Definição de Agenda, Debate Público e Problemas Socais
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Definição de Agenda, Debate Público e Problemas Socais
Definição de Agenda, Debate Público e Problemas Socais: Uma Perspectiva Argumentativa da Dinâmica do Conflito Social MARIO FUKS* GT Mídia, Opinião Pública e Eleições Sessão 1 – Agenda, Propaganda e Política Brasileira Trabalho a ser apresentado no XXIV Encontro Anual da ANPOCS, 23-27 de outubro de 2000, Petrópolis, Rio de Janeiro. * Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná. -2- Resumo Esse artigo é o resultado da sistematização de contribuições que apontam para um modelo argumentativo da dinâmica do conflito social. Esses estudos compartilham uma visão construtivista dos fenômenos sociais e políticos, centrada no aspecto persuasivo da ação e debate públicos. Na primeira parte do texto, são apresentados temas e questões centrais dessa perspectiva, tais como a emergência e a caracterização dos assuntos públicos e a participação desigual nas arenas públicas. A parte final é dedicada a considerações a respeito da aplicação do modelo, incluindo as categorias analíticas e a dinâmica das elaborações argumentativas. Introdução Surge uma nova orientação, presente nos estudos sobre definição de agenda, problemas sociais, comunicação política e movimentos sociais, que desloca o foco de investigação da “condição objetiva” dos assuntos públicos estudados para a dinâmica sócio-política que envolve a mobilização da atenção e a compreensão pública desses assuntos. Essa nova orientação assume como objetos de estudo os processos sociais responsáveis pela emergência de um novo assunto público e as disputas em torno de sua definição. No centro da análise encontra-se a dinâmica argumentativa dos conflitos sociais, entendida como espaço de elaboração e veiculação de versões alternativas a respeito dos assuntos públicos. Ao resgatar a argumentação como uma característica essencial do objeto de estudo no campo da ciência política, essa perspectiva confere legitimidade ao debate público como campo de investigação. A vida política constitui-se, então, como arena argumentativa, na qual os partidos políticos, a mídia, os grupos organizados e o poder público participam de um permanente processo de debate. Com o objetivo de sistematizar essa perspectiva, o artigo considera a literatura das seguintes áreas de estudo: definição de agenda, sociologia dos problemas sociais, movimentos sociais e psicologia social. O artigo divide-se em duas partes principais. Na primeira, são apresentados temas e questões centrais, tais como a emergência e a caracterização dos assuntos públicos e a participação desigual nas arenas públicas. A parte final é dedicada a considerações a respeito da aplicação do modelo, incluindo aspectos metodológicos. -31. Emergência dos Assuntos Públicos e Participação Diferenciada Esse artigo enfoca os assuntos públicos e problemas sociais em termos da disputa social em torno da sua compreensão1. Esse processo ocorre no “sistema de arenas públicas” (Hilgartner & Bosk 1988), onde estão em curso, entre outros fenômenos, as atividades reivindicatórias de grupos, o trabalho da mídia, a criação de novas leis, os conflitos processados pelos tribunais, a divulgação de descobertas científicas e a definição de políticas públicas2. Não se trata, portanto, de um processo regido por uma entidade abstrata chamada “cultura”, nem ocorre em locais vagos tais como a “sociedade” ou a “opinião pública” (Hilgartner & Bosk 1988: 58), mas sim emerge da disputa, sediada em arenas específicas, entre uma (virtual) pluralidade de versões, embora as condições diferenciadas de participação impliquem vantagens para certos atores e, no limite, o silêncio de outros. Até mesmo as arenas reservadas aos especialistas e técnicos não estão isentas do teor argumentativo dos fenômenos com que lidam (Majone 1989). Envolvidas com a tomada de inúmeras decisões e permeadas por paradoxos (Stone 1988), as ações no campo da política e os saberes técnicos a ela associados partem, necessariamente, de um conjunto de pressupostos, os quais determinam, entre outras coisas, a atribuição de responsabilidade e de causa, a seleção dos assuntos3 relevantes e das alternativas a 1 Evitei, no entanto, considerações teóricas relativas ao fundamento epistemológico ou ontológico da abordagem construtivista. Entre as correntes do construtivismo no campo da sociologia dos problemas sociais, a perspectiva aqui adotada aproxima-se do construtivismo contextual (“contextual constructionism”) tal como proposto por Best (1993), que, ao contrário do construtivismo no sentido estrito (“strict constructionism”), leva em consideração a dimensão contextual e, portanto, externa ao próprio processo de definição dos problemas sociais. Para um aprofundamento destas distinções no campo da sociologia dos problemas sociais, ver Holstein e Miller (1993). 2 Portanto, o processo de definição de problemas ocorre nas duas dimensões – separáveis apenas do ponto de vista analítico – das arenas públicas: o debate e a ação. A morfologia das arenas públicas propicia uma interação permanente entre a ação e o debate, a qual assume a forma de reforço recíproco. Na pesquisa que realizei a respeito dos litígios ambientais ocorridos no Rio de Janeiro (Fuks 1997), essa dinâmica pôde ser observada em relação a vários conflitos estudados. Quando, por exemplo, uma associação de moradores inicia um processo judicial contra uma empresa imobiliária, a própria ação deste grupo tem implicações retóricas – ela promove uma determinada compreensão do problema ambiental –, ao mesmo tempo em que abre espaço para a veiculação dos argumentos que sustentam esta compreensão (no tribunal e na mídia, por exemplo). Por outro lado, uma vez veiculada, a presença desta compreensão do problema ambiental nas arenas públicas cria condições favoráveis para ações coletivas com o mesmo tipo de orientação. Nesse sentido, o conceito de debate público aqui proposto inclui o conjunto de atividades em torno do qual ele se estrutura. 3 Na falta de um termo mais apropriado, traduzi “issue” por “assunto” ou “assunto público”, dependendo do contexto. Peço ao leitor que, ao deparar-se com esses termos, tenha em mente o sentido de controvérsia pública associado, freqüentemente, à palavra “issue”. -4serem adotadas, a avaliação de necessidades e a determinação do público-alvo4 (Fisher & Forester 1993: 1). No âmbito da ciência política, o estudo a respeito de definição de agenda5 é o que conduz a dinâmica do debate público ao centro do campo de investigação. As duas questões básicas no estudo a respeito da definição de assuntos públicos e, mais especificamente, da definição de agenda são as seguintes: 1) como surgem novos assuntos públicos e por que alguns (e não outros) ascendem às arenas públicas e ali permanecem (ou não); 2) que atores participam do processo de definição de assuntos públicos. Na sua forma mais elementar, a colocação básica é: De onde provêm as questões de política pública? Nos preocupa entender a gênese desses assuntos e porque algumas controvérsias ou assuntos incipientes atraem a atenção e interesse dos centros formais de tomada de decisão, enquanto outras falham nesse sentido. Em outras palavras, quais os determinantes da agenda de controvérsia política dentro de uma comunidade? Como é que tal agenda se constrói (isto é, como é que um assunto ganha acesso a ela?) E quem participa deste processo? (Cobb & Elder 1972: 14) Portanto, a primeira questão refere-se aos fatores que determinam a emergência de um assunto nas arenas públicas. As perguntas centrais aqui são: como certas questões conseguem transcender o âmbito da preocupação de pequenos grupos para alcançar a atenção pública? De que forma as estratégias e os recursos dos grupos organizados, visando assegurar a aceitação pública de seus interesses, demandas e valores, interferem nesse processo? Qual é o impacto das ações governamentais, especialmente quando elege prioridades e cria instituições que colocam o foco da atenção pública em determinados assuntos? Em que medida o contexto sócio-cultural contribui para o sucesso ou fracasso da entrada de certos assuntos na agenda pública? Todas essas questões são relevantes e indicam um ponto de referência comum a esses estudos: a emergência de questões na agenda pública explica-se mais em termos 4 Em relação ao público-alvo, Schneider e Ingram (1993: 344) argumentam, conforme indica o título do artigo, que a construção social dos públicos-alvo tem implicações importantes na política e, de forma particular, na definição de políticas públicas. Os grupos podem ser percebidos de forma positiva ou negativa, o que, obviamente, determinará o tipo de atenção (ou não atenção) que receberá por parte do poder público. No núcleo da imagem associada a cada grupo, reside a relação de proximidade ou distância entre ele e o interesse público. 5 Utilizo, ao longo do livro, o termo “definição de agenda” como tradução de “agenda-setting”. O estudo a respeito da “definição de agenda” é, aqui, entendido como a aplicação do “conhecimento a respeito dos conflitos sociais ao estudo da formação dos assuntos públicos” (Cobb & Elder 1972: 44). -5da dinâmica social e política do que dos atributos intrínsecos dos assuntos em disputa, ou seja, das “condições reais” dos problemas em questão. A condição para que uma determinada questão se torne objeto de atenção social é o seu reconhecimento como um assunto público. Assim, Baumgartner e Jones (1993) argumentam que nos períodos em que, nos Estados Unidos, a evasão escolar é percebida como uma questão de escolha pessoal daqueles que abandonam os estudos, ela tende a ser vista como um assunto a ser resolvido no âmbito da família. Porém, no momento em que passa a ser compreendida como um fenômeno responsável pela perda de qualidade da mão-de-obra do país e, conseqüentemente, de sua competitividade internacional, torna-se um assunto digno de ser considerado no âmbito das arenas de ação e debate públicos. Spector e Kitsuse (1987) apontam as atividades reivindicatórias de grupos como os responsáveis por esse reconhecimento social, transformando um assunto específico em “problema social”. Nós definimos problemas sociais como as atividades dos indivíduos ou grupos empenhados em encaminhar demandas em relação a uma suposta condição. A emergência de um problema social depende da organização de atividades afirmando a necessidade de erradicar, melhorar ou mudar alguma condição. O problema central para uma teoria dos problemas sociais é explicar a emergência, natureza e continuidade de atividades reivindicatórias e as respostas que lhes são dadas (Spector & Kitsuse 1987: 75-76). Vista deste ângulo, a tradição de pesquisa na área de problemas sociais parte da crença equivocada de que as condições objetivas constituem o fator explicativo da emergência e da caracterização desses problemas. Esta proposta de reformulação da sociologia dos problemas sociais envolve o deslocamento do foco da análise das chamadas “condições objetivas” para o processo de reconhecimento subjetivo que conduz à sua definição enquanto problema social. Afinal, uma alegada condição não constitui um problema social enquanto não for enunciada publicamente como tal. Assim, por exemplo, um suposto crescimento em números de abortos não configura um problema social enquanto esta estatística não for veiculada por um grupo que a interprete como “crime contra a vida” ou, alternativamente, como uma conseqüência da miséria e da desinformação. -6A criação ou reestruturação de instituições públicas, a elaboração de leis e a alocação de recursos públicos em certas atividades são exemplos da eficácia da ação governamental na definição de assuntos públicos, em geral, e de problemas sociais, em particular. Freqüentemente, a criação de novos órgãos estatais antecede a atenção pública em relação a certos assuntos, sendo, inclusive, responsável pelo fomento de novas demandas sociais. Ou seja, a existência de agências governamentais dedicadas à solução de um determinado problema social incentiva a formulação e o encaminhamento de demandas sociais difusas em termos adequados ao perfil do problema tal como definido institucionalmente. Isso pode ser observado em relação aos conflitos ambientais, no Rio de Janeiro, quando a criação, no âmbito do Ministério Público, de uma estrutura específica para lidar com a proteção ao meio ambiente não apenas abriu espaço para o encaminhamento das demandas dos grupos ambientalistas, mas, principalmente, estimulou a redefinição, em termos ambientais, das mais variadas reivindicações de associações de moradores (Fuks 1996). Certamente, os recursos materiais, organizacionais e simbólicos disponíveis para um determinado grupo serão, ao menos parcialmente, responsáveis pelo sucesso de sua campanha para promover suas preocupações ao status de problema social. No limite, encontram-se os grupos que não se organizaram (“grupos latentes”) e os assuntos que foram mantidos fora da agenda pública, o que pode ser conseqüência tanto da ausência ou fragilidade de atores empenhados em sua promoção como da estratégia de grupos interessados em excluí-los das arenas de ação e debate públicos (Cobb & Ross 1997). O contexto cultural constitui outro elemento importante na dinâmica responsável pela ascensão de temas e questões à esfera pública. Certos assuntos são favorecidos por sua associação com temas culturais e valores mais amplos, já sedimentados (Bosso 1994; Gamson & Modigliani 1989; Rhys 1995). Valores como “livre mercado”, “propriedade privada” e “progresso” delimitam a disputa em torno da definição dos problemas. Dessa forma, fatores ideológicos, associados a valores e tradições, estabelecem as condições de legitimidade dos assuntos públicos e de sua caracterização. A energia nuclear, por exemplo, surgiu, originalmente, como assunto público associado ao forte argumento de que representava mais um passo significativo na direção do “progresso” científico e material da sociedade moderna (Gamson & Modigliani 1989). Além dos fatores culturais, elementos estruturais, como a organização do Estado e a Constituição, também configuram o contexto do processo de definição dos assuntos -7públicos (Bosso 1994: 182). Ou seja, a definição de problemas ocorre dentro de um determinado cenário cultural e de organização das instituições públicas, o qual estabelece parâmetros de legitimidade e regras que condicionam a ação e o debate público. A identificação dos diversos espaços constituídos pelas arenas de ação e debate públicos, o peso de cada uma delas, a interação entre elas e, especialmente, o papel dos canais institucionais na configuração da agenda pública e dos problemas sociais têm sido objetos de análise de vários estudos. A começar pelos próprios constrangimentos estruturais do sistema de arenas, em que a competição entre diferentes assuntos por um bem escasso, a atenção pública, limita o número de assuntos considerados a cada momento (Hilgartner & Bosk 1988; Carmines & Stimson 1989). Em que medida a diversidade de arenas de ação e debate público expressa também heterogeneidade? Certamente, diferenças em dimensão e formato permitem pensar que certas arenas serão mais propensas a acolher certos assuntos e certos atores. Algumas arenas organizam-se a partir de procedimentos e regras que excluem um acesso mais amplo do público, como, freqüentemente, é o caso dos setores da administração pública encarregados de lidar com políticas públicas que envolvem, predominantemente, o saber técnico e interessam apenas a uma comunidade específica. Essas arenas tendem a se fechar sobre si mesmas, permanecendo ocultas à visão e à pressão do público. Em outras arenas, a saliência pública de suas atividades as tornam mais visíveis e vulneráveis ao contexto externo. Esse é o caso da arena parlamentar, embora sua estrutura organizacional restrinja o acesso ao processo decisório (Bosso 1987). A interação entre diferentes arenas constitui um aspecto central da própria dinâmica da evolução do debate público. Embora a maior parte dos assuntos tenda a permanecer em arenas específicas, no interior das quais eles asseguram sua sobrevivência, aqueles com maior êxito circulam em vários canais institucionais. Considerando que a intenção dos atores é intervir da forma mais ampla possível no sistema de arenas de ação e debate público, a estratégia inicial daqueles que promovem um determinado assunto público é encontrar canais institucionais propensos a abrigálos, os quais, por sua vez, atuarão no sentido de reforçar sua presença nos demais espaços públicos. -8O exemplo oferecido por Baumgartner e Jones (1993) é o da ação de grupos ambientalistas, nos Estados Unidos, na década de 1960. Após encontrarem resistência por parte do Executivo federal, esses grupos recorreram a uma instituição mais aberta às suas demandas: o Congresso. O resultado dessa mudança foi a aprovação de uma nova legislação, assegurando aos ambientalistas maior acesso às arenas onde sua presença era frágil – nos tribunais e nos processos de regulação ambiental –, ao mesmo tempo em que reforçou a “imagem” que promoviam a respeito da questão de seu interesse. Uma vez alcançado o objetivo de atrair atenção, surge a questão da manutenção de um determinado assunto na agenda pública, o que depende de fatores como assegurar a contínua dramaticidade do problema em questão, por meio da criação de “notícias” e da renovação dos recursos simbólicos associados ao tema (Hilgartner & Bosk 1988: 71). Uma visão pessimista das possibilidades de permanência prolongada de um assunto na agenda pública é aquela expressa pelo “ciclo de atenção a um assunto público” (“issueattention cycle”), o qual pretende explicar a oscilação da atenção e preocupação sociais em torno de um problema público. O ponto de partida é o momento em que o assunto, de repente, torna-se foco de atenção, permanecendo assim durante um curto período. O ciclo termina quando o assunto sai do centro da atenção pública, embora, em grande medida, permaneça não resolvido (Downs 1972:38). Carmines e Stimson (1989) classificam os assuntos que ascendem à agenda pública da seguinte forma: 1) aqueles que não captam a atenção pública, pois são muito técnicos, complexos, não favorecendo o elo comunicativo entre as elites e os cidadãos: são resolvidos no âmbito das elites (ex: política energética); 2) aqueles que têm grande impacto imediato, mas não deixam marca de longa duração no sistema político; 3) aqueles – raros – que têm um longo ciclo de vida, capazes de alterar o ambiente político em que surgiram e se desenvolveram, conduzindo a mudanças no sistema (ex: a questão racial, na política norte-americana). Esse último tipo de assunto público é simples, do ponto de vista cognitivo, dispensando conhecimento, atenção ou interesse específico em relação à política, capaz de receber atenção e mobilizar o público mais amplo. Ele é saliente no âmbito da política partidária, especialmente no processo eleitoral, e – quando sua presença contínua redefine alinhamentos partidários – é capaz de influenciar decisivamente a política institucional. -9Pode-se argumentar que os assuntos não têm a propriedade de serem mais ou menos difíceis, pois isso, em grande medida, depende dos termos em que são apresentados no debate. Até porque um dos objetivos centrais da ação política é determinar quem se envolve na disputa. Defina um assunto de forma abrangente – “defesa nacional” é sempre um bom exemplo – e você estará ampliando o direito à participação a todas as visões [...] Defina um assunto de forma restrita – o “míssil MX” em vez de “defesa nacional” – e você, da mesma forma, restringirá a amplitude e o número de grupo interessados e legítimos no debate (Bosso 1987: 27). Além da interação entre as arenas, deve-se também considerar a interação entre os assuntos. Se, por exemplo, nos Estados Unidos, a polarização entre as visões liberal e conservadora tende a organizar as opiniões do público mais sofisticado6 em função de sua posição a respeito do papel do governo na sociedade, a consolidação de um novo assunto7 ocorre a partir de seu enquadramento nesse panorama ideológico (Carmines & Stimson 1989). Uma arena estratégica é aquela constituída pelos meios de comunicação de massa, especialmente na medida em que ela serve como ponte de articulação entre as demais arenas e como canal de ampla difusão pública do que ocorre em cada uma delas. Sua influência sobre o público e o governo não se restringe ao seu papel na definição das agendas societal e governamental, mas também na sugestão de “como pensar” os assuntos veiculados (Gamson et al., 1992; Iyengar, 1987). Ainda não consideramos com maior atenção a questão relativa a “quem participa” no processo de definição de problemas públicos. Um ponto de referência – e, para muitos, também um ponto de partida – é a concepção de Schattschneider a respeito do conflito político (Schattschneider 1960). O conflito político não é como um debate intercolegial (entre alunos de faculdade), no qual os oponentes concordam, de antemão, na definição dos assuntos. De fato, a definição das alternativas é o instrumento supremo de poder; os adversários raramente concordam na definição dos assuntos, porque essa definição envolve poder. Aquele que 6 Essa distinção entre os públicos que acompanham o debate público, remonta ao clássico estudo de (Converse 1964). Haveria um componente cognitivo, expresso em termos de grau de atenção e “sofisticação” políticas, responsável pela variação do grau de consistência interna do sistema de crenças, a qual traduz-se em termos da associação entre posições a respeito de vários assuntos públicos tendo como referência uma escala ideológica. 7 Como, por exemplo, a questão racial, originalmente definida em termos das posições “racista” ou “progressista”. - 10 define o assunto da política comanda o país; porque a definição das alternativas implica a escolha dos conflitos e a seleção de conflitos aloca poder (Schattschneider 1960: 66). De acordo com o autor, o conflito político possui dois atributos básicos: 1) ele é contagioso; 2) ele depende, em seu desdobramento, do controle do nível de participação pública, ou seja, dos processos de ampliação e estreitamento do conflito. Considerando que a entrada em cena de novos atores é o meio mais eficaz para se alterar a correlação de forças original, e, conseqüentemente, o desfecho do conflito, interessa ao ator em desvantagem vencer a apatia da maioria dos cidadãos e estimular a mobilização do público em torno do conflito por meio de uma nova definição do assunto em pauta8. Partindo deste modelo, Baumgartner e Jones (1993) entendem que a explicação para a dinâmica da vida política encontra-se na indiferença de grande parte do público. De um lado, é esta indiferença que assegura o controle de um grupo sobre uma determinada área de ação governamental. De outro, a possibilidade de mobilizar este público apático, problematizando a compreensão do assunto que assegura este monopólio, explica a existência de mudanças não apenas na esfera das políticas públicas, mas também nas próprias instituições públicas que as viabilizam. Os autores focalizam sua análise exatamente neste processo de desequilíbrio dos subsistemas políticos a partir da emergência de novas definições de assuntos públicos. A categoria central desta dinâmica é a de “policy image”, ou seja, a compreensão, socialmente difusa, de um objeto de política pública. O tom da imagem é o fator crucial na carreira de um assunto, pois uma mudança de tom, de positivo para negativo, por exemplo, implica mudança nas bases de sustentação da política. Os autores citam o caso da mudança de tom da “policy image” associada à energia nuclear que, antes associada ao progresso, agora evoca a sensação de risco e degradação ambiental. Considerando que as ações públicas são sempre acompanhadas das “policy images”, não seria exagero visualizar o conflito político como um conflito em torno da definição de “policy images” (Baumgartner & Jones 1993: 28). O conjunto de atores envolvidos nessa disputa pode variar desde a restrita comunidade de especialistas em determinadas áreas das políticas públicas até o espaço social mais amplo, onde se faz sentir a influência mais ou menos difusa dos 8 Esse mesmo procedimento também constitui um dos aspectos da competição partidária: a ação estratégica de políticos ao explorar assuntos que acirram as contradições internas de uma coalizão de adversários (Carmines & Stimson 1989). - 11 movimentos sociais e da opinião pública. No limite, conforme já observamos, há monopólio sobre a definição quando há consenso entre a elite (ex.: especialistas, grupos de interesse) que compõe a comunidade diretamente envolvida na definição de políticas públicas em relação a um determinado assunto, assegurando o reconhecimento público de sua autoridade enquanto conhecedor da questão. Esse também é o caso quando um ator, grupo ou instituição adquire a “propriedade” sobre um determinado assunto, como foi, durante um bom tempo, o caso da Igreja em relação à bebida alcoólica nos Estados Unidos (Gusfield 1981). Há também de se considerar que se, de um lado, uma pluralidade de atores, grupos e instituições tende a participar na disputa que envolve a emergência e a caracterização dos assuntos públicos, de outro, alguns desses têm claras vantagens sobre os outros. Essas vantagens existem em razão da distribuição diferenciada de recursos materiais, organizacionais e simbólicos. Os atores situados no âmbito das instituições governamentais estão entre aqueles que assumem uma posição privilegiada nessa disputa. A visibilidade de seus pronunciamentos e o caráter singular do discurso público oficial – fortalecido por seu amparo em outras formulações estatais (ex.: leis) – asseguram a esses atores condições especiais de participação no debate público9. Tão importante quanto a definição dos atores e das questões que têm acesso às arenas públicas é a caracterização dos assuntos. Uma vez alcançado o status de assunto público, a definição de uma determinada questão social deixa de ser monopólio exclusivo dos segmentos originalmente responsáveis por sua promoção. Rochefort e Cobb chamam de “política de definição de problemas” esse processo envolvendo a caracterização de problemas na arena política (Rochefort & Cobb 1994, 3-4). A identificação das causas, a atribuição de responsabilidade, a avaliação da gravidade, a caracterização dos temas e públicos relevantes e a solução proposta constituem os elementos-chaves em torno dos quais desdobra-se a disputa pela definição de um determinado problema social. 9 Portanto, os recursos argumentativos que se encontram no campo jurídico têm um papel especial na dinâmica que envolve a definição dos assuntos e problemas públicos. Mas, não se trata de uma propriedade intrínseca e mágica da lei, capaz de, por si própria, moldar a nossa sensibilidade por meio de suas categorias, mas do fato de que em certas arenas e para certos setores sociais ela constitui uma referência central na estruturação da compreensão e da linguagem para lidar com os assuntos públicos. Nessa prática, caracterizada pelo recurso reiterado que determinados atores fazem às categorias legais, em contextos específicos (Harrington & Yngvesson 1990), reside a eficácia constitutiva da lei (Trubek 1984), cujo poder real dependerá de sua articulação com os demais recursos retóricos presentes nas arenas de ação e debate públicos. - 12 Referindo-se aos incidentes ocorridos em Los Angeles, em 1992, após a divulgação do videoteipe que mostrava quatro policiais brancos espancando um motorista negro que teria resistido à prisão, Rochefort e Cobb salientam que as definições distintas da natureza do problema implicam também diferentes propostas de solução, via a adoção políticas públicas, para o assunto em questão. [...] dirigir a atenção para as desigualdades raciais e econômicas como as causas subjacentes dos tumultos pressupõe um determinado tipo de resposta, uma que se constrói em torno de medidas de justiça social, incluindo a expansão de oportunidades econômicas e educacionais para os grupos desprivilegiados. Em contraste, enfocar a incapacidade da polícia em controlar a desordem aponta para o aperfeiçoamento da administração, do treinamento e da seleção de policiais (Rochefort & Cobb 1994, 3). 2. Análise Argumentativa: Estrutura, Dinâmica e Categorias Considerando que um dos principais veículos por meio dos quais desdobra-se a disputa em torno da caracterização dos assuntos públicos é a argumentação, uma perspectiva analítica que pretenda estudar processos de definição de problemas sociais deve estar equipada para lidar com recursos argumentativos. Embora seja imprescindível uma compreensão geral dos aspectos institucionais, sociais, econômicos e políticos que configuram o contexto da disputa em torno da definição de problemas sociais, não se deve perder de vista a eficácia da dimensão simbólica do conflito, a qual confere singularidade ao processo em questão. As diferentes versões salientes a respeito dos assuntos públicos são, em parte, identificáveis em termos da seletividade que se manifesta, por exemplo, no foco10 ou nível de análise (ex: centrada no comportamento individual ou no sistema) ou nos critérios de mensuração (ex: a escolha dos fatores relevantes na medição do índice de pobreza, ou do período de fraco desempenho econômico necessário para aplicar o rótulo de “recessão” a uma situação econômica) (Rochefort & Cobb 1994, 12-13). Essa diversidade também se expressa na pluralidade de quadros de referência, fornecendo modelos explicativos alternativos. Aqui todo um universo de estratégias argumentativas – constituído por metáforas, frases de efeito, imagens, ressonâncias 10 Gusfield (1981), por exemplo, entende que a consciência pública americana elegeu o motorista consumidor de bebidas alcoólicas como foco de atenção para o problema público associado à segurança automobilística. Neste caso, a singularização da ingestão de álcool como tema do debate acerca das causas e soluções para o problema da segurança de trânsito impediu, durante muito tempo, que outras possíveis causas, como a do “carro inseguro”, ou da “estrada insegura”, ocupassem espaço significativo neste debate. - 13 culturais, esquemas argumentativos – entra em ação11. Quer seja ela considerada como um fenômeno estruturado por “idiomas retóricos” (Ibarra & Kitsuse 1993), por “repertórios discursivos”, por “temas culturais”, ou por “imagens” dos assuntos públicos, a dinâmica argumentativa constitui o locus para onde se direcionam as análises do processo de definição de assuntos públicos. No que se refere à compreensão da estrutura argumentativa, a psicologia social vem oferecendo contribuições importantes. Entre elas, destacam-se os estudos a respeito do discurso, o qual é concebido: 1) como uma ação orientada para gerar certos efeitos (Potter & Wetherell 1987); 2) como parte de um universo discursivo mais amplo, envolvendo posições antagônicas (Billig 1991); e 3) como um processo enraizado no passado (Billig 1991; Moscovici 1978). Todos esses aspectos nos permitem conceber o discurso como externalidade, seja em termos de sua dimensão pragmática, de sua articulação com as enunciações alternativas, em relação às quais se opõe e com as quais dialoga, ou de seu caráter conservador, devido à presença de elementos ideacionais sedimentados no âmbito do senso comum. Este último aspecto foi analisado por Moscovici (1978) enquanto fenômeno associado à circulação social das novidades que surgem no campo cultural. Ao investigar o processo de socialização das descobertas científicas ao nível do senso comum, o autor mostra como o novo objeto só penetra no universo de representações de um grupo após passar por um laboratório de criação social, em que o “objeto é associado a formas conhecidas e reconsiderado através delas” (Moscovici 1978: 174). A “ancoragem”, por meio da qual o estranho torna-se familiar, é parte integrante do constante processo de elaboração das representações sociais. A abordagem retórica que Billig (1991; 1993; 1995) propõe para a investigação das controvérsias públicas também aponta o caráter conservador do senso comum, onde estão sedimentadas estruturas argumentativas que se opõem. De acordo com Billig, a 11 Estratégias retóricas específicas também contribuem para a elaboração desses quadros de referência. Exemplo de como isso ocorre pode ser encontrado no estudo de Zarefsky (1986) a respeito do combate à pobreza empreendido pelo presidente norte-americano Lyndon Johnson. Zarefsky identifica o uso da estratégia de “dissociação” quando Lyndon Johnson dissocia o termo “pobreza” de sua concepção como “carência de dinheiro” e passa a associá-la a um “estilo de vida”. A primeira concepção (dominante) implicaria uma política, inaceitável, de distribuição de renda; já a segunda implicaria os programas sociais menos ameaçadores que o presidente estava propondo (Zarefsky 1986: 9). Outra estratégia identificada pelo autor é a “definição persusiva”, por meio da qual Lyndon Johnson aplicou o rótulo de “guerra” ao seu empenho contra a pobreza. Na época, ao símbolo de “guerra” estavam associados atributos positivos tais como unidade nacional, mobilização coletiva de esforços, dedicação desinteressada a uma causa, assalto incisivo ao inimigo (Zarefsky 1986: 10). - 14 plena inteligibilidade de uma seqüência discursiva só se revela mediante o exame do argumento ao qual ela se opõe: o seu contexto retórico. Mais do que isso, o contexto de controvérsia é condição básica para que as opiniões e posições existam. No entanto, a controvérsia não precisa estar atualmente em curso, pois, o senso comum – onde os atores vão buscar recursos para os debates do presente – constitui-se como depósito do conjunto de controvérsias sociais do passado12. Essa mesma orientação para o passado das elaborações discursivas tem sido identificada nos estudos a respeito da definição dos assuntos públicos. Assim, Gamson e Modigliani (1989) afirmam que nem todas as definições – concebidas como pacotes interpretativos – têm o mesmo impacto sobre o público. O apelo de cada pacote depende da ressonância das idéias nele contidas com temas culturais mais abrangentes e consolidados. Quanto maior for esta ressonância, mais familiar parecerá o pacote ao público, o que facilitará a sua acolhida. Em estudos a respeito da emergência do meio ambiente no debate público, no Rio de Janeiro, na década de 1980, confirmei a presença dessa orientação para o passado (Fuks 1998a; Fuks 1998b). Entre outras evidências, talvez a mais saliente seja aquela constituída pelos argumentos que se referem à “ameaça das habitações populares” como núcleo do problema ambiental da cidade, as quais recorrem a um acervo retórico consolidado ao longo da história urbana do século XX, no Rio de Janeiro. Da mesma forma, Rhys (1995), investigando as construções retóricas de “bem público”, argumenta que os movimentos sociais (assim como os demais grupos) não criam suas versões no vácuo. Estas versões são criadas a partir de condicionantes histórico-culturais, condensados no repertório de recursos/temas culturais disponíveis13. Essas singularidades das elaborações argumentativas expressam dois aspectos dos recursos culturais que os distinguem de outros recursos disponíveis (ex: recursos organizacionais) no conflito político: eles são contextuais e públicos. A contextualização refere-se ao fato de que o sentido dos símbolos está, 12 Tornando a representação social o acervo retórico socialmente disponível, Billig a retira do domínio do indivíduo ou grupo para situá-la numa dimensão dinâmica e contextual. A dinâmica comunicativa é vista menos como interação ao nível representacional do que como arte argumentativa. Assim, deixa de existir um elo de identidade e propriedade entre a mente individual ou coletiva e um determinado repertório discursivo. 13 Isso não significa a ausência da possibilidade de criação de novos sentidos. Esta sempre ocorre devido ao caráter aberto e ambíguo dos recursos culturais. Assim, ao “consumirem” o repertório cultural disponível, os atores também “produzem” novos sentidos. - 15 inextricavelmente, associado a um repertório de valores, temas culturais e crenças locais, não sendo possível transportá-los para outro contexto. Já a natureza pública dos recursos culturais é evidenciada pela própria dinâmica da disputa que envolve bens simbólicos, cujo núcleo e eficácia residem na veiculação e no consumo públicos de interpretações distintas. O controle sobre recursos culturais no âmbito de um determinado tema ocorre quando um grupo consegue impor a sua versão. Ainda assim, uma vez no mercado do debate público, não há como assegurar a continuidade do controle sobre os recursos culturais. Os recursos culturais também são públicos. São construções sociais que podem ser utilizadas por atores específicos, mas dependem do consumo e da interpretação por parte de outros atores para obter eficácia. Os símbolos que tem apenas significado interno para um movimento terão pouco impacto na arena política. E sendo que os recursos culturais são patrimônio público, o controle dos mesmos torna-se tênue; podem facilmente emergir interpretações rivais. O controle sobre os recursos culturais assume a forma de uma competição sobre quem determina os termos de sua significação. A batalha que decide quem tem a autoridade de definir o “enquadramento” de uma questão faz parte de toda luta política. (Rhys 1995: 127). As versões a respeito de um assunto elaboradas no contexto das disputas localizadas são, ao mesmo tempo, permeadas e contribuem para a constituição do quadro de referência mais amplo a partir do qual um determinado assunto público é elaborado e tratado. Essas versões são alimentadas por esquemas argumentativos, os quais fornecem amplos repertórios de recursos retóricos para a elaboração de relatos a respeito de eventos significativos14. Organizados a partir de um universo constituído por idéias chaves, metáforas, exemplos históricos, imagens visuais e referências a princípios morais, os esquemas argumentativos servem como guias gerais de como pensar e o que fazer a respeito do problema ambiental. Entre as categorias analíticas capazes de explicar a dinâmica por meio da qual se organiza e evolui o debate público em torno de um determinado assunto, destacam-se os “pacotes interpretativos” (“interpretative packages”) e a “cultura do assunto” (“issue culture”). A cultura de um assunto específico é constituída pelo conjunto dos pacotes 14 Na prática, a dinâmica argumentativa é mais complexa, envolvendo retroalimentação. Pois, visto que os esquemas argumentativos são “tipos ideais”, sua existência e evolução derivam, em última instância, das versões contidas nas várias modalidades de relatos e de produções discursivas, as quais, por sua vez, são alimentadas pelos esquemas argumentativos. Nesse tipo de relação entre as enunciações particulares e os esquemas argumentativos, não há uma anterioridade e exterioridade ontológica (Mannheim 1986, 84). - 16 interpretativos presentes no debate público. Esses pacotes são constituídos por dois mecanismos básicos: 1) o primeiro – por meio de metáforas, exemplos históricos e imagens visuais – sugere como pensar o assunto; 2) o segundo – versando sobre as causas, conseqüências e apelos morais – indica o que deve ser feito a seu respeito. A energia nuclear, como todos os assuntos de política pública, envolve uma cultura. Há um discurso corrente que evolui e muda através do tempo, fornecendo interpretações e significados para acontecimentos relevantes. Um arquivista poderia catalogar as metáforas, slogans, apelos morais, e outros dispositivos simbólicos que caracterizam este discurso. O catálogo estaria organizado, pois os elementos já aparecem agregados; nós os encontramos não como itens individuais, mas como pacotes interpretativos. Em relação à maior parte dos assuntos de política pública, existem – nesta cultura – pacotes rivais. Com certeza, isso pode ser visto como uma competição simbólica para determinar qual a interpretação que vai prevalecer. Este sistema cultural tem sua própria lógica. Há um fluxo e refluxo em termos da proeminência dos pacotes, os quais são constantemente revisados e atualizados para acomodarem novos acontecimentos (Gamson & Modigliani 1989: 1-2). Aplicando essas categorias à análise da evolução do discurso público a respeito da energia nuclear nos Estados Unidos, Gamson e Modigliani (1989) identificaram os principais pacotes interpretativos15 veiculados na mídia a respeito da energia nuclear. O pacote do progresso – o único disponível até a década de 1950 – é especialmente saliente devido à ressonância da idéia de progresso associado à energia nuclear com o poderoso e abrangente tema cultural de “progresso”. Vista da perspectiva deste pacote, a energia nuclear representa mais uma etapa da evolução técnico-científica e do crescimento econômico da sociedade. No outro pólo da evolução histórica da energia nuclear enquanto assunto público, encontramos os demais pacotes interpretativos. Experiências como a de Three Miles Island, nos EUA, e a de Chernobyl, na extinta União Soviética, retiraram a força dos argumentos fundados no dualismo paz/guerra. A mudança na cultura do assunto ao longo das décadas pode ser atestada pela emergência, ainda que discreta, do pacote 15 Uma questão metodológica importante refere-se ao critério capaz de determinar quais pacotes devem ser levados em consideração no estudo do processo de definição de um assunto público. Um critério inclusivo é o de “disponibilidade cultural”, de acordo com o qual uma determinada compreensão de um assunto público é considerada disponível caso haja, na sociedade, ao menos uma organização promovendo-a (Gamson 1992: 215). Adotar esse critério significa analisar versões que não têm o mesmo grau de visibilidade pública. Algumas, promovidas por autoridades públicas, gozam de grande visibilidade. Já outros – muitas vezes sequer visíveis fora da comunidade que os elabora – são apenas embriões de compreensões alternativas do problema social. - 17 “soft paths” (alternativas leves), que não apenas – como no caso dos demais pacotes – expressa a controvérsia pública em torno da segurança dos reatores nucleares, mas se opõe, frontalmente, a qualquer uso da energia nuclear. Todos esses estudos apontam para a relevância das intervenções simbólicas no âmbito do conflito social e, mais especificamente, da luta política. Seja ela vista em termos do conflito que definirá a “policy image” que se tornará dominante, do desdobramento de atividades reivindicatórias por parte de grupos organizados, da política de definição de problemas ou do embate entre os pacotes interpretativos que constituem a cultura de um assunto público, essa disputa sugere que a dinâmica social em torno da definição de problemas sociais constitui-se como fenômeno específico e de grande relevância no desenvolvimento das ações no âmbito de política. Conclusão Procurei, aqui, identificar as bases de uma abordagem argumentativa no tratamento da disputa em torno da definição de assuntos públicos. Esse tipo de disputa organiza-se a partir de um quadro de referência distinto daqueles centrados nas dimensões econômica, organizacional ou política – no sentido de luta pelo poder – do conflito. Trata-se do processo responsável pela definição das referências (formas de argumentar, ver, conceituar, enquadrar assuntos) que orientam o debate público e também passam a integrar o depósito das idéias que alimentam o senso comum. As conseqüências desse tipo de disputa, embora, em muitos aspectos, sejam tão intangíveis quanto a qualidade dos recursos de que dispõem, materializam-se, entre outros lugares, nas tomadas de decisões dos governos, na definição dos públicos-alvo, na criação ou reformulação de órgãos públicos, enfim, no conjunto de procedimentos que constituem o domínio das políticas públicas. Além disso, a caracterização de problemas públicos e a definição de agenda – fenômenos associados entre si – não apenas expressam, mas também repercutem, de forma incisiva, sobre a opinião pública, assim como sobre todas aquelas instituições que constituem o sistema de arenas em que ocorrem tais processos. Em contraste com outras abordagens, a ênfase, aqui, afasta-se do universo descontextualizado em que se expressa a opinião pública ou as representações sociais de grupos e recai sobre um contexto de conflito, em que determinados setores da sociedade veiculam compreensões distintas de um determinado assunto público. É no - 18 âmbito destas interações contextualizadas, conduzidas em arenas específicas (Hilgartner & Bosk 1988), que ocorrem os processos de gestação, sedimentação e circulação das versões direcionadas para a disputa em torno da definição de um determinado assunto público. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Baumgartner, Frank R. & Bryan D. Jones (1993), Agendas and Instability in American Politics. Chicago: The University of Chicago Press. Best, Joel. (1993), “But Seriously Folks: The Limitations of the Strict Constructionist Interpretation of Social Problems”. In: James Holstein & Gale Miller (orgs) Reconsidering Social Constructionism: Debates in Social Problems Theory. 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