias forenses, mediante petição instruída pela NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 357 O que se pretende demonstrar aqui é o desacerto de tal entendimento, que parte de premissas equivocadas, analisando-se pontualmente as argumentações que têm alimentado o debate até o momento e, ao mesmo tempo, introduzir uma discussão nova, qual seja a insustentabilidade da tese da competência da Justiça Estadual em face da nova redação dada ao art. 114 da Constituição Federal de 1988 pela novel Emenda 45. II. Disciplina da matéria nas Constituições anteriores A Constituição de 1946, no art. 123, § 2º, estabelecia diretamente que a competência para julgamento das ações de acidente de trabalho era da Justiça Comum, trazendo uma exceção expressa à competência da Justiça do Trabalho, ao dispor sistematicamente: “Art. 123 — Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregados e empregadores, e as demais controvérsias oriundas de relações do trabalho regidas por legislação especial. § 1º — Os dissídios relativos a acidentes do trabalho são da competência da Justiça ordinária.” Dispositivo no mesmo sentido foi mantido de modo expresso na Constituição Federal de 1967, que estabelecia a competência da Justiça Estadual para julgamento de pleitos indenizatórios decorrentes de acidente de trabalho, dispondo o art. 119 da referida Carta literalmente: “Aos Juízes federais compete processar e julgar, em Primeira Instância: I — as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal for interessada na condição de autora, ré, assistente ou oponente, exceto as de falência e as sujeitas à Justiça Eleitoral, à Militar ou à do Trabalho, conforme determinação legal.” Ainda dessa mencionada Constituição, o art. 134, § 2º, estabelecia que “Os dissídios relativos a acidente do trabalho são da competência da Justiça ordinária”. Com o advento da Emenda Constitucional n. 01, de 1969, houve alteração do Texto Constitucional, mas foi mantida a competência da Justiça Estadual, passando a estabelecer o art. 142 da Constituição o seguinte: prova de efetiva notificação do evento à Previdência Social, através de Comunicação de Acidente do Trabalho — CAT”. 358 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO “Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregados e empregadores, e, mediante lei, outras controvérsias oriundas da relação de trabalho. § 2º Os litígios relativos a acidente do trabalho são da competência da Justiça Ordinária dos Estados, do Distrito Federal ou dos Territórios.” A Constituição de 1988 não repetiu essa normatização das Constituições precedentes. A única menção à competência sobre acidente de trabalho está contida no inciso I, do art. 109, que trata da competência dos Juízes federais, sendo apenas uma norma de exceção, na medida em que se limita a excluir da competência da Justiça Federal ações que versem sobre acidente de trabalho. Como se vê o ordenamento jurídico constitucional anterior estabelecia expressamente a competência da Justiça Comum para julgar ações acidentárias, este fato histórico, que é utilizado como indicativo de competência da Justiça Estadual, a nosso ver tem efeito oposto. Não se pode estabelecer uma espécie de “competência por tradição”, pois tal critério agride o princípio do juízo natural, devendo, por conseguinte, as regras de competência serem estabelecidas no ordenamento jurídico vigente, seja diretamente, seja por atribuição do legislador constituinte ao legislador ordinário. O silêncio da Constituição atual, que elegeu o critério de competência residual e excetuou apenas da Justiça Federal a competência para demandas que envolvam acidente de trabalho, já seria uma manifestação eloqüente de que tal competência foi alterada com a Constituição Federal de 1988, pois se o legislador constituinte originário tencionasse manter a competência da Justiça comum também para as demandas envolvendo acidente de trabalho, o teria feito expressamente, tal como ocorreu nas Constituições anteriores ou teria excepcionado expressamente a competência da Justiça do Trabalho, quando se tratasse de tais litígios(2). III. O dissenso jurisprudencial O Tribunal Superior do Trabalho, após um longo período de oscilações, consolidou o entendimento de que a Justiça do Trabalho é competente para dirimir litígios decorrentes de acidente de trabalho e doença (2) No mesmo sentido, OLIVEIRA, Sebastião Geraldo. Proteção jurídica à saúde do trabalhador, 2ª ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: LTr, 1988, p. 238. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 359 profissional envolvendo empregado e empregador. Os fundamentos que alicerçam a jurisprudência daquela Corte são bem representados no acórdão da lavra do Ministro Barros Levenhagen, que bem os explicita: “AÇÕES POR DANOS MATERIAL E MORAL PROVENIENTES DE INFORTÚNIOS DO TRABALHO. COMPETÊNCIA DO JUDICIÁRIO DO TRABALHO EM RAZÃO DA MATÉRIA. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 114, 7º, INCISO XXVIII, E 5º, INCISO X, DA CONSTITUIÇÃO. As pretensões provenientes da moléstia profissional ou do acidente do trabalho reclamam proteções distintas, dedutíveis em ações igualmente distintas, uma de natureza nitidamente previdenciária, em que é competente materialmente a Justiça Comum, e a outra, de conteúdo eminentemente trabalhista, consubstanciada na indenização reparatória dos danos material e moral, em que é excludente a competência da Justiça do Trabalho, a teor do art. 114 da Carta Magna. Isso em razão de o art. 7º, inciso XXVIII, da Constituição dispor que são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, seguro contra acidente de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa, em virtude do qual impõe-se forçosamente a ilação de o seguro e a indenização pelos danos causados aos empregados, oriundos de acidentes de trabalho ou moléstia profissional, se equipararem a verbas trabalhistas. O dano moral do art. 5º, inciso X, da Constituição, a seu turno, não se distingue ontologicamente do dano patrimonial, pois de uma mesma ação ou omissão, culposa ou dolosa, pode resultar a ocorrência simultânea de um e de outro, além de em ambos se verificar o mesmo pressuposto do ato patronal infringente de disposição legal, sendo marginal o fato de o cálculo da indenização do dano material obedecer ao critério aritmético e o da indenização do dano moral o critério estimativo. Não desautoriza, de resto, a ululante competência do Judiciário do Trabalho o alerta de o direito remontar pretensamente ao art. 159 do Código Civil. Isso nem tanto pela evidência de ele reportar-se, na verdade, ao art. 7º, inciso XXVIII, da Constituição, mas sobretudo em face do pronunciamento do STF, em acórdão da lavra do Ministro Sepúlveda Pertence, no qual se concluiu não ser relevante para fixação da competência da Justiça do Trabalho que a solução da lide remeta a normas de direito civil, desde que o fundamento do pedido se assente na relação de emprego, inserindo-se no contrato de trabalho (Conflito de Jurisdição n. 6.959-6, Distrito Federal). Incidência do Enunciado n. 333 do TST. Recurso não conhecido.”(3) A mencionada decisão tem servido de paradigma e representa com perfeição o ponto de vista do TST, bem como a posição dos que militam em favor da tese da competência da Justiça especializada. (3) TST-RR 804918/2001.7 (4ª Turma), Rel. Min. Barros Levenhagem, DJU 7.11.2003. 360 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Já o Superior Tribunal de Justiça, em sentido oposto, editou a Súmula 15 que estabelece a competência da Justiça Comum para as ações acidentárias, dispondo “compete à Justiça Estadual processar e julgar litígios decorrentes de acidente de trabalho”. Embora do teor da Súmula não esteja excluída expressamente a possibilidade de que a ação acidentária contra o empregador seja de competência da Justiça do Trabalho, as decisões adotadas pelo Supremo Tribunal de Justiça são praticamente uniformes ao dar esta aplicação abrangente à Súmula 15, atribuindo a competência geral da Justiça Estadual para todas as ações acidentárias(4). A análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é mais complexa, na medida em que há conflitos lógicos insustentáveis em casos que se referem à competência da Justiça do Trabalho e existem mesmo decisões expressamente conflitantes. Do Supremo Tribunal Federal e, merece referência expressa a decisão do Ministro Sepúlveda Pertence, proferida no CJ 6.959-6, que tem servido de parâmetro para orientar outras decisões daquele Tribunal e tem se espraiado para as demais Cortes Superiores, estabelecendo literalmente que “A determinação da competência da Justiça do Trabalho não importa que dependa a solução da lide de questões de direito civil, mas sim, no caso, que a promessa de contratar, cujo alegado conteúdo é o fundamento do pedido, tem sido feita em razão da relação de emprego, inserindo-se no contrato de trabalho”.(5) A idéia é de que não importa o fundamento do direito vindicado, não interessa a natureza da norma que o ampara, o que define a competên(4) Serve de exemplo a seguinte decisão, que confirma a aplicabilidade da súmula, inclusive para a hipótese de indenização em face do empregador. STJ-CC 42958 Ac. 2004/0050166-3 (2ª Seção), Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJU 18.10.2004, p. 183. “PROCESSUAL CIVIL. CONFLITO NEGATIVO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO AGRAVO REGIMENTAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR CULPA DE EX-EMPREGADORA DECORRENTE DE DOENÇA PROFISSIONAL. NATUREZA CIVIL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. SÚMULA 15/STJ. INCIDÊNCIA. MATÉRIA CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO E. STF. I. A ação de indenização por ato ilícito da ex-empregadora, quando decorre de seqüela física oriunda da atividade laboral, é de natureza civil, e cabe ser processada e julgada perante a Justiça Estadual, conforme o enunciado da Súmula n. 15/STJ. Precedentes do STJ. II. Não incumbe a esta Corte pronunciar-se a respeito de matéria de natureza constitucional, eis que de exclusiva competência do E. STF, em sede de recurso extremo. III. Agravo regimental improvido.” (5) STF. Sessão Plenária. CJ 6.959-6 9 (DF). Relator Ministro Sepúlveda Pertence. Ac. de 23 maio de 1990. Revista LTr, São Paulo, v. 59, n. 10, 1995 p. 1.375.. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 361 cia da Justiça do Trabalho é o fato de a controvérsia decorrer da relação de emprego. Fundado nesse mesmo raciocínio, que foi acolhido pelo Supremo Tribunal Federal, o mesmo Ministro Sepúlveda Pertence, no Agravo de Instrumento n. 349976/RJ, concluiu que era da Justiça do Trabalho a competência envolvendo um caso de acidente de trabalho, no qual se pleiteava indenização contra o ex-empregador, com base na responsabilidade civil, anulando o processo que havia sido julgado perante a Justiça Comum.(6) Como decorrência desta decisão tornou-se, por um certo tempo, corrente a idéia de que o Supremo Tribunal Federal finalmente evoluíra para uma interpretação mais adequada da matéria. Ocorre, porém, que em decisões supervenientes diversos Ministros do Supremo Tribunal Federal, inclusive em ações relatadas pelo próprio Ministro Sepúlveda Pertence, manifestaram-se retornando ao entendimento de que a Justiça Estadual seria a competente(7), merecendo referencia a exceção do Ministro Marco Aurélio de Melo que tem mantido a sua posição favoravelmente à competência da Justiça do Trabalho em hipóteses tais. Outra matéria conexa a esta, que foi apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, é a uniformizada na Súmula 736, que evidencia a contradição lógica daquela Corte. A referida súmula enuncia: “compete à Justiça do Trabalho julgar as ações que tenham como causa de pedir o descumprimento de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores ”. Torna-se absolutamente insustentável que omissões ou ações do empregador relativamente às normas preventivas do acidente e doença profissional sejam tratadas pela Justiça do Trabalho e, ao mesmo tempo, os efeitos danosos concretos que tais ações ou omissões provoquem, seja o acidente de trabalho, seja a doença profissional, continuem a ter sua apreciação fora da esfera de competência da Justiça especializada. Podemos apontar no conjunto jurisprudencial do STF uma fundamentação bastante superficial da controvérsia. Todas as decisões fazem (6) STF. AI 349976 (RJ). Relator Ministro Sepúlveda Pertence. DJU 22.10.2001, p. 27. (7) STF. RE 388227 AgR (SP). Relator Min. Sepúlveda Pertence. DJU 8.10.2004, p. 6; STF. AI 476279 (SP). Relator Min. Nelson Jobim. DJU 16.4.2004, p. 3.753 e STF. RE 400377 AgR (DF). Relator Min. Gilmar Mendes. DJU 12.11.2004, p. 883, dentre outros. 362 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO simples menção ao art. 109, inciso I, como estabelecedor de competência da Justiça Comum, afirma-se de um modo tal como se não houvesse outra interpretação possível a ser analisada, a de que aquele dispositivo, não atribui competência a Justiça Comum, mas apenas excetua a competência da Justiça Federal ordinária para ações acidentárias. Um outro aspecto que merece destaque é o tratamento diverso do que é dado em hipóteses análogas. Complementação de aposentadoria, promessa de compra e venda, dano moral, todo litígio entre empregado e empregador que decorra da relação de emprego é da competência da Justiça do Trabalho, segundo o próprio STF. Torna-se não razoável o entendimento que exclui justamente a lesão mais relevante, aquela que diz respeito à reparação por lesão à integridade física ou mesmo a supressão da vida do trabalhador. IV. Das definições de competência no Texto Constitucional A Constituição Federal de 1988 estabeleceu, como critério para definição da competência, elencar casuisticamente a competência das Justiças Especializadas e da Justiça Federal, sendo a matéria remanescente de competência da Justiça Estadual, adotando assim o denominado “critério residual” para competência da Justiça Comum dos Estados. Ora, em nenhum dispositivo constitucional se estabelece diretamente que aos juízes estaduais compete processar e julgar as demandas envolvendo acidente de trabalho. O mencionado art. 109, I, diz que os juízes federais são competentes para processar e julgar “as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes ”, para em seguida excetuar as ações decorrentes de falência, acidente de trabalho, as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho. Verifica-se que nem mesmo nesse dispositivo se estabelece que essas causas de acidente de trabalho, ali excetuadas, sejam julgadas pela Justiça Comum Estadual. Apenas se alimentando em dispositivos de Constituições anteriores e em uma suposta recepção de textos infraconstitucionais é que se tem entendido que, na hipótese, haveria então competência residual da Justiça dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. É inquestionável que nas hipóteses de demandas envolvendo o Instituto Nacional de Seguridade Social, em que se pleiteia direitos funda- NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 363 dos na ocorrência de acidente de trabalho, a competência é da Justiça Estadual, isso porque, a regra geral de competência da Justiça Federal para as demandas de interesse da União ficou afastada expressamente e, neste caso, o litígio não é abrangido pela esfera de competência de outra Justiça especializada, expressamente mencionado no Texto Constitucional, assim, aplicando-se a regra de competência residual, há o reconhecimento inconteste da competência da Justiça Comum. O mesmo argumento e raciocínio não pode ser aplicado, quando se trata de pleito indenizatório por dano moral e material decorrente da relação de emprego contra o empregador, isso porque a regra do art. 114 da Constituição Federal, mesmo antes da promulgação da Emenda 45, já dispunha como competência constitucional direta que litígios envolvendo trabalhadores e empregadores seriam de competência da Justiça do Trabalho, e admitindo que lei fixasse a competência para outras controvérsias decorrentes da relação de emprego. Pode-se falar, mesmo na hipótese do ordenamento vigente antes da Emenda 45, que há duas competências; a primeira, direta e compulsória, sendo assim inconstitucional qualquer lei que venha estabelecer outra competência, que não a da Justiça do Trabalho, para litígios que envolvam empregados e empregadores; a segunda, uma competência autorizada, significando que o Constituinte outorgou ao legislador a possibilidade de atribuir competência à Justiça do Trabalho para julgar litígios derivados de outras relações de trabalho, tais como pequena empreitada e pequena parceria. Isto leva à conclusão de que nestas hipóteses o dispositivo legal extensivo da competência não é inconstitucional. A primeira conclusão, qual seja, da competência compulsória da Justiça do Trabalho para todas as hipóteses em que haja pretensão fundada em relação de emprego, envolvendo empregado e empregador, é que interessa diretamente, pois se a conclusão é esta, ou seja, de competência compulsória da Justiça do Trabalho, qualquer lei que estabeleça em sentido diverso será obviamente, inconstitucional.(8) (8) Partilhando o mesmo entendimento, dentre outros, RODRIGUES PINTO, José Augusto. Processo Trabalhista de Conhecimento, 3ª ed., São Paulo: LTr, 1996, p. 113; FLORINDO, Valdir. Dano Moral e o Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1995, p. 90-98, VALE, Vander Zambeli. “Acidente de Trabalho — Culpa do Empregador — Indenização — Competência da Justiça do Trabalho”, Revista LTr, p. 60-08/1069 e OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção Jurídica à Saúde do Trabalhador, 2ª ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 1998, p. 237-240. 364 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Partindo desta premissa, remanesceria como possibilidade de exclusão da competência da Justiça do trabalho, apenas a hipótese de exceção expressa da Constituição Federal, que logicamente deveria estar inserida na seção constitucional que trata dos Tribunais e Juízes do Trabalho, especificamente no art. 114, algum dispositivo que excetuasse a regra geral constitucional compulsória do caput e dissesse algo semelhante ao que está dito no art. 109, inciso I, que afasta a regra geral de competência da Justiça Federal em algumas hipóteses. É evidente que mesmo antes da Emenda 45 não se constata esta exceção expressa da competência da Justiça do Trabalho e não se concebe uma conclusão de que tal competência estaria excetuada ao se dizer simplesmente que os juízes federais não têm competência para julgar acidente de trabalho, é lógico que o dispositivo em tela somente pode se referir à hipótese de demanda contra a entidade autárquica de previdência, pois se ali não houvesse tal exceção, a regra geral seria a competência da Justiça Federal. Não se diz expressa ou implicitamente que a Justiça do Estado é competente para julgar ações acidentárias e muito menos se excetua a regra geral de competência da Justiça do Trabalho, por meio de qualquer outra norma constitucional. V. Interpretação sistemática e lógica do razoável Passando a uma análise da matéria sob o enfoque de uma interpretação sistemática do ordenamento constitucional, seja posterior à Emenda 45, seja o precedente a esta, poderíamos ter, como já dito anteriormente, duas possibilidades distintas; na primeira, interpretarse-ia que ao fazer referência às ações acidentárias como excluídas da competência da Justiça Federal, estar-se-ia implicitamente a dizer que esta competência seria da Justiça Comum, desconsiderando e omitindo qualquer apelo lógico sistemático ao disposto no art. 114 da Constituição Federal e agora também aos incisos I e VI do mesmo artigo. A outra interpretação é mais abrangente e sistemática, leva em consideração que o art. 109 da Constituição Federal disciplina a competência dos Juízes federais, estabelecendo como regra geral a competência destes para os litígios que envolvam autarquia previdenciária federal, como pretendeu excluir a hipótese de indenização por acidente de trabalho contra tal autarquia, fez menção expressa da exceção no inciso I, o que resulta, pelo critério residual, que a competência seria da Justiça Comum. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 365 Toda esta interpretação em nada interfere como o caput do art. 114, no sistema anterior à Emenda 45, e muito menos em relação aos incisos I e II do art. 114, após a Emenda 45. Isto quer dizer que a exceção contida no inciso I não interfere na competência plena dada a Justiça do Trabalho pelo dispositivo constitucional que trata especificamente desta. Mesmo utilizando-se de uma interpretação lógico-formal direta, não se poderia chegar a uma conclusão diversa. Pela boa técnica de interpretação, jamais um dispositivo inserido no inciso de um artigo, excetuando-o, poderia ser aplicado para um artigo inteiramente diverso e que trata de matéria diversa. Mais grave é a contradição da interpretação que leva à competência da Justiça Estadual, quando se estende o processo hermenêutico para uma quadra de valores e princípios. O intérprete ao se deparar com duas possibilidades interpretativas deve optar por aquela que dê maior efetividade ao direito e maior coerência interna ao sistema. O direito à reparação por dano acidentário está inserido no próprio art. 7º, inciso XXVIII, da Constituição Federal, ao lado de todos os demais direitos que emergem da relação de emprego ou mesmo de outras modalidades de relação de trabalho em que há a necessidade de proteção. Não se pode conceber que este direito esteja afastado da competência da Justiça do Trabalho, que está constitucionalmente prevista para ser o órgão jurisdicional especializado que garanta uma adequada tutela desses direitos, levando em consideração a situação de hipossuficiência natural dos titulares desses direitos. VI. Os efeitos da Emenda 45 — A possibilidade de colisão de norma constitucional superveniente A conclusão da competência da Justiça do Trabalho para dirimir litígios referentes à indenização por acidente ou doença profissional, de responsabilidade do empregador, já era facilmente extraída do conjunto do Texto Constitucional, por uma adequada análise sistemática, todavia, torna-se agora indiscutível tal entendimento, por força da introdução do inciso VI do art. 114 que dispõe: “as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho ”, bem como do alargamento da competência geral para “relação de trabalho” em substituição à regra geral anterior “relação de emprego”. 366 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Este reforço argumentativo, que agora se introduz no debate, é no sentido de que, ainda que se admitisse que o texto vigente antes da promulgação da Emenda 45 a conclusão seria pela incompetência da Justiça do Trabalho, a alteração do referido inciso VI teria modificado esta situação. Avaliando o conteúdo constitucional posterior à promulgação da Reforma do Judiciário, temos um texto inserido no art. 109, I, que trata da competência da Justiça Federal, do qual se inferiria, segundo a tese que vem sendo acolhida pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, a competência da Justiça Comum Estadual. Do outro lado, temos a literalidade do inciso VI do art. 114 que dispõe diretamente sobre a competência da Justiça do Trabalho, estabelecendo ser esta competente para as ações que tratem de danos morais e materiais decorrentes da relação de trabalho. Para os que entendiam que a competência da Justiça Comum estava estabelecida no art. 109, inciso I, estaríamos diante de uma colisão de normas constitucionais, havendo a necessidade de resolução interna pelos critérios que são comumente apontados pela doutrina. Se estivéssemos diante de um texto legal ordinário, a antinomia se resolveria pelos três critérios clássicos apontados por Bobbio(9): o critério cronológico, de que a lei posterior revoga a anterior; o critério hierárquico, que atribui maior valor à determinada disposição normativa em face de outra, como por exemplo norma legal e constitucional; e, ainda, o critério de especialidade, ou seja, que a lei especial derroga a lei geral. Por estes três critérios, o efeito da resolução do conflito implicaria a adoção da fórmula do “tudo ou nada”, uma das normas é afastada do ordenamento jurídico ou considerada inaplicável para aquela hipótese. Todavia, em se tratando de colisão de Textos Constitucionais que se mantêm, concomitantemente, inseridos na Constituição, apesar da aparente ou real antinomia, a solução encontrada deve ser outra. Qualquer emenda constitucional somente revoga o texto anterior da Constituição quando expressamente declarar esta revogação ou substituir integralmente um dispositivo, não se aplica, na hipótese de antinomia constitucional, o terceiro critério, qual seja, o da revogação implícita, que se refere à incompatibilidade da norma anterior com a norma (9) BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10ª ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1991, p. 92-107. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 367 superveniente, como ocorre com a legislação ordinária e complementar. Isto quer dizer que as normas aparentemente colidentes terão que conviver dentro do ordenamento jurídico constitucional, resolvendo-se a contradição por mecanismos interpretativos que permitam a manutenção de ambas. Dois critérios para resolução de colisão de normas constitucionais têm obtido a consagração da doutrina e mesmo da jurisprudência na resolução de situações concretas: o critério da concordância prática de Hesse(10) e o critério da dimensão de peso e importância de Dworkin(11). Utilizando-se a concordância prática ou harmonização, procura-se encontrar o equilíbrio entre as normas colidentes, por um processo de ponderação que não atribui a prevalência de um texto sobre o outro, mas tenta manter aplicação simultânea e compatível de tais normas, deixando de aplicar uma delas, ou aplicando-a de modo diverso em um caso concreto. Na questão objeto da presente análise, tal raciocínio é perfeitamente aplicável. Partindo da premissa — com a qual não concordamos — de que o texto do art. 109, I, antes do advento da Emenda 45 dava competência à Justiça Comum para todas as ações que versassem sobre acidente de trabalho, e a introdução do dispositivo que determina que indenização por danos morais e materiais decorrentes da relação de trabalho são da competência da Justiça obreira, teríamos uma fácil compatibilidade concreta dos Textos Constitucionais, com uma interpretação “nova”, que resulte na aplicação de ambos. A interpretação que resolve a colisão é justamente aquela que não estende o sentido do art. 109, inciso I. Aquela que limita a competência da Justiça Comum somente às ações acidentárias contra o Instituto Nacional de Seguridade Social, sem se inferir que aquele texto dá competência à Justiça Estadual. Tal interpretação permite que o dispositivo anteriormente existente permaneça útil e aplicável e ao mesmo tempo dá a máxima aplicabilidade, sem exceções sistematicamente incongruentes, ao novo dispositivo constitucional que diz claramente, ser da competência da Justiça do Trabalho, “as ações que versem sobre indenização por danos morais e materiais decorrentes da relação de trabalho”. O outro critério, que é a dimensão de peso e importância, não leva à conclusão diversa. Analisando os valores e princípios gerais ordena(10) HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Trad. Pedro Cruz Villalon. 2.ed. Madrid: Centro de estudios constitucionales, 1992, p. 45-66. (11) DWORKIN Apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 65. 368 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO dos no conjunto constitucional, não se pode negar, pelo estrito ângulo da jurisdição comum, a falta de relevância ou de importância que teria o fato de a Justiça Estadual julgar ou não ações referentes ao acidente de trabalho. Nenhum valor constitucional ou princípio constitucional seria prestigiado, não haveria melhor concretização da proteção pelo fato de se atribuir à Justiça ordinária tal competência. Ao revés, reconhecer a competência da Justiça do Trabalho para as ações acidentárias decorre naturalmente do conjunto de princípios insertos na Constituição Federal de 1988, inclusive a proteção do hipossuficiente, que se esteia na idéia de justiça distributiva, impregnando toda normatização acerca dos direitos sociais, em especial dos direitos dos trabalhadores. A conclusão relativamente ao critério da dimensão de peso e importância é de que a interpretação que atende ao conjunto de princípios constitucionais é aquela que atribui a competência à Justiça do Trabalho para as ações acidentárias, pois tais litígios envolvem uma relação desequilibrada, sendo uma das partes hipossuficiente, razão que levou o legislador constitucional a criar uma Justiça especializada. Concluída a análise dos critérios, o que se quer deixar bastante explícito é que se fosse admitido que antes da Emenda Constitucional 45 a competência era da Justiça comum, a mudança introduzida pelo inciso VI do art. 114 da Constituição Federal de 1988, tem necessariamente de alterar a interpretação. O que se quer dizer é que uma norma constitucional posterior que não revogue expressamente outra ou não discipline integralmente o que a outra dispunha, embora não afaste a norma colidente que se manteve no texto do ordenamento jurídico constitucional, tem o efeito indubitável de produzir a possibilidade de uma mudança interpretativa compatibilizadora. VII. A dimensão das expressões “oriundas da relação de trabalho” e “decorrentes da relação de trabalho” A modificação introduzida pela Emenda 45 quanto à competência geral e constitucional compulsória da Justiça do Trabalho foi substancial. Anteriormente o caput do art. 114, embora se referisse a litígios decorrentes da relação de trabalho, fazia referência expressa à figura do empregador, o que exigia para configuração desta hipótese de competência direta a existência de um contrato de trabalho. A competência para outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho não decor- NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 369 ria diretamente da Constituição, mas apenas de lei ordinária que assim dispusesse, havendo apenas autorização da Constituição neste sentido. A novidade foi justamente a introdução, no inciso I, do art. 114, da expressão “oriundas da relação de trabalho”, que tornou mais abrangente a competência constitucional compulsória, bem como a confirmação específica das competências para as ações indenizatórias fundadas na responsabilidade civil, contida no inciso VI, do art. 144, que utiliza a expressão também geral “decorrentes da relação de trabalho”. Deste modo, verificando-se uma relação de trabalho e não existindo regra constitucional de exceção, aplica-se a competência direta prevista na Constituição Federal, sem necessidade de lei ordinária para estipular tal competência, como ocorria anteriormente. Além disto, nenhuma norma infraconstitucional poderá fixar competência diversa, pois estará em confronto com este novo comando constitucional. Remanesceu no inciso IX a possibilidade de competência legal derivada de autorização, mas neste caso para outras controvérsias vinculadas à relação de trabalho que não envolvam diretamente o trabalhador e o empregador ou tomador da mão-de-obra, como, por exemplo, lei que desse competência à Justiça do Trabalho para dispor sobre demandas relativas ao seguro-desemprego que envolvesse a Caixa Econômica Federal. Passando a relação de trabalho a ser o conteúdo determinante da competência constitucional, torna-se agora extremamente importante não só a clássica distinção entre relação de trabalho e contrato de trabalho, como também a distinção entre relação de trabalho e outras relações jurídicas. Conforme a orientação doutrinária consolidada, temos sem qualquer aporia a relação de trabalho vinculada ao conceito de contratos de atividade, ou seja, toda vez que a convenção entre as partes tiver como objeto um trabalho humano estar-se-ia diante da relação de trabalho. Neste sentido são inúmeras as manifestações da doutrina(12). (12) DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 1ª ed. São Paulo: LTr, 2002. “A Ciência do Direito enxerga clara distinção entre relação de trabalho e relação de emprego”. A primeira expressão tem caráter genérico: refere-se a todas as relações jurídicas caracterizadas por terem prestação essencial centrada na obrigação de fazer consubstanciada em labor humano. Refere-se, pois, a toda modalidade de contratação de trabalho humano modernamente admissível. A expressão relação de trabalho 370 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO Obviamente que o trabalho humano, na hipótese, deve ser de um dos contratantes, assim, se uma empresa contrata com outra pôr a mãode-obra de terceiros à disposição não estamos diante de uma relação de trabalho entre estas, mas de contrato de outra natureza. Podemos com base na sedimentação doutrinária histórica definir então a competência da Justiça do Trabalho para todos os contratos de atividade(13), extensiva a todas as hipóteses nas quais o objeto é o trabalho humano de um dos próprios contratantes. Esta relação de trabalho pode ser subordinada, eventual, autônoma ou de trabalho avulso, o que interessa é haver como objeto o trabalho humano e, conseqüentemente, estará definida, na hipótese, a competência Justiça do Trabalho. O limite, a nosso ver, é que o contrato tenha de um lado sempre um trabalhador, ou seja, aquele que com esforço próprio e direto cumpre a sua parte na contratação, tendo como contraprestação o pagamento da outra parte contratante. Assim, se um médico, enquanto pessoa física, é contratado por um paciente, a condição de profissionista atrai a competência da Justiça de Trabalho. Também a relação que se dá entre médico e Hospital, ainda que em caráter autônomo, será de competência da Justiça obreira. Apenas a contratação do Hospital pelo paciente, para prestação de serviços, é considerada relação de consumo, com competência da Justiça Estadual. Portanto, considerando os argumentos expostos, significa dizer que a competência constitucional para acidente de trabalho passou a envolver não só a relação de emprego, mas todas as hipóteses em que o engloba, desse modo, a relação de emprego, a relação de trabalho autônomo, a relação de trabalho eventual, de trabalho avulso e outras modalidades de pactuação de prestação de labor (como trabalho de estágio, etc.). Traduz, portanto, o gênero a que se acomodam todas as formas de pactuação de prestação de trabalho existentes no mundo jurídico atual. A relação de emprego, entretanto, é, do ponto de vista técnico-jurídico, apenas uma das modalidades especiais de relação de trabalho juridicamente configuradas. Op. cit., p. 279-280. (13) GOMES, Orlando. Curso de Direito do Trabalho. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990. “Estas modalidades de convenções não se confundem com o contrato de trabalho propriamente dito. Embora tenham por fim a atividade do homem, diferenciam-se nitidamente pela natureza do vínculo obrigacional que criam. Poderiam todos ser englobados na denominação genérica de contratos de atividade, adotando-se, neste passo, a lição de Jean Vicente que, com esta expressão, designa todos os contratos nos quais a atividade pessoal de uma das partes constitui o objeto da convenção ou uma das obrigações que ela comporta”. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 371 infortúnio tenha decorrido em uma relação de trabalho, dentre as quais a empreitada, parceria, representação comercial de autônomo e prestação de serviços eventuais. VIII. A interpretação em consonância com o princípio da proteção A Constituição Federal admite o tratamento desigual das pessoas que estejam em situação também de desigualdade. Esta possibilidade em nada afronta o princípio geral da isonomia, ao contrário, ajuda a concretizá-lo, na medida em que desigualdades materiais fazem parte de uma realidade que impede o próprio objetivo igualitário a que o ordenamento se propõe. O princípio da proteção do trabalhador é um desdobramento desse tratamento fundado em uma idéia de Justiça que observa a proporcionalidade, ou seja, a Justiça distributiva, em vez da Justiça meramente comutativa. Aqueles que não detêm os meios de produção, que têm como patrimônio apenas a sua força de trabalho, logicamente estão fragilizados diante do empregador ou tomador de serviços, que além de ser proprietário do capital tem o poder diretivo, dentre outros que subordinam com maior ou menor intensidade aquele que põe a mão-de-obra à disposição. É inegável que o princípio da proteção decorre dos comandos constitucionais, tanto que o legislador cria uma Justiça especializada, com procedimentos mais céleres e maior acessibilidade, com o propósito de melhor garantir os direitos dos trabalhadores e dar a estes direitos maior efetividade ou eficácia social. Deste modo, não se pode conceber o afastamento da competência desta Justiça, justamente para apreciação da maior lesão que pode sofrer o trabalhador como decorrência de ato ou omissão do empregador. Utilizando-se o raciocínio interpretativo a fortiori (14), temos absolutamente insensato que direitos patrimoniais decorrentes do contrato de trabalho ou conexos, como, exempli gratia, complementação de aposentadoria instituída pelo empregador, sejam de competência da Justiça (14) MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. “Os argumentos a majori ad minus e a minori ad majus levam a aplicar uma norma aos casos não previstos, nos quais se encontra o motivo, a razão fundamental da hipótese expressa, porém mais forte, em mais alto grau de eficácia. Compreende-se os dois em uma denominação comum — argumento a fortiori ”. Op. cit., p. 246. 372 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO do Trabalho, e lesões à saúde, danos à integridade física e até mesmo a hipótese de morte do trabalhador, em situação que decorre diretamente do próprio trabalho, sejam afastados da jurisdição especial criada com fundamento na idéia de proteção. O entendimento dominante na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, neste caso, destoa do próprio senso comum. IX. Os efeitos negativos da multiplicidade de competências — Decisões conflitantes e dificuldade de acesso à prestação jurisdicional Um outro elemento que deve ser considerado pelo intérprete, pautando-se nos critérios de razoabilidade, é eliminar a proliferação de competências para tratar da mesma situação fática ou de matérias conexas que implicam, inúmeras vezes, em questões prejudiciais para apreciação de mérito das postulações. Pelo entendimento reinante no Supremo Tribunal Federal, o trabalhador que sofrer um acidente de trabalho poderá demandar na Justiça do Trabalho para obter reparação de seu empregador, em face da estabilidade prevista o art. 118 da Lei n. 8.213/91. Com referência ao mesmo fato, o trabalhador teria que ajuizar ação na Justiça Comum Estadual, pleiteando a indenização por responsabilidade civil do empregador. Postularia, ainda, na Justiça Federal contra a autarquia previdenciária, direitos referentes aos benefícios de auxílio-doença acidentário, caso houvesse resistência na concessão pelo órgão previdenciário. Por fim, demandaria ainda o INSS para indenização acidentária mantida pelo SAT — Seguro de Acidente de Trabalho, em uma nova ação, na medida em que a cumulação da ação acidentária contra o INSS e o empregador não seria, acolhida. Apenas como demonstração do absurdo, na situação narrada, se não for aceita prova emprestada, teríamos a possibilidade de haver quatro perícias judiciais sobre um mesmo infortúnio e suas conseqüências. A sistemática que resulta da interpretação dominante no STF e STJ dá origem a outras questões, que não são cerebrinas, pois têm ocorrências reiteradas no dia-a-dia dos Tribunais. Inúmeras vezes o acidente de trabalho envolve trabalhador com contratação informal cujo possível empregador não admite tal condição. Ora, a Justiça do Trabalho é a única competente para decidir sobre uma pretensão fundada na relação de emprego, ainda que tal relação NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 373 seja, ao final, considerada inexistente, pois o que define a competência é justamente a “pretensão”. Neste caso, o empregado teria que demandar o empregador para obter o reconhecimento da relação de emprego e somente depois tentar reconhecer os direitos aos benefícios previdenciários e ainda mais para postular na Justiça Estadual uma indenização em face do mesmo empregador, que havia negado a sua condição de empregado. É, sem dúvida, mais conveniente, oportuno e coerente, que pelo menos o trato das questões em face do empregador sejam reunidas em uma única demanda com um mesmo Juízo competente. Assim este poderá decidir sobre a existência da relação de emprego, ocorrência de acidente de trabalho, conseqüências incapacitantes deste acidente, remuneração e contribuição previdenciária a ser recolhida, tudo isto sem a necessidade da ilógica multiplicidade de competências, que atenta inclusive contra o direito de razoável duração do processo, constitucionalizado expressamente pela Emenda n. 45, no inciso LXXVIII, do art. 5º, da CF/88. X. Conclusões a) Mesmo antes da promulgação da Emenda Constitucional n. 45, que trata da Reforma do Poder Judiciário, a interpretação lógico-sistemática da Constituição Federal já levava à conclusão de competência da Justiça do Trabalho para os pleitos de indenização acidentária, em face do empregador. O art 109, I da CF/88 não atribui competência à Justiça Estadual, mas apenas exclui a competência da Justiça Federal, assim, tratando-se de demanda contra a autarquia previdenciária, por expressa exceção da competência geral e considerando o critério residual adotado quanto à competência da Justiça comum, a competência passa a ser desta última. O mesmo raciocínio não se aplica na hipótese de ação acidentária contra o empregador, pois a competência geral é da Justiça do Trabalho e, neste caso, não está excepcionada pelo inciso I do art. 109. b) Partindo-se da premissa de validade da interpretação contrária à competência da Justiça do Trabalho, pela redação original da CF/88, o advento da Emenda n. 45 introduz dispositivos novos sobre a matéria. Haveria, no caso, colisão de normas constitucionais, especialmente o disposto no inciso I do art. 109 e o disposto no inciso VI do art. 114. A resolução desta colisão entre norma já existente e outra introduzida sem revogação expressa da anterior, se resolve, na hipótese, pelos critérios de 374 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO concordância prática e dimensão de peso e importância, levando, se necessário, a uma nova interpretação constitucional, de modo que os dispositivos se tornem aplicáveis e coerentes, sendo inarredável a conclusão de que o art. 109, I, passaria a ter como única interpretação possível a que se refere apenas à competência residual da Justiça Comum para pleitos em face do INSS. c) A interpretação deve considerar a lógica do razoável e a opção pelo sentido compatível com os princípios constitucionais explícitos e implícitos, em especial o princípio da proteção do trabalhador, que é o fundamento para existência de uma jurisdição especializada, sendo absolutamente incongruente que as demandas que envolvam reparação por dano à integridade física ou mesmo em decorrência da supressão da vida do trabalhador, sejam excluídas da competência da Justiça do Trabalho, e, paradoxalmente, a Justiça especializada, tenha sua competência estendida para todos os direitos e relações jurídicas conexas e acessórias do contrato de trabalho e agora, também, da relação de trabalho; d) A interpretação de competência da Justiça do Trabalho é a que melhor se ajusta ao direito fundamental de razoável duração do processo, evitando-se procedimentos judiciais mais lentos e proliferação de ações perante juízo distintos, versando sobre o mesmo fato ou situações conexas; e) A competência da Justiça do Trabalho, com advento da Emenda 45, passou a abranger o acidente de trabalho e a doença profissional em todos os contratos de atividade, não ficando mais circunscrita à esfera da relação de emprego ou contrato de trabalho em sentido estrito. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 375 Justiça do Trabalho — Nova Competência Vicente José Malheiros da Fonseca (*) 1. Algumas considerações sobre o direito do trabalho no Brasil O direito do trabalho, no Brasil, é um ramo da ciência jurídica em formação, ainda não totalmente elaborada, apesar dos significativos avanços teóricos que apresenta. Carece de urgente modernização, em virtude das rápidas e profundas transformações na realidade econômica, que decorre da globalização e acarreta as altas taxas de desemprego. As mudanças nesse universo provocam a imediata repercussão sobre as relações entre o capital e o trabalho, cujo disciplinamento jurídico deveria adequar-se ao novo perfil dos fenômenos atuais, nada semelhantes ao panorama vivenciado pelo legislador da época da edição da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943. A necessária adequação legislativa está, ainda, longe de acontecer. Numa época de grandes e rápidas transformações sociais, tecnológicas e dos costumes, na virada do milênio, parece natural que o direito, justamente porque não é ciência pura, deve adequar-se à realidade. Nunca, porém, a ponto de perder o seu papel ético-cultural de referência às conquistas históricas da humanidade, centradas nas idéias de liberdade, de igualdade, de dignidade, de democracia e de justiça. Na realidade brasileira, e, especialmente, na região amazônica, por exemplo, seria desaconselhável a extinção imediata do poder normativo da Justiça do Trabalho, justamente porque as condições dos trabalhadores ainda não permitem, salvo exceções, o exercício da livre negociação. Se extinto o poder normativo da Justiça do Trabalho, cresce a importância da negociação coletiva. Daí a necessidade, mais do que nunca, da organização e do aperfeiçoamento das entidades sindicais, (*) Juiz Togado de Carreira do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (Belém Pará. Professor de Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho na Universidade da Amazônia (UNAMA), inclusive em curso de pós-graduação. 376 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO principalmente de suas lideranças e de seus órgãos de assessoramento técnico. No que diz respeito ao direito material do trabalho, devo acentuar que se conseguirmos ultrapassar o momento crítico em que nos encontramos, mantendo, porém, os seus princípios fundamentais, conquistados ao longo da história, embora com as adaptações necessárias, acho que já teremos vencido boa parte dos desafios que ao mundo todo preocupa, o desemprego, a miséria, a marginalidade, o analfabetismo, a fome, a violência, enfim, os males do cotidiano, que a cada dia mais se agravam. E é preciso ter consciência de que o desafio não se limita apenas a salvar o emprego, mas, também, a proporcionar as condições de manter a dignidade do trabalhador, razão de ser do Direito do Trabalho. Não se descobriu ainda a fórmula mágica para resolver o drama do desemprego estrutural. Mas é certo que a redução da taxa de desempregados depende basicamente do crescimento econômico do país, da diminuição da taxa de juros e de uma autêntica reforma fiscal, dentre outros pressupostos. Porém depende, também, da qualificação da mão-de-obra, da conscientização e do aperfeiçoamento das lideranças sindicais. Quanto ao mais, a mudança, de fato, deve ser de mentalidade, inclusive no aspecto ético e funcional do juiz do trabalho, que deve ser, essencialmente, sensível aos fatos econômicos e sociais. Com a globalização, deve haver ainda mais necessidade de proteger o hipossuficiente, para fazer face aos abusos do capital. Penso que no Brasil existe uma regulamentação trabalhista apenas formal, porque, na realidade, verifica-se uma inefetividade da norma jurídica, enfim, uma desregulamentação de fato, uma flexibilidade real, em desfavor da classe operária. São os trabalhadores os mais prejudicados enquanto houver um sistema recursal complexo e um processo de execução ineficaz, que não atendem aos ideais de uma justiça gratuita, informal e célere, tal como foi concebida. Não basta dizer o direito; impõe-se a efetiva e real entrega da prestação jurisdicional, sobretudo com a rápida execução do julgado. 2. Justiça do Trabalho Os órgãos jurisdicionais trabalhistas surgiram em épocas diferentes em distintos países: na França, os Conseils de Prud’hommes (1806); na Itália, os Probiviri (1893), substituídos pela Magistratura do Trabalho (1928); na Inglaterra, os Tribunais Industriais (1919); na NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 377 Alemanha, os Tribunais Trabalhistas (1926); e na Espanha, os Tribunais do Trabalho (1940). A jurisdição trabalhista, como organização especial e autônoma, funciona na Inglaterra, na Alemanha e no Brasil, bem como em quase toda a América Latina, com ligeiras variantes na estrutura organizacional e no procedimento judicial. Em nosso país, a Justiça do Trabalho existe há quase sessenta (60) anos, quando foi incorporada ao Poder Judiciário da União, pela Constituição Democrática de 1946. A legislação trabalhista e a Justiça do Trabalho despontaram, no Brasil, como decorrência de longo processo que se desenvolvia no exterior, sob forte influência dos princípios de proteção ao trabalhador, defendidos pelo Papa Leão XIII em sua conhecida Encíclica Rerum Novarum, de 1891. A bem sucedida experiência dos Conseils de Prud’hommes, órgão especializado em resolver divergências nas relações trabalhistas, cujas origens são da época napoleônica, estimulou outros países europeus a seguir o exemplo francês, instituindo organismos independentes do Poder Judiciário, para apreciação de causas trabalhistas, basicamente pela via da conciliação entre os litigantes. Tal como o Direito do Trabalho teve origem no Direito Civil, a Justiça do Trabalho surgiu como corolário da independência da nova disciplina jurídica. Porém, no início cabia à Justiça Comum o julgamento das controvérsias relativas às questões entre o capital e o trabalho. Com a Constituição de 1946, a Justiça do Trabalho passou a integrar o Poder Judiciário da União, como órgão jurisdicional especializado, de âmbito federal, assim como o são a Justiça Eleitoral e a Justiça Militar. Antes disso, tinha caráter administrativo, era órgão do Poder Executivo, vinculada ao Ministério do Trabalho. Nas Constituições seguintes houve pouca alteração na estrutura organizacional do Judiciário Trabalhista, composta pelo Tribunal Superior do Trabalho, Tribunais Regionais do Trabalho e Juntas de Conciliação e Julgamento (atualmente, Varas do Trabalho, em face da extinção dos representantes classistas, por força da EC n. 24/99). A Justiça do Trabalho surgiu, enfim, da necessidade de dotar um órgão jurisdicional capaz de solucionar os conflitos entre trabalhadores e empregadores, de modo simples, informal, célere, eficaz e gratuito, em contraste com a Justiça Comum, quase sempre onerosa, formalista 378 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO e lenta. Além disso, está na origem da Justiça do Trabalho ser ela integrada por magistrados naturalmente mais sensíveis às questões sociais, que não raro requerem soluções fundadas no juízo de eqüidade, característica que importa na interpretação criativa da realidade social, e não a mera aplicação automática e fria das normas jurídicas. Isso não significa, entretanto, que os Juízes do Trabalho seriam levados a proferir decisões fundadas no seu sentimento pessoal, emotivo e irresponsável. 3. Evolução constitucional e legislativa da competência material da Justiça do Trabalho É da tradição do nosso Direito Constitucional traçar os limites da competência dos órgãos que integram o Poder Judiciário. Desde as Constituições Federais de 1934 e 1937, a Justiça do Trabalho foi inicialmente concebida para dirimir apenas as questões entre “empregadores e empregados”, isto é, as partes do contrato de trabalho subordinado. As questões concernentes à Previdência Social e acidentes do trabalho permaneceram sujeitas à Justiça Comum, nos termos dos §§ 1º e 2º do mencionado art. 643, da CLT. Não obstante, o art. 652, a, III, da Consolidação, dispõe que os dissídios resultantes de contratos de empreitadas em que o empreiteiro fosse operário ou artífice (os chamados “pequenos empreiteiros”) poderiam ser julgados pela Justiça do Trabalho, embora regidos pela legislação material civil. As suas demandas, portanto, somente poderiam versar sobre direitos resultantes da empreitada civil (verbi gratia, o saldo de empreitada), e não da legislação pertinente à proteção do trabalho subordinado (férias, salários e, atualmente, 13º salário, FGTS etc.). Posteriormente, o legislador incluiu na competência da Justiça do Trabalho o julgamento dos dissídios entre “trabalhadores avulsos e seus tomadores de serviços” (art. 643, da CLT, com a redação dada pela Lei n. 7.494, de 17.6.1986) e, ainda, as ações entre “trabalhadores portuários e os operadores portuários ou o Órgão Gestor de Mão-de-Obra – OGMO decorrentes da relação de trabalho” (art. 643, § 3º, da CLT, acrescentado pela Medida Provisória n. 2.164-41, de 24.8.2001). Todavia, desde logo, o art. 123, da Carta Magna de 1946, fixou a competência genérica da Justiça do Trabalho, para atribuir-lhe o papel de conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregados e empregadores (tal como dispuseram as Constituições de 1934 e NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 379 1937), e, ainda, “as demais controvérsias oriundas de relações do trabalho regidas por legislação especial”. Diversas outras questões pertinentes ao tema cheguei a examinar, enquanto magistrado trabalhista de primeiro grau, no interior da Amazônia, tais como: imunidade de jurisdição; prisão de testemunha flagrada em crime de falso testemunho; alcance do privilégio do crédito trabalhista em razão da falência do empregador; habeas corpus impetrado por infiel depositário etc. Afinal de contas, há muito que a Justiça do Trabalho tem competência para dirimir os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, o que, aliás, é inerente à própria jurisdição. Quanto à competência, assim estabeleceu a atual Carta Magna, em sua redação originária (art. 114): “Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas”. De observar que a competência material da Justiça do Trabalho passou a abranger os dissídios de interesses dos “trabalhadores e empregadores”, e não apenas de “empregados e empregadores”, como constava nas Constituições anteriores. Vale consignar, por oportuno, que o art. 17, da Lei n. 5.889, de 8 de junho de 1973, que estatui normas reguladoras do trabalho rural, determina que os preceitos dessa legislação são aplicáveis, no que couber, aos “trabalhadores rurais” não compreendidos na definição do art. 2º (“empregados rurais”, sob vínculo de subordinação), que prestem serviços a empregador rural. O art. 14 do Decreto n. 73.626, de 12.2.1974, que regulamentou a Lei n. 5.889/73, esclarece que “as normas referentes à jornada de trabalho, trabalho noturno, trabalho do menor e outras compatíveis com a modalidade das respectivas atividades aplicam-se aos avulsos e outros trabalhadores rurais que, sem vínculo de emprego, prestam serviços a empregadores rurais”. Como se percebe, a competência material da Justiça do Trabalho vem sendo alargada, gradativamente, para além do julgamento das ações que abrangem apenas conflitos resultantes da “relação de emprego”, como vimos: as causas de interesse de “pequenos empreiteiros” (art. 652, a, III, da CLT); de “trabalhadores rurais” não sujeitos a vínculo empregatício (art. 17, da Lei n. 5.889/73); de “trabalhadores avulsos e seus 380 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO tomadores de serviços” (art. 643, da CLT, com a redação dada pela Lei n. 7.494, de 17.6.1986); e de “trabalhadores portuários e os operadores portuários ou o Órgão Gestor de Mão-de-Obra – OGMO decorrentes da relação de trabalho” (art. 643, § 3º, da CLT, acrescentado pela Medida Provisória n. 2.164-41, de 24.8.2001). Ademais, a Emenda Constitucional n. 20, de 1998, acrescentou ao art. 114 da Constituição de 1988 o § 3º, por força do qual “compete ainda à Justiça do Trabalho executar, de ofício, as contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir”. Este preceito foi regulamentado pela Lei n. 10.035, de 25.10.2000, que alterou a Consolidação das Leis do Trabalho, em diversos aspectos, para estabelecer os procedimentos, no âmbito da Justiça do Trabalho, de execução das contribuições devidas à Previdência Social. Já anteriormente, por força da Lei Complementar n. 75, de 20 de maio de 1993, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União, pode o Ministério Público do Trabalho promover, perante a Justiça do Trabalho, as ações que lhe foram atribuídas pela Constituição Federal e pelas leis trabalhistas; ações civis públicas no âmbito do Judiciário Trabalhista, para defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos; ações cabíveis para declaração de nulidade de cláusula de contrato, acordo coletivo ou convenção coletiva que viole as liberdades individuais ou coletivas ou os direitos individuais indisponíveis dos trabalhadores; ações necessárias à defesa dos direitos e interesses dos menores, incapazes e índios, decorrentes das relações de trabalho; ações para questionar a deflagração de greve, quando a defesa da ordem jurídica ou o interesse público assim o exigir; e mandado de injunção, quando a competência for da Justiça do Trabalho (art. 83). Antes mesmo disso, a Lei Complementar n. 35, de 14 de março de 1979, que dispõe sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN), pacificou a questão da competência originária dos Tribunais Trabalhistas para julgar os mandados de segurança “contra seus atos, os dos respectivos Presidentes e os de suas Câmaras, Turmas ou Seções” (art. 21, VI), pois, até então, havia jurisprudência que entendia que a competência, no caso, era da Justiça Federal Comum. Ainda nos dias atuais se discutia a competência da Justiça do Trabalho para julgar habeas corpus, em que pese a Justiça Eleitoral — igualmente um ramo especializado da Justiça da União, tal como a Traba- NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 381 lhista —, ter pacífica atribuição para apreciar habeas corpus e mandado de segurança em casos pertinentes à matéria eleitoral, além de julgar os delitos eleitorais e os comuns que lhes forem conexos. 4. A Emenda Constitucional n. 45/2004 A Emenda Constitucional n. 24, promulgada em 8 de dezembro de 2004, que dispõe sobre a Reforma do Judiciário, ampliou bastante a competência material da Justiça do Trabalho, como se vê dos seguintes dispositivos da Carta Magna de 1988: “Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I — as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; II — as ações que envolvam exercício do direito de greve; III — as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores; IV — os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição; V — os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado o disposto no art. 102, I, o; VI — as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho; VII — as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho; VIII — a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir; IX — outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei. § 1º ...................................................................................................................... § 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente. § 3º Em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público, o Ministério Público do Trabalho poderá 382 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do Trabalho decidir o conflito.” Em tese, o dissídio coletivo de natureza econômica, se frustrada a negociação coletiva ou solução arbitral, somente poderá ser ajuizado de “comum acordo” entre os interessados. Porém, em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público, o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do Trabalho julgar a controvérsia. Na verdade, a referida Emenda Constitucional (PEC n. 29/2000) não só assegurou a todos, no âmbito judicial e administrativo, o direito à razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação (art. 5º, LXXVIII), como também recompôs em 27 o número de membros do TST (art. 111-A); criou a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (art. 111-A, § 1º); ampliou consideravelmente a competência da Justiça do Trabalho, sobretudo para julgar as ações oriundas da “relação de trabalho” e as ações sobre controvérsias intersindicais e intra-sindicais, além de ter mantido, em tese, o poder normativo desta Justiça Especializada (art. 114); estabeleceu que os TRTs instalarão a justiça itinerante, com a realização de audiências e demais funções de atividade jurisdicional, nos limites territoriais da respectiva jurisdição, servindo-se de equipamentos públicos e comunitários (art. 115, § 1º); autorizou os TRTs a funcionarem descentralizadamente, constituindo Câmaras regionais, a fim de assegurar o pleno acesso do jurisdicionado à justiça em todas as fases do processo (art. 115, § 2º); e, finalmente, previu a criação do Fundo de Garantia das Execuções Trabalhistas(1) (idéia que venho propondo há mais de 25 anos e sobre a qual já elaborei um Esboço de Anteprojeto de Lei Ordinária(2)), integrado pelas multas decorrentes de condenações trabalhistas e administrativas oriundas da fiscalização do trabalho, além de outras receitas (art. 3º). A rigor, o novo modelo de execução trabalhista também importa em ampliar a competência da Justiça do Trabalho, pois atribui legitimidade ativa ao citado “Fundo” para promover a execução, em caso de inadimplemento de parte do executado. (1) Artigo publicado na Revista do TRT - 8ª Região, n. 22 (julho-dezembro/1979); livros Reforma da Execução Trabalhista e Outros Estudos, São Paulo: LTr, 1993, e Em Defesa da Justiça do Trabalho e Outros Estudos, São Paulo: LTr, 2001, de minha autoria. (2) Artigo publicado na Revista do TRT - 8ª Região, n. 72 (janeiro-junho/2004), p. 41-50. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 383 De fato, não havendo pagamento, o juízo da execução determinará a movimentação do Fundo de Garantia das Execuções Trabalhistas — que se destina a assegurar todo e qualquer crédito trabalhista, e não apenas os salários, como na Espanha —, para efeito de pagamento imediato ao credor trabalhista, que terá, assim, satisfeito, de modo rápido, o seu direito. Em seguida, o Fundo, sub-rogando-se no crédito do trabalhador, passa a executar o devedor, perante a Justiça do Trabalho, mediante sanções severas, inclusive as astreintes (dia-multa), justamente para evitar a sua movimentação constante e inevitável descapitalização. Algumas matérias estabelecidas, de modo expresso, na Emenda Constitucional n. 45/2004, já vinham sendo julgadas pela Justiça do Trabalho, por construção doutrinária e jurisprudencial, como o mandado de segurança, o habeas corpus e as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes do contrato de trabalho. Muito importante foi a ampliação da competência jurisdicional da Justiça do Trabalho para as questões intersindicais e intra-sindicais (o que resolve inclusive problemas no julgamento de dissídios coletivos, em que se discute, por exemplo, disputas pela representação e base territorial do sindicato), como também para as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações trabalhistas. Costumo dizer que se um trabalhador, sem anotação na Carteira de Trabalho e Previdência Social, sofrer acidente de trabalho, é possível que precise acionar três (3) ramos do Poder Judiciário para reivindicar seus direitos: a Justiça do Trabalho (para a prova da relação de emprego); a Justiça Estadual (para a ação acidentária); e a Justiça Federal Comum (para eventual conflito com o INSS). O ideal seria concentrar todas essas demandas na Justiça do Trabalho. Por isso mesmo, propugno pela competência criminal da Justiça do Trabalho quanto ao julgamento de questões correlatas e imediatamente resultantes do ilícito civil-trabalhista, sobretudo quanto aos crimes contra a organização do trabalho e a prática do trabalho escravo, a fim de preservar a unidade da jurisprudência sobre todos os aspectos jurídicos da questão. A Carta de Blumenau (SC), aprovada no XI CONAMAT (Congresso Nacional dos Magistrados do Trabalho), encerrado em 3.5.2002, proclamou que é “imperiosa a ampliação da competência material da Justiça 384 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO do Trabalho, trazendo para a sua esfera jurisdicional todos os litígios que envolvam o trabalho humano, mediante a correspondente alteração constitucional e legal”. É nesse sentido, enfim, a Emenda Constitucional n. 45/2004, que dispõe sobre a Reforma do Judiciário, ao ampliar consideravelmente a competência material da Justiça do Trabalho. Tenho entendimento firmado de que a Justiça do Trabalho é competente para apreciar pedido de indenização por dano material e moral decorrente de acidente de trabalho. Sustento a tese de que é competente a Justiça do Trabalho para julgar demanda com vistas à indenização por dano material e moral decorrente de acidente de trabalho, em face da possibilidade da existência de culpa do empregador pelas condições do labor, à luz dos arts. 7º, XXVIII, e 114, da Constituição Federal. O acidente de trabalho, no caso, constitui mera questão incidental, que não afasta a competência material da Justiça Trabalhista. A EC n. 45/2004, que cuida da Reforma do Judiciário, trata agora da “justiça itinerante”. No âmbito de nossa Região Trabalhista, essa prática já ocorrera há cerca de 20 anos antes. Quando exerci o cargo de Juiz Presidente da então Junta de Conciliação e Julgamento de Abaetetuba, em 1986, na administração do Juiz Pedro Thaumaturgo Soriano de Mello, o TRT - 8ª Região implementou experiência pioneira, ao autorizar o deslocamento daquele órgão trabalhista de 1º grau, de Abaetetuba para Barcarena, com apoio na Lei n. 6.947, de 17 de setembro de 1981 (art. 2º, § 3º), para o recebimento de reclamações e realização de audiências. Na época, o saudoso colega, juiz substituto, Dr. José Augusto Figueiredo Affonso, já falecido, foi o primeiro magistrado que atuou no Barco Itinerante da Justiça do Trabalho, em âmbito oficial. O sucesso da iniciativa atraiu a curiosidade da mídia internacional, haja vista o propósito de alargar o direito de acesso ao Judiciário Trabalhista às populações ribeirinhas da Amazônia. Antes mesmo da vigência da Lei n. 6.947/81, o juiz Hermes Afonso Tupinambá Neto adotou o sistema do juízo itinerante, na JCJ de Parintins (AM), então pertencente à 8ª Região Trabalhista. E, atualmente, o juiz Océlio de Jesus Carneiro de Morais, Titular da Vara do Trabalho de Santarém, vem adotando, com êxito, a prática itinerante daquele órgão de 1º grau, na execução do projeto “Rio Acima, Rio Abaixo”, a fim de tornar o Judiciário mais acessível ao jurisdicionado. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 385 5. Considerações finais Como se vê, não foi por acaso o alargamento da competência material da Justiça do Trabalho, pugnada, sobretudo, pelos próprios magistrados trabalhistas, conscientes do novo papel reservado a este ramo especializado do Poder Judiciário da União. O fenômeno resulta de um contexto do qual não podemos nos afastar na compreensão da matéria, qual seja, a inevitável importância que deve ser emprestada ao trabalho humano, seja eventual, subordinado ou autônomo, sujeito a regime contratual, civil ou trabalhista, ou, ainda, estatutário. Assim, a nova competência material da Justiça do Trabalho abrange não só os litígios de interesse dos servidores públicos, de qualquer regime jurídico, como ainda as causas em que sejam partes os magistrados federais, trabalhistas, eleitorais, militares e estaduais. Em suma, todos os litígios decorrentes das mais variadas relações jurídicas que compreendem o labor do homem devem ser resolvidos, atualmente, perante a Justiça do Trabalho, por força da nova redação contida no art. 114, da Constituição Federal, preconizada pela Emenda Constitucional n. 45/2004. No julgamento das questões trabalhistas podem ser abordados temas estabelecidos no direito constitucional, direito administrativo, direito internacional, direito do trabalho, direito previdenciário, direito civil, direito comercial, direito falimentar, direito tributário, direito penal, direito do consumidor, direito processual civil, direito processual penal e outros ramos da ciência jurídica. Esta circunstância não afasta a nova competência material da Justiça do Trabalho, sempre que se verificar a hipótese de dissídio oriundo de uma relação de trabalho. Creio que alguns títulos executivos extrajudiciais, previstos no art. 585, do CPC, que resultem de “relação de trabalho”, podem ser cobrados na Justiça do Trabalho, uma vez que sobre a legislação ordinária deve prevalecer o preceito constitucional, quanto à competência para solucionar o eventual litígio. Não resta dúvida que a reflexão acerca do tema passa pelo estudo sobre “direitos pessoais” e “direitos reais”, na medida em que, perante a Justiça do Trabalho, podem ser pleiteados basicamente os primeiros, quando oriundos da relação de trabalho de qualquer natureza. A nova realidade exige, enfim, uma visão interdisciplinar do direito. Mesmo que a relação de direito material, entre as partes, seja diversa do clássico vínculo empregatício, sob a égide do direito civil, por 386 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO exemplo, será possível o ajuizamento de ação perante a Justiça do Trabalho, quando houver litígio oriundo da “relação de trabalho”. A título de exemplo, vejamos o caso do contrato de compra e venda (art. 481, do atual Código Civil). Os litígios resultantes do contrato de compra e venda, em si, continuarão a ser julgados pela Justiça Comum. Porém, as pessoas que trabalham para comprador e vendedor, mesmo autônomos e eventuais, poderão demandar na Justiça do Trabalho, cuja competência foi ampliada para processar e julgar “as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios” (art. 114, I, da Constituição Federal, com a redação dada pela EC n. 45/2004). É necessário, portanto, distinguir adequadamente cada situação. O mesmo raciocínio aplica-se às demais modalidades de contratos civis ou comerciais. Cuidado especial merece a hipótese do contrato de “prestação de serviço”, de natureza autônoma, pois o art. 593 do Código Civil ressalva os casos de contratos sujeitos às leis trabalhistas ou à lei especial. Em síntese, havendo ou não relação de emprego, a competência será sempre da Justiça do Trabalho, porque o contrato de prestação de serviço pressupõe uma “relação de trabalho” autônomo, eventual ou subordinado. Quanto ao direito material, serão aplicadas as normas estabelecidas no Código Civil (arts. 594 a 609). Contudo, deverá o juiz do trabalho, em qualquer situação, aplicar as normas processuais trabalhistas, previstas na CLT e legislação processual trabalhista esparsa, embora possa socorrer-se, em caso de omissão, da legislação processual comum (art. 769, da CLT). De fato, a estrutura jurisdicional da Justiça do Trabalho não foi incorporada à Justiça Estadual ou Federal, mas, sim, algumas demandas, que, antes eram ajuizadas na Justiça Comum, passaram à competência do Judiciário Trabalhista, certamente porque esta Justiça Especializada dispõe, sobretudo, de normas processuais mais eficazes, particularmente para atender as expectativas dos jurisdicionados mais humildes e excluídos, como é o caso dos “eventuais” do chamado mercado informal. A propósito, se formos aplicar o “processo civil” para os casos de “relação de trabalho”, vamos cobrir um santo e descobrir outro. O processo trabalhista (copiado pela legislação que cuida do procedimento NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 387 na ação de alimentos e nos juizados especiais; e até pelo processo civil), é a referência que não se pode abandonar, mesmo para as causas sobre “relação de trabalho”, ainda que sejam instituídos juízes e turmas especializados, no âmbito da Justiça do Trabalho. Enfim, exige-se um autêntico processo trabalhista, tal como foi concebido, de modo célere, informal, gratuito, concentrado, simples, eqüitativo, econômico, enxuto, oral e sempre sujeito à conciliação. E de suma importância: a irrecorribilidade das decisões interlocutórias, característica fundamental do processo do trabalho (art. 893, § 1º, da CLT). Sem isso, não haveria motivo para a transferência de competência daquelas questões para o Judiciário Trabalhista. Um breve comentário, ainda, sobre o contrato de “empreitada” (art. 610, do atual Código Civil). Antes de tudo, reporto-me ao exposto sobre o contrato de “prestação de serviço”, eis que, em ambos os casos, pode haver controvérsia sobre a existência, ou não, de relação de emprego entre os litigantes. Antes da EC n. 45/2004, a competência material da Justiça do Trabalho, quanto à pessoa do trabalhador, limitava-se aos dissídios entre trabalhadores e empregadores. A CLT, desde a sua origem, preceitua que compete à Justiça do Trabalho dirimir os dissídios resultantes de contratos de empreitadas em que o empreiteiro seja operário ou artífice (art. 652, a, III, da CLT), a chamada “pequena empreitada”, hipótese em que o trabalhador, assim considerado, não tem direito aos direitos trabalhistas típicos (anotação na CTPS, aviso prévio, férias, 13º salário, FGTS, horas extras, adicional noturno, repouso semanal remunerado, segurodesemprego, adicional de insalubridade ou de periculosidade etc.), mas apenas aos direitos assegurados pelo contrato civil de empreitada, como o saldo de empreitada, embora por meio de ação na Justiça do Trabalho. A segunda hipótese é a do “trabalhador rural” não empregado (art. 17, da Lei n. 5.889/73). A terceira situação é o caso de dissídio entre “trabalhadores avulsos e seus tomadores de serviços, em atividades reguladas na legislação social” (art. 643, da CLT, com a redação dada pela Lei n. 7.494, de 17.6.1986). E a quarta, trata dos trabalhadores portuários e os operadores portuários ou o Órgão Gestor de Mão-de-Obra. Nessas quatro hipóteses (pequena empreitada, trabalhador rural, trabalhador avulso e trabalhador portuário), em que não há vínculo de emprego, a Justiça do Trabalho, embora competente para o julgamento da causa, pode aplicar o direito material estranho à legislação trabalhista que rege a relação de emprego — sobretudo no caso da pequena empreitada —, mas adotará 388 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO o processo do trabalho, previsto basicamente na CLT. Quanto aos avulsos — assim compreendidos os que trabalham na zona portuária, sob intermediação de entidade sindical, como estivadores e capatazes —, embora sejam trabalhadores autônomos, eles foram, ao longo do tempo, obtendo diversos direitos trabalhistas (FGTS, 13º salário, salário-família etc.), daí por que a Constituição Federal de 1988 acabou por estabelecer a “igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso” (art. 7º, inciso XXXIV). Façamos ligeiras considerações sobre o mandato, a transação e o compromisso, institutos previstos no atual Código Civil. No cotidiano da Justiça do Trabalho são muito comuns os litígios que versam sobre controvérsia acerca do vínculo empregatício, notadamente quanto aos chamados “contratos afins” ao contrato de emprego, tais como os contratos de locação de serviço, empreitada, representação comercial, mandato, sociedade e parceria, todos “contratos de atividade” ou “de trabalho”, lato sensu. Quanto ao “mandato” (art. 653, do Código Civil), em particular, esse contrato pode co-existir com a relação de emprego, como no caso dos gerentes (art. 62, da CLT). Quando se tratar de mandato específico, sob a modalidade de contrato autônomo, deverá ser aplicada a legislação comum, no âmbito do direito material, mas as normas do direito processual trabalhista, em caso de ação na Justiça do Trabalho, se houver litígio resultante da relação de trabalho. Se a “transação” ou o “compromisso” (arts. 840 e 851-853, do Código Civil) abrangerem direitos e deveres de uma “relação de trabalho”, o litígio será da competência material da Justiça do Trabalho, à luz da nova redação introduzida no art. 114, da CF, pela EC n. 45/2004. Tal como dito antes, deverá ser aplicada a legislação comum, no âmbito do direito substantivo, porém as regras do direito processual trabalhista, em caso de demanda na Justiça do Trabalho, se o litígio resultar da “relação de trabalho”. Cumpre deixar claro que a relação de trabalho não se confunde com a relação de consumo, de produção ou de outra natureza. O que ocorre é a incidência de vários ramos do direito em determinadas situações, insuscetível, entretanto, de afetar a competência material da Justiça do Trabalho para dirimir o eventual dissídio, sob a ótica do vínculo trabalhista, se ficar perfeitamente identificado o dissídio oriundo da relação de trabalho. NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 389 Se merece ser enaltecido o empenho eficiente das associações e dos magistrados trabalhistas pela ampliação da competência da Justiça do Trabalho, outra luta se avizinha: obter os meios e instrumentos necessários para implementar as conquistas, seja quanto aos aspectos materiais e recursos humanos, como também o aperfeiçoamento das normas processuais necessárias para tornar realidade os avanços estabelecidos nos preceitos constitucionais. Frustrante, por certo, se a desejada ampliação da competência trabalhista não vier secundada da necessária estrutura material e funcional capaz de implementar o novo comando constitucional. Público e notório que o montante de valores arrecadados, a título de contribuições previdenciárias, é superior ao gasto na folha de pagamento de juízes e servidores da Justiça do Trabalho. Essa arrecadação, porém, não é destinada ao orçamento do Judiciário, que ainda proporciona o recolhimento de imposto de renda, depósitos recursais e custas, resultantes de acordos homologados e sentenças judiciais. É preciso, então, rever a falsa idéia de que a Justiça do Trabalho, cujo orçamento tem sofrido cortes, representa um ônus pesado ao Estado Brasileiro. Durante 20 anos funcionei como magistrado trabalhista de 1º Grau, em quase todas as unidades federativas da Amazônia, em capitais e no interior, antes de chegar ao Tribunal Regional do Trabalho, onde exerci as funções de Corregedor, Vice-Presidente e Presidente, época em que atuei como Coordenador do Colégio de Presidentes e Corregedores de TRTs (1999-2000), que coincidiu com o período em que se propôs a extinção da Justiça do Trabalho e, depois, como alternativa absurda, a de alguns TRTs, embora sem sucesso, graças aos movimentos de resistência manifestados por diversos seguimentos da sociedade brasileira. Pouco tempo depois, era extinta a representação classista (Emenda Constitucional n. 24/1999). No ano passado, uma conquista histórica: a Lei n. 10.770, de 21.11.2003, criava, em todo o território nacional, 269 novas Varas do Trabalho. E, agora, amplia-se significativamente a competência desta Justiça Federal Especializada. Na verdade, o papel social da Justiça do Trabalho, cuja jurisdição se espraia pelos mais longínquos municípios deste imenso país, é transcendental. Vai para muito além de meros dados estatísticos ou de utópicas fórmulas que pretendem sepultar o ideal de uma justiça gratuita, informal e célere, praticada por uma magistratura sensível aos dramas dos mais humildes, quase sempre excluídos do acesso às mínimas condições de vida digna. 390 NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO A Justiça do Trabalho proporciona um dos mais autênticos direitos de cidadania à pessoa humana. Essa conquista tem o preço incalculável da dignidade do cidadão trabalhador ou empresário. É evidente que a ampliação da competência da Justiça do Trabalho implicará em aumento de processos, por conseguinte em necessidade de expansão de seus órgãos, inclusive com a instituição de câmaras ou turmas ou varas especializadas para o julgamento de questões diversificadas, em todos os graus de jurisdição. O alcance de qualquer finalidade exige os meios capazes de implementar a medida. Caso contrário, haverá apenas simples transferência formal de tarefas e o acúmulo dos mesmos problemas verificados na Justiça Comum. E, então, a crise persistirá. Muitos dos princípios processuais trabalhistas restarão impraticáveis. Em síntese: para dar conta de suas novas atribuições, sem perda de seu excelente padrão de qualidade, a Justiça do Trabalho precisa ser dotada dos recursos materiais e humanos capazes de suportar, em idêntica proporção, o aumento da demanda, inclusive, se for o caso, dos processos pendentes em outros ramos do Judiciário. Estaremos preparados para mais esse desafio? 6. Conclusões 1) A ampliação da competência da Justiça do Trabalho, preconizada pela Emenda Constitucional n. 45/2004, seria mais adequada se tivesse havido concentração de todas as demandas oriundas da relação de trabalho, abrangidas as questões de natureza criminal, de modo que a Justiça Especializada pudesse também julgar as matérias correlatas e imediatamente resultantes do ilícito civil-trabalhista, sobretudo quanto aos crimes contra a organização do trabalho e a prática do trabalho escravo, a fim de preservar a unidade da jurisprudência sobre todos os aspectos jurídicos da questão. 2) O alargamento da competência material da Justiça do Trabalho é fenômeno que resulta de um contexto do qual não podemos nos afastar na compreensão da matéria, qual seja, a inevitável importância que deve ser emprestada ao trabalho humano, seja eventual, subordinado ou autônomo, sujeito a regime contratual, civil ou trabalhista, ou, ainda, estatutário. 3) A nova competência material da Justiça do Trabalho abrange não só os litígios de interesse dos servidores públicos, de qualquer regi- NOVA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO 391 me jurídico, como ainda as causas em que sejam partes os magistrados federais, trabalhistas, eleitorais, militares e estaduais. Em suma, todos os litígios decorrentes das mais variadas relações jurídicas que compreendem o labor do homem devem ser resolvidos, atualmente, perante a Justiça do Trabalho, por força da nova redação contida no art. 114, da Constituição Federal, preconizada pela Emenda Constitucional n. 45/2004. 4) Essa nova realidade exige uma visão interdisciplinar do direito. 5) Em qualquer caso, deverá o juiz do trabalho aplicar, sobretudo, as normas processuais trabalhistas, principal razão da transferência do conflito para o âmbito da Justiça do Trabalho.