Paulo Herkenhoff - Anna Maria Maiolino
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Paulo Herkenhoff - Anna Maria Maiolino
Paulo Herkenhoff A TRAJETÓRIA DE MAIOLINO: Uma Negociação de Diferenças. “Eu não sou uma artista que passa a limpo. Sou uma artista toda contaminada”, 1 diz Anna Maria Maiolino. Essa contaminação, que admite o diálogo entre opostos e negociação das diferenças, é o modus operandi das etapas da vida cultural do país, da Antropofagia ao Neoconcretismo e à Nova Objetividade Brasileira. A polivalência de Maiolino se desdobra em pinturas, gravuras, desenhos, esculturas, objetos, livros, performance, filmes e instalações. Este texto destaca alguns momentos e a complexidade do percurso de Maiolino para situar sua produção no processo histórico da arte e da cultura no Brasil nas últimas quatro décadas. I. Ao chegar ao Rio de Janeiro em abril de 1960, Maiolino matricula-se no ateliê livre da Escola Nacional de Belas Artes. Esse era o centro de excelência da xilogravura no Brasil, com o ensino ministrado pelo mestre expressionista Oswald Goeldi (1895-1961), o maior gravador do país de todos os tempos, e por seus discípulos, como Adir Botelho, professor de Maiolino. Aquela escola era foco carioca da elaboração da Nova Objetividade Brasileira, com as fricções ocasionadas pela arte Pop e pelo Novo Realismo. Lá se reuniam artistas como Rubens Gerchman, com quem a artista viria se casar, Roberto Magalhães e Antonio Dias, cada um com seu projeto gráfico. O desenho de Gerchman recorria ao universo gráfico popular, dos jornais aos anúncios pintados. Dias experimentou com histórias em quadrinhos, desenho de arquitetura e programação visual. Ora sintética, ora narrativa, a produção de Magalhães é das mais refinadas obras gráficas elaboradas no Brasil. Maiolino, por sua parte, foi atraída pela xilogravura: “Eu sempre tive vocação para o abismo”. 2 Nas paisagens e canas de interior das litogravuras iniciais, áreas brancas são conjugadas às figuras pretas, cujos contornos iniciam o espaço aberto na matriz, a escavação da madeira. O corte virá a ser um gesto importante para Maiolino, uma forma de intervenção que enfatiza a ação da artista. Na década seguinte abre planos precisos, ou rasga o papel, ou cria uma topologia da fendas e cortes. Nos anos 1990, corta o barro com uma lâmina. O corte, diz a artista, “deu subsídios, fomentou meu imaginário na interrelação dialética de um e o outro espaço, o culto”. 3 Esta dedicação ao corte se evidencia no seu trabalho na tradição xilográfica do folheto de cordel, um gênero de “poesia narrativa, popular, impressa” 4 em pequenas publicações, que em geral trazem uma capa com uma xilogravura, gravada com uma força expressiva do corte tosco. Na década de 1960, alguns artistas produzem xilogravuras que constroem imagens gráficas referidas a esta origem ancestral: Maiolino, Antonio Henrique Amaral, Gilvan Samico e outros. A sofisticada gravura de Samico acentua um caráter heráldico épico por vezes encontrado no cordel. Seu rigor gráfico articula jogos óticos e imagens, que encontram sua solene elegância na simetria e numa certa economia da fatura. 5 Antonio Henrique Amaral exagerou o caráter tosco do corte da matriz xilográfica de cordel para produzir contundentes imagens críticas da ditadura militar. A xilogravura de Maiolino guarda a relação com o cordel pelo método simplificado de gravar madeira, destituído de cortes expressionistas ou buscando uma ingenuidade no desenho, e pelo fato de tratar a atualidade. Ela funde cordel e Pop através do recurso à estética do primeiro e a divisões do espaço em quadros e cenas que evocam as revistas em quadrinhos do segundo. A xilogravura de cordel tendo sido o protótipo antropológico e o caminho gráfico, não foi, no entanto, o imaginário pelo qual Maiolino articulou sua utopia política. A última xilogravura dessa série – Anna (1967) – rompe com a espacialidade anterior. A simetria horizontal das figuras do pai e da mãe, a repetição da palavra, o palíndromo, dissolvem a narrativa nem jogo de ecos visuais, como espaço de rebatimentos e um tempo diacrônico. Na gramática de Anna haveria um anagrama visual. É como Anna, seu autorretrato e falso espelho, que Maiolino põe em questão a representação de si mesma em sua própria obra e reclama sua presença como sujeito. II. Em 1967, na galeria Goeldi no Rio de Janeiro, Anna Maria Maiolino realiza uma mostra importante de xilogravuras que constituíam um repertório variado de imagens do quotidiano banal, entre elas as gravuras A Digestão, Cirurgia, Ecce homo, Glu Glu Glu ..., Açougue, Júpiter Cabeleireiro, Bebê, O Quarto e Anna. Um tema dominante nessa produção é a condição feminina no âmbito doméstico definido pela sociedade patriarcal. Em A Espera (1967-2000), por exemplo, uma mulher aguarda o marido postada numa janela, de onde pende um varal com roupas reais que evidenciam seu trabalho. Essa é uma trama de territorialização do espaço de desejo e realização de subjetividade, entre casa e rua, entre o espaço doméstico e o espaço público. A cena cotidiana da A Espera se organiza à maneira de um cenário de teatro de marionetes. “Creio que em um nível muito sensível, nesta obra, estou trabalhando com o lado de dentro e o de fora da representação”, afirma a artista, comentando A Espera e obras afins. “A janela é o espaço fronteiriço da dramatização do oco e do cheio. Pois, na representação destas obras, o externo é a possibilidade do vácuo. E o interior da casa, o cheio”. 6 Além da ênfase que deu ao espaço doméstico, no entanto, a mostra de 1967 articulou também o compromisso da obra de Maiolino com a “visceralidade”. Nos anos 1960, o meio artístico brasileiro (figuras como Maiolino, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Arthur Barrio, Anna Bella Geiger, Rubens Gerchman, Antonio Dias ou Antonio Henrique Amaral) empregava as expressões como “visceral” e “visceralidade” para iniciar a intensidade expressiva simbolizada no corpo ou a produção de sentido a partir do orgânico. A visceralidade buscava dar conta dos indivíduos na perspectiva de sua carga psicológica, da resistência política e da inconformidade. A medida da visceralidade era a densidade ou a veemência da subjetividade, não o drama ou a crueza. “Visceralidade é a consciência das coisas, onde o organismo teve que atuar, viver”, observa Barrio. “O cérebro teve que se extravasar, sair, romper”. 7 Uma das razões pelas quais Lygia Clark admirava a obra de Anna Maria Maiolino era a potência visceral de sua obra, em trabalhos como os Buracos”. 8 A visceralidade quase Pop na obra de Maiolino também ocorre em pinturas como Glu Glu Glu..., uma representação bem-humorada do aparelho digestivo humano. O estômago e os intestinos estão representados por volumes estofados que admitiriam referência a Claes Oldenburg ou à obra do argentino Jorge de la Vega: uma dissecação com volume estofados, tecidos franzidos, pedaços de plástico. 9 No entanto, as vísceras estofadas de Glu Glu Glu... não pretendem discutir a condição humana. Maiolino desvincula as representações da vida doméstica de qualquer noção trágica: “Trabalhei sobre o cotidiano, sobre a narrativa na representação feminina. Estava obcecada com meu papel de mulher”. 10 Ainda nesse ano, Maiolino participa com Glu Glu Glu... da mostra nova Objetividade Brasileira organizada por Hélio Oiticica no museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. No catálogo, Oiticica afirma que a Nova Objetividade é um “estado típico da arte brasileira atual”, que ele percebia distante das “duas grandes correntes de hoje: Pop e Op, e também das ligadas e essas: Nouveau Réalisme e Primary Structures (Hard Edge)”. Segundo Oiticica, a Nova Objetividade permitia uma multiplicidade que incorporava várias tendências significativas: a negação do quadro de cavalete; a insistência na participação do espectador; a tomada de posição em relação aos “problemas políticos, sociais e éticos; o encorajamento da tendência para uma arte coletiva; e o reconhecimento do ressurgimento do problema da antiarte”. Esses temas se encontram de novo noutra obra do mesmo período, Psiu! (1967, também dita A Orelha), onde Maiolino desloca a visceralidade para o turvo horizontal político da época. A obra constitui um emblema para o clima de escuta persecutória que se estabelecia com a ditadura militar. De certo modo, Psiu! tinha o mesmo principio do panóptico. Todos se sentiam policiados (“escultados” pela polícia política) em seus cotidiano da vida civil, tanto quanto todos os presos se sentiam vigiados (“visto”) na prisão. No Brasil, sugere Maiolino, o controle da ordem ditatorial era transferido com eficácia e internalizado pelos indivíduos através da mera difusão da notícia de sua existência. 11 III. Em 1968, Anna Maria Maiolino muda-se para Nova York com seu marido, o artista Rubens Gerchman, que havia recebido um premio que lhes propiciou a viagem. “Eu cheguei na metade de 1968 e voltei em abril de 1971. Para mim foi uma eternidade”, diz ela. 12 Maiolino experimenta a condição de estrangeira num terceiro país. Convive com artistas latino-americanos vinculados à produção experimental de linguagem, como os brasileiros Hélio Oiticica e Amílcar de Castro, o uruguaio Luís Camnitzer e os argentinos Liliana Porter e Luís Wells. Embora Nova York houvesse se tornado um destino e o exílio para muitos artistas latino-americanos, o meio local permaneceu refratário à absorção política, cultural e econômica da arte latino-americana. À América Latina era negada especificidade cultural e uma história própria significativa, que redundava em experiência de gueto para artistas como Maiolino. Mas se Nova York não estava aberta ao encontro com a arte brasileira, Maiolino, sim, estava. Essa estada propiciou a Maiolino o reencontro com o Neoconcretismo, o movimento do Rio de Janeiro que incluía em seu programa o resgate da dimensão subjetiva da Arte Concreta (pela participação do público e pela relação do artista com o objeto). O Neoconcretismo redefine o objeto artístico e relaciona-se com o caráter simbólico das formas, implicando-se com a fenomenologia de percepção de Susanne Langer e Maurice Merleau-Ponty. O movimento Neoconcretista incluía artistas como Oiticica, Castro, Antonio Dias, Rubens Gerchman, Mira Schendel, Sérgio Camargo, Cildo Meireles, entre outros. Maiolino também reencontra Lygia Clark, que esteve hospedada por três semanas em seu apartamento em Nova York. Apesar desses encontros, Maiolino passa por dificuldades nesse período. Com o casamento em crise, dificuldades materiais e o choque cultural, Maiolino interrompe seu processo da produção de arte por um breve período. 13 Estimulada por Luis Camnitzer, volta a trabalhar ao se matricular no Pratt Internacional Graphics Center, que lhe permitia fazer gravuras. Na série Gravuras/Objeto, seu método construtivo consiste em trabalhar sobre a folha de papel como plano que se submete a incisões de linhas gravadas e cortes, sobre aberturas de áreas e constituição de vazios. A obra submete-se a dobraduras, opera articulação de frente e versos, obtém coesão gráfico por linhas projetadas, sejam desenhadas ou reais em fios de carretel. As superfícies rasgadas e espaços cortados dos Desenhos/Objetos expõem planos invisíveis, definem a presença do cheio no oco, pois aí trabalha “o espaço através de questões materiais”, 14 postura semelhante à que Sarduy via no concetto spaziale, nos cortes e nos furos de Lucio Fontana. A vontade construtiva que se manifestada na nova produção de Maiolino também autoriza a rememorar seu período venezuelano, em que a estudante de arte conheceu a obra de artistas abstrato-geométricos como Alejandro Otero, Jesus Rafael Soto, Gego e Carlos Cruz-Diez. O método de construção do espaço, a forma de apresentar a obra e o título – Gravuras/Objetos – iniciam afinidades de Maiolino com Neoconcretismo, tal como a redefinição do estatuto conceitual do objeto de arte. Todas as ações do artista coincidem com todas as operações materiais perceptíveis na obra. Esculpir é construir ou arrancar o espaço tridimensional que existia como latência no plano, fosse ele uma chapa de metal (Franz Weissman, Clark e Castro) ou uma folha de papel. Nessas obras, Maiolino tem algo da extrema economia de cortar e dobrar a chapa/plano como as duas únicas ações escultóricas de Amílcar de Castro. Gravuras /Objeto também lembra algumas páginas do Livro da Criação (1959-1960) de Lygia Pape, tal como o raciocínio espacial de Lygia Clark, que escreve que “demolir o plano como suporte de expressão é tomar consciência da unidade com um todo vivo e orgânico”. 15 Oiticica notou que a especialidade de suas Gravuras/Objetos era “orgânico-visual”. 16 Maiolino já solicitava outro olhar. Cumpria operar sua pauta de percepção fenomenológica e semiológica, junto com o processo de constituição de significados políticos e da topologia afetiva, sem descuido da precisão da forma. IV. A esterilidade e a crise da geometria concretista, a fragilidade relativa da Pop arte e da arte conceitual enquanto linguagem, o enfrentamento da ditadura militar e a constante necessidade de desenvolver estratégias para inserção do trabalho e da resistência política, o reencontro como o meio artístico brasileiro depois da estada em Nova York – são muitos desafios com que Maiolino se confrontou ao retorno ao Brasil. Em resposta, ela se dedicou ao desenho como uma forma de pensamento e atuação. Vista retrospectivamente, era a emergência de um dos principais artistas do desenho no Brasil, que na época emergia como um centro importante de desenho para o mundo a fora. O crítico Roberto Pontal chama a atenção para esse fato, aprontando duas razões distintas: o mercado e “a atmosfera conceitual, mentalizadora, solicitando uma forma de notação imediata, econômica e sugestiva de que o desenho, ‘projetual’ como mais nada, pode ser mestre. (...) Os dois impulsos, isolados ou unidos, deram então ao desenho um momento de brilho especial na arte brasileira”. 17 No começo da década de 70 Maiolino produz desenhos isolados como Secret Poem (1971), A Verônica (1971) e Tiro ao Alvo (1973). A artista passa empregar nanquim, aguada, papel, filme de radiografia, isopor, fio, linha de costura, Letra Set em corte, recorte, rasgos, dobraduras em caixas de madeira cobertas de vidro. Na sua semântica gráfica, “linha” é a linha da geometria e o fio de costura, tanto quanto um signo pode ser uma vírgula ou um traço. Os rasgos são tomados como ação e seu resultado físico genérico como “buraco”, pouco importando os contornos plásticos individuais. Algumas têm tiragem em positivo, mas também são feitas em negativo. Os desenhos da série Desenhos/Objetos, que englobam obras como Buraco Branco (1974), Buraco Negro (1974), Buraco ao Lado (1974), Depois do centro (1975), No Horizonte (1975), Linha Solta (1975), Espiral (1975), Mais Buracos (1975) e Vacuum II (1975), são estruturados por sobreposição de várias folhas de papel, separadas entre si por isopor, que formam uma espécie de “bloco” no qual Maiolino “esculpe” seus desenhos, isto é, corta, dobra, rasga, abre buracos, operando com um espaço tridimensional dentro dessas estruturas. Os desenhos são montados em molduras-caixas como os Mapas Mentais. Linha Solta se estrutura em muitas camadas de papel branco com um buraco rasgado com uma linha negra solta sobre a linha reta também preta ao fundo. A linha solta escorre delicadamente, dando coesão ao conjunto de folhas, consolidando o buraco como um lugar e não como formação modular. A linha reta no fundo do buraco instituiu coesão geométrica, estabilizando o olhar, introduzindo razão no espaço entrópico do buraco rasgado sem um plano formal que não seja apenas cavar a superfície. Há noções simbólicas referentes ao período da ditadura e ao conceito de visceralidade tão importante a Maiolino. Em outros Desenhos/Objetos, onde o desenho consiste em uma linha traçada ao longo do papel e projetada num buraco – ou vazio – em forma de fio, Maiolino objetiva a sua ideia do vazio enquanto lugar ativo e concreto, com a descontinuidade do espaço que acha a sua unidade no fio, no seu momento de integração na terceira dimensão. Para a artista “é o gasto agressivo e espontâneo do rasgo, que descobrirá o mistério do vazio, que será subitamente costurado, no arrependimento”. 18 O vazio não é o nada ou ausência, mas substância gráfica e lugar. A qualquer custo, o que importa é o vácuo, ativamente o vácuo... O vácuo não é o símbolo vicário do não-ser”, dizia Mira Schendel. 19 O Desenho/Objeto Buraco Negro, como a caverna do Platão, é o lugar interrogante, de onde a artista extrai entre sombra a hipótese do conhecimento e da crítica do real. Esse Desenho/Objeto é foco de escuridão em que o olhar se perde, como nas estrelas colapsadas, da qual nem a luz, a matéria ou qualquer outro tipo de sinal pode escapar. Cildo Meireles também refletiu sobre as noções astrofísicas de “buraco negro” em sua obra. O Buraco Negro é espaço sem a necessária definição topográfica, tendo a ideia do profundo como sua única referência de dimensão descontínua. Há um aflitivo silêncio aqui, distinto eticamente de seu Aleph, que consiste quase exclusivamente de vírgula. Seu sentido cósmico é de espaço informe e vastidão. O Buraco Negro possibilitaria uma dupla interpretação. Por um lado, a atmosfera densa remete ao sentimento de lugares profundos na tópica individual, como terrenos pré-conscientes trabalhados fenomenologicamente, de novo na tradição aberta pelo Neoconcretismo. Por outro lado, a grave situação política sob a ditadura confere a essas obras o sentido metafórico, de um espaço sombrio de luto e prisão, sob o colapso gravitacional. Maiolino confere a um espaço “abstrato” (em posição à representação retórica) o caráter trágico, como um espelho do momento político. Um paralelo à prática de Maiolino aparece na produção de Waltércio Caldas de meados da década de 1970, onde a retórica das imagens cede lugar a uma rigorosa economia lógica. Ronaldo Brito elabora sobre ela o problema conceitual de A Forma dos Buracos (1979), 20 próxima do concetto spaziale de Fontana e da estética do furo de Lacan. Na obra de Caldas, o buraco é o olho, às vezes aos pares como em Buracos (1976) e B-A (1978). Essa correlação evoca a anatomia do olho como vestígio antropomórfico resistente, uma noção do espaço como anatomia que não aparece na obra de Maiolino. Para Brito, os buracos de Caldas são “interrogações vazias” com qualidades conceituais e política. Obras como Buraco Negro de Maiolino são mais próximas da obra de Cildo Meireles, como Tiradentes: Totem-monumento ao Preso Político, realizado em Belo Horizonte nas comemorações da Semana da Inconfidência 1970. 21 Num parque público, Meireles fixou uma estaca e prendeu um termômetro clínico no topo. Ao poste foram amarradas dez galinhas vivas, sobre as quais se derramou gasolina e ateou fogo. Como era de se esperar, seu gesto aterrorizante sobre um vernissage instala mal-estar no sistema da arte. A performance de Meireles se esforça por conferir uma voz essencial àqueles que vivem no vácuo verbal produzido pela tirania, como o vulnerável preso político em isolamento. A enorme potência dessa obra implica numa atitude tão cravada na ética quanto na estética. A economia do buraco na obra de Maiolino opera uma torsão da arte brasileira numa direção psicanalítica, com a sua noção de falta, algo que Lygia Clark, em Estruturação do Self, chamava de “manque”. 22 O buraco pode ser visto como espaço simbólico de censura e morte ou de esperança no conhecimento. Na sua obra, não há linguagem verbal ou conversões sígnicas intermediadoras em seu processo de confronto com o real. Em termos físicos, esse segmento do desenho de Maiolino deve ser confrontado com o Monumeto ao Preso Político, projeto desenhado por Max Bill para um concurso em Londres em 1952. Na proposta do suíço, tratava-se de um cubo que é aberto por uma espécie de túnel que atravessa de um lado a outro em busca de transparência a luz, enquanto a obra de Maiolino é uma caverna, onde é necessário atribuir sentido à opacidade e às sombras. V. Em 1971, Anna Maria Maiolino elaborou livros-de-artista que permanecem como exemplares únicos: Movimentos Opostos, Infinito e Ponto de Encontro, todos em tinta nanquim sobre papel, e E + U, com Letra Set. Em 1976, editou cinco livros com tiragem total prevista para cem exemplares, todos implicando numa realização individual de rasgos e costuras em cada exemplar: Trajetória 1, Trajetória 2, Ponto a Ponto, Percursos e Na Linha. 23 Maiolino inscreve sua contribuição para a tradição dos livros-de-artista brasileira pela investigação do livro como espaço. Este debate começa nos anos 1950 com a Poesia Concreta dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari e outros. No planopiloto poesia concreta, os três primeiros afirmam que “a poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente cultural” e tratam de “palavras-coisa”. 24 Poucos anos depois, no seu Manifesto Neoconcreto, Ferreira Gullar critica a noção de “palavras-objeto” e afirma o poema como um ser temporal: “a página na poesia neoconcreta é a espacialização do tempo verbal: é pausa, silêncio, tempo”. 25 Com os seus livros-de-artista, Maiolino permite aos seus “leitores” aproximarem-se dessa experiência. Os livros de Maiolino pertencem a uma tradição de arte brasileira que compreende o Livro da Criação (1959-1960) de Lygia Pape, os Gibis de Raymundo Colares (1971), os Cadernos de Mira Schendel (1971) e os Rolos de Ivens Machado (1971). Em suas sequência de linhas e seus acidentes, os Rolos de Machado têm a forma de uma torah ou de um emaki dos japoneses. São, no entanto, signos de sua operação perturbadora no próprio processo de produção industrial de cadernos e papeis pautados. Cada página do livro da criação de Pape é um espaço e uma estrutura que produz e carrega sua significação. Suas páginas são quadrados de cor, que remetem ao Josef Albers das pinturas Homenagens ao Quadrado e a dadas experiências de Bruno Munari no início dos anos 1950. Na obra de Pape, cor e geometria confluem na formulação dos significados. Um quadrado aberto numa página amarela deixa passar a luz para quase exprimir a ordem fundante: “Fiat Lux!”. Uma malha com 196 pequenos furos quadrados significam a agricultura na página aonde se lê que “o homem era gregário e semeou a terra”. Os livros de Maiolino, como Ponto de Encontro, dialogam com os Gibis de Collares. Essas obras de Collares são uma operação que lança Mondrian na dinâmica do tempo concreto. Nos Gibis, os planos de cor da pintura do holandês passam a se abrir, desdobrar, interpenetrar e tecer planos. Não é da inteligência dos livros de Maiolino realizar um inventário ou uma taxonomia dos buracos, algo que se organizasse como uma lógica do uniforme. O que lhe interessa é construir uma passagem não no espaço, mas no tempo. Nesse sentido, o livro seria uma espécie de devir do vazio. Mantendo algo do “espaço qualificado” de que tratava o plano-piloto poesia concreta, Maiolino descreve seus livros como espaços fenomenológicos: “Na tentativa de literalmente trabalhar o oco, atravesso com linhas de costura os rasgos, desenhando no vazio. (...) Aqui como nas gravuras trabalho o espaço, busco ‘o espaço outro’ – avesso. Na tentativa de articular e dinamizar este ‘um e ao mesmo tempo duplo espaço’, o dentro e o fora, é que aparece o vazio, juntamente com a possibilidade de prenhez desse vazio. Tanto que, ao olhar os desenhos/objetos com as superfícies rasgadas, os espaços ocos atravessados por linha de costuras são percursos que apontam à possibilidade de existência de outros planos invisíveis. Sugerem a existência do cheio no oco, que nos levaria a afirmar que nestas obras trabalha-se o espaço através de questões matérias”. 26 Maiolino não recorre à habilidade tipográficas, lexicais ou mesmo sintáticas para fazer-se ouvir ou construir seus livros. 27 Seu processo, sendo silencioso, é afirmativo da realidade do livro. E + U atua por deslocamento sintático: não havendo frase onde se localizar, palavra – seria o próprio sujeito? – vagueia no livro em busca de sentido. Vagueio no livro buscando o meu sentido. De inicio, este livro operaria a atomização da palavra, isolada e desfolhada no livro, como em Cummings. Em E+U, a palavra “EU” sobre perda de linearidade, perde e recupera a motivação do signo: E + U é algum sujeito específico? Se o sujeito é Anna, aquela da xilogravura Anna, teria ela substituído o substantivo próprio pelo pronome? Sou “eu” o crítico, ou é todo leitor? Este “eu” seria o próprio livro como sujeito, porque é em seu corpo que o sujeito da ação se afirma, fragmenta, reitera e se recompõe? Aqui, este livro de Maiolino se distancia da palavra-coisa da Poesia concreta – e talvez até pudesse conversar algo com dela – para ser palavra-sujeito. 28 Esta é a multivocidade desta palavra-livro: ser todos os sujeitos em sua singularidade. Estaria agora mais achegada ao “não-objeto verbal” neoconcreto, que Ferreira Gullar define na teoria do Não-Objeto como sendo o “antidicionário: o lugar onde a palavra isolada Irradia a sua carga”. 29 O livro não só dissolve, mas também proporciona algo que aponta para a unidade imaginária do ser humano. A criança que, em seu estado de impotência e descoordenação motora (em E + U não haveria um estado de descoordenação linguística?), apreende no espelho (o livro é o espelho) a sua unidade corporal (no livro, apreende a unidade do sujeito). E + U é um balbucio do sujeito, que permite uma operação translinguística de sucessivas traduções: “eu” passaria para o alemão Ich e daí, via Freud, retornaria ao Português como ego. Para além do mero espaço epistemológico referenciado, isso faz do livro de Maiolino uma energia viva do sentido. 30 VI. Na Expo-Projeção na galeria Grifo em São Paulo (1973), Maiolino mostrou seu filme InOut (Antropofagia), um filme crucial do período, que aponta para o fato de que nos primeiros anos da década de 1970 tenha se constituído um triângulo antropofágico feminino na arte brasileira com Anna Maria Maiolino, Lygia Clark e Lygia Pape. A Antropofagia é uma estratégia cultural ou um modo de construir linguagem autônoma num país de economia periférica com a absorção de qualquer contribuição. O manifesto de Oswald, no entanto, não é uma receita; a linguagem deve ser reinventada em seu tempo por cada artista individualmente. Da latência permanente de modos antropofágicos no processo histórico da cultura brasileira desde o século XVII, o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade (1928) extrai e articula o canibalismo como prática simbólica. A torção produzida por Maiolino, Clark e Pape implica em deslocar a Antropofagia do papel de estratégia cultural para agregar a noção de canibalismo como prática simbólica vista da perspectiva psicológica e social. No caso de Clark, a Antropofagia se desloca para o espaço da fantasmática pelo viés da psicanálise. 31 No início dos anos 1970, Lygia Clark lecionava na Sorbonne, onde desenvolveu suas propostas poéticas de vivências, trabalhando com jovens, “que são preparados desde a nostalgia do corpo (...) até a reconstrução do mesmo para acabar no que chamo de corpo coletivo, baba antropofágica ou canibalismo”. 32 No período, Clark fazia psicanálise com Pierre Fedida, que em 1972 publica “Le cannibale mélancholique” no número Destins du cannibalisme da Nouvelle Revue de Psychanalyse. 33 Suely Rolnik tece observações sobre o corpo na obra de Clark: “descubro que o corpo em que fui lançada e do qual Lygia tanto fala não é o corpo orgânico, nem a imaginária, que constituiria a unidade de meu eu. E, mais ainda, são exatamente estes corpos que foram se desmanchando em mim, diluindo-se na mistura das babas. O corpo vivido nessa experiência está além deles todos, embora paradoxalmente os inclua: é o corpo do emaranhado-fluxos/baba em que me desfiz e me refiz”. 34 Por seu turno, Maiolino e Pape deslocam o canibalismo para plano social. No filme Eat me, a Gula ou a Luxúria (1975) de Pape, a sedução e outros jogos do desejo se deslocam do território da afetividade para a política de gênero. O “canibal melancólico” de Fedida já não estaria no campo do desejo, mas no espaço machista e patriarcal e nos papeis atribuídos à mulher. No filme In-Out (Antropofagia) de Maiolino, o canibalismo social toma a forma de canibalismo linguístico tirânico, no oposto histórico da negociação com as diferenças propostas pela antropofagia. Em In-Out (Antropofagia), Maiolino usa câmera fixa em close-up para apresentar uma boca, ora do homem ora da mulher. O filme não tem sequência lógica. Cada parte é um ponto. Inicialmente, a boca em In-Out (Antropofagia) está fechada por esparadrapos. Há censura, silêncio, grunhidos. In-Out (Antropofagia) mescla asfixia, afasia, traumas, esforços de fala, discursos mudos não articulados. Próximo de um grau zero da linguagem, Maiolino produz um confronto com agressividade para depois introduzir doçura. Algumas palavras são balbuciadas e entreouvidas: “eu”, “Anna”. Os sons informes se organizam para afirmar o sujeito. A tentativa é descobri a fala. Há uma cena de sua impossibilidade com um ovo na boca. Há um fio que se engole. Se há um homem e uma mulher, no entanto, quem se comunica com o mundo é sempre ela pela palavra, o ovo, o fio que entra e sai. A linguagem humana é sem exterior: é um lugar fechado. 35 A impossibilidade de dizer e o dizer constrangido pela censura esforçam-se em produzir discurso com qualquer movimento vital ou fragmento de signo: cor, comer, vômito, fumaça, batidas do coração. Ainda assim, o filme de Maiolino difere da representação de deglutição e abjeção do “cinema marginal”. A cena da boca com fio em In-Out (Antropofagia) informa que sua topologia linguística sai dos desenhos com linhas de costura de Maiolino, mas também troca sentidos com a Baba Antropofágica de Clark. O clima de censura e morte do filme, no entanto, afirma a pulsão de vida infiltrada no território político. É busca dramática da linguagem e exacerba a situação da fala sub censura. Diz Roland Barthes que o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer. 36 Sob um regime de repressão, a obra de Maiolino afirma própria hipótese de fala: produzir arte implica também em reivindicar o direito de expressão e sua existência política. In-Out (Antropofagia) remete ao silêncio e ao vazio dos desenhos para enfatizar a irredutibilidade da liberdade e da opinião. Decifra-me ou te devoro. A crise linguística instalada por Maiolino em In-Out (Antropofagia) tem sua raiz no regime totalitário estabelecido em 1964 no Brasil, que produziu (entre outras atrocidades) um index de assuntos e palavras proibidos. Remete ao canibalismo como metáfora de devoção política do cidadão pelo Estado. Estão nessa anatomia, que remete às noções de “corpo sem órgãos”, obras de Antonino Manuel, Cildo Meireles, Ivens Machado, Barrio, ou Ana Vitória Mussi, que inscrevia luto em fotografias de esportes. Enquanto o lugar de dicção em desafio ao silêncio imposto, a condição descrita por George Steiner – “man is set back in a landscape without enchoes” 37 – In-Out (Antropofagia) deve ser articulado ao cinema de Glauber Rocha e a Tiradentes: totemmonumento ao preso político de Cildo Meireles. 38 No plano latino-americano, a obra de Maiolino também evoca a série de gravuras Tortura Uruguai de Luis Camnitzer. Para Meireles, urgia convocar o simbolismo da liberdade vinculado a Tiradentes. Ele trabalhava com uma noção de “gueto” em que sua obra enquanto a voz possível de um preso numa cela solitária e cujo grito se mantinha detido, não por mera falta de ar, mas pela impossibilidade de presença de ouvidos solitários. Os bonzos que ateavam fogo às próprias vestes em protesto contra a presença dos Estados Unidos na guerra do Vietnã, Tiradentes de Meireles e In-Out (Antropofagia) de Maiolino são métodos de produção de linguagem no processo de desumanização da língua pelos regimes de tirania. Constituem uma rejeição total à sublimação estética. VII. Com instalações como Monumento à Fome (1978), Prato do dia (1979), Feijão com Arroz (1979), Criação (1979), Entrevidas (1981), De Vita Migrare (1975-76) e Anno MCMXCI (1991), a obra de Anna Maria Maiolino expande-se a outras dimensões do real, sobretudo no que toca à questão da fome, inscrevendo-se assim numa tradição rica, ainda que triste, a arte brasileira. O referencial mais remoto para Feijão com Arroz seria Josué de Castro, autor da Geografia da fome, que foi um dos contribuintes da Revista de Antropofagia de Oswald de Andrade nos anos 1930. Uma literatura sobre a fome passa por Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto. O poeta concreto Haroldo de Campos, em Servidão de Passagem (1961), escreve versos como: poesia em tempos de fome fome em tempos de poesia Parafraseando Haroldo de Campos, diríamos que Feijão com Arroz é “arte em tempo de fome / fome em tempo de arte”. Em Feijão com Arroz, havia quadro mesas onde se comia arroz e feijão, o alimento básico de milhões de brasileiros. A duração da amostra transforma-se no tempo de germinação do arroz e feijão nos pratos com terra na mesa enlutada central. Nessa instalação como alhures, a fome é vinculada ao luto político na obra de Maiolino. Feijão com arroz alude ao modelo econômico da ditadura militar de concentração de renda para financiar investimentos para apenas depois ser distribuído à massa de indivíduos. É a teoria do “bolo” do Ministro Delfim Neto. A um grave custo social, inclusive da fome, preconizava-se primeiro fazer o bolo para depois reparti-lo. Os elementos de Feijão com Arroz – alimento sobre uma mesa – permitem referir à obra Analogia IV (1972) de Victor Grippo, uma mesa com batatas naturais e simuladas em material transparente. Este artista argentino, com quem Maiolino estava casada de 1984 a 1989, fez instalações para projetar significado social sobre o processo de metabolismo da batata, assim dialogando com Beuys e seu uso simbólico da energia. Em Vida-Muerte Resurección (1980), o experimento de Grippo implica em recipiente de chumbo em forma geométrica, contendo grãos e sementes. Eventualmente, a germinação – processo também essencial a Feijão com Arroz de Maiolino – termina por fazer explodir o objeto. De certo modo, a obra fílmica do cineasta Glauber Rocha está próxima da pauta de Maiolino relativa à fome, a diferença sendo que o último estabelece uma fricção crítica entre a fome e a violência. “Pensar a fome talvez seja a mais ambiciosa proposta de Glauber Rocha”, diz Ivana Bentes. “Dela deduz o transe do pensamento. Na estética da violência de Glauber se produz uma ética do intolerável. A fome sofre transmutações e torna-se metáfora do desejo e do devir revolucionário”. 39 Em seus filmes, a violência social ou política não é trabalhada por metáforas sublimatórias, mas por atos concretos. Há fome em toda sociedade de grandes abismos sociais, mas há outra fome essencial como protótipo das pulsões de autoconservação às quais se vincula Entrevidas (1981), outra instalação de Maiolino. VIII. No extremo oposto das pulsões de morte frontais de In-Out (Antropofagia), em Entrevidas (1981). Anna Maria Maiolino proclama as tensões das pulsões de vida. O território se conforma aí através de centenas de ovos de galinha (70 dúzias), espalhados pelo chão em espaço semi-regulares para permite a passagem das pessoas. A atmosfera aconchegante de Entrevidas é conferida pelo toldo de tecido cru, abrigo que irradia luz suave. 40 Um pedestal sustenta um prato branco com ovos galados, presença da fecundação. A caminhada entre os ovos torna-se, pela fragilidade deles, um processo de tensão ascendentes, que se acumula a cada passo dado, como num campo minado, transformando retornar ou avançar em atos da mesma ordem. O desafio de obra é a espacialização linguística da expressão em Português “pisar em ovos”, isso é, “conduzir-se com cautela, diplomacia, habilidades, por trata-se de situação delicada ou constrangedora”, na definição do Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Entrevidas surge na época dita “abertura democrática” da ditadura de 1964, que implicava no relaxamento dos amplos poderes do Estado sobre os indivíduos. Entrevidas ecoa o trauma do discurso encontrado em In-Out (Antropofagia), sinalizando que o protesto da sociedade civil havia começado a se fortalecer contra o regime militar, o qual, atravnés do terrorismo de Estado, havia eliminado as demandas por mudança sociais estruturais. Entrevidas antecipa o projeto de instalação América (1992) de Cildo Meireles, para um espaço com chão coberto por milhares de ovos de madeira pintados de branco e com um teto forrado por milhares de balas de fuzil. A artista comparou os aspectos simbólicos de sua instalação a Fine de Dio de Fontana, uma forma oval dilacera por furos: “tudo que termina se transforma. Na nossa natureza nada se perde. Na negação há afirmação”. 41 Noutro lugar, diz ainda: “Sinto a nostalgia de um espaço maggiore [principal, tanto mais], um espaço de futuro, uma via de otimismo. Onde expressar o ser, a natureza, num só ato criativo – orar e trabalhar – em um só ato integrador. Descobrir na liberdade: ‘o poder de ser causa’ de que fala Teilhard, que une o ser com o fazer. Na espera, fico neste trabalhar no nada. Pintado, repetindo a forma oval, o zero, primas formas, embriões, doadores de vida”. 42 Experimenta-se em Entrevidas algo do “pensar com o corpo” anotado por Ferreira Gullar. 43 Indivíduos e espaços se fundem como tensão, remetendo também à pintura Ovo linear (Unidade) (1958) de Clark: um círculo negro, circulando por uma linha-luz branca periférica, que não se fecha e estimula o esforço do espectador para fechar o espaço. A própria artista descreve esse projeto espacial: “Quando temos um círculo tende a não se fechar para nós, porque as extremidades da linha-luz, percpetivamente, distorcem a superfície do círculo”. 44 Assim, a tensão do caminhar em Entrevidas, na fenomenologia dos sentidos, estaria no campo do proprioceptivo, que eriça as preocupações e inquieta todo corpo no seu ato de estar em movimento neste espaço. Entrevidas, tal como A Casa é o Corpo de Clark, projeta a experiência do nascer e lida com etapas da constituição de um novo ser. A obra de Maiolino é evocativa de uma “agonia primitiva”, conceito desenvolvido por D. W.Winnicott. Em Entrevidas, vagueia-se num território linguístico que beira o pré-verbal e o não-verbal. Na “arquitetura vivente” de Clark estão fases da gestação: Penetração Ovulação, Germinação e Expulsão. (Note-se também que a Fantasmática do disco de Cildo Meireles, Sal sem Carne, é semelhante à de A Casa é o Corpo, 45 pois trata da harmonia primal) Clark disse: “meu trabalho não está longe da violência sexual porque libera instintos reprimidos, mas não está forçosamente ligado ao prazer. Tudo depende, logicamente, dos participantes: o exotismo pode ser negado em favor do lúdico, e vice-versa”. 46 A hipótese destrutiva em Entrevidas distingue-se, mesmo sendo aproximada, da voracidade canibal que já se anunciara no texto Morte do Plano (1960). Clark admite a devoração da geometria representada por “esse retângulo em pedaços; nós o engolimos, o absorvemos em nós mesmos”, 47 tema que ela tratará depois em Baba Antropofágica e Canibalismo (1973). No texto Sobre o canibalismo, Clark observa que “a tranquila fase oral-erótica de mamar desemboca sobre uma fase canibalesca. Eu penso que o canibalismo não é somente ao serviço do instinto de conservação, mas que os dentes são ao mesmo tempo as armas que servem às tendências libidinosas, instrumentos que ajudem a criança a penetrar o corpo da mãe. (...) No primeiro contacto com o seio, a criança procura penetrar à procura do ventre, abrigo poético perdido; não podendo penetrar, introjeta-se, começando a fase canibalesca”. Clark aduz que vida e canibalismo estão associados, pois, qual um ovo, “o ventre é o abrigo poético de toda a matéria, envolve o feto e a forma”. 48 O objeto frágil – o ovo – é a densidade ao espaço, agora transformado em campo fantasmática. Maiolino havia vinculado sua obra ao modo com Freud trata de Eros como instinto de vida e Tânatos como seu oposto, instinto de morte. 49 Um ovo justapõe imagens arquetípicas fortes, produzindo, em Entrevidas, um estranhamento que evoca o Unheimlich da teoria de Freud. Esses sussurros do estranho já estavam também, de modo fantasmagórico, em In-Out (Antropofagia). Na produção de Maiolino, a fala se desloca agora do espaço topológico da dicção possível para o silêncio expressivo. Esse momento pré-verbal na obra de Maiolino merece ser referido à estruturação do self desenvolvida por Lygia Clark através dos objetos relacionais a partir de 1976. Respeitado o silêncio, diz Clark, “a estruturação do self se dá no espaço pré-verbal”. 50 Nesse espaço de pré-signo e pré-linguagem, uma “doença da alma” já se prenuncia. Entrevidas constitui o espaço privilegiado do imaginário e do simbólico em que se desenrola o esforço de subjetivação. 51 IX. Desde os primeiros relevos (1989), a massa, como o pão, tem sentido primordial para Anna Maria Maiolino. 52 Amassar a pasta úmida é seu gesto arquetípico, como são fazer o pão, socar a casa de terra crua, moldar vasilhas e dar forma aos deuses. Seu repertório de materiais passou a incluir o gesso, matéria preparatória da escultura moldada; o cimento, material da engenharia moderna; e o barro, matéria ancestral. Surgem, pois, obras em gesso (No Círculo, 1989), cimento (A sombra do Outro I, 1993-1999, cimento moldado) e argila (Mais Estes, 1996, com 600 kg de argila modelada). Dessa massa de terra úmida emergem relevos, sólidos geométricos, rolinhos, cobrinhas, fios, objetos, coisas, pedaços, módulos, porções, buracos e vazios. Quando Maiolino passa a trabalhar com pasta úmida, o ambiente no Rio de Janeiro estava marcado pela produção de Celeida Tostes e Ivens Machado. A cerâmica radical de Tostes apropria-se de formas naturais (como a casa do pássaro Furnarios rufus, o joão-debarro) e do barro para realizar objetos, instalações, performances (como a de um nascimento, no qual a artista sai de uma grande vasilha coberta de barro mole) ou escultura social com comunidades de favela. Ivens Machado produziu esculturas que incorporavam o vocabulário da arquitetura vernacular das favelas, seus materiais (cimento, azulejos e vergalhões) para criar esculturas brutalistas e sensuais de ameaçador equilíbrio instável, diagrama do próprio tecido urbano. Recentemente, Maiolino tem contribuído para o florescimento da escultura brasileira com os seus projetos políticos e conceituais. Maiolino não exclui aqui um viés de identidade cultural que sabe fragmentada. Para ela, o gesso, o cimento e a argila são massas úmidas da família da pasta, o elemento básico da cozinha italiana. A própria artista rememora a formação do solo da região de Scalea onde nasceu: “O mito cavernicoulo sobre as cavernas juntando a ideia de volta ao seio da mãe Terra depois da morte. Quando começo a trabalhar com o molde, ele é um corpo oco, que guarda a memória do positivo que saiu. A fenda do molde, a caverna do corpo da escultura tem relação com a caverna na terra e o mito de parir da terra. Nasci num lugar cheio de cavernas pré-histórias. Perto de Scalea há descendentes daqueles povos. No Sul da Itália há várias igrejas em caverna. A gruta como amparo e transcendência. Como o solo da Itália é vulcânico, há muitas cavernas”. 53 Assim, as obras trabalhando com buracos e o vazio já não conotam a tensão política dos desenhos dos anos 1970, mas se afirmam como região da memória atávica e lugar da fantasmática. A topografia de Scalea é um útero terral, sutil matriz de identidade cultural. A partir de 1991, novas questões são postas em seu trabalho com a massa úmida. Em obras como (1 + 1 + 1) (1991) e Capa 6 + 1 (1991), Maiolino passa a se submeter à poética das unidades de volume e a utilizar a técnica do rolinho, que é uma tecnologia de grupos nativos da Amazônia. Maiolino libera os objetos de seu caráter de “relevo” enquanto um lugar e coisa predominados na parede. Tornam-se coisas do/no mundo. Surgem entre o caos iminente de massa e a ordem de petrificação. Neste momento, Maiolino assumiu seu aprendizado com o saber arcaico indígena no fabrico de vasilhas para a constituição de seu vocabulário visual, porém sem buscar padrões estéticos na cerâmica dos nativos, como ocorrera na pintura de Vicente do Rego Monteiro. 54 Maiolino se alinha aqui com a tradição do projeto de identidade do Brasil, que incorporou uma agenda relativa aos povos nativos do Brasil. Nessas obras, Maiolino relembra a “crítica do Programa de Gotha” de Karl Max, onde se afirma que a emancipação do trabalho demanda a produção dos instrumentos de trabalho ao nível da propriedade comum da sociedade. 55 A obra de Maiolino, Grippo ou Cildo Meireles explicita como o trabalho compõe o valor de troca. Em Algunos Ofícios (1976) Grippo reúne arte e trabalho, o diálogo do homem com suas ferramentas como um ritual. Maiolino, como Grippo, une o Homo faber de Hegel à vontade matéria (“volonté matérique”) de Gaston Barchelard no processo de dominação e alteração da naturaza. A massa de cimento, argila ou gesso, cada uma tem seu tempo próprio de vida, como “pasta ótima”, no seu fugidio estado ambivalente entre o duro e o mole. Com Codicilli (19932000), Maiolino encontra a escritura na pasta macia da própria massa. O mesmo ocorre com as especificações técnicas e títulos das obras de Maiolino com argila, que indicam quantidades: 3.500 kg de argila empregada no projeto São estes (1998) ou Poderia ser mais que estes (1997). Na obra de Maiolino, peso, massa e tempo – se tornam mera medida da experiência do fazer, não como valor agregado de matéria-prima ou ufanismo matérico. A Maiolino interessa a solidez íntima dos materiais, seja ele uma folha de papel, um ovo ou terra crua entre suas mãos. As instalações de Maiolino guardam-se isentas da síndrome de Richard Serra, que atendem a afligir a arte brasileira contemporânea, mesmo quando ela usa toneladas de argila, como São estes (1998) suas instalações não permitem um efeito totalizante duradouro; pois a massa não se será definitivamente convertida em volumes. A argila é obsessivamente partida e dividida, reunida temporariamente como resultado do trabalho, mas sob a regência da transitoriedade: voltará a ser pó. Maiolino não fixa, com a queima da cerâmica, a forma dessas porções de peso, mais que simples formas de argila. Esses trabalhos de Maiolino guardam algo daquilo que Mary Jane Jacob descreveu na obra de Hesse: “Em sua busca pelo eu e pelo feminino, Hesse precisava encontrar formas ainda desconhecidas, formas que resistissem a se fixar permanentemente”. 56 O trabalho mais recente de Maiolino pode ser analisado em relação a determinadas obras de Lygia Clark, Eva Hesse, Hélio Oiticica, Mira Schendel, Gego, Cildo Meireles e José Resende. Os trabalhos desses artistas são, de certo modo, introspectivos e concentrados, operam com geometria serial e formas orgânicas, semelhantes ao que Jacob denominou “contenção e caos”. 57 Embora recusasse a duração como meio de expressão, Lygia Clark relata que viveu “o fim da obra de arte, do suporte em que ela se expressava, a morte da metafísica e da transcendência, descobrindo o aqui e o agora na imanência”. 58 Ela dirá mais: “Propomos o momento do ato como campo da experiência. Recusamos toda transferência no objeto”. 59 Numa atitude que tem muito da arte brasileira, Eva Hesse diz que “há muitas coisas que prefiro deixar acontecer”. 60 Em Caminhando (1963), Clark dispensa o vestígio do objeto, ao propor ao Outro construir uma cinta de Moebius e depois cortá-la longitudinalmente com uma tesoura, propiciando uma experiência do devir: “O instante do ato não é renovável. Ele existe por si próprio: o repetir é lhe dar outra significação”, afirma Clark. 61 Um Parangolé (1965) de Oiticica é uma estrutura (ou uma capa) para ser dançada e vivenciada ao som de música. Ao discutir a conceito de Nova Objetividade, Oiticica observou que “o próprio ‘fazer’ da obra seria violado, assim como a ‘elaboração’ interior, já que o verdadeiro ‘fazer’ seria a vivência do indivíduo”. 62 Ao avaliar seu processo, Clark declara: “pela primeira vez descobri uma realidade nova não em mim, mas no mundo”. 63 Caminhada (1963), de Clark, ato de tempo imanente, tem desdobramentos na arte brasileira, como as Droguinhas (1966) de Mira Schendel. As Droguinhas são esculturas feitas com folhas de papel retorcidas e amarradas em nós. É um objeto que se arma por puro investimento de energia, sem um modelo estético que não fosse a acumulação dos nós. Na Reticularia (1969) de Gego, hastes de metal se conjugam para se converterem na malha mesmo do mundo ou jorrar maleável qual água em cascata. Como em Accession II (1967) de Hesse e nas Droguinhas de Schendel, as instalações em argila de Maiolino não partem de decisão sobre uma forma privilegiada, mas de um gesto disciplinado e obsessivamente repetido. É seu modo de atuar como tempo imanente ao fazer: “O que está implícito na proposta do trabalho de argila é a continuidade”. 64 A ética da qualidade permeia a obra de Hesse, Maiolino e Meireles. A partir de 1993, as instalações de Maiolino são realizadas com argila natural, não cozida, modelações no próprio local de exposição. A primeira foi Maquete: Estudo para uma instalação (1993) com 100 kg de argila, evoluindo para Muitos, feito com 300 kg na Kanaal Foundation em Kortrijk, Bélgica (1993) até atingir aos 3.500 kg usados em São Estes na XXIV Bienal de São Paulo (1998). Distinguindo-se da escultura de Serra, o peso para Maiolino indica estritamente a medida e proporção de trabalho. O trabalho de Maiolino, não tendo valor agregado pelo trabalho, também não lida com a acumulação de capital através dos materiais. Em paralelo, a obra de Meireles conduz o excesso à produção do absurdo econômico ou a dissolução do valor, como ocorre com as 600.000 moedas de Missão/Missões (How to build cathedrals, 1987). Aqui, o processo de acumulação de capital encontra conotações mórbidas. As bases desse ethos já estavam lançadas por Meireles no Estojo de geometria (Neutralização por oposição e/ou adição, 1987), que demonstra os resultados perversos da acumulação de lâminas e oposição de objetos cortantes e perfurantes como operação de neutralização da capacidade do corte e da eficiência. Nos furos da sua caixa Accenssion II (1967), Hesse enfiou e prendeu mais de 30.000 tubos plásticos, confrontando-se com o excesso e o caos. Na economia de Maiolino, alguns títulos quantificam com precisão os volumes: Um em Um (1991), 1+1+1, Dois n. 1 (1995), Um + dois (1991), Três em um (1991), 200 outras configurações (2000), São 340 (2000). Outros se marcam por cálculo aproximativo, como se perdidas as contas: Mais de 100 (1993), Mais de Mil (1995), Poderia ser mais que estes (1997). Alguns títulos já inviabilizam referências contábeis, como Muitos, mais, estes, ainda mais estes (1996). Finalmente, a quantificação é muito ou nada, como em Um nenhum cem mil (1993), ou serve para afirmar a socialização da economia: Sombra do outro. No trabalho de Andy Warhol, a quantificação, conforme os títulos, simula um processo de cálculo de produção ou estoque, não de trabalho dispendido, como em Five coke bottles ou 210 Coca-Cola Bottles (1962). No entanto, o título de uma obra de Warhol da série de Mona Lisa elucida seu ethos da celebração da acumulação capitalista. Thirty are better than one (1963). Isso permite distinguir a posição de Warhol da de Maiolino. Para ela o trabalho é compreendido em conexão com o problema da auto-consciência, que, segundo Hegel na sua Fenomenologia do espírito, “is desire held in check, fleetingness staged off; in other words, work forms and shapes the thing”. 65 Com Maiolino, a argila está no estado material impermanente. Similar foi a proposta de José Resende em Arte Cidade (1994) de empilhar e reempilhar grandes blocos de granito com um guindaste durante dez dias consecutivos. O dispêndio de energia era a obra em si. Os trabalhos com argila de Maiolino condensam o tempo na massa trabalhada, concentração e evidência do investimento de esforço e tempo no trabalho fadado à dissolução pela efemeridade. Tais obras de Clark, Oiticica, Hesse, Maiolino e Resende permanecem em “estado emergente”, expressão de Jacob. Maiolino não cozinha o barro, portanto não faz cerâmica, porque não busca o endurecimento, a resistência ou a permanência das formas infligidas à argila. As instalações de Maiolino são puro fazer: “o destino da argila é secar e voltar a ser pó. O princípio do fazer”, conclui. 66 Não cozinhar a terra significa também seu equilíbrio com a physis. X. Uma estranha árvore foi encontrada na Tijuca, no Rio de Janeiro, a maior floresta urbana do mundo. A árvore floresce como a jaboticabeira (família das mirtáceas, Myrciaria cauliflora), deitando seus frutos generosos pelo tronco, mas organizados como grande cacho de bananas. Exemplar único da espécie desconhecida até o ano 2000, a árvore foi denominada Aqui estão (1999). A Floresta da Tijuca, onde se constatou a existência da nova espécie vegetal, não dista do sítio de um homem que, amando as plantas, fez um jardim só de pedras. 67 No entanto, ninguém se decepciona em descobrir, no meio da floresta luxuriante, que Aqui Estão é uma árvore de falsos frutos. É arte. Esta árvore não surge de nenhum enxerto que cruzasse espécies de frutas, mas os frutos de Aqui Estão são reafirmativos da multiplicidade das medidas. É contrária à unidade de medidas que seria o fruto. É uma árvores que deu frutos feitos em várias espécies de madeiras, como cedro, ipê, imbuia, cerejeira, pau-marfim, que são a Cedrela fissilis, Tabebuia da família da binoniáceas; a ocotea porosa, do gênero Prunus; e a rutácea Balfourodendron riedelianum. Não são frutos da mesma espécie, gênero ou família. 68 Os frutos estão aí como um tipo de erva daninha, espécie distinta da árvore. A árvore de Maiolino não centra, mas reforça a noção do rizoma, não só no modelo de sua obra em quatro décadas, mas porque essa árvore, pela multiplicidade de frutas, vira hipótese rizomática de si mesma. Os frutos de Aqui Estão fogem a qualquer taxonomia. Não estão aí por filiação a um gênero ou família, mas, como rizoma, 69 por aliança entre si para formar a penca de diferenças. Os frutos de Aqui Estão são madeira-de-lei. Serão alimento difícil de insetos como o cupim. Maiolino reescreve uma história natural dos jardins, cuja dinâmica não se faz por sistemas da natureza (polinização, transporte de sementes e mudas pelo ar, insetos, morcegos, pássaros, quadrúpedes e o homem), mas como história natural produzida culturalmente. A efemeridade de Aqui Estão é sua entrega á devoção pelos insetos, tanto quanto os pedaços de argila cortados passarão à condição de pó. A árvore Aqui Estão está no Museu do Açude, num parque de esculturas que inclui obra de Hélio Oiticica, Tunga e Iole de Freitas. 70 No Brasil, o paisagista Roberto Burle Marx ganhou presença internacional com seus desenhos de canteiros sinuosos, que buscam a presença orgânica, natural e pictórica das plantas. Oiticica incluiu plantas simbólicas dos cultos afro-brasileiros na formulação do grande espaço edênico de Tropicália (1967). Seu projeto Cães de Caça (1961) propunha um “jardim abstrato”, disse Frederico Morais, onde estariam plantadas obras de outros artistas. Tendo sido aluna de pintura de Roberto Burle Marx, pode-se observar desde então a emergência de preocupações orgânicas de Clark. Floresceram no Brasil os jardins de pedra de Burle Marx; os jardins mortos de Franz Krajcberg, contestando a destruição da natureza no país; e os Frutos do Espaço (1980) de Antonio Manuel, estruturas que evocam o design gráfico de jornais e a arquitetura precária das favelas. Estas obras foram primeiro montadas num jardim criado ao custo da expulsão de uma favela. Ku kka Ka kka(1999), de Cildo Meireles, confronta o sublime e o abjeto, o natural e o artificial, o fecundo e o estéril em jogo alternado de odores de flores naturais e artificiais e de fezes naturais e artificiais Maiolino havia trabalhado com plantas vivas em Feijão com Arroz. A natureza é seu lugar de desejo e da linguagem. Frente ao “determinismo natural” no Rio de Janeiro, seus artistas, como os urbanistas da cidade, reinventam a natureza com inteligência poética, como os jardins de Burle-Marx, os Bichos de Lygia Clark ou a árvore de Maiolino. A arte é como a vida, que é um rio, que é a linha, que é um pensar, que é o fluxo de energia, que é o trabalho, que é a escrita, que é um rizoma, que é um labirinto, que é o corpo, que é a experiência, que é “o cheio do oco”, que é a vida, que é a arte no processo de Anna Maria Maiolino. 1 Em conversa com o autor em 1 de abril de 2001. Op. cit. nota 1 supra. 3 Op. cit. nota 14 supra. 4 Veríssimo de Mello. “Literatura de Cordel – Visão histórica e aspectos principais” in: Literatura de Cordel Antologia. Fortaleza: Banco do Nordeste, 1982. (p. 13) 5 Riva Castleman parece reconhecer a qualidade singular da obra de Samico ao incluir uma de suas obras entre 68 ilustrações de seu livro Prints from Blocks, Gauguin to now. Nova York: The Museum of Modern Art, 1983. (plate 46) 6 Op. cit. nota 14 supra. 7 Entrevista de Barrio a Paulo Herkenhoff em 22 de fevereiro de 1994. 8 Encontrei Clark inúmeras vezes na casa de Anna Maria Maiolino na década de 1970 e sobretudo nos anos 1980. 9 Paulo Herkenhoff. Nova figuração / Buenos Aires. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1987. 10 Op. cit. nota 1 supra. 11 Ver Michel Foucault. Vigiar e Punir. Edição brasileira. Petrópolis: Editora Vozes, 1977. 12 Em conversa telefônica com o autor em 10 de agosto de 2001, Maiolino diz que “quando eu estava sem poder trabalhar nos Estados Unidos, o Hélio [Oiticica] me dizia: Anna, escreve, porque um caderno você leva no bolso”. 13 Op. cit. nota 1 supra. 14 Ibidem 15 Morte do Plano (1960) in Lygia Clark. Rio de Janeiro: Funarte, 1980. (p. 13) 16 Carta a Rubens Gerchman, em 2 de novembro de 1969. 17 Roberto Pontual. Entre dois séculos - Arte brasileira do século XX na Coleção de Gilberto Chateaubriand. Rio de Janeiro: Editora JB, 1987. (p. 444) 18 Op. cit. nota 14 supra. 19 Carta a Guy Brett em 24/11/1965, in Art in Latin America, London, The Hayward Gallery, 1989. (p. 275) 20 Op. cit. nota 58 supra, p. 33. O olhar é problematizado como processo institucionalizado no campo da arte – “o real da arte”, segundo Brito, que também não pretende uma “transformação social em ampla escala”. 21 Tiradentes, dito “heroi da independência do Brasil”, chefiou a Inconfidência, movimento em Minas Gerais de rebelião contra a Coroa portuguesa. A propósito da obra de Meireles, ver do autor A Labyrinthine Ghetto: The work of Cildo Meireles. In Cildo Meireles. Londres: Phaidon, 1999. (p. 38 e seguintes) 22 In op. cit. nota 34 supra, p. 51. 23 Exemplares dos dois primeiros livros-de-artista de Maiolino estão na coleção do Department of Prints and Illustrated Books of the Museum of Modern Art of New York. 24 Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. plano-piloto da poesia concreta. São Paulo: Noigrandes, n. 4, 1957. 25 Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 22 de março de 1959. 26 Carta ao autor em 24 de maio de 2001. 27 Essa sentença é tributária de Deleuze e Guatarri, op. cit. nota 3 supra, p. 14. 28 Op. cit. nota 36 supra, 1957. 29 Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, plaqueta editada por ocasião da II Exposição Neoconcreta, realizada em 22 de novembro de 1960 no Rio de Janeiro. O não-objeto foi aí definido por Gullar nos seguintes termos: “o não-objeto não é um antiobjeto, mas um objeto especial em que se pretende realizada a síntese das 2 experiências sensoriais e mentais: um corpo transparente ao conhecimento fenomenológico, inteiramente perceptível, que se dá à percepção sem deixar rastro”. 30 Ver Derrida, Escritura e Diferença, op. cit. nota 36 supra, p. 15. 31 Ver Suely Rolnik, Por um estado de arte: a atualidade de Lygia Clark, in: XXIV Bienal de São Paulo: núcleo histórico – antropofagia e histórias de canibalismos. São Paulo: FBSP, p. 456-461. 32 Carta a Hélio Oiticica em 6 de julho de 1964, in: Lygia Clark e Hélio Oiticica – Cartas 1964-74, Luciano Figueiredo (org). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996. (p. 221-222) 33 Paris, Gallimard. 1976, n. 6, PP 123-127. Ver Paulo Herkenhoff, Introdução Geral in: XXIV Bienal de São Paulo: Núcleo histórico – Antropofagia e histórias de canibalismos. São Paulo: FBSP, 1998. (p. 22 e seguintes) 34 Ibidem, p. 457. Rolnik afirma aí estar apelando para a memória das sensações que vivi na Baba antropofágica, obra de Lygia Clark. 35 Roland Barthes. Aula. São Paulo: Editora Cultrix, 1989. (p. 16) 36 Ibidem, p. 14. 37 Extraterritorial, Papers on Literature and the Language Revolution. Londres, Faber and Faber, 1972. (p. 96) 38 Em espaço aberto, Meireles fixou uma estaca de 2,50m sobre um quadrilátero marcado por um pano branco e tendo no topo um termômetro clínico. Ao poste foram amarradas dez galinhas vivas, sobre as quais se derramou gasolina e ateou fogo. 39 “Glauber e o fluxo audiovisual antropofágico” in: XXIV Bienal de São Paulo: Arte Contemporânea Brasileira – Um e/entre Outro/s. Paulo Herkenhoff e Adriano Pedrosa (curadores). São Paulo: FBSP, 1998. (p. 182) 40 A obra foi exibida pela primeira vez em 1981, no Paço das Artes (SP). Tinha cerca de 60 m2. 41 Op. cit. nota 14 supra. 42 In Buenos Aires, 27 de agosto de 1987, manuscrito da artista. 43 Arte neoconcreta uma experiência brasileira (1962) op. cit. nota 2 supra, p. 120. 44 Livro-obra. Rio de Janeiro, Luciano Figueiredo (editor), 1983 45 Lugares de Divagación – Una entrevista con Cildo Meireles, por Niura Enguita in Cildo Meireles. Valencia: IVAM, 1995 (p. 20) 46 L’art c’est le corps in Preuves. Paris, n. 13, pp 143-145. 47 Morte do plano (1960) in op. cit. nota 34 supra 13 48 Sobre o canibalismo (texto datilografado), sem data, uma folha. Arquivo Lygia Clark, Centro de Documentação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. 49 Op. cit. nota 14 supra. 50 In op. cit. nota 34 supra, p. 52. 51 Ver Julia Kristeva, Les Nouvelles op. cit. nota 40 supra, p. 37, parafraseada nesta sentença. 52 A palavra “massa” em português tem múltiplos sentidos, dos dois quais, pelo menos, atinentes à obra de Maiolino: (a) massa enquanto pasta, matéria em estado úmido, isto é, matéria pastosa e (b) no sentido da física, como “grandeza fundamental que mede a inércia de um corpo, e que é igual à constante de proporcionalidade existente entre uma força que atua sobre o corpo e a aceleração que esta força lhe imprime, e cuja unidade de medida no Sistema Internacional é o quilograma”, conforme o Aurélio. 53 Op. cit. nota 1 supra. 54 Na segunda metade do século XX, as cerâmicas indígenas mais difundidas no Brasil eram as dos Carajás, ver, por exemplo, Gastão Cruls, Arte Indígena in As Artes Plásticas no Brasil, vol. I, Rodrigo M. F. de Andrade (organizador). Rio de Janeiro, Instituto Larragoiti e Sul América, p.75 e seguintes. Para relação da cor da pintura de Rego Monteiro com as cerâmicas arqueológicas da Amazônia, ver do autor A cor no Modernismo brasileiro – a navegação com muitas bússolas in XXIV Bienal de São Paulo: Núcleo Histórico – antropofagia e histórias de canibalismos. São Paulo, FBSP, 1998. Ver também do autor The Jungle in Brazilian Modern Design (Miami, The Journal of Decorative and Propaganda Arts, 1995, n. 21, p. 238-259) e A Labirinthine Ghetto: The work of Cildo Meireles (in Cildo Meireles. Londres, Phaidon, 1999, p. 38 e seguintes), inclusive para a pintura do indianismo no século XIX na arte brasileira. Com diferentes perspectivas críticas, podem ser citados ainda artistas como Victor Brecheret, Cildo Meireles, Rubens Gerchman, Anna Bella Geiger, Claudia Andujar, Miguel Rio Branco ou o carnavalesco Fernando Pinto. Na tradição do carnaval do Rio de Janeiro, “carnavalesco” é o artista encarregado de planejar o tema e desenhar toda a parte visual de uma Escola de Samba. 55 “Critique of the Gotha Program” (1875). IN The Marx Engels Reader; Robert C. Tucker (editor), New York, 1978, p. 525-527. 56 Contenção e Caos:Eva Hesse e Robert Smithson in XXIV Bienal de São Paulo: Núcleo Histórico – Antropofagia e histórias de canibalismos. São Paulo, FBSP, 1998, p. 470 e seguintes. 57 Ibidem 58 Texto datilografado sem título ou data, uma folha. Arquivo Lygia Clark, Centro de Documentação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. 59 In Nós recusamos (1968) in op cit nota 34 supra 60 Lucy Lippard, Eva Hesse, Nova York: Capo Press, 1992 (p. 192) 61 1965: Do Ato in op. cit. nota 34 supra, p. 23-24 62 Aparecimento do suprasensorial na Arte Brasileira, in op. cit. nota 90 supra, p. 103-104 63 Caminhando in Lygia Clark op. cit nota 34 supra p. 25-26 64 Op. cit. nota 1 supra 65 G. W. F. Hegel. Phenomenology of Spirit (1807). Tradução de A. V. Miller. Oxford, Oxford University Press, 1977, n. 195. 66 Op. cit. nota 1 supra 67 Trata-se do paisagista Roberto Burle Marx e de seu projeto para os jardins do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro 68 Os frutos são 500 rolinhos de Madeira, que evocam o trabalho anterior de Maiolino com a técnica de cerâmica 69 A propósito dessa questão ver Deleuse e Guatarri, op. cit. nota 3 supra, p. 37 70 O projeto de esculturas no parque do Museu do Açude, antiga residência de Raymundo de Castro Maya, fundador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, vem sendo desenvolvido por Marcio Doctors. O programa inclui, além de Maiolino, obras dos artistas Hélio Oiticica, Barrio, Tunga e Iole de Freitas. Ver o texto de Doctors sobre A Arte da Imanência no catálogo A forma na floresta: espaço de instalações permanentes. Rio de Janeiro: Museus Castro Maya, 1999. (p. 28 e seguintes)