Carpe Diem 2002 636 kb

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Carpe Diem 2002 636 kb
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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Carpe Diem
Revista Científica da F
ACEX
FA
Faculdade de Ciências, Cultura e Extensão do RN
Natal, Rio Grande do Norte
ISSN 1518-5184
Natal/RN
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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Foto da Capa
Autoria: Eliphas Levi Bulhões
Técnica: Acrílica
Sobre o autor: Eliphas Levi Bulhões, artista plástico de formação auto-didata, nascido em
Natal. Participou de vários concursos: a) Listel/Telemar (1º lugar) – 1991 e 1993; b) Listel/Telemar
(2º e 3º lugares) – 1995 e 1997, respectivamente; Participou de várias exposições: a) Salão de
Exposição da Biblioteca “Câmara Cascudo”, Natal, (1977); b) 1ª Exposição Individual – Tema:
“O Mossoroense”, Mossoró, (1978); c) Centro Cultural do Brasil – Academia Brasileira de Artes,
Rio de Janeiro (1987); d) Galeria Newton Navarro – Fundação “Hélio Galvão”, Natal (1991); e)
Galeria Convivart da UFRN, Natal (1993-94); f) Taba Galeria de Arte, Natal, (1994); g) Galeria
Cezanne, Recife (1995); h) Galeria de Artes Antiga e Contemporânea, Natal, (1995); i) Marquise
Galeria, João Pessoa, (1996); j) 1º Salão de Artes Plásticas da Cidade do Natal – FUNCART, Natal
(1998); l) Artenossa Galeria, João Pessoa, (1998); m) Yázigi International – São de Eventos, Natal, (1998).
FICHA CATALOGRÁFICA
CATALOGAÇÃO NA FONTE
Carpe Diem Revista Cultural e Científica da Faculdade
de Ciências, Cultura e Extensão do RN – FACEX. Natal:
FACEX - Coordenadoria de Pesquisa e Extensão, 2001.
Anual
Descrição baseada em : n.1 (mai. 2001)
ISSN 1518-5184
1. Educação Superior – Periódico 2. Ciências Humanas – periódico 3. Ciências Sociais e Aplicadas – Periódico 4. Ciências Exatas
–Periódico 5. Ciências Biológicas - Periódico.
RN/FACEX – 2001
CDD 378.005
CDU 378
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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FACULDADE DE CIÊNCIAS, CULTURA E EXTENSÃO DO RN - FACEX
Autorizada pelo Decreto nº 85.977 de 5/5/1981, publicado no D.O.U. de 6/5/1981
Mantida pelo Centro Integrado para Formação de Executivos – CIFE
Carpe Diem
Publicação da Coordenadoria de Pesquisa e Extensão – CPE
Diretor Presidente
José Maria Barreto de Figueiredo
Diretor Administrativo
Candysse Medeiros de Figueiredo Lira
Diretor Financeiro
Oswaldo Guedes de Figueiredo Neto
Diretor Acadêmico
Prof. Raymundo Gomes Vieira
Secretário Geral
Ronald Fábio de Paiva Campos
Coordenador de Pesquisa e Extensão
Prof. Francisco de Assis Maia de Lima
Conselho Editorial
Prof. Aiene Rebouças Alves
Prof. Francisco de Assis Maia de Lima
Prof. John Alex Xavier de Sousa
Profª Lílian de Oliveira Rodrigues
Profª Maria Carmozi de Souza Gomes
Profª Rosilda Alves Bezerra
Coordenação Editorial
Prof. Francisco de Assis Maia de Lima
Coordenação Técnica
Profª Daise Lílian Fonseca Dias
Profª Miriam Magdali de Oliveira Costa Sanguillén
Adriana Rodrigues de Carvalho
Produção
Gráfica Sant´Ana Ltda
Diagramação
Admar Pedro da Silva
Tiragem
1.000 exemplares
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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A Revista Carpe Diem é uma publicação anual da Faculdade de Ciências,
Cultura e Extensão do RN – FACEX, do Centro Integrado para Formação de Executivos (CIFE) que tem como finalidade contribuir para o desenvolvimento e divulgação de conhecimentos nas áreas de Ciências Humanas, Sociais Aplicadas, Exatas e
Biológicas.
Destina-se, portanto, à divulgação de trabalhos relativos a estudos de natureza teórica e experimental no campo da pesquisa, resumos e teses ou dissertações,
monografias, trabalhos de conclusão de cursos, comunicações e artigos de revisão
produzidos pelo corpo docente e discente desta e de outras instituições públicas ou
privadas.
Os interessados no envio de artigos para publicação (ver Normas para apresentação de trabalhos) ou no recebimento regular da Carpe Diem devem entrar
em contato com a Coordenação Editorial da mesma, junto à Coordenação de Pesquisa e Extensão, no endereço abaixo.
ENDEREÇO
PARA
CORRESPONDÊNCIA
Faculdade de Ciências, Cultura e Extensão do RN – FACEX
Coordenadoria de Pesquisa e Extensão
A/C Professor Francisco de Assis Maia de Lima1
Rua Orlando Silva, 2897 – Capim Macio 59.080-020 – Natal, RN
Tel.: (0xx84) 217-8348 – E-mail: [email protected]
Aceita-se permuta
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Si richiede lo scambio
1Editor. Mestre (UFRGS) e Doutor (USP) em Genética. Coordenador de Pesquisa e Extensão
(FACEX). Coordenador do Curso de Ciências Biológicas (FACEX). Professor voluntário do
Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular (UFRN).
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Carpe Diem
REVISTA CULTURAL E CIENTÍFICA DA FACEX
– FACULDADE DE CIÊNCIAS, CULTURA E EXTENSÃO DO RN -
Ano 1 – Número 1 – Mai. 2001
SUMÁRIO
Apresentação ...................................................................................................................................................... 08
Raymundo Gomes Vieira
ADMINISTRAÇÃO
O papel das associações de trabalho na flexibilização das relações de trabalho
......................................................................................................................................................................................... 09
Carlos Antonio de Lima Moreira
Maria Arlete Duarte de Araújo
Serviço público: consequências da imposição de liderança ........................................ 25
Homero Henrique Rocha de Medeiros
O novo perfil do administrador exigido pelo mercado de trabalho ...................... 37
Vera Lúcia da Silva Neves
EDUCAÇÃO
Saberes e “saber-fazer” – novos caminhos para uma prática reflexiva ............... 43
Aiene Rebouças Alves
Planejamento de ensino: reconstruindo sua trajetória ................................................... 54
Olímpia Cabral Neta
Nas ondas cativas do rádio: as escolas radiofônicas da Arquidiocese de Natal (19571960) .......................................................................................................................................................................... 73
Rossana Kess Brito de Souza Pinheiro
Educar é querer entender a semioses do organismo vivo do qual se cuida ......... 88
Sanzia Pinheiro Barbosa
FILOSOFIA
Angelus Novus o (anti) heroi (pós) moderno: arte alegórica, barroco e revolução estético-cultural em Walter Benjamin ............................................................................... 95
Francisco Ramos Neves
Utopia e antropofagia: quando o “u” do tupi guarani recoloca a cabeça de Morus
sobre os seus ombros ................................................................................................................................. 107
Walter Pinheiro Barbosa Junior
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HISTÓRIA
O Estado e a arte barroca na França do Século
111
John Alex Xavier de Sousa
................................................................
INFORMÁTICA
Heurística do Baricentro: uma solução o(n2) para o problema do Caixeiro Viajante ..................................................................................................................................................................... 117
Joaquim Elias Lucena de Freitas
LITERATURA
O limiar fantástico: uma leitura dos contos Teleco, o coelinho e os Dragões de Murilo
Rubião .................................................................................................................................................................. 125
Carlos Alberto de Negreiro
Naturalism in John Steinbeck’s The grapes of wrath ................................................... 134
Daise Lílian Fonseca Dias
Espelho, signo e imagem: a problemática da representação em O Retrato Oval
de Edgar Allan Poe ................................................................................................................................... 138
Lílian de Oliveira Rodrigues
Augusto dos Anjos: a ironia infausta ......................................................................................... 145
Rosilda Alves Bezerra
SOCIOLOGIA
Globalização e desemprego – estado, mercado e sociedade .................................... 159
Paulo Sérgio Oliveira de Araújo
Normas para apresentação de trabalhos ................................................................................ 173
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APRESENTAÇÃO
Prof. Raymundo Gomes Vieira1
Carpe Diem2 é o sonho que se fez verdade.
Na era do conhecimento, não há desenvolvimento possível para um país
sem a preocupação constante com a Educação. No Brasil, as últimas décadas são
marcadas por transformações profundas neste campo.
A Lei de Diretrizes e Bases – LDB ampliou o escopo dos cursos de educação
superior, e aprimorou exigências. O MEC estabeleceu os indicadores de qualidade
aos quais as instituições de ensino superior, em sua maioria sérias e competentes,
procuraram ajustar-se prontamente. Vimos assim a pesquisa assumir características
marcantes.
Consolidava-se o pensamento de Demo3 ao afirmar que “sem pesquisa não
há vida acadêmica, a menos que a reduzamos a uma tática incolor de repasse copiado”.
É com muita alegria que hoje nos inserimos neste contexto e entregamos às
instituições congêneres, a dirigentes e participantes do trabalho pedagógico, este
que é o primeiro fruto produzido pelo esforço dos dedicados pesquisadores da
FACEX. Eles merecem o nosso aplauso e nós nos orgulhamos por mantê-los em
nossos quadros. Será, certamente, o primeiro de uma série que consolidará a nossa
participação na pesquisa e a divulgação dos mais importantes trabalhos dos docentes desta Instituição, cujo nome é marcado pelo objetivo que define o seu fazer
acadêmico: Faculdade de Ciências, Cultura e Extensão. Que Horácio nos inspire,
marcando de forma definitiva a trajetória de Carpe Diem.
1
Diretor acadêmico da FACEX
Expressão usada por Horácio, cujo sentido lato é viver intensamente cada dia da vida. Foi incorporada por árcades e
barrocos para definir uma preocupação filosófica em fruir a vida, isto é, vivê-la em plenitude.
3
DEMO, Pedro. Educar pela pesquisa. Campinas: Autores Associados, 1996.
2
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O PAPEL DAS ASSOCIAÇÕES DE TRABALHO NA
FLEXIBILIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO
Carlos Antonio de Lima Moreira1
Maria Arlete Duarte de Araújo2
RESUMO: O processo de reestruturação produtiva em curso a partir dos anos 70 nas
sociedades desenvolvidas e no Brasil a partir dos anos 90, desencadeou uma profunda
modificação no mundo do trabalho, provocando o que Mattoso (1995) considera uma
verdadeira desordem do trabalho, expressa em níveis assustadores de insegurança na
renda, no emprego, no mercado de trabalho, na contratação e na representatividade.
Neste contexto de crise do trabalho, ressurgem iniciativas organizacionais que nem se
situam no âmbito do Estado e nem da iniciativa privada. É o caso das associações e
cooperativas de trabalho que passam a constituir alternativas ao desemprego. Objetivando
compreender melhor a lógica que articula esta dinâmica, este artigo se propõe a discutir
o papel das associações de trabalho na flexibilização das relações de trabalho, a partir da
experiência da Associação Comunitária de Desenvolvimento do Trairy (ACT), situada
em Santa Cruz/RN. Inicialmente, discute o significado da flexibilização das relações de
trabalho. Em segundo lugar, tece comentários sobre as condições que permitiram a explosão das associações de trabalho como alternativa concreta à crise do trabalho. Finalmente, analisa a experiência da ACT, destacando as práticas de gestão adotadas e sua
relação com o projeto de flexibilização das relações de trabalho.
PALAVRAS-CHAVE: associações de trabalho; flexibilização; relações de trabalho;
terceirização.
THE ROLE OF ASSOCIATIONS OF WORK IN THE FLEXIBILIZATION
OF THE RELATIONS OF WORK
ABSTRACT: The process of productive restructuration from the 70’s on, in developed
societies, and in Brazil from the 90’s on, unchained a profound modification in the world
of work, provoking what Mattoso (1995) considers a trully confusion of work, expressed
in frightening levels of insecurity on income, employment, work market, hiring and
representativity. In this context of crisis of work, again initiatives of organizations arise ,
however, these organizations are neither in the ambit of the Stater nor private. It is the
case of associations and cooperative societies of work that start to constitute alternatives
to unemployment. Having the objective of understanding better the logic that articulates
this dynamic, this article proposes to discuss the role of associations of work in the
flexibilization of the relations of work from the experience of Trairy Comunity of Development Association (ACT), on located in Santa Cruz/RN. At first, the article discusses
the signification of this flexibilization of the relations of work. Secondly, coments on
conditions that permit the explosion of the associations of work as concrete alternatives
to the crisis of work. Finally, it analizes the experience of the ACT, pointing out the
adopted practices of management and their relation with the project of flexibilization of
the relations of work.
KEY-WORDS: associations of work; flexibilization; relations of work; outsourcing.
1
Mestre em Administração (UFRN). Professor dos cursos de Administração da FACEX e da FARN. E-mail:
[email protected]
2
Doutora em Administração (FGV). Professora do PPGA da UFRN. E-mail: [email protected]
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1 INTRODUÇÃO
O processo de reestruturação produtiva em curso a partir dos anos 70 nas sociedades desenvolvidas, desencadeou uma profunda modificação no mundo do trabalho, provocando o que Mattoso (1995) considera uma verdadeira desordem do trabalho, expressa em níveis assustadores de insegurança na renda, no emprego, no
mercado de trabalho, na contratação e na representatividade.
“Conforme percuciente observação de Umberto Romagnoli, o direito do trabalho assistiu a uma imponente reestruturação capitalista que redesenhou a
geografia das atividades produtivas e, conjuntamente, a tipologia das formas
do emprego da mão-de-obra; terceirizou a economia e convulsionou o mercado de trabalho; mundializou os mercados e produtos e modificou, por efeito
das novas tecnologias, também os trabalhos tradicionais” (Neto, 1996, p. 332).
No Brasil este processo se acentua a partir dos anos 90, quando as empresas
começam a adotar inovações organizacionais e tecnológicas motivadas pela crescente competitividade internacional favorecida pela abertura comercial. As novas
formas de gestão e de enxugamento de estruturas administrativas adotadas combinadas com a incapacidade do Estado em promover políticas de estímulo ao emprego, resultaram na expulsão de um contingente de trabalhadores das empresas para o
mercado de trabalho, gerando insegurança tanto para aqueles que constituem o núcleo estável da empresa como para aqueles que no mercado de trabalho buscam uma
reinserção.
O mercado de trabalho que sempre se caracterizou por elevados índices de
rotatividade, informalidade e baixos salários, agora convive com alarmantes taxas
de desemprego. Como afirma Carleial (1997, p. 25):
“Mesmo no período 1950-80, de consolidação da indústria nacional e, por
conseguinte, do assalariamento e da criação de milhares de postos de trabalho, a heterogeneidade desse mercado era visível: ele comportava desde trabalhadores assalariados com registro em carteira, de grandes empresas ou
empresas estatais, até uma gama de ocupados, subempregados e trabalhadores informais, sinalizando a necessidade de políticas ativas de emprego”
Neste contexto, ressurgem iniciativas organizacionais que nem se situam no
âmbito do Estado e nem da iniciativa privada. É o caso das associações e cooperativas de trabalho que passam a constituir alternativas ao desemprego. Em muitas situações nascem do desejo de associação de um grupo de pessoas em viabilizar uma
atividade produtiva e com isso garantir sua sobrevivência e em outras são decorrentes da adoção pelas empresas de novas formas gerenciais, como a terceirização.
“A capacidade de geração de postos de trabalho da grande firma é fortemente
abalada pelos procedimentos inovadores, notadamente pela prática da
externalização/terceirização, que estabelece uma migração dessa capacidade
para médias e pequenas firmas e estimula a proliferação de trabalhadores
autônomos, sem vínculo empregatício, e de trabalhadores em domicílio”
(Carleial, apud Carleial, 1997, p. 22).
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Objetivando compreender melhor a lógica que articula esta dinâmica, este artigo se
propõe a discutir o papel das associações de trabalho na flexibilização das relações de
trabalho, a partir da experiência da Associação Comunitária de Desenvolvimento do Trairy
(ACT), localizada no município de Santa Cruz/RN. Inicialmente, discute o significado da
flexibilização das relações de trabalho em um contexto de profundas modificações econômicas, políticas e tecnológicas. Em segundo lugar, tece comentários sobre as condições
que permitiram a explosão das associações de trabalho como alternativa concreta à crise
do trabalho. Em terceiro lugar, analisa a experiência da ACT, destacando as práticas de
gestão de pessoal adotadas. Finalmente, destaca a lógica de articulação entre as práticas
de gestão e o projeto de flexibilização das relações de trabalho.
2 O SIGNIFICADO DA FLEXIBILIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO
Tornou-se consenso em amplos segmentos da sociedade que sem flexibilizar as
relações de trabalho o Brasil perde competitividade e, consequentemente, capacidade de inserção em uma economia globalizada. Argumenta-se que o custo Brasil é
proibitivo, que há regulamentações excessivas e que somente a flexibilização do
trabalho poderia colocar o país na trilha de um mundo globalizado. Contudo, se há
consenso na defesa da flexibilização, não há unidade de pensamento quando se questiona sobre o que seria exatamente flexibilização. Assim, com a preocupação de
dirimir esta questão, fomos buscar o significado da palavra. Segundo Ferreira (1995,
p. 300), “flexibilizar é tornar-se flexível” e “flexível o que se pode dobrar ou curvar; arqueável, vergável; fácil de manejar, maleável, domável; dócil, brando, submisso”.
Ora, se flexibilizar significa tornar-se maleável, domável, somente podemos
entender a flexibilização das relações de trabalho como a tentativa de desregulamentálas, deixando-as livres da interferência do Estado e consequentemente ao sabor do
mercado. Em outras palavras, flexibilizar as relações de trabalho implica em dotálas de maleabilidade, ou seja, de capacidade de ajuste aos ditames do mercado, dado
o pressuposto de que são rígidas. Isto significa que o trabalho deve se submeter aos
altos e baixos das mutações decorrentes de fatores políticos, econômicos e
tecnológicos das empresas. Para Ann Numhauser-Henning, apud Neto (1996, p. 335):
“a flexibilização trabalhista consiste na possibilidade da empresa contar com
os mecanismos jurídicos que permitam ajustar sua produção, emprego e condições de trabalho ante as flutuações rápidas e contínuas do sistema econômico (demanda efetiva e diversificação da mesma, taxa de câmbio, interesses
bancários, competência internacional), as inovações tecnológicas e outros
fatores que demandam ajustes com rapidez”.
Importa registrar que tudo se passa como se de fato o direito do trabalho fosse
extremamente rígido, impeditivo da modernização das empresas. Para Neto (1996,
p. 340), “a simples constatação da inexistência de qualquer restrição aos empregadores quanto às formas de estabelecimento do vínculo empregatício, ou ainda, de
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obstáculos à sua desconstituição, e do número elevado de trabalhadores fora do
mercado formal de trabalho confirmam a desregulamentação intrínseca do modelo
nacional”. Ou, como diz Romagnoli, apud Neto (1997, p. 37):
“a flexibilidade na entrada do mercado de trabalho manifesta-se pelas medidas legislativas que incentivam o trabalho part-time, pelos ingressos diferenciados ao trabalho para os jovens, pela multiplicação de possibilidades de
emprego precário e temporário, pela redução de tutela do direito do trabalho,
das categorias sociais subprotegidas e pela deliberação das lógicas privatistas
na oferta e na demanda de trabalho”.
Poder-se-ia também discutir a “rigidez” na saída do mercado de trabalho, expressa pelos elevados índices de rotatividade no trabalho. Desde a criação do Fundo
de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), pondo fim à estabilidade no emprego,
não se pode dizer que há rigidez na demissão, seja motivada ou imotivada. Como
afirma Neto (1997, p. 37), “a flexibilidade na saída do mercado de trabalho está
assegurada pela legislação sobre a limitação do campo de aplicação e o rigor da
tutela contra a despedida individual e por uma nova legitimação das reduções de
pessoal”.
Se não há rigidez na entrada e na saída do mercado de trabalho, flexibilizar o
direito do trabalho nada mais é, compartilhando da idéia de Carleial (1997), do que
uma adequação da flexibilidade jurídica à conhecida flexibilidade estrutural do mercado brasileiro.
Logo, o discurso da flexibilização somente pode ser entendido como uma ofensiva do capital contra o trabalho em um momento em que o movimento sindical se
encontra fragilizado e os trabalhadores se sentem (os que ainda permanecem empregados) receosos de perder o emprego. Assiste-se assim uma investida sobre direitos
e conquistas dos trabalhadores em nome da necessidade de competitividade e
internacionalização da economia. Precariza-se o trabalho com ampliação de jornadas de trabalho, redução de salários, empregos parciais, corte de benefícios, suspensão de ações na justiça em troca do emprego, aumento de horas extras e ingressos no
mercado de trabalho diferenciados para os jovens. Tudo depende das circunstâncias.
A vulnerabilidade do direito passa a ser a tônica dominante.
3 A EXPLOSÃO DAS ASSOCIAÇÕES DE TRABALHO
Com a passagem da era industrial para a era da informação constata-se, em
cada país, a formação de uma sociedade bipolar. Tal fato caracteriza-se, de acordo
com Rifkin (1997), por apresentar de um lado, os trabalhadores do conhecimento,
muito bem pagos, integrantes da economia global, pertencentes à era da informação,
separados do resto da população em qualquer grande cidade; e por outro lado, trabalhadores com salários menores em contraste com aumento na produtividade, mais
trabalho temporário, mais trabalho contingente, mais trabalho por contrato, enfim,
trabalhadores excluídos da nova economia global.
De acordo com Barbosa, apud Barbosa [199-?, p. 2]:
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“os impactos do rearranjo na esfera produtiva sobre a sociedade não têm
precedentes dentro da lógica do capitalismo. De maneira avassaladora, foram rompidos equilíbrios que prevaleciam por décadas dentro de um sistema
que encontrou seu apogeu nos vinte anos que se seguiram ao fim da segunda
guerra mundial”.
No cerne das mudanças, a importância da revisão do papel do Estado emerge de forma polêmica, envolvendo visões diferentes. De um lado, aqueles que
apoiam a presença do Estado, para assegurar o mínimo de garantias que a iniciativa privada não está disposta a oferecer àquelas pessoas excluídas da lógica produtiva. Do outro lado, os que defendem a saída do Estado, pois apontam para sua
incapacidade de exercer atividades em setores onde se espera agilidade e retorno
sobre o investimento. Essa dicotomia tem dificultado a procura por alternativas
negociadas que visem uma passagem menos traumática a um modelo que tente
compatibilizar justiça social a uma economia de mercado.
As dificuldades, no entanto, não têm impedido o surgimento de um novo
espaço para reordenamento dos problemas da comunidade, que não é Estado nem
mercado e cujas ações voltam-se ao interesse público. Trata-se de um espaço que,
rompendo a dicotomia entre público e privado, afirma-se como um espaço de
iniciativas privadas com sentido público.
De acordo com Fernandes (1994, p. 21), a idéia de um terceiro setor “denota um conjunto de organizações e iniciativas privadas que visam à produção de
bens e serviços públicos.” Dessa forma, segundo esse mesmo autor, os eventuais
excedentes devem ser reinvestidos nos meios para a produção dos fins ajustados,
assim como os bens e serviços produzidos devem ser, caracteristicamente, de
consumo coletivo.
Ao referir-se aos elementos componentes do terceiro setor como sendo nãogovernamentais e não-lucrativos, Fernandes (1994) chama a atenção para o fato de
que o poder ou o lucro não constituem motivos suficientes para a ação. O autor
esclarece que não-governamentais implica indicar iniciativas e organizações que,
enquanto tais, não integram o governo e não se misturam com o poder do Estado.
Por outro lado, sem fins lucrativos implica designar um conjunto de organizações
e de ações cujos investimentos vão além dos casuais retornos financeiros. Assim
sendo, observa-se que, no terceiro setor, as organizações que o constituem diferenciam-se pela busca de valores que transpõem a utilidade.
Para Salamon, apud Fernandes (1994, p. 19), o terceiro setor:
“...é composto de (a) organizações estruturadas; (b) localizadas fora do aparato formal do Estado; (c) que não são destinadas a distribuir lucros aferidos
com suas atividades entre os seus diretores ou entre um conjunto de acionistas;
(d) autogovernadas; (e) envolvendo indivíduos num significativo esforço voluntário”.
Segundo Melo (1997, p. 1), o terceiro setor compõe-se de:
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“atividades que se distinguem claramente do setor governo, responsável
pelas tarefas peculiares à esfera pública, como primeiro setor; o segundo
setor, o mercado representado pelas atividades com fins lucrativos; e o
terceiro setor abrange as demais atividades que nem se submetem à lógica
privada, do lucro, nem ao controle direto do governo”.
Melo (1997) afirma que, hoje em dia, em relação à década de oitenta, o terceiro
setor tem ações muito mais abrangentes: compreende instituições filantrópicas
dedicadas à prestação de diversos tipos de serviços, como por exemplo: saúde,
educação e de defesa dos direitos humanos. Dessa forma, vem constituindo-se em
uma área ampla destinada à participação cidadã, à realização de trabalhos em que
indivíduos e empresas efetivam sua sensibilidade e compromissos sociais, através
da doação de recursos (materiais e financeiros), tempo e talento às causas sociais.
Opinião semelhante é defendida por Cardoso (1997), ao afirmar que na década de 80 as Organizações Não-Governamentais (ONGs) constituíam os novos espaços de participação cidadã. Hoje em dia, verifica-se que o terceiro setor compreende
instituições filantrópicas dedicadas à prestação de serviços em diversas áreas (saúde, educação e bem-estar social, por exemplo); organizações voltadas para a defesa
dos direitos de grupos específicos da população (homossexuais e mulheres, por exemplo), de proteção ao meio-ambiente, promoção do esporte, da cultura e do lazer;
congrega as várias experiências de trabalho voluntário e, mais recentemente, presencia-se o fenômeno crescente da filantropia empresarial.
A expressão terceiro setor, segundo Fernandes (1997), ainda é pouco utilizada
no Brasil. Foi traduzida do inglês (third sector) e faz parte do vocabulário sociológico usual nos Estados Unidos. No Brasil, apenas alguns círculos ainda restritos como,
por exemplo, o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE) começam a usála naturalmente. Nos Estados Unidos, é comum utilizar as expressões “organizações
sem fins lucrativos”, significando um tipo de instituição cujos benefícios financeiros não podem ser repartidos entre seus diretores e associados; e “organizações voluntárias”, num sentido complementar à primeira. Na Inglaterra, é mais freqüente
ouvir-se falar em “caridades”, “filantropia” e “Mecenato”. Na Europa Continental,
prevalece a expressão “organizações não-governamentais”, cuja origem está na nomenclatura do sistema de representações das Nações Unidas. Denominou-se assim
às organizações internacionais que, embora não representassem governos, possuíssem a devida importância para integrar a Organização das Nações Unidas (ONU).
Por sua vez, na América Latina, inclusive no Brasil, fala-se de “sociedade civil” e de
suas organizações.
O terceiro setor constitui-se pois, em um espaço amplo e diversificado de organizações sem fins lucrativos. Segundo Fernandes (1997), são quatro as razões que
levam ao agrupamento dos componentes do terceiro setor sob um mesmo nome:
a) faz contraponto às ações de governo: enfatiza a idéia de que os bens e
serviços públicos são conseqüências não apenas da atuação do Estado, mas também
de uma significativa participação de iniciativas particulares;
b) faz contraponto às ações do mercado: a existência de um terceiro setor
indica que o mercado não atende a todas as necessidades e interesses efetivamente
manifestos, em meio aos quais se movimenta. Dessa forma, faz-se necessário que
uma parcela considerável das condições que viabilizam o mercado seja atendida por
investimentos sem fins lucrativos;
c) empresta um sentido maior aos elementos que o compõem: volta-se a dar
importância aos valores presentes em iniciativas de cunho caridoso, reconhece-se a
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participação cidadã como uma condição essencial à consolidação das instituições, bem
como propaga-se a idéia do voluntariado como expressão de existência cidadã, acessível
a todos e a cada um, indispensável à resolução dos problemas de interesse comum; e
d) projeta uma visão integradora da vida pública: salienta a complementaridade
que existe (ou deve existir) entre ações públicas e privadas, ou seja, entre ações que
envolvem o Estado, o mercado e o terceiro setor.
Para Rifkin (1995), o terceiro setor, além de sua importância como espaço
para exercício da cidadania, é hoje, na era da informação, da reestruturação produtiva, uma saída para reeducar e absorver parte da mão-de-obra desempregada. Nos
Estados Unidos, o terceiro setor vem preenchendo lacunas abertas pela reestruturação
produtiva, amenizando o impacto do desemprego estrutural através do grande número de organizações sem fins lucrativos, somando 1,2 milhão, de modo que, se
fossem um país seria a sétima economia do mundo. De acordo com Melo (1997), no
Brasil, o terceiro setor aparece como grande empregador e gerador de renda. Para tal
afirmativa, apoia-se em dados do Ministério do Trabalho, segundo o qual, em 1991
existiam mais de 200 mil organizações sem fins lucrativos, empregando mais de 1
milhão de pessoas, o que coloca o setor como o terceiro maior segmento na geração
de emprego e renda do país. Conforme Landin, apud Fernandes (1997), considerando-se a análise de dados da Receita Federal no ano de 1991, a maioria (77%) dessas
organizações é constituída de “associações” (aproximadamente 170 mil).
Para compreender como o terceiro setor, mais particularmente as associações
e cooperativas de trabalho, emergem como uma alternativa ao desemprego, torna-se
necessário buscar a lógica de articulação entre a explosão dessas iniciativas e o processo de reestruturação produtiva em curso.
A crise do fordismo a partir dos anos 70, marcada pela crescente
competitividade internacional, desgaste do taylorismo mecanizado, impossibilidade
de regulação econômica global, choque do petróleo e especulação financeira, trouxe
não só a desagregação do mundo do trabalho, como um intenso processo de mudanças tecnológicas e organizacionais nas empresas. Entre as medidas adotadas pelas
empresas, com repercussões diretas no nível de emprego, destaca-se a terceirização.
Pode-se entender o fenômeno terceirizante como sendo um processo de gestão onde as empresas concentram todos os seus esforços para sua atividade principal, repassando para terceiros as atividades secundárias com os quais mantém uma
relação de parceria.
Fontanella, Tavares e Leiria (1994, p. 19) afirmam que:
“A terceirização é uma tecnologia de administração que consiste na compra de
bens e/ou serviços especializados, de forma sistêmica e intensiva, para serem integrados na condição de atividade-meio à atividade-fim da empresa compradora, permitindo a concentração de energia em sua real vocação, com intuito de potencializar
ganhos em qualidade e competitividade”.
De acordo com Moraes Neto (1997), o que se deve buscar com a terceirização é:
competitividade, simplificação da estrutura, qualidade e produtividade. Já Faria (1994)
avalia que a terceirização tem os seguintes objetivos: redução de despesas, mudanças
organizacionais, racionalização produtiva, especialização flexível e quebra do mo-
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
16
vimento sindical.
Em pesquisa realizada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (DIEESE), apud Grilo (1993), as vantagens da terceirização,
na percepção dos empresários entrevistados são: concentração apenas em atividades fins, maior flexibilidade à organização que passa a se dedicar a um número
menor de atividades, maior flexibilidade à produção, já que demandas atípicas podem ser contratadas externamente, maior especialização com a adoção de
tecnologias avançadas e, maior qualidade, redução de custos fixos e economia em
encargos financeiros.
Na mesma pesquisa, os empresários indicam que as dificuldades pertinentes à
terceirização são: choque cultural entre empresa e fornecedor, conflitos sindicais,
má escolha de parceiros e resistência interna às modificações.
Na visão de Rezende (1997), a terceirização constitui-se numa das mais importantes estratégias exigidas pelo atual processo produtivo e competitivo. Portanto,
a opção por sua escolha revela-se numa decisão de fundamental relevância e tem de
ser tomada após minuciosa análise das vantagens e dificuldades em curto, médio e
longo prazos.
Percebe-se que a terceirização, particularmente, proporciona à empresa concentrar-se naquilo que ela pode fazer de melhor e que constitui-se na sua atividadefim (estratégica). Por sua vez, as demais atividades são transferidas para outras empresas de menor porte (terceirizadas).
Conforme Moreira (1999), deve-se atentar ainda para o fato de que a empresa,
ao optar pela terceirização, mantém um pequeno número de trabalhadores com vínculo empregatício, portanto, com direito à férias, 13º salário, previdência social,
possibilidade de ascensão profissional, assistência médico-odontológica, boas condições de trabalho, dentre outros direitos e benefícios sociais. Em contrapartida, a
empresa dispensa uma parcela de trabalhadores que poderá ou não voltar ao mercado de trabalho.
De acordo com Faria (1994), para os trabalhadores excluídos do núcleo estável da empresa, a terceirização pode levar à redução salarial, especialmente para a
área técnica das empresas terceirizadas, degradação das condições de trabalho nas
empresas terceirizadas e desmobilização sindical com os trabalhadores saindo de
categorias mais organizadas para categorias menores e com baixo nível de reivindicações.
Importa registrar que na atual conjuntura, mesmo a possibilidade de trabalho
precário não se apresenta para a maioria dos trabalhadores. Emergem assim alternativas de ocupação fora das fronteiras convencionais do mercado de trabalho. Segundo Lima [199-?]1 , nos últimos 10 anos, no Brasil, houve um crescimento de 300%
no setor de cooperativismo, principalmente na área de prestação de serviços. No
setor industrial ressalta-se a formação de cooperativas de trabalhadores nos setores
de calçados e confecções nos estados do Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro constituídas por trabalhadores desempregados. Na região Nordeste, paralelamente aos
baixos pisos salariais predominantes na maioria dos estados nordestinos, uma parceria envolvendo o governo federal, estadual e municipal, órgãos patronais e fábri1
LIMA, Jacob Carlos. O texto tem um caráter preliminar. É uma primeira sistematização de dados de pesquisa
sobre a formação de cooperativas de produção no Nordeste dentro do projeto “Reestruturação produtiva e
trabalho: seus impactos sócio-econômicos regionais” (FINEP-CNPq) em desenvolvimento junto ao Grupo
“Tecnologia e Trabalho” da Universidade Federal da Paraíba.
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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cas tem possibilitado a reprodução de um “novo” modelo de unidade produtiva que é a
cooperativa. Contudo, enfatiza, faz-se necessário esclarecer o caráter da novidade, pois
desde o século anterior são comuns as cooperativas, sejam como proposta de uma autonomia do trabalhador frente ao capital, sejam como saídas contextuais a situações de
desemprego. O que há de novo nas cooperativas nordestinas, destaca Lima [199-?], é a
sua formação para atender demandas de empresas específicas que, para tanto, financiam
parcela de suas atividades com contratos diversos, embora prevaleça a exclusividade na
produção e o controle sobre a organização do trabalho.
Constata-se pois, que a emergência de associações e cooperativas de trabalho
não fogem à lógica de acumulação dominante, mas se subordinam às novas exigências impostas pelo novo padrão de acumulação e assumem assim um caráter de
complementaridade no processo de reestruturação produtiva ao viabilizar a
externalização da produção.
4 A ASSOCIAÇÃO COMUNITÁRIA DE DESENVOLVIMENTO DO
TRAIRY (ACT)
A Associação Comunitária de Desenvolvimento do Trairy (ACT), situada na
cidade de Santa Cruz/RN, no Vale do Trairy, no semi-árido norte-rio-grandense, a
110 Km de Natal, foi constituída em 24 de março de 1986, como entidade civil, sem
fins lucrativos, com o objetivo de revitalizar a economia santacruzense e regional,
que em épocas passadas tinha na cultura algodoeira sua principal fonte econômica.
A região do Trairy compreende os municípios de Campo Redondo, Lajes Pintada,
Jaçanã, Coronel Ezequiel, São Bento do Trairy, Japi, Tangará, Sítio Novo, Presidente Juscelino e Santa Cruz.
A ACT, de acordo com seu Estatuto [1986?], tem por finalidade:
a) desenvolver atividades econômicas, sociais, educativas, culturais e
desportivas, com recursos próprios e/ou obtidos por doações ou empréstimos, voltadas para o atendimento às famílias carentes, crianças, adolescentes e idosos;
b) proporcionar a oferta de serviços sociais básicos emergenciais nas áreas
de educação, saúde, alimentação e habitação aos seus sócios, participantes e à
clientela (famílias carentes, crianças, adolescentes e idosos); e
c) estimular as comunidades carentes e a clientela definida anteriormente, a
desenvolverem as suas potencialidades geradoras de ocupação e renda, visando a
melhoria da qualidade de vida.
A ACT é administrada pelos seguintes órgãos: Assembléia Geral, Diretoria
Executiva e Conselho Fiscal. Para atender suas finalidades, a ACT promove convênios e parcerias com órgãos governamentais e não-governamentais, na forma da lei,
visando a locação de recursos materiais e financeiros e o assessoramento técnico
para a execução das ações.
A ACT possuía inicialmente, segundo Alexandre (1998), o caráter de uma
indústria de fundo de quintal e sua produção era voltada apenas para o mercado
doméstico da própria Santa Cruz. Posteriormente, com a chegada de unidades do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), especializada em treinamento de pessoal, a ACT inicia a confecção de fardamentos em escala industrial para hospitais e postos
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de saúde do governo do estado. A situação começa a modificar-se a partir de meados de
1996, quando os dirigentes da ACT decidem não mais comercializar os produtos da
Associação diretamente no mercado. Ao contrário, passam a prestar serviços para a
iniciativa privada através de parcerias. A ACT estabelece então uma relação de
complementaridade, assumindo na cadeia produtiva a etapa do acabamento, etapa que
apesar de ocupar muita mão-de-obra não exige grande qualificação e deixa a
comercialização e a distribuição da produção com os parceiros. Atualmente, a ACT possui parcerias com empresas como a Sulfabril (SC), responsável pela produção de camisas em malha e camisas de tecido plano; Fama (SP), responsável apenas pela produção
de camisas de tecido plano; Herbus (RN) e Capricórnio (SP), ambas responsáveis pela
produção de calças jeans.
A lógica que orientou e ainda orienta as parcerias pode ser compreendida através do depoimento do Presidente da ACT, ao comentar o início das parcerias:
“No custo Brasil os encargos inviabiliza qualquer produto que você possa
fazer para competir. Aí vem o problema da globalização, da abertura do mercado, os tigres asiáticos. Muita gente dessa parte de confecções quebrou com
a importação de tecidos. Americana liquidou-se nessa parte e as pessoas que
não se reestruturaram nem se organizaram foram para o buraco. Então
nós tivemos essa idéia de que na hora que aconteceu isso a gente estava
dentro do jogo. Nós tínhamos essa vantagem. E aí as empresas começaram a bordar, começaram a pensar para ter alguma solução para poder
sobreviver no mercado. E nós levamos a vantagem porque já existia,
nós já tínhamos esse know-how, já existia um certo trabalho; eles começaram a acreditar, foram chegando, foram fazendo essas parcerias e
foram realmente vendo que a saída para poder competir e para poder
sobreviver no mercado era essa, não tinha outra. E, pelo outro lado
também, a própria justiça do trabalho também se viu forçada a ceder
alguma coisa porque senão também ia fechar. Ninguém podia trabalhar
com esses encargos, com esse absurdo da justiça do trabalho. Os próprios juizes, hoje, estão mais flexíveis porque o próprio governo também com esses contratos temporários aí que você está vendo, com esses
acordos aí entre os sindicatos. Tá se acabando o piso salarial e hoje o
cidadão está preocupado com uma única coisa que é o emprego. Ele
quer garantir o emprego dele. Garantindo o emprego dele ele está satisfeito para poder sobreviver. E nos favoreceu bastante essa conjuntura
que mudou” (Souza Neto, 1998).
Importa registrar a ação do Estado como intermediador dessas parcerias, uma
vez que através do financiamento de prédios, máquinas e instalações, assume parte
dos custos das empresas.
“As indústrias determinam o tipo de instalação física necessária, o layout, a maquinaria, a organização do trabalho dentro das unidades. A
ACT faz o projeto, quanto vai custar, o número de pessoas empregadas,
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19
encaminha para os órgãos governamentais. Com o recurso liberado,
adequa instalações ou constrói os prédios necessários. Os parceiros
assinam contrato de compra e fornecimento de matérias-primas por tempo determinado” (Lima, [199-?, p. 17]).
Além das unidades produtivas, a ACT desenvolve uma série de atividades na
área social: os projetos “Educação Infantil”, “Terceira Idade” e “Cidadão do Amanhã”. Comporta ainda o programa do leite, mantido pelo governo estadual. Os projetos da área social são sustentados, principalmente, através de convênios com órgãos federais e estaduais. Entretanto, hoje em dia, o grande objetivo da ACT é fazer
com que a área produtiva mantenha a área social.
O número de sócios da ACT é ilimitado e encontra-se distribuído nas seguintes
categorias:
a) sócios fundadores: os que participaram da criação da entidade e subscreveram a ata de fundação, em número de 63;
b) sócios contribuintes: os que contribuem com uma mensalidade, a ser definida em Assembléia Geral, em número de 52;
c) sócios beneméritos: os que tenham prestado relevantes serviços à entidade,
contribuindo para o crescimento da ACT, em número de 1; e
d) sócios participantes: trabalhadores autônomos que utilizem os equipamentos de trabalho e a estrutura física da ACT para desenvolverem efetivamente suas
atividades profissionais, em número de 755.
Na ACT a maior parte dos associados é do sexo feminino (70%). Entretanto,
observa-se que a participação masculina no processo produtivo vem aumentando
gradativamente, em função das escassas oportunidades de trabalho existentes na
região. A maioria dos trabalhadores é formada por jovens com idade girando em
torno de 22 a 23 anos. Não obstante, também encontra-se gente com idade mais
elevada. Por fim, em relação à escolaridade, constata-se que os níveis de formação
predominantes são os de primeiro e segundo graus. Todavia, há casos em que aparece a formação de terceiro grau.
As práticas de gestão adotadas na ACT privilegiam os seguintes aspectos:
a) organização do trabalho: a organização do trabalho em equipes, com metas
previamente determinadas e remuneração atrelada ao desempenho, introduz na Associação práticas típicas de iniciativas empresariais, com destaque especial para a
questão do controle. A gerência transfere grande parte do seu controle para o próprio
grupo, dado que a remuneração depende do desempenho do grupo. À primeira vista
poderia parecer que essa forma de organizar o trabalho estimula a participação, que
dá mais autonomia às pessoas. Um olhar mais atento, no entanto, identifica nessa
prática um controle mais sofisticado já que exercido de forma subliminar. Segundo
o Presidente da ACT, referindo-se às mulheres que trabalham na produção: “elas
mesmas estão cobrando umas das outras; estão vigiando. Exatamente tirando esse
peso que existia conosco. (...) ficar trabalhando dois sábados e dois domingos, trabalhando mais de 12 horas por dia. Mas para quê? para cumprir o compromisso” (Souza
Neto, 1998);
b) vínculo empregatício: a Associação não tem empregados, mas associados.
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20
Assim sendo, não gera vínculo empregatício e não são observados direitos trabalhistas.
Por lei, os associados não gozam de direitos trabalhistas: carteira de trabalho assinada,
FGTS, férias, ausência justificada e coisas do gênero;
c) recrutamento e seleção: as exigências colocadas pelo recrutamento/seleção limitam-se à idade - faixa de 17 a 30 anos e escolaridade - curso primário. Atendidas essas condições, é feito o registro na Associação. Daí por diante a seleção fica
a cargo do SENAI que utiliza-se de testes psicológicos, testes de habilidades e entrevistas. O índice de reprovações situa-se em torno de 30% a 40%, uma vez que boa
parte dos candidatos são incapazes de acompanhar as exigências da produção. Segundo o Presidente da ACT, “as pessoas estão ficando excluídas porque não têm
condições; porque sofreram seqüelas na infância, passaram fome. (...) são pessoas
que querem trabalhar, mas que não têm a mínima habilidade, nem competência,
nem condições de acompanhar aquele ritmo que é exigido pela empresa para você
competir” (Souza Neto, 1998). Importa registrar que o processo de recrutamento/
seleção em nada se diferencia de políticas adotadas em outras iniciativas empresariais;
d) treinamento: o treinamento industrial é realizado pelo SENAI que tem a
função de preparar a mão-de-obra para atender às exigências da produção. O foco do
treinamento é descobrir o melhor potencial de cada candidato à vaga e ajustar este
potencial às determinações da área produtiva. Segundo o Presidente da ACT, “tem
pessoa que é para fechar manga, outra para pregar botões, gola. Você procura ajustar
as pessoas. Importante é você saber fazer um pouco de cada. Mas isso demora. Isso
é um treinamento que elas terão com a prática” (Souza Neto, 1998). O treinamento
é dado em função da organização do trabalho;
e) benefícios: a política de benefícios apresenta-se como uma política de clientela. Compensa-se a falta de direitos trabalhistas com a concessão de benefícios
provenientes dos convênios firmados entre a ACT e governos federal e estadual.
Assim, os associados recebem uma cesta básica mensal através do projeto “Cidadão
do Amanhã”, transporte para o trabalho, atendimento médico-odontológico para o
associado e sua família e serviço de cartório extensivo à família. Estabelece-se assim relação de lealdade entre associados e Associação. Isto fica claro nas palavras
do Presidente: “Tudo que a gente quer é reverter esses benefícios para eles mesmos.
Cada vez mais a gente chega com um benefício, procurando ajudar, procurando
melhorar a qualidade de vida das pessoas. Então, não tem porque essas pessoas
ficarem contra nós. Ao contrário, são defensoras nossas” (Souza Neto, 1998); e
f) remuneração: os salários são definidos em função da produção, o que gera
uma pressão para produzir mesmo que isso signifique sacrificar o tempo de lazer e
de descanso. Segundo informações do Presidente da ACT, “as sócias ganham pelo
que produzem. Se faltou um dia, dois dias, três dias, não recebe aqueles dias que
faltou. Não existe negócio de atestado. E elas já estão num nível de conscientização
e estão cada vez mais melhorando, porque só interessa o produto pronto” (Souza
Neto, 1998). Atualmente, a folha de pagamento da ACT gira em torno de R$
80.000,00. Considerando-se que a Associação gera 550 postos de trabalho direto
(400 na área produtiva e 150 na área social), chega-se a uma remuneração média igual a
R$ 145,45. Levando-se em consideração apenas a área produtiva, onde o ganho é por
produção, a remuneração média gira em torno de R$ 100,00 a R$ 120,00. Há casos
específicos em que percebe-se R$ 80,00, R$ 90,00, R$ 140,00 ou R$ 150,00. Como se
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21
verifica, a remuneração às vezes não chega ao valor do salário mínimo. Considerando
que não há encargos trabalhistas, fica fácil compreender como algumas indústrias de vestuário estão conseguindo produzir com níveis de custos equivalentes ao custo chinês.
Constata-se pois, que a filosofia de gestão de pessoal da ACT é extremamente
funcional às indústrias de vestuário, adequando-se às exigências impostas pelos parceiros e utilizando práticas de gestão muito próximas daquelas utilizadas pela iniciativa privada. Segundo o Presidente da ACT, “a gente trabalha na linha de educar
como se fosse uma empresa. Hora de chegar, de se vestir, de educar, de trabalhar
máquinas, as boas maneiras” (Souza Neto, 1998).
Este fato nos leva a questionar a real existência de uma filosofia associativista
no interior da Associação. O que se percebe é que a Associação acabou se transformando em uma empresa subcontratada com predominância de trabalhadores assalariados.
5 CONCLUSÃO
As parcerias firmadas entre a ACT e as empresas de vestuário certamente
reduzem o nível de desemprego em uma das regiões mais castigadas do Rio Grande
do Norte e injetam um volume considerável de recursos na economia local. No entanto, o que se discute é a forma disfarçada de assalariamento sob a denominação de
associação.
As práticas de gestão identificadas, definidas e supervisionadas pelas empresas
parceiras deixam claro a lógica que articula de um lado o processo de externalização
das atividades das grandes empresas de vestuário e por outro, a constituição de associações: redução de custos pela precarização do trabalho. Ao externalizar parte
das atividades, a empresa estimula novas parcerias no mercado e estabelece relações
de complementaridade frente às novas exigências impostas pelo novo padrão de
acumulação capitalista. A terceirização joga assim um papel fundamental para
viabilização das associações e cooperativas de trabalho, ao garantir um fluxo de
produção/receita para estas iniciativas. Outrossim, cria uma relação de dependência
entre a Associação e as empresas parceiras. O depoimento do Presidente da ACT, ao
comentar o problema de ajustes da produção com a empresa parceira, é claro nesse
sentido:
“...alguns parceiros têm faltado com matéria-prima na nossa produção. E isso
fica ruim. Então, nós estamos definindo uma meta de um mínimo de produção
para um mês. A minha capacidade total é de 400.000 peças de camisetas/mês,
mas a média atinge 60%, 70% ou 300.000, 250.000 peças. Então se não tiver
camiseta durante o mês, ele vai pagar pelo menos isso para eu poder remunerar elas. Então isso já é uma garantia grande. Esse é um dos grandes problemas que nós estamos resolvendo. É exatamente o problema da comercialização.
Porque não pode. Eu já não vendo por quê? Porque eu não tenho condições de
comercializar, que é o grande problema. Eu já terceirizo, faço o serviço, presto o serviço , ele me paga pelo serviço. (...) isso resguarda um certo tempo: 1
mês, 2 meses, 3 meses. Mas quando a coisa engrossa, quando o mercado
tá ruim não tem contrato que dê jeito. O cara tem a obrigação de me
abastecer porque eu tenho condições de fazer 300.000 peças, 400.000
peças. Se ele não tá vendendo , ele não vai mandar. Não adianta. Ele
pode cumprir o primeiro mês, cumprir o segundo, mas no terceiro não dá
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mais para cumprir porque não está vendendo. Se não está vendendo,
não tá recebendo. Isso é um problema que acontece não só comigo. É um
problema mundial. Um problema comercial, econômico. O nosso problema
é assegurar que elas vão ter no mínimo tanto por mês” ( Souza Neto, 1998).
Outrossim, a forma jurídica de associação impede que determinadas demandas
trabalhistas tenham espaço e assim sendo cria condições para que as grandes empresas
tenham custos de produção reduzidos e consequentemente enormes margens de
lucratividade, vez que contam com um contingente pequeno de trabalhadores, em uma
indústria que utiliza largamente trabalho intensivo.
Importa registrar que essa situação não é específica da ACT. Estudo realizado no
Nordeste sobre a flexibilidade produtiva na indústria do vestuário, conclui que:
“a novidade das cooperativas nordestinas está na sua constituição para
atender demandas específicas que, para tanto, bancam parte de seu funcionamento, com contratos variados, embora predomine a exclusividade
na produção e o controle sobre a organização do trabalho. Os
trabalhadores são associados e como tal não regidos pela legislação
trabalhista. O recolhimento das obrigações sociais é responsabilidade
dos trabalhadores. Com isso, além do baixo salário propriamente dito,
que raramente ultrapassa a faixa de 1,5 salários mínimos, a terceirização
em cooperativas reduz mais ainda os custos de produção, tornando o
preço unitário de camisetas brancas, por exemplo, inferior ao custo chinês
ou asiático, tidos como modelos de competitividade internacional” (Lima,
[199-?, p. 5-6]).
Como se vê, as associações de trabalho apresentadas como solução ao desemprego, merecem um olhar mais atento, pois se por um lado retiram um contingente de
trabalhadores do desemprego, não se pode afirmar contudo que esta inserção no mercado
de trabalho possibilita o exercício pleno da cidadania. Compartilhando da idéia de Carleial
(1997, p. 30):
“O olhar otimista sobre este momento é capaz de privilegiar os ‘empregos’
criados no Ceará, por uma empresa que não garante os direitos trabalhistas e
que contrata trabalhadores através de uma cooperativa pagando salário mínimo. Isto é melhor do que nada, dizem alguns. É até possível que sim, mas
então vamos nos entender melhor: São empregos? São ocupações? Do que se
trata aqui? Em segundo lugar, qual a sociedade que emerge a partir desses
ocupados? Qual a diferença entre estas ocupações e as históricas frentes de
emergência nordestina em épocas de seca? Isso é moderno?”.
Ou colocando de outra forma: a autogestão como alternativa ao fechamento
de postos de trabalho decorrente dos processos de reestruturação produtiva e desemprego estrutural, longe de apresentar-se como um espaço de cidadania, tem exercido
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importante papel na flexibilização das relações de trabalho do conjunto dos trabalhadores, ao precarizar ainda mais as condições de trabalho existentes.
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25
SERVIÇO PÚBLICO: CONSEQÜÊNCIAS
DA IMPOSIÇÃO DE LIDERANÇA
Homero Henrique Rocha de Medeiros1
RESUMO: A escolha de líderes quando é regida pela autoridade de um membro, e
não por sua qualificação ou grau de influência sobre os outros, principalmente quando o poder deriva de um só cargo, traz inúmeros problemas para as organizações
políticas. Os liderados, nesse caso, não aceitam a liderança da chefia imposta, conseqüentemente, os serviços prestados para a sociedade são de qualidade inferior.
Nesse sentido, o presente trabalho tem como principal objetivo refletir sobre as conseqüências que esta imposição provoca no setor público.
PALAVRAS-CHAVE: Serviço público; sistema problema; crise de liderança; imposição da liderança e função do líder.
PUBLIC SERVICE: CONSEQUENCES
OF LEADERSHIP IMPOSITION
ABSTRACT: The choice of leaders when is ruled by authority of a member and
not only for his qualification or level of influence over the others mainly when power,
comes from one post, it brings several problems for the political organizations. The
subordinates, in this case, do not accept the imposed leadership, consequentely, the
rendered services to society are of inferior quality. In this sense, the present work has
as its main objectives, to meditate about the consequences that this imposition provokes in the Brazilian public sector.
KEY-WORDS: Public service; system problem; leadership crisis; leadership imposition and the function of the leader.
1
Jornalista. Mestre em Administração de Empresas com ênfase em Marketing (UFPB). Professor dos Cursos
de Administração e Secretariado Executivo da FACEX. Al. Angélica de Almeida. Moura, 2004 - Bl. H, Ap.
101, Capim Macio 59.084-010 - Natal/RN. Tel: (0xx84)207- 4571 – E-mail.: [email protected]
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1 DEFINIÇÃO DO SISTEMA PROBLEMA
A ecologia de uma organização é tão delicada e vulnerável como a de uma
floresta. Uma coisa dá suporte a outra; um elemento alimenta outro; aquele outro
abastece aquela, que por sua vez alimenta esta. Qualquer parte do ciclo da vida que
é interrompido ou alterado afeta outras partes, normalmente para pior, raramente
para melhor. Nada acontece sem que se produza um efeito sobre alguma coisa. Os
resultados às vezes não são visíveis por semanas, meses ou anos.
Eleitos ou apontados, os principais mandatários se sucedem rapidamente à
medida que os governos ganham ou perdem confiança, mas o serviço público permanece o mesmo. Esses administradores permanentes dirigem o país de acordo com
os costumes e as regras já estabelecidas. O fato de ministros serem mudados regularmente não afeta o trabalho no dia-a-dia. Em situações normais, isso faz com que
as coisas estejam funcionando. Mas funcionando não quer dizer, oferecer serviços
de qualidade. Dificilmente vive-se no que pode ser classificado como situação normal ou previsível.
A certeza na vida, se é que existe alguma, é a de que haverá mudanças. O tipo
de mundo sobre o qual se fazem planos hoje, não irá existir dessa forma amanhã. O
constante fluxo de informações e a modificação de idéias exigem que o administrador esteja sempre aprendendo. Ninguém consegue sequer chegar perto do ponto em
que se possa dizer que sabe de tudo. As trilhas do mundo organizacional estão repletas de fracassos daqueles que achavam que já sabiam de tudo e deixaram de aprender.
Ao invés de descobrirem pessoas que realmente entendam cada um dos negócios que o compõem, ditando-lhes claramente as exigências e as linhas mestras a
serem seguidas, e deixando que elas dirijam suas operações, a maior parte deles
insiste em tentar fazer tudo sozinhos. Em uma época em que um esporte individual
como o tênis, tem especialistas para tudo, deveria ser evidente que o poderoso administrador do tipo “eu sei tudo”, é uma espécie obsoleta, se é que tal pessoa um dia
existiu. A chave para uma vida útil e satisfatória está no desejo de aprender e continuar aprendendo, pelo menos no que se refere a humanidade.
Diretriz é aquilo que a organização elabora todo tempo. Se nada estiver estabelecido formalmente, então segue-se adiante com base na experiência anterior do
líder nomeado por grupos políticos. E é isso o que acontece com o serviço público.
Seguem-se diretrizes de tempos passados se existirem, se não, caminha-se de acordo com o vento e conforme a vontade dos políticos.
Todas as organizações gostariam de encontrar alguém que fizesse a coisa certa, no tempo certo e pela razão certa. Todos gostariam de poder dirigir algo com
confiança absoluta de que seriam estabelecidas metas compreensíveis, que uma tarefa, por mais difícil que fosse, seria executada tranqüilamente, e de conseguir sucessos e não problemas. Gostariam de encontrar pessoas que possam inovar e
implementar tudo ao mesmo tempo.
O ambiente de trabalho é tudo. A cultura é parte dele. Uma cultura pode ser
superada e liquidada por uma ambiente negativo. A produtividade, tanto dos “colarinhos-brancos” como do operariado, pode virar ferrugem. Vejam as grandes nações
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que decaíram, embora ainda mantivessem seus usos e costumes. “Um tanto ultrapassado”
é a frase mais comum que se ouve significando o ambiente de trabalho no setor público.
Traz a idéia de alguém que esteja usando instrumentos adequados mas já bem gastos,
comendo em pratos de porcelana rachados e discutindo temas que estejam completamente inadequados e inúteis. Claro que o retrato do serviço público não é esse, mas uma
parte das repartições se encontra nesta situação. Passar a vida marchando para a decadência é realmente uma idéia terrível.
1.1 Esquema do Problema
O primeiro passo para resolução de um problema está diretamente ligado a
sua identificação. A prática do mapeamento de idéias, mesmo sendo relativamente
recente nas ciências que estudam o comportamento humano, atualmente é bastante
disseminada para a compreensão de problemas. Uma visão bastante sucinta tem-se
em THOMPSON (1996), ao definir como: “um processo de associação de palavras e idéias estruturadas em conceitos, palavras chaves, cores e gráficos para
formar uma rede não linear de observações e potenciais pensamentos”.
Numa ótica mais pragmática, podemos afirmar que o mapeamento de idéias
ou da mente, como foi chamado pelo seu inventor Tony Buzan, é o processo de
procura de novas perspectivas para o problema, ao observar os pontos de vista de
outras pessoas afetadas por ele. Para sintetizar todos os pensamentos e associações
com o problema da imposição da liderança no serviço público, elaborou-se uma
síntese final que se segue, extraída do uso do mapeamento de idéias.
I . Fatores de Liderança Imposta que afetam o Serviço Público
A. Causas
B. Sintomas
C. Resultados
II. Variáveis
A. Variáveis Causas
1. Poder concentrado no fator político
2. Valores não obedecidos
3. Ausência de visão compartilhada
4. Inexistência de foco no usuário
5. Mudanças constantes
6. Ver a empresa como partes e não como um todo
7. Falta de liderança
B. Variáveis intervenientes
1. Compromisso com a empresa
2. Não assumir riscos
3. Comunicações deficientes
4. Alto nível de conflito
5. Boatos
6. Falta de bom-senso
7. Inexistência de trabalho em equipe
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8. Falta de confiança
9. Inexistência de incentivos
C. Variáveis no resultado
1. Baixa qualidade
2. Queixas dos usuários
3. Queda de produtividade
a. Ritmo de trabalho menor
b. Mais erros
4. Falta de competitividade
5. Objetivos e prazos descumpridos
6. Queda na arrecadação de fundos e receita
7. Insatisfação no trabalho
a. Absenteísmo
b. Baixos salários
8. Constante mudanças na administração
9. Age como uma organização em crise constante
2 SERVIÇO PÚBLICO
O Setor Público é uma estrutura hierarquizada. Segundo MORGAN (1996) “as
organizações podem ser vistas sob a ótica da metáfora mecanicista, ou seja, a concepção do homem ao considerar as organizações enquanto máquinas.” Considere,
por exemplo, a previsão mecânica com a qual muitas de nossas instituições devem
operar. A vida organizacional é freqüentemente rotinizada com a precisão exigida
de um relógio. Espera-se que as pessoas cheguem ao trabalho numa determinada
hora, desempenhem um conjunto predeterminado de atividades, descansem em horas marcadas e então retomem sua atividade até que o trabalho termine.
Freqüentemente o trabalho é muito mecânico e repetitivo. Qualquer pessoa que
tenha observado o trabalho de produção em massa na fábrica ou em algum grande
escritório processando formulários de papel, tais como pedidos de seguro, devolução de impostos ou cheques bancários notará a maneira maquinal, pela qual tais
organizações operam. MORGAN (1996), conclui afirmando que “as fábricas são
planejadas à imagem das máquinas, sendo esperado que seus empregados se comportem, essencialmente, como se fossem partes de máquinas”.
A organização política - carreira do líder - no setor público é regida pela autoridade e não por sua reputação ou grau de influência sobre os outros. O poder deriva
de um só cargo. Existe liderança nas camadas intermediárias e ela é uma função
distribuída, que se desloca, dependendo do estágio em que se está. O problema é que
estas lideranças não reconhecem e não aceitam a liderança da chefia, uma vez que
foi imposta para eles, como também, com o grau de compromisso do líder maior
com seu grupo político que o nomeou para o cargo e não para com a instituição.
O jogo nas repartições públicas, suas regras e valores, usando uma metáfora,
é como um time de vôlei: são necessários três toques para levantar a bola sobre a
rede, não importa quem a tocou desde que o último toque seja dado pelo seu dirigente maior. Saber quais as regras é o primeiro caminho para poder jogar. O erro e
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o acerto desaparecem quando se têm consciência de estar jogando.
A falta de liderança pode realmente criar organizações “neuróticas”, que vivem
com vários graus de conflito e mostram padrões desiguais de pontos fortes e fracos.
O individualismo exprime competição pessoal para progredir através dos jogos políticos. É mais difícil se conseguir que as coisas sejam feitas no serviço público,
simplesmente porque tudo passa pela seguinte avaliação: “o que é que isso tudo vai
gerar para mim?”
A autoridade hierárquica, da maneira como tem sido tradicionalmente empregada pela administração ocidental, costuma evocar a obediência, não favorecendo o
compromisso. A obediência é resultado de quanto mais fortemente for exercido o
poder hierárquico.
De acordo com LEVY-LEBOYER (1993), “credibilidade como a reputação
é algo conseguido com o tempo. Ela não vem automaticamente com o cargo ou o
título. Ela começa cedo em nossas vidas e carreiras”. As pessoas tendem a assumir
de início que alguém que foi elevado a um certo status na vida, galgou degraus ou
atingiu objetivos significantes, merece confiança. Mas a confiança completa é assegurada somente depois que as pessoas tiverem a oportunidade de conseguir conhecer mais sobre o indivíduo. Os alicerces de credibilidade são construídos tijolo por
tijolo. A medida que cada novo fragmento for se fixando, a base sobre a qual se erige
as esperanças futuras é gradualmente construída. (KOUZES e POSNER, 1993)
Cargo é uma forma grosseira de medir o poder; ele não reflete as sutilezas do
real alinhamento. Para que uma organização opere com flexibilidade, o poder não
deve derivar simplesmente de um cargo. JACOBS (1970), descreve três possibilidades: o poder da especialização, do conhecimento ou habilidades especializadas; o
poder das relações e ligações pessoais; e o poder da grande e intangível autoridade
pessoal ou carisma. Uma organização que permite às pessoas se manifestarem e
desenvolverem esses tipos de poder, sem considerarem seu status oficial, darão um
grande passo no desenvolvimento da liderança de base.
Corporações e repartições governamentais, em toda parte, tem pessoas em
cargos de chefia que imaginam que o lugar que ocupam no organograma lhes deu
um corpo de seguidores. E isso, evidentemente, não aconteceu. Eles ganharam subordinados. Se os subordinados se tornarão seguidores, dependerá do gerente agir
como líder.
A rotina de empenhar-se com que seus subordinados o sigam sem discutir,
pouco tempo lhe deixa para pensar naquilo que deveria ser feito para trabalhar com
pessoas, realmente motivadas e mais eficazes. É espantoso o número de pessoas que
ocupam cargos de chefia que não acredita nem mesmo que alguém precise estar
motivado para poder trabalhar. O trabalho para esse tipo de chefia não precisa fazer
sentido para que seja cumprido.
Como resultado disso, raramente, encontra-se uma organização pública que
conte em seus postos de chefia com verdadeiros líderes. A maioria daqueles a quem
se nomeou como chefes, atua de forma a condicionar ou procurar dirigir seus subordinados pelo movimento. Com isso, em pouco tempo a frustração e a perda de motivação instalam-se de maneira generalizada. Os chefes, no geral e na sua grande
maioria, estão longe de corresponder aos conceitos de liderança.
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Isso contribui para que o trabalho passe a ser visto somente como fonte de dinheiro
e nunca como fonte de satisfação. Os líderes políticos (liderança imposta) que ignorarem
totalmente outras necessidades humanas no trabalho, tais como, necessidades de aprender, auto-valorização, orgulho, competência e ser útil às pessoas, dificilmente obterão
resultados positivos. Contratando somente as mãos dos trabalhadores, não suas mentes e
corações, as Instituições perdem um precioso retorno dos seus investimentos nas pessoas. Se eles ganham somente recompensas financeiras e atendem apenas às suas necessidades de segurança, nunca contribuirão mais do que um mínimo em suas organizações.
Elas também se sentirão alienadas e deixarão a empresa por outra que pague a mesma
coisa ou um pouco mais quando tiver vagas. É isso que vem acontecendo, os melhores
profissionais estão deixando o serviço público para ingressarem no setor privado.
3 CRISE DE LIDERANÇA
Desde tempos passados, a liderança constitui uma das maiores preocupações
dos pesquisadores em comportamento humano no trabalho e, no entanto, não existe
ainda um consenso quanto à definição do fenômeno. Liderança é um conceito escorregadio e ilusório, que deixa perplexos mesmo os cientistas sociais. De acordo com
CLEMENS e MAYER (1989), certo pesquisador ao consultar mais de 3.000 livros e
artigos sobre liderança, concluiu que: “não se sabe muito mais a respeito desses
assuntos hoje em dia do que se sabia quando toda a confusão teve início”.
A idéia que pessoas tem sobre liderança reflete os valores e as preocupações
mais gerais de sua época. Toda geração se rebela não apenas contra determinados
líderes, mas também contra o próprio estilo de liderança adotado por eles. Para
JACOBS (1970), a liderança “é uma interação entre pessoas na qual uma apresenta informação de um tipo e de tal maneira que os outros se tornam convencidos de
que seus resultados, (...) , serão melhorados caso se comporte da maneira sugerida
ou desejada”.
Um conceito mais individualista é encontrado em HEMPHIL e COONS (1957),
ao sustentarem que “a liderança é o comportamento de um indivíduo quando está
dirigindo as atividades de um grupo em direção a um objetivo comum”. Para DAVIS
e NEWSTRON (1989) a liderança é um conceito bastante simples: “é o processo de
encorajar e ajudar os outros a trabalhar entusiasticamente na direção de objetivos”. É o fator humano que ajuda um grupo identificar para onde ele está indo e
assim motivar-se em direção aos objetivos. Sem liderança uma organização seria
somente uma confusão de pessoas e máquinas, do mesmo modo que uma orquestra
sem o maestro seria somente músicos e instrumentos. A orquestra e todas as outras
organizações requerem liderança para desenvolver ao máximo seus preciosos ativos. Para BERGAMINI (1994),“liderar é, antes de mais nada, ser capaz de administrar o sentido que as pessoas dão àquilo que estão fazendo”.
Não é de se estranhar, que a palavra liderança reflita coisas diferentes para
diferentes pessoas. Assim sendo, os pesquisadores freqüentemente passam a definir
liderança, partindo de uma perspectiva individual, ressaltando aquele aspecto do
fenômeno que seja mais significativo para eles. Essa argumentação pode ser observada em BENNIS e NANUS (1998): “assim como o amor, a liderança continuou a
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ser algo que todos sabiam que existia, mas ninguém podia definir.”
As pessoas se relacionam melhor com alguém que reconheçam como um conhecedor da vida no campo de batalha, e que tenha uma empatia com as pressões e
frustrações ali existentes. Elas ajudam a fazer com que esse tipo de líder seja bemsucedido, da mesma forma como podem fazê-lo fracassar caso não se relacione com
elas. A maior parte dos líderes não costuma reconhecer que seus subordinados podem estar, deliberadamente, trabalhando contra eles. Os administradores mais experientes ficam desconcertados pelo padrão de sucesso de alguns líderes e pela taxa
de fracasso de outros. Eles não percebem que as peças do tabuleiro de xadrez estão
decidindo o jogo em favor daqueles que as apreciam.
Se os funcionários se sentem parte da comunidade organizacional, seguras e
protegidas, empolgadas com a missão e os valores, e acreditam que os demais estejam vivendo de acordo com eles, geralmente produzem bons serviços para o todo. E
se são membros dedicados da comunidade, será mais seguro confiar que criem os
próprios papéis de liderança através das fronteiras organizacionais. Como membros
da comunidade, eles se preocuparão menos com a defesa de seus espaços, acreditando que ao cuidarem da organização estarão cuidando de si mesmos.
Quando a organização está acéfala, pode muito bem regredir para padrões mais
complexos de discriminação, baixos níveis de moral e produtividade do empregado,
uma imagem pública frágil e uma falha na identificação e no desenvolvimento dos
objetivos e metas. Alguns autores, entre eles SMITH e PETERSON (1989), identificaram dois tipos de liderança política: transacional e transformacional. A liderança
transacional ocorre quando uma pessoa toma a iniciativa de fazer contato com os
outros com o objetivo de trocar alguma coisa de valor. Já a liderança transformacional
é baseada em mais do que a submissão dos seguidores; ela envolve modificações de
crenças, necessidades e valores dos seguidores.
O relacionamento entre a maioria dos líderes do setor público e seguidores é
transacional – em que os líderes se aproximam dos seguidores de olho na troca de
uma coisa por outra: os cargos por votos ou subsídios de contribuições para campanha. A autoridade do líder parece vir mais da habilidade de interagir adequadamente
do que do poder formal que a posição ocupada possa ter.
Assim sendo, uma grande parte do sucesso do líder vem da sua possibilidade
de influenciar os seus seguidores, bem como de aceitar a influência que emana deles. Essa influência só fluirá verdadeiramente na medida em que o líder esteja pronto para alicerçar suas ações no conhecimento íntimo que passa a ter dos subordinados, suas crenças, valores e expectativas, bem como na sua habilidade em conseguir
que eles atinjam os seus próprios objetivos.
Um dos grandes problemas da liderança é a formação de equipes de trabalho.
Uma equipe não é simplesmente uma força tarefa, pois nesta os membros são designados pelos superiores, que definem sua missão e estabelecem os critérios para julgamento de sua realização. Uma verdadeira equipe, ao contrário, tanto define os
próprios objetivos como encontra os meios para atingi-los, integrando a concepção
das tarefas com sua execução. Uma vez que na organização voltada para o conhecimento as equipes estabelecem as próprias metas, também são livres para usar qualquer
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nova informação que lhes chegue para refinar seus métodos e objetivos, enquanto fazem
o trabalho.
A organização deve começar como uma equipe e se concentrarem em compartilhar e difundir a liderança, em vez de incentivar um culto da personalidade. A
instituição é um todo e não a figura do seu dirigente maior, como a liderança imposta na maioria das vezes quer representar.
4 FUNÇÃO DO LÍDER
Para SMITH e PETERSON (1989), a eficácia do líder repousa na sua habilidade de tornar uma atividade significativa para aqueles que estão nesse conjunto de
papéis. Não é mudar comportamentos, mas dar aos outros o senso de compreensão
daquilo que estão fazendo e, especialmente, articulá-los para que possam comunicar-se sobre o sentido do comportamento deles. Além disso, se for possível o líder
colocar em palavras o sentido daquilo que o grupo está fazendo, isto se transforma
em um fato social. Esta dupla capacidade de dar sentido as coisas e colocá-las em
linguagem significativa para um grande número de pessoas dá ao líder uma enorme
alavancagem.
Atualmente, a função mais importante para os líderes no serviço público, é
conseguir que a motivação no trabalho não desapareça, fazendo com que os funcionários continuem vendo algum sentido naquilo que está fazendo.
Um líder deve sempre questionar a missão e metas da organização, bem como,
o que constitui o desempenho e os resultados na mesma, e não temer a capacidade
de seus liderados, muito pelo contrário, devia desfrutar dela.
Os líderes são pessoas com sistemas de valor nada diferentes dos de seus seguidores; a liderança resulta diretamente da inteligência, talvez do poder e do carisma
pessoal, do desejo e do compromisso, e de uma disposição para fazer coisas que os
demais estão menos propensos a fazer.
O líder deve ter uma voz que articule a vontade do grupo e molde essa vontade
para fins construtivos e uma capacidade de inspirar pela força da personalidade,
fazendo com que outros se sintam com autonomia para aumentar e empregar as
próprias capacidades. Quase todo líder possui uma qualidade positiva que talvez
seja ainda mais importante do que a excepcional inteligência - a generosidade.
A liderança verdadeira congrega pessoas de formação e objetivos distintos em
formas que proporcionam oportunidades justas e iguais para que contribuam ao
máximo, atinjam metas pessoais e realizem todo seu potencial. O líder deve funcionar como elo entre sua organização e a comunidade maior, para estabelecer a organização como um lugar onde as pessoas queiram trabalhar de modo produtivo, desenvolver novos mercados e manter os existentes.
5 CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES
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O Governo Federal ainda não se deu conta da sinergia organizacional e humana que é desperdiçada pelo fato de não possuírem líderes eficazes. Ele tem, no geral,
muitos chefes em todos os níveis, desde a cúpula até a base, mas é raro que estas
pessoas consigam fazer com que o ambiente de satisfação, produtividade e motivação predominem. Como se pode comprovar na argumentação de TACK (1989), “os
gerentes, muitas vezes, gerenciam departamentos, gerenciam pessoas, mas não as
lideram”. Poucos são os empregados que trabalham utilizando seu potencial. A liderança eficaz os motiva voluntariamente a dedicarem suas mentes e atributos físicos para o objetivo maior.
Segundo BENNIS e NANUS (1988),
“nossa crise atual solicita liderança em cada nível da sociedade e em todas as
organizações que a formam. Sem liderança da espécie que vimos solicitando é
difícil ver como podemos moldar um futuro mais desejável para esta nação ou
para o mundo. A ausência ou falta de efetividade na liderança implica ausência de visão, uma sociedade sem sonhos; na melhor das hipóteses, isto resultará na manutenção do status quo e, na pior, a desintegração de nossa sociedade, por falta de propósito e coesão”.
Com as máquinas substituindo cada vez mais o trabalho rotineiro e com o
crescimento do percentual de trabalhadores voltados para o conhecimento, mais líderes são necessários na organização. As atividades destinadas aos seres humanos
envolvem inovação, novas maneiras de ver e reação aos usuários pautada em novos
métodos de trabalho. Aproxima-se a época em que todos os empregados terão de
revezar na liderança, quando perceberem que precisam exercer influência sobre os
demais para realizar sua visão. É preciso ultrapassar os tradicionais conceitos de
hierarquia a fim de gerar espaço para todos conduzirem, quando o conhecimento
especializado representar a chave para a ação certa. Mas para que isso seja
implementado é preciso que os líderes públicos abracem a causa, mais abrangente
do que a satisfação pessoal e do grupo político.
A tecnologia ágil, a competição global e as mudanças ambientais e demográficas
estão criando uma consciência por organizações mais efetivas e eficientes. Se tais
mudanças, não forem devidamente acompanhadas, ter-se-á, sem sombra de dúvida,
um papel cada vez mais coadjuvante no contexto organizacional. Como será trabalhada nossa qualidade de vida e a da empresa, em função da liderança que nos conduzirá ao futuro? O tempo está passando e não se terá como reavê-lo, quanto mais
perdurar esta situação mais no “fundo no poço” cairemos. A gestão do tempo é
imprescindível no setor público, sendo poucos os que observam a necessidade da
gestão do tempo dentro de uma organização.
O início do próximo século fica cada dia mais perto. Como chegará o setor
público ao século XXI? Poder-se-ia dizer que chegará atrelado ao passado; entrará
de “marcha ré” e desnorteado, ou confiante no futuro, trabalhando com a visão no
horizonte.
Não se pode responsabilizar a liderança por tudo; os liderados também a tem..
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Poucos são aqueles que se perguntam: o que poderia ser feito na organização para que
realmente tivessem importância? Mas isso é reflexo da crise de motivação no trabalho de
que fala LEVY-LEBOYER (1993):”
“a crise é complexa e apresenta aspectos contraditórios. A análise dos
fatos, como exame das suas explicações, bem mostra que se está atravessando um período de reorganização profunda dos valores ligados ao
trabalho, caracterizada pelas contradições inesperadas que se deveria
tentar elucidar e a partir das quais seria desejável saber predizer sua
evolução.”
Isto pode ser observado nas contradições existentes dentro de um mesmo indivíduo que não pode viver sem trabalho e ao mesmo tempo diz que o trabalho o
impede de viver. É ainda LEVY-LEBOYER que afirma:
“estas contradições estão inseridas no seio da sociedade, na qual, alguns rejeitam completamente o trabalho, ao permitir a redução total de suas necessidades de consumo; enquanto outros reivindicam seu direito ao trabalho, porque daí retiram uma identidade e nele procuram meios de se realizar. Mesmo
que isso ocorra sem o imperativo de uma motivação financeira e que outros
ainda encontram o seu equilíbrio psicológico, ao mesmo tempo, no papel social e dentro de uma função profissional.”
Talvez o aspecto mais relevante da futura liderança seja que as características
do líder não estarão presentes em algumas pessoas o tempo todo, mas em muitas
pessoas numa parte do tempo, à medida que as circunstâncias mudam e diferentes
pessoas desenvolvem a percepção, podendo assumir papéis de liderança. A liderança será, então, uma função cada vez mais emergente, em vez de uma propriedade das
pessoas nomeadas para papéis formais. Visto que hoje o processo de nomeação de
dirigentes é uma função crítica das entidades governamentais, podemos imaginar
que, no futuro, dirigentes nomeados não desempenharão os principais papéis de
liderança, mais serão diagnosticadores perpétuos que poderão delegar autoridade a
diferentes pessoas, em diferentes momentos, e deixar a liderança emergente. Seria
isso utopia?
Se o mundo deve aprender a gerenciar-se melhor, muito mais pessoas nas organizações terão de ser líderes e as funções de liderança terão de ser mais largamente
compartilhadas. Acredita-se que líderes são aquelas pessoas que “caminham na frente”, sinceramente compromissadas com mudanças profundas em si mesmas e em
suas organizações.
Uma liderança eficaz, em lugar da imposta, poderá ajudar muito mais o serviço
público a vencer melhor os desafios do futuro. Olhar além do desconhecido vai
requerer novas maneiras de pensar, novos olhos, mãos, pernas e ouvidos.
Cabe aos funcionários tomar atitudes que venham trazer a implementação de
um serviço público que vise, fundamentalmente, a valorização do ser humano. Somente a partir disso é que os empregados poderão reverter este caótico quadro que se
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apresenta. Algumas sugestões foram relacionadas abaixo, a partir da solução da definição
do sistema problema, que acreditamos possa ajudar esta reversão:
a. Incentivar os trabalhadores a discutir, analisar, questionar o processo decisório
no serviço público;
b. Fortalecer o papel desempenhado pelas Associações de Funcionários na garantia de benefícios e direitos;
c. Cobrar o comprometimento da liderança imposta com a Instituição que dirige;
d. Questionar coletivamente as decisões impostas e propor alternativas mais
eficientes e eficazes;
e. Minimizar ao máximo a influência política na instituição;
f. Tentar promover as lideranças informais e valorizá-las;
g. Promover a busca de melhoria contínua das condições de trabalho, refletindo
na produtividade, atendimento e qualidade de vida de todos;
h. Incentivar todos a “vestirem a camisa” da instituição, através de campanhas
de integração de funcionários; e
i. Incluir os usuários nas discussões do papel da instituição, promovendo uma
maior interação e melhorando a imagem institucional.
Desta forma, tais ações recomendadas poderiam ser assim estruturadas:
A. Criar uma visão
1. Torná-la compreensível
2. Torná-la inspiradora
3. Incluí-la em avaliações de desempenho
B. Valorizar a colaboração
1. Estabelecer equipes de trabalho de projeto
2. Derrubar barreiras hierárquicas e de divisão
3. Estimular um ambiente de criatividade e assumir riscos
4. Avaliar e recompor os esforços de equipe
5. Realizar encontros em locais afastados
6. Iniciar treinamento interfuncional
7. Fortalecer e valorizar o aspecto humano
8. Incentivar a liderança informal
C. Encorajar o comprometimento com a Instituição
1. Participar efetivamente do processo decisório
2. Fortalecer o papel das Associações de Funcionários
3. Cobrar o comprometimento da liderança imposta
4. Questionar coletivamente decisões impostas
5. Minimizar a influência política
6. Negociar melhores condições de trabalho
7. Vestir a camisa da empresa
D. Assumir uma orientação focalizada no usuário
1. Entender o usuário externo
2. Entender o usuário interno
3. Identificar as necessidades dos usuários
4. Avaliar e recompensar a satisfação do usuário
E. Iniciar um processo contínuo de aperfeiçoamento
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1. Eliminar o trabalho supérfluo
a. Relatórios
b. Aprovações
c. Reuniões
d. Medições
e. Políticas
2. Trabalhar em equipes interfuncionais para descobrir métodos melhores
e eficazes
3. Incluir usuários e fornecedores no processo
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENNIS, W., NANUS, B. Líderes: estratégias para assumir a verdadeira liderança. São Paulo: Editora Harbra, 1985.
BERGAMINI, C. W. Liderança: administração do sentido. São Paulo: Atlas,
1994.
CLEMENS, J. K., MAYER, D. F. Liderança: um toque clássico. São Paulo: Best
Seller, 1989.
DAVIS, K., NEWSTROM, J. Human behavior at work-organizational behavior.
New York: McGraw-Hill, 1989.
HEMPHILL, J. K., COONS, A. E. Development of the leader behavior description
questionnaire. In: I R.M. STOGDILL, R. M., COONS, A. E. Leader behavior: Its
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KOUZES, J. M., POSNER, B. Z. Credibility how leaders gain and lose it, why
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LEVY-LEBOYER, Claude. A Crise das Motivações. São Paulo: Atlas, 1993.
MANZ, C.C., SIMS, J .H. P. Super-leadership - leading others to lead themselves.
New York: Berkley Book, 1989.
MORGAN, G. Imagem da Organização. São Paulo: Atlas, 1996.
SMITH, P., PETERSON, M. Leadership, organizations and culture. London:
SAGE Publications, 1989.
TACK, A. A liderança motivacional. São Paulo: Siammar, Serviço Cultural
Interamericano, 1989.
THOMPSON, Charles. Grande Idéia: como desenvolver a aplicar sua
criatividade. São Paulo: Atlas, 1996.
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O NOVO PERFIL DO ADMINISTRADOR EXIGIDO
PELO MERCADO DE TRABALHO
Vera Lúcia da Silva Neves1
RESUMO: As discussões desenvolvidas, no presente texto, objetivam mostrar o
novo perfil do administrador, diante das tendências do mercado de trabalho. Nessa
perspectiva, serão consideradas as transformações que se efetivam neste mercado,
situando-as no contexto da globalização econômica, o qual é marcado por crescentes mudanças nos sistemas econômicos, tecnológicos entre outros, surgindo, então,
a necessidade de profissionais com capacidades adequadas para suprir as exigências
que o novo mercado requer. Para se chegar as características do administrador virá,
primeiramente, um breve comentário sobre a globalização econômica e o mercado
de trabalho. Isto se faz necessário para que o leitor possa acompanhar as variações
do mercado e, desta forma, chegar ao novo perfil do administrador com um maior
grau de compreensão.
PALAVRAS-CHAVE: Globalização econômica; Mercado de trabalho; Perfil do
administrador.
THE NEW PROFILE OF THE MANAGER REQUIRED
BY THE WORK MARKET
ABSTRACT: The developed discussions in this text have the objective of showing
the new profile of the manager before the tendencies of the work market. In this
perspective, it will be considered the transformations which occur in this market,
plancing them in the context of economic globalization that has been marked by
growing changes in the economic and technological systems among others, rising
then, the necessity of professionals with appropriate capability to supply the
requirements that the new market requires. In order to achieve these features proper
of a manager, firstly, it will come a brief comment on economic globalization and
the work market. This is necessary for the reader to follow the work market variations,
and thus, comes up to this new profile of the manager with a higher level of
understanding.
KEY WORDS: Economic globalization; Work market; Manager profile.
1
Administradora. Mestre em Administração de Recursos Humanos (UFRN). Coordenadora do Curso
de Administração com Habilitação em Comércio Exterior da Faculdade de Ciências, Cultura e Extensão
do RN (FACEX). Telefax: (0xx84) 208-1500.
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38
Com a globalização econômica, o mercado de trabalho passa a exigir profissionais
mais capacitados, multiqualificados. Este mercado está em processo de transformação,
exigindo líderes participativos (substituindo autoritários que perdem cada vez mais espaço), premiando o trabalho em equipe.
No Brasil, percebe-se a busca, por parte das empresas, por um novo relacionamento inter-firmas, estimulando os executivos que comandam os negócios no país,
no sentido de criarem nichos de alto grau de competência para preservar a
competitividade. O mercado de trabalho globalizado e competitivo diminui o número de empregos formais (com carteira de trabalho assinada) e aumenta o leque de
possibilidades de trabalho para administradores bem preparados e capazes de
gerenciar seus próprios negócios, é a chamada empregabilidade.
Durante algum tempo foi dispendido muito esforço para diminuir as distâncias
entre as cidades. As repercussões provocadas pela revolução tecnológica na economia mundial não foram pequenas. O aumento na interdependência comercial e financeira entre as nações neste final de século recebeu o nome de globalização econômica, a qual se configura por mudanças, como: a mundialização dos mercados e
sua crescente integração, as novas formas de concorrências, dentre outras. Hoje,
através desta globalização, o controle do mercado de quase todo o planeta está em
poder das multinacionais. Os meios de comunicação como o telefone, telefax, o
rádio e a internet aproximaram ainda mais as distâncias existentes entre as nações.
Por exemplo, uma fábrica na Inglaterra pode entrar em contato com uma filial no
Brasil.
Com o desenvolvimento da tecnologia, as nações passaram a se organizar em
grupos, procurando proteger seus interesses econômicos, mesmo quando alegavam
motivos não propriamente relacionados ao comércio internacional. Surgiram, então, a extinta Liga das Nações; a Organização das Nações Unidas (ONU) e o grupo
dos sete países mais ricos do mundo (G-7), composto pelos EUA, Inglaterra, Japão,
França, Itália, Canadá e Alemanha.
Ao passo em que as empresas multinacionais passam a investir cada vez mais
em determinados países, sujeitos a instabilidades políticas e econômicas, surge a
necessidade de diminuírem os riscos que envolvem esses investimentos, criando
entidades como o Fundo Monetário Internacional (FMI) com o intuito de manter
uma certa harmonia econômica internacional. Alguns bancos e instituições financeiras controlam o fluxo de dinheiro no mundo.
Com as competições comerciais cada vez mais fortes e freqüentes, surge a necessidade de associações internacionais, uma vez que a união de países com interesses comuns é a melhor solução para enfrentar as ameaças que estas competições
representam. Com isto, criam-se os blocos econômicos: o Mercado Comum do Sul
(MERCOSUL), composto pelos países Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai; o
Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), composto pelos EUA,
Canadá e México; a União Européia (UE), composta pelos países europeus; e a
Associação de Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico (APEC), composta
pelos países da Ásia e Pacífico. Com relação a estes blocos, o MERCOSUL é o que
apresenta maiores possibilidades de desenvolvimento; é o único da América Latina
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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e torna-se uma exigência da economia mundial contemporânea, visando a proteção contra ataques comerciais de outras regiões. Esta exigência ocorre devido às multinacionais
que possuem tecnologia avançada competirem pelo domínio dos mercados do mundo.
Esta competição é muitas vezes “predatória”, ou seja, destrói a estrutura comercial mais
frágil dos pequenos concorrentes em locais onde se instalam. Por exemplo, se um país
que possui indústria têxtil em desenvolvimento descuidar-se, deixando que produtores da
Ásia entrem em seu mercado sem restrições, estes novos produtores podem colocar
tecidos a preços muito baixos, levando à falência as fábricas têxteis que não têm condições de competir. Em vista disto, a criação do MERCOSUL não foi uma opção, e sim,
uma exigência que as condições do mercado impuseram aos países em geral. Países
como o Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai saíram na frente dos demais países
sul-americanos, unindo-se na defesa de seus interesses em comum. Algumas conseqüências decorrentes da formação do MERCOSUL são:
* proteção às empresas da região contra empresas estrangeiras mais evoluídas
que ainda não se estabeleceram aqui;
* associações de empresas do bloco para troca de informações sobre tecnologia,
visando maior produtividade, redução de custos e aumento da competitividade;
* mercado consumidor maior;
* eliminação de tarifas de importação, com barateamento dos produtos;
* redução da burocracia com maior agilização na realização dos negócios;
* maior oferta de produtos;
* reconhecimento de diplomas para o exercício profissional; e
* necessidade de conhecimento das línguas espanhola e portuguesa.
Diante do exposto acima e com a tecnologia sempre em avanço, as tarefas vão
se tornando indeterminadas pelas possibilidades de usos múltiplos dos próprios sistemas; e a tomada de decisões passa a depender da captação de uma multiplicidade
de informações obtidas através das redes informatizadas. Assim, o administrador
tem que fazer escolhas e opções o tempo todo, devido a imprevisibilidade das situações. Neste novo mercado há a necessidade de um trabalho revalorizado, em que o
administrador, conforme as novas diretrizes curriculares para o curso de graduação
de administração, deverá ter uma formação generalista, polivalente, exercendo funções que mostrem um maior comprometimento com a empresa em que trabalha.
Isto pode ser consolidado a partir da compreensão do conjunto de competências,
habilidades, saberes e conhecimentos que provêm da formação geral (conhecimento
científico), da formação profissional (conhecimento técnico) e da experiência de
trabalho e social (qualificações tácitas), tratando assim, da qualificação real do administrador. A formação do nov profissional compreende não só “como fazer”, mas
o “por que fazer”, em que este, além de dominar diferentes técnicas, equipamentos e
métodos, conhece também a origem destas técnicas, os princípios científicos e técnicos que embasam os processos produtivos. As características fundamentais para o
novo profissional, de acordo com estas diretrizes são: capacidade de raciocínio abstrato, de autogerenciamento, de assimilação de novas informações; compreensão
das bases gerais, científico-técnicas, sociais e econômicas da produção em seu conjunto; a aquisição de habilidades de natureza conceitual e operacional; o domínio
das atividades específicas e conexas; e a flexibilidade intelectual no trato de situações cambiantes.
Em uma pesquisa realizada em 1998 pelo Conselho Federal de Administração
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40
(CFA) em parceria com a ABMES, ANGRAD, ESPM, FAESPA, FESAG, Faculdades
Integradas Sant’Anna, IBMEC, UNIB, UNIP e UDESC foi verificado que tanto o segmento formado por administradores quanto o formado por empregadores enfatizam as
habilidades e as atitudes ao definirem o perfil ideal de um administrador profissional:
* conhecimentos: conhecimento em informática, em idiomas, em planejamento e conhecimento sistêmico da empresa;
* habilidades: saber trabalhar em equipe, capacidade de planejar, capacidade para tomar decisão, capacidade para aprender, capacidade de comunicação verbal e escrita, capacidade de negociação, capacidade de assumir riscos e visão articulada das várias áreas da empresa;
* atitudes: ter espírito empreendedor, motivar a equipe, ser ético, demonstrar
entusiasmo pelo trabalho, comprometimento com a empresa e pré-disposição para
trabalhar muitas horas.
Pode-se observar que há uma convergência entre o conjunto de conhecimentos,
habilidades e atitudes valorizado por eles (entrevistados). Qualquer administrador
possuindo essas características terá seu futuro profissional garantido, porque é isto
que o mercado de trabalho demanda atualmente.
As competências são originadas ao longo da trajetória da vida profissional do
administrador. Para uma maior compreensão destas competências - apresentadas
conforme DELUIZ (apud, ANDRADE, 1997) podem ser: intelectuais, técnicas ou
metódicas, organizacionais, comunicativas, sociais, comportamentais e políticas assim como um maior entendimento das habilidades - que segundo KATZ (apud,
ANDRADE, 1997) podem ser: conceitual, humana e técnica. ANDRADE (1997)
elaborou um quadro que mostra as habilidades em relação ao perfil generalista/
polivalente e especialista do administrador e outro quadro apresentando as competências em relação às habilidades.
No quadro que se refere às habilidades relacionadas ao perfil do administrador,
pode ser observado que as habilidades humanas e conceituais estão direcionadas
para o novo perfil (generalista/polivalente), enquanto que as habilidades técnicas
voltam-se mais para o perfil especialista. No segundo quadro (competências em
relação às habilidades) o autor criou uma legenda que mostra o nível de contribuição
de cada competência para a consolidação das habilidades. As competências intelectuais, comunicativas e políticas apresentam “muita contribuição,” para as habilidades conceituais, “bastante contribuição”, para as humanas e “pouca”, para as técnicas. As competências sociais oferecem “muita contribuição”, para as habilidades
humanas, “bastante”, para as conceituais e “pouca”, para as técnicas. Estes tipos de
competências contribuem mais para as habilidades destinadas ao novo perfil exigido pelo mercado.
REGIS (1997) apresenta os indicativos de uma pesquisa realizada pela Manager
Consultoria em recursos humanos com 840 executivos entre dezembro/1996 e fevereiro/1997, em que podem ser observadas as qualidades (habilidades) que estes executivos acreditam que deveriam ter. As qualidades que tiveram um maior número
de respostas foram: atualização, visão de conjunto, liderança e criatividade. Estas
qualidades estão dentro das principais características exigidas para a formação do
novo perfil profissional, porém, a ética que também deveria possuir um grande número de respondentes, ficou bem abaixo, com um índice apenas de 0,2%, referente a dois
respondentes em valor absoluto. Mesmo assim, estes executivos entrevistados mostram
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que possuem algum conhecimento sobre as novas qualificações requeridas na formação
dos profissionais generalistas.
Outra pesquisa realizada por PAULA (1999) com 1329 entrevistados, na qual
783 são administradores, 246 donos de empresa e 300 professores que lecionam em
cursos de Administração de Empresas, mostra os seguintes resultados:
* Os administradores sabem exatamente o que os empregadores querem. A
maioria respondeu que é necessário que os profissionais sejam criativos e capazes
de trabalhar em grupo.
* Os empregadores dizem que as principais qualidades que esperam encontrar em um profissional graduado em Administração são: comprometimento com a
empresa; ter garra, ambição e vontade de crescer; ter visão geral das atividades da
empresa; saber trabalhar em equipe. Ainda dizem que as principais vantagens
percebidas nos profissionais recém-formados são: possuem diploma de curso superior; são atualizados; conhecem matérias importantes; possuem boa visão da empresa.
* Tanto empregadores, quanto administradores e professores notam as deficiências das escolas de Administração. Grande parte destes entrevistados acreditam
que falta integração entre a prática e a teoria e que há a necessidade de desenvolver convênios para que as empresas ofereçam maiores oportunidades de estágio
para os alunos.
Levando-se em consideração todas as informações apresentadas, pode-se dizer
que o novo profissional tem que estar capacitado tanto em termos de conhecimentos, quanto em termos de habilidades e de competências. No que diz respeito aos
conhecimentos, este profissional deve ter: cultura globalizada, boa formação escolar e conhecimentos de informática. Com relação às habilidades: iniciativa e coragem de correr riscos, criatividade e inovação, foco no negócio, auto-desenvolvimento, capacidade de trabalhar em equipe, persistência e equilíbrio, empatia e gostar de aprender sempre. No que se refere às competências: “saber” (conhecimentos), “saber fazer” e “saber ser”. Estas três características devem estar sempre unidas, uma vez que para o novo perfil profissional é necessário que haja uma integração
entre a teoria e a prática. Assim, o curso de Administração deverá buscar a construção de uma base técnico-científica, servindo como um instrumento que oferece aos
alunos a oportunidade de construir a sua própria formação intelectual e profissional.
Para que o administrador competente possa desenvolver as novas funções, há a
necessidade de competências de longo prazo que podem ser formadas apenas sobre
uma ampla base de educação geral, isto porque o trabalho em equipe substitui o
trabalho individualizado e as tarefas do posto de trabalho são modificadas pelas
funções polivalentes, pois o trabalho está cada vez mais autônomo e complexo.
Percebe-se, então, que o mercado mudou e para que os administradores atinjam este
novo perfil profissional é necessário que as Instituições de Ensino Superior (IES)
adequem as suas metodologias de ensino, adaptando o processo de aprendizagem ao
conceito de educação continuada, da busca constante do conhecimento, com o objetivo de tornar estes administradores aptos a disputar o mercado formal, como também, de prepará-los para cuidar de seus próprios negócios, mostrando capacidades
para absorver, processar e se adequar por si mesmos às necessidades e exigências
requeridas no mundo atual. Todos os profissionais estão diante de um grande desafio, o
da competência, e quem se limitar a cumprir as suas tarefas de forma burocrática estará
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superado em curto prazo, sendo substituído por outro profissional mais capacitado e
criativo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Rui Otávio Bernardes de. A formação de recursos humanos em Administração: indicativos de um novo paradigma na formação profissional e no processo ensino x aprendizagem do administrador. (Tese de Livre Docência). Rio de
Janeiro. UGF. jul. 1997.
______. AMBONI, Nério. Diretrizes curriculares para os cursos de graduação
em Administração. Brasília, fev. 1999.
CRUZ, Tadeu. Sistemas, organização e métodos: estudo integrado das novas
tecnologias de informação. São Paulo: Atlas, 1998.
LIMA, Mandita Corrêa., ANDRADE, Rui Otávio Bernardes de. O perfil, formação
e oportunidades de trabalho do administrador profissional. Revista Brasileira de
Administração. Brasília, ano IX, n. 25, mai. 1999.
MERIJ, Ana Lúcia. SOA prepara profissionais para a empregabilidade. Jornal Administração. Rio de Janeiro, n. 34, jun./ jul. 1999.
PAULA, Sílvio Pires de. Precisa-se de profissional engajado com a empresa. Jornal Administrador Profissional. São Paulo, ano XXII, n. 158, jul. 1999.
REGIS, R. Em busca do equilíbrio. Inovação Empresarial. Jun. 1997.
SIQUEIRA, Wagner. A hora da afirmação. Jornal Administração. Rio de Janeiro, n. 34, jun./jul. 1999.
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SABERES E “SABER-FAZER” – NOVOS CAMINHOS
PARA UMA PRÁTICA REFLEXIVA1
Aiene Rebouças Alves2
RESUMO: O presente texto traz algumas reflexões sobre a repercussão de um projeto de formação em serviço, na prática docente de uma das professoras que participou desse projeto. Inclui a discussão das condições em que realizou a prática pedagógica, com ênfase na formação e nos saberes construídos ao longo desse fazer,
destacadamente os estudos da abordagem sócio-histórica como elemento organizador
do processo ensino-aprendizagem. Define sua inserção no projeto e a possibilidade
de reorganizar os conhecimentos que constituem a ação docente (disciplinar,
curricular, das ciências da educação e da prática), como o elemento de ruptura de um
fazer sem consistência teórica para um fazer reflexivo/prático, propiciador de avanços do nível conceitual dos alunos.
PALAVRAS-CHAVE: Professor; formação; ensino-aprendizagem; saberes.
KNOWLEDGE AND “KNOW HOW TO DO”
NEW WAYS FOR A REFLEXIVE PRACTICE
ABSTRACT: The present text brings some reflexions on the echoing sound of an
education project of enabling in service, one of the teachers who participated of this
project. It includes a discussion of the conditions in which the pedagogical practice
was performed, enphasizing the formation and knowledge throughout this doing,
remarkablely the studies of socio-historical approaches as elements of organization
of the teaching learning activity. It defines its isertion in te project and the possibility
of reorganizing knowledge that constitute the teaching activity to discipline, to offer
a good curriculum, to teach science of education and its practice, as the element of
rupture of a doing without atheoretical consistency to a reflexive/practical doing,
propiciatory of progress in the concept level of the students.
KEY–WORDS : teacher; formation; teaching learning activity; knowledge.
1
Texto que integra as discussões apresentadas na nossa dissertação de Mestrado – VIDAS EM CONFRONTO:
processo de formação e trajetória profissional.
2
Mestre em Educação pela UFRN. Coordenadora do curso de Pedagogia da FACEX. Professora das disciplinas Fundamentos Sócio-Econômicos da Educação e Sociologia da Educação no PROBÁSICA/UFRN/SEDCRN. Rua Itapagipe, 2865, Neópolis. CEP 59.088-020 –Natal,RN.Tel.: (0xx84)217-4526.
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“Os saberes pedagógicos podem colaborar com a prática. Sobretudo se forem
mobilizados com base nos problemas que a prática coloca... (...) É no confronto e
na reflexão sobre as práticas e os saberes pedagógicos, e com base neles, que os
professores criam novas práticas”.
Selma Garrido Pimenta.
O rápido ritmo das transformações sociais, econômicas, políticas e culturais
das sociedades contemporâneas traduz-se, no espaço escolar, pela complexidade
crescente das funções atribuídas ao professor.
Nessa realidade, o professor é colocado como agente responsável em criar
condições para que seus alunos sejam capazes de utilizar os saberes para produzirem e transformarem o meio, participando no seio da comunidade da vida coletiva,
como cidadãos conscientes.
Tal desafio exige da comunidade escolar, e em especial do professor, a construção/reconstrução do seu fazer, numa atitude reflexiva, na auto-avaliação de suas
ações no cotidiano da sala de aula. Essa reflexão deve ter como pressuposto a articulação teoria/prática, considerando o contexto no qual o ensino -aprendizagem acontece.
Nessa abordagem, a prática docente enquanto prática social é constituída por
um conjunto de saberes que dão ao docente uma direção ao seu trabalho. Esses
saberes são construídos nas inter-relações que o professor estabelece com seu grupo
social, seus alunos e o referencial teórico-metodológico que dá suporte as suas
ações.
Assim, se o professor busca desenvolver uma prática voltada para a socialização do saber elaborado, ele agirá na direção da ruptura com os padrões sociais dominantes e sua ação estará sedimentada no diálogo, que para Hoffmann (1995) é o
núcleo de atos cognoscentes desveladores da realidade.
Ao agir nessa direção, o docente, em conjunto com os demais segmentos da
instituição, vai dar vida a escola, para que esta se transforme num centro cultural
aberto, no qual saberes espontâneos e saberes científicos se articulam, favorecendo
a compreensão da realidade para além das aparências.
A construção de uma prática dirigida conscientemente para favorecer a ruptura
com o senso comum, pressupõe o domínio de um conjunto de saberes que abrangem
os conhecimentos adquiridos na formação inicial, os que se referem às disciplinas
ensinadas, os relativos à organização do currículo, e principalmente, aqueles que
são construídos à luz das reflexões teóricas da prática, num processo contínuo de
formação.
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45
1 DANDO SENTIDO À PRÁTICA
Na minha experiência como professora primária, desde ministrar aulas particulares para alunos que estavam se alfabetizando; trabalhar como monitora do
MOBRAL; ensinar em classes multisseriadas, como professora leiga e, posteriormente, integrando o corpo docente do sistema público de ensino, como professora
qualificada destaco a inserção no Projeto “Uma Escola para a Escola”3 , como o
‘divisor’ entre uma prática autoritária e a construção de um fazer reflexivo, que me
permitiu auto-avaliar e reelaborar conscientemente a ação pedagógica.
Tais reflexões, inicialmente, eram mediadas pelos sujeitos educativos envolvidos no projeto: equipe de assessoramento (UFRN) e equipe técnico-pedagógica,
docentes e discentes. Posteriormente, constituíram-se atividade individual, na qual
estabelecia relações entre meus conhecimentos prévios, os referenciais teóricometodológicos, os saberes dos alunos para reorganizar o planejamento e a execução
das situações de aprendizagem.
A efetivação sistemática dessa auto-avaliação permitiu-me a construção/
desconstrução/ reconstrução de muitos saberes e saber-fazer, que se revelaram em
algumas atitudes didático-pedagógicas ao gerir a sala de aula.
Ao me referir a muitos saberes, estou situando o saber docente como um saber
plural. Neste aspecto, concordo com os autores que discutem a problemática do
saber docente (Tardif et al., 1991). Para esses autores, o ensino mobiliza vários
saberes, os quais são utilizados pelo professor de acordo com as exigências específicas de cada situação vivenciada.
Foi buscando atender às necessidades e exigências do cotidiano da sala de aula
numa articulação teoria/prática, que construi novas ações, as quais passaram a
integrar a prática pedagógica de forma consciente e intencional.
Inicialmente, destaco a atitude de estimular a fala dos alunos, levando-os a
expressar suas idéias e enunciar opiniões. Ao considerar todas as falas importantes,
passo a vivenciar o diálogo, colocando-o como elemento fundamental no processo
de construção dos conhecimentos. Os conhecimentos vivenciais dos alunos que, em
épocas anteriores, eram por mim negados, constituíram-se e se constituem ponto de
partida para promover rupturas na direção do saber sistematizado.
A postura dialógica do professor é abordada por Kramer (1995, p. 94)
como a mudança de um discurso autoritário para um discurso polêmico. Sugere que o professor deixe vago, dentro de sua fala, o espaço para que os
alunos possam ultrapassar a posição de simples ouvintes e, assim, o professor
possa conhecer as diferentes realidades culturais e sociais, que poderiam ser
utilizadas em situações de ensino.
Para Snyders (1988, p. 118-119)
3
Projeto realizado em parceria com Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Básica (NEPEB) do Departamento de Educação (DEPED)/UFRN e Escola Estadual “Berilo Wanderley”.
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Cabe ao professor assegurar muito freqüentemente aos alunos uma imagem valorizada de si mesmos: persuadi-los que eles têm coisas a dizer,
coisas, a fazer de que valem a pena (...) É testemunhando-lhes uma confiança naquilo que já são que o professor os ajudará a progredir em relação a satisfação cultural escolar: ousarão enfrentar o difícil; sem se recusarem a si próprios, seus valores, mas elaborá-los, explicitá-los, elucidálos para realizar saltos de ultrapassagem.
Holly (1995, p. 99) também chama a atenção para essa questão ao afirmar que
os professores passam a valorizar a voz dos alunos, bem como as interações e
relações que influenciam a aprendizagem, quando lançam um “olhar retrospectivo” sobre sua história de vida e encontram a origem de sua filosofia de ensino.
A interlocução com esses autores corrobora minha posição ao colocar a atitude
dialógica como elemento definidor de uma nova prática, pois esta atitude rompe
com as relações autoritárias que perpassam o ensino-aprendizagem, no âmbito das
práticas educativas.
Outra ruptura em relação ao meu fazer foi externada na consideração às individualidades dos alunos, uma vez que isso implica em respeitar o ritmo próprio de
aprender de cada criança, pois, dependendo de suas condições objetivas, ela precisará de uma maior ou menor ajuda do professor para vencer os desafios.
Essa atitude pedagógica me conduziu a fazer observações sobre o que as
crianças não resolviam sozinhas e, a partir dessas observações, elaborava tarefas
que possibilitassem o trabalho cooperativo, tanto com os colegas, quanto com a
minha intervenção.
A preocupação em auxiliar as crianças, valorizando as soluções que conseguiam com a minha ajuda ou de um colega mais experiente, está respaldada na abordagem vygotskyana de zona de desenvolvimento proximal. Para Vygotsky esse conceito é de fundamental importância para destacar as dimensões do aprendizado
escolar no processo de desenvolvimento da criança.
Segundo esse autor, o desenvolvimento mental da criança revela dois níveis: o
desenvolvimento real, o qual refere-se a funções mentais que já amadureceram e
estão expressas na capacidade de resolver problemas de forma independente; e o
potencial que está relacionado à capacidade de resolver problemas com a ajuda de
alguém mais experiente. A distância entre esses dois níveis é denominada zona de
desenvolvimento proximal. Esta define as capacidades que estão em processo de
maturação, portanto, caracteriza o desenvolvimento prospectivo das funções mentais.
Essa abordagem traz uma contribuição importante ao papel do professor como
mediador da aprendizagem, pois ao orientá-lo a valorizar as respostas da criança
fornecendo-lhe as pistas na solução do problema, orienta-o na organização das situações de aprendizagem para que sejam possibilitadoras desses avanços.
Ao tomar essa posição na orientação da aprendizagem dos alunos, uma outra
atitude se manifesta: a compreensão de seus ‘erros’ como tentativas de reelaboração
dos novos conhecimentos. A implicação dessa posição na prática docente está na
possibilidade de elaborar tarefas que permitam aos alunos estabelecer o maior núCarpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
47
mero possível de relações, entre o que eles já sabem e o novo conhecimento.
A partir dessa compreensão, procurei investigar os interesses dos alunos e
busquei organizar com ajuda das equipes (UFRN, técnica e docente da escola) situações de aprendizagem que os motivassem a aprender.
Nessa perspectiva, os exercícios mecânicos e repetitivos cederam lugar a tarefas que estimulavam a criatividade e a realização das capacidades mentais que
estão em processo de desenvolvimento.
Uma outra atitude construída diz respeito a organização dos conteúdos escolares. Na tarefa, a preocupação centrava-se na significação desses conteúdos, tanto
em relação a continuidade dos mesmos com as experiências dos alunos, quanto no
que se referia a possibilidade de ruptura na direção do conhecimento sistematizado.
O conjunto de mudanças aqui expressas se manifestavam e se definiam nas
interações que se processavam no grupo de trabalho (equipe-UFRN, técnico-pedagógica, docente e discente) e na dinâmica da sala de aula. Logo, resultaram da construção/ desconstrução/reconstrução de saberes acerca do processo ensino-aprendizagem, os quais movimentam saberes do campo da psicologia, sociologia, filosofia,
da didática, dos conhecimentos historicamente produzidos e dos seus processos de
construção e da própria experiência docente.
Esse processo construtivo constituiu-se tarefa árdua e tonificante, à medida
que conseguia me localizar e aos meus alunos em contextos sociais, históricos e
políticos mais amplos.
Quanto mais aprendia a observar e a refletir sobre os pontos de tensão e resistência no processo ensino-aprendizagem, mais encontrava alternativas para as ações
pedagógicas, dando sentido à prática.
Dessa forma, o reconhecimento do caráter unitário da prática docente levoume a assumir o lugar de observadora cuidadosa, criadora de oportunidades que
conduzissem os alunos para além dos conhecimentos espontâneos.
Importa realçar que essas mudanças do fazer pedagógico resultaram de um
processo de construção coletiva, cuja reelaboração individual atravessou um largo
espectro desde o aborrecimento, a frustração, o conflito de valores e convicções, à
simpatia e finalmente à aceitação e a adesão.
2 DA ROTINA À REFLEXÃO
Os esforços empreendidos na reconstrução da minha trajetória como professora, permitiram-me situá-la no contexto mais amplo da formação docente no Brasil.
Na intercessão da história particular com a história da sociedade, foram definindose contornos do fazer docente, os quais estão marcados por sucessivos e permanentes obstáculos a serem vencidos.
Sob esse aspecto, evidenciaram-se tantos os aspectos do desenvolvimento profissional e de percursos de formação, quanto etapas significativas, nas quais estavam presentes diferentes atitudes e empenho na prática docente, bem como diferentes percepções sobre essa prática e o processo educativo em geral.
Assim, foi possível demarcar o avanço qualitativo do meu fazer docente, a
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
48
partir das aprendizagens construídas ao participar de um processo de formação continuada que me possibilitou elaborar/reelaborar saberes, a partir da reflexão/ação da prática
pedagógica. Este, para mim, foi o elemento de ruptura entre uma prática marcada predominantemente pela transmissão/assimilação, para uma prática centrada na construção do
conhecimento.
Importa realçar que os saberes apreendidos e organizados na experiência
vivenciada, em particular no processo de formação, não se sobrepuseram aos que eu
já havia internalizado, todavia possibilitaram a reelaboração do conjunto de conhecimentos que constituíam o meu saber docente.
Dessa forma, foi possível identificar nas relações estabelecidas no âmbito da
formação em serviço um novo referencial que passou a orientar a organização da
prática docente, na perspectiva de elevar o nível de conhecimento dos alunos.
Dentre os saberes reelaborados estão os que dizem respeito ao processo de
construção de conhecimento da criança e as relações que estabelecem nesse processo, destacadamente a abordagem sócio-histórica; aos conteúdos escolares e a sua
organização; ao desenvolvimento desses conteúdos e a reflexão da prática docente
como elemento possibilitador da construção de novos conhecimentos, confirmando,
portanto, ao que Tardif et al., (1991) denominam de saber plural.
Para esses autores o saber docente é formado pelo amálgama, mais ou menos
coerente, de saberes oriundos da formação profissional, dos saberes das disciplinas, dos currículos e da experiência (Tardif et al.,1991, p. 218) e que todos esses
saberes implicam um processo de aprendizagem e de formação, no qual os professores atualizam suas concepções, convicções e suas ações.
No momento em que consegui estabelecer uma relação reflexiva com tais saberes, reelaborei o saber da experiência com a possibilidade de mediar o processo de
construção de conhecimento das crianças na perspectiva da formação conceitual.
Concomitante à construção dessa prática, ampliou-se a compreensão das práticas anteriores, sendo possível identificar três fases no meu percurso como docente e os modelos de professor a elas correspondentes.
Essa divisão está baseada nos aspectos organizacionais da prática e nos
referenciais teóricos-metodológicos que as sustentavam, os quais estavam expressos nas concepções e convicções que eu tinha sobre o ensino-aprendizagem, a construção do conhecimento, o papel da escola, do professor e das relações entre os
alunos e o professor.
Para estabelecer esse paralelo recorri aos estudos de alguns autores, dentre estes destacam-se as postulações de González e Escartín (1996) sobre a evolução das
concepções dos professores acerca do ensino e sua relação com as idéias que estão
sendo produzidas e veiculadas no contexto social e educacional, considerando os
anos oitenta como o marco do desenvolvimento de propostas educacionais que passam a conviver com as práticas realizadas pelos docentes, possibilitando a identificação de quatro tipos de professor: transmissor, artesão, tecnológico, descobridor.
Estes tipos são construídos na relação que os docentes estabelecem com as novas
idéias, incorporando-as a um determinado saber que caracteriza sua prática, fazendo com que esta evolua.
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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O tipo transmissor caracteriza-se pela postura autoritária, transmitindo conhecimentos numa perspectiva tradicional de ensino. Os alunos são vistos como pessoas que
nada sabem e que precisam memorizar aqueles conhecimentos que o professor transmite.
O tecnológico é aquele tipo para quem a base do ensino eficaz está no planejamento
e no controle das variáveis que podem afetar a aula, tendo o componente tecnológico
como fomentador do trabalho pedagógico.
O autodidata em questões pedagógicas ou artesão é aquele que elabora sua
prática em sala de aula e desenvolve suas ações sem ter em conta outros campos do
conhecimento.
O tipo descobridor segue a corrente de pensamento de que os alunos organizam
e reorganizam seus conhecimentos através de hipóteses, deduções, planificações,
sustentando-se na concepção de que esses processos cognitivos são condutores da
capacidade de cada aluno reelaborar os conhecimentos de cada disciplina.
Além desses tipos, os autores apontam ainda que em tempos mais recente
surgiu um outro, denominado por eles de professor construtor. Este, referenda sua
prática numa abordagem psicológica que se preocupa com o desenvolvimento do
pensamento do aluno e como se dá seu aprendizado.
Essa caracterização e conceitualização de tipo de professor apresentada pelos
autores remete-nos à compreensão da prática pedagógica como prática social, que
se realiza e se define na interação com outros sujeitos, seus valores, seus saberes e
convicções marcadas por concepções pessoais sobre o ensino-aprendizagem, o homem, o conhecimento como indicadores da prática, mesmo que nem sempre haja
consciência por parte de quem a realiza.
A esse respeito Gonsález e Escartín (1996, p. 331) colocam
Han ido emergido diferentes tipos de profesor para adaptar-se a las variaciones
del entorno educativo. Estas variaciones están asociadas a la asimilación de
ciertas ideas referidas a la educación por parte del estamento docente. Uma
vez aceptada una nueva idea, el profesorado se adapta a la nueva situación.
incorpora la nueva concepción a su práctica profesional y evoluciona.
A posição dos referidos autores ajudam-me a situar minha prática pedagógica
e as suas nuances, entendendo-a como processo de construção contínuo, no qual as
interações sociais têm papel importante na sua reelaboração individual. Assim, os
confrontos das orientações teóricas, divergências e convergências acerca das posturas pedagógicas que foram assumidas na minha prática docente, se evidenciam no
âmbito de cada sala de aula assumida e desvelam a força de certas idéias aceitas no
contexto educacional.
O quadro a seguir demonstra a evolução do meu fazer pedagógico, considerando a construção de um conjunto de saberes que estavam referendando esse fazer, de
acordo com o contexto em que a prática ia se desenvolvendo.
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
50
QUADRO 1 - Ação docente e perfil da professora.
FASES DA
CARREIRA
DOCENTE
ORGANIZAÇÃO DO FAZER PEDAGÓGICO
PERFIL DO
PROFESSOR
Sem formação
mínima
Baseado em modelos de antigos professores; repetiam-se tarefas dos livros; primava-se pelos exercícios mecânicos; exigia- • Transmissor;
se silêncio total dos alunos que deveriam se ocupar em respon- • Artesão;
der as tarefas; as aulas consistiam em exposições orais e escri- • Descobridor.
tas e os alunos teriam que repetir essas lições para não fracassarem.
Com formação em nível
de 2º Grau
Permanece o modelo dos professores com quem aprendi; destaca-se aqui a preocupação com o uso de materiais didáticos,
com o plano de aula, com os objetivos que queria alcançar;
permanece o predomínio do discurso docente sobre o silêncio
dos alunos; surge um sinal de valorização da leitura dos alunos
e a utilização da literatura na alfabetização dos alunos; há uma
insatisfação com o modelo transmissor e busca-se melhorar a
prática.
Com formação
em nível de 3º
grau e inserida
num projeto de
formação continuada.
Organização do trabalho docente com planejamento coletivo;
valorização dos conhecimentos prévios dos alunos; organização dos conteúdos com seqüência e gradação; situações de
aprendizagens diversas; dificuldades na realização das aulas e
sistematização dos conhecimentos; início da consideração dos
níveis diferenciados de aprendizagens; esforço na busca do diálogo com momentos de autoritarismo; consciência do
referencial que orienta a prática.
Transmissor
Tecnológico
com predomínio do descobridor
Transmissor
Tecnológico
Descobridor com
predomínio do
construtor.
A classificação apresentada mostra a incapacidade dos modelos de professora que
apresentei em cada fase da docência de conter a realidade, à medida que esta é complexa, dinâmica e fluída, tanto que em nenhum dos momentos foi possível enquadrar-me num
perfil “puro”.
De forma inconsciente ou consciente esses modelos são incorporados pelo
professor e este ao assimilar as novas idéias se adapta a elas, incorporando alguns
princípios que silenciam o modelo anterior e evidenciam mudanças na sua prática.
Tomar consciência das “lentes” que usamos para analisar o nosso próprio fazer, é
definido nesse trabalho como um caminho para nos apropriarmos dos saberes de que
somos portadores, trabalhando-os sob o ponto de vista teórico e conceptual.
Sob esse enfoque, proponho que a prática pedagógica seja transformada criativamente, através da reflexão/ação dos professores impulsionados pelo desejo de
não permitir a acomodação.
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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54
PLANEJAMENTO DE ENSINO: RECONSTRUINDO
SUA TRAJETÓRIA1
Olímpia Cabral Neta2
RESUMO: Este artigo aborda o tema planejamento de ensino situando-o no contexto das tendências pedagógicas. Sistematiza elementos para uma compreensão da
origem e evolução do planejamento, resgata a sua trajetória no Brasil, destacando as
fases do princípio prático, instrumental e participativo. Evidencia que as duas primeiras fases do planejamento de ensino estão respectivamente relacionadas com as
tendências pedagógicas tradicional e tecnicista e a terceira fase com a pedagogia
crítico-social. Assinala que atualmente o planejamento participativo se apresenta
como a forma mais adequada para organizar o trabalho pedagógico do professor.
PALAVRAS-CHAVE: planejamento de ensino; tendências pedagógicas; organização do ensino.
PLANNING OF INSTRUCTION: RECONSTRUCTING ITS
TRAJECTORY
ABSTRACT: This article is about the theme “planning of instruction”, placing it in
the context of pedagogical tendencies. It systematizes elements to an understanding
of the origin and evolution of planning; it focus on its trajectory in Brazil, and detaches phases of planning of instruction. It makes evident that the two phases of the
planning of instruction are respectivelly related to the tecnicist and traditional pedagogical tendencies and the third phase is related to the social-critical pedagogy. This
article also marks that nowadays planning with participation has shown itself as a
more apropriate way to organize the pedagogical work of the teacher.
KEY-WORDS: Planning of instruction; pedagogical tendencies; organization of
instruction.
1 Este artigo foi elaborado tomando como referência uma discussão mais ampla desenvolvida na Dissertação
de Mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN).
2 Mestre em Educação pela UFRN. Professora de Didática da Faculdade de Ciências, Cultura e Extensão do
RN (FACEX). Rua Eng. Nelson Bahia, nº 1854, Cidade Jardim, Natal, RN. E-mail: [email protected].
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1 UMA INTRODUÇÃO SOBRE O PLANEJAMENTO
Os estudos históricos sobre o tema planejamento sugerem que o ato de fazer
planos ou planejar faz parte do cotidiano do homem desde que ele se descobriu com
capacidade de pensar antes de agir.
Segundo Carvalho (l976), o conhecimento sistematizado sobre as mais remotas civilizações permite concluir que planos, programas, projetos e, principalmente
o processo de planejamento sempre foram adotados, mas, sob formas distintas das
atuais.
Reportando-se aos registros históricos pode-se destacar, como exemplo dos
primórdios de planejamento, a construção das pirâmides do Egito que, segundo os
historiadores, certamente, não se realizou sem planos e projetos. Exigiu dos administradores e dos dirigentes de então, decisões complexas de médio e longo prazos
para a administração dos recursos e para as suas edificações.
Os planos e projetos marcaram presença também nos arquedutos romanos, na
irrigação agrícola da Mesopotâmia Antiga, nas obras civis das cidades gregas e romanas, nas embarcações, ou seja, na vida das distintas civilizações antigas.
Como proposta nítida de planos de ação e da presença do processo de planejamento, Carvalho (1976) destaca o plano de comercialização entre os povos do
Oriente e do Ocidente realizado pelos fenícios no século XX a.C. Pode ser citada
ainda como evidência do planejamento, a proposta de reforma agrária para a sociedade romana formulada pelos irmãos Graco no século I a.C .
Na era moderna, pode-se lembrar como evidência do uso do planejamento, os
programas de desenvolvimento econômico-administrativo regional. Como exemplo
podemos citar a rota comercial do Báltico, financiada pelos banqueiros internacionais, por volta do século XVI. Esse programa de desenvolvimento contemplava
objetivos, diretrizes e instrumentos de ação para a realização de feiras comerciais,
eventos que se repetiam desde o século XIII, e dispunha sobre a organização da
infra-estrutura das cidades para suportar o movimento das feiras, definindo épocas
mais propícias para tais eventos em função de estudos do clima, das características
sócio-culturais das populações e da determinação dos melhores produtos a serem
comercializados face aos estudos de mercado internacional (Carvalho, 1976).
Cabe ressaltar, todavia, que foi com o desenvolvimento comercial e industrial, ocorrido com o capitalismo, que a preocupação de planejar foi incorporada à área
econômica. À medida que os negócios dos comerciantes dos tempos iniciais do
capitalismo foram se expandindo, a administração das fortunas começou a exigir
formas novas de conduta. Os tempos do poder feudal, das pilhagens e dos tesouros
guardados cediam seu lugar à concorrência entre comerciantes. Para esse novo mundo que surgia com a expansão do capitalismo, o poder começava a se medir pela
capacidade de expansão das atividades comerciais. Diante dessa realidade era preciso saber prever, antecipar situações, arriscar fundos. Era um certo tipo de planejamento que passava a ser uma exigência inerente à atividade econômica (Ferreira,
1981).
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
56
É evidente que não proliferaram desde os tempos remotos os planos de desenvolvimento econômico e social, como hoje existem, orientados para o desempenho da sociedade em seu conjunto. Esses planos são mais recentes. Porém, como foi assinalado,
planos e projetos ocasionais sempre existiram, com maior ou menor abrangência de conteúdo.
Os exemplos de experiências de planejamento são inúmeros e marcantes, crescendo no decorrer do próprio desenvolvimento histórico, alcançando hoje em alguns países, o máximo de sofisticação técnico-científica.
No dizer de Ferreira,
“ com a industrialização, a maquinaria entra para dar maior produtividade a
mão de obra, que produzia as mercadorias cuja venda permitia aumentar o
capital. Nesse momento passa a ser necessário prever bem a entrada de matérias primas, o ritmo das máquinas, as funções dos operários. Hoje em dia,
com a organização racional do trabalho, se prevê as funções dos operários e
os movimentos das máquinas para que as mesmas não façam movimentos desnecessários”. (Ferreira, 1981, p.28).
O autor argumenta que com o desenvolvimento do capitalismo, as empresas
ganharam uma dimensão tal, representando tanto capital aplicado e tanta gente trabalhando nelas, que improvisar passa a ser sinônimo de suicídio e de inconsciência
dos riscos sociais que se pode criar para a sobrevivência do capitalismo.
Nessa mesma linha de raciocínio, Carvalho (l976), assinala que após a Segunda Guerra Mundial (l939 a l945) o planejamento tem sido considerado como um
procedimento lógico capaz de auxiliar efetivamente os esforços de desenvolvimento econômico e social. Na década subsequente a esse conflito internacional, inúmeros governos de Estados, em particular dos países considerados subdesenvolvidos,
vislumbraram no plano a possibilidade do milagre desenvolvimentista e, a partir
daí, bastou apenas um passo para que o planejamento se tornasse um mito, uma
palavra mágica.
No campo educacional, os registros históricos sugerem que o planejamento
de ensino, guardadas as particularidades próprias de cada época, esteve sempre
presente no ato de pensar a educação.
O planejamento é um instrumento que vem sendo utilizado no decorrer do
desenvolvimento da sociedade para pensar e organizar o ensino. De início, ele
não era usado como uma técnica sistemática, porém tinha uma intencionalidade:
transmitir os costumes, os valores e os ensinamentos de geração a geração. Posteriormente, com o desenvolvimento da ciência e da técnica, o planejamento de ensino assume características científicas, objetivando sistematizar racionalmente o
fazer pedagógico no interior da escola. Assim, o planejamento de ensino guardadas as particularidades próprias de cada época, tem se tornado para os educadores um instrumento de trabalho.
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
57
2 UM RESGATE DA ORIGEM E DA EVOLUÇÃO DO PLANEJAMENTO
DE ENSINO
Nas comunidades primitivas, mesmo não havendo educação formal sistemática e a educação das crianças não estando confiada a ninguém em especial, cabia
aos adultos introduzi-las nas crenças e nas práticas do seu grupo social. Apesar de
não haver uma instituição destinada a educação formal das crianças e jovens, existia
uma intencionalidade, uma vez que eles eram colocados em um ambiente propício
para a partir da convivência com o meio, desenvolver o seu aprendizado (Ponce,
1981).
Desde os primórdios, existem indícios de formas elementares de instrução e
aprendizagem. As experiências das comunidades primitivas, nas quais os jovens
passavam por um ritual de iniciação para ingressar nas atividades do mundo adulto
se constitui um claro exemplo. Essa forma de ação pedagógica pode ser considerada como uma forma estruturada de ensino, embora não esteja presente o aspecto
didático (Libâneo,1994).
Para Libâneo (1994, p.57) na antigüidade clássica e no período medieval também se desenvolveram formas de ação pedagógica em escolas, mosteiros, igrejas,
universidades. Entretanto, assinala que “até meados do século XVII não podemos
falar em didática como teoria do ensino, que sistematize o pensamento didático e o
estudo científico das formas de ensinar”.
O século XVII, mais precisamente o ano de 1627, é palco de uma obra de
grande importância para a história da educação. Estamos nos referindo à Didática
Magna escrita por Coménio, onde vamos encontrar indicativos do planejamento de
ensino.
Gomes (1957, p.33) assinala que a Didática Magna é:
“sem dúvida o primeiro tratado sistemático de pedagogia, de didática e até
de sociologia escolar. Como que compendiando todo o ideário pedagógico de
Coménio, foi sobretudo ela que lhe mereceu ser considerado o ‘Bacon da
pedagogia’ e o ‘Galileu da educação’. É seu objectivo mostrar como é possível ‘ensinar tudo a todos’.
É o próprio Coménio (1957, p.71) que afirma:
“Se, portanto, queremos Igrejas e Estados bem ordenados e florescentes e
boas administrações, primeiro que tudo ordenemos as escolas e façamo-las
florescer, a fim de que sejam verdadeiras e vivas oficinas de homens e viveiros
eclesiásticos, políticos e econômicos. Assim facilmente atingiremos o nosso
objectivo; doutro modo, nunca o atingiremos”.
O estudo da obra de Coménio permite assinalar que os rudimentos do planejamento de ensino têm suas raízes na história da didática. Esta por sua vez está
umbilicalmente relacionada com o surgimento do ensino como uma ação intencionalmente organizada dedicada a instrução.
Segundo Libâneo (1994, p.58),
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58
“O termo Didática aparece quando os adultos começam a intervir na
atividade de aprendizagem das crianças e jovens através da direção deliberada e planejada do ensino (....). Estabelecendo-se uma intenção propriamente pedagógica na atividade do ensino, a escola se torna uma instituição, o processo de ensino passa a ser sistematizado conforme níveis,
tendo em vista a adequação às possibilidades das crianças, às idades e
ritmos de assimilação dos estudos”.
A preocupação com o didático começa a configurar-se a partir do século XVII.
Nesse período surge, entre outras, a obra de Coménio. Nela o autor defende o ponto
de vista segundo o qual é necessário organizar o ensino. O próprio nome é
esclarecedor: Didática Magna: tratado da arte universal de ensinar tudo a todos.
Gasparin (1994), ao estudar a Didática Magna, informa que Coménio entrou
em contato, no ano de 1627, com a Didáctica de Elias Bodin, publicada em Hamburgo no ano de 1621. Salienta o autor que Coménio ficou entusiasmado com aquela
obra, a respeito da qual afirmou: “Sua leitura me estimulou e pensei em realizar
uma obra igual em nossa língua e, a tempo oportuno, torná-la conhecida” (Coménio,
apud Gasparin, 1994, p.43).
Segundo Gasparin (1994), o próprio Coménio reconhece, no prefácio da Didática Magna, que não apenas a Didática de Elias Bodin o impulsionou a escrever
uma importante obra sobre a arte de ensinar. A deliberação sobre o método renovado de estudos do Ratke, a aproximação com as teorias científicas e filosóficas de
Bacon, Galileu, Vives, Campanella e muitos outros, contribuíram para o amadurecimento de sua concepção de didática.
A Didática Magna no dizer de Gasparin (1994, p.55 ) traz implícita a idéia de
que Coménio “não quer apenas uma arte de ensinar, mas antes, uma grande e
poderosa arte, uma arte de elevada qualidade e ao mesmo tempo universal, repetida muitas vezes, em toda a parte. Isso é o que expressa o termo magna que qualifica
e delimita a sua didática”.
Para Gasparin (1994), Coménio serviu-se do termo magna exatamente porque
não queria tão só designar algo de grandes proporções, mas uma arte de ensinar que,
além de uma ampla abrangência, traduzisse a idéia de força e do poder que ela teria
sobre os homens quando fosse implantada em todas as escolas de todos os reinos.
A leitura da Didática Magna reforça o nosso entendimento de que nela se
encontra as primeiras idéias mais sistematizadas sobre a necessidade de se organizar
o ensino. Nela, Coménio esclarece que o fundamento da reforma das escolas é a
ordem exata em tudo. Reforçando seu ponto de vista, o autor assim escreve:
“Se procurarmos que é que conserva no seu ser o universo, juntamente com
todas as coisas particulares, verificamos que não é senão a ordem, a qual é a
disposição das coisas anteriores e posteriores, maiores e menores, semelhantes e dissemelhantes, consoante o lugar, o tempo, o número, as dimensões e o
peso devido o conveniente a cada uma delas. Por isso, alguém disse com elegância e verdade que a ordem é a alma das coisas. Com efeito, tudo aquilo
que é ordenado, durante todo o tempo em que conserva a ordem, conserva o
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
59
seu estado e a sua integridade; se se afasta da ordem, debilita-se, vacila,
cambaleia e cai ” ( Coménio 1957, p.181).
No capítulo 13 da Didática Magna, Coménio é enfático quando utiliza argumentos para fundamentar a sua didática, o seu método e a reforma das escolas. Ele
apresenta argumentos de duas ordens. Num primeiro momento apoia-se na natureza
e posteriormente na criação do homem como modelo da arte de ensinar.
Para ilustrar o seu ponto de vista, o autor recorre a vários exemplos da
natureza e da arte, que, segundo a sua interpretação, são a ordem exata e a alma das
coisas. Dentre os vários exemplos apresentados por Coménio, selecionamos o que
ele compara o funcionamento da escola ao de um relógio, porque na nossa compreensão é o que melhor ilustra a necessidade da organização do ensino. Para desenvolver o seu raciocínio, Coménio indaga: qual é a força oculta que anima o relógio?
Responde ele:
“Nenhuma outra senão a força da ordem que manifestamente reina
em todas as suas partes, ou seja, a força proveniente da disposição de
todas as suas peças, que concorrem com o seu número, as suas dimensões e a sua ordem para tornar aquela disposição tal que cada peça
tem um papel determinado e meios para desempenhar, ou seja, a proporção exata de cada peça com as outras, a harmonia de cada uma com
as que lhe estão em relação e leis mútuas para comunicar reciprocamente a força uma as outras (...). Todavia se qualquer peça se estilhaça,
ou se parte, ou anda mal, ou começa a estar bamba, ou se torce, ainda
que seja a rodinha mais pequena, o eixo mais pequeno, o parafuso mais
pequeno, imediatamente todo o relógio para ou anda mal. Deste modo
se torna evidente que tudo depende apenas da ordem” (Coménio, 1957,
p. 185-186).
Gasparim (1994), interpretando o pensamento comeniano, expresso na citação
anterior, assinala que o mesmo, embora pareça estranho, na realidade não o é, pois
que o homem já havia produzido ou estava construindo esse modelo de organização
social como produto de sua ação sobre a matéria, atendendo às suas novas necessidades históricas. Escreve, ainda, o autor (1994, p.82:
“Além de expressão da organização social do trabalho, o relógio tornase modelo para a organização escolar, na qual tudo deve ser regulado
da mesma forma pela exata repartição do tempo em meses, dias, horas,
destinadas ao ensino; por uma habilidosa divisão de conteúdo a ser
ensinado, e por um método que atenda as necessidades do conteúdo e
dos alunos”..
Como vimos, Coménio sugere na Didática Magna que a escola se organize,
tomando como referência o exemplo do funcionamento do relógio. Em nossa comCarpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
60
preensão, a defesa do autor não se direciona na perspectiva de que a escola se estruture
como uma máquina, mas que ela necessita de um grau de organização que permita
um adequado funcionamento. Isso fica evidente na seguinte passagem da Didática
Magna.
“A arte de ensinar nada mais exige, portanto, que uma habilidosa repartição do tempo, das matérias e do método. Se conseguirmos estabelecer com exatidão, não será mais difícil ensinar tudo a juventude escolar, por mais numerosa que ela seja (...) E tudo andará com não menor
prontidão que um relógio posto em movimento regular pelos seus pesos.
(...) Procuremos, portanto em nome do altíssimo, dar às escolas uma
organização tal que corresponda, em todos os pontos, à de um relógio,
construído segundo as regras da arte e elegantemente ornado de
cinzeladuras variadas” (Coménio, 1957, p.186).
Coménio (1957, p.190) em seus argumentos explicita “ ...é evidente que a
ordem que desejamos seja a regra universal perfeita na arte de tudo ensinar e de
tudo aprender, não deve ser procurada e não pode ser encontrada senão na escola
da natureza”.
Para materializar a sua tese - o método universal para ensinar tudo a todos Coménio (1957) propõe dividir as instituições escolares em quatro graus, levando
em consideração a idade e o aproveitamento. O regaço materno, escola destinada a
infância; a escola primária ou pública de língua vernácula, para a idade da puerícia;
a escola de latim ou o ginásio, dirigida para a adolescência e a academia e as viagens, direcionadas para a juventude.
Nessa proposta de organização do ensino apresentada por Coménio (1957),
encontramos a origem da idéia de graduação dos conteúdos a serem transmitidos
pela escola. Ele escreve: “embora estas escolas sejam diversas, não queremos, todavia, que nelas se aprendam coisas diversas, mas as mesmas coisas de maneira
diversa, (...) mas segundo a idade e o grau de preparação antecedente, e conduzindo sempre mais acima” (p.410,411).
Coménio, além de propor uma organização do sistema escolar que considera a
graduação do ensino, elabora um catálogo descrevendo as metas para cada grau de
ensino, o que atualmente poderíamos chamar de currículo. Ele delimita o plano de
ensino para os vários tipos de escolas, especificando cada matéria a ser ensinada e
justificando o porquê de cada uma. Sugere, ainda, material a ser utilizado e atividades a serem desenvolvidas.
A discussão até agora sistematizada permite compreender que o método universal, proposto por Coménio, para ensinar tudo a todos, constitui-se em indícios da
utilização do planejamento na atividade de ensino. O que surge posteriormente,
consciente ou não, tem suas bases nas idéias formuladas por Coménio em meados
do século XVII.
O planejamento de ensino, em função das mudanças ocorridas através dos tempos e do surgimento de novos conhecimentos científicos sobre como se processa a
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aprendizagem, vem assumindo historicamente configurações que se adaptam às novas
realidades. No contexto do século XX, o movimento da escola nova, que tem em
John Dewey um dos principais representantes, recoloca o planejamento como uma
questão central. Teixeira (1967, p.22), reportando-se a essa questão, assinala :
“ Sendo a educação o resultado de uma interação, através da experiência, do
organismo com o meio ambiente, a direção da atividade educativa é intrínseca ao próprio processo da atividade. Não pode haver atividade educativa,
isto é, um reorganizar consciente da experiência, sem direção, sem governo,
sem controle. Do contrário, a atividade não será educativa, mas caprichosa e
automática ”.
Também Saviani (1983) destaca que a escola nova desloca o eixo da questão
pedagógica dos conteúdos cognitivos para os métodos ou processos pedagógicos
(grifos nossos). Trata-se de uma teoria pedagógica que, de acordo com Saviani (1983a,
p.13), considera que “o importante não é aprender, mas aprender a aprender ”.
À luz das idéias da escola nova é possível apreender que o planejamento passa
a ter um papel importante na perspectiva de organizar a escola e o fazer pedagógico
numa nova perspectiva: educação é vida e viver é desenvolver-se, é crescer.
O posicionamento de Teixeira (1967) é elucidativo da importância que assume
o planejamento no interior da concepção deweyana. Na sua crença o processo
educativo é “o processo de contínua reorganização, reconstrução e transformação
da vida” (Teixeira, 1967, p.31).
Uma interlocução com o próprio Dewey sobre esse aspecto particular é significativa. Na sua linha de argumentação, o autor (1967, p.61) destaca que “o valor dos
conhecimentos sistematizados num plano de estudos está na possibilidade que dá
ao educador, de determinar o ambiente, o meio necessário à criança, e, assim,
dirigir indiretamente a sua atividade mental”. Para o autor, a sociedade, ao tornarse mais complexa, cumpre proporcionar um ambiente social especial que se dedique especialmente a desenvolver as aptidões dos imaturos. Esse ambiente seria a
escola.
Dewey (1979, p.24) propõe as seguintes funções deste meio social: “simplificar e coordenar os fatores da mentalidade que se pretende desenvolver; purificar e
idealizar os costumes sociais existentes; criar um meio mais vasto e melhor equilibrado do que aquele pelo qual os imaturos, abandonados a si mesmos, seriam provavelmente influenciados”.
Cabe assinalar que o movimento da escola nova influenciou o pensamento pedagógico na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil. Na década de 30, no Brasil,
surge um movimento de um grupo de educadores que busca no ideário da escola
nova os fundamentos para a defesa de suas concepções educacionais. Esse grupo de
educadores1 lança em 1932 um documento intitulado O Manifesto dos Pioneiros da
Educação Nova que objetivava construir as bases de uma nova educação para o
país.
1
Dentre os principais educadores podemos citar: Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, Lourenço Filho,
Paschoal Lemme, Cecília Meirelles, Afrânio Peixoto, Roquette Pinto.
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No referido manifesto encontramos indicações claras da necessidade de organização tanto do sistema de ensino quanto da atividade pedagógica. Os autores do manifesto
assinalam que a falta de organização do aparelho escolar está relacionada a ausência, em
quase todos os planos e iniciativas educacionais, da determinação dos fins da educação
(aspecto filosófico e social) e da aplicação (aspecto técnico) dos métodos científicos aos
problemas da educação. Nas palavras dos autores, o problema reside “na falta de
espírito filosófico e científico, na resolução dos problemas da administração escolar” (Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, 1984, p. 407).
O Manifesto dos Pioneiros assinala que o educador deve trabalhar cientificamente,
devendo estar interessado tanto na determinação dos fins da educação quanto nos meios
de realizá-los. Continua ainda o manifesto:
“Se o educador tem um espírito científico empregará os métodos comuns a
todo o gênero de investigação científica, podendo recorrer à técnica mais ou
menos elaborada e dominar situação, realizando experiências e medindo os
resultados de toda e qualquer modificação nos processos e nas técnicas, que
se desenvolveram sob o impulso dos trabalhos científicos na administração
dos serviços escolares” (Manifesto dos pioneiros da educação nova, 1984,
p.408).
Tomando como suporte as idéias de Saviani (1983 b), pode-se dizer que a
partir do final da década de 20 e, especialmente, a partir de 1930, o “entusiasmo
pela educação” cede lugar ao “otimismo pedagógico” que, com o advento do
escolanovismo irá deslocar as preocupações educacionais do âmbito político para o
âmbito técnico-pedagógico. Nesse contexto, o planejamento é incorporado como
uma estratégia importante para a organização do ensino.
Entretanto, é preciso assinalar que a adoção do planejamento de ensino, de
forma mais abrangente e organizada no sistema educacional brasileiro, é fruto da
conjuntura que se configurou a partir do movimento de 1964. Coerente com a perspectiva do planejamento global e do planejamento educacional, o planejamento de
ensino apresenta-se como uma forma racional e neutra para resolver os problemas
no interior da escola. Em nível legal, a Lei 5540/68 que reformulou o ensino superior e a Lei 5692/71 que reorganizou o ensino de 1º e 2º graus, estabelecem uma
nova orientação para o planejamento de ensino. Esta última, prevê a criação do
serviço de Supervisão Escolar a quem competeria assessorar os professores na tarefa de planejar o ensino em nível da instituição escolar, bem como exercer o controle
do trabalho do professor dentro de uma perspectiva tecnicista. Essa tendência perdurou por toda a década de 60 e 70, tendo sido redimensionada, pelo menos em nível
de discurso, a partir da década de 80.
3 ELEMENTOS PARA COMPREENSÃO DA TRAJETÓRIA DO PLANE-
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63
JAMENTO DE ENSINO NO BRASIL
No Brasil, o planejamento de ensino, de acordo com o contexto sócio-político,
assume concepções diversas do ato de planejar. Ott (1984) aponta três fases do
planejamento de ensino: fase do princípio prático; fase instrumental e fase do planejamento participativo.
Vasconcellos (1995), retomando a classificação apresentada por Ott, faz uma
breve análise da história do planejamento situando-o no contexto das tendências
educacionais.
A fase do princípio prático, segundo o autor, está relacionada à tendência tradicional da educação. Essa tendência é caracterizada como aquela que tem uma visão
essencialista do homem. Nela, o homem é concebido como constituído por uma
essência universal e imutável. À educação cumpre moldar a existência particular e
real de cada educando à essência universal e ideal que o define enquanto ser humano.
No âmbito da tendência tradicional, os métodos de ensino baseiam-se na exposição verbal da matéria ou na sua demonstração. Na relação professor aluno, predomina a autoridade do professor que exige atitude receptiva dos alunos e impede
qualquer comunicação entre eles no decorrer da aula. Os conteúdos são os conhecimentos e valores sociais acumulados pelas gerações adultas e repassados ao aluno
como verdades (Libâneo, 1989).
Nessa perspectiva educacional o planejamento de ensino seria feito pelo professor sem grande preocupação formal, tendo essencialmente como referência a
tarefa a ser desenvolvida em sala de aula.
Segundo Vasconcellos (1995) os planos eram apontamentos feitos em folhas,
fichas, cadernos (tipo “semanário” até hoje utilizado por professores de primeira a
quarta série), a partir das leituras preparatórias para as aulas. Esse plano era retomado cada vez que o professor ia dar a aula novamente, servindo por anos e anos.
Conclui o autor:
“O planejamento pedagógico do professor, no sentido tradicional, a rigor
não era bem planejamento; era muito mais o estabelecimento de um ‘roteiro’
que se aplicaria a qualquer realidade. No entanto, observava-se que o plano
realmente orientava o trabalho do professor, e tinha de fato uma função, ou
seja, havia uma estreita relação entre planejar e acontecer”(1995,p.16).
Ao tratar dessa problemática, Fusari (l984), esclarece que na escola tradicional,
os professores davam aulas e passavam o conteúdo das disciplinas a partir do plano
de aula que faziam. Esses planos resumiam-se em fichas, semanário, diário de classe, cadernos e apontamentos pessoais. O professor estudava, consultava seus
alfarrábios e livros, fazia seus apontamentos e, na maioria dos casos, sabia como
iniciar, continuar e terminar a aula. Continua Fusari (1984, p.16),
“O planejamento, neste caso, resumia-se do preparo da aula a partir do
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conteúdo que o professor queria transmitir. Os professores primários, que
ensinam todas as matérias, planejam o seu trabalho utilizando o ‘diário
de classe’ onde registravam, com antecedência, as aulas da semana. Na
maioria dos casos, aquilo que era planejado pelo professor, de fato, era
reproduzido na sala de aula”..
A segunda fase do planejamento - fase instrumental - teve início no final da
década de sessenta e está relacionada à tendência tecnicista da educação. Essa tendência se caracteriza pela neutralidade científica, buscando inspiração nos princípios da racionalidade, eficiência e produtividade. Advoga a reorganização do processo educativo de maneira a torná-lo produtivo e operacional, cabendo à escola moldar o comportamento humano, através de técnicas específicas (Saviani, 1993).
No âmbito da concepção tecnicista da educação, a matéria de ensino se reduz
ao conhecimento observável e mensurável. Os conteúdos resultam da ciência objetiva, procurando eliminar qualquer sinal de subjetividade. Os métodos de ensino
consistem em procedimentos e técnicas para a organização e o controle das condições ambientais que garantam a transmissão e a recepção de informações. O relacionamento professor aluno é estruturado e objetivo, com papéis bem definidos “o
professor administra as condições de transmissão da matéria, conforme um sistema
instrucional eficiente e efetivo em termos do resultado da aprendizagem; o aluno
recebe, aprende e fixa as informações” (Libâneo, 1989, p.30).
No final da década de 60 e início da década de 70, o planejamento tecnicista
é indicado pelas esferas governamentais como a solução para os problemas de falta
de produtividade da educação escolar. Com o advento da Lei 5692/71, assiste-se,
pela primeira vez na história da educação brasileira, o Estado indicando o planejamento de ensino como estratégia a ser incorporada por todas as escolas do sistema
educacional. No dizer de Saviani (1983b, p.38) “a partir daí, os meios educacionais
são inovados por correntes ou propostas pedagógicas tais como o ‘enfoque
sistêmico’, ‘operacionalização de objetivos’, ‘tecnologias de ensino’, ‘instrução programada’, ‘máquinas de ensinar’, ‘educação via satélite’, ‘tele-ensino’,
‘microensino’, etc”.
Há na perspectiva de Vasconcellos (1995) uma generalização do planejamento, sem contudo, questionar os fatores sócio-políticos-econômicos do contexto. Acrescenta o autor que, em decorrência das influências das teorias comportamentalistas,
dava-se muita ênfase ao aspecto formal do planejamento, propondo a especificação
de todos os comportamentos verificáveis, chegando mesmo a afirmar-se que só se
poderia estabelecer objetivos que pudessem ser medidos. Essa exigência técnica
para elaborar o planejamento, justificou, segundo Vasconcellos, ideologicamente
sua centralização nas mãos de “especialistas” do Estado ou das escolas, fazendo
parte da expropriação do “que fazer” do educador e do esvaziamento da educação
como força de conscientização, levando a um crescente processo de alienação e
controle exterior da educação.
A análise desse mesmo autor sugere que, nesse momento, o saber do professor
foi sendo desvalorizado, levando a uma perda de confiança naquilo que fazia. Paralelamente criou-se um mito em torno do planejamento, como se fazer um bom plano
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“garantisse automaticamente” uma boa prática pedagógica. Em outras palavras, ensina
bem o professor que planeja bem o seu trabalho, entendendo-se este “planejar” como
sendo a elaboração do documento denominado plano”. Isso chegou a tal ponto que
alguns professores ou técnicos se dedicavam a elaborar bons planos e se sentiam realizados com isto, desvinculando-se da prática efetiva do planejamento.
Podemos dizer que, nesse momento, planejar passou a significar preencher formulários com objetivos educacionais gerais, objetivos instrucionais operacionalizados, conteúdos programáticos, estratégias de ensino, avaliação de acordo com os objetivos, etc.
Por volta de 1968 e 1970, alguns educadores, técnicos que trabalhavam a nível do
sistema educacional (Ministério, Secretaria de Educação, Universidade), tiveram acesso
a uma tecnologia educacional importada relacionada ao planejamento educacional que
trazia implícita a idéia da produtividade, da eficiência e da eficácia do ensino. Em vista
que o ensino brasileiro, como assinala o autor, por um conjunto de razões (intra e extraescolares), não caminhava bem, as técnicas de planejamento caíram como uma ”luva”
para superar a falta de produtividade do ensino. Na ausência de uma análise mais
aprofundada “dos problemas da educação e de suas relações com o contexto sócioeconômico político vigente, esta “engenharia” de planejamento, absorvida a-criticamente pelos educadores brasileiros, acabava por ser implantada de norte a sul do
país” (Fusari, 1984, p.34).
Isso significa dizer - e aqui uma vez mais Fusari (1984) é tomado como referência - que naquele momento, os professores aderiram a tecnologia do planejamento sem saber quase nada das causas e conseqüências desta adesão. Acabaram reduzindo o planejamento à redação de planos a partir da orientação mecanicista e lógica. Nela, os professores deveriam fazer um diagnóstico dos seus alunos, definir
claramente seus objetivos de trabalho, selecionar conteúdos a partir dos objetivos,
selecionar estratégias de ensino a partir dos objetivos e conteúdos e selecionar estratégias de avaliação a partir dos objetivos educacionais. Esta foi, para o autor, uma
nova fase da história do planejamento educacional nas escolas brasileiras: o que
ocorria na sala de aula não ”batia” com aquilo que estava escrito no plano. Na prática, o professor “oscilava entre dar conteúdos e utilizar metodologias ‘ativas’ de
ensino. Em geral, o aluno ficava privado do conteúdo, sem o desenvolvimento das
habilidades psico-motoras, sem percepção crítica da realidade, enfim, sem aprender aquilo que os planos registravam” (Fusari, 1984. p.34).
A terceira fase - fase do planejamento participativo – ganha destaque no cenário brasileiro no contexto de esgotamento do regime civil-militar. Em decorrência
da crise econômica, principal suporte do regime, associada à luta política pela democratização em curso no país e à crise de governabilidade o planejamento governamental afasta-se da concepção tecnocrática que predominara durante os primeiros
governos daquele regime. Nesse momento de crise, o planejamento assume uma
nova configuração. Os governantes passam a acenar com a possibilidade da população participar na concepção e na execução das políticas.
A propósito, escreve Cabral Neto (1997, p. 65),
“ a crise do regime ditatorial resultou, também, no enfraquecimento das forCarpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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mas autoritárias que haviam predominado no relacionamento do Estado
com a sociedade civil. Nessa nova conjuntura, o planejamento autoritário e centralizado, que tinha sido a marca registrada dos anos mais duros
do regime civil-militar, deveria ser substituído por uma intervenção
participativa. O planejamento colocava-se, agora, como promotor da
justiça social com participação dos clientes: bem estar com cidadania”.
A análise de Germano (1993, p. 223) sugere que o II e o III Planos Nacionais de
Desenvolvimento, em função da crise de legitimidade enfrentada pelos dois últimos
governos militares, incorporam às sua metas “amplos apelos redistributivistas e
participacionistas”.
Seguindo essa mesma trilha, Cabral Neto (1997) indica que foi no contexto
da crise dos governos militares que a questão da participação assumiu um lugar de
destaque no panorama político nacional. Segundo esse autor, a derrocada do crescimento econômico, principal suporte do regime, associada à luta política - em gestação no país pela sua democratização - e às pressões externas, impôs ao governo a
necessidade de reavaliar a sua relação com a sociedade, com vistas a rearticular
formas que gerassem as condições mínimas de governabilidade, sem, contudo, perder o controle da nascente abertura política do país.
A análise de Cabral Neto (1997) sugere ainda que o discurso da participação
foi incorporado aos documentos oficiais do governo do Presidente Ernesto Geisel,
(1974-1979), e ampliado no governo do Presidente João Batista Figueiredo, (19801985), tendo como eixo central a busca da legitimidade em processo crescente de
esgotamento. Assim, o discurso da participação, presente tanto nos planos gerais do
governo quanto nos programas educacionais, é resultante de uma nova conjuntura
que começou a se delinear no final da década de 70.
A Nova República ao se instalar em 1985, assume, em nível do discurso, o
compromisso de mudar a realidade social do país que era considerada caótica. Nesse
sentido, o Primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento da Nova República (I PNDNR), para o período 1986-1989, privilegia uma política de crescimento econômico e
de combate a pobreza. O planejamento a partir desse momento passa a defender o
desenvolvimento econômico com justiça social e a participação como elemento
fomentador da cidadania.
Nesse momento, o discurso da participação se intensifica ainda mais nos planos governamentais, os quais acenam com a possibilidade de promover amplas
reformas em todas as áreas, com destaque para as políticas sociais. O foco central
das reformas situava-se em torno da necessidade de criar as condições para que toda
a população pudesse participar da tarefa de democratizar as ações governamentais
(Cabral, 1997).
Em síntese, pode-se dizer que a democratização dos mecanismos de relação
entre o Estado e a sociedade através do planejamento participativo, amplamente
prometida pela “ Nova República”, apesar de alguns avanços, não significou a sua
implementação na prática.
Lessa (1989) assinala que a complexa relação entre o Estado e a sociedade civil no
Brasil expressa um certo grau de centralização das decisões no poder executivo e está
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ligada à origem da transição brasileira, onde a ordem autoritária foi coparticipadora do
regime que lhe sucedeu. Assinala o autor que “a precária democracia brasileira, pós1985, foi antecipada por uma ditadura cuja agenda e legado incluíram nos últimos
anos, um conjunto de reformas liberalizantes” (Lessa, 1989, p.91).
Entretanto, é preciso evidenciar que, como já foi referido, o discurso da participação ganha um grande destaque nos planos e programas governamentais da “ Nova República”. Isso não significou, contudo, que o discurso do planejamento participativo tenha
consubstanciado-se em práticas reais.
Cabe assinalar, ainda, que essa tendência do planejamento participativo que
começou a configurar-se no final da década de 70, evoluindo por toda a década de
80, ganhou espaço privilegiado na década de 90. Nessa última década, no setor
educacional, por exemplo, os planos elaborados centram-se medularmente na idéia
de planejamento participativo. O Plano Decenal de Educação para Todos, elaborado
pelo Ministério da Educação e do Desporto para a década de 90 é expressão desse
entendimento. Seguindo essa lógica geral, o planejamento no âmbito escolar incorpora, pelo menos em nível do discurso, características participacionistas.
Segundo Vasconcellos (1995), o planejamento participativo é fruto da resistência e da percepção de educadores que ao mesmo tempo que faziam a crítica ao
planejamento tecnocrático, foram buscando formas alternativas de fazer a educação
e, portanto, de planejá-la. Agora, nas palavras de Vasconcellos (1995, p.18), “o
saber deixa de ser considerado como propriedade do ‘especialista’ , passando-se a
valorizar a participação, o diálogo, o poder coletivo local, a formação da consciência crítica a partir da reflexão sobre a prática transformadora” (1995, p.18).
Vasconcellos (1995) relaciona as duas primeiras fases do planejamento de ensino (princípio prático e instrumental) com as tendências tradicional e tecnicista.
Todavia, no que concerne a terceira fase, o autor não estabeleceu relação com nenhuma tendência pedagógica. Na nossa compreensão, é possível indicar que a idéia
de planejamento participativo está de certa forma relacionada às tendências histórico-crítica defendida por Saviani (1991) e crítico-social dos conteúdos defendida por
Libâneo (1989). Os defensores dessas concepções de educação, ao mesmo tempo
que criticam as teorias críticas-reprodutivistas, enxergam as possibilidades de um
trabalho pedagógico centrado na melhoria da qualidade da escola pública enquanto
instância de difusão do conhecimento.
Saviani assinala que a pedagogia histórico-crítica centra-se na defesa da
especificidade da escola. “ A escola tem uma função específica, educativa, propriamente pedagógica, ligada à questão do conhecimento; é preciso, pois, resgatar a
importância da escola e reorganizar o trabalho educativo, levando em conta o saber sistematizado, a partir do qual se define a especificidade escolar” ( Saviani,
1991, p.101).
Libâneo, pontilhando a mesma trajetória percorrida por Saviani, defende que há de
se privilegiar a aquisição do saber vinculado às realidades sociais. Nessa perspectiva é
preciso que os métodos de ensino “favoreçam a correspondência dos conteúdos com
os interesses dos alunos, e que estes possam reconhecer nos conteúdos o auxílio ao
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seu esforço de compreensão de realidade prática e social” (1989, p.40).
Os métodos na pedagogia crítico-social dos conteúdos “não partem de um saber
artificial depositado a partir de fora, nem do saber espontâneo, mas de uma relação
direta com a experiência do aluno, confrontada com o saber trazido de fora”. Assim,
o conhecimento resulta da troca que se estabelece entre o meio e o sujeito, sendo o
professor o mediador. Então, “a relação pedagógica consiste no provimento das
condições em que professores e alunos possam colaborar para progredir essas trocas. O papel do adulto é insubstituível, mas acentua-se também a participação do
aluno no processo” (Libâneo, 1989, p.41). (Grifos nossos).
Trata-se, pois, de encarar “grupo-classe como uma coletividade onde são trabalhados modelos de interação com a ajuda mútua, o respeito aos outros, os
esforços coletivos, a autonomia nas decisões, a riqueza da vida em comum, e ir
ampliando progressivamente essa noção (de coletividade) para a escola, a cidade,
a sociedade toda” (Libâneo, 1989, p.44). (grifos nossos).
Essa breve retrospectiva reforça a nossa posição que, por volta dos anos 80, o
planejamento de ensino assume uma nova configuração. Verifica-se o afastamento
da perspectiva tecnicista do planejamento e uma busca de construção de novos
caminhos para pensar e organizar o ensino: o planejamento participativo.
Atualmente a discussão sobre planejamento de ensino está associada à idéia de
participação. A proposta contida nos documentos sugere que os “atores” educacionais e a comunidade devem participar das decisões e ações empreendidas pelo sistema educacional e, mais especificamente, pela unidade escolar. Essa é, também, uma
tendência que encontra cada vez mais respaldo entre os profissionais da educação e
especialistas que discutem a questão específica do planejamento.
Para Vianna (1986), o homem, como ser social, encontra sua realização no
convívio com seus semelhantes, necessitando de trabalho participativo e comunitário que possibilite troca de vivências, maior aperfeiçoamento e satisfação pessoal.
Em decorrência desse entendimento, a autora propõe uma nova forma de ação,
cuja força reside na participação de muitas pessoas politicamente agindo em função
de necessidades, interesses e objetivos comuns.
Nessa perspectiva, o planejamento deve ser flexível, adaptado a cada situação
específica, envolvendo decisões coletivas e se constituindo num processo político
vinculado à decisão da maioria.
O Planejamento Participativo “se constitui num propósito coletivo, numa deliberada e amplamente discutida construção do futuro da comunidade, na qual participe o maior número possível de membros de todas as categorias que a constituem”
(Cornely, 1977 apud Vianna, 1986).
Essa mesma perspectiva de planejamento é defendida por Vasconcellos (1995,
p.51):
“O fato de buscar o planejamento participativo tem a ver com opções de
ordem ética e pragmática: A participação é um valor, é uma necessidade humana ( o homem se torna homem pela sua inserção ativa no mundo da cultura,
das relações etc.). É uma questão de respeito pelo outro, de reconhecimento
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de sua condição de cidadão, de sujeito do sentir, pensar, fazer, poder.
Mas além disto, a participação no processo de planejamento tem a ver
com uma questão muito prática: o desejo de que as coisas planejadas
realmente aconteçam” (p.51). (Grifos do autor).
Para esse autor, a atividade educacional é complexa e envolve um rol de
determinantes. E a participação favorece a que um conjunto de fatores determinantes
se articulem em torno de uma mesma direção, o que aumenta a probabilidade de que
as coisas venham a se concretizar. A participação é também um elemento estratégico, é uma forma de diminuir - pela negociação, pela busca de consenso ou de
hegemonia - as resistências dos próprios agentes internos a instituição.
É necessário se fazer um planejamento participativo uma vez que dessa forma
o sujeito da reflexão é também o sujeito da decisão, da ação e do usufruto; há
motivação, pelo fato de se estar entendendo às necessidades do sujeito; possibilitase o crescimento dialético da autonomia e da solidariedade; o que se privilegia é o
processo e não só o plano escrito. Dessa forma a participação deve se dar em todas
as instâncias: discussão, decisão, colocação em prática, avaliação e frutos do trabalho (Vasconcellos, 1995).
Nessa perspectiva a ação de planejar não se reduz ao simples preenchimento
de formulários para controle administrativo; é, antes, a atividade consciente de previsão das ações docentes, fundamentadas em opções político-pedagógicas, tendo
como referência permanente as situações didáticas concretas, isto é, a problemática
social , econômica, política e cultural que envolve a escola, os professores, os alunos, os pais, a comunidade, os quais interagem no processo de ensino ( Libâneo,
1994).
O objetivo principal do planejamento de ensino em uma dimensão participativa
é, segundo Vasconcellos (1995), possibilitar um trabalho mais significativo, transformador e mais realizador na sala de aula, na escola e na sociedade. Nesse contexto, o planejamento de ensino deve resultar do processo de reflexão e decisão que
envolva os vários atores comprometidos com o ensino-aprendizagem.
O planejamento de ensino não deve ser feito por uma exigência burocrática. Ao
contrário, deve resultar de um trabalho sistemático do professor, o qual deve estar
associado a um projeto político-pedagógico que expresse o seu compromisso com a
clientela que freqüenta a escola pública.
Nesse sentido, Libâneo (1994, p.222) assinala: “A escola, os professores e os
alunos são integrantes da dinâmica das relações sociais; tudo que acontece no meio
escolar está atravessado por influências econômicas, políticas e culturais que caracterizam a sociedade de classe”. Isto significa que os elementos integrantes do
planejamento escolar - objetivos, conteúdos, métodos e avaliação -, estão recheados
de implicações sociais e têm um significado genuinamente político. Por essa razão,
o planejamento participativo é uma atividade de reflexão acerca das nossas opções e
ações. Segundo o autor se não pensarmos detidamente sobre o rumo que queremos dar
ao nosso trabalho, ficaremos entregues aos rumos estabelecidos pelos interesses dominantes da sociedade.
Em síntese, nessa abordagem o planejamento é considerado como um processo
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
70
que envolve uma reflexão crítica e participativa sobre a previsão das principais decisões
que vão nortear o fazer pedagógico dos professores e a aprendizagem dos alunos.
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NAS ONDAS CATIVAS DO RÁDIO: AS ESCOLAS
RADIOFÔNICAS DA ARQUIDIOCESE DE NATAL
(1957-1960)
Rossana Kess Brito de Souza Pinheiro1
RESUMO: Este trabalho discorre acerca das escolas radiofônicas da Igreja Católica
de Natal no período compreendido entre 1957 e 1960, tentando perceber como a
Igreja Católica contribuiu para a política desenvolvimentista mundial, evidenciando
os aspectos pedagógicos e doutrinais. Inicialmente foram selecionados os documentos da Arquidiocese de Natal (convênios, fotos, correspondências e roteiros de aulas
do SAR) para serem analisados. Estes foram organizados por períodos, selecionados e catalogados de acordo com o interesse da pesquisa. Alguns jornais da época
que circulavam em nosso Estado foram utilizados, particularmente “A República”,
encontrado no Instituto Histórico e Geográfico e “A Ordem”, publicação da
Arquidiocese. Posteriormente passamos a analisar os documentos à luz da nova história cultural, tentando perceber o não-dito existente nos documentos trabalhados.
Finalmente, passamos a registrar na linguagem escrita nossas impressões, constatações
e análises que culminaram em um ensaio monográfico acerca do presente tema. As
Escolas Radiofônicas configuraram-se como novos meios de difundir os ideais da
instituição católica, ao mesmo tempo em que visavam integrar o homem do campo
no desenvolvimento nacional.
PALAVRAS-CHAVE: educação; história; igreja; catolicismo; radiofônica.
ON THE CAPTIVE WAVES OF THE RADIO: THE RADIO
SCHOOLS OF NATAL’S ARCHDIOCESE (1957-1960).
ABSTRACT: This work is about radio schools of the Catholic Church in Natal in
the period among 1957 and 1960. It tries to perceive the way the Catholic church
contributed to a world policy of development, making evident the pedagogical and
doctrinal aspects. At first, documents of the Archdiocese of Natal were selected
(accords, photos, letters and plans of classes of the SAR) in order to be analized.
They were organized in periods, selected and catalogued according to the interest of
the research. Some newspapers of that time which circulated in our State were used,
especially “A República” (The Replubic), found at “Instituto Histórico e Geográfico” (Geographic and Historical Institute) and “A Ordem” (The Order), a publication
of the Archdiocese. Later, we analized the documments through the light of the new
cultural history, trying to perceive the unsaid in the documents analized. Finally, we
started to write down our impressions, results and analisys which culminate in an
essay about this present theme. The Radio Schools configurate themselves as new
ways to spread ideals of the Catholic institution, at the same time that aimed to
integrate the agricultural man in the national development.
KEY-WORDS: education, history, church, Catholicism, radio station.
1 Pedagoga. Professora do Ensino Fundamental. Pesquisadora no Núcleo de Estudos Estado Política e Educação
da UFRN, integrando a base Educação, História e Práticas Culturais.
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O vento é o mesmo; mas sua
resposta é diferente em cada folha.
(Cecília Meireles)
Esta investigação propõe, um resgate da historiografia educacional norteriograndense, contribuindo para a inserção de importantes eventos educacionais do
Estado na historiografia oficial brasileira, bem como a incitar outros pesquisadores
a construírem a história daqueles que, por muito tempo, estiveram condicionados e
encerrados nos arquivos e memórias dos antigos.
Em 21 de março de 1961, a partir das atividades de educação pelo rádio promovida pelo episcopado nas arquidioceses de Natal e Aracaju, é criado o Movimento
de Educação de Base (MEB), através do qual o Governo Federal comprometia-se a
fornecer recursos por meio de convênios com órgãos da administração federal e da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), utilizando a rede de emissoras
católicas com o intuito de atender às regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste do
país, no que diz respeito à alfabetização de adultos. Esta história, no entanto tem seu
início algumas décadas anteriores.
Em 1935, a Ação Católica Brasileira (ACB) é implantada pelo Cardeal Leme,
em sintonia com a idealização do papa Pio XI que pretendia com a Ação Católica
dinamizar as atividades no meio social. As idéias do Papa fundavam-se em uma
necessidade de o verbo se fazer carne, não bastava cuidar do espírito era necessário
atender às exigências do corpo. A Igreja Católica dava-se conta de que seus fiéis
eram de carne e osso e, portanto, precisavam comer, vestir e morar.2 Além disso, a
carência de padres fazia a Igreja Católica repensar sua política vocacional, tanto do
ponto de vista de recrutamento de novos seminaristas como acerca da formação
deles, pois também carecia de intelectuais em seu interior.
O Brasil estava, neste período, tomado por uma variedade de idéias e movimentos que se interpenetravam dialeticamente como: o conservadorismo da Igreja
Católica, o liberalismo apregoado mundialmente, o crescimento gradual de religiões
protestantes3 no país e o ideário comunista que começava a se espalhar depois da
criação do Partido Comunista (PC) em 1922. A Igreja Católica do Brasil consegue
em meio a esta turbulência catalisar os esforços sociais em um complexo de movimentos convergentes no qual enquadra o seu esforço de renovação que se propagou
pela Arquidiocese de Natal sendo esta uma das primeiras Dioceses a implementar o
projeto de intervenção social no Brasil, conhecido internacionalmente como Movimento de Natal.
O Movimento de Natal foi fruto do assistencialismo tradicional, se propondo a
melhorar o mundo social de que era parte uma visão cada vez mais ampla e integrada dos problemas sociais e do processo de desenvolvimento sócio-econômico
(Camargo, 1971, p.67), o que levou a Arquidiocese de Natal à realização de vários
2 Importante ressaltar que estas transformações, ou melhor, esta preocupação com o social não era algo unânime
dentro da instituição católica. Apenas parte da Igreja compartilhava desses projetos sociais.
3 O termo protestante refere-se a todas as religiões que contestam a religião oficial de um país. No caso do
Brasil, são todas as religiões que contestam o catolicismo.
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programas de ação não apenas no campo religioso, mas também na valorização humana.
Foi um empreendimento de atividades sócio-políticas que teve seu início em meados da
década de 40. Esta década foi marcada na cidade de Natal, pelos efeitos de uma guerra
que promoveu uma mudança de valores e de costumes, abalando a estrutura tradicional e
aumentando o índice de desemprego, prostituição, delinqüência juvenil e formação de
favelas, sendo esta última, produto da migração de origem rural em larga escala. Nesse
contexto, a Igreja Católica assume um caráter emergencial atendendo às necessidades
mais imediatas da situação.
A Escola de Serviço Social fundada em 1949 pela Juventude Feminina Católica, o Departamento Diocesano de Ação Social e as reuniões do clero realizadas por
seis padres,4 entre eles Pe. Eugênio de Araújo Sales, recém-chegado da paróquia de
Nova Cruz, onde durante um ano experienciou os problemas do homem do campo,
dão origem às atividades sistemáticas do Movimento de Natal, no sentido de combater a miséria.
Com a criação do Serviço de Assistência Rural (SAR), em 1949, passa a ser
este o órgão destinado a atender o meio rural, através das Missões Rurais, Semanas
Ruralistas e Centros de Treinamento de Líderes. No princípio, as atividades que
prevaleciam eram as de cunho assistencial, inicialmente direcionadas aos centros
urbanos e depois estendidas ao meio rural. O SAR, em seu plano de atividades,
propunha uma ação educativa com a finalidade de prestar assistência às comunidades do interior do Estado, servindo-se de modernas técnicas do Serviço Social Rural, que incluía assistência jurídica, educativa e religiosa.5 Neste mesmo ano o Movimento dá início às primeiras Escolas Radiofônicas, objeto deste estudo, para a
educação de base no Brasil. A partir deste trabalho mais amplo o SAR passou a
cumprir aquilo a que se destinava quando da sua criação: ter dinamicidade para
intervir no meio rural, visando transformá-lo pelo desenvolvimento de práticas
educativas, capazes de modelar novas maneiras de pensar e de agir em sociedade
(Nascimento, 1999, p.58).
Nosso campo de investigação encontra-se, portanto, dentro do universo de atividades desenvolvidas pelo SAR, entre 1957 e 1960, especificamente aquelas relacionadas às aulas radiofônicas que visavam a alfabetização do homem do campo.
Para tanto, estabelecemos recortes, utilizando, neste primeiro estudo as fontes documentais do arquivo da Arquidiocese de Natal e o acervo de jornais do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, dentre as quais escolhemos as correspondências, convênios e aulas radiofônicas vinculadas ao SAR no período de 1957
a 1960 e o jornal “A República” entre 1957 e 1959.
O Arquivo da Arquidiocese de Natal vem sendo constantemente citado em
monografias, dissertações e teses relacionadas à História da Educação. Este arquivo
se constitui em uma fonte inesgotável de informações que vem pouco a pouco modificando o pensamento dos pesquisadores que ali marcam a sua presença. Obviamen4 Cf. CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira de. Igreja Católica e Desenvolvimento. São Paulo:
CEBRAP,1971.
5 Cf. Oliveira, Marlúcia de Paiva. Igreja Católica e Renovação: Educação e Sindicalismo no Rio Grande do
Norte (1945-1964). São Paulo, 1992. [Tese de Doutorado em Educação]. Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo.
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te, não é nossa preocupação chegar a qualquer verdade acerca do início ou dos motivos
que levaram a Igreja Católica de Natal a realizar uma atividade educacional como a empreendida através das Escolas Radiofônicas, como diz Certeau: Certamente não existem, por mais gerais que sejam, nem leituras, tanto quanto se possa estendê-las,
capazes de suprimir as particularidades do lugar de onde falo e do domínio em que
realizo uma investigação (Certeau,1982, p. 65).
Esta concepção de Certeau nos remete a reflexão sobre a história tradicional
que se vangloria de reconstituir a “verdade” dos fatos. Ora para se ter uma “verdade”
é necessário que tenhamos uma “mentira”. Mas e quando esta “mentira” torna-se
“verdade” e esta “verdade”, “mentira”, o que temos afinal? Temos a subjetividade
do autor, entendida por Certeau como um sistema de referência, uma filosofia implícita, particular. Temos doxa. Apenas uma opinião limitada a referências particulares
do lugar, estado ou conhecimento de cada pesquisador.
Na escrita historiográfica tudo começa com a separação, reunião e/ou transformação em “documentos” de certos objetos que se apresentam de outra forma. Ou
ainda, na produção de tais documentos, pelo simples fato de recopiar, transcrever ou
fotografar, mudando seu lugar e seu estado, de acordo com o interesse e a filosofia
particular de quem os manipula.
Neste sentido, é que passamos a selecionar os documentos a serem analisados,
bem como a organizá-los por períodos, selecionando-os e catalogando-os de acordo
com o interesse da pesquisa. Alguns jornais da época que circulavam em nosso
Estado foram utilizados, particularmente “A República”, encontrado no Instituto
Histórico e Geográfico e “A Ordem”, publicação da Arquidiocese. Este último, no
entanto, serviu-nos apenas como referência de estudo, pois esta publicação não foi
editada entre os anos de 1955 e 1961, compreendendo exatamente o período desta
pesquisa (1957-1960). O objetivo era buscar reportagens que nos fizessem compreender as causas e as conseqüências desse movimento educacional, bem como a conjuntura nacional e local da época. Trabalhamos com o conceito de Villar (1985, p.
77) que compreende a conjuntura como sendo um conjunto de condições articuladas entre si que caracterizam um dado momento no movimento global da histórica.
(grifos do autor).
A nova história é uma abordagem que se caracteriza por perceber a história
como estrutural ou total, compreendendo os acontecimentos históricos como realidades estruturais em movimento, não apenas como algo estabelecido, mas também
pelas lutas e tentativas de consolidação de dado modelo estrutural6 e suas repercussões na vida das pessoas comuns. De acordo com o paradigma tradicional, a história
diz respeito essencialmente à política, esta admitida como essencialmente relacionada ao Estado, sendo mais nacional e internacional, que regional. Partindo da premissa de que tudo tem um passado que pode em princípio ser reconstruído e relacionado ao restante do passado (Burke, 1992, p.11), a base filosófica da nova história
6 Cf : VILLAR, Pierre. Iniciação ao vocabulário da análise histórica. Edições João Sá da Costa, 1985.
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é a idéia de que a realidade é social e culturalmente constituída, portanto relativa. Por este
motivo os registros oficiais, aqueles emanados pelos governos podem ser suplementados
com outros tipos de fontes como: jornais, fotografias ou anuários de estatística, por exemplo, de maneira interdisciplinar no sentido de buscar na antropologia, na economia, na
literatura, na arte, elementos vários para compor o mosaico que vai delinear a forma do
acontecimento a que se propõe investigar o historiador. Neste sentido é que procuramos
compreender a economia mundial e nacional da época construindo uma relação direta
com os acontecimentos regionais e locais do período, na consulta a fontes oficiais e nãooficiais. Ainda que tenhamos claro estarmos longe da história total defendida pelos
Annales,7 esta forma constitui uma tentativa de dar vez e voz às “sombras” da nossa
história da educação no intuito de elevar estas “sombras” a condição de parte desta história.
O CENÁRIO
O capitalismo emerge como um vulcão de duas crateras: a revolução econômica na Inglaterra e a revolução política na França. As erupções deste modo de produção eclodem temporariamente.8
Uma dessas eclosões ocorre durante a década de 50, com um boom econômico
que Hobsbawn classifica como a Era de Ouro9 do século XX. Segundo este autor, a
Era de Ouro pertenceu essencialmente aos países capitalistas desenvolvidos. Mas
Hobsbawn esquece de explicitar que esta época de ouro era para alguns, tanto em
relação à países industrializados como agrário-exportadores. Neste sentido não podemos condicionar a Era de Ouro aos países desenvolvidos, pois no Brasil, um país
em desenvolvimento, também existia uma parcela da população que possuía um
poder de compra equivalente a esta idéia de “ouro” defendida pelo autor. Além de
ser o mesmo período do projeto nacionalista-desenvolvimentista do Presidente Juscelino Kubitscheck, em que até mesmo a imprensa internacional veiculava informações acerca dos progressos econômicos do país, como podemos ler nesta notícia do
The Financial Times, publicada pel’A República :
Londres, 17 – A despeito da precária posição do Brasil, o desenvolvimento
geral do país está continuando numa proporção impressionante. A produção
de conformidade com o plano traçado pelo presidente JK tem sido bem mantida
em bases que excede as expectativas. (A República – 18/03/59)
A 2ª Guerra provoca um deslocamento do eixo econômico da Europa para a
América. Parece que este novo modo de desenvolvimento do capital funcionou,
pois é a partir daí que vai começar a Era de Ouro do capitalismo, no século XX.
Além do deslocamento do eixo, o Estado passa a assumir no pós-Guerra um
novo papel no processo de acúmulo e centralização do Capital: o investimento nos
7 Nos referimos aqui à denominada primeira geração de teóricos da nova história cultural.
8 Anunciamos o movimento do capital como sendo cíclico com períodos de ascensão e de declínio.
9 HOBSBAWN, Erick. Era dos extremos: o breve século XX – 1914-1991. SP: Cia das Letras, 1997.
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setores em que o retorno de capital não é imediato (como por exemplo a PETROBRAS,
no Brasil) e a absorção de um grande contingente de funcionários públicos uma vez que,
o Estado de bem-estar trazia em suas entranhas a lógica do pleno emprego. Assim, o
Estado deixa de ser um simples regulador do mercado inserindo-se diretamente nele.
Estes movimentos do capital são ofuscados por um nacionalismo, por um ufanismo,
numa época em que nem mesmo os intelectuais conseguiam perceber os movimentos
internos do novo processo de acúmulo e centralização do capital. Não podemos exigir
que os intelectuais da época tivessem clareza das novas articulações entre os capitalistas
(banqueiros, os industriais, os grandes latifundiários) e o Estado. Pois, a consciência apresenta-se sempre retardada, ou melhor, ela raramente se dá no sendo do momento histórico.
A compreensão dos movimentos do capital torna-se difícil não só pelo fato da
consciência apresentar-se retardada, mas também pela colaboração da imprensa que
difunde as idéias que contribuem para tornar o cenário nebuloso. Nos jornais10 que
pesquisamos, muitas reportagens e/ou transcrições de discursos sugerem ser uma
preocupação dos Governos internacionais e nacionais diminuir o fosso econômico
entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento entre os Estados destes países.
No Brasil o governo apresenta-se como preocupado em diminuir as diferenças econômicas das regiões.
O jornal “A República”, do final da década de 50 datado de 19.07.59, transcreve o discurso do senador Sérgio Marinho do Rio Grande do Norte, em que ele aponta o perigo das disparidades inter-regionais no Senado Federal. O discurso é acerca
da implementação da SUDENE, ressaltando os prós e os contras do projeto em
tramitação na câmara, vejamos alguns fragmentos do discurso:
... É Shakespeare, se não me engano, quem vê os povos divididos entre povos
fartos e povos famintos, e adverte que os povos famintos, são povos perigosos(...). O que dá atualidade à advertência shakespeariana é o fato de, em
nossos dias, se ter tornado explosiva a situação gerada pelo agravamento dos
desníveis, fazendo mais opulentos os que já são fartos e mais miseráveis os
que são famintos (...). Se as iníquas desigualdades sociais deram embasamento
teórico à doutrina socialista de Estado, pouca coisa seria mais accessível e
útil à sua difusão e receptividade do que (...) o velho instinto reivindicatório
da justiça social...
Este fragmento nos permite perceber que enquanto a imprensa difundia a idéia
de que o governo devia se preocupar com as disparidades inter-regionais e enquanto
alguns intelectuais como Anísio Teixeira acreditava que Não estamos preparando,
não estamos esperando, nem estamos evitando a Revolução. Estamos em plena Revolução Social (Rocha, 1992, p.203). O que de fato estava acontecendo era a espoliação do Nordeste e a concentração de capital industrial no sudeste do país. Tratava-se de um novo ciclo do sistema capitalista, vejamos:
10
Recorremos aos jornais, para melhor explicitar a nossa idéia de que a imprensa cumpre um papel significativo
no sentido de atender aos seus interesses. Convêm lembrar que nesta Monografia trabalhamos com o jornal
oficial do Estado.
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A expansão do sistema capitalista de produção ocorre mediante ciclos sucessivos, determinados pela mudança na composição orgânica do capital. Tais
ciclos, ou o ciclo capitalista, de forma genérica, são a forma que tomam as
mudanças na composição orgânica do capital; elas correspondem, por sua
vez, ao movimento de concentração e centralização do capital. (Oliveira, 1981,
p.75)
A reflexão teórica acima complementa os aspectos descritos até este momento.
Ao mesmo tempo em que não podíamos deixar de colocar o ideário que permeava as
ações das várias instituições, não podemos crer em apenas um lado da questão. Como
vimos no discurso do Senador, as preocupações com as disparidades regionais não
só eram verdadeiras como pertinentes à situação da época. Preocupações estas também da Sociedade Civil e, portanto, da Igreja. No entanto, cruzando informações de
outras fontes bibliográficas, percebemos haver um descompasso entre o que acontecia no discurso e o que de concreto havia.
No Brasil esta expansão concentra-se no Centro-Sul com a cidade de São Paulo
como eixo gravitacional da economia do país. Desta forma, as cidades que ficam
mais periféricas em relação ao eixo, tendem a ser suplantadas, ocorrendo a destruição das economias regionais no intuito de concentrar o capital. As cidades do Norte
e Nordeste se encontravam nessas condições e tiveram suas tentativas de industrialização impedidas de florescerem, não por causa das intempéries ou da má qualificação da mão-de-obra como nos faz crer até mesmo os livros utilizados nos bancos
escolares em nosso país, mas principalmente por uma política que tem seu correspondente na estrutura de poder do Estado sem o qual as forças que reproduzem o
capital não se imporiam. Convém lembrar que a política nacionalista desenvolvida
pelo Presidente encontra em seu interior bases para a destruição dos capitais regionais, no sentido de capturar estes capitais em favor de uma única região e, dessa
forma, encontrar hegemonia econômica.
Mas não eram apenas os senadores, intelectuais leigos, economistas, políticos
que estavam preocupados em promover, mesmo que no plano ideológico, o fim dos
desníveis sociais e a promoção humana, a Igreja, particularmente a Católica, também se projetava e dava suas opiniões e contribuições neste sentido. No Brasil,
especificamente no Rio Grande do Norte, a Igreja Católica, na figura de seus prelados também se fazia presente nas discussões. Vejamos a manchete de uma reportagem que foi veiculada pela imprensa local neste período:
D. EUGÊNIO SALES À REPORTAGEM: A FOME PODE LEVAR A POPULAÇÃO AO IMPREVISÍVEL (A República - 28.03.58).
A preocupação demonstrada por D. Eugênio nesta fala é pertinente no sentido
da miséria levar o indivíduo a atos desesperados em que todo o ânimo para a resistência desaparece. A pobreza pressiona, a alma fica desesperada e não se pode prever a que ponto pode chegar revoltas sociais que tenham como estandarte a sobrevivência. Evitar isso não era apenas desejo da sociedade civil, mas também do Estado.
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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Entrando em cena em 1952, a CNBB adquire com sua estratégia pastoral aberta
aos problemas sociais, consistência e autoridade moral, além do caráter divinizador que
ela em si carrega, torna-se o canal mediador entre o eclesiástico e o civil, sistematizando
e dando caráter oficial às suas atividades pastorais. Nos planejamentos e atividades da
Igreja Católica é forçoso constatar que o Estado é presença constante ora como convidado, ora como participante na forma de subvenções aos trabalhos realizados ou correspondências diretas com certos dignatários eclesiásticos revelando estreitos laços entre as
duas instituições, como vemos abaixo:
Vossência. Rvma., 18 de abril findo, comunico assinei nesta data decreto outorga concessão emissora de Educação Rural Ltda. Instalar estação radiodifusora. Respeitosas Saudações. Juscelino Kubitschek. (A
República – 22.05.58)
Não apenas o Nordeste está em discussão naquele período, a situação do homem do campo encontra-se em pauta, onde o esforço para melhorar a qualidade de
vida do meio rural é preocupação não apenas do poder público, mas da Igreja Católica.
Experiência bem sucedida da Arquidiocese de Natal no emprego do rádio para
promover a educação de base, a organização (A República, 1959) com o intuito de
polarizar tôdas as providências, tôdas as obras novas devem ser a da elevação do
nível do homem (A República, 1959).
Na década de 50, o governo desenvolvimentista de Juscelino, também visava a
educação no meio rural, tendo esta como redentora social. A realidade histórica
onde se inserem as relações entre Igreja Católica e educação precisam ser compreendidas para que fiquem claras as causas de uma preocupação tão forte em torno da
educação e da melhoria de vida dos indivíduos.
Este presidente se propunha a descontar o atraso do passado, impelindo o país
na busca de um progresso, cujo lema era “cinqüenta anos em cinco”, e a educação
aparecia como o instrumento mais favorável a este propósito.
Entre 1922 e 1960, a euforia educacional levou os Governos a lançar em mão
de instrumentos eficazes como a educação aplicando a esta tecnologia, numa relação dialética a serviço do capital e da indústria.
A relação entre a Igreja e o Estado apareceu então como uma via de mão dupla:
ao Governo interessava atribuir o trabalho a uma instituição como a Igreja Católica
balizada no “amor divino” como forma de minimizar as tensões sociais bastante
acentuadas na Região Nordeste no final da década de 50 e início de 60, com a expansão dos sindicatos rurais e as discussões acerca da Reforma Agrária se acentuando
cada vez mais e à Igreja Católica, uma ação que ao mesmo tempo ampliasse suas
bases, difundisse seus princípios ideológicos e fizesse valer o ideal cristão de uma
vida fraterna e abundante a todos, interferindo diretamente nas consciências das
pessoas envolvidas. O período era propício a uma aliança neste sentido; para os
trabalhadores o seu adversário era o capital ou quem o detinha e não esta ou aquela
instituição.
Nesta época, entre 1958 e 1960, vivenciava-se o final de um longo período de
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discussões entre leigos e católicos por ocasião da promulgação da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação 4.692/61, onde fica claro que embora existisse uma tendência ao
diálogo entre as duas instituições, a política educacional promovia confrontos acirrados
entre católicos e liberais. A hierarquia eclesiástica estava sempre atenta às discussões
nesta área por entender ser a escola a agência formadora maior e, portanto, a que exercia
influência sobre as lideranças políticas do país. A história da educação do Brasil passou
por diversos estágios desde a colônia. Sempre a Igreja Católica esteve à frente na discussão de projetos ou planos de reforma que pudessem estar em desacordo com seus interesses.
O projeto para educação de base iniciado pelo então Presidente do SAR, D.
Eugênio de Araújo Sales, Bispo Auxiliar de Natal, objetivava atender tanto às necessidades de um país premente em mudanças, em transformações sociais e econômicas, como a um projeto iniciado na década de 40 de levar os ideais católicos a
todos os brasileiros, num processo de retorno ao seio da “Santa Madre Igreja”. As
mudanças eram bem vindas, desde que fossem de acordo com os dogmas da instituição que as possibilitava.
Na sua dissertação Maria Lúcia Pinto exemplifica o cuidado de D. Eugênio
com os conteúdos que eram difundidos pelas Escolas Radiofônicas. Ele possuía
uma atitude conservadora, somente admitindo mudanças lentas e moderadas, responsabilizando-se pelo conteúdo transmitido pelas escolas (mesmo que em 64 tenha
defendido líderes sindicais e se responsabilizado pelas aulas que eram transmitidas,
impedindo a interrupção das mesmas) fazendo, segundo a autora, com que se afirmasse um dos objetivos principais deste projeto no Nordeste, ou seja, impedir a
expansão das ligas camponesas e o avanço do comunismo no campo, cumprindo
também as tarefas da política desenvolvimentista de Juscelino, promovendo a organização da comunidade, formação de líderes, alfabetização de adultos, promoção de
melhores técnicas agrícolas no meio rural, englobando os aspectos econômicos (desenvolvimento), políticos (injustiças sociais), religiosos (justiça divina), indispensáveis ao desenvolvimento econômico da região. Visava um desenvolvimento harmonioso do local para o nacional.11
Como pudemos demonstrar, as Escolas Radiofônicas surgiram em um momento muito peculiar da história. Com o capitalismo em um período ascendente no Brasil, uma política que favorecia os incentivos financeiros e um trabalho sistematizado
e articulado já desenvolvido, a Igreja Católica contou com todos os elementos para
fazer acontecer suas aulas radiofônicas.
AS AULAS RADIOFÔNICAS
A partir do material empírico, referente às Escolas Radiofônicas, coletado e
organizado, assim como das leituras que empreendemos passamos a refletir, principalmente, sobre que bases didático-pedagógicas ergueu-se o ensino à distância promovido pela Arquidiocese de Natal.
O fato é que pouco sabemos sobre este aspecto. Além do fato da literatura que
11
Nacionalismo (hegemonia política), populismo (participação dos subalternos), desenvolvimentismo (promoção humana) – ideários políticos do período entre 1956-1961.
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versa sobre este movimento de ação social da Igreja de Natal enfocar mais os aspectos
sócio-políticos e econômicos, os documentos do SAR com relação às escolas
Radiofônicas, que encontramos, não descrevem a influência pedagógica que permeava
este projeto educacional.
Podemos, entretanto, a partir de um referencial histórico acerca dos ideais educacionais da Igreja Católica nos últimos séculos, inferir ser esta partidária do ensino
tradicional, centrado na figura do professor e promovendo o aluno passivo.
Trabalhamos com roteiros de aulas que encontramos no arquivo da
Arquidiocese do ano de 1960,12 quando as Escolas ainda estavam sob a gerência do
SAR. Abaixo transcrevemos o roteiro de uma das aulas:
EMISSORA DE EDUCAÇÃO RURAL
DIVULGAÇÃO: 09 fevereiro de 1960
HORÁRIO : 18,55hs.
PROGRAMA : 7ª Aula Radiofônica – 2º Turno ou Turno A
Prezados alunos rádio ouvintes, monitor amigo, boa-noite.
Todos de pé, invoquemos proteção da Santíssima Virgem para os nossos trabalhos.
TÉCNICA/CARÁCT./AVE MARIA
Prof. – Antes de iniciarmos a nossa aula, conversemos um pouco. – mais uma
vez insistimos: a escola radiofônica de uma localidade deve/ ser organizada pela
Comunidade e para a Comunidade. A vida da comunidade deve ser a vida da escola.
Desejamos que cada escola radiofônica seja o resultado da cooperação de todos os
habitantes da localidade; homens velhos ou moços, mulheres e até crianças. Também tornamos a afirmar que o fim das escolas Radiofônicas não é / Somente ensinar
a ler, a escrever e a contar ainda que isso, por si só, constitua progresso que bem
desejaríamos ver realizado em pouco tempo, com a alfabetização em massa da população rural.
Cada escola radiofônica será uma instituição com largas raízes que a todos os
indivíduos congreguem a finalidade das Escolas Radiofônicas e tornar todos mais
capazes de vencer na vida.
TÉCNICA/CARACT./3 MINUTOS(TRÊS)
Abram os livros na página 13.
(Lê e faz os alunos lerem)
Não dividimos ao alunos do 2º turno em grupos por que sabemos que são poucos e podemos ler todos de uma só vez, fazendo leitura em côro.
Leiam mais uma vez toda a lição.
12
A escolha dos roteiros de aulas de 1960, deve-se ao fato de: primeiro, termos encontrado muitos roteiros de
aulas deste período; segundo, por não termos encontrado nos arquivos da Arquidiocese os roteiros que datam de
1958 e 1959.
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
83
(Lê)
Monitor, mande os alunos lerem palavras isoladas desta lição de hoje; para
isto vamos dar um pequeno intervalo musical.
TÉCNICA/CARACT./3 MINUTOS(TRÊS)
Para aperfeiçoarmos cada vez mais a nossa escrita, vamos copiar a sentença
que o monitor vai escrever no quadro e, em casa, nas horas de lazer (horas de Lazer
são as horas do dia nas quais nós não temos obrigações para fazer) nas horas de lazer
nós escrevemos muitas vezes, nos nossos cadernos, a mesma sentença.
Vamos monitor, apanhe o giz e escreva no quadro:
“Escove os dentes tôdas as noites.
Sem cumprirmos desde criança êste preceito
de higiene, não poderemos ter bons dentes e/
sem bons dentes não poderemos gozar saúde.
O que somos sem saúde? Farrapos humanos, sem capacidade para o trabalho,
sem vida, sem alegria.
E é por isso que tudo devemos fazer para gozar saúde; é tão fácil, escovar os
dentes tôdas as noites...
Copiaram a sentença ?
Vamos dar um pequeno intervalo para todos copiarem.
TÉCNICA/CARACT./3(TRÊS) MINUTOS
Tirem os cadernos de aritmética. Copiem as contas que o monitor vai escrever
no quadro; Monitor, apanhe giz e escreva...
240
627,00
35,00
-185
+32 ,80
x4
Copiem as contas.
TÉCNICA/CARACT./3(TRÊS) MINUTOS
Sigam a nossa orientação; vamos colocar resposta em tôdas essas continhas.
Pronto? Podemos começar?
TÉCNICA/CARACT./3(TRÊS) MINUTOS
Pelo sinal, etc.
TÉCNICA/CARACT./AVE MARIA E FUNDA C/A FINAL
FIM
Este roteiro de aula evidencia o que havíamos sugerido quanto a pedagogia que
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
84
funda a elaboração dos roteiros e sua aplicação, ou seja, a Igreja Católica apresenta-se
explicitamente como partidária do ensino tradicional, centrando o processo ensino-aprendizado na figura do professor (Vamos monitor, apanhe o giz e escreva no quadro) e,
promovendo o aluno passivo (Tirem os cadernos de aritmética. Copiem as contas que
o monitor vai escrever no quadro). É importante considerar que o procedimento pedagógico das aulas baseia-se muito na cópia (Para aperfeiçoarmos cada vez mais a nossa escrita, vamos copiar a sentença que o monitor vai escrever no quadro), na repetição (nas horas de lazer nós escrevemos muitas vezes, nos nossos cadernos, a mesma sentença.) e na obediência (Sigam a nossa orientação).
No entanto, um outro aspecto curioso deste roteiro é que os seus idealizadores
conseguiram interpenetrar a pedagogia e o meio, ou seja, não existe uma justaposição, mas uma combinação entre o conteúdo e a forma de apresentação das aulas. A
aula radiofônica mesmo tendo como fundamento a pedagogia tradicional, conseguiu manter um dos elementos da magia do rádio, ou seja, ela conseguiu em certos
aspectos subverter a lei da física que anuncia a impossibilidade de a massa de um
corpo ocupar vários espaços ao mesmo tempo. Com a aula sendo transmitida pelo
rádio a professora-locutora transcende o limite e mesmo não estando diante dos
olhos de tantos alunos, ela se faz presente em várias salas. Talvez este seja um dos
mais importantes aspectos do rádio: ele rompe com a ditadura da visão e instaura o
reino da audição convidando pela voz o ouvinte a invocar imagens.
Apesar da distância, as aulas são trabalhadas de modo a instituir uma relação
de “proximidade” entre a professora e os alunos. Em vários trechos, de várias aulas,
percebemos uma preocupação em agir como se ela estivesse presente na sala de
aula:
Gostaram dos testes? Meus amigos, somente por meio das provas como as que
acabamos de fazer ontem, poderemos verificar se vocês estão aprendendo.
(aula radiofônica 08.08.1960)
Está tudo em ordem? Escrevam. (aula radiofônica 08.04.1960)
Existia uma preocupação da professora-locutora em estabelecer um feedback
com os alunos, mas como as aulas eram mecânicas e a professora-locutora as ministrava no estúdio da Rádio, ela ficava impedida de ver e ouvir, ao mesmo tempo, os
alunos que estavam espalhados em diversas salas de aula e em diversos lugares
diferentes do Estado.
Assim, tornou-se necessário que a Igreja Católica construísse um sistema complexo de comunicação. Quem falava era a professora-locutora, mas quem via e ouvia os alunos era a monitora que, por não estar no estúdio, também não via a professora. Deste emaranhado de relações, podemos deduzir que a tentativa de um feedback
com os alunos terminava em um monólogo. Este detalhe diferencia a Escola
Radiofônica do Sistema Regular de Ensino13 no que diz respeito a nossa afirmação
de que a Igreja Católica era partidária do ensino tradicional, porque além de todos os
13 Recorremos a proposição de Sistema de Ensino Regular para designar as escolas em que a relação professoraluno é essencialmente presencial.
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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elementos da escola tradicional as Escolas Radiofônicas ainda haviam construído um modo
complexo de comunicação conforme o que nós apresentamos acima.
Quanto à monitora, podemos sugerir que o seu papel é muito claro nos roteiros
analisados: ela é uma “engrenagem”14 tão importante para fazer funcionar a escola
quanto as pilhas de 1.000 horas e o próprio rádio-receptor. Mas, como a professora
poderia demonstrar os referenciais de escrita a que se propunha sem o auxílio da
monitora? Portanto, ela apresentava-se muito mais fundamental do que uma simples
“engrenagem”.
Apesar do processo se apresentar com os elementos da Pedagogia Tradicional
e com um certo predomínio das técnicas de transmissão pelo rádio, não podemos
esquecer que a educação pelo rádio era antes de tudo um processo que envolvia uma
certa quantidade de pessoas. Talvez por isso, o processo de desenvolvimento das
aulas foi pouco a pouco evidenciando a necessidade de se levar em conta o modo de
vida das pessoas.
As Escolas Radiofônicas, já como MEB, passam a atender esta necessidade
mais relacionada ao cotidiano dos alunos. Os temas das aulas passam a ser definidos
a partir de visitas às comunidades realizadas por funcionários do MEB, que coletando dados sobre a vida dos trabalhadores rurais em cada região formulavam os Livros
de Leitura utilizados nas Escolas Radiofônicas.
O processo de educação pelo rádio não conseguiu promover a pretensa integração
do trabalhador rural no desenvolvimento nacional. Por outro lado, possibilitou instrumentos como a leitura e a escrita que os poderiam ter levado a isto se as pessoas
envolvidas neste projeto não estivessem sujeitas aos limites políticos do período
investigado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A educação é, invariavelmente, descrita como fator básico e decisivo no desenvolvimento de uma nação. Mesmo as pessoas que não têm um grau de escolarização
avançado, reconhecem e afirmam sua importância.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
14 Utilizamos este vocábulo para dar mais ênfase ao processo de coisificação do ser na ótica industrial do período.
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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88
EDUCAR É QUERER COMPREENDER
A SEMIOSES DO ORGANISMO VIVO DO QUAL SE
CUIDA
Sanzia Pinheiro Barbosa1
RESUMO: Trata-se de uma reflexão acerca da necessidade dos estudos da semiótica
para pedagogia numa perspectiva em que o ser da pedagogia é um organismo vivo.
O mundo é metamorfoseado para aquele que possui o psiquismo mais elementar em
formas, cores, odores e sensações a partir de sua estrutura biológica. Nós, animais
humanos, possuímos emissores e receptores espalhados por todo o corpo, que
(re)apresenta para nós e para o outro um mundo exterior e interior, um constante vira-ser, isto é, a nossa relação com o mundo é um eterno (des)velar , puro fluxo do
pensamento, nada mais que um fio de melodia correndo na sucessão de nossas sensações. A matéria viva da pedagogia é o amálgama sígnico expresso por aqueles que
tem sua alma cuidada pelo pedagogo, ou seja, este amálgama representa os substratos
fenomenais da consciência. A operação do pedagogo deve ser, portanto, desmontar
o signo expresso, analisar os seus elementos, e assim pô-lo em movimento e devolvêlo ao indivíduo.
PALAVRAS-CHAVE: Educação; semiótica; filosofia; Ser
EDUCATING IS THE DESIRE OF UNDERSTANDING THE SEMIOSIS
OF THE LIVING ORGANISM THAT ONE TAKES CARE OF
ABSTRACT: This is a reflection on the necessity of semiotics studies for pedagogy,
in a perspective that the self of pedagogy is a living organism. The world is in a kind
of metamorphosis for one who have a more elementary psyquism in forms, colors,
smells, and sensations from his biological structure. We, human animals, have got
senders and transmitters spread through the whole body that (re)introduce to us and
to the other , an interior and an exterior world, which is a constant comes-to-be, that
is, our relation with the world is an eternal “keeping-awake”, pure flux of thought,
nothing more than a wire of melody running in the succession of our sensations. The
living subject of pedagogy is the amalgam sign expressed by someone who has his
soul watched by the pedagogue, that is, this amalgam represents the phenomenal
substracts of the conscience. The pedagogue action must be, then, to dismount the
expressed sign, to analyze its elements , and thus, put it in movement and give it
back to the individual.
KEY-WORDS: Education; semiotics; philosophy; Being
1 Pedagoga. Especialista em Filosofia (Área: Epistemologia) pela UFRN. Mestranda em Ciências Sociais (UFRN).
Professora do curso de Pedagogia da FACEX. Pesquisadora do GRECON/UFRN. Rua Santo Antonio, 360 –
Vila de Ponta Negra. CEP 59090-270 – Natal, RN.
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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Os trigramas não são representações enquanto tais, são tendências de movimento.
I ching
O calor dos trópicos aquece o ser humano, e do fogo nutriz da vida até este ser
há um desvio da luz, do calor, do som, do cheiro... Há uma refração, uma duplicidade
paradoxal por aquele que é onde não está, e está onde não é, ou seja, o signo, não é
apenas um corpo físico que habita a realidade, mas a reflete, é parte dela e se mantém fora dela pois refrata ao refleti-la. Em momento algum é o outro que representa.
O signo só expressa, só substitui, só aponta para o outro.
É a unidade mínima da semiótica que, por sua vez, constitui o “âmbito da
mediação” entre o mundo e o eu, o eu e o outro, o eu e o eu, e não a linguagem verbal
que é, por assim dizer, uma mediação Segunda, um desdobramento da teia semiótica.
Essa teia é puro devir e apresenta-se como um amálgama sígnico na qual cada signo
mantém transparente a sua fonte.
A linguagem é um dos primeiros inventos de todo organismo vivo. O mundo é
metamorfoseado para aquele que possui o psiquismo mais elementar em formas,
cores, odores e sensações a partir de sua estrutura biológica.
O animal humano é um ser sensório-verbi-voco-visual, possui emissores e
receptores espalhados por todo o corpo, que (re)apresentam para si e para o outro
um mundo exterior e interior, mundo este que é constante vir-a-ser, ou seja, sua
relação com o mundo é um eterno (des)velar, puro fluxo, o pensamento, nada mais é
que um fio de melodia correndo na sucessão de suas sensações.
Por estar constantemente aberto, recebendo informações e emitindo-as, lança
no mundo um amálgama sígnico tão complexo quanto a sua existência. O amálgama
diz uma parte ínfima de uma consciência em processo contínuo. O signo expresso é
o terceiro de um processo que continua e se transforma no outro, que olha, escuta,
sente e cheira. As informações do mundo penetram no ser por todos os canais possíveis, colidindo com sua experiência interpenetram-se e gera um até então existente.
O homem enquanto pan-homo-sapiens-demens está preso, condenado a uma
teia complexa e infinita para dentro e para fora. Cada signo provoca outros, tanto no
emissor quanto no receptor. A relação triádica (objeto-signo-interpretante), geradora do signo, cria novos signos imagináveis e inimagináveis. Em estado de vigília ou
sonhando, o homem estar no signo. Quando pensa estar na coisa é o signo que se
apresenta.
Nesse sentido, o pedagogo que pretende se debruçar sobre a compreensão do
desabrochar da alma deve ser como o investigador que encontra no signo expresso
um ponto de partida para o seu percurso. Deve comportar-se como um observador/
leitor que olha espíritos que criam e concebem.
Porém, quando os pedagogos se reúnem para dizer de linguagem, dizem com
a língua. O que pode ela dizer? ... diz de um mundo infinito de curso incessante.
Quando pega-se a palavra daqueles que ora se cuida, toma-se como uma linguagem
formalizada. Esquece que as línguas naturais comportam um rumor que perturba a
“essencialidade” da informação. A palavra é densa de significado do mundo que
rodeia o humano, é lacunosa, fragmentária, diz sempre algo menos com respeito ao
experimentável. A mágica do signo verbal impressionou a humanidade pelas propriedades de associar o traço visível à coisa invisível, à coisa ausente, à coisa desejada ou temida, como uma frágil passarela improvisada sobre o abismo.
Desde os tempos mais remotos, os signos (trata-se aqui da palavra) que os
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
90
homens têm usado no processo de construção do pensamento, e o ato de registrar suas
realizações têm se constituído num motivo constante de espanto e ilusão. Todas as palavras são espirituais, este dizer de Witman não é muito diferente da atitude dos antigos
egipícios, que no texto das pirâmides mencionam um deus chamado Klern, isto é, palavra. A divindade guardiã de Roma tinha um nome incomunicável, e em algumas regiões da
Grécia antiga os nomes sagrados dos deuses eram gravados em placas de chumbo e
afundados no mar para garanti-los contra a profanação.
Para Rosseau, a palavra é a primeira instituição social, sendo o seu criador o
amor que a cria com menor felicidade que o desenho. Assim, o amor possuindo
maneiras mais vivas de exprimir-se, despreza-a. Rosseau ressalta que a linguagem
verbal aprisiona o corpo, ele diz: O texto é uma defesa dos olhos, pois o discurso
mais eloqüente é aquele que se introduz o maior número de imagens, e o som das
palavras nunca possui maior energia do que aquelas possuem os efeitos das cores.
Dessa forma, o pedagogo de uma maneira geral tem se iludido no sentido de
tomar uma palavra (o signo verbal), como o céu da verdade de um ser que é puro
devir. Nada mais fácil de julgar o que tem conteúdo e solidez. O caminho em direção
ao eu que é um constante vir-a-ser é mais difícil, e mais difícil ainda é produzir sua
exposição. Os resultados que os pedagogos exibem nada mais é que cadáveres que
deixam atrás de si a tendência. Essa atitude reificada que o homem tem diante daqueles que se guia e sobre os quais deveria debruçar-se, não é estranha se for levada
em consideração, que se tem o ser como um meio de existência, e não como um fim
em si mesmo. Perde-se o cosmos e restando apenas o olho do dragão, pois as luzes
da cidade obscurecem o olhar humano.
O pedagogo perde-se daquele que guia, perdendo assim a razão do caminhar,
ou seja, perde o ser, e olha o alfabetizando, o vestibulando, o aluno (que segundo
Walter Júnior, a etimologia da palavra aluno é “sem luz”). Busca-se procedimentos
que assepsiam a alma, polindo o ruído gerador. Por que insistir em tirar as crianças
da obscuridade com hábitos de higiene hediondos? Não será por que o homem esquece que antes de ser, esteve no inferno e mergulhou no Leth2 ? E que o signo
expresso é o não-mais de um rio que continua o seu curso, uma vez que nem mesmo
a morte é conclusiva?
Admite a diversidade. Mas, quanto que tem de ousadia para erguer teorias
acerca daquele que ora cuida?
Os signos expressos são substratos fenomenais da consciência. Não são representações do estado da alma que o expressa, são tendências do movimento desta.
Eis a matéria viva da pedagogia: o amálgama sígnico expresso por cada ser que é
cuidado. No entanto, o pedagogo exige um tratado que descreva um sistema acabado de fórmulas perfeitas, e com isso se afasta do Ser. Desvia-se para buscar procedimento que lhe são estranhos passando por cima do(s) eu(s) de cada um, ao invés de
demorar-se, abandona-se a ele(s) procurando estar nele(s); Prefere, porém, estar em
algo distinto como a didática, programas fixos, conteúdos vazios de sentido e oficinas suspeitas.
2 O Hades, inferno grego, é percorrido por rios que Homero, bem antes de Vigílio e Dante, descreve com sacro
terror: O Estige (ou Água do Silêncio), o Aqueronte (Rio da Dor), o Cocito (Rio das Lamentações), o Periflegetonte
(Rio do Fogo) e o Leth (Rio do Esquecimento)
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
91
É preciso desvelar a cena de representação. Apenas os captores de uma maneira
geral são capazes de fazê-lo. Captadores de uma maneira geral e mais especificamente
artistas e cientistas têm na linguagem em movimento sua matéria prima. Porém, a operação do pedagogo é inversa, se trata de desmontar o signo expresso, analisar os seus
elementos numa tentativa de compreender a dinâmica do sistema vivo que o emitiu. Assim, sai de uma compreensão mecânica de mundo que lhe legou o sistema de avaliação e
outras formas de mortes, que por mais diferente que possa ser termina em uma nota como
se fosse passível de mensuração a sua interioridade e ao seu processo de transformação.
Esses fatores envolvem não apenas a cultura mas toda a herança genética e energética, ou
seja, o conceito de sistema vivo, e como diz Saltouris, deveria englobar todos os outros
em nossas instituições educacionais. Ensinar a política e a economia dos sistemas vivos. Todas essas coisas deveriam estar reunidas, pois isso poderia ajudar na condição de
ser humano, a manter os sistemas saudáveis.
Atividade do educador coloca o verbo compreender acima do ensinar. A noção
do compreender exige o saber que o ser é puro devir. A capacidade de ler o movimento
da alma que ora se cuida e mergulhar na tradição do pensamento da humanidade. Quem
melhor responde a esta questão é o pensador americano Peirce, sua semiótica é uma
tentativa de compreensão do movimento da consciência. Porém, antes de se fazer uma
pequeníssima exposição do pensamento desse autor, é importante colocar em rápidas
palavras o conceito de signo para outros autores, que mesmo possuindo diferentes modos
de pensamentos referentes à semiótica peirciana pensaram a questão da linguagem de
maneira singular.
Os termos mais usados como símbolo, sinais, índices, etc., não têm o mesmo
sentido para os vários autores que tratam do assunto. Mas para o pensador Sexto
Empírico, o signo se constitui de três: o som e aquilo que existe. O terceiro fator, no
entanto, não é um corpo. É descrito como uma entidade indicada ou revelada pelo
som, e que apreendemos como subsistindo em nosso pensamento. Santo Agostinho
em sua doutrina cristã afirma: o signo é uma coisa que acima e fora da impressão
que causa nos sentidos faz algo diverso aparecer na mente como conseqüência de
si. Locke, formulador dos postulados básicos do empirismo clássico sugere: Foi
necessário ao homem desvendar certos sinais sensíveis, externos, por meio dos quais
estas idéias invisíveis dos quais seus pensamentos são formulados, pudessem ser
conhecidos dos outros... Rosseau, em seu ensaio sobre a origem das línguas, desenvolveu uma formulação na qual se pode verificar que linguagem e educação são dois
elementos que se interpenetram na construção do espírito humano:
Tão cedo um homem foi reconhecido por outro como um ser que pensa e é
semelhante a ele, o desejo ou a necessidade de comunicar seus sentimentos
lhe fez procurar os meios. Esses meios não podem ser tomados senão dos
sentidos, os únicos instrumentos pelos quais um homem pode agir sobre o
outro. Eis então a instituição dos signos sensíveis para exprimir o pensamento. Os inventores da linguagem não fizeram esse raciocínio, mas o instinto lhe
sugeriu a conseqüência.
Peirce retoma a trilogia do Sexto Empírico que por sua vez se inspira nos estóicos
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
92
para dizer do seu conceito de signo. Um signo ou representamen é algo que, sob certo
aspecto ou de algum modo representa alguma coisa para alguém. Cria na mente
dessa pessoa um signo equivalente ou talvez um signo melhor desenvolvido. Assim,
para que esse interpretante seja erigido, é necessário que signo, objeto e interpretante se
toquem. Hjelmslev, herdeiro da semiologia sousseriana afirma: Um signo funciona, designa, significa. Operando-se a um não signo, um signo é portador de uma significação.
Shaff, quando se volta para pensar a comunicação humana percebe que o signo se apresenta como ponte mediadora:
Qualquer objeto material ou propriedade de tal objeto, ou um evento material
transforma-se em signo quando no processo da comunicação, serve, dentro da
estrutura da linguagem adotada pelas pessoas que se comunicam ao propósito de transmitir certos pensamentos acerca da realidade, isto é, acerca do
mundo exterior, ou de experiências interiores (emocionais, estéticas, volitivas...)
de qualquer das pessoas que participam do processo de comunicação.
Bense retrata de modo singular o pensamento relacional ao anunciar que o signo não
é pois um objeto com propriedade, mas uma relação. Umberto Eco parece sintetizar
uma idéia que percorre todos que se debruçaram sobre esta matéria. Para o pensador,
signo é tudo quanto à base de uma convenção social previamente aceita, possa ser
entendido como algo, que está no lugar de outra coisa...
Apesar de existir divergência de conceituação, há duas variantes que se apresentam nas várias definições: a primeira é que o signo é um que está por outro, ou
seja, representa um que não é ele mesmo; a segunda, que o signo é correlação. O
pensamento relacional sintético se instaura quando se ergue um interpretante.
Antes de debruçar o pensamento na semiótica peirceana, é importante lembrar
aos educadores da importância dos estudos da semiótica para educação, por acreditar que o nível do desenvolvimento dos meios em que se encontra a sociedade exige
uma teoria do ritmo, do movimento, a estrutura a ser apreendida é a móvel, são
poucos elementos que se fixam. É necessário advertir que tal pensamento destina-se
às almas que querem perquerir, e que já compreenderam que apesar da impossibilidade do retorno de Leonardo da Vinci, a criação nos nossos dias exige o solo fértil da
diversidade.
A referência de Peirce é das ciências modernas, com sua particularização do
objeto e sua exigência empírica. No entanto, sua noção de ciência é de coisa viva,
uma busca realizada por homens vivos, que está em permanente estado de metabolismo e crescimento, diferente de Kant, que estudará a consciência que conhece.
Peirce acompanha o desenvolvimento da consciência, percorre a sua evolução até a
superação em suas sucessivas formas: primeiridade, secundidade, terceiridade. Estas categorias cenoptagóricas concordam substancialmente com as figuras da consciência em Hegel: a certeza sensível, a percepção e o entendimento.
Como homem que tinha a mente treinada em laboratório, Peirce é o observador que observa o espírito, seus espíritos que criam e concebem, assim o pensador
busca detalhar cada categoria. Este rebuscar está implícito em toda a sua obra: suas
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categorias cenoptogóricas, sua semiótica e as formas inferenciais elementares articulando-se entre si para dizer do caminho que a consciência percorre. Cada concepção erguida
pelo interpretante é retomada num nível superior, recapitulada e introduzida em uma nova
perspectiva.
As categorias cenoptagóricas são classificadas a partir da análise da experiência que é o resultado cognitivo de nossas vidas passadas. No mundo da experiência
há um elemento que é a força bruta. Nela há uma binariedade: dois que são verdadeiros na relação um com o outro. Há na força bruta várias binariedades. Existe um
estado subseqüente de coisas as quais se supõem duas tendências que se opõem:
uma primeira, tentando mudar a relação em um sentido; uma segunda, tentando
mudar a relação em outro sentido. Estas mudanças se combinam de uma maneira tal,
que ao dar origem ao terceiro, cada tendência é em algum grau seguida e em algum
grau modificada. São dois que se chocam na mente, gerando um terceiro até então
inexistente.
O terceiro é o elemento que vai mediar a relação entre as binariedades. Esse
elemento mediador é a linguagem constituída de partículas a qual chamamos signo.
Um signo é um representamen que apresenta de alguma forma, sob algum aspecto e
sob certa medida, um objeto que não precisa ser necessariamente existente, mas é
capaz de erguer um interpretante que seja a representação de algumas das partes do
objeto apresentado.
As classes de signo apresentadas por Peirce3 são uma teia complexa de relações triádicas. E é exatamente aqui que as categorias cenoptagóricas encontram seu
detalhamento. A classificação dos signos sugere, ainda, que Peirce tentava dizer do
movimento da vida. Suas categorias parecem estação da construção da inteligência
na natureza ou o caminho da consciência para a ciência. O qualissigno icônico
remático é um primeiro puro. É um mar de aminoácidos, um mar polissonoro, gerador da diversidade, de tantos vários caminhos que a vida nos oferece. A última classe, a do legissigno simbólico argumental, é exemplificada por Peirce com o ciclo do
raciocínio (abdução, indução e dedução). É o ápice de complexificação do processo
da vida.
Abdução, indução e dedução são como um ciclo, isto é, degraus que conduzem ao raciocínio científico, o diálogo entre eles é impulsionado pelo choque entre
os fenômenos externos e a observação colateral do interpretante.
Peirce tenta uma aproximação da lógica do movimento da consciência, reduz
toda a ação mental à forma do raciocínio válido, sem qualquer outra suposição exceto,
a das razões da mente que ergue o interpretante. Sua semiótica não é uma mera
topologia dos signos; é o movimento mesmo da consciência que se contrai (morte) e
esse expande (vida) na geração de idéias.
Seguir a sugestão do pensador Morin e realizar a transgressão necessária de
uma visão mecânica para uma visão orgânica exige a compreensão dessa floresta
sígnica em que vive o humano, e a compreensão de que educar é cuidar da alma, e
isso requer uma aproximação da lógica do movimento da alma, cujo ritmo interior
3 Trata-se aqui de um estudo feito das dez classes do signo, apresentadas no livro Semiótica, da editora Perspectiva (ver bibliografia)
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se expressa na ordenação da ação. Essa ação é sígnica, pois se não for signo não comunica, não instaura relação entre os entes.
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ANGELUS NOVUS O (ANTI) HERÓI (PÓS) MODERNO:
ARTE ALEGÓRICA, BARROCO E REVOLUÇÃO
ESTÉTICO-CULTURAL EM WALTER BENJAMIN1
Francisco Ramos Neves2
RESUMO: Este ensaio representa uma leitura hermenêutica da tese 09 sobre o Conceito de História em Benjamin. Relacionamos a imagem alegórica do Angelus Novus
com o ideal de revolução da história e com a desconstrução semiótica e filosófica da
literalidade fechada da arte simbólica e da noção de marcha linear e homogênea
(continuum) presente na filosofia da história dominante.
PALAVRAS-CHAVES: Alegoria; fragmento; barroco, história; pós-moderno.
ANGELUS NOVUS THE (POST)MODERN (ANTI)HERO:
ALLEGORICAL ART, BAROQUE AND CULTURAL-AESTHETIC
REVOLUTION IN WALTER BENJAMIN
ABSTRACT: This essay represents an hermeneutic reading of the thesis 09 on the
Concept of History in Benjamin. We made a relation of the allegorical image of the
Angelus Novus with the ideal of history revolution and the semiotic and philosophical
desconstruction of the closed literallity of the symbolic art, and the notion of the
linear march and homogeneous (continuum) present in the philosophy of the dominant
history.
KEY-WORDS: Allegory; fragment; baroque; history; post-modern.
1 Este ensaio é um capítulo de minha dissertação de Mestrado que realiza uma hermenêutica das teses benjaminianas,
Sobre o Conceito de História, elaboradas em 1940.
2 Mestrado em Filosofia da História (UFPB). Professor de Filosofia, Ética Profissional e de Métodos e Técnicas
de Pesquisa. da Faculdade de Ciências, Cultura e Extensão do RN (FACEX) e da Faculdade Natalense para o
Desenvolvimento do RN (FARN). E-mail.: [email protected] Tel.: (0xx84)964 1772
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“Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa
um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido
para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele
vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre
ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar
os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais
fechá-la. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao
qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o
céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.”3
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho realiza uma leitura hermenêutica da tese 09, presente nas Teses
Sobre o Conceito de História, obra elaborada pelo filósofo alemão, Walter Benjamin, no ano de 1940. Período marcado profundamente pelo auge do regime totalitário nazi-fascista e pela misteriosa morte do autor, na fronteira franco-espanhola,
precisamente na cidade de Port Bou, quando se encontrava acuado na tentativa de
fugir da perseguição e do avanço das tropas da repressão nazi-fascista..
3
Benjamin, Walter. Teses Sobre o Conceito da História. In. Magia e técnica, arte e política.. 2. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1986. Tese 9, p. 226.
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Essa tese insere-se em um conjunto de outras teses como fragmentos alegóricos
que remetem semanticamente a um outro sentido daquele manifesto literalmente em seus
termos. A interpretação da metáfora do Angelus Novus, no quadro do artista plástico
Paul Klee, realizada por Benjamin a partir de um fragmento textual, como é próprio à
imagem dialética do barroco, nos envia a outras leituras e a outras tentativas de interpretação. E é no sentido de uma leitura alegórica que realizamos este trabalho hermenêutico
da supracitada tese.
Nessa tese podemos vislumbrar contribuições ao entendimento do conjunto
das outras teses fragmentares no que diz respeito à crítica da razão histórica do
historicismo na concepção tradicional e iluminista da filosofia da história. Bem
como, podemos vislumbrar com a tese 9 elementos de uma inversão drástica no
estudo semântico e estético da figura do anjo da tradição divina, para representar um
ser outro que sirva de representação à crítica das formas tradicionais de reprodução
conservadora da cultura dominante com seus monumentos convencionais. E isto
nos possibilitou discutir a perda do papel e desconstrução da forma do herói tradicional como ícone da legitimação da história em sua resistência às transformações
que é objeto do novo representante do herói, o (anti) herói (pós) moderno.
Além do mais a referida tese suscita a problematização semiótica entre alegoria em sua contraposição com o símbolo; a primeira enquanto linguagem do barroco
na quebra da literalidade e do universo fechado do símbolo enquanto linguagem do
classicismo própria à concepção de história da tradição dominante.
Por fim, enfatizamos que o presente trabalho não tem a pretensão de ser a
leitura única e verdadeira da alegoria do Angelus Novus, mas representa uma contribuição e uma leitura eminentemente alegórica do fragmento benjaminiano que por
sua característica barroca ainda tem muita coisa a interpretar e nos ensinar com suas
metáforas.
2 IMAGEM TRADICIONAL X IMAGEM ALEGÓRICA: O Ser Outro na
Questão das Diferenças Estética e Semântica da Imagem do Angelus Novus.
A representação estética de um anjo, tal qual a de um arcanjo, um serafim,
um querubim, etc., comumente expressa como símbolo a figura do belo que simboliza um estado de serenidade e felicidade, inerente à sua categoria fundante: a harmonia das formas, sobretudo dos contornos faciais, e isto não se constata na imagem
do “Angelus Novus”, o que, a priori, já o coloca enquanto contraponto, enquanto
diferença, como veremos abaixo com a hermenêutica (interpretação - leitura) da
supracitada Tese benjaminiana de crítica à razão histórica da tradição.
Não há aquela harmonia própria à forma estética da realidade angelical, muito
menos não se vislumbra na denominação semântica Angelus Novus o fundamento
da eternidade intemporal; pois, neste fundamento não há o velho nem o novo, só o
eterno, o que está por fora da temporalidade histórica. E isto caracteriza o caráter
alegórico do Anjo da História enquanto um ícone que manifesta em sua aparência
uma significação outra: a crítica e desconstrução do que se coloca como eterno,
supremo e determinante, que são categorias próprias ao conceito de razão instrumental presente na filosofia da história dos dominantes. Em tal razão há a submissão
da vontade de todos às absolutas e escatológicas forças do progresso, porém o
Angelus Novus resiste e interpõe sua vontade própria, contrariando a ordem da
história oficial estabelecida arbitrariamente.
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
98
“Os anjos não são novos, são intemporais como o próprio Deus de quem
são emanação. Os anjos também não têm vontade própria, sobretudo após
a lição exemplar aplicada a Lúcifer. Eles são governados pelo próprio
desígnio divino e por isso mesmo a natureza ou as forças do mundo celeste jamais atua contra eles. Portanto se a tempestade letal do progresso,
que vem do paraíso, decorreu da vontade de Deus, esse anjo não mais
obedece, mas resiste aos propósitos do Supremo”.4
No entanto, a alegoria5 do “Angelus Novus” concebida por Paul Klee e adotada por Benjamin, na supracitada tese, como representação do “anjo da história”,
em sua forma estética, não propicia ao espectador um contemplar sereno e tranqüilo de uma harmonia apolínia, própria ao símbolo dentro do campo semiótico. Sua
compreensão requer uma hermenêutica que extrapole o seu sentido literalmente
manifesto; visto que, a leitura alegórica representa a busca de seu ser outro, uma
espécie de alteridade semântica, pela quebra da literalidade simbólica de sua
imagem.
3 O ALEGÓRICO COMO CONTRAPONTO SEMIÓTICO AO SIMBÓLICO: O Barroco Como Antítese do Classicismo.
A relação semiótica de diferenciação entre o simbólico e o alegórico pode ser
enfatizada na imagem icônica do Angelus Novus. De acordo com Benjamin a compreensão “persuasiva e esquemática” desta relação pode se efetivar “à luz da decisiva categoria do tempo”6 ; pela qual verificamos que o símbolo apresenta convencionalmente a forma harmônica do tempo histórico, que “ao juntar significado e
significante, propõe uma representação monista e fechada” em “uma totalidade
que tudo estrutura e hierarquiza”7 .
Por sua vez, a alegoria, ao contrário do símbolo, enquanto “metáfora continuada” é a representação da obra em aberto, “a obra que, para referir-se ao mundo
fragmentado, tornou-se ela própria fragmentada, por recusar a totalização, o fechamento de sentido”.8 E isto a demonstra enquanto portadora de múltiplos e
diferentes sentidos e significações em uma polissemia de signos, possibilitando a
formação da arte a partir da técnica de colagens, montagens e remontagens de fragmentos, desconstruindo a unidade entre conteúdo e forma, própria à realidade semântica do símbolo. “É próprio do procedimento alegórico essa disjunção entre o
significado( o conteúdo, o que se expressa) e o significante (a forma).”9
Destarte, a alegoria representa a desfiguração e mortificação da aparente harmonia das formas de arte, como podemos observar na imagem grotesca e desfigu-
4
Sevcenko, Nicolau. O Enigma Pós-moderno. In.: Pós-modernidade. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1987. p. 48.
“Etimologicamente, alegoria vem do grego allos (outro) e agourein (falar), portanto, quer dizer: ‘falar o outro’. A
alegoria é um procedimento retórico através do qual se exprime um sentido, não imediatamente compreensível, diverso
do sentido literal.” Ver.: Frederico, Celso. Lukács e Walter Benjamin. in.: Lukács: Um Clássico do Século XX. .ed. São
Paulo: Moderna, 1997. p. 68. (Col. Logos).
6 Benjamin, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 188
7 Frederico, Celso. Op. cit. p. 74
8 Idem. p. 70
9 Idem. p. 69
5
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99
rada do Angelus Novus, evidenciando as ruínas da história pela olhar petrificado de uma
caveira como representação também alegórica da mortificação e fragmentação da realidade (simbólica) presente na história oficial. E de acordo com Benjamin,
“Ao passo que no símbolo, com a transfiguração do declínio, o rosto
metamorfoseado da natureza se revela fugazmente à luz da salvação, a alegoria mostra ao observador a facies hippocratica da história como protopaisagem
petrificada. A história em tudo o que nela desde o início é prematuro, sofrido
e malogrado, se exprime num rosto – não, numa caveira. E porque não existe,
nela, nenhuma liberdade simbólica de expressão, nenhuma harmonia clássica
da forma, em suma, nada de humano, essa figura, de todas, a mais sujeita à
natureza, exprime, não somente a existência humana em geral, mas de modo
altamente expressivo, e sob a forma de um enigma, a história biográfica de um
indivíduo.”10
A alegoria do Angelus Novus ao quebrar a aparente realidade do objeto realiza
sua morte para fazer renascer um novo significado sobre sua verdade literal e simbólica. Esta mortificação acontece porque, pela abordagem alegórica, o objeto é
retirado do seu contexto tradicional, habitual, e desconstruído, mortificado em sua
manifestação literal para uma nova (outra) vida.
“O alegorista, em seu fazer artístico, retira os objetos de sua localização histórica habitual e lhes confere , no novo contexto, um significado material diverso do originário. (...) Com isso, o objeto morre para poder renascer.
Ocorre, portanto, uma pulverização do mundo: a realidade é desmontada e
reduzida a fragmentos, sendo que cada um deles pode receber uma nova significação.” 11
Assim, o Barroco como expressão artística do alegórico se revela como “a
soberana antítese do classicismo”, sendo este a expressão artística do símbolo;
enquanto que no Classicismo (também em parte no Romantismo) há um culto ao
símbolo da arte acabada, na arte barroca o “olhar profundo do alegorista transmuta
de um só golpe coisas e obras numa escrita apaixonante”.12
4 ANJO BARROCO, BARBÁRIE E DIABRETES MUSICAIS NA ARTE DE
FANTASIA LIVRE DE PAUL KLEE.
Paul Klee, com sua obra, corrói as bases do edifício de contemplação passiva
da obra de arte, desfigura a tranqüilidade do gozo estético. O mundo de Klee é, “um
mundo muito diferente de outro qualquer concebido por uma imaginação latina: é
um mundo de espectros e duendes, de gnomos matemáticos e diabretes musicais, de
flores élficas e bestas fabulosas: um mundo gótico.”13
10
Benjamin, Walter. Op. cit. p. 188.
Frederico, Celso. Op. cit. p. 69.
12 Benjamin, Walter. Op. cit. p. 198.
13 Read, Herbert. A Arte de Agora, Agora. 2.ed.. São Paulo: Perspectiva, 1981. p. 109.
11
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100
O olhar de quem contempla uma de suas (des) figuras, como o Angelus Novus, é
de profundo estranhamento que o conduz ao espanto característico da “Nova Barbárie”.
Segundo Benjamin, nas figuras do Klee a exterioridade não pode ser aleatória, pois
como manifestação externa, representação, a “expressão fisionômica dessas figuras
obedece ao que está dentro. Ao que está dentro, e não à interioridade: é por isso
que elas são bárbaras.”14
Isto se justifica ao percebermos que Paul Klee, artista plástico moderno, é
representante da arte de fantasia livre, arte pela arte. No entanto, mesmo sendo livre
de um cânone formal absoluto sua arte possui um conteúdo fundamental, porém, “o
elemento formal acha-se inteiramente subordinado ao conteúdo. O conteúdo não
está subordinado a nada: é fantasia livre.”15
A arte de fantasia livre gera uma ausência de sentido na literalidade de sua exposição, e é no debater-se contra a tempestade do progresso historicista que reside o
“não-senso” e a passagem ao sentido se constrói sobre a nova historiografia
recuperadora da cultura dos rejeitados historicamente. E “segundo a razão barroca, o Anjo benjaminiano é o de Baudelaire, Klee, Rilke: são receptáculos de uma
reserva de não-senso, para que se possa passar ao sentido”16 .
Esta forma de arte é própria da intenção barroca, bem como “a escrita visual do
alegórico” constituída por uma espécie de “fragmento amorfo”17 , que a torna,
mesmo assim, rica em significações; na qual “a expressão de cada idéia recorre a
uma verdadeira erupção de imagens, que origina um caos de metáforas”18 , onde,
evidentemente com a abertura do sentido para a expressão barroca da escrita alegórica,
“Cada pessoa, cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra. Essa
possibilidade profere contra o mundo profano um veredicto devastador, mas
justo: ele é visto como um mundo no qual o pormenor não tem importância.
Mas ao mesmo tempo se torna claro, sobretudo para os que estão familiarizados com a exegese alegórica da escrita.”19
As obras de arte de Klee, como o Angelus Novus, são destinadas às pessoas
dotadas de uma sensibilidade pós-moderna; visto que desconstroem o tradicional,
reproduzido pelo passado histórico do factual vivido, que alegoricamente mortifica
o presente deste continuum para um dizer outro, pela emergência do inteiramente
novo na história. Assim,
14 Benjamin,, Walter.
Experiência e Pobreza. In.: Magia e Técnica, Arte e Política. 2.ed. São Paulo: Brasiliense,
1986. p. 116.
15 Read, Herbert. Op. cit. p. 108. Read chega a ousar uma definição da arte de Klee, dizendo que ela “serve
de ponte entre abstração geométrica e simbolismo onírico, entre cubismo e super-realismo. Seu gênio (como o
de Picasso) abrange os extremos do movimento moderno, e ao mesmo tempo os transcende. Ele foi reivindicado
pelos surrealistas, mas nunca endossou o programa deles”. p. 109-110.
16 Matos, Olgária C. F.. Os Arcanos do Inteiramente Outro: A Escola de Frankfurt, a melancolia e a revolução.
São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 69.
17 Benjamin, Walter. Origem... São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 198 ss.
18 Benjamin, Walter. Op. cit. p. 195.
19 Idem . p.196-197
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101
“tanto um pintor complexo como Paul Klee quanto um arquiteto programático
como Loos rejeitam a imagem do homem tradicional, solene, nobre, adornado
com todas as oferendas do passado, para dirigir-se ao contemporâneo nu,
deitado como um recém-nascido nas fraldas sujas de nossa época.”20
Ao contrário, seu olhar é de uma profunda melancolia e uma indignação
moral, e em seu caminho esbarra com os detritos do fluxo do tempo histórico da
tradição dominante, tornando-se um contraponto à tempestade do progresso;21 e o
momento de sua fruição estética se estende arrastado por este olhar espantoso,
inquietante e escancarado do “Angelus Novus”. A alegoria é a natureza e forma
deste olhar, e sua inspiração reside no rosto turvo e gélido da melancolia. “Pois a
alegoria é o único divertimento, de resto muito intenso, que o melancólico se permite”22 .
5 O ANJO DA HISTÓRIA COMO (ANTI) HERÓI (PÓS)MODERNO:
Ruínas e fragmentação da razão histórica na crítica ao culto de conservação
da história oficial.
As realizações do herói tradicional são coroadas de êxito quando apresenta
objetivamente o fluxo determinista do tempo, cumprindo em seus atos e em suas
imagens a idéia de um “progresso” enquanto marcha inexorável de um povo no
“interior de um tempo vazio e homogêneo” do historicismo. “A crítica da idéia do
progresso tem como pressuposto a crítica da idéia dessa marcha”23 do historicismo
que apregoa o culto ao herói da história oficial.
A imagem do Angelus Novus não incorpora as características do herói tradicionalmente aceito. Sua imagem é a do anti-herói que mergulha na contracorrente da
história, desconstruindo a idéia do “progresso” da razão histórica no pensamento
da tradição político e culturalmente dominante.
Desta forma, a espera ao herói da tradição representa uma atitude conservadora
que favorece aos dominantes. É o culto aristocrata e capitalista de submissão a um
poder centralizador e despótico, como o próprio historiador conservador do
tradicionalismo da história oficial no século XIX , Thomas Carlyle, defende como
forma de manutenção do status quo existente. Segundo Carlyle, para a juventude
respeitar a ordem e conservar a história sem mudanças é necessário o culto ao herói
tradicional, visto que, o antigo “herói é filho da ordem, sua missão é garanti-la, e
seu culto é a garantia das tradições, dos credos e das sociedades instituídas.”24
Assim, criticamente a imagem alegórica da história é de perspectiva anti-heróica, que não conserva a cadeia dos acontecimentos do tempo vazio e homogêneo, que
20 Benjamin, Walter.
Experiência e Pobreza. In.: Magia e Técnica, Arte e Política. 2.ed. São Paulo: Brasiliense,
1986. p. 116.
21 A idéia de progresso presente nas teorias tradicionais da filosofia da história representa um movimento
determinado por pretensas “leis históricas”, que regem a marcha da humanidade independente de sua vontade
livre, constituindo a idéia de força no conceito de teleologia (teoria formal do agir conforme a fins determinados
racionalmente) da tradição.
22 Benjamin, Walter. Origem ... p. 207
23 Benjamin, Walter. Teses ... Tese 13, p. 229.
24 Feijó, Martin Cezar. O Que é Herói. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 34. (Coleção Primeiros Passos).
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102
demonstra a história oficial como “uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés.”25 E esta imagem da história em
fragmentos é o que joga o anti-heróico “Angelus Novus” no espanto por tamanha
translucidez.
O Anjo é a alegoria que mostra a história do vivido (do ocorrido oficialmente)
como ruína e fragmentos das potencialidades do ainda-não-vivido, que é a alteridade
histórica reprimida. A matéria mais nobre da criação barroca é esta imagem da
história em fragmentos, em ruínas, em estilhaços, e nisto consiste o núcleo central
“da visão alegórica: a exposição barroca, mundana, da história como história mundial do sofrimento, significativa apenas nos episódios do declínio”26 . E, ainda de
acordo com o pensamento benjaminiano,
“como ruína, a história se fundiu sensorialmente com o cenário. Sob
essa forma, a história não constitui um processo de vida eterna, mas de
inevitável declínio. Com isso, a alegoria reconhece estar além do belo.
As alegorias são no reino dos pensamentos o que são as ruínas no reino
das coisas. Daí o culto barroco das ruínas.”27
Destarte, diferentemente do herói da tradição conformista que se submete passivamente à tempestade do progresso como símbolo de uma cadeia de acontecimentos, o Angelus Novus é a alegoria do anti-herói, sua missão é a de fazer
explodir o continuum do cortejo triunfal da história pelos ares, formando uma tempestade de fragmentos. O anjo, tal qual o (anti)herói (pós)moderno é aquele que
está à margem, juntamente com os rejeitados historicamente, pois, “não
estando mais sintonizado com o poder, ele próprio está condenado a ser um vencido
e um enxovalhado.28 E é por isso que faz questão, metaforicamente, de não vivenciar
a experiência do tempo vazio e homogêneo da razão histórica. A (in)experiência
com a história oficial dos dominantes, a partir da realidade efêmera e fugidia do
rejeitado,
“do inadaptado, do alegorista da cidade(...) é homóloga ao olhar do Anjo
melancólico da história: nele se tecem as relações inéditas entre o humano e o
inumano, o efêmero e o eterno, a história e o messianismo. O Anjo é o intérprete daquilo que no homem e na história existe de inumano, que transgride
suas fronteiras.”29
A aparição fugaz na história do Angelus Novus, representa a imagem de
conflito com a figura do antigo herói trágico do passado vivido da antigüidade,
eternizado pela empatia historicista. A imagem do “anjo da história” é de perspectiva anti-heróica, tal qual o poeta moderno, que temos como exemplo Charles
Baudelaire, o poeta de “Flores do Mal”. Desta forma, o “anjo, tal como o poeta, é
a alegoria da temporalidade, do precário e do fugidio, vivido nas multidões abstratas e quantitativas da metrópole, esse turbilhão panteísta da modernidade”.30
Haja vista que, o poeta é “o substrato do herói da antigüidade”, uma espécie
25
Benjamin, Walter. Op. cit.. Tese 9, p. 226.
Benjamin, Walter. Origem ... p. 188.
27 Benjamin, Walter. Op. cit. p. 200.
28 Sevcenko, Nicolau. Op. cit. p. 48.
29 Matos, Olgária C. F.. Op. cit. p. 69.
30 Matos, Olgária C. F.. Op. cit. p. 70.
26
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
103
de “herói moderno” que se auto nega enquanto tal e renuncia seu papel; pois, “no
conceito de herói moderno já se esboça esta renúncia. Ele está predestinado à derrota”31 .
O herói da atualidade mais que moderno é pós-moderno, pela crítica
desconstrutiva da razão histórica. Vinculo o Angelus Novus ao ideal pós-moderno,
visto que este ideal “supõe uma reflexão sobre o tempo”, e se refere, em sua elaboração conceitual a um outro tempo histórico que não seja “um tempo homogêneo,
linear, em que se pudesse estabelecer um recorte e fixar uma data decisiva, um ato
inaugural, como se poderia esperar da visão simplista da história na qual somos
zelosamente educados” 32 .
E este outro tempo, que o Anjo da história indica, rompe com as barreiras do
totalitarismo da razão instrumental do historicismo da modernidade iluminista, que
fecha o universo da história em um encadeamento causal rumo a fim predeterminado; desta forma, a alegoria alada que Benjamin descreve assume revolucionariamente
um outro tempo, e “essa é a condição do novo que se manifesta após a
modernidade”33 .
O Angelus Novus, por sua renúncia ao papel do herói tradicional, é, neste
novo tempo, o anti-herói na relação com a tradição da história simplista e linear
propalada pelos dominantes. “Porque o herói moderno não é herói – é o representante do herói”34 . E na relação: essência - fenômeno, a essência enquanto idéia alimenta a sua manifestação: o fenômeno, que por sua vez torna-se representação da
essência. Já que o fenômeno é eminentemente histórico e contingencial, sua forma
representativa torna-se algo radicalmente diferente da origem, desconstruindo seu
papel e forma original.
A heteronomia complexa desta (pós) modernidade revela-se “como tragédia
em que o papel do herói está disponível”35 , como sua fatalidade, na qual “o herói
não está previsto; ela não tem emprego para este tipo. Ela o amarra-o para sempre
no porto seguro; abandona-o a uma eterna ociosidade.”36 Assim, em uma alegoria
o anti-herói assume o papel colocado à disposição, o desconstroi e o representa na
imagem do herói moderno.
O anti-herói encarna o ideal de personagens pouco convencionais para a situação (pós) moderna. São os exilados urbanos das grandes metrópoles que os marginalizam na melancolia das cidades racionalistas. “Os novos heróis do drama barroco benjaminiano da modernidade são os que estão à margem, os a-sociais, os
inadaptados”37 ; como, além de outros, o Flaneur, o apache, o dandy, o colecionador, o trapeiro, o poeta38 , que, tal qual Baudelaire, desconstroi a realidade pela arte
31
Benjamin, Walter. A Modernidade. In: A Modernidade e os Modernos. Rio: Tempo Brasileiro, 1975. p. 16.
(Biblioteca Tempo Universitário, 41)
32 Sevcenko, Nicolau. Op. cit. p. 45.
33 Idem. p. 50.
34 Benjamin, Walter. Op. cit. p. 28
35 Idem. p. 28
36 Idem. p. 27
37 Matos, Olgária C. F.. Op. cit. p. 69
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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alegórica.
E esses heróis inadaptados são na verdade os que não se encontram nos anais
da história oficial, pois sempre “a história oficial registrou os heróis oficiais, os
heróis da classe dominante: reis, generais, empresários e guerreiros”39 ; os demais
se destacam, mas por serem contrários a esta ordem histórica legitimadora da opressão, e esses são os inadaptados heróis conspiradores e revolucionários, que são “bandidos para a classes dominantes e heróis para as classes dominadas”40 . Em
Baudelaire podemos ver o resgate desse outro tipo de herói, o (anti)herói anunciado
alegoricamente como o outro ser da realidade em uma violência poética que
desconstrói o sentido original do herói da tradição. Visto que, a poesia de Baudelaire
“é um ato violência e nisto ele recorre a alegorias. São as únicas que fazem parte do
segredo.”41
E é entre aqueles personagens inadaptados que se situa a alegoria do anjo da
história, que em seu espanto com o turbilhão de acontecimentos da sociedade capitalista moderna serve de referência para a crítica transformadora da realidade, e este
é o caráter próprio à alegoria, que Baudelaire define poeticamente da seguinte forma:
“ ALEGORIA/ É uma bela mulher, de aparência altaneira,/Que deixa mergulhar no vinho a cabeleira./As tenazes do amor, os venenos da intriga,/Nada
a epiderme de granito lhe fustiga./Da Morte ela se ri e escarnece da Orgia,/
Espectros cuja mão, que ceifa e suplicia,/Respeitaram, contudo, em seus jogos
de horror,/Neste corpo elegante o rústico esplendor./Caminha como deusa e
dorme qual sultana,/E mantém no prazer uma fé maometana./Braços em cruz,
inflando os seios soberanos,/Com seu olhar convoca a raça dos humanos./Ela
sabe, ela crê, em seu ventre infecundo,/E no entanto essencial ao avanço do
mundo,/Que a beleza do corpo é sempre um dom sublime/Que perdoa a sorrir
qualquer infâmia ou crime./O inferno desconhece e o Purgatório ignora,/E
quando a negra Noite anunciar sua hora,/Da Morte ela há de olhar o rosto
apodrecido/— Sem remorso ou rancor, como um recém-nascido.”42
Benjamin teve forte influência do pensamento estético de Baudelaire, principalmente no que diz respeito à noção de alegoria. A postura iconoclasta do Angelus
Novus que, mesmo diante das ruínas e decadência do mundo moderno da razão
histórica, não se entrega ao inferno do cortejo triunfal dos dominantes, nem aceita
38 Estes personagens têm, em sua imagem, muita coisa em comum que os designam como (anti)heróis (pós)modernos.
O apache que, segundo Benjamin, “renega as virtudes e as leis, denuncia de uma vez para sempre o contrato
social.” E o colecionador, o dandy, o flaneur, o trapeiro e o poeta, além de outros, que, de acordo com Baudelaire,
vagam perdidamente, feitos transeuntes, pela cidade a coletar como se coleta rimas e versos todo o lixo do dia que
passou, tudo o que ela jogou fora, “tudo o que perdeu, tudo o que despreza, tudo o e destrói”; assim este grupo de
personagens “coleciona os anais da desordem, o Cafarnaum da devassidão, seleciona as coisas, escolhe-as com
inteligência; procede como um avarento em relação a um tesouro e agarra o entulho que nas maxilas da deusa
da indústria tomará a forma de objetos úteis ou agradáveis”. Baudelaire, Charles. Apud. Benjamin, Walter. Op.
cit. p. 15, 16 e ss.
39 Feijó, Martin Cézar. Op. cit. p. 29 .
40 Idem. p. 31
41 Benjamin, Walter. Op. cit. p. 30.
42 Baudelaire, Charles. Alegoria (CXIV). In.: As flores do mal. 5.ed. Rio: Nova Fronteira, 1985. p. 403
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seguir a corrente do continuum historicista. O anjo da história benjaminiano tem uma
relação íntima com o conceito estético de alegoria em Baudelaire; como o próprio poeta
enuncia em um de seus poemas que a alegoria não teme a decadência, ela ri da morte e
desta “Morte ela há de olhar o rosto apodrecido –Sem remorso ou rancor”, e verá
que as ruínas e os fragmentos que desconstroem e mortificam o mundo moderno apenas
prenunciam o inteiramente outro, o novo na contracorrente da história, “como um recém-nascido.”43
Também podemos vislumbrar uma conspiração contra a literalidade simbólica
dos textos literários44 , no que diz respeito à figura do herói, e o próprio Baudelaire
reconhece na figura do conspirador (a exemplo de Blanqui) a “imagem do herói
moderno”45 . E conclama: “abaixo as tragédias”, que colocava o herói antigo em
uma marcha determinista a uma trágica escatologia sem o direito de sequer sonhar
com a liberdade, para propor uma desconstrução desta marcha, indo pela
contracorrente e despedindo-se do mundo “em que a ação não é sinônimo do sonho”46 .
A alegoria na poesia de Baudelaire, na figura do anti-herói e nas figuras de
Klee, que tanto inspiraram Benjamin, tem as costas voltadas para o cortejo triunfal
dos vencedores, e o Angelus Novus, como a mais presente arte alegórica, é a referência destas figuras bastante tematizadas nas obras de Baudelaire. Destarte,
“tal qual o Angelus Novus, também Benjamin e Baudelaire testemunham o
desfiguramento, a destruição e as ruínas da metrópole moderna(...)
Modernidade e caducidade são captadas naqueles que a cidade exclui, marginalizando-os: são os velhos, o ‘lixo humano’, dos Tableaux Parisiens”47
A melancolia de vislumbrar o mundo em fragmentos mortos, e as intenções
dos vencidos em ruínas encobertas pelos monumentos deixados pelos dominantes é
própria à constituição do olhar alegórico que tenta deter-ser para recuperar a história
na perspectiva daqueles oprimidos. A melancolia coloca o anjo benjaminiano em
situação de distância em relação a seu mundo, pois o melancólico vive um sentimento de estranhamento(...) o sentido profundo da melancolia encontra-se em sua
‘fidelidade ao rejeitado’”48
Benjamin utiliza-se da alegoria, na referida tese 9, para representar o momento
filosófico do assombro (ou espanto), gerador de conhecimentos, como um corte
(refluxo) no tempo continuum. Pois, “quando o fluxo real da vida é represado,
imobilizando-se, essa interrupção é vivida como se fosse um refluxo: o assombro é
esse refluxo.”49
O refluxo histórico é propiciado pela contracorrente desconstrutiva do ideal
historicista e teleológico do tempo e do progresso. O Angelus Novus tem o rosto
voltado para o passado e não para o futuro prometeico e otimista do determinismo
da razão histórica. Dessa forma, como resultante do assombro filosófico, tal alegoria alada não tem o olhar dirigido ao fim escatológico de uma totalidade fechada,
43
44
Baudelaire, Charles. Op. cit. p. 403
A própria leitura alegoricamente estabelecida propõe a desconstrução da literalidade semântica do texto em
um movimento exegético (hermenêutico), que nos remete ao distante mesmo no que está próximo, em busca de
um significado outro. Desta forma, “a leitura alegórica procura acompanhar esse movimento, essa insistente
busca do outro”. Ver.: Kothe, Flávio R.. A Alegoria. São Paulo: Ática, 1986. p. 75.
45 Benjamin, Walter. Op. cit. p. 31.
46 Baudelaire, Charles. Apud. Benjamin, Walter. Op. cit. p. 31.
47 Matos, Olgária C. F. Op. cit. p. 72.
48 Idem. p. 71 e ss.
49 Benjamin, Walter. Que é o Teatro Épico. In: Magia e Técnica, Arte e Política. 2.ed. São Paulo: Brasiliense,
1986. p. 89.
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nem segue em uma marcha linear e mecânica determinada por pretensas “leis naturais”.
6 CONCLUSÃO
Por fim, o anjo da história é a alegoria que, por excelência, torna-se ícone da
luta de Walter Benjamin contra a noção de progresso em si da humanidade presente
na razão histórica iluminista. Sem dúvida, que por assim ser, a Tese 09 é a mais
importante e mais amplamente conhecida. Nela se configura a radicalização alegórica do relacionamento da história destino com a história dos fracassos, onde o tempo
presente propicia o momento filosófico do assombro para sua reparação anamnésica
e para a realização da esperança de felicidade no resgate do inteiramente novo,
como o ainda-não-vivido.
O Angelus Novus traduz a recusa da mão-única seguida pelo transcurso da razão histórica na teleologia do mesmo na filosofia da história. E é a demonstração
alegórica da visão barroca do mundo e da história em fragmentos, aberta para inúmeras possibilidades revolucionárias, na desconstrução do continuum do tempo vazio e homogêneo e na reparação e recuperação anamnésica da história na perspectiva dos injustiçados, rumo ao inteiramente novo na história da humanidade.
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READ, Herbert. A Arte de Agora, Agora. 2.ed.. São Paulo: Ed. Perspectiva,
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SEVCENKO, Nicolau. O Enigma Pós-moderno. In: Pós-modernidade. Campinas:
Ed. da UNICAMP, 1987.
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107
UTOPIA E ANTROPOFAGIA: QUANDO O “U” DO
TUPI GUARANI RECOLOCA A CABEÇA DE
MORUS SOBRE OS SEUS OMBROS
Walter Pinheiro Barbosa Junior1
RESUMO: Este trabalho objetiva contribuir com uma certa arqueologia na tradição
literária sobre Utopia. Ele inspira-se nas obras dos “utopistas” e busca identificar os
elementos de intersecção que existem entre a cultura européia e a dos humanos que
habitavam nas terras do além-mar. A antropofagia oswaldiana, o sentido que a letra
“U” possui na língua tupi e o contexto histórico da época em que São Tomas Morus
escreveu sua obra: Livreto deveras precioso e não menos útil do que agradável
sobre o melhor dos regimes de Estado e a ilha da utopia, fundamentam e definem a
forma deste trabalho enquanto uma preocupação filosófico-literária que reflete as
múltiplas possibilidades das utopias, concentrando-se na letra que inicia a palavra
utopia. O “U” sendo na língua grega negação, também se apresenta no tupi guarani
como comer, engolir, ou seja, enquanto uma afirmação.
PALAVRAS-CHAVE: Utopia; arqueologia; Morus; Tupi.
UTOPIA AND ANTHROPOPHAGY: WHEN THE “U” FROM THE TUPI
GUARANI PUTS AGAIN MORUS’S HEAD OVER HIS SHOULDERS
ABSTRACT: This work has the objective of giving a contribution in terms of
archeology to the literary tradition on Utopia. It is inspired in works of “utopists”,
and it searches for identifying the elements of intersection that exist between the
European culture and that of human people who inhabited over-sea lands. The
Oswaldian anthropophagy, the meaning that the letter “U”got in the Tupi language,
and the historical context of the epoch in which Saint Thomas Morus wrote his
work: “Book indeed precious and not lesser useful than nice on the best social system
of the State and the island of utopia” (our translation) substantiate and define the
form of this work as a philosophical and literary preoccupation that reflect the
multiples possibilities of the utopias, concentrating on the letter which iniciates the
word utopia. The “U” means Greek negation, but it also presents itself in Tupi Guarani
meaning to eat, to swallow, as an affirmation.
KEY-WORDS: Utopia; archaeology; Morus; Tupi.
1 Pedagogo. Mestre em Educação. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professor Assistente I da UFRN. End.: Serrambi V, Bl. 06, apt. 404.
Nova Parnamirim. CEP 59080-100, Parnamirim/RN. E-mail: [email protected]
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
108
Por toda parte estamos diante do Ser e cercados de mistérios.
(Heraldo Barbuy)
Leve é o pássaro
E a sua sombra voante mais leve
E o que lembra ouvindo-se deslizar
seu canto mais leve
E o desejo rápido desse antigo instante
Mais leve.
(Cecília Meireles)
Desejo penetrar na não verdade, destruir aletéia, banquetear-me com a serpente e
vagar pelo mundo, deslizando no bosque por entre as tenebrosas árvores de concreto
buscando algo que se assemelhe ao algo da busca. Não quero a companhia de Virgílio,
nem que Beatriz me aguarde, sigo como mais um troglodita borgiano que ergue o lugar,
mas habita a margem e não usa capa nem guarda-chuva quando chove.
Caminho inutilmente, pé ante pé, pelas avenidas, ruelas e estreitos becos da
cidade que erigi em mim mesmo, em uma das esquinas, ou melhor, na calçada do
café São Luiz onde escuto o grunhido do homem de marrom, me aproximo e ouvindo dos seus lábios olho suas palavras que marcham como marcham os soldados no
dia 7 de setembro: firmes, cadenciados e organizados. O homem de marrom contava
para os outros “desocupados”, que a palavra utopia significava fantasia, ideal, desejo irrealizável e que esta mesma palavra podia designar um gênero literário que
delimita um campo no qual diversas obras encadeiam-se como elos de uma mesma
e única corrente; para ele a palavra podia ainda designar algumas ficções políticas.
O homem de marrom julgou desargumentar todos os presentes quando afirmou:
- A palavra utopia significa “u” de negação, de não e, topos que significa lugar.
Portanto, a etimologia da palavra utopia significa: lugar que não existe.
Para destruir de vez qualquer possibilidade de contra argumentação ele sentenciou:
- A palavra utopia emerge com muita força, quando, em 1716, o relator do
Conselho de Estado, São Tomas Morus escreveu sua obra prima: A Utopia, e nesta
obra ele utilizou palavras como Amaurote (cidade fantasma), rio Anidra (rio sem
água), rei Utopos (rei do lugar que não existe) e colocou como relator Rafael (viajante que abre os olhos dos homens). Com isso o próprio Morus negou tudo o que
enunciou.
Ouvindo os lábios do homem de marrom e olhando suas palavras, um eu de
mim atordoado se recolheu à cela interior (a mais profunda), para em silêncio realizar uma escavação arqueológica.
O tempo, a paciência e o trabalho de um dos meus eus permitiram descobrir
que a sorte de todo pensamento importante tem sido sempre a de durar se dividindo,
de maneira que a próxima questão do elo que une a tradição diversificada permanece aberta e em debate.
Um eu paciente de mim entrou no rio da existência. Descalço, sentia o fluxo da
terra e da água a tocar os pés, a cabeça estendia-se pela abóbada celeste e seus
braços sustentavam as teias da rede de uma peneira que às vezes retia os fragmentos
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
109
primitivos oriundos da fonte. Entre os fragmentos retidos, estava um livro, cujo título
era: Livreto deveras precioso e não menos útil do que agradável sobre o melhor dos
regimes de Estado e a Ilha da Utopia. Encantado com esta redescoberta ele não percebeu que um senhor de cabelos longos e brancos o convidava para sentar-se à beira do rio,
mas quando este eu de mim percebeu, foi e sentou-se com o senhor de longos cabelos
brancos e dele ouviu as seguintes palavras:
- São Tomas Morus se nutria das idéias que possuía. Ele viajou para Flandres
(Holanda) com o objetivo de restabelecer o comércio de lã com a Holanda, lá ele
conversava com os homens do além-mar que lhes contavam as coisas da América.
Morus, meu filho, ficou encantado, pois ele vinha da Inglaterra onde via os carneiros devorando os homens e ouviu falar do novo mundo. O velho e o novo mundo
apresentam-se na consciência de Morus como um esperma e um óvulo. Esta fecundação origina a sua obra cujo título foi reduzido a Utopia. O aflorar dos desejos de
Morus o transformou em uma ameaça a Inglaterra e, em 1532, como chanceler inglês, ele se demitiu, foi julgado e condenado. O Ser que gestou e pariu a obra que
originou a palavra que passou a designar um gênero literário teve sua cabeça apartada do corpo, e entre corpo e cabeça se instituiu um fluxo de sangue. A partir do séc.
XVI passamos a aceitar as obras que expressavam os desejos mais profundos dos
homens que ardiam de vontade, como utopias. Retira-se com esta palavra a
presentidade ou o agora das obras.
O eu paciente de mim, olhando as águas do rio que deslizavam desnudas para
se encontrar com o mar, lembrou que uma palavra pode ser mais que a margem que
aprisiona o rio, ela pode ser o poluente que o mata. Este rapto de um instante do
pensamento, lançou uma centelha de luz na obscura consciência e fez emergir perguntas que estavam guardadas nos recônditos escuros da memória: será que é justo
a palavra utopia designar A República de Antístenes? Obra que conhecemos por
meio dos Cínicos; ou a obra de Hipodamo de Mileto, que serve de inspiração para
Platão? Ou a obra O País dos Meropes de Teopompo? Ou a obra de Jambulos? O eu
paciente de mim tecendo pensamentos com perguntas do mesmo modo que o pescador tece sua rede, recordou o neto de Sólon que em sua obra A República nos diz:
Não há Estado, nem governo nem sequer um indivíduo que do mesmo modo
possa jamais se tornar perfeito, antes que a esses filósofos pouco numerosos a
que agora chamam, real.
Dizer que uma ou outra destas hipóteses é impossível de se dar, ou nenhuma
delas, acho que não há razão para tal. Se assim fosse, seria justo que troçassem de nós, por não passarmos, nas nossas conversas de meras fantasias. Não
é assim?
- É.
(PLATÃO, 1980: 158).
Assim como Platão, algo em mim não aceita a utopia como uma fantasia e
acredita na utopia como um desejo de lugar. Pois, Campanella, que passou vinte e
sete anos preso, escreveu: A Cidade do Sol ou Diálogo Sobre a República no qual
demonstra que a idéia da reforma da República Cristã está de acordo com a
promessa feita por Deus a Santa Catarina e a Santa Brígida. O eu paciente de
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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mim continuou conversando a beira do rio com o senhor de longos cabelos. Ele se levantou, e, em profundo silêncio deslizou com as águas. Permaneci sentado à beira do rio com
a boca fechada e os olhos perdidos no devir das águas. Não há solidão nem silêncio. Os
eus de mim conversam e um diz: por todo esse tempo as nuvens do erro foram tomadas
pelo céu da verdade; outro eu salta com os olhos brilhando e quase gritando de felicidade
anuncia que uma névoa ofuscou meu entendimento. Só agora me dou conta, que o comunismo não é um estado que deve ser criado, um ideal em torno do qual a realidade se deve
regulamentar. O comunismo é um movimento real, que se materializa não só no instante
em que há uma transformação das relações de produção, mas se realiza em cada olhar,
em cada gesto, em cada atitude de uma criança, de uma moça ou de um velho que na
relação com o outro sente o fio de melodia percorrer toda sua existência.
Agora, um dos eus de mim, tornou-se capaz de perceber que nem os socialistas
utópicos eram utópicos. Fourier e os falanstério; Robert Owen e a socialização de
sua riqueza; Babeauf e a Conjuração dos Iguais.
Um eu calado de mim resolve se pronunciar e diz: agora percebo que retirar a
presentidade é mutilar a existência. Talvez, a palavra utopia enquanto negação de
lugar seja inadequada para por si só designar a obra de Morus, pois até em Morus o
lugar existia e ficou existindo de tal forma que Antônio Conselheiro tinha sua obra,
como livro de cabeceira. Mas como chegar a um novo ethos da palavra? Nesse
momento, um eu mais antigo de mim sorriu e seu riso anunciou o caminho, uma vez
que sua boca se apresentou como um “u”. Tal gesto lembrou os Tupis Guaranis, em
cuja língua o U significa comer. Enquanto os meus eus dialogavam, o vento soprou
uma palavra: antropofagia. Ao ouvi-la se instaurou o breu e o instante em que o fio
de melodia percorreu todo o meu ser, anunciando:
- O novo ethos da palavra utopia deve abandonar o U de negação e beijar o “U”
do Tupi Guarani; pois os utopistas são bons ouvidores e comedores dos desejos e
das faltas do bicho homem.
A canção continua tocando. Levanto-me e ando pela beira do rio para em seguida continuar caminhando inutilmente, pé ante pé pelas avenidas, ruelas estreitas
e becos da cidade que nem sei quem erigiu.
BIBLIOGRAFIA.
DE ÉFESO, Heráclito. Fragmentos. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 8. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
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_____. A Ideologia Alemã. São Paulo: Hucitec, 1984.
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MORUS, T. A Utopia. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
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PLATÃO. A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1949.
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
111
O ESTADO E A ARTE BARROCA NA FRANÇA
DO SÉCULO XVII
John Alex Xavier de Sousa1
RESUMO: Há uma relação da arte acolhida no seio da França do século XVII com
o Estado daquela localidade e esclarecendo essa afirmação serão apontadas três proposições: primeiro, uma comparação entre a Itália e a França barrocas; segundo, a
intervenção do Estado francês na arte; e por último, uma comparação de uma possibilidade com o real, ou seja, o esquema de uma fachada proposta para o Louvre por
Gian Lorenzo Bernini, e outra que foi aceita por Luís XIV. As proposições não estão
dissociadas, ao contrário são complementares para o vínculo entre a arte e o Estado
francês no período barroco.
PALAVRAS-CHAVE: Barroco; História da Arte; Estado francês.
THE FRENCH STATE AND THE BAROQUE ART
IN THE SEVENTEENTH CENTURY
ABSTRACT: There is a relation between the art held in the bosom of France in the
XVII century and the France State. In order to make this statement clear, we will
point out three propositions: firstly, a comparison between the baroque in Italy and
France; secondly, the intervention of the French state in art; and finally, a comparison of a possibility with the real, that is, the squeme of a proposal of a front part for
the Louvre by Gian Lorenzo Bernini, and another, accepted by Luis XVI. The propositions are not dissociated, on the contrary, they are complementary for the link one
between art and the French State in the baroque period.
KEY-WORDS: Baroque; History of art; French State.
1
Mestre em Ciências Sociais pela UFRN. Professor de História da Arte da Faculdade de Ciências, Cultura e
Extensão do RN (FACEX). Coordenador do Núcleo de Extensão e Pesquisa de Arte e Cultura (NEPAC)/
FACEX. Membro do Grupo de Estudo da Complexidade (GRECOM)/UFRN. Rua Irmã Rosaly, 3601 –
Candelária. 59.064-710 Natal, RN.
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
112
“...problemática é a afirmação de que o Barroco é o estilo do Absolutismo, refletindo o Estado centralizado, governado por um autocrata com
poderes ilimitados. Embora o absolutismo atingisse o auge durante o
reinado de Luís XIV, nos finais do século XVII, tinha vindo a formar-se
desde a década de 1520 (sob Francisco I da França, e os Médici, duques
da Toscana). Além disso a arte barroca tanto floresceu na burguesa
Holanda, como nas monarquias absolutistas, e o estilo oficialmente patrocinado sob Luís XIV foi de um gênio marcadamente comedido e
classicista.”
JANSON
O estilo barroco surgiu na Europa, mais precisamente na Itália, na Roma dos
papas, um gosto que beira o exagero se comparado com o estilo que o precedeu, o
clássico. Da Itália parece haver se difundido para o restante do mundo ocidental,
alcançando, em algumas localidades, onde o clima da Reforma Católica2 estava em
efervescência, extrema embriaguez. Já em outras localidades, como a Europa setentrional, o espetáculo barroco adquiriu uma sobriedade e um ritmo peculiar, que às
vezes faz-se necessário redimensionar algumas características para amoldá-lo na
concepção de estilo. Por isso, falo em um gosto, que foi difundido pelo continente,
rompendo a barreiras marítimas e encontrando solo nas Américas.
As peculiaridades culturais de cada região vão dar cor e forma ao Barroco. No
caso da França do século XVII, a sua ligação íntima com o Estado e a nobreza
imprimirá em seu conteúdo caracteres que em alguns momentos tendem a se opor ao
italiano e ao espanhol, por exemplo, enquanto noutros momentos parece abraçar o
fio condutor, que se convencionou chamar Barroco. Mas, antes de adentrar em tal
situação convém uma conceituação do termo. A origem do termo é vária, porém a
que parece mais aceita consiste no vocábulo usado, na Península Ibérica, pelos ourives, para designar uma pérola de superfície irregular. Sabe-se de outras, como na
Itália, conversa de pouco valor argumentativo3 e por dizer respeito a pintor maneirista,
Barrocci,4 entre outras. Tendo consciência da deficiência de um conceito, gostaria
de sempre deixá-lo aberto no que diz respeito ao Barroco, na idéia de não limitá-lo,
pois sua própria forma não cabe em si. O gosto da população européia do final do
século XVI passou por modificações significantes, beirando uma mudança em sua
visão de mundo, era o contraste violento entre o teocentrismo e o racionalismo
antropocêntrico – situação que concedia o cetro, que antes pertencera a Deus, ao
homem. Esse era o clima que passava a perdurar no mundo europeu e ganharia seu
ápice durante o século XVII. Essa nova forma de observar a realidade consistia na
persistência de valores que ganharam concretude no medievo e persistiam na vida
cotidiana do homem moderno, com todas as transformações técnicas, científicas,
econômicas, pelas quais passava a sociedade. De posse desse novo arsenal não se
torna complicado compreender a permanente existência de conceitos contrários sobrevivendo coetaneamente.
2
Uso o termo Reforma Católica ao invés do muito usado Contra-Reforma, pois percebo o movimento reformista
da Igreja Católica, sob a égide do Concílio de Trento, como algo que ultrapassa uma simples reação a Reforma
Protestante iniciada por M. Lutero. O termo Reforma Católica ganha a complexidade que foi esse movimento
para o catolicismo.
3
CONTI, 1987, p. 6.
4
GRANDE ENCICLOPÉDIA DELTA LAROUSSE, v.1, p. 770.
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
113
Na França, por volta do século XIV, já havia uma tendência aparente da centralização política que foi, de certa forma, esfacelada pela Guerra dos Cem Anos (1337-1453),
porém ao mesmo tempo fortificou o espírito nacionalista francês fazendo com que a monarquia organizasse um exército real, que cobriu de força a realeza, apontando para consolidação do poderio do sistema político vigente – a monarquia.
O século XVI parece materializar o Estado Nacional e o poder monárquico.
Nele autoridade monárquica adquire valor preponderante com a concordata de Bolonha (1516), ficando os bens eclesiásticos aos interesses do rei, sem contar com a
possibilidade de intervenção estatal na política da Igreja. Se no século XVI europeu
percebemos a consolidação do Estado Nacional e do absolutismo, no posterior veremos o apogeu, coincidindo com o período caracterizado pelo gosto barroco.
A França foi no século XVII o país mais poderoso da Europa, tendo a população mais numerosa e estando firmemente centralizada em torno do rei. Tomou
a preponderância política à Espanha, que dominara a Europa no século precedente (Bazin, 1994, p. 123).
Um aspecto que não deixa de ter sua importância, no tocante ao tema de estudo em pauta, resvala para o assunto poder e arte, pois na compreensão do estilo
barroco costuma-se dizer que é fruto da propagandística da Igreja católica, abalada
pela Reforma Protestante.5 Porém, tal percepção reduz o barroco a uma corrente
como à italiana e àquela desenvolvida na Península Ibérica, por exemplo. Nesse
caso o francês seria uma exceção? Faria parte da propaganda do poder do seu Estado? Era uma forma de manter sua soberania em um momento onde os meios de
comunicação de massa não existiam? Tomar esse caminho pode levar a um erro no
que diz respeito a proposição de arte que me proponho, pois pode limitá-la a um
simples reflexo, quando a percebo impregnada também da característica de
transformadora do meio em que é produzida.6 Há uma estreita relação entre o Estado francês do século XVII com o tipo de arte produzida, mas afirmar que arte seria
um reflexo dele poderia limitá-la, negaria o constante espírito inovador dos artistas
e dos outros patamares da hierarquia social, reduzindo a criação da arte ao caráter
artesanal da manufatura ou à cópia, que parecem negar a possibilidade do salto
imaginativo.7 Ainda, poderíamos estar atribuindo um poder demasiadamente superior aos reis, talvez de caráter metafísico, característica que não me proponho. Mas,
há uma relação da arte acolhida no seio da França do século XVII com o Estado
daquela localidade e para esclarecer essa afirmação passemos a discussão de três
proposições: primeiro, uma ligeira comparação entre a Itália e a França, no que diz
respeito ao gosto barroco; segundo, como o Estado francês intervia diretamente na
arte; e por último, uma comparação de uma possibilidade com o real, ou seja, o
esquema de uma fachada proposta para o Louvre por Gian Lorenzo Bernini e outra,
que foi aceita por Luís XIV, que corresponde a fachada atual. Essas proposições não
estão dissociadas, ao contrário são até complementares para a compreensão que me
proponho, o vínculo entre a arte e o Estado.
Na Itália, a ligação da Igreja, e na França, a do Estado, assemelham-se pela
hierarquia rígida entre uma instituição e outra, levando-se a perceber de chofre que
5
Como é o pensamento do teórico do Barroco apontado por WIESENBACH.
Como atesta BASTIDE, R. na sua obra Arte e Sociedade, e ultrapassando este percebo, ainda, uma relação
dialógico-recursiva entre a arte e o meio.
7
JANSON que trabalha a percepção de salto imaginativo na introdução de sua obra História da Arte, que está
ligado a criatividade que o artista possui e, assim, configura originalidade a sua criação.
6
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
114
se na Itália o barroco parece estar intimamente ligado a propagandística da Igreja Católica, na França, este serviria aos interesses dos déspotas, como atesta German Bazin, a
seguir:
Nos edifícios religiosos o estilo da Contra Reforma foi introduzido pelos jesuítas: apesar disso a França não renunciou inteiramente às suas próprias tradições, e a completa romanização da arquitetura religiosa só ocorreria no
reinado de Luís XIII. Mas na França, ao contrário da Itália, foi o edifício
secular, e não o religioso, que predominou na época de Henrique IV (Bazin,
1994, p. 123).
Os próprios mecenas na Itália são elementos ligados ao papado, tradição que
antecede ao período barroco, o Renascimento, enquanto na França são figuras políticas como Richelieu, Sublet des Noyers, Coubert e os monarcas, chegando o estilo
em França a absorver o nome dos reis – estilo Luís XIV e Luís XV; a burocracia
atrelada a hierarquia das instituições da Igreja e do Estado se faz característica comum em ambas as regiões comentadas, os dogmas instituídos pela Igreja católica
não se distanciam, por exemplo, da figura dos reis, basta nos reportarmos a Marc
Bloch, em Os Reis Taumaturgos. Mas, a aura que circunda o Estado parece estar
imbuída muito mais do poder físico que o espiritual, se bem que ambas as instituições faça uso desmedido do acúmulo de riquezas materiais para demonstrar o poder
que concentram no mundo dos homens. Por último, para ilustrar esse primeiro ponto, vejamos: ...o Estado absolutista nunca foi um árbitro entre a aristocracia e a
burguesia, ainda menos um instrumento da burguesia nascente contra a aristocracia:
ele era a nova carapaça política de uma nobreza atemorizada (Anderson, 1984, p.
17).
A afirmação acima irá colocar lado a lado duas instituições do século XVII, o
Estado e a Igreja, sendo a segunda abalada pela Reforma Protestante e se encontrando atemorizada, também irá procurar a qualquer preço uma forma de se manter erguida
diante a nova situação que emergia. Esse temor que compartilha a nobreza reclinado
sobre uma era incerta se assemelha com o barroco.
O segundo aspecto corresponde ao vínculo que a política exerce sobre a arte,
onde percebe-se um interesse da França, em relação a outros países, de atrelar a
indústria e artes a causa do seu desenvolvimento, ou seja, aumentar a produção de
manufaturados evitando, assim, ter de adquiri-los no exterior. Daí a ligação íntima
de figuras da política estatal, como
...Coubert, principal ministro de Luís XIV, organizou a produção do país, criando ou encorajando sistematicamente várias instituições planejadas para
desenvolver as artes e a cultura. Na França o movimento acadêmico tendia a
governar o gosto e o progresso intelectual. Em 1661 Coubert deu estímulo
decisivo à Académie, conhecida como Académie de Pinture et de Sculpture,
fundada em 1648. A Petite Académie, conhecida como Académie des
Inscriptions e criada em 1663, tinha a incumbência de assessorar o trono no
tocante a problemas iconográficos, inscrições e desenho de moedas; a Académie
des Sciences surgiu em 1666 (...) As conferências na Académie de Pinture et
Sculpture, seguidas de debates e controvérsias, culminaram na elaboração de
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
115
uma espécie de doutrina oficial (grifo meu), baseada nos princípios do
beau idéal mas modificadas pelas teorias de expressão que estavam então
em grande destaque na França (Bazin, 1994, p. 122).
A percepção de Bazin é nítida no que diz respeito a um controle da arte pelo
Estado francês, mas lembremos das inúmeras representações dos Irmãos Le Nain,
atestada por ele próprio, onde surgem camponeses, cenas satíricas, nobres ou plebeus com um naturalismo violento comum ao estilo barroco em moda. Então esse
controle, essa doutrina oficial, esse paternalismo estatal, ou outro termo que venha
coibir a arte, era limitado quando o artista conseguia romper as malhas do poder,
apresentando resultados da incongruência do próprio Estado, incapaz de solucionar
as péssimas condições pelas quais passava a maioria da população em contraposição
da nobreza. Nesses termos podemos observar, no século XVII, os germes, abafados
pela nobreza, do que posteriormente, no final do XVIII, iria desembocar na Revolução Francesa, mesmo que posteriormente esse último fato tenha se revestido pelo
reacionarismo, o que o precede é de cunho revolucionário, levando em consideração
a situação periclitante da maioria da população francesa. Observando dessa forma a
arte passa a ter também função transformadora, deixando de ser mera manipulada,
torna-se produto-produtora do meio que a gera e é transformado por ela.
A terceira e última proposição nasce de uma atitude política do governo francês em relação a construção da fachada oriental do Louvre. Trata-se de um exemplo
claro de uma extensão do poderio daquele Estado no que diz respeito a arte e da
afirmação do gosto sóbrio preponderante do mesmo, como atesta os trechos, a seguir:
Coubert rejeitou (...) os projetos de Le Vou, Lemercier e Mansart e mandou vir
Bernini de Roma. Este apresentou, em 1665, soluções de estilo barroco para a
longa fachada, mas elas não foram adotadas porque o gosto da corte de Luís
XIV tendia mais para o classicismo de tipo áulico que caracterizou todo o
estilo desse centro cultural na segunda metade do século. Por fim adotou-se o
projeto, elaborado em conjunto por Perrault, Le Vou e Le Brum, de uma ampla colunata em fila única Enciclopédia dos Museus, 1967, p. 166).
(...) o traçado parece concebido por um arqueólogo, mas um arqueólogo capaz de escolher as características da arquitetura clássica que não só associam Luís XIV à glória dos césares, mas fossem compatíveis com as partes anteriores do palácio (Janson, 1988, p. 543).
Realmente de posse do projeto de Bernini para a fachada leste do Louvre, percebemos toda a carga dinâmica, comum ao estilo em voga na Itália. Ondulante,
repleta de detalhes com elementos de peso, apresentando apelos aos sentidos, tal
conceito arquitetônico estava além da sobriedade exigida naquela época em França.
Por isso, não sem desavença entre Ministro e Rei, Luís XIV preferiu o projeto dos
seus arquitetos oficiais, por atestarem elementos clássicos, como coluna, frontão,
arco, dispostos equilibradamente pela fachada. A escolha feita pelo soberano francês estava em consonância com o modelo que representava aquele Estado – o clássico – que, com raríssimas exceções, marginalizava a imensa massa camponesa, tão
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
116
bem retratadas pelas mãos dos irmãos Le Nain, com já citado. Dessa forma o que perdurou foi algo que pudesse esconder as diferenças sociais, que contivesse a maioria da
população da revolta, algo que começou a desmoronar com o passar das décadas, porém precisou esperar mais de século para o advento da Revolução Francesa (1789), que
por ironia ou contradição adotará novamente os moldes greco-romanos. Finalizemos este
tópico na voz de H. W. Janson: A fachada oriental do Louvre assinalou a vitória do
classicismo francês sobre o barroco italiano, como “estilo real”. Por ironia este
grande modelo pareceu demasiado puro: Peraut não tardou a desaparecer da cena
(Janson, 1988, p. 543).
O Estado Absolutista corresponde a um Estado de transição entre o feudalismo
e o capitalismo, como atesta Polantzas cheio de contradições, a classe burguesa não
é ainda, em termos exatos, uma classe politicamente dominante (1977, p. 154), o rei
concentrando poderes ilimitados em sua pessoa, a existência de uma nobreza ociosa, em contrapartida a massa camponesa sob a tutela e opressão do governo. Assim,
dentro de um clima paradoxal inerente as próprias condições mercantilistas da época, vez por outra o brio barroco surgirá aqui e acolá na França, no ângulo Nordeste
do próprio Louvre (regido por elementos de movimentação, na arquitetura de
Versalhes, nalgumas pinturas. Porém, tudo coberto pelo eixo da sobriedade, exímia
sobriedade de uma nobreza prestes a ruir.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado absolutista. Porto: Afrontamento, 1984.
CONTI, Flavio. Como entender a arte barroca. Lisboa: Edições 70, 1987.
BASTIDE, Roger. Arte e sociedade. 3. ed. São Paulo: Nacional, 1979
BAZIN, German. Barroco e rococó. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
ENCICLOPÉDIA dos museus – Louvre – Paris. São Paulo: Melhoramentos, 1967.
FREUD, Sigmund. Dois Grupos Artificiais: a Igreja e o Exército. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, v.18, 1974.
GRANDE enciclopédia Delta Larousse. v. 1, p.770.
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural na esfera pública. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1984.
JANSON, H. W. História da arte. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. São Paulo: Martins Fontes, 1977.
TORRES, João Carlos Brum. Figuras do Estado moderno. São Paulo: Brasiliense,
1989.
TILLY, Charles. Coerção, capital e estados europeus. São Paulo: EDUSP, 1996.
WEISBACH, Werner. El Barroco: arte de la contrarreforma. Madrid: EspasaCalpe, 1942.
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117
HEURÍSTICA DO BARICENTRO
UMA SOLUÇÃO O(n2) PARA O PROBLEMA DO
CAIXEIRO VIAJANTE
Joaquim Elias Lucena de Freitas 1
RESUMO: Este trabalho descreve uma heurística original para o clássico
problema do caixeiro viajante. Trata-se de uma heurística de inserção, com
critério de inserção pré-definido, onde o critério é a proximidade do vértice
ao centro de massa do grafo. Um aspecto interessante da heurística é a disposição inicial de quatro vértices externos ao grafo, que formam um ciclo
inicial. Os resultados, quando comparados a outras heurísticas míopes mostrou-se satisfatório, haja vista o baixo tempo computacional gasto, e baixos
resultados do tamanho da solução.
PALAVRAS CHAVE : Baricentro; Caixeiro Viajante
HEURISTC OF CENTROBARIC
AN HEURISTC O(n2) FOR TRAVELING SALESMAN PROBLEM
ABSTRACT: This work describes an original heuristic for the classical traveling
salesman problem. It is an heuristic of implantation, with a criteria of a pre-defined
implantation, where the criteria is the proximity from the vertex to the center of the
graph mass. An interesting heuristic aspect is the initial disposition of four external
vertexes of the graph which form an initial cycle. The results, when compared to
other heuristic myopics, showed themselves satisfactory, having in mind the low
spent processing time, and low results of the solution size.
KEY-WORDS : Centrobaric; traveling salesman
1
Engenheiro civil. Mestre em Sistemas e Computação pela UFRN. Professor de Introdução à Micro Informática
I e II da Faculdade de Ciências, Cultura e Extensão do RN – FACEX. Professor de Álgebra Linear Aplicada à
Computação na Faculdade Natalense para o Desenvolvimento do RN – FARN. E-mail.:
[email protected].
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118
1 INTRODUÇÃO
O Problema do Caixeiro Viajante (PCV) é uma dos mais tradicionais e conhecidos problemas de programação matemática (Melamed et al., 1990). Os problemas
de roteamento lidam em sua maior parte com passeios ou “tours” sobre pontos de
demanda ou oferta. Esses pontos podem ser representados por cidades, postos de
trabalho ou atendimento, depósitos etc. Dentre os tipos de passeios um dos mais
importantes é o denominado hamiltoniano. Seu nome é devido a Willian Rowan
Hamilton que, em 1857 propôs um jogo que denominou Around the World. O jogo
era feito sobre um dodecaedro em que cada vértice estava associado a uma cidade
importante na época. O desafio consistia em encontrar uma rota através dos vértices
do dodecaedro que iniciasse e terminasse em uma mesma cidade sem nunca repetir
uma visita. O grafo do problema é mostrado na FIG. 1.
FIGURA 1 - Jogo de Hamilton
Modernamente a primeira menção conhecida do problema é devida a Hassler
Whitney em 1934 em um trabalho na Princeton University. Independentemente desse trabalho de Hamilton, o Problema do Caixeiro Viajante (PCV) é um problema de
otimização associado ao da determinação dos caminhos hamiltonianos em um grafo
qualquer. O objetivo do PCV é encontrar, em um grafo G = (N, A), do caminho
hamiltoniano de menor custo.
1.1 Formulações
Existem várias formulações para esse problema. Devido a sua importância apresentaremos as mais difundidas. Essas formulações podem ser consideradas como
“canônicas”, tanto por sua larga difusão na literatura especializada, como por desenvolverem modos peculiares de caracterização do problema. Para uma abordagem
mais específica (Lawler et. al., 1985) apresentam um bom estudo introdutório.
Dantzig et al. (1954) e Christofides (1979) formularam o PCV como um problema de programação 0 - 1 sobre um grafo G = (N, A), como se segue:
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
119
Onde a variável binária xij assume valor igual a 1, se o arco (i,j)∈A for escolhido para
integrar a solução, e 0 em caso contrário, e S é um subgrafo de G, em que | S | representa
o número de vértices desse subgrafo. Nessa formulação assumimos implicitamente que xii
não existe e que teremos n (n-1) variáveis inteiras 0-1 e O(2n ) restrições. As restrições
(01) e (02) são semelhantes as do problema de designação, de modo que, configurações
como as mostradas na FIG. 2, seriam válidas. O conjunto de restrições (03) determina a
eliminação desses circuitos pré-hamiltonianos.
4
2
6
3
1
4
2
6
n
X j =1
9
10
7
5
i, j
x
X
sujeito
ij
∑
i, j
s o lu ç ã o ile g a l
x
ij
= 5
∑
a:
x
∑x
i, j
ij
i =1
10
7
n
5
= 5
3
( PCV 1) Minimize
z =∑ 8 ∑ cij xij
1
8
9
∑
n
ij
=1
≤ i =|1 5 | − 1 ≤ 4
n
r e s tr iç õ e s a s s o c ia d a s
ij
j =1
∑x
=1
≤ S −1
FIGURA 2 - Restrições de cardinalidade para
∑ xoij PCV
∀j ∈ N
∀i ∈ N
∀S ⊂ N
i , j∈St
xij ∈ {0,A
1}figura mostra
∀i, j ∈ N
As equações em |S| tornam os circuitos pré-hamiltonianos ilegais.
que a restrição para | S | = 5 elimina circuitos pré-hamiltonianos com cinco vértices
da seguinte forma:
x15 + x 54 + x 49 + x96 + x 61 ≤ 4
x 23 + x3 10 + x10 8 + x87 + x 72 ≤ 4
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
120
Para cada circuito pré-hamiltonianos possível é necessário uma restrição do tipo
(03), justificando-se assim o número de O(2n) restrições.
Essa formulação destaca um importante aspecto do PCV que é sua natureza
combinatória. Pela formulação fica claro que solucionar um PCV é determinar uma
certa permutação legal de custo mínimo. A formulação de Dantzig também auxilia
no entendimento da ligação do PCV aos problemas de seqüenciamento de operações, tão comuns em manufatura. Supondo que exista um certo tempo de preparação
de cada máquina para receber uma tarefa, e que as tarefas possam ser distribuídas de
várias formas no conjunto das máquinas existentes, uma seqüência de operações
que minimiza o tempo de preparação das máquinas e, consequentemente, os custos
do trabalho, pode ser modelado como um PCV.
2 HEURÍSTICA DO BARICENTRO (HB)
Trata-se de uma heurística de inserção. A solução se inicia com um ciclo formado por quatro vértices. Esses vértices, na realidade, não fazem parte do problema,
eles são virtuais, ou seja, só existem para uso da heurística. Os vértices virtuais são
colocados de maneira a formar um retângulo, no qual os vértices do problema ficam
localizados no interior deste retângulo.
A partir da construção do ciclo inicial, a heurística convoca cada um dos vértices, e os adiciona ao ciclo, utilizando o critério de inserção mais barata. Observe que
a convocação dos vértices não se dá de forma aleatória. Os vértices são convocados
seguindo a ordem de proximidade com o centro de massa do grafo.
1. S = ∅
2. S = S ∪ {e1,e2,e3,e4}
4. i = 1
5. Encontrar k na lista S tal que [w(sk,vi) + w(vi,sk+1) - w(sk,sk-1)] seja mínimo.
6. Adicionar vi na k-ésima posição de S.
7. i = i+1
8. Se i>n, S = S\{e1,e2,e3,e4} e pare.
9. Se não, vá para o passo 5
Onde S é uma lista que contém os vértices ordenados na seqüencia da solução, V um
vetor com todos os vértices ordenados pela distância do centro de massa onde vi é iésimo elemento do vetor V, {e1,e2,e3,e4} são quatro vértices virtuais posicionados na
extremidade do quadrado, e w(x,y) a distância entre dois vértices x e y quaisquer.
A vantagem dessa heurística em relação a inserção mais próxima e inserção
mais distante está no tempo computacional, haja vista que ela é O(n2), enquanto
inserção mais próxima, inserção mais barata e inserção mais distantes são O(n3).
Quanto ao seu desempenho médio, mostrou-se superior as demais.
O princípio que norteia essa variação da heurística de inserção mais barata é
que, se a envoltória convexa é um bom ciclo para se iniciar o procedimento, a
heurística cria uma envoltória convexa virtual (quatro pontos externos) e a partir daí
inicia a busca. Note-se que este procedimento elimina o procedimento inicial de
busca de uma envoltória convexa que é O(nlog2n) (Shamos, 1975). Na FIG. 3 é
apresentada a solução encontrada por esta heurística para o reticulado de 8 x 8 pontos (64 pontos distribuídos uniformemente).
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
121
FIGURA 3 - Solução obtida pela heurística (HB) de valor S = 648
3 METODOLOGIA
A fim de aferir a eficácia da heurística do baricentro, comparamos os resultados obtidos para o caso de um quadrado de 400 x 400 pixeis com as seguintes
heurísticas: vizinho mais próximo (VMP), inserção mais distante (IMD) e inserção
mais próxima (IMP).
Em nossos testes foram utilizados instâncias do PCV euclidiano em 50, 100,
150, 200 vértices. Para cada instância geramos 10 amostras aleatórias. O equipamento utilizado nos testes foi um Pentium com clock de 133 mhz e 48 megabytes de
memória RAM.
O software foi desenvolvido em Pascal, ambiente DELPHI 3.0 com os resultados armazenados em banco de dados Microsoft Access e os gráficos no Microsoft
Excel.
3.1 Análise da Complexidade
A heurística do baricentro é iniciada com a ordenação dos vértices por distância do centro de massa. A ordenação é O(n log n); após a classificação são inseridos
quatro vértices externos, passando a instância de n para n + 4, o que não aumenta a
complexidade do procedimento. Todos os vértices são convocados pela ordem de
classificação O(n) e cada vértice convocado é adicionado ao ciclo na posição mais
barata , resultando em O(n2).
4 RESULTADOS
Na análise do desempenho das heurísticas implementadas, utilizamos o método do ajuste do menor erro quadrático. O gráfico da FIG. 4 compara o desempenho
médio de todos procedimentos implementados. Dois aspectos importantes devem
ser observados para análise do comportamento das heurísticas nesse gráfico: o coeficiente linear das retas e a altura das retas.
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
122
O coeficiente linear é um indicativo de como as soluções estão crescendo a medida
que a instância do problema vai aumentando. Valores de coeficientes altos indicam que o
desempenho da heurística piora muito com o aumento da quantidade de vértices. Coeficientes lineares baixos indicam que o tamanho da solução cresce de forma suave quando
aumentamos a quantidade de vértices no problema, o que é uma qualidade da heurística.
A altura das retas afere o resultado médio encontrado pela heurística. No caso do PCV,
por se tratar de um problema de minimização os valores muito altos são considerados
de má qualidade.
7000
Desempenho Médio das
Heurísticas
FIGURA 4 - Desempenho6000
médio das heurísticas
Distância
5000
Na TAB. 2 são apresentados os resultados estatísticos das heurísticas, quando
comparados com os coeficientes lineares e seus4000
erros quadráticos. O erro
quadrático também é um critério de avaliação 3000
importante, pois ele indica
confiabilidade da heurística. As heurísticas que2000
possuem erro muito grande não
garantem confiabilidade.
1000
0 das heurísticas
TABELA 2 - Resultados estatísticos
50 Vertices 200
HEURÍSTICA
VMP
COEFICIENTE LINEAR
ERRO QUADRÁTICO
16,02
171,00
Baricentro
16,36
159,14
IMP
19,20
317,27
IMD
.
22,81
411,54
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
123
A TAB. 3 exibe os resultados e os tempos médios obtidos. Das heurísticas míopes,
VMP obteve o melhor resultado com os menores valores médios, porém com tempo
médio bem superior. A heurística do baricentro teve o segundo melhor desempenho das
heurísticas míopes obtendo resultado bastante próximos da VMP, e seu tempo médio
sendo o mais baixo de todas as heurísticas
TABELA 3 - Resultados médios e tempos obtidos das heurísticas
DESEMPENHO DAS HEURÍSTICAS
50
Instância
150
100
Heurística
Resultado
Resultado
Resultado
Resultado
Resultado
Baricentro
2459,2
60
3476,5
110
IMD
3055,8
110
4293,4
521
200
Resultado
Resultado
Resultado
4231,9
182
4935,5
269
5500,3
1560
6455,4
3492
5883,5
3547
4740
20454
IMP
3023,2
116
4181,1
550
5200,4
1593
VMP
2334
631
3337,8
3362
4120
9519
O gráfico da FIG. 5 mostra o comportamento em tempo computacional, das
heurísticas em função da quantidade de vértices, onde se verifica que BC é a mais
rápida.
Relação Tempo/Quantidade de Vértices
Tempo (mls)
25000
20000
15000
BA
10000
IM
5000
IM
VM
0
50
100
150
FIGURA 5 - Gráfico com o tempo computacional em funçãoVértices
do
número de vertices.
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
200
124
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BIGGS, N. L., LLOYD, E. K., WILSON, J. Graph theory. Oxford: Clarendon
Press, 1986.
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Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
125
O LIMIAR FANTÁSTICO: UMA LEITURA DOS
CONTOS TELECO, O COELHINHO E OS DRAGÕES
DE MURILO RUBIÃO
Carlos Alberto de Negreiro1
RESUMO: A literatura de Murilo Rubião explora a oposição entre o real e o fantástico causando surpresa e estranhamento. A não-lógica rege o mundo fascinante ao
mesmo tempo incompreensível e extraordinário. É nesse contexto que a ambigüidade reina deixando à margem possíveis leituras de um mesmo dado. A escritura de
Murilo Rubião caracteriza-se como uma literatura fantástica em que desenvolveu
uma narrativa peculiar e própria à guisa das outras expressões de literatura fantástica como Franz Kafka ou Gabriel Garcia Marquez. A tecitura da narrativa fantástica
em Murilo Rubião se constitui a partir do trabalho esmerado de reelaboração da
linguagem e do mecanismo de citação, estabelecendo uma rede de intertextos, ampliando as possibilidades de leitura.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura fantástica; fantástico; Murilo Rubião
THE FANTASTIC THRESHOLD: A READING OF MURILO RUBIÃO’S
SHORT STORIES TELECO THE LITTLE RABBIT AND THE DRAGONS
ABSTRACT: Murilo Rubião’s work exploits the opposition between the real
and the fantastic causing surprise and wonder. The non-logic rules the fantastic word
which is at the same time incomprehensible and uncommon. It is in this contex that
ambiguity reings leaving possible readings about the same point on the edge. Murilo
Rubião’s writing is characterized as fantastic literature which is characterized by a
similar and proper narrative different from other kinds of fancy and imagination
literature like Franz Kafka’s or Gabriel Garcia Marquez’s. The fancy and imagination
literature narrative in Murilo Rubião’s constitutes itself from an accurate work of
language elaboration and a mechanism of quotation, establishing a web of intertexts
spreading the possibilities of reading.
KEY-WORDS: Fancy and imagination; fantastic; Murilo Rubião.
1 Graduado em Letras. Mestrando em Estudos da Linguagem (UFRN). Professor da Rede Particular de Ensino de
Natal. Pesquisador do Núcleo de Estudos da Linguagem (NEL)/Natal-RN. Pesquisador da Base de Pesquisa
“Linguagem e Psicanálise”/(FACEX/RN). Av. Ayrton Senna, 1823, Eucaliptos. Natal/RN. CEP 59.088-100.
Tel.: (0xx84)966-3342. E-mail: [email protected]
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DEDICADO À LÁ’ZARA GRAND’ESPÍRITO LUMINAR DE MINHA SENDA
“Contristado fantasma de nadas conjeturais, nascido dentro da poesia
sente o peso de seu real, sua outra realidade, contínuo. Seu testemunho do
não ser , sua testemunha do ato inocente de nascer, vai saltando da barca
para uma concepção do mundo como imagem. A imagem como um absoluto,
a imagem que se sabe imagem, a imagem como a última das histórias possíveis. O próprio fato de sua aproximação indissolúvel, nos textos de imagem e
semelhança, marca seu poder díscolo e como ficará sempre como a pergunta
do início e da despedida; pois, quanto mais nos aproximamos de um objeto ou
dos recursos intangíveis do ar, com mais grotesca precisão deduziremos que é
um impossível, uma ruptura sem mnemósine do anterior. Nem é possível que
um orgulho desacordado ao encurvar a rede da imagem possa prescindir da
constituição dos corpos de onde partiu. A semelhança de uma imagem e a
imagem de uma semelhança, unem a semelhança a uma Forma, a imagem é o
desenho de sua progressão. E é verdade que uma imagem ondula e desvanece
se não se orienta, ou ao menos consegue reconstruir um corpo ou um ente.
Nenhuma aventura, nenhum desejo em que o homem tentou vencer uma resistência, deixou de partir de semelhança e de uma imagem; ele sempre se sentiu
como um corpo que se sabe imagem, pois o corpo, ao se tomar a si mesmo
como corpo, verifica tomar posse de uma imagem.”
Lezama Lima
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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“Os mais loucos sonhos da fantasia têm algum fundo de razão, e quem
sabe se tudo o que um homem pode imaginar não sucedeu, sucede ou
sucederá alguma vez em alguém em outro mundo. As combinações possíveis talvez sejam infinitas. Só falta saber se todo o imaginável é possível.”
(Miguel de Unamuno – Do sentimento trágico da vida )
“Você pode escolher entre a pílula vermelha e a azul; (...) Se escolher a azul,
você vai acordar de manhã em sua casa e sua vida vai permanecer a mesma. Mas, se
escolher a vermelha, vai descobrir o quão é funda a toca do coelho de Alice.” Essa
é uma das falas do personagem Morpheus, do filme Matrix (The Matrix, EUA,
1999. Direção: Irmãos Wachowski), a ficção científica mais recente a chegar nos
cinemas deste ano. E na citada fala, podemos averiguar alguns motes: a questão das
escolhas e o coelho de Alice, fazendo aqui a referência à obra de Lewis Carroll, Alice
no País das Maravilhas, do filme à Alice vemos a discussão do real. Encarando o
real aqui não só como tudo aquilo que existe no mundo através dos sentidos, que diz
respeito e que está ligadas às coisas, como também “sobretudo aquilo que ninguém
põe em dúvida seja verdadeiro” (José Paulo Paes, 1996). Isso se opõe ao que é
fantástico, palavra que designa tudo quanto seja mero produto da imaginação.
O fantástico aplica-se melhor a um fenômeno de caráter artístico, no caso a
literatura que se aproveita peculiarmente de criar um universo ficcional, mesmo
tentando equacionar esse universo ao real.
Se o que vemos no filme Matrix e na história de Alice, nos faz pensar apenas no
fantasioso, ou seja apenas produto da imaginação, o que pensar de uma literatura
como a de Jorges Luis Borges, Júlio Cortázar, passando por Edgar Allan Poe e Franz
Kafka e chegando até a de Murilo Rubião? Todos eles puseram em suas narrativas o
real em discussão. Borges, no livro “Discussão”, comenta sobre a novela no ensaio
A arte narrativa e a magia, neste o autor distingue dois processos causais da narrativa: o natural, que é o resultado incessante de incontroláveis e infinitas operações,
e o mágico, que é lúcido e limitado, onde profetizam os pormenores. Dessa forma a
única possibilidade de honradez à novela reside no mágico. Assim, procura ressaltar
dentro do caráter ficcional das narrativas o elemento do fantástico. Observamos com
veemência o que nos diz Borges citado por Monegal,em seu Borges: uma poética da
leitura:
Os romances realistas começaram a ser elaborados nos princípios do século
XIX, enquanto todas as literaturas começaram com relatos fantásticos. O que
primeiro encontramos nas histórias da literatura são narrações fantásticas.
(...). Por outro lado, a idéia de que a literatura coincide com a realidade é uma
idéia que veio aparecendo de modo muito lento: assim, os atores que, nos
tempos de Shakespeare ou de Racine, representavam as obras destes, não se
preocupavam, do traje que deveriam vestir no palco, não tinham essa espécie
de escrúpulo arqueológico defendido pela literatura realista. A idéia de uma
literatura que coincida com a realidade é, pois, bastante nova e poder desaparecer; em troca, a idéia de contar eventos fantásticos é muito antiga, e constitui algo que há de sobreviver por muitos séculos. (MONEGAL, 1980: 176)
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Quando a narrativa explora a oposição entre real e o fantástico temos uma narrativa
fantástica. Em nenhum momento se perde a noção da realidade. Por não perdê-la é o que
causa surpresa e estranhamento. Ao contrário dos contos de fadas, em que o maravilhoso
não contrasta com o real, esse efeito faz parte dele, ou seja, o leitor sabe que a “Bela
Adormecida” será despertada, e terá um final feliz; enfim, esse leitor adequa-se a um final
previsível, pois acredita que a fada irá ajudar a princesa, e que consequentemente o príncipe a salvará. No fantástico esse processo é diferenciado porque o que acontece é um
mundo de imprevisibilidade e de aparentes absurdos. A não-lógica rege o mundo fascinante e ao mesmo tempo incompreensível, que é o extraordinário. É onde a ambigüidade
reina deixando à margem possíveis leituras de um mesmo texto se aproveitando da temática
do duplo que é um dos temas recorrentes deste tipo de literatura. Vejamos o que nos diz
Todorov sobre o fantástico:
O fantástico ocorre nessa incerteza; ao escolher uma ou outra resposta deixase e o fantástico para se entrar um gênero vizinho. O estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as
leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural. O conceito de fantástico se define pois com relação aos de real e de imaginário. (...)
(TODOROV, 1992:31)
Conceituar o fantástico não reside apenas demonstrar que se trata de algo sobrenatural ou que se encontra aquém de nossa suposta realidade, mas de imprimir de
uma certa forma uma conceituação em que Borges explora não somente o fantástico
mas outro aspecto do tema – a aparente evasão desse tipo de literatura, podemos
observar o que diz Monegal:
A literatura fantástica vale-se de ficções não para evadir-se da realidade, mas para expressar uma visão mais profunda e complexa da realidade. Toda essa literatura destina-se mais a oferecer metáforas da realidade ¾ por meio das quais o escritor quer transcender as observações pedestres do realismo ¾ do que evadir-se para um território gratuito. Daí que a literatura fantástica requeira mais lucidez e rigor, mais
autêntica exigência de estilo que a mera imitação da realidade cotidiana. (MONEGAL, 1980: 179)
O insólito, o mundo mágico, o mundo do absurdo são elementos que compõem
um limiar fantástico, isto é, o ponto a partir do qual este efeito ou fenômeno começa
a produzir-se. Nesse sentido, a presença do fantástico na literatura camufla uma
realidade proibida, ou seja, representa um mundo em que não pode ser impresso
pela linguagem comum ou automatizada. Numa outra vertente consideramos o que
Borges examina como os procedimentos de uma literatura fantástica: a) a obra de
arte dentro da mesma obra; b) a contaminação da realidade pelo sonho; c) a viagem
no tempo; d) o duplo. Todos estão mergulhados na ambigüidade.
Na obra de Murilo Rubião, esses procedimentos estão presentes, caracterizando como pertencente a um escritor do gênero da narrativa fantástica, a que permanece fiel
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129
durante toda a sua produção literária. O herói dos contos muriliano, como averiguou o
crítico Jorge Schwartz em seu estudo sobre A poética do uruboro, se perfaz por meio
dos traços de linguagem que confluem com o percurso do uruboro, serpente mítica que
morde sua própria calda: um trajeto circular kafkaniano e borgeano, cujas questões vitais
da existência são reconstituídas. Assim, o que presenciamos nessa escritura através do
caráter da metáfora é uma espécie de máscara em que subjaz outros textos. Assim, o que
tentamos observar é uma presença desses traços que insistentemente tendem a surgir na
narrativa fantástica de Murilo Rubião: as depurações e antropomorfoses.
Dessa forma, o que se pretende depreender aqui, é como se constrói o signo da
metamorfose na escritura de Murilo Rubião, e como esses dois recursos aqui denominados de depurações e antropomorfoses surgem nesse universo fantástico como
tentativas de reconhecimento da essência do homem, indivíduo que se utiliza de
várias roupagens para ser aceito em determinados espaços do mundo.
Nos contos Teleco, coelhinho e Os dragões e em grande parte da escritura de
Murilo Rubião, observamos que o processo de construção e elaboração da linguagem alude a uma certa alquimia2 de misturas e purificações. Quando é investigado
um tema cujo teor simbólico corresponde as antropomorfoses, no primeiro sentido,
temos uma atribuição de forma ou caráter humanos a objetos não humanos; na filosofia e teologia, a antropomorfose é vista como uma doutrina que confere à Divindade forma, atributos e atos humanos; e ao comentar sobre o ponto de vista histórico eclesiástico, a antropomorfose tem o efeito de heresia, segundo a qual se afirmava ter Deus um corpo de forma humana sob a alegação de que a Bíblia diz que Deus
formou o homem, à sua imagem e semelhança. No entanto, observamos no traço de
linguagem que se repete nos contos de Murilo Rubião, as transformações contínuas
das personagens, revelando sucessivamente, a necessidade de adaptação a um mundo onde a pureza e a inocência não encontram mais lugar.
Na obra de Murilo Rubião verifica-se um procedimento de reelaboração e
reescritura da palavra. Um exercício dessa constante reelaboração dos contos pode
ser visto como a própria metamorfose, que se dá tanto no nível da construção do
texto como na temática adotada. Como diz o crítico Davi Arrigucci Jr. este processo
relaciona-se à “mudança contínua de faces e nomes de determinadas personagens,
como é o caso de Teleco, Godofredo e suas mulheres, Alfredo, Petúnia, e outros
mais. Faces em nomes escorregadios que se colam ora aqui ora ali carregados por
um mesmo fluxo.”(ARRIGUCCI JR, 1987:151).
Diversos críticos tentaram aproximar a obra de Murilo Rubião com a escritura
de Kafka. Tal comparação podendo parecer repetição, faz um certo sentido, uma vez
que a escritura do autor de “ A Metamorfose” trata da tragédia de Gregor Samsa, um
homem que acorda um certo dia “metamorfoseado num monstruoso inseto”, sofrendo toda espécie de angústia, vítima de uma metáfora grotesca da condição humana.
Murilo Rubião, ao falar da própria obra, e dessa suposta comparação com a produção literária de Kafka, explica como sendo uma mera coincidência, possivelmente uma
sincronicidade, fruto talvez de uma similaridade de formação literária. Ele nos diz:
2 Alquimia (Arte da transmutação. Uma operação simbólica como um fim em si mesmo. Simbolismo alquímico
situa-se no plano cosmológico. As duas fases de coagulação e solução correspondem às do ritmo universal. A
pratica da alquimia permite que se descubra em si mesmo um espaço de purificação. Simboliza a própria evolução do homem, de um estado em que predomina a matéria para um estado espiritual. Transformar ouro em metal
é o mesmo de o homem em puro espírito.) CHEVALIER, Jean. & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de
símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. p. 38
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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Eu tive uma série de influências de escritores que influenciaram Kafka. De
livros como, por exemplo, a Bíblia, o Velho Testamento. Os judeus lêem muito
o Velho Testamento. Também a mitologia e os contos do folclore alemão, como
as histórias de fadas, em que era normal a transformação de uma pessoa em
animal e vice-versa. O conto “Teleco, coelhinho”, foi fruto de leituras demoradas da mitologia e do mito de Proteu3 , que por detestar predizer o futuro,
transformava-se em animais. A metamorfose, de Kafka, é exatamente a mesma
coisa. Então, nem Kafka, nem muito menos eu inventamos a metamorfose. Eu
só fui ler o Kafka completo quando trabalhei na Embaixada brasileira na
Espanha, entre 1956 e 1960”. (RUBIÃO, 1998:275-76)
Em Teleco, coelhinho, Murilo Rubião inicia a narrativa com um coelho, que
atribuído de características humanas, pede um cigarro a um homem que silenciosamente observa o mar. Sem perceber inicialmente de que se tratava de um coelho, o
homem pede para que este não o atrapalhe, já que o mesmo observava a infinitude
do mar. No entanto, a insistência de Teleco e sua interpelação delicada, surpreendem
e desarma o homem que antes pensara estar falando com um moleque. O homem
praticamente adota nascendo desse enredo uma forte amizade. Entretanto, trazendo
uma semelhança do que acontece no conto “Os Dragões”, o suposto coelho começa
a sofrer vários tipos de transformações, numa tentativa vã de adaptação. Podemos
dizer que isso lembra a depuração: propriedade que ilustra a purificação do ser através das constantes mudanças de formas, no conto isso se torna em vão, pois tem
como conseqüência o aniquilamento do sujeito.
Outros aspectos que merecem destaque na obra de Murilo Rubião é a paródia,
o dialogismo, a transtextualidade, e principalmente, o trabalho de citação. Este, nitidamente percebido no decorrer de toda sua obra, desde o Ex-mágico, de 1947, até O
convidado, de 1974. A produção literária de Murilo Rubião é um dado quase fantástico seguindo a tríade processo/forma/conteúdo amalgamada ao sistema autor/fábula/trama, ele rescreveu mais do que escreveu. Esse reindicia o signo da metamorfose
que se emerge por meio das constantes depurações, como por exemplo, no conto
Teleco, coelhinho, que diferentemente do coelho de Alice, se situa no “baixo”, e
pedindo um cigarro, não está correndo como na fábula A lebre e a tartaruga, ou na
pressa desnorteada do coelho descrito em Lewis Carrol; ou Os dragões que
antropomorfizados, ou seja, com atitudes e ações humanas são forçados a se conformar de acordo com a organização social imposta pelos humanos. O aparente clima
lúdico destes contos servem como um véu para encobrir as questões existenciais do
ser humano. É nessa exercício da palavra reescrita que Murilo Rubião procura revelar
uma constante busca da forma, elemento que não se dissocia da tríade citada anterior3 PROTEU – Um dos deuses secundários do mar, na Odisséia, especialmente encarregado de conduzir os
rebanhos de foca. Ele evoca as ondas do mar, capazes de representar, na ocasião das tempestades, as imagens
fugitivas do cavalo, do carneiro, do porco, do leão, do javali etc. Ele é dotado do poder de tomar todas as
aparências que desejar: pode tornar-se não só um animal, mas um elemento, como a água e o fogo. Ele faz uso
desse poder particularmente quando quer se subtrair aos indagadores. Pois ele possui o Dom de profeta, mas
se recusa a aconselhar os mortais que o interrogam (GRID, 398). In: CHAVALIER, Jean., GHEEBRANT,
Alain. Dicionário de símbolos. 5ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.
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131
mente, como nos mostra o estudioso Jorge Schwartz, no trabalho “A poética do uroboro”.
Na pesquisa, Jorge investiga a relação das epígrafes e sua importância como elemento
independente e revelador na obra de Murilo Rubião, como resultante desse estudo denominado de uroboro significando caráter cíclico e mostrando as diversas faces/fases da
serpente, presentes aqui como elemento de construção do literário, indicando
consequentemente o percurso que texto e leitor podem fazer.
Nesse contexto de citações, e de como notificamos essa repetição na obra de Murilo
Rubião, citaremos o teórico Antoine Compagnon, que precisamente tenta definir um lugar
do sujeito na obra de citação, indicando um sentido de ambivalência, de um valor duplo:
A reescrita é uma realização, não somente no sentido musical de uma tradução. O trabalho da citação, apesar de sua ambivalência ou por causa dela, é
uma produção de texto, working paper. A leitura e a escrita, porque dependem
da citação e a fazem trabalhar, produzem texto no seu sentido mais material:
volumes. A modalidade de existência da citação é o trabalho. Ou ainda, se a
citação é contigente e acidental, o trabalho da citação é necessário, ele é o
próprio texto. (COMPAGNON, 1996:34)
No conto Os dragões, o autor inicia seu texto com a seguinte epígrafe:
Fui irmão de dragões e companheiro de avestruzes
(Jó, 30,29)
Do interstício do texto bíblico remetendo à mitologia, o dragão aparece essencialmente como símbolo de forças e guardião severo de tesouros ocultos, é por vezes ambivalente se manifestando como eixo do destino. A cabeça do dragão que
indica o lugar onde se deve construir a sede da existência consciente, opõe-se a
calda do dragão, que revolve todas as influências vindas do passado. O dragão também representa o símbolo do mercúrio filosofal: dois dragões se embatem com as
duas matérias da Grande Obra, um é alado e o outro não, para significar justamente
a fixidez de um e a volatilidade do outro. É a própria transmutação, presente na
alquimia aludindo as metamorfoses e por sua vez as antropomorfoses. No referido
conto, os dragões são estranhos que chegam num determinado município que já
possui as regras de uma sociedade supostamente provinciana. As crianças brincavam furtivamente com os dragões sabiam na sua ingenuidade de quem se tratavam.
Os adultos não possuíam essa compreensão. Muitos dragões não se adaptaram ao
trabalho escravo e exploratório por parte dos humanos e sucumbiram, como historicamente aconteceu com os indígenas no tempo do Brasil Colônia. Os outros que
lutavam, foram se adaptando as mazelas humanas(fornicações, vícios...) paulatinamente caminhavam para a mais completa extinção, com a exceção de apenas um, o
João, que teve uma educação formal e dominava a linguagem dos humanos.
Entretanto, o conto demonstra a metáfora da tentativa de adaptação dos seres a
uma determinada ordem. Murilo Rubião utiliza a epígrafe na intenção de chamar a atenção do leitor, alertando-o para uma possível relação que se estabelece entre os textos: o
bíblico, o mitológico e o literário. Perspectiva de leitura que especificamente são elucidados
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no limiar fantástico da escritura de Murilo Rubião.
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NATURALISM IN JOHN STEINBECK’S
THE GRAPES OF WRATH
Daise Lilian Fonseca Dias1
ABSTRACT: The school of Naturalism dominated American letters during the
important era of the twenties, however, the influence of its philosophy can be found
in Steinbeck’s The Grapes of Wrath, written in 1939. This movement arose from the
attempt to apply to literature the methods of the social sciences, for one of the naturalists main mottoes was to turn literature into a document of society. Many naturalists, like Steinbeck, gathered data from actual life and included them in their literary
works. With this novel, the writer proves that Naturalism inspired a literature of
revolt, both literary and specially political.
KEY-WORDS: Naturalism; literature; society.
NATURALISMO EM “AS VINHAS DA IRA” DE
JOHN STEINBECK
RESUMO: O Naturalismo dominou as letras americanas durante a importante era
dos anos vinte, porém a influência de sua filosofia encontra-se presente no romance
As Vinhas da Ira de Steinbeck, escrito em 1939. Esse movimento surgiu como um
esforço no sentido de aplicar à literatura as ciências sociais, visto que um dos principais lemas dos naturalistas era transformar a literatura em documento da sociedade.
Muitos naturalistas, como Steinbeck, reuniram informações da vida atual e as incluíram nos seus trabalhos literários. Com este romance, o autor prova que o Naturalismo produziu uma literatura de revolta tanto literária quanto política, principalmente.
PALAVRAS-CHAVES: Naturalismo; literatura; sociedade.
1
Mestranda em Literatura Anglo-Americana pela UFPb. Membro das bases de pesquisa Teatro e Cultura Popular
e Núcleo de Pesquisa de Arte e Cultura (NEPAC) da FACEX. End.; Cond. Parque das Pedras, bl-L, apt. 103.
Neópolis, Natal/RN. CEP: 59.067-800. E-mail: [email protected].
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The Grapes of Wrath, the name given the novel by Steinbeck’s first wife Carol
Henning (1906-1983), was taken from Julia Ward Howe’s “Battle Hymn of the
Republic,” composed in 1862. (Demott, 1989, pp.xxii). The novel provides a
vehement denunciation of agricultural conditions and prejudice against the “Okies”,
the name given by Californians to migrants from Oklahoma during the Great
Depression years (1930’s).
Steinbeck’s masterpiece is a naturalistic tragedy, and the school of Naturalism
dominated American letters during the important era of the Twenties. The original
form of Naturalism arose from the attempt to apply to literature the method of the
physical and social sciences, making literature a document of society. Steinbeck
(1902-1968), as many naturalists, used to gather copious data from actual life and
included it in his work, thus trying to remove literature from the realm of the fine
arts and putting it into the field of the social sciences.
As a naturalist, Steinbeck did not abandon the literary traditions of the past; his
work becomes a form of art comparable to the Greek Tragedy. For example, the
tragic is linked to a balance between consciousness and loss, there is also the matter
of culpability without precise causes, and the religious universe is ambiguous
(divinity-humanity); also, there are echoes of the Homeric epic: the return of the
expected hero and journeys of self-descovery. Steinbeck’s work is also concerned
with the less elegant aspects of life, for its focus is upon self-preservation. Naturalism,
furthermore, is the literature of revolt, both political and literary, turned toward the
land, the farm, and the peasant. This school represents in part a reaction to
industrialism, and even to civilization itself. Naturalism focuses also on the the decline of traditional values of the family and man’s intimacy with nature.
The novel is the story of the brutal migration of a family, the Joads, from
Oklahoma to California’s corrupt Promised Land. It is an ironic exodus from “ home
to homelessness, from individualism to collective awareness, from selfishness to
communal love.” (Demott, 1989, pp. xxiii), from I to we. This exodus starts because
the dryness in the Joads’ State, Oklahoma, made their land unproductive, and so, as
with many people, they did not have another source to provide their living. Man
alone was not able to survive without help from nature, so they asked help from
banks; then came the economic disaster, and injustice took its own place.
Steinbeck seems to bring to his work a kind of nostalgia for the primitive life.
His heroes are rural people, illiterate and hard-working, but this nostalgia goes beyond
nature; it reaches the interior of his characters who are people capable of sharing and
providing, unexpectedly, seeking ways to help others, even strangers, as Rose of
Sharon did in giving her breast to a starving man in the last scene of the novel.
Steinbeck’s characters are truly representations of the ordinary man he so well
portrayed in his novels, where man usually has a good nature, but injustice, pride
and hatred can drive him to atittudes of extreme violence and wrath, mainly when
the characters are protecting their family friends. Young Tom Joad is an example of
a man of good nature, although he kills two men. Both deaths happened accidentally
and led him to a personal exile and total separation from his family.
The first man he kills had been a ‘friend’ - both were drunk - and he acted in
self-defence. The second time, he was acting against the stupid way his friend Jim
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Casy had been killed because of his ideals of justice and better agricultural conditions of
work and life in California. Tom’s good nature was challenged first by self-defence, and
secondly by hatred against injustice in the shape of wicked men. Good and evil became
one, and Ma Joad’s analysis of her son’s attitude reinforces this: “...you done what you
had to do. I can’t read no fault on you.” (Grapes, 1939, pp. 535) When fear turns into
wrath, man’s nature reacts in a mix of good and evil.
The Great Depression era in the United States favoured all kinds of violence
towards small landowners who ended up being driven from their own piece of land,
unable to pay loans and expenses in general. In 1952, Steinbeck declared in an
interview to Voice of America: “When I wrote The Grapes of Wrath, I was filled...with
certain angers...at people who were doing injustices to other people.”(Demott, 1989,
pp. xxxviii). In The Grapes of Wrath he denounces the division of classes: for on the
one hand, the poor and the newly landless farmers, and on the other hand, those who
were getting rich by exploiting the unfortunates. What is clearly seen is that in the
first group most of the people are honest, simple people who just want a piece of
land to work on in order to supply their family’s needs. But there is the other side of
society that humiliates the desperates and sucks from them everything they have, as
is shown when the Joads sell almost everything they had for unfair prices established
by the sellers/buyers. Honest people are exploited, unable to react, treated even as
animals that were supposed not to have any feelings or necessities. The innocents
have to regroup themselves and suffer a good deal of agony in order to put up a
united front against their exploiters, although the novel shows only a minority capable
of such a reaction as in real life.
Before the weak reaction against injustice, there is a speech in The Grapes of
Wrath that expresses faithfully man’s attachment to his land.
If a man owns a little property is him, it’s part of him and it’s like him. If
he owns a property only so he can walk on it and be sad when it isn’t doing
well, anda feel fine when the rain falls on it, that property is him, and in some
way he’s bigger because he owns it. Even if isn’t successful he’s big with his
property. That is so.
(The Grapes of Wrath, pp. 50.)
This is the Christian belief that man came from clay, so man and nature are
one; and in this novel the level of identification with land is so deep that when man
loses it, the symbol of his strength, he loses his course, and he sometimes even loses
himself. The Grapes of Wrath portrays the loss of land and the struggle to be in touch
with it again-for it is a source of life-and to have it back.
Steinbeck has been criticized for the things he wrote in his masterpiece, he
has even been blamed for presenting a false image of the Great Depression period.
For the American people, the novel looked too much like their reality and that shocked
them and made them not want to have it shown to the world. In Friedman’s opinion
(1967, pp. 113 ), “...to argue that the function of literature is to transmit unaltered a
slice of life is to misconceive the fundamental nature of language itself: the very act
of writing is a process of abstraction, selection, omission, and arrangment”. And
that is why Steinbeck’s characters and all the historical aspects present in the novel
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are more than they really are, for they are an abstract of the truth. In a letter to his friend
and editor Pascal Covici after finishing The Grapes of Wrath, the author said: “...this
book is finished and it is a bad book and I must get rid of it… It is bad because it isn’t
honest. Oh! These incidents all happened but I’m not telling as much of the truth about
them as I know” (Working Days, p. x).
The novel from the social point of view reflects the commitment of the author
with his people, a man conscious of his time who makes fiction a personal way to
exalt the kindness and simple way of life of his people, but who also makes fiction a
tool against injustice. The novel presents a shocking view of this part of American
history, which is the Great Depression period and as a novel it cannot be judged
simply as a piece of newspaper reporting.
Steinbeck’s criticism does not limit itself to California; it denounces the entire
American way of treating the desperate people and the capitalistic values imposed
on them and on any other country that might have the same problem. The kind of
denunciation found in The Grapes of Wrath elucidates the cruelty man shows
whenever there is greed for wealth. Nature, however, is where the characters can
find support to keep their faith; it is an equilibrium point in their chaotic universe.
The Joads did not find good working conditions; they did not get the white
house with a fence surrounding it that they had so much dreamed of, and they did not
find their lost children, but they found themselves, each one alone, and they also
found the principles of sharing, of justice, of brotherhood. Ma Joad’s final speech
reinforces the naturalistic view of work, for she still believes that by working they
will get what they need and want, which is basically a piece of land of their own.
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ESPELHO, SIGNO E IMAGEM : A PROBLEMÁTICA DA
REPRESENTAÇÃO EM O RETRATO OVAL DE
EDGAR ALLAN POE
Lílian de Oliveira Rodrigues1
RESUMO: O espelho encerra uma relação dialética do eu com o mundo, em que há
dois momentos distintos: o espelho tanto pode ser um receptáculo para a projeção
do EU, como também um indicador de respostas àquele que busca a sua imagem
mais profunda, autêntica. Possíveis articulações podem ser observadas entre o Mito
de Narciso, metáfora da busca da identificação de um EU, e o signo peirceano na sua
relação com a linguagem. Pretendemos aqui explicitar a relação proposta, traçando
um paralelo que nos permitirá reflexões sobre o duplo caráter do signo e a imagem
especular com seu efeito sobre os indivíduos. Investigamos o fenômeno do duplo,
na literatura com a análise do conto “O Retrato Oval” do escritor Edgar Alan Poe,
retirando os aspectos que detectarmos de grande relevância para o estudo proposto.
PALAVRAS-CHAVE: Semiótica; literature; Edgar Allan Poe; duplo.
MIRROR, SIGN AND IMAGE: THE PROBLEMATICAL OF
REPRESENTATION IN EDGAR ALLAN POE’S
THE OVAL PORTRAIT
ABSTRACT: The mirror holds a dialetics relation of the self with the world, where
there are two distinct moments: the mirror can be a receptacle for the projection of
the Self, as well as an indicator of answers to the one who searches its own deep and
authentic image. Possible articulations can be observed among the Narcisus Myth,
the metaphor of the quest for identification of a SELF, and the Piercian sign in its
relation with language. We intend to make explicit the proposed relation, tracing a
parallel that will allow us come reflections on the double character of the sign and
image and its effect over the individuals. We investigated the phenomenon of the
double in literature with the analysis of Edgar Allan Poe’s short story The Oval
Portrait, pointing out aspects of great relevance we detected for the proposed study.
KEY-WORDS: Semiotics; literature; Edgar Allan Poe; double
1 Graduada em Letras. Mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP). Professora da Rede Municipal de Natal.
Professora do Curso de Pedagogia da FACEX/RN. Professora da disciplina “Aquisição e Desenvolvimento da
Linguagem” no PROBASICA/UFRN/SEDC-RN. Pesquisadora da base de Linguagem e Psicanálise da FACEX/
RN. Pesquisadora do Núcleo de Estudos da Linguagem (NEL)/Natal/RN. Rua Praia de Guajiru, 9216, Ponta
Negra 59.092-220 Natal/RN. E-mail: [email protected]
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“O que é um espelho? Como a bola de cristal das videntes, ele me arrasta para o vazio que no vidente é o seu campo de meditação, e em mim
o campo de silêncios. Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir para sempre em frente sem parar: pois o espelho é o espaço mais fundo
que existe”.
Clarice Lispector
O signo para Peirce é alguma coisa que representa uma outra coisa para alguém, sob certa medida e sob certo aspecto. Quando fala-se em coisa, a proposição
é dizer que há uma realidade concreta, material e física. Existindo essa materialidade,
pretende-se dizer também que o signo é essência.
Poderíamos dizer, então, que essa materialidade da coisa toma corpo no sentido de fala oral, de fala escrita, de impresso, os sons emitidos ao falar, palavras escritas em pedras entre outros. Tudo isso nós podemos dizer estar no campo da realidade física, mas há uma materialidade sensível também, não apenas física, como: a
forma rítmica que o corpo plasticamente configura na dança, uma simples mancha
de cor no papel, desenhos gráficos que desde as grutas vêm crescentemente povoando a face do mundo, construindo um mundo humano sígnico, uma outra realidade
onde bailam os signos, se assim poderíamos dizer.
Trabalhando-se, então, as classificações, os três cercos do mundo que se encontram no estado de vir a ser, temos a seguinte relação: o primeiro deles poderia ser
colocado como um ser que no mundo encontra-se no estado de vir a ser. No segundo
momento, o ser defronta-se com o objeto e no terceiro, há uma significação, uma
forma, um conceito significante que materializa o significado.
De outra forma, nós poderemos dizer que há um ícone, que se apresenta como
uma representação, que mantém com o objeto com o qual se refere uma relação de
qualidade; nós temos um índice, que estabelece uma relação de fato com o objeto; e
nós temos o símbolo, que mantém com o objeto uma relação imposta, o significar.
O signo permite à consciência apropriar-se da representação do objeto, que
passa a ser para esta, o próprio objeto.
O signo reflete e refrata o real, pois não é o objeto. Isso significa que se o
signo é a representação do objeto e esse mesmo signo passa a ser o objeto, ou ele
deixa de ser o objeto ou deixa de ser o signo.
Então entramos na problemática da brecha existente entre o signo e aquilo que
ele representa, o signo reflete o objeto, o objeto em si, uma verdade para si. Nesta
reflexão, de certa forma, deforma o objeto que reflete, pois por mais que lhe seja
fiel, não pode ser ele.
Assim, a presença de signos delata a ausência do objeto. O semioticista Umberto
Eco nos acrescenta ainda: Para que um antecedente se torne signo do conseqüente,
é necessário que o antecedente esteja potencialmente presente e perceptível, enquanto o conseqüente deve estar necessariamente ausente Eco (1989:24).
Isto é interessante, porque a presença do signo anuncia a vida e morte do objeto.
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A humanidade tem uma busca, que é extremamente mítica, de apreender o objeto
tal qual é. Temos por exemplo, uma possibilidade de que o desenho dos animais dos
primeiros homens de nossa espécie eram uma tentativa de apreensão da alma, do enfraquecimento do animal antes mesmo de caçá-lo, antes mesmo de tê-los.
Então, é como se a apreensão da representação do animal fosse a apreensão do
espírito do animal, da sua alma. Santaella propõe como início para esse processo de
apreensão da alma dos objetos, a fotografia e esta como: processo físico-químico de
correspondência ponto a ponto, finalmente é a própria realidade que o homem se
tornou capaz de flagrar. Parece enfim, transposta a brecha da diferença entre o
signo e o objeto por ele representado (Santaella, 1992:38).
Mas a fotografia ainda carecia de um movimento, pois é algo ainda parado.
Nós temos então, os irmãos Molière inventando o cinema, em 1895, ou seja, pondo
as fotos em movimento que é construído pela projeção rápida das fotografias.
Temos depois a televisão com o corpo e o tempo que vai pondo “o mundo
flagrado no instante mesmo do seu ir existindo” (Santaella, 1992:39).
Mas o mundo é tridimensional, ou passa a ser. Surge, então, a holografia como
mais um elemento que atende a uma necessidade nova criada.
Dessa forma, podemos perceber que há algo que parece o inverso, ou seja,
parece, então, que quanto mais o objeto se aproxima, quanto mais ele parece ser
capturado pela consciência, ocorre o inverso: há uma fuga do real.
Então, ao utilizarmos uma imagem técnica, nós temos o registro como explicitamente não sendo a realidade. Temos a imagem que é apreendida e emitida por uma
máquina, cuja natureza é limitada: só apreende parte do real e pesa ao ponto de vista
também, do observador.
Nós temos uma necessidade, instrumentos que atendem ao desenvolvimento
dessa necessidade, chegando inclusive à imagem virtual.
Prosseguindo com a análise desse processo, quanto mais estreito parece o vínculo físico entre o registro e o objeto registrado, mais se alarga a fenda aberta entre
signo e realidade. O registro técnico congela o instante, o flagrante eterno. A
eternização aponta para o avesso, ou melhor dizendo, a irrepetibilidade de morte
irremediável do flagrante capturado. O que a imagem captura, portanto, é o rapto
da vida (Santaella, 1992:40).
De outra forma, posso dizer que a foto raptou um pouco da vida, para instantes
após lançá-la ao aparente eterno.
Essa idéia nos põe a refletir sobre a vida e a morte inclusas no signo. E nos
pomos a questão: é possível romper o duplo caráter do signo, ser ele e ser outro?
Mas há linguagem e pensamento, e Santaella (1992:42) nos propõe: não há
linguagem sem signo, não há qualquer atividade de consciência que não seja signo
nós oscilamos entre estar nas coisas e fora dela, estar no outro e fora dele, e estar
em nós e fora de nós”.
E conclui, citando Lacan : sou onde não estou, estou onde não sou.
Daí vem a proposição: um eu que pensa, presente vetoriado para o futuro, que
está além do eu representado.
Imaginemos, então, um indivíduo refletindo sobre si mesmo. Para este ser refletir
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sobre si mesmo é necessário que haja um ser que pensa e um ser objeto da reflexão. Há,
então, uma duplicação do ser, ou do eu. O primeiro eu avança na corrente da vida, o eu
que não para, o eu que continua a refletir. O segundo eu observado é o que eu transformei
em signo, que eu analiso, que eu olho, que congelei. E se você tem o eu que está refletindo, você não tem o verdadeiro objeto da reflexão. E já que não tem, fica difícil ter a
metalinguagem que caía sobre mim, que não me torne estagnado, mas me permita ser e
analisar-me, no ir, no meu estar, no meu momento agora.
Então, a relação entre os dois Eus, passa a ser um eu pensante, ativo portanto, que
enquanto pensa, no fluxo da vida, é o vir a ser, não tão conhecível, o eu por vir; e um
segundo eu, o eu pensando, passivo portanto, que está sob a ação do eu pensante, do eu
ativo. E esse eu passivo aparece como um outro conhecível, é meio passado, meio futuro.
Assim, como coloca Santaella, não só o pensamento, mas o próprio eu é dialógico.
Há, portanto uma auto-identidade, possui uma fenda, há eus, e na medida em que um eu
é o signo, não foi possível aproximar a fenda.
Dessa forma, na própria análise de mim mesmo, quando uma consciência cai
sobre si, quando ela se propõe a refletir, parece não conseguir refleti-la no seu próprio existir, mas parece necessitar, de dentro dela, de uma referência que não é o eu
existindo, mas é o eu que existe e parou parece para ser analisado.
NARCISO E O OLHAR
A fascinação de ver-se é mitológica. Narciso, como atesta a mitologia grega,
filho da ninfa Liríope e do rio Cefiso, viveria sob a profecia do cego Terésias de que
“teria vida até o momento que não se visse”. Por ser belíssimo ao chegar à idade
adulta, seria objeto de amor de várias moças e ninfas, mas mantém-se sempre insensível a este sentimento.
Castigado por Nêmesis a amar um amor impossível, Narciso sucumbe dentro
de si, quando um dia, ao inclinar-se sobre uma fonte para matar a sede, percebe seu
rosto e enamora-se de si, morrendo a contemplar-se.
Temos o fenômeno do olhar a evocar sentimentos de temor, mistério e amor.
Recordemos a narrativa do mito de Eros e Psiquê, em que a esposa cedeu à tentação
do ato proibido de olhar o rosto do marido, o Deus Eros. A punição da jovem pode
ser relacionada com poder do olhar, como se fosse esse o caminho da fusão com o
outro, como se a apreensão do eu se desse pelo canal do olhar do outro.
Na figuração bíblica, Deus teve o olhar universal. Na mitologia, Édipo é o rei
que tudo vê, mas que não conhece a verdade de si mesmo. Ao cegar-se, interioriza
sua visão. Tirésias, o adivinho, é aquele que vê para dentro, que vê o que está acima
do visível, todos eles configuram a autoridade do olhar, a importância desse elemento nas relações entre indivíduos.
Jacques Lacan, nos seus escritos sobre a fase do espelho, explica que esta fase
é a que demarca fronteiras entre o imaginário e o simbólico. A imagem de uma
criança de seis a oito meses, refletida no espelho permite a deflagração de um processo
em que esta criança reconstrói os fragmentos ainda não unificados do próprio corpo, em
uma imagem única, desencadeando assim a construção da própria identidade. No entanCarpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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to, o espelho, nesta experiência, figura como uma ilustração, pois de fato é o olhar do
outro que funciona como espelho na edificação do eu.
Nos séculos XIV e XVI, os neoplatônicos chegaram a definir o verdadeiro
amor como pura contemplação, de tal forma a identificar o ser que vê com o ser
visto. Narciso é aquele que mata a verdade de si mesmo. Ao olhar para si, confunde
o seu olhar com o olhar do Outro, criando então, uma outra imagem, o seu duplo. E
o seu aparecimento desafia a realidade do sujeito a existir e afastá-lo de sua verdade
levando-o ao jogo ilusório da aparência.
O olhar de Narciso desencadeia o processo que Freud chama de narcisismo
primário. Funde sujeito e objeto, negando a auto-identificação.
Narciso, ao direcionar o seu amor, faz a escolha errada do objeto. Dirige a si,
o amor que deveria endereçar ao outro. Viola o natural e regride a um estado endopsíquico, como se tivesse cometido um incesto intra-psíquico.
A imagem simbólica ideal do eu é aquela que dará lugar ao objeto amado. A
psicanálise freudiana nos diz que a evolução do eu passa por estágios que vão desde
o narcisismo primário até culminar onde, no processo de constituição da sua identidade, o objeto amado toma o lugar do ideal do eu.
Narciso não se reconhece em sua imagem, afastando-se, assim, da evolução
natural. Concentra investimentos libidinais num “eu ideal” que assume como sua
própria imagem.
Concentra seu olhar num simulacro. O seu duplo refletido parece abolir a idéia
de identidade.
Ao olhar no espelho, podemos colher a imagem correspondente à nossa, mas
que não somos nós. Pode ter um certo grau de identidade com o real, mas pode
encobrir e deformar esta realidade. Para os que vivem sob o signo de Narciso, esse
fato pode significar a diferença entre a vida e a morte.
O REFLEXO DO RETRATO
Um castelo suntuoso recentemente abandonado, com vários quadros de grande valor artístico, envolvidos com molduras de finíssimo acabamento. Dentre eles,
um quadro chama a atenção do viajante - que se abriga no castelo - por sua vivacidade.
Este é o cenário do conto “O Retrato Oval” de Edgar Alan Poe, que pretendemos sob a ótica do signo e do espelho, analisar neste trabalho.
No conto, temos a paixão como desencadeadora de um processo de transferência. Seguindo a narrativa, o grande interesse do viajante é despertado em particular por um quadro de uma jovem. O observador deixa prender sua atenção, por achar
que neste quadro, além da execução e técnicas perfeitas, há vida, como se o retrato
aprisionasse a “imago” da moça.
A imagem reproduzida tem uma impressão de sobrenaturalidade e mistério,
como se a alma da jovem ficasse presa na imagem imóvel.
Mas aquela comoção tão súbita e tão intensa não me viera nem da execução
da obra, nem da imortal beleza do semblante. Menos do que tudo poderia ter
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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sido minha imaginação que, despertada de seu semitorpor. teria tomado
aquela cabeça de uma pessoa viva.
Tomado pelo mistério, o viajante descobre o livro que descrevia as pinturas e
a sua história, e fixa sua atenção no verbete que descreve a história do “Retrato
Oval”.
Este descreve a história de uma jovem muito bela que desposa o pintor do
quadro. Estudioso e apaixonado pela arte, o marido dispensa poucas atenções à esposa e dedica-se fervorosamente à execução de seu trabalho. Suas duas grandes
paixões eram, a sua esposa e a arte.
Decide então, pintar o retrato de sua amada, e é a partir daí que podemos
identificar as relações com o signo.
Anteriomente, ao discutirmos o signo na sua relação com o objeto que representa, lembramos que o signo reflete o objeto em si, uma verdade para si. Nesta
reflexão, de certa forma deforma o objeto que reflete, pois por mais que lhe seja fiel,
não pode ser objeto. Há então, a existência da fenda.
Dessa forma, a presença do signo delata a ausência do objeto. No conto, a
jovem vai gradativamente definhando, diante do pintor e seu retrato. O fato é a
metáfora da significação. O pintor, aos poucos substitui a jovem, seu objeto de amor,
pelo outro, a pintura, que permite eternizá-la, naquele instante. Existe a fenda entre
o retrato e o que ele reflete, pois o retrato vai aos poucos sobrepondo-se ao rosto da
modelo.
O pintor dirige os olhos para a jovem, na medida em que esta se encontra no
lugar de seu modelo. A significação, passa de um foco (jovem/modelo) para outro
(retrato) e nessa medida, há a inversão em que a modelo passa a ser o signo e, o
retrato, o objeto representado.
Estabeleceu-se então, o jogo de metamorfoses entre o modelo e o retrato. O
reflexo (retrato) reúne e exibe as portas de um vazio que é imperiosamente indicado:
a fenda entre o signo e a representação.
O olhar soberano do pintor comanda um triângulo visual que tem em seus
vértices a imagem especular, a imagem real e a relação modelo/retrato, todas centralizadas num ponto: os olhos do artista.
Partindo-se do olhar do pintor aparece o reverso da tela. Daí, podemos observar a prevalência do olhar. O pintor vê, mas não é visto, e aquele que não se deixa
ver é o mesmo que detém o poder.
A dicotomia entre o ver e o ser visto é correlata do fenômeno do poder. A
fascinação consiste precisamente em saber que se é visto com intensidade. Para
evitar o poder excessivo da visão, é preciso que os parceiros do olhar, tenham a
mesma densidade. Quando há desequilíbrio de poder na relação, o olhar de um pode
congelar o movimento do outro, congelar o outro como objeto.
No conto, o pintor trabalha a sua tela como se o retrato procurasse fixar a
identidade da modelo.
Na mitologia, Eros não queria ser visto, mas olhava. Psiquê conquista com grande
sacrifício o privilégio e com isso perde sua identidade.
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Após o reflexo/retrato completo não sabemos quem refletirá no espelho/retrato, e
o reflexo se dará ao nível da existência, aquilo que é olhado, mas não visível, e, no extremo da profundidade fictícia, torna-se visível, mas indiferente a todos os olhares. Mostrase então, o que falta em cada olhar: os espectadores que o admiravam, o belo retrato, a
imagem criada pelo artista e o pintor, que tinha como imagem real, as tintas dispostas na
tela, formando uma imagem.
Na composição do quadro existe a lacuna. A imagem da moça cola-se ao retrato como um duplo especular. Nesse momento de perda das identificações, ela era
somente um retrato, a sua imagem estava aprisionada. Era apenas uma marca simbólica que a sustentava frente ao real.
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Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
145
AUGUSTO DOS ANJOS: A IRONIA INFAUSTA
Rosilda Alves Bezerra1
RESUMO: A poesia de Augusto dos Anjos analisada a partir da ironia infausta
revela insistente repetição no traço poético escolhido como construção de linguagem. O aspecto irônico argumentado constitui o homem como uma mistura de qualidades contraditórias. Percebemos nos poemas de Augusto dos Anjos, o contraste
entre o homem com suas angústias e esperanças, inseguro perante um destino obscuro, incerto e inflexível, em que propicia legítimas possibilidades e proximidades
de uma exibição da ironia trágica e suas manifestações na vida humana.
PALAVRAS-CHAVE: Augusto dos Anjos; ironia; psicanálise; poesia
AUGUSTO DOS ANJOS: THE UNLUCKLY IRONY
ABSTRACT: Augusto dos Anjos’s poetry analized from the unluckly irony perspective, shows an insistent repetion in the poetic trace chosen as language construction. The ironic aspect argued constitutes the man as a mix of contradictory
qualities. We observed in his poems the contrast among man with his anguishes and
hopes, for man is insecure before an obscure, uncertain and inflexible destiny which
provides lawful possibilties and proximities of an exhibition of the tragic irony and
its manifestations in human life.
KEY-WORDS: Augusto dos Anjos; irony; psychoanalysis; poetry
1
Graduada em Letras (UFRN). Mestre em Comunicação e Semiótica (PUC/SP). Doutoranda em Letras (UFPB).
Pesquisadora da Base de Pesquisa “Linguagem e Psicanálise” da Faculdade de Ciências, Cultura e Extensão do
RN (FACEX)/Natal e do Núcleo de Estudos da Linguagem (NEL). End.: Av. Ayrton Senna, 1823 - Bl. 24, Ap.
301 – Eucaliptos. CEP 59.088-100 - Natal, RN; Tel.:( 0xx84) 208-5197. E-mail: [email protected]
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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Era a elegia panteísta do Universo,
Na podridão do sangues humano imerso
Prostituído talvez, em suas bases..
Era a canção da natureza exausta,
Chorando e rindo na ironia infausta
Da incoerência infernal daquelas frases.
Augusto dos Anjos
Posso eu aprender a sofrer
Sem dizer algo irônico ou engraçado
Sobre o sofrimento?
Auden
Lendo o poema Monólogo de uma sombra, no livro Eu e outras poesias, de
Augusto dos Anjos, interessei-me em particular pela estrofe acima. Tentava descobrir nas minhas inquietações porque as palavras “ironia infausta” chamavam-me a
atenção. O infausto estava retratado no sentido doloroso que a palavra imprime.
Infausto na sua significação própria de dor que se processa continuamente. E a ironia? Como caberia nesse contexto do infausto? O vário campo semântico abrange o
vocábulo ironia vindo do grego (eironeia), que significa dissimulação, interrogação
dissimulada. Nesse sentido designa a arte de interrogar, com vistas a provocar o
surgimento das idéias, formando assim, uma figura de retórica. O primeiro registro
de eironeia surge na República de Platão. Segundo (MUECKE, 1995: 33), ironia
enquanto modo de tratar o oponente num debate e enquanto estratégia verbal de
um argumento completo ¾ foram ignorados a princípio, e durante duzentos anos e
mais a ironia foi encarada principalmente como uma figura de linguagem.
A ironia socrática consistia em propor questões dissimuladamente simples e
ingênua ao interlocutor, a fim de confundi-lo e mostrar-lhe a fraqueza das opiniões
ou dos raciocínios. Como o processo acabava irritando e ridicularizando o adversário, a palavra passou a adquirir conotação satírica. Entretanto, utilizado pelo filósofo
Sócrates no contato com os seus discípulos moços, sensatos e amantes da verdade, a
ironia resultava no alargamento progressivo das consciências. Modernamente, o termo assumiu o indeciso contorno de figura de pensamento e de palavra. A ironia,
nesse sentido, funciona, pois, como um processo de aproximação de dois pensamentos, e situa-se no limite entre duas realidades, e é precisamente a noção de balanço,
de sustentação, a sua característica básica, do ponto de vista da estrutura. A ironia
resulta do inteligente emprego do contraste, com vistas a perturbar o interlocutor
(formando daí a interrogação).
Enquanto modo de expressão, a ironia representa elemento estruturador de um
texto, aparecendo sob diferentes formas de linguagem: na lingüística é colocada
como construção de linguagem; na vertente psicanalítica, o estilo freudiano ocupouse de usar diversos registros de escrita, com o objetivo de demonstrar descritivamente, narrativamente e dissertativamente o quanto de mistério leva à pulsionalidade
do fazer poético. Na poesia de Augusto dos Anjos, o seu traço poético possibilita
vários tipos de ironia. Em determinados momentos repete-se um processo
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interrogativo da falta eterna que possui o homem que interroga, buscando de seu interlocutor/
leitor as respostas desse riso escamoteado; a ironia autotraidora e a ironia dramática
fazem parte desse sentido poético, que identifica o homem isolado criando seu próprio
objeto, em eterna busca da verdade.
A expressão irônica inserida no fazer poético de Augusto dos Anjos é tão séria
que causa horror. No entanto, o ouvinte experiente está iniciado no mistério que se
esconde velado. O homem aspira à unidade e à infinitude, isto é, a eternidade com
consciência de morte, e o mundo se lhe afigura fantasmagônico cindido e finito. As
interrogações de traço poético de Augusto dos Anjos surgem precisamente em busca de interlocutores que tentem desvendar a dor humana que é contínua, e se renova.
Como observamos nestes versos:
Ah! Dentro de toda a alma existe a prova
De que a dor como um dartro se renova.
(Monólogo de uma sombra)
Para escamotear essa dor, o poeta coloca em evidência vários disfarces, entre
elas a mais importante é da inconsciência das máscaras de cera/ Que a gente prega,
com um cordão, na cara. (As cismas do destino). Os esforços para tirá-la da luta
constante de palavras para conseguir afastar a máscara toma o aspecto triste e desolado do tédio. Com novas formas consegue afastá-la, porém novamente recupera
sua antiga máscara, e a dor recomeça, ou como diz o poeta, se renova.
Na poesia de Augusto dos Anjos, a ironia infausta revela uma linguagem do
humano que sofre além dele mesmo. Configurando um traço essencial de seu discurso, pudemos caracterizá-lo como um “escritor irônico”, extrapolando o estudo
dos traços literários encontrados na poesia, e traçando a biografia do indivíduo. O
livro de poemas Eu, permeado pelo pessimismo, dúvida e desconsolação, sempre
em sintonia com a realidade amarga, é análoga à doença que o acompanhava incessantemente, notificando a excentricidade do poeta. Há uma negação do amor; praticamente inexiste, e de uma certa forma esse tema é ironicamente o que causa dor e
sofrimento:
Que mal o amor me tem feito!
Duvidas?! Pois, se duvidas,
vem cá, olha estas feridas,
Que o amor abriu no meu peito.
Passo longo dias, a esmo...
Não me queixo mais da sorte
nem tenho medo da Morte
Que eu tenho a Morte em mim mesmo!
(Canto íntimo)
A linguagem da busca, de algo perdido, da “monera”, da saudade, é uma constante na escritura de Augusto, temos dessa forma, uma ironia infausta ligada diretamente ao passado. A retórica que o poeta notifica retrata a ironia infausta como uma
das modalidades do desabafo, implicando toda uma relação do sujeito que não idoCarpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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latra a realidade, pelo contrário, notifica-se uma nostalgia por algo intensamente perfeito.
Mas esta nostalgia não esvazia a realidade, diferente disso, o conteúdo da vida revela um
significativo momento numa realidade profunda, cuja plenitude atrai a alma:
Da saudade na campa enegrecida
Guardo a lembrança que me sangra o peito,
Mas que no entanto me alimenta a vida.
(Saudade)
Poderíamos dizer que a ironia é a figura de retórica (antífrase) que supõe uma
certa posição do sujeito diante dessa busca da verdade. A ironia revela o funcionamento do inconsciente como retórica, na medida que o conflito inserido no íntimo
do ser entre a vontade de querer e o desejo não realizado, do ponto de vista do
inconsciente, só pode se dizer pelo inverso. Nos versos abaixo, observamos a desilusão do poeta perante este enigma que absorve amor e saudade :
Parece muito doce aquela cana.
Descasco-a, provo-a, chupo-a ... Ilusão treda!
O amor, poeta, é como a cana azeda,
A toda a boca que o não prova engana.
(Versos de amor)
A ironia infausta implica dor dissimulada, poeticamente existe uma preocupação em desvendar esse enigma do amor, para o qual temos no mesmo instante a
interrogação infinda:
Quis saber que era o amor, por experiência,
E hoje que, enfim, conheço o seu conteúdo,
Pudera eu Ter, eu que idolatro o estudo,
Todas as ciências menos esta ciência!
(Versos de amor)
Apesar da resistência na repetição do traço poético de Augusto dos Anjos com
relação ao amor, trata esse tema, como uma espécie de ilusão, por conseguinte, não
é possível duvidar da realidade do amor, nem de sua importância. O poeta descreve
de modo que somente ele entenda diferente:
Certo, este o amor não é que, em ânsias, amo
Mas certo, o egoísta amor este é que acinte
Amas oposto a mim. Por conseguinte
Chamas amor aquilo que eu não chamo.
(Versos de amor)
Às vezes, a ironia tem uma propriedade que também é característica para toda
ironia, uma certa nobreza, que provém do fato de que ela gostaria de ser compreendida, mas não diretamente. Não há tema algum que desperte tanto interesse como o
que trata do bem ou do mal da espécie, porque o indivíduo é para esta o que a superfície
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de um corpo é para o próprio corpo. A ironia que está impregnada na poesia de Augusto
dos Anjos é identificada como componente específico de uma dor, da descoberta de seu
ser, e a procura de algo que responda a sua amargura infinita. Só aceita a solidão quem
acredita que se não fosse a dor, a nossa existência no mundo não teria nenhuma razão de
ser. E nesse sentido, o poeta do Eu parece inserir sua linguagem
Os conflitos, os motivos ocultos que explicariam o comportamento de Augusto dos
Anjos no traço escritural possibilitam uma consciência e um desejo em que o campo de
batalha é localizado no íntimo do ser, e sua exteriorização é reconhecida como método
para suportar a dor.A ironia infausta é concebida como construção de linguagem, para a
não implosão da alma. Sua forma de apresentar-se é o riso. Mostrando-se com dentes
que se expõem ofuscando o entendimento de quem o escuta. Este interlocutor nunca sabe
se os dentes são para devorá-los ou se representam expressão de alegria. É o riso escamoteado, de couraça. É o riso que se mostra escondendo a dor:
E muita vez, à meia-noite, ri
Sinistramente, vendo o verme frio
Que há de comer a minha carne toda!
(Poema negro)
Ria, num sardonismo doloroso
De ingênita amargura
(Numa forja)
E hoje, para guardar a mágoa oculta,
canta, soluça ¾ o coração saudoso,
Chora, gargalha, a desgraçada estulta.
(A louca)
E entre a mágoa que a máscara eterna apouca
A Humanidade ri-se e ri-se louca
No carnaval intérmino da vida.
(A máscara)
A alegria do irônico consiste exatamente em parecer aprisionado naquela mesma fixação que mantém o outro preso. A ironia se mostra como aquela que compreende o mundo, que procura mistificar o mundo circundante, não tanto para ocultarse quanto para fazer os outros se revelarem. Mas a ironia também pode se mostrar
quando o irônico procura levar o mundo circundante a falsas pistas a respeito dele
mesmo. Nesse sentido, a poesia de Augusto dos Anjos manifesta o que o crítico
Órris Soares comentara sobre a poética do autor: Só a dor possui a faculdade de
aumentar, aclarando, essa manifestação imediata e poderosa da sensibilidade, enquanto a alegria, no seu rodopiar eterno de faisante, dançando ao som do pandeiro,
a dispersa e anula. (COUTINHO & BRAYNER, 1973)
Desse modo, o poeta se auto intitula como um ser monstruoso:
Eu sou, por conseqüência, um ser monstruoso!
Em minha arca encefálica indefesa
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Choram as forças más da Natureza
sem possibilidade de repouso.
(Noli me tangere)
A felicidade nesse contexto é praticamente suprimida. E nesse traço de insatisfação é revelado que todo o bem é negativo, e toda satisfação também o é, porque
suprime um desejo ou termina um pesar. Isso significa que na poesia augusteana
nunca a alegria é maior que a almejada, e que a dor sempre a excede. Na sua poesia
infausta, a única força criadora e redentora é a dor:
Ah! Como o ar imortal a Dor não finda!
Veio e vai desde os tempos mais transatos
Para outros tempos que hão de vir ainda.
(As cismas do destino)
Nesse contexto irônico de dor, o sentido da busca incessante é o meio de diluição na multidão para dela manter-se isolado. E é nesse espaço de procura que ironia
infausta assume a face do que mais necessita dos outros para afirmar seu isolamento. Assim, os termos grotescos são enumerados, a dor, como elemento característico
dessa ironia autodestrutiva se faz presente intensificando a elaboração dos versos:
Na evolução de minha dor grotesca,
Eu mendigava aos vermes insubmissos
Como indenização dos meus serviços
O benefício de uma cova fresca.
(Os doentes)
Numa perspectiva literária condizente à poética de Augusto dos Anjos, não
deixa de colocar ironicamente que o homem sensato é aquele que consegue ser comediante de si mesmo e das suas próprias desgraças. Alguns poemas
escatologicamente construídos absorvem os aspectos norteantes da utilização irônica como a arte de persuadir, assim também, como discurso que pode servir ao trágico apelo à essência religiosa do ser quanto ao cômico. Ao observarmos a comunicação cotidiana, a figura de linguagem irônica aparece principalmente nas classes elevadas.
O irônico é uma vítima exigida como sacrifício pelo desenvolvimento do mundo; não que o irônico sempre precise cair como uma vítima, no sentido estrito, mas
sim porque o zelo no serviço do espírito do mundo o devora. A escrita poética de
Augusto dos Anjos preenche perfeitamente a complexidade desse episódio, porque
a sua dor é colocada obsessivamente a cada momento; sua preocupação gira em
torno, não só do título de seu próprio livro Eu, embora o egocentrismo que sugere o
nome, não condiz totalmente com sua grafia poética. A linguagem poética desenhada pelo poeta indica propositadamente uma certa universalização e integração com
os cosmos, como se ele contivesse todas as dores da humanidade, perfeitamente
observáveis nos versos:
Porque, para que a dor perscrutes, for a
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Mister que, não como és, em síntese, antes
Fosses, a refletir teus semelhantes,
A própria humanidade sofredora.
(As cismas do destino)
Alguns elementos contribuem para uma dimensão discursiva desse fenômeno
de linguagem: a ironia como retórica do inconsciente permite pontuar as
especificidades da dimensão psicanalítica assumida pela teoria freudiana. O confronto existente entre essa perspectiva retórica possibilita a visualização do processo de produção da ironia como uma particularidade da linguagem, apreensível num
plano discursivo. O traço irônico, de certa forma, tende a não usufruir do gozo, pois
não se permite ser feliz.
No entanto, a realidade perde em tais instantes sua validade. Esse procedimento da não permissão à felicidade, circula pela instabilidade que a alegria proporciona. A felicidade só seria alcançada se fosse retirado do próprio sujeito o máximo de
prazer, e que não necessitasse do outro para completá-lo. A felicidade que se repete
no traço poético de Augusto está no futuro ou no passado, nunca no presente; o que
à distância o admira, desaparece logo que se deixa seduzir. Enquanto indivíduo,
quanto menos o ser necessitar do outro, mais poderá ele encontrar a felicidade. Pois
esse outro é sempre inconstante, inseguro, instável; e é nesse contexto que o homem, ora uno, ora universal só tem vontade e desejos; é essa necessidade que o
constrange, e as imperiosas exigências materiais preenchem a sua existência, revelando assim, que o eu é o sintoma humano por excelência:
Ser homem! Escapar de ser aborto!
Sair de um ventre inchado que se anoja,
comprar vestidos pretos numa loja
e andar de luto pelo pai que é morto.
(Gemidos de arte)
O conceito de ironia infausta busca elaborar uma leitura crítica que incorpora
um olhar que procura se identificar com a desordem que ele quer combater, ou assumir frente a essa uma relação de oposição, mas naturalmente, sempre de tal modo
que esteja consciente de que a aparência dele é o contrário daquilo em que se apoia,
e que saboreie essa inadequação. Na poesia de Augusto, os males do mundo, ele os
aponta em si mesmo, passeia perplexo, não sendo mais que a sombra, o espectro de
seu passado:
Quem foi que viu a minha Dor chorando?!
Saio. Minh’alma sai agoniada.
Andam monstros sombrios pela estrada
E pela estrada, entre estes monstros, ando !
(Queixas noturnas)
A partir da poética do Eu, pudemos seguir uma linha de continuidade temática
nas Outras poesias. O monólogo interior, a fragmentação dos episódios, o horizonCarpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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te reflexivo de sondagem existencial, a temática do autoconhecimento e expressão, os
limites do dizível descortinam na ficção augusteana uma poesia voltada para a tematização
do problema do ser e do dizer, principalmente de qual tipo de linguagem se um exercício
de reflexão para o homem que deseja conhecer- utiliza para desenvolver esse dizer.
Que sou eu, neste ergástulo das vidas
Danadamente, a soluçar de dor?!
¾ Trinta trilhões de células vencidas
Nutrindo uma efemeridade interior.
(Anseio)
O poeta aliado a sua conduta de psique ainda em processo de formação tem a
própria condição irônica como modo de sobrevivência à dor de ser alma. É neste
aspecto que a sublimação tende a processar-se. Diz-nos a estética freudiana, que a
sublimação é um dos destinos da pulsão, e a psicanálise fornece uma leitura do
homem, propiciando-lhe um conhecimento da alma. A ironia constitui apenas uma
forma subordinada de vaidade irônica de desejar ter testemunhas para estar bem
certo e seguro de si; e igualmente é uma simples inconseqüência, que a ironia tem
em comum com todos os pontos de vista negativos, que ela, por definição procura o
isolamento:
Eu, somente eu, com minha dor enorme
os olhos ensangüento na vigília!
E observo, enquanto o horror me corta a fala,
O aspecto sepulcral da austera sala
E a impassibilidade da mobília.
(Poema negro)
Mas essa solidão de que fala Augusto é algo que o atrai como espécie de sentimento aristocrático. Ou como coloca Schopenhauer, quanto mais nobre o homem,
menos prazer sente no convívio social, preferindo a solidão. O homem podendo
contar apenas consigo mesmo. E é no intuito de sublimar essa solidão que o traço do
poeta revela-se irônico de grau poder dissimulativo, sendo nas fraturas e impasses
da consciência de seu texto que se capta a falta. A solidão e o isolamento representam o destino de todos os espíritos elevados. No seu discurso transparece as leituras
dos filósofos lidos pelo autor, como Herbert Spencer, Ernst Haeckel, e principalmente Arthur Schopenhauer, na obra Dores do mundo. A influência do filósofo
alemão contribuiu sistematicamente para a construção de suas idéia, notificando
uma negação evidente da existência material, com isso permitindo uma mortificação moral contínua. A solidão auxilia no processo da interrogação, da busca de si
mesmo. O filósofo alemão Schoupenhauer, no livro A vontade de amar, fala sobre
a dor de modo realista:
Se não fosse a dor, poderíamos dizer que a nossa existência no mundo não
teria nenhuma razão de ser. É um absurdo pensar que a dor, que nasce da vida
e enche o mundo, seja apenas um acidente, e não o próprio fim. Cada desgraça pessoal apresenta-se como uma exceção, mas, como somos todos desgraCarpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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çados, a desgraça geral é a regra.
Esse querer conhecer-se a si próprio identifica-se como um traço de linguagem
que se estende e se repete na pesquisa profunda do mistério das coisas que o poeta
absorve. Seu traço escritural é devidamente empregado de forma que cada palavra
signifique uma determinada coisa. Essa escassez de humor, mostra uma condição
poética que procura estranhamente ironizar sua condição espiritual.
O novo, por outro lado, ele não possui. Apenas sabe que o presente não corresponde
à idéia. Ele é o que deve julgar. Num certo sentido, o irônico é profético, pois ele
aponta sempre para a frente, para algo que está em vias de chegar, mas não sabe o
que seja. Ele é profético; mas se orienta, se situa ao contrário do profeta. Nesse
aspecto, Augusto soube decifrar poeticamente seus pensamentos proféticos:
Por antecipação divinatória,
Eu, projetado muito além da História,
Sentia dos fenômenos o fim...
(Canto de onipotência)
Revela-se porém, uma certa ironia, quando notamos o título do poema. Esta
mesma liberdade, este flutuar dá ao traço da ironia infausta um certo entusiasmo, na
medida que ele, se embriaga na infinitude das possibilidades, necessitando de um
consolo por tudo o que naufraga, pode buscar refúgio no enorme fundo de reserva da
possibilidade. Entretanto ele não se entrega a esse entusiasmo de destruição que há
nele, pois mostra em grande parte de seus poemas que a dor é a saúde dos seres que
se fanam, a riqueza da alma, o psíquico tesouro, e a alegria das glândulas do choro
de onde todas as lágrimas emanam.
A poética de Augusto dos Anjos busca incessantemente nas profundezas do ser
a ironia, esta figura que se afigura metaforicamente como um monstro caótico e
ordenador. É o alicerce da alma, funcionando como um sustentáculo de si mesmo,
insistindo numa eterna procura do objeto perdido, angustiado em poder suprir o
desejo, de cobrir uma falta que persiste com a finalidade única de que o sujeito
continue a desejar. A consciência da falta instaura o devir do sujeito. Na ironia, o
sujeito bate em retirada constantemente, contesta a realidade de todo e qualquer
fenômeno, para salvar a si próprio, na independência negativa em relação a tudo.
Nesse poema o autor ironiza com a leitura do outro:
Dizes que sou feliz. Não mentes. Dizes
Tudo que sentes. A infelicidade
Parece às vezes com a felicidade
E os infelizes mostram ser felizes.
(Ilusão)
Para que a formação da ironia infausta na poesia de Augusto se desenvolva completamente, exige-se que o mesmo tempo o sujeito tome consciência de sua ironia, se sinta
negativamente livre ao condenar a realidade dada, e goze a liberdade negativa. A subjetividade, nesse caso, tem de ser desenvolvida. No entanto, sempre que a subjetividade se
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faz valer, e isso é uma constante na poesia de Augusto, aparece a ironia.
Não, não quero meus sonhos sepultados
No cemitério da desilusão,
Que não se enterra assim sem compaixão
Os escombros benditos do passado”
Ai! Não me arranques d’alma este conforto!
¾ Quero abraçar o meu passado morto
¾ Dizer adeus aos sonhos meus perdidos.
(Tempos idos)
A procura de si mesmo, o decifrar-se: a falta enquanto elemento estrutural, e a
dor que não cessa formam na escritura de Augusto dos Anjos o dilema da culpabilidade. Homem que apesar de todo sofrimento revela a influência do tempo em que
viveu com a decadência da Fazenda Pau D’Arco, e da morte das pessoa mais queridas. De uma certa forma, a culpa tem presença insistente nessa poética que ironiza a
própria sorte. O poema a seguir imprime a angústia aterradora do medo que o poeta
sofre, e por sua vez passa a influência para sua própria linguagem:
A Esfinge há de falar-vos ainda
E eu, somente eu, hei de ficar trancado
Na noite aterradora de mim mesmo!.
(Trevas)
Estes fatores resignam o sujeito a adequar-se ao que não há, formando assim o
princípio da castração. Nesse processo em que há o conhecimento da falta, há o
devir do sujeito, este sempre inacessível processo em movimento (aliás podemos
pensar o ato criativo como uma das buscas desejantes do sujeito). Assim, como
colocou Lacan no Seminário (Os escritos técnicos de Freud), a relação do imaginário e do real, e na constituição do mundo tal como ela resulta disso, tudo depende da
situação do sujeito que é essencialmente caracterizada pelo seu lugar no mundo
simbólico, ou, em outros termos, no mundo da palavra.
Rollo May, em O homem a procura de si mesmo, disserta esse aspecto da
autocondenação como sendo um disfarce da arrogância. Os que julgam combater o
orgulho condenando-se a si mesmos deveriam entender que está muito próximo do
orgulho.
Autocondenação é um substituto da autovalorização. O substituto
autocondenatório proporciona ao indivíduo um racionalização do ódio
por si mesmo, acentuando assim a tendência à execração pessoal. O
egoísmo e a excessiva preocupação de si com sua pessoa brotam, na
verdade, do ódio por si mesmo. (MAY, 1998)
Talvez tal argumento possa ser aceito neste aspecto de Augusto dos Anjos, pois a
contradição se faz presente em várias passagens de sua escritura: ora é de condenação,
ora de caráter punitivo e de culpabilidade.
A ironia infausta é exigida como sacrifício pelo desenvolvimento do mundo; não que
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a dor que se mascara precise cair como uma vítima, no sentido estrito, mas sim porque o
zelo no serviço do espírito do mundo a devora. Nota-se no fragmento abaixo, como o
próprio título já indicia uma necessidade de colocar à prova seu mais puro temor à Deus,
e a dúvida de continuar vivendo com o mesmo sofrimento que lhe permeia a alma:
Oh Deus, eu creio em ti, mas me perdoa!
Se esta dúvida cruel qual me magoa
Me torna ínfimo, desgraçado réu.
Ah, entre o medo que o meu ser aterra,
Não sei se viva pra morrer na terra
Não sei se morra pra viver no céu
(Ceticismo)
O ato criativo seria secundário, representaria a forma e a assinatura deste algo e
deste lugar no qual o poeta foi determinado. Aquele que cria, sublima e faz sua
assinatura porque “inventa”, fabrica um nome para si próprio. Pensar a falta como
essencialidade do desejo é pensar também esta relação com a lei, a lei como sendo
aquela que interdita todos os gozos estrutura-se com o desejo: onde há lei, há desejo.
Daí a necessidade do sujeito vir sempre a desejar, baseando-se numa espécie de
gozo que dificilmente poderá ser saciado.:
Na ansiedade desse gozo falho
Busco no desespero do trabalho,
Sem um Domingo ao menos de repouso,
Fazer parar a máquina do instinto,
Mas, quanto mais desprezo, sinto
A insaciabilidade desse gozo!
(Gozo insatisfeito)
Vejamos, por exemplo, o assinalamento do conflito interior (gozo e dor), isto é,
a consciência da dor mascarada pela ironia. Esse estranhamento conflitivo tanto
pode ser apontado como uma tensão existencial, como também é sustentado por
uma interpretação psicanalítica: a dor da alma. Ironicamente, essa dor tem muito do
amor não realizado, e sempre sua escritura traz essa interrogação. Augusto dos Anjos, na sua poesia defende um amor impossível, o sentimento puro, espiritual, fluido, etéreo, inacessível.
Desse conjunto, que ajuda a entender uma dimensão irônica ultrapassando um
trabalho de frases e características particulares de um escritor, é possível assinalar
alguns elementos que podem ser deslocados para uma outra reflexão sobre a ironia,
desconhecendo num primeiro momento, e para efeito metodológico, os limites existentes entre discursos literários e não-literários. Dentre estes aspectos alinham-se: o
caráter provisório, a consciência de si, o estado de reflexão e a dissipação da ilusão. Pelo
fato de o sujeito ver a realidade ironicamente, não consegue relacionar ironicamente consigo mesmo ao impor sua concepção da realidade.
Façamos uma leitura sobre o que escreve um poeta extremamente moderno, de
estilo poético áspero e objetivo, que fugia do prazer, e passava esse desejo abertamente infausto para sua escritura. No entanto é necessário entender melhor nas enCarpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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trelinhas esse excesso de negações que deixa desprender da poesia de Augusto:
Melancolia! Estende-me a tu’asa!
És a árvore em que devo reclinar-me...
Se algum dia o prazer vier procurar-me
Dize a esse monstro que fugi de casa!
(Queixas noturnas)
A própria existência do poeta está inserida no conteúdo poético desta ironia
que no íntimo de seu ser causa-lhe a dor. Não só a dor do poeta mais de todos que
dela participam. Esse caráter infausto na poesia de Augusto dos Anjos como tentativa de mostrar a dor profunda, só funciona como um diálogo ou interlocução dos
inconscientes. Nesse processo de linguagem, nasce uma certa contradição que baseia-se, principalmente, na autocondenação. Augusto quer ser Cristo: dominar todos
os contrastes, possuir a onipotência da divindade, passar pelo mesmo sofrimento,
resgatar a dor que só imagina.
Eu fui cadáver, antes de viver!
Meu corpo, assim como o de Jesus Cristo,
Sofreu o que os olhos de homem não têm visto
E olhos de fera não puderam ver.
(Dolências)
Quando se inscreve como alguém que já soube o que é ser cadáver, a contradição de sua própria poética se faz presente no poema em que o medo da morte se
mescla com o lado irônico de uma vida que carrega a dor de ser alma. É como se a
morte fosse o fim de tudo, e o caminho mais próximo a paz eterna:
Quem me dera morrer então risonho
Fitando a nebulosa do meu sonho
E a Via-Láctea da Ilusão que passa!
(Ecos d’alma)
Nesse contexto de referência irônica, em que está inserido o “risonho”, o traço
característico desse ser aniquila a realidade com a própria realidade, colocando-se
dessa forma ao serviço da ironia do mundo. Cada realidade histórica individual é
contudo apenas momento na realização da idéia, ela carrega em si mesma o germe
de sua ruína. No entanto existe o outro lado da ironia. Kierkegaard ao mencionar
essa realidade histórica, afirma que:
A ironia pode ainda mostrar-se de uma maneira mais indireta através
de uma relação de oposição, quando ela dá preferência às pessoas mais
simples e mais limitadas, não para bular-se delas, mas sim para escarnecer dos homens sábios.(KIERKEGAARD, 1991)
Notoriamente na poesia de Augusto dos Anjos esse tipo de linguagem é freCarpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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qüente. Um exemplo típico, é quando o poeta homenageia carneiro morto, elege o verme
como um Deus, clama a pureza do epiléptico, oferece versos a um cão, ama o coveiro
ofertando-lhe um último credo:
Como ama o homem adúltero o adultério
E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro ¾ este ladrão comum
Que arrasta a gente para o cemitério!
(Último credo)
Na ironia, segundo Kierkegaard, o sujeito quer constantemente afastar-se do
objeto, o que ele consegue ao tomar consciência a cada instante de que o objeto não
tem nenhuma realidade. Nesse sentido, esse sentimento pelo outro traz um certo
distanciamento, pois denota-se nos versos do poeta o gozo subjetivo, o sujeito se
liberta da vinculação à qual está preso, deixando-se levar pelo fim irônico. Octávio
Paz, no livro Labirinto da solidão, faz uma observação importante sobre o sentimento do ser humano:
o homem é o único ser que se sente só e o único que é a busca do outro. Sua
natureza consiste num aspirar a se realizar em outro. O homem é nostalgia e
busca de comunhão. Por isso cada vez que se sente a si mesmo, sente-se como
carência do outro, como solidão. Sentir-se só possui um duplo significado:
por um lado, consiste em ter consciência de si; por outro num desejo de sair de
si. A solidão é uma pena, isto é, uma condenação e uma expiação. É um castigo, mas também um a promessa de fim do nosso exílio. (PAZ, 1984)
Augusto dos Anjos cultua esta solidão em seus versos, mas implora pela
interação do outro para se expor, para que apiadem de seu traço obsessivo e lastimável de sobrevivente único das palavras. Sua linguagem é imagética, alegórica permitindo-nos absorver mais que uma pura leitura macabra, apoética e grotesca. Para
conter a dor a linguagem é sublimada pelo riso sarcástico. A ironia infausta rir e
chora exaurindo a angústia encandeada na poesia de Augusto dos Anjos numa linguagem incondicionalmente realista.
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João Pessoa: UFPB, 1994.
Carpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
159
GLOBALIZAÇÃO E DESEMPREGO
Estado, Mercado e Sociedade Civil
Paulo Sérgio Oliveira de Araújo1
RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo especular sobre as possibilidades
postas à sociedade civil, no projeto capitalista dos nossos dias. É uma tentativa de
traçar cenários e perspectivas que são postos em torno dos debates sobre globalização
e desemprego. O desemprego é aqui tratado, com o status de uma nova questão
social. O mercado é discutido através das mudanças nas relações de produção. O
estado, por sua vez, é analisado sob a ótica da extinção ou do fortalecimento, enquanto que a configuração das forças políticas adquirida é articulada de forma a
contemplar tanto o global como o local.
PALAVRAS-CHAVE : globalização; desemprego; capitalismo; ciência política.
GLOBALIZATION AND UNEMPLOYMENT
State, Market and Civil Society
ABSTRACT: The present work aims to especulate about the possibilities given to
the civil society in the contemporary capitalism project. It’s an attempt to trace the
sceneries and perspectives which are given, around the debates on globalization and
unemployment. Unemployment is treated here, as a status of a new social issue. The
market, is discussed through the changes into relations of production. The state, is
analyzed under the extinction or strengthment points of view, while the political
acquired configuration forces, are articulated in order to contemplate either the global or the local sphere.
KEY-WORDS : globalization; unemployment; capitalism; political science.
1 Sociólogo, Mestre em Ciências Sociais (UFRN), Consultor em Desenvolvimento Sustentável; Professor da
Faculdade de Ciências, Cultura e Extensão do RN – FACEX E-mail.: [email protected]
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160
1 DESEMPREGO : A NOVA QUESTÃO SOCIAL
1.1 A evolução do trabalho, sua crise e prognósticos
O trabalho assalariado teve sua evolução acelerada com as reformas políticas
e econômicas proporcionadas pelas Revoluções Francesa e Industrial. Primordialmente dava-se às margens da sociedade e paulatinamente foi-se nela instalando,
porém subordinado a outras formas de relações de produção, tendo em seguida difundido-se por todas as partes, orientando as trajetórias de vida e escolhas profissionais de toda a sociedade.
A nova questão social que se coloca, é o fato de atualmente a sociedade baseada no trabalho assalariado estar vivenciando uma de suas mais graves crises, caracterizando um cenário onde cada vez mais trabalhadores encontram-se sem emprego
ou mesmo perdendo o interesse em procurá-lo, fazendo com que muitos sintam-se
inúteis para o mundo, numa população crescente que Robert Castel2 chama de
supernumerários.
A reestruturação produtiva de que tantos falam hoje em dia, nada mais é que
uma tentativa de estabelecimento de uma nova configuração (como tentativa de ordenação política, social e econômica), onde novas maneiras de habitar o mundo
possam ser encontradas. O certo é, ainda recorrendo ao pensamento de Castel, “que
o todo econômico nunca fundou uma ordem social” e um “lugar” na sociedade não
pode limitar-se a uma questão de descobrirem-se “jazidas” de empregos que exploradas dariam conta dos problemas de desestabilização, de instalação da precariedade no trabalho e dos “sobrantes”, verdadeiros exércitos de excluídos, o que sem
dúvida parece constituir-se como cenário atual, com o qual devemos lidar e para o
qual são esperadas alternativas, neste limiar do século XXI. Tentativas de qualificação profissional com vistas a uma futura inserção econômica parecem ser a nova e
falsa ideologia à qual diversos países por todo o mundo começam a recorrer, apesar
da própria lógica do modelo configurar-se como poupadora de mão-de-obra, através
da inovação tecnológica.
O modelo desenvolvimentista, calcado na livre empresa, no pleno emprego, e
no crescimento econômico a qualquer preço, alcançou seu apogeu nos “anos dourados” das décadas de 50 e 60. Através das teorias keynesianas, com uma ascendente
taxa de endividamento das nações, o crescimento econômico impulsionado proporcionou até mesmo o emprego vitalício em alguns países. No cenário interno buscava-se a coesão social, enquanto externamente procurava-se a supremacia do poder
militar e uma crescente competitividade no mercado internacional. O desemprego
entretanto, sempre foi um problema que preocupou os diversos governos, já que a
explosão demográfica, a ameaça comunista e os movimentos contestatórios de maio
de 1968, ameaçavam a ordem e o progresso, verdadeira ideologia desenvolvimentista,
tributária do mais puro positivismo “comteano”. Os intelectuais sinalizavam através
2
CASTEL, Robert. Las Metamorfosis de la Cuestión Social. Buenos Aires: Paidós, 1997.
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161
de estudos temáticos sobre a desigualdade social, a injustiça e exploração do trabalho e
da necessidade de proteção dos excluídos, que tal modelo tinha um caráter inacabado,
era individualizante e excludente e tinha efeitos perversos no cenário econômico, e que,
finalmente, representava uma ameaça ao estado do bem-estar social até então tentado.
Este bem-estar social era garantidor de benefícios de saúde, educação e habitação, e
dava-se nos interstícios da socialização primária, dado a crescente ausência dos pais,
envolvidos pelo pleno emprego urbano-industrial, na manutenção de suas famílias e na
consequente reprodução da força de trabalho.
A partir de 1970, o trabalho assalariado começou a perder hegemonia, cedendo espaço ao trabalho provisório, por tempo determinado, de jornada parcial ou
mesmo ao seguro-desemprego, identidade pelo trabalho, com repercussões seja na
escola, no trabalho, na vida social, ou no universo político-cultural como um todo.
1.2 Depoimentos sobre a globalização e o desemprego
Em entrevistas publicadas em diversas revistas, importantes atores sociais
emitiram pareceres sobre os novos processos políticos e econômicos que o processo
de globalização vinha equacionando e que torna-se interessante referenciar, exatamente pelas mudanças em seus modos de pensar, fruto do que ocorria no cenário
internacional que tentamos, agora, reconstituir.
Na revista Veja de 28/11/90,3 o sociólogo italiano Domenico De Masi, autor do livro
A Emoção e a Regra,4 comentava que “nos Estados Unidos nos últimos anos, os
operários passaram de 45% para 18% da População Economicamente Ativa” e acrescentava que “nas fábricas do tempo de Karl Marx, a proporção era de quatro empregados de escritório para cada 100 operários. Hoje (em 1990) dos 1400 funcionários
da IBM da Itália, apenas 700 são operários”. Vê-se desta forma que o cenário do
trabalho assalariado modificou-se de forma que a mudança pelo caminho socialista,
como alternativa aos problemas de inclusão social, nos moldes do passado, parece
totalmente inviável.
Na revista Exame de 15/05/91,5 o então deputado federal pelo PT, Aluízio
Mercadante Oliva, representante da esquerda com raízes marxista-leninistas, afirmava que “o lucro pertence ao capital. Os aumentos de produtividade é que devem
ser repartidos com os trabalhadores”, ou seja, a luta de classes (“motor da história”)
estaria para ele sendo substituída pela negociação de participação nos lucros do
capital. Seu companheiro de partido, José Genoíno, ex-guerrilheiro armado das serras do Araguaia, afirmava, nesta mesma reportagem, que era preciso “criar outro
projeto de socialismo, democrático e humanista, com a generosidade das revoluções
burguesas e o ideal de justiça das socialistas”. O historiador Jacob Gorender chamava, ali, a atenção para a existência de “formas de propriedade social que não são
estatais, como no caso das cooperativas”, que pareciam ser uma terceira via entre os
percalços de um mercado liberal e as dificuldades de um estado burocratizante.
Numa outra reportagem sobre globalização, publicada pela revista Veja de 03/
04/96,6 o sociólogo e presidente Fernando Henrique Cardoso, afirmava que a
3
4
5
6
REVISTA VEJA. A força das novas idéias. São Paulo: Ed. Abril, 28/11/90, pp. 5-7.
DE MASI, Domenico. A Emoção e a Regra. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.
REVISTA EXAME, A Nova esquerda aperta a mão invisível. Sãp Paulo: Ed. Abril, 15/05/91, pp. 42-9
REVISTA VEJA. A roda global. São Paulo: Ed. Abril, 03/04/96, pp. 80-9.
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“globalização está multiplicando a riqueza e desencadeando forças produtivas numa escala sem precedentes” tornando “universais valores como a democracia e a liberdade” envolvendo “diversos processos simultâneos: a difusão internacional da notícia, redes como
a Internet, o tratamento internacional de temas como meio ambiente e direitos humanos e
a integração econômica global”.
Outro expoente bastante conhecido e protagonista do modelo anterior da dinâmica econômica global, Antônio Delfim Neto, dizia que:
“a globalização é a revolução do fim do século. Com ela a conjuntura social
e política das nações passou a ser desimportante na definição dos investimentos. O indivíduo tornou-se uma peça na engrenagem da coorporação. Os países precisam-se ajustar para permanecer competitivos numa economia global
- e aí não podem ter mais impostos, mais encargos ou mais inflação que os
outros”.7
Já a economista Maria da Conceição Tavares afirmava que a globalização tendo
começado na década de setenta, a partir do aumento da produção das empresas,
“foi acelerada porque as empresas precisam estar em vários países para se
aproveitar das variações cambiais. Além disso a globalização é uma bolha
especulativa, que se expressa no mercado de derivativos. É a jogatina da moeda diária. Isso afeta empregos. Há uma recessão também globalizada”.8
O sindicalista Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho da CUT, afirmava que:
“as políticas internacionais uniformizam mecanismos de produção para obter maior produtividade. Quando a globalização é usada para melhorar a
vida das pessoas descobrindo um remédio, por exemplo, ela é positiva. Mas a
tendência é de que se desconsidere o ser humano, aumentando o desemprego.
Os que estão empregados têm de estar integrados com os avanços
tecnológicos”.9
Nos pensamentos contidos nessas entrevistas vimos diferentes correntes ideológicas concordarem em torno do cenário que se delineava, fazendo crer que alianças cada vez mais amplas e inimagináveis viriam ocorrer no cenário político nacional e internacional, que longe de significarem hegemonia, pareciam sinalizar a realidade assustadora do final de um estágio social baseado no trabalho assalariado,
alicerce do poder representado pelos diversos atores acima referenciados.
7
8
9
REVISTA VEJA, op. cit., p. 83.
REVISTA VEJA, op. cit., p. 86.
REVISTA VEJA, op. cit., p. 87.
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163
2 MERCADO : MUDANÇA NAS RELAÇÕES DE PRODUÇÃO
Numa publicação sobre o processo de globalização e suas relações com a
organização produtiva, Jacob Gorender10 afirma ser a globalização um nome novo
para um antigo processo de internacionalização ou de criação de um mercado mundial, nascido com o próprio capitalismo. As transformações no capitalismo mundial
passam pela reorganização das empresas, de seus métodos de produção, de suas
relações de trabalho e das próprias políticas financeiras dos governos nacionais.
A partir da crise mundial de superprodução de 1929, as idéias de John Maynard
Keynes passaram a representar alívio tanto para os conservadores como para os
progressistas. A crise poderia representar um avanço do comunismo, que dificilmente seria possível na fórmula clássica do partido único representando o operariado, cuja ausência em muitos lugares, obrigava a cooptação nas diferentes frações de
classe, como condição de sobrevivência no jogo político da disputa eleitoral aberta
às massas.
As idéias Keynesianas fizeram-se presentes no processo de reconstrução do
pós-guerra através do Plano Marshall, onde um estado de bem-estar social era necessário à manutenção da ordem para o pleno emprego das forças produtivas rumo
ao progresso.
O modelo de organização da produção, baseado na produção em massa para
mercados massificados, chamado de fordista por sua origem nas fábricas de automóveis americanas de Henry Ford, começava a dar sinais de inflexibilidade a partir
da década de 70. A estabilidade proporcionada pelo Welfare State (estado de bemestar social), teria ocasionado uma desmotivação dos trabalhadores representada
pelo abandono do trabalho em prol do seguro-desemprego, da rotatividade no emprego, do absenteísmo, do alcoolismo e do fraco empenho na produção (que
constituiram-se nos principais argumentos dos críticos neo-liberais ao welfare-state),
fatores estes agudizados nos países que optaram pelo planejamento centro-estatal de
suas economias (os ditos países do socialismo real), onde a produtividade alcançava
baixíssimos índices, e a qualidade dos produtos e o respeito ao meio ambiente eram
subjugados.
Com as crises do petróleo de 1973 em diante, o modelo Keynesiano, passou a
ser questionado, dado as crescentes dificuldades fiscais dos estados e os alarmantes
índices de inflação alcançados.
Da mesma forma que o fordismo implantou a organização científica do trabalho desalojando a produção artesanal, e acentuando uma divisão entre o trabalho
intelectual de um lado (representado pela nova classe média de diretores e gerentes), e o trabalho manual de outro (representado pela massa dos trabalhadores do
“chão da fábrica”), as inovações tecnológicas (representadas pela automação eletrônica impulsionada pelos japoneses), demonstraram a inadequação fordista aos novos tempos.
10
GORENDER, Jacob. Globalização, tecnologia e relações de trabalho. In: ESTUDOS AVANÇADOS/USP.
Revista do Instituto de Estudos Avançados/USP. São Paulo: IEA, 1997.
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164
O modelo produtivo japonês, surgido nas fábricas da Toyota no Japão e
protagonizado pelo Eng. Ohno, tinha como fundamento a reorganização produtiva,
sendo cada estágio da produção encarado como uma fábrica dentro de outra fábrica,
com o ritmo da produção sendo determinado na frente do processo produtivo e não
na retaguarda como no fordismo, pelos estoque de matérias-primas para a produção.
Assim, técnicas como “Just-in-Time” (estoques mínimos), e “CQCs” (controle de
qualidade de produtos), desempenharam um papel muito mais importante para o
êxito do modelo do que poderiam parecer supor os baixos salários praticados ou a
intensidade do ritmo de trabalho, cujas raízes estavam fincadas na milenar cultura
japonesa.
Este cenário produtivo, qual seja, o da organização japonesa do trabalho, é um
elemento concreto do processo de globalização capitalista, conforme as idéias de
Gorender, que desencadeou profundas transformações. Estas ocorreram em diversas
esferas, quais sejam: a das inovações tecnológicas, a das políticas financeiras e industriais dos diversos países, a do comércio mundial e da dinâmica das empresas
multinacionais, a das relações internacionais, a da organização produtiva dos outros
países (visando ganhos produtivos), a das relações de trabalho pelas formas de emprego utilizadas (gerando inclusive desemprego) e, finalmente, a das ideologias,
estilos de vida e comportamentos individuais.
A atual fase de globalização poderia ser classificada como uma nova fase do
capitalismo mundial, onde o capital financeiro teria alcançado a sua hegemonia.
Alguns autores chegam mesmo a afirmar que vivemos um período pósmoderno(Lyotard, Connor, Bell, Harvey, dentre outros...), um período pós-industrial, onde os serviços tomariam o lugar das indústrias e o “ócio” poderia instalar-se na
sociedade. Outros autores afirmam, ser esta apenas uma nova fase do capitalismo
industrial.
O que não pode deixar de ser percebido, no entanto, é que na relação entre as
empresas multinacionais e os estados nacionais, o abrigo político e as salvaguardas
jurídicas, além dos gastos públicos na sustentação do mercado, desempenharam papel
fundamental e demonstraram a força dos estados nacionais no processo de
globalização, apesar da constante influência dessas empresas multinacionais nas suas
políticas internas e externas, tanto nos países-sede destas organizações, onde centralizam-se as pesquisas e o desenvolvimento de novos produtos e onde tomam-se
decisões estratégicas, como naqueles onde estabeleceram-se subsidiárias.
O ex-diretor do Instituto de Economia da UNICAMP, Prof. Wilson Cano, em
entrevista ao semanário O Poti (Natal-RN) de 20/08/95, afirmava que,
“para romper barreiras, bem como outras de cunho institucional - como por
exemplo, legislações nacionais restritivas ao comércio e ao capital internacional - o capitalismo fez nascer uma nova ideologia (neoliberal), para justamente dar sustentabilidade econômica e política para a conversão dessas imensas massas de ativos financeiros”,
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165
agora volatilizadas no cassino global das bolsas de valores internacionais, e acrescentava,
que um “exame mais cuidadoso da economia internacional na última década, mostraria
por exemplo, que cerca de 50% do comércio internacional de produtos industrializados
não é fruto de decisões políticas comerciais (nacionais), mas sim de decisões das grandes
empresas transnacionais”.11
Os processos de restruturação organizacional acima referidos associados ao
emprego crescente de tecnologias poupadoras de mão-de-obra, criaram milhões e
milhões de desempregados e geraram uma maior carga de trabalho sobre os ainda
empregados. Porém a indispensabilidade da presença do operador humano na mais
moderna das máquinas, ainda que em número reduzido, assinala que tais efeitos
podem ser minimizados através de uma crescente redução das jornadas de trabalho
para a socialização do emprego, que vem sendo assumida cada vez mais por atuantes sindicatos nacionais, como bandeira de luta e pauta de negociação na mesa dos
empresários.
3 ESTADO : EXTINÇÃO OU FORTALECIMENTO?
A análise do papel do Estado no processo de globalização pode ser desenvolvida através do pensamento da economista Maria da Conceição Tavares12 e do sociólogo alemão Claus Offe. A primeira autora, fala que a atual fase de globalização
divide-se em cinco momentos interligados e que caracterizariam fases de sua evolução.
A internacionalização do capital em sua forma comercial e de crédito teria
tido origem com a expansão do capitalismo mercantil intra-europeu e com os impérios coloniais do século XVI em diante. Já a internacionalização produtiva surgiu
apenas após a Primeira Revolução Industrial com origens na expansão das filiais
inglesas no mundo e de uma nova divisão internacional do trabalho, proposta pela
Inglaterra sob a égide do padrão monetário ouro-libra esterlina. A internacionalização
das grandes empresas, contudo, deu-se somente com a Segunda Revolução Industrial, onde a concorrência interestatal entre as grandes potências teria gerado as grandes
guerras mundiais pelos mercados. A transnacionalização produtiva, entretanto, teve
origem no pós-guerra com a expansão das empresas norte-americanas, sendo portanto diferente da liberalização comercial e financeira, já que as matrizes e filiais
saltaram as barreiras protecionistas nacionais e regionais e expandiram-se
multinacionalmente pela América Latina e pelo Mercado Comum Europeu, com o
devido apoio dos Estados nacionais. A globalização financeira sobreposta à
transnacionalização produtiva, é portanto, fenômeno mais recente, cuja origem dáse no receituário neo-liberal americano, de políticas de desregulamentação cambial
e financeira com a economia mundial submissa a uma lógica financeira global de
velocidade sem precedentes na história do capitalismo.
O início desta globalização financeira teve origem nos tratados do sistema de
Bretton Woods, quando a quebra do padrão monetário dólar-ouro com a hegemonia
11 Os conceitos de empresas multinacionais e transnacionais são diferentes, sendo as últimas legítimas represen-
tantes de uma fase
financeira globalizada. Não cabem aqui detalhes.
12 CONJUNTURA ECONÔMICA. Edição Especial/50 Anos. São Paulo: FGV, nov/1997.
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166
do dólar americano, possibilitou a flutuação cambial e a mobilidade do capital financeiro.
Os E.U.A. sofreram então um forte aporte de capitais estrangeiros, possibilitando uma
maior supremacia de sua moeda, a desregulamentação financeira, a liberalização dos
mercados cambiais e financeiros, e a elevação do patamar internacional dos juros. Estando o dólar como moeda-referência internacional, lastreado em títulos da dívida externa
americana, muitos dos mercados financeiros de países em crise nele sustentaram-se, a
partir da década de 80. Não precisa-se de Harvard para perceber que na nova ordem
mundial, os E.U.A. saíram fortalecidos e o FED (Banco Central Americano), mais poderoso que o FMI (Fundo Monetário Internacional). Este cenário unipolar favorece bastante o crescimento da economia americana.
Na América Latina e Europa, os efeitos desta globalização foram maléficos dos
pontos de vista econômico, social e nacional, onde na sobrevalorização de suas moedas e
na diminuição de suas vantagens competitivas e de suas margens de crescimento econômico, seus Estados nacionais perderam capacidade de investimentos e subordinaram-se à
lógica unipolar.
Para a China, entretanto, os efeitos da globalização foram benéficos, pois um
maior poder de controle do Estado sobre a economia, com os baixos salários praticados, e especialmente, a posição favorável no âmbito das exportações pela desvalorização monetária em relação ao dólar, tornaram-na extremamente competitiva, alcançando níveis altíssimos de crescimento e acumulação.
Até 1990, o Brasil esteve “protegido”, porém “atrasado” neste processo de
globalização, pois somente com a liberalização financeira e comercial e a
desregulamentação cambial, impulsionada pelo Presidente Fernando Collor de Mello,
foi possível o aporte de novos capitais e o aumento do crédito e dos investimentos.
Tal regeneração dos aparelhos de intervenção do Estado obedecia ao receituário
neoliberal, através de políticas de inserção internacional. A elevação das taxas de
juros para atração de investidores desaqueceu a economia gerando menos crescimento e desemprego. O centro das decisões migrou para um grupo restrito de empresas e bancos multinacionais, cuja lógica não residia na rentabilidade de longo
prazo, mas na maximização dos ganhos nos mercados financeiros. Problemas centrais colocaram-se neste cenário, quais sejam, o da perda de espaços de autonomia
para a formulação de políticas nacionais de desenvolvimento econômico e social
sustentado, e o do papel do estado dentro desse processo crescente de globalização.
Se a globalização vier a significar um estabelecimento de uma lógica unipolar
comandada pelos E.U.A, então ela significará o fim dos Estados nacionais em sua
configuração atual, ou pelo menos a sua rearticulação em torno de blocos, estando
logicamente os E.U.A. e a China em posição privilegiada. Porém, se ela significar
apenas uma redefinição de hierarquias e espaços de autoridade no exercício da soberania, então as capacidades políticas de cada país é que estarão em cena, fortalecendo portanto o papel dos Estados-nação, num novo tipo de proteção pública, restaurando a economia e a seguridade social, em defesa dos interesses dos cidadãos, com
especial ênfase na preservação da cultura e identidade nacionais, independência e
democratização da educação, imprensa e difusão cultural, não importando portanto
a natureza da propriedade, mas sim o caráter público de sua gestão.
O segundo autor,13 num ensaio sobre o estado do bem-estar e o desemprego,
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167
afirma que as forças reformistas social-democratas, o socialismo cristão, as elites
esclarecidas da política conservadora e os grandes sindicatos, é que teriam sido os
responsáveis pela implementação do Welfare State. A partir das crises da década de
setenta, este passou a ser considerado como uma doença para a paz social e o progresso, já que as altas proteções e impostos teriam corroído as capacidades de investir e trabalhar dos operários e dos governos. Com o fim do consenso dos anos dourados de 50 e 60, as forças políticas representadas pelas velhas classes médias (fazendeiros e comerciantes), pelos inseridos política e economicamente (os atuais
neoliberais), pelos operários sindicalizados e pela nova classe média (comunidades
libertárias, auto-sustentabilistas, etc.), entraram em conflito. As perspectivas de
restruturação política sinalizariam três diferentes configurações:
a) Na primeira, graves crises econômicas ocorreriam com o predomínio do
neoliberalismo;
b) Na segunda, a social-democracia e o eurocomunismo se fortaleceriam com a crise
atingindo a antiga classe operária;
c) Na terceira, um modelo não-burocrático se estabeleceria, mais igualitário, descentralizado, com a hegemonia das novas classes médias e do operariado, o que
caracterizaria uma nova sociedade auto-suficiente de bem-estar.
Tais cenários, contudo, não passam de especulações dos seus autores, mas
sobretudo, são capazes de fornecer luzes e dicas de como deve-se encarar a complexa realidade de desestruturação-estruturação de um novo mundo globalizado.
3.1 Globalização e forças políticas
O processo de globalização intensificou-se nas décadas de 80-90, e tornou
porosos os limites e fronteiras entre o nacional e o internacional, entre o interno e o
externo, o que configurou um sistema global transnacional bifurcado. De um lado
têm-se os estados nacionais, as ONGs, as organizações intergovernamentais, as comunidades libertárias, e a mídia formadora da opinião pública, e do outro, as
corporações transnacionais, e os agentes sociais transnacionalizados como nos movimentos ambientalistas, por exemplo, que sugerem a existência de uma lógica
societária globalizante.
O Estado vem perdendo seu papel central de regulador da vida social e
constituidor de identidades nacionais, pela relativa erosão dos sistemas democráticos baseados no território nacional, através do crescente aumento do poder
transnacionalizado. Este processo contudo, não restringe-se à dimensão econômica,
e segundo Viola14 , teria no mínimo treze dimensões, quais sejam: a militar, a econômica, a financeira, a comunicacional-cultural, a religiosa, a interpessoal-afetiva, a
científico-metodológica, a populacional-migratória, a ecológico-ambiental, a esportiva, a epidemológica, a criminal-policial e a política.
A tese central do autor é que o processo de globalização estaria enfraquecendo,
13
OFFE, Claus. Trabalho e Sociedade : Problemas Estruturais e Perspectivas para o futuro da Sociedade do
trabalho”. Vol. II-Perspectivas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1991
14 VIOLA, Eduardo(org.). Incertezas de Sustentabilidade na Globalização. Campinas: Editora da UNICAMP,
1996.
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especialmente em suas dimensões econômica, financeira e comunicacional-cultural, a capacidade regulatória dos Estados-nações, onde o reforçamento de estruturas infranacionais
reacionárias ao processo, estariam erodindo a democracia, gerando incertezas e uma
divisão entre incluídos e excluídos.
Viola classifica os países em desenvolvidos (OCDE, Leste Asiático e África
do Sul), superpotências (E.U.A.), continentais(como Rússia, Índia, China e Brasil),
emergentes (boa parte da Ásia, Leste Europeu, e possuidores de petróleo), estagnados e extremamente pobres (América Latina e África), além dos excluídos politicamente por terem sistemas autoritários de poder.
Em sua opinião o mundo estaria dividido entre forças conservadoras de um lado
e progressistas de outro, que combinadas com as tendências globalistas ou nacionalistas, configurariam diversos grupos políticos, que oscilariam entre a defesa de medidas
protecionistas ou liberais, nacionalistas ou globalistas, ambas com ou sem ênfase na
necessidade de mudança no modelo de desenvolvimento, ou seja, sustentabilistas ou
não. Identifica ainda, os diversos grupos e seus representantes nos diversos países.
O importante neste tipo de análise é a ênfase implícita que se dá ao processo
de globalização que frequente e ideologicamente é confundido com o de
homogeneização, que de maneira alguma parece estar acontecendo.
4 SOCIEDADE CIVIL: O RESGATE DA CIDADANIA COMO TAREFA
PREEMENTE
O pensamento de Claus Offe em entrevista concedida à revista Veja de 08/04/
98, novamente faz-se útil na análise em questão, quando enfatiza que “as ideologias
acabaram. O Estado, o mercado e as entidades comunitárias formarão a nova ordem
social”. Para ele, o estado do bem estar social acabou. A questão então não passaria
pelo tamanho do Estado, se minimalista ou empreendedor, mas por sua eficiência na
satisfação dos anseios dos cidadãos.
Neste contexto, o discurso neoliberal da diminuição do estado caracterizou-se
como dogma, tanto quanto a defesa cega do capitalismo. O que pode (e deve) ocorrer é uma garantia de saúde e educação, mas como forma de concorrer no mundo
globalizado. Aqui cabe um alerta para o que chama-se de falsa ideologia da qualificação, pois esta somente pode traduzir-se em ganhos concorrenciais, quando não é
generalizada, caso contrário forçaria necessariamente uma queda na taxa média de
valorização da força de trabalho, pois a mão-de-obra de todos os países estariam em
iguais de qualificação. Continua Offe,
“a família, os vizinhos, a comunidade em que cada um vive é a reserva moral
da sociedade. É inegável o resultado positivo da ação comunitária, mas também há péssimos exemplos de ações comunitárias. Por isso defendo um triângulo de forças : o Estado, o Mercado e a Comunidade, mas sem a hegemonia
de nenhum setor”.15
Este pensamento parece ser o mais coerente com os referidos cenários da globalização e
15
OFFE, Clauss, op. cit.
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as perspectivas que se avizinham para o poder regulador do Estado-nação na vida social
e o trabalho como categoria sociológica chave.
Para o presidente da ABONG - Associação Brasileira de Organizações NãoGovernamentais, Sílvio Caccia Bava, em artigo no Jornal da ABONG, No. 09, de
Janeiro de 1995, três pontos de vista sobre as relações entre o Estado e a Sociedade
Civil devem ser levantados. Primeiro, a possibilidade de um Estado mínimo tendo
como instância reguladora o Mercado, com ampla liberdade de atuação dos
oligopólios. Segundo, um Estado totalitário, igualmente regulador da vida das pessoas e empresas, representado pela ditadura de um partido único, caracterizando
burocraticismo e apatia social. E terceiro, um Estado relacionando-se com a Sociedade Civil, onde os espaços públicos seriam construídos e controlados pela sociedade, numa crescente submissão do Estado ao controle da Sociedade Civil, sendo este
o maior desafio das ONGs, na busca de vitória sobre as tendências conservadoras no
seio da sociedade, somente possível com a radicalização da democracia.
Neste mesmo caminho, parece sinalizar a análise feita por Adam Schaff em
seu livro Sociedade Informática,16 onde defende a idéia de uma sociedade autogovernada, que pela evolução dos meios de comunicação(proporcionada pela
informática) tornaria a democracia direta possível, numa crescente descentralização
do poder central, dando aos governos locais uma função de complementaridade.
Porém, tudo dependerá da formação política da sociedade, com a formação cultural
desempenhando importante papel. Schaff, contudo, não visualiza apenas este cenário cor-de-rosa, mas sim, um outro no qual o totalitarismo reinaria com o apoio de
governos militares, obtendo das massas e das camadas médias da população irrestrita
concordância, “comprada” pelos altos níveis de consumo e proteção à propriedade
privada individualista.
Para Jorge Tapia, professor do Instituto de Economia da UNICAMP, num artigo no Jornal da ABONG, No. 17, de Novembro de 1996, “a globalização deve ser
entendida como um conjunto de mudanças estruturais da economia global, que alteram as opções dos Estados Nacionais, empresas, classes sociais, gerações e indivíduos”.
A globalização então, no terreno da política, faria com que temas como a cidadania, a integração social, e a solidariedade, viessem a tona, sendo o plano dos valores, o local de tomada das decisões. O desafio, para ele, seria então duplo, tanto na
esfera política, como no plano técnico.
4.1 O pensamento cardosiano
O Presidente Fernando Henrique Cardoso, em entrevista à revista Veja,17 procurava abstrair-se da função de presidente e usar suas habilidades de sociólogo para
analisar sua atuação. Para ele, a lógica de estruturação da sociedade brasileira teria
mudado, não sendo percebida pelos investidores externos.
No “Brasil do Futuro”, que ele estaria construindo no presente, a sociedade seria
16
17
SCHAFF, Adam. A Sociedade Informática. São Paulo: Brasiliense,1995.
REVISTA VEJA. As Razões do Presidente. São Paulo: Ed. Abril, 10/09/97, pp. 22-33.
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mais democrática, mais permeabilizada, descentralizada, com mais canais de expressão,
onde seriam maiores as capacidades para tirar-se proveito das condições e oportunidades de nossas potencialidades naturais.
Para FHC, não adianta discutir a globalização, ela já estaria instalada. Caberia
então, a discussão dos aspectos positivos e negativos, para a tomada de decisões.
A globalização teria um lado de renascimento, com os capitais liberados circulando pelo mundo, e um lado de mal-estar (malaise), com uma grande sensação
de insegurança no mundo, que seriam a grande causa da crise mundial, pela flutuação
dos sistemas de previdência. A crise mundial, portanto seria a crise da insegurança
na capacidade da razão de estruturar a vida social e econômica.
Para ele, como na sua antiga Teoria da Dependência, há fatores universais,
mas as reações dependem da estruturação interna de cada país. Na Europa, por exemplo, qualquer inovação tecnológica geraria desemprego, pela inelasticidade da oferta de investimentos. Os E.U.A., a China e o Japão seriam os grandes beneficiados
com a globalização.
No Brasil, as alternativas possíveis seriam os investimentos no setor agrícola
através do assentamento produtivo de famílias (pequena economia familiar PRONAF),18 sendo fundamental as reformas do Estado para tornarem possíveis as
respostas nas áreas econômica e social.
Para FHC, a internacionalização significa competitividade, enquanto que o
subsídio e o fechamento, paralisação e atraso. Segundo o Presidente/Sociólogo, a
globalização é diferente da desnacionalização, da exclusão, e da homogeneização.
Nesta última, apenas a base produtiva se homogeneizaria, permanecendo as diferenças culturais e as formas de identidade, tendo como grande desafio a radicalização
da democracia. Dependeria do Estado e da Sociedade a capacidade interna de organização das variáveis. Nem Mercado, nem Estado, a Sociedade Civil seria o fiel da
balança.
5 GLOBALIZAÇÃO E DESEMPREGO : CENÁRIOS E PERSPECTIVAS
Para Jeremy Rifkin, autor do best-seller, “The End of Work”,19 o que separa a
era da informação da era industrial, seria o fato desta configurar-se pelo trabalho
humano massificado, e a outra, por um trabalho intelectualizado em projeto e realizado por robores, tendo à frente uma pequena elite com altos níveis de qualificação
e ótima remuneração. Portanto, o desemprego tecnológico seria inevitável.
Nessa dinâmica, dois problemas se colocariam. Primeiro, os trabalhadores dispensados seriam também consumidores de bens e serviços, que descapitalizados
forçariam uma queda global nas vendas, como vem ocorrendo ultimamente. Segundo, os esquemas de proteção ao trabalho, protagonizados pelo Welfare State, construíram ao longo dos anos poderosos fundos de pensões, fontes vitais para captação
de recursos financiadores de novos investimentos, geradores de emprego. Assim
teríamos um círculo vicioso. Cada novo emprego subtraído, além de si mesmo, subtrairia
18
19
PRONAF-Programa Nacional de Agricultura Familiar.
RIFKIN, Jeremy. O Fim dos Empregos : O Declínio Inevitável dos Níveis dos Empregos e a Redução da
Força Global de Trabalho. São Paulo: Makron Books, 1995.
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outros novos empregos que poderiam ser gerados pelos investimentos produtivos proporcionados pelos fundos de pensão, a “poupança” dos trabalhadores, à qual constantemente os governos recorrem no auxílio ao mercado com fome eterna de novos recursos.
O setor de mercado criaria capitais e empregos, que não seriam suficientes. O
Estado criaria capitais e empregos, que também seriam insuficientes. A sociedade
Civil criaria capital social e empregos. O capital comercial e o social se
interdependeriam, um complementando o outro.
Para Rifkin, a esperança residiria num redimensionamento do contrato social,
pois tanto os trabalhadores, quanto os empregadores e os governos disto dependem.
O êxito do mercado e de um governo democrático residiria no êxito do setor civil.
Paul Singer,20 num recente livro sobre Globalização e Desemprego, de junho
de 1998, advoga a idéia de que a solução para os dilemas entre o Mercado e o Estado, estaria no fortalecimento da Sociedade Civil.
Através de uma inserção econômica planejada, no que chama de economia
solidária, a acumulação autônoma (representada pelas pequenas empresas familiares) teria papel central, substituindo a relação monetária entre bens e serviços, por
uma espécie de moeda social, restringindo a acumulação especulativa individual, e
estimulando as iniciativas cooperadas de produção e consumo.
Singer, tomou por exemplo, as experiências de Michael Linton, que no início
da década de 80, criou um sistema de emprego e comércio parcialmente lastreado
em moeda local, que forçava os associados a trocarem seu poder aquisitivo acumulado, por bens e serviços dentro do sistema. O LET - Local Employment and Trading
System, vem crescendo bastante nos últimos anos, contando com dezenas de comunidades nos E.U.A., Grã-bretanha, Canadá, Irlanda e Nova Zelândia. Outras iniciativas associadas, como as experiências de microcrédito iniciadas em 1976 pelo Banco Grameen21 de Bangladesh, e recentemente adaptadas pelo Programa de Crédito
Solidário do BNB-Banco do Nordeste do Brasil, parecem sinalizar alternativas aos
cenários desempregadores impulsionados pela globalização.
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1997.
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RIFKIN, Jeremy. O Fim dos Empregos: o declínio inevitável dos níveis dos empregos
e a redução da força global de trabalho. São Paulo: Makron Books, 1995.
SCHAFF, Adam. A sociedade informática: as consequências sociais da segunda revolução industrial. São Paulo: Brasiliense, 1995.
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VIOLA, Eduardo (Org.). Incertezas de sustentabilidade na globalização. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996.
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Normas para apresentação de trabalhos
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1.4 margens (superior e esquerda) de 3 cm e (inferior e direita) de 2 cm;
1.5 tabulação padrão de 1,27 cm (1/2 polegada);
1.6 alinhamento justificado.
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de um autor.
Ainda na primeira página, em nota de rodapé, deve(m) ser mencionado(s) dados relativos a qualificação do(s) autor(es), instituição, endereço, telefone, fax e email, (quando for o caso). Ex.: Economista. Especialista em Administração de Empresas (UFRN). Professor do Curso de Administração da FACEX. Av. 21 de Outubro, 25 – Centro; CEP 59.075-840 – Natal, RN; Tel.: (0xx84)225-2222; e-mail:
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2.3 Resumo
A palavra Resumo, em negrito, seguida de dois pontos (:) deve estar duas linhas abaixo do(s) nome(s) do(s) autor(es), sem adentramento e, na mesma linha, o
início do texto digitado em português, não podendo exceder o limite de 200 palavras;
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174
2.4 Palavras-chave
A expressão “Palavras-chave”, em negrito, seguida de dois pontos (:), deve
estar duas linhas abaixo do final do Resumo, sem adentramento, devendo conter, no
máximo, 5 palavras;
2.5 Abstract
O Abstract, em negrito, seguido de dois pontos (:), deve estar duas linhas abaixo do final das Palavras-chave, sem adentramento, podendo ser a versão para o
inglês do Resumo;
2.6 Key-words
A expressão “Key-words”, em negrito, seguida de dois pontos (:), deve estar
duas linhas abaixo do final do Abstract, podendo ser a versão para o inglês das
Palavras-chave;
2.7 Texto do trabalho
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minúsculas, sendo apenas a primeira letra de cada subtítulo em maiúscula. O texto
do trabalho deve obedecer ao sistema de numeração progressiva de acordo com a
NB-69. Quando o artigo for descrição de trabalho de pesquisa experimental, deve
conter os seguintes subtítulos:
a) Introdução
A introdução deve apresentar o(s) objetivo(s) do trabalho, a sua relação com
outros da mesma área de pesquisa e as razões que levaram o(s) autor(es) realizar(em)
o trabalho.
b) Metodologia
A metodologia ou material e métodos deve conter informações disponíveis na
revisão de literatura que permitam o desenvolvimento do trabalho.
c) Resultados
Os resultados devem ser apresentados de forma clara e sucinta, podendo ser
utilizadas TABELAS (numeradas em números romanos – Ex.: TAB. I) ou ilustrações (gráficos, fotos, gravuras, esquemas) denominadas FIGURAS, numeradas no
texto com algarismos arábicos, de forma abreviada, entre parênteses ou não, de acordo
com a seguinte redação: (FIG. 1), FIG. 2, que permitam uma melhor compreensão
dos dados obtidos. As tabelas e as figuras devem trazer abaixo um título ou legenda
digitada, com indicação da fonte, se for o caso.
d) Discussão e conclusão
A discussão deve analisar os resultados, tentando relacioná-los com dados existentes na literatura, devendo ser encerrada com as principais conclusões do trabalho.
e) Referências bibliográficas
A expressão “Referências bibliográficas”, sem adentramento, deve ser colocada duas linhas antes dos autores, relacionados em ordem alfabética, sem numeração,
sem espaço entre as referências e de acordo com a ABNT, norma NBR-6023
As citações bibliográficas devem seguir as normas da NBR-6023:
Para LIVROS:
a) autor; b) título da obra em negrito; c) número da edição (se não for a primeiCarpe Diem, Natal, Ano 1, n.1, mai. 2001
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ra); d) local da publicação; e) nome da editora; f) data de publicação.
Ex.: GIL, Antonio Carlos. Metodologia do Ensino Superior. São Paulo: Atlas,
1990.
Para ARTIGOS:
a) autor; b) título do artigo; c) título do periódico em negrito; d) local da publicação; e) número do volume; f) número do fascículo; g) página inicial e final; h) mês
e ano.
Ex.: ANDRADE, Ana Maria Cardoso de. Novas possibilidades em informação popular. Revista da Escola de Biblioteconomia da UFMG, Belo Horizonte,
v.20, n.1, p. 23-41, jan./jun. 1991.
f) Notas de rodapé
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fonte ( sobrenome do autor, ano e página). Ex.: [(Lima, 1994, p. 45)]
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