pontes de miranda e a teoria dos direitos
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pontes de miranda e a teoria dos direitos
PONTES DE MIRANDA E A TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS GEORGE SARMENTO Doutor em Direito Público Professor/UFAL Promotor de Justiça 1. INTRODUÇÃO Pontes de Miranda foi o primeiro jurista a esboçar uma teoria dos direitos fundamentais no Brasil. Para ele, o comprometimento dos governos com a efetivação dos direitos humanos era a única forma de promover o desenvolvimento e a justiça social. A evolução da humanidade dependia da substituição do despotismo estatal pelo equilíbrio entre democracia, liberdade e igualdade na ordem jurídico-constitucional. Esse caminho só seria possível com a cristalização dos direitos humanos nos tratados internacionais e nas constituições dos países democráticos. O fim da 2ª Guerra Mundial era a oportunidade ideal para o Ocidente construir um novo projeto de sociedade baseado na dignidade da pessoa humana e no bem-estar social. A grande preocupação de Pontes de Miranda era dotar as constituições de mecanismos destinados a assegurar-lhes perenidade: rigidez constitucional, aplicabilidade imediata, cerne irrestringível e controle de constitucionalidade. Ele temia que interesses circunstanciais e corporativos pudessem fragilizar o Estado Democrático de Direito, impondo reformas constitucionais ilegítimas. Logo percebeu que o tema deveria sair da dimensão política para ser analisado sob o prisma da ciência constitucional. Procurou então sistematizar os direitos fundamentais desenvolvendo uma classificação estruturalista e dogmática, baseada nos seguintes parâmetros: 1. Subjetividade 2. Ordem jurídica direitos fundamentais subjetivos; direitos fundamentais insubjetivados. direitos fundamentais estatais; direitos fundamentais supra-estatais. 1 3. Organizabilidade 4. Prestação 5. Garantias direitos fundamentais absolutos; direitos fundamentais relativos. direitos fundamentais negativos; direitos fundamentais positivos. garantias institucionais; garantias processuais. Neste artigo, analisaremos essa classificação à luz do constitucionalismo contemporâneo, com o intuito de demonstrar que as idéias propagadas pelo jurista alagoano, há mais de 60 anos, continuam vivas e atuais. Embora pouco estudada nos meios acadêmicos, a contribuição ponteana é imprescindível para a compreensão da teoria geral dos direitos fundamentais nas democracias modernas. 2. PODER ESTATAL E PODER CONSTITUINTE 2.1. Ordem jurídica supra-estatal e ordem jurídica estatal O estudo dos direitos fundamentais pressupõe a existência de duas ordens jurídicas: a supra-estatal e a estatal. A primeira banha, colore a periferia do Estado. É o direito internacional. A segunda preenche o seu interior. É o direito nacional. A ordem jurídica supra-estatal disciplina desde a criação de novos Estados até a previsibilidade das relações que se travarão entre eles. O mesmo acontece com a ordem interna, que vai da Constituição até o mais simples ato estatal (legislativo, administrativo ou judicial)1. O Estado é fato jurídico que nasce da incidência das normas de direito internacional público. Uma comunidade só existe como Estado quando atinge a simetria com a ordem jurídica supra-estatal pré-existente, que é ordem periférica e sobreposta aos demais Estados. Tal simetria é alcançada com a concretização dos fatos previstos pelas normas supra-estatais. Quando o suporte fáctico é 1 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, tomo I. São Paulo: RT, 1970, p. 45. 2 suficiente para a incidência normativa, a comunidade passa a existir com um novo colorido: personalidade de direito internacional público, Estado2. A ordem jurídica supra-estatal é fundamento de existência e de validade das ordens jurídicas nacionais. Criadas por tratados3, as normas de direito internacional obrigam os Estados a promover medidas necessárias para torná-las executórias no plano do direito interno4. Possuem a marca do consenso e da convergência de interesses, vinculando os Estados à cláusula pacta sunt servanda. Legitimadas pela comunidade internacional, tais normas possuem força de incidência e prescrevem os mais diversos efeitos jurídicos. O direito supra-estatal é universal. Incide sobre todos os países do Planeta. Cabe a ele distribuir competências, fixar limites, revelar direitos humanos, estabelecer sanções, etc. Para Pontes de Miranda, é o direito da mais larga esfera jurídica da Terra. A universalidade lhe assegura superioridade hierárquica sobre as ordens jurídicas estatais. Daí porque “a submissão dos Estados a regras de direito das gentes significa que desapareceu, juridicamente, a noção de independência absoluta deles: passaram a ser ordens parciais de direito, relativamente independentes5”. A construção do Estado também está condicionada a uma força política viva, real: a vontade de transformar a comunidade em sujeito de direito internacional. É o chamado poder estatal, isto é, o poder de construir e reconstruir o Estado. A construção começa por fora, na periferia, pois é na ordem supra-estatal que está o seu fundamento de existência. Em seguida, alcança o interior, constitui o Estado e prossegue até o mais insignificante ato estatal6. Não se pode confundir poder estatal com poder constituinte. O poder de construir e reconstruir é muito mais amplo que o de constituir7. Este está contido 2 Já sustentamos que “o Estado é fato jurídico nascido da incidência das normas de Direito Internacional Público, cujo suporte fáctico, por ser extremamente complexo, exige intrincada conjunção de fatos para a sua suficiência. A falta de um dos elementos abstratamente previstos torna o suporte fáctico incompleto, impede a incidência normativa e o nascimento do fato jurídico esperado. Conseqüência: a comunidade não se personaliza como Estado, pois o suporte fáctico é insuficiente para a jurisdicização, o que só ocorrerá com a reunião de todos os requisitos de fato, objeto de anterior previsibilidade pelas normas de direito internacional público”. Cf. SARMENTO, George. Direitos fundamentais supra-estatais: paradigma de validade das normas constitucionais. Revista do Instituto dos Advogados de Pernambuco, v. 1, n. 1, Recife, OAB/PE, 1997, p. 226. 3 A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados preconiza que o vocábulo tratado deve ser entendido em sentido amplo. Significa todo acordo internacional escrito, celebrado pelos Estados e disciplinado pelas normas de direito internacional, não importando sua denominação particular (art. 2o, I, a). Dessa forma, estão contidos no conceito os seguintes documentos internacionais: pacto, convenção, tratado, ata, código, compromisso, contrato, convenção, protocolos, convênios, declaração e constituição. 4 Cyntia González Feldman sustenta, com razão, que “al suscribir tratados internacionales, los Estados se comprometen a que las disposiciones en ellos contenidas se conviertan en derecho interno. Sin embargo, un Estado no puede invocar las disposiciones de su derecho interno como justificación del incumplimiento de un tratado”. Cf. La implementación de tratados internacionales de derechos humanos por el Paraguay. In: Cyntia González Feldman (comp.). El Paraguay frente al sistema internacional de los derechos humanos. Montevideo: Fundación Konrad-Adenauer Uruguay, 2004, p. 20. 5 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, tomo I. São Paulo: RT, 1970, p. 216. 6 MIRANDA, Pontes de. Poder Estatal. Poder Constituinte. Poderes Constituídos. Revista Forense, v. CV, Fascículo 511, Rio de Janeiro, Forense, 1946. 7 O poder constituinte, os poderes constituídos e até mesmo o poder pré-constitucional integram o conteúdo do poder estatal. Pontes de Miranda demonstra que ele se desenvolve em três dimensões: “(a) Exterioridade 3 naquele. A construção do Estado é processo perene, que começa ainda na ordem externa e prossegue na organização interna, abrangendo todos os atos estatais presentes, passados e futuros. O poder constituinte tem apenas a função de elaborar normas constitucionais, cabendo ao legislador ordinário continuar o processo de estruturação do Estado. Enquanto o poder estatal se insere no plano do ser, o poder constituinte, que é a mais alta espécie do poder de legislar8, desenvolve-se no plano do deverser. O poder constituinte atua no campo normativo, tendo como missão primordial a produção de normas jurídicas constitucionais. A ele cabe revelar a Constituição, diferir atividade constituidora, criar poderes constituídos9. Para constituir-se, o Estado precisa de uma Constituição. A rigor, as normas jurídicas federais, estaduais e municipais também exercem função estruturante do Estado. Mas, por imposição da técnica jurídica, o conceito de Constituição foi relativizado pela normação seletiva. Assim, só são consideradas constitucionais as normas jurídicas ditadas pelo poder constituinte (originário ou reformador) e inseridas na Carta Política. Isso nos leva a concluir que as normas constitutivas do Estado subdividem-se em duas categorias: a) as reveladas pelo poder constituinte – normas constitucionais; b) as reveladas pelo poder legislativo ordinário – leis complementares, ordinárias, delegadas, medidas provisórias, etc.10. Nas democracias o povo é o titular do poder estatal, podendo livremente decidir o destino e a organização jurídica da comunidade a que pertence. Cabe ao povo construir, reconstruir, pré-constituir, constituir e reformar o Estado. Por isso, poder estatal e o poder constituinte estão inexoravelmente unidos pela relação fonte-produto11. O primeiro é prius por referir-se à própria existência do Estado, o que só acontece com o seu reconhecimento internacional; o segundo é posterius, pois concerne à estrutura de Estado já existente. O poder estatal popular é enunciado de fato que legitima o Estado Democrático de Direito. Trata-se de conceito a priori que fundamenta ordem jurídica interna. Cabe ao poder constituinte a revelação de enunciados normativos que expressem essa realidade política. A Constituição brasileira, por exemplo, estabelece o princípio democrático nos seguintes termos: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, (direito das gentes – participação na formação das regras de direito das gentes; atividade negocial de direito das gentes); (b) Exterioridade/Interioridade (atividade negocial do Estado noutro sistema jurídico que o direito das gentes e o seu próprio); (3) Interioridade (direito interno – regras jurídicas pré-constitucionais, regras jurídicas constitucionais, regras jurídicas anti-constitucionais, regras jurídicas de legislação ordinária de acordo com a Constituição, regras jurídicas de legislação ordinária anti-constitucionais, atos (de acordo com as regras jurídicas constitucionais) de execução, atos judiciários de acordo com a Constituição, atos judiciários anticonstitucionais”. Cf. Comentários à Constituição de 1967, tomo I, p. 45. São Paulo: RT, 1970, p. 180. 8 MIRANDA, Pontes de. Poder Estatal. Poder Constituinte. Poderes Constituídos. Revista Forense, v. CV, Fascículo 511, Rio de Janeiro, Forense, 1946, p. 15. 9 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, tomo I, p. 45. São Paulo: RT, 1970, p. 188. 10 MIRANDA, Pontes de. Poder Estatal. Poder Constituinte. Poderes Constituídos. Revista Forense, v. CV, Fascículo 511, Rio de Janeiro, Forense, 1946, p. 15. 11 MIRANDA, Pontes de. Poder Estatal. Poder Constituinte. Poderes Constituídos. Revista Forense, v. CV, Fascículo 511, Rio de Janeiro, Forense, 1946, p. 15. 4 nos termos desta Constituição” (art. 1º, parágrafo único). Dessa forma, as atividades legislativas, administrativas e judiciais são a exteriorização da vontade do povo, conforme veremos mais adiante. O poder constituinte é democrático quando o povo elege deputados e senadores para redigir ou reformar o texto constitucional. As Constituições são legítimas se produzidas por poder constituinte convocado pelo titular do poder estatal (o povo) ou por ele ratificadas por referendo legislativo. Qualquer outra forma de construção constitucional não passa de usurpação política. É ilegítima, produto do arbítrio, das ditaduras, dos regimes despóticos. 2.2. O povo como elemento legitimador do Estado Democrático de Direito A vontade do povo é elemento essencial à legitimidade das Constituições. Mas o povo não é um bloco monolítico formado por pessoas dotadas de pensamento único, de uma volonté générale perfeitamente identificável. A população de determinado Estado é heterogênea e subdivide-se em incontáveis círculos sociais como famílias, igrejas, partidos políticos, empresas, repartições públicas, organizações não-governamentais e instituições democráticas. Tais círculos estão em permanente interação uns com os outros, sempre em busca da crescente adaptação social e da civilidade, fim maior da espécie humana. Como texto normativo de hierarquia superior no sistema jurídico estatal, as Constituições devem refletir o consenso de valores vigentes nos mais diversos círculos da sociedade civil. “Povo” não é mera retórica, mas elemento integrante das normas jurídicas. O art. 1o, parágrafo único, da Constituição de 1988 é a prova disso. Para Friedrich Müller, o vocábulo “povo” contido nas prescrições jurídicas deve ser objeto de interpretação lege artis, em três planos: 1º. “Povo” como povo ativo; 2º. “Povo” como instância global de atribuição de legitimidade; 3º. “Povo” como destinatário das prestações civilizatórias do Estado12. O povo ativo é o conjunto dos eleitores que ocupam cargos públicos, participam das eleições, plebiscitos e referendos por serem titulares de direitos políticos. É o povo ativo que constrói e constitui o Estado através de instrumentos da democracia, direta, indireta ou participativa. Elege a assembléia constituinte, os legisladores ordinários, os chefes do poder executivo, etc. É, portanto, a base da legitimidade (degré zéro) do Estado Democrático de Direito. Embora nem sempre tenha participação direta na produção dos atos estatais, o povo também é instância legitimadora do ordenamento jurídico na medida em que acata as decisões administrativas, legislativas e judiciais. A legitimação pelo povo é componente da validade e efetividade das normas constitucionais, das sentenças, das políticas públicas, dos governos e de qualquer 12 MÜLLER, Friedrich. Quem é o Povo? A Questão Fundamental da Democracia. São Paulo: Max Limonard, 2003, p. 55-64. 5 outra manifestação do Estado. Isto só acontece quando o povo reconhece nas instituições, autoridades e leis a expressão de sua vontade. As Constituições se concretizam na práxis quando o povo submete-se espontaneamente às suas normas sem opor resistência, propagar a revolução ou desobediência civil, quando os cidadãos participam livremente das eleições, dos conselhos consultivos e de outras manifestações políticas. Além de fonte do poder estatal, o povo é destinatário de prestações civilizatórias. Isto é, a população real de um país é titular de direitos fundamentais (individuais, políticos, sociais, econômicos, coletivos e difusos) que devem ser assegurados na Constituição e concretizados pelo Estado. O respeito à dignidade da pessoa humana, a melhoria da qualidade de vida, a justiça social, serviços públicos eficientes e a proteção do meio ambiente são apenas alguns dos requisitos essenciais à efetividade do ordenamento jurídico democrático. Temos sustentado em outros escritos que cidadania consiste na participação política e na fruição dos direitos humanos13. É a concepção teórica que mais se aproxima do conteúdo do vocábulo “cidadania” erigido a princípio fundamental da República Federativa do Brasil (CF, art. 1o, II). Trata-se de conceito que rompe com a idéia de cidadão-eleitor para abranger todas as pessoas que vivam no território nacional. A condição de eleitor é secundária porque tal norma constitucional considera cidadãos todos os destinatários de prestações civilizatórias do Estado. Nesse sentido, a cidadania abrange os diversos segmentos da população real do país mediante a positivação não só das liberdades fundamentais, mas de direitos difusos e coletivos que tutelam o meio ambiente, o consumidor, as comunidades indígenas, a moralidade administrativa, os portadores de deficiência, os idosos, crianças e adolescentes. Sob o aspecto dogmático-constitucional, o povo é conceito polissêmico. Em algumas situações pode significar o conjunto dos cidadãos detentores de direitos políticos ou instância legitimadora de atos jurídicos estatais. Também pode ser interpretado como população real de um país, beneficiária de prestações positivas e negativas do Estado. É na harmonia dessas dimensões, ensina Müller, que reside a legitimidade da Constituição brasileira. Caso contrário, o povo seria um enunciado normativo vazio, um ícone para justificar regimes autoritários. O doutrinador alemão tem o mérito de alertar para o fato de que o “poder constituinte do povo” não e um conceito ideológico, despregado da realidade social ou detentor de alto grau de abstração. Ao contrário, integra o texto constitucional sob forma de normas jurídicas editadas em respeito a procedimentos democráticos e passiveis de permanente aferição de legitimidade na práxis jurídica14. Para que o poder constituinte seja legítimo, é preciso ainda que o povo esteja em condições de escolher livremente os caminhos e a estrutura que o 13 SARMENTO, George. Novos rumos da cidadania brasileira. Revista do Ministério Publico de Alagoas, n. 3, jul/jan.,Maceió, MPEAL/UFAL, p. 67-71. 14 MÜLLER, Friedrich. Fragmentos (sobre) o poder constituinte do povo. São Paulo: RT, 2004, p. 31. 6 Estado vai encarnar. Tarefa que exige consciência política, sentimento patriótico e vida digna para os cidadãos. Caso contrário, os eleitores serão presas fáceis do poder econômico, extremamente hábil na manipulação eleitoral. As Constituições devem ser a síntese das aspirações dos diversos segmentos que compõem a população de um país. Devem aproximar-se ao máximo do consenso em relação a valores vigentes na sociedade civil. É preciso, finalmente, que o povo se reconheça no texto constitucional, que se veja como protagonista e não como coadjuvante de interesses impostos pelas classes dominantes ou por empresas multinacionais. De tudo que foi dito nesta seção, podemos tirar algumas conclusões preliminares. Como fenômeno de direito internacional, o Estado só pode ser constituído após a sua construção. O povo é o titular do poder estatal. A ele cabe a decisão de construir o Estado em seu sentido mais amplo. O poder constituinte está contido no poder estatal e dele é dependente. Tem a função de organizar internamente o Estado, revelando normas constitucionais. Não é soberano, mas limitado pelas normas de direito internacional, pelos princípios constitucionais prévios e pela legislação pré-constitucional15. Caracteriza-se pela atuação intraestatal, revogabilidade, indivisibilidade e normação seletiva. Produto do poder estatal, pode ser cancelado a qualquer tempo pela vontade do povo, que é, nas democracias, a sua fonte suprema. 3. DIREITO SUBJETIVO FUNDAMENTAL 3.1. Norma de direito fundamental: Classificação de Pontes de Miranda a) Normas constitucionais bastantes em si e não bastantes em si Como vimos anteriormente, a característica material mais acentuada das normas jurídicas é a força de incidência, através da qual se opera a transformação do suporte fáctico em fato jurídico. No século XIX, Thomas Cooley tinha consciência de que a matéria era importante e propôs classificação das normas constitucionais, baseada na aplicabilidade. Segundo o célebre jurista norte-americano, elas subdividiam-se em duas categorias: normas auto-aplicáveis (self-executing provisions, selfenforcing) e normas não auto-aplicáveis (not self-executing, not self enforcing). Rui Barbosa foi um dos grandes divulgadores dessa doutrina em nosso país16. Pontes de Miranda percebeu que a classificação de Cooley pecava por tomar como ponto de partida a aplicabilidade e não a incidência. A incidência é elemento essencial, indispensável, imprescindível à criação do fato jurídico. Depois da incidência é que se pode cogitar a aplicabilidade, ou seja, a possibilidade de se invocar autoridade estatal para aplicar a norma que incidiu. A aplicabilidade pode ser simultânea ou posterior, mas jamais pode anteceder a 15 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, tomo I, p. 45. São Paulo: RT, 1970, p. 226. 16 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 73. 7 incidência da norma17. Por isso o jurista alagoano preferiu chamá-las regras jurídicas bastantes em si e regras jurídicas não-bastantes em si. Aquelas estariam aptas a incidir a partir de sua vigência; estas dependeriam de regras jurídicas de regulamentação para incidirem e, posteriormente, serem aplicadas18. A dicotomia regras jurídicas bastantes e não-bastantes em si é de grande importância para a análise dos direitos fundamentais. Embora existam outras classificações que buscam explicar a aplicabilidade das normas constitucionais, a proposta de Pontes de Miranda continua atual e cientificamente correta. Um dos grandes desafios da hermenêutica constitucional consiste na distinção entre as normas que estão aptas a incidir e as que dependem de regulamentação infraconstitucional para atuar como elemento criador do fato jurídico. b) Normas constitucionais programáticas A discussão ainda comporta uma questão: qual a natureza normas programáticas? As normas programáticas são proposições que impõem ao Estado, em sua atividade legislativa e administrativa, o dever de perseguir determinados fins, objetivos, diretrizes e caminhos. São dotadas de estrutura lógica completa, pois possuem suporte fáctico, preceito e, até mesmo, força de incidência - ainda que dependa de norma infraconstitucional para atuar. As normas programáticas são cogentes porque vinculam o poder público ao dever de perseguir os objetivos considerados essenciais ao fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Os deveres estatais consistem quase sempre em obrigações normativas ou administrativas. Assim, a constitucionalidade das leis e a validade das ações governamentais estão condicionadas à observância das diretrizes e objetivos expressos nas normas programáticas. Também chamadas normas-fins ou normas tarefas pela doutrina estrangeira, elas manifestam-se como normas bastantes em si: adquirem força de incidência e coercibilidade no momento de sua promulgação, vinculam a atuação dos poderes públicos e invalidam os atos jurídicos que lhes forem incompatíveis. São normas impositivas que não necessitam de legislação reguladora para que possam atuar. Incidem sempre que o Estado se afastar das diretrizes traçadas pela Constituição, punindo a violação com a sanção de inconstitucionalidade. As normas programáticas não são meros aforismos políticos, exortações retóricas, apelos sentimentais, promessas vazias, boas intenções ou expectativas de realização dos programas. Elas prescrevem deveres estatais que se consubstanciam pela intervenção dos órgãos legiferantes ou pela atividade concretizadora da administração pública e da jurisdição. Os órgãos estatais devem direcionar suas ações para a realização dos programas constitucionais. Quando se tratar de programas diretamente relacionados com a efetividade dos direitos fundamentais, tais normas serão sempre dotadas de impositividade e justificam a propositura de mandado de injunção ou ação de 17 18 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, tomo I. São Paulo: Rt, 1970, p. 41. MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, tomo I. São Paulo: Rt, 1970, p. 126. 8 inconstitucionalidade por omissão. Da mesma forma, serão desconstituídos por inconstitucionalidade os atos administrativos, normativos e judiciais que se distanciarem das diretrizes fixadas nas normas programáticas. Os magistrados também podem decretar a inconstitucionalidade incidental de norma jurídica que violar os programas prescritos na Constituição. Nesse aspecto, Canotilho é contundente: “Além de constituírem princípios e regras definidoras de diretrizes para o legislador e a administração, as normas programáticas vinculam também os tribunais, pois os juízes têm acesso à constituição, com o conseqüente dever de aplicar as normas em referência (por mais geral e indeterminado que seja o seu conteúdo) e de suscitar o incidente de inconstitucionalidade, nos feitos submetidos a julgamento (cfr. CRP, art. 204º), dos atos normativos contrários às mesmas normas19”. 3.2. Subjetividade e insubjetividade dos direitos humanos fundamentais A norma jurídica constitucional ou supra-estatal é condição sine qua non para os direitos humanos fundamentais. A norma jurídica é meio para a realização do direito como processo de adaptação social. Só ela é capaz de criar o fenômeno jurídico. Sem ela não se pode falar de direitos fundamentais, mas de aspirações sociais, valores éticos, aforismos ou meros interesses individuais. O direito objetivo antecede e define o fato jurídico. A norma jurídica tem a função de incidir sobre o suporte fático suficiente. Antes da incidência não há subjetivação. Só após o nascimento do fato jurídico é que se pode falar em direito subjetivo, pretensão ou ação, entre outras categorias eficaciais. Portanto, a norma constitucional ou supra-estatal são definidoras dos direitos fundamentais. Na Constituição brasileira, os direitos fundamentais estão previstos em duas classes normativas: (a) normas conferidoras de direitos subjetivos fundamentais e (b) normas não conferidoras de direitos subjetivos fundamentais. a) Normas conferidoras de direitos subjetivos fundamentais Os direitos fundamentais subjetivos são efeitos de fatos jurídicos. Portanto, pressupõem a incidência da norma constitucional sobre o suporte fáctico. Toda vantagem atribuída a alguém, em conseqüência desse fenômeno, é direito subjetivo20. Nas relações jurídicas, o sujeito de direito é o titular da vantagem; o sujeito passivo é o devedor em sentido amplo. O direito subjetivo sempre tem como conteúdo um poder: poder de exigir do devedor o atendimento do dever, prestação ou obrigação previstos na norma jurídica; e poder de autodeterminação (faculdade de agir) para a satisfação de interesses. A posição de titular da vantagem caracteriza o direito 19 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1.180. 20 MIRANDA, Pontes de. Tratado das Ações, tomo I. São Paulo: RT, 1970, p.30. 9 subjetivo e marca a atividade nas relações jurídicas. A posição de devedor da obrigação ou da prestação traduz a passividade. Nas relações jurídicas, a posição de vantagem é categoria eficacial que supõe fato jurídico cujo efeito acarreta um “benefício” ao sujeito de direito em relação a determinado bem da vida. A idéia de vantagem refere-se ao efeito jurídico de assegurar ao titular o poder de autodeterminação para satisfação de interesses subjetivos ou o poder de exigir do devedor o cumprimento de seus deveres e obrigações. O direito subjetivo consiste no acréscimo de algo à esfera jurídica do titular em decorrência da incidência da norma jurídica sobre o suporte fático. O direito subjetivo fundamental é a situação em que se encontra determinada pessoa que detém o poder de exigir do Estado e de particulares o cumprimento de um dever ou de uma prestação, sob pena de sanções previstas no texto constitucional e na legislação ordinária. Ressalte-se que o seu objeto não é a prestação em si, mas o poder de exigir o seu cumprimento. É também o poder de autodeterminação individual, isto é, o poder de fazer ou não fazer – dentro dos limites da lei – sem qualquer intervenção estatal. A todo direito fundamental subjetivo corresponde um dever a ser suportado pelo Estado, sociedade, pessoas físicas ou jurídicas (princípio da correlatividade dos direitos e deveres). Grosso modo, o direito subjetivo limita a atuação do sujeito passivo. A passividade caracteriza-se pela existência de dever destinado à satisfação do direito subjetivo. O descumprimento da prestação ou da obrigação tem como conseqüência a reparação do dano, caducidade, invalidade do ato e outras sanções previstas em lei. Direito subjetivo público é aquele em que um dos sujeitos da relação jurídica é o Estado, que atua na condição de pessoa jurídica de direito público. Os direitos humanos fundamentais se enquadram nessa categoria eficacial, porque o indivíduo é detentor do poder de exigir do Estado a obrigação de nãoingerência em sua esfera de liberdade ou o cumprimento de uma prestação. O Estado também pode ter direito subjetivo público frente aos particulares. Nessa situação, o indivíduo é obrigado a alguma prestação21. Exemplo disso, é o dever fundamental de pagar tributos como forma de assegurar à Administração os recursos necessários aos programas sociais ou serviços públicos de boa qualidade. Por outro lado, as posições subjetivas ativas referem-se a pessoas individualmente consideradas (princípio da individualidade dos direitos). Elas são as legítimas titulares de direitos subjetivos fundamentais. Existem circunstâncias em que o exercício de direitos subjetivos só é possível na dimensão coletiva. A liberdade de reunião, a liberdade de associação, a liberdade de expressão e a liberdade de religião são exemplos disso. Embora sejam vantagens individuais decorrentes da norma constitucional, o titular só pode exercitá-las em grupo. Não se pode falar em reunião ou associação de uma só 21 AFTALIÓN, Enrique R. VILANOVA, José. RAFFO, Julio. Introducción al Derecho. Buenos Ayres: LexisNexis Abeledo-Perrot, 2004, p. 521. 10 pessoa. Tampouco de religião professada por apenas um fiel. Mas isso não significa a existência de uma titularidade coletiva. Ao contrário. Isoladamente, cada indivíduo é titular desses direitos, é beneficiário das vantagens previstas nas normas jurídicas. Mas só pode fruí-las em grupo, ao lado de seus semelhantes. Mesmo nos chamados direitos transindividuais, o que se vê são sujeitos plurais do mesmo direito e não titulares de direitos distintos. Em muitas situações, os direitos do meio ambiente, consumidor, crianças, adolescentes, idosos, portadores de necessidades especiais, etc., são direitos que só podem ser exercidos coletivamente, embora a titularidade pertença a homens individuais. Por força de lei, instituições como o Ministério Público, associações e sindicatos estão legitimadas para o exercício de pretensões e ações na condição de representantes dos titulares de direitos difusos e coletivos22. A representação foi o meio encontrado pela técnica jurídica para viabilizar a tutela judicial de direitos difusos e coletivos. Com isso, as ações civis públicas transformaram-se em poderosos instrumentos de defesa da cidadania. A eficácia erga omnes de suas sentenças beneficia milhares de sujeitos de direitos, assegurando-lhes o gozo dos benefícios legais. A chamada transindividualidade implica a existência de direitos subjetivos. Isoladamente, cada pessoa é titular da vantagem. O elemento coletivo só aparece no exercício da pretensão ou da ação. Todo indivíduo é titular do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (CF, art. 225). Mas há situações em que, sozinho, não pode exigir do Estado o cumprimento do dever de preservar o bem protegido. Isto porque a lei condiciona o exercício da pretensão e da ação à dimensão coletiva em que a pluralidade de sujeitos atua para satisfazer o direito. Por força da Lei 7.347/85, o Ministério Público é um dos legitimados para representar os titulares de tal direito subjetivo nas ações civis públicas. Nessa hipótese, o sistema jurídico confiou a uma instituição democrática de grande prestígio nacional a tarefa de representar a comunidade na defesa de direitos ambientais e ecológicos inerentes a cada habitante do Planeta. Conclusão: o direito subjetivo fundamental (1) pressupõe norma constitucional ou supra-estatal; (2) a incidência da norma sobre o suporte fático; (3) o nascimento do fato jurídico. (4) É produto do fato jurídico; (5) implica correlação entre direito e dever; (6) limita a esfera do sujeito passivo pela imposição de deveres e obrigações; (7) tem como conteúdo poder de autodeterminação ou poder de exigir; (8) consiste em vantagem atribuída ao sujeito de direito em razão da incidência de norma constitucional ou supra-estatal sobre o suporte fáctico. b) Normas não conferidoras de direitos subjetivos fundamentais Na Constituição Federal também é possível identificar normas que prescrevem deveres sem atribuir posições de vantagem. Significa dizer que o 22 Sobre esse aspecto, cf. Pontes de Miranda, “se a outrem se dá, por lei ou por ato jurídico, exercer direito, pretensão, ação ou exceção, ocorre a representação legal ou voluntária” (Tratado das Ações, tomo I. São Paulo: RT, 1970, p. 73). 11 indivíduo não é titular de direito subjetivo, pretensão ou ação relativa ao dever. A obrigação existe. Quase sempre recai sobre o Estado. Também pode ser imposta à sociedade, à família ou a todos. Mas o sistema jurídico não atribui à pessoa posição subjetiva ativa para exigir o seu cumprimento. Isso impede a individualização da pretensão pela pessoa que, direta ou indiretamente, seria beneficiária da vantagem. Nem por isso o direito deixa de existir. O direito existe, mas não se subjetiva. Permanece nos domínios do direito objetivo23. As garantias institucionais, por exemplo, atribuem ao Estado o dever de legislar para proteger instituições ou institutos considerados essenciais à dignidade humana ou à estrutura sócio-política do país. Contudo, as normas constitucionais de criação não conferem ao indivíduo o direito de subjetivo de exigir o cumprimento da obrigação estatal. A insubjetivação também pode ser encontrada nos direitos fundamentais relativos. Por exemplo, os direitos do consumidor, crianças, adolescentes e idosos são organizáveis pelo Estado. As normas constitucionais impõem ao legislador o dever estatal de editar leis que lhes assegurem direitos subjetivos de proteção. Entretanto, nenhuma das pessoas incluídas nessas categorias é sujeito de direito para exigir o cumprimento do dever estatal: o direito fundamental existe mas não se subjetiva. As pretensões insubjetivadas são acionáveis. Existem remédios jurídicos processuais como a ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, ação de descumprimento de preceito fundamental e ação de inconstitucionalidade por omissão, que, de uma forma ou de outra, visam a compelir o Estado a cumprir o que determina a norma constitucional no que se refere ao exercício dos direitos fundamentais. Os legitimados para a propositura dessas ações não almejam a satisfação de interesses individuais, mas a realização do direito objetivo. 3.3. Tipologia das normas de direitos fundamentais a) Fundamentalidade formal e material Os direitos fundamentais estão previstos em normas constitucionais ou supra-estatais. No primeiro caso são chamados direitos formalmente fundamentais; no segundo, direitos materialmente fundamentais. Os direitos materialmente fundamentais têm seu fundamento de existência no direito das gentes. Isto é, existem independente de constitucionalização. Esta nada mais é que a execução do dever estatal de positivá-los garanti-los no sistema jurídico nacional. Mesmo que estejam fora do catálogo, não perdem sua fundamentalidade, dada a sua essência supra-estatal. b) Direitos fundamentais concentrados e dispersos Com relação à organização normativa no texto constitucional, os direitos fundamentais podem ser subdivididos em concentrados e dispersos. São 23 Cf. MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, tomo I. São Paulo: Rt, 1970, p. 135. 12 concentrados quando as normas assecuratórias estão dispostas em um catálogo de direitos fundamentais, a exemplo do que acontece no Título II da Constituição Federal. Também é possível identificar os direitos dispersos que são direitos fundamentais formalmente constitucionais mas fora do catálogo, que se espraiam por todo texto constitucional. A dispersão caracteriza opção técnico-legislativa do constituinte brasileiro. O meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito fundamental supra-estatal por força da Convenção de Estocolmo (1972) e da Carta do Rio de Janeiro (1992). Acontece que a Constituição Federal não o inseriu em nenhum dos capítulos do Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais. Sua condição de direito fundamental decorre da ordem jurídica supra-estatal, superior e preexistente ao direito interno. Outro aspecto curioso de disposição normativa no texto constitucional refere-se aos direitos sociais. O Capítulo II do referido Título trata Dos Direitos Sociais. Como visto, o art. 6º estabelece seu conteúdo, agrupando todos os direitos que o integram. Ocorre, porém, que os demais artigos do Capítulo apenas asseguram direitos sociais dos trabalhadores ativos e inativos, silenciando sobre educação, saúde, moradia, lazer, segurança, etc. As normas assecuratórias desses últimos estão dispersas no texto constitucional, fora do catálogo. Os direitos sociais remanescentes foram dispostos nos diversos capítulos do Título VIII (Ordem Social). O fato de estarem fora do catálogo não exclui sua condição de direitos fundamentais. 4. DIREITOS FUNDAMENTAIS ESTATAIS E SUPRA-ESTATAIS Nas constituições contemporâneas, os direitos fundamentais subdividemse em estatais e supra-estatais. 4.1. Direitos fundamentais estatais Os direitos fundamentais estatais são assegurados pela Constituição antes de serem reconhecidos pelo direito internacional público. São direitos humanos que refletem valores e princípios que alicerçam a Constituição de determinado país. Sua positivação pelo direito interno sempre antecede a inserção em tratados internacionais – o que nem sempre acontece. A existência de tais direitos depende única e exclusivamente da edição de norma constitucional. Nascem no Estado e são devidos à pessoa humana por força da norma constitucional e não por imposição de tratados internacionais. São direitos que atingiram a fundamentalidade em razão da importância que lhes é atribuída pelo povo de determinado país. Os direitos fundamentais estatais são extremamente importantes para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito. São verdadeiros termômetros do estágio evolutivo das nações contemporâneas. Através deles, é possível verificar o nível de desenvolvimento da liberdade, igualdade, solidariedade e 13 democracia nos respectivos ordenamentos jurídicos. Nesse particular, a Constituição de 1988 trouxe avanços significativos no tocante à fundamentalização de direitos que ainda não foram positivados pela ordem supra-estatal. 4.2. Direitos fundamentais supra-estatais Os direitos fundamentais supra-estatais são provenientes da ordem jurídica internacional. Estão contidos na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), nos pactos que a regulamentaram em 1966 e em outras normas de direito das gentes. Sua incidência não depende de reconhecimento constitucional, já que pertencem à ordem jurídica exterior e acima do Estado. Em relação a eles, o Estado atua como definidor de exceções e clarificador de conteúdo pela mediação do legislador constituinte ou ordinário. Além disso, os direitos fundamentais supra-estatais são paradigmas de validade das normas de direito interno, inclusive das normas constitucionais. Por estarem contidos em ordem jurídica superior, impõem limites tanto ao poder estatal quanto ao poder constituinte, que são obrigados a incorporá-los à Constituição, cercando-os das garantias necessárias à sua efetividade. Nesse sentido, nenhuma das regras do sistema jurídico nacional pode ser interpretada ou executada em contradição com a Constituição e com as Declarações de Direito. Os direitos fundamentais positivados pelo direito internacional são a prova viva de que é possível que ideologias distintas, com postulados teóricos antagônicos e, até mesmo, inconciliáveis, cheguem a um consenso sobre valores universais, comuns a todos os povos civilizados. O exemplo mais contundente dessa possibilidade pode ser extraído da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Os países signatários, espalhados por todos os continentes, acordaram em assegurar e garantir em suas Constituições um conjunto de direitos humanos básicos, comuns a todas as pessoas. O consenso dos sujeitos de direito internacional fez da Declaração de 1948 a norma fundamental da ordem supraestatal. No plano internacional, os tratados são auto-suficientes. Entram em vigor da forma estabelecida em seus textos, antes mesmo de serem recepcionados pelos países signatários. Em caso de omissão quanto à vigência, aplicam-se os princípios consuetudinários condensados na Convenção de Viena de 196924. Os tratados sobre direitos humanos diferenciam-se dos tratados tradicionais (bilaterais ou multilaterais) e com eles não devem ser confundidos. Os tratados tradicionais promovem intercâmbios comerciais, tecnológicos, 24 PEROTTI, Alejandro Daniel. Habilitatión Constitucional para la integración comunitaria – Estudio sobre los Estados del mercosur, tomo I: Brasil y Paraguay. Montevideo: Universidad Austral e Konrad Adenauer Stiftung, p. 64. 14 políticos, sociais, etc., visando à imposição de obrigações e à fruição de benefícios mútuos. Já os tratados de direitos humanos regulamentam relações entre o Estado e o indivíduo ou grupos de indivíduos sob sua jurisdição, bem como entre Estado e órgãos supra-estatais. Ao estudar a posição da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre esta matéria, Cynthia González Feldmann observou que “os modernos tratados sobre direitos humanos, em particular a Convenção Americana de Direitos Humanos, não são tratados multilaterais do tipo tradicional, concluídos em função de um intercâmbio recíproco de direitos para o benefício mútuo dos Estados contratantes25”. E cita a Opinião Consultiva OC-2/82, de 24 de setembro de 1982: “Seu objeto e fim são a proteção dos direitos fundamentais dos seres humanos, independentemente de sua nacionalidade, tanto frente ao seu próprio Estado como frente a outros Estados contratantes. Ao aprovar os tratados sobre direitos humanos, os Estados se submetem a uma ordem legal dentro da qual eles, visando o bem comum, assumem várias obrigações, não com relação a outros Estados, mas em relação aos indivíduos sob sua proteção”. Os direitos fundamentais supra-estatais são incorporados ao sistema jurídico brasileiro na condição de (a) normas constitucionais, (b) leis ordinárias ou de (c) emendas constitucionais. a) Constitucionalização dos direitos fundamentais Quando os Estados subscrevem tratados sobre direitos humanos, assumem o compromisso de adotá-los e protegê-los em seu ordenamento jurídico, especialmente nas suas Constituições. A submissão dos Estados à ordem supra-estatal faz com que os direitos fundamentais sejam declarados e não criados pelo legislador constituinte. Ao constitucionalizá-los, os Estados declaram expressamente sua subordinação ao direito internacional, mesmo não fazendo referência expressa ao tratado que os criou. A normatização constitucional visa basicamente a tornar executórias as normas de direitos humanos supra-estatais, cumprindo, assim, o compromisso assumido perante os países signatários. Com a constitucionalização, os direitos fundamentais supra-estatais são assegurados ou garantidos no texto constitucional em normas executivas e declaratórias. Essa técnica jurídica não exige que o constituinte mencione os tratados de onde foram retirados tais direitos. Basta que a Constituição os fundamentalize, assegurando-lhes instrumentos de defesa como o cerne irrestringível e aplicação imediata além de garantias processuais ou administrativas capazes de concretizá-los. Nesse particular, a Constituição brasileira é uma das mais avançadas do mundo. 25 FELDMANN, Cynthia Gozález (comp.). El Paraguay frente al sistema internacional de los derechos humanos. Montevideo: Fundac Konrad-Adenauer Uruguay, 2004, p. 19. 15 No Brasil, a Constituição Federal adotou direitos fundamentais pertencentes às seguintes classes: direitos fundamentais supra-estatais (mundiais e regionais); direitos fundamentais estatais; princípios fundamentais; garantias institucionais; garantias fundamentais. Uma vez constitucionalizados, os direitos fundamentais também adquirem força vinculante em relação ao Estado, que passa a ter a obrigação de respeitá-los, garanti-los e efetivá-los em todas ações legislativas, administrativas e judiciais. Pontes de Miranda sintetiza a amplitude dessa força com a seguinte observação: Os direitos fundamentais ou a) se asseguram como dirigidos aos legisladores, para que se abstenham de fazer lei que atinja os bens da vida, dos quais o mais precioso é a liberdade; ou b) aos outros poderes públicos, para que não os firam, por serem deixados ao regramento legal, e só a ele; ou c) aos legisladores, para que, ao fazerem as leis, não extingam institutos ou instituições, ou d) para que sigam determinado rumo (regras jurídicas programáticas). 26 b) Recepção dos tratados internacionais como leis ordinárias Em geral, as negociações internacionais preliminares são confiadas pelo Chefe de Estado a ministros e diplomatas de carreira. Eles são responsáveis pelos estudos prévios, pela análise das implicações jurídicas e pela constitucionalidade dos tratados, convenções e outros atos internacionais. Entretanto, a celebração de tratados é competência exclusiva do Presidente da República, nos termos do art. 84, inciso VIII, da Constituição Federal. Firmado o tratado, o Presidente da República escolherá o momento adequado para encaminhá-lo ao Congresso Nacional. Para isso, remete mensagem, acompanhada de exposição de motivos, para ser apreciada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, respectivamente (CF, art. 64 e 65). A discussão da matéria começa na Comissão de Relações Exteriores, continua na Comissão de Constituição e Justiça e de Redação – a quem cabe apreciar sua constitucionalidade –, segue para as comissões temáticas da Câmara dos Deputados e termina em plenário. Enviado ao Senado Federal, o projeto de decreto legislativo é debatido na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional e no plenário. Em ambas as Casas, o projeto só será aprovado se tiver a maioria dos votos, exigindo-se a presença da maioria dos parlamentares na sessão. 26 Miranda, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, Tomo IV. São Paulo: RT, 1967, p. 663. 16 Obtida a aprovação em cada Casa, o Presidente do Senado Federal editará decreto legislativo (CF, art. 59, VI), autorizando o Presidente da República a ratificar o tratado. Tal autorização não obriga o Chefe do Executivo a fazê-lo. Tampouco assegura vigência ao tratado. Simplesmente permite que ele o promulgue e publique o decreto presidencial no Diário Oficial da União. Se o Presidente da República desistir ou se negar a ratificá-lo, o tratado jamais terá aplicabilidade interna. A ratificação, portanto, é conditio sine qua non de vigência do tratado no direito interno. O processo estará completo quando for feito o depósito do ato nos órgãos internacionais competentes. A ratificação é ato presidencial discricionário e irretratável. É a manifestação expressa do compromisso estatal de executar em seu território as normas jurídicas de direito internacional. Com a promulgação, o tratado entra em vigor e pode ser aplicado em todo o país pelas autoridades judiciais e administrativas. Sua incorporação no sistema jurídico brasileiro se dá em forma de lei ordinária, submetendo-se, portanto, a controle de constitucionalidade. É possível que um tratado aprovado pelo Legislativo não seja ratificado. A recusa em ratificar tratados integra o poder discricionário do Presidente da República. Entretanto, a decisão pode ser considerada uma quebra do compromisso contratual, implicando retaliações políticas. Mas inexistem instrumentos legais destinados a compeli-lo a promulgar o tratado. O art. 7o da Convenção de Havana assegura-lhe plena liberdade para decidir sobre a matéria. In verbis: “[1] a falta de ratificação ou a reserva são atos inerentes à soberania nacional, e, como tais, constituem o exercício de um direito que não viola nenhuma disposição ou boa forma internacional. Em caso de negativa, esta será comunicada aos outros contratantes”. O Presidente da República não tem poderes para ratificar um tratado que recebeu parecer contrário do Congresso Nacional. A manifestação favorável do Legislativo é óbice inafastável para a incorporação de tratados ao ordenamento jurídico brasileiro através do mecanismo denominado ratificação. Embora estejam incorporados ao ordenamento jurídico, os tratados ainda são pouco utilizados na vida forense do nosso país. A práxis judiciária ainda não assimilou completamente o fato de que eles têm força de lei ordinária e podem ser invocados perante juízes e tribunais para a solução de conflitos intersubjetivos de interesses. Da mesma forma que qualquer norma jurídica de direito interno, são dotados de força de incidência, natureza vinculante e aplicabilidade. Raramente advogados, promotores de justiça e magistrados invocam os tratados como fundamento das pretensões deduzidas em juízo. A maioria pensa que eles só servem para disciplinar as relações internacionais, que eles estão muito distante da nossa realidade judiciária. Sequer percebem que os tratados sobre direitos humanos são poderosíssimos escudos contra o arbítrio do poder estatal e violações à dignidade da pessoa humana. A maneira mais eficaz para expungir essa deformação intelectual consiste em sensibilizar as novas gerações de operadores do direito para sua importância na defesa dos direitos humanos fundamentais em território brasileiro. 17 Os direitos humanos supra-estatais passaram a ser incorporados com mais intensidade nas Constituições a partir da criação da Organização das Nações Unidas (1945) e da Organização dos Estados Americanos (1948). Posteriormente, outras organizações regionais, a exemplo da União Européia e Mercosul, seguiram o exemplo e passaram a exigir de seus membros o reconhecimento e proteção dos direitos humanos nos respectivos ordenamentos jurídicos. Acatando as diretrizes da ONU, o Brasil subscreveu a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) e os pactos que a regulamentaram em 1966: Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos ratificados pelo Brasil em 24 de janeiro de1992. Em 1948, a Organização dos Estados Americanos aprovou, em Bogotá, a Declaração dos Direitos e Deveres do Homem. Tal texto tem grande importância histórica, pois foi o primeiro instrumento de direito internacional que assegurou proteção jurídica às liberdades fundamentais, tendo antecedido, por alguns meses, a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Entretanto, o documento mais importante produzido pela OEA foi, sem dúvida, a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), mais conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, uma homenagem à cidade em que foi adotada. Além de proclamar direitos e garantias fundamentais, a Convenção criou a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Foi ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992. Os tratados de direitos humanos são atos jurídicos na medida em que expressam a vontade de sujeitos de direito internacional. O processo legislativo para a edição de tratados na ordem supra-estatal está previsto em dois documentos: a Convenção de Havana (1928) e as Convenções de Viena (1969 e 1986). Ainda em vigor, a Convenção de Havana tem o mérito de ter sido o primeiro instrumento normativo destinado à confecção de tratados internacionais. Mas foram as Convenções de Viena que deram uma nova dimensão à matéria na medida em que disciplinaram minuciosamente as fases de elaboração dos tratados. Muitos tratados, convenções, pactos e declarações de direitos humanos foram adotados pelo Brasil. Alguns foram ratificados pelo Presidente da República e passaram a integrar o ordenamento jurídico. Outros são compromissos formais que servem de paradigma para a elaboração de normas constitucionais e ordinárias. A prova disso são as Declarações de Direitos que deram origem a leis de proteção aos direitos das crianças, adolescentes, portadores de deficiências, comunidades indígenas e vítimas de todas as formas de intolerância e discriminação, etc. 27. 27 Exemplo disso são a Declaração dos direitos da criança, adotada pela Assembléia das Nações Unidas de 20 de novembro de 1959; Declaração sobre princípios sociais e jurídicos relativos à proteção e ao bem-estar das crianças, com particular referência à colocação em lares de guarda nos planos nacional e internacional, que foi adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 3 de dezembro de 1986; Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião ou nas convicções, que foi proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 25 de novembro de 1981; Declaração sobre raça e os 18 A ordem jurídica supra-estatal está em permanente evolução. Nos últimos 50 anos, testemunhamos muitos avanços na proteção aos direitos humanos. Nesse período, dezenas de tratados foram incorporados aos ordenamentos jurídicos de países espalhados pelos cinco continentes. Intervenções humanitárias, inspeções internacionais e outras ações destinadas à consolidação, expansão, aperfeiçoamento e efetivação dos direitos fundamentais têm sido implementadas com grande sucesso. Entretanto, existem muitos obstáculos a serem transpostos. No plano do direito internacional, o principal objetivo é obter a “ratificação universal” das chamadas core Conventions das Nações Unidas: os Pactos de 1966, as Convenções sobre a eliminação de todas as formas de discriminação – racial e contra a mulher, a Convenção sobre a Tortura e a Convenção sobre os direitos da criança. Em vários países, esses tratados foram incorporados com tantas reservas que terminaram descaracterizados28, privando milhares de seres humanos do exercício de tão importantes direitos fundamentais. No plano político, existem muitas metas a serem alcançadas, sobretudo o real comprometimento estatal de efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais, mediante políticas públicas capazes de combater a fome, a miséria, o analfabetismo, a violência, o desemprego e a injustiça social que afetam os segmentos mais pobres da população mundial. A crise de efetividade dos direitos fundamentais é um dos maiores problemas da democracia brasileira. Sua solução depende da vontade política dos governantes em romper com os velhos paradigmas que aprofundam a desigualdade social e negam a dignidade humana. É preciso destruir as carcomidas estruturas de poder que impedem o equilíbrio entre a liberdade, igualdade e solidariedade na vida nacional. Infelizmente estamos muito longe desse ideal de evolução civilizatória. O quantum despótico ainda é elevado, necrosa as relações sociais e impede o desenvolvimento sustentável. O crescimento da civilidade depende da diminuição dos índices de violência, corrupção, desigualdade social, intolerância racial e religiosa, impunidade e exploração da mão-de-obra trabalhadora. Assim como os países em desenvolvimento, o Brasil tem de combater males como a improbidade administrativa, a falta de alimentos, o desrespeito ao meio ambiente, a tortura, os preconceitos raciais, aprovada e proclamada pela Conferência Geral das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, reunida em Paris em 27 de novembro de 1978; Declaração universal dos direitos dos povos indígenas (1993); Declaração sobre a proteção de todas as pessoas contra a tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, que foi adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 9 de dezembro de 1975; Princípios de ética médica aplicáveis à função do pessoal de saúde, especialmente aos médicos, na proteção de prisioneiros ou detidos contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, que foram adotados pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 18 de dezembro de 1982; Declaração de direitos das pessoas deficientes, aprovada pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas em 9 de dezembro de 1975; Declaração sobre os direitos humanos dos indivíduos que não são nacionais do país em que vivem, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 13 de dezembro de 1985 e a Declaração de Pequim adotada pela 4 a Conferência mundial sobre as mulheres: ação para a igualdade, desenvolvimento e paz, proclamada em 15 de setembro de 1995. 28 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado Trindade. Dilemas e desafios da proteção internacional dos direitos humanos. Educando para os direitos humanos – Pautas Pedagógicas para a Cidadania na Universidade. In: José Geraldo de Souza Júnior et alli (coord.). Porto Alegre: Síntese, 2004. 19 assassinatos no campo, a subnutrição, o abandono dos meninos de rua, o êxodo rural e tantos outros problemas que impedem a fruição dos direitos humanos. c) Recepção constitucional dos tratados internacionais Em 1998, sustentamos a tese de que o sistema jurídico brasileiro deveria evoluir para a adoção da técnica de recepção formal da Declaração Universal dos Direitos do Homem como parte integrante da Constituição Federal. O primeiro passo havia sido dado pela Espanha e Portugal, que constitucionalizaram o princípio da interpretação conforme a Declaração Universal e tratados de direitos humanos29. Mas essa medida era insuficiente. Não bastava interpretar as normas do sistema jurídico estatal em harmonia com os direitos supra-estatais revelados por tratados internacionais. Nossa idéia era mais ousada. O propósito era recepcionar a Declaração Universal dos Direitos do Homem na condição de emenda constitucional, dar-lhe aplicabilidade imediata e inseri-la no cerne irrestringível30. A lacuna até então existente representava um verdadeiro atraso que precisava ser corrigido urgentemente pela técnica da recepção formal. Tal medida representaria um importante salto evolutivo na proteção dos direitos humanos no Brasil. Foi o que aconteceu anos depois com a Reforma do Judiciário – EC 45/2004 –, que introduziu o parágrafo 3o no art. 5o com a seguinte redação: § 3o Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. Tal norma abriu a possibilidade de recepção constitucional de tratados internacionais sobre direitos humanos mediante processo legislativo especial. Em primeiro lugar, é preciso que a matéria seja discutida e aprovada em dois turnos pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. Em ambos os turnos a aprovação deverá ter o quorum qualificado de 3/5 dos membros de cada Casa do Congresso Nacional. Embora a matéria ainda não esteja regulamentada por decreto legislativo, é certo que a promulgação será feita pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, a exemplo do que acontece com as emendas constitucionais. A publicação no Diário Oficial da União ficará a cargo do Congresso Nacional. A partir daí, o tratado sobre direitos humanos integrará a Constituição brasileira, vinculando o Executivo, o Legislativo, o Judiciário e particulares aos seus comandos. 29 Art. 16, n.2 da Constituição de Portugal e art. 10.2 da Constituição da Espanha. Cf. SARMENTO, George. Direitos fundamentais supra-estatais: paradigma de validade das normas constitucionais. Revista do Instituto dos Advogados de Pernambuco, v. 1, n. 1, Recife, OAB/PE, 1997, p. 241. 30 20 A inovação constitucional trazida pela chamada Reforma do Judiciário não deve ser banalizada. A votação em dois turnos e o quorum de 3/5 são técnicas destinadas a evitar o ingresso indiscriminado de tratados internacionais na Constituição Federal. Defendemos vivamente a idéia de que apenas a Declaração Universal dos Direitos do Homem deve ser recepcionada pela Constituição Federal. Seria o reconhecimento do povo brasileiro de que ela é a norma fundamental dos direitos humanos supra-estatais. Os demais tratados continuariam integrados ao nosso ordenamento jurídico através das técnicas já analisadas (constitucionalização, ratificação, compromissos legislativos e governamentais). A Declaração Universal dos Direitos do Homem é uma norma préconstitucional oponível ao poder constituinte? No direito internacional há muita controvérsia sobre essa questão. Alguns autores entendem que ela é apenas um texto de conteúdo filosófico, moral e programático. Outros sustentam que ela tem natureza cogente e supra-constitucional. A doutrina francesa afirma que ela enuncia tão-somente princípios gerais destinados a orientar os legisladores, não podendo ser considerada norma positiva31. A Declaração Universal seria desprovida de cogência porque formalmente trata-se de Resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas (art. 13, I da Carta da ONU), possuindo apenas força de recomendação aos constituintes para que respeitem os direitos humanos e as liberdades fundamentais. Para Jean Roche e André Pouille, a Declaração não tem nenhum valor em si mesma, já que os direitos por ela consagrados só podem ser aplicados quando ratificados por pactos32. Posição contrária é defendida por Jorge Miranda, para quem a Declaração Universal projeta-se não só sobre os Estados-membros da ONU, mas também sobre os demais países. Isto porque os princípios nela contidos representam o mais alto grau de respeito à pessoa humana a que chegou o mundo civilizado33. Para o constitucionalista português, tais princípios estão em franco processo de difusão em vários níveis do direito internacional, a exemplo das Nações Unidas (pactos de 1966 e convenções sobre problemas setoriais), das organizações especializadas da ONU (OIT, UNESCO, etc.) e das organizações regionais (Convenção Européia dos Direitos do Homem, de 1950, a Convenção Interamericana, de 1969 e Carta Africana, de 1981, entre outras)34. Recentemente foi votado em alguns países o tratado que estabelece a Constituição para a Europa, contendo uma ampla Carta de Direitos Fundamentais35. 31 Autores franceses que sustentam essa tese: Claude Leclerc, François Luchaire, Jacques Robert, Patrick Wachsmann e Dominique Turpin. 32 Libertés Publiques. Paris: Mementos Dalloz, 1990, p. 21. 33 MIRANDA, Jorge. A recepção da Declaração Universal dos Direitos do Homem pela Constituição Portuguesa – Um fenômeno de conjugação de direito internacional e direito constitucional. Revista de Direito Administrativo, 199:1-2, Rio de Janeiro, 1992, pp. 10-11. 34 Entre os autores nacionais e estrangeiros que defendem a cogência da Declaração Universal dos Direitos do Homem estão, Pontes de Miranda, Sefton de Azevedo, Jorge Miranda, Genaro Carrió e Norberto Bobbio. 35 La Convention Européenne. Projet de Traité établissant une Constitution pour l’Europe. Luxembourg: Communautés européennes, 2003. 21 Sob a ótica estritamente dogmática, a Declaração Universal não pode ser considerada um tratado. Entretanto sua cogência tem sido reconhecida pela jurisprudência dos Estados que integram a ONU e também pelo direito costumeiro internacional. Além disso, é considerada pela doutrina majoritária a norma fundante dos direitos humanos supra-estatais. Isto explica por que ela encabeça a Carta Internacional dos Direitos Humanos (International Bill of Rigths), seguida dos Pactos de 1966. O Brasil assinou a Declaração Universal dos Direitos do Homem em 10 de dezembro de 1948. Nunca houve ato de ratificação, a exemplo do que acontece com os tratados. Também não era necessário. Embora a discussão sobre sua cogência em nosso ordenamento jurídico nunca tenha sido levantada – mesmo durante a ditadura militar de 1964 –, a melhor solução técnica para expressar o reconhecimento de que ela é norma fundamental, positiva, vinculante e cogente é, sem dúvida, sua recepção formal pela Constituição Federal, nos termos do § 3o do art. 5º. Na prática, a Constituição Federal a recepcionaria como tratado. Tal medida acabaria de vez com a polêmica e fortaleceria o sistema de proteção constitucional aos direitos humanos supra-estatais. Não concordamos com o posicionamento de importantes doutrinadores que sustentam a tese de que todos os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil têm dignidade constitucional em razão do disposto no art. 5o, § 2o da CF. Para eles, a ratificação operaria a incorporação automática com o status de norma constitucional36. Como já sustentamos anteriormente, tais direitos nascem na ordem jurídica supra-estatal, propagando-se posteriormente para o direito interno. Existem, independentemente do reconhecimento e proteção nacional. Sua condição de direitos fundamentais não está vinculada à incorporação constitucional ou legislativa. Cabe à técnica jurídica conceber os mecanismos mais adequados para recepcionar os direitos fundamentais supraestais no ordenamento jurídico brasileiro. O importante é que os países signatários cumpram os compromissos assumidos e os integrem aos respectivos ordenamentos jurídicos da maneira que lhes for mais conveniente: normas constitucionais (CF, art. 5o, § 3o), leis ordinárias (CF, art. 102, III, b) ou políticas públicas. Aliás, o compromisso de submissão aos tratados internacionais sobre direitos humanos tem base constitucional. Em primeiro lugar porque a prevalência dos direitos humanos é um dos princípios que orientam o Brasil nas relações internacionais (CF, art. 4o, II). Em segundo lugar porque o catálogo de direitos fundamentais contido na Constituição Federal não é exaustivo e excludente. O § 2o assegura a incorporação no ordenamento jurídico pátrio de outros direitos advindos de tratados internacionais de que o Brasil seja um dos signatários. Ao contrário do que sustenta a mencionada corrente doutrinária, tal norma não lhes assegura hierarquia constitucional. Tão-somente declara sua supra-estatalidade e reafirma o compromisso de assegurar e garantir os direitos humanos neles contidos. 36 Entre eles Flávia Piovesan. Cf. Direitos humanos e direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max Limonad, 1996, pp. 317-318. 22 5. DIREITOS FUNDAMENTAIS ABSOLUTOS E RELATIVOS Na Constituição Federal encontramos duas categorias de direitos: os direitos fundamentais e os direitos não fundamentais. A técnica legislativa ainda não conseguiu separá-los com precisão, o que tem criado alguns embaraços hermenêuticos. Os direitos fundamentais formam a coluna vertebral da Constituição. Por isso são cercados de instrumentos de proteção como aplicabilidade imediata, inclusão no cerne irrestringível, força vinculante e garantias processuais capazes de torná-los efetivos. Sua inclusão no texto constitucional decorre da obrigação estatal de declarar e executar as normas supra-estais ou internacionais, bem como de positivar princípios superiores vigentes no direito interno. Ao estudar a Constituição de Weimar, Kurt Häntzschel identificou duas classes de direitos: os direitos fundamentais absolutos e os direitos fundamentais relativos. Os primeiros eram anteriores e superiores ao Estado, cabendo à lei excepcionalmente impor-lhes limitações. Os segundos tinham o seu conteúdo e limites fixados pela norma estatal. Carl Schmitt sustentava que os autênticos direitos fundamentais eram os absolutos – os direitos do homem individual. Para o constitucionalista alemão, tais direitos justificavam-se pelo princípio da distribuição do estado burguês de direito: de um lado uma esfera de liberdade ilimitada (em princípio); do outro, a possibilidade de ingerência do Estado, sujeita a limites, controle e medições. Em outras palavras, a liberdade era a regra e a ingerência, a exceção37. Os direitos relativos não teriam a mesma intensidade por serem produto do direito estatal, portanto passíveis de revogação. Essa posição encontra-se totalmente superada em razão do crescente processo de internacionalização dos direitos humanos, sobretudo os sociais, econômicos, culturais, difusos e coletivos. O fato de serem organizados pelo direito estatal não lhes tira a fundamentalidade nem os torna menos importantes que as liberdades públicas. Entretanto, a dualidade direitos fundamentais absolutos (§1) e relativos (§2) ainda é importante como formulação teórica. É o que veremos a seguir. 5.1. Direitos fundamentais absolutos Os direitos fundamentais absolutos são aqueles que se erguem sobre o Estado por força de tratados, cabendo a lei estabelecer os limites de sua incidência. O Estado atua como “definidor de exceções”. Para que não percam sua essência, o Estado só tem legitimidade para restringi-los dentro das fronteiras permitidas pelo direito internacional. Nesse grupo estão os direitos supraestatais, provenientes de ordem jurídica superior e preexistente ao direito interno. A liberdade de expressão, a liberdade de locomoção, a liberdade reunião, o 37 SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Madrid: Alianza Universidad Textos, 1992, pp. 170-172. 23 direito à intimidade, à imagem e à vida privada são alguns exemplos dessa categoria. Podemos expressar os direitos fundamentais absolutos pela seguinte fórmula: DFAb = supra-estatalidade + incorporação ao ordenamento38. Na Constituição Federal, a presunção de inocência está expressa com a seguinte redação: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Trata-se de direito fundamental supra-estatal previsto no art. 11 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e art. 8.2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica, entre outros tratados internacionais. Como seu fundamento de existência encontra-se em ordem jurídica anterior e superior à ordem estatal, a norma constitucional não o criou. Ou seja, apenas executou o compromisso de positiválo no ordenamento jurídico nacional. Mesmo que isso não acontecesse, a presunção de inocência continuaria a existir como direito fundamental, podendo ser aplicada pelos juízes brasileiros. Em síntese, os direitos fundamentais absolutos não são produto da norma constitucional. Sua origem transcende a ordem jurídica nacional e se impõe inexoravelmente a ela. A positivação nas Constituições constitui suporte fático nuclear da própria criação do Estado Democrático de Direito. São direitos que vinculam o poder constituinte a declará-los, executá-los e protegê-los na Lei Fundamental. Entretanto o Estado pode impor limitações legais ao seu exercício desde que não afete o seu conteúdo essencial. 5.2. Direitos fundamentais relativos Vimos que os direitos absolutos nascem na ordem jurídica supra-estatal e vinculam os países à obrigação de reconhecê-los e protegê-los em suas Constituições. Já os direitos relativos tem como principal característica a organizabilidade pelo direito interno, não importando se eles são estatais ou supra-estatais. Pontes de Miranda demonstrou que o que caracteriza os direitos relativos não é sua origem, mas o dever estatal de organizá-los na legislação ordinária. Em suas palavras, são direitos que existem conforme a lei os organizar. Muitas vezes a ordem jurídica supra-estatal (mundial ou regional) impõe aos países signatários de tratados a obrigação de produzir leis destinadas a organizar o exercício de determinados direitos fundamentais. O mesmo pode acontecer com a Constituição ao eleger como fundamentais determinados direitos estatais. Vários direitos fundamentais relativos podem ser encontrados na Constituição de 1988. Todos são organizáveis pela lei brasileira e não impostos pela ordem supra-estatal. A Constituição, por exemplo, assegurou os direitos autorais e a transmissão hereditária pelo tempo que a lei fixar (art. 5o, XXXVII). 38 Incorporação no ordenamento = constitucionalização, ratificação ou recepção constitucional. 24 O mesmo acontece com a desapropriação por necessidade ou utilidade pública (CF, art. 5o, XXIV), a impenhorabilidade da pequena propriedade rural (CF, art. 5o, XXVI), a defesa do consumidor (CF, art. 5º XXXII), a proteção aos idosos (CF, art. 229) e portadores de deficiência ( CF, arts. 7º, XXI, 23, II, 24, XIV) – todos organizáveis por leis ordinárias. 6. DIREITOS FUNDAMENTAIS ASSEGURADOS Os direitos fundamentais são assegurados quando a norma constitucional atribui sanções cíveis, penais ou administrativas para os atos ilícitos que os violarem. Podemos defini-los pela seguinte fórmula: DFA = constitucionalização + sanção. Explicamos. Assegurados são direitos fundamentais estatais ou supraestatais que foram constitucionalizados na ordem jurídica interna com atribuição de penas para atos de violação. As normas constitucionais assecuratórias estabelecem sanções determinadas ou indeterminadas aos autores de atos jurídicos contrários a direito (= infração às normas de direitos fundamentais). De forma geral, as normas constitucionais assecuratórias de direitos fundamentais são cogentes, isto é, proíbem ou impõem determinada conduta. Para Pontes de Miranda, “proibir, em direito, é atribuir a alguém direito, pretensão, ação, exceção para que se proíba; impor, em direito, é atribuir a alguém direito, pretensão, ação, exceção para que se imponha39”. Dessa forma, a cogência dos direitos fundamentais está na obrigatoriedade da conduta e também na incondicionalidade da incidência da norma constitucional para atribuir ao autor do ato ilícito efeitos jurídicos contrários aos seus interesses. Alguns exemplos de normas cogentes de direitos fundamentais: (a) “não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião (CF, art. 5º, LII)”; (b) “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (CF, art. 5º, LIV)”; (c) “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos (CF, art. 5º, LVI)”. Significa dizer que as normas constitucionais incidem para proibir conduta do Estado, impondo-lhe obrigação de não fazer. São, portanto, normas cogentes proibitivas. Por outro lado, existem normas assecuratórias que vinculam o Estado a prestações positivas, verdadeira obrigações de fazer. Daí serem chamadas normas cogentes impositivas: “é assegurada, na forma da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva (CF, art. 5º, VII)”; (e) “às presidiárias são asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação (CF, art. 5º, L)”; (f) “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (CF, art. 5º, LXXIV)”; Portanto, a violação de normas cogentes tem como conseqüência a imposição de medidas desvantajosas para o responsável pelo ato ilícito. As 39 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, tomo I. Campinas: Bookseller, 1999, p. 117. 25 sanções cíveis, penais ou administrativas surgem como uma resposta do sistema jurídico aos atos contrários ao direito. São punições impostas pelo sistema jurídico aos responsáveis por infração à lei. 6.1. Classificação dos atos ilícitos na teoria de Marcos Bernardes de Mello Em importante estudo sobre o tema, Marcos Bernardes de Mello demonstra que, no tocante à eficácia jurídica, os atos ilícitos podem ser indenizativos (a), caducificantes (b) e invalidantes (C). Indenizativos são os atos ilícitos que têm como efeito o dever de indenizar os danos causados pelo agente. Os caducificantes implicam a perda ou suspensão de direitos na sua forma mais ampla. Os invalidantes, por fim, são os que têm como conseqüência a invalidade – nulidade ou anulabilidade40. a) Sanções indenizativas Os atentados contra a vida privada, a imagem ou a intimidade que acarretem danos morais a pessoas físicas ou jurídicas são indenizáveis por força do art. 5º, X, da CF. O inciso LXXV do mesmo artigo impõe ao Estado o dever de indenizar ao condenado por erro judiciário assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença. Tomando como base a formulação teórica acima exposta, podemos dizer que ambas as normas constitucionais impõem ao autor das violações aos mencionados direitos fundamentais o dever de indenizar as vítimas pelos danos causados. Nessas situações, a norma constitucional atribui sanções pecuniárias (indenizativas) a serem pagas pelo Estado ou por particulares em razão da prática de ato ilícito. b) Sanções caducificantes O agente público que pratica improbidade administrativa no exercício da função, importando enriquecimento ilícito, prejuízos ao erário ou violação aos princípios da administração pública está sujeito às seguintes penas: perda de bens e valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, pagamento de multa civil, proibição de contratar com o poder público e proibição de receber incentivos fiscais e creditícios. Com exceção do ressarcimento do dano, todas as sanções previstas na Lei 8.429/92 têm natureza caducificante, pois implicam a perda de direitos políticos, civis e patrimoniais do agente público ímprobo. Tais sanções decorrem da regulamentação do parágrafo 4º do art. 37 da Constituição Federal, que assegurou o direito fundamental supra-estatal à probidade administrativa e à proteção do patrimônio público, executando assim as exigências contidas na Convenção da OCDE para o combate ao suborno dos 40 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico – Plano da Existência. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 249. 26 funcionários públicos estrangeiros nas transações comerciais internacionais (1993) e na Convenção Interamericana contra a corrupção (1996). Podemos incluir os crimes como atos ilícitos caducificantes na medida em que as sanções previstas nas leis penais implicam a perda de direitos como a liberdade (reclusão, detenção), a suspensão de direitos políticos, perda de cargos públicos e, até mesmo, efeitos patrimoniais como o pagamento de multas ou expropriação de bens. c) Sanções invalidantes Por fim, a violação de direitos fundamentais assegurados pode ter como conseqüência a inconstitucionalidade (invalidade) do ato jurídico. Por exemplo, o art. 5º, LXXIII, estabelece a sanção de nulidade de todo ato jurídico lesivo ao patrimônio público ou entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente, ao patrimônio histórico e cultural. Dessa forma, qualquer cidadão está legitimado para propor ação popular objetivando a decretação da nulidade por infração à Constituição de todo ato administrativo lesivo a esses bens da vida , impedindo que o responsável atinja os objetivos almejados. A sanção de invalidade surge como efeito do ato contrário a direito, inclusive a violação a direitos fundamentais. Tal raciocínio se aplica também às leis e atos normativos. Se a edição das espécies normativas implica infração à norma constitucional assecuratória, o ordenamento jurídico impõe a sanção de inconstitucionalidade. É de se observar, contudo, que a sanção de nulidade por violação a direitos fundamentais só tem cabimento se a norma jurídica não estabelecer outra forma de sanção, seja indenizativa ou caducificante. Pontes de Miranda observa que “a infração de regra jurídica cogente proibitiva tem sempre, por sanção, a nulidade, salvo se outra é a sanção adotada na lei41”. O mesmo posicionamento doutrinário é defendido por Marcos Bernardes de Mello, para quem “sempre que há violação de norma cogente há invalidade, desde que a norma não preveja, especificamente, outra sanção para sua infringência42”. Há muitas sanções por contrariedade a direitos fundamentais que não estão previstas na Constituição, mas na legislação ordinária. Isto ocorre quando a norma constitucional não é bastante em si, dependendo de edição de lei para incidir. A sanção existe, mas só se exterioriza com a vigência da lei regulamentadora. A Constituição Federal reservou à lei a punição para qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (CF, art. 5º, XLI). Também considerou o racismo crime inafiançável e imprescritível, cabendo a lei estabelecer as penas (CF, art. 5º, XLII). Também é crime inafiançável e imprescritível ação de grupos armados, civis ou militares, contra a 41 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, tomo IV. Campinas: Bookseller, 1999, p. 247. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico – Plano da Existência. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 250. 42 27 ordem constitucional e o Estado de Democrático (CF, art. 5º, XIV). O mesmo acontece com o crime de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes, terrorismo e os definidos pela lei como crimes hediondos (CF, art. 5º, XLIII). Em todos esses exemplos, as sanções impostas aos atos ilícitos violadores de direitos fundamentais dependem de lei ordinária. Ressalte-se, ainda, que as limitações a direitos fundamentais só podem ser impostas pela norma constitucional ou pela lei ordinária. A limitação decorrente de ato normativo é inconstitucional, pois tal espécie de regra jurídica é inidônea para restringir o exercício das liberdades fundamentais. Se isso acontece, há clara violação constitucional punida com a sanção de nulidade. Com essa providência, evita-se que os fins ilícitos perseguidos pela Administração Pública se concretizem. Essa é a resposta que o ordenamento dá às tentativas dos governantes despóticos que pretendem subjugar a dignidade da pessoa humana através da edição de atos normativos restritivos a direitos fundamentais estatais e supra-estatais. 7. GARANTIAS INSTITUCIONAIS Na Alemanha, Carl Schimitt desenvolveu a teoria das garantias institucionais com o objetivo de proteger estruturas consideradas realidades sociais objetivas. A doutrina alemã nos legou a seguinte classificação: (1) garantias jurídico-públicas (Institutionelle Garantien) e (2) garantias jurídicoprivadas (Institutsgarantie). As primeiras preservam institutos ou instituições de direito público; as segundas, de direito privado. As garantias institucionais não podem ser confundidas com direitos subjetivos fundamentais. Elas não asseguram aos indivíduos poder de exigir. A norma constitucional garante especial proteção a determinadas instituições para inibir o arbítrio do legislador sem, no entanto, legitimar cidadãos para a propositura de remédios jurídicos processuais. Elas são organizadas pelo direito interno mediante reserva de lei. Carl Schimitt acentua a distinção entre ambos sustentando que as garantias têm estrutura lógica e jurídica distinta de um direito fundamental. Para ele, a previsão constitucional também tem a finalidade de impossibilitar sua supressão por via legislativa ordinária43. A principal característica das garantias institucionais é o compromisso jurídico-constitucional de perenidade das instituições que refletem valores indissociáveis da organização social. A garantia será organizada exclusivamente pela lei nacional. O Brasil é livre para criar o seu próprio modelo de proteção ou transplantar modelos adotados por sistemas jurídicos estrangeiros. As garantias institucionais manifestam-se como imposições legiferantes e implicam prestações positivas do Estado. Mas não são direitos subjetivos, dada a inexistência de pretensões jurídicas individuais passíveis de justiciabilidade. A norma constitucional obriga o legislador ordinário a preservar determinadas estruturas jurídicas, mas não assegura aos beneficiários diretos ou indiretos o 43 SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Madrid: Alianza Universidad Textos, 1992, p. 175. 28 direito de exigir o seu cumprimento. De fato, tais garantias são direitos insubjetivados, na medida em que comina obrigações estatais sem atribuir legitimidade individual para exigir o seu cumprimento. Daí Canotilho afirmar que “as garantias institucionais não garantem aos particulares posições subjetivas autônomas44” Para Vieira de Andrade, “por vezes, a Constituição estabelece regras ou impõem deveres, designadamente às entidades públicas, com a função principal e a intenção de garantir, realizar e promover a dignidade da pessoa humana centrada em posições subjetivas, mas não investe os indivíduos em situação de poder ou de disponibilidade com esse objeto específico”. E continua: “Esses « deveres sem direitos» constituem uma zona de proteção das posições subjetivas no âmbito da qual os efeitos jurídicos se reportam directamente às normas, em termos que não são, em geral, susceptíveis de referenciação individual (não são subjetiváveis) – constituem, por isso, figuras que apresentam um caráter simultaneamente objetivo e fundamental”45. As garantias institucionais criam estruturas sociais, políticas ou administrativas capazes de concretizar os direitos fundamentais. Tradicionalmente, os institutos e as instituições estão cristalizados na vida social do país. Fazem parte da cultura, dos costumes, da tradição. Além de realidades objetivas, as garantias institucionais são essenciais à dignidade humana, à qualidade de vida e à justiça social. Relacionam-se com os direitos fundamentais porque sua atuação se desenvolve nas dimensões da liberdade, igualdade, solidariedade e democracia. A norma constitucional impõe ao legislador o dever protegê-las no ordenamento jurídico. Ao mesmo tempo o proíbe de desfigurá-las, adulterá-las, deturpá-las ou suprimi-las. Dessa forma, é inconstitucional toda norma jurídica que, de uma forma ou de outra, afete a essência da garantia institucional. Uma vez garantidos, os institutos e instituições devem ser protegidos no ordenamento jurídico. O legislador ordinário pode estabelecer limites ao seu conteúdo desde que não deforme sua essência. Ou seja, a atuação legislativa deve respeitar o mínimo essencial das referidas estruturas, sob pena de sofrer a sanção de inconstitucionalidade. Alguns direitos fundamentais só podem ser exercitados no âmbito de determinadas estruturas jurídicas, pois seus efeitos são essencialmente institucionais. Se elas desaparecem ou se degradam, tais direitos deixam de ser desfrutados por seus titulares. Assim, haverá inconstitucionalidade sempre que ocorrer modificação de norma jurídica que implique descaracterização da instituição ou do instituto protegido pela Constituição46. A norma constitucional obriga o Estado a promover todos os meios legislativos e administrativos necessários para que a instituição seja protegida em 44 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, p. 397. 45 ANDRADE, José Carlos Vieira. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 2004, p. 143. 46 FAVOREU, Louis et alli. Droit des libertés fondamentales. Paris : Dalloz, 2003, p. 82. 29 território nacional. A constitucionalização em forma de direito fundamental é o reconhecimento de que a instituição é essencial ao funcionamento do Estado Democrático de Direito e a garantia de que ela será organizada pelas leis brasileiras. Caso o Estado não promova as medidas necessárias para regulamentá-la incorre em inconstitucionalidade, justificando a propositura da ação de inconstitucionalidade por omissão. Na Constituição brasileira, as garantias institucionais são largamente utilizadas para assegurar o funcionamento das principais instituições democráticas, a exemplo do Poder Legislativo (CF, art. 53), Poder Judiciário (CF, art. 95), Ministério Público (art. 128. § 5º, I) e Defensoria Pública (CF, art. 133, § 2º). Através delas, os membros dessas instituições poderão exercer plenamente as funções que lhes foram confiadas pelo Constituinte, sem o temor de represálias por parte dos detentores do poder político ou das forças armadas. 8. DIREITOS FUNDAMENTAIS NEGATIVOS E POSITIVOS 8.1. Direitos fundamentais negativos Os constitucionalistas clássicos só consideravam fundamentais os direitos negativos. Carl Schimitt só reconhecia como tais os direitos de liberdade individual. Os direitos a prestações positivas do Estado não se subjetivavam. Para Esmein, “les droits individuels présentent tous un caractère commun ; ils limitent les droits de l’État, mais ne lui imposent aucun service positif, aucune prestation au profit des citoyens. L’État doit s’abstenir des certaines immixtions, pour laisser libre l’activité individuelle ; mais l’individu, sur ce terrain, n’a rien de plus à réclamer47”. As normas assecuratórias de direitos fundamentais negativos impõem limites ao poder do Estado sobre a esfera individual da pessoa humana e estabelecem o dever estatal de não-ingerência. O caráter supra-estatal da maior parte dos direitos fundamentais também impede que o legislador constituinte ou ordinário imponha-lhes restrições arbitrárias ou ilegítimas. Os direitos fundamentais negativos são dirigidos ao Estado em defesa da esfera individual da pessoa humana. São direitos que já se cristalizaram nas Constituições democráticas, atingindo um alto grau de supra-estalidade. Apenas a lei – inclusive a Constituição – pode limitá-los. Agem como poderosos instrumentos de luta contra o arbítrio, a violência e o despotismo do poder político na medida em que impõem ao Estado deveres negativos e positivos. As liberdades fundamentais presumem que o Estado reconhece aos indivíduos a faculdade de exercer determinadas atividades sem ser molestado por quem quer que seja. Assim, os direitos fundamentais negativos asseguram um 47 ESMEIN, A. Éléments de droit constitutionnel français e comparé. Paris: Editions Panthéon Assas, 2001, p. 548. 30 atuar sem coação, cabendo ao poder público o dever de realizar as condições necessárias ao seu exercício48. Também são chamados direitos de defesa, pois protegem a esfera de liberdade individual contra interferências externas ilegais, inclusive dos órgãos estatais (Executivo, Legislativo e Judiciário). 8.2. Direitos fundamentais positivos Os direitos fundamentais positivos são aqueles que impõem ao Estado prestações administrativas ou legislativas destinadas a satisfazer os direitos sociais, econômicos, culturais, difusos e coletivos. Caracterizam-se por serem verdadeiros pouvoirs d’exiger que conferem aos seus titulares a possibilidade de exigir do Estado prestações relativas ao bem-estar do indivíduo e da sociedade. Para Pontes de Miranda, são direitos que obrigam o Estado “a alguma prestação, ou em simples regra programática, ou em regra de direito objetivo com sanção ou sem ela, ou em regra de que decorram direito objetivo, pretensão e acionabilidade49”. Em outras palavras, as regras de direitos fundamentais positivos: a) impõem ao Estado prestações civilizatórias a serem executadas mediante intervenção legislativa ou adoção de políticas públicas destinadas a concretizar os direitos sociais; b) apontam diretrizes, metas e objetivos a serem alcançados pelo Estado, seguindo a orientação contida nas regras programáticas; c) estabelecem – em situações específicas – verdadeiros direitos subjetivos e sanções a serem aplicadas pela autoridade judiciária. O constitucionalista português José Carlos Vieira de Andrade também defende a concepção de que os direitos fundamentais positivos “são direitos que impõem tarefas, que pressupõem e necessitam de uma definição ulterior, são direitos sob condição; são, ao mesmo tempo, da perspectiva do Estado, deveres de concretização, de ação que permita sua existência completa50”. Para ele, os direitos sociais não se voltam contra o Estado (lógica Estatal), mas sua realização ocorre através do Estado, pela ação concreta nos mais diversos campos do setor público51. Os direitos fundamentais positivos têm origem socialística, ou seja, nascem dos princípios da igualdade e da solidariedade. Dotados de supraestatalidade, exteriorizam-se nas Constituições contemporâneas como direitos sociais, econômicos, culturais, difusos e coletivos. São direitos que obrigam o Estado a prestações concretas como a edição de leis ou a promoção de políticas 48 MORANGE, Jean. Las Libertades Públicas. México: Fondo de Cultura Económica, 1981, p.8. MIRANDA, Pontes de. Democracia, Liberdade, Igualdade (os três caminhos). São Paulo: Bookseller, 2002, p. 376. 50 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987, p. 67. 51 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987, p. 50. 49 31 sociais voltadas para a tutela da educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança pública, etc. Algumas vezes, as prestações têm natureza erga omnes, sendo igualmente impostas ao Estado e à sociedade. Ao assegurar o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o art. 225 da Constituição Federal impõe ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Da mesma forma o princípio da prioridade absoluta da criança e do adolescente obriga a família, a sociedade e ao Estado assegurarlhes o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência crueldade e opressão (CF, art. 227). Os exemplos acima mostram que a existência prestação imposta ao Estado e à sociedade civil – conjunta ou separadamente – é a característica preponderante dos direitos fundamentais positivos. Por outro lado, a proibição de o Estado limitar ou restringir as liberdades fundamentais fora do vazio deixado pelo direito internacional é a principal marca dos direitos fundamentais negativos. Contudo, é preciso ressaltar que a dicotomia direitos fundamentais positivos e negativos como categorias eficaciais estanques não tem razão de ser. Nas Constituições modernas, as liberdades fundamentais e os direitos sociais estão em permanente conexão. É por isso que Jorge de Miranda observa que os direitos de liberdade são, ao mesmo tempo, direitos de libertação do poder e direitos à proteção do poder contra outros poderes, enquanto que os direitos sociais apresentam-se como direitos de libertação da necessidade e direitos de promoção52. A conexão entre direitos fundamentais negativos e positivos já era percebida por Léon Duguit nas primeiras décadas do século XX. Para ele a ação do Estado sofria, ao mesmo tempo, limitações positivas e negativas. De um lado o Estado tinha o dever de não criar entraves ao livre desenvolvimento da atividade física, intelectual e moral do indivíduo; de outro, estava obrigado a limitar a atividade individual para que houvesse o livre desenvolvimento da atividade de todos53. Desde a Declaração de 1789 até meados do século XX, os direitos humanos restringiram-se às liberdades fundamentais. O dever do Estado era predominantemente negativo, o que exigia uma postura de não-ingerência e de proteção à esfera individual contra atentados externos. Com o advento do Welfare State, o Estado assumiu novas obrigações e tornou-se devedor de prestações positivas destinadas a garantir a fruição dos direitos de liberdade, democracia, igualdade e solidariedade. 52 MIRANDA, Jorge. Os Direitos fundamentais – sua dimensão individual e social. Revista dos Tribunais, out/dez, Recife, 1992, p. 201. 53 DUGUIT, Leon. Traité de Droit Constitutionnel, v. 5. Paris : Éditions Cujas, s/d., p. 2. 32 No constitucionalismo contemporâneo, as dimensões negativa e positiva dos direitos fundamentais são duas faces da mesma moeda. A inviolabilidade de domicílio é direito que impõe simultaneamente ao Estado o dever de não penetrar na residência sem o expresso consentimento do proprietário e de dar todas as garantias – legais e administrativas – de que o titular do direito fundamental possa fruí-lo livremente. A liberdade de locomoção implica não só o dever estatal de não criar obstáculos à livre circulação do indivíduo em território nacional, mas também prestações positivas para que ela possa ser exercida em sua plenitude. Além de adotar uma atitude de não-intervenção, o Estado está obrigado a editar leis e desenvolver políticas de segurança pública destinadas a proteger a esfera da intimidade do cidadão. A teoria geral do direito acolhe como dado científico a correlatividade entre direitos e deveres. Para cada direito fundamental subjetivo o Estado tem o dever de satisfação, que se desenvolve em três direções: (a) dever de abstenção na esfera de liberdade do titular; (b) dever de proteção dos direitos fundamentais contra agressões externas; (c) dever de promoção54 de prestações fácticas (políticas e serviços públicos) ou normativas (imposições legiferantes) destinadas à satisfação dos direitos fundamentais. Quase sempre existe uma relação de complementaridade entre as dimensões negativa e positiva dos direitos fundamentais. Como vimos, o Estado fica vinculado ao cumprimento de deveres em diversos níveis. O mesmo direito fundamental pode subjetivar-se para assegurar ao seu titular o poder de inibir a ação estatal na esfera de sua liberdade individual ou para exigir do Estado prestações positivas como políticas sociais, serviços públicos de boa qualidade, produção jurislativa concretizadora, etc. Essa complementaridade não impede, contudo, a autonomia de cada dimensão. A pretensão pode relacionar-se, separada ou conjuntamente, com a obrigação de não-fazer ou com a prestação positiva. 9. ESPECIALIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS A técnica da especialização dos direitos fundamentais remonta ao século XVIII. A Declaração de 1789 já fazia distinção entre direitos do homem e direitos dos cidadãos. Os primeiros irradiavam indistintamente para todos os seres humanos, sem qualquer distinção de nacionalidade, raça, religião, idade, condição social ou financeira. Os segundos restringiam-se aos detentores do status de cidadão, isto é, os que podiam fruir da liberdade política, da participação na vida institucional do país. Os direitos do homem tinham natureza pré-social enquanto os direitos dos cidadãos estavam ligados à existência do Estado. Embora ambos fossem fundamentais, os primeiros eram mais genéricos e consistiam em direitos subjetivos cuja titularidade se espraiava para toda a espécie humana. Tratavam-se 54 O dever de promoção é mais comum nos direitos sociais. Mas não é exclusivo dessa categoria de direitos. É possível que o exercício de determinado direito individual esteja condicionado a prestações positivas do Estado, a exemplo de políticas sociais, serviços públicos, campanhas educativas, etc. 33 de direitos anteriores e superiores à sociedade civil que se incorporavam a cada ser humano, sem levar em conta sua condição de cidadão. Entre eles estavam a liberdade, igualdade, segurança jurídica e resistência à opressão. Os direitos do cidadão só poderiam ser exercitados em determinada organização social. Manifestavam-se pelo direito ao sufrágio e pelo direito de ocupar cargos públicos e eletivos. A Declaração Universal de 1948 abriu os caminhos para a consagração de novos direitos fundamentais. Os tratados internacionais tornaram-se mais específicos na proteção de grupos minoritários, como crianças, adolescentes, idosos, portadores de deficiência, entre outros. A especialização não distorceu a universalidade que caracteriza os direitos fundamentais. Ao contrário. A tutela jurídico-internacional de grupos sociais vulneráveis mostrou-se um forte mecanismo de combate à violação dos direitos humanos. Foi a matriz da arquitetura constitucional e legislativa de proteção dos direitos difusos e coletivos nos países democráticos. Além da especialização criada por tratados internacionais, existem direitos que derivam de outros direitos fundamentais. Assim, existem normas jurídicas, geralmente não-escritas, que retiram seu substrato do conteúdo de direitos fundamentais positivados em constituições ou tratados internacionais. Em resumo, a especialização dos direitos fundamentais desenvolve-se em duas direções: (a) derivação do conteúdo de determinados direitos fundamentais; (b) necessidade de proteção específica a grupos sociais vulneráveis. A principal distinção entre elas é o sujeito de direito. As normas de direitos fundamentais derivados configuram direitos subjetivos universais, criando faculdades e poderes para todos os seres humanos, vistos em sua abstração e generalidade. Já as normas de direitos fundamentais específicos só delineiam situações de vantagem para determinados sujeitos de direito. 10. CONCLUSÃO A disposição dos direitos fundamentais no sistema constitucional brasileiro é o reflexo de diversas correntes doutrinárias desenvolvidas na Alemanha, Estados Unidos e França após a 2ª Guerra Mundial. Pontes de Miranda soube captar essas tendências e construiu as bases teóricas do sistema de proteção aos direitos fundamentais hoje adotado no país. A Constituição de 1988 tem-se mostrado um grande instrumento de fortalecimento do Estado Democrático de Direito na medida em que atribui aos direitos fundamentais aplicabilidade direta e força vinculante em relação a todos os poderes da república. O país também tem primado pelas técnicas de blindagem dos direitos humanos contra ingerências circunstanciais de grupos políticos interessados em proteger interesses espúrios e inconfessáveis. Exemplos dessa couraça de proteção são as cláusulas pétreas, o controle de constitucionalidade e as garantias processuais. 34 O grande desafio do constitucionalismo brasileiro é a criação de mecanismos jurídicos e administrativos que promovam a crescente efetividade das liberdades públicas e dos direitos sociais. E isso só é possível com a adoção de políticas públicas eficientes que melhorem a qualidade de vida da população, promovam a igualdade de oportunidades, combatam a corrupção e fortaleçam as instituições democráticas. 35