“Ela é uma criatura de Deus e é mulher”: Determinismo

Transcrição

“Ela é uma criatura de Deus e é mulher”: Determinismo
“Ela é uma criatura de Deus e é mulher”: Determinismo Biológico e
Determinismo Tecnológico nas obras de Plínio Salgado
"It is a creature of God and she is a woman is": biological determinism and
technological determinism in the writings of Plinio Salgado
Nabylla Fiori de Lima. UTFPR – [email protected]
Gilson Leandro Queluz. UTFPR – [email protected]
Resumo: Através do lema “Deus, pátria e família”, um forte caráter nacionalista e autoritário, o
movimento integralista brasileiro visava criar um Estado Integral que tivesse na família a sua base,
em Deus a sua moral e na pátria o seu objetivo e organização. Nesse trabalho, analisamos a doutrina
integralista buscando compreender o determinismo tecnológico presente na obra A Quarta
Humanidade, do líder integralista Plínio Salgado, e relacionando este determinismo com os
discursos sobre gênero que apontam para um determinismo biológico, presente na obra A Mulher no
Século XX do mesmo autor.
Palavras-Chave: Determinismo tecnológico. Determinismo biológico. Integralismo.
Abstract: Through the slogan "God, homeland and family", wich has a strong nationalist and
authoritarian character, the Integralist brasilian movement aimed at creating a Integralist State that
had the family in its base, in God its moral and in homeland its objective and organization. In this
article, we analyze the integralist doctrine seeking to understand the technological determinism
present in the work "The Fourth Humanity", written by the integralist leader Plinio Salgado, and we
also relate this determinism with the speeches about gender that point to a biological determinism,
present in the work "The woman in the twentieth century" written by the same author.
Keywords: Technological determinism. Biological determinism. Integralism.
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Introdução
Com características semelhantes ao fascismo europeu e um forte teor nacionalista, o
movimento Integralista brasileiro, liderado, sobretudo por Plínio Salgado, teve um forte apoio
popular na década de 30.
A doutrina Integralista carregava como lema o tripé “Deus, Pátria e Família” e era a partir das
concepções que constituíam esse lema que Plínio Salgado, o principal difusor das idéias
integralistas, através de suas obras de doutrinação política, baseava sua concepção de Estado
Integral, no qual haveria o surgimento da sua utópica “Quarta Humanidade”.
O presente artigo tem como objetivo analisar o determinismo tecnológico presente na utopia
integralista, A Quarta Humanidade, relacionando-o posteriormente com os discursos sobre gênero,
marcados pelo determinismo biológico presentes na sua obra A Mulher no Século XX.
Integralismo
A década de 30 foi, mundialmente, marcada pela crise do capitalismo após a quebra da bolsa
de valores de Nova York em 1929. Em oposição às estruturas estatais vigentes e com um crescente
receio quanto ao crescimento dos partidos de esquerda, houve, na Europa, a ascensão dos partidos
fascistas e do nazismo na Alemanha. No Brasil, em oposição à doutrina liberal da Republica Velha,
surge, além da Aliança Nacional Libertadora de caráter esquerdista, a Ação Integralista Brasileira
(AIB) de caráter autoritário.
O lançamento do “Manifesto de Outubro”, no dia 07 de outubro de 1932, levou à fundação da
AIB, tendo como principais lideranças, Plínio Salgado (Chefe Nacional), Gustavo Barroso e Miguel
Reale. Hélgio Trindade afirma que o Manifesto está apoiado em “dois postulados doutrinários: o do
humanismo espiritualista e o da harmonia da vida em sociedade” (TRINDADE, 1974, p.209). O
humanismo espiritualista, para Trindade, remete a “um retorno do ideal medieval de uma sociedade
harmoniosa” e a harmonia social é resultante da “organização hierárquica da sociedade, em função
das diferenças naturais que existem entre os homens” (TRINDADE, 1974, p.210). A forte relação
com o catolicismo (que podemos ver inclusive no lema principal da AIB - “Deus, Pátria e Família”)
era o que diferenciava o integralismo dos movimentos fascistas. Segundo Gertz (2010, p.29),
“Plínio Salgado fazia questão de dizer que a religiosidade era condição essencial para um militante
do integralismo, ainda que não houvesse preferência por uma doutrina específica”, afirmação que
visava também atrair militantes que não fossem católicos, apesar de na prática ser impossível negar
a relação que a doutrina integralista teve com os preceitos do catolicismo. Assim, para Plínio
Salgado, relacionar a moral cristã com a família, era a “defesa moral do Homem” (SALGADO,
193, p.110). Por causa da família é que o homem não se animalizaria e em respeito a ela não se
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escravizaria. E sem a Pátria não haveria a defesa dos princípios fundamentais da felicidade humana,
que seriam a família e a propriedade.
O integralismo elegeu como principais inimigos a democracia liberal, o comunismo, o
capitalismo internacional e supostas sociedades secretas que estivessem vinculadas ao judaísmo e à
maçonaria (TRINDADE, 1974, p.237). Gustavo Barroso e Miguel Reale foram os principais
integralistas difusores do anti-semitismo, tendo aquele, inclusive, traduzido Os Protocolos dos
Sábios de Sião (texto anti-semita escrito pela polícia secreta do czar Nicolau II em 1897)
(CYTRYNOWICZ, 2010, p.23). O liberalismo, para a doutrina integralista, era a causa do
socialismo. Plinio Salgado, em Quarta Humanidade, compara o marxismo com o liberalismo e
conclui que para sermos anticapitalistas temos que ser também anticomunistas, pois ambos se
inspiraram na mesma filosofia materialista (SALGADO, 1955, p.106). Na crítica contra o
capitalismo internacional, o integralismo se propõe a "transformar o capitalismo liberal clássico
num capitalismo nacional e social controlado pelo Estado" (TRINDADE, 1974, p.245) e coloca
como objetivo da economia não a satisfação do indivíduo, mas sim a da Nação.
O Estado, na concepção dos integralistas, deveria realizar a unidade nacional e, portanto, ser
livre da divisão de partidos políticos e luta de classes. Para a organização do Estado, o Integralismo
sugeria que ele fosse disposto em corporações, tendo cada setor um representante de acordo com a
área de produção e profissões, e a eleição de um Chefe da Nação fosse através de um Congresso
Nacional. (TRINDADE, 1974, p.237).
As idéias autoritárias do Integralismo levaram vários pesquisadores1 a considerarem o partido
como fascista, embora essa denominação tenha sido rejeitada pelo chefe Plínio Salgado. As
divergências quanto a essa denominação, partem do princípio de que o fascismo representa um
desenvolvimento do modelo capitalista ao qual o Brasil ainda não havia alcançado (MAIO &
CYTRYNOWICZ, 2003, pg. 45). Há, ainda, a interpretação do Integralismo como um movimento
em busca da nacionalidade2, - e, portanto, sem poder ser comparado com modelos estrangeiros3.
Porém, apesar da ênfase nacionalista, havia vários militantes italianos e alemães (ou descendentes)
que aderiram ao Integralismo, dadas as semelhanças com o partido atuante em seu país de origem.
Bertonha (2001, p.87) afirma que em 1936, devido ao crescimento político da AIB, o Integralismo
passou, a ser visto com importância e receber apoio, inclusive subsídios, dos fascistas italianos.
A AIB teve uma relevante adesão popular devido aos seus discursos destinados à classe
média, marcados por um contumaz anticomunismo, sem esquecer grupos tradicionalmente
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Maio & Cytrynowicz (2003) citam Trindade (1974) e Araújo (1988).
O integralismo se propunha a criar “uma cultura, uma civilização, um modo de vida genuinamente brasileiro”
(Manifesto apud Trindade, p 219). A ideologia integralista via o cosmopolitismo como o principal inimigo do
nacionalismo e considerava os índios originais e autênticos brasileiros.
Nessa vertente, Maio & Cytrynowicz (2003) citam José Chasin (1978) e Antonio Rago (1989).
excluídos da política tradicional como analfabetos, mulheres e crianças. Em relação ao
anticomunismo, houve um relevante crescimento da aderência popular ao integralismo, depois da
revolta comunista (1935), atingindo entre 500 mil e 800 mil membros, de uma população de 41,5
milhões de habitantes em 1935 (Hilton apud: MAIO & CYTRYNOWICZ, 2003, pg. 42).
Pretendendo atender e representar a população, o Integralismo colocava a classe média, que
não estava inserida na política tradicional, como um de seus públicos principais. A classe média era
para Miguel Reale a “portadora da Idéia”, vendo-a como “a presença da sociedade política no
interior da sociedade civil, mediadora entre o Estado e as demais classes através da função do
governo, da administração e da justiça” (CHAUÍ, 1978, p.58). Marilena Chauí aponta-nos, todavia,
a impossibilidade da classe média ser portadora de um projeto político autônomo - “a
heterogeneidade da composição, a ambigüidade ideológica, a “despossessão” econômica, o medo da
proletarização e o desejo de ascensão fazem da classe média não apenas uma classe conservadora,
mas visceralmente reacionária.” (CHAUÍ, 1978, p.59) No entanto, entre fascismo e comunismo, a
classe média opta pelo fascismo, visto que, para Chauí, a consciência política desenvolvida em
circunstâncias como as que tal classe se encontrava, acaba por ser sempre conservadora. (CHAUÍ,
1978, p.67)
O Integralismo, ao contrário de alguns partidos da época, aceitava também, como integrantes,
militantes negros, mulheres, jovens e até crianças - quanto a estes três últimos, eram chamados
dentro da AIB "Plinianos" e tinham um setor responsável por eles. (CAVALARI, 1999, p.66)
A educação era essencial para os objetivos do Integralismo. Através dela é que se promovia a
doutrinação das massas integralistas e a formação das elites, além da exaltação de valores como
obediência e disciplina. Ao Departamento Feminino caberia a qualificação das mulheres (chamadas
“Blusas-Verdes”) não-eleitoras e a alfabetização de (futuros) eleitores - “Através da alfabetização
rápida buscava-se ensinar os brasileiros a ler e a escrever, não para elevar o seu nível cultural (…),
mas para que ele pudesse obter seu título de eleitor” (CAVALARI, 1999, p.65) Ao Departamento
dos Plinianos, por sua vez, caberia educar os brasileiros de até 15 anos de idade. A educação do
integralista adulto, no entanto, era feita por homens através da doutrinação. (CAVALARI, 1999,
p.66)
O Integralismo não se apresentava como um partido político, mas sim como um movimento
de cultura. Em 1936, com a pretensão de concorrer às eleições presidenciais em 1938, a Ação
Integralista Brasileira tornou-se partido político, elegendo um considerável número de vereadores,
prefeitos e deputados estaduais nas eleições desse mesmo ano. Com o golpe de estado de Vargas
que levou os partidos políticos existentes à extinção, Plínio Salgado registrou o partido como
Associação Brasileira de Cultura (Trindade apud: MAIO & CYTRYNOWICZ, 2003, p.48). Em
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maio de 1938, uma tentativa fracassada de golpe ao governo do Estado Novo, resultou na prisão de
militantes e do chefe Plínio Salgado, que acabou exilado em Portugal.
O determinismo tecnológico na “Quarta Humanidade”
Para disseminar as ideias integralistas e formar os militantes, Plínio Salgado produziu um
número considerável de obras que vão desde obras de explícita doutrinação, como Quarta
Humanidade (1934) e O Integralismo Perante a Nação (1945), a obras literárias como O cavaleiro
de Itararé (1933) em que a ideologia integralista é apontada indiretamente. Para este trabalho,
decidimos analisar as representações de tecnologia, especialmente o determinismo tecnológico, na
obra Quarta Humanidade. No entanto, no decorrer da pesquisa, nos deparamos com a sua obra
publicada em 1946, denominada A mulher no século XX e notamos a importância discursiva das
mulheres na ideologia integralista. Optamos, então, por fazer a relação entre ciência e tecnologia na
concepção da sociedade integralista, e num segundo momento abordar o papel destinado às
mulheres nessa doutrina, considerando, então, a tecnologia não “apenas como um sistema de
máquinas com certas funções, mas também em seu aspecto de dinâmica inter-relação com a
construção social da realidade” (QUELUZ, 2010, p.27).
Em Quarta Humanidade, Plínio Salgado apresenta-nos as três humanidades afirmando que
estamos, agora, caminhando para uma quarta. A primeira humanidade foi a Politeísta, em que o
homem era subordinado da natureza e apresentava um caráter de adição - “na primeira somam-se os
clãs, somam-se os deuses, somam-se as províncias, somam-se as causas” (SALGADO, 1955, p.33).
Na segunda, a monoteísta, todos os elementos se fundem. A terceira humanidade é a atual, ateísta,
tendo como características a desagregação, o individualismo e uma concepção científica do
universo, considerando o Homem sem Deus, com a liberdade humana perdendo seu “sentido de
harmonia e de equilíbrio” e com uma “expansão do egoísmo individual e do despotismo das
massas.” (SALGADO, 1955, p.45). A Quarta Humanidade seria a humanidade Integralista. Este
novo Estado realizaria a felicidade baseando-se “na confiança em Deus, no amor do próximo, sem
precisar excluir os valores científicos, mas subordinando a ciência a um pensamento superior de
finalidade humana”. (SALGADO, 1955, p.65)
Salgado critica apocalipticamente a tecnologia, chamando a atual “era” de “Império da
máquina”, afirmando que “tudo se mecanizará e os governos não mais governarão” (SALGADO,
1955, p.57), devido à submissão dos homens às máquinas. Para o chefe integralista, a vitória do
materialismo na sociedade capitalista liberal se constituiria por meio da máquina, resultando no
desaparecimento da humanidade.
O marxismo e o liberalismo, já criticados pelos diversos motivos que já citamos, são vistos
como velhas concepções que não conseguem acompanhar as mudanças tecnológicas. O
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integralismo, “nessa visão fortemente determinista1, seria a única autenticidade moderna”
(QUELUZ, 2010, p.44)
A Mulher no Século XX
Encontramos essa visão determinista tecnológica de Plínio Salgado na sua obra A mulher no
século XX, combinada a um discurso sobre a mulher baseado no determinismo biológico. Nessa
obra, Salgado, desenvolveria o seu argumento acerca do “progresso acelerado das transformações
técnicas”, ressaltando o despreparo das mulheres para adaptar-se às “novas condições de existência”
criadas. (SALGADO, 1949, p.38)
Salgado afirma que a ciência exige a emancipação da mulher e coloca como os dois erros da
civilização atual a mulher que se prende à feminilidade física e a mulher do extremo oposto, que
busca exercer as funções do homem na sociedade, tornando-se, para ele, uma concorrente do
homem. Assim, afirmaria que a mulher, nesse contexto da Era industrial, estaria em uma posição
inferior ao homem, “ela não se encontra armada para defender os seus direitos em face das
brutalidades de uma época em que é posta em cheque a própria dignidade da pessoa humana.”
(SALGADO, 1949, p. 38)
Para esclarecermos essa inferioridade que podemos encontrar em diversos discursos
androcêntricos, utilizaremos o conceito de gênero, referenciado por Pedro (2005, p.78) como “uma
categoria de análise” inicialmente utilizada pelos movimentos feministas que passaram a utilizar
essa palavra em vez da palavra “sexo”, buscando com isso “reforçar a idéia de que as diferenças que
se constatavam nos comportamentos de homens e mulheres não eram dependentes do 'sexo' como
questão biológica, mas sim eram definidos pelo 'gênero' e, portanto, ligadas à cultura.” (PEDRO,
2005, p.78). Joan Scott afirma que as feministas passam a utilizar essa palavra para se referirem “à
organização social da relação entre os sexos” (SCOTT, 1995, p. 72) sendo gênero, então, “um
elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos” e
também “uma forma primária de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p.86). É
nesse sentido que acreditamos ser relevante analisarmos como o discurso autoritário integralista
aproveita-se do discurso de inferioridade da mulher em relação ao homem que estava em voga nas
décadas de 30 e 40.
O discurso do determinismo biológico que começa a aparecer em meados do século XIX
procurava convencer a mulher da sua vocação para a procriação bem como sua missão de guardiã
do lar, em um modelo imaginário de família (RAGO, 1997, p.75). Rago ainda atenta para o lugar
destinado à mulher – o espaço privado - em contraponto ao do homem – esfera pública e do
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Plínio Salgado busca explicar os fatores sociais e históricos como resultados do avanço tecnológico. (SALGADO,
1955).
trabalho – cabendo à mulher a aceitação das suas tarefas domésticas.
Apesar de criticar o determinismo biológico crasso de alguns pensadores da época, que
buscavam justificar a inferioridade feminina pelo tamanho do cérebro da mulher que seria menor
que o do homem (SALGADO, 1949, p.30) - Plínio Salgado se utilizou do discurso determinista
para afirmar que a função física que distingue a mulher do homem é a maternidade, portanto, sua
ação no meio social deve proceder dessa função, mesmo sem ter filhos – a maternidade é também
uma função moral e não termina no nascimento. O chefe integralista critica a sociedade que faz com
que a mulher abandone o lar para ir para o mundo do trabalho, devido ao baixo salário do marido,
“desviando-a do seu destino biológico e substituindo-a pelas creches e outras organizações, tão úteis
e tão nobres para suprir faltas irremediáveis, porém antinacionais e anti-sociais” (SALGADO, 1949,
p. 98).
Lopes buscou nos “Schema das Theses a serem desenvolvidas pelas “blusas verdes” em todos
os núcleos da AIB” informações sobre as experiências femininas dentro do movimento integralista,
encontrando também excertos que demonstram esse determinismo biológico afirmado por Plínio
Salgado na obra que estamos analisando. Em certa parte desse “schema das theses”, é afirmado que
as tarefas determinadas para homens e mulheres “se distinguem no lar, na sociedade e na Pátria;
essas tarefas não se chocam, pois se originam da natureza própria de cada um” o que significa que
“a mulher tem deveres do seu sexo e direitos de sua vocação.” (LOPES, 2007, p.144)1
Embora a AIB não fosse a favor das teorias feministas – vistas como dissolvente da família e nem das “masculinistas”, afirmando que aquelas negavam que havia diferença entre os papéis
sociais das mulheres e dos homens, e estas esqueciam o valor das mulheres na sociedade (LOPES,
2007, p.141), sua concepção quanto aos papéis das mulheres na sociedade Integral atende aos
modelos “masculinistas” que consideram a mulher como ser inferior incapaz de se adaptar aos
progressos técnicos com a mesma facilidade que os homens, cabendo a elas, então, funções
relacionadas aos cuidados e à maternidade.
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O Integralismo, diferentemente de grande parte dos partidos políticos da época, abriu as portas para a
participação das mulheres embora limitando seus trabalhos dentro do partido e, de certa forma, acabou substituindo o
ambiente privado da mulher pelo ambiente público da política integralista. Ali elas estavam estendendo as suas
atividades na condição de mulher. A AIB é, então, “inovadora no que se refere às relações e às práticas sociais, já que
mantém os valores, mas altera as relações sociais entre mulheres e demais sujeito” (LOPES, 2007, p.148). No entanto,
as militantes integralistas viam nessa abertura um espaço para tornarem-se visíveis e ouvidas tanto nos assuntos da
família quanto nos assuntos políticos, o que nos leva a concluir que as relações de gênero na sociedade se dão por
questões sociais e não pela diferença natural entre homens e mulheres, conforme Scott (1995, p.82) afirma – “as idéias
conscientes sobre o masculino ou o feminino não são fixas, uma vez que elas variam de acordo com as utilizações
contextuais”.
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Na concepção da mulher como cumprindo a função de mãe e formadora dos filhos, para
Salgado, aquelas que vão para as fábricas, escritórios ou comércio, ou seja, que se afastam do lar,
deveriam ser consideradas “como evidente anormalidade biológica” (SALGADO, 1949, p.86).
Rago reitera a valorização que o discurso médico dava ao papel materno colocando-o como um
“sentimento inato, puro e sagrado” e que com a maternidade e a educação da criança as mulheres
realizariam, então, sua “vocação natural” (RAGO, 1997, p.79). Aquela que não cumprisse os papéis
estipulados pela “natureza” estaria inscrita na anormalidade, no pecado e no crime, conforme
Vitorino Assunção, citado por Rago, quando afirma que essas mulheres estariam “contrariando as
manifestações naturais e sacrificando o dever que é sacrificar a si, a prole e a humanidade”
(Assunção apud RAGO, 1997, p.79) - Raciocínio reiterado por Plínio Salgado quanto ao papel da
mulher na sociedade integralista. A elas era cobrado que dessem exemplos aos demais militantes,
tais como a “convicção e o ardor pela causa; de trabalho, iniciativa, esforço, sacrifício e
perseverança; de disciplina, hierarquia, e obediência; de união entre todas as companheiras
prestigiando-se mutuamente” (LOPES, 2007, p.143) além do cuidado com a responsabilidade
masculina, incitando os esposos, filhos, irmãos, a cumprirem seus deveres dentro do movimento
(LOPES, 2007, p.144).
Esse papel da maternidade para o Integralismo se estenderia na educação dos filhos e apoio
aos maridos, ou seja, seu papel na militância integralista seria o de repassar a doutrina do
movimento através da educação dos filhos – e dos demais militantes integralistas, através do
Departamento Feminino e dos Plinianos – e da sua colaboração ao homem. Mesmo aquelas que
necessitassem trabalhar fora de casa não deveriam se esquecer de que estariam fazendo isso para
cooperar com o homem – seja esse um futuro marido ou um filho que um dia viria a criar ou ainda
de alguém que poderia precisar de seus ensinamentos (SALGADO, 1949, p.98) –, como ocorria nos
trabalhos das Blusas-Verdes para a formação de uma massa eleitoral integralista.
O trabalho para a mulher, de acordo com Plínio Salgado, deveria servir como um meio de
auto-educação. Ela conseguiria se unir mais ao seu esposo se fosse útil a ele. Além disso, ela
deveria estar preparada para sustentar a família caso o marido faltasse ou caso se perdesse o
dinheiro da família (SALGADO, 1949, p.98-99).
Esta preocupação com a mulher que abandona o lar combina-se à imagem apocalíptica que
Plínio Salgado faz da tecnologia, levando-o a afirmar que “à medida que o progresso avançava e
que a técnica ia transformando velozmente os processos da vida coletiva, o problema da mulher
mais se complicava” (SALGADO, 1949, p.17). Complementava que, nessa civilização burguesa e
sem Deus – o ateísmo da “terceira humanidade” seria, para Salgado, o responsável pela construção
do mundo moderno com os “filhos do homem” e não os “filhos de Deus” (SALGADO, 1955, p.40)
– a mulher perderia cotidianamente os “fundamentos da sua eficiência mental e da sua grandeza
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moral” (SALGADO, 1949, p.49). Ainda ligada a essa imagem apocalíptica, Plínio Salgado
argumenta que os filhos e as filhas só se farão homens e mulheres dignos se nessa nação houver
mães que cumpram devidamente seu papel de mãe, pois: “uma sociedade constituída de tais
elementos – “mães que não são mães” - pode construir máquinas, arranha-céus e mil confortos
técnicos, mas não constrói uma civilização” (SALGADO, 1949, p.69).
Considerações Finais
O presente trabalho procurou mostrar como a questão do determinismo tecnológico presente
na obra de doutrinação integralista A Quarta Humanidade aliada ao determinismo biológico que
ainda dominava os discursos médicos e científicos do início do século XX, se articularam no
discurso presente na obra A Mulher no Século XX do líder integralista Plínio Salgado.
A forma como Salgado utilizou-se do determinismo biológico para justificar os lugares que
eram destinados às Blusas-Verdes na militância Integralista, fortaleceu seu discurso autoritário na
medida em que se apropriou das diferenças biológicas entre homens e mulheres para significar a
relação de poder masculina dentro da esfera integralista, conforme Scott (1995, p.88) já havia
afirmado ao dizer que é através do gênero que essa significação ocorre.
Plínio Salgado aproveita para fazer a sua crítica à sociedade da época e aos avanços
tecnológicos, culpando-os pela retirada da mulher do lar para a esfera do trabalho, o que
comprometeria a família e, portanto, toda a nação, visto que a família é, para ele, a base da
sociedade integral.
Compreender as representações do determinismo tecnológico que culpa os avanços da
tecnologia – além dos salários insuficientes para os pais de família, que retiravam a mulher do lar
para o trabalho - enquanto grandes responsáveis pela ruptura dos valores morais da mulher, levounos a depreender a importância dada às mulheres no movimento integralista, visto que são elas
quem formariam as famílias, e portanto mereciam uma atenção especial, embora seu papel seja
estipulado com base na crença no determinismo biológico e em um discurso androcêntrico
autoritário. Percepção que nos leva a concluir com afirmação de Joan Scott (1995, p.88), de que “o
gênero é um campo primário no interior do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado”.
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Referências
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