Dialética Histórica dos Direitos Humanos Fundamentais e
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Dialética Histórica dos Direitos Humanos Fundamentais e
DIALÉTICA HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS E HERMENÊUTICA DIATÓPICA HISTORIC DIALETIC OF FUNDAMENTAL HUMAN RIGHTS AND DIATOPICAL HERMENEUTIC Aloisio Krohling1 Resumo: Neste trabalho será defendida a tese que os direitos humanos fundamentais são construídos historicamente na perspectiva cultural de cada povo e Estado Nacional. Por exclusão não se aceita a ótica do direito natural defendendo alguns direitos e princípios como sendo inerentes à natureza humana. É excluída como frágil e superficial a visão teórica ocidental universalizante dos direitos humanos apresentada pela carta da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Face à realidade global composta por diversas culturas e tradições que apresentam diferentes costumes e valores procuram-se outras chaves de leitura. A teoria crítica dos direitos humanos de Herrera Flores será o nosso parâmetro teórico como fundamentação da tese acima citada. Também a teoria das janelas culturais e a hermenêutica diatópica de Raimon Pannikar nos parece ser um bom início para o estudo e compreensão da evolução dialética dos direitos humanos fundamentais nos diversos estados e culturas nacionais. Palavras-chave: Teoria Crítica. Dialética. Direitos Humanos Fundamentais. Hermenêutica Diatópica. Diálogo Intercultural. Abstract: In this article will be defended the thesis that fundamental human rights are historically constructed in the cultural perspective of each people. Exclusion does not accept the view of natural law defending certain rights and principles 1 Ph.D em Filosofia e Pós-Doutor em Filosofia Política. Professor dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos Fundamentais da FDV e Mestrado em Sociologia Política da UVV [ES]. 195 KROHLING, Aloisio. Dialética Histórica dos Direitos Humanos Fundamentais e Hermenêutica Diatópica as inherent in human nature. It is excluded as fragile and superficial vision of western universalizing human rights presented by the letter of the Universal Declaration of Human Rights of the United Nations. Face the global reality composed of different cultures and traditions that show different customs and values we have to search other reading keys. The critical theory of human rights of Herrera Flores will be our theoretical parameter to confirm the thesis mentioned above. The theory of cultural windows and the hermeneutics diatopical theory of Raimon Pannikar seems to be a good beginning for the study and understanding of the dialectical evolution of fundamental human rights in different cultures and national states. Key-words: Critical Theory. Dialectics. Fundamental Human Rights. Diatopical Hermeneutics. Intercultural Dialogue. Sumário: Introdução; Direito Natural e Universalismo; Dialética Histórica dos Direitos Humanos; Teoria Crítica dos Direitos Humanos de Herrera Flores; A Hermenêutica Diatópica e Direitos Humanos Segundo Raimon Pannikar; Considerações Finais; Referências. INTRODUÇÃO Inicialmente, merecem destaque os termos “dialética histórica” como nossa perspectiva metodológica e depois as palavras-chave “Teoria Crítica” e “Hermenêutica Diatópica” como nosso marco teórico, que serão explicitados no desenvolvimento do nosso trabalho. A concepção atual dos direitos humanos é fruto de um longo processo histórico de agregação de valores percebidos e conquistados na luta como fundamentais à condição humana e à convivência coletiva. O advento da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) despertou o mundo para uma reformulação dos Direitos Humanos. Os horrores da guerra, não somente pelos sangrentos conflitos, mas principalmente pelas atrocidades dos regimes totalitários (em especial o Nazismo), mostraram um descaso pela dignidade da pessoa humana o que fez emergir uma opinião pública internacional decidida a impedir que tais episódios se repetissem. Mas como a Organização das Nações Unidas ficou a cargo dos vencedores da Segunda Guerra Mundial, o título e conteúdo da Declaração Universal dos Direitos Humanos ainda reflete o etnocentrismo ocidental e imposição da hegemonia política dos USA, Inglaterra, França e Rússia e 196 Campo Jurídico, vol. 1, n. 2, p. 195-214, outubro de 2013 KROHLING, Aloisio. Dialética Histórica dos Direitos Humanos Fundamentais e Hermenêutica Diatópica outros aliados políticos. Uma vez contextualizada a conjuntura sociopolítica da época na qual surge uma nova consciência política dos direitos humanos, podemos traçar o roteiro deste trabalho. Na primeira parte deste artigo será criticada a teoria jusnaturalista do direito natural que marcou a história do direito durante séculos antes e depois de Cristo e que ainda hoje encontra alguns defensores. Será também posta em debate a crítica, frágil e superficial, da visão teórica ocidental universalizante dos direitos humanos apresentada pela carta da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Na segunda parte será apresentada e defendida a tese que os direitos humanos fundamentais são construídos dialética e historicamente na perspectiva cultural de cada povo e Estado Nacional. Na terceira parte se desenvolverá a teoria crítica dos direitos humanos segundo Herrera Flores, sendo esta perspectiva assumida por nós como a mais consequente e coerente com as pesquisas atuais na área dos direitos humanos numa visão transdisciplinar. Na quarta parte será desenvolvida a teoria das janelas culturais e a hermenêutica diatópica de Raimon Pannikar que nos parece ser uma fundamentação teórica para o estudo e compreensão da evolução dialética dos direitos humanos fundamentais nos diversos estados e culturas nacionais. A resolução nº 09 de 29 de Setembro de 2004 do Conselho Nacional de Educação, que instituiu as Diretrizes Curriculares nacionais dos cursos de Graduação em Direito, enfatiza, entre vários outros elementos, a importância da interdisciplinaridade e da presença obrigatória da disciplina de Antropologia no eixo de formação fundamental do futuro jurista. O nosso ponto de partida epistemológico para se repensar os direitos humanos fundamentais a partir da antropologia cultural e da aproximação metodológica do múltiplo dialético se alicerça na hipótese de que só será possível uma filosofia do direito não etnocêntrica e em diálogo com todas as outras culturas, se admitirmos como premissa, o pluralismo cultural e jurídico como perspectiva teórica deste estudo. As pesquisas interdisciplinares na área das Ciências Humanas, a partir da Antropologia Cultural, estão contribuindo para iniciar um diálogo intercultural entre vários povos, nas aproximações interculturais dos direitos humanos, compreendendo as diferentes maneiras dos outros e a forma deles de viverem juntos elementos que estão intimamente ligados. Não se pode limitar apenas ao direito eurocêntrico, romano, egocêntrico na pers- Campo Jurídico, vol. 1, n. 2, p. 195-214, outubro de 2013 197 KROHLING, Aloisio. Dialética Histórica dos Direitos Humanos Fundamentais e Hermenêutica Diatópica pectiva liberal centrada no individuo ocidental, tanto o direito internacional como o estudo dos direitos humanos. Com a globalização cresce cada vez mais a consciência do pluralismo cultural e a necessidade de compreender a visão do chinês, do árabe, dos povos originários do continente americano e africano e das outras culturas existentes. A busca não é pela ciência etnocêntrica do direito; a Filosofia do Direito deve ir atrás de diálogos para poder enxergar horizontes possíveis, onde existem aproximações pluralistas de um universo amplo e global, provocando uma visão transdisciplinar em uma reflexão intercultural do direito. As pesquisas da Antropologia Cultural surgem nos inícios do século XX na França e nos Estados Unidos e as novas descobertas questionam a visão de que as diferenças biológicas determinariam as diferenças entre pessoas, grupos e culturas. No início a antropologia se concentrou em estudar povos primitivos, mas aos poucos estendeu as suas pesquisas ao campo da sociedade em geral e da diversidade cultural no Ocidente. O multiculturalismo em alguns países também se tornou objeto de estudo. A nova sociedade em redes e a globalização tecnológica ajudaram na comunicação e consciência da necessidade do incremento de mais pesquisas em Antropologia Cultural e de uma visão transdisciplinar na formação das equipes dos pesquisadores na área dos Direitos Humanos. O mundo atual e a nossa vida vêm sendo moldados pelas tendências conflitantes da globalização e das novas identidades que estão sendo construídas. A revolução da tecnologia da informação e a reestruturação do capitalismo introduziram uma nova forma de sociedade, a sociedade em rede. Essa sociedade é caracterizada pela globalização das atividades econômicas decisivas do ponto de vista estratégico; por sua forma de organização em redes; pela flexibilidade e instabilidade do emprego e a individualização da mão-de-obra. Uma cultura de virtualidade real está sendo construída a partir de um sistema de mídia onipresente, interligado e altamente diversificado e pela transformação das bases materiais da vida – o tempo e o espaço – mediante a criação de um espaço de fluxos e de um tempo intemporal como expressões das atividades e novas elites dominantes 2. 2 CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 198 Campo Jurídico, vol. 1, n. 2, p. 195-214, outubro de 2013 KROHLING, Aloisio. Dialética Histórica dos Direitos Humanos Fundamentais e Hermenêutica Diatópica DIREITO NATURAL E UNIVERSALISMO Em passado recente, muitos artigos, monografias, dissertações e livros já foram escritos em defesa das teses jusnaturalistas e universalistas dos direitos humanos, sob os mais diversos argumentos. A apelação ao direito natural aparece com frequência quando se defende a dignidade da pessoa humana como algo inerente à natureza humana. Escreve-se sobre a concepção da dignidade como uma qualidade intrínseca da pessoa humana, ou como uma dádiva de origem divina, ou como inerente à própria natureza humana, ou como valor supremo 3. As críticas que alguns autores ocidentais e orientais fazem à tese da Universalidade dos direitos humanos, os quais são propalados nas famosas declarações das Revoluções liberal-burguesas e mesmo na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, após a Segunda Guerra Mundial, são que este universalismo ahistórico, com a maquiagem do selo do imperialismo ocidental, seria um rolo compressor opressivo com uma visão antropocêntrica e eurocêntrica e que faria parte da síndrome colonialista das potências ocidentais hegemônicas. Muitas vezes o Ocidente usou a tese da tutela e da proteção dos Direitos Humanos e do Direito Internacional, como um monólogo potencialmente opressivo, ignorando os outros povos e as grandes diferenças culturais existente no atual Mapa Mundi. Este é o primeiro extremo que impõe o “universalismo” da visão ocidental, como premissa, no debate sobre a proteção e tutela dos direitos humanos. As teorias tradicionais se valeram de um idealismo na construção da ideia de dignidade humana, utilizando, sobretudo, a máxima kantiana de que aquilo a que não se pode ser atribuído um valor tem dignidade. Recentemente, decisões administrativo-jurídicas da União Europeia sobre a entrada e permanência de imigrantes ilegais nos seus territórios tiveram repercussão negativa e reações afirmativas das ideias-força dos direitos humanos que os próprios europeus definem e tutelam, em seus Tribunais internacionais, como universais. Não é mais um único Estado Nacional a fechar as suas fronteiras aos “subdesenvolvidos” do Terceiro Mundo e, 3 AFONSO DA SILVA, J. A Dignidade da Pessoa Humana como Valor Supremo da Democracia. In: Revista de Direito Administrativo, v. 212, 1998, pp. 125-145. Campo Jurídico, vol. 1, n. 2, p. 195-214, outubro de 2013 199 KROHLING, Aloisio. Dialética Histórica dos Direitos Humanos Fundamentais e Hermenêutica Diatópica até, aos próprios europeus como ciganos, albaneses e romenos, mas é a totalidade dos países-membros da União Europeia. O pluralismo e a multipolaridade provocados pela mundialização cultural hodierna estão abertos à nova visão de aproximações e de teorizações interculturais do direito. O direito internacional está passando por profundos questionamentos e cada vez mais se coloca em dúvida a tutela do ocidente em relação a alguns valores antes defendidos como universais. O fato é que o fenômeno tecnológico da era digital fez do mundo uma aldeia, onde os desafios da era planetária e do pluralismo cultural atingem a todos os povos em maior ou menor intensidade. Na prática, os direitos humanos não se denominam universais, pois não são garantidos de maneira universal a todos os seres humanos e muitas vezes são violados no mundo todo. Ainda é necessário ser preenchida a lacuna entre a teoria e a retórica dos direitos humanos e as realidades concretas. A universalidade abstrata é colocada em questão cada vez mais e a cada dia se multiplicam as posições teóricas que colocam em cheque estes direitos, mencionados como universais, realmente constituem o horizonte máximo e único para a “boa vida”. As tradições culturais não-ocidentais questionam esta visão de universalidade 4. Não se podem limitar os chamados direitos humanos apenas à cosmovisão eurocêntrica, egocêntrica, centrada no individuo ocidental. O desafio é dialogar interculturalmente com a visão do chinês, do indiano, do africano das outras culturas e religiões. Assim se recusa a universalidade apriorística da lógica da exclusão em nome dos “direitos inatos” escritos na natureza humana. O Universalismo estava ancorado no naturalismo jusnaturalista teológico ou racionalista. DIALÉTICA HISTÓRICA DOS DIREITOS HUMANOS Na busca de uma metodologia mais apropriada à fundamentação dos direitos humanos fundamentais, para que se possa captar as dimensões ético-políticas e histórico-dialéticas, será necessário ultrapassar os caminhos traçados pelos métodos e teorias jurídicas formalistas do positivismo jurídi- 4 EBERHARD, Christoph. Direitos Humanos e Diálogo Intercultural: uma perspectiva antropológica. In: BALDI, César Augusto (org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. 200 Campo Jurídico, vol. 1, n. 2, p. 195-214, outubro de 2013 KROHLING, Aloisio. Dialética Histórica dos Direitos Humanos Fundamentais e Hermenêutica Diatópica co, seja na perspectiva liberal-funcionalista, seja na perspectiva neopositivista analítica, pois, só assim, se abrirá uma pista para compreender as novas realidades e sujeitos sociais dos temas-fronteiras da atualidade. Daí a nossa tese baseada na metodologia do múltiplo dialético: os direitos humanos fundamentais são construídos dialética e historicamente na perspectiva cultural de cada povo e Estado Nacional. O Universo é uma luta contínua de forças contrárias, produzindo unidade e totalidade em movimento. Heráclito nega a estabilidade: tudo muda constantemente, tudo está em processo, tudo se transforma. Da luta dos contrários nasce a organização do cosmos. O Não-ser, a alteridade e o múltiplo existem em todo o Ser e produzem a mudança constante. É dele a famosa frase: “Ninguém se banha duas vezes na mesma água do rio, pois tudo corre, tudo flui (“Hen kai Pan e Pánta rei” [“O Todo e o Uno e tudo flui])” 5.(CIRNE-LIMA, 2002). A dialética é o estudo da contradição na essência das coisas mesmas: não só os fenômenos são transitórios, móveis, flutuantes, separados por limites convencionais, mas, também, o são as essências das coisas. A dialética em Marx nunca vai ter em vista ser um fenômeno unitário, mas múltiplo, isto é, relativo às diferenças cósmicas e sociais, às mudanças históricas. É indispensável compreender a realidade histórica em suas contradições, para tentar superá-las dialeticamente. A dialética é uma metodologia que estuda do encadeamento das contradições do conhecimento, da natureza, da sociedade, enfim das contradições que engendram a história. No movimento dialético, cada coisa traz dentro de si a sua contradição. Todo o ser contém dentro de si mesmo o germe de ruína e o seu germe de superação. Tudo muda. Tudo se transforma. Tudo se contradiz. Tudo nasce, vive e morre. Em livro muito usado pelos professores de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo, sobre a dialética marxiana, afirma-se que o processo dialético e a práxis política são as locomotivas da história para Marx e que a raiz da historicidade do homem se encontra no fenômeno da objetivação do trabalho humano, que consegue transformar a natureza em cultura e esta em história 6. 5 6 CIRNE-LIMA, C.R. Dialética para Principiantes. São Leopoldo: Unisinos, 2002. OLIVEIRA & KROHLING. Introdução ao Pensamento Filosófico. 6ª ed. São Paulo: Loyola, 1998. Campo Jurídico, vol. 1, n. 2, p. 195-214, outubro de 2013 201 KROHLING, Aloisio. Dialética Histórica dos Direitos Humanos Fundamentais e Hermenêutica Diatópica O princípio metodológico da investigação dialética da realidade social é o ponto de vista da totalidade concreta, que antes de tudo significa que cada fenômeno pode ser compreendido como momento de todo. Assim, todas as diversas dimensões dos direitos humanos têm o seu contexto histórico concreto, mas abrangendo a totalidade. A metodologia dialética como perspectiva de análise histórica da conquista dos direitos humanos fundamentais, torna-se um instrumento de compreensão da longa caminhada que os povos e pessoas ainda precisam percorrer para se verem livres da barbárie e se colocarem numa postura ética diante da alteridade e exterioridade dos Outros ainda não reconhecidos interlocutores e membros da mesma humanidade. Os direitos humanos em perspectiva crítica são concebidos como processos de lutas (sociais, políticas, jurídicas, econômicas, culturais) pela dignidade humana. TEORIA CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS DE HERRERA FLORES No seu livro, onde escreve sobre a Teoria Crítica dos Direitos Humanos, Joaquim Herrera Flores descreve as bases para uma nova cultura jurídica relacionada com a questão da dignidade no âmbito nacional e internacional. Além de estruturar sua teoria dos direitos humanos sob as bases de uma nova ordem sócio-econômica, Flores produz também uma anatomia dos direitos humanos, distinguindo nitidamente as razões para a formação dos direitos humanos contemporâneos e a realidade destes direitos. Nas palavras do autor, os direitos humanos “são processos culturais; ou seja, o resultado sempre provisório das lutas que os seres humanos colocam em prática para ter acesso aos bens necessários para a vida” 7. A teoria proposta por Flores não se trata apenas de uma redefinição ou reconceitualização dos direitos humanos, trata-se de uma teoria extremamente abrangente dos direitos humanos. Não se trata apenas de reconceituar os direitos humanos como processos de lutas sociais por dignidade, que adquire sentido, sobretudo, no contexto de expansão, ao nível global, da ideologia neoliberal e suas consequências, bem como, o situar o objetivo 7 FLORES, Joaquín Herrera. Teoria Crítica dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2009, p. 34. 202 Campo Jurídico, vol. 1, n. 2, p. 195-214, outubro de 2013 KROHLING, Aloisio. Dialética Histórica dos Direitos Humanos Fundamentais e Hermenêutica Diatópica desta teoria, qual seja, buscar incluir todas e todos aqueles que foram excluídos dos processos hierárquicos de acessos aos bens. Além do mais é uma teoria abrangente, pois trata os direitos humanos em sua complexidade. Flores fala da complexidade cultural, empírica, jurídica, filosófica, política, bem como estabelece quatro condições para a consolidação de uma teoria crítica e realista dos direitos humanos, quais sejam: A primeira condição é assegurar uma visão realista do mundo em que vivemos e desejamos atuar utilizando os meios que nos trazem os direitos humanos; [...] 2. Mas o pensamento crítico vai, além disso. É um pensamento de combate. Deve, pois, desempenhar um forte papel de conscientização que ajude a lutar contra o adversário e a reforçar os próprios objetivos e fins. Quer dizer, deve ser eficaz com vistas à mobilização. [...] 3. Em terceiro lugar, o pensamento crítico surge em – e para – coletividades sociais determinadas, que dele necessitam para elaborarem uma visão alternativa do mundo e sentirem-se seguras ao lutar pela dignidade. [...] 4. Por tais razões, o pensamento crítico demanda a busca permanente de exterioridade – não em relação ao mundo em que vivemos, mas em relação ao sistema dominante 8. Flores descreve também deveres como o reconhecimento de todos os indivíduos sem exceção; o respeito como forma de conceber o reconhecimento como condição necessária, mas não suficiente, na hora de por em prática as lutas pela dignidade; a reciprocidade, a responsabilidade (primeiro, a nossa responsabilidade na subordinação dos outros e, segundo, a nossa responsabilidade de exigir responsabilidades aos que cometeram o saqueio e a destruição das condições de vida dos demais) e a redistribuição (o estabelecimento de regras jurídicas, fórmulas institucionais e ações políticas e econômicas concretas que possibilitem a todos não somente satisfazer as necessidades vitais). Refutando um a um dos primados neoliberais, com a força e a contundência muitas vezes escamoteadas pelos intelectuais em nome de uma falaciosa neutralidade, Herrera Flores, depois de desconstruir o ideário da globalização hegemônica do capital, apresenta alternativas ao modelo segregacionista e individualista em questão, sugerindo, assim, a internacionalização dos movimentos sociais pautados pelo respeito às diferenças culturais e à liberdade de expressão e de criação sufocadas pelo monopólio comportamental imposto a povos guardados de uma diversidade histórica não-econômica a ser respeitada. O reconhecimento de tais diferenças, em 8 Idem, ibidem, pp. 60-61. Campo Jurídico, vol. 1, n. 2, p. 195-214, outubro de 2013 203 KROHLING, Aloisio. Dialética Histórica dos Direitos Humanos Fundamentais e Hermenêutica Diatópica vez de dividir os explorados e oprimidos, pode uni-los na construção do que foi denominado por Flores de “Chaves de Tradução Cultural”, o verdadeiro segredo para fazer frutificar ações de resistência em todo planeta. A teoria crítica dos direitos humanos segundo Herrera Flores, sendo esta perspectiva assumida por nós como a mais consequente e coerente com as pesquisas atuais na área dos direitos humanos numa visão transdisciplinar... Após a abordagem crítica proposta sobre a fundamentação teórica dos direitos humanos, torna-se perceptível a aporia em que se encontra o discurso, relativo aos mesmos, fundado na concepção liberal. Isso se deve, em grande parte, pela base utilizada como fundamento para projetar sua efetividade, ora extremamente idealista (direitos inatos, universais, dignidade humana abstrata), ora deficitariamente simplista (direitos humanos como normas jurídicas). É necessário conceber o direito, e, sobretudo os direitos humanos, em uma perspectiva que tenha como elemento fundamental a realidade material na qual vivem as pessoas. É preciso valer-se, na construção dos conceitos operacionais da ciência jurídica, de matrizes teóricas comprometidas com o contexto social, que considere que o direito não é outra coisa senão um instrumento de implementação da dignidade, e não um fim em si mesmo. Devemos compreender os direitos humanos em uma perspectiva crítica, fundamentalmente porque esta perspectiva tem como pressuposto básico o comprometimento com a mudança social, aqui entendida como o aumento do acesso aos diversos bens que tornem a existência digna. Nesse sentido, Flores conceitua os direitos humanos como processos de luta pela dignidade. Herrera Flores analisa a interculturalidade a partir da contextualização histórica da própria globalização e os seus fundamentos teóricos para depois erguer a bandeira da construção das chaves culturais condutoras da edificação de espaços internacionais de luta pela prevalência dos Direitos Humanos e da dignidade humana dos explorados e oprimidos de hoje. A HERMENÊUTICA DIATÓPICA E DIREITOS HUMANOS SEGUNDO RAIMON PANNIKAR Para se entender o significado do termo diatópica e diálogo intercultural será preciso esclarecer na perspectiva da antropologia o sentido de cultura, que é o processo acumulativo resultante de toda a experiência his- 204 Campo Jurídico, vol. 1, n. 2, p. 195-214, outubro de 2013 KROHLING, Aloisio. Dialética Histórica dos Direitos Humanos Fundamentais e Hermenêutica Diatópica tórica das gerações anteriores. Define-se ainda, mais completamente, cultura como um sistema coletivo de sentidos, signos, valores, práticas sociais, processos sócio-políticos, criados historicamente por grupos sociais para estruturar as suas identidades coletivas, como referência vital do seu dia a dia nas relações entre si e com outros grupos. Interculturalidade significa interface, troca, intercâmbio, reciprocidade, criação de espaços de participação coletiva entre culturas diferentes. Vera Candau assim define interculturalidade ou interculturalismo: O interculturalismo supõe a deliberada interrelação entre diferentes culturas. O prefixo inter indica uma relação entre vários elementos diferentes: marca uma reciprocidade (interação, intercâmbio, ruptura do isolamento) e, ao mesmo tempo uma separação ou disjuntiva (interdição, interposição, diferença) este prefixo (...) se refere a um processo dinâmico marcado pela reciprocidade de perspectivas 9. (Candau, 2000, p. 03) Relacionar-se com o Outro é compreender a vida do outro, expressa de forma estruturada culturalmente. Esta vida é um fenômeno do mundovivido (lebenswelt) e acontece no plano histórico. Portanto, só compreendemos quando aceitamos a historicidade e alteridade como ela se encontra na outra cultura ou no outro sujeito. Taylor10 defende as “políticas de reconhecimento público” na relação dialógica entre as culturas e do Estado Nacional com todos os componentes da sociedade multicultural. O espaço público é o lugar onde todos os grupos culturais devem procurar dialogar sobre qualquer tema vital para a sua existência individual e coletiva. O debate que Taylor provoca está relacionado com o ponto fulcral ou o pressuposto ético-filosófico dos direitos humanos fundamentais, cujo fundamento é a dignidade da pessoa humana. Respeitamos o outro, seja quem for, nacional ou imigrante, nativo do Estado-Nação ou estrangeiro, branco ou negro, homem ou mulher. Neste sentido concordamos plenamente com as palavras exatas em português, talvez mais exatas em alemão, de Walter Schweidler11: A dignidade humana pertence, portanto, ao projeto inacabado de nos tornarmos verdadeiramente Humanos, de forma que a sua tarefa (Aufgabe) seja CANDAU, Vera M. Interculturalidade e Educação Escolar. Rio de Janeiro: GECEC, 2000, p. 03. TAYLOR, Charles [et alt]. Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p. 522. 11 SCHWEIDLER W. Das Unantastbare. Beitraege zur Philosophie der Menshenrechte. Munster, 2001, p. 11. 9 10 Campo Jurídico, vol. 1, n. 2, p. 195-214, outubro de 2013 205 KROHLING, Aloisio. Dialética Histórica dos Direitos Humanos Fundamentais e Hermenêutica Diatópica ao mesmo tempo, uma demanda (Forderung) e uma realização (Erfuellung). A dignidade da pessoa humana é relacional e não uma propriedade12. A dignidade é uma condição, um estado, e não um merecimento13. A dignidade humana é apenas percebida como dever e não como um privilégio14. Como afirmado anteriormente, relacionar-se com o Outro é compreender a vida do outro, expressa de forma estruturada culturalmente. Esta vida é um fenômeno do mundo-vivido (lebenswelt) e acontece no plano histórico. Portanto, só compreendemos quando aceitamos a historicidade e alteridade como ela se encontra na outra cultura ou no outro sujeito. Isto é respeitar a dignidade humana. Discorrendo sobre a contribuição de Taylor ao debate multiculturalista, Andrea Semprini15 afirma o seguinte: Compreende-se melhor agora porque a valorização da diferença é parte fundamental das reivindicações multiculturais. Se a identidade individual fica definida por sua inscrição num quadro de pertença, esse quadro representa ao mesmo tempo o potencial e os limites da experiência identitária do sujeito. É somente pelo encontro com outro que esta experiência pode ser enriquecida e transcendida [...]. Uma teoria dialógica da identidade explica enfim a importância da demanda de reconhecimento exigida por numerosos grupos e minorias [...]. As experiências da diferença e do encontro com o outro são sempre enriquecedoras, pois elas representam a própria condição de emergência da identidade. Os críticos monoculturalistas desta abordagem multiculturalista ironizam os “novos bárbaros” no seu país, dizendo que os emigrantes sempre usam a “estratégia da vitimização” e da “cultura da reclamação”, porque não quiseram se integrar à nova pátria, que deveriam ter adotado como sua, preferindo viver de saudosismos e romantismos culturais. Nesta discussão ouviremos primeiro pensadores com raízes culturais na Ásia ou África, para depois ouvirmos as vozes do Ocidente que comungam da mesma metodologia de pesquisa sobre os direitos humanos. Será que todas as culturas humanas ou a maioria delas tem alguma ideia parecida com aquilo que no Ocidente entendemos como direitos humanos? Para responder a esta questão, Raimon Panikkar16 julga importante o uso da mesma metodologia de pesquisa que ele chamará de “hermenêutica Cita-se o alemão para traduzir o pensamento conciso de Walter SCHWEIDLER: Wuerde ist Verhaeltnis, keine Eigenschaft. 13 Wuerde ist ein Status, kein Verdienst. 14 Wuerde ist nur Verpflichtung nicht als Privileg wahr enmbar. 15 SEMPRINI, Andrea. Multiculturalismo. Bauru:EDUSC, 1999, pp. 103-104. 16 BALDI, C.A. Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 208-209. 12 206 Campo Jurídico, vol. 1, n. 2, p. 195-214, outubro de 2013 KROHLING, Aloisio. Dialética Histórica dos Direitos Humanos Fundamentais e Hermenêutica Diatópica diatópica”. (dia= através+ topos= lugar), que ele define como: “Uma reflexão temática sobre o fato de que os “loci” (topoi) de culturas historicamente não relacionadas tornam problemática a compreensão de uma tradição com as ferramentas de outra e as tentativas hermenêuticas de preencher essas lacunas”. Só haverá diálogo intercultural se o primeiro interlocutor colocar, com clareza, os “topoi” da sua cultura para compreender os construtos da outra cultura. Uma das ferramentas para a efetivação do diálogo intercultural é, segundo Panikkar, que desde 1984 vem escrevendo sobre hermenêutica diatópica, o “equivalente homeomórfico”. Ele faz a seguinte colocação: se a cultura ocidental emprega como princípio ou eixo fundante a dignidade da pessoa humana como a base dos direitos humanos, será preciso investigar como a outra cultura se expressa para atender a uma necessidade equivalente. Isto será feito na busca conjunta e intercultural, após construída uma base linguística mutuamente compreensível para ambos interlocutores dialogantes. A abertura mútua para o diálogo intercultural supõe a criação de espaços para intercâmbio das visões homeomórficas dos dois parceiros. Para ilustrar, com perspicácia oriental, a chamada plataforma de equivalências ou o “equivalente homeomórfico”, Panikkar17, apresenta uma comparação com janelas com a seguinte formulação: Os Direitos humanos são uma janela através da qual uma cultura determinada concebe uma ordem humana justa para seus indivíduos, mas os que vivem naquela cultura não enxergam a janela; para isso, precisam da ajuda da outra cultura que, por sua vez, enxerga através de outra janela. Eu creio que a paisagem humana vista através de uma janela é, a um só tempo, semelhante e diferente da visão de outra. Se for o caso, deveríamos estilhaçar a janela e transformar os diversos portais em uma única abertura, com o consequente risco de colapso estrutural, ou deveríamos antes ampliar os pontos de vista tanto quanto possível e, acima de tudo, tornar as pessoas cientes de que existe, e deve existir, uma pluralidade de janelas. A última opção favoreceria um pluralismo saudável. A hermenêutica diatópica se fundamenta na ideia de que os topoi de uma cultura nunca são completos. A incompletude de uma dada cultura poderá ser complementada com os topoi de outra cultura através do diálogo intercultural, que significa reciprocidade, respeitando o Outro como ele é e 17 Idem, ibidem, p. 210. Campo Jurídico, vol. 1, n. 2, p. 195-214, outubro de 2013 207 KROHLING, Aloisio. Dialética Histórica dos Direitos Humanos Fundamentais e Hermenêutica Diatópica não sob a ótica do Poder e da imposição de padrões culturais de superioridade, mas no mesmo nível de aprendizagem dialogada. É impossível querer reduzir tudo ao Uno, como faz a tese do universalismo exclusivo e do relativismo absoluto. Um exemplo de hermenêutica diatópica é a que pode ter lugar entre os topoi dos direitos humanos na cultura ocidental, o topos do dharma na cultura indiana, conforme explica o próprio Panikkar18: A palavra dharma, é talvez, a mais fundamental na tradição indiana, que poderia nos levar à descoberta de um possível símbolo homeomórfico correspondente à noção ocidental de “Direito de Humanos” [...]. O dharma é aquilo que mantém e dá coesão e, poranto, força, a qualquer coisa dada, à realidade, e em última instância, aos três mundos (triloka). A justiça mantém o funcionamento das relações humanas; a moralidade mantém a pessoa em harmonia; a lei é o princípio organizador das relações humanas; a religião mantém o universo em existência; o destino é o que nos vincula ao nosso futuro; a verdade é a coesão interna de algo; uma qualidade é aquilo que permeia algo como um caráter homogêneo; um elemento é a mínima partícula consistente, espiritual ou material; e assim por diante [...]. Não há dharma universal acima e independente do svadharma, o dharma inerente a cada ser. E este svadharma é, a um só tempo, resultado da reação ao dharma de todos os outros [...]. Nosso ponto de partida não é um indivíduo, mas toda a complexa concatenação do real. Para proteger o mundo, em nome da proteção deste universo, diz Manu, o Svayambhu, aquele que existe per se, organizou as castas e os deveres. O dharma é a ordem da realidade como um todo, aquilo que mantém o mundo coeso. O dever do indivíduo é manter seus “direitos”, é descobrir seu lugar em relação à sociedade, ao cosmos e ao mundo transcendente. Uma leitura superficial deste texto dará a impressão de se tratar de uma comparação das ideias teológicas da religião hinduísta com o jusnaturalismo cristão. Mas uma compreensão mais profunda apontará alguns dados importantes da visão indiana para a temática em discussão e para o diálogo intercultura: 1. Os direitos humanos para a cultura indiana não são apenas direitos individuais, pois o indivíduo é apenas um nó, que está inserido e participa da rede de relações que formam o tecido social. 2. Os direitos humanos não são só “humanos” do gênero humano, mas estão ligados à realidade cósmica e também aos outros animais que sobrevivem e acompanham o mundo nesta jornada milenar. 18 BALDI, C.A. Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Op. cit., pp. 230-232. 208 Campo Jurídico, vol. 1, n. 2, p. 195-214, outubro de 2013 KROHLING, Aloisio. Dialética Histórica dos Direitos Humanos Fundamentais e Hermenêutica Diatópica 3. Os Direitos humanos não são apenas direitos, mas também deveres e ambos são interdependentes. 4. A razão (o logos cartesiano e kantiano) não explica sozinha os direitos humanos; devemos aprender com a linguagem dos mitos e outras narrativas culturais. Para encerrar esta parte com o pensamento de Panikkar19, esta é a sua conclusão sobre a metodologia da hermenêutica diatópica: Resumindo, precisamos de uma nova hermenêutica: a hermenêutica diatópica que só pode ser desenvolvida em um diálogo intercultural. Ela nos mostraria que não podemos tomar a pars pro Toto, nem crer que vemos o totum in parte. Devemos aceitar o que o nosso parceiro nos diz: simplesmente, que tomamos o totum pro parte, quando estamos cientes da pars pro Toto, o qual é, com certeza, o que lhe responderemos sem vacilar. É a condição humana e eu não a consideraria como uma imperfeição; mais uma vez este é o tema do pluralismo. Panikkar propõe uma perspectiva cosmoteândrica da realidade, na qual o cósmico (kósmos), o teológico-divino (Theós) e o humano (andrós) interligados, seriam a base dos Direitos das pessoas buscando diálogo intercultural. Na mesma linha de reflexão de Panikkar, o turco Ahmet Davutoglu20 mostra que a construção histórica da Europa seguiu o caminho da unidade na diversidade cultural e que esta ótica está presente também na cultura islâmica e, especificamente, no Alcorão. O patrimônio da Europa é a unidade na diversidade, e não a uniformidade ou a hegemonia. Essa unidade na diversidade tem de ser ampliada para o mundo todo, incluindo o Japão, a China, a Índia e as culturas muçulmanas. Cada cultura e cada povo tem algo específico para oferecer à solidariedade e ao bem-estar da humanidade. Tais ideias de unidade na diversidade estão de acordo com o princípio corâmico de taaruf, que conecta o ato da criação com a diversidade cultural das civilizações islâmicas. O malasiano, Chandra Muzaffar, professor da Universidade da Malásia , discorrendo sobre a cultura islâmica, concorda plenamente com a interpretação do seu colega de Istambul na Turquia, quando escreve sobre os direitos sociais e civis no Ocidente e no mundo muçulmano. 21 Assim como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o islã reconhece o direito à formação de uma família, à privacidade, à liberdade de movi- BALDI, C.A. Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Op. cit., p. 229. Idem, ibidem, p. 138. 21 BALDI, C.A. Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Op. cit., p. 313. 19 20 Campo Jurídico, vol. 1, n. 2, p. 195-214, outubro de 2013 209 KROHLING, Aloisio. Dialética Histórica dos Direitos Humanos Fundamentais e Hermenêutica Diatópica mento e residência, ao uso do próprio idioma, à prática da própria cultura e à liberdade de religião. A Declaração Universal Islâmica dos Direitos Humanos, por exemplo, um documento formulado por um grupo de estudiosos islâmicos em 1981, com base nos valores e princípios do Corão e da Sunnah (a vida do Profeta Maomé), declara, de forma inequívoca, que “todas as pessoas têm direito à liberdade de consciência e culto, de acordo com suas crenças religiosas”. Este artigo da declaração foi, sem sombra de dúvida, influenciado pela injunção corâmica de que não deve existir qualquer coerção religiosa. Um fato histórico que chamou a atenção de todos os multuculturalistas e da opinião pública mundial, foi a Convenção Mundial do Parlamento das Religiões do mundo no outono de 1993 no Grand Park em Chicago, onde após a palestra do Dalai Lama, foi assinada e proclamada, por representantes da maioria das religiões do mundo, a Declaração Interconfessional para uma Ética Global, documento no qual se afirmavam os princípios morais fundamentais consensuais. Após ouvir os pensadores não-ocidentais, será enriquecedor ouvir o sociólogo português, Boaventura Souza Santos, que há muitos anos vem pesquisando a questão do multiculturalismo relacionado com os Direitos Humanos e desenvolvendo projetos de pesquisa com parceiros e interlocutores de várias culturas. Ele defende também a hermenêutica diatópica como metodologia para avanços progressivos no diálogo intercultural. A transformação paradigmática da concepção dos direitos humanos proposta por Boaventura de Sousa Santos, parte da constatação de que os direitos humanos não possuem uma matriz universal. O paradigma atual dos direitos humanos encontra-se inserido num contexto monocultural ocidental. Desde as Revoluções Liberais imbuídas da ideologia iluminista e da “razão instrumental” da modernidade é que os colonizadores europeus transplantaram os valores do liberalismo individualista para outras culturas. Após os anos 80, por meio da globalização econômica, os valores ocidentais são passados midiaticamente, como se fossem universais, de forma a permitir a expansão de ideias intimamente ligadas ao legado e ideologia neoliberal ocidentais do mercadocentrismo. O cosmopolitismo proposto pelo cientista social lusitano vai na contramão da mundialização cultural mercadocêntrica. Não se podem negar esforços para universalizar um conjunto de valores que possa ser compartilhado por todas as culturas. Enquanto forem concebidos como direitos universais, os direitos humanos tenderão a operar como “localismo globalizado” e, portanto, como uma 210 Campo Jurídico, vol. 1, n. 2, p. 195-214, outubro de 2013 KROHLING, Aloisio. Dialética Histórica dos Direitos Humanos Fundamentais e Hermenêutica Diatópica forma de globalização hegemônica. Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalização contra-hegemônicas, os direitos humanos têm de ser reconceitualizados como multiculturais. Vivemos em um “pluriverso” e não em um “universo” único22. Devemos buscar consenso e o dissenso entrelaçando-se na procura de uma constante reativação crítica e utópica do consenso imposto. É preciso fugir do “localismo ocidental globalizado”23. Boaventura de Souza Santos chama de hermenêutica diatópica o diálogo entre duas ou mais culturas ou dois referenciais ou lugares (dois topoi), como explica: Num diálogo intercultural, a troca ocorre entre diferentes saberes que reflectem diferentes culturas, ou seja, entre universos de sentido diferentes e, em grande medida, incomensuráveis. Tais universos de sentido consistem em constelações de topoi fortes. Os topoi são os lugares comuns retóricos mais abrangentes de determinada cultura. Funcionam como premissas de argumentação que, por não se discutirem, dada a sua evidência, tornam possível a produção e a troca de argumentos. [...] A hermenêutica diatópica baseiase na ideia de que os topoi de uma dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura a que pertencem. Tal incompletude não é vivível a partir do interior dessa cultura, uma vez que a inspiração à totalidade induz a que se tome a parte pelo todo. O objetivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a completude – um objetivo inatingível – mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra. Nisto reside seu carácter dia-tópico24. Outra dimensão muito frisada por Boaventura Souza Santos25 é o potencial emancipatório dos direitos humanos, se estiverem impregnados profundamente pelo pluralismo cultural, numa atitude de busca e diálogo, o que seria de fato cosmopolita. Assim o multiculturalismo seria emancipatório. A tarefa central de uma política de libertação da atualidade será transformar o entendimento e a prática dos Direitos Humanos de um “localismo globalizado” num projeto cosmopolita, o que será mostrado através de algumas premissas para que haja transformação26. De acordo com Souza Santos27: A frase foi usada por ESTEVA Gustavo, PRAKASH Madhu Suri, 1998, Grassroots Post-Modernism - Remaking the Soil of Cultures, United Kingdom, Zed Books, p. 223, citada por Baldi Eberhard como sendo de Prakash, op. cit., p. 168) 23 SANTOS, Boaventura de Souza. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006, p. 446. 24 SANTOS, Boaventura de Souza. A Gramática do Tempo. Op. cit., pp. 447-448. 25 BALDI, C.A. Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Op. cit., pp. 250-252. 26 Idem, ibidem, pp. 250-252. 27 SANTOS, Boaventura de Souza. A Gramática do Tempo. Op. cit., pp. 445-447. 22 Campo Jurídico, vol. 1, n. 2, p. 195-214, outubro de 2013 211 KROHLING, Aloisio. Dialética Histórica dos Direitos Humanos Fundamentais e Hermenêutica Diatópica 1. A primeira premissa é a superação do debate sobre universalismo e relativismo cultural. Trata-se de um debate intrinsecamente falso. 2. A segunda premissa da transformação cosmopolita dos direitos humanos é que todas as culturas possuem concepções de dignidade humana, mas nem todas elas a concebem em termos de direitos humanos. Torna-se, por isso, importante identificar preocupações isomórficas entre diferentes culturas. Designações, conceitos e Weltanschaungen diferentes podem transmitir preocupações ou aspirações semelhantes ou mutuamente inteligíveis. 3. A terceira premissa é que todas as culturas são incompletas e problemáticas nas suas concepções de dignidade humana. A incompletude provém da própria existência de uma pluralidade de culturas, pois, se cada cultura fosse tão completa como se julga, existiria apenas uma só cultura. [...] Aumentar a consciência de incompletude cultural até ao seu máximo possível é uma das tarefas mais cruciais para a construção de uma concepção multicultural de direitos humanos. 4. A quarta premissa é que todas as culturas têm versões diferentes de dignidade humana, algumas mais amplas do que outras, algumas com um círculo de reciprocidade mais largo do que outras, algumas mais abertas a outras culturas do que outras. 5. A quintas premissa é que todas as culturas tendem a distribuir as pessoas e os grupos sociais entre dois princípios competitivos de pertença hierárquica: princípio da igualdade e princípio da diferença. Um – o princípio da igualdade – opera através de hierarquias entre unidades homogêneas (a hierarquia de estratos socioeconômicos; a hierarquia cidadão/estrangeiro). O outro – o princípio da diferença – opera através da hierarquia entre identidades e diferenças consideradas únicas (a hierarquia entre etnias ou raças, entre sexos, entre religiões, entre orientações sexuais). Os dois princípios não se sobrepõem necessariamente e, por esse motivo, nem todas as igualdades são idênticas e nem todas as diferenças são desiguais. Estas são as premissas de um diálogo intercultural para que haja transformação nas relações entre as culturas e povos. Será possível uma concepção mestiça de direitos humanos? Nota-se que um ponto de partida para todos os grupos que pesquisam direitos humanos em uma perspectiva intercultural é a questão da “dignidade da pessoa humana”. Todas as culturas possuem algum tipo de concepção ou prática relacionada com a dignidade humana. Mesmo sem usar a terminologia “direitos humanos”, algo próximo se encontrará. Por exemplo, buscar uma vida digna, querer uma vida melhor para os seus filhos e parentes, para a tribo, clã ou comunidade circundante. Todas as culturas são incompletas e problemáticas nas suas concepções de dignidade humana. Nenhuma cultura dá conta do humano. “Aumentar a consciência de incompletude cultural é uma das tarefas prévias à 212 Campo Jurídico, vol. 1, n. 2, p. 195-214, outubro de 2013 KROHLING, Aloisio. Dialética Histórica dos Direitos Humanos Fundamentais e Hermenêutica Diatópica construção de uma concepção emancipadora e multicultural dos direitos humanos”28. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os desafios do diálogo intercultural são enormes, de modo especial, quando se estudam os mecanismos de Poder Econômico, político e ideológico que existem em todos os lugares e povos e permeiam profundamente a educação e formação cultural da maioria das pessoas. As relações culturais são construídas na história social, econômica e política de cada povo e não há como fugir destas injunções do poder. Nunca se pode esquecer que as representações de raça, gênero e classe são produto das lutas sociais e estão carregados de signos e significações culturais, que se expressam na religião, no folclore, nos costumes, na família e na comunidade. O diálogo intercultural e a metodologia da hermenêutica diatópica não avançarão sem um bom projeto político de ação planejada e um programa de educação popular para a formação da consciência de cidadania cosmopolita. Pouco foi dito sobre o diálogo intercultural na América Latina, mas os autores citados, como Raúl Fornet Betancourt, Enrique Dussel, Antonio Sidekum estão dando uma grande contribuição ao debate intercultural e à filosofia da interculturalidade. No caso do Brasil, temos uma história de hibridização cultural sui generis, pois desde o início da colonização, apesar do modelo patrimonialista opressor do Estado lusitano, a nossa formação histórica adotou o multiculturalismo como marca indelével, apesar de todas as contradições sociais e econômicas. REFERÊNCIAS AFONSO DA SILVA, J. A Dignidade da Pessoa Humana como Valor Supremo da Democracia. In: Revista de Direito Administrativo, v. 212, 1998. BALDI, C.A. Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. 28 SANTOS, Boaventura de Souza. A Gramática do Tempo. Op. cit., p. 446. Campo Jurídico, vol. 1, n. 2, p. 195-214, outubro de 2013 213 KROHLING, Aloisio. Dialética Histórica dos Direitos Humanos Fundamentais e Hermenêutica Diatópica CANDAU, Vera M. Interculturalidade e Educação Escolar. Rio de Janeiro: GECEC, 2000. CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. CIRNE-LIMA, C.R. Dialética para Principiantes. 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