Gilgamesh: Um Comentário Há evidência de que há 4.000, na
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Gilgamesh: Um Comentário Há evidência de que há 4.000, na
Gilgamesh: Um Comentário Há evidência de que há 4.000, na Mesopotâmia já se contava a estória épica de Gilgamesh, seguramente o herói mais importante até o surgimento da Ilíada pouco mais de 500 anos A.C. Os indícios, no entanto, nos remetem pata mais de 5000 anos atrás quando teve início a epopéia desse primeiro herói trágico da mitologia. Os mitos só tratam da verdade; daquilo que realmente acontece. A realidade no caso, é a realidade simbólica. A dimensão que confere sentido à existência. O mito é a liguagem simbólica que trata em essência dos acontecimentos que transformam a condição humana. A sequência desses acontecimentos transformadores é o processo evolutivo. É provável que na qualidade de seres humanos, a coletividade esteja engajada nesse processo há 15000 anos. A cada etapa coletiva, a cada gesto individual, símbolos novos ou antigos serã mobilizados. Dntre os símbolos que regem o processo de criação, donde a evolução é uma constante re-criação, o mais importante deve ser o da conjugalidade. É o símbolo que recria as origens e rege a pro-criação e a criatividade. A expressão desse símbolo será encontrada esde o acasalamento puro e simples até as formas mais elaboradas de expressão artística. Como é óbvio, tanto um como outro prescindem de explicações e se resolvem por si. Simplesmente se mostram. A amplificação do tema será a forma da intelectualidade contribuir para a expansão do campo simbólico. A clarificação dos termos, a elucidação histórica, a comparação de imagens são formas de amplificar, fazendo a consciência contribuir para a alma, para o enriquecimento da psiquê humana. Desde muito, vem sendo reservado à psiquê um lugar intermediário entre corpo e espírito, entre o céu e a terra, enfim entre dois polos opostos e complementares Essa complementação uma vez efetivada, integrada na consci~encia coletiva, poderia dar origem a um mito. Há quem diga que uma vez o mito tenha assumido uma forma literária, como a poesia épica, terá perdido sua força mágica, transformadora. Entretanto, é impressionante que um mito com o tempo que tem Gilgamesh, continue a tocar de forma tão comovente a consciência cultural do nosso século. Isso nos é possível graças à ação apaixonada de algumas pessoas. Para começar, em 1839, com dois jovens estudiosos ingleses, que se detiveram nas escavações de Nínive, capital da Babilônia e da da biblioteca do palácio, recolheram milhares de fragmentos de tablóides em escrita cuneiforme. Boa parte do material foi para para o Museu Britânico, para Bagdá e Istambul. O restante, foi para os Estados Unidos. A dispersão do material dificultou e prolongou o trabalho de decifração mas, graças a esforços conjuntos, temos hoje até mais de uma versão da epopéia de Gilgamesh. Pelo menos cinco poemas ficaram registrados na literatura sumeriana, pois foram os sumérios o primeiro povo letrado da Mesopotâmia. A estória é secular, sem características religiosas ou finalidades rituais como o mito de criação babilônico, o “Enuma Elish”. Conta a saga de um herói chamado Gilgamesh, rei de Uruk. Gilgamesh era duas partes deus e uma parte homem,já que sua mãe era a deusa Ninsum, de quem herdou beleza, força e um espírito inquieto. Seu pai era Lugulbanda, que reinara em uruk por 1200 anos. Dele herdou a mortalidade e, da união, a tragédia de viver o conflito entre os desígnios divinos e o destino humano. Essa é a tragédia vivida por todos aqueles que, por vontade ou aceitação, se obrigam a trabalhar na ampliação da da consciência e do espírito. Gilgamesh não conhecia rivais em nenhum aspecto. Inquieto (como é o espírito criador) , não cessava de de causar incômodo à ordem que se cosiderava estabelecida. O conselho de Uruk reunido, decide pedir auxílio aos deuses. Os conselheiros pedem que seja providenciada uma companhia e, ao mesmo tempo, um contraste à altura de Gilgamesh. Os expoentes da normalidade fazem isso com frequência. Não podendo sair da sua da sua mesmice< recorrem à fonte mesma de sua de seus temores para que surja outra instância de porte criador, para que se digladiem e, em se destruindo mutuamente, nada se transforme. E continue a mesmice. Os deuses ouviram os lamentos e a deusa da criação, Aruru, concebeu uma imagem. Criou Enkidu. Tinha as virtudes do próprio deus da guerra. Era forte, rude, coberto de pêlos. Seus cabelos eram longos como os de uma mulher e era cheio de inocência. Comia vegetais, dividia com as feras a água do poço e protegia a caça. Era a própria imagem da natureza intuidora em equilíbrio estável. Certa vez, foi visto incomodando a ação predatória dos caçadores. Causou espanto e temor; já era preciso destruí-lo. Gilgamesh seria o único capaz de vencê-lo. A pedidos, instruiu uma cortesã a seduzí-lo, ensinandolhe a luxúria. Com isso, a vida selvagem o repudiaria. Por seis dias e sete noites foram companheiros e depois, convencido pela cortesã, vai conhecer a cidade e a vida de homem a que afinal, estava condenado. Em Uruk, Gilgamesh continuava seus atropelos. Numa ocasião, a pretexto de defender Ishtar, a deusa do amor, das investidas de Gilgamesh, Enkidu entra em luta violenta com o rei e é venvido. Imediatamente reconhece a superioridade de Gilgamesh e tornam-se bons amigos. Esse tema, como outros, viria a aparecer séculos depois na literatura dos gnósticos e como se poderá perceber, alguns influenciaram diretamente os textos bíblicos. Os cristãos primitivos do gnosticismoconheciam duas figuras de Adão. Uma sendo a cópia da outra porém, a segunda conferia espiritualidade e a primeira mais ação. Pouco depois, Gilgamesh recebe em sonho notícias de seu destino, assim como em sonho tivera a visão de Enkidu, sonho que sua mãe interpretou para êle. Desta vez, a elucidação do sonho é feita pelo seu companheiro, que pede ao rei para não abusar dos poderes que lhe forem revelados. Gilgamesh como parando para refletir, reconhece que apesar de toda a agitação não realizou umatarefa realmente grande e definitiva. Decide então partir em busca dos grandes cedros na floresta do deus sol Shamash. Com a madeira faria grandes monumentos aos deuses e ao povo de Uruk. Enkidu alerta para os perigos da expedição e das dificuldades que teriam para vencer o gigante Humbaba, monstro maligno e guardião da floresta cujas armas eram imbatíveis. Gilgamesh, humildemente pede auxílio ao próprio Shamash que lhe cede os ventos como arma. Ninsum, a mãe, exorta Enkidu a guiar seu filho no caminho declarando aos deuses que o tinha agora como segundo filho. Enkidu, tendo como vindo de outro mundo, vê com outros olhos o destino humano. É o primeiro a se emocionar e se entristecer. Ao mesmo tempo, é quem desperta em Gilgamesh a necessidade de explorar os terrenos desconhecidos e sombrios da floresta. Surge mais um sonho aterrador e, mesmo assim, se dispõem a derrubar os cedros. Caindo o primeiro, Humbaba ouve o estrondo e se enfurece pela violação de seus domínios. Como o sono prevenira, Gilgamesh cai num intenso torpor, ficando inconsciente enquanto se aproxima o monstro. É como se não estivesse preparado para esse tipo de confronto. Enkidu, como a metade mais instintiva, consegue despertá-lo e imploram a ajua de Shamash, alegando que não valeria a pena o sofrimento de seus pais se a empreitada não pudesse se completar. Shamash envia os ventos para conter Humbaba na sua investida. Os dois heróis derrubam várias árvores para aprisionar o guardião. Êste, vencido, implora piedade, jurando tornar-se um servo.Gilgamesh, outra vez, pouco experiente nas emoções, deixa-se comover. Enkidu esbraveja lembrando que é apenas a voz do Mal vencido. Uma vez libertado, não haveria porque não cortar a saída de ambos para o retorno. “… A luta não terminada voltará para atormentá-lo todas as noites!” Humbaba lamenta que Enkidu possa ter palavras tão cruéis e impiedosas mas, diante disso, Gilgamesh desfere o primeiro golpe, Enkidu o seguinte e o monstro morre com o terceiro. A cabeça de Humbaba é então apresentada aos deuses e a Enlil, deus dos ventos, que se enfurece por terem usado seus elementos para matar um protegido. Recolhe então os poderes de Humbaba e os distribui pela Natureza. A dupla volta a Uruk como vencedora. Ishtar, a deusa do amor, pede a Gilgamesh que case com ela. Surpreendentemente, a titude que antes era de grandes arroubos torna-se prudente. Gilgamesh recusa.lembra a Ishtar o quanto ela maltratara os seus amantes e o quanto haviam sofrido. Ele não desejava a mesma sorte. Ishtar, ofendida, pede ao pai, deus Anu, que solte o Touro dos Céus para destruir Gilgamesh. Anu a repreende; ela havia exorbitado. Não sendo o pai dos deuses, atreveu-se a enfrentar Gilgamesh, o rei e, como consequência, ouviu a verdade. A filha enfurecida ameaça o pai com uma grande confusão. Abriria as portas dos infernos e os mortos se misturariam aos vivos. Anu lembra que, soltando o Touro e morrendo Gilgamesh, haveria sete anos de seca e fome. Ishtar se compromete a providenciar grãos e forragem suficientes para sete anos. Ao primeiro estalido de libertação do Touro, cem jovens morrem. No segundo, mais duzentos. O terceiro estalido faz Enkidu vergar atordoado. Entretanto, segura o Touro pelos chifres. Gilgamesh vem em seu auxílio desferindo um único golpe mortal. Ishtar, do alto das muralhas de Uruk, blasfema e roga uma maldiçãosobre Gilgamesh. Enkidu corta a coxa direita do Touro atirando-lhe ao rosto. Ameaça fazer o mesmo com ela se pudesse tocá-la. A maldição não se perde no vazio. Os deuses discutem e ela termina por recair sobre Enkidu, que sonha com a morte. Fraco, despede-se do amigo-irmão. Quando terminam os funerais, Gilgamesh inconformado parte em busca da vida eterna. Na verdade, já era êsse o objetivo quando partirampara a floresta de cedros. A conquista da permanência pela construção de monumentos e por feitos heróicos. Agora estava claro. Gilgamesh procura uma maneira de encontrar Utnapishtim, o Distante, Aquele que sendo humano vivia nas terras da imortalidade. Precisa atravessar a montanha que limita, por um túnel de escuridão, o mundo dos homens e o mundo dos deuses. Abatido, chega ao outro lado. Encontra Siduri, a jovem fazedora de vinho, que lhe ensina o caminho do grande oceano e do barqueiro Urshanabi. Este, consente em levá-lo ao outro lado onde mora Utnapishtim. É mais uma imagem que aparecerá na mitologia grega com o barqueiro Caronte, que leva os mortos para o mundo de Hades. Apenas Héracles pôde ir e voltar assim como Gilgamesh. No primeiro encontro, o abatido Gilgamesh pergunta, surpreendido, por que Utnapishtim tem uma aparência tão comum e tão leve, quando êle esperava encontrar um guerreiro pronto para a batalha. Utnapishtim decide revelar um mistério. Certa vez houvera um grande dilúvio no rio Eufrates. Os deuses já não conseguiam dormir com o alarido dos homen e porisso resolveram exterminar a humanidade. Utnapishtim foi avisado em sonho e começou a construir uma enorme barca apoiado pelo sol Shamash. Nela colocaria o que tivesse de mais precioso. Sua família, empregados, seus pertences, animais domésticos e selvagens. Enlil, odeus dos ventos, ficou com a tarefa de provocar a grande tempestade. Por seis dias e seis noites, não se podia ver nada além das águas agitadas e do céu escuro. No sétimo dia, cessado o vento, nem sinal de terra firme. Apenas um espelho d’água e nenhum sinal de pessoas. Quatorze léguas distante, Utnapishtim avistou o topo de uma montanha e lá a barca encalhou. Durante seis dias a barca esteve firme. Assim, no sétimo dia em terra firme soltou a pompa que, não encontrando pouso, voltou. Depois, soltou a andorinha que tambem voltou. Finalmente soltou o corvo que, podendo encontrar terra e comida não mais voltou. Soltou então tudo aos quatro ventos. Preparou um sacrifício no topo da montanha com um grande caldeirão. Os deuses sentiram o aroma e vieram regozijar-se em torno. Ishtar conclamou todos a participarem da oferenda, exceto Enlil que, irrefletidamente provocara o dilúvio destruindo o povo. Enlil chega furioso, lembrando que nenhum mortal deveria ter escapado. Entretanto, Utnapishtim for a avisado em sonho. Agora deveria viver junto à esposa, na nascente dos rios, longe dos mortais. Depois de revelar a história do dilúvio, utnapishtim recomenda seis dias de repouso a Gilgamesh. No sétimo dia, sem se dar conta que dormira tanto, ouve mais um segredo: no fundo das águas há uma planta cheia de espinhos. Quem conseguir colhê-la suportando a dor e a força das águas, teria de volta a juventude perdida. Gilgamesh encontra a planta. Ao invés de comê-la, decide levá-la para Uruk onde os anciãos poderiam recobrar a mocidade. Ainda pretendia fazer uma grande contribuição à coletividade. No caminho de volta, encontra um belo poço de águas límpidas onde vai se banhar. No fundo esse poço vivia uma serpente que atraída pelo cheiro doce e aspecto suave da flor a toma. Sua pele se renova e volta ao fundo. Ao ver frustrado seu desejo de levar a flor para Uruk, Gilgamesh sofre e soluça. Já não poderia fazer mais nada pelo seu reino. Só lhe restava voltar. Convida o barqueiro a levá-lo de regresso à sua cidade. Ao chegar, faz Urshanabi subir no alto das muralhas. Orgulhoso, mostra que o que êle vê é Uruk. Uma cidade ideal. Um terço da cidade são construções, um terço são jardins e um terço são campos cultivados. Êsse conjunto mai a vivenda de Ishtar constitui o seu reino. Afinal, êsse era o grande trabalho de Gilgamesh. Nenhum herói poderia fazer tanto e gravar a sua história com tanto brilho. O reinado lhe dera a condução de sua própria vida. A vida eterna, como aprendera de Utnapishtim, não era concedida pelos deuses, que não abrem mão da morte dos homens. A permanência será consequente a seus feitos como homem. A morte de Gilgamesh foi lamentada e sua memória preservada. Gilgamesh foi o herói da vida, fiel às suas inquietações. Lutou suas batalhas, venceu suas vitórias, perdeu suas derrotas. É a imagem simbólica daqueles que vivem a própria vida com o heroismo necessário. Assim Gilgamesh, o herói trágico à face da humanidade, que se debate entre os gestos divinos e um destino mortal, busca na qualidade duradoura de seus feitos a imagem da imortalidade. No sentido simbólico, isto é viver sem desperdiçar o impulso criador nem poupar a energia destinada a realizar a criação. É não abusar do talento, buscando a perfeição dos meios e da técnica. É respeitar a sensibilidade do ato criativo que tem sua forma paradigmática na Arte. Para o artista, o arauto dos sonhos de Enkidu e Gilgamesh, a grande realização é o direito conquistado e a alegria de ver que o trabalho já não lhe pertence; está mostrado. Frederico Lucena de Menezes (Escrito por ocasião da mostra “Luiz Monforte conta Gilgamesh” Museu da Imagem e do Som – São Paulo – novembro de 1984)
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