ANO 4 -n.10 - Editora Fórum

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ANO 4 -n.10 - Editora Fórum
10
Revista Fórum de DIREITO CIVIL RFDC
DOUTRINA E ATUALIDADES
A Plataforma BID Fórum proporciona aos assinantes
uma experiência inédita: pesquisar, ao mesmo tempo,
em periódicos, informativos, livros, códigos, vídeos e
conteúdos exclusivos, de forma fácil, rápida e segura,
com acesso ilimitado e simultâneo e adaptada para uso
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Biblioteca Digital Fórum de Direito
Biblioteca Digital Fórum de Livros
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PERIÓDICOS
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Revista Brasileira de Direito Público – RBDP
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Revista de Direito Público da Economia – RDPE
Revista de Direito do Terceiro Setor – RDTS
Revista Fórum de Ciências Criminais – RFCC
Revista Fórum de Direito Civil – RFDC
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Declaramos, para os devidos fins, que a Editora Fórum é
fornecedora exclusiva dos periódicos listados acima, em
todo território nacional, relativamente a todos os direitos
de editoração, distribuição e comercialização, bem
como sobre as marcas das publicações que constam na
declaração de exclusividade.
Business judgment rule e responsabilidade civil do
administrador: ensaio sobre a função...
Ermiro Ferreira Neto
A responsabilidade civil do provedor de aplicações
de internet pelos danos decorrentes do conteúdo
gerado por terceiros...
Chiara Antonia Spadaccini de Teffé
Responsabilidade civil médica diante dos cuidados
paliativos e da ortotanásia
Luciana Vasconcelos Lima
Autonomia existencial do paciente psiquiátrico
usuário de drogas e a política de saúde...
Joyceane Bezerra de Menezes, Maria Yannie
Araújo Mota
A força supralegal da teoria concepcionista no
direito brasileiro
Cláudio José Cavalcante de Souza Júnior
A viabilidade e o conteúdo do testamento vital no
ordenamento jurídico brasileiro...
Amanda Souza Barbosa
Avanços tecnológicos e proteção post mortem dos
direitos de personalidade por meio do testamento
Flaviana Rampazzo Soares, Ísis Boll de Araujo
Bastos
A revisão e a resolução contratual sob a ótica da
onerosidade excessiva
Angelina Cortelazzi Bolzam
Da legitimidade do sublocatário para a consignação de aluguel
Leonardo Mattietto
EXPERIÊNCIA ESTRANGEIRA
Interpretação e o protagonismo da doutrina
António Pinto Monteiro
Trabalho criativo subordinado – A criação de obras
intelectuais em execução de contrato de trabalho
(com uma perspectiva de direito comparado)
Alberto de Sá e Mello
ENSAIOS E PARECERES
Como a metodologia civil-constitucional pode
contribuir para o debate sobre a tutela dos
direitos da personalidade na Internet?
Marcos Ehrhardt Júnior
AGENDAS DE DIREITO CIVIL
CONSTITUCIONAL
Interpretação e protagonismo da doutrina
juscivilista no Brasil – Escorço
Paulo Lôbo
10
Revista Fórum de
DIREITO CIVIL
SETEMBRO/DEZEMBRO - 2015 | PUBLICAÇÃO QUADRIMESTRAL
ISSN 2238-9695
Revista Fórum de
DIREITO CIVIL
RFDC
RFDC
A Revista Fórum de Direito Civil – RFDC nasce
com o intuito de se tornar uma publicação de
excelência, voltada ao Direito Civil. Com um
conselho editorial composto por professores
das mais conceituadas universidades do país
e do exterior, o periódico veicula artigos doutrinários tratando de temas atuais e relevantes,
com isso contribuindo para o desenvolvimento
científico através de um debate de temas contemporâneos que permeiam o cotidiano forense
e ao mesmo tempo merecem atenção de grupos
de pesquisa em diversas instituições nacionais e
internacionais. A estrutura da Revista foi concebida para colocar em destaque textos doutrinários nacionais e internacionais, além de seções
específicas que tratarão da experiência estrangeira e de jurisprudência, pretendendo manter
o leitor atualizado e, assim, tornando-se de leitura obrigatória para aqueles que militam no
vasto campo do Direito Civil. A qualidade seguirá
o selo da Editora Fórum, com larga tradição no
campo dos periódicos jurídicos. Eis a síntese de
uma revista que tem um objetivo: ser essencial
aos que buscam aperfeiçoar-se e ir adiante.
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III Congresso Brasileiro de Direito Civil – Direito
Civil: Interpretação e o protagonismo da doutrina
Assinaturas
ISSN 2238 - 9695
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A (des)consideração do direito à fidelidade do
cônjuge: um contributo à teoria da responsabilidade civil familiar
Raul Cézar de Albuquerque
Ano 4 • set./dez. 2015
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Responsabilidade preventiva: elogio e crítica à
inserção da prevenção na espacialidade...
Marcelo Luiz Francisco de Macedo Bürger
O abuso da cláusula de tolerância nos contratos
de promessa de compra e venda e a retroação...
Tatiane Gonçalves Miranda Goldhar
Revista Fórum de DIREITO CIVIL RFDC
A responsabilidade civil para além dos esquemas
tradicionais: prospecções do dano reparável...
André Luiz Arnt Ramos
RESP nº 1.323.410/MG: revisitando os prazos
renovatórios da locação empresarial
Ana Paula da Silva Liberalino
ANO 4 - n.
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Revista Fórum de Direito Civil – RFDC
Coordenação (Editor)
Dr. Marcos Ehrhardt Jr, UFAL
Conselho Consultivo
Dra. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (FDUSP)
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Dr. José Antônio Peres Gediel (UFPR)
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Correspondentes Internacionais
Msc. Eduardo Dantas
Dr. José Carlos de Medeiros Nóbrega
Msc. Marianna Chaves
Dr. Terence Trennepohl
Msc. Thiago Rodrigues Pontes Bomfim
Equipe Editorial – Coordenadores
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Msc. Jéssica Aline Caparica da Silva
© 2015 Editora Fórum Ltda.
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico ou mecânico,
inclusive através de processos xerográficos, de fotocópias ou de gravação, sem permissão por escrito do possuidor dos direitos de cópias
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Luís Cláudio Rodrigues Ferreira
Presidente e Editor
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R454 Revista Fórum de Direito Civil : RFDC – ano 1, n. 1,
(set./dez. 2012)- . – Belo Horizonte: Fórum,
2012Quadrimestral
ISSN 2238-9695
Esta revista está catalogada em:
• RVBI (Rede Virtual de Bibliotecas – Congresso Nacional)
Os conceitos e opiniões expressas nos trabalhos assinados são de
responsabilidade exclusiva de seus autores.
1. Direito Civil. I. Fórum.
CDD: 347
CDU: 347
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Impressa no Brasil / Printed in Brazil / Distribuída em todo o
Território Nacional
Supervisão editorial: Leonardo Eustáquio Siqueira Araújo
Capa: Igor Jamur
Projeto gráfico: Walter Santos
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Sumário
Editorial................................................................................................................................. 9
DOUTRINA E ATUALIDADES
A responsabilidade civil para além dos esquemas tradicionais: prospecções do dano
reparável na contemporaneidade
André Luiz Arnt Ramos.......................................................................................................... 13
Introdução................................................................................................................ 13
1 O sistema brasileiro de responsabilidade civil hoje...................................................... 14
1.1 O apequenamento da culpa....................................................................................... 15
1.2 O evanescer da relação causal................................................................................... 15
1.3 O dano e sua Verwandlung........................................................................................ 17
2 Percepções da mudança: dano reparável, precedente judicial e segurança jurídica......... 21
3 A concretização da mudança: a dogmática jurídica, a afirmação do precedente
judicial e o sistema de responsabilidade civil brasileiro................................................ 26
4 Apontamentos conclusivos........................................................................................ 29
Referências.............................................................................................................. 30
Responsabilidade preventiva: elogio e crítica à inserção da prevenção na
espacialidade da responsabilidade civil
Marcelo Luiz Francisco de Macedo Bürger.............................................................................. 35
1 Novos anseios, velhas ferramentas: o papel da interpretação na (re)construção da
responsabilidade civil................................................................................................ 35
2 A ressignificação da prevenção pelo Direito Civil contemporâneo.................................. 41
3 Da cátedra à corte: a aplicação da responsabilidade preventiva no direito comparado.... 45
4 A prevenção no Direito Civil brasileiro: elogio e crítica à função e estrutura.................... 50
5 Notas conclusivas..................................................................................................... 58
Referências.............................................................................................................. 59
Business judgment rule e responsabilidade civil do administrador: ensaio sobre a
função da doutrina na construção de modelos jurídicos
Ermiro Ferreira Neto.............................................................................................................. 61
1 Introdução................................................................................................................ 61
2 Modelos jurídicos e responsabilidade civil................................................................... 62
3 Business judgment rule: um modelo possível no direito brasileiro?............................... 65
3.1 Business judgment rule e a boa-fé como elemento nuclear do modelo brasileiro de
responsabilidade...................................................................................................... 69
3.2 Business judgment rule e obrigações de meio............................................................. 71
3.3 Business judgment rule e sindicabilidade dos atos administrativos: possível analogia.... 74
3.4 Business judgment rule na jurisprudência da comissão de valores mobiliários............... 75
4 Conclusão................................................................................................................ 77
Referências.............................................................................................................. 79
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A responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet pelos danos
decorrentes do conteúdo gerado por terceiros, de acordo com o Marco Civil da
Internet
Chiara Antonia Spadaccini de Teffé........................................................................................ 81
Introdução................................................................................................................ 81
1 A proteção da pessoa humana no ambiente virtual...................................................... 82
2 A elaboração do Marco Civil da Internet ..................................................................... 85
3 A orientação principiológica do Marco Civil da Internet................................................. 87
4 A responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet pelos danos
decorrentes de conteúdo gerado por terceiros............................................................. 90
4.1 O provedor de aplicações de internet.......................................................................... 92
4.2 O artigo 19 e a regra da notificação judicial................................................................. 93
4.3 O artigo 20 e o dever de informar .............................................................................. 98
4.4 O artigo 21 e a tutela da pornografia de vingança ....................................................... 99
5 A guarda de registros pelo provedor de aplicações de internet e a identificação
do ofensor.............................................................................................................. 100
6 Considerações finais .............................................................................................. 103
Referências............................................................................................................ 104
Responsabilidade civil médica diante dos cuidados paliativos e da ortotanásia
Luciana Vasconcelos Lima................................................................................................... 107
Introdução.............................................................................................................. 107
1 Cuidados paliativos e ortotanásia: a dignidade da pessoa em face da morte............... 109
2 Princípios bioéticos e a atenção em saúde pelo médico ............................................ 112
3 Responsabilidade civil médica ................................................................................. 115
Conclusão.............................................................................................................. 118
Referências............................................................................................................ 120
Autonomia existencial do paciente psiquiátrico usuário de drogas e a política de
saúde mental brasileira
Joyceane Bezerra de Menezes, Maria Yannie Araújo Mota..................................................... 123
Introdução.............................................................................................................. 124
1 Política de Saúde Mental brasileira e as internações psiquiátricas ............................. 125
1.1 Espécies de internações psiquiátricas...................................................................... 129
1.2 Direitos das pessoas em sofrimento psíquico........................................................... 130
2 Regime de incapacidade civil e a situação do toxicômano.......................................... 130
3 Autonomia existencial do drogadito ......................................................................... 132
Conclusão.............................................................................................................. 135
Referências............................................................................................................ 137
A força supralegal da teoria concepcionista no direito brasileiro
Cláudio José Cavalcante de Souza Júnior.............................................................................. 139
Introdução.............................................................................................................. 139
1 A proteção da vida intrauterina no direito regional latino-americano............................. 140
1.1 Sistema normativo de tutela.................................................................................... 141
1.2 Sistema jurisdicional............................................................................................... 144
2 A proteção da vida intrauterina no direito brasileiro.................................................... 147
2.1 O direito constitucional-civil e os direitos do nascituro ............................................... 149
2.2 Tutela jurisdicional da vida pré-natal......................................................................... 150
2.2.1 Aborto na hipótese de anencefalia na ADPF nº 54, STF.............................................. 151
2.2.2 Fertilização in vitro e a Lei de Biossegurança............................................................. 152
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3 A necessidade de adequação convencional do direito estatal brasileiro....................... 155
3.1 A convencionalização do Direito Civil......................................................................... 156
3.2 O diálogo com os precedentes da Corte IDH............................................................. 157
Conclusão.............................................................................................................. 158
Referências............................................................................................................ 159
A viabilidade e o conteúdo do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro à
luz da Teoria do Fato Jurídico
Amanda Souza Barbosa....................................................................................................... 161
1 Introdução ............................................................................................................. 161
2 Constitucionalização e personalização do Direito Civil e o fim da vida.......................... 162
2.1 Impactos da CRFB/88 no Direito Civil: transição do viés patrimonial para o
existencial ............................................................................................................. 163
2.2 Direito fundamental à morte digna no contexto do direito privado................................ 164
2.3 Diretivas antecipadas de vontade como exercício da autonomia privada e respeito
ao projeto de vida................................................................................................... 165
3 As diretivas antecipadas de vontade: origens, disciplina e natureza jurídicas
no Brasil................................................................................................................ 167
3.1 Surgimento e características das diretivas antecipadas de vontade............................. 167
3.2 Fontes normativas das diretivas antecipadas de vontade no Brasil............................. 170
3.3 Natureza jurídica do testamento vital à luz da Teoria do Fato Jurídico.......................... 172
4 Exame dos requisitos de validade do testamento vital............................................... 175
4.1 Manifestação de vontade livre e consciente.............................................................. 175
4.2 Capacidade do declarante....................................................................................... 176
4.3 Objeto lícito, possível, determinado ou determinável.................................................. 177
4.4 Forma prescrita e não defesa em lei......................................................................... 179
5 Considerações finais............................................................................................... 181
Referências............................................................................................................ 184
Avanços tecnológicos e proteção post mortem dos direitos de personalidade por
meio do testamento
Flaviana Rampazzo Soares, Ísis Boll de Araujo Bastos.......................................................... 189
1 Introdução.............................................................................................................. 189
2 Os direitos de personalidade como voz essencialmente extrapatrimonial..................... 190
3 A dinâmica doutrinária da proteção ao nome, imagem e voz ...................................... 192
4 Avanços tecnológicos e novas expressões da imagem............................................... 194
5 Horizontes da exploração e de proteção póstuma de imagem, nome e voz.................. 196
6 A possibilidade de proteção da vontade pessoal pós-morte: novas feições do
testamento a servir como instrumento para essa finalidade....................................... 200
7 Conclusões: o direito das sucessões como meio de proteção de interesses
imateriais pessoais – Necessária desvinculação ao patrimonialismo clássico.............. 203
Referências............................................................................................................ 204
A revisão e a resolução contratual sob a ótica da onerosidade excessiva
Angelina Cortelazzi Bolzam.................................................................................................. 207
Introdução.............................................................................................................. 207
1 Noções principiológicas........................................................................................... 208
2 Origens históricas da cláusula rebus sic stantibus..................................................... 213
3 A revisão contratual no Código Civil de 2002............................................................. 215
4 Cláusula de exclusão da revisão judicial................................................................... 219
5 Revisão contratual no Código de Defesa do Consumidor............................................ 219
6 Considerações finais............................................................................................... 221
Referências............................................................................................................ 222
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RESP nº 1.323.410/MG: revisitando os prazos renovatórios da locação
empresarial
Ana Paula da Silva Liberalino................................................................................................ 225
1 Introdução.............................................................................................................. 225
2 Estruturação jurídica do contrato de locação empresarial........................................... 227
2.1 Breve relato histórico.............................................................................................. 227
2.2 Regime jurídico da Lei do Inquilinato......................................................................... 229
2.3 A proteção jurídica ao fundo empresarial................................................................... 229
3 Sistema normativo da ação renovatória.................................................................... 231
3.1 Natureza jurídica do direito à renovação.................................................................... 232
3.2 Prazo renovatório: uma vexata quaestio na Lei do Inquilinato...................................... 233
4 Interpretações do prazo renovatório: direitos e princípios em conflito.......................... 234
4.1 Critério literal.......................................................................................................... 235
4.2 Critério lógico......................................................................................................... 237
4.2.1 Elemento sistemático.............................................................................................. 239
5 Considerações finais............................................................................................... 241
Referências............................................................................................................ 243
O abuso da cláusula de tolerância nos contratos de promessa de compra e venda e
a retroação da mora
Tatiane Gonçalves Miranda Goldhar...................................................................................... 245
1 Introdução.............................................................................................................. 245
2 A cláusula de tolerância e a obrigação fundamental................................................... 246
3 O abuso da tolerância e a retroação da mora............................................................ 251
4 Conclusão.............................................................................................................. 254
Referências............................................................................................................ 255
A (des)consideração do direito à fidelidade do cônjuge: um contributo à teoria da
responsabilidade civil familiar
Raul Cézar de Albuquerque.................................................................................................. 257
1 Considerações iniciais............................................................................................. 257
2 Uma revisitação histórica......................................................................................... 258
3 Anotações sobre o dever de fidelidade recíproca....................................................... 260
4 A infidelidade como uma questão de direito matrimonial............................................ 262
5 A infidelidade como uma questão de responsabilidade civil........................................ 264
6 O quadro jurisprudencial e seus equívocos................................................................ 265
7 No toar da retificação.............................................................................................. 266
8 O direito à fidelidade do cônjuge.............................................................................. 268
9 Por uma teoria da responsabilidade familiar.............................................................. 269
9.1 Por um novo dever de fidelidade .............................................................................. 270
9.2 Para além da subsunção......................................................................................... 272
10 Considerações finais............................................................................................... 274
Referências............................................................................................................ 276
Da legitimidade do sublocatário para a consignação de aluguel
Leonardo Mattietto.............................................................................................................. 279
1 Locação, sublocação e conflitos de interesses.......................................................... 279
2 Sublocação: autorizada ou irregular.......................................................................... 280
3 A consignação como um direito do sublocatário........................................................ 282
4 Conclusão.............................................................................................................. 286
Referências............................................................................................................ 287
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EXPERIÊNCIA ESTRANGEIRA
Interpretação e o protagonismo da doutrina
António Pinto Monteiro ....................................................................................................... 291
1 2 3 4 5 6 Introdução ............................................................................................................. 291
O sentido do direito – O positivismo jurídico e sua superação..................................... 294
A jurisprudência e a doutrina entre as fontes do direito.............................................. 299
O modo de ser do direito ........................................................................................ 301
Uma amostra dos contributos da doutrina ................................................................ 302
Conclusão.............................................................................................................. 305
Trabalho criativo subordinado – A criação de obras intelectuais em execução de
contrato de trabalho (com uma perspectiva de direito comparado)
Alberto de Sá e Mello.......................................................................................................... 309
1 Trabalho criativo e liberdade criativa......................................................................... 309
2 Enquadramento empresarial do trabalho criativo. Os fins do contrato.......................... 310
2.1 A criação em execução de contrato de trabalho e as obras colectivas......................... 314
3 Criação intelectual assalariada, alienação do resultado do trabalho e atribuição
do direito de autor.................................................................................................. 315
4 O contrato de trabalho de direito de autor................................................................. 316
5 Obras criadas em execução de contrato de trabalho – Em especial: os trabalhos
jornalísticos, as fotografias, os programas de computador, as bases de dados........... 318
6 O direito pessoal (“moral”) de autor nas obras criadas em cumprimento
de contrato............................................................................................................. 321
6.1 Direito de divulgação (ao inédito).............................................................................. 322
6.2 Direito de retirada................................................................................................... 323
6.3 Direito à menção da designação de autoria............................................................... 323
6.4 Direitos de reivindicação da paternidade da obra e de defesa da integridade
da obra.................................................................................................................. 324
7 Trabalho e prestação de serviço para criação de obras intelectuais – Confronto de
ordenamentos jurídicos estrangeiros........................................................................ 325
7.1 Direito alemão: oneração do direito de autor e atribuição finalista de faculdades de
utilização da obra.................................................................................................... 325
7.2 Direito francês: titularidade originária e inalienabilidade do direito pelo autor............... 327
7.3 Direito italiano: aquisição derivada do direito pelo comitente...................................... 328
7.4 Direito espanhol: atribuição finalista presumida do contrato....................................... 330
7.5 Direito brasileiro: o direito de autor na titularidade do empregador.............................. 332
7.6 Direito britânico: atribuição originária do direito ao empregador.................................. 335
7.7 Direito estadunidense: atribuição da titularidade do direito determinada
pela convenção ...................................................................................................... 336
7.8 Lei angolana: atribuição do direito ao empregador independente de convenção
específica............................................................................................................... 337
7.9 Lei marroquina: atribuição do direito patrimonial ao empregador por efeito
do contrato............................................................................................................. 338
ENSAIOS E PARECERES
Como a metodologia civil-constitucional pode contribuir para o debate sobre a tutela
dos direitos da personalidade na Internet?
Marcos Ehrhardt Júnior........................................................................................................ 341
1 RFDC_10.indd 7
Como estudamos os aspectos jurídicos da Internet hoje?.......................................... 341
06/10/2015 17:33:40
2 3 4 O velho, Novo Código de Processo Civil não vai ser a resposta................................... 342
A tecnologia e suas constantes transformações tornaram-se um problema de todos.... 342
Pontos para o debate: o paradigma do individual para o tratamento das questões
de internet seria o ideal?......................................................................................... 343
AGENDAS DE DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL
Interpretação e protagonismo da doutrina juscivilista no Brasil – Escorço
Paulo Lôbo.......................................................................................................................... 347
1 2 3 Sobre o sentido de doutrina juscivilista..................................................................... 347
Interlocução da doutrina civilista com a jurisprudência – Crítica de certa tendência
de colonização........................................................................................................ 349
Perspectivas........................................................................................................... 350
III Congresso Brasileiro de Direito Civil – Direito Civil: Interpretação e o
protagonismo da doutrina............................................................................................... 353
INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES.................................................................................. 369
RFDC_10.indd 8
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Editorial
O número 10 apresenta uma posição de destaque em nossa cultura. Representa
o melhor jogador, a nota máxima a ser alcançada... Em nosso caso, significa que atingimos o final de nosso quarto ano de existência. Eis que o projeto iniciado em fevereiro
de 2012, numa reunião em Belo Horizonte, que se espalhou por todo o Brasil, devido às
adesões dos membros dos Conselhos Consultivo e Editorial, consolida-se como uma alternativa expressiva entre as publicações especializadas em Direito Civil em nosso país.
Este volume não poderia ser mais especial. Através de uma parceria com o
Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCIVIL), traremos a você os textos aprovados
para o III Congresso Brasileiro de Direito Civil, que ocorreu nos dias 10, 11 e 12 de
agosto, em Recife.
Este foi, sem dúvida, o maior e mais importante evento de direito civil em 2015,
congregando 31 (trinta e um) professores para enfrentar alguns dos temas mais
instigantes de nosso tempo: direitos da personalidade na sociedade da informação,
a interpretação do direito civil e as novas demandas sociais, prevenção de danos,
função social da posse, interpretação dos direitos sucessórios e das questões existenciais das famílias.
Com o tema central “interpretação e protagonismo da doutrina”, o evento teve
como objetivo debater os métodos de interpretação do Direito Civil, em relação ao
saber doutrinário e sua pertinência com as demandas da sociedade contemporânea.
Para tanto, os expositores examinaram dialeticamente o conjunto de transformações
na jurisprudência derivadas da interpretação civilista da Constituição de 1988 e do
Código Civil de 2002, debatendo os desafios que se impõem à aplicação dos direitos
fundamentais nas relações interprivadas. Além desses importantes tópicos, nada
chamou mais a atenção dos presentes do que a problematização do papel da doutrina frente a questões atinentes aos novos direitos e à evolução tecnológica.
Tudo isso justifica a escolha por este número especial, em homenagem às
discussões apresentadas durante o Congresso organizado pelo IBDCIVIL. Os textos
publicados nas próximas páginas passam por prospecções do dano reparável na
contemporaneidade, discutem o papel da prevenção no direito dos danos, desafiam
as fronteiras do dever de indenizar na internet e diante de situações relacionadas a
cuidados paliativos e ortotanásia. Destaca-se ainda a delicada questão da autonomia
existencial dos pacientes psiquiátricos e a viabilidade do testamento vital no ordenamento brasileiro, dentre outros temas que certamente provocarão grandes reflexões.
A contribuição estrangeira está presente no excelente texto do Professor António
Pinto Monteiro, responsável por uma das conferências de abertura do III Congresso
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EDITORIAL
Brasileiro de Direito Civil, que nos apresenta suas impressões sobre o protagonismo da doutrina no direito europeu. A RFDC 10 ainda nos brinda com o importante
trabalho do professor Alberto de Sá e Mello, sobre a criação de obras intelectuais
em execução de contrato de trabalho, que mantém o compromisso da Revista com o
diálogo dos saberes no enfrentamento de temas contemporâneos.
A RFDC 10 não poderia terminar de um modo mais interessante do que trazendo
ao conhecimento de seus leitores os resumos das palestras proferidas durante o III
Congresso Brasileiro de Direito Civil. O momento é de celebrar a produção doutrinária em
nosso país e voltar nossos olhos para sua importância. Para ilustrar tal afirmação, importante destacar o resumo da conferência do Professor Paulo Luiz Netto Lôbo, que tratou
da importância da doutrina juscivilista e dos desafios que as novas tecnologias propiciam, sobretudo quando percebemos a crescente perda de habilidade para leitura das
novas gerações, sempre impulsionadas pela imediatividade de respostas descontextualizadas, obtidas muitas vezes sem preocupação com a qualidade da fonte pesquisada.
Como bem disse o professor, não podemos esquecer que “formação é mais que
informação”, razão pela qual devemos estar comprometidos com a ressignificação
dos institutos jurídicos fundamentais, num contexto de perene mudança social. Para
tanto, urge valorizar a doutrina jurídica “como criação e crítica e não como repetição”.
A partir desta afirmação, o Professor Paulo Lôbo alerta para a tendência de
colonização da doutrina civilista nacional pela jurisprudência, destacando a necessidade de um diálogo, o que, numa perspectiva de mão dupla, dignifica atuar com a
jurisprudência e não contra, sob ou sobre ela.
Ensina o referido professor que “a doutrina jurídica opera no presente, orientada
pelo futuro – dialoga com o caso, mas não está condicionado a ele. Seus ambiente e
limites são as relações privadas e o sistema jurídico como um todo. Diferentemente,
a jurisprudência opera em atenção ao fato passado, que é caso concreto, que a condiciona. Não pode ir além dele. Essa limitação é conquista do Estado de Direito”. Por
esta razão, “é preciso à sedução crescente do precedente judiciário acrítico, sob risco
de passarmos da centralidade da lei para a da jurisprudência. A força do precedente
não está na decisão, mas na sua justificação, o que remete à doutrina”.
Dedica-se esse número ao brilhante professor Luciano Camargo Penteado, um
dos palestrantes do III Congresso Brasileiro de Direito Civil e que nos deixou no dia
16.9.2015, pouco mais de um mês após ter encantado a todos com suas instigantes
reflexões, deixando um grande vazio nos corações de seus colegas professores e,
principalmente, de seus alunos, que sempre encontraram nele um docente excepcional e um cidadão exemplar. Descanse em paz Luciano. Resta para nós, que por aqui
ainda estamos, combater o bom combate, com o amparo e o conforto de suas lições.
Maceió, AL, 18 de setembro de 2015.
Marcos Ehrhardt Jr.
[email protected]
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DOUTRINA E ATUALIDADES
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A responsabilidade civil para além dos
esquemas tradicionais: prospecções do
dano reparável na contemporaneidade
André Luiz Arnt Ramos
Mestrando em Direito das Relações Sociais junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito
da Universidade Federal do Paraná. Bacharel em Direito pela mesma instituição. Membro do
Grupo de Pesquisa Virada de Copérnico, associado ao IBDFAM. Advogado em Curitiba.
Resumo: O Direito Civil brasileiro perpassa momento de holística ruptura, na qual se arrostam diferentes
sentidos de muitos de seus significantes centrais, como dano, segurança jurídica e atividade jurisdicional.
Este trabalho se propõe a esboçar o estado dessas viragens no âmbito da responsabilidade civil (ou por
danos) e projetar as mudanças ainda por vir, à luz do que vêm trabalhando alguns setores da literatura
especializada. Parte da transição entre Estado de Direito e Estado Constitucional, da recompreensão
do papel processual das cortes de vértice e da refuncionalização da responsabilidade civil, para, ao
identificar o local onde se está (e do qual se parte), a travessia em curso e o pórtico que se projeta para
além da margem, prospectar as possibilidades do modelo brasileiro de reparação civil, sob as lentes da
segurança jurídica, mediada pelo precedente judicial. Diagnostica, assim, a confluência de sintomas da
emergência do Estado Constitucional, da consagração do modelo de cortes supremas e da reinvenção da
responsabilidade civil em responsabilidade por danos, sem olvidar da indisputável relevância do papel da
literatura jurídica especializada na criação e atuação do modelo brasileiro de reparação de danos, bem
como de sua adequação à unidade/complexidade do ordenamento jurídico.
Palavras-Chave: Dano reparável. Segurança jurídica. Precedente judicial. Responsabilidade civil.
Responsabilidade por danos.
Sumário: 1 O sistema brasileiro de responsabilidade civil hoje – 2 Percepções da mudança: dano reparável,
precedente judicial e segurança jurídica – 3 A concretização da mudança: a dogmática jurídica, a afirmação
do precedente judicial e o sistema de responsabilidade civil brasileiro – 4 Apontamentos conclusivos
– Referências
Introdução
O sistema brasileiro de responsabilidade civil contemporâneo, além de mudanças que lhe são internas, enfrenta problemas muito próprios do momento de
transformação pelo qual, em arco amplíssimo, passa a experiência jurídica europeia
continental.1 Sucede que, por aqui, pouco se tem teorizado a respeito dessas viragens, que marcam a superação do modelo de Estado de Direito e o caminhar em
MARINONI, Luiz Guilherme. A ética do precedente: justificativa do novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2014, p. 45-66.
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direção ao Estado Constitucional, tido como dado, ao menos desde a Constituição
de 1988.2 Entre o escasso material que captou esta problemática, sobretudo no
direito privado, são incomuns leituras despegadas de alarmantes ranços anacrônicos
ou pouco afobadas em relação a alguns significantes ainda centrais, mas ressignificados. Sem embargo disso, eclodem, em alguns rincões da comunidade jurídica,
constatações da holística metamorfose por que passa, meio apaticamente, o direito
brasileiro.
Em particular e visando ao escopo dum texto que não se pretende de fôlego,
convém pôr em revista três categorias intercomunicantes, que, sem suficiente percepção da manualística, vêm sofrendo mutações sintomáticas do tempo de ruptura
que se nos apresenta: segurança jurídica, precedente judicial e dano (reparável).
Assim pretende-se, pela via da captação do que diz a literatura jurídica especializada,
a verdadeira ou dogmática jurídica, esboçar a atuação dos vetores da mudança num
ponto de convergência específico: a responsabilidade civil (ou direito de danos).
Atento a este desiderato, o trabalho cinde-se em três seções: a primeira situa
o problema posto em revista, com o pretensioso intento de identificar o local em que
estamos (e do qual partimos); a segunda trata da convergência dos três focos de análise e de seu acoplamento no caminho que percorremos; a terceira, enfim, prospecta,
conclusivamente, o pórtico desta travessia (trata de aonde vamos).
1 O sistema brasileiro de responsabilidade civil hoje
A atual problemática inerente à responsabilidade civil contemporânea respeita à
alardeada crise de seus pressupostos (ou filtros) tradicionais; àqueles “factos e condições que, em conjunto, produzem essa modalidade de obrigação de indemnizar”.3
A manualística, reflexo da literatura jurídica especializada de outrora, elenca, com
algumas variações, três fatores principais: conduta humana, culpa (ou risco reconhecido em lei), nexo de causalidade e dano.4 Nenhum deles, contudo, preserva-se em
sua inteireza.5
Cf. BARCELLOS, Ana Paula de; BARROSO, Luís Roberto. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. Interesse Público, v. 5, n. 19, p. 51-80, 2003.
3
JORGE, Fernando de Sandy Lopes Pessoa. Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil. Reimpressão. Coimbra: Almedina, 1995, p. 9.
4
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 2. ed. rev., atual. e ampl.. São Paulo: Método, 2012, p. 434.
5
É que “a responsabilidade civil e a consumerista, moderna e contemporânea, são colocadas em xeque, diante
da não contenção da expansão desordenada dos danos de toda ordem (...), o que dificulta a restauração da
igualdade objetivada pelo instituto. Amplifica-se essa situação pelos adjetivos que marcam as características
da sociedade atual, cujos emblemas são o risco, a massificação, a superficialidade, a vigilância, a cibernética,
o hiperconsumo, a globalização e, por que não, os danos” (CUNHA FROTA, Pablo Malheiros da. Imputação sem
nexo causal e a responsabilidade por danos. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2013 p. 198).
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A responsabilidade civil para além dos esquemas tradicionais...
1.1 O apequenamento da culpa
A associação da responsabilidade civil a juízos morais quanto à conduta culposa de sujeitos de direito é típica duma acepção dita tradicional do Direito Civil, pelo
qual se articula o dever de reparar como consequência do mau uso consciente e,
portanto, moralmente reprovável, da liberdade individual.6 A centralidade do elemento
volitivo da conduta culposa foi, paulatinamente, erodida pela vertiginosa expansão da
complexidade das sociedades contemporâneas. É que, neste novo contexto, tornaram-se recorrentes situações em que pessoas lesam a esfera de interesses jurídicos
de outrem por intermédio de atos que não lhe imputam faltas morais ensejadoras
de algum tipo de responsabilidade.7 Despersonalizaram-se os danos, pelo que ficou
inviabilizada a prova da culpa, atribuída ao lesado. Neste contexto, teve início “a busca de fundamentos para imputação da responsabilidade dos danos ensejados pelos
riscos das atividades decorrentes do progresso”,8 donde advieram diversos fatores
de objetivação da culpa, cujo desenvolvimento culminou com sua normatização e
com a consolidação, para algumas hipóteses, da responsabilidade civil objetiva, que
dispensa a conduta culposa.9 Assim, ainda que não se tenha, por completo, aberto
mão da culpa como fator a ser tomado em conta na atribuição do dever de reparar, ela
se arrefece e cede espaço em prol nexo de causalidade, de modo que a socialização
dos danos oriundos da exploração de atividades de risco tidas como socialmente
importantes rouba a cena da apreciação moral da conduta do lesante.
1.2 O evanescer da relação causal
O segundo pressuposto da responsabilidade civil é o nexo causal. Essa figura,
malgrado induvidosamente relevante, não aparenta se prestar a suprir o espaço deixado pelo definhar da culpa, por conta da atecnia com que é tratada nos mais diversos ordenamentos10 (SCHREIBER, 2012, p. 5). É que, apesar do notável esforço de
autores especializados, as soluções, em concreto, muito dificultam a abstrata eleição
da teoria aplicável (CAPELOTTI, 2012, p. 88-123; SCHREIBER, 2012, p. 51-78).
A propósito, v. SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da
reparação à diluição dos danos. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 13; GONDIM, Glenda Gonçalves. A reparação
civil na teoria da perda de uma chance. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010, p. 9.
7
ATIYAH, Patrick Selim. The damages lottery. Oxford: Hart Publishing, 1997, p. 33.
8
PAULA, Carolina Bellini de. As excludentes de responsabilidade civil objetiva. São Paulo: Atlas, 2007, p. 13.
9
Para abordagem panorâmica do processo pelo qual se caminhou da indispensabilidade da prova da culpa para
a consagração, mitigada ou elastecida, da responsabilidade objetiva, seja facultado remeter a JOSSERAND,
Louis. Evolução da responsabilidade civil. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 8, n. 454, p. 548-559, 1941;
e SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à
diluição dos danos. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
10
Assim: SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil..., p. 248.
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A complexidade da questão é facilmente captável a partir da constatação de
que há, ao menos, catorze teorias explicativas da relação de causalidade (DEUTSCH;
AHRENS, 2009, p. 19-28), cujas pouco sutis variações servem de pretexto para um
ecletismo judicial revelador da preferência pela pretensa realização da justiça no caso
concreto, mesmo em detrimento da previsibilidade dos resultados. Isto é: “os tribunais têm simplesmente se recusado a dar ao nexo causal um tratamento rigoroso
e de consequências aflitivas como o que fora, anteriormente, reservado à culpa”.
Este quadro de incertezas, registre-se, vem, mesmo, conduzindo à formulação de
propostas de imputação do dever de reparar à míngua de nexo causal (rectius: fora
dos traços comuns identificáveis na indicada miríade de teorias). Começa-se, então,
a falar em imputação objetiva:
A insuficiência das construções retrocitadas para a imputação da responsabilidade por danos no direito civil e consumerista brasileiros não faculta uma travessia da responsabilidade civil para a responsabilidade por
danos, a erigir uma categoria jurídica normativa, de matriz complexa, que
abarque a imputação sem nexo de causalidade, previsível ou altamente
provável, pela responsabilidade por danos.
Essa construção pode ser denominada de formação da circunstância danosa, e pode auxiliar na interface do direito abstrato com a realidade
concreta, a fim de densificar os direitos fundamentais e os pilares hermenêuticos de uma sociedade mais justa e igualitária, tendo em vista
que conecta diversos matizes teóricos que sustentam uma perspectiva
de uma responsabilidade por danos que possa melhor responder aos
questionamentos postos pela sociedade hodierna.11
A proposta, genuinamente doutrinária, é chocante e tende a custar para ser
bem assimilada pela comunidade jurídica em geral e, pelos aplicadores do direito em
particular. Isso não quer dizer, contudo, que careça de concretização na judicatura:
há a coisa, desprendida do nome, mormente no que respeita à atribuição de responsabilidade a instituições financeiras por fraude a sistemas online.12
CUNHA FROTA, Pablo Malheiros da. Imputação sem nexo causal e a responsabilidade por danos..., p. 196. No
mesmo sentido: “Situação que também emerge como exemplar é a imputação sem nexo de causalidade na
responsabilidade por danos. Não raro se vê a reafirmação tradicional do nexo para imputar responsabilidade,
o que, de todo correta, pode não ser, em determinados casos, o mais justo concretamente para a vítima.
Quando assim, a direção pode indicar a renovação do conteúdo da causa, e especialmente do nexo causal.
A imputabilidade tem no centro a preocupação com a vítima; a imputação é operação jurídica aplicada à
reconstrução do nexo. Da complexidade e da incerteza nascem fatores inerentes à responsabilização por
danos. É de alteridade e de justiça social que se deve inebriar o nexo de causalidade, atento `formação das
circunstâncias danosas” (FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro:
Renovar, 2015, p. 113-114).
12
“As instituições bancárias respondem objetivamente pelos danos causados por fraudes ou delitos praticados
por terceiros — como, por exemplo, abertura de conta corrente ou recebimento de empréstimos mediante fraude
ou utilização de documentos falsos —, porquanto tal responsabilidade decorre do risco do empreendimento,
caracterizando-se como fortuito interno” (REsp nº 1.197.929/PR, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda
Seção, DJe de 12.9.2011).
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A responsabilidade civil para além dos esquemas tradicionais...
Seja como for (e fechado o parêntesis quanto à imputação objetiva), parece
clara a veraz erosão dos filtros tradicionais do juízo de reparação, a impor a constatação de que “a responsabilidade civil principia por se vestir de direito à reparação de
danos, com foco na vítima e não mais apenas no nexo causal”.13
1.3 O dano e sua Verwandlung
Os holofotes se concentram, então, sobre o dano reparável, alçado ao posto de
derradeiro mecanismo de controle e contenção a enxurradas de demandas frívolas:
Não há dúvida de que, em um cenário de gradual objetivação da responsabilidade civil e de flexibilização da prova do nexo causal, a aferição do
dano se eleva a único filtro capaz de, legitimamente, funcionar como instrumento de seleção das demandas de responsabilização. A melhor via
parece ser, portanto, a de reconhecer o dano ressarcível como cláusula
geral, operando uma efetiva ponderação de interesses em conflito para
fins de configuração de elemento imprescindível à deflagração do dever
de reparar.14
Outrora identificado ao ato ilícito, na condição de pressuposto da responsabilidade civil, o dano adquiriu, recentemente, autonomia.15 A tradicional orientação
segundo a qual a responsabilidade civil se prestaria à repressão ou sanção do ilícito
culposo,16 portanto, foi subvertida em prol da identificação do evento lesivo — cuja
verificação parte do sujeito lesado — como elemento central do juízo de reparação.
“A responsabilidade civil se redefiniu como uma reação a um dano injusto.”17 Daí as
contemporâneas iniciativas teóricas empenhadas no diagnóstico da superação de um
paradigma tradicional de responsabilidade civil e na consolidação paulatina de um
FACHIN, Luiz Edson. Direito civil..., p. 38.
SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil..., p. 193.
15
LORENZO, Miguel Frederico de. El daño injusto en la responsabilidad civil. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1996,
p. 15. Para além da referência indireta, importa ter em mente que a acepção mencionada não está, por
completo, superada. Boa parte da manualística teima em abraçar a confusão entre dano e ato ilícito, em
função da literalidade do texto normativo do art. 186, do Código Civil. Assim, e.g.: “O ato de vontade, contudo,
no campo da responsabilidade deve revestir-se de ilicitude. Melhor diremos que na ilicitude há, geralmente,
uma cadeia ou sucessão de atos ilícitos, uma conduta culposa. Raramente, a ilicitude ocorrerá com um único
ato. O ato ilícito traduz-se como um comportamento voluntário que transgride um dever. Como já analisamos,
ontologicamente o ilícito civil não difere do ilícito penal; a principal diferença reside na tipificação estrita deste
último. Na responsabilidade subjetiva, o centro de exame é o ato ilícito. O dever de indenizar vai repousar
justamente no exame de transgressão ao dever de conduta que constitui o ato ilícito” (VENOSA, Silvio de
Salvo. Direito civil: responsabilidade civil. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2011. v. 6. p. 25).
16
CUPIS, Adriano de. El daño: teoría general de la responsabilidad civil. Tradução de Angel Martínes Sarríon. 2.
ed. Barcelona: Bosch, 1975, p. 81.
17
LORENZO, Miguel Frederico de. El daño injusto em la responsabilidad civil..., p. 15.
13
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novo paradigma, o da responsabilidade por danos18 (ou direito de danos19), articulado
a partir de três linhas-mestras: a primazia da vítima, a solidariedade social e a reparação integral.20 Claro é, neste prisma, que, ao menos no plano enunciativo, “esse
Direito de Danos não é meramente uma alteração de nomenclatura. Resulta de uma
nova preocupação do Direito Civil em geral com a pessoa (...) a partir dos conceitos
constitucionais da Carta Magna de 1988”.21
Nesse diapasão,22 a ilicitude, que correspondia, na opinião tradicional, ao elemento formal do dano,23 cedeu à força dos fatos. É que, a fim de acompanhar as sensíveis modificações por que vem passando a sociedade contemporânea, o ilícito teve
de ser elastecido “a tal ponto que se dissolveu em sistema valorativo de resultados
ex post facto”.24 Assim, ganhou espaço a noção de dano injusto, que permite, à luz
dos referenciais valorativos albergados pela constituição material, identificar condutas que, ilícitas ou não, ensejam o surgimento de dever de reparar. Esta travessia, no
Brasil, é tributária do pragmatismo de Aguiar Dias — a firmar que a noção de dano
deva se restringir à ideia de prejuízo, de resultado de uma lesão25 — e da genialidade
de Pontes de Miranda, a assim luminar a questão:
O sistema jurídico traça as linhas de onde começa a responsabilidade
pelo dano. A imputabilidade, a atribuição do dever de prestar indenização, nem sempre coincide com a antijuridicidade, nem com algum ‘ato’
que a lei repute ilícito. Às vêzes há regra jurídica que, para proteger algum
“O modelo de responsabilidade civil e consumerista vigentes parecem erodidos, porque sua reoxigenação
histórica (...) não resolve o problema.
As seis perspectivas constitutivas da responsabilidade por danos reportam à imprescindível tarefa do jurista
de hoje, ao se debruçar sobre as reflexões que o Direito Civil e o direito do consumidor estão adstritos a
realizar como fator de transformação social. Para tanto, a perspectiva de uma responsabilidade por danos
constitui um de seus alicerces epistemológicos, a realizar os interesses da vítima, sem desconsiderar que o
lesante também possui direitos e deveres” (CUNHA FROTA, Pablo Malheiros da. Imputação sem nexo causal
e a responsabilidade por danos..., p. 212).
19
“[S]e antes o elemento primordial da responsabilidade (expressão que traz consigo a ideia de reprimenda,
de desvalor moral) era a culpa, hoje o elemento basilar ao dever de indenizar é o dano. Nesse sentido, a
própria expressão ‘responsabilidade civil’ tem um significado limitado, vez que nem sempre a imputação do
dever de indenizar recai sobre o responsável pelo dano. Melhor referir-se a essa disciplina, hoje, como um
direito de danos” (LEONARDO, Rodrigo Xavier. Responsabilidade civil contratual e extracontratual: primeiras
anotações em face do novo código civil brasileiro. In: NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade
(Org.). Responsabilidade civil: doutrinas essenciais. v. I: Teoria Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010,
p. 396-7).
20
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito civil: obrigações. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 23.
21
REZENDE, Adrieli; GONDIM, Glenda Gonçalves. Ilícito de perigo e ilícito de lesão: repercussões para o direito
de danos. Revista Direito e Justiça – Reflexões Sociojurídicas, ano 13, n. 22, p. 120, abr. 2014.
22
Apesar da indiscutível relevância das propostas que conduziram ao reconhecimento da reinvenção da
responsabilidade civil em direito de danos, o trato com suas premissas e consequências em muito extrapola
os objetivos deste trabalho, pelo que a referência a esta novel abordagem finda por servir apenas à exaltação
da importância ostentada pelas metamorfoses sofridas pelo dano no Direito Civil brasileiro contemporâneo.
23
CUPIS, Adriano de. El daño..., p. 81.
24
LORENZO, Miguel Frederico de. El daño injusto em la responsabilidad civil..., p. 22.
25
Cf. AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 7. ed., rev. e aument. Rio de Janeiro: Forense, 1983.
v. 2, p. 794.
18
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A responsabilidade civil para além dos esquemas tradicionais...
interêsse de outrem, permite que se atinja a esfera jurídica de alguém, e
estabelece, para equilíbrio, que o favorecido pela lei excepcional indenize
o dano causado. Trata-se, aí, de intromissão permitida. Outras vêzes, há
regra jurídica que não veda que se mantenha ou crie riscos para outrem,
ou para outros, mas cogita a reparação dos danos que provêm dêsses
riscos. (...) Tem-se, então, a dita responsabilidade pelo risco. Assim, a
responsabilidade pelo ato ilícito, com o elemento do ato positivo ou negativo, voluntário, no suporte fático, é uma das espécies, pôsto que as
leis costumem falar, em geral, de responsabilidade por atos ilícitos. Nem
sempre há o ato, nem sempre há, sequer, a ilicitude.26
O dano injusto, vertido na dicção ponteana, desenha-se, então, como “o fato
jurídico gerador da responsabilidade civil, em virtude do qual o ordenamento atribui
ao ofendido o direito de exigir a reparação, e ao ofensor a obrigação de repará-lo”.27
Por outras palavras: o dano é um fato jurídico em sentido estrito que advém de outro
fato jurídico que lhe seja antecedente, de sorte que:
Os fatos jurídicos ilícitos no sentido lato (fatos, atos e atos-fatos ilícitos)
produzem em geral o dano ilícito (fato jurídico stricto sensu ilícito); enquanto os fatos jurídicos lícitos lato sensu (atos e atos-fatos lícitos) podem eventualmente gerar o dano lícito (fato jurídico stricto sensu lícito).28
O dano, o Leitmotiv da responsabilidade civil, crivado pela literatura especializada, escapa da má redação dos dispositivos do Código que lhe enclausuram na ilicitude. Funda-se na lesão a um determinado interesse eleito pela ordem jurídica como
superior em relação àquele que conduz a ação lesiva.29 Afinal, mesmo na literatura
esquadrinhada em manuais, “o dever de reparar pressupõe o dano e sem ele não há
indenização devida”.30 É necessário, contudo, para render azo a indenização, “que
a vítima demonstre (...) que o prejuízo constitua um fato violador de um interesse
juridicamente tutelado do qual seja ela o titular”.31
A definição dos interesses juridicamente tutelados, cuja lesão conforme um dano
ressarcível, é, com efeito e ressalvada a problemática atinente à imputação objetiva,
o grande desafio que se coloca aos contemporâneos sistemas de responsabilidade
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Atualizado por Rui Stoco. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2012. t. LIII, p. 276-277.
27
BAPTISTA, Silvio Neves. Teoria geral do dano: de acordo com o Novo Código Civil. São Paulo: Método, 2003,
p. 43.
28
BAPTISTA, Silvio Neves. Teoria geral do dano..., p. 44.
29
CUPIS, Adriano de. El daño..., p. 25-30.
30
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 10. ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2012,
p. 77.
31
MONTENEGRO, Antonio Lindbergh C. Do ressarcimento de danos pessoais e materiais. Rio de Janeiro: Âmbito
Cultural, 1992, p. 17.
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civil.32 Isso porque o binômio paternalismo-vitimização,33 somado à salutar inauguração de toda uma nova axiologia pelos atos fundantes dos estados constitucionais
pós-Segunda Guerra, encoraja a magistratura a chamar para si o papel de Vigilante,
autoconclamado a envidar esforços distributivistas norteados pela intenção de atenuar os azares que acometem os vitimizados. Essa postura, contudo, conduz ao total
desvirtuamento da responsabilidade por danos, que deve exercer função eminentemente compensatória;34 além de produzir um efeito colateral indesejado: a conta, diluída conforme a atividade exercida pelo demandado, é paga por toda a coletividade,35
o que prejudica, inclusive, o lesado-demandante.
Não bastasse essa consequência negativa, a expansão quantitativa e qualitativa dos interesses, cujas lesões suscitam demandas de reparação civil, “vem exigir
das cortes a aplicação de métodos ou critérios de seleção dos danos ressarcíveis,
que, na maior parte dos ordenamentos, permanecem carentes de um exame crítico”
(SCHREIBER, 2012, p. 85).
Assim, tendo em conta a subversão da orientação tradicional, de resto potencializada pela técnica legislativa contemporaneamente preferida pelo legislador brasileiro, segundo a qual “a seleção dos interesses merecedores de tutela jurídica consiste
em tarefa não do intérprete, mas do legislador”,36 propõe-se anunciação prospectiva dos trilhos aparentemente conducentes ao trato com o problema hodierno da
A esse propósito, v. JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade
civil: o dano social. In: JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Novos estudos e pareceres de direito privado. São
Paulo: Saraiva, 2009, p. 377-384.
33
Este fator é enunciado por Atyah como um dos grandes responsáveis pela consagração de um sistema de
responsabilidade civil injusto e ineficiente. Diz, in verbis: “A fourth factor is the growth of paternalism and the
blame culture, which among other things has led many of us to attribute blame for injuries and accidents and
losses to others, when we ourselves are perhaps responsible for what has happened, or at least could have
insured against risks” (ATIYAH, Patrick Selim. The damages lottery..., p. 157-158).
34
Esta problemática é especialmente pronunciada em matéria de compensação de danos morais. A dogmática
vanguardista, neste diapasão, sugere que o caráter punitivo da condenação por dano moral viola a tradicional
dicotomia segundo a qual a responsabilidade civil tem caráter meramente compensatório, enquanto, ao direito
penal, confia-se a punição pela prática de condutas socialmente indesejadas. “Não bastasse isso, há ainda
no caráter punitivo diversas outras inconsistências. Primeiramente, se sua finalidade é desestimular condutas
antijurídicas, é de se perguntar por que não se fala em caráter punitivo dos danos meramente patrimoniais.
(...) Não há motivo que justifique a diversidade de tratamento. (...) Também há problemas no que diz respeito
às relações entre o dano moral e a responsabilidade objetiva. (...) O intuito punitivo não integra a reparação
do dano moral, não pertence à sua essência. O dano moral deve ser compensado em todas as hipóteses,
inclusive nas de responsabilidade objetiva” (SCHREIBER, Anderson. Arbitramento do dano moral no novo
código civil. In: SCHREIBER, Anderson. Direito civil e constituição. São Paulo: Atlas, 2013, p. 183). No mesmo
sentido, mas com alguns temperos, Moraes admite o caráter punitivo da responsabilidade civil por dano moral
em hipóteses excepcionais, porque “aplicado indiscriminadamente a toda e qualquer reparação de danos
morais, coloca em perigo princípios fundamentais de sistemas jurídicos que têm na lei a sua fonte normativa,
na medida em que se passa a aceitar a ideia, extravagante à nossa tradição, de que a reparação já não
constitui o fim último da responsabilidade civil, mas a ela se atribuem também, como intrínsecas, as funções
de punição e dissuasão, de castigo e prevenção” (MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana:
uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 258).
35
ATIYAH, Patrick Selim. The damages lottery…, p. 111.
36
SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil..., p. 121.
32
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responsabilidade civil — definição do dano reparável, sem abdicação da flexibilidade
do sistema e da previsibilidade de seus resultados.
2 Percepções da mudança: dano reparável, precedente judicial
e segurança jurídica
O atípico sistema de direito de danos brasileiro, articulado, à francesa, por cláusulas gerais, imprescinde, para sua construção e atuação, de sensatos exercícios de
judicatura, os quais, por seu turno, não podem ser senão informados pela literatura
jurídica.37 Mais que isso: a sisifica (re)construção deste sistema clama, para se tornar
factível, por arranjos que lhe permitam conferir previsibilidade ao tráfego jurídico, sem
perder em maleabilidade. Trocando em miúdos: a realização das potencialidades do
sistema brasileiro de responsabilidade civil demanda o acoplamento de uma postura
hermenêutica ao mesmo tempo tópica e sistemática38 à afirmação dum mecanismo
estabilizador que já se delineia no horizonte de sentido posto diante da comunidade
jurídica brasileira: o precedente judicial.39 É que, em arco bastante amplo, o direito
brasileiro de hoje insere-se no campo de tensão gerado pela paulatina ruptura do vetusto modelo de cortes superiores — cujo abandono parece ser visto com renitência,
talvez em função de questões culturais40 — e o vagaroso caminhar em direção ao
Nesta linha, “torna-se imprescindível a revitalização da doutrina, porque os horizontes do Direito não podem
fossilizar-se na jurisdição e não se ampliarão sem a sua contribuição. A doutrina deve reassumir a postura e o
compromisso de constranger epistemologicamente, conforme sustenta Streck, e questionar os fundamentos
de decisões equivocadas, sem se portar como mera subscritora das decisões dos tribunais” (NUNES, Dierle;
ALMEIDA, Helen; REZENDE, Marcos. A contribuição da doutrina na (con)formação do direito jurisprudencial:
uma provocação essencial. Repro, ano 39, n. 232, p. 351, jun. 2014).
38
Tópica, porque consistente em “procedimento racional que se dirige a refletir por problemas a partir da abertura
semântica de alguns significantes ou signos linguísticos” e sistemática porque “se opera com plúrima noção
de sistema, haurido então, em vários significados, ora como conjunto de conceitos, ora como a composição
de sentidos verificados pela função, mas sempre aberto, poroso e plural, de tal modo que se apresenta aqui
o limite externo, o da unidade do sistema” (FACHIN, Luiz Edson. Direito civil..., p. 7).
39
Precedente e jurisprudência, longe de serem sinônimos, distinguem-se em caráter: (i) quantitativo — precedente
respeita a uma decisão relativa a um caso particular, enquanto jurisprudência refere a uma pluralidade deles
(um conjunto de subconjuntos ou grupos). Nos sistemas amparados no precedente, a decisão que assume
este caráter é uma; poucas vêm citadas em apoio do precedente. Nos sistemas em que há jurisprudência,
se faz referência a várias decisões pretéritas, o que gera dificuldades quanto à identificação da decisão
verdadeiramente relevante ou quanto à quantidade de decisões necessárias para que se possa dizer que há
jurisprudência sobre certo tema; (ii) qualitativo — precedente fornece regra universalizável que pode ser depois
aplicada como critério de decisão ou de analogia entre os fatos do primeiro e do segundo caso. “E’ dunque
il giudice del caso sucessivo che stabilisce se esiste o non existe il precedente, e quindi — per cosìdire —
“crea” il precedente”, a partir de raciocínio calcado nos fatos. Jurisprudência carece de análise comparativa
dos fatos, na maioria dos casos, vez que se resume a enunciados sintéticos com pretensão de generalidade,
aos moldes das regras jurídicas em geral. “[D]i regola i testiche costituisconola mostra giurisprudenza
non includono i fatti che sono stati oggetto di decisione, sicchè l’applicazione dela regola formulata in una
decisione precedente non si fonda sull’analogia dei fatti, ma sulla sussunzione dela fattispecie successiva
in una regola generale” (TARUFFO, Michele. Precedente e giurisprudenza. Civilística.com, ano 3, n. 2, jul./
dez. 2014. [Online]. Disponível em: <http://civilistica.com/precedente-e-giurisprudenza/>. Acesso em: 24
abr. 2015.
40
MARINONI, Luiz Guilherme. A ética do precedente..., p. 90-91.
37
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de cortes supremas, inclusive em prestígio à atribuição constitucional do Superior
Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.
Nesse prisma, o estilo redacional41 historicamente difundido nas Cortes nacionais, sumular ou ementário (quase frasal), negligente em relação aos fatos, porque
preocupado com os resultados,42 e algo displicente com o encadeamento lógico e
cronológico de decisões pretéritas, tende a sofrer variações que o aproximem daquele típico do modelo de cortes supremas — não tanto da variação deste modelo
no círculo da Common Law, porque, ainda que o cisma seja apenas de grau, nesta
tradição jurídica predomina o precedente integrativo, enquanto, na continental, há
mais espaço para o precedente interpretativo.43 Esta ruptura, haurida da renovação
das premissas fundantes do ordenamento jurídico — em especial, do prestígio que o
constitucionalismo democrático dá à dignidade humana44 e da retomada da segurança jurídica como standard primacial45 —, aponta para uma crescente valorização das
circunstâncias de fato subjacentes a cada causa, a preocupação com os fundamentos de direito, a fixação de diretivas interpretativas e de opções valorativas.46 Isso
tende a se fazer sentir com maior intensidade na seara da responsabilidade civil,
dada sua sensibilidade pronunciada às contingências da vida em comum,47 sobretudo
no elemento dano reparável, pelas razões já expostas.
A prospecção, entre os processualistas, é bastante otimista. Mas supõe a superação dum poderoso óbice: a confusão, sobretudo em meio aos civilistas, de texto com
norma, como antessala da segurança jurídica (a qual se confinaria na predeterminação
Stylus curiae é categoria de análise que, na comunidade jurídica lusófona, parece confinada à história do direito,
mas tem muito a agregar ao processo civil e por simetria, ao direito material, dado o caráter instrumental
daquele. Seus contornos são algo fluidos, mas parece acertado dizer-se que se trata dos “usos dos tribunais
a julgar questões semelhantes” (HESPANHA, Antonio Manuel. Cultura jurídica europeia: síntese de um milênio.
Florianópolis: Boiteux, 2005, p. 174). Ou melhor: das constâncias hauridas da prática redacional reiterada dos
tribunais. O estilo judicial, assim, é importante elemento de contraste entre o modelo de cortes superiores
— fiel à unidade entre texto e norma, pelo que protetivo à interpretação exata da lei, fixada com vistas para
o passado e sem força vinculante (MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas: do controle à
interpretação, da jurisprudência ao precedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 33-52) — e o de
cortes supremas — atento à distinção entre texto e norma, pelo que dedicado a atividade lógico-interpretativa
de atribuição de sentido, com vistas para o futuro e força vinculante (MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e
cortes supremas..., p. 53-78).
42
Cf. NUNES, Dierle; ALMEIDA, Helen; REZENDE, Marcos. A contribuição da doutrina na (con)formação do direito
jurisprudencial..., p. 343-344; e SCHREIBER, Anderson. Em que medida os pressupostos da constitucionalização do Direito Civil têm sido acolhidos pela construção jurisprudencial? Palestra proferida no II Congresso
Nacional do IBDCivil. Curitiba-PR, em 4 de setembro de 2014.
43
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial: a justificação e aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012, p. 313.
44
COSTA, Pietro. Democracia política e Estado Constitucional. Tradução de Érica Hartmann. In: COSTA, Pietro.
Soberania, representação, democracia: ensaios sobre a história do pensamento jurídico. Curitiba: Juruá,
2010, p. 255.
45
MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas..., p. 20-21.
46
MARINONI, Luiz Guilherme. O STJ enquanto corte de precedentes: recompreensão do sistema processual da
corte suprema. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 191-210.
47
MORAES, Maria Celina Bodin de. Humor, liberdade de expressão e responsabilidade. Palestra proferida no
Congresso Brasileiro de Direito Civil, Curitiba-PR, em 11 de junho de 2013.
41
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de enunciados normativos). Esta acepção formalista, enviesada e anacrônica, todavia
ainda dominante,48 desse elementar princípio representa grave risco à dinâmica do
precedente judicial no ordenamento jurídico pátrio. É que, na ebuliente tensão experimentada pelo Direito Civil brasileiro contemporâneo, o obsoleto formalismo interpretativo (com todos os cuidados que o emprego desta etiqueta demanda49) sucumbe
diante da compreensão da segurança jurídica como cognoscibilidade, confiabilidade,
calculabilidade e efetividade do direito, numa perspectiva dinâmica de controlabilidade semântico-argumentativa e garantia de respeito ao jurídico. Nesse sentido:
Em vez de se propor um conceito de segurança jurídica exclusivamente
vinculado à certeza por meio do conhecimento da determinação prévia e
abstrata de hipóteses legais e aferível mediante descrição da linguagem
— e para o qual o Direito é mera criação de um poder e precede, como
algo totalmente dado a sua própria atividade aplicativa —, apresenta-se
um conceito de segurança jurídica centrado no controle argumentativo e
constatável por meio do uso da linguagem, por meio do conhecimento de
critérios e de estruturas hermenêuticas, e para o qual o Direito é produto
da experiência e resulta da conjugação de aspectos objetivos e subjetivos inerentes a sua aplicação. A segurança jurídica deixa, assim, de ser,
no seu núcleo, mero fator lingüístico baseado na determinação prévia de
hipóteses legais, para centrar-se em um conjunto de processos de determinação, de legitimação, de argumentação e de fundamentação de premissas, de métodos e de resultados envolvidos na definição de normas
gerais e individuais. Em vez de algo pronto (“o Direito como segurança”),
a segurança jurídica denota algo a construir (“um direito à segurança”);
no lugar da “certeza semântica”, a “controlabilidade argumentativa”; no
espaço da “atividade descritiva”, um “conjunto de atividades reconstrutivas e decisionais”. Intenta-se, com isso, ultrapassar a compreensão da
segurança jurídica como garantia de conteúdo, baseada no paradigma
da determinação, para uma segurança jurídica como garantia de respeito, fundada no paradigma da controlabilidade semântico-argumentativa e
cuja realização depende de elementos, de dimensões e de aspectos a
serem conjunta, sintética e equilibradamente avaliados.50
Assim, por exemplo, THEODORO JUNIOR: “Advoga-se ostensivamente a supremacia de valores abstratos, por
engenhosas e enigmáticas fórmulas puramente verbais, que simplesmente anulam a importância do direito
legislado e fazem prevalecer tendenciosas posições ideológicas, sem preceitos claros e precisos que as
demonstrem genericamente e, por isso mesmo, permitem ditar por mera conveniência do intérprete e simples
prepotência do aplicador o sentido que bem lhes aprouver nas circunstâncias do caso concreto. (...) É nesse
plano que devemos voltar os olhos para a segurança jurídica antes de advogar qualquer reforma legislativa
e antes de agredir, às vezes, desnecessariamente, outras vezes, de maneira desastrosa, o direito positivo
e o sistema que o preside” (THEODORO JUNIOR, Humberto. A onda reformista do direito positivo e suas
implicações com o princípio da segurança jurídica. Revista da EMERJ, v. 9, n. 35, p. 17 e 21, 2006).
49
Faz-se a ressalva em atenção às argutas críticas que Rodrigues Junior dirige ao fragmentário Direito Civil
contemporâneo, sobretudo nos ataques que alguns propagandistas desta corrente dirigem ao positivismo
kelseniano (cf. RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Estatuto epistemológico do Direito Civil contemporâneo na
tradição de civil law em face do neoconstitucionalismo e dos princípios. O direito, ano 11, n. 143, p. 47,
2011).
50
ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. São
Paulo: Malheiros, 2011, p. 272.
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Assim, reformula-se “o conceito de segurança jurídica em função da argumentação que fundamenta as decisões judiciais e não exclusivamente em função do texto
legal”.51
É nessa nova (ressignificada) dimensão da segurança jurídica que se principia
a desenhar o potencial do sistema de responsabilidade civil brasileiro. Isso porque
muito se tem avançado no emprego de cláusulas gerais a situações concretas, no
sentido da obtenção de resultados satisfatórios. E os avanços, sobretudo em matéria
de definição do dano reparável, tendem a se confirmar e potencializar com a implosão
do modelo de cortes superiores e a consolidação do de cortes supremas. Assim, as
respostas dantes formuladas ganham novo fôlego e se recolocam como difusoras de
novas soluções, sobretudo com a abertura de novo arsenal de ferramentas.
Neste diapasão, o juízo concreto de atribuição do dever de reparar, centrado
já não mais na culpa e nexo causal, mas no dano, é reforçado pela dimensão de
segurança jurídica projetada pelo trato com o precedente judicial. E assim é por que
o juízo de reparação depende de diálogo com mecanismos que outorguem, com iteratividade, previsibilidade ao ordenamento.
Muito em síntese, o iter que se colhe, da literatura especializada, como ideal­
mente conducente à boa atribuição do dever de reparar, principia pela checagem
da observância do dever de respeito recíproco demandado pela relação jurídica fundamental, que se reporta tanto à esfera personalíssima de cada sujeito quanto à
patrimonial, porquanto o interesse humano tutelável diz respeito à idoneidade do
bem que tem por objeto para fins de atendimento de necessidades humanas.52 Se a
alegada lesão põe em xeque um interesse tutelado pelo direito, tem-se um forte indicativo de que se está diante de uma hipótese ensejadora de responsabilidade civil.
Se não houve, nesta primeira análise, inobservância ao dever universal de respeito,
prossegue-se à etapa seguinte, a qual consiste em “verificar se o interesse dito lesado (...) vem protegido por alguma norma do ordenamento jurídico”.53 Assim, se houver
norma jurídica protetiva ao interesse lesado (positivada em diplomas normativos ou
adscrita em decisões judiciais universalizáveis), prossegue-se à próxima etapa. Caso
contrário, não há dano reparável.
À mesma análise que se fez do interesse da vítima, deve se submeter o interesse do lesante. Destarte, se a conduta lesiva for vedada pelo ordenamento, o
dano gerado poderá ensejar reparação. Se, por outro lado, não houver proibição ou o
interesse do lesante for, também, protegido pelo direito, prossegue-se à verificação
da existência de norma jurídica (em sentido amplo) determinadora de prevalência
RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as cortes?: para uma crítica do direito (brasileiro). Rio de Janeiro:
FGV, 2012, p. 185.
52
LARENZ, Karl. Derecho justo: fundamentos de ética jurídica. Tradução de Luis Díes-Picazo. Madrid: Civitas,
1993, p. 55 e ss.
53
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entre os interesses conflitantes.54 Acaso um dos interesses possa ser afastado mediante aplicação de critérios interpretativos tradicionais, a lesão a interesse juridicamente tutelado de determinada pessoa pode configurar dano reparável, dependendo,
apenas, da existência de lesão concreta. Diferentemente, se o conflito permanecer,
segue-se a derradeira etapa: a ponderação dos interesses contendentes, “definindo
a relação de prevalência ente eles, com base na leitura das circunstâncias concretas
à luz do ordenamento jurídico”.55
Particularmente em relação à estabilização do vislumbre do escopo protetivo de
normas jurídicas e dos interesses jurídicos tutelados que, se violados, conformam
dano reparável,56 eloquente solução ofertada no bojo do modelo de cortes superiores
é tributária da chave grupos de casos típicos, enunciada por Martins-Costa. A partir
deste mecanismo, o conjunto das rationes decidendi invocadas pelas Cortes em
julgamentos sucessivos sobre determinadas questões disciplinadas por intermédio
de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados (é, com precisão, o caso da
responsabilidade civil) permitiria “a ressistematização desses elementos [normas
jurídicas individuais criadas pelo juiz, à luz dos princípios e diretrizes axiológicas do ordenamento], originalmente extrassitemáticos, no interior do ordenamento jurídico”.57
Isto é, já não mais se fala, com alarde, dos riscos inerentes ao rompimento da
clausura da segurança jurídica na predeterminação de textos normativos;58 a desconfiança em relação ao juiz, vetusto fator de reforço à projeção do juiz bouche de la loi,
dissolve-se como névoa no solo:
A técnica da cláusula geral será decisiva para uma construção do sistema
jurídico comprometido com a realidade social e concreta contemporânea.
O juiz merece a confiança dos operadores do Direito, carecendo-lhe, no
entanto, melhor compreender seu papel e a sua responsabilidade social,
por não ser ele um mero ‘aplicador da lei’, mas, de outro viés, um construtor do sistema jurídico, gozando de status constitucional para tanto.59
A atuação da magistratura (não retrospectiva e limitada à dicção do sentido da
lei, como no modelo de cortes superiores, mas prospectiva e ciente de seu caráter
criativo, já em diálogo com o modelo de cortes supremas), então, é o canal pelo qual
Cf. SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil..., p. 163-164.
SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil..., p. 166.
56
Cf. ALTHEIM, Roberto. Atribuição do dever de indenizar no direito brasileiro: superação da teoria tradicional
da responsabilidade civil. Curitiba. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal do Paraná, 2006, p. 123-125.
57
MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como um “sistema em construção”: as cláusulas gerais no projeto
do código civil brasileiro. RIL, ano 25, n. 139, jul./set. 1998, p. 8.
58
Cf. THEODORO JUNIOR, Humberto. A onda reformista do direito positivo e suas implicações com o princípio da
segurança jurídica..., p. 25-29.
59
NALIN, Paulo. Cláusula geral e segurança jurídica no código civil. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v.
41, n. 0, p. 97, 2004.
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noções metajurídicas se incorporam ao sistema pela via da atuação sucessiva e
prospectiva do intérprete.60
Os ecos do modelo das cortes superiores se fazem perceber, contudo, na medida em que “o alcance para além do caso concreto ocorre porque, pela reiteração dos
casos e pela reafirmação, no tempo, da ratio decidendi dos julgados, especificar-se-á
não só o sentido da cláusula geral, mas a exata dimensão de sua normatividade”.61
O critério, apesar de avançado em relação ao formalismo exegético, ainda é o da
jurisprudência, não do precedente — muito embora este já venha sendo debatido por
civilistas de outras escolas.62 Daí situar-se no caminhar, na sede das percepções de
mudanças ainda por vir.
A alteração de perspectiva, portanto, já se coloca no campo de percepções dos
setores atentos da comunidade jurídica brasileira. E nem se trata apenas da literatura
vanguardista: também as Cortes a vêm, paulatinamente, assimilando. Disso é suficiente indício o acórdão pelo qual a Terceira Turma do STJ julgou o REsp nº 959.780/
ES, em que não obstante o uso de alguns critérios próprios do modelo de cortes superiores (especificamente, a chave do grupo de casos típicos), editou-se vero e próprio
precedente. É que, por intermédio desse acórdão, a Corte de Vértice estabeleceu, em
decisão transcendente e universalizável, referenciais valorativos e o caminho a ser
trilhado pela magistratura para o arbitramento do quantum compensatório de dano
moral indireto, pela morte de ente querido, sem perder de vista o caso que se estava
a resolver. As normas adscritas constitutivas de suas rationes decidendi parecem
ser “aplicáveis a todos os universos de situações que possam eventualmente ser
enquadráveis em suas hipóteses normativas”.63
3 A concretização da mudança: a dogmática jurídica,
a afirmação do precedente judicial e o sistema de
responsabilidade civil brasileiro
À medida que se avança na espinhosa travessia do modelo de cortes superiores ao de cortes supremas, do formalismo exegético às contemporâneas teorias da
interpretação, começa-se a vislumbrar, no horizonte, o desenho do pórtico que se
projeta para além da margem. Assim, a crescente valorização da função pretoriana,
impulsionada pela tomada a sério da magistratura pelos próprios magistrados, pela
MARTINS-COSTA, Judith. Os direitos fundamentais e a opção culturalista do novo código civil. In: SARLET,
Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2003, p. 81.
61
MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como um “sistema em construção”..., p. 10.
62
Cf. TIMM, Luciano Benetti. O novo Direito Civil: ensaios sobre o mercado, a reprivatização do Direito Civil e a
privatização do direito público. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 55.
63
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial..., p. 275.
60
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introdução do precedente judicial nos perímetros do ordenamento jurídico brasileiro
e pela consequente revalorização do papel da dogmática, parece apontar para um
modelo de responsabilidade por danos apto a oferecer a segurança que do direito
se espera. Não se trata, como visto, duma segurança confinada na textualidade de
enunciados normativos, mas de cognoscibilidade e efetividade do direito, haurida da
intersecção de razões e autoridade,64 amarrada por um juiz que não mais se pretenda
Júpiter ou Hércules, mas Hermes.65 Desse modo, as cláusulas gerais e conceitos
jurídicos indeterminados, antes tidos como irradiadores de insegurança jurídica,66
tornam-se, eles mesmos, fatores de agregação, polos de convergência desta segurança ressignificada, porque complementados pela atuação criativa e estabilizadora
da judicatura:
Diante da cláusula geral, o juiz tem poder para elaborar a norma adequada à regulação do caso; a cláusula é texto legislativo que conscientemente lhe dá amplo espaço para participar da elaboração da norma
jurídica. A técnica das cláusulas gerais tem como premissa a ideia de
que a lei é insuficiente e, nesse sentido, constitui elemento que requer
complementação pelo juiz.
(...)
Só o respeito aos precedentes da Corte Suprema pode deixar claro que
a cláusula geral se destina a dar ao Judiciário poder de elaborar a norma de aplicação geral, ainda que atenta a uma circunstância específica
insuscetível de ser defendida à época da edição do texto legal. Ou seja,
a norma judicial derivada da técnica legislativa das cláusulas gerais, não
obstante considere uma circunstância que surge no caso concreto, deve
ter caráter universalizante, na medida em que não terá racionalidade
caso não puder ser aplicada aos casos futuros marcados pela mesma
circunstância.67
Desse modo, particularmente no que respeita ao problema recortado por esta
análise, a concreção do precedente judicial na condição de mecanismo estabilizador
próprio do modelo de cortes supremas lança novas luzes sobre a outorga de estabilidade e previsibilidade à definição do dano reparável (injusto). É que, a um só tempo,
impõe precedência (ao menos prima facie) das diretrizes interpretativas e referenciais
valorativos transcendentes, empregados por Cortes intermediárias e de Vértice, sobre a contingência de cada caso ulterior, em relação à dimensão de tutela jurídica
V. BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial..., p. 317-318.
Cf. OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez. Revista sobre Enseñanza del Derecho. ano 4,
n. 8, p. 101-130, 2007.
66
V. THEODORO JUNIOR, Humberto. A onda reformista do direito positivo e suas implicações com o princípio
da segurança jurídica..., p. 30; e WIEACKER, Franz. Privatrechtsgeschichte der Neuzeit unter besonderer
Berücksichtigung der deutschen Entwicklung. 2. ed. Göttingen: Van den Hoeck und Ruprecht, 1996, p. 476-477.
67
MARINONI, Luiz Guilherme. A ética do precedente..., p. 60 e 62.
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ofertada a cada interesse conflitante e ao sentido das normas protetivas invocadas
pelos litigantes. “Desse modo, os juízes não podem ignorar as decisões anteriores,
o que significa que não podem decidir do nada (ex nihilo), ou seja, mesmo em caso
de superação do precedente por overruling ou distinguishing, deverá o juiz partir das
decisões anteriores e justificar o motivo de sua não aplicação.”68 Com isso, não se
extingue o problema da delimitação de quais sejam os danos injustos, mas, à medida
que se sedimenta o sistema de precedentes judiciais, deixa-se de ignorar a identidade e a medida de proteção de variados interesses juridicamente tutelados.69 De
mais a mais, sem olvidar de que a formação do precedente se dá de forma paulatina
e dinâmica,70 rompem-se as amarras inerentes à proposta de atribuição de sentido
às cláusulas gerais a partir da leitura de grupos de casos típicos, na medida em que:
Os conceitos indeterminados, pela sua própria natureza, facilmente se
amoldam à alteração da realidade social. A permeabilidade desses conceitos confere ao Judiciário maior facilidade para adequar o direito aos
novos tempos. Isso não quer dizer, entretanto, que o Superior Tribunal de
Justiça não tenha que definir o sentido de um conceito indeterminado em
face de uma específica situação no tempo. Trata-se de função essencial
da Corte, uma vez que há necessidade de definir-se o sentido em que um
conceito indeterminado deve ser compreendido em determinado momento histórico, evitando-se a sua múltipla e incoerente aplicação em face
de casos similares.71
Isto é: mais vale a similitude fática entre a causa levada a julgamento com
apenas um paradigma que a reiteração de determinado resultado para circunstâncias semelhantes, mas não tão bem delineadas. A transcendência substitui a repetição. O sistema, portanto, ganha, ao mesmo tempo, flexibilidade, estabilidade e
previsibilidade.
As teorizações acerca do precedente judicial, sobretudo, como sintoma do perfazimento dum modelo de corte suprema no Brasil, não é, entretanto, a salvação da
QUEIROZ BARBOZA, Estefânia Maria de. Precedentes judiciais e segurança jurídica: fundamentos e possibilidades para a jurisdição constitucional brasileira. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 31.
69
O problema a que se refere é, precisamente, aquele que se considera dos mais difíceis no direito privado
contemporâneo: “Um dos problemas mais difíceis do Direito privado contemporâneo consiste na determinação
de quais são os ‘danos injustos’, pois não se sabe previamente quais são todos os interesses juridicamente
protegidos. É a partir da análise dos casos concretos que se conclui pela injustiça ou não de um dano, não
existindo um rol prévio de danos indenizáveis. (...) Apesar da caracterização do dano como injusto não estar
apegada apenas à verificação dos aspectos subjetivos da conduta do lesionante, não se pode negar que tal
exercício depende da ponderação contraposta dos interesses do lesionante e da vítima. A princípio todo dano
sofrido será injusto, salvo se partir de uma valoração comparativa dos interesses em conflito se concluir que o
ato lesionante era justificado. Certo é que esses interesses devem estar contidos no âmbito de proteção das
normas jurídicas” (ALTHEIM, Roberto. Atribuição do dever de indenizar no direito brasileiro..., p. 124-125).
70
A propósito: NUNES, Dierle; ALMEIDA, Helen; REZENDE, Marcos. A contribuição da doutrina na (con)formação
do direito jurisprudencial..., p. 311.
71
MARINONI, Luiz Guilherme. O STJ enquanto corte de precedentes..., p. 95-96.
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A responsabilidade civil para além dos esquemas tradicionais...
lavoura da responsabilidade por danos, dada a indispensabilidade de mediação da literatura jurídica especializada, que também colaborou para deflagrar a tematização do
dano injusto e do precedente — e, especialmente quanto ao último, dar-lhe força suficiente para alcançar o direito positivo. Assim, deve-se retomar a participação cidadã
da literatura jurídica na (re)construção e atuação do direito, pela via da interpretação e
integração, colmatação de lacunas e exercício de tarefa crítica de jurisprudência,72 de
modo a minimizar a discricionariedade e a arbitrariedade que, inevitavelmente, advêm
do sufocamento de sua voz criativa pela prevalência da judicatura.
Com efeito, a doutrina deveria desempenhar respeitável influência, especialmente sobre três espaços jurídicos: nos cursos de formação jurídica;
na elaboração das leis e nas atividades jurisdicionais. A doutrina também deveria ter precípua função contributiva da atividade jurisdicional,
na construção da jurisprudência e na fundamentação de suas decisões,
confirmando ou modificando orientações aplicadas pelos tribunais.73
Destarte, a consagração desse mecanismo padronizador no direito positivo brasileiro não basta para resolver os complexos problemas inerentes à responsabilidade
por danos. Seria ingênuo pensar o contrário. Seja como for, a desobstrução de canais
de diálogo entre a literatura jurídica e os tribunais, na linha do que sugerem, com
propriedade, Nunes et al,74 parece indispensável para a recompreensão das possibilidades atuais e potenciais sistema de responsabilidade civil brasileiro, no sentido de
livrar-lhe do sítio da aleatoriedade de seus resultados.75
4 Apontamentos conclusivos
O Direito Civil brasileiro contemporâneo se insere em importante momento de
holística ruptura, no qual se arrostam diferentes concepções teóricas a respeito de
significantes elementares, como norma jurídica, interpretação, adjudicação e segurança jurídica. Na transição que se desenha, compreensiva das pontes que levam do
vetusto modelo de cortes superiores ao contemporâneo modelo de cortes supremas,
os problemas inerentes ao modelo de responsabilidade civil albergado pelo Código
de 2002 ganham corpo e começam a acenar para respostas que se delineiam neste
novo horizonte de sentido. A ressignificação da segurança jurídica — que rompe os
Cf. FACHIN, Luiz Edson. Direito civil…, p. 184.
NUNES, Dierle; ALMEIDA, Helen; REZENDE, Marcos. A contribuição da doutrina na (con)formação do direito
jurisprudencial..., p. 336.
74
NUNES, Dierle; ALMEIDA, Helen; REZENDE, Marcos. A contribuição da doutrina na (con)formação do direito
jurisprudencial..., p. 346-351.
75
Exemplos de iniciativas declaradamente voltadas a esta (re)compreensão são as já citadas obras de Marinoni
(O STJ enquanto corte de precedentes: repensando o papel processual da Corte Suprema) e de Mitidiero
(Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente).
72
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grilhões que a confinavam na predeterminação de enunciados normativos —, acoplada ao mecanismo estabilizador do precedente judicial e a uma postura hermenêutica
ao mesmo tempo tópica e sistemática parece dar novos contornos ao dano reparável,
última fronteira do juízo de reparação. Com isso, desenham-se as possibilidades de
(re)estruturação e atuação prospectiva do sistema contemporâneo de responsabilidade civil brasileiro, a confirmarem-se pela revitalização do papel crítico e transformador
da dogmática jurídica.
Curitiba, junho de 2015.
Civil Liability Beyond Tradition: Contemporary Prospects on Personal Injury
Abstract: Brazilian civil law currently undergoes a holistic fracture in which most of its most important
signifier — such as personal injury, legal certainty and adjudication — assume renewed meanings. This
article aims at outlining the state of these affairs in civil liability and at sketching ruptures yet to come, in the
light of what avant-garde legal scholars have recently been developing. It departs from the downfall of the
traditional Rechtstaat and the subsequent rise of contemporary constitutional state, the re-apprehension
of the role played by supreme courts, and the refunctionalization of civil liability, to identify precisely
where we are (and from whence we depart), the ongoing Verwandlung and the portico jutting beyond the
margin. In this manner, it sketches a prospect of Brazilian-style civil liability, through the lenses of legal
certainty, mediated by judicial precedent. At the end, it diagnoses the present-day intersection of notable
symptoms of the rise of constitutional state, the emergence of a Supreme Court model — in opposition
to traditional civil-law Superior Courts — and of the reinvention of civil liability into a model that resembles
German Schadensrecht or Hispanic derecho de daños, and underlines the indisputable importance of legal
scholarship in the development and work of Brazilian civil liability, as well as in its fitting into the unity and
complexity of the wide-framed legal order.
Keywords: Personal Injury. Legal Certainty. Judicial Precedent. Civil Liability. Tort Liability.
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A responsabilidade civil para além dos esquemas tradicionais...
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):
RAMOS, André Luiz Arnt. A responsabilidade civil para além dos esquemas
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de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 13-33, set./dez. 2015.
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Responsabilidade preventiva: elogio
e crítica à inserção da prevenção na
espacialidade da responsabilidade civil
Marcelo Luiz Francisco de Macedo Bürger
Mestrando em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pósgraduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBET). Membro
do grupo de pesquisa em direito civil-constitucional Virada de Copérnico (UFPR). Presidente
da Comissão de Relações Acadêmicas do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
Membro consultor da Comissão Especial da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB.
Rafael Corrêa
Mestrando em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Especialista em Direito Público, com ênfase em Direito Constitucional, pela Escola de
Magistratura Federal do Estado do Paraná (ESMAFE/PR) e UniBrasil. Professor de Direito
Constitucional, Responsabilidade Civil e Contratos das Faculdades Opet (Curitiba/PR).
Advogado militante na área da Responsabilidade Civil. Pesquisador integrante do Núcleo
de Estudos em Direito Civil-Constitucional da Universidade Federal do Paraná (Virada de
Copérnico/UFPR) no eixo de Relações Jurídicas Contratuais e Responsabilidade Civil.
Resumo: partindo da exposição de como a doutrina valeu-se da interpretação civil-constitucional para realizar
a transformação da responsabilidade civil do Estado Liberal na responsabilidade civil contemporânea,
percurso que logrou relativizar até mesmo seus elementos essenciais, evidencia-se que a reformulação
da função da responsabilidade civil não despertou o mesmo interesse. Ainda que há muito se falasse na
finalidade preventiva da responsabilidade civil, o tema foi pouco explorado durante a citada transformação.
A partir daí, o texto examina a estrutura (como funciona) e função (a que serve) da responsabilidade
preventiva, através dos mecanismos de direito material que a instrumentalizam e de como tem sido
aplicada no direito comparado. Ao final, apresenta um elogio à função, porém, critica a inserção dos
mecanismos até agora propostos dentro da espacialidade da responsabilidade civil, deixando claro que o
desafio da doutrina contemporânea será construir uma estrutura sistematicamente coerente que consiga
inserir a prevenção no Direito Civil brasileiro.
Palavras-chave: Responsabilidade civil. Prevenção. Função. Direito civil-constitucional.
Sumário: 1 Novos anseios, velhas ferramentas: o papel da interpretação na (re)construção da
responsabilidade civil – 2 A ressignificação da prevenção pelo Direito Civil contemporâneo – 3 Da cátedra
à corte: a aplicação da responsabilidade preventiva no direito comparado – 4 A prevenção no Direito Civil
brasileiro: elogio e crítica à função e estrutura – 5 Notas conclusivas – Referências
1 Novos anseios, velhas ferramentas: o papel da interpretação
na (re)construção da responsabilidade civil
Dentre os campos específicos do direito privado, certamente a responsabilidade civil se destaca na contemporaneidade por despertar interesse cada vez maior,
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Marcelo Luiz Francisco de Macedo Bürger, Rafael Corrêa
seja em aspecto acadêmico, pelas relevantes construções teóricas erigidas na última
década sobre o tema, ou mesmo em aspecto prático, pelo desafio constante de oferecer resposta às mais criativas e inéditas problemáticas oriundas dos fatos sociais.
Ancorada na culpa desde a época de Justiniano1 e com pressupostos rigidamente estabelecidos, a responsabilidade civil da modernidade exigia a ocorrência de um
fato ilícito culposo que através de um claro nexo de causalidade tenha acarretado um
dano concreto à vítima. A ausência de qualquer desses elementos, a serem provados
por aquele que sofreu o evento lesivo, levava à improcedência de qualquer pedido de
reparação.
Os Códigos da modernidade bem demonstram essa configuração estanque da
responsabilidade civil. Até mesmo pela sua essência liberal em vistas a beneplacitar
a ampla liberdade privada, o direito da responsabilidade civil foi esteado nesta tríplice
base que envolvia culpa, dano e nexo de causalidade, tanto para hipóteses de ilícitos
relativos como para ilícitos absolutos, que vincam efetivamente a diferenciação entre
responsabilidade civil contratual e extracontratual.2
O enunciado do art. 159 do Código Civil de 1916 bem elucida tais pressupostos: “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar
direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”. Esse modelo de
responsabilidade, tal qual o próprio Código Civil de então, apresenta-se como sintoma
das codificações do século XIX, reconhecidamente marcadas pelo dogmatismo científico e pretensões de certeza e definitividade.3
Tais contornos, por certo, não poderiam manter-se.4 O próprio desenvolvimento
da sociedade exigiu do Direito respostas a problemas que não poderiam ser adequadamente solucionados pela estrutura moderna da responsabilidade civil.
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Tendências atuais da responsabilidade civil: marcos teóricos
para o direito do século XXI. In: DINIZ, Maria Helena; LISBOA, Roberto Senise (Org.). O Direito Civil no século
XXI. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 217.
2
Rodrigo Xavier Leonardo parte da máxima neminem laedere para precisar, a partir do mesmo núcleo, a
diferenciação dogmática e histórica entre os polos mais típicos da responsabilidade civil: “Partindo-se da ideia
de relação obrigacional como um todo — processualizada e polarizada pela finalidade do adimplemento —,
destaca-se a indagação sobre as eventuais consequências jurídicas provenientes a frustração desse norte
teleológico. Vale dizer, quais seriam as respostas dadas pelo Direito nos casos de frustração do processo
obrigacional? Para responder essa questão, o direito privado tradicionalmente adotou a diferenciação entre a
responsabilidade civil contratual e responsabilidade civil extracontratual. Essa distinção, por sua vez, costuma
ser explicada pelos manuais de Direito Civil brasileiro a partir da diversidade das fontes a partir das quais
poder-se-ia depreender o dever de indenizar” LEONARDO, Rodrigo Xavier. Responsabilidade civil contratual e
extracontratual. In: NERY JR. Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Doutrinas essenciais: responsabilidade
civil. v. I. Teoria Geral. São Paulo: RT, 2010, p. 392.
3
“Em essência, sob os ares desse sentido de codificação, navegou-se pelo século XIX, sob uma concepção
autoritária e dogmática da ciência; os saberes se projetavam em pretensões de universalidade e as questões
do método eram todas submetidas à solução pelo conhecimento científico, com pretensões de certeza e
definitividade” (FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar,
2015, p. 79).
4
Diversas questões comprovam tal perspectiva. Desde o deslocamento da ênfase anteriormente dada ao causador do dano para aquele efetivamente o suporta até a sua crescente objetivação, fato é que a configuração
do dever de reparar projetado na responsabilidade civil foi objeto de uma intensa modificação, fruto também
1
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Responsabilidade preventiva: elogio e crítica à inserção da prevenção...
De um lado, as categorias jurídicas da responsabilidade civil moderna não ofereciam suporte às novas demandas; de outro, doutrina e tribunais viam-se impelidos a
solver situações para as quais não havia um modelo de responsabilidade. Tal conflito
revela a insuficiência do modelo clássico às questões que escapam a sua moldura, o
que não passou desapercebido a Luiz Edson Fachin:
Esse problema parece mera controvérsia conceitual. Não o é. E não o
é porque não se trata tão somente de alcançar resultado prático com
solução que encontre justificação. Versa, isso sim, sobre as dificuldades
inegáveis que, na almejada harmonia lógica, decorrem de conceituações
a priori. Em tais casos, os conceitos são afastados porque o Direito reclama soluções. Nada mais improvável que ofertar soluções, que colmatar vazios. Uma missão realmente indeclinável para manter a estrutura
do sistema conceitual.5
Essa a espacialidade da margem de partida da transição da responsabilidade
moderna para a contemporânea. Com o advento da Constituição Federal de 1988,
realocando o vértice do ordenamento jurídico na dignidade da pessoa humana e na
realização da justiça social, tornou-se imprescindível a reestruturação da responsabilidade civil para que, de fato, pudesse instrumentalizar os valores e anseios consagrados pela Constituição.
As vozes da Carta da República, entretanto, não foram suficientemente ouvidas pela codificação de 2002, ao menos não na seara da responsabilidade civil.
Promulgado oitenta e seis anos após o código ao qual sucedeu, e catorze anos após
a Constituição, o “novo” Código Civil trouxe consigo inovações de grande relevo, como
a responsabilidade objetiva nos casos previstos em lei e quando o dano decorrer de
risco da atividade (art. 927), ampliou a responsabilidade do incapaz (art. 928), a
adoção da teoria do risco-proveito na responsabilidade por fato de outrem (art. 932
e 933), entre outras,6 porém, limitou-se a repetir a redação da cláusula geral da responsabilidade civil insculpida no antigo art. 159 em seu artigo 186.
do reconhecimento da inserção direta de princípios e pressupostos da Constituição Federal em todas as searas do Direito Civil. Emerge daí, pois, uma série de discussões, como bem aponta Gustavo Tepedino: “Diante
do novo panorama legislativo, doutrinário e jurisprudencial, polarizou-se o discurso jurídico entre aqueles que
identificam na ampliação do dever de reparar uma vitória em si mesma, atribuindo ao Estado e aos empresários praticamente todos os ônus decorrentes da atividade produtiva; e, de outra parte, os que denunciam uma
indústria de danos, propiciadora de verdadeiro enriquecimento sem causa.” TEPEDINO, Gustavo. O futuro da
responsabilidade civil [Editorial]. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 24, p. iii.
5
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 50. Ressalte-se que
no excerto transcrito, entretanto, o autor não se refere à responsabilidade civil, mas ao conceito de nascituro,
que não é pessoa, mas é titular de direitos, ou seja, o Código confere poder a quem poder não poderia ter. De
qualquer modo, a observação é absolutamente aplicável ao tema em análise.
6
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Tendências atuais da responsabilidade civil: marcos teóricos
para o direito do século XXI. In: DINIZ, Maria Helena; LISBOA, Roberto Senise (Org.). O Direito Civil no século
XXI. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 224-227.
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Não seria a legislação, portanto, a adequar o direito posto às demandas da
sociedade. Entre a promulgação da Constituição de 1988 e a vigência do Código Civil
de 2002, tendo à disposição apenas as velhas ferramentas da codificação de 1916,
coube à doutrina a missão de reconstruir a responsabilidade civil, revendo sua função, estrutura e elementos, para que só então pudesse ela responder às situações
que emergiam do plano da vida. Nem poderia ser diferente: “não se pode ser justo,
aplicando o direito, quem não no sabe. A ciência há de preceder ao fazer-se justiça e
ao falar-se sobre direitos, pretensões, ações e exceções”.7
Nesse cenário, marcado em um primeiro momento pelo descompasso entre
uma Constituição Cidadã e um Código novecentista, e sequencialmente pela promulgação de uma codificação que ainda refletia as matrizes ideológicas e estruturais da modernidade, o método da interpretação civil-constitucional desenvolvido por
Pietro Perlingieri na Itália e difundido no Brasil sobretudo por Maria Cristina de Cicco,
Gustavo Tepedino e Maria Celina Bodin de Moraes, “surge como opção viável de
aplicação atualizada do Direito Civil, na medida em que autoriza a ampliação do circuito do sistema civil fechado para uma dimensão mais ampla, para uma dimensão
civil-constitucional”.8
Consiste esse método hermenêutico em realizar a constante releitura do Direito
Civil a partir da eficácia direta que as normas constitucionais irradiam, buscando, em
síntese, remodelar as categorias jurídicas do Direito Civil para nelas incluir os valores
constitucionais e buscar a máxima realização do projeto constitucional.9
Sua aplicação e, antes, compreensão demandam a prévia superação de “alguns
graves preconceitos” típicos da hermenêutica da modernidade e o reconhecimento
de três pilares centrais do método. Exige que o intérprete reconheça: a) a natureza
normativa dos princípios constitucionais, que não se limitam ao papel secundário de
suprir lacunas;10 b) a unidade e complexidade do ordenamento jurídico, que gravita
em torno dos valores constitucionais e pelas órbitas por eles desenhada; e c) que
a interpretação não pode se limitar a subsunção do fato à norma, devendo comprometer-se com a aplicação sistêmica, dialética, aberta e plural do direito de modo a
efetivamente realizar os valores constitucionais.11
Tais premissas implicam, dentre outras constatações, a despatrimonialização
do direito civil, eis que a leitura das relações privadas sob as luzes da constituição,
que elege como vértice a dignidade da pessoa humana, enseja o distanciamento
MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Prefácio. Tomo I. Atualizado por Judith Martins-Consta et al.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 26.
8
NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2008, p. 31.
9
SCHREIBER, Anderson. Direito Civil e Constituição. São Paulo: Atlas, 2013, p. 6.
10
TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do Direito Civil. In: TEPEDINO,
Gustavo (Org.) Temas de Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 18-21.
11
SCHREIBER, Anderson. Direito Civil e Constituição. São Paulo: Atlas, 2013, p. 15. FACHIN, Luiz Edson. Direito
Civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 117.
7
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do individualismo patrimonialista e a funcionalização das relações patrimoniais, cuja
leitura deve privilegiar os valores existenciais aos materiais. Prevalece o ser sobre o
ter. Não se trata de desconstituir ou negar eficácia às relações patrimoniais, mas sim
colocar os valores existenciais em um locus de preferência sobre os patrimoniais.
Eis, aí, a ferramenta que permitiu à doutrina e, na sequência, aos tribunais,
exercer com completude sua função de interpretar, reconstruir e aplicar as normas de
direito privado de modo a compatibilizá-las com a Constituição. Para além de método
de interpretação, a constitucionalização se releva como fundamento do Direito Civil,
e como tal “se destina a construí-lo teórica e pragmaticamente nos caminhos para a
solução correta dos casos”.12
Na travessia do Direito Civil calcado na ideia do código como “constituição do
direito privado” para um direito civil-constitucional, cada um dos até então rígidos
elementos da responsabilidade foram flexibilizados a fim de possibilitar a transição
para o modelo da responsabilidade civil contemporânea.
É o que o Anderson Schreiber chamou de erosão dos filtros da responsabilidade
civil. A culpa perdeu o espaço dominante que outrora ocupava na configuração do
dever de indenizar,13 mesmo no campo contratual,14 expandindo-se as hipóteses de
culpa presumida ou mesmo de responsabilidade sem culpa. A pluralidade das novas
formas de dano desafiou a concatenação de uma nova percepção acerca da tutela
individual e coletiva de bens jurídicos em conjunto15 a uma nova interpretação da
responsabilidade civil como um “direito de danos”.16
Nem mesmo o nexo de causalidade restou imune à transição. Diversas teorias
foram desenvolvidas para remodelar a causalidade, aceitando-se em algumas que a
causalidade seja equivalente, adequada, direta ou imediata, suficiente, entre tantas
outras, de modo que, seja qual fosse a hipótese fática a exigir resposta jurídica, alguma
FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 116.
Emerge daí as ponderações acerca da “objetivação” da responsabilidade civil, ensejada, além das diretrizes
constitucionais, também pela fórmula decorrente do art. 927, parágrafo único, do CC/2002. Para tanto, ver:
TEPEDINO, Gustavo et al. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006. v. II, p. 807 e ss.
14
Do mesmo modo, sobre o fim da predominância da culpa na seara do inadimplemento contratual, ver:
CATALAN, Marcos. A morte da culpa na responsabilidade contratual. São Paulo: RT, 2013.
15
Como bem explica Anderson Schreiber: “À parte a questão das ações coletivas de reparação, parece inegável
que, sob o ponto de vista substancial, a tutela dos interesses supraindividuais veio revelar a insuficiência da
dicotomia dano moral-dano patrimonial e propor novos problemas, como se vê particularmente da discussão
do chamado ‘dano moral coletivo’. Pressupõe a figura que seja possível causar dano moral de forma difusa,
afetando-se uma comunidade de pessoas, para além da individualidade de cada um” SCHREIBER, Anderson.
Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 5. ed.
São Paulo: Atlas, 2013, p. 88.
16
Tal interpretação pode ser capturada na análise de Daniel de Andrade Levy: “Essa é a proposta que aqui
fazemos, de um verdadeiro Direito dos Danos, disciplina que reuniria todas as regras atinentes ao processo
de indenização da vítima e cujo fundamento metodológico seria a sua tutela prioritária. A autonomização desse
conjunto não é uma construção nova, mas apenas uma constatação de que o processo de reparação tem
assumido um caráter cada vez mais independente.” LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade civil: de um
direito de danos a um direito de condutas lesivas. São Paulo: Atlas, 2012, p. 224.
12
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das teorias seria capaz de oferecer suficiente vínculo entre o fato e o dano,17 e em
certa medida passa-se a admitir até mesmo a responsabilidade independentemente
de nexo de causalidade,18 de modo a não deixar que a estrutura da regra prejudique
a concretude dos valores constitucionais de proteção à pessoa.
A própria função da responsabilidade civil muda sua direção. Tradicionalmente
voltada a sancionar o comportamento culposo, prefere agora reparar a vítima, ainda
que para isso pulverize a responsabilidade entre vários agentes que potencialmente
se relacionem com o dano sofrido, deslocando-se, ainda que apenas em situações
pontuais, da responsabilidade para a solidariedade.19
Tamanha a virada copernicana da responsabilidade civil que não raro verifica-se
na doutrina apontamentos no sentido de que a responsabilidade civil passa por um
momento de crise, cuja estabilidade só se atingiria com a construção de critérios
seguros e harmônicos ao sistema constitucional vigente, papel, novamente, desempenhado pela doutrina.20
Mas ainda que se tenha alterado o tripé fundamental da responsabilidade civil, manteve-se a centralidade de sua finalidade reparatória: a responsabilidade civil
consolidar-se-ia como mecanismo repressivo de oposição à violação de um dever
jurídico previamente existente, seja ele de ordem absoluta ou relativa, uma vez que
é nessa lógica que a reparação de danos materiais e compensação de danos morais
operaram — e ainda operam — na lógica jurídica pátria.
FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Responsabilidade por danos: imputação e nexo de causalidade. Curitiba:
Juruá, 2014, passim; SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos
filtros da reparação à diluição dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 56-68.
18
“Situação que também emerge como exemplar é a imputação sem nexo de causalidade na responsabilidade
por danos. Não raro se vê a reafirmação tradicional do nexo para imputar responsabilidade, o que, de todo
correta, pode não ser, em determinados casos, o mais justo concretamente para a vítima. Quando assim, a
direção pode indicar a renovação do conceito de causa, e especialmente do nexo causal. A imputabilidade tem
no centro a preocupação com a vítima; a imputação é a operação jurídica aplicada à reconstrução do nexo.
Da complexidade e da incerteza nascem fatores inerentes à responsabilização por danos. É de alteridade e
de justiça social que deve se inebriar o nexo de causalidade, atento à formação das circunstâncias danosas”
(FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 86).
19
GIUSTINA, Vasco Della. Responsabilidade civil, causalidade alternativa e a jurisprudência. In: MARTINS-COSTA,
Judith; FRADERA, Vera Jacob de (Coord.). Estudos de Direito Privado e Processual Civil: em homenagem a
Clóvis do Couto e Silva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 327-337.
20
Aqui faz-se uma evidente alusão à salutar pesquisa efetivada por Anderson Schreiber na obra Novos
paradigmas da responsabilidade, dedicada a perscrutar o novo momento que abarca a responsabilidade civil
no direito pátrio. Em prefácio à referida obra, Maria Celina Bodin de Moraes aponta, com atenção maior às
novas formas de dano, que: “Um pouco de ordem é justamente com que sonham aqueles que se dedicam
ao estudo da responsabilidade civil [...]. Observa-se atualmente uma inundação de novos danos ressarcíveis,
nada criteriosa, capaz de pôr em risco — em vez de proteger — os próprios fundamentos éticos e sociais
que deram origem à extensão da responsabilização. Diante da premissa, autoexplicativa, de que nem todo
dano pode ou deve ser reparado, o cerne do direito da responsabilidade civil passou a ser o estabelecimento
de critérios — ou dos critérios — que justificam a transferência a outrem do prejuízo sofrido pela vítima em
virtude da lesão a um bem jurídico seu.” MORAES, Maria Celina Bodin. Prefácio. In: SCHREIBER, Anderson.
Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 5. ed.
São Paulo: Atlas, 2013, p. XII.
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E é justamente no contraponto dessa proposição que volta à cena o tema da
responsabilidade civil preventiva: em lugar de apenas tutelar, por meio de reparação ou compensação, os bens/direitos/deveres jurídicos violados, ter-se-ia espaço
também para a responsabilidade civil ocupar-se em prevenir a ocorrência de tais
hipóteses lesivas?21
2 A ressignificação da prevenção pelo Direito Civil contemporâneo
A prevenção22 não é tema novo no campo da responsabilidade civil, mas não
recebeu o mesmo prestígio e atenção que outros temas desse ramo. Ainda que há
muito cogitada como princípio, função, ou mesmo fundamento da responsabilidade
civil, a prevenção ficou fora do retrato da responsabilidade civil moderna. Fora, mas
não esquecida. Pelo contrário, a prevenção vem sendo resgatada e remodelada para
ocupar seu espaço no Direito Civil, ainda que com novos contornos.
Aguiar Dias, em seu clássico Da responsabilidade civil expõe o esboço traçado
por G. Marton para uma teoria unificada da responsabilidade civil, em contraposição
à divisão entre responsabilidade contratual e extracontratual.23 A teoria unificada de
Marton estabelece como primeiro fundamento da responsabilidade civil o princípio
de prevenção, estranhando “que nunca se tenha atribuído a merecida importância à
ideia da prevenção”.24 Diz o autor:
A prevenção é o primeiro princípio não somente da repressão penal, mas
também da repressão civil. Pena e reparação, profundamente diferentes
na estrutura interna, são, sem embargos, meios iguais da política legislativa; servem, como disse muito bem Von Liszt, em derradeira análise, ao
mesmo fim social, a defesa da ordem jurídica, lutando contra a injustiça.25
Aguiar Dias, embora aceite ponto a ponto a posição de Marton, observa que
responsabilidade civil não pode ter por fundamento primário apenas a prevenção.
Como já se alertou, tem-se na doutrina diversos trabalhos que abordam o caráter preventivo da responsabilidade
civil. Nada obstante, destaca-se singularmente sobre o tema a tese erigida por Thaís Goveia Pascoaloto
Venturi, intitulada Responsabilidade civil preventiva: a proteção contra a violação dos direitos e a tutela
inibitória material” (São Paulo: Malheiros, 2014), ante o enfoque único dado a tal perspectiva, servindo, pois,
como base central ao presente tópico deste trabalho.
22
Ainda que alguns autores tomem os termos prevenção e precaução em sentidos distintos, tendo o primeiro
objetivo de evitar danos prováveis e o segundo de evitar danos possíveis (cf. GONDIM, Glenda Gonçalves.
Responsabilidade civil sem dano: da lógica reparatória à lógica inibitória. Tese (Doutorado) – Universidade
Federal do Paraná, 2013, p. 202), toma-se aqui a prevenção como gênero, de modo a abarcar tanto os danos
prováveis quanto os possíveis.
23
AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 11. ed. Atualizada por Rui Berford Dias. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, passin.
24
AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 11. ed. Atualizada por Rui Berford Dias. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 120.
25
MARTON, G. Les fondements de la responsabilité civile, 1938, nº 70, apud AGUIAR DIAS, José de. Da
responsabilidade civil. 11. ed. Atualizada por Rui Berford Dias. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 121.
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Acredita o autor que a prevenção é de fato um dos fundamentos da responsabilidade,
notadamente o fundamento prospectivo, voltado ao futuro, mas também o é a reparação, voltada ao passado. Apenas pela conjugação desses dois fundamentos a responsabilidade civil cumpriria de fato a manutenção do equilíbrio social estabelecido.
Salutar evidenciar que ambos os autores tratam da prevenção na responsabilidade civil equiparando-a a prevenção geral negativa do direito penal, ou seja, pela
convicção de que os sujeitos, sabendo que terão de responder pelos danos por
eles causados, deixarão ou evitarão cometê-los, atuando, portanto, como elemento
psicológico.
Apesar da grande relevância atribuída à prevenção por estes autores, ela não
chegou a se inserir na espacialidade da responsabilidade civil tradicional, sendo relegada, quando muito, a cumprir uma função secundária do dever de reparação, notadamente a de desestímulo.
Na já tão mencionada travessia da responsabilidade civil, Giselda Hironaka
aponta para a retomada da prevenção, mas já não com a mesma roupagem:
Como um retrato que não se suporta mais em sua própria moldura — estreita demais para o enfoque —, avolumam-se as novas necessidades,
emergem as atuais tendências e contemporanealiza-se a mentalidade reparatória. Privilegia-se a prevenção dos danos, em razão da supremacia
dos denominados interesses difusos e coletivos. As experiências concretas do cenário atual fizeram surgir uma nova modalidade de responsabilidade civil que destaca certas situações tuteláveis entre as inúmeras
situações de perigo imagináveis, circunstância essa que busca, antes de
tudo, evitar a produção do dano em face de certo grupo, agrupamento
ou categoria de pessoas, razão pela qual se as convenciona chamar de
situações supra-individuais ou metaindividuais tuteláveis.26
A prevenção, para a autora, não mais se relaciona com o objetivo abstrato de dissuadir a realização do dano através do desestímulo dirigido ao causador pelo dever de
reparação. O significante prevenção ganha o significado de tutela jurídica efetivamente
voltada à não realização de danos decorrentes de perigos imagináveis, através de
ações concretas e objetivas, e não mais como a ficção de um desestimulo psicológico.
Tais perspectivas assentam-se, em primeiro lugar, na assertiva de que uma
dimensão considerável dos danos hoje vista atinge a esfera extrapatrimonial das
pessoas, contemplando, em grande parte, direitos de personalidade cuja tutela posterior à violação mostra-se, no mais das vezes, desprovida de qualquer utilidade.27
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Tendências atuais da responsabilidade civil: marcos teóricos
para o direito do século XXI. In: DINIZ, Maria Helena; LISBOA, Roberto Senise (Org.). O Direito Civil no século
XXI. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 220.
27
Nas palavras de Thaís Goveia Pascoaloto Venturi: “Compreender-se a incidência do sistema de responsabilidade
civil por um viés preventivo parece ainda mais necessário e oportuno na medida em que se constata que
26
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Logo, pensar a responsabilidade civil como mecanismo reparatório repressivo, nessa
perspectiva, seria condizente apenas com uma visão já ultrapassada que conceberia
a tutela do direito subjetivo apenas quando já houvesse a violação, ignorando a motivação da ordem jurídica em coibir os ilícitos em todas as medidas, mesmo antes da
ocorrência do dano.
Do mesmo modo, tal paradigma da prevenção exsurge imbuído em uma “ética
de responsabilidade”, que contempla não só a complexidade das relações sociais,
implicando em ser “responsável”, mas levando em conta também uma característica
de alteridade,28 promovente, ao seu turno, de uma perspectiva que leva em conta o
sujeito enquanto pessoa, na concretude de sua existência, conforme exige o projeto
constitucional e a já mencionada despatrimonialização do Direito Civil.
Tal reflexão, deflagrada em uma análise sociológica, deságua em uma investigação eminentemente científica que visa perscrutar a composição e encadeamento
corretos dos conceitos jurídicos inerentes ao dever de indenizar postos no direito da
responsabilidade civil, concluindo-se que, a rigor, a doutrina tem comumente promovido uma correlação confusa acerca de dois pressupostos relevantes, vistos no elo
quase que obrigatório entre ilicitude e dano.
Em linhas gerais, a doutrina central e mais clássica da responsabilidade civil,
mesmo ante as flexibilizações erigidas em alguns de seus filtros essenciais, entende
como indispensável a configuração do dano para deflagrar, como efeito reparador ou
compensatório, o dever de indenizar.29
E é justamente no contraponto de tal assertiva que a responsabilidade civil
preventiva encontra novo abrigo: em uma análise rigorosamente concreta, o que a
ordem jurídica coíbe é a prática de condutas ilícitas, pouco importando se, a rigor,
delas emergem ou não prejuízos fáticos.
A vedação ao ilícito posto na ordem jurídica constitui, pois, o fim maior de se
impedir a ocorrência de danos e lesões, sendo o desígnio da reparação/compensação, dentro do paradigma repressivo já referido, o fito secundário da responsabilidade
civil, que pode ser concebida para a finalidade maior de se prevenir a ocorrência de
grande parte dos direitos mais caros aos seres humanos [...] se caracteriza pela nota da extrapatrimonialidade,
não comportando solução repressiva satisfatória” VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto. Responsabilidade civil
preventiva: a proteção contra a violação dos direitos e a tutela inibitória material. São Paulo: Malheiros, 2014,
p. 30.
28
A reflexão ora posta sobre o que “é ser responsável” liga-se diretamente à análise consolidada Max Weber
na obra Ciência e política: duas vocações (São Paulo: Cultrix, 1993, p. 109 e ss) a partir da ciência do
sujeito acerca da consequência de seus atos e como coibi-las para alcançar uma problematização assim
disposta: “A ética da responsabilidade implica constantes reflexões a respeito da dinâmica dos direitos e
deveres socialmente incidíveis não apenas sobre os indivíduos que se inter-relacionam diretamente, como
também sobre os indivíduos que dependem do equilíbrio geral das relações humanas e, portanto, por elas se
responsabilizam” Ibidem, p. 198.
29
Por todos, veja-se o que aponta Fernando Noronha: “Só teremos responsabilidade civil quando existir um dano
resultante de uma lesão antijurídica e só teremos esta quando existir um ato ou fato antijurídico” NORONHA,
Fernando. Direito das obrigações. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 498.
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qualquer conduta ilícita, independentemente de que dela possa resultar determinado
dano.30 Em termos mais simples: na lógica do paradigma da prevenção, a ilicitude é
tomada em sentido lato, justamente para dar conta de tutela de categorias de direitos
especiais (como os fundamentais e de personalidade) que não se subsomem confortavelmente a soluções reparatórias ou compensatórias a posteriori.31
Tais ponderações implicam necessariamente investigar a existência de espaços
para a aplicabilidade prática dos pressupostos da responsabilidade civil preventiva.
Nesse passo, Thaís Goveia Pascoaloto Venturi propõe a efetivação de mecanismos
de tutela inibitória material estruturados em três ordens distintas.
O primeiro mecanismo poderia ser verificado na autotutela, esteada na interpretação sistemática dos artigos 12, 249, parágrafo único e 251, parágrafo único, todos
do CC/2002, que perfazem, em certa medida, uma forma de tutela inibitória material
(= fora do campo processual) posta à proteção preventiva de direitos de personalidade e outros inerentes às obrigações de fazer e não fazer.
De outra margem, aí como decorrência de análise do direito comparado, emerge
também a figura do ressarcimento de despesas preventivas postas à satisfação de
autotutela de direitos fundamentais mirados por danos certos, prováveis ou iminentes,
tal qual se determinou na União Europeia pela aplicação da Diretiva 2004/35/CE.
Por derradeiro, haveria também a possibilidade de aplicação de multas civis,
como forma de “pena privada” a coibir a reiteração de danos ou ameaça de danos a
bens jurídicos tutelados.32
A retomada da prevenção aqui sinteticamente esboçada retrata como a doutrina, contando quase que exclusivamente com a hermenêutica civil-constitucional,
reconstruiu a figura jurídica da prevenção, outrora definida como um desestímulo
psicológico realizado de forma geral através da ameaça de imputação do dever de
reparar o dano causado, em um instrumento jurídico que, através da autotutela, do
ressarcimento de despesas preventivas ou das multas civis, constitui ferramenta
disponibilizada à própria vítima para concretamente evitar a ocorrência do dano.
Nesse plano, expõem-se que: “De fato, a noção tradicional de ilicitude foi construída no direito civil clássico a
partir da perspectiva patrimonial, concebendo-se o ato ilícito puramente pela sua consequência, isto é, o dever
de indenizar oriundo do dano ao patrimônio. É importante observar que, na medida em que necessariamente
o ilícito ao fato danoso, ignora-se que a conduta ilícita, por si só, independentemente de produzir danos,
representa violação ao Direito que igual e autonomamente merece tutela, sobretudo nos sensíveis campos
dos direitos extrapatrimoniais e fundamentais. Trata-se de compreender que inibir a conduta ilícita não é o
mesmo que inibir o evento danoso” VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto. Responsabilidade civil preventiva: a
proteção contra a violação dos direitos e a tutela inibitória material. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 210.
31
VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto. Responsabilidade civil preventiva: a proteção contra a violação dos direitos
e a tutela inibitória material. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 215.
32
Para uma análise detida de tais mecanismos, cujo aprofundamento escaparia dos limites deste trabalho, ver:
VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto. Responsabilidade civil preventiva: a proteção contra a violação dos direitos
e a tutela inibitória material. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 350-368.
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3 Da cátedra à corte: a aplicação da responsabilidade
preventiva no direito comparado
Em que pese estejam traçados os contornos iniciais dessa responsabilidade
preventiva da doutrina brasileira, ainda carecemos de uma jurisprudência consolidada
sobre o tema e que permita visualizar sua aplicação em casos concretos, de modo
que se faz necessário recorrer ao direito comparado para figurar sua aplicação.
Os três mecanismos de tutela inibitória material propostos por Thaís Venturi
têm espaço no direito comparado, notadamente a autotutela, a multa civil objetivando
dissuadir a repetição da conduta danosa, e por fim, a figura do ressarcimento por
despesas preventivas. Começaremos por esta, pois é a de maior aplicação prática,
sobretudo pelas cortes europeias.
Os precedentes que apreciaram a preventive expenses incurred before the
daming event podem ser analisados em três categorias, divididas de acordo com os
fundamentos utilizados para cada solução. A primeira categoria trata dos pleitos de
reparação pelo custo de manutenção de uma estrutura preventiva.
A hipótese fática com maior reincidência nas cortes é das empresas de transporte público que, após ter um de seus veículos danificado por um terceiro, coloca um
veículo reserva de sua propriedade para suprir a falta do veículo danificado, exigindo
do causador do dano não só a reparação do dano material causado ao veículo, mas
também os custos por manter um veículo reserva em sua frota. Trata-se, portanto, de
responsabilidade pelas despesas preventivas.
Esse cenário foi analisado por tribunais da Alemanha, Áustria, Holanda, Portugal
e Inglaterra, e em todos os casos, ainda que por fundamentos distintos, as cortes
acataram o pleito e condenaram o causador do dano a ressarcir tais despesas.
Na Alemanha o Bundesgerichstshof (Tribunal Federal Alemão) debruçou-se sobre o tema já em 10 de maio de 1960, ao julgar um acidente de trânsito causado
por negligência de um motorista e que acarretou tamanho dano a um dos bondes da
companhia de transporte público que o referido veículo ficou 102 dias fora de uso até
que fosse consertado.
Ainda que a empresa possuísse um bonde reserva, a corte entendeu que caberia ao autor do dano ressarcir os custos de manutenção desse veículo reserva, em
um, porque caberia ao réu disponibilizar um veículo semelhante à vítima pelo período
de conserto do bonde danificado, ou compensar os custos de reposição de tal veículo, sendo irrelevante no caso que a vítima possuísse ela própria um bonde reserva.33
“However, it should make no legally significant difference whether the owner of a public transportation company
rents a vehicle as a substitute for a tram-car damaged by someone else’s fault or whether he uses a vehicle
which, in view of the difficulty of renting a tram-car at short notice, he bought and held in reserve specifically as
a precaution for cases of this kind. Even if the costs for acquiring the spare vehicle have already been settled
at the time of purchase, they were incurred only in order to be able to redress the anticipated consequences of
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Em dois, pois tal obrigação estaria compreendida no dever de mitigar o prejuízo da
vítima, insculpida no parágrafo 254 (2) do BGB.
Também a Suprema Corte Holandesa analisou idêntica hipótese fática, igualmente aplicando a responsabilidade preventiva. A decisão do tribunal reconheceu
que caberia ao réu ressarcir as despesas de manutenção do veículo reserva em
decorrência de seu dever de mitigar o prejuízo da vítima. Porém, a corte sopesou que
a manutenção de veículos reserva não é feita exclusivamente em favor de eventual
causador de dano futuro, mas em benefício da própria empresa, de modo que a condenação limitou-se a parte proporcional das despesas.34
Nos mesmos termos decidiu a Corte de Apelação de Lisboa em 9 de março
de 1989 e, na Inglaterra, a Câmara dos Lordes no caso Birmingham Corporation v.
Sowsbery, julgado em 1970. Esta decisão trouxe ainda interessante precedente de
1900, no qual o Earl of Galsbury equiparou-a à seguinte situação: “supondo que uma
pessoa pegue uma cadeira da minha sala e fique com ela por doze meses, alguém
poderia sustentar que a condenação deveria ser reduzida por usar ordinariamente
aquela cadeira, ou por ter outras em minha sala? A proposta me pareceria absurda”.35
A Suprema Corte da Áustria julgou caso similar em 6 de junho de 1986. A única
diferença é que o bem danificado foi um ônibus, não um bonde. Da mesma forma
que a corte alemã, o tribunal austríaco admitiu a condenação do causador do dano
também nas despesas preventivas relativas ao custo de manutenção de um ônibus
reserva em sua frota, porém, o fez sobre outro fundamento. Para a corte austríaca, a
obrigação não deriva da responsabilidade civil, mas da teoria da negotiorum gestio,
positivada nos §§1036 e 1037 do ABGB, pela qual é do próprio interesse do réu que
a vítima tome tais precauções para evitar a paralização de sua atividade, diminuindo
assim o valor final da condenação. Por essa teoria, a vítima estaria atuando em favor
do réu, através de uma espécie de contrato ficto similar ao mandato.36
A segunda categoria das preventive expenses utiliza-se da distinção entre a
utilização de uma prevenção geral, contra riscos abstratos, e de uma prevenção
negligent acts of others. […] Hence it is justified, if a spare vehicle is used as a result of a tram-car having been
damaged by the negligent act of another, to consider the expenses incurred, proportionate to the period of use,
as having been caused by such use” (WINIGER, Bénédict; KOZIOL, Helmut; KOCH, Bernhard A.; ZIMMERMANN,
Reinhard (Ed.). Digest of European Tort Law. Vienna: Springer Wien NewYork, 2007, v. 1, p. 169).
34
WINIGER, Bénédict; KOZIOL, Helmut; KOCH, Bernhard A.; ZIMMERMANN, Reinhard (Ed.). Digest of European
Tort Law. Vienna: Springer Wien NewYork, 2007, v. 1, p. 174.
35
No original: “supposing a person took away a chair out of my room and kept it for twelve months, could anybody
say you had a right to diminish the damages by shewing that I did not usually sit in that chair, or that there
were plenty of other chairs in the room? The proposition so nakedly stated appears to me to be absurd …”
(WINIGER, Bénédict; KOZIOL, Helmut; KOCH, Bernhard A.; ZIMMERMANN, Reinhard (Ed.). Digest of European
Tort Law. Vienna: Springer Wien NewYork, 2007, v. 1, p. 182).
36
WINIGER, Bénédict; KOZIOL, Helmut; KOCH, Bernhard A.; ZIMMERMANN, Reinhard (Ed.). Digest of European
Tort Law. Vienna: Springer Wien NewYork, 2007, v. 1, p. 179.
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Responsabilidade preventiva: elogio e crítica à inserção da prevenção...
especificamente realizada em face do causador do dano, admitindo os pedidos de
ressarcimento apenas na segunda hipótese.
As duas hipóteses ficam claras no caso julgado pelo Tribunal Federal Alemão
em 6 de novembro de 1979. Tratava-se de ação em que o réu foi surpreendido pelo
vendedor de uma loja de doces furtando a mercadoria dos expositores. O dono da
loja, além dos 12 marcos alemães referentes ao valor dos doces, pleiteou a condenação do réu também no valor de 550 marcos, correspondentes ao valor que a loja
paga aos funcionários como recompensa quando evitam um furto.
A decisão da corte firmou duas conclusões: de um lado que, em regra, nenhuma indenização é devida em razão dos custos inerentes ao sistema de segurança
utilizado pelas lojas, eis que tais ferramentas não têm por objetivo prevenir especificamente a infração cometida pelo réu, mas resguardar o estabelecimento como um
todo e contra todos. De outro, que sendo a recompensa prometida decorrência direta
e especificamente vinculada ao furto em questão, deve ser reparada pela vítima.
Sopesou a corte, no entanto, que como a fiscalização dos funcionários, em certa
medida destina-se a todos os possíveis furtos, e não apenas àquele objeto da ação,
entendeu que o ressarcimento de 50 marcos seria suficiente — redução esta criticada por Zimmermann por estar estribada exclusivamente na equidade, sem qualquer
supedâneo doutrinário.37
Também o Tribunal Federal Suíço admitiu a reparação das despesas preventivas
distinguindo a prevenção geral daquela especificamente realizada em razão de uma
circunstância concreta. Tratava-se de caso em que o Cantão de Basel instalou uma
“street-room” em um terreno de sua propriedade, na qual usuários de drogas recebiam seringas esterilizadas a fim de evitar doenças transmissíveis pelo sangue. Em
razão da implantação de tal unidade, a região passou a ser frequentada por usuários
de drogas e traficantes, levando os proprietários dos imóveis vizinhos a instalar grades, interfones, sistemas de luz e de vigilância.
Os proprietários então recorreram à corte para pleitear o ressarcimento de tais
despesas do Cantão de Basel. Em 22 de dezembro de 1993 o Tribunal Federal,
estribado na proteção contra intromissões injustas na propriedade dos autores, reconheceu o dever do Cantão de indenizar os autores pelos custos das grades e da
vigilância, porém, por considerar que tanto o sistema de luz quanto o interfone tem
utilidade geral e não apenas para proteção contra os usuários que passaram a frequentar a região, entendeu devido apenas metade do valor do sistema de luz e nada
pela instalação de interfones.38
WINIGER, Bénédict; KOZIOL, Helmut; KOCH, Bernhard A.; ZIMMERMANN, Reinhard (Ed.). Digest of European
Tort Law. Vienna: Springer Wien NewYork, 2007, v. 1, p. 171-172.
38
WINIGER, Bénédict; KOZIOL, Helmut; KOCH, Bernhard A.; ZIMMERMANN, Reinhard (Ed.). Digest of European
Tort Law. Vienna: Springer Wien NewYork, 2007, v. 1, p. 176-177.
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O mesmo se deu no caso Lord Advocate v. Rodgers, julgado na Escócia em
1978. Tratava-se de caso em que por duas vezes o acusado havia colocado fogo em
suas terras (possivelmente nas palhas que restam após a colheita, visando limpar
a área para novo plantio) sem tomar qualquer providência para que o fogo não se
espalhasse para a plantação da propriedade vizinha.
Nas duas ocasiões, a Forestry Commission, proprietária da plantação adjacente, tomou as medidas necessárias para extinguir o fogo antes que ele se espalhasse
para suas terras, exigindo na ação os valores despendidos em tais diligências. O
acusado alegou que não houve qualquer dano à plantação vizinha, de modo que
nada haveria espaço para a responsabilidade civil. A Corte, reconhecendo tratar-se
de situa­ção excepcional e que a lei escocesa reconhece que quaisquer despesas voltadas a reduzir os prejuízos da vítima devem ser suportados pelo causador do dano,
considerou irrelevante que a mitigação do dano ocorra antes ou depois de sua ocorrência, devendo em ambos os casos ser suportada pelo acusado. A decisão deixou
claro que a reparação só é cabível em razão da prevenção voltar-se especificamente
para um risco proveniente de uma fonte identificável, não de uma prevenção geral.
Por derradeiro, a terceira categoria distingue as medidas preventivas tomadas
contra ameaças reais ou apenas potenciais. A melhor representação da posição pretoriana nessas situações provém do julgamento da Suprema Corte da Áustria em 28
de abril de 1998. Tratava-se de situação em que o acusado, em gravação deixada
na secretária eletrônica, havia ameaçado o autor da ação e sua esposa. Os ameaçados, com medo de que a ameaça se cumprisse, instalaram alarmes e sistema de
segurança em sua residência. O pedido de reparação pelas despesas com segurança
foi negado pela Corte, sob o argumento de que as medidas tomadas pelos autores
não eram necessárias a ponto de justificar uma reparação, eis que a ameaça não era
eminente, mas apenas potencial.39
De outro lado, em 5 de junho de 1989, no caso Daly v. McMullan, a Circuit
Court irlandesa deferiu o ressarcimento dos valores despendidos para prevenir novas
inundações na propriedade do autor, provenientes da insuficiência do sistema de
drenagem de seu vizinho. A decisão somente foi favorável pois o dano que se visava
impedir (a inundação) já havia se consumado em duas oportunidades, evidenciando
tratar-se de risco concreto.40
Desses casos é possível extrair que, no direito europeu, a responsabilidade
preventiva instrumentalizada na reparação dos custos despendidos anteriormente ao
dano: a) são cabíveis sempre que as despesas são aplicadas para reduzir o prejuízo
WINIGER, Bénédict; KOZIOL, Helmut; KOCH, Bernhard A.; ZIMMERMANN, Reinhard (Ed.). Digest of European
Tort Law. Vienna: Springer Wien NewYork, 2007, v. 1, p. 175-176.
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Tort Law. Vienna: Springer Wien NewYork, 2007, v. 1, p. 185-186.
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Responsabilidade preventiva: elogio e crítica à inserção da prevenção...
da vítima, ainda que esta já possuísse os instrumentos utilizados; b) somente são
admitidos quando despendidos contra um risco específico e cuja realização seja eminente ou ao menos de grande probabilidade.
Os dois outros mecanismos — a autotutela e a multa dissuasória — não foram
objeto de construção jurisprudencial tão consolidada, mas ainda tiveram maior desenvolvimento do direito comparado.
A autotutela é admitida dentro da responsabilidade civil alemã como um desforço próprio voltado a evitar um dano ou fazer cessar a conduta danosa. Segundo
Helmut Koziol, consiste na implementação de medidas preventivas para a proteção
dos interesses legalmente tutelados ou, em caso de condutas danosas já em curso,
em atuação própria voltada a fazer cessar a conduta.41 A esse conceito correspondem
as medidas tomadas pela Forestry Commission para conter o avanço do fogo sobre
sua propriedade, no caso Lord Advocate v. Rodgers anteriormente citado.
No direito alemão e austríaco, a autotutela não depende da ilicitude por parte
de quem deflagra a agressão ou a quebra de um dever de cuidado. Pelo contrário, o
caráter “injusto” da agressão depende apenas do resultado danoso, único elemento
fático necessário à sua deflagração. De outro lado, a licitude da reação depende
apenas da proporcionalidade em relação à agressão. Acaso a resposta seja desproporcional ao agravo, será ela própria ilícita.42
Por derradeiro, o mecanismo da multa civil dissuasória, em verdade, parece apenas um novo rótulo à velha figura dos danos punitivos, típicos do sistema
norte-americano e cujo caso emblemático foi a condenação proferida em Liebeck v.
McDonalds, em que a rede de fast food foi condenada a pagar à autora 2,7 milhões
de dólares por danos causados por seu produto, nomeadamente seu café, servido
a 88 graus célsius, e que causou queimaduras de terceiro grau à autora, então com
79 anos de idade.43
No sistema norte-americano, os valores dos danos punitivos por vezes são tão
elevados por serem calculados a partir do custo que o causador do dano teria para
adequar sua conduta, somado de um, de modo que lhe seja economicamente mais
vantajoso corrigir seu procedimento do que compensar todas as vítimas de eventuais
danos, supondo que todas elas levem o pleito ao judiciário, consistindo tal método no
“valor da dissuasão”. Em 1996, no caso BMW v. Gore, a Suprema Corte dos Estados
No original: “it concerns the implementation of preventive protection of legal rights and interests or in the
case of attacks already in course the ending of an interference that has already begun in a manner similar
to reparative injunctions, in this case however by means of self-help” (Basic questions of Tort Law from a
Germanic Perspective. Translation from German to English by Fiona Salter Townshend. Vienne: Jan Sramek
Verlag, 2012, p. 24)
42
KOZIOL. Helmur. Basic Questions of Tort Law from a Germanic Perspective. Translation from German to English
by Fiona Salter Townshend. Vienne: Jan Sramek Verlag, 2012, p. 24-25.
43
Disponível em: <http://www.dailymail.co.uk/news/article-2470792/Stella-Liebecks-hot-coffee-McDonaldslawsuit-The-truth.html>. Acesso em: 25 jun. 2015.
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Unidos fixou os limites constitucionais para as indenizações punitivas, sendo eles:
a) a reprovabilidade da conduta; b) proporcionalidade entre a indenização compensatória e a punitiva, indicando como limite máximo para esta um multiplicador de um
dígito (0-9).44
A lógica norte-americana, no entanto, não é acolhida nos países de sistema
romano germânico, que via de regra inadmitem os danos punitivos como uma parcela adicional à indenização, “mas aparecem embutidos na própria compensação do
dano moral”.45 Anderson Schreiber aponta ainda que tal instrumento vem ganhando
adeptos na Itália para os casos de tutela dos interesses da pessoa humana, que
sendo centrais ao ordenamento jurídico, justificam uma condenação para além da
mera compensação.
Com estes contornos, pode-se afirmar que o instrumento da multa civil relaciona-se muito mais com a ideia de prevenção traçada por Aguiar Dias, notadamente de
uma função de desestímulo psicológico a toda a sociedade realizado através da certeza de que a conduta danosa trará consequências econômicas a seu causador, do
que a prevenção que se desenha no campo da responsabilidade civil contemporânea,
que visa concretamente evitar um possível dano.
Do até aqui exposto, já é possível reconhecer a possibilidade e pertinência de
uma função preventiva aos danos, bem assim comprovar que a prevenção doutrinariamente construída tem vasto campo para aplicação prática. Cumpre, ao apagar das
luzes, questionar se seria a responsabilidade civil a espacialidade adequada para a
inserção desse modelo de tutela preventiva.
4 A prevenção no Direito Civil brasileiro: elogio e crítica à
função e estrutura
Diante do que se refletiu anteriormente, a análise crítica que doravante se pretende desenvolver parte do reconhecimento de que a responsabilidade preventiva
pode ser dissecada a partir de dois aspectos: o aspecto funcional (para que serve),
que visa concretamente impedir a ocorrência do dano, e o aspecto estrutural (como
funciona), que se manifesta através dos três mecanismos de tutela inibitória anteriormente expostos: a autotutela, as despesas preventivas e as multas civis.
Iniciamos pelo aspecto funcional. A partir da virada copernicana pela qual passou a responsabilidade civil na transição do Estado Liberal para o Estado Social, é
de reconhecer-se que a linha de raciocínio posta a assimilar a modalidade preventiva
SHARKEY, Catherine. Punitive Demages. In: SIMPÓSIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL, III, Ordem dos Advogados
do Brasil – Seção Paraná. As ações de indenização nos Estados Unidos e no Brasil. Curitiba, 2014.
45
SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à
diluição dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 209.
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Responsabilidade preventiva: elogio e crítica à inserção da prevenção...
exsurge a partir do fenômeno da constitucionalização do Direito Civil e da incidência
das normas e diretrizes constitucionais nas relações interprivadas. Em linhas gerais,
não se pode olvidar que o princípio da dignidade da pessoa humana, enquanto vetor
fundamental da CF/1988, objetivou um giro paradigmático que retirou da patrimonialidade o viés essencial do Direito Civil, passando este a ser identificado, então, na
pessoa considerada na concretude de sua existência.46
Logo, todas as ramificações do Direito Civil passaram a ser concatenadas tendo como base tal pressuposto essencial, não sendo a responsabilidade civil, pois,
uma exceção, ensejando uma nova leitura acerca dos danos e suas hipóteses de
contenção.47 Na prevalência da esfera existencial sobre a patrimonial, não faz sentido
a manutenção de um sistema que diante da expansão dos danos não patrimoniais
admita apenas sua reparação, que em última instância se dá por via financeira.
Alavanca-se, assim, o paradigma da prevenção da responsabilidade para, quando menos, ser posto ao lado e em compatibilidade com o já notório paradigma de
repressão.
A rigor, pelo reconhecimento da modificação gradual das relações sociais postas
em movimento no tempo presente, pode-se identificar as razões para o surgimento
desse novo paradigma, termo que implica a observância de ruptura e transformação
de uma de determinada ordem de regras. Tal problematização tem seu cerne, no
direito brasileiro, nos questionamentos e reflexões envidados por Luiz Edson Fachin
ao longo de sua trajetória acadêmica e profissional na advocacia, ao apontar as
transformações havidas no Direito Civil em face da realidade a qual esta desinência
do direito privado deve prestar contas.48
Em tal linha de perspectiva, pode-se conceber o paradigma da prevenção afeito
à responsabilidade civil como alinhado a uma percepção teórica problematizante do
próprio Direito Civil, percepção essa que reconhece, ao lume das reflexões de Fachin,
As palavras de Paulo Lôbo são caras nesse sentido: “Para o direito civil atual, o patrimônio está a serviço da
pessoa e não esta a serviço daquele. [...] O Código Civil [passa a ser] o estatuto da defesa da pessoa humana,
na contenção dos poderes privados, garantindo-se-lhe o espaço de sua dignidade para que não se converta em
objeto coisificado dos grandes sistemas sociais e culturais da sociedade global.” LÔBO, Paulo. Direito Civil:
parte geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 18 e 28.
47
Tal perspectiva, a rigor, não é nova, sendo possível encontrar uma de suas sementes nas problematizações
de Pietro Perlingieri, que congrega, ao lado da dignidade humana, o princípio da solidariedade: “O dano
à pessoa [e sua tutela] encontra fundamento nos princípios constitucionais que reconhecem na pessoa o
valor central do ordenamento à luz do qual se deve reler a normativa ordinária, incluindo todas as disciplinas
sobre a responsabilidade civil. Nesta perspectiva, deve-se constatar a inadequação deste último instituto e a
necessidade, de um lado, de se adequar suas técnicas [...] e, de outro, utilizar com maior decisão sistemas de
segurança social, em um modo mais tangível, o princípio da solidariedade constitucional” PERLINGIERI, Pietro.
Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 175.
48
Na teoria crítica de Luiz Edson Fachin, o desenhar de novos paradigmas vem assim posto: “Embora não seja
unívoco, o termo paradigma vem aqui colacionado para simbolizar ruptura e transformação. É possível que
não se tenha uma percepção exata do desenho desse novo fenômeno mas, por certo, tais reflexões revelaram
que aquela arquitetura anterior está corroída em pontos fundamentais” FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do
Direito Civil: à luz do novo Código Civil brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 243.
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a transitoriedade e multidisciplinaridade do campo jurídico que, nada obstante a presença da segurança jurídica, identifica a necessidade do repensar dos institutos fundamentais do Direito Civil em lugar de sua compreensão abstrata e pretensamente
perene.49
Nesse passo, o paradigma da prevenção atinente à responsabilidade civil dar-­
se-ia na recompreensão teórica e prática de tal instituto voltado ao porvir, envolvendo necessariamente, a partir da correlação direta da principiologia constitucional no
direito privado, o encadeamento de uma tríplice dimensão do Direito Civil e suas
desinências: uma dimensão posta atentamente às regras positivadas em núcleo
constitucional e infraconstitucional; outra afeita à manifestação da dita força normativa constitucional no núcleo hierarquicamente inferior; e, por fim, uma dimensão
transformadora e de carga propositiva pautada em processo hermenêutico apto a
ressignificar significantes e significados vertidos do Direito Civil contemporâneo.
Tais proposições correspondem às “três constituições do Direito Civil” (a saber,
formal, substancial e prospectiva) analisadas igualmente por Luiz Edson Fachin em
sua obra mais recente, sustentada em uma análise aberta e, como dito, problematizante do Direito Civil e seus trois piliers (que, do campo da teoria geral das obrigações
e dos contratos, esteiam a responsabilidade civil).50
Logo, ao lume dos argumentos expostos, o paradigma da prevenção serviria
a projetar a responsabilidade civil aos desafios do porvir, (re)funcionalizando-o em
medida apta prestar contributo efetivo à tutela de direitos da pessoa considerada
concretamente na realidade de suas interações sociais.51
Nesse passo, a leitura de Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk sobre o alicerçamento da teoria crítica de Luiz
Edson Fachin a um perfil problematizante — em contraponto às teorias totalizantes — do Direito Civil faz-se
pertinente: “Ao contrário, as teorias problematizantes (por certo, mais raras do que aquelas de pretensão
totalizante), reconhecem a complexidade do fenômeno jurídico não como algo a ser artificialmente reduzido
a classificações e conceitos, mas, sim, como uma circunstância inexorável, cuja apreensão jamais pode
pretender ser dotada de uma lógica formalmente precisa — que somente se atinge nas representações
abstratas que não recolhem a multiplicidade do real. [...] É nessa fecunda seara das teorias problematizantes
que se insere a Teoria Crítica do Direito Civil do Prof. Luiz Edson Fachin” RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. A
teoria crítica do Direito Civil de Luiz Edson Fachin e a superação do positivismo jurídico. In: FACHIN, Luiz Edson.
Teoria crítica do Direito Civil: à luz do novo Código Civil brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012.
50
FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 8-9. Acerca
da responsabilidade civil, Fachin faz especial alusão às flexibilizações paradigmáticas da responsabilidade
civil ao ponderar a configuração, em casos excepcionais, do dever de indenizar desprovido do próprio nexo de
causalidade em uma leitura do referido instituto já próxima à lógica do “direito de danos”. Em suas palavras:
“Situação que também emerge como exemplar é a imputação sem nexo de causalidade na responsabilidade
por danos. Não raro se vê a reafirmação tradicional do nexo para imputar a responsabilidade, o que, de todo
correta, pode não ser, em determinados casos, o mais justo concretamente para a vítima. Quando assim a
direção pode indicar a renovação do conceito de causa, e especialmente do nexo causal. A imputabilidade tem
no centro a preocupação com a vítima; a imputação é a operação jurídica aplicada à reconstrução do nexo.
Da complexidade e da incerteza nascem fatores inerentes à responsabilização por danos. É de alteridade e
de justiça social que deve se inebriar o nexo de causalidade, atento à formação das circunstâncias danosas”
(p. 113-114). Ainda, sobre o tema da imputação e causalidade, ver: FROTA, Pablo Malheiros da Cunha.
Responsabilidade por danos: imputação e nexo de causalidade. Curitiba: Juruá, 2014.
51
Não apenas no contexto jurídico pátrio se percebe a preocupação em tutelar concreta e efetivamente o ser
humano em diversas frentes. Aliás, do direito comparado, colhe-se a influência de tal perspectiva: “En una elogiable postura se ubican algunos precedentes que colocan a los derechos de las personas por sobre esquemas
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Responsabilidade preventiva: elogio e crítica à inserção da prevenção...
Ao lado disso, não se pode olvidar que, de certa forma, o próprio paradigma
repressivo da responsabilidade civil alimenta seu anverso da prevenção, uma vez que
imposição de reiteradas reparações/compensações (concebidas como penas civis)
pela violação de direitos/deveres/bens jurídicos servem, ainda que indiretamente, ao
propósito de desestimular a reiteração de tais condutas.52
Sem negar qualquer dos elogios até aqui tecidos sobre a função preventiva, é
de se reconhecer que uma análise que se pretenda crítica não se constrói apenas
sobre exaltações. É da conjugação de elogio e crítica que se compõe o diálogo apto
a realizar a reflexão verticalizada sobre qualquer tema, solidificando as bases e apontando os possíveis pontos sensíveis.
A crítica que aqui se pretende levar a cabo reconhece in totum que o direito
material deve superar o paradigma da função reparatória, admitindo e até preferindo
a prevenção de danos, bem como que esta representa instrumento harmônico à
despatrimonialização do Direito Civil e cuja função pode, de fato, constituir efetivo
contributo à tutela dos interesses existenciais.
Para além desses pontos, a crítica dirige-se não à proficuidade da tutela preventiva, mas sim a sua estrutura, e mais especificamente às dificuldades de compatibilização dos mecanismos de tutela material preventiva com a responsabilidade civil,
cuja estrutura fora construída sob a base da reparação e através de requisitos que,
ainda que em possível ocaso, serviram — e ainda servem — como critérios para a
(re)construção teórica desse subsistema de Direito Civil.53
Em síntese: seria necessário novamente remodelar a responsabilidade civil, já
dita em crise, para nela inserir os corpos estranhos dos remédios preventivos, ou
poderiam estes ser melhor alocados?54 “Não é claro isto, mas nem tudo é claro na
vida ou nos livros”, diria a personagem de Machado de Assis.55
52
53
54
55
que conducen a una solución injusta. Por ello hacen prevalecer la solución que mejor se compadezca con los
derechos de las víctimas y ello es lo socialmente correcto, de lo contrario cabría preguntarse para qué sirve el
Derecho si no es para proteger las personas damnificadas” MOSSET ITURRASPE, Jorge. Responsabilidad por
daños: actualización doctrinaria y jurisprudencial de los tomos I a X. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2009, p. 252.
Nas palavras de Nelson Rosenvald: “Não é possível reduzir a função da responsabilidade civil somente à finalidade
reparatória, sobretudo à luz de diversos critérios de imputação de danos. [...] O sistema de responsabilidade civil
não pode manter uma neutralidade perante valores juridicamente relevantes em um dado momento histórico e
social. Vale dizer, todas as perspectivas de proteção efetiva de direitos merecem destaque [...]. As penas civis
também se propõe a realizar uma tutela efetiva, com critério funcional preventivo/punitivo, naquelas hipóteses
em que a reparação por si só não é idônea a desestimular o ofensor à prática de ilícitos” ROSENVALD, Nelson.
As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 75-81.
Deve-se a Rodrigo Xavier Leonardo a percepção inicial de que talvez a responsabilidade civil não seja o campo
apropriado para a tutela preventiva, pelo que registra-se aqui o crédito pela temática da presente análise crítica.
Comunga dessa ideia Helmut Kozyol, ao afirmar que “All this is not presented as an argument that tort law has
no preventive consequence; I only want to stress that this effect is secondary to the main aim of compensation.
This means that under tort law, the victim’s claim cannot go beyond the loss. (...) I only reject the dishonest way
in which the departure from existing principles of tort law is disguised in Continental European legal systems. It
has to be emphasised that preventive damages are different remedies from those provided for by tort law or the
law of injunctions and that creating such remedies which are unknown to civil law as it exists on the Continent
require special justification” (KOZIOL. Helmut. Basic Questions of Tort Law from a Germanic Perspective.
Translation from German to English by Fiona Salter Townshend. Vienne: Jan Sramek Verlag, 2012, p. 57).
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 73. v. 1. (Obra completa).
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Quiçá a resposta negativa mostre-se relevante, eis que estribada na análise
das ferramentas de tutela material preventiva e a espacialidade de sua aplicação no
Direito Civil brasileiro. A primeira delas é a autotutela. Pontes de Miranda preferia
designá-la justiça de mão própria, definindo-a como “a aplicação da regra jurídica
pelo próprio interessado, quando aquêle, que deveria atender à incidência da regra
jurídica, a ela não atendeu”.56
Em que pese mostrar-se aprioristicamente como uma ferramenta de grande
serventia à prevenção de danos, e por isso justifica-se sua inclusão como uma possibilidade para o porvir, a autotutela como um mecanismo geral de tutela preventiva
encontra obstáculo preliminar: sua não admissão pelo direito brasileiro, senão em situações excepcionais, excepcionalidade esta que obsta a pretensão a uma aplicação
ampla no campo da responsabilidade civil:
A justiça de mão própria somente se permite se, excepcionalmente, o sistema jurídico não a condena; portanto onde se abre exceção ao princípio
do monopólio estatal da justiça. O direito brasileiro não possui princípio
geral, escrito, que seja limitação àquele. Nem a autonomia da vontade
pode estabelecer casos em que se exercite a justiça de mão própria.57
Ainda que não se possa recorrer a uma aplicabilidade geral, o Direito Civil brasileiro consagra hipóteses em que autoriza a autotutela. Thais Venturi arrola hipóteses
legais como: a) o direito de retenção: do locatário (art. 578), do depositário (art. 644),
do possuidor de boa-fé que tenha realizado benfeitorias (art. 1.219), do credor pignoratício (art. 1.433 e 1434); b) direito ao desforço imediato (CC, art. 1.210, §1º), que
Pontes de Miranda entende tratar-se em verdade de hipótese de legítima defesa; c) o
penhor legal (art. 1.467), que Pontes de Miranda classifica como hipótese de direito
formativo modificativo; d) o direito de cortar árvore à extrema de prédio (art. 1.283),
que para o mestre alagoano é exercício regular de direito; e e) os atos justificados,
que compreendem aqueles realizados em legítima defesa, estado de necessidade ou
exercício regular de direito.58
MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Atualizado por Ovídio Rocha Barros Sandoval. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2012. t. II, p. 393.
57
MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Atualizado por Ovídio Rocha Barros Sandoval. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2012. t. II, p. 405.
58
VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto. Responsabilidade civil preventiva: a proteção contra a violação dos
direitos e a tutela inibitória material. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 230-236; MIRANDA, Pontes de. Tratado
de direito privado. Atualizado por Ovídio Rocha Barros Sandoval. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. t.
II, p. 414-416.
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Responsabilidade preventiva: elogio e crítica à inserção da prevenção...
A autora destaca ainda as inovadoras hipóteses dos art. 249,59 e 251,60 do
Código Civil, ao estabelecer que o credor de obrigação de fazer pode, em caso de
urgência, executá-la ele próprio ou mandar terceiro executar, ressarcindo-se posteriormente face ao devedor, e de forma símile o credor de obrigação de não fazer
inadimplida, desfazendo-a ele próprio.
Essas hipóteses legais bem servem a demonstrar que a inserção da autotutela como instrumento de prevenção na espacialidade da responsabilidade civil, para
além de estar obstada como instrumento de uso geral, pode ser melhor alocada,
atendendo igualmente bem à função preventiva, de modo esparso pelo Direito Civil,
seja no campo das obrigações, seja no campo dos direitos reais, sem que seja necessário cogitar dos requisitos da responsabilidade civil, como se confirma pela citada
hipótese do art. 249, parágrafo único, que sequer exige uma conduta antijurídica do
devedor (inadimplemento).
De outro lado, a função preventiva também pode ser atingida de maneira mais
ampla nas hipóteses da legítima defesa e do estado de necessidade, autorizadas
pelo art. 188 do Código Civil, que embora não constituam hipóteses de autotutela,61
permitem ao indivíduo o desforço próprio para a manutenção do status quo, prevenindo um dano injusto, sem que seja necessária a reestruturação da responsabilidade
civil.
A mesma questão referente à espacialidade das ferramentas de tutela preventiva material pode ser aplicada às multas civis, há muito conhecidas no Direito Civil
brasileiro, e que se espalham ao longo de seus ramos. À guisa de exemplo, pode
cogitar-se da multa civil na esfera contratual, seja através da imputação em face de
cobrança de dívida não vencida ou já paga (CC, arts. 939 e 940), seja através das
cláusulas penais (CC, art. 408 e seguintes).
A questão se torna tormentosa quando projetada especificamente para o âmbito da responsabilidade civil. Primeiro, pois a utilização de multas civis dentro do
campo da responsabilidade civil, como meio de coibir a repetição de condutas danosas, encontra obstáculo legislativo de difícil superação, eis que resultado de uma
escolha política. Trata-se do comando contido no art. 944 do Código Civil, o qual, ao
determinar que “a indenização mede-se pela extensão do dano”, evidencia a escolha
“Art. 249. Se o fato puder ser executado por terceiro, será livre ao credor mandá-lo executar à custa do
devedor, havendo recusa ou mora deste, sem prejuízo da indenização cabível. Parágrafo único. Em caso de
urgência, pode o credor, independentemente de autorização judicial, executar ou mandar executar o fato,
sendo depois ressarcido.”
60
“Art. 251. Praticado pelo devedor o ato, a cuja abstenção se obrigara, o credor pode exigir dele que o desfaça,
sob pena de se desfazer à sua custa, ressarcindo o culpado perdas e danos.”
61
Como bem expõe Pontes de Miranda, a legítima defesa e o estado de necessidade consistem em elementos
fáticos de regra jurídica pré-excludente de ilicitude, ao passo que a justiça de mão própria (autotutela) é ato
que se pratica a propósito fatos jurídicos que tiveram ou tem eficácia (Tratado de direito privado. Atualizado
por Ovídio Rocha Barros Sandoval. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. t. II, p. 402-403).
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de um subsistema de responsabilidade civil exclusivamente compensatório no qual
não se admite a figura dos punitive damages.
Trazer as multas de caráter punitivo para o âmbito da responsabilidade civil
implicaria também transferir substancial parcela da função punitiva às relações interprivadas, além das questões atinentes ao enriquecimento sem causa. Vale aqui
a ressalva de Rui Stoco ao afirmar que “no nosso sistema jurídico a indenização do
dano deve obedecer à glosa lucratus non sit, de modo que a reparação do dano não
pode converter-se em fonte de enriquecimento da vítima”.62
Não bastasse, há ainda a questão consequencialista que surgiria de sua aplicação, e que é posta às claras por Maria Celina Bodin de Moraes:
Há, de fato, quem distinga a função punitiva da função preventiva, conectando esta última a um objetivo utilitarista, no sentido de avaliação de
sua utilidade para prevenir danos futuros, e não para retribuir danos passados — característica própria de juízo punitivo. Ocorre que, mediante tal
perspectiva, será possível deduzir que uma conduta gravemente dolosa
possa não constituir pré-requisito necessário e suficiente à imposição de
penalidade, justamente por ser de difícil repetição; de outro lado, uma
conduta menos grave, mas que possa ser facilmente imitada, mereceria, na finalidade preventiva, uma condenação maior. Este parece ser o
problema principal da justiça/injustiça das sentenças exemplares e dos
chamados ‘bodes expiatórios’.63
Ainda que a multa civil seja um instrumento que detenha além da função punitiva também um caráter preventivo, e que reconhecidamente já se integre tanto
ao direito material quanto processual, resta claro que sua inserção especificamente
dentro da responsabilidade civil, ao menos no seu atual estágio de desenvolvimento,
pode trazer mais problemas do que soluções.
Por derradeiro, também o ressarcimento pelas despesas preventivas, do modo
como realizado pelos tribunais europeus, está sujeito a certas críticas. A primeira delas diz com a reparação do custo de manutenção de uma estrutura preventiva, como
nos casos dos veículos de transporte. A questão inicial cinge-se à própria natureza
preventiva de tal estrutura de reserva, afinal, ela não previne o dano, já causado
sobre o veículo retirado de circulação, mas apenas mitiga seus efeitos.
Para além, ainda que se concorde com a ratio decidendi utilizada nos julgados,
uma análise econômica demonstraria, sem espaço para dúvidas, que aquelas empresas contabilizaram as despesas de manutenção de uma frota reserva como custos da
atividade, e dessa forma, embutiram esse ônus no preço cobrado ao público. Nessa
STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 8. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2011, p. 152.
63
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais.
Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 226.
62
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situação, a condenação do causador do dano a ressarcir essas despesas, já repassadas ao consumidor no preço da tarifa, não implicaria enriquecimento sem causa às
empresas de transportes? Parece-nos que sim.
E mesmo que se admita tal condenação, se o seu fundamento foi o negotiorum
gestio, figura que não pertence propriamente ao campo da responsabilidade civil,
seja ela repressiva ou preventiva. E neste caso, novamente, reconheceríamos que os
instrumentos de tutela preventiva não pertencem ao campo da responsabilidade civil,
sendo a gestão de negócios é figura típica no direito contratual brasileira.
Fábio Konder Comparato classifica-a como forma de representação sem mandato que se realiza toda vez que alguém toma a iniciativa de agir em nome de outrem,
sem poderes. Segundo o autor, o gestor de negócio, “malgrado a falta de poderes,
não deixa de ser representante do dominus negotii, na medida em que age em nome
deste. É representante de interesses, e não da vontade do representado, pelo menos
da sua vontade efetiva e não meramente presumível”.64
Daí que, reconhecido o dever de mitigação dos efeitos de um dano já causado
(duty to mitigate the loss) ou mesmo o de agir de modo a não lesar aos outros (alterum non laedere), a potencial vítima poderá sempre valer-se da gestão de negócio
para, agindo em nome e no interesse do potencial causador do dano, agir de modo
a evitá-lo, ressarcindo-se posteriormente das despesas que houver efetuado, sem
necessidade de se alterar a estrutura da responsabilidade civil.
No caso da prevenção a dano específico, e mais especificamente no caso da
promessa de recompensa aos vendedores que flagrem o furto, o reembolso das despesas preventivas poderia perfeitamente bem ser realizado pela ótica compensatória,
afinal, a conduta ilícita do cliente acarreta não só o prejuízo do proprietário pela perda
da mercadoria, mas também a redução patrimonial decorrente do dispêndio do valor
da recompensa, paga direta e exclusivamente em razão da conduta ilícita, de modo
que ambos os valores estariam incluídos no conceito de dano indenizável a partir da
ótica da reparação integral.
Nem mesmo as hipóteses de ressarcimento por despesas realizadas contra
ameaças concretas parecem pertencer ao campo da dita responsabilidade civil preventiva. As decisões citadas mostram que os tribunais da Áustria e Irlanda exigiram que a ameaça fosse real e concreta, de modo que, no plano da faticidade, só
adquiriram tais características quando o dano a ser evitado já havia efetivamente
ocorrido anteriormente, prevenindo apenas sua reincidência. Tal requisito acaba por
transfigurar uma hipótese nominalmente preventiva em efetivamente compensatória,
COMPARATO. Fábio Konder. Notas sobre parte e legitimação nos negócios jurídicos. In: COMPARATO. Fábio
Konder. Ensaios e pareceres de direito empresarial. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 517. O autor ainda
chama a atenção para a hipótese de os interesses do gestor coincidirem com o do titular do negócio gerido,
caso em que os sujeitos serão tidos por sócios, conforme estabelece o art. 875 do atual Código Civil.
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e, quanto a parcela de prevenção, novamente poderia ser solucionada pela gestão de
negócios, no campo do direito contratual.
5 Notas conclusivas
De todo o exposto, o que se pode concluir é que a releitura da responsabilidade
civil pelas lentes do Direito Civil-Constitucional de fato realizou uma virada copernicana nesse campo, tanto em sua função quanto em sua estrutura. No entanto,
enquanto temas centrados na culpa, dano e nexo de causalidade foram objeto de
acalorados debates doutrinários e jurisprudenciais, pouco esforço foi dirigido a reler
a função reparatória da responsabilidade civil, tema que parece, de fato, merecer
também uma releitura crítica.
Aí aflora, novamente, o papel da doutrina: “sempre é tempo de a doutrina assumir a responsabilidade que lhe é própria: distinguir, qualificar, classificar, refletir,
criticar, elaborar e propor modelos hermenêuticos”.65
De todo modo, dos contornos que se tem da responsabilidade civil preventiva
na doutrina brasileira e dos precedentes que se colhe do direito comparado, uma leitura inicial do tema permite concluir que de fato se clama por uma função preventiva
aos danos, o que inclusive pode ser alcançado desde logo por uma interpretação que
parta do projeto constitucional da Carta de 1988, porém, essa função ainda encontra
obstáculos tão robustos para sua inserção no campo da responsabilidade civil que
talvez seja melhor buscar para ela um locus próprio, sem invadir a espacialidade
própria da responsabilidade civil,66 que já vive tão conturbado momento.
Abstract: from the exposure of how the doctrine, through the civil-constitutional interpretation, performed
the transformation of the liability of the liberal state on contemporary liability, journey that succeeded even
relativize its essential elements, it is clear that the reshaping of the tort function not aroused the same
interest. Although admittedly long defended, the preventive purpose of liability was unexplored during the
aforementioned transformation. From this point, the text examined the structure (how it works) and function
(serving) of preventive liability, through the mechanisms of the substantive law that instrumentalize it and
how it has been applied in comparative law. Finally, presents a compliment to function, however, criticizes
the inclusion of the mechanisms so far proposed within the spatiality of tort, making it clear that the
MARTINS-COSTA, Judith. Critérios para aplicação do princípio da boa-fé objetiva. In: COSTA, Judith Martins;
FRADERA, Vera Jabob de (Org.). Estudos de Direito Privado e Processual Civil em homenagem a Clóvis do Couto
e Silva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 193.
66
A conclusão é compartilhada na doutrina alemã por Helmut Koziol, para quem: “one should not abuse tort law
for other — albeit sensible — aims but instead look to or design a different branch of law which takes regard
of the different aims pursued. (…) Last but not least, as far as» preventive damages «have the function of
siphoning off a gain netted by a wrongful activity, the rules on unjust enrichment seem to be more appropriate
than tort law where the damage and not the gain is decisive. It is an unreasonable violation of tort law to use
it as a basis for gain-oriented claims. There is a rather strange tendency in these times to neglect differences;
to put the same label on different things and in doing so to feel happy that the world is simple and is in such
harmony” (Basic Questions of Tort Law from a Germanic Perspective. Translation from German to English by
Fiona Salter Townshend. Vienne: Jan Sramek Verlag, 2012, p. 57).
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Responsabilidade preventiva: elogio e crítica à inserção da prevenção...
challenge of contemporary doctrine is to build a systematically coherent structure able to insert prevention
in Brazilian civil law.
Keywords: Tort Law. Preventive Liability. Function. Civil-Constitutional Law.
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação
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responsabilidade civil. Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano
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Business judgment rule e
responsabilidade civil do administrador:
ensaio sobre a função da doutrina na
construção de modelos jurídicos
Ermiro Ferreira Neto
Advogado. Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor da Faculdade Baiana de Direito, UNIFACS e da Fundação Faculdade de Direito da UFBA (graduação e
pós-graduação). Membro do Instituto de Direito Privado e Instituto Brasileiro de Direito Civil.
Resumo: Modelos jurídicos são construções culturais forjadas não apenas à vista das normas produzidas
em dada ordem jurídica, como também à luz da produção doutrinária. Por esta razão, é prudente, antes de
se transpor determinado instituto de direito comparado para a ordem jurídica nacional, realizar as ressalvas
devidas, à luz do modelo jurídico previamente existente, sob pena de cair-se em incompatibilidades, culturais
ou jurídicas. A business judgment rule constitui modelo jurídico norte-americano de responsabilidade civil
do administrador e, antes de propor a sua aplicação no Brasil, faz-se necessário sua análise à luz do nosso
modelo de responsabilidade civil do administrador — estudo que se pretende fazer através deste ensaio,
tendo como pano de fundo a reflexão sobre a função da doutrina na construção de modelos jurídicos.
Palavras-Chave: Responsabilidade civil. Administrador. Modelos jurídicos.
Sumário: 1 Introdução – 2 Modelos jurídicos e responsabilidade civil – 3 Business judgment rule: um
modelo possível no direito brasileiro? – 4 Conclusão – Referências
1 Introdução
O presente ensaio tem o objetivo de investigar se, e em que medida, a regra
da business judgment rule, construída no direito norte-americano, tem aplicação no
âmbito da ordem jurídica brasileira.
Para tanto, busca-se apoio teórico no conceito de modelos jurídicos, de modo
a demonstrar a existência não de um sistema único de responsabilidade civil, mas
de diversos regimes jurídicos específicos com características próprias, como ocorre
com o regime de responsabilidade dos administradores de sociedades empresárias.
Na investigação do modelo jurídico de responsabilidade civil do administrador
vigente no Brasil, é possível refletir sobre a função da doutrina no âmbito desta construção. Particularmente, ante a evolução tecnológica, a complexidade de algumas
relações no direito privado e, por conseguinte, a constituição de novos direitos, seria
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Ermiro Ferreira Neto
atribuição da doutrina de Direito Civil decodificar as linhas gerais dos modelos nos
termos postos pela legislação; o modelo jurídico de tutela de determinada relação,
pois, não seria obra exclusiva das normas postas, mas resultado de esforço conjunto
empreendida pela comunidade jurídica, o que carrega em si certos pressupostos,
tradições e construções culturais que não podem ser desconsiderados por aqueles
que buscam o seu conteúdo.
Definido, em linhas gerais, qual o modelo previsto na legislação brasileira para
a responsabilização dos administradores, tratou-se de compará-lo com o regime da
business judgment rule, verificando, em termos doutrinários, possíveis convergências
e incompatibilidades entre os dois modelos (brasileiro e norte-americano).
Ao fim, foram objeto de análise os julgamentos no âmbito da Comissão de
Valores Mobiliários tidos como referência pela bibliografia especializada sobre o
tema, de modo a permitir um exame da construção destas decisões, à luz das premissas teóricas firmadas anteriormente, fruto da comparação dos regimes.
Uma ressalva: este ensaio, por ter proposta singela e bem definida, não abrange
considerações mais aprofundadas a respeito da natureza jurídica da função desempenhada pelos administradores de sociedades empresárias, elementos históricos dos
regimes objeto de comparação ou distinções teóricas sobre a regulação da atividade
empresarial no Brasil e nos Estados Unidos.
2 Modelos jurídicos e responsabilidade civil
Vem de longa data a pretensão dos juristas de instituir, na forma de um conjunto
geral de normas, um regulamento que fosse ao mesmo tempo geral e comum à maior
parte possível de condutas humanas, particularmente no âmbito do direito privado.
Esta busca, cujas raízes podem ser localizadas desde as regras jurídicas romanas mais rudimentares, enunciadas de modo abstrato e exigíveis em face de todo
aquele que se comportar conforme o suporte fático das normas, impôs consequências fundamentais para o próprio desenvolvimento do direito.
Esse espírito, aliado à ascensão do Liberalismo, logrou refletir de modo contundente na Teoria do Direito. A liberdade reclamada pelos movimentos liberais, juridicamente, operou uma verdadeira mudança de paradigmas quanto a força conferida
pela legislação aos contratos e demais atos privados, de modo a ampliar os muros
que separavam o Estado da intervenção nos pactos firmados entre particulares. Do
mesmo modo, se no campo ideológico a igualdade era erigida como elemento fundamental para que não existissem mais, ao menos no campo formal, distinções de
tratamento entre nobres, burgueses e demais cidadãos, tal circunstância se reflete
nos marcos regulatórios deste momento histórico, de sorte a garantir que a lei, geral
e abstrata, pudesse incidir igualmente, em ônus e bônus, em face de todos que se
comportassem de acordo com seus preceitos.
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É este estado de coisas, em linhas gerais, que impulsiona os movimentos de
codificação: os códigos civis, como regulamentos gerais das relações privadas, tinham a pretensão de completude; deviam abarcar todos os comportamentos, de
todas as pessoas, em face do direito privado.
Com tal objetivo, o ideal que inspirou a construção dos códigos civis remonta
à Revolução Francesa de 1789 e não deixa de ser igualmente revolucionário: regulamentar as condutas de todos os cidadãos, em face da mesma lei, seria medida de
compatibilidade com o “princípio da igualdade perante a lei”. Deste modo, “o código
prevalece [...] sobre todas as leis locais ou pessoais, bem como sobre os costumes”
(VICENTE, 2013, p. 702).
A premissa dos principais teóricos da Codificação, atualmente, poderia ser facilmente desconstruída: se a sociedade atual parece cada vez mais complexa, com
relações cada dia mais específicas, de modo a reclamar tratamento jurídico também
particular, como ocorre com as relações de consumo, relações empresariais, relações societárias, entre tantas outras, seria um erro reduzir toda esta sofisticação
a regras gerais, que não refletem, do ponto de vista da regulação das condutas, as
especificidades de cada um destes setores.
Relações específicas, como aquelas que se enunciou, reclamam regulação específica, sem que isso signifique afastar completamente as regras dos códigos civis.
Esta agenda, a partir do século XX, ganha a pauta dos juristas e desemboca nos movimentos de descodificação, no Brasil refletido na criação de microssistemas: embora
pudessem ser subsumidas ao regulamento genérico do Código Civil, as relações de
consumo passam a ser tuteladas pelo Código de Defesa do Consumidor; o mesmo se
pode dizer, por exemplo, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que impõe regras
de proteção de um sujeito de direito específico, o menor, dirigidas aos pais, à família,
ao Estado, e a terceiros de maneira geral; por fim, apenas para ficar em três exemplos, dada a conhecida dificuldade para o exercício do direito fundamental à moradia
nos grandes centros urbanos, o mesmo movimento vê nascer a Lei de Locações, com
regras para regulamentar as locações de bens imóveis urbanos.
Um contexto tal tem permitido à doutrina referir-se à atual quadra histórica como
uma “era da desordem”, um contraponto histórico ao que se convencionou chamar
de “era da ordem” (LORENZETI, 2010, p. 39) ou “mundo da segurança” (IRTI, 1999,
p. 21). Neste primeiro momento, diz-se que “as fontes eram autônomas e únicas”:
“o direito público era tratado na Constituição, e o direito privado nos Códigos Civil e
Comercial”; já no segundo e atual momento, na fronteira entre o público e o privado
residem “numerosos temas, permeada por problemas e princípios que estabelecem
um novo sistema de comunicação” entre os dois setores (LORENZETI, 2010, p. 39).
Neste ambiente, a criação de microssistemas reflete uma política legislativa
que por sua vez é “fruto da crescente intervenção do Estado na vida social, em particular nas atividades econômicas, a qual levou à adoção nas últimas décadas [...]
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de um vastíssimo número de diplomas avulsos em matéria civil” (VICENTE, 2013, p.
703-704). Em contraposição ao ideal de completude e generalidade defendido pelas
primeiras codificações, a adoção de uma política legislativa voltada para a adoção
de microssistemas prestigia uma visão de direito civil “antes como uma estrutura
defensiva do cidadão e da coletividade do que como uma espécie de ordem social”,
visão de certo modo totalizadora (LORENZETI, 2010, p. 44).
Os microssistemas permitem estruturar qual o modelo jurídico pertinente a cada
uma das relações jurídicas que se busca regular. Assim entendido como “estruturas
normativas dinâmicas, que integram fatos e valores em normas jurídicas”, os modelos jurídicos são formados a partir da análise dos “modelos legislativos, jurisprudenciais, costumeiros e negociais” (MARTINS-COSTA, 2014, p. 10). A partir da análise de
cada uma das fontes, é possível traçar um perfil dos modelos existentes para tutela
das relações jurídicas, num esforço que será (ou deve ser, ao menos) empreendido
pela doutrina, tendo como objetivo não apenas explicar, como também “antecipar
possibilidades de sentido e soluções práticas que venham a atender as necessidades sociais” (MARTINS-COSTA, 2014, p. 32).
Embora a ideia de modelos jurídicos não possa ser conectada exclusivamente à
noção de microssistemas, parece intuitivo que, tanto mais são as relações especificamente reguladas, tanto mais evidentes serão os modelos a serem dissecados pela
doutrina. E mais: tanto mais são os microssistemas, mais esforço será exigido dos
operadores para construir modelos dogmáticos, tendo como base a aplicação de institutos tradicionais, como a responsabilidade civil, a relações jurídicas extremamente
particularizadas.
Exemplo prático, cuja análise pode ser feita à vista dessas considerações teóricas, pode ser visto no âmbito das relações societárias, ou mais especificamente na
relação entre a administração de uma sociedade empresária e seus sócios. É sabido
que os sócios, em face de ato ilícito causado pelos administradores, poderão obter
indenizações por eventuais danos a si causados. Todavia, a análise do que seria
ato ilícito, nesse contexto, opera do mesmo modo como operaria em qualquer outra
relação jurídica? Do mesmo modo, a respeito da culpa, qual o modelo jurídico da sua
aferição no contexto de processos de decisão complexos, cujo principal elemento, ao
final, vem a ser o próprio risco da atividade econômica ser rentável ou não?
Essas e outras questões, no âmbito do direito norte-americano, levou a jurisprudência a cunhar a chamada business judgment rule, uma regra construída a partir
de precedentes, segundo os quais, em linhas bastante gerais, o Poder Judiciário não
deve avaliar o mérito, a correição das decisões empresariais, mas exclusivamente,
a diligência, a honestidade e a transparência da administração nos seus processos
decisórios. Adiante, tendo como base o que se expôs, passa-se a analisar se a
business judgment rule é um modelo compatível com o modelo brasileiro de responsabilidade civil dos administradores de empresas.
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3 Business judgment rule: um modelo possível no direito
brasileiro?
Com o objetivo de limitar a responsabilidade do administrador, as Cortes norte-­
americanas cunharam, em sucessivos precedentes, a regra da business judgment
rule. Tal regra baseia-se em dois enunciados: (i) os administradores não serão responsabilizados por danos causados à empresa quando suas decisões sejam tomadas de boa-fé e nos limites dos poderes conferidos pelo estatuto; e (ii) em lides
envolvendo a responsabilidade dos administradores, os tribunais não devem analisar
o mérito da decisão do administrador, devendo limitar-se a aferir se a tomada de
decisão foi resultado de um processo razoável e bem fundamentado na informação
disponível ao administrador (QUATTRINI, 2014, p. 29).
Embora o termo “rule” possa ser traduzido como “regra”, deve-se ter em mente
o alerta feito por Pablo Marchesini que, em trabalho de conclusão de curso cuja banca foi integrada por este autor, alertou para o fato de que a business judgment rule
configura-se, em verdade, em um padrão de revisão judicial — padrão este cujo principal elemento é, justamente, o relativo afastamento do Judiciário quanto a análise
do mérito das decisões do administrador (MARCHESINI, 2014, p. 38).
Construída a partir de precedentes da Corte de Delaware (BRIGAGÃO, 2013, p.
10), a business judgment rule tem como principal fundamento o fato de que a assunção de riscos é parte fundamental da atividade empresarial. Dito de outro modo,
pode-se dizer que o infortúnio ronda sempre a operação de uma empresa, não sendo
incomum que expectativas eventualmente não sejam atingidas, metas não sejam
alcançadas e que, justo por isto, ao invés de lucro, a atividade gere prejuízos e danos
aos que dela tomam parte, sócios ou administradores.
O risco, todavia, exerce papel peculiar no âmbito da atividade empresarial. É
que, tanto maior o risco maior também a possibilidade de ganhos. Decisões arrojadas, inovadoras ou que sejam tomadas contra o senso comum poderão criar rentáveis margens de lucro; por outro lado, mostrando-se a decisão incorreta, disso poderá
resultar perdas financeiras relevantes causadas a todos aqueles que acreditaram na
possibilidade de sucesso do planejamento inicialmente traçado.
Em um país de profundas tradições liberais, como nos Estados Unidos, a business judgment rule é bastante compatível com uma mentalidade ligada à liberdade de
iniciativa econômica e que privilegia o empreendedorismo. Neste contexto, “ganhar”
ou “perder” fazem parte do jogo, o que, particularmente, no âmbito das companhias
abertas, atrai o dever de informação quanto aos riscos, mas não excluem a divisão
do infortúnio e da falência com acionistas que tenham eventualmente prejuízo com o
investimento em papéis de uma empresa. Bem por isso, “o foco analítico é claramente transferido da decisão em si, para o processo de tomada de decisão” (QUATTRINI,
2014, p. 30).
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No Brasil, assim como nos Estados Unidos, administradores também podem
ser responsabilizados por atos praticados de modo ilícito na forma da legislação de
regência, e que deles tenham resultado danos causados aos sócios/acionistas.
Os marcos legislativos para este modelo de responsabilização podem ser encontrados, em primeiro lugar, no Código Civil. Este, no artigo 1.011, dispõe que “o
administrador da sociedade deverá ter, no exercício de suas funções, o cuidado e
a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de
seus próprios negócios”. Mais à frente, no artigo 1.016, o mesmo diploma prevê que
“os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros
prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções”.
Embora os dois dispositivos encontrem-se localizados no capítulo do Código
referente às “Sociedades Simples”, o perfil de responsabilidade do administrador traçado a partir das duas normas poderá alcançar a sociedade limitada. É que, na forma
do artigo 1.053, “a sociedade limitada rege-se”, nas omissões do seu próprio capítulo (artigo 1.052 e seguintes), “pelas normas da sociedade simples”. Não havendo
normas específica sobre a responsabilização, pois, serão aplicáveis os dispositivos
vistos anteriormente, salvo se o contrato social dispuser que a regência supletiva
seja pelas normas da sociedade anônima (artigo 1.053, parágrafo único).
A análise conjunta dos textos dos artigos 1.011 e 1.016 permite extrair elementos importantes para a construção do modelo de responsabilização do administrador
no Brasil. Ao impor ao administrador, de um lado, o dever de cuidado e o dever de
diligência, a legislação quer lhe obrigar a conduzir-se de modo cauteloso, ciente dos
riscos, enfim, de maneira diligente na gestão das operações da empresa.
A fórmula construída a partir do artigo 1.011, ao impor a obrigação de cuidado e
diligência “que todo homem probo costuma empregar” na gestão de suas coisas não
é, propriamente, uma novidade do Código Civil. Em diversos outros trechos, quando
trata de maneira geral da gestão de bens ou negócios alheios, o Código impõe este
mesmo dever. É o que ocorre, por exemplo, com o depositário (“é obrigado a ter na
guarda e conservação da coisa depositada o cuidado e diligência que costuma com o
que lhe pertence” – artigo 629); do mesmo modo, na gestão de negócios, em que o
“gestor envidará toda sua diligência habitual na administração do negócio, ressarcindo ao dono o prejuízo resultante de qualquer culpa na gestão”.
Para todos esses casos, a doutrina, baseada numa metáfora que deita suas
raízes na Roma Antiga, costuma indicar que o gestor de negócios alheios deve se
portar como o bonus pater familae, como o faz Modesto Carvalhosa (2009, p. 274).
De modo semelhante, também para Fábio Ulhoa Coelho, a diligência a que alude o
artigo 1.011 “se expressa normativamente pelo ‘standard’ do bom pai de família”
(2011, p. 271), conduzindo-se de modo diligente, cuidadoso, de forma a não colocar
em risco os bens e os direitos alheios.
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É esta mesma figura que tem sido suscitada para explicar, à luz do modelo
brasileiro de responsabilização do administrador, que este sujeito também deve se
comportar como o bonus pater familiae. Na gestão de uma sociedade, deveria ele, a
todo o tempo, agir com cuidado, ser diligente, evitar expor-se a riscos, tudo de modo a
preservar o patrimônio da empresa e de seus sócios. Justamente por esta razão, não
agindo desta forma, ou seja, sendo ele negligente, imprudente ou imperito para a função, os atos que resultem destes três elementos poderão ser considerados ilícitos
(artigo 186), podendo o administrador responder por culpa pelos danos à sociedade
e a terceiros no desempenho das suas funções (artigo 1.016).
O mesmo perfil do Código Civil pode ser encontrado na Lei Federal nº 6.404/76,
que regulamenta as sociedades anônimas, abertas ou fechadas.
Com efeito, o artigo 153 repete a fórmula do Código Civil (ou, a rigor, por critério
temporal, o Código Civil repete a norma do artigo 153) impondo o já visto dever de
cuidado e diligência. O diploma sob análise, todavia, desdobra estes deveres em obrigações específicas, que visam impedir o desvio de poder (artigo 154), garantir o dever
de lealdade (artigo 155), de informar (artigo 157) e não atuar em conflito de interesses
(artigo 156). Todos estes deveres, que, como se vê, são obrigações de meio, e não de
resultado, conduzem o administrador de uma sociedade anônima a responder “pelos
prejuízos que causar, quando proceder: I – dentro de suas atribuições e poderes, com
culpa ou dolo; II – com violação da lei ou do estatuto” (artigo 158).
Do que se viu, pois, é possível enunciar que:
(i) na sociedade limitada, o administrador responde pelos danos que causar,
decorrentes de seus atos de administração, desde que se apure sua culpa,
na forma de negligência, imprudência ou imperícia, pelos prejuízos;
(ii) nas sociedades anônimas, bem como nas sociedades limitadas regidas
pelas regras da sociedade anônima, o administrador responde pelos danos
que causar, decorrentes de seus atos de administração, desde que, dentro
de suas atribuições e poderes, seja apurada sua culpa pelos prejuízos
causados (sob a mesma fórmula de negligência, imprudência e imperícia)
ou o seu dolo (aqui compreendido, civilmente, como a intenção de causar
dano);
(iii) nas sociedades anônimas, bem como nas sociedades limitadas regidas pelas regras da sociedade anônima, o administrador pelos danos que causar,
decorrentes de seus atos de administração, e independente de culpa ou
dolo, se agir em violação da lei ou do estatuto da companhia.
Em arremate, o artigo 159, §6º, ainda da Lei nº 6.404/76, dispõe que “o juiz
poderá reconhecer a exclusão da responsabilidade do administrador, se convencido
de que este agiu de boa-fé e visando ao interesse da companhia”.
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Vale destacar a divergência, quanto à hipótese do inciso II do artigo 158,1 a
respeito da natureza objetiva ou subjetiva da responsabilidade. Quanto ao ponto, não
tendo o texto do referido inciso II feito alusão à expressão “culpa ou dolo”, como fez
expressamente o inciso anterior, parece clara a opção legislativa pela possibilidade
de responsabilização independente de culpa, em modalidade, pois, objetiva.
A opção se justifica pela gravidade do ato do administrador que possa tomar
decisões gerenciais em desconformidade com lei ou com o estatuto social. Agindo
de tal modo, o administrador descumpre o principal e mais básico dever inerente à
sua atividade, que é o respeito às normas legais e societárias (CARVALHOSA, 1983,
p. 17-18). Assim, para além de uma interpretação literal da Lei nº 6.404/76, que em
seu silêncio solene na omissão da expressão “culpa ou dolo” fez, sim, uma opção
legislativa, a medida se justifica por razões relacionas ao dever de compliance, seguramente vinculado ao bloco de deveres do administrador relacionados a uma atuação
diligente e com boa-fé.
Sobre estas regras a doutrina tem entendido que a gestão do administrador à
frente da empresa encerra uma obrigação de meio. Deverá o administrador empreender seus melhores esforços para a obtenção de resultado econômico positivo,
que, afinal, é o objetivo da própria atividade econômica. Todavia, não há obrigação
quanto a este resultado, não sendo, certamente, ilícito não alcançar os resultados
almejados. Sob este contexto, “se de ato regular de gestão resultam prejuízos para
a companhia e/ou seus acionistas, arcam eles — sociedade e acionistas — com os
danos ocorrentes. Se estes atingem a terceiros, pela respectiva indenização responderá a sociedade. Em qualquer um desses casos, jamais se poderá responsabilizar
civilmente o administrador” (LUCENA, 2009, p. 561).
Todavia, deve-se ter em mente uma importante observação. Há uma fundamental diferença entre agir de modo diligente no âmbito da gestão de uma empresa e agir
de modo diligente em outras atividades. É que, no primeiro exemplo, tem-se certo que
o risco é inerente à atividade, sendo esta tanto mais lucrativa, tanto mais arriscadas
forem as decisões, assim compreendidas aquelas relativas a novos investimentos,
abertura de filiais ou contratação de mais pessoal, por exemplo. Assim, um administrador de empresas diligente não deve ser, sob pena de completa desfiguração da
própria atividade, um administrador que não corre riscos.
Por esta razão, não é imune de críticas o entendimento que liga o bonus pater
familiae à figura abstrata do administrador diligente. A diligência do gestor, repita-se,
“Art. 158. O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da
sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar,
quando proceder:
(...)
II – com violação da lei ou do estatuto.”
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não lhe pode impedir de correr riscos; o seu dever de prudência revela-se mais compatível com o “homem de negócios honesto”, que busca aumentar o seu patrimônio
à custa de decisões empresariais informadas, visando resultados que possam razoa­
velmente ser esperados.
Seja como for, o que acima se enunciou, juntamente com a previsão, no sistema brasileiro, de que o administrador não responderá pelos prejuízos que causar na
gestão da sociedade se não agir com culpa ou dolo, salvo nas hipóteses de violação
da lei ou do estatuto, de algum modo aproxima o modelo do nosso país do modelo
da business judgment rule.
A construção do modelo, todavia, não é obra exclusiva da legislação. Pode-se
dizer, em metáfora, que o perfil legislativo de tutela de determinada relação é apenas
uma “casca” — importante, fundamental até, mas não suficiente para se compreender o conteúdo de modelo jurídico em questão. Incumbe à doutrina o preenchimento
do seu conteúdo.
Assim, sob pena de se estabelecer um mero transplante de institutos entre jurisdições com modelos dogmáticos tão distintos, cujos resultados podem resultar em
incompatibilidade, é fundamental investigar-se não apenas o perfil legislativo, mas
o perfil doutrinário da responsabilidade civil do administrador no âmbito da ordem
jurídica brasileira.
3.1 Business judgment rule e a boa-fé como elemento nuclear
do modelo brasileiro de responsabilidade
O principal fundamento da business judgment rule é a presunção de que o
administrador agirá sempre de boa-fé (SILVA, 2007, p. 193). Agindo de tal modo,
observando os deveres de informar e informar-se, enfim, conduzindo-se segundo os
parâmetros de boa-fé objetiva, e no interesse da companhia, os eventuais prejuízos
causados por suas decisões não poderiam ser qualificados como decorrentes de um
ato ilícito. Nesses termos, o principal elemento para a responsabilização do administrador não é o resultado da decisão em si, mas sim o processo decisório — que
deverá ser pautado pela boa-fé, pela lealdade e pela diligência (SILVA, 2007, p. 193).
No Brasil, o modelo legislativo de responsabilidade do administrador, ressalvada a hipótese do art. 158, II, da Lei nº 6.404/76, exige em todas as hipóteses a
configuração de culpa, na forma de uma condução imprudente, negligente ou imperita
da atividade empresarial. À parte o resultado de sua gestão, conduzindo-se o administrador de modo diligente, não poderá responder ele por eventuais danos causados
a terceiros.
A diligência que se exige do administrador, portanto, é a sua obrigação principal.
Não se obrigando pelo resultado, como se verá adiante, o seu dever fundamental
é conduzir-se de modo leal e prudente. Se se tiver em conta que este padrão de
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conduta é o mesmo que se exige de qualquer sujeito de direito, em qualquer outra
relação obrigacional, por força da incidência da cláusula de boa-fé objetiva, tem-se
aí a conclusão de que este standard de comportamento integra a própria obrigação
principal do administrador, e não uma obrigação lateral ou acessória.
Nos limites deste ensaio, deve-se registrar que a cláusula geral de boa-fé objetiva “impõe ao contratante um padrão de conduta, de modo que deve agir com retidão,
vale dizer, com probidade, honestidade e lealdade” (NERY JÚNIOR et al., 2013, p.
640). Por força disso, conforme larga doutrina, encontram-se as partes obrigadas
a “cumprir não só a obrigação principal, mas também as acessórias, inclusive o
dever de informar, de colaborar e de atuar diligentemente” (DINIZ, 2014, p. 418). À
segunda espécie de obrigações aludidas anteriormente a doutrina confere o nome
de “obrigações laterais” ou “deveres laterais”, que por sua vez podem ser divididos
em (i) deveres de cooperação, (ii) deveres de informação e (iii) deveres de segurança
(MARTINS-COSTA, 1999). Sendo todos eles, os deveres, exigíveis judicialmente, encontram-se as partes obrigadas a agir de modo honesto no âmbito de suas relações,
esforçando-se para que o programa contratual seja cumprido como um todo, cooperando inclusive para que o seu contratante possa adimplir com suas obrigações.
Note-se que agir em conformidade com o padrão de comportamento que a boa-­
fé exige, para o administrador, é seu próprio dever e, sem exagero retórico, o mais importante. Assim, se na regra da business judgment rule o processo decisório é mais
importante do que o resultado da decisão em si, é certo que, no Brasil, este processo
deve ser pautado em um padrão firme de conduta, compatível com a boa-fé objetiva.
Sobre o ponto, remonta à obra de Clóvis do Couto e Silva, ainda na década
de 60 do século passado, os primeiros estudos da doutrina brasileira a respeito do
tema. É célebre a sua definição, segundo a qual “a relação obrigacional tem sido
visualizada, modernamente, sob o ângulo da totalidade. (...) Lato sensu, abrange
todos os direitos, inclusive os formativos, pretensões e ações, deveres (principais
e secundários, dependentes e independentes), obrigações, exceções e, ainda, posições jurídicas” (SILVA, 2007, p. 19).
Disso se pode extrair relevantes implicações entre as consequências da incidência da boa-fé nas relações obrigacionais e o seu correspondente uso no campo da
responsabilidade civil. Com efeito, ao se construir padrões de comportamento para
os sujeitos de direito, tem-se aí, a partir do uso da boa-fé objetiva, importantíssimo
parâmetro para avaliar as condutas lesivas, principalmente sob o ângulo da culpa dos
agentes. Sobre esta convergência entre boa-fé e responsabilidade civil já se disse,
de forma absolutamente apropriada, que “as transformações relativas ao método de
aferição da culpa e, em especial, à sua verificação a partir de parâmetros objetivos
de comportamento encontram paralelo no funcionamento daquela que talvez seja a
noção mais festejada pelo direito privado nas últimas décadas” (SCHREIBER, 2013,
p. 46).
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Tendo essas considerações em vista, deve-se atentar para uma singela, mas
importante, distinção entre o regime da business judgment rule e o regime de responsabilidade civil dos administradores no Brasil. Veja-se que na business judgment
rule o comportamento do administrador tem uma presunção de boa-fé (SILVA, 2007,
p. 193), o que criaria travas a que o Poder Judiciário tomasse parte na análise da
decisão em si. De modo distinto, no Brasil, pode-se falar em um dever de boa-fé, o
qual, caso seja descumprido, poderá impor ao administrador a obrigação de reparar
os danos.
A boa-fé objetiva, pois, pode-se dizer, constitui em elemento nuclear para a
aferição da existência ou não da responsabilidade civil. Se é certo que a conduta do
agente ainda é a pedra de toque da responsabilidade civil, ressalvada a existência de
recente produção que busca deslocar este eixo para a tutela da vítima ou dos danos,
a incidência da boa-fé objetiva cria parâmetros relevantes para a análise do comportamento lesivo. Tal circunstância, alerta Anderson Schreiber, deveria servir de estímulo
“à construção jurisprudencial e doutrinária de parâmetros ou standards de comportamento que possam ser considerados exigíveis no tráfego social” (SCHREIBER, 2013,
p. 46) — o que não ocorre, ao menos no âmbito particular da responsabilidade do
administrador.
Sob este aspecto, parece temerário a adoção do modelo da business judgment
rule sem ressalvas. Sob o ponto de vista doutrinário, não seria exagero falar na
existência de um déficit dogmático a respeito dos standards de boa-fé no âmbito das
relações entre gestores e sociedades. O dever de informação incide do mesmo modo
em sociedades limitadas ou anônimas? Qual a relevância das normas de compliance
internas para o fim de definir a existência de responsabilidade civil do administrador?
Há solidariedade obrigacional entre conselheiros e integrantes da diretoria? Todas
estas questões suscitam o debate sobre o conteúdo da boa-fé numa relação desta
espécie e ainda reclamam resposta no seio da doutrina. Tais respostas seriam um
passo necessário e preliminar à adoção de um modelo que presume a boa-fé na
atuação do gestor.
3.2 Business judgment rule e obrigações de meio
Nos termos da Constituição Federal, “não se excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça de lesão” (artigo 5º, inciso XXXV). Disso se poderia compreender, a respeito da possível aplicação da business judgment rule a partir da
interpretação dos dispositivos vistos anteriormente, que tal regra não poderia ser
aplicável pois, neste caso, o Poder Judiciário estaria sendo afastado da apreciação
de determinados fatos, em violação à regra constitucional.
Este obstáculo teórico, todavia, é superável.
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Veja-se que dizer que ao Poder Judiciário não é dado revisar o mérito de decisões do administrador não significa afastar lides deste teor do alcance de um magistrado. O que se pretende através de business judgment rule é exclusivamente
calibrar a apreciação judicial em face do processo decisório, na análise da diligência,
da lealdade e da boa-fé, mas não no resultado das opções do administrador.
É dizer: não há de modo algum afastamento do Poder Judiciário ou proibição
a que um magistrado possa apreciar o mérito de uma decisão do administrador. Ao
contrário, a responsabilidade civil que eventualmente se extraia de tais decisões
poderá ser avaliada, através de todos os seus requisitos fixados em Lei. Todavia,
nesta análise, por força da business judgment rule, deverá o juiz cingir-se à análise
da culpa no processo de formação da decisão, sob os critérios de boa-fé, lealdade e
diligência — não no resultado final deste processo decisório.
É de rigor destacar que a técnica de julgamento que decorre da business judgment rule, como se viu acima, não traz qualquer novidade no âmbito do modelo brasileiro de responsabilidade civil. O mesmo raciocínio exposto anteriormente vem sendo
aplicado por doutrina e jurisprudência a conhecidas hipóteses de responsabilidade
civil nas obrigações de meio.
Tome-se, por exemplo, a responsabilidade civil do médico. É sabido que, sendo
os deveres do médico em face do seu paciente obrigações de meio, este profissional
não se obriga pelo resultado (“curar”, “salvar a vida”, por exemplo). Eventuais danos
causados a um paciente, nestes termos, deverão ser indenizados apenas no caso de
o médico agir com culpa quanto aos meios eleitos por ele para administrar a saúde de
quem lhe procura, bem assim quanto aos procedimentos médicos utilizados. Agindo
pautado nas regras decorrentes da boa-fé objetiva, informando, conduzindo-se com
a segurança e correição esperada, dadas as circunstâncias do atendimento médico,
não haverá dever de indenizar, não haverá responsabilidade civil.
O mesmo deverá ocorrer quanto a análise judicial de casos de responsabilidade civil decorrente de decisões do administrador de uma sociedade empresária.
Sabendo-se que as obrigações do administrador em face dos sócios, quanto ao alcance de lucro, é uma obrigação de meio, a ausência de resultados positivos na gestão
do negócio não pode atrair, prima facie, a sua responsabilidade civil. Para tanto, deve-­
se apreciar a conduta deste administrador, a fim de se verificar se ele agiu dentro de
suas atribuições, se foi diligente ou não, enfim, se conduziu-se com culpa, conforme
requerido pelos dispositivos que regulam a responsabilidade civil neste caso.
Sobre o tema, todavia, não se pode deixar de registrar que recente produção
tem questionado a própria razão de ser da divisão obrigacional entre meio e resultado. É conhecida, por exemplo, a objeção suscitada por Paulo Lôbo, para quem não
há na ordem jurídica nacional norma alguma que fundamente tal dicotomia, a qual
seria puramente dogmática (LÔBO, 2011, p. 37). Tratando da distinção também clássica, no sentido de que na obrigação de meio a prova da culpa incumbiria à vítima,
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enquanto na obrigação de resultado, ao contrário, haveria uma presunção de culpa do
agente, o autor citado é contundente ao refutar este raciocínio como método legítimo
na atribuição do ônus da prova. Segundo ele, “é da natureza de qualquer obrigação
negocial a finalidade, o fim a que se destina, que nada mais é que o resultado pretendido. O resultado é o interesse do credor. Quem procura um profissional liberal
não quer a excelência dos meios por este empregados, quer o resultado, no grau
mais elevado de probabilidade. Quanto mais renomado o profissional, mais provável
o resultado pretendido, no senso comum do cliente” (LÔBO, 2011, p. 38).
A manifestação de Paulo Lôbo, no contexto da pretendida comparação entre a
business judgment rule e o regime brasileiro de responsabilidade civil do administrador, permite refletir sobre a necessidade de uma ambientação de institutos estrangeiros, antes de sua efetiva aplicação no âmbito da experiência jurídica nacional. Por
ambientar, na ausência de palavra melhor, compreenda-se a necessidade adaptar,
integrar, modelos dogmáticos alienígenas, antes de adotá-los, sem ressalvas, no
ambiente brasileiro, como se tem pretendido fazer com a business judgment rule.
A ambientação, para o tema deste ensaio, deve ter em vista o modelo legislativo respectivo (modelo de responsabilidade civil do administrador) e, sobretudo, o
modelo dogmático. Aplicada esta premissa, não se pode pretender a aplicação da
business judgment rule e da técnica de julgamento quanto à não avaliação do mérito
da decisão do gestor, sem que se tenha em vista as próprias objeções da doutrina
nacional a respeito da obrigação de meio.
Se na business judgment rule pode-se dizer que o resultado da decisão do
gestor não deve ser avaliado pelo Poder Judiciário, na doutrina brasileira, mesmo nas
obrigações de meio, tal afirmação deve ser vista cum grano salis. Tendo em mente
a objeção manifestada por Paulo Lôbo e ainda que ela não seja encampada pela
maior parte dos autores, parece legítimo supor que a relação diligência x resultado,
no âmbito das atividades dos administradores, deve levar em conta elementos muito
mais sofisticados do que simplesmente o transplante acrítico da business judgment
rule poderia conduzir.
A aplicação de elementos da business judgment rule no Brasil, pois, deve ter
em vista o alerta feito pela doutrina nacional quanto a dificuldade da aferição abstrata
do comportamento do agente supostamente responsável por um dano. Afinal, é certo
que “não apenas as desigualdades sociais, como também a crescente complexidade
da vida contemporânea, a especialização dos setores econômicos e o avanço desconcertante das novas tecnologias resultam em que, muitas vezes, o juiz se vê diante
de situações às quais não se pode transportar” (SCHREIBER, 2013, p. 41). E, não o
podendo, mesmo nas obrigações de meio, como no caso das obrigações do gestor de
empresa, a análise da diligência empregada e dos resultados razoavelmente esperados, deve ser realizada à vista de modelos de conduta específicos, e não abstratos
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ou generalistas — como, por exemplo, na fórmula norte-americana do administrador
de boa-fé.
Sobre o tema, Anderson Schreiber pontua que “sem abandonar o método in
abstracto ou retornar a um exame de imputabilidade moral, os tribunais têm, em
toda parte, procurado dar ênfase às circunstâncias concretas e à especialidade das
situações submetidas à sua avaliação, desenhando modelos múltiplos e menos generalizados de comportamento” (SCHREIBER, 2013, p. 41). Pode-se dizer que, tal
atividade de arquitetar modelos de conduta, para além de atribuição dos tribunais,
deve ter na doutrina área fértil de soluções. Deste modo é que se poderá ponderar o
que pode ser razoavelmente esperado de um gestor em vista da diligência possível,
em um dado segmento econômico e momento histórico.
A se ter tal atividade em mente, não se pode encampar sem ressalvas a ausência de controle jurisdicional quanto ao resultado das decisões de um gestor, próprio da business judgment rule. Em um momento em que o modelo brasileiro de
responsabilidade civil tem preconizado a fragmentação dos modelos de conduta, ao
invés da generalização, é digno de nota a observação segundo a qual “os magistrados têm buscado recursos na sociedade para a formação de standards de conduta,
valendo-se, por exemplo, de diretrizes emitidas por associações profissionais, de
códigos de conduta especializados mesmo desprovidos de valor normativo, da oitiva
de assistentes judiciais especializados” (SCHREIBER, 2013, p. 42). Sob este ângulo,
não é totalmente irrelevante o resultado da decisão do gestor, ao menos não em
uma análise abstrata; em face desta pretensa irrelevância de um resultado danoso a
doutrina deve se opor através da criação de standards de conduta, com fundamento
em modelos específicos, não generalistas, o que torna possível a visualização do que
poderia ser razoavelmente esperado em face de uma gestão diligente.
3.3 Business judgment rule e sindicabilidade dos atos
administrativos: possível analogia
Embora seja possível falar em uma aproximação, no entanto, é importante verificar se outro elemento importante da business judgment rule poderia ser aplicado
ao modelo brasileiro: a impossibilidade de revisão, pelo Judiciário, do mérito das
decisões do administrador.
Além do elemento risco, como visto, ser inerente à atividade de qualquer gestor
de empresas, o que torna a sua atividade sui generis, já que tanto maior o risco, maior
a possibilidade de retornos financeiros, deve-se ter em mente sociedades empresárias operam sob um regime de direito privado. Tal circunstância, por incidência da
autonomia privada e por um prestígio maior que deve ser conferido aos mecanismos
de autorregulação, a exemplo de estatutos, contratos sociais, acordos de sócios,
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entre outros, impõe certos limites à intervenção do Poder Judiciário no julgamento de
lides com este contexto.
Assim, não havendo violação das normas de ordem pública ou regras cogentes
da legislação, é induvidoso que o Poder Judiciário deverá cingir-se a apreciar as condutas das partes, administrador, sociedade e sócios, em casos de responsabilidade
civil com este perfil, mas não buscar um exercício de substituir-se ao gestor, buscando avaliar qual teria sido a melhor decisão caso ele próprio, juiz, estivesse lá.
Sobre o tema, nos Estados Unidos, já se disse que juízes não são administradores (QUATTRINI, 2014, p. 31). Por esta razão, cujo fundamento também é legítimo
no âmbito do modelo brasileiro de responsabilidade do administrador, deve-se ter
em mente que “os juízes se encontram em uma posição muito mais confortável do
que aquela dos administradores quando da tomada de decisões. Dessa maneira,
magistrados e acionistas podem apontar quanto os administradores poderiam saber
ao tempo da decisão, mas não sabiam; ou se a decisão realmente deveria ter sido
tomada rapidamente” (BRIGAGÃO, 2013, p. 123).
No Brasil, para além dos domínios do Direito Empresarial, fundamento semelhante pode ser localizado no âmbito do Direito Administrativo. Com efeito, assim
como juízes não são administradores, é conhecido o entendimento segundo o qual
juízes também não são gestores públicos, o que se enuncia com base na regra de
proibição de sindicabilidade do mérito dos atos administrativos.
Assim, à discricionariedade do gestor público, corresponde a vedação, ao Poder
Judiciário, de imiscuir-se no mérito dos atos administrativos, com as ressalvas quanto a legalidade, motivos e razoabilidade do ato. Tendo em conta a questão do mérito das decisões de um administrador, à autonomia privada incidente nas relações
societárias, corresponde a vedação, ao Poder Judiciário, de imiscuir-se no mérito
das decisões operacionais, devendo ser apreciado a existência de boa-fé, diligência,
lealdade e observância, por parte do administrador, da lei e das normas estatutárias,
no curso do processo decisório.
3.4 Business judgment rule na jurisprudência da comissão de
valores mobiliários
Na esteira dos fundamentos anteriormente expostos, há espaço no modelo
brasileiro de responsabilidade civil do administrador para aplicação da business judgment rule, ainda que com ressalvas. As regras previstas tanto na Lei nº 6.404/76,
quanto no Código Civil (modelo legislativo), bem assim a doutrina sobre o tema (modelo dogmático) conduzem a uma interpretação segundo a qual (i) a responsabilidade
será subjetiva; (ii) a obrigação será de meio e (iii) não é dado ao Judiciário avaliar o
mérito das decisões do gestor, mas sim a diligência e a boa-fé no processo decisório.
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A jurisprudência da Comissão de Valores Mobiliários confirma este espaço no
modelo brasileiro para a aplicação da business judgment rule. Este dado, haurido do
órgão regulador do mercado de capitais no Brasil, merece destaque, pois é neste
foro, no âmbito das companhias com títulos negociados no mercado, que são adotadas medidas de punição em face de gestores que se possam ter conduzido fora
dos parâmetros de governança corporativa que, de maneira geral, são exigidos de
administradores de sociedades anônimas.
Confira-se, como exemplo da assimilação, pela jurisprudência da Comissão,
da business judgment rule o quanto decidido ainda no ano de 2004, no Processo
Administrativo Sancionador n. 03/2002, sob a relatoria da Diretora Norma Parente:
- O não pagamento de dividendo obrigatório na data prevista constitui
hipótese de fato relevante, nos termos da legislação em vigor e a falta
de sua divulgação, sem qualquer justificativa, importa responsabilidade
Infração ao §4º do artigo 157 da Lei nº 6.404/76 e artigo 2º da Instrução
CVM Nº 31/84; - O não pagamento na data aprazada do dividendo declarado não constitui irregularidade sujeita a punição disciplinar nem caracteriza falta de dever de diligência, salvo se for imotivado ou caprichoso;
- A administração da companhia e seus acionistas têm discricionariedade
para administrar os pagamentos devidos pela companhia, inclusive quanto à respectiva prioridade, não devendo a CVM se substituir à administração nestas decisões; - A não declaração do dividendo obrigatório nos
termos do parágrafo 4º do art. 202 da Lei nº 6.404/76 e a respectiva
constituição da reserva especial de dividendo de que trata o parágrafo
5º do art. 202 da Lei nº 6.404/76 decorrem de juízo da administração
da cia. (grifou-se)
De modo mais vistoso, no ano de 2006, a Comissão expressamente aderiu ao
modelo da business judgment rule. Julgando caso em que integrantes do Conselho
da Administração de uma companhia eram acusados de não ter, de modo deliberado,
convocado os integrantes do Conselho Fiscal para participar de assembleia, o relator
Diretor Pedro Oliva Marcílio de Sousa assim se manifestou (Processo Administrativo
nº RJ2005/1443):
Para evitar os efeitos prejudiciais da revisão judicial, o Poder Judiciário
americano criou a chamada “regra da decisão negocial” (business judgment rule), segundo a qual, desde que alguns cuidados sejam observados, o Poder Judicial não irá rever o mérito da decisão negocial em
razão do dever de diligência. A proteção especial garantida pela regra da
decisão negocial também tem por intenção encorajar os administradores
a servir à companhia, garantindo-lhes um tratamento justo, que limita a
possibilidade de revisão judicial de decisões negociais privadas (e que
possa impor responsabilidade aos administradores), uma vez que a possibilidade de revisão ex post pelo Poder Judiciário aumenta significativamente o risco a que o administrador fica exposto, podendo fazer com que
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ele deixe de tomar decisões mais arriscadas, inovadoras e criativas (que
podem trazer muitos benefícios para a companhia), apenas para evitar o
risco de revisão judicial posterior.
(...)
A construção jurisprudencial americana para o dever de diligência em
nada discrepa do que dispõe o art. 153 da Lei n. 6.404/76, sendo possível utilizar-se, no Brasil, dos mesmos standards de conduta aplicados
nos Estados Unidos. A aplicação destes standards poderia fazer com
que a aplicação do art. 153 fosse mais efetiva do que é hoje, pois poderíamos passar a observar o processo que levou à tomada de decisão
para ver se os cuidados mínimos, que demonstrem a diligência do administrador, foram seguidos, não nos limitando a simplesmente negar a
possibilidade de re-análise do conteúdo da decisão tomada. (grifou-se)
O julgado de cujo voto relator fora extraído o trecho acima vem sendo considerando, desde então, o condutor das decisões da Comissão a respeito da aplicação
de sanções aos administradores em função de decisões negociais. São muitos os
julgamentos desde então,2 sendo despiciendo, para os objetivos deste ensaio, a
análise pormenorizada de todos eles. De todo modo, o que se extrai é a existência
clara, na Comissão de Valores Mobiliários, de uma jurisprudência que se vale de parâmetros da business judgment rule para, a pretexto de uma correlação com o modelo
brasileiro de responsabilidade dos administradores, aplicar a regra construída pelas
Cortes norte-americanas no Brasil. Tal não só parece possível, como adequado, ante
os graus de convergência dos dois modelos.
4 Conclusão
Deve-se ter claro que os modelos são convergentes em muitos pontos, mas
não semelhantes. Com a devida venia da doutrina, que parece ter se firmado em sentido contrário, por exemplo, não se pode tomar como fundamento da possibilidade
de aplicação da business judgment rule no Brasil a regra do artigo 159, §6º da Lei
nº 6.404/76.3
O objetivo da regra anteriormente enunciada não é evitar a sindicabilidade das
decisões administrativas por parte do Poder Judiciário. Ao contrário, para se valer da
prerrogativa de excluir a responsabilidade do administrador, antes deverá o magistrado, por óbvio, tê-la reconhecido. Tal minúcia não é retórica, pois ao reconhecer a
responsabilidade, deverá o magistrado, na forma dos artigos 153 e 158, aferir culpa,
dolo ou atuação do administrador em desconformidade com a Lei e com o estatuto
Para uma análise detalhada, ano a ano, desde 2000 até 2014, confira-se BRIGAGÃO, 2013.
“Art. 159. (...) §6º. O juiz poderá reconhecer a exclusão da responsabilidade do administrador, se convencido
de que este agiu de boa-fé e visando ao interesse da companhia.”
2
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da companhia. Disto resulta, pois, a possibilidade de, num exemplo, o administrador
negligente ou imperito ser “perdoado” pelo Poder Judiciário, se ele comprovar que
agiu no interesse da companhia e de boa-fé.
O exemplo é fictício, mas não é modo algum inverossímil: imagine-se que um
diretor toma a frente de uma operação de aquisição de determinado ativo, seguindo
a diretriz estabelecida pelo Conselho de Administração. Se esta operação for considerada prejudicial à empresa em função da negligência do administrador na avaliação
do valor da aquisição, ainda assim, poderia ter ele excluída a sua responsabilidade,
desde que demonstre ter agido no interesse da companhia e de boa-fé quanto a sua
expectativa de lucro no negócio.
A norma do artigo 159, §6º tem muito mais a natureza de um critério ope legis
de exclusão ou redução de responsabilidade, a exemplo do quanto já previsto no artigo 944, parágrafo único, do Código Civil,4 do que propriamente de um veículo para a
introdução do business judgment rule no Brasil. Com o objetivo de evitar-se um déficit
de argumentação, o que poderia enfraquecer a crescente utilização da regra ou abrir
espaço para impugnações, é prudente refletir sobre os fundamentos possíveis para o
seu uso no país tendo como parâmetro de comparação institutos típicos do modelo
dogmático brasileiro, como se buscou fazer a partir das conexões possíveis com as
obrigações de meio e a autonomia.
No âmbito deste modelo que se procurou traçar, é possível vislumbrar-se uma
dimensão dupla na investigação da responsabilidade do administrador.
Em primeiro lugar, tem-se uma dimensão formal. Nesta oportunidade, assentada na premissa de que o inciso II do artigo 158 prevê hipótese de responsabilidade
objetiva, deve-se investigar se a decisão do administrador observou a lei e o estatuto
da empresa, sobretudo quanto às suas atribuições, bem assim quanto a outras normas internas que instituam deveres de compliance.
Superada a investigação formal (“o administrador agiu conforme a lei e conforme as normas internas da sociedade?”), vai-se a um segundo momento, de dimensão
material (“o administrador, no processo decisório, agiu com a diligência e o cuidado
esperados para o contexto?”). Aqui, será necessário avaliar o processo decisório
em si, tendo em conta os critérios de boa-fé, diligência e lealdade — sendo de todo
possível aqui, pela semelhança de modelos, o uso dos mesmos critérios bastante desenvolvidos pela jurisprudência norte-americana ao cunhar a business judgment rule.
Por outro lado, quanto à obrigação de meio, está certo que, obedecidas as
complexidades de cada companhia, relacionada ao seu porte e sofisticação dos mecanismos de governança, não basta demonstrar a ausência de negligência, imperícia
“Art. 944. (...) Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá
o juiz reduzir, equitativamente, a indenização.”
4
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e imprudência. Como se viu, dada a possibilidade de aplicação da business judgment
rule no Brasil, os meios de conduta exigidos do administrador o impõem extremo
cuidado ao longo do processo decisório, devendo ele informar-se, informar, obedecer
os controles internos da administração, tudo de modo a excluir da apreciação do
Poder Judiciário qualquer elemento relativo ao mérito, à correição de suas decisões
enquanto gestor.
O que se pretende, a partir da dupla dimensão sugerida para análise da responsabilidade civil do administrador, é ambientar a regra da business judgment rule na
ordem jurídica brasileira. Disso resulta apenas ganhos na interpretação do modelo
atualmente vigente, com as contribuições do desenvolvimento obtido pela jurisprudência norte-americana.
Não somente no campo da responsabilidade civil, mas na ordem jurídica como
um todo, deve-se ter sempre em conta que “não se faz doutrina com erudição vazia,
slogans e palavras de ordem (...), nem com o transplante acrítico de soluções estrangeiras, sem pensar-se nas possibilidades e sem avaliar os efeitos concretos de sua
inserção no sistema” (MARTINS-COSTA, 2014, p. 22). É sob este ângulo, em um momento de séria crise econômica, no qual pode-se divisar no horizonte inúmeras lides
questionando decisões tomadas por administradores e possíveis danos causados a
acionistas, que business judgment rule deve ser vista: como mais um elemento que
soma-se ao modelo brasileiro de responsabilidade civil, o qual não pode ser simplesmente abandonado, com o que se estará abandonando também séculos de tradição
jurídica e que bem refletem a função desempenhada pela doutrina na construção de
tal modelo.
Abstract: Legal models are cultural constructions not only in view of the standards produced in a given
legal system, but also considering the doctrinal production. For this reason, it is prudent, prior to transpose
certain institute of comparative law to the national legal system, carry out the appropriate caveats in the
light of previously existing legal model, lest it falls into incompatibilities, cultural or legal. The business
judgment rule is the US legal model administrator liability and, before proposing its application in Brazil, it
is necessary to its analysis in light of our administrator liability model - study what is intended through this
essay, with the backdrop of the reflection on the doctrine of function in the construction of legal models.
Keywords: Civil Liability. Administrator. Legal Models.
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Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 61-80, set./
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A responsabilidade civil do provedor
de aplicações de internet pelos danos
decorrentes do conteúdo gerado por
terceiros, de acordo com o Marco Civil
da Internet
Chiara Antonia Spadaccini de Teffé
Mestranda em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Graduada em
Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro do Conselho Executivo da
revista eletrônica de direito civil civilistica.com. Professora de Direito Civil. Advogada. E-mail:
<[email protected]>.
Resumo: Este artigo discute o tratamento conferido à responsabilidade civil do provedor de aplicações
de internet pelos danos decorrentes do conteúdo gerado por terceiros no Marco Civil da Internet, Lei nº
12.965, de 23 de abril de 2014. Diante da complexidade das questões pertinentes ao ambiente virtual
e considerando a recente vigência da Lei nº 12.965/14, deseja-se contribuir teoricamente com a sua
discussão e interpretação, a partir dos pilares da metodologia do Direito Civil-Constitucional. Para tanto,
inicialmente, foi realizado um breve estudo a respeito da elaboração e da estrutura do Marco Civil e, em
seguida, foram analisados os artigos legais referentes à responsabilidade do provedor de aplicações de
internet pela compensação dos danos oriundos do conteúdo inserido por terceiro. Utilizaram-se como
principais fontes a legislação nacional, doutrina nacional e estrangeira e decisões do Superior Tribunal de
Justiça. Ao final, ponderando cada justificativa apresentada, pareceu que o legislador agiu corretamente
ao evitar a restrição prévia ao discurso, embora eventuais exceções à lei ainda devam ser consideradas.
Palavras-chave: Responsabilidade civil. Dignidade da pessoa humana. Liberdade de expressão. Marco Civil
da Internet. Provedor de aplicações de internet.
Sumário: Introdução – 1 A proteção da pessoa humana no ambiente virtual – 2 A elaboração do Marco
Civil da Internet – 3 A orientação principiológica do Marco Civil da Internet – 4 A responsabilidade civil do
provedor de aplicações de internet pelos danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros – 5 A guarda
de registros pelo provedor de aplicações de internet e a identificação do ofensor – 6 Considerações finais
– Referências
Introdução
O artigo visa a analisar o regime de responsabilidade civil desenvolvido no Marco
Civil da Internet, Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, para o provedor de aplicações
de internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros. Sob o manto da
liberdade de expressão, entre os artigos 19 e 21 da lei, o legislador positivou normas
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Chiara Antonia Spadaccini de Teffé
com o escopo de orientar o debate acerca de qual seria o sistema de responsabilidade civil mais adequado para reger a relação estabelecida entre os provedores e
os usuários da rede, na hipótese específica de um terceiro inserir conteúdo danoso.
Com a entrada em vigor desta lei, cabe ao intérprete analisar criticamente o tratamento oferecido ao assunto, bem como avaliar dentre as possíveis interpretações a mais
adequada para garantir a proteção da pessoa humana.
Neste estudo, em primeiro lugar, será realizada uma breve análise a respeito da
importância da Internet para a sociedade atual e da trajetória de elaboração do Marco
Civil no Brasil, norma específica desenvolvida para tratar de determinados conflitos
no ambiente virtual. Em seguida, passa-se para o estudo da relevância conferida pelo
legislador do Marco Civil ao princípio da liberdade de expressão. Após essas considerações, a responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet por danos
decorrentes de conteúdo gerado por terceiros será densamente examinada. Optou-se
por realizar este estudo a partir dos artigos do Marco Civil da Internet pertinentes
à Seção III “Da Responsabilidade por Danos Decorrentes de Conteúdo Gerado por
Terceiros”, visando a melhor organizar o desenvolvimento de cada tema e contribuir
com a interpretação dessas normas, tendo em vista a complexidade das questões
e a escassez de material doutrinário. Por fim, será realizada uma concisa análise a
respeito do dever de guarda de registros atribuído pela lei ao provedor de aplicações
de internet, de forma a facilitar a identificação do responsável pela inserção do conteúdo danoso.
1 A proteção da pessoa humana no ambiente virtual
O desenvolvimento da Internet representa um novo episódio dentro de um
conjunto de transformações tecnológicas que vêm ocorrendo na sociedade da informação. A sua origem remonta a década de 1960 quando, durante a guerra fria, o departamento de defesa norte-americano promoveu pesquisas em torno da elaboração
de uma rede de comunicações de base descentralizada que seria responsável por
interligar computadores militares e industriais. Inicialmente, o projeto realizado pela
ARPA (Advanced Research Projects Agency) conectava apenas quatro universidades
nacionais, vindo, posteriormente, a se expandir, em razão do interesse comercial em
torno deste serviço.
Com mais de três bilhões de usuários no mundo,1 a Internet tornou-se essencial
para o funcionamento das mais diversas estruturas da sociedade, proporcionando a
difusão, o armazenamento e o processamento de dados com velocidade e precisão.
Dados obtidos no site Internet Live Stats, com base nos estudos desenvolvidos até o ano de 2014 pela
International Telecommunication Union. O Brasil encontra-se em 5º lugar no ranking de usuários por país.
Disponível em: <http://www.internetlivestats.com/internet-users/>. Acesso em: 22 ago. 2015
1
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A responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet pelos danos decorrentes...
Entende-se que este novo instrumento seria capaz, até mesmo, de modificar e reorganizar as relações de poder, em virtude de atuar diretamente em um dos bens mais
relevantes na presente conjuntura — a informação.
Na atualidade, a Internet representa um elemento fundamental para a disseminação da informação, o que impacta tanto o crescimento da economia quanto o
direcionamento do discurso político, de forma que o seu controle vem sendo alvo de
uma séria disputa entre Estados soberanos. Destaca-se também a relevância do ambiente virtual para o processo de democratização do acesso à informação, uma vez
que permite que pessoas de lugares diferentes e com graus diversos de educação
possam acessar o mesmo conteúdo, e para o incremento da participação popular na
própria construção das informações e conteúdos divulgados.
Analisando a estrutura do que chama de Sociedade da informação, Oliveira
Ascensão afirma que esta teria como instrumento nuclear a Internet, que, segundo o
autor, foi objeto de profunda e rápida metamorfose, pois de rede militar teria passado
a rede científica desinteressada, depois a meio de comunicação de massas, para
tornar-se no presente importante veículo comercial. A respeito da informação, o autor
destaca que:
Nesta evolução, a informação que seria o seu conteúdo vai mudando de
natureza. Não só passa a abranger qualquer conteúdo de comunicação
— de maneira que melhor se falaria em sociedade da comunicação que
em sociedade da informação — como a própria informação se degrada.
O saber transforma-se em mercadoria. De conhecimento livre transforma-­
se em bem apropriável. É cada vez mais objecto de direitos de exclusivo,
que são os direitos intelectuais. Estes, por sua vez, são cada vez mais
dissociados dos aspectos pessoais, para serem considerados meros
atributos patrimoniais, posições de vantagem na vida económica.2
O caráter global da Internet e a ausência de um domínio absoluto sobre as suas
dimensões exigem uma maior reflexão acerca dos possíveis impactos e efeitos do
ambiente virtual na vida real de seus usuários. Neste sentido, parece equivocada a
afirmação de que na Internet a circulação de informações deveria ser completamente
livre e irrestrita, bem como que naquele meio os instrumentos legais de proteção à
pessoa humana não seriam de todo aplicáveis.3 Ainda que a Internet seja o espaço
ASCENSÃO, Oliveira. Sociedade da informação e mundo globalizado. Disponível em: <http://www.apdi.pt/pdf/
GLOBSOCI.pdf>. Acesso em: 21 ago. 2015.
3
Por consequência, critica-se também as premissas da corrente liberatória, centrada na ordenação espontânea
do ciberespaço, que surgiu nos Estados Unidos da América no início da década de 1990. Esta defende que a
internet seria um ambiente que não deveria estar sujeito à regulamentação jurídica tradicional, tendo em vista
a impossibilidade de adequação da normatização legal às situações desenvolvidas no ambiente virtual. Partese de uma concepção romântica do ciberespaço como um reino separado do espaço físico e do alcance tanto
de governos nacionais quanto das forças do mercado. Este entendimento foi defendido, principalmente, por
David Clark e por John Perry Barlow, que em 1996 elaborou “A Declaration of the independence of Cyberspace”
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por excelência da liberdade, isso não significa que este seria um universo sem lei e
contrário à responsabilidade pelos abusos que lá possam ocorrer. No mundo real,
como no virtual, o valor da dignidade da pessoa humana é apenas um, de forma que
nem o meio em que os agressores transitam e nem as ferramentas tecnológicas que
utilizam poderão transmudar ou enfraquecer a natureza irrenunciável, intransferível e
imprescritível do referido princípio.4
Na legalidade constitucional, é efetivamente o princípio da dignidade da pessoa
humana (Art. 1º, III, CF) que institui e preenche a cláusula geral de tutela da personalidade, que dispõe que as situações jurídicas subjetivas não patrimoniais deverão
receber um tratamento prioritário e uma tutela especial pelo ordenamento. No Brasil,
a ordem constitucional mostra-se responsável por proteger os indivíduos de qualquer
ofensa ou ameaça à sua personalidade, devendo-se tanto prevenir quanto reparar da
forma mais ampla possível os danos causados.5
Neste cenário, verifica-se que, cada vez mais, direitos e deveres deverão ser garantidos à pessoa humana, tanto com base no texto constitucional quanto em norma
específica. Diante de uma situação de conflito, o intérprete deverá colocar os interesses existenciais em uma situação de preeminência, de forma a garantir a plena tutela
da dignidade. Nesta perspectiva, destaca-se o entendimento de Gustavo Tepedino:
(...) as novas tecnologias, como se veio de demonstrar, rompem com os
compartimentos do direito público e do direito privado, invocando regulação a um só tempo de natureza privada e de ordem pública. A dignidade
da pessoa humana há de ser tutelada e promovida, em última análise,
nos espaços públicos e privados, daí resultando a imprescindibilidade de
um controle da atividade econômica segundo os valores constitucionais,
processo hermenêutico que, em definitivo, há de ser intensificado — e
jamais arrefecido — com a promulgação de leis infraconstitucionais.6
Deve-se, portanto, buscar a permanente inserção da principiologia oriunda da
tábua axiológica constitucional nas categorias antes estritamente ligadas ao direito
privado, visando a promover tanto a elaboração quanto a aplicação de normas responsáveis por proteger não apenas o corpo físico, mas também o seu duplo eletrônico.
(Confira a íntegra em: <https://projects.eff.org/~barlow/Declaration-Final.html>. Acesso em 20 ago. 2015).
Entretanto, este otimismo liberal não tardou a ser combatido em virtude da progressiva ocupação da internet
por governos e grandes empresas que buscavam uma maior segurança nas relações ali traçadas. Verificou-se
que, mesmo que as características de estruturação da Internet e do tráfego de informações pela rede tornem
praticamente impossíveis o monitoramento e o controle completo deste ambiente, a Internet não poderia
ser tratada como uma utopia diferenciada, autogovernada e libertária, mas sim como um ramo da vida em
sociedade que daria ensejo a relações tão complexas quanto aquelas desenvolvidas no ambiente real.
4
STJ. REsp nº 1.117.633. 2º T. Min. Rel. Herman Benjamin. DJ de: 03.03.2010.
5
BODIN DE MORAES, Maria Celina. O princípio da dignidade da pessoa humana. Na medida da pessoa humana:
estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 117.
6
TEPEDINO, Gustavo. Direito Civil e ordem pública na legalidade constitucional. Boletim Científico da ESMPU.
Brasília, ano 4, n. 17, p. 234, out./dez. 2005.
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A responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet pelos danos decorrentes...
A adequada tutela da pessoa humana deve ser realizada a partir do ordenamento
globalmente considerado e não de maneira setorizada com base na dicotomia entre
os direitos público e privado.7
Na última década, no Brasil, foram noticiados diversos casos envolvendo violações aos direitos da personalidade por meio de perfis falsos, descrições difamatórias
e a exposição não consensual de vídeos e informações pessoais, em locais como redes sociais,8 aplicativos para celular ou plataformas que permitem compartilhar conteúdos variados.9 Além do grande número de lesões à pessoa na Internet, verificou-se
a dificuldade de se reparar integralmente os danos ocorridos naquele meio, em razão
da facilidade com que o conteúdo lesivo pode ser transmitido e armazenado por terceiros, em nível global, e da falta de instrumentos próprios para a identificação dos
ofensores. Diante deste cenário, conclui-se que as novas tecnologias ampliaram extraordinariamente o potencial lesivo de cada indivíduo, o que exige, por conseguinte,
não apenas uma nova ética, mas também uma nova abordagem por parte do Direito,
que deve ocorrer de acordo com os ditames da metodologia civil-constitucional.
2 A elaboração do Marco Civil da Internet
No Brasil, optou-se por se elaborar uma norma própria e específica, em âmbito
civil, para reger as relações no ambiente virtual, o Marco Civil da Internet, que foi desenvolvido a partir de um processo colaborativo com diversos setores da sociedade.
Em 29 de outubro de 2009, a Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da
PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 762.
No Recurso Especial nº 1.308.830, julgado em 2012, a Min. Nancy Andrighi salientou o interesse coletivo que
envolve a controvérsia referente aos danos a direitos da personalidade por conteúdo de terceiro nas redes
sociais virtuais, em razão de sua enorme difusão e da crescente utilização deste meio como artifício para a
consecução de atividades ilegais.
9
Percebe-se uma intensa relação entre os direitos à imagem e à privacidade, principalmente, nas hipóteses que
envolvem danos à pessoa humana no ambiente virtual. O leading case sobre o tema envolveu a publicação,
em um site de visibilidade internacional, o YouTube, de um vídeo em que a modelo Daniella Cicarelli e o
seu namorado, sem saber que estavam sendo filmados, encontravam-se em momentos íntimos, em uma
praia na Espanha (TJ/SP, Apelação Cível nº 556.090.4/4-00, 4º Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Ênio
Santarelli Zuliani, julg. 12.06.08). Em agosto de 2014, o juiz da 5ª Vara Cível de Vitória deferiu medida liminar
determinando que o Google e a Apple retirassem de suas lojas virtuais o aplicativo Secret, que permitia
que seus usuários fizessem comentários e postassem fotos anonimamente (Ação Civil Pública nº 002855398.2014.8.08.0024). Entretanto, em setembro de 2014, a justiça suspendeu os efeitos da referida medida
liminar. Segundo o desembargador, o aplicativo não seria completamente anônimo, pois seria possível a
identificação do usuário por meio do endereço de IP. Ele considerou também que obrigar as empresas a
acessarem remotamente os celulares dos usuários, para desinstalar os aplicativos já baixados, violaria o
direito à privacidade. Rubens Barrichello ingressou com uma ação em face do Google com o escopo de obrigar
o réu a excluir do Orkut conteúdo lesivo à sua imagem e honra (comunidades e perfis criados por terceiros),
bem como a indenizá-lo pelos danos morais sofridos em razão da conduta ilícita de usuários do serviço e da
demora em corrigir a situação (TJSP, 4ª Câm. Dir. Priv., AC nº 990.10.126.564-8, Rel. Des. Francisco Loureiro,
julg. 21.10.2010) (STJ, 3ª Turma, REsp 1.337.990, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julg.21 ago. 2014).
Cf. TEFFÉ, Chiara Antonia Spadaccini de. A existência refletida: o direito à imagem a partir de uma perspectiva
civil-constitucional. Artigo publicado no XXIV Encontro Nacional do CONPEDI. Aracaju. 2015.
7
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Justiça, em parceria com a Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio
Vargas, iniciou e fomentou estudos visando à elaboração do projeto de lei do Marco
Civil da Internet no Brasil, o qual deveria ter como meta a colaboração e a participação social, por meio de debates tanto no ambiente físico quanto virtual.10
Em um primeiro momento, foi produzido um texto base pelo Ministério da
Justiça, que teve como objetivo estabelecer uma pauta e problematizar as principais
questões envolvendo o uso da rede, que seriam abordadas em um futuro projeto de
lei. O foco central dos envolvidos era desenvolver uma norma que pudesse orientar
as decisões judiciais envolvendo conflitos na Internet. Em seguida, foi elaborada
a minuta do anteprojeto de lei sobre o tema e, mais uma vez, o debate foi aberto,
contemplando vários setores da sociedade.11 Segundo dados coletados, a discussão
sobre o Marco Civil da Internet, realizada entre novembro de 2009 e junho de 2010,
recebeu mais de 2.000 contribuições e 18.500 visitas.
Na segunda fase, a minuta foi submetida à apreciação de outros órgãos governamentais e encaminhada pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional, iniciando o
seu trâmite na Câmara dos Deputados, quando se transformou no projeto de Lei nº
2.126/2011.12 Tendo como base uma densa estrutura principiológica, com ênfase
no princípio da liberdade de expressão, o projeto do Marco Civil abordava temas de
grande relevância, mas de elevada polêmica, como, por exemplo, a privacidade de
dados, o grau de vigilância e responsabilidade dos provedores de internet e a guarda
de registros pelos provedores. Diante dos inúmeros debates promovidos, no ano de
2012, a redação deste projeto sofreu algumas alterações por meio de seu relator —
o deputado Alessandro Molon (PT-RJ), que ofereceu um texto substitutivo.
Em setembro de 2013, em razão de pedido do Poder Executivo, o projeto de lei,
que se encontrava até então pendente de análise na Câmara dos Deputados, entrou
em regime de urgência Constitucional, na forma do art. 64, §1º, da CRFB/88.13 14
Entretanto, apenas no final de março de 2014, o projeto de lei foi enviado para o
Senado, sendo aprovado e transformado na lei ordinária nº 12.965/14 no mês de abril,
Foram marcadas audiências públicas, ouvidos especialistas e interessados e disponibilizado, em um site na
Internet, local adequado para que qualquer pessoa pudesse apresentar a sua contribuição na redação do
texto. Disponível em: <http://culturadigital.br/marcocivil/>. Acesso em: 28 ago. 2015.
11
Este debate pode ser verificado no site “Cultura Digital”. Disponível em: <http://culturadigital.br/marcocivil/
debate/>. Acesso em 28 ago. 15.
12
Este projeto pode ser acompanhado em site vinculado a Câmara dos deputados. Disponível em: <http://
edemocracia.camara.gov.br/web/marco-civil-da-internet/wikilegis>. Acesso em: 28 ago. 15.
13
“Art. 64. A discussão e votação dos projetos de lei de iniciativa do Presidente da República, do Supremo
Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores terão início na Câmara dos Deputados. §1º – O Presidente da
República poderá solicitar urgência para apreciação de projetos de sua iniciativa.”
14
Ronaldo Lemos afirma que isso ocorreu em razão do escândalo provocado pelas revelações de Edward
Snowden quanto à espionagem norte-americana a governos e empresas. LEMOS, Ronaldo. O marco civil como
símbolo do desejo por inovação no Brasil. In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord). Marco Civil da
Internet. São Paulo: Atlas, 2014. p. 03-11.
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A responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet pelos danos decorrentes...
época em que ocorreu no Brasil o evento internacional NET Mundial. Posteriormente,
a Presidente sancionou a lei, que entrou em vigor em 23 de junho de 2014.
Ao longo de 32 artigos, o Marco Civil da Internet estabelece direitos e deveres
para o uso da Internet, além de regular temas específicos como a proteção aos
registros, aos dados pessoais e às comunicações privadas, a neutralidade da rede, a
responsabilidade civil dos provedores de conexão e aplicações de internet, a guarda
de registros e a sua eventual requisição pelas autoridades. Da leitura, percebe-se a
importância conferida aos princípios da neutralidade da rede, da privacidade e, principalmente, da liberdade de expressão, que preconiza a necessidade de se garantir
um discurso livre e plural na rede que não sofra uma indevida interferência externa ou
uma eventual censura prévia.
Em virtude de este instrumento legislativo abarcar questões que envolvem alguma complexidade e fazem referência a conceitos não jurídicos, parece necessário
que a doutrina contribua teoricamente com a sua discussão e interpretação, que
deverá levar em conta, segundo o artigo 6º da lei, “além dos fundamentos, princípios
e objetivos previstos, a natureza da internet, seus usos e costumes particulares e
sua importância para a promoção do desenvolvimento humano, econômico, social e
cultural”. Observa-se que o intérprete não deve considerar o Marco Civil como um microssistema próprio e fechado, devendo sempre interpretar e aplicar as suas normas
sob a luz dos valores e princípios constitucionais.15
3 A orientação principiológica do Marco Civil da Internet
Com base no artigo 3º da Lei nº 12.965/14,16 afirma-se que a Internet brasileira encontrar-se-ia alicerçada em um tripé axiológico conformado pelos princípios da
neutralidade da rede, da privacidade e da liberdade de expressão.
Em breves linhas, compreende-se que a neutralidade da rede – princípio da
disciplina do uso da Internet no Brasil (Art. 3º, IV) – garantiria um espaço que trataria
De acordo com a metodologia do direito civil constitucional, deve-se permanentemente “reler todo o sistema
do código e das leis especiais à luz dos princípios constitucionais e comunitários, de forma a individuar uma
nova ordem científica que não freie a aplicação do direito e seja mais aderente às escolhas de fundo da
sociedade contemporânea” (PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008. p. 137-138.)
16
“Art. 3º A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios: I – garantia da liberdade de
expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal; II – proteção da
privacidade; III – proteção dos dados pessoais, na forma da lei; IV – preservação e garantia da neutralidade
de rede; V – preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por meio de medidas técnicas
compatíveis com os padrões internacionais e pelo estímulo ao uso de boas práticas; VI – responsabilização
dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei; VII – preservação da natureza participativa
da rede; VIII – liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet, desde que não conflitem com os
demais princípios estabelecidos nesta Lei. Parágrafo único. Os princípios expressos nesta Lei não excluem
outros previstos no ordenamento jurídico pátrio relacionados à matéria ou nos tratados internacionais em que
a República Federativa do Brasil seja parte.”
15
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da mesma forma tudo que transportasse indiferente à natureza do conteúdo ou à
identidade do usuário.17 Seria um princípio de arquitetura de rede que endereçaria
aos provedores de acesso o dever de tratar os pacotes de dados que trafegam em
suas redes de forma isonômica, não os discriminando em razão de seu conteúdo
ou origem.18 No Marco Civil, a neutralidade apresenta disciplina própria no artigo 9º
que dispõe que “O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o
dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por
conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação”.
Em relação ao princípio da privacidade, verifica-se que este deve ser concebido
de forma a tutelar integralmente as informações da pessoa humana, impedindo a
interferência alheia. Diante do acelerado avanço da tecnologia, entende-se que a
noção de privacidade deve ser ampliada, para englobar, além do mero isolamento
ou reserva do indivíduo, o controle da circulação das informações pessoais e a autodeterminação informativa.19 No Marco Civil da Internet, o princípio da privacidade foi
expressamente assegurado nos artigos 3º, II, 8º e 11. Em outras passagens, a lei
estabeleceu a proteção aos dados pessoais, a inviolabilidade da intimidade e da vida
privada e a inviolabilidade e o sigilo do fluxo das comunicações pela Internet.
Por fim, entende-se que a liberdade de expressão representaria o fundamento
do direito de externar ideias, juízos de valor e as mais variadas manifestações do
pensamento em qualquer ambiente. Alguns autores destacam que a liberdade de expressão poderia ser utilizada como referência de gênero, que abarcaria as liberdades
de (i) manifestação de pensamento, (ii) consciência e expressão religiosa, (iii) expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação e (iv) informação.
Ao longo do Marco Civil, verifica-se a preocupação do legislador em assegurar
que o ambiente da Internet seja colocado, como não poderia deixar de ser, a serviço
do valor maior do ordenamento que é a pessoa humana, conformando-se em um
ambiente saudável para o livre desenvolvimento de sua personalidade. Entretanto,
alguns intérpretes apontam que a liberdade de expressão teria sido colocada em
uma posição preferencial frente aos demais direitos e princípios, em razão de determinadas opções na redação da lei, notadamente a menção à liberdade em cinco
momentos distintos.20 Este entendimento toma como referência a doutrina de direito
WU, Tim. Impérios da comunicação: do telefone à internet, da AT&T ao Google. Tradução de Cláudio Carina.
Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 244.
18
Definição desenvolvida por Pedro Ramos no site: <http://www.neutralidadedarede.com.br/>. Acesso em: 24
ago. 2015.
19
RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância. Coord. Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008. p. 74-75.
20
No artigo 2º, o único fundamento para a disciplina do uso da Internet no Brasil que se encontra no caput é a
liberdade de expressão; no art. 3º, o primeiro princípio que disciplina o uso da internet no Brasil é a garantia
da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento; no art. 8º, a lei faz referência à
delicada ponderação entre a liberdade de expressão e a privacidade; no art. 19, a regra da responsabilidade
do provedor de aplicações de internet foi construída de forma a assegurar a liberdade de expressão e impedir
17
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A responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet pelos danos decorrentes...
público que afirma que as liberdades de informação e de expressão, por servirem de
fundamento para o exercício de outras liberdades, deveriam ser colocadas em uma
posição de preferência em relação aos demais direitos fundamentais individualmente
considerados.21 22 Sinteticamente, a posição preferencial envolveria duas ideias: a
importância de haver um controle muito rigoroso das medidas que eventualmente
possam restringir estes direitos e o reconhecimento de uma prioridade prima facie
das liberdades comunicativas, nas hipóteses de colisão com outros princípios constitucionais, inclusive aqueles que consagram direitos da personalidade.23
Entretanto, salvo melhor juízo, não parece que o legislador tenha realizado no
texto constitucional uma ponderação a priori em favor de algum direito, mas sim direcionado a interpretação e a aplicação da norma à condição que garanta a maior tutela
à dignidade da pessoa humana. Partindo-se da premissa de que na Constituição
Federal não haveria uma hierarquia entre os direitos fundamentais, qualquer preferência atribuída em abstrato e de forma geral carecerá de fundamento de validade. Nesta
lógica, defende-se que, diante do caso concreto, o magistrado responsável deverá
analisar os interesses em conflito e as especificidades da situação para, só então,
realizar a ponderação de direitos.
É importante destacar que eventual rechaço à posição preferencial não deve
ter como consequência direta a alteração do resultado da ponderação, visto que é inquestionável a importância da liberdade para o adequado desenvolvimento e proteção
da personalidade humana. Como um dos corolários da dignidade da pessoa humana,
“Liberdade significa, hoje, poder realizar, sem interferências de qualquer gênero, as
próprias escolhas individuais, exercendo-as como melhor convier”.24
21
22
23
24
a censura na Internet; no§2º do art. 19, foi estabelecido que a aplicação do disposto no caput para infrações
a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade
de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição da República.
BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de
ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa.
Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, 235, p. 1-36, jan./mar. 2004.
No Supremo Tribunal Federal, alguns ministros já se posicionaram neste sentido. Na ADPF nº 130, o Min. Carlos
Britto afirmou que “a Constituição brasileira se posiciona diante de bens jurídicos de personalidade para, de
imediato, cravar uma primazia ou precedência: a das liberdades de pensamento e de expressão lato senso”.
Na ADPF nº 187, o Min. Luiz Fux consignou que: “a liberdade de expressão (...) merece proteção qualificada,
de modo que, quando da ponderação com outros princípios constitucionais, possua uma dimensão de peso
prima facie maior”, em razão da sua “preeminência axiológica” sobre outras normas e direitos. No Rec. Ext.
nº 685.493, o Relator Min. Marco Aurélio declarou que: “é forçoso reconhecer a prevalência da liberdade
de expressão quando em confronto com outros direitos fundamentais, raciocínio que encontra diversos e
cumulativos fundamentos. (...) A liberdade de expressão é uma garantia preferencial em razão da estreita
relação com outros princípios e valores fundantes, como a democracia, a dignidade da pessoa humana, a
igualdade”.
SARMENTO, Daniel. Parecer Liberdades Comunicativas e “Direito ao Esquecimento” na ordem constitucional
brasileira para o Recurso Extraordinário com agravo nº 833.248. Divulgado em 2015. Disponível em: <http://
www.migalhas.com.br/arquivos/2015/2/art20150213-09.pdf>. Acesso em: 05 ago. 2015.
BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 107.
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Nesse sentido, em recente resolução do Conselho de Direitos Humanos das
Nações Unidas reconheceu-se que:
(…) the effective exercise of the right to freedom of opinion and expression, as enshrined in the International Covenant on Civil and Political
Rights and the Universal Declaration of Human Rights, is essential for
the enjoyment of other human rights and freedoms and constitutes a
fundamental pillar for building a democratic society and strengthening democracy, bearing in mind that all human rights are universal, indivisible,
interdependent and interrelated.25
Apenas não se outorga à liberdade de expressão uma posição inicial de vantagem, no caso de conflito com outros direitos fundamentais, sendo exigida uma
criteriosa avaliação dos direitos e bens jurídicos contrapostos e dos níveis de afetação destes. Observa-se que este entendimento não destoa de parte significativa da
doutrina26 e encontra-se disposto inclusive em documentos internacionais. Neste sentido, recorda-se o artigo 19 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos
de 1966,27 que dispõe que: (i) “ninguém poderá ser molestado por suas opiniões”
e que (ii) “Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a
liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza,
independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em
forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha”.28 Todavia, o
exercício do direito previsto no §2º implicará deveres e responsabilidades especiais.
Por conseguinte, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto,
constar expressamente em lei e ser necessárias para assegurar o respeito aos direitos e à reputação das demais pessoas e proteger a segurança nacional, a ordem, a
saúde ou a moral públicas.
4 A responsabilidade civil do provedor de aplicações de
internet pelos danos decorrentes de conteúdo gerado por
terceiros
O Marco Civil da Internet dispõe acerca da responsabilidade civil do provedor
de aplicações de internet pelos danos decorrentes do conteúdo inserido por terceiro,
Resolution adopted by the Human Rights Council 25/2. Freedom of opinion and expression: mandate of the
Special Rapporteur on the promotion and protection of the right to freedom of opinion and expression. 9
April 2014. Disponível em: <http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G14/132/93/PDF/G1413293.
pdf?OpenElement>. Acesso em: 20 ago. 15.
26
Nesta perspectiva, Ingo Sarlet e Maria Celina Bodin de Moraes.
27
O Congresso Nacional aprovou o texto do referido diploma internacional por meio do Decreto Legislativo nº
226, de 12 de dezembro de 1991, tendo sido depositada a Carta de Adesão em 24 de janeiro de 1992. O
pacto ora promulgado entrou em vigor, para o Brasil, em 24 de abril de 1992. Desde então, o Brasil tornou-se
responsável pela implementação e proteção dos direitos fundamentais previstos no Pacto.
28
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm>. Acesso em: 20 ago. 2015.
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A responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet pelos danos decorrentes...
entre os artigos 19, 20 e 21. Trata-se de norma que não aborda a responsabilidade
por conteúdo próprio do provedor e sim por conteúdo terceiro. Em uma leitura inicial,
parece que tal regra surgiu da necessidade de se regular os conflitos oriundos das
redes sociais virtuais, como o Orkut e o Facebook, quando um terceiro inseria conteúdo lesivo ou criava perfis falsos gerando danos a terceiros. Observa-se que, caso
o sujeito que inseriu propriamente o conteúdo ofensivo seja identificado, ele será
responsabilizado de forma direta e pessoal, com base nos artigos 186, 187 e 927
do Código Civil.
Antes da regra estabelecida na Lei nº 12.965/14, havia grande questionamento
acerca da natureza da responsabilidade do provedor de aplicações de internet, chegando o tema alcançar até mesmo repercussão geral no Supremo Tribunal Federal
no ano de 2012.29 Defendia-se desde uma total isenção de responsabilidade até a
responsabilidade objetiva do provedor independentemente de sua notificação prévia. Correntes intermediárias apontavam ora para uma responsabilidade objetiva do
provedor (com base no Código de Defesa do Consumidor ou no Código Civil) se,
após notificado extrajudicialmente, ele não retirasse o conteúdo lesivo, ora para uma
responsabilidade subjetiva, caso ele se mantivesse inerte após a sua notificação
extrajudicial,30 sendo esta última corrente adotada majoritariamente pelo STJ.31 Por
fim, parte da doutrina defendia como regra a responsabilidade subjetiva do provedor
se, após a ordem judicial impondo a retirada do conteúdo lesivo, este restasse omisso e não tornasse indisponível o material, entendimento que acabou sendo adotado
no MCI.
No Recurso Extraordinário com Agravo nº 660.861, o Google contesta decisão da Justiça de Minas Gerais que
o condenou a indenizar em R$10 mil uma vítima de ofensas na rede social Orkut e a retirar do ar a comunidade
virtual criada por terceiros onde as ofensas ocorreram. Quando da análise deste caso, não havia ainda um
regramento legal para a matéria, de forma que para o ministro fazia-se necessário definir se a incidência direta
dos princípios constitucionais gerava, para a empresa hospedeira de sítios na rede mundial de computadores,
o dever de fiscalizar o conteúdo publicado nos seus domínios eletrônicos e de retirar do ar as informações.
Conforme a análise do andamento processual, em 24 de agosto de 2015, a Corte ainda não proferiu decisão
definitiva sobre o assunto.
30
Este entendimento tem como base o sistema norte-americano do notice and takedown, que se encontra
disposto no Digital Millennium Copyright Act de 1998, na seção 512. Recorda-se também o artigo 15 da
Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho que dispõe: “1. Os Estados-Membros não
imporão aos prestadores, para o fornecimento dos serviços mencionados nos artigos 12.o, 13.o e 14.o, uma
obrigação geral de vigilância sobre as informações que estes transmitam ou armazenem, ou uma obrigação
geral de procurar activamente factos ou circunstâncias que indiciem ilicitudes. 2. Os Estados-Membros
podem estabelecer a obrigação, relativamente aos prestadores de serviços da sociedade da informação,
de que informem prontamente as autoridades públicas competentes sobre as actividades empreendidas ou
informações ilícitas prestadas pelos autores aos destinatários dos serviços por eles prestados, bem como
a obrigação de comunicar às autoridades competentes, a pedido destas, informações que permitam a
identificação dos destinatários dos serviços com quem possuam acordos de armazenagem”.
31
Com base em julgados anteriores da Corte (REsp nº 1.306.066/MT e REsp nº 1.193.764/SP), o Min. Rel. Raul
Araújo deu provimento a uma reclamação afirmando que “(...) aparenta tratar-se de decisão manifestamente
ilegal e, prima facie, contraria a entendimento desta Corte quanto à aplicação da responsabilidade civil, nos
termos do art. 927, parágrafo único, do Código Civil, a provedor de conteúdo na internet.” (STJ. Reclamação
nº 11.654 – PR. DJe: 25/02/13)
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4.1 O provedor de aplicações de internet
De forma a abordar com maior rigor o tema da responsabilidade civil do provedor
de aplicações de internet, faz-se necessário enfrentar a classificação dos provedores
de serviços de internet, que se dá a partir da individualização do serviço que prestam
e do poder de gerência sobre o conteúdo que disponibilizam. Entende-se que esta
identificação constitui atividade imprescindível para que o intérprete estabeleça o regime de responsabilidade aplicável ao caso. Como regra geral, é possível afirmar que
será o dever de controle prévio sobre o conteúdo que tornará o provedor responsável
ou não pelo ato praticado por terceiro.32
O Marco Civil da Internet menciona, ao longo de seu texto, apenas duas espécies de provedores: o provedor de conexão e o provedor de aplicações de internet.
Ainda que o legislador tenha incluído um glossário no artigo 5º, não foi colocado
neste rol uma definição para os provedores, tampouco uma classificação, mas apenas a definição das atividades desempenhadas por eles. Para os efeitos desta lei,
considera-se “conexão à internet” a habilitação de um terminal para envio e recebimento de pacotes de dados pela internet, mediante a atribuição ou autenticação de
um endereço IP (Art. 5º, V), por outro lado, define-se “aplicações de internet” como
o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal
conectado à internet (Art. 5º, VII). Assim, diante do caso concreto, o julgador terá
o ônus de identificar qual foi o serviço prestado pelo provedor, a fim de deflagrar a
perquirição de sua eventual responsabilidade.33
Em uma interpretação inicial, o provedor de aplicações de internet pode ser
compreendido como a pessoa física ou jurídica que fornece um conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet.
Parece equivocado limitar este provedor exclusivamente a uma pessoa jurídica que
Antes do Marco Civil da Internet, a doutrina e a jurisprudência usualmente utilizavam uma classificação que
colocava o provedor de serviços de internet como um gênero que englobava espécies como o provedor de
backbone, de acesso, de hospedagem, de informação e de conteúdo. “Os provedores de serviços de Internet
são aqueles que fornecem serviços ligados ao funcionamento dessa rede mundial de computadores, ou por
meio dela. Trata-se de gênero do qual são espécies as demais categorias, como: (i) provedores de backbone
(espinha dorsal), que detêm estrutura de rede capaz de processar grandes volumes de informação. São
os responsáveis pela conectividade da Internet, oferecendo sua infraestrutura a terceiros, que repassam
aos usuários finais acesso à rede; (ii) provedores de acesso, que adquirem a infraestrutura dos provedores
backbone e revendem aos usuários finais, possibilitando a estes conexão com a Internet; (iii) provedores
de hospedagem, que armazenam dados de terceiros, conferindo-lhes acesso remoto; (iv) provedores
de informação, que produzem as informações divulgadas na Internet; e (v) provedores de conteúdo, que
disponibilizam na rede os dados criados ou desenvolvidos pelos provedores de informação ou pelos próprios
usuários da web” (STJ, Terceira Turma, REsp. nº 1.308.830, j.: 19/06/2012; STJ, Terceira Turma, REsp nº
1.316.921, j.: 26/06/2012).
33
Cabe observar que as empresas de internet, eventualmente, poderão oferecer serviços diversificados que
compreendam atividades tanto de provedores de conexão quanto de aplicações de internet. Nestas hipóteses,
elas serão demandadas de forma correspondente ao serviço que prestaram, ainda que atuem primordialmente
apenas em determinada função.
32
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A responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet pelos danos decorrentes...
exerça atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos, com
base no artigo 15 da lei.34
O provedor de aplicações de internet aparenta englobar os tradicionalmente
chamados provedores de conteúdo e de hospedagem, tendo em vista que, no artigo
19 do MCI, foi determinada que a responsabilidade civil deste provedor, por conteúdo
gerado por terceiros, será omissiva e a partir da notificação judicial.35 Há dúvidas se
o provedor de informação teria sido alcançado por esta Lei,36 pois, usualmente, parte
dos intérpretes defendia que, nesta hipótese, a responsabilidade seria comissiva, na
forma dos artigos 186 e 927 do CC/02, já que o provedor de informação teria o dever
e a possibilidade de controlar o conteúdo disponibilizado.37 Enquanto isso, não parece haver dúvidas de que o provedor de conexão congregaria os chamados provedores
de backbone e de acesso.
4.2 O artigo 19 e a regra da notificação judicial
O artigo 19 do Marco Civil da Internet dispõe que, com o intuito de assegurar
a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet
somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo
gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências
“Art. 15. O provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa
atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos
registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de
6 (seis) meses, nos termos do regulamento. §1º Ordem judicial poderá obrigar, por tempo certo, os provedores
de aplicações de internet que não estão sujeitos ao disposto no caput a guardarem registros de acesso a
aplicações de internet, desde que se trate de registros relativos a fatos específicos em período determinado.
§2º A autoridade policial ou administrativa ou o Ministério Público poderão requerer cautelarmente a qualquer
provedor de aplicações de internet que os registros de acesso a aplicações de internet sejam guardados,
inclusive por prazo superior ao previsto no caput, observado o disposto nos §§3º e 4º do art. 13. §3º Em
qualquer hipótese, a disponibilização ao requerente dos registros de que trata este artigo deverá ser precedida
de autorização judicial, conforme disposto na Seção IV deste Capítulo. §4º Na aplicação de sanções pelo
descumprimento ao disposto neste artigo, serão considerados a natureza e a gravidade da infração, os danos
dela resultantes, eventual vantagem auferida pelo infrator, as circunstâncias agravantes, os antecedentes do
infrator e a reincidência.”
35
De acordo com Carlos Affonso P. de Souza, “(...) o Marco Civil faz uma distinção entre provedores de conexão
(os que dão acesso à rede) e os de aplicações (como pesquisa, hospedagem, redes sociais e etc.)” (“As cinco
faces da proteção à liberdade de expressão no marco civil da internet”. Artigo que será publicado em obra
coletiva). Caitlin Mulholland afirma que o conceito presente no art. 5º, VII, do MCI, faria referência a atividade
de provedoria de aplicações (conteúdo, busca, hospedagem, email, por exemplo). (Responsabilidade civil
indireta dos provedores de serviço de internet e sua regulação no marco civil da internet. Artigo publicado no
XXIV Encontro Nacional do CONPEDI. Aracaju. 2015.)
36
“O provedor de conteúdo é toda pessoa natural ou jurídica que disponibiliza na Internet as informações criadas
ou desenvolvidas pelos provedores de informação, utilizando servidores próprios ou os serviços de um provedor
de hospedagem para armazená-las. Não se confunde com o provedor de informação, que é toda pessoa
natural ou jurídica responsável pela criação das informações divulgadas através da Internet, ou seja, o efetivo
autor da informação disponibilizada por um provedor de conteúdo” (LEONARDI, Marcel. Responsabilidade civil
dos provedores de serviços de internet. Editora Juarez de Oliveira, 2005, p. 136. Disponível em: <http://
leonardi.adv.br/wp-content/uploads/2011/04/mlrcpsi.pdf>. Acesso em: 28 dez. 2014.)
37
Conf. Resp nº 1.352.053 relatado pelo Min. Paulo de Tarso Sanseverino. DJe: 30/03/2015.
34
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para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. Este regime de isenção de responsabilidade inicial do
provedor tem como uma de suas fontes o artigo 230 do Communications Decency
Act norte-americano que dispõe que: “No provider or user of an interactive computer
service shall be treated as the publisher or speaker of any information provided by
another information content provider”.38
Da leitura, pode-se afirmar que: (I) restou clara a responsabilidade subjetiva por
omissão do provedor que não retira o conteúdo ofensivo, após a devida notificação
judicial; (II) a mera notificação extrajudicial, em regra, não ensejará o dever jurídico de
retirada do material; (III) esta opção de responsabilidade coaduna-se com o objetivo
de assegurar a liberdade e evitar a censura privada; (IV) o Judiciário foi considerado
a instância legítima para definir a eventual ilicitude do conteúdo em questão; (V) a
remoção de conteúdo não depende exclusivamente de ordem judicial, de forma que,
o provedor poderá a qualquer momento optar por retirar o conteúdo, quando poderá
eventualmente responder por conduta própria.
A justificativa pela escolha deste regime de responsabilidade reside no fato de
que a responsabilidade civil objetiva incentivaria o monitoramento privado e a exclusão de conteúdos potencialmente controvertidos, o que representaria uma indevida
restrição à liberdade de expressão. Além disso, este regime criaria uma imprevisibilidade quanto à responsabilidade do provedor, o que constituiria uma possível barreira
para a inovação tecnológica, científica, cultural e social, bem como obrigaria o provedor a realizar um controle prévio de tudo aquilo que fosse postado, o que poderia
ser compreendido como uma forma de censura e aumentaria os custos do serviço.
Entretanto, é necessário observar que tal disposição não impede que os provedores
possam determinar requisitos para a remoção direta de conteúdo em seus termos de
uso39 e atendam possíveis notificações extrajudiciais enviadas.
Carlos Affonso Pereira de Souza40 aponta quatro principais argumentos para
embasar esta opção do legislador: (I) parece equivocado empoderar os provedores a
ponto de poderem decidir se o conteúdo questionado deve ou não ser exibido ou se
causa ou não dano, mediante critérios que extrapolam os seus termos de uso; (II)
os critérios para a retirada de conteúdo seriam muito subjetivos, o que prejudicaria
Em relação à importância desta disposição para a liberdade de expressão na Internet, ver <https://www.eff.
org/pt-br/issues/cda230>. Acesso em: 29 jun. 2015.
39
É necessário observar que muitos provedores de aplicações já realizam um controle prévio do conteúdo que
é postado por terceiros, por meio de filtros. Inclusive, é possível conhecer algumas regras deste controle nos
termos de uso destes sites. Vale conferir, por exemplo, a política do Facebook: <https://www.facebook.com/
communitystandards>. Acesso em: 05 maio 15.
40
SOUZA, Carlos Affonso Pereira de. Responsabilidade civil dos provedores de acesso e de aplicações de
internet: evolução jurisprudencial e os impactos da Lei 12.695/2014 (Marco Civil da Internet). In: LEITE,
George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014. p. 803-804.
38
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A responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet pelos danos decorrentes...
a diversidade e o grau de inovação na internet; (III) a retirada de conteúdos do ar, de
forma subjetiva e mediante mera notificação, poderia prejudicar a inovação no âmbito
da internet, implicando em sério entrave para o desenvolvimento de novas alternativas de exploração e comunicação na rede, as quais poderiam não ser desenvolvidas
em razão do receio de futuras ações indenizatórias; (IV) ao colocar nas mãos do
Poder Judiciário a apreciação do conteúdo, garante-se uma maior segurança para os
negócios desenvolvidos na internet e a construção de limites para a expressão na
rede mundial.41
Este artigo recebe duas críticas principais. Em primeiro lugar, questiona-se a imposição da via judicial para a solução da questão. Afirma-se que esta medida acabaria
permitindo a propagação do dano, tendo em vista a facilidade com que os conteúdos
são compartilhados na rede e a comum demora na apreciação judicial das demandas.
Lembra-se que, nos casos de lesão à privacidade, o retardo na indisponibilização
do material pode inviabilizar completamente a reparação do dano. Em segundo lugar, coloca-se que haveria uma incoerência na redação do artigo, visto que “ordem
judicial deve ser cumprida ou suspensa através de recurso, sob pena do crime de
desobediência ou pagamento de multa visando compelir o destinatário à execução da
determinação legal. Responsabilidade civil extracontratual se origina de um ato ilícito,
culposo ou doloso, na modalidade subjetiva, ou em razão do risco da atividade ou
por força de Lei, na modalidade objetiva, sendo plenamente questionável do ponto de
vista técnico esta inovação, com a criação de uma nova forma de responsabilidade
civil, oriunda de um descumprimento de ordem judicial”.42
Outro ponto polêmico foi a estipulação da seguinte condição “no âmbito e nos
limites técnicos do seu serviço”, visto que esta parece representar uma excludente
legal de responsabilidade do provedor que romperia o nexo causal. Assim, caso ele
demonstre que tal retirada é impossível ou que extrapola os limites técnicos de seu
serviço, ele será isento de responsabilidade civil. Observa-se, com temor, que esta
Marcel Leonardi aponta os principais problemas da retirada de conteúdo, após uma notificação, independente
de uma ordem judicial: 1) incentivaria a remoção arbitrária de conteúdo; 2) regras procedimentais de notificação
e retirada não impediriam a censura temporária; 3) permitiria abusos frequentes. “Estudos realizados por
membros da Electronic Frontier Foundation e do Berkman Center for Internet & Society da Harvard Law School
demonstram, com riqueza de exemplos, que o sistema de notificação e retirada instituído pelo DMCA é
rotineiramente utilizado de forma abusiva, servindo como ferramenta de intimidação ou sendo empregado
impropriamente para a retirada de conteúdo não protegido por direito autoral, trazendo enormes implicações
para a liberdade de expressão, além de não combater adequadamente a violação de direitos online. Entre
outras situações, o conteúdo indevidamente removido por abuso do DMCA inclui fatos e informações não
sujeitos à proteção autoral, material em domínio público, crítica social e material de utilização livre em razão de
limitações aos direitos autorais.”; 4) não ofereceria granularidade e seria desproporcional. (LEONARDI, Marcel.
Internet e regulação: o bom exemplo do Marco Civil da Internet. Revista do Advogado, São Paulo, ano XXXII, n.
115, p. 99-113, abr. 2012)
42
VAINZOF, Rony. Da responsabilidade por danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros. In: MASSO,
Fabiano del; ABRUSIO, Juliana; FLORÊNCIO FILHO, Marco Aurélio (Coord.). Marco Civil da Internet: Lei
12.965/2014. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 188.
41
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disposição legal é deveras favorável ao provedor de aplicações, podendo ser utilizada
como um importante instrumento em teses defensivas, tendo em vista a dificuldade
de se responder, de forma neutra e exata, quais são os limites e as possibilidades
técnicas dos provedores.
Qual deveria ser o “prazo assinalado” pelo juiz? Pela lei, tal estipulação ficará a
cargo do magistrado, ao julgar o caso concreto. Observa-se que, em alguns julgados,
o STJ vem fixando o prazo de 24h para a retirada do material do ar, após a notificação, sendo que esta seria uma retirada preventiva, não estando o provedor obrigado
a analisar o teor da denúncia recebida neste curto prazo.43
Em relação ao texto do artigo 19, vale trazer os seguintes questionamentos: (I)
Por quanto tempo o provedor teria o dever de tornar indisponível o conteúdo infringente? Eternamente ou durante determinado espaço de tempo fixado na sentença? (II)
Seria interessante impor ao provedor a elaboração de uma marca própria para aquela
imagem ou conteúdo, de forma a facilitar a sua retirada quando fosse inserido novamente na internet? Estas perguntas ainda precisam ser analisadas e respondidas
pela doutrina e pela jurisprudência.
No §1º do artigo 19, o legislador dispôs que a ordem judicial de que trata o
caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material.
Em razão da facilidade de disseminação de dados na Internet, da capacidade de
determinados conteúdos tornarem-se virais e da comum falta de habilidade técnica
do usuário da rede, agiu bem o legislador ao não obrigar a vítima a fornecer a exata
localização de todo o material danoso. Neste sentido, afirma o Enunciado nº 554
publicado na VI Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “Independe
de indicação do local específico da informação a ordem judicial para que o provedor
de hospedagem bloqueie determinado conteúdo ofensivo na internet”.
Em precedente relatado pelo Ministro Luis Felipe Salomão, foi reconhecida a
desnecessidade da indicação específica, por parte do ofendido, dos locais onde a informação nociva a sua dignidade foi inserida. “O provedor de internet — administrador
“(...) considero razoável que, uma vez notificado de que determinado texto ou imagem possui conteúdo ilícito,
o provedor retire o material do ar no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, sob pena de responder solidariamente
com o autor direto do dano, em virtude da omissão praticada. (...) Nesse prazo de 24 horas, não está o
provedor obrigado a analisar o teor da denúncia recebida, devendo apenas promover a suspensão preventiva
das respectivas páginas, até que tenha tempo hábil para apreciar a veracidade das alegações” (STJ. REsp
nº 1.323.754. Rel. Min. Nancy Andrigui. DJe de: 28.08.2012.) “7. Ao ser comunicado de que determinada
mensagem postada em site de relacionamento social por ele mantido possui conteúdo potencialmente ilícito
ou ofensivo a direito autoral, deve o provedor removê-lo preventivamente no prazo de 24 horas, até que tenha
tempo hábil para apreciar a veracidade das alegações do denunciante, de modo a que, confirmando-as, exclua
definitivamente o vídeo ou, tendo-as por infundadas, restabeleça o seu livre acesso, sob pena de responder
solidariamente com o autor direto do dano em virtude da omissão praticada. 8. O cumprimento do dever de
remoção preventiva de mensagens consideradas ilegais e/ou ofensivas fica condicionado à indicação, pelo
denunciante, do URL da página em que estiver inserido o respectivo conteúdo” (STJ. REsp nº 1.396.417. Rel.
Min. Nancy Andrighi. DJe de: 25.11.2013)
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A responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet pelos danos decorrentes...
de redes sociais —, ainda em sede de liminar, deve retirar informações difamantes a
terceiros manifestadas por seus usuários, independentemente da indicação precisa,
pelo ofendido, das páginas que foram veiculadas as ofensas (URL’s).”44 Entende-se
que a vítima que procura o Judiciário para a satisfação da pretensão de bloqueio do
conteúdo nocivo não pode ser incumbida do ônus de indicar o local específico onde
se encontra disponibilizada a informação lesiva toda vez que a mesma for replicada e
disponibilizada, novamente, por terceiros.45
O §2º do artigo 19 dispõe que a aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica,
que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art.
5º da Constituição Federal.46 Ao mesmo tempo em que o Marco Civil estava sendo
discutido no Congresso Nacional, a Lei Brasileira de Direitos Autorais nº 9.610/98
passava por uma consulta pública semelhante, que resultou em um anteprojeto de
lei. Como a discussão acerca da violação de direitos autorais no sistema de responsabilização criado pelo Marco Civil tornaria seu debate ainda mais complexo, preferiu-­
se criar uma exceção à regra.
Neste parágrafo reside alguma polêmica na doutrina. Há quem afirme que,
enquanto o legislador teria estabelecido um sistema dificultoso para a inibição de
conteú­do potencialmente lesivo à pessoa humana, ele teria oferecido um tratamento
mais favorável para os conteúdos protegidos por direitos autorais, ao excluí-los da
regra do artigo 19. No Brasil, mesmo que não haja uma lei que regule especificamente o tema da responsabilidade civil por violação de conteúdo protegido por direito
autoral, entidades e empresas de internet acabaram adotando espontaneamente o
mecanismo conhecido por notice and take down ou notificação e retirada. Desta forma, os detentores de direitos autorais enviam uma notificação para a empresa, como
o Google ou o Facebook, pedindo a remoção do conteúdo, e esta notifica a pessoa
STJ. REsp nº 1.175.675. DJe de: 20.09.2011.
No REsp nº 1.274.971, o Min. Rel. João Otávio de Noronha entendeu que no caso de mensagem ofensiva
publicada em blog gerenciado pelo Google caberá à vítima indicar o URL das páginas onde se encontram
os conteúdos: “Se em algum blog for postada mensagem ofensiva à honra de alguém, o interessado na
responsabilização do autor deverá indicar o URL das páginas em que se encontram os conteúdos considerados
ofensivos. Não compete ao provedor de hospedagem de blogs localizar o conteúdo dito ofensivo por se tratar
de questão subjetiva, cabendo ao ofendido individualizar o que lhe interessa e fornecer o URL. Caso contrário,
o provedor não poderá garantir a fidelidade dos dados requeridos pelo ofendido” (julg. 19/03/2015) Entendese que, na hipótese, o mais razoável seria a indicação tanto do conteúdo quanto das páginas. A partir do
conhecimento inequívoco do material, o provedor de hospedagem deveria realizar a indisponibilização de todo
o conteúdo similar lesivo, ainda que este se encontre em outras páginas não indicadas pela vítima.
46
“Art. 31. Até a entrada em vigor da lei específica prevista no §2º do art. 19, a responsabilidade do provedor de
aplicações de internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, quando se tratar de infração a
direitos de autor ou a direitos conexos, continuará a ser disciplinada pela legislação autoral vigente aplicável
na data da entrada em vigor desta Lei.”
44
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que postou o conteúdo. Se ela não quiser assumir a responsabilidade pela veiculação
do material, o provedor poderá remover o conteúdo.47
No §3º do artigo 19, estabeleceu-se que as causas que versem sobre o ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na internet relacionados
à honra, à reputação ou a direitos de personalidade, bem como sobre a indisponibilização desses conteúdos por provedores de aplicações de internet, poderão ser
apresentadas perante os juizados especiais.
No §4º do art. 19, o legislador estabeleceu que o juiz, inclusive no procedimento previsto no §3º, poderá antecipar total ou parcialmente os efeitos da tutela
pretendida no pedido inicial, se presentes: (i) prova inequívoca do fato, (ii) interesse
da coletividade na disponibilização do conteúdo na internet, (iii) verossimilhança da
alegação do autor e (iv) fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.
Esta previsão reflete a prática, visto que a grande maioria das decisões judiciais que
versam sobre retirada de conteúdo é oriunda de tutela antecipada ou de medidas
cautelares. Observa-se que o legislador inseriu um requisito a mais na disposição do
art. 273 do CPC de 1973, qual seja, o interesse da coletividade na disponibilização
do conteúdo na Internet.
4.3 O artigo 20 e o dever de informar
O artigo 20 dispõe que, sempre que tiver informações de contato do usuário
diretamente responsável pelo conteúdo a que se refere o art. 19, caberá ao provedor
de aplicações de internet comunicar-lhe os motivos e informações relativos à indisponibilização de conteúdo, com informações que permitam o contraditório e a ampla
defesa em juízo, salvo expressa previsão legal ou expressa determinação judicial fundamentada em contrário. Em seu parágrafo único, positivou-se que, quando solicitado
pelo usuário que disponibilizou o conteúdo tornado indisponível, o provedor de aplicações de internet que exerce essa atividade de forma organizada, profissionalmente
e com fins econômicos substituirá o conteúdo tornado indisponível pela motivação
ou pela ordem judicial que deu fundamento à indisponibilização. Assim, cria-se um
“Ao ser comunicado de que determinada mensagem postada em site de relacionamento social por ele mantido
possui conteúdo potencialmente ilícito ou ofensivo a direito autoral, deve o provedor removê-lo preventivamente
no prazo de 24 horas, até que tenha tempo hábil para apreciar a veracidade das alegações do denunciante,
de modo a que, confirmando-as, exclua definitivamente o vídeo ou, tendo-as por infundadas, restabeleça o
seu livre acesso, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano em virtude da omissão
praticada” (STJ. REsp. nº 1.396.417. Rel. Min. Nancy Andrighi. DJe de: 25.11.2013) “1.- No caso concreto,
foi disponibilizado material didático em blogs, na internet, sem autorização da parte autora. Notificada sobre
a ilicitude, a Google não tomou nenhuma providência, somente vindo a excluir os referidos blogs, quando
intimada da concessão de efeito suspensivo-ativo no Agravo de Instrumento nº 1.0024.08.228523-8/001.
(...) Inocorrência de teratologia no caso concreto, em que, para a demora na retirada de publicação de material
didático sem autorização foi fixado, em 04.08.2011, o valor da indenização em R$ 12.000,00 (doze mil
reais) a título de dano moral, consideradas as forças econômicas da autora da lesão. 5.- Agravo Regimental
improvido” (AgRg no AREsp nº 259.482/MG. Rel. Min. Sidnei Beneti. DJe de: 30.04.2013)
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A responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet pelos danos decorrentes...
dever de informar os motivos da remoção por parte do administrador do site alvo da
determinação judicial ao terceiro que teve seu conteúdo removido.
Quanto ao referido assunto, o Superior Tribunal de Justiça já se posicionou
afirmando que ao oferecer um serviço por meio do qual se possibilita que os usuários
externem livremente suas opiniões, sem assumir um mínimo de controle, o provedor
estaria assumindo um risco, devendo ter o cuidado de propiciar meios para que se
possa identificar cada um desses usuários, coibindo o anonimato e atribuindo a cada
manifestação uma autoria certa e determinada, sob pena de responsabilização subjetiva por culpa in omittendo. A existência de meios que possibilitem a identificação de
cada usuário se colocaria, portanto, como um ônus social.48
4.4 O artigo 21 e a tutela da pornografia de vingança
O artigo 21 representa a principal exceção legal à regra da notificação judicial
presente no artigo 19. A norma dispõe que o provedor de aplicações de internet que
disponibilizar conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente
pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou
de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo
participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no
âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.49
Em seu parágrafo único, foi estabelecido que a notificação prevista no caput deverá
conter, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica
do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da
legitimidade para apresentação do pedido.
Este artigo tutela os casos chamados de revenge porn ou de pornografia de vingança, casos em que ocorre a divulgação de fotos ou vídeos íntimos de terceiros sem
a sua autorização. Uma vez que a conduta lesiva poderia causar danos irreparáveis
muito rapidamente e de extensão imprevisível, o legislador abriu mão da segurança
jurídica decorrente das ordens judiciais visando a tornar mais célere a retirada do conteúdo. Dessa forma, após a notificação extrajudicial por parte do participante ou de
STJ. REsp nº 1.193.764. Rel. Min. Nancy Andrighi, 2011; REsp nº 1.308.830. Rel. Min. Nancy Andrighi, 2012.
Esta norma dialoga harmoniosamente com a seguinte disposição contida no Estatuto da Criança e do
Adolescente: “Art. 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer
meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que
contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: Pena – reclusão, de
3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. §1º Nas mesmas penas incorre quem: I – assegura os meios ou serviços
para o armazenamento das fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo; II – assegura,
por qualquer meio, o acesso por rede de computadores às fotografias, cenas ou imagens de que trata o
caput deste artigo. §2º As condutas tipificadas nos incisos I e II do §1º deste artigo são puníveis quando o
responsável legal pela prestação do serviço, oficialmente notificado, deixa de desabilitar o acesso ao conteúdo
ilícito de que trata o caput deste artigo” (grifou-se).
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seu representante legal, caso o provedor não retire o material danoso, ele responderá
subsidiariamente pelo dano causado.50
Essa disposição assume especial relevância tendo em vista o aumento do número de vítimas do revenge porn, que são na maioria mulheres de até 30 anos. Acreditase que, na maioria das vezes, as vítimas sejam menores de idade.51 52 Lamenta-se
que, em pleno século XXI, expressar a sua sexualidade por meio de uma foto ou de
um vídeo enviado em confiança para o seu parceiro ainda represente motivo para que
a mulher seja discriminada e cruelmente julgada pela sociedade.53 Alguns chegam
ao ponto de afirmar que a mulher teria cometido uma grave violação à moralidade,
o que justificaria, até mesmo, um possível abrandamento das consequências cíveis
e penais para aquele que divulgou o conteúdo. Isso mostra que a discriminação em
razão do gênero ainda resta presente, sendo necessário que os intérpretes do direito
questionem esta lógica.
5 A guarda de registros pelo provedor de aplicações de internet
e a identificação do ofensor
Em setembro de 2014, a 8ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça
de São Paulo determinou que o Facebook fornecesse dados de usuários e grupos do
Whatsapp para identificar os responsáveis pela disseminação de imagens íntimas
de uma estudante. No caso, o desembargador reputou correta a decisão recorrida,
em que o juiz deferiu liminar impondo que a ré (Facebook) promovesse a exibição de
todas as informações requeridas relativas aos IPs dos perfis indicados na inicial e
Na responsabilidade subsidiária, um sujeito tem a dívida originária e o outro a responsabilidade por essa
dívida. Não sendo possível executar o efetivo devedor, quando ocorrer o inadimplemento da obrigação, poderão
ser executados os demais sujeitos envolvidos na relação obrigacional. Percebe-se que o legislador fez esta
distinção para evitar que a responsabilidade fosse considerada solidária.
51
“O número de vítimas de vazamento de ‘nude selfies’, ou vídeos íntimos divulgados sem consentimento,
quadruplicou no Brasil em dois anos. No ano passado, 224 internautas procuraram o serviço de ajuda da
SaferNet, organização de defesa de direitos humanos na web, para denunciar o crime cibernético conhecido
como ‘revenge porn’ — pornografia de vingança, em tradução livre. Em 2012, 48 casos haviam sido registrados
pela entidade. O vazamento de imagens íntimas atinge principalmente mulheres, que representam 81% dos
casos denunciados. A cada quatro vítimas, uma delas é menor de idade” (Notícia disponível em: <http://
noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2015/07/06/numero-de-vitimas-de-imagens-intimasvazadas-na-web-quadruplica-em-2-anos.htm?cmpid=fb-uol>. Acesso em: 06 jul. 2015).
52
Segundo comunicado de Amit Singhal, vice-presidente do Google, a empresa vai disponibilizar um sistema
para atender pedidos de remoção de links de suas buscas feitos por vítimas de pornografia de vingança.
Foi lembrado que, em alguns casos, a divulgação envolve tentativas de extorsão. Disponível em: <http://
googlepublicpolicy.blogspot.com.br/2015/06/revenge-porn-and-search.html#comment-form>. Acesso em: 14
jul. 2015
53
HILLY, Laura; ALLMANN, Kira. Revenge porn does not only try to shame women – it tries to silence them too.
Disponível em: <http://www.theguardian.com/technology/2015/jun/22/revenge-porn-women-free-speechabuse>. Acesso em: 15 jul. 2015.)
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A responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet pelos danos decorrentes...
ao teor das conversas dos grupos “Atlética Chorume” e “Lixo Mackenzista”, entre os
dias 26 e 31 de maio de 2014.54
Não obstante a extensa polêmica relativa à guarda de dados e registros pelos
provedores de internet, esta conduta apresenta como uma de suas principais vantagens tornar possível o rastreamento e a identificação do ofensor, permitindo a sua
eventual punição e a reparação da vítima. Entende-se que o provedor de aplicações
de Internet que exerce a sua atividade de forma organizada e com fins econômicos
teria a possibilidade e o dever de contribuir com os usuários da rede, evitando danos, auxiliando na identificação de ofensores e retirando de suas páginas conteúdos
lesivos à dignidade da pessoa humana. Este seria um dever oriundo do princípio
constitucional da solidariedade social.
Na ponderação entre o interesse da sociedade de que os atos ilícitos sejam
reprimidos e o interesse do usuário de que seus dados não sejam armazenados
pelos provedores, parece que o primeiro obteve um peso maior na balança. Em regra,
a integridade individual e o bem-estar do ser humano deverão prevalecer sobre os
interesses coletivos. Entretanto, aqueles poderão ceder em casos específicos, como
quando em colisão com a segurança e a saúde públicas.
Neste sentido, no Brasil, em determinadas hipóteses, o provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade
de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os
respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente
controlado e de segurança, pelo prazo de seis meses, conforme disposto nos artigos
15 a 17 do Marco Civil da Internet.55 Segundo a lei, no art. 5º, VIII, os registros de
TJSP. Agravo de Instrumento nº 2114774-24.2014.8.26.0000. Rel. Salles Rossi. Julgado em: 01/09/14.
“Art. 15. O provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa
atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos
registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de
6 (seis) meses, nos termos do regulamento. §1º Ordem judicial poderá obrigar, por tempo certo, os provedores
de aplicações de internet que não estão sujeitos ao disposto no caput a guardarem registros de acesso a
aplicações de internet, desde que se trate de registros relativos a fatos específicos em período determinado.
§2º A autoridade policial ou administrativa ou o Ministério Público poderão requerer cautelarmente a qualquer
provedor de aplicações de internet que os registros de acesso a aplicações de internet sejam guardados,
inclusive por prazo superior ao previsto no caput, observado o disposto nos §§3º e 4º do art. 13. §3º Em
qualquer hipótese, a disponibilização ao requerente dos registros de que trata este artigo deverá ser precedida
de autorização judicial, conforme disposto na Seção IV deste Capítulo. §4º Na aplicação de sanções pelo
descumprimento ao disposto neste artigo, serão considerados a natureza e a gravidade da infração, os danos
dela resultantes, eventual vantagem auferida pelo infrator, as circunstâncias agravantes, os antecedentes do
infrator e a reincidência.
Art. 16. Na provisão de aplicações de internet, onerosa ou gratuita, é vedada a guarda: I – dos registros de
acesso a outras aplicações de internet sem que o titular dos dados tenha consentido previamente, respeitado
o disposto no art. 7º; ou II – de dados pessoais que sejam excessivos em relação à finalidade para a qual foi
dado consentimento pelo seu titular.
Art. 17. Ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei, a opção por não guardar os registros de acesso a
aplicações de internet não implica responsabilidade sobre danos decorrentes do uso desses serviços por
terceiros.”
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acesso a aplicações de internet seriam “o conjunto de informações referentes à data
e hora de uso de uma determinada aplicação de internet a partir de um determinado
endereço IP.”
Quanto ao tema, é necessário realizar algumas observações. No Brasil, o provedor de aplicações poderá realizar, na forma como estabelecido pela lei, a coleta,
o armazenamento, a guarda e o tratamento de registros, dados pessoais ou comunicações, porém, em certos casos, terá a obrigação legal de guardar os registros de
acesso a aplicações de internet e fornecê-los às autoridades quando elas estiverem
investigando a autoria de eventuais ilícitos. Não se deve confundir os registros de
acesso a aplicações de internet com os dados cadastrais ou com o conteúdo das
comunicações privadas, estas são informações distintas, conforme observa-se no
art. 10 da lei. A guarda de dados e registros deve ocorrer em conformidade com o
estabelecido no art. 7º da lei.56
Por fim, ressalta-se que parte da doutrina defende que os artigos 15 a 17 do
MCI só seriam aplicáveis após a edição da regulamentação da lei, que será realizada,
posteriormente, por meio de decreto. Como consequência disso, por precaução, os
provedores deveriam guardar os registros por 3 anos, em razão do disposto no art.
206, §3º, V, do Código Civil ou 5 anos, se envolver questão consumerista, conforme
o prazo prescricional disposto no art. 27 do CDC.57 58
“Art. 7º O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes
direitos: (...) VI – informações claras e completas constantes dos contratos de prestação de serviços, com
detalhamento sobre o regime de proteção aos registros de conexão e aos registros de acesso a aplicações
de internet, bem como sobre práticas de gerenciamento da rede que possam afetar sua qualidade; VII – não
fornecimento a terceiros de seus dados pessoais, inclusive registros de conexão, e de acesso a aplicações
de internet, salvo mediante consentimento livre, expresso e informado ou nas hipóteses previstas em lei; VIII
– informações claras e completas sobre coleta, uso, armazenamento, tratamento e proteção de seus dados
pessoais, que somente poderão ser utilizados para finalidades que: a) justifiquem sua coleta; b) não sejam
vedadas pela legislação; e c) estejam especificadas nos contratos de prestação de serviços ou em termos de
uso de aplicações de internet; IX – consentimento expresso sobre coleta, uso, armazenamento e tratamento
de dados pessoais, que deverá ocorrer de forma destacada das demais cláusulas contratuais; X – exclusão
definitiva dos dados pessoais que tiver fornecido a determinada aplicação de internet, a seu requerimento,
ao término da relação entre as partes, ressalvadas as hipóteses de guarda obrigatória de registros previstas
nesta Lei;”
57
Este entendimento pode ter como referência a orientação proferida pelo Comitê Gestor da Internet no
documento “Práticas de Segurança para Administradores de Redes Internet”, em que se preconiza que os
provedores devem armazenar os registros de conexão pelo prazo de 3 anos e os demais registros pelo
prazo mínimo de 6 meses.” Os logs armazenados off-line devem ser mantidos por um certo período de
tempo, pois podem vir a ser necessários para ajudar na investigação de incidentes de segurança descobertos
posteriormente. O Comitê Gestor da Internet no Brasil recomenda que logs de conexões de usuários de
provedores de acesso estejam disponíveis por pelo menos 3 anos. É aconselhável que os demais logs sejam
mantidos no mínimo por 6 meses. Disponível em: <http://www.cert.br/docs/seg-adm-redes/seg-adm-redes.
pdf>. Acesso em: 28 out. 2015.
58
Em relação à guarda de dados de usuários, no Recurso Especial nº 1.398.985, a Rel. Ministra Nancy Andrighi
afirmou que ao oferecer um serviço por meio do qual se possibilita que os usuários divulguem livremente
suas opiniões, deve o provedor de conteúdo (que foi englobado pelo provedor de aplicações) ter o cuidado
de propiciar meios para que seja possível ocorrer a identificação de cada um de seus usuários, coibindo
o anonimato e atribuindo a cada imagem uma autoria certa e determinada. O provedor deve adotar as
providências que, conforme as circunstâncias específicas de cada caso, estiverem ao seu alcance para a
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6 Considerações finais
Nos últimos anos, o ambiente virtual tem operado em paralelo com o real,
influenciando de forma direta tanto a organização das estruturas de poder quanto
o próprio comportamento do ser humano. Dessa forma, tornou-se necessário que o
intérprete do direito analise as relações desenvolvidas nesse novo meio, em especial
aquelas estabelecidas entre os indivíduos e os provedores que oferecem serviços na
internet, tendo em vista a possível assimetria de poder entre as partes, o que eventualmente pode prejudicar a proteção da pessoa humana e impedir que ela detenha
um pleno controle sobre os seus dados.
Em junho de 2014, entrou em vigor o Marco Civil da Internet, norma responsável
por tratar de questões pertinentes à privacidade, à neutralidade e à responsabilidade
na rede. A lei estabeleceu um amplo rol de princípios, garantias, direitos e deveres
para o uso da Internet no Brasil por diversos sujeitos. Entre os artigos 19 e 21, regulou-se expressamente a responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet
pelos danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, tema objeto deste artigo.
Além disso, entre os artigos 15 e 17, tratou-se da guarda de registros de acesso a
aplicações de internet na provisão de aplicações.
Entende-se que o provedor de aplicações de internet teria a possibilidade e o dever de contribuir com os usuários da rede, evitando danos, auxiliando na identificação
de ofensores e retirando de seus domínios conteúdos lesivos à dignidade da pessoa
humana. Ainda que este provedor não tenha o dever de monitorar previamente o
conteúdo inserido por terceiro em seu ambiente, uma vez caracterizado o modelo de
negócio e o potencial lesivo da relação, não se pode admitir que este agente privado
receba uma completa imunidade e jamais seja titular de obrigações ou responsabilizado por eventuais danos que possam ocorrer, de forma direta ou indireta, na
atividade que realiza.
O Marco Civil estabeleceu, como regra, que o provedor de aplicações de internet
deverá retirar o conteúdo danoso, após ordem judicial específica, sob pena de responder subjetivamente pela omissão. Todavia, caso se trate de conteúdo que viole
frontalmente a privacidade de uma pessoa – imagens, vídeos ou outros materiais
contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado – este provedor terá
o dever de retirar o material após a notificação extrajudicial da vítima ou de seu representante legal. Cuida-se aqui de tutelar, principalmente, os casos que envolvem a
individualização dos usuários do site, sob pena de responsabilização subjetiva por culpa in omittendo. Neste
sentido, as informações necessárias à identificação do usuário devem ser armazenadas pelo provedor de
conteúdo por um prazo mínimo de 03 anos, a contar do dia em que o usuário cancela o serviço. (STJ. Recurso
Especial nº 1.398.985. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi, Data de Julgamento: 19/11/2013).
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chamada pornografia de vingança, perversa disponibilização de conteúdo íntimo sem
o consentimento do(s) envolvido(s).
Ainda que o regime de responsabilidade civil atribuído ao provedor de aplicações de internet não caminhe ao encontro da jurisprudência estabelecida no STJ,
ponderando cada justificativa apresentada, a princípio, parece que o legislador agiu
corretamente ao adotar como regra a notificação judicial. A sociedade atual vem se
mostrando cada vez mais multifacetada e plural, de forma que a retirada de determinado conteúdo deve passar por um crivo menos parcial e que detenha um maior grau
de legitimidade. Contudo, tendo em vista o elevado número de danos à dignidade
humana na Internet e a dificuldade de sua efetiva compensação, há dúvidas se não
teria sido mais adequado ampliar as hipóteses de exceção à regra, de forma a tutelar
outras situações que eventualmente possam causar graves danos à pessoa humana,
ainda que estas exceções fossem aplicadas a apenas determinados provedores de
aplicações.
The Civil Liability of the Provider of Internet Applications for any Damages Arising from Content Generated
by Third Parties According to the Brazilian Civil Rights Framework for the Internet
Abstract: This paper discusses the treatment of the civil liability of the provider of Internet applications
for any damages arising from content generated by third parties on the Brazilian Civil Rights Framework
for the Internet, Law n. 12.965 approved on April 23rd 2014. Due to the complexity of issues relating to
liability in the digital environment and considering the recent effective date of the Law n. 12.965/14, I
consider essential to contribute with its discussion and interpretation, based on the methodology of the
civil-constitutional law. For this purpose, initially, I did a brief study on the elaboration and the structure of
the Marco Civil and, later, I analyzed the legal articles relating to the civil liability of the provider of Internet
applications. I used as main sources national legislation, national and foreign doctrine and Superior Court
of Justice decisions. At the end of the study, weighing each justification, it seemed that the legislature has
acted properly by avoiding the prior restriction of the speech, although possible exceptions to the Law still
have to be considered.
Keywords: Civil Liability. Human Dignity. Freedom of Expression. Brazilian Civil Rights Framework for the
Internet. Provider of Internet Applications.
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2015.
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Chiara Antonia Spadaccini de Teffé
TEPEDINO, Gustavo. Direito Civil e ordem pública na legalidade constitucional. Boletim Científico da
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TEFFÉ, Chiara Antonia Spadaccini de. A responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet pelos danos decorrentes do conteúdo gerado por terceiros de
acordo com o Marco Civil da Internet. Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, Belo
Horizonte, ano 4, n. 10, p. 81-106, set./dez. 2015.
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Responsabilidade civil médica diante
dos cuidados paliativos e da ortotanásia
Luciana Vasconcelos Lima
Mestranda em Direito Constitucional nas Relações Privadas pela Universidade de Fortaleza
(UNIFOR). Graduada em Direito pala Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará
(UFC). Advogada. E-mail: <[email protected]>.
Joyceane Bezerra de Menezes
Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Direito pela
Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora titular da Universidade de Fortaleza,
Programa de Pós-Graduação strictu senso em Direito (Mestrado/Doutorado). Professora da
Universidade de Fortaleza, nas disciplinas “Direitos de Personalidade” e “Direito dos Danos”.
Professora adjunta da Universidade Federal do Ceará. E-mail: <[email protected]>.
Resumo: A evolução da medicina permitiu o uso de novas técnicas e de novos medicamentos que
aumentam o tempo entre a descoberta de doenças e a morte, prolongando a existência das pessoas. Além
dos tratamentos revolucionários para a cura de muitas doenças, também é possível o uso de aparelhos
de manutenção artificial da vida e de medicamentos que afastam ou minimizam dores, permitindo atrasar
a morte do paciente acometido de doença grave e incurável ou terminal. Essas possibilidades, porém,
remetem à reflexão sobre a conduta médica em relação aos cuidados despendidos aos doentes terminais,
descortinando problemas bioéticos com reflexo no Direito. Qualquer solução deverá cotejar os princípios de
justiça consolidados na Constituição Federal, notadamente, a dignidade da pessoa humana que constitui
o epicentro dos direitos fundamentais. Embora os pacientes terminais não tenham chances de cura para
sua doença, são titulares de direito e devem ter sua dignidade preservada nos últimos momentos de
vida. Em respeito a esses direitos, sobretudo a autonomia, não podem ser submetidos a qualquer tipo
de tratamento capaz de configurar tortura, tampouco àqueles tratamentos fúteis que apenas aumentam o
sofrimento e não geram bem-estar ou perspectiva de cura. Enfocando a prática dos cuidados paliativos e
da ortotanásia no Brasil, correlacionados ao princípio da dignidade humana e aos princípios bioéticos do
respeito à autonomia, não maleficência e beneficência, o presente trabalho visa a analisar o panorama da
responsabilidade civil médica. No aspecto metodológico, realizou-se pesquisa bibliográfica e documental,
notadamente doutrina jurídica, leis e resoluções que disciplinam a conduta médica.
Palavras-Chave: Cuidados paliativos. Ortotanásia. Bioética. Responsabilidade civil do médico.
Sumário: Introdução – 1 Cuidados paliativos e ortotanásia: a dignidade da pessoa em face da morte –
2 Princípios bioéticos e a atenção em saúde pelo médico – 3 Responsabilidade civil médica – Conclusão
– Referências
Introdução
“ – Eu não tenho mais forças para suportar isso”. Declarou uma senhora de
setenta e cinco anos, diante do sofrimento causado pela quimioterapia. Acometida
por um linfoma que os médicos já declararam ser irreversível, recebeu a notícia de
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que teria poucos meses de vida. A partir de então, decidiu, juntamente com a família,
que não daria continuidade ao tratamento quimioterápico. Recebeu alta do hospital e
passou a ser tratada em casa, junto dos familiares. Assim, planejou viagem com os
filhos e passou seus últimos dias em casa, no convívio com as pessoas que amava.1
O relato acima ocorreu no Brasil e constitui uma situação na qual o paciente
requer apenas cuidados paliativos em face do diagnóstico que não oferece possibilidades de cura. Porém, trata-se de uma prática que ainda inspira dúvidas, especialmente pela confusão que se faz entre cuidados paliativos, ortotanásia e eutanásia.
Ademais, enseja o questionamento sobre a repercussão dessa forma de tratamento
no plano da responsabilidade civil do médico, que corre o risco de ter sua conduta
avaliada como negligente e, consequentemente, sofrer contra si uma demanda indenizatória por parte dos familiares.
À medida que a medicina vem se desenvolvendo, com a descoberta de novos
medicamentos e de novas técnicas de tratamento, ampliou-se a expectativa de vida
das pessoas. E ainda que as pessoas adoeçam grave e irreversivelmente, a mecanização possibilita que vivam por vários anos ligadas aos aparelhos de manutenção
artificial da vida. Nem sempre, porém, essa luta contra a morte será a melhor alternativa. Por vezes, o processo de artificialização da vida traz mais sofrimento do
que bem-estar, notadamente quando não se faz acompanhar de chances concretas
de cura. Mais danoso ainda é esse prolongamento artificial da vida em oposição à
vontade do paciente.
Em se tratando de pacientes com doenças incuráveis ou terminais para as
quais o estado atual da arte não oferece expectativa de cura, é necessário avaliar
a conveniência da prescrição ou continuidade dos cuidados de intenção curativa,
sempre considerando a vontade livre e esclarecida do enfermo. Não sendo possível
a reversão da doença, é melhor investir no controle da dor e nos procedimentos menos invasivos, a fim de permitir à pessoa uma vida mais digna e, de preferência, no
convívio de seus familiares.
Em face dessas possibilidades terapêuticas, o presente estudo tem por objetivo
central analisar a adequação da conduta do médico e do hospital aos direitos do
paciente terminal ou grave e irreversivelmente doente e aos princípios da bioética,
identificando as possibilidades de incidência da responsabilidade civil.
Para facilitar o estudo, o texto parte de uma análise descritiva, delimitando
conceitos elementares à discussão, dentre os quais, cuidados paliativos, ortotanásia
e eutanásia para, em seguida, informar os princípios bioéticos e deontológicos que
orientam a conduta dos profissionais e a prestação de serviços de atenção em saúde
ZIEGLER, Maria Fernanda. Recente no Brasil, medicina paliativa dá ‘qualidade de morte’ a idoso incurável.
iG São Paulo. São Paulo, maio 2014. Disponível em: <http://saude.ig.com.br/minhasaude/2014-05-08/
recente-no-brasil-medicina-paliativa-da-qualidade-de-morte-a-idoso-incuravel.html>. Acesso em: 15 jan. 2014.
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Responsabilidade civil médica diante dos cuidados paliativos e da ortotanásia
pelos estabelecimentos especializados, a fim de se analisarem os pressupostos da
responsabilidade civil no caso. Em síntese apertada, o estudo visa delimitar as fronteiras entre a luta pela vida do paciente, a obstinação terapêutica e o reconhecimento
da iminência da morte, com a prescrição de cuidados paliativos e as implicações
correspondentes na seara da responsabilidade civil. Importa analisar a adequação
da conduta médica em face dos comandos bioéticos e da vontade do paciente em se
submeter ou não ao tratamento inócuo, especialmente, nos casos em que a família
divergir.
A pesquisa seguiu uma abordagem qualitativa, de cunho bibliográfico, utilizando-se referências da área do Direito e de outras áreas do conhecimento, além de uma
pesquisa documental que selecionou as leis nacionais e as resoluções do Conselho
Federal de Medicina aplicáveis à matéria.
1 Cuidados paliativos e ortotanásia: a dignidade da pessoa em
face da morte
O desenvolvimento tecnológico a serviço da medicina permitiu a erradicação ou
o controle de algumas enfermidades, além da ampliação do tempo entre a descoberta de uma doença e a morte. Se em termos de longevidade o ser humano teve um
ganho significativo com esses avanços, é necessário analisar a conveniência da aplicação desses recursos para uma mera obstinação terapêutica, quando a perspectiva
de cura for nula e o prolongamento da vida somente trouxer um sofrimento adicional.
É nesse contexto que emergem os temas da ortotanásia e dos cuidados paliativos
que já são discutidos na área da saúde e vêm ganhando espaço no âmbito jurídico,
requerendo soluções condizentes com o ordenamento pátrio.
Embora sejam temas que não lograram a atenção específica do legislador stricto
sensu, tocam aspectos fundamentais da pessoa — sua dignidade e seus direitos —
e receberam atenção do Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução nº
1.931, de 24 de setembro de 2009,2 — que instituiu o novo Código de Ética Médica;
e da Resolução nº 1.995 de 31 de agosto de 2012 — que disciplina as diretivas
antecipadas de vontade.3
A necessidade de cuidado e apoio aos doentes que estão em processo de morte
é antiga, porém o desenvolvimento de locais específicos para os receber, prestando-­
lhes tratamentos de alívio à dor, remonta ao início do século XIX. Tratam-se dos antigos hospices que, na Idade Média, eram destinados ao acolhimento de peregrinos e
Antes da edição do novo Código de Ética Médica, era a Resolução nº 1.805 de 2006 que trazia disposição
acerca da vedação de obstinação terapêutica por parte do médico.
3
No tocante aos cuidados paliativos, o Ministério da Saúde vem implantando-os gradualmente no âmbito do
Sistema único de Saúde, o que se verifica por meio das Portarias nº 19, de 03 de janeiro de 2002; nº 1319,
de 23 de julho de 2002 e nº 2439 de 8 de dezembro de 2005.
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viajantes. Posteriormente, passaram a ser associados ao cuidado dos pacientes que
estavam morrendo, principalmente na França, Irlanda e Estados Unidos.4
Modernamente, porém, há literatura que diferencia o sistema de hospice da
prática de cuidados paliativos, na medida em que tais cuidados não são focados na
morte, mas no conforto e no alívio, associados ou não ao cuidado curativo. Em última
análise, busca-se o conforto do paciente e o respeito às suas decisões, para melhorar a qualidade da vida ao longo do tratamento curativo ou no já iniciado processo de
morte. Destinam-se aos pacientes graves que estejam ou não em estado terminal, no
intuito de aliviar dores e outros sintomas como falta de ar, náusea, falta de apetite e
fadiga. O hospice, por sua vez, é destinado aos pacientes terminais, cuja expectativa
de vida seja inferior a seis meses.5
O termo paliativo é derivado do latim pallium, que significa manto, indicando a
essência desse tipo de cuidado, como uma forma de proteger aqueles que sofrem de
doenças incuráveis, propiciando-lhes o alívio das dores, principalmente quando não
houver mais recurso da medicina curativa. O conteúdo dos cuidados que serão considerados paliativos não segue um padrão fixo, dependerá da avaliação diagnóstica e
das necessidades da pessoa doente e de sua família.6
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, os cuidados paliativos constituem uma abordagem que melhora a qualidade de vida dos pacientes e de suas famílias que enfrentam problemas associados à doença ameaçadora da vida. São feitos
por meio de prevenção e alívio do sofrimento e se utilizam da identificação precoce
da doença, assim como da avaliação e do tratamento da dor e de outros problemas
físicos, psicossociais e espirituais.7
O alvo preferencial desse tipo de tratamento é o paciente em estado terminal
para o qual já não há recursos de cura.8 A condição de terminalidade deve ser apurada pelo consenso da equipe médica, como aquele diagnóstico que progride para a
morte inevitável. Mas também se aplicam os cuidados paliativos aos portadores de
doenças crônicas, para os quais também não há cura possível, e sim uma demanda de atenção integral nas dimensões física, psicossocial e espiritual. O equilíbrio
PESSINI, Leo; BERTACHINI, Luciane. Novas perspectivas em cuidados paliativos: ética, geriatria, gerontologia,
comunicação e espiritualidade. O Mundo da Saúde, v. 29, n. 4, p. 491-509, 2005.
5
DENNIS, Jeanne. Palliative Care or Hospice? It’s Not About Giving Up. The huffpost healthy living. Disponível em:
<http://www.huffingtonpost.com/jeanne-dennis/http://www.huffingtonpost.com/jeanne-dennis/>. Acesso em:
13 jun. 2015.
6
PESSINI, Leocir; DE BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. Problemas atuais de bioética. São Paulo: Edições
Loyola, 2005.
7
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. WHO Definition of palliative care. [200-]. Disponível em: <http://www.
who.int/cancer/palliative/definition/en/>. Acesso em: 12 nov. 2014.
8
FIGUEIREDO, Marco Tullio de Assis. A dor no doente fora dos recursos de cura e seu controle por equipe
multidisciplinar (Hospice). In: Coletânea de textos sobre cuidados paliativos e tanatologia. São Paulo, 2006,
p. 43-46. Disponível em: <http://www.nutrabem.ind.br/cuidadospaliativosetanatologia.pdf>. Acesso em: 09
nov. 2014.
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Responsabilidade civil médica diante dos cuidados paliativos e da ortotanásia
dessas dimensões da vida traz maior proximidade com o conceito de saúde aplicado
pela OMS que já não é compreendida como a mera ausência de doença, e sim como
o bem-estar global da pessoa, inclusive nos aspectos psicofísico e social.9
Procura-se garantir ao paciente terminal ou acometido de doença crônica uma
assistência multidisciplinar e integral capaz de lhe permitir maior qualidade de vida
possível, no convívio com os familiares e os amigos, reduzindo os efeitos negativos
da doença sobre o bem-estar, especialmente pelo controle da dor. Essas ações são
continuadas até o período mais agudo e severo de sofrimento que antecede à morte,
o que pode compreender dias ou horas antes do óbito, quando passam a ser chamadas de cuidados ao fim da vida.10
Há uma proximidade entre os cuidados paliativos e a ortotanásia, muito embora
não sejam termos coincidentes. O Conselho Federal de Medicina (CFM), na Resolução
nº 1.805 de 2006, disciplinou a conduta médica em relação a ambas as situações.
Determinou, no artigo 2º, que, quando o paciente estiver em estado terminal, deve
continuar a receber os cuidados necessários para aliviar os sintomas que resultam
em sofrimento, sendo-lhe assegurada a assistência integral que engloba as condições de conforto físico, psíquico, social e espiritual, incluindo-se uma possível alta
hospitalar.11
O novo Código de Ética Médica (Resolução nº 1.931 de 2009), ao tratar dos
princípios fundamentais, determina, no item XXII, que o médico evite a realização
de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários quando em face
de situações terminais, apenas propiciando os cuidados paliativos apropriados ao
seu paciente.12 Essa medida do CFM constitui um movimento de humanização e de
aceitação do processo de morte. Possibilita a ortotanásia como uma alternativa que
sobreleva a dignidade do paciente e o seu direito de não ser submetido a um tratamento desumano ou degradante, de efeito meramente protelatório. Constitui uma
alternativa à distanásia, obstinação terapêutica que somente se presta a intensificar
o sofrimento da família e do paciente.
Ressalta-se a necessidade de buscar a máxima aproximação do conceito, reconhecendo-se que há críticas
feitas no sentido de ser utópico e ultrapassado — por fazer separação entre o físico, o mental e o social —,
além de ser um estado inalcançável e deixar espaço para paternalismo estatal, que interviria na vida das
pessoas, sob o pretexto de promover a saúde (SEGRE, Marco; FERRAZ, Flávio Carvalho. O conceito de saúde.
Revista de Saúde Pública, v. 31, n. 5, p. 538-542, 1997).
10
MORITZ, Rachel Duarte et al. Terminalidade e cuidados paliativos na unidade de terapia intensiva. Revista
Brasileira de Terapia Intensiva, v. 20, n. 4, out./dez., p. 422-428, 2008.
11
BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.805. Publicada no Diário Oficial da União de
28 de novembro de 2006, Seção I, p. 169. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/
cfm/2006/1805_2006.htm>. Acesso em: 12 nov. 2014.
12
BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.931. Publicada no Diário Oficial da União de 24
de setembro de 2009, Seção I, p. 90. Retificação publicada no Diário Oficial da União de 13 de outubro de
2009, Seção I, p. 173. Aprova o Código de Ética Médica. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/
resolucoes/CFM/2009/1931_2009.pdf>. Acesso em: 08 nov.2013.
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Distingue-se da eutanásia porque não implica a ação voltada diretamente para
provocar a morte; mas apenas a garantia da morte em seu tempo. Nesse sentido, a
ortotanásia corresponde à morte com dignidade, permitindo um processo de falecimento humanizado que se abstém do uso de mecanismos artificiais de sustentação
da vida.
Importa respeitar a autonomia do paciente em realizar uma escolha informada
e consciente. Para tanto, a conduta do médico deve implicar a prestação de informações verdadeiras e objetivas ao paciente, solicitando-lhe sempre a permissão para
intervenções em seu corpo, de sorte a respeitar-lhe a privacidade.13 Aos poucos, a
conduta médica paternalista vai sendo abandonada para reconhecer espaço ao poder
decisório do paciente sobre si, inclusive, sobre o seu próprio corpo.14
O consentimento do paciente é fundamental para que se possa determinar
quais tratamentos deseja ou não receber quando vier a incorrer em estado terminal.
Até mesmo quando o paciente não puder se autodeterminar, o médico deve prestar
todas as informações necessárias e pertinentes, bem como coletar o consentimento
da família, antes de proceder as intervenções. Toda a sua conduta, portanto, deve
se pautar no respeito à autonomia do paciente e ainda na atenção aos princípios
bioéticos da beneficência e da não maleficência.
2 Princípios bioéticos e a atenção em saúde pelo médico
Os princípios bioéticos, notadamente aqueles que estão previstos textualmente
no Código de Ética, devem nortear a conduta do médico que também se vê obrigado
a respeitar os princípios e regras jurídicas, em geral. Merecem destaque, na presente
análise, três princípios bioéticos gerais, quais sejam, a autonomia, a não maleficência e a beneficência.
Todos esses princípios retiram fundamento da dignidade da pessoa humana,
princípio jurídico fundamental que se erigiu como um valor crucial da sociedade ocidental, ao longo de toda a história. Em virtude de sua disposição nomogenética, a
dignidade da pessoa humana constitui fonte de tantos outros princípios e regras, ao
tempo em que também constitui um substrato axiológico dos direitos não patrimoniais, como os direitos fundamentais e de personalidade. A despeito de sua compleição aberta, a doutrina procurou delimitar-lhe um conteúdo a partir da conjunção de
LOLAS, Fernando. Bioética: o que é, como se faz. Tradução de Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, v. 10,
2001, p. 62-63.
14
FREITAS, Riva Sobrado de; BAEZ, Narciso Leandro Xavier. Privacidade e o direito de morrer com dignidade.
Pensar, Fortaleza, v. 19, n. 1, p. 249-269, jan./abr. 2014. Disponível em: <http://www.unifor.br/index.
php?option=com_content&view=article&id=5962&Itemid=762>. Acesso em: 29 nov. 2014.
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Responsabilidade civil médica diante dos cuidados paliativos e da ortotanásia
alguns interesses essenciais à pessoa: integridade psicofísica, liberdade, igualdade
e solidariedade.15
Relaciona-se, por sua vez, à autonomia, que pode ser concebida de diferentes maneiras, a depender do momento histórico e do âmbito de atuação. Segundo
Menezes e Feitosa,16 do ponto de vista ético-existencial, refere-se ao âmbito de liberdade no qual a pessoa realiza suas escolhas pessoais, que impactem somente na
sua esfera privada. Enfatiza que não se trata de direito absoluto, mas merece ser
considerada de maneira cuidadosa quando, no caso concreto, estiver em conflito com
outros interesses também constitucionalmente assegurados.
Autonomia deve ser aqui entendida como poder de ação em uma perspectiva
relacional, de liberdade intersubjetiva. Tal entendimento tem eco nas constituições
do pós-guerra, como a Constituição brasileira de 1988, que deram maior evidência às
necessidades existenciais. Isso porque a dignidade da pessoa humana foi erigida a
um dos fundamentos da República, o que permitiu uma inflexão axiológica no sentido
de dar primazia às situações existenciais sobre as patrimoniais. Interpretada como
cláusula geral de tutela da personalidade,17 impõe que a pessoa seja enxergada de
maneira integral e multidisciplinar, não perdendo de vista os aspectos social, econômico, cultural e as necessidades físicas e psíquicas de cada sujeito. Sendo assim,
promoveu a mudança de perspectiva da autonomia, tradicionalmente concebida segundo a patrimonialidade e passou a tratar de autonomia existencial.18
Do ponto de vista bioético, pode ser considerada como o governo pessoal de
si mesmo, livre de interferências controladoras de outros e de limitações pessoais
que impeçam uma escolha decorrente da intenção do sujeito, a exemplo de uma
compreen­são inadequada. Exige um tratamento respeitoso na revelação de informações e um encorajamento para a tomada e decisões autônomas. Em conjunto com
a beneficência e não maleficência, sustentam outras regras morais, tais como a
BODIN DE MORAIS, Maria Celina. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2010, p. 85-110.
16
MENEZES, Joyceane Bezerra de; FEITOSA, Gustavo Raposo Pereira. A simbiose entre o público e o privado no
direito civil-constitucional: uma (re) discussão sobre o espaço a autonomia-ético existencial, intimidade e vida
privada. Nomos (Fortaleza), v. 32, p. 77-90, 2012.
17
Afirma a autora que: “Assim, a dignidade da pessoa humana foi assentada na Magna Carta com status de
um dos fundamentos da República, ao lado da cidadania, da soberania, do pluralismo político e dos valores
sociais do trabalho e da livre iniciativa. Nesse contexto, a dignidade configura-se como cláusula geral de tutela
e promoção da personalidade, geradora de deveres positivos e negativos, a qual pressupõe que a pessoa seja
concebida a partir de uma reflexão multidisciplinar. Isto é, a dignidade, no papel de princípio unificador do
ordenamento jurídico, impõe que o olhar dirigido à pessoa seja capaz de englobar a integralidade do indivíduo,
levando-se em conta o contexto social, econômico, cultural e as necessidades físicas e psíquicas de cada
sujeito” (BODIN DE MORAIS, 2014, p. 784).
18
BODIN DE MORAIS, Maria Celina; CASTRO, Thamis Dalsenter Viveiros de. Autonomia existencial nos atos de
disposição do próprio corpo. Doi: 10.5020/2317-2150.2014.v19n3p779. Pensar, Fortaleza, v. 19, n. 3, p.
779-818, set./dez. 2014. Disponível em: <http://www.unifor.br/images/pdfs/Pensar/v19_n3_2014_artigo9.
pdf>. Acesso em: 13 jun. 2015.
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necessidade de dizer a verdade, respeitar a privacidade, obter consentimento para
intervenções no paciente entre outras.19
Ainda no entender de Beauchamp e Childress,20 a não maleficência constitui o
comportamento de não causar danos de maneira intencional. Alguns autores tratam
o princípio da não maleficência em conjunto com a beneficência, que prega a prática
de atos positivos para o bem do paciente. Vai ao encontro do que dispõe o Código de
Ética Médica, nos artigos 14, 22 e 24, quando veda a indicação ou a prática de atos
desnecessários, bem como quando exige o consentimento esclarecido e informado
do paciente ou de seu representante legal.21 A tomada de decisão livre também tem
assento no artigo 15 do Código Civil, que prevê a impossibilidade de constranger
alguém a se submeter a tratamento médico ou intervenção cirúrgica com risco de
vida. Adverte-se que o artigo não deve ser interpretado em sentido inverso, de modo
a permitir que o procedimento que não ofereça risco de morte possa ser realizado de
forma compulsória, sem o consentimento do paciente.
Seja no âmbito da medicina curativa ou da paliativa, o dever de informação é essencial para a emissão da vontade livre, consciente e esclarecida. Tal mister constitui
uma das três grandes categorias de deveres do médico, juntamente com os deveres
de empregar todas as técnicas disponíveis para a recuperação do paciente; e dever
de tutelar o melhor interesse do doente, prezando pela sua dignidade e integridade
física e psíquica. Em se tratando do dever de informação, cabe ao médico fornecer
todos os esclarecimentos relativos ao diagnóstico e ao prognóstico, incluindo-se as
vantagens e as desvantagens dos procedimentos empregados, salvo se o paciente
optar por não saber.22
O dever de empregar todas as técnicas possíveis e disponíveis inclui a obrigação de acompanhar o paciente, atendendo aos seus chamados ou indicando outro
profissional, quando não puder fazê-lo pessoalmente. De igual sorte, obriga o médico
a não realizar experimentações científicas com o paciente. Em se tratando do dever
de buscar o melhor interesse do paciente, o médico também deve evitar excessos ou
abusos que configurem comportamento paternalista, prezando sempre pelo diálogo
e bom relacionamento com o enfermo. Acima de qualquer interesse ou convicção,
BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James L. Princípios de ética biomédica. Tradução Luciana Pudenzi. São
Paulo: Loyola, 2011, p. 137-145.
20
BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James L. Princípios...p. 210 e 281.
21
BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.931...
22
O Código de Ética Médica prevê o dever de informação, no capítulo que trata da relação do médico com o
paciente e familiares, estabelecendo, no artigo 34, que é vedado ao médico: “deixar de informar ao paciente
o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta
possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal”. De igual
modo, veda, no artigo 35, “exagerar a gravidade do diagnóstico ou do prognóstico, complicar a terapêutica
ou exceder-se no número de visitas, consultas ou quaisquer outros procedimentos médicos”, bem como, no
artigo 36, “abandonar paciente sob seus cuidados” (BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM
nº 1.931...).
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Responsabilidade civil médica diante dos cuidados paliativos e da ortotanásia
cabe ao médico o dever de buscar a melhor alternativa para a integridade psicofísica
do paciente e para sua dignidade, em atenção aos seus direitos fundamentais e aos
fundamentos da República.23
Proíbe a prática da eutanásia, quando veda a abreviação da vida do paciente,
mesmo a seu pedido ou de seu representante legal. Contudo, prevê que, nos casos
de doença incurável e terminal, possa oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis, sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas.
Em todo o caso, sempre respeitando a vontade expressa do paciente ou, na sua
impossibilidade, a de seu representante legal.
Nesse sentido, destaca-se a importância das diretivas antecipadas de vontade,24
reguladas pela CFM/Resolução nº 1.995 de 2012. Constitui um instrumento de manifestação de vontade presente para situações futuras, relativamente aos tratamentos
ou procedimentos aos quais o indivíduo deseja ou não se submeter quando estiver
impossibilitado de expressar a sua vontade, fazendo-as prevalecer sobre a vontade
dos familiares. Por meio dessa resolução também é possível a nomeação de um
procurador de saúde, que será incumbido de tomar as decisões pelo paciente quando
este já não tiver a consciência necessária para tanto.25
3 Responsabilidade civil médica
Para analisar a responsabilidade civil do médico associada à ortotanásia e
orientada pelos cuidados paliativos, é necessário analisar os diplomas legais que
disciplinam a matéria, quais sejam, o Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor
TEPEDINO, Gustavo. A responsabilidade médica na experiência brasileira contemporânea. Revista Jurídica, Rio
Grande do Sul, ano 51, n. 311, p. 18-43, set. 2003.
24
O termo diretivas antecipadas é preferido, já que a expressão testamento vital é criticado por doutrina
específica, pois é resultado de traduções do termo em inglês, living will, sem a necessária adequação ao
instituto em português. Traduzido dessa maneira pode ser confundido com o sentido jurídico do vocábulo
testamento no Brasil, que designa disposição de última vontade estabelecida por um negócio jurídico
unilateral, solene e com eficácia condicionada à morte do titular. Por sua solenidade e efeito jurídico post
mortem, difere do testamento vital. Este também é negócio jurídico de disposição de vontade, porém a ser
exercida enquanto o titular estiver vivo e despido da consciência necessária para se autodeterminar. Assim,
há duas classificações correntes: a primeira coloca diretivas antecipadas como gênero, do qual são espécies
o mandato duradouro e a declaração prévia de vontade (PENALVA, Luciana Dadalto. Declaração prévia de
vontade do paciente terminal. Revista Bioética, v. 17, n. 3, p. 523-543, 2009); a segunda, sem preterir
o termo já consagrado no país, traz testamento vital como gênero, e inclui mandato duradouro e diretivas
antecipadas como espécies (PENALVA, Luciana Dadalto; TUPINAMBAÍ, Unais; GRECO, Dirceu Bartolomeu.
Diretivas antecipadas de vontade: um modelo brasileiro. Rev. Bioética (Impr.), v. 21, n. 3, p. 463-76, 2013).
Dessa forma, em um mesmo documento, é possível determinar os tratamentos aos quais deseja ou não ser
submetido quando fora das perspectivas de cura, assim como o mandatário responsável por tomar decisões
médicas quando o mandante estiver despido de consciência, ou por fazer cumprir tais determinações.
25
Assim dispõe a resolução sobre a nomeação de representante pelo paciente: “Art. 2º Nas decisões sobre
cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de
maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de
vontade. §1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas
em consideração pelo médico” (BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.995...).
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e o Código de Ética Médica. O pressuposto específico, no caso, segundo Aguiar
Júnior,26 será o ato médico praticado com violação de um dever profissional imposto
por lei, pelo costume ou por um contrato, que haja causado um dano patrimonial ou
extrapatrimonial.
Importa ao presente estudo, a análise da responsabilidade civil do médico pela
intervenção em face de um paciente acometido de doença grave e incurável ou em
estado terminal, para o fim de verificar como se daria eventual responsabilização, na
hipótese do evento morte resultar do avanço da doença associado à suspensão do
tratamento e/ou procedimento de intenção curativa, por escolha do paciente, acompanhado pelo médico.
A análise da responsabilidade civil médica e hospitalar requer o exame de duas
perspectivas distintas: a primeira decorre da prestação de serviço direta e pessoalmente pelo médico, assim considerado um profissional liberal; já a segunda resulta
da prestação de serviços médicos sob a organização empresarial, como se faz pelos
hospitais, clínicas, casas de saúde, bancos de sangue, etc.27
No que concerne à responsabilidade pessoal do médico, é considerada uma
responsabilidade contratual,28 quanto à fonte, que envolve uma obrigação de meio. É
regulada pelo artigo 951, do Código Civil, que impõe o dever de indenização a quem,
no exercício de atividade profissional e em razão da negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar lesão ou inabilitar para
o trabalho. Observe-se que a atividade curativa desenvolvida pelo profissional médico
não constitui atividade de risco para o paciente, mas, ao contrário, intenta afastar
o risco de agravamento do estado de saúde, propiciando cura ou melhora. Qualquer
tentativa de tornar objetiva a responsabilidade médica conduz à mudança na prestação devida em obrigação de resultado, o que não é aceitável. A dor, a doença, as
alterações de saúde e a morte não devem ser consideradas riscos que constituem a
atividade médica, porém algo inerente ao ser humano. Ademais, não é o médico, em
regra, que as provoca, mas, em oposição a isso, tenta aliviar o sofrimento e restaurar
a saúde.29
O CDC também faz alusão à responsabilidade pessoal desses profissionais.
Nos termos do parágrafo 4º, do artigo 14, tem-se que a responsabilidade civil do
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Responsabilidade civil do médico. In: Direito e medicina: aspectos jurídicos
da medicina. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 133-180. Disponível em: <http://www.ruyrosado.com.br/
upload/site_producaointelectual/23.pdf>. Acesso em: 16 jul. 2015.
27
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 403.
28
O entendimento acerca da natureza contratual da responsabilidade civil médica é compartilhado por Gustavo
Tepedino, José de Aguiar Dias, Maria Helena Diniz, Rui Rosado de Aguiar Junior (TEPEDINO, Gustavo. A
responsabilidade médica...p. 19).
29
KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007, p. 38 e 62.
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Responsabilidade civil médica diante dos cuidados paliativos e da ortotanásia
profissional liberal será apurada mediante a verificação de culpa.30 Em sentido semelhante é o Código de Ética profissional, que veda ao médico causar dano ao paciente,
por ação ou omissão que se caracterize como negligência, imprudência ou imperícia.
De toda sorte, importa a necessária demonstração de culpa para que se possa apurar
a responsabilidade civil do médico.
A comprovação da conduta culposa do médico é requisito inerente ao tipo de
responsabilidade a ele atribuída: subjetiva. Esta, por sua vez, está relacionada à natureza da obrigação por ele assumida, que é de meio e não de resultado.31 Isso porque
o médico, pelo tipo de serviço que presta e por sua natureza humana, não dispõe de
meios de se comprometer com o evento cura, embora envide todos os esforços possíveis para isso.32 Para a comprovação dessa culpa, é imprescindível se demonstrar
o descumprimento dos deveres relacionados ao ofício, tripartidas nas três grandes
categorias mencionadas: dever de informação; dever de empregar todas as técnicas
disponíveis para a recuperação do paciente; dever de tutelar o melhor interesse do
doente, prezando pela sua dignidade e integridade física e psíquica.
Relativamente aos danos decorrentes da prestação de serviços médicos de forma empresarial, como aquela que se faz pelos hospitais e clínicas, aplica-se, nos termos do artigo 14 do diploma consumerista, a responsabilidade objetiva, dispensando
prova da culpa. Sendo assim, o fornecedor responde objetivamente pela eficiência do
serviço de saúde prestado.
Para as duas hipóteses de responsabilidade acima citadas, é indispensável a
demonstração do nexo causal que correlaciona a conduta do médico e/ou a prestação do serviço pelo hospital ou pela clínica e o dano sofrido pelo paciente.
A responsabilidade civil do médico ou do hospital não é absoluta, podendo ser
afastada nos casos de excludentes previstas em lei. Uma vez demonstradas excludentes de responsabilidade entre o serviço defeituoso e o dano, ou seja, evidenciado
que o resultado morte do paciente não foi desencadeado pela ação ou omissão
médica, mas sim em virtude de um aleatório alheio ao seu controle, a exemplo da
evolução natural da doença, descartado está o dever de reparar.33 Também é possível
Assim dispõe o artigo 14: “o fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa,
pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem
como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. [...] §4º A responsabilidade
pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa” (BRASIL. Lei nº 8.078, de 11
de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências...).
31
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 313.
32
GONDIM, Glenda Gonçalves; STEINER, Renata Carlos. Responsabilidade civil médica: breves considerações
em face da recente jurisprudência do superior tribunal de justiça. Revista da Faculdade de Direito da UFG, v.
33, n. 1, p. 204/219, maio 2010. ISSN 0101-7187. Disponível em: <http://www.revistas.ufg.br/index.php/
revfd/article/view/9844/6723>. Acesso em: 27 nov. 2014.
33
Registre-se caso na jurisprudência paulista em que a demanda indenizatória foi ajuizada em face do hospital,
porém julgada improcedente e confirmada em segunda instância, em virtude da falta de comprovação de conduta
culposa do médico. Tratou-se de um senhor diagnosticado com câncer de laringe que, em 2005, foi submetido
a cirurgia para extração do tumor, passou por várias internações no hospital demandado, e, aproximadamente
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qualificar como exclusão da responsabilidade,34 aquele caso no qual se prova que
o insucesso do procedimento ou do tratamento decorreu de condições próprias do
paciente.
Frise-se que a conduta médica associada aos deveres já citados tem por objetivo primordial o de zelar pela dignidade do paciente até quando se inicia o processo
de morte, de modo a que se evite a distanásia, assim caracterizada como o prolongamento exagerado desse processo, por meio da adoção de tratamentos inúteis que somente trazem sofrimento adicional ao paciente.35 Quando a doença está em estágio
avançado e irreversível, mais premente se faz o dever de cuidado, não no intuito de
retirar a enfermidade a todo custo, mas de proporcionar conforto e qualidade de vida
ao paciente. Requer ainda, o respeito às suas escolhas livres e conscientes, mesmo
que isso implique a suspensão ou recusa do tratamento prescrito. Se, nessas hipóteses, o médico priorizar os cuidados paliativos, em respeito à vontade do paciente e
este vier a óbito, não se poderá imputar responsabilidade civil ao profissional ou ao
estabelecimento de saúde.
Conclusão
I. A discussão sobre os cuidados paliativos e a ortotanásia, conceitos distintos
de eutanásia, ganha cada vez mais espaço no meio jurídico. Deve-se ter
dois anos após a cirurgia, chegou ao nosocômio com o quadro de saúde agravado. Recebeu cuidados médicos,
porém faleceu em 2007, quando a família ajuizou ação de indenização por danos morais e materiais em face
do hospital, alegando que a morte foi antecipada devido às altas doses de sedativos. No julgamento da
demanda, entendeu-se que o paciente apresentava estado avançado da doença, sendo considerado terminal,
de forma que a moléstia não poderia mais ser revertida. Nova cirurgia havia sido descartada devido ao grau
avançado da enfermidade, restando-lhe apenas os cuidados paliativos para evitar ou minimizar a dor, o que foi
feito por meio de sedação contínua. Essa tendência do tribunal paulista se baseia no entendimento de que,
nesses casos, o que se examina é o próprio trabalho do médico (KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade
civil..., p. 199-201). O recurso de apelação nº 0003009-12.2010.8.26.0004, de relatoria do Desembargador
João Francisco Moreira Viegas, bem como a sentença do mesmo processo, foram obtidos por meio de
pesquisa realizada no sítio eletrônico do Tribunal de Justiça de São Paulo, utilizando-se “ortotanásia” como
termo de busca, sem delimitação temporal, em todos os tipos de decisão e independentemente da origem.
Retornaram três resultados, entre os quais o ora relatado, cuja ementa enuncia: “RESPONSABILIDADE CIVIL
DANOS MORAIS E MATERIAIS Hospital - Paciente que faleceu após período de internação - Responsabilidade
do hospital que decorre da comprovação de conduta culposa do médico Conjunto probatório que não logrou
demonstrar a existência de negligência ou imperícia no tratamento do paciente - Morte que decorreu do
avanço incontrolável da doença, e não de qualquer conduta do corpo médico Ausência do dever de indenizar
Sentença mantida – Recurso desprovido” (BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 000300912.2010.8.26.0004, da 5ª Câmara de Direito Privado. Relator: Desembargador João Francisco Moreira Viegas.
São Paulo, SP, 12 de junho de 2013. Disponível em: <https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao
=6799627&cdForo=0&vlCaptcha=sncmd>. Acesso em: 28 nov. 2014).
34
Dispõe o parágrafo terceiro do artigo 14: “o fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando
provar: I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro”
(BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras
providências...).
35
PESSINI, Leo. Distanásia: até quando investir sem agredir? Revista Bioética, Brasília, v. 4, n. 1, nov. 2009.
Disponível em: <http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/394/357>. Acesso
em: 30 nov. 2014.
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Responsabilidade civil médica diante dos cuidados paliativos e da ortotanásia
em vista a necessidade de ressaltar a dignidade humana, principalmente
em situações de doença incurável ou terminal. A relação entre médico
e paciente deve ser pautada nos deveres profissionais de informação,
emprego de todas as técnicas disponíveis para a recuperação do paciente
e de tutelar o melhor interesse do doente, prezando pela sua dignidade e
integridade física e psíquica.
II. O respeito à autonomia e aos princípios da não maleficência e da beneficência
legitimam o direito que tem a pessoa do paciente em tomar decisões livres,
conscientes e informadas, cujos efeitos devem ser respeitados pelo médico,
pela família e pelo estabelecimento de saúde. Cabe ao médico fornecer
todas as informações disponíveis relativas aos tratamentos disponíveis e
os riscos que acarretam, para que o paciente possa fazer a escolha sobre o
tratamento mais adequado aos seus anseios, inclusive quando optar pela
suspensão ou recusa de procedimentos curativos, e pela atenção paliativa
pautada no controle dos sintomas negativos da doença.
III. É direito da pessoa optar pela boa morte, evitando as intervenções fúteis e
obstinadas, que já não proporcionem o bem-estar. A opção pelos cuidados
paliativos implica o tratamento voltado para a garantia do bem-estar integral
do paciente, mediante intervenções nas dimensões física, psíquica, social
e espiritual. Com o fim de garantir o convívio familiar e com os amigos, é
possível determinar-se até mesmo a alta hospitalar, ainda que se permita a
atenção por meio dos serviços de homecare.
IV. Linhas gerais, somente se poderá falar de responsabilidade civil médica
pela morte do paciente que optou pelos cuidados paliativos, se o profissional houver transgredido os deveres que norteiam a sua conduta e houver
nexo causal entre esta e o dano. A responsabilidade civil do médico que
acompanha direta e pessoalmente o paciente será subjetiva, exigindo-se a
comprovação de sua culpa, ou seja, a prova de sua negligência, imprudência, imperícia na prestação do serviço.
V. Trata-se aqui, de uma responsabilidade civil subjetiva, pautada numa obrigação de meio, já que o profissional, via de regra, não pode se comprometer com o resultado cura, o que foge à natureza do serviço. A despeito
disso, deve empreender todos os esforços possíveis para alcançar a cura
do paciente, ou, quando não for possível, deve prezar por seu bem-estar e
pela maior qualidade de existência possível ao enfermo.
VI. Caso o serviço médico haja sido prestado por meio de uma atividade empresarial, na qual o fornecedor é um hospital ou uma clínica, a responsabilidade do estabelecimento de saúde é apurada de maneira objetiva.
Persiste apenas em face da falha na prestação dos serviços. Para se eximir
da responsabilidade, porém, o estabelecimento de saúde poderá alegar
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alguma excludente de responsabilidade civil, nos moldes do disposto no
Código de Defesa do Consumidor. Na hipótese, alegando a inexistência de
nexo causal entre a conduta médica e a morte de paciente que já estava,
por exemplo, acometido por doença em estado avançado. O óbito se daria
em virtude de progressivo agravamento do quadro do enfermo.
Medical Liability on Palliative Care and Orthothanasia
Abstract: The evolution of medicine enabled the development of new techniques and new drugs, increasing
the time between the discovery of disease and death, extending the existence of people. In addition to
revolutionary treatments for the cure of many diseases, the use of artificial maintenance of life devices
and medicines that keep or minimize pain is possible, allowing delay the death of the patient stricken with
serious and incurable or terminal illness. These possibilities, however, lead to the reflection on the medical
procedure in relation to the care expended for the terminally ill, unveiling bioethical issues with reflection on
law. Any solution should collate the principles of justice consolidated in the Constitution, notably, the dignity
of the human person which is the epicenter of fundamental rights. Although terminally ill patients have no
chances of a cure for his illness, they are rights holders and should have their dignity preserved in the last
moments of life. In respect for these rights, especially autonomy, they can not be subjected to any treatment
able to configure torture, either, those futile treatments that only increase suffering and do not generate
well-being and healing perspective. Focusing on the practice of palliative care and orthothanasia in Brazil,
related to the principle of human dignity and bioethical principles of respect for autonomy, beneficence and
non-maleficence, this study aims to analyze the outlook of medical liability. In the methodological aspect,
there was literature and documents, especially legal doctrine, laws and resolutions governing the medical
management.
Keywords: Palliative Care. Orthothanasia. Bioethics. Medical Liability.
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portalmedico.org.br/resolucoes/ CFM/2009/1931_2009.pdf>. Acesso em: 08 nov. 2013.
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação
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LIMA, Luciana Vasconcelos; MENEZES, Joyceane Bezerra de. Responsabilidade civil
médica diante dos cuidados paliativos e da ortotanásia. Revista Fórum de Direito
Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 107-122, set./dez. 2015.
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Autonomia existencial do paciente
psiquiátrico usuário de drogas e a
política de saúde mental brasileira1
Joyceane Bezerra de Menezes
Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Direito pela
Universidade Federal do Ceará. Graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza.
Professora titular da Universidade de Fortaleza, atuando no Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu (Mestrado e Doutorado). Professora adjunta da Universidade Federal do Ceará.
E-mail: <[email protected]>.
Júlia d’Alge Mont’Alverne Barreto
Graduanda em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Pesquisadora bolsista da
Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP). Integrante
do grupo de pesquisa em Direito Constitucional nas Relações Privadas, do Programa de PósGraduação em Direito da Universidade de Fortaleza. E-mail: <[email protected]>.
Maria Yannie Araújo Mota
Graduada em Direito pela universidade de Fortaleza (UNIFOR). Pós-Graduanda em Direito Civil
e Empresarial. Mestranda em Direito Constitucional nas Relações Privadas pela Universidade
de Fortaleza (UNIFOR). E-mail: <[email protected]>.
Resumo: Este artigo analisa a necessidade de se garantir ao usuário de drogas, pessoa em sofrimento
psíquico, o respeito a sua capacidade decisional, de acordo com o que prescreve a Lei de Saúde Mental
brasileira. A dependência química, por si só, não retira a possibilidade de discernimento da pessoa e sua
capacidade jurídica, razão pela qual, em respeito a sua autonomia não se pode lhe impor um tratamento.
Mesmo que sofra perda temporária e relativa do discernimento, deve ter respeitada a autonomia que
se restabelece com o passar dos efeitos da substância que utiliza. Assim, quando estiver de posse do
juízo crítico, deve ser consultada sobre seu interesse em aderir à terapêutica sugerida. Se o tratamento
emergencial lhe foi prescrito pelo médico, sem o seu consentimento, no instante da crise, tão logo
reestabeleça a sua capacidade decisional, deverá ser respeitada quanto ao interesse de continuar com o
tratamento. Até quando praticar atos acráticos, o sujeito deve ter garantida a faculdade de responder pela
própria vida.
Palavras-Chave: Autonomia. Capacidade civil. Política de Saúde Mental brasileira. Toxicômano.
Sumário: Introdução – 1 Política de Saúde Mental brasileira e as internações psiquiátricas – 2 Regime de
incapacidade civil e a situação do toxicômano – 3 Autonomia existencial do drogadito – Conclusão
Estudo desenvolvido no âmbito do projeto de pesquisa intitulado: A efetivação do controle das internações
psiquiátricas involuntárias no Município de Fortaleza.
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Introdução
O presente artigo analisa a reforma psiquiátrica, cotejando a imprescindibilidade de se respeitarem a autonomia do paciente drogadito, de acordo com o maior ou
menor grau de discernimento, ao lhes garantir a atenção especial em saúde.
Por meio da Lei nº 10.216/2001 consolidou-se, no Brasil, a reforma psiquiátrica
que inaugurou uma sistemática de atenção em saúde mental pautada no tratamento
humanizado, extra-hospitalar, voltado para o equilíbrio e reinserção social da pessoa
em sofrimento psíquico. Estabeleceu o fim do tratamento manicomial, preconizando
uma atenção multidisciplinar na qual a internação psiquiátrica constitui alternativa
subsidiária, in extremis e voltada apenas para a estabilização do paciente. Embora
a rede de saúde mental brasileira já viesse apresentando os ajustes propostos pelo
movimento de reforma que se expandia pelo mundo ocidental e já tinha previsão
específica em documentos internacionais, como a Declaração de Caracas,2 a Lei de
Reforma Psiquiátrica (LRP) constituiu um marco formal para as políticas públicas do
país em matéria de saúde.
Sob a influência dos direitos humanos reconhecidos ao paciente psiquiátrico,
a capacidade decisional da pessoa passa a ter maior destaque. As pessoas que
sofrem drogadição, igualmente consideradas pacientes psiquiátricos, devem ter a
sua capacidade respeitada. Desse modo, na medida em que preservarem o seu
discernimento, podem decidir sobre a possibilidade de se submeterem ou não ao tratamento específico. A rede de atenção em saúde mental constitui-se primordialmente
de equipamentos extra-hospitalares: Centro de Apoio Psicossocial (CAPS) (com foco
específico em álcool e outras drogas), Residências Terapêuticas, entre outros. Os
leitos psiquiátricos foram reduzidos, exatamente pela primazia que se deu ao tratamento extra-hospitalar. Porém, surgiram as comunidades terapêuticas, que são instituições privadas, sem fins lucrativos, financiadas, em parte, pelo poder público e que
oferecem, gratuitamente, acolhimento para pessoas com transtornos decorrentes da
dependência química.
Em todo caso, o plano terapêutico ao qual a pessoa será submetida dependerá
de seu próprio assentimento. Exceto nos casos de internação psiquiátrica involuntária ou internação psiquiátrica compulsória é que a pessoa poderá ser contristada
ao tratamento contra a sua vontade. Porém, esses casos são regulados por lei e
aplicáveis em condições extremadas.
Em 1990, com as discussões pró-reforma psiquiátrica em toda a América Latina, surge a Declaração de
Caracas, assinada pelos países da região das Américas, durante a Conferência Regional para a Reestruturação
da Assistência Psiquiátrica nas Américas, promovida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e Organização
Pan-americana de Saúde (OPAS), com o escopo de apresentar os direitos humanos das pessoas acometidas
de transtornos mentais. A referida convenção foi ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº. 3956 de 08 de
outubro de 2001.
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AUTONOMIA EXISTENCIAL DO PACIENTE PSIQUIÁTRICO USUÁRIO DE DROGAS E A POLÍTICA DE SAÚDE...
Os efeitos das drogas sobre a pessoa podem ser nefastos para ela própria,
para a família e para a comunidade. Em razão disso, há um clamor social pelo tratamento compulsório ou involuntário que envolva, inclusive, a internação. Esse tem sido
um dos conflitos corriqueiros: o choque entre a autonomia do drogadito e o desejo
da família e da sociedade. A despeito dos inconvenientes e dissabores que a convivência com o drogadito pode trazer para a família, a autonomia do sujeito não pode
ser ceifada. Há que se conciliar o tratamento com a autonomia volitiva da pessoa
adoecida, a fim de que não apenas a sua integridade seja preservada, como também
o próprio tratamento possa prosperar com algum êxito.
Para avaliar a extensão da autonomia do sujeito no âmbito da atenção em saúde mental, o trabalho se subdividirá em três tópicos: o primeiro intitulado: “Política
de Saúde Mental brasileira e as internações psiquiátricas”, em que se abordarão
as principais diretrizes da Lei nº 10.216/2001 e a sua correlação com os princípios
constitucionais; o segundo: “Regime de incapacidade civil e a situação do toxicômano”, em que se verificará o reconhecimento da capacidade jurídica do drogadito e as
possibilidades de sua limitação; o terceiro e último tópico, sob o título: “Autonomia
Existencial do drogadito”, em que trarão as considerações sobre a necessidade de se
garantir o direito de autodeterminação ao usuário de drogas no sistema de atenção
em saúde, em razão da sua dignidade e dos direitos de personalidade.
No que concerne à metodologia utilizada, frisa-se que a pesquisa é do tipo
qualitativa, cujo foco da análise se assentou nas fontes bibliográficas, documentais
e jurisprudenciais.
1 Política de Saúde Mental brasileira e as internações
psiquiátricas
A loucura foi objeto de estudo por várias sociedades ao longo da existência
humana. A ausência de discernimento e de amarras sociais sempre despertou a
curiosidade e o medo das pessoas, de sorte que a preocupação com os distúrbios
psíquicos não se restringiu apenas à ciência, mas alcançou também a religião e o
imaginário popular. Por muito tempo, achou-se que o transtorno mental estava associado ao castigo divino ou aos pactos com entidades do mal, de modo que a loucura
era vista como algo repugnante e que as pessoas acometidas por problemas desta
ordem não mereciam compaixão, deveriam ser submetidas a torturas e a tratamentos
degradantes (BOMFIM, 2005).
Apesar de esta concepção datar do medievo, esta forma de encarar a loucura
se prolongou até pouco tempo atrás. No Brasil, no início do novo milênio, ainda se
podia encontrar instituições psiquiátricas com caraterísticas asilares, ultrajantes à
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condição de qualquer ser humano.3 Pacientes psiquiátricos tratados como presos,
reclusos em salas frias, fétidas, sem condições de higiene, deixados nestes estabelecimentos ad aeternum, pois nem a família, nem o Estado tinham interesse de
reinseri-los à sociedade (BASAGLIA, 1985).
Não obstante, a despeito da triste realidade a que os pacientes psiquiátricos foram longamente submetidos, o advento da reforma psiquiátrica propulsionou grandes
alterações no que concerne ao tratamento em saúde mental. O modelo manicomial,
hospitalocêntrico, deu lugar ao chamado modelo assistencial multidisciplinar em saúde, respeitando a convivência familiar e comunitária. A internação, que antes era
utilizada de modo indiscriminado, passou a seguir um protocolo específico, devendo
ser a última opção de tratamento. Tanto é verdade que o país inaugurou um período
de desinstitucionalização da loucura, com uma redução considerável dos leitos destinados às internações psiquiátricas.
No Brasil, o movimento contra o sistema manicomial ganhou força em meados
da década de 1970 devido à mobilização dos profissionais da saúde mental que
lançavam um novo olhar para a loucura e propunham um tratamento baseado na reinserção social e no tratamento humanitário. Em 1989, chegou ao Congresso Nacional
o projeto de Lei nº 3.657/89, de autoria do Deputado Paulo Delgado (PT/MG). Alvo
de inúmeras críticas, o projeto de lei tramitou por doze anos no Congresso Nacional,
sendo aprovado apenas em março de 2001 a Lei nº 10.216/01, com o conteúdo
originário bastante alterado. A esse tempo, leis estaduais e normas jurídicas secundárias já haviam implantado uma atenção extra-hospitalar no âmbito da saúde mental. Prioriza-se o tratamento extra-hospitalar, uma atenção multiprofissional, inclusiva,
com a participação da comunidade e da família, sendo a internação uma medida
extrema e subsidiária. Para consolidar as mudanças no setor foi sancionada em 6 de
abril de 2001 a Lei nº 10.216, estabelecendo em seu preâmbulo que “dispõe sobre
a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona
o modelo assistencial em saúde mental”. De modo a atender os direitos humanos
e fundamentais da pessoa sob sofrimento psíquico, enumera, em seu art. 2º, que a
pessoa portadora de transtorno mental tem direito de ser tratada com humanidade,
respeito, ter acesso ao melhor tratamento (preferencialmente em serviços comunitários), sigilo nas informações, entre outros. Ao lado desses direitos, reitera que o
tratamento seja acompanhado pela família e que tenha como finalidade a reinserção
social.
Caso paradigmático, que culminou, inclusive, com a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos, foi o do cearense Damião Ximenes. Paciente psiquiátrico de uma clínica especializada,
localizada na cidade Sobral-CE, o corpo dele foi encontrado nas dependências da clínica com sinais de maustratos, muito provavelmente ocorrido durante o período que o mesmo passou internado no estabelecimento.
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A nova Política de Saúde Mental Brasileira vem atender a um anseio social,
reconhecendo que o transtorno e o sofrimento psíquico afetam significativa parcela
da população. Seja em razão do estrese provocado pela rotina atribulada, seja pelo
vício em bebidas ou em substâncias entorpecentes ou, ainda, por uma experiência
traumática, muitas pessoas desenvolvem algum tipo de transtorno que afeta a sua
sociabilidade e condições de existência plena.
Não obstante, a pessoa acometida por alguma perturbação psíquica pode apresentar algum nível de comprometimento mental: brando, moderado ou elevado. Mas
não necessariamente esse comprometimento afetará significativamente a sua vida
de relação em família e na comunidade, ou mesmo, a sua capacidade decisional.
Podem perseverar na vida comunitária e familiar mesmo quando estiverem realizando
um tratamento específico. A convivência nesses casos pode ser ainda mais salutar do
que o isolamento. Em vista disso, percebeu-se os limites da internação como alternativa prioritária de tratamento. Para cada caso, o tratamento deve ser específico. Não
sem razão, a pessoa que procura um Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Droga
recebe um plano de atenção terapêutico adequado às suas próprias necessidades.
Importante destacar que antes do advento da Lei nº 10.216/2001, muitos toxicômanos eram internados involuntariamente em clínicas especializadas em reabilitação e lá eram esquecidos, sem qualquer preocupação de inseri-los à sociedade.
O que se via era a internação forçada, muitas vezes ordenada pela própria família
do dependente químico, dada a incapacidade dos parentes de conviverem com o
drogadito. No contexto da Lei nº 10.216/2001, cujo principal objetivo é o de garantir a proteção e a efetivação dos direitos das pessoas com transtornos mentais, a
internação não pode mais ser considerada uma forma de a família ou a comunidade
se livrar da pessoa. Na forma do artigo 4º, caput e parágrafo primeiro, da LRP, “a
internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos
extra-hospitalares se mostrarem insuficientes” e que “o tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio”.
No tocante ao uso do crack, umas das substâncias tóxicas mais devastadoras
e de maior popularidade no Brasil, feita a partir da mistura da pasta da cocaína com
o bicarbonato de sódio, a preocupação social é geral em virtude de já se configurar
uma epidemia. Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 7663/2010, de
autoria do Deputado Federal Osmar Terra (PMDB/RS),4 com a proposta melhorar a
estrutura do atendimento aos usuários de drogas e às suas famílias e ampliar o rigor
no enfrentamento de crimes que envolvem o tráfico de drogas com alto poder de
dependência, como o crack. O projeto de lei propõe, inclusive, alternações em alguns
dispositivos da Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas).
O Projeto de Lei nº 7663/2010 encontra-se em tramitação, aguardando apreciação pelo Senado Federal.
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O projeto prevê a alteração do artigo 28, da Lei nº 11.343/2006, parágrafo
oitavo, que passaria a ter a seguinte redação: “O juiz determinará ao Poder Público,
a seu critério, a imediata internação do usuário do entorpecente denominado crack
para tratamento especializado de recuperação.” Na justificativa do autor do projeto,
o autor assim dispõe:
O entorpecente conhecido como crack apresenta um potencial de dependência mais virulento e rápido do qualquer outro tipo de droga. Além de
provocar efeitos danosos e quase sempre irreversíveis à saúde física
e mental do viciado, a droga também é responsável pela desestruturação de famílias e por um infindável número de crimes associados,
como assaltos, estupros e assassinatos. Ao ser consumida, a droga
chega quase instantaneamente à corrente sanguínea e ao cérebro. Entretanto, por ter curta duração, seu efeito exige do drogado a constante
alimentação, o que o transforma num escravo do vício. A relação é tão
grande e desastrosa que obriga o viciado a usar a droga a cada dez ou
quinze minutos, destruindo de vez suas relações afetivas, familiares e
sociais. A expectativa de vida do consumidor de crack é reduzidíssima,
não ultrapassando cinco anos, contados a partir da primeira experiência
maléfica. Além da violência de que é vítima, o viciado sucumbe à própria
droga, que se encarrega de dar fim à vida A presente proposição tem o
escopo de modificar essa triste realidade, ao dar uma oportunidade de
tratamento imediato ao jovem que se embrenhou neste mundo de trevas. Nas ocasiões devidas, cabe ao juiz avaliar a gravidade da situação
e exigir do Poder Público, quando assim entender, que dê ao viciado um
acolhimento rápido em uma instituição especializada em atender aos
vitimados pelas drogas.
Diante da proposta de redação conferida ao novo parágrafo oitavo sob comento,
observa-se que incumbe ao juiz, mediante livre apreciação, a decisão de internar
ou não o usuário de crack, independente da vontade do toxicômano. Tal disposição
afrontaria a principiologia da reforma psiquiátrica brasileira, pois culminaria no cerceamento da liberdade e da volição do usuário. Cabe avaliar a sua adequação aos
direitos humanos que hoje integram o bloco de constitucionalidade.
Em relação ao tratamento conferido ao toxicômano pela legislação brasileira,
tem-se que o Código Civil, por sua vez, prevê em seu artigo 4º, inciso II, que, dentre
outros, “são incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercerem”.
Essa classificação foi mantida pela da Lei nº 13.146, em 06 de julho de 2015,
Estatuto da Pessoa com Deficiência, que alterou alguns dispositivos do Código Civil
pertinentes ao regime das incapacidades. A lei garante os direitos da pessoa com deficiência em condições de igualdade com as demais, o que destaca a sua autonomia
e capacidade legal, a depender do discernimento que apresenta e não do diagnóstico
médico que lhe é conferido.
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Contudo, em seu artigo 114, a Lei nº 13.146/2015 manteve os toxicômanos
como relativamente incapazes, incluindo-os todos num mesmo grupo. É sabido que
há de ser levado em consideração o fato de que a drogadição, por si só, não é suficiente para caracterizar a incapacidade do usuário, mas tão somente para pleitear
a sua interdição perante o Poder Judiciário, ocasião na qual o magistrado fixará os
limites da sujeição do interditando à curatela.
Assim, uma vez determinada judicialmente a existência do discernimento necessário para a prática de atos da vida civil, não há razão para classificar o toxicômano
como relativamente incapaz, situação na qual observa-se verdadeiro contrassenso
entre o Código Civil e a Lei nº 10.216/2001, pois o usuário deve ser tratado como
capaz, de modo a fazer valer a autonomia de sua vontade em relação ao tratamento
a ser realizado ou à ausência deste.
1.1 Espécies de internações psiquiátricas
Importante destacar as três modalidades de internações descritas pela Política
de Saúde Mental brasileira. Ressalta-se que cada internação corresponde a uma
situação ético-legal vivenciada pelo paciente psiquiátrico. Assim, as internações se
dividem em: voluntária, involuntária e compulsória.
A primeira ocorre quando o paciente concorda com a internação, manifestando
seu interesse pelo tratamento. A segunda se dá quando o paciente não consente a
internação, sendo esta solicitada pelo médico ou pela família. E, por fim, a compulsória ocorre quando a internação é determinada pelo Poder Judiciário.
Tanto a internação voluntária quanto a internação involuntária exigem a prescrição por médico registrado no Conselho Regional de Medicina do Estado onde se situa
o estabelecimento hospitalar.
A internação psiquiátrica voluntária depende da declaração assinada pelo paciente no ato de sua admissão na unidade de saúde. Nesta, deve constar a opção
pela referida modalidade de tratamento. O término da internação se dará por solicitação do paciente, conforme estabelece o art. 7º da Lei nº 10.216/2001. Contudo, se
ao longo do tratamento, o médico perceber a necessidade de manutenção da internação, uma vez diagnosticado o prejuízo do sistema volitivo do paciente, a internação
voluntária pode se converter em involuntária. Esta última, por sua vez, merece destaque neste estudo, já que implica medida de exceção, ocorrendo à revelia do paciente.
A fim de evitar que se converta em medida de segregação social, a internação
involuntária somente pode ser aplicada mediante o atendimento de certas condições
legais, conforme narrado. Deve ser prescrita por um médico devidamente registrado
no Controle Regional de Medicina (CRM) e ainda sujeita ao controle institucional
pelo Ministério Público e pelas Comissões Revisoras de Internações Psiquiátricas
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Involuntárias (CRIPIs), órgãos que serão notificados no prazo de até 72 (setenta e
duas) horas do início da internação e da respectiva alta.
1.2 Direitos das pessoas em sofrimento psíquico
Para atingir o fim que objetiva, a LEI enumera, em seu artigo 2º, parágrafo único,
os direitos inerentes à pessoa portadora de transtorno mental, estabelecendo, ainda,
que no início do atendimento, seja qual for a natureza da doença psíquica, o paciente
e os seus familiares serão formalmente comunicados sobre os direitos elencados no
artigo.
É certo ainda que o paciente psiquiátrico tem proteção contra qualquer abuso
ou exploração, o livre acesso aos meios de comunicação disponíveis, o tratamento
em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis e a preferência por
tratamentos em serviços comunitários de saúde mental. Por meio de análise acerca
dos direitos, percebe-se o intuito da lei de não afastar o paciente da comunidade,
mas, ao contrário, promover a manutenção de um contato entre o paciente e seus
familiares e também entre pacientes que se encontram em situação semelhante.
Na orientação de Ronaldo Laranjeira (2013), um dos psiquiatras brasileiros favoráveis à internação como parte da desintoxicação do dependente, o tratamento não
se resume a abordagem hospitalar. Como uma das etapas do tratamento, a internação não deve, segundo ele, ultrapassar dois meses. Após este período, o paciente
passa a ser submetido a tratamento ambulatorial, que requer assistência médica,
psicológica e social.
Reitera-se que o afastamento do dependente químico do convívio social não
pode ser uma medida-fim, mas sim medida-meio, cuja finalidade precípua é a promoção da sua saúde. Destacando, ainda, que o tratamento não será exitoso sem um
apoio integral e multidisciplinar, capaz de oferecer a assistência social, psicológica e
ocupacional necessárias. Ademais, conforme já referido, a constrição à liberdade para
tratamento de saúde somente terá validade no plano jurídico quando respeitadas as
exigências legais que foram estabelecidas para evitar a repetição dos prejuízos que o
alijamento manicomial já provocou na vida de muitas pessoas.
2 Regime de incapacidade civil e a situação do toxicômano
Entendendo que o usuário de droga, a depender do nível de comprometimento
cognitivo, pode ser submetido a tratamento de saúde à sua revelia, importante compreender também a consequência jurídica que advém da perda do discernimento pelo
toxicômano.
Sabe-se que é assegurada à pessoa, desde o nascimento, a capacidade de
gozo, compreendendo esta a aptidão que todos os seres humanos têm de serem
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titulares de direitos. Decorre, pois, da própria qualidade de ser da pessoa, pois basta
o nascimento com vida para o indivíduo adquirir referida capacidade, confundindo-se,
portanto, com a própria personalidade. Existe ainda a chamada capacidade de fato.
Esta, por sua vez, depende da implementação de certas condições, pois se refere à
aptidão de exercer direitos e contrariar obrigações. Caso estas condições não sejam
implementadas, a pessoa deverá ser representada ou assistida para a prática destes
atos. 5
Destaca-se, desde logo, que o instituto da incapacidade civil foi construído para
proteger as pessoas, seja de si mesmas ou da má-fé de terceiros. Logo, a Lei Civil
enumera, em seus artigos 3º e 4º, as situações que podem levar à perda ou diminuição da capacidade.
São absolutamente incapazes aqueles que a lei considera totalmente inaptos
para os atos da vida civil. Existem três ordens de causa: idade, enfermidade e a impossibilidade, mesmo temporária, de discernimento. Essas pessoas agem por meio
da representação. A representação pode se dar de forma automática ou por determinação da autoridade judiciária.
Por outro lado, são considerados relativamente incapazes aqueles indivíduos
que estão numa condição intermediária, entre a capacidade plena e a incapacidade
total. Estes não são privados de participação na vida jurídica, muito pelo contrário, o
exercício dos direitos só se realiza com a presença dos mesmos. Assim, os relativamente incapazes devem ser assistidos (PEREIRA, 2012).
Percebe-se, pois, que a restrição à capacidade civil deve ser proporcional à deficiência de discernimento e aplicável apenas para resguardar o interesse da pessoa,
nos exatos termos da lei. Pois, no Direito, a regra é a preservação da capacidade de
autodeterminação, principalmente, no que tange às decisões autorreferentes.
No que concerne ao usuário de drogas, o Código Civil prevê a perda relativa
da capacidade para o toxicômano e alcoólatras após o devido processo legal de
interdição.6
Sobre a capacidade civil dos toxicômanos, assevera Caio Mário (2012, p. 238):
Mais do que qualquer outra é sujeita a incertezas, porque não existe
um parâmetro preciso para distinguir a dipsômano habitual e o toxicômano de pessoas eu fazem uso da bebida e do toxico sem perderem a
consciência dos atos que praticaram. Os vícios do toxico e da bebida se
atingirem que gera fraqueza mental, estão abrangidos nesta hipótese;
Nas palavras de Caio Mário Pereira da Silva (2012, p. 221), “aquele que se acha em pleno exercício de seu
direito é capaz, ou tem capacidade de fato, de exercício ou de ação; aquele a quem falta aptidão para agir não
tem a capacidade de fato”.
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A interdição, por sua vez, consiste num processo judicial, por meio do qual a pessoa é declarada civilmente
incapaz, seja relativamente ou absolutamente, para a prática dos atos da vida civil. Essa pessoa, a partir da
sentença, será representada ou assistida por um curador.
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mas se não ultrapassarem aquele limiar, não devem macular a declaração de vontade. Trata-se de incapacidade quem tem de ser aferida na
justiça com máxima cautela, a fim de evitar distorções, e resguardar a
incolumidade das relações jurídicas, máxime se não atingirem proporções de toxicomania crônica, geradora de estado permanente de falta ou
deficiência de discernimento.
Entende-se, desta feita, que a interdição é uma alternativa extremada, devendo ser utilizada apenas em caso de deficiência grave, que verdadeiramente torna
o sujeito inapto a governar a sua pessoa e os seus bens. Tanto é verdade que a
legislação brasileira orienta, historicamente, a possibilidade de fixação dos limites
da interdição pelo órgão julgador, abrindo espaço para a manutenção de alguma esfera de capacidade, antes da declaração de completa incapacidade. Essa orientação
parece adequada à cláusula geral de tutela da pessoa, cujo objetivo macro é resguardar o processo de autoconstrução que decorre, especialmente, da autodeterminação
ético-existencial.
3 Autonomia existencial do drogadito
A dependência química não subtrai do drogadito a sua condição de pessoa,
ainda que o vício possa comprometer o seu sistema cognitivo e afetar a sua capacidade decisional, seja temporária ou definitivamente. Enquanto o sujeito persistir com
alguma competência volitiva, é importante considerar a sua vontade e respeitar a sua
autonomia. Nestes termos, a intervenção psiquiátrica deve guardar compatibilidade
com a autonomia do sujeito, respeitando as dimensões de sua personalidade.
Até pouco tempo, os médicos entendiam que os usuários de substâncias
psicotrópicas eram desprovidos de vontade própria em função do vício. Tratavam
a dependência química do mesmo modo como lidavam com outras doenças mentais, seguindo, muitas vezes, a orientação manicomial, hospitalocêntrica e asilar.
Entretanto, com a ascensão dos ideais libertários, já no final das décadas do século
passado, passou a viger o entendimento de que o usuário de substância psicotrópica
mantém alguma autonomia, desde que preservada sua capacidade cognitiva, ou seja,
sua capacidade de querer e de entender o que se quer. Passou-se a compreender que
a liberdade do sujeito é regra, e que o seu cerceamento é a exceção, aplicável ante a
absoluta falta de discernimento (MENEZES; GESSER, 2010).
Desse modo, alinhando-se os preceitos trazidos pela reforma psiquiátrica, a
partir da publicação da Lei nº 10.216/2001, à condição real de cada usuário, tem-se
que, na medida em que se verifica o discernimento do toxicômano, deve ser levada
em consideração a sua autonomia, elemento inerente à personalidade e considerado
uma necessidade humana. Através da manifestação de vontade, o sujeito constrói
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sua própria identidade (GUSTIN, 2009). Assim, é fundamental assegurar à pessoa o
controle sobre os seus próprios atos quando identificada sua capacidade para tanto.
É certo que o usuário de drogas necessita de um processo de desintoxicação
e abstinência, o que requer, em certos casos, a segregação do paciente do convívio
social, mesmo que por lapso temporal determinado. Todavia, urge a necessidade de
ser respeitada a sua vontade, ainda que esta não se revele a melhor opção, sob o
olhar de profissionais multidisciplinares, para o tratamento exitoso do toxicômano.
Afinal, a concepção de autonomia centrada na integridade não pressupõe que
o sujeito mantenha sempre uma irretocável coerência entre a sua conduta e os seus
valores (DWORKIN, 2003). Tampouco que realize sempre as melhores escolhas ou
que, invariavelmente, conduza a sua vida de modo refletido e estruturado. No processo de autocriação, é admissível que possa fazer escolhas proveitosas e acráticas.
Todavia, existe dificuldade em imaginar um dependente químico fazendo essas
deliberações, uma vez que os tóxicos geram efeitos nocivos ao discernimento de seu
usuário. Vale lembrar que discernimento é capacidade de fazer diferença, distinção,
fazer apreciação. Entretanto, apesar de as drogas trazerem consequências funestas,
em maior ou menor grau, para os usuários e também para os seus familiares, não se
pode retirar do indivíduo o direito de autodeterminar-se e fazer escolhas.
Assim, se um toxicômano, ainda que comprovadamente necessitado de tratamento médico, não quiser se submeter ao procedimento, não se pode forçá-lo a
tanto, pois isto implicaria o tolhimento ao direito de autodeterminação da pessoa. A
autodeterminação, por sua vez, está estritamente relacionada ao princípio da dignidade da pessoa humana, valor axiológico do qual decorrem todos os direitos fundamentais, albergado como princípio fundamental pela Constituição Federal, na forma
do seu artigo 1º, inciso III.
Neste contexto, indo na contramão do que foi estudado, pertinente citar o julgamento do Habeas Corpus nº 0061555-96.2012.8.19.0000,7 que autorizou a internação compulsória de um adolescente usuário de crack. O Desembargador Paulo
Rangel, relator do processo, fundamentou seu posicionamento favorável à medida
“EMENTA: Habeas corpus. Internação compulsória de usuário de crack. Medida de constrição à liberdade de
adolescente visando à proteção à sua vida. Liberdade de locomoção que tem peso constitucional menor do
que a vida. Principio da ponderação de interresses: se o princípio da proteção à liberdade de locomoção está
em aparente conflito com o princípio da proteção à vida este deve prevalecer perante àquele. Não há como se
proteger a liberdade se a própria vida que a movimenta não está assegurada. O Crack é sem dúvida um dos
maiores e piores flagelos de nossa sociedade, retirando do indivíduo sua capacidade de se autodeterminar e,
consequentemente, seu poder de escolha entre a vida saudável longe das drogas e a morte. O Estado tem o
dever de agir em nome da proteção à vida das pessoas. A liberdade de locomoção será sacrificada em nome
de um bem jurídico maior que é a vida, bem supremo de todo e qualquer ser humano. O Decreto-lei 891, de 25
de novembro de 1938, que autoriza a internação compulsória dos dependentes químicos está em pleno vigor.
No caso dos autos o adolescente necessita de tratamento e pensar que ele, voluntária espontaneamente, irá
procurar ajuda é desconhecer o poder que a droga exerce no cérebro da pessoa. Por tais motivos CONHEÇO
do presente habeas corpus e, no MÉRITO, JULGO IMPROCEDENTE O PEDIDO, NEGANDO A ORDEM. Disponível
em: <http://www.tjrj.jus.br/scripts/weblink.mgw>. Acesso em: 05 jul. 2015.
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sob o argumento de que não haveria como se proteger a liberdade do menor se a
própria vida que a movimenta não estaria sendo assegurada.
Este argumento, contudo, se mostra ultrapassado e incoerente com os preceitos da cláusula geral de tutela da pessoa, vez de que adianta vida se o indivíduo não
pode deliberar sobre qual caminho deseja seguir? De que adianta vida sem dignidade? A existência não seria plena, não se respeitaria o direito de escolha do indivíduo,
seria como se o homem se tornasse um ser sem vontade própria, cuja existência
estaria subordinada a de um terceiro.
Apoiar determinado posicionamento significaria reduzir a condição humana, seria reduzir o homem a uma morte civil. A capacidade volitiva, a liberdade que uma
pessoa tem de tomar decisões, não pode ser questionada simplesmente pelo uso
contínuo de uma substância entorpecente, é fundamental uma análise médica que
determine se o discernimento da pessoa foi ou não comprometido, não se pode apenas impor um tratamento a revelia do paciente, sem existir um acurado laudo médio
para tanto.8
Pelo que foi dito, tem-se que o usuário de entorpecentes pode, sim, ter a sua
volição intacta e nem por isso querer se submeter ao tratamento médico. Este indivíduo não pode ser obrigado a receber tratamento apenas para satisfazer seus
familiares. Tanto é verdade que existem três situações ético-legais possíveis para
um dependente de substância tóxica. A primeira situação é quando o indivíduo está
com sua volição claramente prejudicada. A segunda ocorre quando o indivíduo tem a
sua volição preservada e solicita internamento ou tratamento. Já a terceira corrente
acontece quando o indivíduo tem sua volição preservada, mas não deseja internação
ou tratamento. (MENEZES; GESSER, 2010)
Desse modo, são garantidos aos toxicômanos os direitos inerentes à personalidade e ao resguardo de sua capacidade volitiva. Este regramento faz com que os profissionais responsáveis pelo tratamento do indivíduo não possam adotar práticas que
culminem na alteração da personalidade ou da consciência e, consequentemente, na
vontade do paciente, com o objetivo de reduzir-lhe a resistência física ou mental, a
fim de que seja submetido a determinado tratamento.
Como forma de reinserir o usuário de crack à sociedade e de fazer valer a sua
autonomia de vontade, em respeito à autodeterminação inerente às pessoas, foi
criado, pela Prefeitura de São Paulo, o Programa de Braços Abertos, regulamentado
pelo Decreto nº 55.067, de 28 de abril de 2014. Trata-se de importante medida, pautada na autonomia do paciente psiquiátrico, uma vez que aposta no consentimento
Para Caio Mário (2012, p.236), “a incapacidade por alienação é a que resulta de uma situação permanente. Os
estados transitórios de obnubilação mental não privam o paciente da capacidade, a não ser temporariamente.
Poderão, por isso, ser atacados os atos praticados durante eles, porque não se pode admitir como emissão
válida de vontade a que foi proferida em tais momentos”.
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e na integração dos dependentes químicos à sociedade como meio para combater a
drogadição.
O projeto consiste em oferecer hospedagem em hotéis para os usuários de
drogas da Cracolândia, região frequentada por usuários de crack, em São Paulo, bem
como a contratação destes indivíduos para o serviço de zeladoria das ruas da capital,
com carga horária de quatro horas diárias, mais duas horas de capacitação e qualificação profissional, além do oferecimento de três refeições por dia para as pessoas
interessadas em integrar a operação.
Apesar de muitas críticas, tais como a proximidade dos hotéis com as cracolândias, o fato de o salário ser pago por dia, circunstância que facilitaria a compra de
drogas pelos assistidos e ainda a carga horária reduzida, o que geraria uma ociosidade nos beneficiados, a operação se mostra como ferramenta para o tratamento
dos usuários de droga com uma proposta diferente dos abrigamentos compulsórios,
visto que em oposição ao outro modelo, a última é pautada no respeito à autonomia
e à dignidade da pessoa. Interessante destacar dado recente que aponta redução de
50% a 70% do consumo de crack entre os beneficiários da Operação, desde que a
mesma foi inaugurada (OPERAÇÃO... 2014, online).
Este programa é apenas um exemplo do que pode ser feito no âmbito extra-­
hospitalar para tentar reintegrar à sociedade os viciados em qualquer tipo de droga,
que, pela sua condição de usuários, são automaticamente afastados da comunidade.
Assim, vê-se como necessária a criação de mais programas que incentivem não
só a cura do vício em substâncias tóxicas, mas também a reinserção no mercado de
trabalho, a conquista da independência e da autodeterminação e, em último grau,
a reintegração à sociedade. É imprescindível, para os pacientes, seus familiares e
a própria comunidade, a compreensão de que o processo de tratamento é lento e
depende de fatores externos, como, por exemplo, a oportunidade em um emprego e
o afeto destinado ao usuário, os quais podem ser otimizados por meio de iniciativas
como a do Programa de Braços Abertos.
Deste modo, a partir da compreensão de que não se pode condenar um usuário
de drogas a um tratamento asilar, haja vista a atual orientação pelo tratamento ambulatorial, é que se faz necessária a reformulação do art. 4º do CC, que, como visto,
está em dissonância com o protocolo de saúde mental brasileiro, sendo, pois, vetor
de injustiça e de violação de direitos fundamentais.
Conclusão
Com o advento da reforma psiquiátrica brasileira, houve uma mudança no tocante ao tratamento conferido aos drogaditos, pois o modelo manicomial, fundado na
internação do paciente, foi substituído pelo tratamento humanizado, o qual permite a
reinserção do indivíduo com transtorno mental à sociedade. A internação, antes vista
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como etapa do tratamento da dependência química, passou a ser a última opção, devendo, inclusive, seguir protocolo determinado por lei, a fim de resguardar a dignidade
e a autonomia do paciente.
Durante a vigência do modelo hospitalocêntrico, os toxicômanos eventualmente diagnosticados com sofrimento psíquico eram internados involuntariamente em
clínicas especializadas, as quais não tinham por objetivo a reinserção do doente à
sociedade, mas, apenas, o enclausuramento destes, desrespeitando, pois, a condição humana dos mesmos.
A despeito do modelo referido, a política de saúde mental brasileira, inaugurada pela Lei nº 10.216/2001, trouxe ao ordenamento jurídico pátrio uma nova perspectiva de tratamento para os pacientes psiquiátricos, evidenciando a necessidade
de respeito aos direitos humanos, a partir da notável preferência pelo tratamento
extra-hospitalar. Seguindo esta perspectiva antimanicomial, foram abolidos, quase na
totalidade, os estabelecimentos de características asilares, priorizando, desta feita,
o chamado tratamento multidisciplinar, que estimula a participação da família e da
comunidade no processo de recuperação do doente mental, rechaçando toda forma
de isolamento.
Esta nova perspectiva valoriza o ser humano, respeitando o seu poder de autodeterminação, o seu valor quanto pessoa, pois é da essência da personalidade
humana o direito de fazer escolhas, de conduzir a própria vida, desde que isso não
implique risco para si mesmo ou para outrem.
Neste sentido, atento aos preceitos da reforma psiquiátrica brasileira, o que
deve ser feito é um estudo específico de caso, a fim de determinar qual a melhor
solução para cada paciente individualmente considerado. Um mesmo tipo de droga
pode gerar diferentes efeitos em cada pessoa, além de existirem drogas com potencial lesivo maior do que o de outras. Por exemplo, o crack tem um efeito destrutivo,
em curto prazo, bem superior ao da maconha.
Deste modo, ainda que a dependência química seja uma situação patológica, que culmine em consequências graves para a pessoa, não se pode obrigar um
usuário a se submeter a certo tratamento psiquiátrico, se isto não corresponde a
sua vontade, sob pena de malferimento ao direito de autodeterminação da pessoa.
Contudo, excepcionalmente, desde que comprovado o comprometimento psíquico do
dependente químico em tempo ulterior ao efeito imediato da droga, pode-se proceder
à internação involuntária.
O usuário de substância entorpecente tem que ter resguardada a sua autonomia, não se pode, pois, impor um tratamento à sua revelia. Apesar de nos momento
de utilização das drogas, os toxicômanos estarem com o seu discernimento comprometido, com o passar dos efeitos da substância, eles podem voltar a ter plena
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capacidade e, por conseguinte, estarem aptos a decidirem o que consideram mais
conveniente para suas vidas.
The Existential Autonomy os Drug Addidtec Psychiatric Patient and the Brazilian Mental Health Policy
Abstract: This paper analyzes the need to assure drug addicts the respect towards their ability to make a
decision, in reference to the Brazilian Mental Health Law. Chemical addiction does not affect a person´s
judgment or perception; therefore, treatment cannot be imposed. Even if the drug addict suffers from
temporary loss of perception, their autonomy must be respected when they regain consciousness and the
drug effect is over. Only when the person is in full exercise of their critical judgment that they must be asked
about their interest in the suggested type of therapy. If emergency treatment is prescribed by doctor without
patient´s consent at the moment of crisis, their capacity to decide should still be respected regarding the
continuance of treatment or not. Even if drug addict has a wrong sense of perception concerning their
decisions, they must be assured the right to be responsible for their own lives.
Keywords: Autonomy. Civilian Capacity. Brazilian Mental Health Policy. Addict.
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JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, JÚLIA D’ALGE MONT’ALVERNE BARRETO, MARIA YANNIE ARAÚJO MOTA
RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Habeas Corpus, Processo nº: 0061555-96.2012.8.19.0000,
Relator: Des. Paulo Sergio Rangel do Nascimento, Terceira Câmara Criminal. Disponível em: <http://
www4.tjrj.jus.br/ejud/ConsultaProcesso.aspx?N=201205909685>. Acesso em: 06 jul. 2015.
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):
MENEZES, Joyceane Bezerra de; BARRETO, Júlia d’Alge Mont’Alverne; MOTA, Maria
Yannie Araújo. Autonomia existencial do paciente psiquiátrico usuário de drogas e
a política de saúde mental brasileira. Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, Belo
Horizonte, ano 4, n. 10, p. 123-138, set./dez. 2015.
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A força supralegal da teoria
concepcionista no direito brasileiro
Cláudio José Cavalcante de Souza Júnior
Acadêmico do Curso de Direito da UFRN. Pesquisador na base de Direito Internacional e
Soberania do Estado Brasileiro: Perspectivas Regional e Universal. E-mail: <claudio_souzajr@
hotmail.com>.
Thiago Oliveira Moreira
Professor Assistente da UFRN. Mestre em Direito pela UFRN e pela UPV/ES. Chefe do
Departamento de Direito Privado da UFRN. E-mail: <[email protected]>.
Resumo: A presente pesquisa visa suscitar a proteção jurídica da vida intrauterina no cenário tanto
internacional quanto pátrio, demonstrando, pois, a necessidade de criação de um diálogo permanente entre
os sistemas em pauta. Assim, é de maneira indispensável o estudo da tratativa legal e jurisprudencial do
tema em foco. Desenvolvido pela metodologia bibliográfica descritiva, demonstrando como esse fenômeno
de proteção da vida pré-natal encontra-se, nos dias atuais, entendido pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos e como o mesmo acontecimento se dá no sistema jurídico brasileiro. Surgindo assim esse
diálogo, faz-se necessário encontrá-lo de forma uníssona. Na pesquisa em pauta, como instrumento legal,
analisaremos a Convenção Americana sobre Direito Humanos de 1969, em especial a jurisprudência da
Corte Interamericana de Direitos Humanos, no intuito de demonstrar a necessidade, dada a analogia, de
ligação umbilical entre esses dois sistemas.
Palavras-Chave: Direito internacional. Direitos humanos. Nascituro. Corte Interamericana de Direito
Humanos. Controle de convencionalidade.
Sumário: Introdução – 1 A proteção da vida intrauterina no direito regional latino-americano – 2 A proteção
da vida intrauterina no direito brasileiro – 3 A necessidade de adequação convencional do direito estatal
brasileiro – Conclusão – Referências
Introdução
O estudo nos dias atuais sobre a proteção da vida intrauterina é certamente de
um todo complexo. Isso se dá por diversos fatores que figuram o Direito como ciência
e suas fontes de concretização metodológica. Sobre o tripé da legislação, doutrina
e jurisprudência, o que temos a respeito do tema diverge sobre a teoria da situação
jurídica do nascituro nas três citadas fontes.
Não podendo ser diferente, nunca há que se olvidar a esse importante critério
basilar da cientificidade que devemos ter ao aferirmos uma pesquisa de tão controverso tema. Não pretendendo solucionar a celeuma, mas estudando e buscando
enxergar as variáveis envolvidas e as medidas propostas por cada divergência.
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Cláudio José Cavalcante de Souza Júnior, Thiago Oliveira Moreira
Por isso, partimos da análise desse estudo com o intuito de promover o debate,
pois julgamos importantíssimo, para qualquer nível acadêmico e ademais, como é
papel do cientista do direito, para o envolvimento da pesquisa para a comunidade
científica e de seu papel para a proteção e efetivação dos direitos humanos, nesse
caso especialmente do nascituro. Justamente por isso ingressamos o tema no arcabouço jurídico dos direitos humanos.
Como visto anteriormente à busca de um melhor entendimento, a situação jurídica do nascituro no ordenamento pátrio é de um todo divergente, portanto, a análise
que melhor convém, seria direcionar o estudo da pesquisa às fontes do direito internacional. Promovendo, assim, um debate jurídico amplo.
Sendo assim, sentamos nossas bases de delimitação do objeto jurídico no direito
internacional dos direitos humanos, por acreditar na importância que o tema desenvolve nesse ramo do direito e pelo apontamento dado pelos princípios que dele emanam.
No sentido do estudo da positivação do tema em tratados internacionais, já que
essa referida pesquisa se detém ao diálogo de fontes, como já mencionado, destaca-­
se a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), conhecido também como o
Pacto de San José da Costa Rica de 1969.
Já no sentido da análise de entendimento do direito no cenário mundial, deteremos nossa pesquisa no mesmo critério de regionalidade, pois motivaremos o corte
epistemológico da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O que requer o estudo
da jurisprudência de tal órgão.
Ao referimos ao último ramo metodológico do direito, a doutrina, essa se coloca
como excipiente e um pouco até minuciosa. E se dá pelo fato da controversa que
envolve as teorias.
Por isso esse estudo se envolve com a luz da proteção de tutela da vida intrauterina no direito regional latino-americano, principalmente pelo viés normativo e
jurisdicional. E, por conseguinte, como sabedores, as implicações que essa tutela
interfere no ordenamento jurídico pátrio.
Em se tratando do ordenamento brasileiro, o conflito aparente entre a proteção
da vida intrauterina na efetivação da tutela jurisdicional da vida pré-natal nos move a
discutir as hipóteses em que esse tratamento gera conflito com interesses diversos,
como o aborto e a fertilização in vitro.
Por fim, nossa proposta conclusiva é suscitar o debate entre sistema normativo
brasileiro e o sistema regional americano de proteção dos direitos humanos, com
enfoque especial na tutela jurisdicional da vida pré-natal.
1 A proteção da vida intrauterina no direito regional latinoamericano
Há sempre que ser feito um exercício de interpretação acerca da possibilidade do status do não nascido. E três são as correntes teóricas que doutrinam essa
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A força supralegal da teoria concepcionista no direito brasileiro
situação jurídica: Teoria Natalista, Teoria Concepcionista e Teoria da Personalidade
Condicional.
Com relação às teorias, essas tentam explicar a situação jurídica do não nascido. Podemos, então, diante dessas três teorias, enumerar duas correntes que pretendem explicar tal complexidade acerca do tema.
A primeira, a Teoria Natalista, fundamenta que o início da personalidade se dá
com o nascimento com vida, comprovado através da respiração, até os mecanismos,
hoje, dispostos a aferir tal fato.
A segunda teoria, onde há a ressalva dos direitos do nascituro, denomina-se de
Teoria Concepcionista, que parte do princípio de que o direito da personalidade se
dá desde a sua concepção. Entretanto, os direitos patrimoniais relativos à herança,
doação e legado ficam condicionados aos nascidos com vida.
A terceira via teórica, essa não expressa em lei, mas que por construção de
entendimento interpretativo relata que os direitos do neonato, por ter nascido com
vida, retroagem desde a nidação.1 É a chamada personalidade condicionada, que se
apresenta como um desdobramento da Teoria Natalista.
Sendo assim, é partindo da problemática de qual teoria melhor se adapta ao
direito regional latino-americano em relação à situação jurídica do nascituro e qual
melhor protege efetivamente os princípios norteadores desse ramo do direito que
essa pesquisa posta sua proposta de enfrentamento.
Portanto, em se tratando do sistema regional latino-americano, é necessário
lançarmos base de estudo, principalmente, em dois sistemas que emanam e proporcionam o entendimento jurídico acerca de tal problemática. O primeiro é o sistema
normativo de tutela, o qual constitui-se de fonte primária de estudo, pois é de onde
emana a positivação do direito que ora se discute e que para essa pesquisa encontrará como instrumento jurídico internacional a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, também conhecida como o Pacto de San José da Costa Rica, promulgada
em 1969. E que previu em seus dispositivos uma Corte Interamericana de Direitos
Humanos, a qual para nós elegemos, como segunda fonte de estudo, o que se faz
necessário debruçarmos sobre a sua produção jurisprudencial relativo ao tema.
1.1 Sistema normativo de tutela
Como iniciado no item anterior, a situação jurídica do nascituro mostra-se um
tanto complexa, pois, o entendimento diverge entre as teorias, a doutrina e a jurisprudência. Isso pelo tema em questão se apresentar como um conteúdo técnico
extrajurídico. E com o avançar da nossa pesquisa, que tem por base fundamental
Nidação é o momento em que, na fase de blástula, o embrião fixa-se no endométrio.
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Cláudio José Cavalcante de Souza Júnior, Thiago Oliveira Moreira
esgotar o tema acerca da situação jurídica do nascituro e, por conseguinte, buscar
qual melhor teoria se mostra adequada à maior efetivação da proteção do neonato
e qual melhor se alinha com o direito internacional dos direitos humanos, é que
partimos para o estudo dessa situação de proteção da vida intrauterina no sistema
regional latino-americano.
Antes de discorremos o tema central, vale fazermos uma digressão acerca de
como se legitima a atuação do sistema interamericano de direitos humanos dentro do
contexto da Organização dos Estados Americanos (OEA). Tem como principais instrumentos jurídicos a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948) e
a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969). Tem esse sistema nomeado
a operação principal de seu funcionamento em dois organismos: a Comissão e a
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Trataremos aqui, especificamente, da
parte regional latino-americano, por tanto, dentro do sistema da OEA, nosso objetivo,
agora, é esmiuçarmos os dispositivos do pacto se San José e a jurisprudência da
Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Em se tratando do instrumento jurídico próprio, a CADH, tem em seu dispositivo
basilar para nossa pesquisa o artigo 4º, 1, que traz uma redação muito peculiar em
relação à matéria de direito a vida. Este dispõe: “Artigo 4º Direito à vida. 1.Toda pessoa tem direito de que se respeite a sua vida, esse direito deve ser protegido pela
lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida
arbitrariamente”.
Faz-nos saltar aos olhos a expressão “concepção” contida no dispositivo citado.
Portanto, vale lembrar a necessidade de que se importa pela Convenção de Viena
sobre o Direito dos Tratados (CVDT),2 a qual determina que as fontes do Direito
Internacional seguida explicitamente pela Corte interamericana. Tal fonte exige que
os tratados sejam interpretados de boa-fé e conforme o sentido corrente que foi
atribuído ao término do tratado em sua análise de precedentes3 sem olvidar do seu
contexto, tendo em conta seu objetivo e fim proposto pelo instrumento. Assim, torna-­
se importante análise global da situação, onde não podemos apenas destacar a simples menção do termo concepção como o adotado pelo Código Civil brasileiro. Há a
Convenção de Viena Sobre o Direito dos Tratados (1969). Seção 3 da INTERPRETAÇÃO DOS TRATADOS, Artigo
31 Regra Geral de Interpretação. 1. Um tratado deve ser interpretado de boa-fé e segundo o sentido comum
atribuível aos termos do tratado e à luz de seu objetivo e finalidade.
No Brasil, tal dispositivo foi aprovado pelo Decreto nº 7.030, de 14 de dezembro de 2009.
3
No mesmo instrumento jurídico citado na nota anterior, o artigo seguinte (art. 32) dispõe dos meios
suplementares de interpretação: “pode-se recorrer a meios suplementares de interpretação, inclusive aos
trabalhos preparatórios do tratado e as circunstâncias de sua conclusão, a fim de confirmar o sentido
resultante da aplicação do artigo 31 ou de determinar o sentido quando a interpretação, de conformidade
com o artigo 31: a) deixa o sentido ambíguo ou obscuro; ou b) conduz a um resultado que é manifestamente
absurdo ou arrazoado”.
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necessidade, e isso deve ser indispensável a todo jurista, de antever as imprecisões
da norma, por ser fadada esta a interpretação polissêmica de termos do vernáculo.
Partiremos, então, de forma sucinta, de analisar alguns precedentes que deram
forma e objetivo ao disposto artigo 4º, não na busca de julgar o conteúdo do artigo
em pauta, mas pretendendo expor seu teor e significado em consideração a seu
contexto, objetivo e fim.
Assim, como método de interpretação complementar aduzido na CVDT e com o
intuito de não levar a um entendimento absurdo nem tampouco ambíguo, devemos
analisar a vontade manifesta do dispositivo. Diante desse proposto método se evidencia o apoio à ideia de que o recém-concebido é considerado pessoa no sistema
interamericano. Como veremos, o marco inicial de proteção do arcabouço jurídico
internacional dos direitos da personalidade se dá com o momento da concepção.
Como sabedores, existiam três projetos originais da convenção onde continham
a proposta que dispusera da seguinte forma o dito artigo “Este direito estará protegido pela lei a partir do momento da concepção”,4 porém para suavizar o rigor técnico,
a comissão de revisão propôs intercalar entre as orações as palavras “em geral”,
porém, por razões de princípio fundamental pretendido pela CADH, mantiveram o
termo de referência ao momento da concepção.
Durante a tramitação da convenção, a norma relevante do Pacto de San José
da Costa Rica foi entendida como reconhecendo personalidade ao nascituro, não
obstante todas as suas consequências. Porém, o Brasil em vista ao texto, propôs
suprimir a expressão “em geral, a partir do momento da concepção”, argumentando
que apesar de seu código civil proteger o nascituro desde a concepção, seu código
penal permitia a prática de abortos quando a gravidez gerasse um perigo eminente de
morte da mãe ou quando essa gravidez fosse consequência de um ato criminoso de
estupro. Teve o país apoio dos Estados Unidos.5
Em sentido oposto, a Venezuela resistiu fortemente, argumentando que as leis
internas não poderiam ser invocadas para decidir os direitos civis e políticos a nível
universal. Por outra parte, a República Dominicana apresentou proposta de que não
fosse feito a referência do momento da concepção. Segundo esse país, o motivo pelo
qual sugeriu o suprimento da frase foi o fortalecimento de “conceitos universais dos
direitos humanos”. O Equador era de opinião contrária e se manifestou na eliminação
Em letra original: “Este derecho estará protegido por la ley a partir Del momento de La concepción.”
Secretaría General dela Organización de los Estados Americanos, Conferencia Especializada Interamericana
sobre Derechos Humanos: Actas y Documentos, OEA/Ser.K/XVI/1.2, San José, Costa Rica, 7-22 de noviembre
de 1969. Secretariat of the Inter-American Commission on Human Rights, Washington D.C., 1973, p. 121. En:
<http://www.corteidh.or.cr/tablas/15388.pdf [visitado el 07/07/2014]. En el texto de los travaux préparatoires
Brasil utilizó la palabra estupro. Sin embargo, el Código Penal de Brasil utiliza la palabra portuguesa estupro
como referida a violación. Cfr. Código Penal (Brasil) art. 128 y el título que antecede al art. 213.
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da expressão “em geral”, protegendo, assim, a vida desde o momento da concepção
em toda sua circunstância.
Por fim, a redação atual disposta no artigo 4º, 1, foi a que se encontra hoje
disposta no Pacto de San José, que anteriormente vimos e por motivos científicos se
fazia indispensável a análise e debates incipientes de sua construção e, por conseguinte, como se deu a motivação de impregnação de todos os termos à redação final
do artigo e qual a sua finalidade e objetivo em defender cada dispositivo e direito suscitado no instrumento. Ou seja, é a vontade final da discussão de como será gerado,
concebido, o direito regional posto em matéria de proteção à vida em âmbito latino-­
americano acerca do nascituro e como é fundamentado o sistema de tutela jurídica.
Diante do exposto não nos resta outra forma de melhor tentar entender como
se posta o direito produzido ou, melhor dito, como deve ser aplicado, senão por
meio da análise da jurisprudência daquela corte, que tem por finalidade, posta pela
Convenção, a proteção do amplo catálogo de direitos humanos estabelecidos no
referido Pacto de San José. O que passaremos a fazer no item a seguir.
1.2 Sistema jurisdicional
Conforme visto no tópico anterior, a normatividade do direito à vida e sua
proteção em relação ao momento pré-natal no direito internacional regional latino-­
americano se dá, em especial para essa pesquisa, pelo dispositivo encartado na
CADH. Sabedores de que por escolha da própria convenção em disciplinar um órgão
competente para a proteção dos direitos elencados no pacto é que surge, para nós,
a necessidade de analisar como esses órgãos interpretam os dispositivos ali convencionados e como se comporta diante das demandas de violação na efetividade de
proteção a esse direito.
Esses órgãos, aos quais incube tal função, são, por ordem, conforme disposto
na CADH, na parte II,6 intitulada meios de proteção: a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos
A Comissão, segundo disposto na Carta da OEA,7 é ela o órgão encarregado de
velar pela proteção dos direitos reconhecidos na Declaração Americana e sua principal
“Parte II – Meios de Proteção. Capítulo VI – Dos Órgãos competentes.
Artigo 33. São competentes para conhecer dos assuntos relacionados com o cumprimento dos compromissos
assumidos pelos Estados-Partes nesta convenção:
a) a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, doravante denomina a Comissão; e
b) a Corte Interamericana de Direitos Humanos, doravante denominada a Corte.”
7
“Capítulo XV – A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Artigo 106. Haverá uma Comissão Interamericana de Direitos Humanos que terá por principal função promover
o respeito e a defesa dos direitos humanos e servir como órgão consultivo da Organização em tal matéria.
Uma convenção interamericana sobre direitos humanos estabelecerá a estrutura, a competência e as normas
de funcionamento da referida Comissão, bem como as dos outros órgãos encarregados de tal matéria.”
6
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função é a de promover a observância e a defesa dos direitos humanos e de servir
como órgão consultivo da organização quando se tratar de tal matéria.
Com isso, ao tratar da interpretação dada pela Comissão em relação ao neonato e à sua devida interpretação ao artigo que norteia essa pesquisa é que se faz o
despertar inicial, sempre à luz da jurisprudência, ao caso, como se trata de comissão:
recomendações.
A comissão tem enfrentado o tema a ela exposto de maneira que em algumas
ocasiões sobre petições particulares e ao emitir recomendações aos Estados-Partes
tem adotado um sentido pragmático ao decidir sempre a adoção de medidas contrárias às leis que proíbem todo tipo de aborto direto. Porém, para melhor entendimento
e análise, devemos recorrer a casos concretos tramitados na Comissão.
O caso Paulina del Carmen Ramírez Jacinto, México, nº 21/07, Petición 161-02,
2007.8 De forma sucinta: algumas ONGs defendendo uma menor de idade, grávida,
em consequência de um estupro. Ela, com o consentimento de sua mãe, buscou
os meios legais para fazer o aborto, porém, muitos obstáculos foram postos para
realização desse ato. Diante de tais barreiras e da não realização da interrupção da
gestação, ela deu à luz a um menino — I.J.R.J. — o que tornou possível o ingresso
da petição perante a Comissão.
O estado do México pôs fim a esse caso mediante um acordo. Segundo este,
o país reconheceu sua responsabilidade em não implementar um procedimento
adequado que permitiria às mulheres procurarem a possibilidade de interrupção de
gravidez mediante critério de especialidade, nesse caso motivado por um crime de
estupro. Acordando, assim, em criar tal programa e indenizar pecuniariamente a jovem e seu filho.
Outro caso ocorrido em 26 de fevereiro de 2010, conhecido como caso “Amélia”
versus Nicarágua,9 fez com que a Comissão emitisse uma medida cautelar para garantia de direito dessa mulher contra o país. Referindo-se ao caso em que foi negada
atenção médica necessária à Senhora Amélia, grávida e portadora de um câncer, em
atenção à prática de quimioterapia ou radioterapia, que poderiam afetar o nascituro
provocando aborto. A Comissão decidiu que no prazo de cinco dias o país deveria
providenciar a atenção adequada e tratamento médico requerido pela interessada.
Assim, diante dos exemplos acima, indaga-se: qual a posição geral da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos?
A comissão concede o reconhecimento da personalidade ao não nascido com
todos os seus efeitos jurisdicionais, como pode ser observado em sua jurisprudência,
Informe da CmIDH, Solución Amistosa, Paulina del Carmen Ramírez Jacinto, México, Nº 21/07, Petición
161-02, 2007. Disponível em: <http://www.cidh.org/annualrep/2007sp/Mexico161.02sp.htm [visitado em
09/07/14>.
9
Informe da CmIDH, Medida Cautelar, “Amelia”, Nicaragua, MC nº 43/10, 2010 CmIDH. Disponível em: <http://
www.cidh.org/medidas/2010.sp.htm>. Acesso em: 09 jul. 2014.
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porém, destaca a necessidade de se alinhar às margens de interpretação de cada
caso concreto, para que melhor se adapte à efetiva proteção aos direitos ali conflitantes. Assim, essa discricionariedade teria algumas recomendações gerais, pois
a Comissão só se refere ao aborto como consequência dos direitos à integridade
pessoal e à privacidade, mas não faz uma análise que inclua considerações sobre
outros artigos da Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos. Vale destacar
que proveniente do artigo referido ao direito à vida é que condiciona o marco inicial
de proteção legal ao nascituro e todos os demais desdobramentos incluídos nesse
pacto.
Em sentido também de proteção dos direitos humanos, como vimos, outro órgão competente, para a efetivação desses, é a Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Sem embargo, a corte em sua jurisprudência distingue inicialmente o momento em que é dado o marco inicial de tutela, ao fazer distinção entre a fecundação
e a implantação. Ela considera que esse marco se dá a partir do segundo momento
ao qual o óvulo se encontra em contato direito e inseparável, no ventre materno,
ocorrendo o momento biologicamente denominado de nidação. Momento esse que
marca quando se dá a implantação esse, sim, é adotado pela Corte como o momento
da Concepção.
Para ela em sentido protetivo de direitos ao nascituro, e em consequência do
direito à vida, o marco legal se dá, portanto, com implantação no corpo da mulher,
pois sem isso as possibilidades de desenvolvimento são nulas.
Como visto quando expomos o entendimento da Comissão diante de exemplos,
faremos o mesmo com a Corte ao trazermos sua jurisprudência para melhor efetivar
e concretizar nosso entendimento.
Em análise mais recente de pronunciamento da Corte acerca do direito à vida, em
especial a pré-natal, que deu-se em 28 de novembro de 2012, a Corte Interamericana
de Direitos Humanos, pronunciou-se sobre o caso envolvendo a República da Costa
Rica, sobre um caso de proibição da técnica de reprodução humana de fertilização in
vitro.10
O fato se deu em saber se a corte internacional da Costa Rica gerou uma restrição desproporcionada ao restringir tal técnica alegando que a CADH expressamente
proibia a FIV,11 por interpretação dada ao artigo 4, 1, a qual exigia uma proteção
absoluta ao embrião.
Para entendermos de forma rápida, a técnica de fertilização in vitro consiste na
fecundação de vários embriões, descartados os que por análise são poucos predispostos ao bom desenvolvimento uterino, ou mostram-se mais frágeis que os demais,
Informe da CmIDH, Fondo, Gretel Artavia Murillo y Otros (Fertilización in vitro), Costa Rica, nº 85/10, Caso
12.361, 2010 CmIDH. Disponível em: <http://www.asamblea.go.cr/Centro_de_informacion/biblioteca/
Documentos%20compartidos/TA-FIV/Costa%20Rica/I85-10.pdf>. Acesso em: 08 jul. 2014].
11
Fertilização in vitro.
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em média são implantados cinco óvulos e, em seleção uterina, são ainda, após a implantação no útero, descartados em proporção a se deixar em média dois embriões.
Assim decidiu a Corte Suprema daquele país que tal técnica implica a morte
de um elevado número de embriões, constituindo um atentado ao direito à vida. A
análise da Corte ao enfrentar o caso se deu pelo fato de posicionar que o marco
inicial de proteção jurídica da situação do nascituro pela Convenção Interamericana
de Direitos Humanos não se dá no momento da fecundação. Em caráter suplementar
as decisões acima mostram que as FIV (fertilizações in vitro) são desprotegidas pela
CADH, no sentido de não haver proteção legal para tal. Porém, o importante para nossa pesquisa é que para argumentar o momento inicial de proteção do nascituro, ela
aduz, expressamente, que se dá com a concepção. Entendimento jurisprudencial do
Art. 4, §1. Assim, o importante para nós é o que aduz a jurisprudência em sentido reflexo. Diz que não é no momento da fecundação, mas sim no momento da concepção.
Como vimos, o entendimento jurisprudencial acerca do nascituro no sistema
internacional de direitos humanos latino-americano é de um todo abrangente, porém,
efetivo. As jurisprudências dos órgãos responsáveis pela efetivação dos meios de
proteção dos direitos encartados na Convenção são bem alinhadas e uníssonas.
Permitem-nos extrair a vontade de proteção do marco inicial da vida pré-natal ao
momento da concepção e validar esse entendimento no sistema legal protetivo do
Pacto de San José.
Sendo assim, para desenvolvermos melhor o pretendido nessa pesquisa vale
destacar como se dá a proteção dessa vida intrauterina no sistema jurídico brasileiro,
e consequentemente como esses sistemas, o brasileiro e o interamericano, estão
em acordo e quais as possíveis consequências desse não alinhamento para a direito
do homem.
2 A proteção da vida intrauterina no direito brasileiro
Conforme descrito no item anterior, onde oportunamente esclarecemos a importância dada aos direitos do homem em relação ao sistema de proteção latino-americano de direitos humanos, com enfoque ao direito à vida e a seu marco inicial, pois é
a partir dele que é dada ao homem condição de exercício de todos os demais direitos.
Como num simples parodiado clichê: “tenho vida, logo existo” — para o sistema jurídico internacional e nacional como sujeito dotado de direitos da personalidade, pois,
são esses últimos os perseguidos pela celeuma jurídica da questão do nascituro.
A essa questão, a situação jurídica do nascituro12 se mostra no sistema de
direito pátrio divergente e até de certo ponto oposta. A referência a essa garantia
Segundo Maria Helena Diniz, é aquele que há de nascer, cujos direitos o põe a salvo.
DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico Universitário. São Paulo: Saraiva, 2012.
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com relação a seu início está fundamentada no Código Civil brasileiro em seu artigo
2º cuja redação é: “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida;
mas a lei a põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Sendo a própria composição do dispositivo controversa em relação à adoção da teoria no início da
personalidade jurídica a ser abraçada pelo ordenamento brasileiro.
Outro ponto a ser analisado pela presente pesquisa se dá pelo entendimento
doutrinário em relação ao objeto em estudo, que são as teorias adotadas sobre o
entendimento da situação jurídica do nascituro. Com relação às teorias do início da
personalidade do nascituro podemos, pela letra da lei, enumerar duas correntes teóricas a esse dispositivo. A primeira, a Teoria Natalista. Essa teoria fundamenta que
o início da personalidade se dá com o nascimento com vida, comprovado através da
respiração, e por mecanismos hoje disposto a aferir tal fato.
A segunda teoria, formalizada da sequência da redação do artigo, ressalva os direitos do nascituro. A essa corrente denomina-se de Teoria Concepcionista e parte do
princípio de que o direito da personalidade se dá desde a sua concepção. Entretanto,
os direitos patrimoniais relativos à herança, doação e legado ficam condicionados
aos nascidos com vida.
Já a terceira via teórica, essa não expressa em lei, mas que por construção
de entendimento interpretativo relata que o neonato, por ter nascido com vida, seus
direitos de personalidade retroagem desde a nidação.13 É a chamada personalidade
condicionada, que se apresenta como um desdobramento da Teoria Natalista.
Por fim, para sistematizarmos o entendimento do sistema jurídico nacional em
relação à situação jurídica do nascituro, não nos resta outra fonte senão a jurisprudência, pois no sentido de pesquisa científica do direito na tríade legislação-doutrina-­
jurisprudência, essa última se revela como a essência do entendimento do Judiciário
sobre o assunto do não nascido no Brasil. Porém, nesta última a divergência também
se encontra clara. Em análise dá jurisprudência nacional, encontramos também a
divergência, que parece ser natural no caso do nascituro, da consideração do momento exato em relação ao início da personalidade civil. Principalmente decorrente de
qual teoria do início da personalidade é adotada pelos tribunais superiores. Havendo
divergências entre esses tribunais, como, por exemplo, no caso do Supremo Tribunal
Federal (STF), que em um de seus julgamentos reconhece que a Teoria Natalista é a
que deve ser adotada no Brasil, fazendo ao final da análise, de certa maneira, oposição às demais teorias.14
Nidação é o momento em que, na fase de blástula, o embrião fixa-se no endométrio.
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.510 DISTRITO FEDERAL RELATOR: MIN. AYRES BRITTO
19. Falo “pessoas físicas ou naturais”, devo explicar, para abranger tão-somente aquelas que sobrevivem
ao parto feminino e por isso mesmo contempladas com o atributo a que o art. 2º do Código Civil Brasileiro
chama de “personalidade civil”, literis: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas
a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Donde a interpretação de que é preciso vida
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Ao pesquisarmos em outro importante tribunal da nação, o Superior Tribunal de
Justiça (STJ), encontramos sua jurisprudência em sentido da defesa da adoção da
Teoria Concepcionista. Assim professou a renomada corte, reconhecendo ação de
danos morais ao nascituro, perfilhando que o início da personalidade se dá com a
concepção.15
Há, portanto, no caso da situação jurídica do nascituro, divergência legislativa,
doutrinária e jurisprudencial, logo a necessidade de arbitrar de maneira a favorecer
esse entendimento que emerge até dos tribunais excelsos desse país.
Existe, então, clara manifestação em proteger o homem quando nos referimos
aos direitos da personalidade e aos direitos humanos, o que não há, e isso se coloca
como fundamental para essa pesquisa, no país é uma fixação legal de quando se
dá esse início. Assim, decidimos de forma a garantir esse direito à vida, já que no
entendimento da Convenção Americana sobre Direitos Humanos ao qual o Brasil ratificou e incorporou em seu sistema jurídico pátrio e, como veremos no próximo item,
dotando-o de caráter supralegal.
Em regra, adota-se pelo sistema jurídico brasileiro a Teoria Natalista devido ao
forte laço patrimonialista oriundo do Código Civil de 1916. Também não podemos
olvidar que o atual código possui sua proposta remanescente da década de 70.16
Assim, mostra-se a crescente desatualização em relação à matéria. Emergente da
legislação, atinge assim a doutrina e jurisprudência do nosso sistema jurídico pátrio.
2.1 O direito constitucional-civil e os direitos do nascituro
Sabedores da funcionalidade do sistema jurídico, bem teorizado por Hans
Kelsen, em sua analogia à pirâmide jurídica, em que há prevalência da Constituição
Federal, não se determina tal supremacia pela forma, mas pelo conteúdo.17 O Direito
pós-parto para o ganho de uma personalidade perante o Direito (teoria “natalista”, portanto, em oposição às
teorias da “personalidade condicional” e da “concepcionista”)”
15
“REsp nº 399028 / SP Recurso Especial 2001/0147319-0
Relator(a) Ministro Sálvio De Figueiredo Teixeira (1088)
Órgão Julgador T4 – QUARTA TURMA
Data do Julgamento26/02/2002
Data da Publicação/Fonte DJ 15/04/2002 p. 232 RSTJ vol.161 p. 395 RT vol. 803 p. 193
Ementa DIREITO CIVIL. DANOS MORAIS. MORTE. ATROPELAMENTO. COMPOSIÇÃO FÉRREA. AÇÃO AJUIZADA
23 ANOS APÓS O EVENTO. PRESCRIÇÃO INEXISTENTE. INFLUÊNCIA NA QUANTIFICAÇÃO DO QUANTUM.
PRECEDENTES DA TURMA. NASCITURO. DIREITO AOS DANOS MORAIS. DOUTRINA. ATENUAÇÃO. FIXAÇÃO
NESTA INSTÂNCIA. POSSIBILIDADE. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
I – Nos termos da orientação da Turma, o direito à indenização por dano moral não desaparece com o decurso de
tempo (desde que não transcorrido o lapso prescricional), mas é fato a ser considerado na fixação do quantum.
II – O nascituro também tem direito aos danos morais pela morte do pai, mas a circunstância de não tê-lo
conhecido em vida tem influência na fixação do quantum” (grifo nosso).
16
Refere-se à origem de propositura da tramitação do atual Código Civil.
17
Constituição Federal, artigo 1º, III. Que define a prevalência dos Direitos Humanos, em suscitar o basilar
princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
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Constitucional de um país é dotado de importância fundamental, pois é em sua Carta
Magna que encontramos os parâmetros de validade das normas de um sistema.
Restando às demais leis alinharem-se e de forma uníssona a produzirem o mesmo
resultado para o direito ao caso concreto.
No caso em tela, não diferente dos demais ramos jurídicos pátrios, também
encontra sua validade no texto constitucional. O Direito à vida é assegurado pela
Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, com o status,
e não poderia ser diferente, de inaugurativo ao rol dos direitos e deveres individuais
contidos na Carta Magna em seu artigo quinto.18 Assim, demonstra por critério geo­
gráfico de colocação que a impossibilidade de garantia do direito à vida é também
uma impossibilidade de garantia de qualquer outro direito do homem.
Possui, também, tal norma revestida de impossibilidade de alteração a qualquer
modificação a seu texto por meio de emenda, são as chamadas “cláusulas pétreas.
Encontrando fundamento legal na própria Constituição no artigo 60, §4º, inciso IV,19 o
direito mencionado é, então, algo bem protegido e querido para a nação. Mostrando,
assim, critério norte para todas as outras leis que toquem na questão do direito à
vida.
2.2 Tutela jurisdicional da vida pré-natal
O direito à vida certamente comporta o direito de nascer. Por esse direito, todos
os seres humanos concebidos têm o direito de nascer. A interrupção direta ou o
desejo de outrem de que não se curse a vida do neonato é definida como crime pelo
legislador brasileiro. Encartado no Código Penal brasileiro, por se tratar de direito
indisponível, sua tutela jurídica tem arcabouço no artigo 12420 do referido código
ao tratá-lo como crime. Localizado na parte especial com o título de crimes contra a
pessoa, o capítulo ao qual se encontra positivado essa conduta é o I, cuja redação
expressa dos crimes contra vida.
Pode ser até certo ponto compreendido que, de certa feita, o Código Penal brasileiro tutela a vida pré-natal como bem indisponível, define como crime qualquer ato
que seja contrário à manifestação dita antijurídica àquela norma. E mais, reconhece
a situação do neonato como pessoa, porém, como não é de feitio do CP, não delimita
o marco inicial do momento vida, mas não restringe a proteção por não haver marco
balizador.
“Artigo 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se (...) a inviolabilidade
do direito à vida.”
“Artigo 60, §4º, Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
IV – os direitos e garantias individuais.”
20
“Provocar aborto em si mesma ou consentir que outro lho provoque:
Pena – detenção de um a três anos.”
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2.2.1 Aborto na hipótese de anencefalia na ADPF nº 54, STF
Antes de entramos na discussão jurídica acerca da hipótese de aborto de neo­
natos com anencefalia, faremos, pois, uma breve exposição para entendimento do
que vem a ser esse estágio biológico em que se encontra o nascituro e o porquê de
suas particularidades.
A anencefalia é proveniente de um defeito de fechamento da parte anterior do
tubo neural do feto, que ocorre entre o 16º e o 26º dia da gestação. Suas principais
características são a falta de desenvolvimento da calota craniana, do couro cabeludo
e, principalmente, o comprometimento da parte anterior do encéfalo, que origina os
hemisférios cerebrais.21
O que não necessariamente quer dizer que seja uma criança sem cérebro, ou
criança com morte cerebral, como vulgarmente as classificam. O que se vê na realidade dos casos é o nível de desenvolvimento desses hemisférios. Sendo assim,
crianças anencéfalas, dependendo do grau, são capazes de respirar sem ajuda de
aparelhos, são capazes de executar todas as funções de alimentação como sucção
expulsão de comida desagradável e levar os dedos à boca. Elas podem bocejar, se
afastar dos estímulos doloríficos e reagir ao incomodo com o choro.
No ano de 1995, O Conselho Ético e de Questões Judiciais da Associação
Médica Americana, conhecido pela sigla AMA, divulgou uma solicitação à comunidade
científica para que se empenhasse na investigação do estado de consciência das
crianças portadoras dessa má formação. A partir de então, a extração de órgãos,
para doação, dessas crianças passou a seguir o rito das demais pessoas em geral.
Devendo ser aferida a verificação completa e definitiva da suspensão de todas as
funções do encéfalo, o que assim, caracteriza a morte.22
O aborto no Código Penal está previsto como crime nos seguintes termos: tipifica como crime a conduta de provocar aborto em si mesma, em outra ou consentir que
outrem o provoque, não punindo a ação ou omissão se realizada na inexistência de
outro meio de salvar a vida da gestante (aborto necessário) ou se a gravidez resulta
de estupro — devendo o aborto ser consentido previamente pela gestante ou pelo
representante legal quando ela for incapaz. Por outro lado, o anteprojeto da reforma
do Código Penal brasileiro, apresentado ao Senado,23 dispõe que em alguns casos,
DAYRELL, Cintia de Moura: O direito à vida e à integridade física do anencéfalo. In: FIÚZA, César (Org.). Curso
avançado de Direito Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
22
A nossa legislação pátria também segue esse mesmo procedimento para o caso em questão
23
“Art. 128. Não há crime de aborto:
I – se houver risco à vida ou à saúde da gestante;
II – se a gravidez resulta de violação da dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de
reprodução assistida;
III – se comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem
a vida extra-uterina, em ambos os casos atestado por dois médicos; ou
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com critério aduzidos nos incisos, escolhidos pelo legislador, não configuram crime
de aborto essas hipóteses enumeradas como sendo excludente de ilicitude.
Em análise especial, o art. 128, inciso III, do anteprojeto prevê que a conduta
não será crime quando o feto é anencéfalo ou portador de grave doença que torna a
sua vida fora do útero totalmente inviável. Tal inferência é feita no caso em que, como
anteriormente explicamos, na possibilidade de predisposição da gestante, interromper o curso natural de geração do neonato ou permitir que outro o provoque.
O aborto anencefálico já vem sendo tratado por uma vasta corrente entre os
criminalistas como excludente da ilicitude da conduta, pois não haveria bem jurídico
a ser tutelado, na medida em que a criminalização do aborto visa à supressão de
condutas que violem o direito fundamental à vida, enquanto esta não estaria presente
em caso de anencefalia,24 o que vale não esquecer a existência de teorias contrárias
que defendem e tentam provar biologicamente a questão da situação do nascituro
anencéfalo e os diferentes graus de acometimento.
Não obstante, a discussão se encontra superada com o julgamento pelo Supremo
Tribunal Federal (STF) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) nº 54, quando foi declarada inconstitucional a interpretação de que o aborto
de feto anencéfalo constitui crime, pois o produto da gravidez não teria potencial de
vida, não existindo bem jurídico a ser tutelado pela tipificação.
Sendo assim, o anteprojeto se alinha à “normatização” na decisão do STF,
no sentido de dispor em lei o acórdão, abrangendo ainda outras moléstias além da
anencefalia que, do mesmo modo, inibem a vida do feto fora do útero, não obrigando
a mulher a arcar com um sofrimento sabendo que não haverá um filho após todo o
árduo processo biológico pelo qual passará.25
2.2.2 Fertilização in vitro e a Lei de Biossegurança
Outro caso controverso em relação à proteção da vida pré-natal que merece ser
destacado é o caso da fertilização in vitro.
Antes de entendermos o clamor jurídico da discussão, façamos um breve comentário do que vem a ser essa técnica. A Fertilização In Vitro (FIV) se constitui de
IV – se por vontade da gestante, até a décima segunda semana da gestação, quando o médico ou psicólogo
constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade.
Parágrafo único. Nos casos dos incisos II e III e da segunda parte do inciso I deste artigo, o aborto deve ser
precedido de consentimento da gestante, ou, quando menor, incapaz ou impossibilitada de consentir, de seu
representante legal, do cônjuge ou de seu companheiro” (grifo nosso).
24
BITENCOURT, 2009, p. 153.
25
Nessa trilha, Nucci (2009, p. 427) disserta que há duas teses: O juiz invoca, por vezes a tese da inexigibilidade
de conduta diversa, por vezes a própria interpretação da norma penal que protege a “vida humana” e não
a falsa existência, pois o feto só está “vivo” por conta do organismo materno que o sustenta. A tese da
inexigibilidade, nesse caso, teria dois enfoques: o da mãe, não suportando gerar e carregar no ventre uma
criança de vida inviável; o do médico, julgando salvar a genitora do forte abalo psicológico que vem sofrendo.
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técnica biológica em que, por meio da extração de um óvulo humano, posteriormente
fertilizado por um espermatozoide fora do corpo da mulher e manipulado in vitro,26
ocorrendo, assim, a fecundação.
Discorre vários pesquisadores que essa fase, biologicamente demarcada pela
fase pré-nidacional, independentemente de quanto antes ela seja, por exemplo, na
fecundação, na incubação dos óvulos fecundados, ou qualquer outro procedimento
que obtenha óvulos fecundados e não implantados, origina uma relevante questão
bioética. Para isso, para essa pesquisa, seremos nortearmos pela baliza fundamental
do processo biológico de formação do embrião em distinção, como já anteriormente
elencamos, entre a temporalidade fecundação e concepção.
Essa grande e controversa questão, muito mais discutida e, consequentemente, muito mais polêmica, delimita-se desse processo que compreende as duas fase
de desenvolvimento embrionário, ou seja, vai desde a fecundação, e especialmente
tratamos aqui na fertilização in vitro, até o ato da concepção que vem a ser a implantação do óvulo fecundado no útero materno.
Surgem diversos pontos a serem levantados com essa questão, porém entendermos a importância da titularidade do embrião humano pré-implantado em relação
a sua situação jurídica o nosso eixo principal de investigação ao caso. Portanto,
analisaremos as delimitações legislativa e jurisprudencial ao caso.
Outra grande celeuma envolvendo a situação do embrião in vitro está ligada ao
diagnóstico pré-implantacional, que consiste em um conjunto de exames e indagações realizadas sobre o embrião que permitem identificar precocemente má formações e patologias evidenciadas tanto no presente como no futuro.
Diante da assimilada definição, é traçado o perfil genético do embrião, que
se apresenta como um meio de solução para mulheres que desejam aumentar sua
possibilidade de levar uma gravidez até o fim com o intuito de conceber, assim, um
ser sadio. Ocorrido perfeitamente na fase pré-natal, porém, o que se controverte de
maneira, digamos, pouco ética é a possibilidade de eugenia e de escolha direcionada
do perfil biótipo de ser. Ocorrendo, portanto, como dito, uma seleção especificada
em padrões desejados. E com a implantação de um número quase sempre maior do
que o suportado humanamente para uma gravidez, ao 12º dia, através de exame de
imagem, o geneticista reexamina qual dos fetos implantados melhor se desenvolveu
e, por entendimento inverso e para que a gestação prossiga com maior garantia de
sucesso, ocorre a eliminação dos embriões que não satisfizeram tal evolução. Assim,
tanto na fase de seleção embrionária quanto na fase de diagnóstico pré-implantacional ocorre o congelamento ou descarte desses embriões. Pronto, aí está o grande
ponto de conflito entre a vida pré-natal em relação à situação da fecundação in vitro.
Do latim: dentro do vidro.
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Partiremos, então, para o ponto legislativo brasileiro inicial ao caso da fertilização in vitro. Basicamente encontramos na Lei nº 11.105, que regula os incisos II, IV
e V do §1º do art. 225 da Constituição Federal,27 estabelece normas de segurança e
mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente
modificados (OGM) e seus derivados (...). Essa é a conhecida Lei de Biossegurança.
Aduz em seu conteúdo as proteções aos Organismos Geneticamente Modificados
(OGM) o que por ocasião de interpretação do controverso artigo 528 foi medida de
suscitação no Supremo Tribunal Federal de pedido de inconstitucionalidade.
Da análise jurisprudencial que cerca o assunto, detenhamos atenção ao acórdão que a Suprema Corte constitucional do Brasil editou em resposta jurídica a um
remédio constitucional impetrado perante tal corte. Trata-se da ADI nº 3.510/DF,29
que sumariamente teve por objeto, especificamente, o artigo 5º da Lei nº 11.105,
de 24 de março de 2005, popularmente conhecida como a Lei de Biossegurança,
proposta pelo então Procurador-Geral da República.30
Resultou como julgamento o acórdão e que diante da relatoria do Informativo
nº 508,31 que publica e acompanha o voto, bem como os precedentes de julgamento
dos referidos ministros em sentido estrito, por maioria improcedente, ao pedido de
inconstitucionalidade do artigo do referente diploma.
Outra norma incipiente disciplinadora da matéria, mas que sem dúvida merece
destaque, é o Código de Ética Médica, de 1988, que apenas vagamente disciplina
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
§1º – Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:”
28
“Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de
embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas
as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já
congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data
de congelamento.
§1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.
§2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco
embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de
ética em pesquisa.
§3º É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime
tipificado no art. 15 da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.”
29
Não entraremos detalhadamente no mérito da questão, isso já foi feito pelo brilhante professor Leonardo
Martins em sua obra Bioética a liberdade científica, em parceria como autor alemão Bernhard Schlink, na qual
ele relata de forma pormenorizada o estudo de caso baseado na decisão do STF sobre a constitucionalidade
da lei de biossegurança e no direito alemão. O livro dedica o capítulo 2 como um todo a analisar o julgamento
da referida ADI pelo tribunal excelso. Traçando-o desde a síntese do caso e do procedimento até o acórdão, a
conclusão e o alcance da coisa julgada.
30
O processo de admissibilidade postulatória de proposta está disposto na Constituição Federal no artigo 103, VI.
31
No sítio: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo508.htm>. Acesso em: 13 jul. 2014.
27
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a questão. E isso se verifica lendo alguns de seus artigos32 referentes à matéria. O
que o coloca como importante na nossa mensuração do arcabouço jurídico protetivo
e disciplinador a questão da FIV.
3 A necessidade de adequação convencional do direito estatal
brasileiro
Como sabedores, os direitos internacionais dos direitos humanos oferecem
uma gama de proteção aos indivíduos somente pela qualidade de pessoa. Proteção
essa que extrapola até os limites da soberania de um país. Facilmente entendido com
a leitura até aqui do texto-pesquisa, visto nos itens anteriores. Surgindo assim uma
vasta e densa legislação internacional de proteção dos direitos humanos, que, como
sabemos, mescla-se com os direitos da personalidade em sua forma prática de se
apresentar.
Sendo assim, como o estudo em pauta envolve o direito internacional, com
menção legislativa ao direito civil pátrio, não podendo se desvincular do contexto de
que a adesão de um determinado tratado gera para o Estado-Parte a obrigação de
respeitá-lo e por conseguinte fazê-lo valer em seu território de forma legal.
Em nosso país, a ratificação desses tratados33 se dá por autoridade competente, e aqui se entende de forma procedimental da seguinte configuração. O chefe
do executivo, ou seja, o presidente da República Federativa do Brasil, em ato formal
ratifica um tratado internacional de direitos humanos, pois a ele compete tal procedimento. Após a devida, é enviado para o Congresso Nacional para que assim obtenha
formalidade e, após votação, deve-se ingressar tal instrumento normativo no nosso
sistema jurídico. Porém, daí surge a divergência. Ao entrar no ordenamento jurídico,
após as formalizações necessárias, qual é o status hierárquico dos tratados internacionais de direitos humanos?
Alguns doutrinadores os elegem como sendo de matéria constitucional. Outros
os classificam de matéria supraconstitucional. Alguns preferem ordená-los no mesmo
nível que as leis ordinárias.
Então, para tentar solucionar a questão, em 8 de dezembro de 2004, foi acrescentada ao texto magno uma emenda constitucional, a famosa EC nº 45, que por vez
“Art. 42. É vedado ao médico praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação;
Art. 43. É vedado ao médico descumprir legislação específica nos casos de transplantes de órgãos e tecidos,
esterilização, fecundação artificial ou abortamento;
Art. 68. É vedado ao médico praticar fecundação artificial sem que os participantes estejam de inteiro acordo
e devidamente esclarecido sobre o problema”.
33
O tratado de referência, como dito, é a Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
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fazia-se necessário um acréscimo na redação do artigo 5º de um novo parágrafo,34
cuja finalidade seria positivar a forma de procedimento legal frente a essa situação
de ingresso e formalização de norma estrangeira no ordenamento jurídico brasileiro.
E para tentar por entendimento a discussão, o Supremo Tribunal Federal (STF),
após análise sobre o tema, não chegou ao consenso de forma satisfatória e tampouco uniforme. Porém, julgou de forma decisiva. Nosso pretório excelso entende que os
tratados de direitos humanos possuem o status de norma supralegal (a partir de 3 de
dezembro de 2008) em julgamento do RE nº 466.343-1 / SP.
Com essa jurisprudência incorre uma verdadeira efusão de garantias em relação
aos direitos humanos e promove a obrigação relativa à devida observância, seja ela
de qualquer instrumento normativo que seja, aos tratados internacionais de direitos
humanos ratificados pelo Brasil. Sendo essa decisão um significativo salto de proteção jurídica aos direitos da personalidade.
A partir de então surge para o ordenamento jurídico uma espécie de duplo controle vertical de legalidade das leis ordinárias. O já conhecido controle de constitucionalidade, onde toda produção legislativa deve atender ao requisito de nunca e jamais
ferir qualquer direito constitucional, e o controle de convencionalidade, esse sendo
a devida observância das leis em serem compatíveis com os tratados de direitos
humanos ratificados pelo Brasil, que, conforme decisão do STF, possui caráter de
supralegalidade. Assim, dando um caráter quase que de necessidade ao Direito Civil
brasileiro em se adequar ao direito internacional, o que para nossa pesquisa resta
buscar a consonância legal entre a CADH e os dispositivos legais do Código Civil
brasileiro. A esse processo é dado, por entendimento doutrinário, como adequação
convencional do Direito Civil.
3.1 A convencionalização do Direito Civil
Como dito no item anterior, o processo pelo qual se dá a consonância do direito
civil brasileiro e das leis infraconstitucionais, sofre um duplo grau de adequação legal,
um constitucional e outro convencional.
Para nós, indispensável é a convencionalização da Lei Civil brasileira, que diploma o código em questão, frente à matéria legislativa internacional, que por mais da
ocasião do seu ingresso ter ganhado roupagem de lei comum,35 não o faz dela uma
lei comum, pois como visto no item 3.0 o status dado pelo entendimento jurisprudencial da corte excelsa do país é de supralegalidade. Assim, tal diploma é superior em
“§3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes
às emendas constitucionais.”
35
Aprovada pelo Decreto legislativo nº 27 de 25 de setembro de 1992.
34
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termos hierárquico do ordenamento jurídico legal nacional em razão de todo arcabouço legal. Ficando, pois, apenas inferior apenas em ralação à Constituição da
República Federativa do Brasil.
Com isso, deve haver o entendimento entre esses diplomas, porém o que existe
no cenário atual é a discordância de dispositivos entre a CADH e o CC/02, no que
respeita ao marco inicial do direito à vida, pois a garantia do direito à vida, em especial do nascituro, apresenta-se como forma de uma questão de convencionalidade,
necessitando de controle dessa. Dá sua suscitação ao caso devido a desrespeito da
Convenção Americana de Direitos Humanos. Após sua ratificação dada pelo Brasil, o
que passou a revesti-la de status supralegal, ocorre que quando lei ordinária fere o
seu texto, deve então disparar o controle de convencionalidade, que por ora pode se
abonar de forma difusa, com o juiz do caso concreto, pois esse desrespeito é nítido
ao analisarmos o texto36 que o positiva.
Assim, devido a esse controle, torna-se claro que a Teoria Natalista, essa sendo
a adotada em maior abrangência no ordenamento jurídico brasileiro, fere o controle
de convencionalidade bem como seu desdobramento na teoria da personalidade condicionada, como defendida por alguns doutrinadores.
Claro é a manifestação por parte do Pacto de San José da costa Rica em adotar
a Teoria Concepcionista. O que, portanto, reveste-a de caráter legal, em observância
de compatibilidade vertical. Sendo essa teoria a que o país deve, por via legal, adotar.
3.2 O diálogo com os precedentes da Corte IDH
Por concluso, nossa pesquisa, além de demonstrar a necessidade de adequação do direito civil brasileiro aos instrumentos internacionais que versam sobre direitos humanos, tende a ir além e demonstrar que é vontade tanto legislativa quanto
jurisprudencial do sistema interamericano de direito humanos em promover a proteção eficaz do direito à vida intrauterina.
Relembrando do tópico 1, no qual anotamos as devidas considerações de julgamentos demandados perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos e a
Comissão Americana de Direitos Humanos em especial a casos envolvendo a vida
intrauterina, podemos chegar ao fim dessa pesquisa e afirmar que o diálogo entre os
precedentes daquela corte cuja competência é conhecer dos assuntos relacionados
ao cumprimentos dos compromissos assumidos pelos Estados-Partes da Convenção
“Capítulo II – DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS
Artigo 3º – Direito ao reconhecimento da personalidade jurídica
Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica.
Artigo 4º – Direito à vida
1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral,
desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente” (grifo nosso)
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Americana sobre Direitos Humanos filia-se ao desenvolvimento claro da Teoria da
Concepcioniasta. O que, por respeito ao controle de convencionalidade, , também
deve ser o entendimento pátrio acerca da matéria.
E em razão do descumprimento, ou surgimento de lide, demonstrar através de
sua jurisprudência a ratio do dispositivo aludido e fundamentado. O que no caso da
proteção da vida intrauterina se mostra como proteção certa, positiva, garantida e
demonstrada assim, na produção jurisprudencial. Portanto, há sim um necessário
diálogo entre o Sistema Jurídico brasileiro e o Sistema Interamericano de Direitos
Humanos com o nítido intuito de promover o melhor entendimento e, por conseguinte,
uma melhor positivação na garantia da proteção da vida intrauterina, já que essa é
uma vontade pertinente elencada nos dispositivos daquele instrumento internacional,
ao qual o país deve, por força normativa, cumpri-lo.
Conclusão
Satisfeitos com o desenvolvimento da pesquisa, concluímos com os estudos,
até aqui importantes, sobre a proteção da vida intrauterina e que o diálogo entre o
Sistema Jurídico Brasileiro e o Sistema Americano de Direitos Humanos devem ser
algo, com a devida analogia, umbilicalmente ligados.
Não diferente de outros ramos da Ciência do Direito, mas devido ao grau de
questionamento entre a proteção da vida intrauterina e a crescente inovação dos
métodos de fertilização e manipulação biológica empregados ao caso, esse tema
se reveste de interesse universal, por isso a tratativa por parte dos instrumentos de
direito internacional sobre a temática.
Concluímos, então, com resposta ao quesito problema elencado em liminar,
pois, não iniciado nessa pesquisa em questão, mas sobrevindo de pesquisas
anteriores,37 a necessidade de balizamento do marco temporal de início da proteção
do direito à vida na especificidade da vida pré-natal. Temos assim, pois, que legalmente no sistema jurídico americano de proteção dos direitos humanos esse se dá
no momento da concepção, como visto. Tanto de maneira legal, na redação escrita
do artigo 4, 1. do Pacto de San José da Costa Rica, como da análise jurisprudencial.
O que infere dizer que o diálogo entre esses sistemas por força do visto controle de convencionalidade é de maneira também indispensável para o jurista atual
e atualizado.
Por fim, diante da divergência entre o tema em relação ao cenário legal pátrio,
não mais podemos enfrentá-los com dúvida, pois assim a solução para tal confronto
Livro. Uma visão crítica do direito de família, em referência ao capítulo: a proteção internacional dos direitos
da personalidade. A situação jurídica do nascituro no ordenamento pátrio: uma questão de controle de
convencionalidade, de nossa autoria.
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é de entendimento certo. O que existe sim, como dito, é a real necessidade de conectarmos o direito nacional à tratativa do cenário de proteção dos Direitos Internacionais
dos Direitos Humanos.
The Force Above the Law of Conception Theory in Brazilian Law
Abstract: This research aims to raise the legal protection of intrauterine life in the international scene
both as paternal, demonstrating therefore the need to create an ongoing dialogue between the systems in
question. Thus, it is indispensable way the study of the legal and jurisprudential theme in focus dealings.
Developed by descriptive literature methodology, demonstrating how this phenomenon protection of
prenatal life lies nowadays understood by the Inter-American Court of Human Rights and how the same
event occurs in the Brazilian legal system. Arising thus this dialogue, it is necessary to find them in unison,
which failing that favor to achieve that goal in respect to the conventionality of the phenomenon of civil law,
since this is how right adjustment tool regulatory control legislation that is jarring of international diplomas
which governs international laws that deal with human rights. What the research in question, as a legal
instrument, analyze the American Convention on Human Rights 1969, especially the jurisprudence of the
Inter-American Court of Human Rights in order to demonstrate the need, given the analogy of umbilical
connection between these two systems.
Keywords: International Law. Human Rights. Fetus. Inter-American Court of Human Rights. Block
Conventionality.
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Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 139-160, set./dez. 2015.
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A viabilidade e o conteúdo do
testamento vital no ordenamento jurídico
brasileiro à luz da Teoria do Fato Jurídico
Amanda Souza Barbosa
Mestre em Direito pela UNISINOS. Pós-Graduanda em Direito Médico pela UCSAL e em Direito
processual Civil pela LFG (Anhanguera-Uniderp). Bacharel em Direito pela UNIFACS. Integrante
dos Grupos de pesquisa BioTecJus (UNISINOS) e Teoria Contemporânea da Relação Jurídica
Processual (UFBA). Pesquisadora e Advogada. E-mail: <[email protected]>.
Anne Lacerda de Brito
MBA em Direito Civil e Processual Civil pela FGV. Graduada em Direito pela FDV. Advogada-Sócia
do escritório Brito & Simonelli Advocacia e Consultoria. E-mail: <[email protected]>.
Resumo: Este trabalho tem como objetivo geral analisar os contornos das diretivas antecipadas de vontade
no Brasil, com ênfase no testamento vital, destacando-se a importância da doutrina nesse âmbito. Para
tanto, foi adotado o método dialético e realizada pesquisa bibliográfica e documental. Tem-se como
principal resultado a demonstração de que, embora não haja lei regulando o instituto, o testamento vital é
compatível com o ordenamento jurídico. A conclusão a que se chega é que o testamento vital atende a todos
os requisitos do plano da validade da Teoria do Fato Jurídico delineada por Pontes de Miranda, devendo ser
admitido, sendo a doutrina de crucial importância na definição de suas caraterísticas e alcance.
Palavras-Chave: Direito à morte digna. Testamento vital. Validade. Teoria do Fato Jurídico.
Sumário: 1 Introdução – 2 Constitucionalização e personalização do Direito Civil e o fim da vida – 3 As
diretivas antecipadas de vontade: origens, disciplina e natureza jurídicas no Brasil – 4 Exame dos requisitos
de validade do testamento vital – 5 Considerações finais – Referências
1 Introdução
A promulgação da Constituição Federal de 1988 representou a assunção de um
novo paradigma pelo ordenamento jurídico brasileiro, cujo núcleo reside na dignidade
da pessoa humana. Esse novo olhar repousa sobre todas as esferas jurídicas, inclusive o Direito Civil e seu código, o qual deixou de ser a “Constituição do Direito privado”
para coexistir com leis extravagantes, responsáveis por conferir dinamicidade à teoria
jurídica, buscando adequá-la às demandas sociais que passaram a ser vistas como
relevantes, ou até mesmo passaram a existir diante da evolução tecnológica, por
exemplo. A doutrina se vê com a tarefa de, além de revisar os institutos clássicos do
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Direito Civil à luz dos valores constitucionais, debruçar-se sobre fenômenos que não
contam com previsão legal, atestando a sua (in)viabilidade.
Nesse contexto e das diversas possibilidades que surgiram para a ciência médica, ganha relevo a discussão sobre um direito à morte digna e à valorização da
autonomia privada do indivíduo em situação de terminalidade, preocupações que
culminaram na criação das diretivas antecipadas de vontade. Através desses instrumentos, a pessoa capaz determina os tratamentos aos quais gostaria de ser ou não
submetida em situação de terminalidade ou de impossibilidade de manifestar a própria vontade, ou nomeia pessoa responsável que faça valer os seus desejos. Como
se verá, não há lei em sentido estrito regulando a matéria, havendo apenas resolução
do Conselho Federal de Medicina (CFM) que orienta a conduta médica em situações
como essa. Além disso, ainda é grande o desconhecimento dessa possibilidade,
sendo poucas as pessoas que se preparam para o momento descrito, fatores que
justificam o desenvolvimento de pesquisas sobre o instituto no Brasil.
O objetivo geral deste trabalho, portanto, é analisar os contornos das diretivas
antecipadas de vontade no Brasil, com ênfase no testamento vital, destacando-se a
importância da doutrina na aplicação do Direito Civil neste âmbito. Para tanto, adotou-­
se a metodologia dialética e foram realizadas pesquisas bibliográfica e documental.
Cada item do desenvolvimento corresponde a um dos objetivos específicos, quais
sejam: a) compreender a importância da constitucionalização e da personalização
do Direito Civil para o estudo do fim da vida; b) apresentar o surgimento e as fontes
normativas das diretivas antecipadas de vontade, no intuito de situar o testamento
vital na Teoria do Fato Jurídico cunhada por Pontes de Miranda; e c) analisar os requisitos de validade do testamento vital enquanto negócio jurídico, demonstrando-se sua
viabilidade e principais características no ordenamento jurídico brasileiro.
2 Constitucionalização e personalização do Direito Civil e o fim
da vida
Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
(CRFB/1988), surgiu a necessidade do direito privado ser interpretado e exercido à luz
dos princípios e ideais trazidos pela novel Carta Magna, com destaque ao primado da
dignidade humana. O Código Civil (CC), anteriormente considerado a Constituição do
direito privado, assumiu um novo papel na ordem jurídica. Uma profunda modificação
ocorreu nas relações entre direito público e direito privado, tornando-se esmaecidas
as fronteiras entre eles, diferentemente do que se entendia na época das grandes
codificações do século XIX, baseadas na summa divisio herdada do Direito Romano
(TEPEDINO, 2008, p. 64-65). Hodiernamente é nítida a diferença de paradigmas entre
o CC de 1916 e o de 2002, assunto que será abordado nas linhas adiante.
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2.1 Impactos da CRFB/88 no Direito Civil: transição do viés
patrimonial para o existencial
O CC/1916 foi cunhado em um período em que o direito privado tinha como
valor fundamental o indivíduo, núcleo do Estado Liberal de Direito. Era dedicado a regular a atuação do sujeito de direito, notadamente o contratante e o proprietário. Nos
anos seguintes à sua promulgação, houve a proliferação de leis extracodificadas e
extravagantes que colocaram em xeque a centralidade do CC enquanto principal pilar
da regulação das relações privadas (TEPEDINO, 2008, p. 4-6). Enquanto o CC/1916
tinha um perfil individualista e propositalmente casuístico, a fim de manter o status
quo da burguesia e dos grandes fazendeiros, o CC/2002 nasceu em um contexto
de Estado Democrático de Direito, privilegiando, pois, o ser humano e o social em
detrimento da propriedade e da empresa, que eram o cerne da codificação anterior.
Consoante Cunha Júnior (2008, p. 56), “[...] no Brasil particularmente com
o advento da Constituição de 1988, surge o fenômeno da constitucionalização do
Direito Civil, com a sujeição de suas normas e institutos aos princípios e regras constitucionais”. A mudança acima mencionada reflete, portanto, a própria absorção dos
preceitos constitucionais como norte, implicando a transição de um viés patrimonial
para um existencial, com o alcance de uma nova compreensão do Direito Civil. O
constituinte definiu princípios e valores especificamente voltados às relações tradicionalmente reguladas por este ramo do Direito, a exemplo dos dispositivos que versam
sobre a propriedade, direitos da personalidade, atividade econômica privada e família
(TEPEDINO, 2008, p. 13). Impõe-se, sobretudo à doutrina, a tarefa de (re)construir a
estrutura e os conceitos do CC sob esta nova ótica.
Esse processo deve ter como ponto de partida a constatação de que a
CRFB/1988 se tornou o vértice axiológico do sistema jurídico, sistema este que deixa de ser fechado — numa perspectiva positivista exegética — e se torna aberto às
mutações provocadas por fontes não imediatamente legislativas, como é o caso do
instituto das diretivas antecipadas de vontade. Deve-se ter em mente que o Direito
é mais do que um sistema de princípios e regras, devendo ser compreendido como
um dado cultural e histórico, funcionando os princípios como elemento que conecta
a CRFB/1988 com a legislação infraconstitucional, bem como o sistema jurídico aos
outros sistemas sociais (NEGREIROS, 1998, passim).
Ferraz e Leite (2012, p. 41) identificam nessa transição o fenômeno da personalização do Direito, no qual os institutos jurídicos são concebidos em uma perspectiva funcionalizada, somente encontrando justificativa ao atender determinados fins,
voltados à máxima proteção da dignidade da pessoa humana. Nessa esteira, Farias
e Rosenvald (2014, p. 64) ressaltam que “[...] é de se perceber que os problemas
atuais (muito polêmicos e controversos) que permeiam a civilística reclamam solução a partir dos princípios constitucionais e da valorização existencial da pessoa
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humana”. É justamente nesse contexto que emerge importante temática, qual seja,
o direito fundamental à morte digna, e é com tais ideais enraizados que se discutirá
melhor o tema nas linhas a seguir.
2.2 Direito fundamental à morte digna no contexto do direito
privado
Tornar o homem centro do ordenamento jurídico e a dignidade da pessoa humana um fundamento da República brasileira leva à possibilidade de o indivíduo escolher
como viver ou morrer, e ao dever dos demais de respeitar tal vontade. A CRFB/88
resguarda os direitos à dignidade da pessoa humana, à liberdade, à autonomia privada e à inviolabilidade da intimidade e da vida privada e a proibição ao tratamento
desumano. Além de esses direitos exercerem a função de limitar a interferência do
Estado na esfera individual, devem ser respeitados também na relação entre particulares, tendo em vista a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
Segundo essa teoria, também chamada de eficácia dos direitos fundamentais
entre terceiros ou de eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, “[...]
as desigualdades estruturantes não se situam apenas na relação entre o Estado e
os particulares, como também entre os próprios particulares” (LEITE, 2011, p. 36),
viabilizando a exigência do respeito aos direitos fundamentais, ainda que na relação
unicamente entre eles.
O reflexo disso na relação entre médicos e pacientes é a assunção de uma posição mais ativa e respeitada do paciente, cuja relação com o profissional da saúde é
vista não mais como vertical, impositiva, mas horizontal, respeitando sua autonomia.
“O paciente de hoje [...] não é propriamente uma pessoa que deva esperar passivamente as determinações médicas, sem participar das decisões sobre sua saúde e,
em última análise sobre sua vida e sua morte” (DIAS, 2010, p. 193).
Os avanços da técnica médica propiciaram uma mudança radical no processo
de morte. De fenômeno natural vivido no seio familiar, ele passou a estar sujeito à
ingerência de recursos tecnológicos capazes de manter as funções vitais de um corpo
para além dos limites da enfermidade. Para Junges (1999, p. 173), essa possibilidade de prolongamento artificial da vida, além de dar margem à obstinação terapêutica,
exclui o doente de sua própria morte e substitui o convívio familiar pelo isolamento
das unidades de terapia intensiva (UTIs).
Não há como negar as benesses dos avanços tecnológicos e científicos proporcionados pela ciência médica, mas os procedimentos não podem se tornar um fim
em si mesmo, sendo cogitados como mais importantes que a dignidade humana.
Segundo estudo realizado pela Economist Intelligence Unit (2010, p. 11) sobre a
qualidade da morte no mundo, em que se analisaram as conversas existentes nesse
processo, número de leitos e de hospitais de cuidados paliativos no país, bem como
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a formação dos profissionais, o Brasil ficou em 38º lugar no total de 40 países, estando à frente apenas de Índia e Uganda. Os excessos no esforço terapêutico encontram espaço na própria formação dos profissionais de saúde, geralmente orientados
a lutar contra a morte e a favor da vida (GIOSTRI, 2002, p. 109). São diversos os
casos em que tratamentos machucam ainda mais, sem resultado profícuo, apenas
prolongando de forma fria a vida, “[...] que tornada tão artificial, acaba por não ter
nada a ver com ‘a vida’ e ‘a dignidade’ de um ser humano” (GIOSTRI, 2002, p. 110).
Nesse sentido, Giostri (2002, p. 116-117) faz interessante ponderação acerca
do pensamento ocidental sobre a morte, que, mesmo se tratando de “ponto final
inexorável da curva biológica” ainda tenta preservar a vida a qualquer custo em vez
de buscar propiciar ao paciente terminal uma boa morte, sem sofrimentos para ele e
seus familiares. Conferir uma boa morte é de grande importância e, em linhas gerais,
foi objeto da Declaração de Veneza sobre o Paciente Terminal em 1983, a qual prevê
no item 1 que “o dever do médico é curar quando FOR possível, aliviar o sofrimento
e agir na proteção dos melhores interesses de seu paciente”. Ninguém melhor que
o próprio paciente, sobretudo no contexto de evolução da relação médico/paciente
como visto, para informar quais são seus melhores interesses.
A referida declaração ainda assevera que o profissional deve se abster de empregar qualquer meio extraordinário que não traga benefícios para o paciente. Assim,
cabe a diferenciação das medidas existentes no meio médico: a) medidas ordinárias:
geralmente de baixo custo, pouco invasivas, convencionais e tecnologicamente simples; b) extraordinárias: costumeiramente caras, invasivas, heroicas e de tecnologia
complexa; c) fúteis: baixíssima chance de eficácia, não importando o número de
vezes em que são utilizadas (FRANCISCONI; GOLDIM, 2015).
É nesse diapasão que tem ganhado cada vez mais força a ideia de utilização
de diretivas antecipadas de vontade, documentos com o objetivo de não só expor,
mas vincular parentes e profissionais da saúde às vontades do indivíduo quando não
houver mais solução científica para a enfermidade que o acomete. Trata-se de institutos que viabilizam a participação do indivíduo em seu próprio processo de morte, no
momento em que se encontrar em estado terminal e não mais possa se manifestar
sobre a conduta a ser tomada em relação à sua saúde e bem-estar, tendo como
conteúdo os tratamentos fúteis na condição de terminalidade do paciente.
2.3 Diretivas antecipadas de vontade como exercício da
autonomia privada e respeito ao projeto de vida
A autonomia privada representa “o poder do sujeito de direito de tomar suas
decisões por uma ação comunicativa com outros sujeitos, por meio do diálogo”
(DADALTO, 2009a, p. 21). Amaral (2006, p. 345) esclarece que “[...] a autonomia
privada é o poder que os particulares têm de regular pelo exercício de sua própria
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vontade as relações de que participam, estabelecendo-lhes o conteúdo e a respectiva
disciplina jurídica”. Não se pode confundir esta noção com a autonomia da vontade.
Enquanto esta assume uma conotação subjetiva e psicológica, a segunda representa
o poder da vontade no Direito de forma objetiva e concreta.
Na perspectiva do Estado Democrático de Direito, tal autonomia possui íntima
relação com o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República
Brasileira (art. 1º, III, CRFB/1988). A autodeterminação, relacionada à escolha de
seus próprios caminhos e vontades, é imprescindível para a consolidação do mencionado princípio e fundamento constitucional, pois é o que torna “a vida humana
um bem precioso a ser protegido” (DADALTO, 2009a, p. 33) e empodera o indivíduo,
viabilizando a ele o papel de protagonista da própria vida.
Ela está voltada a variados tipos de aspectos e sujeitos. Pode se relacionar com
questões patrimoniais ou existenciais, bem como dirigir-se a particulares ou ao Estado.
A autonomia privada e o Estado são conceitos que se influenciam e complementam,
variando de acordo com o momento histórico. Segundo Dadalto (2009a, p. 19):
Obviamente, esse atrelamento se modificou na História. No Estado Liberal, modelo em que havia preponderância da vontade do indivíduo sobre
o Estado, a autonomia era vista como autossuficiência. No Estado Social
a autonomia do indivíduo é, em parte, suprimida pelo Estado, que agora
visa o “bem comum”. Por sua vez, no Estado Democrático de Direito, a
autonomia do indivíduo passa a coexistir pacificamente com as funções
estatais.
Significa dizer que a autonomia evolui juntamente com o ideal do Estado, sendo
ampliada na medida em que mais direitos fundamentais são concedidos à população,
restando ao ente público a função de garanti-los com base em uma nova perspectiva, pautada no desenvolvimento e na justiça social. Abandona-se a ideia de “bem
comum” para a coexistência da vontade do particular com as funções estatais. Essas
mudanças já refletem no Direito brasileiro a partir, em especial, da CRFB/1988, que
substituiu a aplicação irrestrita do pacta sunt servanda e a propriedade absoluta pela
consideração da hipossuficiência de uma das partes e função social da propriedade
e dos contratos.
É nesse contexto que tem se observado uma tendência de redução da intervenção estatal, ganhando força ideias de Direito Civil mínimo, como Direito de Família
mínimo — preconizada pelo Prof. Leonardo Barreto Moreira Alves, representada pela
mínima intervenção do Estado nas relações familiares, valorizando a autonomia privada. Consoante Alves (2009, p. 141), identifica-se atualmente um Direito de Família
Mínimo, no qual a autonomia privada daqueles que compõem a família deve prevalecer, como regra geral, de forma a lhes garantir o implemento dos seus direitos
fundamentais e o desenvolvimento da sua personalidade.
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Como se vê, via de consequência o mesmo ocorre com a regulação do próprio
projeto de vida e de morte, sendo possível aplicar a mínima intervenção naquilo que
couber também a essa esfera jurídica, tendo por fundamento a liberdade individual e
os preceitos constitucionais. A menção a um direito à morte com dignidade e autonomia adveio da sensibilização com a situação do paciente terminal exposto a tratamentos que prorrogam o momento da sua morte indevidamente, apenas causando-lhe
dor e sofrimento. Morrer com dignidade significa morrer em paz, no momento certo,
salvaguardando-se a integridade física e espiritual do enfermo (MÖLLER, 2007, p. 95).
De acordo com Jonas (1997, passim), ninguém tem o direito ou obrigação de
impor tais circunstâncias a uma pessoa. O direito de morrer é tão inalienável quanto
o direito a viver, cujas percepções variarão conforme a personalidade e trajetória de
cada um. O viver e o morrer não podem ser transformados em uma obrigação incondicional. Deve-se questionar a extensão do dever médico nestas circunstâncias, até
mesmo porque o médico pode se sentir coagido pelos familiares a agir em direção ao
prolongamento artificial da vida do paciente, sobretudo pelo temor de ser responsabilizado civil ou penalmente. As diretivas antecipadas de vontade podem evitar este
cenário, conforme se verá a partir de suas características e natureza jurídica.
3 As diretivas antecipadas de vontade: origens, disciplina e
natureza jurídicas no Brasil
O avanço da técnica médica fez surgir situações antes não imaginadas, que
demandam uma resposta do Direito, como o prolongamento artificial da vida. Neste
ínterim, as diretivas antecipadas de vontade se tratam, em verdade, de notório exercício da autonomia privada por parte do paciente. Possibilitam justamente que o indivíduo decida previamente a quais tratamentos aceita ou não ser submetido quando
sua reabilitação seja declarada impossível pelos médicos e, também, quem será o
responsável por responder por ele em determinadas circunstâncias, constituindo claramente forma de garantir-lhe o direito de autorregular a própria vida. Neste item, serão exploradas as origens das diretivas antecipadas de vontade, bem como as suas
fontes normativas no ordenamento jurídico brasileiro, no intuito de melhor apresentar
o testamento vital e localizá-lo na Teoria do Fato Jurídico.
3.1 Surgimento e características das diretivas antecipadas de
vontade
Os Estados Unidos da América (EUA) foram o primeiro país a regular as chamadas diretivas antecipadas de vontade (advance directives). Embora a primeira lei tenha sido publicada em 1796 pelo estado da Califórnia, apenas em 1990 o Congresso
Americano aprovou o Patient Self-Determination Act (PSDA), lei de âmbito federal que
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altera o Social Security Act para estimular a edição de leis estaduais sobre o tema
(GODINHO, 2012, p. 945-978). Diretivas antecipadas é um termo geral que denomina
as instruções referentes aos futuros cuidados médicos a serem ou não empregados
quando a pessoa não esteja em condições de expressar a sua vontade. O PSDA indica duas formas de efetivar as diretivas antecipadas de vontade: o testamento vital
(living will) e o mandato duradouro (durable power of attorney for health care).
O testamento vital consiste na definição, por pessoa plenamente capaz, do tratamento médico desejado nos momentos em que se encontrar em estado de incapacidade decisória absoluta, em situação de terminalidade. Admite-se, como conteúdo,
a recusa de medidas fúteis, que prolongam o estado de inconsciência sem trazer
qualquer sorte de benefício ao paciente, como a ressuscitação (CLOTET, 1993, p. 3).
O termo testamento vital pode causar confusão com a figura do testamento. Embora
ambos sejam atos unilaterais, personalíssimos, gratuitos e revogáveis, distinguem-se
quanto ao objeto e momento da produção de efeitos jurídicos. Diferentemente do primeiro, o testamento se destina, notadamente, à divisão de patrimônio e tem eficácia
mortis causa (GODINHO, 2012, p. 956-957). Para evitar mal-entendidos, Dadalto
(2009b, p. 526) denomina o testamento vital de declaração prévia de vontade do
paciente terminal.
O mandato duradouro, ou poder duradouro do representante para cuidados com
a saúde, consiste na designação de um responsável para a tomada de decisões
quanto à saúde do paciente, sempre que este último não estiver em condições de se
autodeterminar em razão de incapacidade temporária ou permanente. Este representante deverá realizar um juízo substitutivo, ou seja, deve tomar decisões consonantes
com aquela que seria a opção do paciente (CLOTET, 1993, p. 4). Seu objeto não se
restringe ao contexto de terminalidade. Logo, enquanto o testamento vital produz efeitos diante de um quadro de incapacidade definitiva, provocado pelo estado terminal
em que se encontra o paciente, o mandato duradouro tem eficácia também nos momentos de incapacidade temporária, por causas diversas. A despeito das diferenças,
os institutos podem ser conjugados, inclusive em um único documento (DADALTO,
2013c, p. 88-89).
Portanto, pode-se dizer que as diretivas antecipadas são gênero, tendo como
espécies principais o testamento vital e o mandato duradouro. Há ainda um terceiro
instituto, a decisão ou ordem antecipada para o cuidado médico, que reúne características dos anteriores. De acordo com Clotet (1993, p. 4), o sujeito, após conversa
com seu médico, familiares e amigos, decide a quais tipos de tratamento deseja se
submeter num futuro estado de terminalidade, além de designar um responsável
para assegurar a eficácia da declaração e auxiliar na sua interpretação. Para Sá e
Moureira, trata-se de instrumento mais completo, em que o sujeito estabelece os
procedimentos a que não quer se submeter e nomeia representante para fazer valer
a sua vontade (SÁ; MOUREIRA, 2012, p. 82).
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A viabilidade e o conteúdo do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro...
A principal distinção entre as duas espécies de diretivas antecipadas está no
modelo de decisão que cada uma representa, ponto a ser abordado a partir das
lições de Beauchamp e Childress (2002, p. 195). São três: modelos de decisão
substituta — julgamento substituto e melhores interesses, e ainda o modelo da pura
autonomia. No modelo de julgamento substituto, uma pessoa é indicada para tomar
decisões por um paciente incapaz, decisão esta que deve ser a que o paciente tomaria caso pudesse se manifestar de forma autônoma. Este seria o modelo vinculado
ao instituto do mandato duradouro.
Observe-se que o modelo do julgamento substituto parece desembocar no modelo da pura autonomia, ao se respeitar escolhas autônomas anteriores. Os próprios
Beauchamp e Childress (2002, p. 199) terminam por concluir que pode ser abandonado aquele modelo, considerando-se como parte do modelo da pura autonomia
as situações nas quais possam ser identificados julgamentos autônomos explícitos
feitos anteriormente. Tal se justifica porque ambos têm base na autonomia e apenas
ocorrem quando houver um julgamento autônomo relevante que constitua uma autorização. Quando o sujeito, ainda capaz, não expressou seus desejos anteriormente,
deve-se recorrer ao modelo dos melhores interesses.
O modelo dos melhores interesses assume duas formas: a) exame objetivo restrito – busca-se alguma evidência confiável de que o paciente recusaria o tratamento,
bem como a convicção do representante de que os fardos do prolongamento da vida
superam os benefícios, de forma que ainda há considerações em torno da autonomia; e b) exame puramente objetivo – um representante deve aferir, dentre as opções
possíveis, aquela que trará mais benefícios ao paciente, ponderando sobre os riscos
e custos de cada uma sob as lentes de um determinado critério de qualidade de
vida extraído indiretamente das preferências conhecidas do paciente (BEAUCHAMP;
CHILDRESS, 2002. p. 204-207).
Após tais considerações, o testamento vital parece representar o modelo da
pura autonomia, o qual implica o respeito às decisões autônomas prévias de pessoas
que se encontram em condição de incapacidade (DADALTO, 2015, p. 107). Havendo
ou não uma diretriz formal de ação, instrumentalizada via diretivas antecipadas de
vontade, os julgamentos autônomos prévios devem ser respeitados, desde que sejam conhecidos e diretamente relevantes para a ação em questão. Esse intento pode
esbarrar em alguns obstáculos, como dúvida sobre a confiabilidade das evidências,
casos em que o representante se apoia em diretriz que não se aplica à decisão em
questão, declarações imprecisas e falta de garantia de que o representante respeita e anuncia com fidedignidade os julgamentos autônomos prévios do paciente
(BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002. p. 199-204).
Dadalto (2015, p. 30-31) destaca que, atualmente, as diretivas antecipadas de
vontade são pouco utilizadas em seu país de origem. Dados do Ministério da Saúde
estadunidense apontam que apenas 25 a 30% da população possui tais diretivas.
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Essa baixa adesão tem sido atribuída ao desconhecimento da população acerca do
instrumento e à dificuldade em predeterminar a forma com que deseja ser tratado
diante de um diagnóstico fatal. Outros documentos de manifestação de vontade dos
pacientes vêm sendo criados, a exemplo do value history — documento em que
o indivíduo relata os seus valores para que orientem a tomada de decisões a seu
respeito quando não puder se manifestar e do physician orders for life-sustaining
treatment (POLST) —, documento em que o médico registra as alternativas de tratamento após conversar com o paciente ou seu representante legal. Este último é
o documento mais recente, de uso imediato, devendo acompanhar o paciente em
eventuais transferências.
3.2 Fontes normativas das diretivas antecipadas de vontade
no Brasil
No Brasil, inexiste lei federal regulando as diretivas antecipadas de vontade.
No âmbito estadual, a Lei Mário Covas em São Paulo (Lei Estadual nº 10.241/2009)
chega a assegurar os direitos de recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários
para tentar prolongar a vida e de optar pelo local da morte em seu artigo 2º, incisos
XXIII e XXIV. As Leis Estaduais nº 16.279/2006 (art. 2º, XXI)1 e nº 14.254/2003 (art.
2º, XXIX e XXX),2 de Minas Gerais e Paraná respectivamente, disciplinam garantia
semelhante. Contudo, a forma em que se dará esta manifestação de vontade não é
especificada. Há Projeto de Lei do Senado (PLS nº 524/2009) cujo escopo é disciplinar os direitos do paciente em estado terminal, contudo, a referência à possibilidade
de antecipação da vontade quanto ao tratamento de saúde a ser oferecido é bastante
limitada quanto ao seu objeto e à forma de registro.
De acordo com o art. 6º e parágrafos do projeto referido, é possível a limitação
ou a suspensão de procedimentos desproporcionais ou extraordinários destinados a
prolongar artificialmente a vida se houver manifestação favorável da pessoa em fase
terminal ou de seu representante legal. Contudo, é ressalvado que, se antes de se
tornar incapaz a pessoa manifestou recusa a essa limitação ou suspensão, sua vontade deverá ser respeitada. Essa declaração prévia de vontade deveria ser fundamentada e registrada no prontuário do paciente, bem como submetida à análise médica
revisora. No momento, o projeto encontra-se arquivado desde dezembro de 2014.
O diploma normativo, em sentido lato, mais representativo sobre diretivas antecipadas de vontade é a Resolução nº 1.995/2012 do CFM. Elas são conceituadas
“Art. 2º – São direitos do usuário dos serviços de saúde no Estado: [...] XXI – recusar tratamento doloroso ou
extraordinário.”
2
“Art. 2º. São direitos dos usuários dos serviços de saúde no Estado do Paraná: [...] XXIX – recusar tratamento
doloroso ou extraordinário para tentar prolongar a vida; XXX – a ter uma morte digna e serena, podendo ele
próprio (desde que lúcido) ou a família ou o responsável, optar pelo local de morte.”
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em seu artigo 1º como o “[...] conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no
momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua
vontade”. Tais diretivas serão levadas em consideração pelo médico, assim como as
informações prestadas por eventual representante nomeado para tal fim, devendo ser
desconsideradas as disposições que contrariem o Código de Ética Médica (CEM). O
quanto disposto nas diretivas antecipadas prevalecerá sobre qualquer outro parecer
de natureza não médica, inclusive o desejo de familiares.
Deve-se observar que o conceito de diretivas antecipadas de vontade é amplo e
se coaduna com os contornos originários do instituto. Dadalto (2013b, p. 108-109)
observa que é feita referência a paciente em estado terminal nos “considerandos” e
a pacientes em fim de vida na exposição de motivos. O próprio CFM, em nota de esclarecimento publicada em seu sítio eletrônico, afirmou que o médico deve respeito à
manifestação expressa do paciente quando dentro do conceito de ortotanásia, constante da Resolução nº 1.805/2006. Com isto, há quem diga que o art. 1º disciplina
o testamento vital. No artigo 2º, §1º, admitiu-se o instituto do mandato duradouro,
desde que vinculado à finalidade do primeiro.
Em janeiro de 2013, o Ministério Público Federal em Goiás ajuizou ação civil pública na qual requer a declaração de inconstitucionalidade e ilegalidade da Resolução
nº 1.995/2012. Dentre as razões colacionadas, estão o desrespeito aos limites
do poder regulamentar, o alijamento da família do processo decisório, o meio inadequado de registro das ditas diretivas, a presença de lacunas no que se refere à
capacidade do paciente ao redigir o documento, seus limites temporais de vigência,
possibilidade e forma de revogação e a possível mudança de compreensão do paciente. Liminarmente, foi requerida a suspensão da resolução em todo o território
nacional. Em maio do mesmo ano o pedido liminar foi negado. Para o juízo, o CFM
apenas regulamentou a conduta médica. Quanto à forma, tem-se que a manifestação
da vontade é livre, salvo disposição legal em sentido contrário (art. 107 do CC/2002),
devendo ser observado o artigo 104 do CC/2002 quanto ao seu conteúdo.
A sentença foi proferida em fevereiro de 2014, tendo o mérito sido julgado
totalmente improcedente. Contra ela foi interposta apelação, ainda pendente de julgamento. Além de confirmar que o CFM não extrapolou o seu poder normativo, o magistrado apontou que as omissões da resolução apontadas na exordial não representam
ameaça à segurança jurídica, na medida em que os requisitos legais para que o
paciente realize suas diretivas antecipadas de vontade estão disciplinados na própria
lei civil, a exemplo das regras sobre capacidade e declarações de vontade a serem
analisadas no terceiro item de desenvolvimento deste trabalho. Sobre a participação
familiar, destacou-se que não há limitação indevida, na medida em que os familiares
participarão na investigação sobre existência de diretivas antecipadas, terão direito à
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informação sobre qual seria o tratamento mais adequado, e dispõem dos meios de
tutela judicial caso acreditem que as diretivas padecem de vício ou se deparem com
ato que contrarie a lei civil ou penal.
Até mesmo porque, apesar do silêncio legislativo sobre a possibilidade das diretivas, não há também normas que as rejeitem. Ao contrário. Como já foi visto outrora,
levando-se em conta as normas constitucionais que asseguram o direito à liberdade,
à autonomia privada, à inviolabilidade da intimidade e da vida privada, dignidade da
pessoa humana e a proibição ao tratamento desumano, as diretivas antecipadas são
plenamente viáveis em nosso contexto jurídico. Acresça-se a tal raciocínio os dizeres
de Ribeiro (2005, p. 113), ao analisar o artigo 15 do Código Civil: “[...] ninguém,
nem com risco de vida, será constrangido a tratamento ou a intervenção cirúrgica,
em respeito à sua autonomia, um destacado direito desta Era dos Direitos que não
concebeu, contudo, um direito fundamental à imortalidade”.
A despeito das controvérsias, entende-se que a resolução representa um avanço
e estímulo à produção legislativa, que atenda às novas demandas sociais (ALMEIDA,
2012. p. 447). Dadalto (2015, p. 109) ressalta que se o CFM deixou de abordar
pontos importantes, isto se deve aos próprios limites de sua competência, de modo
que permanece a necessidade de regular o instituto por lei. Somente lei emanada do
Congresso Nacional poderá disciplinar de forma legítima temas como quem poderá fazer testamento vital, as formalidades do documento e seu conteúdo lícito (DADALTO,
2015, p. 36). Em meio ao silêncio do legislador, a doutrina civilista tem tido papel
central no delineamento dos limites e possibilidades do instituto, compatibilizando-o
com o ordenamento jurídico vigente. Os itens a seguir visam oferecer contribuições
neste sentido, iniciando-se pela localização do testamento vital na Teoria do Fato
Jurídico.
3.3 Natureza jurídica do testamento vital à luz da Teoria do
Fato Jurídico
Partindo-se da Teoria do Fato Jurídico como delineada por Marcos Bernardes de
Mello (2007, p. 111-112), à luz da obra de Pontes de Miranda, que o analisa nos planos da existência, validade e eficácia, tem-se que o testamento vital consiste em um
negócio jurídico unilateral. Explica-se. No primeiro plano, entende-se por fato jurídico o
fato ou complexo de fatos sobre o qual incide a regra jurídica, do qual poderá emanar
eficácia jurídica. Há dois elementos nucleares diferenciais: a (des)conformidade com
o Direito e a presença ou não de ato humano volitivo. De acordo com o primeiro,
tem-se atos lícitos ou ilícitos. Já sob o segundo critério, são identificados os: a) fatos
jurídicos stricto sensu — prescindem de ato humano para existir, a exemplo dos fatos
da natureza ou animal; b) atos-fatos jurídicos — há presença de vontade humana,
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mas o Direito a considera irrelevante, como a produção de obra artística; c) atos
jurídicos lato sensu — a vontade de praticar o ato constitui o cerne do fato jurídico.
O ato jurídico lato sensu consiste no “[...] fato jurídico cujo suporte fáctico (sic)
tenha como cerne uma exteriorização consciente de vontade, que tenha por objeto obter um resultado juridicamente protegido ou não proibido e possível” (MELLO, 2007,
p. 143). A exteriorização da vontade é o primeiro dos seus elementos constitutivos,
justificada pela necessidade de que o elemento volitivo da conduta seja conhecido pelas pessoas. Portanto, a reserva mental não é suficiente para compor o suporte fático
do ato jurídico, sobretudo por sua difícil ou impossível apuração. A vontade pode ser
exteriorizada via manifestação (gestos e ações) ou declaração (dizer ou registrar por
escrito uma dada vontade, tornando-a de conhecimento de outras pessoas). A norma
jurídica deverá especificar qual forma de exteriorização da vontade lhe é adequado,
lembrando-se que, quando exigida a mera manifestação, a declaração, por se tratar
de manifestação qualificada, está apta a compor o suporte fático respectivo (MELLO,
2007, p. 144-145).
O segundo elemento constitutivo do ato jurídico lato sensu é a consciência da
vontade. A pessoa que manifesta ou declara uma dada vontade deve estar consciente a respeito do conteúdo da vontade exteriorizada e da própria vontade de externá-la.
Por vezes, aquilo que é exteriorizado não coincide com o intuito ou espírito do indivíduo que realiza a conduta. Mello (2007, p. 146-148) destaca que a consciência deve
ser da manifestação em si, e não das consequências jurídicas da conduta. O autor
refere que, ao pegar um ônibus, ninguém está pensando em pactuar um contrato de
transporte, por exemplo. O terceiro e último elemento é o resultado lícito e possível.
No testamento vital todos estes elementos estão presentes: uma pessoa, de
forma livre e consciente, declara (preferencialmente por escrito) a quais tratamentos
ela deseja ou não se submeter em um momento de incapacidade superveniente,
quando não puder exteriorizar sua vontade e se encontrar em estado terminal — decisão que, se alinhada com a ortotanásia, é considerada lícita e possível pelo ordenamento jurídico brasileiro, como se verá. Resta analisar em qual espécie de ato jurídico
lato sensu o testamento vital melhor se encaixa: ato jurídico stricto sensu ou negócio
jurídico. No primeiro, a vontade apenas compõe o suporte fático da norma jurídica,
deflagrando efeitos previamente estabelecidos que são invariáveis, inalteráveis e inexcluíveis pelo querer dos interessados. Seus efeitos, portanto, são necessários ou ex
lege. É o caso do reconhecimento de paternidade, por exemplo.
Por outro lado, no negócio jurídico é conferida à pessoa a liberdade de autorregrar os seus interesses, estruturando o conteúdo eficacial das relações jurídicas dele
decorrentes — sua amplitude, surgimento, permanência e intensidade, observados
certos limites constantes da própria ordem jurídica. Os efeitos do ato jurídico, pois,
são queridos ou ex voluntate. O traço diferencial entre as duas figuras consiste na
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presença ou não do poder de escolha da categoria jurídica (MELLO, 2007, p. 153155). Com vistas a essa conformação, entende-se que o testamento vital se consubstancia em negócio jurídico, o qual:
[...] é o fato jurídico cujo elemento nuclear do suporte fáctico (sic) consiste em manifestação ou declaração consciente de vontade, em relação
à qual o sistema jurídico faculta às pessoas, dentro de limites predeterminados e de amplitude vária, o poder de escolha de categoria jurídica e
de estruturação do conteúdo eficacial das relações jurídicas respectivas,
quanto ao surgimento, permanência e intensidade no mundo jurídico.
(MELLO, 2007, p. 189)
Cabe referir, ainda, que o testamento vital é negócio jurídico unilateral, pois é
dotado de existência e eficácia autônoma. Em outras palavras, ele não supõe nem
provoca reciprocidade ou correspectividade de efeitos jurídicos, prescindindo de outra
manifestação de vontade para que exista. Trata-se de negócio jurídico inter vivos,
pois seus efeitos não estão condicionados ao evento morte, e extrapatrimonial, por
se referir a direito personalíssimo que não tem conteúdo econômico. Como se verá
adiante, é negócio jurídico não solene pela ausência de expressa previsão legal que
lhe exija forma ou solenidade especial, e atípico ou inominado, devido à inexistência
de tipo legal definindo-o (MELLO, 2007, p. 201-217).
A análise do testamento vital sob o plano da validade dos fatos jurídicos será
rea­lizada no próximo item, de forma pormenorizada. Quanto ao plano da eficácia,
cabe registrar que o testamento vital somente produzirá efeitos quando seu outorgante, em estado terminal, se encontrar impossibilitado de externar sua vontade de
forma livre e consciente. É da natureza do instituto, portanto, ser um negócio jurídico
sujeito a uma condição suspensiva. Clotet (1993, p. 5) condiciona a eficácia das
diretivas antecipadas à aferição da validade de seu conteúdo, pois se entende que o
consentimento deve ser recente. Isso porque, com o passar do tempo, aumentam as
chances de mudança do interesse do indivíduo, tornando-se a declaração incompatível com a sua vontade atual, além do eventual anacronismo entre as disposições e o
estágio da Medicina no momento de inconsciência.
Diante deste impasse, alguns países, como os EUA, preveem um prazo de validade. Santos (2011, p. 88) é favorável à fixação da renovação periódica das diretivas
como garantia de sua validade. Entretanto, entende-se que a possibilidade de modificação ou revogação a qualquer tempo das diretivas antecipadas é garantia suficiente
da atualidade da vontade. No mesmo sentido, Godinho (2012, p. 973), para quem a
fixação de um prazo desta natureza é cuidado excessivo, e Dadalto (2013b, p. 155),
pois a avaliação de eventual incompatibilidade já se encontra dentre os limites ao
conteúdo das diretivas antecipadas. Ademais, sendo uma presunção relativa, caberá
aos interessados demonstrarem, cabalmente, que aquela vontade deixou de prevalecer (GODINHO, 2012, p. 273).
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4 Exame dos requisitos de validade do testamento vital
Segundo Orlando Gomes (2007, p. 240), o negócio jurídico é o instrumento pelo
qual a autodeterminação de alguém é concretizada. Como visto no subtópico 3.3,
trata-se o testamento vital de negócio jurídico, sendo agora, depois de abordados
os planos da existência e da eficácia, o momento de verificar quais os requisitos
necessários para completar o plano da validade da escada ponteana. O artigo 104 do
CC/2002 preleciona que são pressupostos legais para a validade do negócio jurídico:
agente capaz; objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita
ou não defesa em lei.
Embora a manifestação de vontade livre e de boa-fé não seja mencionada pelo
dispositivo, é aduzida pela doutrina como um desses requisitos. Já que existir manifestação de vontade é imprescindível para que uma conduta seja considerada ato
jurídico em sentido estrito ou negócio jurídico, é preciso que essa manifestação seja
também qualificada para aferir a validade do negócio. Cada um desses requisitos
será visto com mais detalhes no que toca o testamento vital, lembrando ser esta função que cabe à doutrina não apenas por não ser função da lei “definir, classificar ou
sistematizar institutos jurídicos” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2013, p. 378), mas
também, ainda que se considerasse um objetivo da legislação, por inexistir qualquer
legislação acerca do instituto.
4.1 Manifestação de vontade livre e consciente
Sendo negócio jurídico, o testamento vital pressupõe a exteriorização de uma
vontade, como já foi abordado anteriormente, e ela deve se dar de forma consciente,
livre e desembaraçada (sem malícia ou vícios). Segundo Farias e Rosenvald (2014, p.
556-557), isso deve ocorrer com respeito à boa-fé e à autonomia privada, sob pena
de incorrer nos defeitos do negócio jurídico, os quais podem ser vícios de vontade
(discordância entre a vontade e a manifestação dela) ou vícios sociais (vontade se
mostra perturbada, mas manifestada com objetivo de causar prejuízo a alguém ou
fraudar a lei).
Dificilmente se vislumbra algum exemplo de vício social no âmbito do testamento vital, eis que voltado diretamente ao íntimo do indivíduo que quer fazer valer
seu projeto de vida e de morte, não sendo possível impingir dano a alguém através
de tal manifestação. Nessa seara, é necessário também que a manifestação ocorra
de forma prévia, quando ainda capaz o futuro paciente, como se verá adiante. Nesse
momento, pode haver vício de vontade, caso o conteúdo da manifestação seja contrário ao que realmente se deseja, sendo possível a utilização de tutelas judiciais
para declarar a nulidade. Assim, até mesmo por essa razão se exige a capacidade,
a consciência e a liberdade na tomada da decisão, que, como tem sido defendido
nesse trabalho, deve ser preferencialmente reduzida a termo.
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4.2 Capacidade do declarante
Capacidade é termo de dupla faceta, subdividindo-se em capacidade de direito
ou de fato. A primeira é preenchida por qualquer um, desde que humano. A segunda
“é a aptidão para exercer direitos [...] a impossibilidade do exercício é, tecnicamente,
incapacidade” (GOMES, 2007, p. 149-150). Recentemente os conceitos de incapacidade sofreram alteração com a edição da Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015
(Estatuto da Pessoa com Deficiência), a qual entrará em vigor 180 dias após sua
publicação oficial. A partir dessa data, serão absolutamente incapazes os menores
de 16 anos e relativamente incapazes os ébrios habituais, os viciados em tóxicos e
aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade
(antes tratados como absolutamente incapazes).
Deixam de ser tratados como incapazes, portanto, os portadores de deficiência
mental, sendo de alta clareza nesse sentido os arts. 6º e 84 da mencionada lei,
conferindo-lhes poder de decisão e exercício da autonomia privada. Faltando à pessoa
física plena capacidade, para que o negócio seja válido ela deverá ser devidamente
representada (incapacidade absoluta) ou assistida (incapacidade relativa). Vale observar que a capacidade daquele que institui um testamento vital deve ser averiguada
no momento em que externou o desejo e/ou editou o documento. Ou seja, aquele que
visa declarar as regras que regerão sua vida no momento em que não estiver mais
dotado de capacidade deverá declarar tais vontades enquanto capaz.
Deverá, ainda, “não estar circunstancialmente impedido de celebrar o ato, não
obstante goze de plena capacidade” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2013, p. 385).
Precisará ser legitimado para praticar um ato específico, preencher a capacidade
especial que o negócio exige, a exemplo de não ser indigno para herdar ou outorga
uxória para pessoa casada vender imóveis. Rodrigues (2007, p. 169) entende que
“A declaração de incapacidade não pode, de maneira apriorística, comprometer integralmente a autonomia privada conferida pelo ordenamento jurídico ao ser humano,
ainda que acometido de enfermidade ou deficiência física ou mental que afete seu
discernimento”. Observe que é nesse sentido que caminhou o Estatuto da Pessoa
com Deficiência (BRASIL, 2015) recentemente sancionado, como se observou em
linhas pretéritas, que manteve como absolutamente incapaz apenas os menores de
dezesseis anos.
Ainda essa restrição aos menores é criticada por Dadalto (2009a, 47-48).
A autora defende que o discernimento, e não a capacidade civil, é que deve ser
considerado. Até porque os médicos, ao realizarem determinados tratamentos em
seus pacientes, podem identificar nestes a ausência de percepção por algum efeito
colateral dos medicamentos, por exemplo. Considera, ainda, que a exigência da
capacidade civil é mera formalidade, devendo ser averiguada no caso concreto o
poder de compreensão e de decisão do paciente. Importante analisar, ainda, os
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fatores de vulnerabilidade a que estão expostos o indivíduo. Pithan, Benardes e Pires
Filho (2005, p. 128-132) destacam a insuficiência da noção de capacidade civil para
esta análise, pois a capacidade decisória deve ser avaliada de modo individualizado,
tendo-se em mente a possibilidade de um sujeito capaz se encontrar vulnerável para
tomar decisões e vice-versa.
4.3 Objeto lícito, possível, determinado ou determinável
“As vantagens patrimoniais ou extrapatrimoniais, consistentes em coisas ou
serviços que interessam aos indivíduos, constituem o objeto de todo o negócio jurídico” (GOMES, 2007, p. 332). Para que sejam válidos os negócios, os objetos devem
ser lícitos, possíveis e determinados ou determináveis. Gagliano e Pamplona Filho
(2013, p. 388) destacam que a licitude está relacionada a uma permissibilidade
normativa, ou seja, o ato não deve ser proibido pelo direito nem pela moral. Ao utilizar a “moral” como requisito, pode-se adentrar em um terreno incerto, por tratar-se
de expressão vaga, a ser preenchida segundo os critérios de cada indivíduo. Nesse
diapasão, vale traçar um panorama geral acerca da legalidade ou ilegalidade de algumas técnicas médicas, identificando seus pontos de convergência ou divergência
com o testamento vital, sendo abordadas, assim: eutanásia, ortotanásia, distanásia
e mistanásia.
A eutanásia, assunto mais estudado no Brasil dentre essas opções, é o ato
médico que provoca deliberadamente a morte do paciente a seu pedido, por se encontrar em situação de terminalidade e forte sofrimento (BORGES, 2007, p. 235).
A promoção do óbito pode se dar por ação (ex. injeção de substância letal) ou por
omissão (ex. suspender os meios de hidratação). Entende-se que a eutanásia implica
a prática de homicídio doloso privilegiado, pela presença de motivo de relevante valor
moral, encontrando forte resistência no meio médico e social (VILLAS-BÔAS, 2005, p.
179). O Código de Ética dos Enfermeiros, inclusive, veda essa prática em seu artigo
29, bem como o CEM proíbe que o médico abrevie a vida do paciente, ainda que a
seu pedido, no art. 41. Diante disso, o testamento vital que requeira a prática da
eutanásia estará eivado de vício, posto que o objeto não será lícito.
A ortotanásia foi abordada na Resolução nº 1.805/2006 do CFM, segundo a
qual é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que
prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável,
respeitada a vontade dele ou de seu representante legal. A prática não se confunde
com o abandono. Na própria resolução há a ressalva de que o paciente continuará a
receber todos os cuidados necessários para aliviar a dor, sendo assegurada assistência integral, conforto físico, psíquico, social e espiritual. Inclusive, caso tais objetivos sejam alcançados com a alta hospitalar, o doente terá direito a ela, conforme
o art. 2º da Resolução. Em resumo, vê-se que a ortotanásia consiste na abstenção
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da realização de tratamentos extraordinários, permitindo-se que a morte siga seu
caminho natural (DADALTO, 2013c, p. 55-56). Tal medida é de nítida viabilidade na
ordem jurídica pátria, a qual já foi confirmada judicialmente em sentença da 14ª Vara
Federal do Distrito Federal, no processo 2007.34.00.014809-3, sendo a técnica que
constitui o conteúdo possível do testamento vital no Brasil.
A distanásia (obstinação terapêutica) representa o máximo de prolongamento
da vida, sua manutenção a qualquer custo, visando retardar a chegada da morte
através de todos os meios possíveis ainda que implique maiores sofrimentos, sem
nenhuma perspectiva de cura ou melhora da qualidade de vida do paciente (BORGES,
2007, p. 236). Trata-se de prática eticamente reprovável, pois instrumentaliza o homem e o reduz à sua dimensão biológica. Villas-Bôas (2005, p. 74) chega a dizer que
a distanásia representa lesão à integridade física do paciente e cerceamento da sua
liberdade quando realizada à sua revelia, como forma de obter vantagens econômicas ou por vaidade profissional. É possível que as disposições do testamento vital
conduzam à distanásia. Por ser uma prática considerada “má medicina” por muitos
(HORTA, 2009, p. 4), vale lembrar que é dada ao profissional da saúde a liberdade
de renunciar o atendimento daquele enfermo, exercendo seu direito à objeção de
consciência de forma justificada, encaminhando-o para outro profissional (DADALTO,
2009a, p. 63).
Por sua vez, a mistanásia, “é a morte miserável, fora e antes da hora” (SÁ;
MOREIRA, 2012, p. 90), próxima às situações de falta de acesso a condições básicas de vida e de tratamento, de omissão de socorro e até mesmo de erros médicos
crassos. Como de imediato emana do seu conceito, a mistanásia não é um conteúdo
possível para o testamento vital. Portanto, em relação às técnicas referidas, não
subsiste a resistência em relação ao testamento vital, em razão de em nada se relacionar com a provocação da morte, mas tão somente estar vinculado ao exercício do
próprio projeto de vida. No tocante à possibilidade do objeto, deve ser física e jurídica,
cabível, portanto pela própria natureza do objeto e por não contrariar a legislação, a
moral e os bons costumes. Finalmente, deve ser determinado ou, ao menos, determinável, com elementos que permitam sua caracterização.
O testamento vital atende a todos esses requisitos, pois em que pese a inexistência de legislação sobre a matéria, ela também não é proibida pelo ordenamento.
Em vez disso, dispõe-se de diversos princípios constitucionais que resguardam sua
viabilidade. Informação importante diante do lapso temporal que pode existir entre
a expedição da diretiva e a situação de terminalidade é que não é possível ter como
objeto disposições que não sejam adequadas à patologia do paciente ou que estejam
superadas pelo avanço da Medicina, já que contrárias ao melhor interesse do paciente (DADALTO, 2009a, p. 64).
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“Ao contrário do pressuposto subjetivo de capacidade ‘lato sensu’, os requisitos objetivos devem subsistir no momento da eficácia do negócio” (GOMES, 2007, p.
334). Assim, se na situação em que se fizer necessário o conhecimento da vontade
do paciente, o objeto ali declarado não mais for lícito, possível ou determinado/
determinável, ela não se encontrará apta a produzir efeitos. É o caso, por exemplo,
da suspensão de tratamento paliativo em pessoas em estado vegetativo persistente,
possibilidade fortemente debatida entre juristas e bioeticistas. É preciso distinguir
as medidas que visam resguardar a dignidade humana das medidas fúteis, às quais
são direcionadas o objeto do testamento vital. Dadalto (2009a, p. 105) pontua como
objetos possíveis: não entubação, não realização de traqueostomia, suspensão de
hemodiálise, ordem de não reanimação, entre outros.
4.4 Forma prescrita e não defesa em lei
De acordo com a Resolução nº 1.995/2012 do CFM, as diretivas antecipadas
devem ser registradas em prontuário, quando comunicadas diretamente ao médico
pelo paciente. Na sentença da ação civil pública que questiona a constitucionalidade e legalidade dessa resolução, restou consignado que a normativa não elege o
prontuá­rio como instrumento da manifestação de vontade, tampouco como requisito
indispensável para a validade das diretivas antecipadas de vontade. Sua forma é
livre, o prontuário somente foi indicado como uma forma de registro.
De fato, ausente previsão legal a respeito, a forma das diretivas antecipadas
de vontade, em especial o testamento vital, é necessariamente livre, conforme se
extrai do art. 107 do CC/2002: “A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir”. Dadalto (2015,
p. 5) recomenda forma pública ao documento e registro em cartório especialmente
criado para este fim, como forma de garantia da segurança jurídica e efetividade no
atendimento à vontade do sujeito. Nas palavras da autora: “Defendemos a imprescindibilidade da lavratura das DAV por escritura pública, perante um notário, a fim de
garantir a segurança jurídica, tendo em vista que inexiste legislação específica no
país sobre o tema”.
Para Almeida (2012, p. 480), as diretivas antecipadas de vontade devem ser ratificadas por testemunhas, de modo a se conferir ao médico amparo necessário para
seguir as disposições do sujeito. Segundo Dadalto (2015, p. 8), exigir testemunhas
para o registro das diretivas antecipadas é ato arbitrário diante da inexistência de lei
regulando as formalidades ou solenidades deste documento no país. O Enunciado nº
37 da I Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), realizada
em 2014, acolheu as duas sugestões anteriores:
37. As diretivas ou declarações antecipadas de vontade que especificam
os tratamentos médicos que o declarante deseja ou não se submeter
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quando incapacitado de expressar-se autonomamente, devem ser feitas
preferencialmente por escrito, por instrumento particular, com duas testemunhas, ou público, sem prejuízo de outras formas inequívocas de
manifestação admitidas em direito.
Esta orientação se assemelha com as regras estipuladas na Espanha, país cuja
tradição jurídica se aproxima à brasileira. As diretivas antecipadas de vontade podem
assumir forma pública ou privada. Se pública, o registro poderá ser realizado em
cartório, quando as diretivas se consubstanciarem em escritura pública sem a exigência de testemunhas, ou ainda diante de um funcionário à serviço da Administração,
designado pelo Conselho de Saúde espanhol. Se privada, o documento deverá ser
assinado por três testemunhas capazes, e duas delas não poderá ter relação de
parentesco ou qualquer vínculo jurídico preestabelecido com o outorgante. Criou-se,
ainda, um Registro Nacional de Instruções Prévias, subordinado ao Ministério da
Sanidad y Consumo (Decreto nº 124/2007). O acesso ao registro é limitado ao titular
das diretivas, seus representantes legais ou a quem tenha outorgado poderes no
documento, além de determinados funcionários públicos (DADALTO, 2015, p. 3-4).
Em 2012, Portugal aprovou a Lei nº 25, a qual regula as diretivas antecipadas
de vontade no território nacional. De acordo com ela, as diretivas devem ser registradas perante o notário, sem necessidade de testemunhas, restando facultado ao outorgante a indicação do médico que o orientou na elaboração do documento. Também
é prevista a criação de um Registro Nacional de Testamento Vital, além de ter sido
estabelecido um prazo de eficácia para o documento de cinco anos, a ser renovado
quando decorrido este lapso temporal, sem prejuízo da sua revogação a qualquer
tempo (DADALTO, 2015, p. 4).
Santos (2011, p. 86-87), referindo-se à experiência holandesa, faz alerta importante: os notários tinham pouco conhecimento sobre as diretivas antecipadas.
Além de reconhecer a assinatura do outorgante e de certificar a sua capacidade,
limitavam-se a transcrever os desejos da pessoa, sem contribuir para a conformidade
do documento à lei, o que conduzia à elaboração de documentos obscuros e ambíguos. É necessário que informação de qualidade esteja ao alcance dos servidores, de
preferência que cruzem informações médicas e jurídicas.
Godinho (2013, p. 974) apoia a criação de um cadastro nacional como forma
de se conferir amplo acesso a tais disposições por parte dos médicos e hospitais,
como foi feito em países como Espanha e Portugal. Além disso, isto poderá conferir
às diretivas antecipadas uma maior efetividade, evitando-se que a declaração se torne inócua e que a vontade do paciente ali declarada seja de fato cumprida. Uma vez
criado este registro único, o cartório encaminharia as diretivas ao Registro Nacional
em prazo adequado. A título de procedimento a ser adotado, Dadalto (2015, p. 5-6)
sugere que sejam seguidas as recomendações do Registro Central de Testamentos
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do Colégio Notarial do Brasil, seção São Paulo, constantes no Provimento CG nº
06/1994. Enquanto não é editada lei específica a respeito, é importante que seja
uniformizada a forma de registro nos cartórios de notas, para que equívocos não
acarretem a nulidade do documento.
Deve-se esclarecer, ainda, que a confusão terminológica entre o testamento
vital e o instituto do testamento tem feito com que muitos cartórios pelo Brasil exijam,
para a realização do primeiro, os requisitos formais do testamento público previstos
no art. 1.864 do CC/2002. Como já se viu, o testamento vital — as diretivas antecipadas em geral — não são institutos do Direito sucessório, mas sim um negócio
jurídico unilateral que produz efeitos inter vivos e deve ser equiparado, portanto, às
declarações de vontade. As diretivas não poderão, ainda, ser incluídas em escrituras
púbicas de testamento público, constituição de união estável ou qualquer outro documento, pois referem-se a uma relação específica e sui generis afeita a questões
éticas que permeiam a relação médico/paciente (DADALTO, 2015, p. 7).
No intuito de reunir os testamentos vitais realizados no Brasil, foi criado o
Registro Nacional de Testamento Vital (RENTEV). Trata-se de banco de dados online que armazena o documento, possibilitando a consulta através de um código de
acesso. Recomenda-se, para que haja uma maior segurança, que o testamento vital
seja registrado também em um cartório. Trata-se de iniciativa da Profa. Dra. Luciana
Dadalto, uma das principais estudiosas do tema no Brasil (ESPECIALISTA..., 2014).
Destaque-se que as orientações ora levantadas se referem a uma situação ideal.
Contudo, na ausência de lei a respeito, é possível que as diretivas sejam manifestadas oralmente, cabendo aos familiares e pessoas próximas levar este fato ao
conhecimento dos médicos e buscar sua efetividade, priorizando sempre a autonomia
privada do paciente.
5 Considerações finais
A CRFB/1988 inaugurou novo paradigma no Direito privado, privilegiando os
direitos de ordem existencial em detrimento daqueles de ordem patrimonial. Isso
demanda que a doutrina empreenda esforços na releitura dos institutos clássicos do
Direito Civil, bem como na recepção de práticas surgidas de novas demandas sociais,
sobretudo aquelas que não contam com expressa previsão legal, caso do testamento vital. É nesse contexto de constitucionalização e personalização do Direito Civil
que emerge as considerações sobre um direito à morte digna, sobretudo diante da
possibilidade tecnológica de se manter biologicamente via uma pessoa para além
dos limites naturais que sua enfermidade lhe permitiria. Não raro os profissionais de
saúde incorrem na prática da distanásia, gerando dor e sofrimento ao paciente.
Isso se relaciona com o fato de que a cultura brasileira, imbuída do ideário
ocidental, possui uma grande resistência para tratar a morte como o fato natural e
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inevitável que é, vendo-a como um inimigo a ser combatido sob quaisquer circunstâncias. Como foi visto, esse pensamento não fica restrito ao imaginário social, mas
se estende à maioria das instituições de ensino de saúde, formando profissionais
cujo foco é combater a morte a todo custo, tal como um inimigo a ser derrotado. Por
vezes, são os familiares que pressionam a equipe médica a assim proceder. Aliado
a isso, a evolução da tecnologia e da própria ciência médica criaram situações em
que a dignidade humana é desrespeitada, prolongando-se a vida com a utilização de
métodos fúteis, que não mais trazem benefícios à saúde do paciente.
Há situações em que pacientes em estado terminal se encontram impossibilitados de se manifestar, ficando as decisões sobre a condução de seu tratamento a
cargo dos parentes e equipe médica. No intuito de garantir a sua participação neste
momento, foram concebidas as diretivas antecipadas de vontade. Trata-se de uma
decisão atinente ao projeto de vida, posto que tanto viver quanto morrer não podem
ser convertidos em obrigação incondicional. As diretivas têm o potencial de melhor
delinear a extensão do dever médico nessas circunstâncias, sobre as quais a ingerência do Estado deverá ser mínima. Viu-se que as diretivas antecipadas de vontade são
gênero, havendo duas espécies principais: o testamento vital e o mandato duradouro,
residindo o foco deste trabalho na primeira.
Inexiste previsão legal a respeito, sendo o diploma normativo mais robusto
sobre o tema a Resolução nº 1.995/2010 do CFM, atualmente contestada pelo MPF
em Goiás via Ação Civil Pública nº 1039-86.2013.4.01.3500. Constatou-se que, ainda assim, as diretivas antecipadas de vontade são viáveis por procedência lógica
de diversos princípios constitucionais e por representarem exercício da autonomia
privada, cada vez mais estimulada no atual contexto de Direito Civil mínimo. Após
delineados os contornos e fundamentos jurídicos do testamento vital no Brasil, o instituto foi situado na Teoria do Fato Jurídico enquanto negócio jurídico unilateral, inter
vivos, extrapatrimonial, não solene e atípico. Sendo assim, partiu-se para a análise
dos requisitos de validade do testamento vital, cujas principais conclusões serão a
seguir delineadas.
Nesta senda, é incontestável a contribuição de Pontes de Miranda para auxiliar
a doutrina civilista na oferta de soluções às novas demandas sociais. Como negócio
jurídico válido, o testamento vital se impõe no ordenamento pátrio a fim de conferir
dignidade ao ser humano no fim da sua vida, de acordo com a expressão de sua
própria vontade. Viu-se que a manifestação de vontade deverá ser livre, consciente e
desembaraçada, devendo o sujeito, quando ainda capaz, externar seu desejo quanto
aos tratamentos que deseja ou não se submeter quando se encontrar em estado
terminal e estiver impossibilitado de se manifestar. A análise da capacidade civil, que
sofrera grandes mudanças com o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência
(BRASIL, 2015), deverá ser realizada em conjunto com a avaliação dos fatores de
vulnerabilidade a que o sujeito possa estar exposto.
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No tocante ao objeto, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, o testamento
vital apenas se presta a garantir a ortotanásia, prática que consiste na suspensão
de tratamentos fúteis e extraordinários, permitindo-se que a morte siga o seu curso
natural. Frise-se que as suas disposições não surtirão efeitos caso se refira a objeto
ilícito, como a eutanásia e o suicídio assistido, bem como quando forem anacrônicas
em relação ao estado atual da Medicina. Por fim, quanto à forma, diante da ausência
de previsão legal, ela é necessariamente livre. Perquirindo aquilo que seria ideal,
a doutrina diverge quanto a alguns aspectos, a exemplo da exigência de testemunhas. O CNJ sinalizou que o testamento vital deverá ser feito preferencialmente por
escrito, podendo assumir forma pública ou privada, quando serão necessárias duas
testemunhas neste último caso. O registro em prontuário é importante para que a
equipe médica tome conhecimento do documento, mas não é seu meio necessário
de constituição, tampouco requisito de validade.
Ventila-se, ainda, a criação de um Cadastro Nacional de Testamento Vital, a
exemplo do que já foi feito em países como Espanha e Portugal. Atualmente, os
cartórios têm lavrado o documento e existe uma base de dados online cujo propósito
é reunir os testamentos vitais celebrados no Brasil e facilitar o seu acesso (RENTEV).
Com isto, fica demonstrada a viabilidade e as principais características que o testamento vital assume no Brasil. Acredita-se que a análise pormenorizada do instituto
enquanto negócio jurídico configura uma importante e original contribuição doutrinária
à sua incorporação pelo Direito brasileiro. Ao longo de todo o texto foi destacado o
papel crucial da doutrina na interpretação do Direito Civil diante desta nova demanda
social, de forma atenta às transformações ocorridas na interpretação civilista após
a CRFB/1988, à aplicação dos direitos fundamentais nas relações interprivadas e à
devida problematização de assuntos como esse, que derivam da evolução tecnológica e consequente surgimento de novos direitos.
Salvador/BA e Vitória/ES, junho de 2015.
The Living Will’s Viability and Content in Brazilian Law According to the Theory of the Legal Fact
Abstract: This paper aims to analyze the contours of the advance directives in Brazil, emphasizing the living
will, especially the importance of doctrine in this field. To do so, the dialectical method has been adopted
and a bibliographical and documentary research has been made. Its main result is the demonstration that,
although there is no law regulating the institute, the living will is compatible with brazilian legal system. The
conclusion reached is that the living will fills all requirements of the validity plan of the Theory of the Legal
Fact designed by Pontes de Miranda, and that it should be admitted, being important the doctrine paper in
defining their characteristics and scope.
Keywords: Right to a Dignified Death. Living Will. Validity. Theory of the Legal Fact.
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):
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Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 161-187,
set./dez. 2015.
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Avanços tecnológicos e proteção post
mortem dos direitos de personalidade
por meio do testamento
Flaviana Rampazzo Soares
Professora em cursos de pós-graduação em Direito lato sensu. Especialista em Direito
Processual Civil pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Mestre e doutoranda
em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Doutoranda
bolsista Capes na linha de pesquisa: Eficácia e efetividade da Constituição e dos Direitos
Fundamentais no Direito Público e Direito Privado. E-mail: <[email protected]>.
Ísis Boll de Araujo Bastos
Professora em cursos de pós-graduação em Direito lato sensu e mediadora de conflitos.
Especialista em Direitos Fundamentais e Constitucionalização do Direito pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Mestre e doutoranda em Direito pela
mesma instituição. Doutoranda bolsista Capes na linha de pesquisa: Eficácia e efetividade
da Constituição e dos Direitos Fundamentais no Direito Público e Direito Privado. E-mail:
<[email protected]>.
Resumo: Merecem atenção os desafios que os avanços tecnológicos trazem ao Direito Civil, notadamente
em relação a alguns direitos de personalidade em perspectiva pós-morte, especialmente em matéria de
nome, de imagem e de voz. Objetiva-se discorrer sobre esse tema destacando-se a visão doutrinária a
respeito e o seu protagonismo na busca de alternativas para melhor proteção aos direitos de personalidade.
Propõe-se analisar o tratamento do tema no direito das sucessões e a necessidade de atualização do
conceito e função desse ramo do direito, principalmente ao deparar-se com tais desafios. Existe uma
necessidade manifesta de reformulação da tradicional visão patrimonialista do direito das sucessões,
evoluindo para uma visão mais personalista do referido instituto, como um possível e eficiente modo
de proteção da vontade pessoal, ainda em vida, na definição dos desígnios pós-morte relacionados aos
atributos nome, imagem e voz.
Palavras-Chave: Direito Civil. Direitos de personalidade. Direito das sucessões. Novas tecnologias. Direito
de imagem, de voz e de nome.
Sumário: 1 Introdução – 2 Os direitos de personalidade como voz essencialmente extrapatrimonial – 3 A
dinâmica doutrinária da proteção ao nome, imagem e voz – 4 Avanços tecnológicos e novas expressões da
imagem – 5 Horizontes da exploração e de proteção póstuma de imagem, nome e voz – 6 A possibilidade
de proteção da vontade pessoal pós-morte: novas feições do testamento a servir como instrumento para
essa finalidade – 7 Conclusões: o direito das sucessões como meio de proteção de interesses imateriais
pessoais – Necessária desvinculação ao patrimonialismo clássico – Referências
1 Introdução
O estudo do direito das sucessões mortis causa sempre costuma ser vinculado a
aspectos patrimoniais, sendo comum prelecionar que esse instituto tem o propósito de
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regular a transferência do patrimônio de quem faleceu aos seus herdeiros ou legatários,
conforme dispuser a lei (legítima) ou a vontade da parte (nesse caso, testamentária).
Tanto assim o é, que a palavra “suceder” tem a conotação de substituição, ou
seja, grosso modo, substitui-se a titularidade de direitos e obrigações, na sucessão,
observadas as disposições e limitações pertinentes.
Nesse cenário, há a possibilidade de que a pessoa defina, antecipadamente e
ainda em vida, a destinação que melhor lhe aprouver ao seu patrimônio disponível,
quando falecer.
Porém, o Direito Civil não é, e não deve ser, estagnado e tampouco é impermeável aos acontecimentos do mundo e da vida.
Novas tecnologias são provocadoras de um necessário aperfeiçoamento do
direito civil, de um novo pensar a respeito das funções e extensões dos institutos
jurídicos, e o direito das sucessões não é infenso a esse desafio.
Fenômenos como redes sociais, manipulação digital de imagens e sons, por
exemplo, são exemplos estridentes das novas potencialidades dos direitos sucessórios em matéria de interesses extrapatrimoniais, sobretudo dos direitos de
personalidade.
É sobre tais aspectos que esse artigo se debruça, mapeando pontos importantes para uma adequada proteção das dimensões de direito de personalidade, no
pós-morte, através de uma manifestação de vontade do titular, em vida (testamento).
2 Os direitos de personalidade como voz essencialmente
extrapatrimonial
Costuma-se dizer que o conteúdo da personalidade é formado por uma qualidade, “a qualidade de ser pessoa” (VASCONCELOS, 2006, p. 5), em face do reconhecimento da sua dignidade. Pessoa e direitos de personalidade, assim, seriam ligados
por um “nexo de natureza orgânica”, “que se radica na natureza das coisas” (DE
CUPIS, 1961, p. 48).1
Mas essas expressões trazem um grau de vagueza que, ao mesmo tempo que
trazem uma amplitude permissiva, podem não ter suficiente precisão.
Assim, mais especificamente, a personalidade se constitui por um conjunto de
atributos corpóreos e incorpóreos, que satisfazem “necessidades de ordem física ou
moral” (DE CUPIS, 1961, p. 26)2 da pessoa humana, e cada um desses atributos se
Adverte Gustavo Tepedino (1999, p. 42) “[...] todos os direitos inatos são direitos da personalidade, embora
nem todos os direitos da personalidade sejam inatos (ex., o direito moral do autor, cuja existência pressupõe
a criação intelectual)”. Em 1954, Alberto Trabucchi (1954) já indicava os mesmos caracteres dos direitos de
personalidade.
2
Refere Goffredo Telles Júnior (1977, p. 315) que os direitos de personalidade são direitos subjetivos de
primeiro grau, um direito de defender o primeiro bem jurídico da pessoa (“o bem de existir como pessoa”).
1
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revela com força própria e proteção jurídica exclusiva,3 assegurando a integridade dos
elementos de interiorização e exteriorização das características emocionais, físicas e
comportamentais do ser humano.
Os direitos de personalidade, conforme dito, decorrem do reconhecimento de
uma dimensão particular e até mesmo social do princípio da dignidade, e desta podem
ser extraídos quatro princípios jurídicos, que são: a igualdade (notadamente a não
discriminação arbitrária), a liberdade (para garantir a autonomia ética), a integridade
física e moral, e, por fim, a solidariedade (BODIN DE MORAES, 2003, p. 116 e ss).
Não há expressão econômica imediata nos direitos de personalidade, pois constituem-se como direitos subjetivos com feição notadamente imaterial4 (mesmo que
se reconheça que os atributos de personalidade sejam utilizados para obtenção de
benefícios patrimoniais5), qualificados pela capacidade humana de conscientemente
conduzir-se e de proporcionar interações subjetivas, de acordo com as circunstâncias
que a pessoa entender mais convenientes, atendendo à sua autodeterminação, respeitando a sua capacidade e guiando-se de acordo com o direito.
Os direitos de personalidade compreendem as condições necessárias tanto
para a conservação quanto para o desenvolvimento da personalidade, concebidos
sob perspectivas de direito objetivo e subjetivo, sendo a tutela objetiva de natureza
indisponível, posta no campo da heteronomia e composta pelo “dever de agir perante
os outros” e o direito subjetivo de personalidade, de natureza disponível, assentado
na seara da autonomia privada, como um direito de defesa da dignidade pessoal própria, inclusive com a possibilidade de uso dos meios adequados e juridicamente admissíveis para que essa defesa seja exitosa (VASCONCELOS, 2006, p. 24-26 e 530).
Em matéria de tipificação, a doutrina esclarece que, apesar de não ser exaustiva ou fechada (VINEY, 1982, p. 317),6 costuma ser classificada como direito à
vida, à integridade física, à inviolabilidade moral, à honra, à privacidade, à identidade
pessoal e ao nome, voz e imagem.
Para o estudo proposto, o enforque se dirige ao estudo do nome, imagem e voz.
Limongi França (1980, p. 411) esclarece que os direitos de personalidade compreendem o direito à integridade
física (direito à vida, ao alimento e sobre o corpo próprio ou alheio, vivo ou morto, inteiro ou sobre determinadas
partes); à integridade intelectual (liberdade de pensamento, direito de autor e de inventor) e à integridade
moral (liberdade civil, política e religiosa, honra, segredo, imagem e identidade). Carlos Alberto Bittar (1989, p.
59) divide-os em direitos de personalidade físicos (vida, corpo, imagem, voz, cadáver e locomoção) e psíquicos
(liberdades, higidez psíquica, intimidade e segredos).
4
Sobre a noção de atributo em relação aos direitos de personalidade, vide ARNOUX, 2003, p. 251. Também
ressaltando a extrapatrimonialidade, vide LÔBO, 2001, p. 86.
5
Importante analisar a Declaração Universal dos Direitos no Homem: “Art. 1º. Todos os homens nascem livres
e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros
com espírito de fraternidade”.
6
Paulo da Mota Pinto (2000, p. 68) diz que o direito geral de personalidade é aberto de forma “sincrônica e
diacrônica” em face da constante ameaça à pessoa humana. No mesmo sentido preleciona PERLINGIERI,
1997, p. 155-6.
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3 A dinâmica doutrinária da proteção ao nome, imagem e voz
Conforme visto no tópico precedente, o reconhecimento dos direitos de personalidade e de suas expressões e contornos indica que o amparo jurídico se radica
tanto na autodeterminação, que justifica as legítimas decisões pessoais, quanto na
proteção das suas tipologias, que podem ser objeto de disposição tanto em vida
quanto no período pós-morte, de acordo com sua natureza.
A imagem é a representação visual pessoal, estática ou dinâmica, atual ou
passada, hígida ou alterada, total ou parcial (independentemente da técnica de captação utilizada) refletindo atributos físicos da pessoa, não obstante também ter a
possibilidade de refletir aspectos metafísicos pessoais (nesse caso porque, através
da imagem, por vezes é possível perceber o estado psíquico visível da pessoa7).
A violação do direito à imagem (uso deturpado, desautorizado ou em desacordo
com as hipóteses de uso permitido independentemente de autorização do titular)
ofende a personalidade e, assim, enseja a possibilidade de invocação das tutelas
jurídicas admissíveis. Essa afronta se consubstancia ainda que o seu uso tenha sido
desinteressado ou não ofensivo (se foi ofensivo, vincula-se também à honra pessoal,
ensejando o que se costuma chamar de dano anexo em matéria de responsabilidade
civil) (SOARES, 2009, p. 111).
A doutrina costuma referir que há duas teorias expressando o direito de imagem: a monista e a dualista. A teoria monista não desvincula aspectos patrimoniais
e extrapatrimoniais relacionados a imagem, ou seja, o direito à imagem é um direito
de personalidade que atribui ao seu titular a defesa desse legítimo interesse contra
ingerências alheias e também lhe permite dispor dele, obtendo ou não benefícios
patrimoniais em razão dessa disposição, ao passo que a teoria dualista desdobra o
direito à imagem em right to privacy e rigth to publicity, ambos autônomos entre si, o
primeiro reputando a imagem como uma das expressões intangíveis da privacidade
(dela derivada, e não independente) e tutelando valores pessoais da personalidade
e o segundo tratando da dimensão patrimonial da imagem, passível de exploração
econômica (FESTAS, 2009, p. 32, 62-63 e 390-394). A teoria dualista é comum no
âmbito do common law, e o direito brasileiro não faz essa diferenciação, aproximando-se da teoria monista.
A grande questão, quando se trata de direitos de imagem, é o limite entre o seu
uso regular ou irregular, dependente ou independente de autorização.8
Assim, a importância do uso da imagem em determinado contexto (importância
fundamental ou secundária), a finalidade do uso da imagem (econômica ou altruísta),
São os “elementos visíveis que integram a personalidade humana” (CAHALI, 1999, p. 557).
Em relação a este relevante tema, que excede ao que está sendo proposto, vide, por todos, MIRAGEM, 2005,
p. 138.
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as circunstâncias em que a imagem foi obtida e em que foi veiculada (acidentais ou
propositais), o objetivo da divulgação (de atingir negativamente a honra ou de exaltar
a honra da pessoa cuja imagem está sendo utilizada); a veracidade e a integridade da
imagem e dos demais elementos de informação, todos são elementos a considerar
na verificação da adequação ou inadequação do uso da imagem e da necessidade ou
não de autorização para veiculação.9
O nome e a voz também estão no mesmo ancoradouro protetivo da imagem.
O nome, como designação pessoal, é um direito de personalidade porque protege esse elemento explícito e direto de individuação, diante da diversidade humana,
tanto quanto o pseudônimo, que merece igual proteção, quando a ele for agregada a
notoriedade. Esse também assume relevância ao ser um dos meios de associação
mental entre pessoa e honra, cuja importância se destaca sobremodo quando esse
nome tem projeção social.
A partir disso, o designativo de identidade pessoal que é protegido como tipo de
direito de personalidade não se basta ao constante em registro civil, ou o pseudônimo nas condições antes referidas, podendo também ser utilizado no registro do nome
como marca, ou como nome de domínio na internet.
Fenômeno semelhante ocorre na assinatura pessoal, em que a formação visual
peculiar do traçado que cada pessoa dá ao seu nome ou pseudônimo assume singularidade que pode ser capaz de trazer a identificação imediata tanto quanto uma
marca.
Com relação à voz, a proteção se dá sob as mesmas bases. A voz é a “assinatura” da fonação de uma pessoa, é o som que a pessoa particularmente produz,
pois cada voz possui ressonância, projeção, qualidade, velocidade e ritmo próprios,
de modo que a voz serve à identificação e distinção pessoal.10
A proteção jurídica abrange a voz profissional ou amadora, cantada ou falada.
De modo semelhante ao que se referiu em termos de assinatura, a voz pessoal tem
O exposto representa uma visão que é essencialmente personalista no que se relaciona aos direitos de
imagem, nome e voz. Não se desconhecem, porém, as análises alternativas que são feitas sobre o assunto,
e que tratam de uma possível restrição ao viés cultural popular coletivo por parte de quem explora direitos de
publicidade, especialmente quando envolvem pessoas públicas e ricas. Vide MADOW, 1993, p. 205-215.
10
“En tal sentido, es legítimo sostener que para el derecho, la imagen es la expresión formal y sensible de la
persona y que entra en ese concepto, mucho menos ceñido que el puramente textual o gramatical, la imagen
sonora, la imagen que nos dan los gestos, y también la que nos dan partes separadas del cuerpo, como los
ojos, los miembros, en tanto ellos importan indicaciones precisas de ciertos personajes, particularmente
los famosos. Luego, la voz, las representaciones teatrales, las mímicas, las partes del cuerpo que sean
individualizadoras en el caso dado, como otras tantas exteriorizaciones de la imagen personal, entran en el
área de la tutela legal” (CIFUENTES, 2008, p. 557-558). Quanto a proteção à voz, vide também BRÜGGEMEIER,
2009, p. 245. No direito brasileiro, Szaniawski (2005, p. 222) afirma que é possível encontrar, na
jurisprudência brasileira, decisões de “outorga de tutela à própria voz de alguém, além do direito à própria
imagem, estando assegurados, entre nós, a proteção de ambas aas manifestações da personalidade humana
pela jurisprudência e pela doutrina”.
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suas peculiaridades, que assumem singularidade capaz de conduzir a uma associação imediata entre voz e pessoa.
Tanto o direito à imagem, quanto ao nome e à voz abrangem duas dimensões:
a de autodeterminação quanto à exploração (reprodução, difusão ou publicação) e a
de defesa (para que outros façam uso de tais atributos, indevidamente) (SILVA, 2012.
p. 283).
Esse é o cenário resumido dos principais entendimentos doutrinários relacionados à proteção jurídica conferida ao nome, imagem e voz, mas é necessário analisar
a forma pela qual as projeções físicas imagem, voz e nome são atingidas pelos avanços tecnológicos, o que será abordado no próximo tópico.
4 Avanços tecnológicos e novas expressões da imagem
Não obstante os desenhos acompanharem a humanidade, na sua necessidade
de expressão, e as origens do direito à imagem remontarem à edição do Código Civil
francês, o fato é que, na primeira metade do século XIX, a fotografia tornou-se uma
realidade e abriu caminho, menos de cinquenta anos depois, para os franceses apresentarem o cinema à humanidade.
Passados aproximadamente vinte anos da criação da fotografia, passou a viger,
no Brasil, o Código Civil de 1916,11 que é produto de uma época histórica de desenvolvimento incipiente em matéria de captação técnica de imagens, pelo ser humano.
O Código Civil de 2002 foi inicialmente concebido em meados dos anos 1970,12
passando por longa tramitação, até a sua vigência. É fruto de um tempo em que as
imagens captadas por fotografia ou filmagem estavam mais desenvolvidas, inclusive
com a inclusão de efeitos especiais, apesar de a época de sua formulação não ter
experimentado a aceleração tecnológica que se perpetrou sobretudo a partir do século XXI.
A tecnologia, assim, está em franca e permanente expansão, trazendo novos
desafios ao direito.
Um dos desafios que as novas tecnologias trazem ao direito é a possibilidade
de que a imagem de uma pessoa falecida seja “revivida” em razão da aplicação de
técnicas de manipulação de imagem, sobretudo de ordem digital, juntamente com o
uso do nome ou pseudônimo, e muitas vezes, conjugada com a voz.
“O processo legislativo que deu origem ao Código Civil de 1916 teve início em 1900, após a elaboração
do projeto por Clóvis Beviláqua em apenas seis meses. No Senado Federal, no período de 1902 a 1912, a
discussão gerada pelo Parecer do Senador Rui Barbosa se ateve mais ao aspecto linguístico. Sua sanção
se deu em 1º de janeiro de 1916, com cláusula de início de vigência para o primeiro dia do ano seguinte”
(PASSOS; LIMA, 2012, p. XX).
12
Disponível em: <http://www.senado.gov.br/publicacoes/mlcc/>. Acesso em: 15 jul. 2015.
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São conhecidos, por exemplo, os casos de apresentações artísticas, shows,
programas televisivos ou transmissões na internet, que utilizam imagens holográficas
de pessoas falecidas,13 o que pode ser repetido em qualquer forma de reprodução de
imagens, sob aspecto estático ou dinâmico, em que a pessoa que não existe mais
fisicamente, se “apresenta” digitalmente. Com isso, as pessoas não precisam mais
estar vivas para atuar em novos filmes, anúncios publicitários, ou apresentarem-se
artisticamente.
A indústria fonográfica ou cinematográfica dispõe de tecnologia suficiente e eficiente para criar doppelgängers (réplicas) digitais de qualquer pessoa, sobretudo de
personalidades midiáticas, com os avanços da tecnologia Computer Graphic Imagery
(CGI).
No filme Fast and furious 7, por exemplo, foi utilizada uma combinação de
efeitos visuais para recriar digitalmente o ator Paul Walker, que faleceu em meio às
filmagens, em um acidente automobilístico no final de 2013.
Anúncios publicitários também utilizaram a tecnologia CGI para trazer de volta à
vida atores para promover determinadas marcas, tal como ocorreu com a atriz Audrey
Hepburn, recriada digitalmente em recente anúncio de uma marca de chocolates.14
Disso resulta que o direito de imagem se desdobra em físico ou virtual15 (através do processamento digital de imagens), podendo ser conjugado com nome e voz,
sendo todos protegidos pela malha normativa que permeia os direitos de personalidade, em vida ou pós-morte.
Mas se a tecnologia proporciona que imagem e voz sejam utilizados de forma
dinâmica, favorecendo uma intersubjetividade física ou virtual, consequentemente
também é necessário permitir que as pessoas especifiquem antecipadamente e em
vida se essa possibilidade poderá ser concretizada, e, se for admissível, sob quais
condições ela se desencadeará.
Essa tutela pós-morte dos direitos de personalidade tem como objetivo principal
a defesa do falecido e, de forma indireta, o resguardo dos legítimos interesses dos
Tem se tornado comum a criação de “parcerias” entre artistas vivos e mortos, à revelia destes. Assim,
por exemplo, a “colaboração póstuma” de Michael Jackson em clipe e música de Justin Timberlake, e da
apresentação musical de Dr. Dre e Snoop Dogg, utilizando imagens holográficas do falecido cantor Tupac Shakur,
possibilitando uma interação de palco entre os dois. A notícia do primeiro caso é a seguinte: “Justin Timberlake
lembra Michael Jackson em novo clipe de parceria. Colaboração póstuma ‘Love never felt so good’ ganhou
vídeo nesta quarta. ‘Discípulo’ dança como o ‘rei do pop’ em frente a imagens antigas em telão”. Disponível
em: <http://g1.globo.com/musica/noticia/2014/05/justin-timberlake-lembra-michael-jackson-em-novo-clipe-deparceria.html>. Acesso em: 15 jul. 2015. A informação do segundo exemplo tem o seguinte teor: “Dr. Dre e
Snoop Dogg, que foram a atração principal desse último domingo no festival Coachella, trouxeram um novo
conceito de convidados em sua apresentação, quando foram acompanhados pelo seu amigo Tupac Shakur. O
artista, que foi assassinado em 1996, apareceu sob forma de holograma no palco” Disponível em: <http://www.
vagalume.com.br/news/2012/04/16/tupac-volta-a-vida-em-show-de-snoop-dogg-e-dr-dre.html#ixzz3g64YoqQL>.
Acesso em: 15 jul. 2015.
14
Vídeo disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=gx9eDoS76LM>.
15
Sobre as formas de processamento de imagens, vide: GONZALEZ, 2002, especialmente as páginas 15 e 16.
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seus familiares (VASCONCELOS, 2006, p. 46), ou seja, o principal interesse a considerar, na defesa das expressões de representação pessoal abordadas neste texto, é
o da pessoa cuja imagem, voz ou nome é ou será utilizado, e não diretamente o de
seus herdeiros ou legatários.
Portanto, é possível e recomendável que as pessoas, em vida, deixem consignadas as suas vontades em relação a tais possibilidades no pós-morte, e o meio por
excelência mais adequado a tal fim é o testamento.
As circunstâncias e os limites desse registro serão tratados no próximo item.
5 Horizontes da exploração e de proteção póstuma de imagem,
nome e voz
O fenômeno “morte” atribui aos direitos de personalidade uma dimensão diferenciada, sob determinados aspectos.
Assim, se os direitos de personalidade são personalíssimos, como poderia o
direito tratar de uma dimensão além da vida? A letra do Código Civil confirma que a
“existência da pessoa natural termina com a morte” (art. 6º). Pensar em transmissibilidade pura e simples seria uma incongruência e até mesmo uma ilegalidade (art.
11 do Código Civil, com proteção quanto à inviolabilidade também prevista no art. 5º,
incisos V e X, da Constituição Federal). Imaginar que a morte representaria a extinção
de todas as dimensões da personalidade seria injusto.
Mesmo considerando-se a impossibilidade de a pessoa falecida ser sujeito de
relações jurídicas — pois o fim da vida retira-lhe a personalidade jurídica em sentido
subjetivo —, resistem à morte os legítimos interesses jurídicos provenientes dos
direitos de personalidade da pessoa falecida, os quais transcendem ao falecimento,
subsistem e podem influenciar e causar ingerências voluntárias ou involuntárias no
curso social. São os fatos demonstrando ao universo jurídico que os direitos de personalidade têm ressonância após a morte, caracterizada pela produção de efeitos e
incidência independentemente do fim da vida (SOUZA, 1995, p. 189, 193 e 194).16
É por isso que Schreiber afirma que, com a morte, não se extingue a personalidade em sentido objetivo (constituída pelos atributos pessoais essenciais), o que
ocorre é a sua projeção “para além da vida do seu titular” (SCHREIBER, 2013, p. 25).
Essa continuidade, por conseguinte, se dá com outra titularidade e com características específicas (por isso, é extraordinária), porquanto as legítimas pretensões
relacionadas aos direitos de personalidade da pessoa falecida (notadamente de
Convém destacar que referido autor não refere a interesses juridicamente relevantes relacionados a pessoa
falecida, ele menciona que a pessoa falecida teria personalidade física e moral como “bem jurídico”, como “objeto
dos direitos de personalidade”. O cuidado que se deve ter com esse pensamento é o de reduzir os direitos de
personalidade e suas expressões a um mero patrimonialismo que se vincula à expressão “bem jurídico”.
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AVANÇOS TECNOLÓGICOS E PROTEÇÃO POST MORTEM DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE POR MEIO DO TESTAMENTO
defesa, de inibição, de mitigação do dano ou de indenização por danos) podem ser
exercidas pelo “cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral
até o quarto grau” (art. 12, caput e parágrafo único do Código Civil). A crítica que se
faz à referida regra relaciona-se à não referência ao companheiro e à limitação dos
legitimados extraordinários ao rol de herdeiros, evidenciando a nota de patrimonialidade reinante na redação do Código Civil.
Há autores que afirmam que essa titularidade teria como fundamento teorias
sobre deveres jurídicos gerais e que aceitariam a ideia de uma personalidade jurídica parcial pós-morte; teorias que vinculam esse interesse aos próprios afetados
diretamente por condutas atentatórias à memória do falecido ou que consideram os
herdeiros ou legatários fiduciários dos direitos de personalidade do falecido.17
Para os fins deste trabalho, adota-se a tese segundo a qual o fundamento da
titularidade dos herdeiros ou sucessores em relação à exploração de determinados
atributos da pessoa falecida reside na sucessão por “aquisição derivada translativa
mortis causa de direitos pessoais” (SOUZA, 1995, p. 367).18
Ultrapassado esse aspecto (que não influencia o resultado do estudo proposto
neste artigo), especificamente quanto ao uso de imagem, nome e voz, a regra é a de
que o uso depende de autorização, com algumas exceções (por exemplo, se for necessária à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, nos termos
do art. 20 do Código Civil, por escopo científico, didático ou cultural), proteção essa
que se estende à imagem de pessoa falecida.19
Veja-se que os dispositivos do Código Civil albergam uma proteção à imagem, nome e voz em relação a terceiros, mas nada dispõe sobre o uso por aqueles
que ficam responsáveis pela administração desses direitos, no lugar do falecido.
Pressupõe-se que, por uma questão de razoabilidade e boa-fé, aqueles que sucedem
Vide, por todos, SOUZA, 1995, p. 364, e quanto às divergências em relação à titularidade do direito violado,
veja-se BELTRÃO, 2014, p. 132-136.
18
Esse também parece ser o caminho trilhado pela jurisprudência brasileira, revelando-se interessante a
perspectiva do Resp nº 268.660, que trata da atuação da mãe na defesa da imagem e memória da filha
(agindo em defesa “alheia”), ao mesmo tempo em que admite uma pretensão que seria da mãe, pelo dano
moral próprio decorrente do uso indevido da imagem (agindo em razão de um interesse próprio): “CIVIL E
PROCESSUAL CIVIL. REEXAME DE PROVA. DIVERGÊNCIA. DANOS MORAIS E MATERIAIS. DIREITO À IMAGEM.
SUCESSÃO. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. HONORÁRIOS. 1. Os direitos da personalidade, de que o direito à
imagem é um deles, guardam como principal característica a sua intransmissibilidade. Nem por isso, contudo,
deixa de merecer proteção a imagem de quem falece, como se fosse coisa de ninguém, porque ela permanece
perenemente lembrada nas memórias, como bem imortal que se prolonga para muito além da vida, estando
até acima desta, como sentenciou Ariosto. Daí porque não se pode subtrair da mãe o direito de defender a
imagem de sua falecida filha, pois são os pais aqueles que, em linha de normalidade, mais se desvanecem
com a exaltação feita à memória e à imagem de falecida filha, como são os que mais se abatem e se
deprimem por qualquer agressão que possa lhes trazer mácula. Ademais, a imagem de pessoa famosa projeta
efeitos econômicos para além de sua morte, pelo que os seus sucessores passam a ter, por direito próprio,
legitimidade para postularem indenização em juízo. [...]”. STJ. 4ª Turma. Recurso Especial nº 268660/RJ.
Relator Ministro César Asfor Rocha. J. em 21/11/2000. DJ 19/02/2001, p. 179. RSTJ, vol. 142, p. 378. RT,
vol. 789, p. 201. Em sentido contrário ao ora exposto preleciona SZANIAWSKI, 2005, p. 221.
19
“Le droit à l’image persiste après le décès de la personne représentée, […]” (MASSON, 2009, p. 243).
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ao falecido, perenizando-o de certa forma, biológica ou juridicamente, tratarão de tais
atributos com as cautelas admissíveis.
Mas é necessário também pensar o que pode ser feito quando isso não
acontece.
E é justamente em razão do silêncio da lei, pelo fato de que o falecido não tem
mais poder de ação em relação aos fatos post mortem, aliado a constatação de que
há incompatibilidade entre eventual uso desarrazoado e a legitimidade para vedar
abusos (ter-se-ia uma situação em que o “abusador”, por autorizar a exploração do
uso da imagem e voz, seria a mesma pessoa a quem a lei atribui legitimidade para
frear situações de uso irregular de tais atributos, caracterizando conflito de interesses), que convém que, por precaução, providências sejam tomadas, ainda em vida.
Há limites naturais, por parte do titular, para essa atuação preventiva restritiva
das pretensões autorizadoras de futuros sucessores, em razão da perda de força
efetiva de ação pós-morte, mas a manifestação prévia e escrita de vontade para
reduzir o espectro de atuação daqueles que tornaram-se “guardiões” de tais direitos
é instrumento adequado a frear pretensões egoístas e distanciadas das legítimas
intenções de seu titular, que pode consignar em que termos o uso de seus atributos
de personalidade pode se dar.
Essa necessidade se torna ainda mais premente naqueles casos em que a imagem, a voz e o nome estão cercados de interesse pela notoriedade, pois tais direitos
se revestem de importância a quem deseja preservar qualidades humanas positivas
inerentes (inatas ou formadas com o tempo) que constituem sua honra e que, muitas
vezes, foram compostas no decorrer da vida e que correm o risco de serem trocadas
por dinheiro, sem maiores cautelas.
Sabe-se que eventual ambição do sucessores, aliada a uma natural ânsia curiosa do espectador, pode se tornar uma equação cujo resultado tende a ser perverso
à pessoa falecida.
Nesses casos, os direitos de personalidade se manifestam com feição econômica indireta patente, e há justo interesse de que eles não sejam objeto de ingerência indevida por parte de herdeiros ou legatários e que não sejam maculadas por
interesses meramente egoístas, ilegítimos ou distanciados da vontade da pessoa
falecida.
Assim, é possível que o testamento contemple disposições nos sentidos a seguir indicados quanto ao uso de imagem, nome e voz.
A primeira é a especificação temporal, determinada ou perpétua. Pode o titular
limitar a exploração no tempo, seja no sentido de que a possibilidade de seu uso
ocorra a partir de um determinado período (por exemplo, a partir de cinco anos a
contar da data da morte) ou por um lapso de tempo específico (v.g., por cinco anos
a contar da morte, mas, nesse caso, o titular deve explicitar o que deve ocorrer após
esse prazo).
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A segunda é a especificação espacial, onde o titular expressa em quais meios
de difusão a sua imagem, voz e nome podem ser veiculadas (televisão, internet,
outdoor, rádio, jornais, etc.), ou mesmo especifica o veículo ou segmento autorizado
ou não autorizado (v.g., a revista X, e não a revista Y; o segmento infantil, e não o
segmento adulto), sendo admissível que permita amplamente todo e qualquer meio,
existente ou que venha a ser criado, que cite expressa e exaustivamente quais são
os canais permitidos, ou que restrinja aos existentes, excluindo os que venham a ser
criados.
Permite-se também que seja especificado que somente serão permitidas veiculações por meios e para finalidades altruístas, por exemplo.
Por fim, a especificação quanto à integridade, na qual o titular consignará se
permite ou não que sua imagem ou voz sejam manipuladas, recriadas ou tratadas,
que sejam utilizadas após manipulação ou tratamento (sobretudo digital), ou mesmo
que sejam mescladas com outros elementos de igual ou diferente natureza. Abre-se
também a oportunidade para que o titular especifique em que medida essas potencialidades podem ser permitidas ou utilizadas.
Esse é o cenário exemplificativo das potencialidades permitidas ao titular, cabendo destacar que não estão na esfera de disponibilidade aqueles casos em que o
uso da imagem, da voz e do nome não estejam contidos na esfera de autodeterminação pessoal aceitável no sistema jurídico, pois a circunscrição dos direitos de personalidade, nesse aspecto, não é distinta daquela que se poderia traçar em vida.20
Por isso que não se permite o ato de disposição pós-morte que, por exemplo,
venha a tentar restringir a veiculação de imagens relativas a um acontecimento histórico, ou de interesse público relevante,21 havendo também restrição relativa à própria
“Quanto aos limites do bem da personalidade física e moral do defunto juridicamente tutelada, com vista à
credibilidade e à operacionalidade da respectiva tutela jurídica, importa salientar, desde já, que perduram postmortem os limites à personalidade que identicamente vigoravam em vida” (SOUZA, 1995, p. 196).
21
Independentemente de qualquer questionamento quanto a justiça ou injustiça da decisão, recentemente o
STJ entendeu que pode haver uso de uma imagem de pessoa falecida, independentemente de autorização
dos herdeiros, se essa imagem retratar um crime que, não obstante tenha ocorrido há aproximadamente
cinquenta anos, teve grande repercussão. “Ementa: Recurso especial. Direito civil-constitucional. Liberdade
de imprensa vs. Direitos da personalidade. Litígio de solução transversal. Competência do STJ. Documentário
exibido em rede nacional. Linha direta-justiça. Homicídio de repercussão nacional ocorrido no ano de 1958.
Caso “Aida Curi”. Veiculação, meio século depois do fato, do nome e imagem da vítima. Não consentimento
dos familiares. Direito ao esquecimento. Acolhimento. Não aplicação no caso concreto. Reconhecimento
da historicidade do fato pelas instâncias ordinárias. Impossibilidade de desvinculação do nome da vítima.
Ademais, inexistência, no caso concreto, de dano moral indenizável. Violação ao direito de imagem. Súmula
n. 403/STJ. Não incidência. [...] 2. Nos presentes autos, o cerne da controvérsia passa pela ausência de
contemporaneidade da notícia de fatos passados, a qual, segundo o entendimento dos autores, reabriu antigas
feridas já superadas quanto à morte de sua irmã, Aida Curi, no distante ano de 1958. Buscam a proclamação
do seu direito ao esquecimento, de não ter revivida, contra a vontade deles, a dor antes experimentada por
ocasião da morte de Aida Curi, assim também pela publicidade conferida ao caso décadas passadas. 3. Assim
como os condenados que cumpriram pena e os absolvidos que se envolveram em processo-crime (REsp. n.
1.334/097/RJ), as vítimas de crimes e seus familiares têm direito ao esquecimento — se assim desejarem
—, direito esse consistente em não se submeterem a desnecessárias lembranças de fatos passados que
lhes causaram, por si, inesquecíveis feridas. Caso contrário, chegar-se-ia à antipática e desumana solução de
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incompatibilidade entre a natureza do tipo de direito de personalidade em questão e
os próprios pressupostos dessa espécie, tal como ocorre com o direito à vida.
E também é por esse motivo que devem ser respeitados os negócios jurídicos
válidos firmados em vida pelo titular, ou mesmo expressões de criação que tenham
caído em domínio público.22 Assim, se o titular dos direitos de personalidade firmou
contrato com revista em que amplamente cedeu direitos de imagem, sem restrição,
esse uso de imagem é permitido, inclusive para reedições da própria revista, não
podendo haver restrição em testamento.
Da mesma forma, se o contrato firmado permitia amplo uso da imagem utilizada
para uma novela, permite-se que seja reprisada, ou que os direitos de transmissão
sejam negociados com outros veículos, independentemente de nova autorização.
Nessas hipóteses, eventual restrição testamentária não seria eficaz.
Se não houver interesse em limitar de qualquer forma o uso do nome, voz e imagem, a omissão do titular é tida, considerando o sistema jurídico brasileiro atual, como
uma ampla permissão da exploração por parte dos herdeiros ou eventuais legatários.
6 A possibilidade de proteção da vontade pessoal pós-morte:
novas feições do testamento a servir como instrumento para
essa finalidade
O atual Código Civil não conceitua testamento,23 apenas refere no artigo 1.857
que “toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens,
reconhecer esse direito ao ofensor (que está relacionado com sua ressocialização) e retirá-lo dos ofendidos,
permitindo que os canais de informação se enriqueçam mediante a indefinida exploração das desgraças
privadas pelas quais passaram. [...] 6. É evidente ser possível, caso a caso, a ponderação acerca de como o
crime tornou-se histórico, podendo o julgador reconhecer que, desde sempre, o que houve foi uma exacerbada
exploração midiática, e permitir novamente essa exploração significaria conformar-se com um segundo abuso
só porque o primeiro já ocorrera. Porém, no caso em exame, não ficou reconhecida essa artificiosidade ou
o abuso antecedente na cobertura do crime, inserindo-se, portanto, nas exceções decorrentes da ampla
publicidade a que podem se sujeitar alguns delitos. [...] 9. Por outro lado, mostra-se inaplicável, no caso
concreto, a Súmula n. 403/STJ. As instâncias ordinárias reconheceram que a imagem da falecida não foi
utilizada de forma degradante ou desrespeitosa. Ademais, segundo a moldura fática traçada nas instâncias
ordinárias — assim também ao que alegam os próprios recorrentes —, não se vislumbra o uso comercial
indevido da imagem da falecida, com os contornos que tem dado a jurisprudência para franquear a via da
indenização. 10. Recurso especial não provido”. STJ. 4ª. Turma. Recurso Especial nº 1335153 / RJ. Relator
Ministro Luis Felipe Salomão. J. em 28.05.2013. DJe 10/09/2013. RSTJ vol. 232. p. 440.
22
“[...] a fixação de um limite temporal aos direitos relativos à personalidade de pessoa falecida será uma
questão dependente quer de dados de facto sobre a existência dos bens de personalidade em causa,
particularmente em face da existência dos bens de personalidade em causa, particularmente em face da
própria densidade da personalidade de defunto, quer das convicções sócio-culturais a esse respeito da nossa
comunidade jurídica e, se houver interesses conflituantes, de uma ponderação de interesses” (SOUZA, 1995,
p. 197).
23
Orosimbo Notado (1957, p. 57) adverte que “Foge o legislador brasileiro, de avisado e sábio, às definições”.
O legislador civil, realmente, evita alguns conceitos. Porém, o Código Civil de 1916 continha um conceito de
Testamento no artigo 1.626 — “Considera-se testamento o ato revogável pelo qual alguém, de conformidade
com a lei, dispõe, no todo ou em parte, do seu patrimônio, para depois de sua morte” — considerado
insuficiente e que não foi repetido no Código Civil de 2002.
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ou de parte deles, para depois de sua morte”. É possível conceituar o testamento
como “ato pelo qual a vontade de um morto cria, transmite ou extingue direitos”, pois
a eficácia do testamento surge apenas com o evento morte, conforme aponta Pontes
de Miranda (1972, p. 59).
A vontade é elemento essencial do testamento e sua importância é expressada
por Orosimbo Nonato (1957, p. 12) ao destacar: “a faculdade de testar traduz, como
sucessão legítima, uma necessidade do consórcio civil e uma satisfação de sentimentos íntimos e profundos do homem”. Interpreta-se essa frase como uma necessidade de resgatar a autonomia privada, sendo esse o principal objetivo e fundamento
da sucessão testamentária contemporânea (BASTOS, 2014, p. 150).
Nevares (2009), ao tratar da função promocional do testamento, afirma que as
disposições testamentárias tanto de cunho patrimonial como existencial merecem
acolhida, de forma a realizar a dignidade da pessoa humana, âmbito da autonomia
privada testamentária.
Neste sentido, é possível compreender que o testamento pode conter disposições patrimoniais e existenciais, ou seja, os direitos da personalidade podem estar
contemplados no testamento, pois a tutela da autonomia privada é um dos fundamentos da sucessão testamentária.
Faz-se necessária a “implementação de um tratamento diferenciado para a autonomia relativa a atos existenciais, isto é, para realização de escolhas ligadas não
ao patrimônio, mas àqueles elementos que constituem a identidade que individualiza
e caracteriza cada ser humano” (TEIXEIRA e KONDER, 2010)
O contexto em que está inserido o testamento indica que há terreno fértil para
que o titular do direito de imagem, voz e nome manifeste a sua vontade em relação
ao tempo e modo que tais atributos serão utilizados após o seu falecimento.
Em 2015 foi notícia, em muitos meios de comunicação, o testamento de Robin
Williams, falecido em 2014, ao conter disposição de restrição no uso de sua imagem
por até 25 anos após sua morte, descrevendo de forma pormenorizada a forma como
sua imagem poderá ser usada.24 No testamento “deixa bem claro que o controle de
seu nome e de sua imagem estará nas mãos da organização filantrópica que fundou
há anos com sua então esposa Marsha”.25
Esse fato retomou a discussão sobre a importância de preservação da autonomia privada e da vontade na confecção do testamento. Reforçou também a viabilidade de disposições testamentárias com cunho existencial ou imaterial.
No caso de manifestação de vontade no sentido restritivo ao uso do nome, da
imagem ou da voz, se for realizada de forma verbal aos familiares, entre eles somente
Notícia disponível em: <http://cultura.estadao.com.br/noticias/cinema,testamento-de-robin-williams-restringeuso-de-sua-imagem-ate-2039,1661785>.
25
Notícia disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2015/03/31/cultura/1427813184_083287.html>.
24
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restará uma vinculação de caráter ético quando ao cumprir ou não a vontade do falecido, restando a possibilidade de questionamento quanto à plenitude da capacidade
civil do titular às circunstâncias em que tal declaração de vontade foi emitida, a quem
se dirigiu e sob quais circunstâncias, de eventual mudança posterior da vontade, etc.
Esta comunicação verbal aos familiares tem por base a ideia de confiança,
ou seja, a confiança como elemento de vinculação moral26 que permeia as relações
sociais e, neste caso, aos familiares restará a decisão quanto ao cumprimento, ou
não, da vontade da pessoa falecida.
Porém, no que se refere ao testamento, essa não é apenas uma diretriz de
caráter ético, pois tem força vinculativa, e o tabelião (tratando-se de testamento
público ou cerrado) tem o dever de atestar a capacidade da pessoa ao expressar sua
vontade no ato de realização do testamento. Por isso, deve-se “cumprir a vontade real
do testador, não obstante a impropriedade dos termos empregados no testamento”
(MODESTO, 2011).
Deve-se analisar o caso de dúvida sobre alguma disposição testamentária. A
regra de interpretação do testamento valoriza única e exclusivamente a vontade do
testador, conforme artigo 1.899 do Código Civil: “Quando a cláusula testamentária
for suscetível de interpretações diferentes, prevalecerá a que melhor assegure a observância da vontade do testador”. Nesse sentido a Ministra Nancy Andrighi ressalta
que se deve “interpretar o testamento, de preferência, em toda a sua plenitude, desvendando a vontade do testador, libertando-o da prisão das palavras, para atender
sempre a sua real intenção”.27
Com essas considerações, percebe-se ser plenamente possível preservar a autonomia e a vontade do testador sobre os direitos da personalidade (notadamente o
nome, a imagem e a voz), já que expressões de sua última vontade, fato tutelado pelo
ordenamento jurídico brasileiro.
Além disso, é preciso destacar o princípio da liberdade no uso da imagem. Alude
Netto (2004) que a permissão para divulgação da própria imagem está no âmbito da
autodeterminação pessoal, o qual “ficaria ferido se fosse vulnerado contra a vontade
de seu titular. Em outras palavras, à pessoa deve-se reservar plena liberdade de
autorizar ou não o uso de seu retrato”. Nesse sentido, acredita-se na plena aplicação
do princípio da liberdade no que se refere à disposição da imagem na sucessão
testamentária.
Neste sentido importante artigo: HENTZ, Luiz Antonio Soares. A vontade na formação dos contratos e nas
manifestações unilaterais. Revista dos Tribunais, v. 704/1994, p. 46-52, jun. 1994.
27
STJ. REsp nº 1049354/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 18.08.2009, DJe
08.09.2009.
26
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7 Conclusões: o direito das sucessões como meio de
proteção de interesses imateriais pessoais – Necessária
desvinculação ao patrimonialismo clássico
O estudo ora proposto demonstrou que os direitos de personalidade possuem
relevante expressão jurídica e devem ser respeitados, sobretudo as expressões de
imagem, nome e voz.
Revelou também que os avanços tecnológicos são um desafio ao aperfeiçoamento das formas de proteção dos direitos de personalidade em vida e post mortem.
Em vida, o titular pode dispor dos direitos ao nome, imagem e voz ao tempo em
que vier a negociá-lo com o interessado em seu uso. Porém, com a morte, a transferência da titularidade aos herdeiros, nos termos mencionados neste artigo, pode
gerar conflitos de interesses.
Assim, verificou-se que o testamento é um dos meios mais eficientes de expressar a vontade do titular de tais direitos, o que reforça a ideia de que o testamento serve não apenas para expressar vontade relacionada ao patrimônio material
do falecido, mas, sobretudo, é um meio de proteção de interesses mais relevantes
da pessoa humana, relacionada aos seus atributos imateriais, que são vinculados à
identidade e honra.
Quando se respeita a vontade manifestada em vida, através de um testamento,
está se acolhendo uma determinação pessoal baseada em premissas que somente
ao seu titular originário cabe sopesar. Não atribuir a devida força, ou, ainda, ao se
admitir que a vontade do sucessor seria preponderante, estar-se-ia possibilitando que
aspectos unicamente patrimoniais tenham maior peso nas decisões relacionadas ao
uso do nome, imagem e voz da pessoa falecida.
Almejou-se com este artigo demonstrar a importância do testamento tanto no
aspecto patrimonial como no existencial. A proteção dos direitos da personalidade
pela via testamentária se faz plenamente possível na contemporaneidade, não existindo nenhuma previsão que impeça a realização de tal disposição de vontade.
Por fim, resta salientar que toda a evolução do Direito Civil promovida pela
constitucionalização de seus institutos possibilita a funcionalização do testamento
em sentido existencial ou imaterial, pois a vontade do testador deve ser o principal
fundamento da interpretação testamentária.
Technological Developments and Post Mortem Protection of Rights of Personality by Means of Will
Abstract: The challenges that technological developments have brought to the civil law are worth of notice,
particularly the ones concerning some rights of personality from a post-mortem perspective, in terms of
name, image and voice. In this paper, we aim to discuss this subject by highlighting the doctrinary view of
it and its importance in the search for alternatives intended at better protection of the rights of personality.
We attempt to analyze the treatment of this subject in succession law, and the need to update both the
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concept and function of this branch of law, especially regarding such challenges. There is a manifest need
of reformulation of the traditional patrimonialist view of succession law, evolving to a more personalistic
view of such institute as a possible and effective form of protection of a person’s will while alive in the
definition of post-mortem intentions related to one’s name, image and voice.
Keywords: Civil right. Personality rights. Succession rights. New technologies. Right of image, voice and
name.
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Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 189-205,
set./dez. 2015.
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A revisão e a resolução contratual sob a
ótica da onerosidade excessiva
Angelina Cortelazzi Bolzam
Mestranda da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). Graduada em Direito pela
Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). Advogada.
Rafael Fernando dos Santos
Mestrando da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). Graduado em Direito pelo
Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP). Advogado.
Resumo: O presente trabalho tem por escopo a análise dos aspectos referentes ao desequilíbrio contratual, em face da teoria da imprevisão, na medida em que se revelam capazes de alterar os fatos e
desencadear, no âmbito da avença, onerosidade excessiva para uma das partes. Revelam-se pertinentes
as aferições propostas ante a necessidade de estabilidade das relações contratuais e sociais, procurando-­
se por critérios objetivos, para evitar a singela desconsideração do que foi pactuado, mas afastando-se,
por outro turno, que a situação fática, que sobreveio de forma distinta do que se previa ou poderia prever,
torne a obrigação sobremodo onerosa. A pesquisa baseia-se na doutrina, confrontada com a legislação de
regência, e um breve apanhado jurisprudencial, revelando que existem hipóteses de flexibilização do que
fora formalmente pactuado ante a superveniente modificação do cenário fático.
Palavras-Chave: Revisão contratual. Resolução contratual. Onerosidade excessiva. Teoria da imprevisão.
Sumário: Introdução – 1 Noções principiológicas – 2 Origens históricas da cláusula rebus sic stantibus –
3 A revisão contratual no Código Civil de 2002 – 4 – Cláusula de exclusão da revisão judicial – 5 Revisão
contratual no Código de Defesa do Consumidor – 6 Considerações finais – Referências
Introdução
Considerado o tema da onerosidade excessiva e seus impactos nas relações
contratuais, nutre-se a intenção de verificar algumas questões relativas ao equilíbrio
contratual com a consequente viabilidade de revisão judicial do acordo de vontades
ou mesmo a resolução contratual, perquirindo, por óbvio, aspectos da teoria da imprevisão, bem como as matrizes legais sobre as quais repousa a disciplina normativa
acerca da onerosidade excessiva, avaliando, por outro turno, alguns posicionamentos
jurisprudenciais e procurando na doutrina o suporte da cláusula rebus sic standibus.
Necessárias, portanto, investigações acerca da aplicação dos artigos 478 ao
480, do Código Civil, para aferir a flexibilização do pacta sunt servanda, em vista da
dita cláusula rebus sic standibus, mirando a manutenção do equilíbrio econômico dos
contratos em caso de imprevisão capaz de gerar onerosidade excessiva.
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Tem-se, assim, pesquisa voltada à disciplina do equilíbrio contratual como diretriz a ser preservada em caso de superveniente alteração do quadro fático sobre o
qual se travou a manifestação de vontades, evitando a desproporcionalidade, o que
implica considerações acerca da função social do contrato e da boa-fé objetiva.
A imprevisão que possibilita a resolução do contrato, também dá margem à
sua revisão, a revelar um certo limite de sacrifício da parte prejudicada pela alteração econômica sobrevinda no curso da relação obrigacional, mas não um sacrifício
que termine por inviabilizar, para uma das partes, a relação negocial (NERY JÚNIOR,
2012, p. 682).
Outro ponto que se afigura relevante na pesquisa em questão é a interveniência
do Poder Judiciário na revisão dos contratos, porquanto, como assinalado anteriormente, a mesma imprevisão que altera o cenário fático e repercute no conteúdo econômico, ensejando a resolução do contrato, caso seja interesse das partes, também
possibilita, mesmo que ausente a concordância quanto a resolução, a discussão
judicial fundada na função social do contrato e na boa-fé objetiva (NERY JÚNIOR,
2012, p. 682).
Por fim, no que toca às relações de consumo, pretende-se delinear a diferenciação do impacto da onerosidade excessiva na atuação e intervenção do Poder
Judiciário, verificando-se que a dita diferença se dá, justamente, ao não se apreciar
a onerosidade excessiva como ensejadora da resolução do contrato de consumo,
antes, porém, atuando o Judiciário em um provimento jurisdicional determinativo, que
modifica a cláusula afetada pela onerosidade excessiva, mantendo, no entanto, a
relação contratual (NERY JÚNIOR, 2012, p. 682).
1 Noções principiológicas
Considerado como fonte de obrigações, o contrato apresenta-se como uma espécie de negócio jurídico que depende, para a sua formação, da participação de pelo
menos duas partes. É, portanto, negócio jurídico bilateral ou plurilateral, resultante de
uma composição de interesses, decorrente de mútuo consenso, ou seja, dependente
para sua formação, do encontro da vontade das partes (DOWER apud DINIZ, 2007,
p. 13).
Ante a ausência de conceituação de tal instituto no Código Civil, a doutrina pátria, com o intuito de preencher esta lacuna, traz à baila alguns conceitos de contrato.
Segundo lições de Caio Mário, citado por Carlos Roberto Gonçalves, o contrato
pode ser definido como “um acordo de vontades, na conformidade da lei, e com a finalidade de adquirir, resguardar, transferir, conservar, modificar ou extinguir direitos”
(SILVA PEREIRA apud GONÇALVES, 2010, p. 22).
Maria Helena Diniz (2007, p. 14) baseando-se nos conceitos de Antunes Varela
e Washington de Barros Monteiro, diz que “o contrato é o acordo de duas ou mais
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vontades, na conformidade da ordem jurídica, destinado a estabelecer uma regulamentação de interesses entre as partes, com o escopo de adquirir, modificar ou
extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial”.
Em sentido estrito, muito próximo daquilo que o Código Civil Italiano trazia em
seu artigo 1.321, o contrato pode ser conceituado como sendo um negócio jurídico
bilateral ou plurilateral que visa à criação, modificação ou extinção de direitos e deveres com conteúdo patrimonial.
Hodiernamente, a teoria contratual, pautada nos moldes do Código Civil de
2002, não se baseia apenas na ideia de predominância da autonomia da vontade,
“em que as partes discutem livremente as suas condições em situações de igualdade” (GONÇALVES, 2010, p. 24), mas, atua também, em consonância com “um novo
paradigma que atende perfeitamente às novas diretrizes da eticidade, da operabilidade e da socialidade” (ROSENVALD, 2014, p. 429); neste ponto é que o Estado
intervém na reação contratual, a fim de se assegurar a supremacia da ordem pública.
Assim, diante desse paradigma contemporâneo é que Nelson Rosenvald (2014, p.
429) destaca outros grandes quatro princípios pelos quais a teoria contratual estaria
baseada, são eles: a autonomia privada, a boa-fé objetiva, a justiça contratual e
função social do contrato.
Tratando-se de um negócio jurídico, o contrato apresenta como característica primordial a vontade, que deve ser expressa por, no mínimo, duas pessoas. Pensando
no plano da liberdade contratual, o qual aborda o próprio conteúdo do negócio jurídico, há muito tempo as partes vêm encontrando limitações quanto às disposições
contratuais, fato pelo qual, explica Flávio Tartuce, “o velho modelo individualista de
contrato encontra-se superado” (TARTUCE, 2014, p. 58). Isso porque o poder de
estabelecer o conteúdo do contrato está limitado às cláusulas que tratam da função
social do contrato, da boa-fé objetiva, bem como pela exigência da supremacia da
ordem pública. Por este prisma, Sílvio Venosa (2013, P. 392) realça que “o controle
judicial não se manifestará apenas no exame das cláusulas contratuais, mas desde
a raiz do negócio jurídico”, ou seja, a lei prende-se a impedir que as cláusulas contratuais sejam injustas para uma das partes.
Em vista de toda esta problemática é que parcela da doutrina, como Flávio
Tartuce e Christiano Cassettari, defende o abandono da nomenclatura princípio da
autonomia da vontade em substituição pelo princípio da autonomia privada, levando,
assim, à defesa de que o contrato possui uma função social.
Neste diapasão, inaugurando o instituto, o artigo 421 do Código Civil declara a
imprescindibilidade de se conjugar a liberdade contratual e o princípio da solidariedade (art. 3º, I, da CF), afastando-se, assim, concepções individualistas que antes
vigoravam com o antigo diploma legal, trazendo à baila o princípio da função social
do contrato. Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 24), “o princípio
da socialidade reflete a prevalência dos valores coletivos sobre os individuais, sem
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perda, porém, do valor fundamental da pessoa humana”. De outro modo, o princípio
da função social do contrato faz com os contratos sejam constituídos e interpretados
conforme o contexto da sociedade no qual foi instituído.
Dentro deste norte, ressalva-se o fato de que a função social do contrato não
foi disposta no Código para coibir a liberdade de contratar, muito pelo contrário; apenas atenua ou reduz o alcance desse princípio. Neste sentido, leia-se o que dispõe
o Enunciado nº 23 do CJF/STJ, “a função social do contrato, prevista no art. 421 do
nCC, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance
desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual
relativo à dignidade da pessoa humana”.
Assim, procurando enfatizar o atual diploma civil, “o contrato não mais é visto
pelo prisma individualista de utilidade para os contratantes, mas no sentido social
de utilidade para a comunidade” (VENOSA, 2013, p. 392). Dessas palavras, percebe-­
se que o princípio da autonomia da vontade submete-se a restrições trazidas pelo
dirigismo contratual, (...) que é a intervenção estatal na economia do negócio jurídico
contratual, por entender-se que, se se deixasse o contratante estipular livremente o
contrato, ajustando qualquer cláusula sem que o magistrado pudesse interferir, mesmo quando uma das partes ficasse em completa ruína, a ordem jurídica não estaria
assegurando a igualdade econômica (DINIZ, 2007, p. 26).
Por isso que o Estado intervém em todas as fases de formação do contrato, não
só mediante a aplicação de normas de ordem pública, mas também, com a
adoção de revisão judicial dos contratos, alterando-os, estabelecendo-lhes
condições de execução, ou mesmo exonerando a parte lesada, conforme
as circunstâncias, fundando-se em princípios da boa-fé e da supremacia do
interesse coletivo, no amparo do fraco contra o forte. (DINIZ, 2007, p. 26)
Diante do exposto, na perspectiva de Nelson Rosenvald (2014, p. 430), “os
limites da liberdade contratual escapam das mãos dos privados, posto preconizados
pelas aspirações solidárias do ordenamento, cabendo à doutrina, ao legislador e aos
tribunais o mister de aclarar a função social dos diversos modelos jurídicos negociais
(...)”. Assim, do que se observa do disposto do artigo 421 do Código Civil é que os
negócios jurídicos devem ser pautados e cumpridores de uma função social, ou seja,
sejam interpretados segundo o contexto da sociedade.
Para finalizarmos, vale a lembrança de que parte da doutrina propõe uma divisão em função social interna1 e função social externa. Internamente, a função social
Sobre o tema: Enunciado nº 360 do CJF: O princípio da função social dos contratos também pode ter eficácia
interna entre as partes contratantes.
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se liga às partes envolvidas, enquanto no sentido externo, a função social está para
além dos envolvidos.
Ou seja, internamente, a função social se justificaria para manter um equilíbrio contratual entre as partes, a fim de evitar “que o ser humano seja vítima de
sua própria fragilidade ao realizar relações contratuais” (ROSENVALD, 2014, p. 430).
Segundo Tartuce (2014, p. 70-71), a eficácia interna da função social dos contratos
pode ser percebida: a) pela mitigação da força obrigatória do contrato; b) pela proteção da parte vulnerável da relação contratual, caso dos consumidores e aderentes; c)
pela vedação da onerosidade excessiva; d) pela tendência de conservação contratual,
mantendo a autonomia privada; e) pela proteção de direitos individuais relativos à
dignidade humana; f) pela nulidade de cláusulas contratuais abusivas por violadoras
da função social.
Por sua vez, a função social externa abrange os efeitos que o contrato pode
causar a terceiros, “liga-se diretamente à vertente da operabilidade (...). Vale dizer,
apesar de sua relatividade, os contratos produzem oponibilidade perante terceiros”
(ROSENVALD, 2014, p. 430).
Num terceiro plano, agora atingindo mais propriamente o âmbito de interpretação dos contratos, destaca-se o princípio da boa-fé. Percebe-se que este princípio,
não se desvincula do exame do interesse social e da segurança das relações jurídicas, estando extrinsecamente ligado ao exame da função social dos contratos.
Nesse aspecto é que, “na análise do princípio da boa-fé dos contratantes, devem
ser examinadas as condições em que o contrato foi firmado, o nível sociocultural dos
contratantes, o momento histórico e econômico. É ponto da interpretação da vontade
contratual” (VENOSA, 2013, p. 395). Neste âmbito, muito mais do que a análise do
sentido literal das palavras transcritas, é preciso ater-se à intenção dos contratantes.
Ademais, uma das mudanças trazidas pelo novo Código Civil foi a introdução
expressa do princípio da boa-fé nas relações contratuais; não aquele presente no
Código de 1916, denominado de boa-fé subjetiva, que diz respeito ao conhecimento
ou à ignorância dos contratantes quanto a certos fatos, mas, sim, àquele que se
classifica como “regra de conduta” (GONÇALVES, 2010, p. 56), nomeado, por sua
vez, de boa-fé objetiva.
Neste campo, reza o artigo 422 do Código Civil, “os contratantes são obrigados
a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios
de probidade e boa-fé”. Como se vê, tal princípio guarda relação com a forma com
que os contratantes vão se comportar não só durante as tratativas, como durante a
formação e execução do contrato, “fundada na honestidade, na retidão, na lealdade
e na consideração para com os interesses do outro contraente, especialmente no
sentido de não lhe sonegar informações relevantes a respeito do objeto e conteúdo
do negócio” (GONÇALVES, 2010, p. 57).
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Por certo, tal disposição valoriza a eticidade das relações, “valorizando as condutas guiadas pela boa-fé” (TARTUCE, 2014, p. 84). Desta forma, tratando-se de fator
basilar da interpretação, sob os olhos da boa-fé objetiva, deve-se avaliar tanto a responsabilidade pré-contratual, como a responsabilidade contratual e a pós-contratual,
conforme padrões sociais estabelecidos e reconhecidos.
Neste sentido, segue o que dispõe o Enunciado nº 170 do Conselho da Justiça
Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil, “a boa-fé objetiva deve ser observada
pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato,
quando tal exigência decorrer da natureza do contrato”.
Por fim, decorrente do princípio da autonomia privada, traça-se o princípio que
representa a força vinculante das convenções, aquele que dispõe que o acordo de
vontades faz lei entre as partes; de outro modo, “um contrato válido e eficaz dever ser
cumprido pelas partes: pacta sunt servanda” (VENOSA, 2013, p. 393).
A obrigatoriedade como base do direito contratual, explica Tartuce (2014, p.
83), já tinha previsão no direito romano, prevalecendo o pacta sunt servanda, fato
pelo qual, o contrato, não poderia, sem qualquer razão plausível, ser extinto ou revisto, “sob pena de acarretar insegurança jurídica ao sistema”.
No entanto, após a Primeira Grande Guerra Mundial, de 1914 a 1918, observaram-se situações contratuais que, por força desse fato considerado extraordinário, se
tornaram insustentáveis, em virtude de acarretarem onerosidade excessiva para um
dos contratantes. Dentro desta realidade, compreendeu-se, então, que não se podia
mais falar em absoluta obrigatoriedade dos contratos; ocorrendo, assim, uma mudança de paradigma, passando-se a acolher, em caráter excepcional, a possibilidade de
intervenção judicial no conteúdo dos contratos, para corrigir eventuais desequilíbrios
de prestações.
Fato é que o princípio da obrigatoriedade dos contratos está, hodiernamente,
mitigando em nosso ordenamento. Nas palavras de Orlando Gomes, citado na obra
de Gonçalves (2010, p. 49-50),
acabou medrando, assim, no direito moderno, a convicção de que o Estado tem de intervir na vida do contrato, seja mediante aplicação de leis
de ordem pública em benefício do interesse coletivo, seja com a adoção
de uma intervenção judicial na economia do contrato, modificando-o ou
apenas liberando o contratante lesado, com o objetivo de evitar que, por
meio da avença, se consume atentado contra a Justiça.
Assim, ao falarmos em pacta sunt servanda deve-se, ante a nova realidade,
interpretar-se os contratos conjuntamente com as regras da equidade, do equilíbrio
contratual, da boa-fé objetiva e da função social do contrato a fim de que este tenha
se mantenha e tenha continuidade de execução.
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Destarte, como bem ressaltado por Nelson Rosenvald (2014, p. 507), em dois
momentos extremos vislumbra-se uma grande carga de justiça contratual; o primeiro,
“ao tempo da celebração do contrato”, como forma de combate à elevada desproporção entre as prestações; e um segundo momento, “ao tempo da execução do
contrato, assegurando-se o sinalagma funcional, que pode ser perturbado por acontecimentos extraordinários que minam a correspectividade das obrigações, conduzindo
um dos contratantes à posição de onerosidade excessiva”.
2 Origens históricas da cláusula rebus sic stantibus
Segundo a concepção relatada anteriormente, uma vez realizado o acordo de
vontades entre as partes, ou seja, uma vez concluído o contrato, pelo princípio da
pacta sunt servanda, este se tornaria imutável. No entanto, diante da “realidade jurídica e fática do mundo capitalista e pós-moderno não se possibilita mais a concepção
estanque do contrato” (TARTUCE, 2011, p. 500). Neste sentido é que Pontes de
Miranda (1958, p. 216) assinalava que “o princípio de adimplir-se o que se prometeu
exige que não se leve em conta os sacrifícios dos devedores” no entanto, continua,
tal posição se levada ao extremo conduziria a soluções que “destoam dos propósitos
de adaptação social, que tem todo sistema jurídico”.
Desta feita é que Flávio Tartuce (2011, p. 501) nos apresenta o princípio da força obrigatória dos contratos como sendo “uma exceção à regra geral da socialidade,
secundária à função social do contrato, princípio que impera dentro da nova realidade
do direito privado contemporâneo”.
Durante o século XIX, o que se valorizava eram o consentimento e a palavra
dada, “considerando-se que a quebra do compromisso contratual equivaleria à mentira (pecado)” (EHRHARDT JÚNIOR, 2008, p. 92), confirmando, assim, a presunção de
que aquilo que foi pactuado deve ser cumprido e não poderia ser revisto (pacta sunt
servanda).
Diante de tal contexto, Arnoldo Medeiros (1958, p. 13) questiona:
Seria justo fazer recair, em tal caso, todo o prejuízo sobre quem era apenas culpado de não ter previsto o imprevisível, por um supersticioso respeito ao princípio da irretratabilidade das convenções, consagrado pelo
Código Civil francês, e outros que o tomaram por modelo?
É neste âmago que, Paulo Carneiro Maia (apud EHRHARDT JÚNIOR, 2008,
p. 93), fazendo referência ao pensamento de José Rodrigues Vieira Netto, sustenta
que:
O apótema pacta sunt servanda ‘perdeu em absolutismo, débil à penetração das ideias de sentido solidarista e ao intervencionismo estatal,
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nas relações econômicas’, opondo-se-lhe, de maneira irreprimível, o conceito da rebus sic stantibus, como uma das formas de reapreciação do
contrato [...]. Surge ela ‘da aplicação da lei com o fim social, refletindo a
pressão criadora do direito, que vem debaixo — do devedor mais débil,
do obrigado economicamente inferior — o prato mais frágil da balança.
Com sua evolução tendo início no Código de Hamurabi,2 segundo lições de
Ehrhardt Júnior, a cláusula rebus sic stantibus tratou da ocorrência de eventos futuros
que provocavam modificações no contrato.
Ainda no início do século XIX, a cláusula rebus sic stantibus perdeu força, segundo Paulo Carneiro com “a exaltação das ideias de segurança, de equilíbrio e de estabilidade que reconduziram ao princípio da rigidez contratual” (MAIS apud EHRHARDT
JÚNIOR, 2008, p. 92).
Nada obstante, dados os acontecimentos da Guerra de 1914 que ocasionaram
um desequilíbrio nos contratos de longo prazo, a investigação sobre quais seriam as
influências jurídicas que deveriam ser exercidas, diante de acontecimentos imprevistos e imprevisíveis, sobre as obrigações contratuais ainda não executadas, voltou a
despertar real interesse nos juristas, uma vez que tais obrigações acarretavam, para
um dos contratantes, uma onerosidade excessiva. Passando a ser denominada de
Teoria da Imprevisão.
Determinados países tentaram resolver essa questão através da regulamentação em leis próprias, como a França, com a Lei Faillot (1918) e a Inglaterra, com
a Frustration of Adventure (1915). Todavia, a questão acerca da superveniência de
fatos imprevisíveis acarretando uma onerosidade excessiva para uma das partes
acerca da obrigação assumida fez com que os juristas da época se posicionassem
“na sua árdua função de realizar o direito, posto em contato com o caso prático”
(FONSECA, 1958, p. 16).
Assim,
por muitos anos, pela influência sobretudo dos tribunais eclesiásticos
e dos pós-clossadores ou bartolistas, foi admitida pacificamente, como
subentendida nos contratos que tivessem dependentiam de futuro, a
cérebre cláusula rebus sic stantibus, - abreviação da fórmula: Contractus qui habent tractum succesivum et dependentiam de futuro rebus sic
stantibus intelliguntur – pela qual, nos contratos de trato sucessivo ou a
termo, o vínculo obrigatório se entendia subordinado à continuação daquele estado de fato vigente ao tempo da estipulação. (FONSECA, 1958,
p. 18, grifo nosso)
Lei 48- Se alguém tem um débito a juros, e uma tempestade devasta o seu campo ou destrói a colheita, ou
por falta d´água não cresce o trigo no campo, ele não deverá nesse ano dar trigo ao credor, deverá modificar
sua tábua de contrato e não pagar juros por esse ano.
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3 A revisão contratual no Código Civil de 2002
Exposta tal introdução, cumpre analisar que a Teoria da Imprevisão além de
se opor ao princípio da obrigatoriedade, procura averiguar em quais oportunidades
seria possível admitir a revisão dos contratos, por intermédio do juiz que, verificando
a ocorrência de fatos supervenientes imprevistos e imprevisíveis alteram a essência
da obrigação, ocasionando uma onerosidade excessiva para um dos estipulantes.
Deste modo,
(...) a possibilidade de intervenção judicial no contrato ocorrerá quando
um elemento inusitado e surpreendente, uma circunstância nova, surja
no curso do contrato, colocando em situação de extrema dificuldade um
dos contratantes, isto é, ocasionando uma excessiva onerosidade em
sua prestação. (VENOSA, 2013, p. 486)
Para esse assunto, o Código de 2002 separou uma Seção, composta por três
artigos, quanto à resolução dos contratos por onerosidade excessiva; são eles, os
artigos 478, 479 e 480.
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema
vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e
imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos
da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Neste artigo, percebe-se que o legislador, nitidamente, mitiga a rigidez contratual, buscando dar resposta ao problema da alteração das circunstâncias quando,
disciplina a excessiva onerosidade superveniente.
Pois bem, ao cuidar do tema da intervenção judicial dos contratos, deve-se
destacar que não é qualquer tipo que se sujeita a estas situações. Em breve síntese,
hodiernamente, a doutrina entende que diversos fatores remeterão um contrato de
duração à resolução.
Como sequência, passa-se a dissecar os requisitos para a configuração da
Teoria da Imprevisão.
O primeiro fator a invocar a onerosidade excessiva é que o contrato verse sobre
os denominados contratos de duração, nos quais a vontade deliberada é cumprida por
meio de atos reiterados; excluindo-se assim, os contratos de execução instantânea.
O segundo requisito é a eclosão de fato superveniente extraordinário que
gere onerosidade excessiva a um dos contratantes, ou seja, faz-se necessário a
superveniên­cia de um fato que tenha operado a alteração do ambiente objetivo do
contrato “de tal forma que seu cumprimento implique por si só o enriquecimento
(excessivo) de um e empobrecimento de outro” (GONÇALVES, 2010, p. 197). Neste
ponto,
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Angelina Cortelazzi Bolzam, Rafael Fernando dos Santos
(...) se as circunstâncias que determinam a mutação do ambiente objetivo
do contrato pertencem ao ordinário curso dos acontecimentos naturais,
políticos, econômicos ou sociais, e podiam, por isso, ter sido previstas
quando da conclusão do negócio, não há razão, como afirma Enzo Roppo,
para tutelar o contratante. (GONÇALVES, 2010, p. 197, grifo nosso)
Vale notar que, a onerosidade excessiva não deve ser averiguada de forma
isolada, uma vez que, a sua interação com a alteração das circunstâncias supervenientes que não foram balizadas pelas partes e que levam à injustiça do conteúdo
contratual é circunstância essencial para a resolução do contrato.
Mas como chegar à conclusão de que uma obrigação se tornou excessivamente
onerosa, nos termos do artigo 478 do Código Civil? Tal tarefa cabe ao aplicador do
direito que, de forma cuidadosa, de acordo com os aspectos específicos do caso em
concreto, deve verificar se a onerosidade pode ser considerada excessiva.
O terceiro requisito é aquele que qualifica o fato extraordinário, ou seja, a imprevisibilidade. Nas palavras de Nelson Rosenvald (2014, p. 508), “dizer que é imprevisível equivale a dizer que é anômalo ou anormal”.
Nada obstante, segundo Enunciado nº 366, CJF, “o fato extraordinário e imprevisível causador de onerosidade excessiva é aquele que não está coberto objetivamente pelos riscos próprios da contratação”.
Desta forma, ao partir da ideia de que o contrato comporta, pra quem o faz,
riscos mais ou menos elevados, “a lei tutela o contraente face aos riscos anormais,
que nenhum cálculo reacional econômico permitiria considerar” (ROSENVALD, 2014,
p. 508).
O quarto pressuposto diz respeito à existência de nexo causal entre o evento
superveniente e a consequente excessiva onerosidade. De outro modo, faz-se necessário que a onerosidade excessiva decorra de uma alteração da situação objetiva do
cumprimento do contrato.
Aqui, em breve síntese, muitos autores3 alertam para o fato de que o contratante que estiver em mora quando da ocorrência dos fatos extraordinários, não poderá
invocar, em sua defesa, a onerosidade excessiva.
Em sentido contrário, Flávio Tartuce (2014, p. 150) delibera que a ausência
de mora não é um requisito para a revisão do contrato e, fazendo apoio às palavras
de Fábio Podestá, escreve que, “na grande maioria das vezes aquele que está em
mora é quem mais precisa da revisão, justamente para demonstrar a abusividade
contratual”.
Cf. Nelson Rosenvald e Carlos Roberto Gonçalves.
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Diante da leitura do dispositivo transcrito, percebe-se que o Código Civil opta
pela resolução do vínculo celebrado entre as partes. No entanto, a opção do legislador não se pactua com a orientação extraída dos demais dispositivos do Código.
Mais uma vez, apesar de o artigo 478 dispor acerca apenas da possibilidade da
resolução do contrato e não a sua revisão; esta, no entendimento de Carlos Roberto
Gonçalves (2010, p. 53) pode ser pleiteada com base no artigo 317, do mesmo
diploma legal, que estatui que, “quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o momento de sua execução,
poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quando possível, o
valor real da prestação”.
É neste sentido que, durante a III Jornada de Direito Civil do CJF/STJ foi aprovado o Enunciado nº 176 que descreve que, “em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o artigo 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir,
sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual”;
percebendo-se, assim, a valorização pela conservação contratual.
Em resumo, Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 197) retrata em sua doutrina,
citando os ensinamentos de Ruy Rosado de Aguiar Júnior, que,
(...) quando a situação não pode ser superada com a revisão das cláusulas, admite-se a extinção do contrato em razão fato superveniente. Isto
porque: ‘a) ou o contrato já não tem interesse para o credor, e deve ser
extinto em seu favor, ou o contrato impõe ao devedor um dano exagerado, deixando de atender à sua função social (art. 421 do Código Civil) –
que é a de ser útil e justo, conforme a lição de Ghestin; b) o princípio da
igualdade, constitucionalmente assegurado, não permite que o tratamento dispensado preferentemente ao credor que vai receber um pagamento
seja diverso do reservado ao devedor de prestação excessivamente onerosa; c) o princípio da boa-fé exige que a equivalência das prestações se
mantenha também no momento da execução, inexistente na hipótese de
manifesta desproporção de valor entre elas’.
Seguindo a lógica de manutenção do contrato o artigo 479 do Código Civil preceitua, por sua vez, que “a resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a
modificar equitativamente as condições do contrato”. Nesse artigo estabelece-se a
reductio ad aequitatem, ou equitativa modificação das circunstâncias contratuais,
com o fito de evitar o desfazimento contratual.
Nota-se que a norma prevê a possibilidade de o demandado, na ação de resolução contratual, oferecer medidas compensatórias à desproporção prestacional,
sendo possível a modificação também ex officio pelo juiz, segundo entendimento
doutrinário, caso o réu concorde com a alteração contratual.
Nelson Nery Junior (2012, p. 684) estabelece que,
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(…) quando verificada a onerosidade excessiva pode haver modificação
da cláusula contratual que a ensejou, de modo que se volte a fazer com
que se volte ao anterior equilíbrio contratual. (…) Caso o réu não concorde em modificar equitativamente as condições do contrato e sendo
interesse da parte onerada a manutenção do contrato, o juiz pode ex
officio, corrigir as distorções e modificar a cláusula contratual, fazendo a
revisão judicial do contrato.
Apesar da atuação ex officio do magistrado, tendo em vista a incidência dos
princípios da boa-fé e da função social dos contratos, normas de ordem pública, a
priorização dada pela lei é à iniciativa das partes na busca pelo equilíbrio contratual.
O reestabelecimento do equilíbrio nas prestações contratuais, por meio da modificação equânime proposta pela parte a quem interessa manter o vínculo contratual
é a consubstanciação do princípio da boa-fé contratual, do comportamento leal das
partes em se atingir a justiça contratual.
O artigo 480 do Código Civil, por sua vez, estabelece a possibilidade de redução
das prestações unilaterais, prestações estas que se caracterizam por gerarem obrigações a apenas uma das partes. Preceitua o artigo que “se no contrato as obrigações
couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterando o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva”.
Nesse artigo mantem-se a percepção de equilíbrio das relações contratuais,
ainda que as obrigações oriundas do contrato sejam incumbidas a uma das partes,
sendo esta a devedora e a outra credora. Não há aplicação da teoria da revisão
contratual apenas aos contratos sinalagmáticos, compreendidos como os contratos
em que a obrigação assumida por uma parte encontra razão de ser nas obrigações
assumidas pela outra parte (NERY JÚNIOR; NERY, 2012, p. 620).
A seu turno, o artigo 317 do Código Civil igualmente estabelece, em seu conteúdo, regramento acerca da onerosidade excessiva. Contudo, diferem os dispositivos
já abordados com o agora referido, no âmbito de incidência, porquanto o artigo 478
do Código Civil disciplina o modelo jurídico da resolução contratual por onerosidade
excessiva, enquanto o artigo 317 define a aplicação do instituto da revisão às obrigações de maneira geral. Mais amplo, portanto.
Segundo Samuel Martin Casagrande (2009)
A onerosidade excessiva apresenta-se mais ampla do que a teoria da
imprevisão, pois aquela não se restringe ao mundo dos contratos, pelo
contrário, a onerosidade excessiva abarca as obrigações em geral. Ao
celebrar um contrato, uma obrigação, sempre se deve ter em mente a
boa-fé entre as partes. Com isso em vista o ideal é buscar sempre que
possível a preservação e o adimplemento da obrigação. Justamente por
serem um processo dinâmico e cooperativo, que procura a satisfação
das legitimas expectativas das partes há um claro interesse em adaptar
às mudanças repentinas que o passar do tempo produzir.
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A revisão e a resolução contratual sob a ótica da onerosidade excessiva
4 Cláusula de exclusão da revisão judicial
Em sua doutrina, Venosa apresenta a discussão acerca da validade da cláusula
que, uma vez prevista no contrato, proíbe as partes de recorrerem à teoria da imprevisão e consequente revisão contratual.
Considerando sua posição, o autor entende que “uma cláusula genérica nesse
sentido não pode ter validade, por cercear o direito de ação em geral e ser uma renúncia prévia genérica a direitos” (VENOSA, 2013, p. 496).
No entanto, relata que a situação se inverte quando as partes “preveem expressamente fatos configurativos de excessiva onerosidade, o que, na verdade, torna-os
previsíveis, fazendo-os cláusulas ordinárias do contrato” (VENOSA, 2013, p. 496).
5 Revisão contratual no Código de Defesa do Consumidor
Apresentado como constituído de normas de ordem pública e de interesse social que protegem e defendem o consumidor, o Código de Defesa do Consumidor
apresenta-se ainda como norma principiológica pela previsão expressa dos artigos 5º,
inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e artigo 48 de suas Disposições
Transitórias.
No tocante à revisão judicial dos contratos de consumo por fato superveniente,
previu o inciso V do artigo 6º da Lei 8.078/1990:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
(...)
V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações
desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que
as tornem excessivamente onerosas;
No que concerne à revisão contratual, ensina Cleber Masson (2013, p. 427)
que o “objetivo aqui é assegurar o equilíbrio econômico do contrato, isto é, a igualdade substancial entre os contratantes, representada pela proporcionalidade das
prestações”.
Neste sentido, ensina a jurisprudência nacional:
O art. 6º, V, do CDC, disciplina, não uma obrigação, mas um direito do
consumidor à modificação de cláusulas consideradas excessivamente
onerosas ou desproporcionais. Assim, referida norma não pode ser invocada pela administradora de consórcios para justificar a imposição de
modificação no contrato que gere maiores prejuízos ao consumidor. (STJ,
REsp nº 1269632/MG, Rel. Ministra Nacy Andrighi, Terceira Turma, DJe
03.11.2011)
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Verificando o disposto no inciso V, percebe-se que o dispositivo abrange duas
situações diferentes, i) a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam
prestações desproporcionais e ii) a revisão, em razão de fatos supervenientes que as
tornem excessivamente onerosas.
Na sua primeira situação, referente à modificação, explica Cleber Masson
(2013, p. 428) que a “cláusula que estabelece a prestação desproporcional em desfavor do consumidor opera desde o início do contrato, afetando, assim, o que se
convencionou denominar sinalagma genético da relação obrigacional”.
Assim, verificado um desequilíbrio desde a formação do contrato, o consumidor
é livre para solicitar a modificação da cláusula geradora das prestações desproporcionais, com base no inciso V do artigo 5º do CDC, como em uma leitura conjunta do
artigo 51, do mesmo diploma, a declaração da sua nulidade.
Já no que concerne à segunda situação, ou seja, o direito à revisão, é mister
observar, segundo lições de Masson (2013, p. 429), que “o desequilíbrio econômico
do contrato é causado por fato novo, superveniente à sua celebração, e que torna a
prestação do consumidor excessivamente onerosa, afetando, assim, o que se convencionou denominar sinalagma funcional do contrato”.
Muitos autores, como Cleber Masson e Flávio Tartuce, entendem que diferentemente do Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor adotou a teoria da base
objetiva do negócio jurídico. Isso porque, para o CDC “não interessa se o fato posterior era imprevisível, o que realmente importa é se o fato superveniente alterou
objetivamente as bases pelas quais as partes contrataram, alterando o ambiente
econômico inicialmente presente” (GARCIA, 2013, p. 66).
Referida teoria foi desenvolvida por Karl Larenz, após a Segunda Guerra Mundial
e dispensa qualquer discussão a respeito da previsibilidade do fato econômico superveniente. Assim, a revisão contratual decorre da simples constatação de que o fato
novo tornou excessivamente onerosa a prestação do consumidor.
Cláudia Lima Marques (2003, p. 413) em sua doutrina também deixa clara a
posição adotada pela Lei nº 9.078/90:
A norma do art. 6º do CDC avançou ao não exigir que o fato superveniente
seja imprevisível ou irresistível, apenas exige a quebra da base objetiva
do negócio, a quebra de seu equilíbrio intrínseco, a destruição da relação
de equivalência entre prestações, o desaparecimento do fim essencial
do contrato.
Frise-se, ainda, que o CDC não exige para promover a revisão judicial que, além
da excessiva onerosidade, haja extrema vantagem para a outra parte, como faz o
Código Civil, em seu artigo 478, já estudado.
Assim, segundo a teoria da base objetiva do negócio jurídico, o Código de
Defesa do Consumidor dispensa a análise da previsibilidade do fato superveniente,
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A revisão e a resolução contratual sob a ótica da onerosidade excessiva
bastando a onerosidade excessiva para o consumidor, fator que leva à revisão judicial
do contrato. Nada obstante, excepcionalmente, quando não for possível salvá-lo, tal
condição acarretará a resolução do contrato.
6 Considerações finais
Nota-se, por todo o exposto, que os institutos da resolução e revisão contratual,
presente a onerosidade excessiva, advinda ou não de fatos supervenientes e imprevisíveis, é resultante dos valores e princípios decorrentes da lógica da supremacia
do interesse coletivo e outras tantas balizas a serem contempladas juntamente com
a força vinculante das avenças, a qual não se concebe como única diretriz a ser
verificada no momento do cumprimento de uma obrigação contratada. Em uma reviravolta da lógica individualista para os valores de um ordenamento jurídico pautado
em satisfazer a justiça social, o princípio do pacta sunt servanda afigura-se, portanto,
reinventado pelas noções de dignidade da pessoa humana e de sociabilidade, de
modo a aplicar aos contratos a sua perspectiva social, ou como melhor definido, a
sua função social.
Os contratos, como todos os demais institutos do direito privado, não se prestam a ser uma finalidade em si mesmos. As avenças, típicas manifestações de vontade presentes nas relações humanas, somente podem ser respaldadas pelo Estado,
definidas, portanto, como direito a ser tutelado, enquanto estiverem condizentes com
os anseios sociais e de justiça estampados no ordenamento jurídico.
A revisão e a resolução contratuais revelam-se, portanto, instrumentos concretizadores da função social do contrato, garantem que o contrato, enquanto instituto
tipicamente privado, possa ser utilizado como instrumento de igualdade, eficaz para
o reequilíbrio do status quo ante dos contratantes, para a proteção contra a vulnerabilidade e fragilidade de uma parte em face da outra, e, a um só tempo, permitem
os tais mecanismos, a preservação do contrato, ainda que revisto para afastar as
distorções supervenientes. As garantias de revisão e resolução de um contrato excessivamente oneroso, por fatos supervenientes e imprevisíveis, e, no caso dos direitos
do consumidor, usualmente em posição de fragilidade, apenas pela onerosidade excessiva, promovem a igualdade, na medida em que recoloca as partes em igualdade
de condições.
O contrato não pode ser usado, não ao menos sob a égide de nosso atual
ordenamento jurídico, como opressor, como subjugador do devedor, devendo-se condicionar sua eficácia interna e externa ao atendimento de princípios como a boa-fé
e a justiça contratual, dos quais a revisão e resolução contratuais, nas situações e
onerosidade excessivas, retiram seu fundamento.
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Review and Contractual Resolution from the Perspective of Excessive Onerousness
Abstract: This work has as scope the analysis of aspects relating to contractual imbalance, given the theory
of unpredictability, to the extent that reveal capable of modify the facts and unleash within the covenant,
excessive onerousness to one party. The proposal measurements reveal to be relevant before the need
for stability of the contractual and social relations, looking up by objective criteria, to avoid the simple
disregard of what has been agreed, but away from, on the other hand, that the factual situation, which came
differently than expected or could have foreseen make the obligation exceedingly onerous. The research is
based on the doctrine, faced with the current law, and a brief jurisprudential roundup, revealing that there
are hypothesis of flexibilization of what was formally agreed before the supervening change in the factual
scenario.
Keywords: Contract Review. Contract Resolution. Excessive Onerousness. Theory of Unpredictability.
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A revisão e a resolução contratual sob a ótica da onerosidade excessiva
TARTUCE, Flávio. Direito Civil. v. 3: Teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 9. ed. rev.,
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VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 13.
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):
BOLZAM, Angelina Cortelazzi; SANTOS, Rafael Fernando dos. A revisão e a resolução
contratual sob a ótica da onerosidade excessiva. Revista Fórum de Direito Civil –
RFDC, Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 207-223, set./dez. 2015.
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RESP nº 1.323.410/MG: revisitando
os prazos renovatórios da locação
empresarial
Ana Paula da Silva Liberalino
Graduanda em Direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA). E-mail:
<[email protected]>.
Resumo: A locação empresarial, regulamentada pela Lei nº 8.245/91 — Lei do Inquilinato, ou de Locações
—, se trata do contrato pelo qual o locatário — ou inquilino — irá exercer o uso e gozo de imóvel do
locador, tendo por fim o exercício de atividade econômica. Objetivando a proteção ao ponto comercial, o
caput do art. 51 da citada lei prevê que o locatário terá direito à renovação do contrato por igual prazo.
Sem haver referência a qual lapso temporal essa expressão remete, algumas dúvidas ficam acerca de
sua interpretação e aplicação. Caso as partes tenham estabelecido, anteriormente, vários contratos, o
termo por igual prazo refere-se àquele do último pacto celebrado? De qualquer um deles? Ou à soma
do tempo de todos os contratos? Seria ao requisito mínimo de cinco anos para exercer o direito à ação
renovatória, previsto em seu inciso II? Várias interpretações e, consequentemente, aplicações decorrem
dessa imprecisão normativa, e, visando ao seu esclarecimento, este arranjo se divide em etapas.
Primeiramente, analisam-se o arcabouço legal do contrato de locação empresarial e os fins aos quais se
propõe. Sucessivamente, é feita uma explanação acerca do direito à ação renovatória e quais os seus
requisitos normativos. Por último, diante da imprecisão normativa, debatem-se quais são as interpretações
possíveis, os conflitos de direitos oriundos e, especialmente, a decisão dada no Recurso Especial nº
1.323.410/MG do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Palavras-Chave: Locação empresarial. Prazo renovatório. Lacuna. Superior Tribunal de Justiça.
Sumário: 1 Introdução – 2 Estruturação jurídica do contrato de locação empresarial – 3 Sistema
normativo da ação renovatória – 4 Interpretações do prazo renovatório: direitos e princípios em conflito –
5 Considerações finais – Referências
1 Introdução
Com o estabelecimento do contrato de locação empresarial, como em qualquer
espécie de locação, alguns direitos são conferidos e outros deveres são previstos
para as partes, à luz dos princípios e funções contratuais. Não obstante, há certas
peculiaridades desta modalidade as quais objetivam a proteção de interesses inerentes a esta avença, notadamente no que se refere ao fundo de comércio, mais
especificamente, ao seu subtipo, o ponto comercial.1
Algumas dessas diferenças referem-se: (i) ao prazo pelo qual é ajustado o contrato de locação empresarial,
sendo este, comumente, avençado por lapso temporal maior em relação aos outros contratos locatícios de
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Ana Paula da Silva Liberalino
O ordenamento jurídico brasileiro protege o locatário e o bem imaterial por este
adquirido, diante da má-fé do locador que quisesse reestabelecer sua posse do imóvel, tão logo percebesse a valorização deste, vindo a enriquecer ilicitamente através
do trabalho do inquilino.
Porém, a proteção jurídica dada ao local empresarial não tem por fim a preponderância deste interesse, mas a busca do equilíbrio contratual a ser obtido através da
ponderação entre a importância relativa ao patrimônio incorpóreo — pertencente ao
arrendatário — e à propriedade — do arrendador.2 Portanto, como argumentado por
Alfredo Buzaid,3 o escopo da lei não é a composição de um conflito, mas a harmonização entre essas duas pretensões.
Consoante os objetivos supramencionados, a Lei nº 8.245/91 — de Locações,
ou do Inquilinato —, em seu art. 51, disciplina o direito à ação renovatória, desde que
preencha alguns requisitos legais. Um destes, o qual cabe ressaltar, estabelece que
o prazo mínimo do negócio locatício a ser renovado deve ser de cinco anos, o qual
também pode referir-se à junção das avenças anteriores.
Verificando-se os pressupostos do diploma jurídico, o locatário terá direito à
renovação do contrato por igual prazo. No entanto, a expressão é vaga quanto a qual
lapso temporal alude. Diante desta imprecisão contida no caput do art. 51, várias
interpretações são possíveis e, consequentemente, diversas aplicações, das quais
emerge o conflito entre direitos das partes contratuais.
A pesquisa reportar-se-á, portanto, ao problema interpretativo da disposição normativa, e será feita em três etapas. Primeiramente, analisar-se-á o arcabouço legal
da locação empresarial; depois, far-se-á uma explanação acerca da natureza jurídica
do direito à ação renovatória; por último, diante da má redação presente no caput
imóveis urbanos — que, em geral, possuem prazo inferior, devido a fatores econômicos como a inflação
—, deste modo mencionado por Sylvio Capanema de Souza (SOUZA, 2012, p. 29.); (ii) ao direito à ação
renovatória, que é previsto para as locações não residenciais, e, ainda segundo Sylvio Capanema de
Souza, “constitui o mais poderoso instrumento de proteção do fundo empresarial” (SOUZA, 2012, p. 212.),
assim confirmado pelo julgado: “PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. AÇÃO RENOVATÓRIA DE ALUGUEL. COMPANHIA
NACIONAL DE ABASTECIMENTO – CONAB. RESCISÃO DO CONTRATO E REINTEGRAÇÃO DE POSSE EM AÇÃO
DE DESPEJO. PERDA DE OBJETO. RECURSO PREJUDICADO. 1 – A CONAB possui natureza jurídica de empresa
pública, sujeitando-se, destarte, aos ditames da Lei nº 8.245/91. (AC 200251010129905, Desembargador
Federal Reis Friede, TRF2 – Sétima Turma Especializada, DJU – Data::12/09/2007 – Página::63./ AC
200251010142363, Desembargador Federal Guilherme Couto, TRF2 – Sexta Turma Especializada, DJU –
Data::31/03/2009 – Página::116.) 2 – A ação renovatória destina-se à renovação do contrato de locação
comercial nas condições inicialmente firmadas, ou conforme as que sejam fixadas judicialmente. Seu escopo
é a prorrogação ou a continuação do contrato de locação ou arrendamento do imóvel para fins comerciais e
a proteção do fundo de comércio, mormente o ponto de negócio, que vem a ser o lugar onde se encontra
o estabelecimento” (TRF-2, Apelação Cível nº 199751010707964, Relator: Desembargador Federal Aluisio
Gonçalves de Castro, Quinta Turma Especializada, Publicação: DJ em 9-9-13, Grifou-se).
2
As palavras locação e arrendamento estão sendo utilizadas como sinônimas, assim como suas equivalentes:
locador ou arrendador, locatário ou arrendatário. Doutrinadores como Flávio Tartuce (2015, p. 378.) e Carlos
Roberto Gonçalves (2015, p. 308.) explicitam essa possibilidade de equivalência terminológica, apesar de
alguns autores fazer a diferenciação, como Roberto Senise Lisboa (2005 apud TARTUCE, 2015, p. 378.)
3
BUZAID, 1988 apud DE ALMEIDA, 2006, p. 9.
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RESP nº 1.323.410/MG: revisitando os prazos renovatórios da locação empresarial
do art. 51, debater-se-ão os possíveis entendimentos, considerando não só os fins
para os quais se propõe a proteção ao ponto comercial, como também a contribuição
da decisão dada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso Especial (REsp)
nº 1.323.410/MG.
Por último, torna-se metodologicamente pertinente uma observação acerca do
tema deste trabalho remeter-se ao REsp nº 1.323.410/MG. Este recurso especial
também tem como conteúdo a discussão relativa ao prazo renovatório. Por conseguinte, traz uma decisão paradigma — visto que o STJ é a Corte que tem como função
constitucional a uniformização jurisprudencial das leis federais —, de referência aos
tribunais estaduais em geral e, notadamente, para a análise que se pretende realizar
nesta pesquisa.
2 Estruturação jurídica do contrato de locação empresarial
2.1 Breve relato histórico
Segundo o Código Civil de 2002,4 a locação é uma das espécies contratuais por
meio da qual uma parte cede o uso de um bem em troca de remuneração. Quando
esta avença tiver por objeto um imóvel urbano,5 deve seguir os preceitos legais contidos na Lei do Inquilinato,6 conforme denominação majoritária da doutrina.7
Este negócio jurídico já foi matéria de inúmeras leis e atos normativos,8 os quais
tentaram estabelecer uma harmonia entre os interesses das partes contratuais, diante de cada contexto econômico que o país passou — ora de liberação do mercado,
“Art. 565. Na locação de coisas, uma das partes se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o
uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição.”
5
De acordo com Sylvio Capanema de Souza: “(...) para efeito da Lei do Inquilinato, o imóvel a que ela se
refere é o solo, com sua superfície, os seus acessórios e adjacências naturais, bem como tudo o que o
homem incorporar permanentemente ao solo, como os edifícios e construções. (...) se aplicará às locações de
terrenos urbanos, haja ou não construção, salvo as exceções elencadas, em numerus clausus, no parágrafo
único.”. Quanto à significação do vocábulo urbano, este se refere não à localização do imóvel, mas à sua
destinação, em outras palavras, “(...) O critério aferidor da natureza jurídica do imóvel, para efeito de locação,
é o da sua utilização, pelo locatário, ou seja, do fim a que se destina, primordialmente, o contrato” (SOUZA,
2012, p. 13).
6
Sílvio de Salvo Venosa expõe: “Na locação de coisas, que pode ter por objeto bens móveis e imóveis,
as disposições gerais do estatuto civil aplicam-se principalmente no tocante à locação de móveis e
subsidiariamente, quando não houver disposição específica em contrário, às locações imobiliárias. (...) Nas
locações de imóveis, há que se obedecer à legislação especial, embora a própria Lei do Inquilinato ressalve a
vigência pelo Código Civil das locações que enumera no parágrafo único do art. 1º. Devemos acentuar que os
princípios gerais estudados nos tópicos introdutórios deste capítulo aplicam-se, destarte, primordialmente, à
locação de bens móveis” (VENOSA, 2013, p. 138).
7
Cabe observar que, como esclarecido por Flávio Tartuce, a utilização da expressão Lei do Inquilinato não faz
referência a uma norma protetiva do locatário em detrimento do locador — não é como é a Lei nº 8.078/1990
em relação ao consumidor, ad exemplum —, pois muitas inovações mais protegem o locador e fiador
(TARTUCE, 2015, p. 386).
8
A título de exemplo, com caráter predominantemente protetivo, tivemos a Lei nº 6.649/79, tendo como
contraponto da atual Lei do Inquilinato, por meio da qual foi possível certa liberdade de mercado.
4
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ora de forte intervenção estatal —, comprometendo, por conseguinte, o próprio entendimento legal da locação urbana.9
A imensa e diversificada produção legislativa (como também administrativa),
visando à regulação do imóvel urbano como objeto locatício, suscitou várias discussões doutrinárias e jurisprudenciais acerca de lacunas e pontos controversos, apontando para a necessidade de haver uma junção, em um só diploma legal, que viesse
a oferecer maior segurança jurídica — tanto aos contratantes, quanto aos intérpretes
e aplicadores destes preceitos. A evidenciar tal realidade, Luís Antônio de Andrade,10
dissertando sobre a conjuntura factual que vigorava em 1984, afirmava que a legislação relativa a essa locação estava dispersa em 16 (dezesseis) leis e atos normativos, sendo necessário haver a reunião em apenas um estatuto.
Anteriormente à promulgação da atual redação do inquilinato, vigorava a Lei
nº 6.649/79, cuja expressão fora de dirigismo estatal e protecionismo ao locatário,
da qual se seguiu uma crise de insegurança no setor imobiliário brasileiro, pois as
normas que o disciplinavam variavam como um pêndulo, desde a quase absoluta
liberdade de contratar — favorecendo os investimentos —, até o congelamento dos
aluguéis e as brutais restrições ao direito de retomada11 — paralisando este ramo de
atividade econômica. Deste encadeamento, seguiu-se também o problema do déficit
populacional, conforme ressaltado pelos Ministros Jarbas Passarinho, Zélia Cardoso
de Mello e Margarida Procópio.12
A Lei nº 8.245/91 veio, dessa forma, a ser uma das soluções para a realidade
crítica econômica e normativa — no que se refere à segurança jurídica. Como manifestação do liberalismo político e econômico,13 corrigiu a excessiva proteção dada ao
inquilino pela Lei nº 6.649/79 — da qual emergiam as consequências expostas —,
com a convicção de que a liberdade de contratação é o maior dos incentivos, mas,
ainda, mantendo certo amparo à parte mais fraca nessa relação, que é o locatário,14
viabilizando, pois, um equilíbrio contratual.
SLAIBI FILHO, 2010, p. 19.
ANDRADE, 1984, p. 297.
11
SOUZA, 2012, p. 01.
12
Observação feita na exposição de motivos ao anteprojeto da Lei nº 8.245/91 (SLAIBI FILHO, 2010, p. 23), na
qual os Ministros elencaram também outras razões, tais quais: “(...) 3. Percebeu-se, sem grande dificuldade,
que a atual lei de inquilinato, ao presumir a hipossuficiência de uma das partes na relação locatícia, restou por
inviabilizar a locação de imóveis e os investimentos que tradicionalmente eram destinados à construção civil,
especialmente na área de habitação.
(...)
16. Há muito o que fazer até que as mencionadas necessidades dos brasileiros por moradia sejam
definitivamente supridas. O presente projeto de lei do inquilinato, ao buscar o equilíbrio de mercado através
da livre negociação e da ausência de regras excessivamente protecionistas, certamente contribuirá para
minimizar o grave problema habitacional do país. (...)” (SIMÕES, 2011, p. 8-11, grifou-se).
13
SLAIBI FILHO, 2010, p. 23.
14
Considerações presentes no Projeto da Nova Lei do Inquilinato (SIMÕES, 2011, p. 8-11).
9
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RESP nº 1.323.410/MG: revisitando os prazos renovatórios da locação empresarial
2.2 Regime jurídico da Lei do Inquilinato
Filiando-se ao desenvolvimento de Sylvio Capanema de Souza,15 é possível
depreender que a Lei do Inquilinato teve como objetivos proporcionar: (i) a gradual
liberação do mercado, favorecendo os investimentos no setor de locação imobiliária;
(ii) o incentivo à abertura de novas unidades locatícias, forçando a queda dos preços
dos aluguéis, em harmonia com a lei da oferta e da procura regedora do mercado; (iii)
a tão aguardada unificação do regime jurídico deste negócio.
A legislação vigente rege as locações residenciais — aquelas que têm como
finalidade a moradia, revestindo-se de caráter intuitu familiae16 — e não residenciais
— as quais abrangem as destinadas ao comércio e à indústria, compreendendo,
também, os contratos locatícios que não exercem tais atividades, mas possuem fins
lucrativos,17 como consta em seu §4º do art. 51.18
Será objeto desta pesquisa, portanto, as relações locatícias não residenciais
voltadas ao exercício econômico, que são todas aquelas protegidas juridicamente
pela renovação compulsória.
2.3 A proteção jurídica ao fundo empresarial
A ação renovatória foi originariamente prevista, no Brasil, pelo Decreto nº
24.150/34 — Lei de Luvas —, o qual visava à preservação do fundo de comércio19
do empresário, notadamente no que se refere ao seu ponto comercial. Este, como
SOUZA, 2012, p. 2.
SOUZA, 2012, p. 211.
17
O autor Nagib Slaibi Filho atenta para esta distinção, informando que o art. 51 da Lei do Inquilinato referese, expressamente, às locações não residenciais destinadas ao comércio, suscitando a observação de que
há também as que não objetivam essa atividade. Conclui dessa forma: “(...) existem locações de imóveis
não residenciais destinados ao comércio (inclusive as de shopping center) e locações não residenciais não
destinadas ao comércio (como, por exemplo, locações industriais).” Acentua também que, o atual estatuto
legal “expressamente declara que o direito à renovação do contrato estende-se às locações celebradas
por indústrias e sociedades civis com fim lucrativo, regularmente constituídas, desde que ocorrentes os
pressupostos legais” (SLAIBI FILHO, 2010, p. 321).
18
“Art. 51. Nas locações de imóveis destinados ao comércio, o locatário terá direito a renovação do contrato, por
igual prazo, desde que, cumulativamente:
I – o contrato a renovar tenha sido celebrado por escrito e com prazo determinado;
II – o prazo mínimo do contrato a renovar ou a soma dos prazos ininterruptos dos contratos escritos seja de
cinco anos;
III – o locatário esteja explorando seu comércio, no mesmo ramo pelo prazo mínimo e ininterrupto de três anos.
(...)
§4º O direito a renovação do contrato estende-se às locações celebradas por indústrias e sociedades civis
com fim lucrativo, regularmente constituídas, desde que ocorrentes os pressupostos previstos neste artigo)”
(grifou-se).
19
SOUZA, 2012, p. 211.
Fábio Ulhoa Coelho diferencia o conceito de estabelecimento empresarial e fundo de comércio — ou de
empresa —, afirmando que aquele se refere ao conjunto de bens que o empresário reúne para explorar uma
atividade econômica, enquanto este se trata do valor agregado ao referido conjunto, em razão da mesma
atividade (COELHO, 2015, p. 166).
15
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conceituado por Rubens Requião,20 vem a ser o lugar em que se encontra o estabelecimento empresarial e para o qual se dirige a freguesia,21 sendo, pois, um bem
imaterial pertencente ao locatário. Segundo o professor, a elaboração deste decreto
partiu do reconhecimento de que o valor incorpóreo do fundo de comércio se integra
em parte ao do imóvel, trazendo benefícios ao proprietário pelo trabalho alheio, não
sendo justo atribuir exclusivamente ao locador tal quota de enriquecimento com o
empobrecimento do inquilino que a conquistou. Portanto, a Lei de Luvas teve por
objetivo, de acordo com sua parte preliminar,22 regular a renovação, reconhecendo a
importância do local para o exercício econômico, assim como a necessidade de evitar
o locupletamento do locador, e, apesar de revogada, uma parte considerável de seus
preceitos legais foi recepcionada pelo atual diploma, mantendo a proteção jurídica ao
patrimônio imaterial adquirido.23
Porém, no decreto, a renovação contratual era prevista apenas às locações de
imóveis destinados ao negócio mercantil ou industrial, ficando excluídos deste regime
jurídico os contratos locatícios não residenciais propriamente ditos, ou seja, aqueles
que, apesar de ter fins lucrativos, não eram voltados para a prática comercial.24
A Lei do Inquilinato não mais utiliza a noção de ato de comércio, mas dá ênfase
ao conceito de empresa como sendo uma atividade economicamente organizada que,
por gerar empregos e tributos, merece proteção especial.25 De tal forma, o §4º do
art. 51 confere o direito renovatório também às locações celebradas por indústrias e
REQUIÃO, 2013, p. 353-354.
Ricardo Negrão grassa que inexiste distinção científica entre os vocábulos cliente e freguês. São, dessa
forma, considerados sinônimos para fazer referência ao conjunto de pessoas que, de fato, mantêm com o
estabelecimento relações continuadas de procura de bens e serviços (NEGRÃO, 2012, p. 113).
22
“Decreto nº 24.150 de 20 de abril de 1934.
Regula as condições e processo de renovamento dos contractos de locação de imóveis destinados a fins
commerciaes ou industriaes.
(...)
Considerando que a necessidade de regular as relações entre proprietarios e inquilinos, por principios
uniformes e de equidade, se fez sentir universalmente, impondo, como impoz, aos povos da mais elevada
educação juridica, a instituição de leis especializadas;
Considerando que, se, de um modo geral, essa necessidade se impoz, mais ainda se torna impreterivel, tendo
em vista os estabelecimentos destinados ao commercio e á industria, por isso que o valor incorporeo do fundo
de commercio — se integra, em parte, no valor do immovel, trazendo, destarte, pelo trabalho alheio, beneficios
ao proprietario;
Considerando, assim, que não seria justo attribuir exclusivamente ao proprietario tal quota de enriquecimento,
em detrimento, ou melhor, com o empobrecimento do inquilino que criou o valor;
Considerando que uma tal situação valeria por um — “locupletamento” — condemnado pelo direito moderno;
(...)
Considerando que a lei elaborada a proposito, longe de comprimir quaesquer direitos, estabelece, ao contrario,
regras em virtude das quaes, com justiça e equidade, são tutelados todos os interesses, (...)” (grifou-se).
23
Sylvio Capanema de Souza confirma: “(...) Mantém-se, assim, o princípio de proteção ao fundo de comércio,
que foi, até, fortalecido com a absorção, pelo novo texto, da jurisprudência ampliativa que vinha se formando”
(SOUZA, 2012, p. 211).
24
SOUZA, 2012, p. 211.
25
SOUZA, 2012, p. 218.
20
21
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sociedades civis com fim lucrativo,26 sendo a estas, portanto, estendido o resguardo
jurídico dado ao fundo de comércio ou empresarial.27
3 Sistema normativo da ação renovatória
Como exposto, na ocasião de o usufruto da propriedade locada ser feito em função de uma atividade econômica, este será um negócio locatício comercial, previsto
na seção das Locações não Residenciais, a qual regula os contratos de aluguel de
imóveis que estão sob a égide da ação renovatória.28
Conforme argumentado por Ricardo Negrão,29 da proteção à localização do estabelecimento comercial derivam duas espécies de direito: (i) se o imóvel pertence
ao empresário ou à sociedade empresária, a lei prevê a indenização nos casos de
privação de seu uso — ad exemplum, a desapropriação por ato de Poder Público;
(ii) porém, se a propriedade alheia foi locada para o exercício lucrativo, há não só a
proteção elencada na hipótese anterior, como também a ação renovatória, desde que
preenchidos os requisitos legais contidos no art. 51 da Lei do Inquilinato.
Interessa-nos, em particular, o segundo direito conferido ao inquilino em razão
de este ser parte da relação jurídica advinda do contrato de locação empresarial.
O renovamento compulsório foi primeiramente previsto pelo já citado Decreto
nº 24.150/34, o qual tinha como objetivo a preservação do fundo de comércio do
locatário, no que se refere ao ponto comercial estabelecido. A ação renovatória será,
portanto, desde sua origem, aquela própria ao exercício da tutela deste patrimônio
imaterial.
A respeito disso, Luiz Antônio de Andrade, através de corroboração dada em comentário sobre o direito à
renovatória em shoppings centers, observa que o atual conceito de empresa — adotado pela Lei do Inquilinato
— possibilitou a abrangência de outras atividades com fins lucrativos, para além das mercantis, tais como
estabelecimento de ensino, casas de saúde, cinemas, teatros, casa de jogos lícitos, de diversões, cinefotos,
hotéis, pensões, oficinas mecânicas, salões de barbeiro e cabeleireiro, empresas telefônicas, depósitos
destinados à guarda de estoque, academias de dança, ginástica, judô e similares, laboratórios de análises
clínicas, alfaiatarias, tinturarias, estabelecimento de crédito, poupança, seguro, administração de bens,
agências de turismo, publicidade, venda de passagens etc. (ANDRADE apud SLAIBI FILHO, 2010, p. 323). Ou
seja, como colocado por Sylvio Capanema de Souza, a atual lei abrange, no campo fértil da ação renovatória,
as locações feitas para sociedades civis, com fins lucrativos, e onde se exerce atividade de prestação de
serviços (SOUZA, 2012, p. 359).
27
Cabe esclarecer que, ao se empregar as expressões locação comercial, empresarial, ou ainda industrial, devese aqui tê-las como sinônimas, significando todas, pois, o contrato locatício de imóvel urbano não residencial,
em todas as suas modalidades nas quais a propriedade será utilizada para fins lucrativos, e por isso,
considerada bem pertencente ao conjunto chamado estabelecimento empresarial. Este, conforme esclarece
Fábio Ulhoa Coelho, é formado por elementos materiais e imateriais. Nestes últimos está compreendido o
ponto comercial, local em que se explora a atividade econômica (COELHO, 2015, p. 169).
28
VENOSA, 2013, p. 158.
29
NEGRÃO, 2012, p. 123.
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3.1 Natureza jurídica do direito à renovação
Foi visto que, ao ser pactuado um contrato locatício empresarial, o inquilino será
titular de direito de inerência ao ponto,30 desde que preenchidos os pressupostos
em lei. Seu interesse ao ponto pode ser juridicamente protegido, mas não necessariamente será. Isso porque, como esclarecido por Fábio Ulhoa Coelho,31 nem toda
locação, na qual há a exploração econômica, é renovável judicialmente, pois existem
requisitos materiais32 para que esta tutela jurídica seja possível, os quais estão previstos no art. 51 da Lei do Inquilinato: (i) o contrato a renovar seja escrito e com prazo
determinado; (ii) a relação locatícia tenha no mínimo cinco anos — acessio temporis;
(iii) o exercício econômico, no mesmo ramo, de, pelo menos, três anos ininterruptos.
Verificando-se, cumulativamente, tais antecedentes da hipótese normativa, é
facultado ao locatário exercer o seu direito à ação renovatória locatícia — face ao
outro sujeito da relação contratual —, desta decaindo se não a propuser dentro do
interregno de um ano, no máximo, até seis meses, anteriores à data da finalização
do prazo do contrato em vigor.33
Portanto, por esse poder conferido pela norma ao locatário ter característica decadencial — assim como as que dela decorrem, como exemplos, a sua
irrenunciabilidade,34 seu caráter de disposição de ordem pública,35 a não suspensão
COELHO, 2015, p. 170.
COELHO, 2015, p. 172.
32
Há também os pressupostos formais, que são aqueles contidos no art. 71, os quais se referem às provas
e documentos necessários na petição inicial da ação renovatória. São, portanto, de ordem processual, e
também devem ser atendidos para que se tenha direito ao renovamento.
“Art. 71. Além dos demais requisitos exigidos no art. 282 do Código de Processo Civil, a petição inicial da ação
renovatória deverá ser instruída com:
I – a prova do preenchimento dos requisitos dos incisos I, II e II do art. 51;
II – a prova do exato cumprimento do contrato em curso;
III – prova da quitação dos impostos e taxas que incidiram sobre o imóvel e cujo pagamento lhe incumbia;
IV – indicação clara e precisa das condições oferecidas para a renovação da locação;
V – indicação de fiador quando houver no contrato a renovar e, quando não for o mesmo, com indicação do
nome ou denominação completa, número de sua inscrição no Ministério da Fazenda, endereço e, tratandose de pessoa natural, a nacionalidade, o estado civil, a profissão e o número da carteira de identidade,
comprovando, desde logo, mesmo que não haja alteração do fiador, a atual idoneidade financeira;
VI – prova de que o fiador do contrato ou o que o substituir na renovação aceita os encargos da fiança,
autorizado por seu cônjuge se casado for;
VII – prova, quando for o caso, de ser cessionário ou sucessor, em virtude de título oponível ao proprietário”.
33
“Art. 51. (...)
§5º Do direito a renovação decai aquele que não propuser a ação no interregno de um ano, no máximo, até
seis meses, no mínimo, anteriores à data da finalização do prazo do contrato em vigor” (Grifou-se).
34
Sílvio de Salvo Venosa explica que: “O direito à renovação é disposição de norma cogente, por expressa
referência do art. 45, não sendo possível a dispensa pelas partes. Não pode o contrato impedir ou dificultar o
direito à renovação, porque qualquer cláusula nesse sentido é nula de pleno direito” (VENOSA, 2013, p. 159).
“Art. 45. São nulas de pleno direito as cláusulas do contrato de locação que visem a elidir os objetivos da
presente Lei, notadamente as que proíbam a prorrogação prevista no art. 47, ou que afastem o direito à
renovação, na hipótese do art. 51, ou que imponham obrigações pecuniárias para tanto” (Grifou-se).
35
NEGRÃO, 2012, p. 125.
30
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RESP nº 1.323.410/MG: revisitando os prazos renovatórios da locação empresarial
ou interrupção do prazo36 —, torna-se viável atribuir sua natureza jurídica à de direito
potestativo,37 a ser exercido mediante ação constitutiva.38
3.2 Prazo renovatório: uma vexata quaestio na Lei do
Inquilinato
Presentes os pressupostos legais supramencionados, o locatário terá direito à
renovação do contrato por igual prazo. Como grassa Cláudio Cintra Zarif,39 a sentença
deve, entre outros fatores, fixar o tempo pelo qual se dará a nova relação contratual.
Porém, diante desta imprecisão normativa, há divergências doutrinárias e jurisprudenciais quanto a qual lapso temporal terá o contrato renovado judicialmente.
Esta controvérsia existe desde a época em que vigorava o Decreto nº 24.150/34,
visto a sua omissão a respeito. Luís Antônio de Andrade40 observa que, a princípio,
era decidido que o novo contrato teria a mesma duração da avença a ser renovada, ou
seja, do prazo do último negócio jurídico locatício. No entanto, as circunstâncias factuais e normativas provenientes desta aplicação fizeram com que os tribunais, posteriormente, mudassem tal orientação decisória. Pacificou-se a renovação por cinco
anos, e de acordo com este entendimento, o Supremo Tribunal Federal (STF) editou
a Súmula nº 178: “Não excederá de cinco anos a renovação judicial do contrato de
locação, fundada no Decreto nº 24.150/34, de 20-4-34”.
Todavia, tal pronunciamento sumular faz referência a uma legislação do inquilinato revogada que não estabelecia o prazo renovatório da locação empresarial.
Conforme considera Sylvio Capanema de Souza,41 o atual diploma legal não é omisso, mas faz menção expressa à renovação ser feita por prazo idêntico do contrato a
renovar. Seria este, pois, um argumento para desconsiderar a aplicação da Súmula
nº 178 do STF — a qual ainda possui vigência. Também alegando essa superação
VENOSA, 2013, p. 162.
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO RENOVATÓRIA DE CONTRATO DE LOCAÇÃO DE IMÓVEL NÃO RESIDENCIAL.
REQUISITOS DO ARTIGO 71 DA LEI N. 8.245/91 DEVIDAMENTE PREENCHIDOS. DIREITO POTESTATIVO DO
LOCATÁRIO. INEXISTÊNCIA DE MOTIVO SÉRIO E LEGÍTIMO DA RETOMADA (ARTIGO 72 DA LEI N. 8.245/91).
PEDIDO DE DESPEJO NEGADO. 1. A renovação do contrato de locação de imóveis destinados ao comércio
é um direito potestativo do locatário, não admitindo contestações, caso preenchidos os requisitos legais
listados no artigo 71 da Lei n. 8.245/91. 2. O direito à retomada do imóvel pode ser exercido, caso o locador
comprove motivo sério e legítimo para tanto, sendo sua defesa limitada nas hipóteses previstas no artigo
72 da Lei n. 8.245/91. 3. O direito à renovação de contratos de locação de imóveis não residenciais visa
a manutenção da atividade empresarial, de forma a proteger o empresário de prejuízos econômicos, como
a perda do investimento despendido e da clientela”. (TJGO, Apelação Cível nº 152481-51.2009.8.09.0051,
Relator: Dr. Mauricio Porfirio Rosa, Terceira Câmara Cível da Quarta Turma, Publicação: DJe em 10-7-13, Grifouse). No mesmo sentido, TJDF, Apelação Cível nº 2985093, Relatora: Nancy Andrighi, Terceira Turma Cível,
Publicação: DJU 1º.06.94.
38
SLAIBI FILHO, 2010, p. 481.
39
ZARIF, 2010, p. 283.
40
ANDRADE, 1984, p. 288.
41
SOUZA, 2012, p. 214.
36
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jurisprudencial, Cláudio Cintra Zarif42 atenta que, para muitos, a utilização não mais
se justifica por estar voltada ao contexto econômico de inflação, vigente à época da
sua edição.
Algumas decisões indicam haver clara referência do prazo pelo qual deve se dar
o novo contrato, condizentes, portanto, com o que foi supramencionado por Sylvio de
Souza Capanema. De acordo com esta compreensão, vários julgados estabeleceram
que a renovação seria de igual período do pacto anterior, independentemente de qual
fosse o seu lapso temporal locatício.
Porém, apesar deste limite interpretativo literal,43 há entendimentos em sentido
diverso, ora atribuindo o limite máximo de cinco anos, sem considerar, no entanto,
um período mínimo. Ora considerando que se dará pelo menos por um quinquênio,
sem estabelecer, porém, qual o máximo. E, por fim, há o recente acórdão do STJ no
REsp nº 1.323.410/MG, no qual foi decidido que o termo por igual prazo se refere ao
mínimo presente no inciso II do art. 51, afirmando ser a renovação por esse tempo
em qualquer hipótese, ou seja, independentemente do contrato renovando ter sido
negociado por lapso temporal maior ou menor.
Dessa forma, a jurisprudência demonstra que o problema advindo da redação
contida no caput do art. 51 ultrapassa o caráter meramente interpretativo, em razão
de algumas decisões irem além do âmbito estabelecido pela literalidade — ou interpretação estrita44 —, passando a se tratar de uma modificação de sentido.45
Portanto, a solução deste impasse normativo deverá ser buscada na hermenêutica jurídica, visto ser esta que contém regras ordenadas — as quais fixarão os critérios e princípios norteadores para a nossa tarefa explicativa46 do prazo renovatório
—, e métodos relacionados ao desenvolvimento do direito imanente à lei,47 ou seja,
a integração de lacuna.48
4 Interpretações do prazo renovatório: direitos e princípios em
conflito
Conforme ensina Karl Larenz,49 interpretar é uma atividade de mediação pela
qual se compreende o sentido de um texto que é deparado como problemático. Esse
ZARIF, 2010, p. 284.
LARENZ, 1991, p. 454.
44
LARENZ, 1991, p. 520.
45
Ocorre quando uma compreensão normativa não se situa no âmbito do sentido literal possível, sendo, pois,
uma modificação de sentido, em outras palavras, uma integração de lacuna (LARENZ, 1991, p. 454).
46
DINIZ, 2009, p. 430.
47
LARENZ, 1991, p. 520.
48
Lacuna será entendida na sua acepção referente à hipótese de haver uma lei reguladora de um caso, mas os
seus sentidos literais não se ajustam ao seu escopo normativo (LARENZ, 1991, p. 525).
49
LARENZ, 1991, p. 282-283.
42
43
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exercício se dá pela observação dos significados possíveis de um termo,50 assim
como através da constatação dos fins e valores que a norma pretende garantir,51
por meio de regras de interpretação que se entrelaçam materialmente ao longo do
processo,52 a serem perseguidas de forma sucessiva. Nesse encadeamento, são
feitas delimitações de acepções alternativas a serem apreciadas. Todavia, quando
o intérprete ultrapassa um marco de entendimentos metodologicamente elaborados
em um passo exegético, trata-se não mais de interpretação, mas de um desenvolvimento complementador ou modificador da lei,53 conhecido por integração normativa.
No entanto, como observado por Larenz,54 esses dois meios de solução, dispostos ao aplicador da lei, não podem ser vistos como essencialmente diferentes, mas,
tão somente, graus distintos do mesmo processo de raciocínio. Então, neste trabalho
será adotada a medida facilitadora de que, mesmo transcendendo os limites estipulados por uma fase interpretativa inicial, se seguirá normalmente o quadro sucessivo
hermenêutico. Em outras palavras, mesmo que alguns entendimentos se afastem
da ordem aludida, o caminho exegético será continuado, sem ruptura, pois também
contribui de forma decisiva no preenchimento da lacuna normativa.55
Desse modo, passar-se-á por cada um dos critérios da interpretação — tidos
como principais —, em um trabalho sucessivo de esclarecimento do prazo renovatório. Estabelecer-se-ão quais os possíveis sentidos, e posteriormente será investigado
qual promove os objetivos propostos pela Lei do Inquilinato: o equilíbrio contratual
dos direitos do locador e do locatário, e, especificamente às locações empresariais,
a proteção ao fundo de comércio.
4.1 Critério literal
Em concordância com Karl Larenz56 e R. Limongi França,57 o processo interpretativo de um texto deve iniciar-se a partir de seu sentido literal, no qual irá se buscar
o significado das palavras segundo suas conexões e regras gramaticais.58
52
53
54
55
LARENZ, 1991, p. 283.
DINIZ, 2009, p. 432.
MÜLLER, 1976 apud LARENZ, 1991, p. 462.
LARENZ, 1991, p. 455.
LARENZ, 1991, p. 519.
LARENZ, 1991, p. 521. O autor ainda assevera que, se há lacuna, a sua existência será aferida de acordo
com a própria lei, sua intenção, seus fins e seu plano legislativo (LARENZ, 1991, p. 529-530), e isto, em
última análise, corresponde aos critérios interpretativos da hermenêutica tradicional, tanto o lógico — que vai
analisar a ratio legis, a occasio legis —, quanto ao sistemático — uma vez que não há norma considerada
individualmente, mas sim no ordenamento jurídico do qual faz parte (BOBBIO, 1995, p. 19).
56
LARENZ, 1991, p. 452.
57
FRANÇA, 1988, p. 26-27.
58
FERRARA, 1963, p. 139.
50
51
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Karl Larenz59 enuncia que esta etapa irá delimitar o campo a se atuar na ulterior
tarefa do exegeta, ou seja, irá traçar os limites interpretativos,60 a serem posteriormente averiguados de acordo com os desideratos da norma. Dessa forma, segundo
a contribuição deste critério, o termo por igual prazo pode referir-se: (i) ao do contrato
renovando; (ii) à soma de todo o tempo pelo qual se deu tal relação; (iii) a qualquer
um dos lapsos temporais anteriores.
Apesar de ser considerado um passo inicial, há decisão que utilizou tão somente esse critério para a compreensão do prazo renovatório, chegando a estabelecê-lo
por um ano, visto a avença anterior corresponder a este período, a saber:
APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO RENOVATÓRIA DE LOCAÇÃO COMERCIAL – PRAZO DO CONTRATO A RENOVAR – APLICAÇÃO DA LEI 8.245/91 – PRAZO
IGUAL AO DO CONTRATO A SER RENOVADO. RECURSO PROVIDO. O prazo
do novo contrato, prorrogado por conta de ação renovatória, deve ser
fixado na mesma base da avença anterior.61 (Grifou-se)
Esta é uma representação da literalidade interpretativa, pois, além de estar
contida no âmbito do sentido estrito possível — ou seja, dentro dos limites elencados
anteriormente, na medida em que elege uma entre as acepções literais dispostas —,
a intenção do exegeta não é dirigida ao desenvolvimento da norma, mas apenas ao
conhecimento e expressão do significado que está incluído no texto.62 Significa que a
interpretação, antes de ser adotada, não foi analisada sob os demais elementos (lógico e sistemático63), como fora demonstrado no voto do Relator Luiz Antônio Barry.64
Sylvio Capanema de Souza65 atenta para as consequências advindas da adoção
deste critério — quando é único e exclusivamente empregado —, entre elas, a afronta
ao princípio da economia processual.66 O autor constatou a existência desta violação
principiológica, pois, se o direito renovatório deve ser exercido com um ano ou até
seis meses anteriores ao vencimento contratual, e, estabelecida a renovação por
LARENZ, 1991, p. 457.
LARENZ, 1991, p. 453-454.
61
TJPR, Apelação Cível nº 576.299-2, Relator: Luiz Antônio Barry, Décima Primeira Câmara Cível, Publicação:
DJ em 12.8.09. No mesmo sentido, Recurso Especial nº 547369/MG, Relator: Ministro Felix Fischer, Quinta
Turma, Publicação: DJ em 10.5.04. Na doutrina temos, de acordo com este entendimento, o autor Ricardo
Negrão (NEGRÃO, 2012, p. 123).
62
LARENZ, 1991, p. 520.
63
LARENZ, 1991, p. 458.
64
Este afirmou que o dispositivo normativo é claro quanto ao estabelecimento da renovação por igual prazo do
contrato renovando, e acrescenta ainda que, se o legislador almejasse a renovação por um quinquênio, em
qualquer das hipóteses, assim teria redigido a lei. Dessa forma, conclui que o intuito da Lei nº 8.245/91
é exatamente o de definir de forma absoluta tudo o que, na legislação anterior, era ambíguo e causava
controvérsia.
65
SOUZA, 2012, p. 214.
66
Este, sob uma ótica sistemática, representa a ideia de que, quanto menos demandas existirem para se
chegar aos mesmos resultados, melhor será em termos de qualidade da prestação jurisdicional como um todo
(NEVES, 2011, p. 75).
59
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apenas um ano, por ser o tempo em que vigorou o último negócio locatício — como
ocorreu no julgado supramencionado —, quase imediatamente o locatário terá de entrar com uma nova ação, se assim for de interesse, e, dessa forma, sucessivamente
— e até simultaneamente —, prejudicando, pois, a prestação jurisdicional.
Além disso, o professor assevera ser tal percepção colidente com o espírito da
lei ou a ratio legis. Nessa perspectiva também grassa Francesco Ferrara,67 ao arrazoar que o sentido literal é incerto, hipotético, equívoco. Para ele, o elemento lógico
virá como ajuda, integração e controle do gramatical.
4.2 Critério lógico
Consoante Francesco Ferrara,68 o critério lógico remonta ao espírito da disposição normativa, através da ponderação de fatores racionais inspiradores, da gênese histórica e da conexão entre as outras normas do ordenamento — elemento
sistemático.69
Para se aferir a lógica normativa, a primeira medida que se impõe é a delimitação de sua finalidade prática. Tal qual supramencionado, as disposições referentes
às locações empresariais tem o escopo de proteção ao ponto onde se exerce a atividade econômica. Até aqui, não é possível eleger, das opções interpretativas elencadas no primeiro passo, uma que não realize esse objetivo, pois, independentemente
de qual seja o prazo renovatório, o princípio da proteção ao fundo de comércio70
será realizado. Esse problema foi previsto por Francesco Ferrara,71 o qual diz que os
caminhos para se chegar a um certo fim são variados, e deles não se deduz qual o
preferido. Da mesma forma acontece com os meios de que dispomos: todos eles
visam à preservação do estabelecimento do negócio lucrativo, e, isso, quaisquer
deles podem alcançar.
A occasio legis, por sua vez, vem a ser a circunstância histórica que serviu de
impulso exterior para a criação do diploma legal.72 De acordo com o explanado, a Lei
do Inquilinato foi promulgada para solucionar o contexto de crise no ramo locatício,
e o consequente déficit populacional, assim como a insegurança jurídica causada
pela constante e variada mutação legislativa. Essa foi, portanto, a conjuntura factual
em que foi proposto o projeto legislativo, o qual, segundo seus elaboradores, seria
FERRARA, 1963, p. 140.
FERRARA, 1963, p. 140-141.
69
Alguns autores preferem denominar esta etapa de lógica-sistemática, a exemplo de Miguel Reale (REALE,
2002, p. 279). Karl Larenz, por sua vez, sistematiza as seguintes etapas a serem seguidas após a literal:
o contexto significativo da lei; a intenção reguladora, fins e ideias normativas; entre outros que, em última
análise, correspondem à classificação aqui exposta através do critério lógico e de seu elemento sistemático.
70
SOUZA, 2012, p. 211.
71
FERRARA, 1963, p. 141.
72
FERRARA, 1963, p. 142.
67
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uma contribuição direta e eficaz às iniciativas contribuintes com o estado de coisas
que afetava o país, através do ajuste imediato da legislação que rege as relações
entre inquilinos e proprietários, notadamente em relação aos contratos locatícios
imobiliários.73
No entanto, a situação que vigorava e serviu como ímpeto para a nova regulação
pode ter cessado,74 mas tal fato não influencia sobre seu valor jurídico,75 visto a continuação da proteção ao local do estabelecimento lucrativo. A análise que deve ser
feita é como o atual contexto contribui na delimitação da sua finalidade.
Uma vez que a conjuntura factual brasileira é de crise econômica, impor uma
renovação contratual por tempo demasiadamente longo, frente às mudanças no mercado, põe o locador em situação financeiramente desfavorável. Ademais, contribui
para afastar o investimento locatício no país ou, pelo menos, a celebração desses
negócios — pois o proprietário pode esperar pela melhora da procura no mercado —,
repercutindo, também, de forma negativa na economia.
À vista disso, há decisões que estabeleceram um quinquênio como período
máximo, sem, no entanto, prever um mínimo. Veja-se:
Locação comercial. Ação renovatória. Soma de mais de dois contratos
ininterruptos. Prazo da prorrogação. Período referente ao último contrato.
1. Tratando-se de soma de dois ou mais contratos ininterruptos, o prazo
a ser fixado na renovatória deve ser o mesmo do último contrato em
vigor, observado o limite máximo de cinco anos. 2. No caso, tendo sido
o último pacto estabelecido por dois anos, por esse período deve ser
prorrogada a locação na renovatória.76 (Grifou-se)
Outro fator contribuinte das consequências mencionadas é a insegurança jurídica em relação ao prazo renovatório. Ora, se já houve um contexto no qual diversas
e esparsas leis regulavam o contrato locatício, causando controvérsias, inclusive
quanto à ação renovatória, atualmente temos uma disposição normativa que deixa
margem a várias interpretações. Prossegue, de certa forma, uma crise jurídica, pois
as partes dessa relação contratual não sabem ao certo qual poderá ser o prazo
renovatório.
SIMÕES, 2011, p. 4.
Sylvio Capanema de Souza considera que o déficit habitacional — criado devido ao forte dirigismo estatal
vigente à época da Lei nº 1.300/50, limitando o princípio da autonomia da vontade — hoje torna a nos
ameaçar (SOUZA, 2012, p. 01).
75
FERRARA, 1963, p. 142.
76
Recurso Especial nº 693729/MG, Relator: Ministro Nilson Naves, Sexta Turma, Publicação: DJ em 23.10.06.
No mesmo sentido, Recurso Especial nº 267129/RJ, Ministro José Arnaldo da Fonseca, Quinta Turma,
Publicação: DJ em 6.11.00; Agravo Regimental no Agravo nº 1.157.625/RJ, Relator: Ministro Sebastião Reis
Júnior, Sexta Turma, Publicação: DJe 7-5-12.
73
74
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Todavia, há entendimento que favorece uma maior segurança à atividade econômica exercida pelo inquilino, designando que a renovação seja de pelo menos cinco
anos, mas sem precisar um período máximo:
LOCAÇÃO COMERCIAL RENOVATÓRIA – PRAZO DO NOVO CONTRATO – FIXAÇÃO EM 5 (CINCO) ANOS PRAZO INFERIOR DO CONTRATO RENOVANDO
IRRELEVÂNCIA – EXEGESE DO ARTIGO 51 DA LEI Nº 8245/91. Embora o
‘caput’, do artigo 51, da Lei nº 8.245/91, fale em renovação do ajuste
locatício por igual prazo, em se tratando de direito resultante de reconhecimento de ‘accessio temporis’, o prazo do contrato renovando será de
no mínimo 5 (cinco) anos, por força do disposto no inciso II do mesmo
dispositivo.77 (Grifou-se)
Como se percebe, estes dois julgados supramencionados se afastaram das
alternativas elencadas pelo critério literal, passando a modificar o sentido da disposição normativa em busca de harmonizá-la com os aspectos advindos da sua análise
lógica. Karl Larenz78 denomina essa ocorrência de redução teleológica. Esta vem a
ser a integração de lacunas quando uma regra — contra seu sentido estrito, mas de
acordo com seus fins regulatórios e sentido legal — precisa de uma restrição não
contida no texto normativo.
Dessa forma, procurou-se limitar o lapso temporal, seja considerando um mínimo, a conferir certa estabilidade à atividade econômica do locatário, ou um máximo,
a evitar um desestímulo de investimento locatício. Em ambas as hipóteses, visam ao
desvio de crises para as quais a Lei do Inquilinato veio como solução.
4.2.1 Elemento sistemático
Considerando que o direito objetivo não é um aglomerado de disposições, mas
um organismo jurídico composto de preceitos ordenados ou subordinados,79 torna-se
necessário confrontar uma norma individual às outras — com as quais formam um
sistema normativo80 —, ou seja, às regras e princípios aos quais está ligada.
Foi demonstrado que o citado art. 51 visa ao amparo normativo do direito do
locatário ao patrimônio imaterial, em obediência ao princípio da proteção do fundo de
comércio. Este remonta ao livre exercício da atividade econômica,81 um dos pilares
TJSP, Apelação Cível nº 0061501-27.2010.8.26.0576, Relator: Mendes Gomes, Trigésima Quinta Câmara de
Direito Privado, Publicação: DJ em 27.11.12.
78
LARENZ, 1991, p. 555-556.
79
FERRARA, 1963, p. 143.
80
BOBBIO, 1995, p. 21.
81
Uma vez que o ponto é um elemento estabelecimento empresarial, e este é compreendido como o conjunto de
bens indispensáveis ou úteis ao desenvolvimento da empresa (COELHO, 2015, p. 164-169), aquele também
será tido como necessário para o exercício da atividade econômica. Sua tutela jurídica visa a não apropriação
do alcançado fundo de comércio pelo locador, e, consequentemente, assegura o direito constitucional previsto
77
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nos quais se funda a ordem econômica brasileira. No entanto, se deve haver uma
harmonia contratual — a evitar, portanto, o retorno ao protecionismo ao locatário, e
as suas consequências —, então, é certo que o direito constitucional à propriedade,82
do locador, e o corolário da autonomia privada (liberdade contratual)83 são elementos
indispensáveis no trabalho de contrapeso interpretativo.
Assim compreendeu a Ministra Nancy Andrighi, ao argumentar a necessidade deste esforço ponderativo, trazendo o entendimento, no Recurso Especial nº
1.323.410/MG, de que o novo contrato, em qualquer hipótese, deve dar-se por cinco
anos:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO RENOVATÓRIA DE CONTRATO. LOCAÇÃO COMERCIAL. ACCESSIO TEMPORIS. PRAZO DA RENOVAÇÃO. ARTIGOS ANALISADOS: ART. 51 da Lei 8.245/91. (...) 2. Discussão relativa ao prazo da
renovação do contrato de locação comercial nas hipóteses de “accessio
temporis”. (...) 4. A renovatória, embora vise garantir os direitos do locatário face às pretensões ilegítimas do locador de se apropriar patrimônio
imaterial, que foi agregado ao seu imóvel pela atividade exercida pelo
locatário, notadamente o fundo de comércio, o ponto comercial, também não pode se tornar uma forma de eternizar o contrato de locação,
restringindo os direitos de propriedade do locador, e violando a própria
natureza bilateral e consensual da avença locatícia. 5. O prazo 5 (cinco)
anos mostra-se razoável para a renovação do contrato, a qual pode ser
requerida novamente pelo locatário ao final do período, pois a lei não
limita essa possibilidade. Mas permitir a renovação por prazos maiores,
de 10, 15, 20 anos, poderia acabar contrariando a própria finalidade do
instituto, dadas as sensíveis mudanças de conjuntura econômica, passíveis de ocorrer em tão longo período de tempo, além de outros fatores
que possam ter influência na decisão das partes em renovar, ou não, o
contrato. 6. Quando o art. 51, caput, da Lei 8.2145 dispõe que o locatário terá direito à renovação do contrato “por igual prazo”, ele está se
referido ao prazo mínimo exigido pela legislação, previsto no inciso II do
art. 51, da Lei 8.245/91, para a renovação, qual seja, de 5 (cinco) anos,
e não ao prazo do último contrato celebrado pelas partes. 7. A interpretação do art. 51, caput, da Lei 8.245/91, portanto, deverá se afastar da
literalidade do texto, para considerar o aspecto teleológico e sistemático
da norma, que prevê, no próprio inciso II do referido dispositivo, o prazo
de 5 (cinco) anos para que haja direito à renovação, a qual, por conseguinte, deverá ocorrer, no mínimo, por esse mesmo prazo. 8. A renovação do contrato de locação não residencial, nas hipóteses de “accessio
temporis”, dar-se-á pelo prazo de 5 (cinco) anos, independentemente
do prazo do último contrato que completou o quinquênio necessário ao
ajuizamento da ação. O prazo máximo da renovação também será de 5
no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal: “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer
atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em
lei”.
82
Art. 5º, XXII, da Constituição Federal.
83
Art. 421 do Código Civil.
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(cinco) anos, mesmo que a vigência da avença locatícia, considerada em
sua totalidade, supere esse período.84 (...). (Grifou-se)
Sylvio Capanema de Souza85 atenta que esse argumento — pelo qual o termo
“igual prazo” faz referência ao mínimo de cinco anos exigido para legitimar a pretensão constitutiva — favorece a continuação da interpretação da renovação por um
quinquênio, qualquer que seja o tempo do contrato anterior, visto que esta conexão
já é uma praxe do mercado advinda da aplicação da Súmula nº 178 do STF.
Ocorre que a decisão do STJ não adotou nenhuma das escolhas interpretativas
ora delimitadas. Do mesmo modo da integração feita anteriormente, aqui também foi
realizada uma redução teleológica — não em relação à finalidade prática da norma
considerada em si mesma, mas sim aos desideratos regulatórios da Lei do Inquilinato
delimitados pelo elemento sistemático.
Portanto, a acepção do termo controverso foi igualmente restringida, desta vez
em razão da harmonia entre o direito do locatário ao bem imaterial e o do locador à sua propriedade imobiliária. Este equilíbrio é mais que um objetivo da Lei do
Inquilinato, é uma imposição advinda da consideração da norma como pertencente a
um todo: o ordenamento jurídico.
5 Considerações finais
A Lei nº 8.245/91 proporcionou a junção da esparsa legislação regulatória dos
contratos locatícios de imóveis, com a pretensão de afastar as controvérsias que
eram inerentes a estes negócios jurídicos.
No entanto, as divergências existentes quanto ao prazo renovatório persistem,
agora não em virtude de uma omissão legislativa, mas advinda de uma redação normativa lacunosa, pois, não obstante o termo por igual prazo contido no caput do art.
51, alguns intérpretes consideram a necessidade de ir além do âmbito estabelecido
pelo critério literal. Isso porque as análises interpretativas lógica e sistemática, consideradas em conjunto, apontavam que os fins regulatórios da Lei do Inquilinato não
eram alcançados a partir dos sentidos estritos — ou seja, aqueles delimitados pela
interpretação gramatical.
Portanto, as apreciações que se baseiam apenas na literalidade — não passando aos próximos passos avaliadores da ratio legis, da occasio legis, assim como dos
fins da norma quando esta é confrontada ao sistema normativo que integra — não são
capazes de aferir quais das alternativas interpretativas do prazo renovatório podem:
Recurso Especial nº 1.323.410/MG, Relatora: Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, Publicação: DJe em
7-11-13
85
SOUZA, 2012, p. 215.
84
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(i) afastar o investimento no ramo econômico da locação; (ii) causar instabilidade
ao negócio lucrativo do inquilino; (iii) conferir extrema proteção a uma das partes
em detrimento da outra; (iv) violar outros princípios do ordenamento jurídico. Todas
essas consequências são, como demonstrado, circunstâncias a serem evitadas pela
aplicação da Lei do Inquilinato.
É razoável que o prazo renovatório tenha um mínimo, pois, assim, se confere
maior segurança ao exercício da atividade econômica do locatário, como também é
necessário um lapso temporal máximo, porque o locador não pode ser privado do seu
direito à livre disposição da sua propriedade. Um entendimento que viesse a delimitar
apenas um ou outro destes estaria beneficiando mais a uma das partes contratais,
em detrimento da outra, e isto, como foi observado, não é o fim previsto pelo plano
legislativo do inquilinato.
Dessa forma, a decisão dada no REsp nº 1.323.410/MG é um paradigma a ser
seguido, não só pelo fato de o STJ ter competência uniformizadora da interpretação
das leis federais, mas, também, por razão da contemplação integrativa feita nesta
decisão, ao demonstrar que o termo por igual prazo não pode se referir ao tempo do
último contrato tão somente por que assim delimitou o sentido literal. Há, portanto,
de se desenvolver o Direito, desde que haja uma justificativa teleológica para isso,86
como foi feito ao fixar o prazo de cinco anos para o novo contrato — em qualquer
hipótese —, proporcionando um equilíbrio contratual ao garantir os interesses do
locador e do locatário.
RESP nº 1.323.410/MG: Revisiting the Terms of Renewal of the Business Lease
Abstract: The Leasing Business, regulated by Law nº 8.245/91 — Tenancy or leasings Law’s —, it is the
contract by which the lessee — or tenant — will exercise the use and enjoyment of the property lessor,
acting in the exercise of economic activity. Aimed at protecting the commercial point, the caput of art. 51
of the referred law predicts that the lessee is entitled to renewal of the contract for the same term. With
no reference to what time span this expression refers, some doubts remain about its interpretation and
application. If the parties have established previously, various contracts, the term for the same term refers
to that of the last agreement concluded? Of either one of them? Or the sum of the time of all contracts? It
would be to the minimum requirement of five years to exercise the right to lease renewal action, provided in
its section II? Several interpretations and, consequently, applications derive from this normative inaccuracy,
and, in order to its clearing, this arrangement is divided into steps. First, it analyzes the legal framework
of the business lease and the purposes for which it is proposed. Successively it is made one explanation
about the right to lease renewal action and what are its regulatory requirements. Finally, given the normative
uncertainty, is debated what are the possible interpretations, the rights conflicts arising and especially the
decision given at the Recourse Special nº 1.323.410/MG of Superior Court of Justice (STJ).
Keywords: Leasing Business. Renewal deadline. Omission. Superior Court of Justice.
LARENZ, 1991, p. 524.
86
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RESP nº 1.323.410/MG: revisitando os prazos renovatórios da locação empresarial
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):
LIBERALINO, Ana Paula da Silva. RESP nº 1.323.410/MG: revisitando os prazos
renovatórios da locação empresarial. Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, Belo
Horizonte, ano 4, n. 10, p. 225-243, set./dez. 2015.
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O abuso da cláusula de tolerância nos
contratos de promessa de compra e
venda e a retroação da mora
Tatiane Gonçalves Miranda Goldhar
Advogada. Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal de Pernambuco. Especialista em
Processo Civil pela Jus Podivm/FANESE. Conselheira da Ordem dos Advogados – OAB/SE.
Professora Universitária dos cursos de Graduação e Pós-Graduação.
Resumo: O artigo analisa a cláusula de tolerância inserida nos contratos de promessa de compra e venda,
em especial sua função social. Estuda a obrigação fundamental do contrato de promessa de coma e venda,
os efeitos do descumprimento da norma de tolerância, o abuso praticado pela vendedora/construtora e
propõe a incidência da “retroação da mora” como uma consequência dessa ilicitude. Demonstrar-se-á
que a aplicação da retroação dos efeitos da mora é instrumento de equilíbrio contratual necessário à
preservação da legitimidade da norma excepcional e da obrigação fundamental do contrato, além de
reforçar os princípios contratuais e os direitos do promitente-comprador.
Palavras-Chave: Cláusula de tolerância. Obrigação fundamental. Promessa de compra e venda. Retroação
da mora.
Sumário: 1 Introdução – 2 A cláusula de tolerância e a obrigação fundamental – 3 O abuso da tolerância e
a retroação da mora – 4 Conclusão – Referências
1 Introdução
Nos últimos vinte anos, a complexidade dos modos de produção e as novas
demandas do mercado imobiliário em todo território nacional deram origem a regras
contratuais não previstas em relações jurídicas sob a égide do Código Civil 1916. Um
novo conceito de contrato e de obrigação tem surgido, requestando um redimensionamento de institutos do Código Civil de 1916, já revistos pelo atual códex (2002) e
recriado pelo sistema consumerista pós-constitucional, através da principiologia mais
protetiva, própria desse sistema.
Percebe-se claramente que nesse moderno cenário de relações jurídicas horizontais, com o incontestável alargamento dos arquétipos de consumidor e fornecedor, não basta, isoladamente, um ou outro sistema legal para regular os contraentes,
daí por que a necessidade premente de interdisciplinar as regras civilistas e consumeristas, em busca da melhor forma de tutelar os direitos.
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É justamente pela ausência de normas específicas sobre determinados que se
assiste a um fenômeno de “densificação de normatização contratual”, tornando a
relação jurídica de compra e venda de um imóvel um verdadeiro subsistema jurídico
vinculando às partes de tal forma especializada que por vezes fica difícil compreender
os efeitos dessas normas contratuais e a observância aos ditames de sua função
social.
Tornou-se comum, por exemplo, a inserção nos contratos de promessa de compra e venda de imóveis de uma prorrogação excepcional de prazo da entrega ou
conclusão da obra, denominada de cláusula “tolerância”.
A cláusula de tolerância é um instituto alvissareiro na dinâmica das relações
contratuais e imobiliárias por não ter disciplina no Código Civil nem no Código de
Defesa do Consumidor e repercutir sobremaneira no conceito de adimplemento contratual da obrigação fundamental — entrega do empreendimento —, recriando, inclusive, novos parâmetros para a mora contratual.
A utilização amiúde dessa cláusula pelas construtoras nos últimos tempos,
impulsiona-nos a uma investigação com vistas a identificar a natureza, finalidade,
função social e cabimento da norma contratual, no sentido de compreendê-la melhor
no âmbito do contrato de compra e venda de imóveis e, por conseguinte, os seus
efeitos jurídicos e sociais.
Essa realidade nos convida a uma análise mais atenta e profícua acerca dos
contratos de promessa de compra e venda, mais precisamente a denominada cláusula de tolerância, sua função e efeitos, com a finalidade de responder as seguintes
perguntas: a cláusula de tolerância representa uma tolerância ao inadimplemento
contratual? Em que medida pode ela ser utilizada para atender aos reais interesses
dos contratantes e não somente de um deles? Não estaria ela dentro do conceito de
fortuito interno adotado recentemente pela doutrina e jurisprudência?
2 A cláusula de tolerância e a obrigação fundamental
O negócio jurídico de promessa de compra e venda da atualidade é regido pelo
Código de Defesa do Consumidor, com maior ênfase, eis que caracterizado no adquirente o conceito de consumidor e no vendedor o de fornecedor, anunciados pelos
arts. 2º e 3º do diploma social.
Enquadrar uma relação jurídica nos ditames consumeristas é ampliar o olhar interpretativo para buscar nas normas regentes da espécie contratual a função social e
a finalidade da norma, equilibrando as prestações estabelecidas, porquanto se trata
de relação desigual no que tange ao exercício de poder. O consumidor, não necessariamente hipossuficiente economicamente, é deveras um hipossuficiente técnico
no trato das questões negociais que permeiam o contrato, jungindo-se às regras preestabelecidas por força dos fatos e não por deliberação própria (vontade autônoma
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e consciente), o que por si só demanda toda uma postura protetiva para equalizar
direitos e deveres dessa relação (NEVES, 2013, p. 148). De outro lado, o vendedor
oferece as regras contratuais como única alternativa à contratação, avolumando o
contrato de preceitos que, não raro, são ininteligíveis, exigindo do consumidor um
esforço hercúleo para compreender a relação a que se sujeita.
Posta a premissa, a leitura da cláusula de tolerância deve ser feita nesse contexto de consumo para investigar sua função social, sua adequação ao bem comum
e, claro às finalidades contratuais.
Nessa perspectiva, as lições mais atuais do direito obrigacional e contratual,
à luz da principiologia do vigente Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor,
recomendam uma cautela com as regras contratuais que deturpam ou visam deturpar
a obrigação fundamental do contrato de promessa de compra e venda.
Sobre obrigação fundamental, tem-se que é aquela que resume fundamentalmente o cerne do contrato, a prestação principal e em cada tipo contratual “(...)
haverá uma obrigação, cuja importância é tamanha que, caso ela seja suprimida
ou reduzida, será o contrato privado de seu conteúdo e de seu sentido para as partes. Esta obrigação constitui o âmago do contrato, será a obrigação fundamental”
(FERNANDES apud MOTA; KLOH, 2011, p. 277)
A cláusula de tolerância não encontra previsão legal. É uma típica criação das
partes e muito própria dos contratos de promessa de compra e venda, dado o cumprimento diferido da obrigação fundamental ali estabelecida, qual seja, a entrega de
unidade de um empreendimento/obra a ser construído pela construtora, por vezes,
vendedora.
O nome “tolerância” é curioso e merece atenção. A norma contratual “tolerância” ou cláusula de prorrogação informa ao adquirente/contraente que ele vai ter que
tolerar, aceitar, abrir mão, de forma excepcional, do prazo originalmente previsto para
receber a sua unidade habitacional ou comercial. É dizer, o contraente vai tolerar um
previsível atraso da obra quando ocorrer circunstâncias ditas excepcionais previstas
no ajuste, tais como, falta de mão de obra, de matéria-prima, crises no setor imobiliários, dentre outras, que normalmente as construtoras costumam dispor nos ajustes
escritos.
Há, dessa forma, uma nítida mitigação do art. 394 do CC1 na medida em que
embora não entregue a unidade imobiliária no prazo ajustado, a vendedora não estará
em mora, em função da norma de tolerância, isentando-se dos respectivos encargos,
sem haver uma contraprestação em favor do promitente comprador. Essa é a grande
vantagem da predisposição da tolerância.
Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo,
lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer.
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O prazo da tolerância normalmente é de 180 (cento e oitenta) dias úteis ou
corridos após o prazo inicial, informando a vendedora nesses casos que haverá prévia
notificação, cumprindo o dever de informação e transparência ao adquirente, ansioso
por receber o bem imóvel na data aprazada. Nesse interstício de natureza excepcional, a construtora não incorre em mora, não indeniza o cliente, ao fundamento de que
a dilatação do prazo fora previamente pactuada e incide em situações circunstanciais.
Como a norma de prorrogação está inserida em contratos-padrão ou até “contratos de adesão”, extrai-se, por óbvio, uma clara mitigação da vontade e liberdade
de estipulação do contraente/adquirente, sendo natural que sua ciência se reduza a
uma mera assinatura das folhas do contrato, inexistindo uma consciência sobre as
normas ali escritas nem dos seus efeitos, a não ser no que se refere aos aspectos
gerais, como preço e condições de pagamento e vencimento das obrigações. Ora,
quem poderá ler nos dias atuais mais de vinte páginas de um contrato?
A par da existência prévia dessa disposição contratual, o fato é que não se
espera que a construtora o utilize, afinal, quando da propaganda/oferta do empreendimento, não se divulga a existência desse prazo, apenas aquele que originalmente
fica consentido como o prazo de entrega. Trata-se de uma excepcionalidade a ser
tolerada pelo adquirente. Aquele que adere a um contrato de promessa de compra e
venda e paga as parcelas do preço previstas aguarda a data de conclusão da obra,
aliás, a data efetiva do recebimento do bem, que não se confunde com o “Habite-se”,
documento emitido pelo órgão público competente que atesta a habitabilidade e a
conformidade da obra concluída com o projeto inicialmente apresentado.
Não há dúvidas de que a grande expectativa do cliente sempre gira em torno da
data do recebimento do bem constante, por regra, no quadro resumo — que sintetiza
as várias normas contratuais —, a qual se materializa com a entrega das chaves seguida de vistorias das áreas individual e comum, momento este que deflagra também
a quitação do saldo devedor, a depender do caso.
Na prática, o recebimento do imóvel, através da entrega das chaves, materializa
o cumprimento do contrato de promessa de compra e venda e, muitas vezes, o seu
termo final no que tange à obrigação fundamental, revelando, portanto, a satisfação
do adquirente/cliente perante o negócio jurídico pactuado.
Tudo bem, até aí, nenhum problema, o adquirente pode até não concordar, mas
compreende que assinou o contrato e ele precisa ser respeitado, tolerando, portanto,
a dilação do cumprimento da obrigação de entrega do imóvel, pelo prazo ali previsto,
embora aguarde, concomitantemente, a justificativa e a excepcionalidade nesta regra
anunciadas.
Acontece que as frustrações começam pela grande frequência na utilização do
prazo de tolerância, seguida ausência de comunicação prévia do dito atraso e, pior,
pela imprevisibilidade em torno do cumprimento do contrato mesmo dentro do prazo
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de prorrogação. Normalmente, inexiste uma explicação prévia antes ou durante o
atraso de tolerância, e quando há, frequentemente, são elaboradas em cartas-padrão
dissociadas do evento que lhes dá origem e escusabilidade, eis que são nitidamente
excepcionais.
O atraso, em alguns casos, extrapola os 180 dias e prolonga-se indefinidamente, comprometendo os projetos pessoais e financeiros dos adquirentes, causando
frustrações e, sentimento de impotência e desgaste contínuos já que o adquirente
fica sem saber quando receberá o bem imóvel tão sonhado. Resta ao contraente
esperar e só.
O cenário relatado acima tem sido constatado amiúde em vários estados brasileiros. Não à toa surgem demandas judiciais em número assustador com o objetivo de buscar um ressarcimento pelo descumprimento do contrato e dos prejuízos
correspondentes.
A tutela específica de entrega do imóvel, que deveria ser a primeira alternativa a ser pleiteada, acaba sendo comumente afastada pelo Poder Judiciário ante o
argumento de impossibilidade de atendimento do pedido pela improbabilidade da
ingerência no cronograma financeiro da obra, restando dessa forma, o ressarcimento
dos prejuízos consolidados além da execução da multa contratual.
O boom imobiliário experimentado é apanágio dessa peculiar situação de atrasos na entrega de imóveis e das inúmeras ações judiciais que visam à discussão do
inadimplemento e à condenação das construtoras nos efeitos da mora, cumulados
ainda com prejuízos além do que o contrato e o mero inadimplemento poderiam gerar.
Na configuração atual da incidência da cláusula, percebe-se que ela é invocada
pelo vendedor com o exclusivo intento de justificar o inadimplemento, eis que normalmente não se encontra vinculada com os fatos excepcionais que deveriam dar-lhe
origem e aí reside o problema que é preciso enfrentar.
No entanto, a cláusula de tolerância não deve ser considerada ilegal de per si. A
depender de como esteja disposta no contrato, ela pode ser realmente útil às partes,
garantindo, por exemplo, um prazo de dilação de entrega para a construtora, sem
maiores ônus contratuais, mas também assegurar ao consumidor alguma vantagem
financeira nesse período de tolerância, compensando-o pelo não recebimento do bem
na data formalmente aprazada. Tais vantagens poderiam ser: redução ou revisão do
índice de correção monetária, multa contratual, descontos nas parcelas vincendas
no período de mora, dentre outros benefícios que compensem a espera, afinal, o
simples fato de conhecer antecipadamente a dita cláusula de prorrogação não exonera a construtora do dever de reequilibrar o contrato e compensar o seu cliente pela
entrega no prazo excepcional.
Além dos benefícios financeiros, o Código de Defesa do Consumidor ressalta
uma série de comportamentos nucleares e tangenciais à obrigação fundamental, os
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quais não são uma mera alternativa ao construtor e sim um dever a ser observado
e efetivamente compensado. A título de exemplo, tem-se os seguintes direitos de
imperativa observância:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
II – a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos
e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas
contratações;
III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e
serviços, com especificação correta de quantidade, características,
composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os
riscos que apresentem;
IV – a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos
comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas
abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;
V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações
desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que
as tornem excessivamente onerosas; (Grifos nossos)
Todavia, cláusula de tolerância como tem sido aplicada não representa igualdade de condições para consumidor e vendedor por não proporcionar qualquer vantagem financeira e de outra natureza para aquele que deve tolerar o atraso.
A liberdade de escolha já é um direito mitigado na formação adesiva de contratação, e a igualdade de condições entre os contraentes nem sempre é prestigiada no
contrato, a exemplo da situação da tolerância, período o qual o cliente fica sem uma
compensação equivalente à espera da entrega da obra. Outo aspecto interessante
que merece destaque é o dever de informação sobre o atraso. Muitas construtoras
não informam o adquirente sobre o atraso da obra, e quando o fazem é frequente
observar que anunciam às vésperas do prazo originalmente previsto ou, pior, utilizam
de justificativas inverídicas como a famígera “falta de obra no mercado”, sem correspondência alguma com as circunstâncias previamente anunciadas no contrato. A
própria construtora desvincula-se da obrigação de bem informar seu cliente, violando,
portanto, o direito à informação clara, precisa e verdadeira.
O que se percebe diante de tal prática é que uma norma que poderia ser considerada legal, do ponto de vista da complexidade da obrigação a ser executada
— processo construtivo — passa a ser uma cláusula passível de nulidade, seja por
representar uma vantagem excessiva em prol de uma das partes, seja pelo fato de
se revelar desproporcional, sobretudo quando a construtora ultrapassa o prazo de
180 dias, situação bastante comum também, seja por não prever uma compensação
adequada ao promitente comprador (SOMBRA, 2011, p. 37).
A utilização da cláusula de tolerância como tem ocorrido não prestigia a instrumentalidade do contrato, o qual, segundo Ruy Rosado de Aguiar Jr., “é um instrumento
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jurídico que promove a distribuição de riscos econômicos entre os contratantes”
(2004, p. 99).
O prazo inicialmente anunciado para entrega do empreendimento, infelizmente,
torna-se uma propaganda enganosa, demonstrada pelo desrespeito não só do prazo
inicial, como principalmente da tolerância, tornando-se abusiva, portanto, aos olhos
do bissistema principiológico consumerista e civil.
Observe-se, ainda, que muitas vezes o vendedor age de má-fé, porquanto anuncia um prazo de entrega que sabe improvável e ser cumprido, mas a data ofertada
atrai consumidores pela vantagem e receber a unidade imobiliária no prazo exíguo,
tal postura atenta contra o princípio da boa-fé contratual, afinal “a atuação em desconformidade com os padrões de conduta exigíveis caracteriza violação do dever de
agir de boa-fé (objetiva), mesmo sem má-fé (ou dolo) e sem culpa” (NORONHA, 1994,
p. 137-138).
Nesse sentido, sustenta-se que não é exatamente a ideia da cláusula de prorrogação que está contaminada pelo vício da nulidade. Se bem aplicado, cumprindo a função social, nos termos apregoados por Gustavo Tepedino (2008, p. 399), e contratual
a que se destina, temos uma norma adequada a esse tipo de obrigação fundamental
cuja complexidade e nuances demandam uma cláusula de risco para mitigação dos
efeitos moratórios do inadimplemento. Entrementes, observa-se que muitas construtoras por não cumprirem com esses deveres anexos ao contrato, os quais materializam
direitos do consumidor, a exemplo do que foram citados acima, acabam cometendo
um abuso de direito, ato ilícito que merece ser reparado pelo Direito Civil.
Atento à teoria do risco de inadimplemento, e na linha que aqui é defendida, o
Superior Tribunal de Justiça fincou que o mero atraso no andamento da obra já é indenizável e justifica o pedido de rescisão contratual, sem notificação prévia, destacando
a importância da prevenção de riscos contratuais ao promitente comprador.2
Compreender a cláusula de 180 dias à luz do Código de Defesa do Consumidor
é preservar a real finalidade dessa norma, dentro do contexto do contrato de promessa de compra e venda, vedando práticas que a tornam abusiva e uma desvantagem
excessiva em desfavor do adquirente, comprometendo o princípio da equivalência das
prestações estabelecidas.
3 O abuso da tolerância e a retroação da mora
É cediço que o abuso de direito, insculpido, no art. 187 do Código Civil se revela
pela prática em excesso de um direito legítimo, legal, mas que o mau uso compromete sua função social, os fins econômicos e até os bons costumes.
Cf. REsp nº 745.079 e REsp nº 1294101.
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Nessa toada, a prática que algumas empresas têm adotado de extrapolar o
prazo de 180 ou, ainda, adentrar nesse período sem justificar devidamente ao adquirente, revela indubitavelmente um excesso que merece ser coibido e reparado por
trazer prejuízos de ordem material e moral àquele que aguarda o cumprimento da
obrigação fundamental da melhor forma possível.
É conveniente ressaltar que o abuso de direito e a ilegalidade são institutos
absolutamente distintos, cujas lições basilares não precisam ser tratadas nesse trabalho. A par dessa distinção que, resumidamente, coloca a ilegalidade como um ato/
fato jurídico contrário à lei vigente e o abuso de direito dentro da teoria dos excessos,
isto é, representa-se por ato ou direito legal, porém, excedido em relação ao fim
social, econômico, à boa-fé e aos bons costumes, muitos julgadores confundem um
e outro resultando, por fim, em julgamentos improcedentes dos pedidos de reconhecimento do abuso da cláusula e tolerância por entenderem equivocadamente que se
trata de alegações de ilegalidade da norma.
Ao reconhecer a prática do abuso de direito da cláusula de tolerância, num dado
caso concreto, pela sua utilização em excesso, isto é, ao entregar a obra objeto do
contrato de promessa de compra e venda além do prazo tolerância fixado, deve-se
ter o efeito correlato capaz de indeniza e compensar integralmente o adquirente do
abuso vivenciado.
A retroação da mora revela-se como uma medida razoável e que pode ser bastante eficaz para reforçar não só a finalidade da cláusula de prorrogação, mas principalmente a obrigação fundamental do contrato que é a entrega do empreendimento.
Por retroação da mora deve-se entender o efeito do inadimplemento da cláusula
de tolerância a ser suportado pelo construtor ou vendedor, consistente na perda do
próprio prazo estabelecido exclusivamente incidente na hipótese de extrapolação do
prazo de prorrogação, sem justificativas plausíveis. Sabe-se que, embora a cláusula
de tolerância não seja a obrigação fundamental, mas a ela se vincula porquanto diz
respeito à dilatação do que há mais relevante no contrato, a entrega do prazo da obra.
É razoável que o devedor dessa obrigação seja penalizado acaso ultrapasse o prazo
excepcional através da perda desse prazo, através da retroação da mora contratual
à data originária de entrega, como se nunca tivesse havido atraso. Mesmo que não
prevista no contrato, por razões óbvias já que implica uma penalidade à vendedora/
construtora, é medida que deve ser pleiteada pelo adquirente porquanto justa e razoá­
vel diante do desrespeito cabal do prazo excepcional.
Tal instrumento converge com o que Clóvis do Couto e Silva denominou de
“perspectiva dinâmica da obrigação” (2007, p. 42), ou seja, estimula a necessidade
de respeitar a dinamicidade da obrigação fundamental que, neste caso, é a entrega
do imóvel dentro do prazo originalmente garantido, ou se assim não for possível, dentro do interstício de 180 que é previamente acertado, não mais do que isso. A estipulação da cláusula respeita o caráter dinâmico da obrigação, mas ao mesmo tempo,
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O abuso da cláusula de tolerância nos contratos de promessa de compra e venda e a retroação...
através da retroação garante que em havendo um desrespeito da norma excepcional,
o consumidor será devidamente compensado pelo atraso.
Ora, se o construtor/vendedor ultrapassar os 180 dias e não justificar o atraso,
razoável que o adquirente seja indenizado pelos prejuízos contabilizados em virtude
do inadimplemento desde a data originária, revertendo para si o direito e a vantagem
de ser compensado desde o início pelo inadimplemento contratual que extrapolou o
prazo excepcional.
Trata-se de efeito inovador, resultado de uma interpretação funcional do contrato dentro da lógica consumerista e contratual, que certamente contribuirá para uma
maior credibilidade e proporcionalidade à cláusula de tolerância, de modo que seja
realmente uma exceção, e não uma regra e que sua aplicação tenha a finalidade
social e econômica de ser o interstício máximo para cumprimento do contrato. De
mais a mais, o efeito da retroação está em harmonia com o princípio da equivalência
material das prestações, o qual nas palavras de Anderson Schreiber “a beleza de um
princípio do equilíbrio das prestações está justamente em se desprender da gênese
voluntarista do negócio jurídico, para buscar a justiça do contrato não no acordo
de vontades que lhe dá origem, mas no seu conteúdo objetivo” (SCHREIBER apud
VENOSA; GAGLIARDI; NASSER, 2012, p. 141).
A retroação da mora é instrumento que reforça o pacta sunt servanda como um
mecanismo inovador de respeito ao contrato e de sua finalidade, já que impede a
prática de abusos na seara dos contratos de adesão e substancia assim o aspecto
temporal do ajuste, que é o vencimento da obrigação de entrega. Do contrário, no
cenário de inadimplemento que muitas construtoras estão envolvidas, a cláusula de
tolerância revela-se muito mais como imposição de tolerar o inadimplemento do que
efetivamente um recurso de ordem excepcional em benefício do contrato. É o que tem
sido chamado da intolerância do prazo de tolerância.
Ao analisar a estipulação da cláusula, percebe-se que o grande beneficiário dessa disposição é sempre o vendedor/construtor que fica isento de mais de 06 meses
de mora mesmo estando em inadimplência. O mecanismo hermenêutico de retroação
se aplicado aos casos de desrespeito dessa tolerância beneficiará o consumidor e
equilibrará a relação jurídica contratual já comprometida pelo inadimplemento, de
maneira que o adquirente passa a ser indenizado desde a primeira data estabelecida
para a entrega.
Conclui-se que o mecanismo da retroação da mora, aplicável na hipótese de
abuso de direito da cláusula de prorrogação, é muito bem-vinda para a relação jurídica
contratual por preservar o consumidor dos efeitos perniciosos da mora, a qual passa
a ter um efeito justo e prestigia a real finalidade da excepcional cláusula de tolerância, além de ressaltar o prazo inicial para cumprimento da obrigação fundamental,
equilibrando assim as prestações contratuais.
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Tatiane Gonçalves Miranda Goldhar
4 Conclusão
A cláusula de tolerância é uma norma recente e própria dos contratos de promessa de compra e venda. Foi estipulada para prevenir o construtor/vendedor dos
encargos de mora devidos por um atraso na entrega da obra, em tese, não culposo,
ou seja, decorrente de circunstâncias excepcionais exemplificadas no ajuste.
Seu estudo é relevante para a teoria dos contratos e obrigações porquanto
repercute umbilicalmente no cumprimento da obrigação fundamental dos contratos
de promessa de compra e venda. Sua inobservância tem merecido destaque, principalmente por que se verifica amiúde uma extrapolação do prazo de tolerância, caracterizando um abuso de direito a ser reparado nos termos da lei civil. O desrespeito
à norma de tolerância tem repercutido sobremaneira da dinâmica do contrato de
compra e venda, desequilibrando os poderes contratuais e principalmente comprometendo os direitos do promitente comprador que não vê a obrigação fundamental ser
cumprida no prazo e modo pactuados.
Como o contrato não prevê uma compensação equânime para o adquirente
prejudicado, a retroação da mora se revela um importante instrumento para equalizar
as prestações contratuais e reforçar a excepcionalidade da cláusula de prorrogação,
preservando e legitimando a obrigação fundamental e o prazo do seu cumprimento,
nos termos art. 394, CC.
A tese de retroação da mora proposta, por redirecionar o termo inicial da mora
para o prazo originário e real de entrega da obra redimensionando o conceito de mora
e da própria ideia de tolerância, revela-se uma medida eficaz de preservação da boa-­
fé, da função econômica e social do contrato. Além disso, está em harmonia com
os propósitos da legislação consumerista e civil. Reforça a aderência contratual e
equaliza os direitos dos contraentes, impondo o respeito ao ajuste firmado, tornando-­
se, portanto, um instrumento efetivo de preservação da estipulação negocial e, em
especial, da obrigação fundamental do contrato de promessa de compra e venda.
Abstract: This article analysis the so called “tolerance clause” in the sales legal business in particular its
social function. It also analysis the effects of tolerance clause´s breach, which reveals one party´s abuse
of rights and results in what we call “default´s retroaction” as an effect of this abuse and an important tool
for the contractual balance. It´s very relevant to preserve the legitimacy of exceptional tolerance clause and
specially the fundamental obligation of that contract, besides it enhances the contractual principles and
promissory buyer’s rights.
Keywords: tolerance clause; fundamental obligation, sale and buying and selling legal business.
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O abuso da cláusula de tolerância nos contratos de promessa de compra e venda e a retroação...
Referências
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Gustavo (Org.). O direito e o tempo: estudos em homenagem ao Professor Ricardo Pereira Lira. Rio
de Janeiro: Renovar, 2008.
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):
GOLDHAR, Tatiane Gonçalves Miranda. O abuso da cláusula de tolerância nos
contratos de promessa de compra e venda e a retroação da mora. Revista Fórum
de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 245-255, set./dez. 2015.
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A (des)consideração do direito à
fidelidade do cônjuge: um contributo à
teoria da responsabilidade civil familiar
Raul Cézar de Albuquerque
Acadêmico de Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Colunista do periódico
eletrônico Obvious Magazine – autor da coluna A Razão Singular do Segredo. Foi Pesquisador
Universitário Bolsista pelo Programa Jovens Talentos para a Ciência (2013/2014). E-mail:
<[email protected]>.
Resumo: Dentre os deveres conjugais, a fidelidade é provavelmente o mais polêmico, envolvendo questões
morais, religiosas e jurídicas. Além disso, o seu inadimplemento é cercado de problemas de ordem jurídica,
porquanto o ingresso da responsabilidade civil do direito familiarista é um caminho pedregoso, enfrentando
questionamentos sobre a monetarização do afeto e acerca da privacidade e da liberdade como direitos
fundamentais. Descrito o quadro, é necessário abrir novos caminhos para chegar a novas respostas.
Palavras-chave: Direito de família. Casamento. Deveres conjugais. Responsabilidade civil familiar.
Sumário: 1 Considerações iniciais – 2 Uma revisitação histórica – 3 Anotações sobre o dever de fidelidade
recíproca – 4 A infidelidade como uma questão de direito matrimonial – 5 A infidelidade como uma questão
de responsabilidade civil – 6 O quadro jurisprudencial e seus equívocos – 7 No toar da retificação – 8 O
direito à fidelidade do cônjuge – 9 Por uma teoria da responsabilidade familiar – 9.1 Por um novo dever de
fidelidade – 9.2 Para além da subsunção – 10 Considerações finais – Referências
1 Considerações iniciais
O adultério foi o grande tema da literatura realista do século XIX. Enquanto o casamento, como quintessência da família burguesa, era o ápice do romance romântico, o realismo, como contramovimento, vê no estado conjugal um locus problemático.
De certo, Flaubert incita discórdia na sociedade francesa ao publicar, no ano de
1857, o seu Madame Bovary, visto que o livro, ao tocar no delicado tema do adultério,
feriu o ideário do sagrado matrimônio que vigorava de modo inquestionável à época.
Mas a obra do francês coloca-se como vanguarda, precedendo outras grandes obras
sobre o mesmo tema.
No clássico romance, Emma casa-se como o Charles Bovary. Como boa leitora
dos folhetins românticos, a jovem imaginava o matrimônio como o auge da felicidade
vivida. No entanto, a frustração dessas expectativas sobrevém de modo paulatino.
Madame Bovary, então, continuava sem saber, e precisava conhecer, de algum modo,
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“o que significavam exatamente na vida as palavras felicidade, paixão e êxtase, que
haviam lhe parecido tão belas, nos livros.”1 Na busca por essa significação, Emma
inicia uma vida de sucessivos adultérios e dívidas exorbitantes. Frustrada também
essa busca e insustentável o pesar moral, o fim da personagem é o suicídio.
O suicídio de Emma Bovary é icônico, vez que a morte, por si só, é a maior pena
que se pode aplicar a alguém; e, no romance, é a própria Emma, carregada de culpa,
que se condena a tal destino. Adulterar, à época da publicação do romance, era violar
o que havia de mais importante e sagrado na sistemática social: os augustos laços
do matrimônio.
O casamento é mesmo este misterioso domínio situado na tumultuada fronteira
entre o Estado, a Moral e a Religião. E não é por outro motivo que ele é tão informado pelas mudanças sociais; sua complicada posição simultaneamente avulta-lhe a
importância e dificulta a sua definição.
E o adultério, como conceito carnalmente ligado ao de matrimônio, possui a
mesma dificuldade de estabelecer um significado e, com isso, uma valoração. O
Direito, como disciplina social, depende dessa valoração para atribuir-lhe efeitos.
2 Uma revisitação histórica
É incontornável fazer constar que o adultério sempre foi uma realidade nas
sociedades que elegeram o matrimônio como a principal — e, por vezes, a única —
forma constitutiva de família, e a monogamia como seu ideal moral. O que mudou
durante a História, no entanto, foi o modo como o adultério foi tratado.
Cabe anotar que o repúdio moral ao adultério é consequência da vitória da retórica do direito canônico no tratamento da questão matrimonial, visto que a monogamia e
a fidelidade sempre foram valores muito caros à moral cristã. Disso decorre que o adultério passa a existir como um problema a partir da sacramentalização do casamento.2
No Medievo, encontra-se uma figura curiosa na repressão ao adultério: o charivari.
O filósofo francês Luc Ferry relata os detalhes do costume nos seguintes termos:
Quando o marido é traído, ou, pior ainda, quando apanha, é costume dos
aldeões lhe darem uma surra, se ouso dizer, à moda de um belo charivari.
[...] Então eles põem o infeliz marido ao contrário sobre um burro (é a
‘algazarra’), em seguida o pintam de vermelho, atiram-lhe legumes podres
na cara, espetam, batem um pouco nele, insultam, xingam.3
FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. São Paulo: Martin Claret, 2014, p. 55.
John Gilissen aponta que “o casamento é um sacramento, pelo menos desde o séc. XII e XIII; certas regras
que o regem são de direito divino, sem qualquer possibilidade de dispensa. Outras são de direito eclesiástico,
podendo ser eventualmente dispensadas pela autoridade eclesiástica” (GILISSEN, John. Introdução histórica
ao direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 569-570)
3
FERRY, Luc. A revolução do amor: por uma espiritualidade laica. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 87.
1
2
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O costume é, simultaneamente, curioso e revelador. O charivari destaca quem
seria o sujeito devedor da fidelidade conjugal e quem seria o sujeito titular dessa
fidelidade.
Inicialmente, nesse contexto, a fidelidade matrimonial somente é devida pela
mulher. Muito embora a moral declarada obrigasse os dois cônjuges à fidelidade, tal
dever só era cobrado da esposa, sendo as “faltas” do esposo totalmente perdoadas,
ignoradas, e até incentivadas em algumas situações.
De outro giro, o titular da fidelidade conjugal é a comunidade, o vilarejo, o aldeão. O que, a princípio, parece uma ideia absurda, mas que resta logo clara: se é o
vilarejo quem une os noivos sob os sagrados laços do matrimônio e se esse vínculo
serve à própria comunidade, é apropriado que ela mesma tutele a moralidade e bom
andamento do casamento.
O charivari, portanto, é construto de uma época em que os casais não se casavam, mas eram casados — ressalva que se faz importante para ressaltar que as
vontades dos nubentes eram quase sempre ignoradas e que os casamentos eram arranjados pelas famílias com objetivos bem demarcados: a manutenção da linhagem,
a reprodução dos costumes e a produção de mão de obra.
O cenário parece mudar no século XIX. Luc Ferry destaca esse século — que
é estrategicamente posterior à Revolução Francesa e Revolução Industrial — como
o momento paradigmático na questão matrimonial: o surgimento do casamento por
amor.4 O amor-eros existe bem antes do século XIX, bem como o casamento, mas a
coabitação destes dois entes é fato que exsurge como regra apenas a partir dessa
época.
O processo de rápida industrialização esvaziou os vilarejos e trouxe os jovens
às cidades, locais em que estes estavam longe da tutela do patriarca e tinham maior
liberdade na escolha dos seus futuros cônjuges. Sob a influência da literatura romântica de sua época, a juventude passou a almejar casamentos que trouxessem em
seu bojo o amor-eros e, por conseguinte, a felicidade individual; o que representou
verdadeira reviravolta na questão matrimonial, que, até pouco tempo, preconizava a
função social do casamento.
Afastada a tutela do patriarca — e do vilarejo — sobre o casamento, a defesa
da fidelidade passa a ser tutelada pelo cônjuge ofendido. E, como o Estado, a essa
altura, já detinha o monopólio do uso da violência, o adultério surge como crime.
O Código Criminal brasileiro de 1830 já dispunha sobre o crime de adultério,
regrando que a mulher adúltera seria apenada com prisão de um a três anos, sob
regime de trabalhos forçados. O esposo só seria enquadrado no tipo penal se mantivesse relacionamento de concubinato com “teuda e manteuda”, enquanto, para a
FERRY, Luc. A revolução do amor: por uma espiritualidade laica. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 77-107.
4
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esposa, o simples flagrante era suficiente para condená-la.5 A mesma disposição
repetiu-se no Código Penal de 1890.
A regulação criminal do adultério revela alguma mudança no tratamento da
questão infidelidade. Se compararmos com o regime do charivari, o crime de adultério revela a tutela individual da fidelidade conjugal, vez que só o cônjuge ofendido
pode motivar a ação penal contra o adúltero. No entanto, mantém-se a distinção de
tratamento entre a adúltera e o adúltero, a postura da mulher que incorre em traição
acaba por ser mais reprovada pelo sistema jurídico, reflexo claro de uma conjuntura
social machista.
O Código Penal de 1940, ao tratar o crime de adultério, no toar das reformas
sociais do século XX, retira a distinção de tratamento entre a traição realizada pelo
esposo e a impetrada pela esposa, caminhando em direção ao que se consagraria
com a Carta Constitucional de 1988, que dispõe que o poder familiar e os deveres
conjugais são atribuídos no mesmo espectro tanto pelo homem quanto pela mulher,
anunciando ventos de igualdade.
O existir de um crime de adultério revela uma tutela estatal sobre a fidelidade
conjugal recíproca, ou seja, embora apenas o cônjuge ofendido possa dar início à
ação penal, a sanção penal sobre o adúltero anuncia que a prática da monogamia
serve à ordem pública, e não apenas à satisfação individual. Nesse sentido, explica
o penalista Cezar Roberto Bitencourt,
o Direito Penal limita-se a castigar as ações mais graves praticadas contra os bens jurídicos mais importantes [...] deixando, em princípio, sem
punir ações que possam ser consideradas como imorais, tais como o incesto, a homossexualidade, a infidelidade no matrimônio ou a mentira.6
Por isso, em 2005, é extinto o crime de adultério, inaugurando uma nova fase
no tratamento jurídico da infidelidade, tornando-a um problema exclusivo do Direito
Civil.
3 Anotações sobre o dever de fidelidade recíproca
Antes de adentrar aos átrios do atual quadro de tratamento jurídico da questão infidelidade, é de bom alvitre redigir algumas notas sobre o dever de fidelidade
recíproca.
Observe-se que a infidelidade masculina só era reprovável quando passava a sustentar economicamente a
concubina, ou seja, só incomodava o Estado a postura do cônjuge varão infiel, quando ela afetava o patrimônio
familiar, desviando-o da família oficial para servir à família paralela (ou irregular). Desse modo, vê-se que,
nesse caso, o Estado não procura tutelar a moralidade da família, mas sim seu patrimônio.
6
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 55-56. v. I.
5
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Inicialmente, é importante lembrar que, independentemente de ser norma moral
de fortíssimo cunho religioso, o dever de fidelidade é norma jurídica, protegida ao
acalanto do Código Civil, referendado pelo artigo 226, §5º, da Constituição Federal.
Dito isso, Arnoldo Wald tem lição muito didática sobre o tema. Basicamente,
o dever matrimonial, segundo o autor, sagra-se em duas obrigações: uma de fazer e
uma de não fazer.7
A primeira obrigação que decorre do dever de fidelidade seria a de coabitar, no
sentido de manter relações sexuais com o cônjuge — estas chamadas por certa doutrina de prestações fisiológicas —, era o chamado debitum conjugale. Este débito era
consequência da visão do casamento como um contrato que estipula o jus in corpus,
opinião difundida com muita força até o século XX.8 E, nesse sentido, assemelha-se
ao dever de coabitação.
É óbvio que esta obrigação resta plenamente inexigível, principalmente quando
analisada sob o óculo da repersonalização das relações civis — mormente as familiares — e à luz dos princípios constitucionais que informam diretamente o direito de
família. Na verdade, para tornar absurda tal interpretação do dever de fidelidade não
é preciso recorrer aos argumentos axiológicos, vez que o próprio Código dispõe regras
sobre a tutela do próprio corpo, não sendo esta passível de cessão por ocasião do
matrimônio.
A outra obrigação que exsurge do dever de fidelidade é a de não fazer, a saber,
a de não manter relações de índole marital com alguém estranho à relação conjugal.
Deste ponto, surge a questão sobre qual seria o ato capaz de caracterizar o descumprimento do dever de exclusividade.
Caio Mário da Silva Pereira capitaneia corrente que apregoa que só a infidelidade física, consubstanciada na relação sexual com pessoa alheia à relação marital,
tem o condão de locupletar o inadimplemento da obrigação.9 Há quem defenda, no
entanto, que a infidelidade moral, configurada na relação afetiva de índole marital
com terceiro, pode ensejar também a caracterização do descumprimento do dever,10
como a doutrinadora Regina Beatriz Tavares da Silva Papa dos Santos:
WALD, Arnoldo. O novo direito de família. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 83.
Nessa vereda, é de se pontuar, a título exemplificativo, a opinião de Immanuel Kant, que, influenciado pela
cosmovisão de sua época, escreve que “o matrimônio (matrimonium) é a ligação de duas pessoas de sexos
diferentes para a posse recíproca de suas propriedades sexuais ao longo da vida” (KANT, Immanuel. Princípios
metafísicos da doutrina do direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014, p. 87.)
9
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Atualizado por Tânia da Silva Pereira. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, p. 171. v. V.
10
É de se fazer notar que a opinião de que a infidelidade moral é ato capaz de configurar o inadimplemento do
dever civil de fidelidade se espraia por boa parte da doutrina. Villaça Azevedo (Direito de família. São Paulo:
Atlas, 2013, p. 122), por exemplo, anota que o “dever recíproco de fidelidade, estaria englobando em seu
amplo significado, pelo prisma negativo, a infidelidade física e a moral.” Maria Helena Diniz (Curso de direito
civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 148. v. V.) cursa o mesmo caminho interpretativo do dever: “é
preciso não olvidar que não é só o adultério que viola o dever de fidelidade recíproca, mas também atos
injuriosos, que, pela sua licenciosidade, com acentuação sexual, quebram a fé conjugal.”
7
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Não é apenas o adultério, relação carnal fora do casamento, que caracteriza o descumprimento desse dever. Todo ato que tenha em vista satisfazer aquele instinto, como o namoro do cônjuge com terceira pessoa,
é havido como infração do dever de fidelidade, mesmo sem chegar à
cópula carnal, que, por sinal, é de difícil prova.11
Houve, nos ventos da contemporaneidade, recente discussão sobre a infidelidade virtual, a que consiste na manutenção de relação erótico-afetiva por meio de
cartas, e-mails ou outros meios eletrônicos. Ora, a infidelidade virtual é apenas uma
modalidade de infidelidade moral, caracterizando igualmente o descumprimento do
dever.
4 A infidelidade como uma questão de direito matrimonial
Após séculos sendo tratado como crime, o adultério12 passa a ser apenas um
ilícito civil, consagrando sistema de valores jurídicos em que a fidelidade conjugal
compõe a cartela dos itens pertinentes somente à esfera privada.
Por força da moral que influenciou o Código Bevilácqua, a causa primeira e
principal da separação era o adultério, porquanto a infidelidade era o motivo mais
gritante da insuportabilidade da vida em comum, tornando penosa a convivência no
lar conjugal.
Na forma da Lei do Divórcio (nº 6.515/77), ao cônjuge culpado — também
chamado de “divorciando vencido” — eram impostas determinadas sanções punitivas civis, tais como a possibilidade da perda da guarda do filho menor, assim como,
sendo mulher a culpada, ensejava a perda do patronímico do esposo e do direito aos
alimentos.
Logo após a publicação da Lei do Divórcio — que já representava grande avanço
na questão da dissolução do vínculo conjugal —, a jurisprudência e a doutrina empreenderam esforços em, pouco a pouco, retirar a eficácia maléfica da separação ao
cônjuge considerado culpado pelo fim do casamento, vez que, além da clara dificuldade (por vezes, da impossibilidade) em determinar quem seria o culpado pelo fim do
vínculo, as sanções previstas na lei eram demasiadamente inadequadas.
A lei previa, por exemplo, que o cônjuge considerado culpado poderia perder a
guarda do filho menor. Essa disposição é equivocada, porquanto é de bom-tom que
o filho menor seja guardado pelo genitor que ofereça melhores condições materiais e
SANTOS, Regina Beatriz Tavares da Silva Papa dos. Responsabilidade civil dos cônjuges. In: PEREIRA, Rodrigo
da Cunha. A família na travessia do milênio. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 128.
12
A partir deste ponto, os termos “adultério” e “infidelidade” serão tratados como se sinônimos fossem, embora
sabidamente não sejam. É pacificado entender o adultério como espécie do gênero infidelidade, sendo aquele
a manifestação física (expressa na conjunção carnal) deste. Como cremos que tanto a infidelidade física
(adultério) quanto a moral têm a mesma índole, não vemos sentido em aderir à distinção neste trabalho.
11
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A (des)consideração do direito à fidelidade do cônjuge: um contributo à teoria ...
morais para exercer o múnus da guarda, independentemente de ter ele dado causa
ou não ao término da sociedade conjugal.
A perda compulsória do patronímico do consorte era sanção que violava diretamente direito da personalidade, a saber, o direito ao nome, que compõe a esfera de
liberdade da pessoa. De outra sorte, a perda do direito aos alimentos por imputação
de culpa era atentatória ao dever de sustento, que persiste mesmo após o divórcio, e
que se funda na consideração do binômio necessidade-possibilidade.13
Com o advento da Carta Constitucional de 1988, anunciando novos tempos com
seu longo repertório de princípios e direitos fundamentais, restou praticamente morta
a eficácia da atribuição de culpa a algum dos divorciandos no âmbito matrimonial.
Assim, passaram a ser resolvidas as questões como guarda de filhos menores,
fixação de alimentos ao ex-cônjuge e manutenção (ou não) do patronímico do consorte a partir de outros balizamentos, estes, por seu turno, fundados na dignidade da
pessoa humana, na escolta dos direitos da personalidade, na solidariedade social e
na proteção integral à criança e ao adolescente.
Nessa vereda, escrevera Orlando Gomes que se observava, já antes da travessia do milênio, “a substituição da ratio do divórcio pelo gradual, mas insistente,
abandono da ideia de culpa como sua justificação, até mesmo por sua inadequação
aos problemas do divórcio”.14
O Código Civil de 2002, no entanto, curiosamente parece ter repristinado o
problema da culpa no fim da relação conjugal, elencando um rol extenso de atos ou
fatos que teriam o condão de tornar inviável o consórcio de vidas, desembocando,
assim, no divórcio. No entanto, não há sentido em entender que o Código — enquanto corpo normativo infraconstitucional — possa ressuscitar questão que a própria
Constituição — como vértice superior da pirâmide normativa — tornou letra morta. É
a opinião também de Paulo Lôbo:
Desde a década de 70 do século XX, a tendência que se observa nas
legislações dos povos ocidentais é a da supressão do papel da culpa
como requisito para as separações judiciais ou para o divórcio. Cresce a
convicção da inoportunidade e da inutilidade da intervenção do Estado,
mediante Poder Judiciário, na sindicação das causas das separações
dos casais, como fez o Código Civil de 2002.15
SANTOS, Regina Beatriz Tavares da Silva Papa dos. Responsabilidade civil dos cônjuges. In: PEREIRA, Rodrigo
da Cunha. A família na travessia do milênio. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 132-133.
14
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 52.
15
LÔBO, Paulo. Dissolução da sociedade conjugal: separação judicial e suas modalidades. In: CHINELLATO, S.
J. de A.; SIMÃO, J. F.; FUJITA, J. S.; ZUCCHI, M. C. Direito de família no novo milênio: estudos em homenagem
ao Professor Álvaro Villaça Azevedo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 285-294.
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Na verdade, a superveniência da Emenda Constitucional nº 66/2010, inaugura
uma nova época no tratamento da questão do divórcio. Com a reforma do artigo 226
da Constituição, são expurgados, num só ato, o critério temporal e o critério moral
para a concessão do divórcio.16
Dessarte, afiguram-se anacrônicas e falidas as ideias de divórcio-sanção, de
divórcio-falência e de divórcio-remédio, exsurgindo do atual contexto jurídico civil-constitucional a figura do divórcio como um direito — e mais, um direito personalíssimo
e fundamental.
5 A infidelidade como uma questão de responsabilidade civil
Uma vez restando inócua a questão da infidelidade na dissolução do vínculo
conjugal pela ausência de efeitos da constatação da culpa de algum dos cônjuges, a
parte da doutrina que defendia calorosamente a existência de culpa no fim do casamento passou a arvorar que o cônjuge ofendido por violação de qualquer dos deveres
matrimoniais poderia ingressar com ação judicial requerendo indenização por danos
morais, tornando a infidelidade um problema de responsabilidade civil.
A priori, surge um aparente descompasso entre a ideia de família e de responsabilidade civil, visto que, enquanto esta se baseia na consideração das obrigações
civis, aquela se propõe como o locus da afetividade e da plena realização dos indivíduos que dela participam. Nesse sentido primeiro, permitir a entrada da responsabilidade civil nas relações familiares seria — numa espécie estranha e maléfica
de Midas — transformar em pecúnia o que é intrínseca e essencialmente afeto. No
entanto, como bem esclarece Marcos Ehrhardt Jr., “não se trata de valorar economicamente situações existenciais, fixando-lhes um quantum, mas sim de garantir a
tutela, vale dizer, proteção máxima a direitos de caráter personalíssimo”.17
Nesse toar, permitir a entrada da responsabilização civil nas relações de direito
de família não significa monetarizar a dignidade do partícipe do seio familiar, antes é
dispor de mais uma via jurídica para salvaguardar direitos fundamentais, ainda que
por via indenizatória. Ou seja, responsabilizar civilmente o familiar que perturba o
núcleo da família descumprindo deveres civis é perseguir o ideal constitucional de
proteger especialmente a família, enquanto base da sociedade.
Superado esse primeiro obstáculo ideológico, resta-nos saber se o regime de
responsabilidade civil a ser aplicado nas relações de família deve ser o negocial ou
o extranegocial, o que é questão de relevo no assunto que ora tratamos. Por ter o
LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 142.
EHRHARDT JÚNIOR, Marcos A. de A. Responsabilidade civil no direito das famílias: vicissitudes do direito
contemporâneo e o paradoxo entre o dinheiro e o afeto. In. ALBUQUERQUE, F. S.; EHRHARDT JÚNIOR, M.;
OLIVEIRA, C. A. de. Famílias no direito contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo.
Salvador: JusPodivm, 2010, p. 362.
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casamento ares de contrato — mesmo sendo um “contrato” muito distinto daqueles
que dizem respeito ao direito civil contratual —, parte da doutrina familiarista atinente
à questão pugnou pela aplicação da responsabilidade civil negocial (ou contratual),
com mais clangor a autora Regina Beatriz Papa dos Santos:
Observe-se que os deveres dos cônjuges nascem do contrato de casamento, embora sejam estabelecidos em lei, de forma que sua violação
acarreta a responsabilidade contratual. Esses deveres impõem certos
comportamentos aos cônjuges, cujo descumprimento consciente do qual
resulte dano acarreta a responsabilidade do faltoso.18
É fácil perceber que a fala da doutrinadora carrega ainda a questão da culpa no
fim do matrimônio, que, como visto, é questão que restou silenciada pela doutrina e
pela jurisprudência.
No entanto, a questão da infidelidade vem sendo tratada nos tribunais brasileiros como caso de responsabilidade civil extranegocial e vez sendo julgada de modo
apartado da questão do divórcio ou da culpa na superveniência deste. O que se
afigura justo e razoável, uma vez que, como lembra o civilista Zeno Veloso, “se não
fosse possível pedir indenização por violação dos deveres matrimoniais, a enumeração desses deveres não passaria de um discurso vazio do legislador”.19
6 O quadro jurisprudencial e seus equívocos
Como demonstrado, o surgimento de pretensão a indenização por danos morais (ou extrapatrimoniais) em caso de adultério é questão pouco pacífica tanto na
doutrina quanto na jurisprudência. Então, é de bom alvitre observar de modo mais
demorado o que se vem decidindo nos tribunais em terrae brasilis quando o assunto
é infidelidade conjugal.
O Superior Tribunal de Justiça, em julgado relativamente recente, decidiu que
não surge pretensão indenizatória do cônjuge ofendido quando “ausente a intenção
do ex-cônjuge de lesar ou ridicularizar o cônjuge traído”.20 Observe-se que o pretório
deseja sondar os corações, ou mais grave, que o autor prove de modo inequívoco
que o cônjuge que foi infiel teve animus direto de aviltar sua dignidade, tornando
praticamente impossível a satisfação do pleito. É o que Anderson Schreiber chama
SANTOS, Regina Beatriz Tavares da Silva Papa dos. Responsabilidade civil dos cônjuges. In: PEREIRA, Rodrigo
da Cunha. A família na travessia do milênio. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 134-135.
19
VELOSO, Zeno. Deveres dos cônjuges: responsabilidade civil. In: CHINELLATO, S. J. de A.; SIMÃO, J. F.; FUJITA,
J. S.; ZUCCHI, M. C. Direito de família no novo milênio: estudos em homenagem ao Professor Álvaro Villaça
Azevedo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 180.
20
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental em Recurso Especial nº 566.277 MG. Relatora Maria
Isabel Gallotti. Acórdão. Data: 06/11/2014. Disponível em: <www.jusbrasil.com.br> Acesso em: 28 jun.
2015.
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de “prova diabólica”, visto que almeja “análises psicológicas incompatíveis com os
limites naturais da atividade judiciária”.21
No mesmo sentido equívoco do Superior Tribunal de Justiça, o Tribunal de Justiça
de Minas Gerais negou provimento a ação que requeria indenização por dano moral
em razão de adultério, porque notou a “ausência de prova de ofensa à honra subjetiva”, ou seja, requerendo prova do abalo moral psicológico causado ao ofendido.22
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal julgou que o consorte traído, para ter direito
a indenização por danos morais, deve ter sofrido “grave humilhação e exposição”.23
Esse tipo de persecução da dor, do sofrimento, do abalo moral não pode continuar sendo operada, visto que pertence à época pretérita do tratamento dos danos
morais, plenamente superada. Já não cabe equiparar a indenização ao pretium doloris,
porque, como se sabe, a dignidade, mesmo quando atingida, não possui preço.
Há lesão à honra no momento em que a honra da vítima vem a ser concretamente afetada, e tal lesão em si configura o dano moral. A consequência
(dor, sofrimento, frustração) que a lesão à honra possa vir a gerar é irrelevante para a verificação do dano.24
Vê-se, em síntese, que a jurisprudência nacional selecionou o caminho da responsabilidade civil extranegocial para tratar a questão da infidelidade conjugal e que
elegeu, para tanto, os critérios da dor moral do ofendido e da culpa subjetiva do
ofensor.
7 No toar da retificação
Primeiramente, é necessário trazer os sólidos argumentos doutrinários que suplantam as teses utilizadas — ainda que implicitamente — pela praxe jurisprudencial
brasileira no tratamento da questão em comento.
Há anos, a doutrina civilista vem indicando a impropriedade dos critérios como
dor, sofrimento, abalo moral, humilhação, aflição, constrangimento, entre outros, na
cognição dos processos atinentes à questão da infidelidade. Isso porque o Direito
não pode adentrar a essas veias subjetivistas da insondável personalidade humana
com todas as suas variáveis e vicissitudes. É o que explica a autora Maria Celina
Bodin de Moraes:
SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à
diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2013, p. 17.
22
BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível nº 10699060652137001. Relator Brandão
Teixeira. Data: 10/07/2013. Disponível em: <www.jusbrasil.com.br> Acesso em: 28 jun. 2015.
23
BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Apelação nº 0118170-83.2005.807.0001. Relator J. J. Costa
Carvalho. Acórdão. Data: 15/04/2009. Disponível em: <www.jusbrasil.com.br> Acesso em: 28 jun. 2015b.
24
SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à
diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2013, p. 134.
21
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Se a violação à situação jurídica subjetiva extrapatrimonial acarreta, ou
não, um sentimento ruim, não é coisa que o Direito possa ou deva averiguar. O que o ordenamento jurídico pode (e deve) fazer é concretizar, ou
densificar, a cláusula de proteção humana, não admitindo que violações
[...] permaneçam irresarcidas.25
Cabe reiterar ainda o descabimento dos argumentos que tomam a jurisprudência no sentido de tornar a indenização por danos morais26 o sucedâneo jurídico
equivalente ao “preço da dor”, uma vez que, não obstante a posição considerável da
doutrina no sentido de expurgar da cognição judicial o critério subjetivista do abalo
moral, a jurisprudência tem sido reincidente no uso — e no abuso — do parâmetro.
Além disso, é flagrante a cobrança da prova da culpa subjetiva do cônjuge infiel,
que faz parte de uma retórica complicada — e pouco sustentável no atual contexto
civil-constitucional — segundo a qual a reparação guardaria em si um caráter punitivo, além do toar compensatório, esquecendo que, com o advento da Constituição
de 1988, a responsabilidade civil deixou de ser instrumento de vingança para ser
instituto de salvaguarda da dignidade da pessoa humana em toda a sua extensão.
Tal postura do Judiciário faz lembrar o alerta de Pontes de Miranda:
A teoria da responsabilidade pela reparação dos danos não há que se basear no propósito de sancionar, de punir, as culpas, a despeito de se não
atribuir direito à indenização por parte da vítima culpada. O fundamento,
no direito contemporâneo, está no princípio de que o dano tem que ser
reparado, se possível. A restituição é que se tem por fito, afastando
qualquer antigo elemento de vingança.27
O que se percebe, ao analisar o atual tratamento jurisprudencial da questão, é
a construção de inúmeras barreiras à satisfação do pleito do cônjuge ofendido pela
infidelidade, como a comprovação de intenção do consorte infiel em expor ou desonrar o cônjuge, o que, obviamente, impossibilita o provimento do pedido.
Como substituição destes critérios impróprios, Paulo Lôbo, na vereda da constitucionalização do direito civil, aponta que a reparação por dano moral está intimamente ligada à disciplina dos direitos da personalidade.
BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 131.
26
Maria Celina Bodin de Moraes (Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio
de Janeiro: Renovar, 2003, p. 145) ainda anota preferência pela expressão “ressarcimento por danos morais”,
visto que a palavra “indenização” carrega, em sua etimologia, o sentido de reparar integralmente o dano, de fazer
o bem lesado retornar ao status quo ante, o que é notadamente impossível no tratamento dos danos à dignidade
humana. Embora o alerta seja válido, entendemos que as expressões “indenizar” e “ressarcir” acabaram por
desembocarem na sinonímia, como percebe o filólogo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (Miniaurélio século
XXI: o minidicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 413, 641).
27
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Tomo XXII. São Paulo: Borsoi, 1968, p. 183.
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Segundo o autor, para fazer jus ao ressarcimento pelo dano não é necessário
que o indivíduo tangido percorra o tortuoso caminho da prova do prejuízo provocado
pelo ato ilícito, bastando apenas a indicação do direito pessoal violado.
Os direitos da personalidade oferecem um conjunto de situações definidas pelo sistema jurídico, inatas à pessoa, cuja lesão faz incidir diretamente a pretensão aos danos morais, de modo objetivo e controlável,
sem qualquer necessidade de recurso à existência da dor ou do prejuízo.
[...] Assim, verificada a lesão a direito da personalidade, surge a necessidade de reparação do dano moral. (grifo nosso) 28
No sentido da lição de Lôbo, é lícito perguntar: qual direito da personalidade é
violado em caso de infidelidade conjugal?
8 O direito à fidelidade do cônjuge
O gênio romano construiu a máxima jus et obligatio sunt correlata, ou seja, para
cada dever há um direito correspondente. Na questão em comento, se o Código Civil
erige o dever de fidelidade recíproca aos cônjuges, faz nascer, por ricochete, o direito
à fidelidade do cônjuge. Aliás, direito este que integra a personalidade da pessoa
humana por consecução de seu status familiar, a saber, o estado conjugal.
Observe-se que o direito à fidelidade do cônjuge não deriva apenas de alguma
interpretação construtiva de algum princípio constitucional, como o da dignidade da
pessoa humana ou da proteção especial da família, mas exsurge da interpretação de
regra que institui dever no Código de 2002, sendo de fácil lastreamento na ordem
jurídica vigente.
Dessarte, se os direitos que surgem nas relações familiares se dividem em
existenciais (ou pessoais) e patrimoniais, o direito à fidelidade do cônjuge certamente ingressa à ordem jurídica civil-familiarista integrando o repertório de direitos
existenciais daquele que adentra ao estado conjugal a partir do momento em que o
casamento se locupleta perfeitamente e passa a dimanar seus efeitos legais.
Portanto, respondendo à pergunta realizada anteriormente, é possível — e até
mais coerente com a ordem vigente e a cena doutrinária — entender que a conduta
do consorte traidor fere o direito à fidelidade do cônjuge, enquanto direito existencial
da seara familiar, em decorrência da vigência do estado conjugal. Não obstante a
configuração deste direito, é plenamente possível também que a postura do infiel
seja tal, e de tal ilicitude, que atinja também a honra e a integridade fisiopsíquica do
cônjuge traído, o que, ocorrendo, influenciará no arbitramento do quantum indenizatório (ou compensatório), avultando-o.
LÔBO, Paulo. Direito civil: obrigações. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 252.
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Portanto, o eixo cognitivo da pretensão indenizatória em caso de infidelidade
conjugal deve deslocar-se da questão da culpa no fim do casamento para a proteção
da dignidade do consorte, vez que os tempos e os ventos são de repersonalização
das relações.29
No entanto, será que o direito à fidelidade do cônjuge é plenamente exigível num
sistema jurídico que preza pelo respeito à intimidade e à privacidade? Será que este
direito é eficaz numa cena jurídica que elege como princípio a liberdade? É possível
considerar o ingresso da boa-fé objetiva nas relações conjugais?
As questões supracitadas surgem e urgem por respostas fundamentadas, porém nem a responsabilidade civil negocial nem a extranegocial possuem soluções
bastantes e satisfatórias para tais questionamentos. Afinal, é muito difícil chegar a
novos lugares utilizando sempre as mesmas velhas estradas.
9 Por uma teoria da responsabilidade familiar
Percebendo a urgência da responsabilização civil em relações jurídicas de cunho
familiar, sob pena desproteger a dignidade humana, e da clara insuficiência dos balizamentos dos dois regimes clássicos de responsabilidade civil, o professor Roberto
Paulino de Albuquerque Júnior, em ousado artigo, propõe a construção de uma teoria
da responsabilidade civil familiar, na forma de um tertium genus.30
Como brevemente exposto, os parâmetros e os motivos da responsabilidade
civil clássica são inadequados para tratar das questões que exsurgem de relações
familiares, em razão das especificidades e das peculiaridades que marcam direito de
família contemporâneo O ingresso do afeto como valor jurídico e da liberdade como
princípio informativo, por exemplo, provocaram verdadeira reviravolta no regramento
do direito familiarista e da hermenêutica a este aplicada.
Depois da constitucionalização do direito civil, o direito de família, por
tratar especificamente de vínculos socioafetivos, metamorfoseou-se e
abandonou a visão moralista — que tratava por ilegítimos e de segunda
ordem os filhos adulterinos — e puramente biológica — que punha à
margem os vínculos socioafetivos não-sanguíneos, como a questão dos
filhos adotivos — do conceito de família. Após a publicação do novo Código Civil em 2002, como se pode perceber no cenário da doutrina e da
Esse entendimento tem raízes na lição do professor Silvio Neves Baptista (O dano e a responsabilidade civil
no direito de família. In: ______. Manual de direito de família. Recife: Bagaço, 2010, p. 371-396), que, além
de tratar com maestria a questão tortuosa da incidência da responsabilidade civil no direito familiarista, anota
que a responsabilização pode ser entendida de modo apartado da culpa no fim do vínculo marital, incidindo
apenas sobre a questão da violação do dever matrimonial.
30
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino. Ensaio introdutório sobre a teoria da responsabilidade civil familiar.
In: ALBUQUERQUE, F. S.; EHRHARDT JÚNIOR, M.; OLIVEIRA, C. A. de. Famílias no direito contemporâneo:
estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 402-404.
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jurisprudência acerca do assunto, professa-se um modelo eudemonista
de família.31
É fácil perceber que esta reviravolta axiológica atingiu diretamente a instituição
milenar do casamento, fazendo-a deixar de ser um locus obrigacional para tornar-se o
domínio da realização pessoal em que os nubentes ingressam por livre vontade com
vistas à construção de sua felicidade pessoal.
Em razão desta metamorfose, Paulo Lôbo entende que a liberdade, hoje reinante sobre o direito de família, impossibilita a exigibilidade do direito à fidelidade
do cônjuge. Aliás, o autor nega a existência deste direito, porquanto julga ultrapassado o dever de fidelidade, principalmente diante da proteção da intimidade e da
privacidade.32
A fala do civilista chama a atenção para a quantidade de valores, princípios e
direitos que estão em jogo quando se trata de responsabilização nas relações familiares. Nesse sentido, Albuquerque Jr. anota que “a reparação do dano deve respeitar
os princípios próprios do direito de família, tendo em conta, reitere-se, a fundamental
diretriz da repersonalização.”33
9.1 Por um novo dever de fidelidade
Nessa senda, não é cabível pautar a existência do dever de fidelidade no jus
in corpus, porque seria profundamente anacrônico, inconstitucional e iria ao exato
contrário da repersonalização das relações matrimoniais. No entanto, com a retirada
deste ultrapassado argumento, o dever não rui, mas passa a dialogar com o direito
civil-constitucional e a erguer-se sobre as sólidas e nobres bases da boa-fé objetiva e
do afeto, como valor jurídico.
De fato, a entrada da boa-fé objetiva nas relações familiares é algo que merece
análise mais cautelosa, uma vez que o instituto surge num contexto totalmente diverso, a saber, a seara das relações negociais. No entanto, para além de suas origens, a
boa-fé objetiva soergueu-se e hoje ostenta lugar de princípio integrativo e informativo
do direito civil como um todo, inclusive o direito de família.34
ALBUQUERQUE, Raul Cézar de. Direito à busca da felicidade: olhar filosófico-pragmático. Jus Navigandi,
Teresina, ano 20, n. 4218, 18 jan. 2015. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/35454>. Acesso em: 28
jun. 2015.
32
LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 143.
33
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino. Ensaio introdutório sobre a teoria da responsabilidade civil familiar.
In: ALBUQUERQUE, F. S.; EHRHARDT JÚNIOR, M.; OLIVEIRA, C. A. de. Famílias no direito contemporâneo:
estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 403.
34
Provavelmente a primeira vinculação direta entre boa-fé e dever de fidelidade na doutrina brasileira é devida
ao professor Clóvis Veríssimo do Couto e Silva, quando aduziu, no ano de 1964, na tese apresentada para
ocupar a cátedra de Direito Civil da UFRS, que “os deveres derivados da boa-fé ordenam-se, assim, em graus
de intensidade, dependendo da categoria dos atos jurídicos a que se ligam. Podem até constituir o próprio
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A boa-fé objetiva adentra ao direito matrimonial como um balizamento ético
consoante os novos tempos do direito privado e, como escreve Fernanda Gurgel:
Isso nos permite dizer que a ética aliada ao direito de família dá origem
ao dever de se respeitar a dignidade dos sujeitos em todos os seus aspectos, o dever se buscar um ambiente sustentado por laços afetivos, o
dever de se preservar a confiança e o respeito no grupo familiar.35
Desse modo, o dever de fidelidade ganha novos traços, deixando de ser norma absoluta para participar de um dever geral de lealdade nas relações familiares,
alinhando-se aos direitos de privacidade e intimidade.
Como já assinalado, a liberdade passa a informar o direito matrimonial e, com
isso, o direito à fidelidade do cônjuge passa a ser balizado com vista a outros fins,
notadamente a tutela da confiança e a presença da assistência imaterial no seio familiar. Desse modo, o casamento sofre uma revolução, deixando de ser um contrato
de direito de família simplesmente por sê-lo para representar uma relação afetiva
merecedora de tutela estatal.
Mas essa liberdade não pode ser interpretada como regra absoluta, o que levaria a família a ser a sede da desordem, contrariando a ordem constitucional de
proteção especial. Na verdade, “liberdade significa, hoje, poder realizar, sem interferências de qualquer gênero, as próprias escolhas individuais, exercendo-as como
melhor convier”, como sintetiza Bodin de Moraes ao contextualizar o princípio.36
Por força de norma civil, parte-se do pressuposto de que o direito à fidelidade do
cônjuge é eficaz na relação matrimonial. Porém, na esteira dessa liberdade e sob os
auspícios da boa-fé objetiva, os cônjuges podem, através de seus comportamentos
ou de suas posturas, tornar sem eficácia o dever de fidelidade.
Hoje, não é raro encontrar casais que não primam pela monogamia, entendendo
que a exclusividade das relações erótico-afetivas representa uma regra desnecessária à felicidade conjugal e consentem que seu consorte tenha outros parceiros
sexuais, sem que isso abale o vínculo marital. Nesse caso, observa-se a supressio
do direito à fidelidade do cônjuge.
De outro giro, se, na ausência de acordo, um dos cônjuges costuma ser infiel,
este não poderá arvorar o direito à fidelidade do consorte com vistas ao recebimento
de ressarcimento por danos morais, em decorrência da existência do tu quoque —
conteúdo dos deveres principais, [...] como deveres duradouros de fidelidade, abrangendo e justificando toda a
relação jurídica, como no contrato formador da relação de família” (A obrigação como processo. Rio de Janeiro:
FGV 2007, p. 34)
35
GURGEL, Fernanda Pessanha do Amaral. O princípio da boa-fé objetiva no direito de família. 2008. 261f.
Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2008, p. 82.
36
BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 107.
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expressão da boa-fé objetiva pela qual ninguém pode requerer do outro polo da relação interpessoal aquilo que ele próprio não faz.
Ainda, se o cônjuge passa anos conhecendo, perdoando e silenciando sobre
a infidelidade do outro, e, depois, por ocasião do divórcio, ressuscita a questão do
adultério realizado para conseguir vingança pessoal ou acréscimo patrimonial, ocorre
o venire contra factum proprium, pelo qual resta ineficaz o direito à fidelidade do
cônjuge.
Por tratar-se de afeto, afigura-se de difícil aplicação o duty to mitigate the loss
— expressão da boa-fé objetiva pela qual a pessoa tem o dever de minimizar os
próprios prejuízos — no caso da infidelidade, uma vez que é possível que o cônjuge,
mesmo conhecendo da postura do traidor e sentindo-se atingido por ela, dê novas
chances ao infiel, com vistas à manutenção do lar conjugal ou ao melhor interesse da
prole. Nesse caso, não há maximização voluntária do próprio dano, mas expectativa
legítima de mudança de postura da outra parte, ou seja, não há má-fé, nem mesmo
abuso de direito.
Como, além da boa-fé, o direito à fidelidade do cônjuge é construído também de
afeto, enquanto valor jurídico, o cônjuge separado de fato não pode exigir tal direito,
uma vez que, havendo separação física e moral, entende-se por silenciado o affectio
maritalis.
Pelo exposto, é fácil perceber que o princípio da liberdade tem seu lugar no
tratamento da questão do dever de fidelidade, mas tal princípio não pode figurar
desvencilhado da análise da boa-fé objetiva, enquanto diretiva ética do direito contemporâneo. Estes balizamentos primeiros correm na senda da determinação de “novos
contornos para os institutos familiaristas, impondo-lhes um conteúdo voltado à proteção efetiva dos valores constitucionais”, como percebe Cristiano de Chaves Farias.37
9.2 Para além da subsunção
Como já indicado, a teoria da responsabilidade civil familiar tem a difícil tarefa
de harmonizar campos que, à primeira vista, nada possuem em comum nem costumam dividir o mesmo espaço retórico.
Uma primeira contradição a ser vencida é a consideração simultânea do afeto
como valor jurídico e da boa-fé objetiva como princípio integrativo e formulador de
deveres.
FARIAS, Cristiano de Chaves. Variações do abuso de direito nas relações de família: o venire contra factum
proprium, a supressio/surrectio, o duty to mitigate the loss e a violação positiva do contrato. In: PEREIRA,
Rodrigo da Cunha (Coord.). Família e responsabilidade: teoria e prática do direito de família. Porto Alegre:
Magister, 2010, p. 211.
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A (des)consideração do direito à fidelidade do cônjuge: um contributo à teoria ...
A boa-fé objetiva não nega suas raízes negociais, porquanto faz uso de interpretação lógico-sistemática para analisar a existência de deveres e os limites da prestação. No entanto, é, simultaneamente, cláusula obrigatória em todas as relações
privadas, inclusive nas de família, pelo que negar sua presença seria aceitar que a
má-fé poderia habitar sem maiores empecilhos ou sanções punitivas no meio familiar.
No outro prato da balança, está o afeto como valor muito caro ao direito de
família contemporâneo. Antes desconsiderado totalmente, o afeto é considerado hoje
como a própria razão de ser da família. O afeto adentra ao mundo jurídico sempre
que faz nascer uma relação merecedora de tutela estatal, como é o caso da adoção. No entanto, informa também o direito matrimonial, ressignificando o instituto do
casamento.
A segunda contradição — e esta merece uma anamnese mais apurada — é a
que se instaura entre liberdade e solidariedade. Quem explora bem essa contraposição necessária é Maria Celina Bodin de Moraes, quando escreve:
Ao direito de liberdade da pessoa, porém, será contraposto — ou com
ele sopesado — o dever de solidariedade social [...] Os direitos só existem para que sejam exercidos em contextos sociais, contextos nos quais
ocorrem as relações entre as pessoas, seres humanos ‘fundamentalmente organizados’ para viverem uns em meio a outros.38
Enquanto existe a liberdade de constituir vínculos afetivos — e esta liberdade
é assegurada pela Carta Constitucional —, há, de outro turno, a solidariedade como
princípio, que, quando informa relações familiares, estende sua significação até onde
o afeto alcança. Nas palavras de Flávio Tartuce, a “solidariedade familiar implica
respeito e consideração mútuos nos relacionamentos entre os membros da família.
Como decorrência lógica desse espírito de solidariedade, surge o afeto, apontado,
atualmente, como o principal fundamento das relações familiares”.39
Nesse contexto, a liberdade de estabelecer vínculos contrasta com solidariedade moral familiar, manifesta na construção da confiança, da expectativa legítima, que
muitas vezes consubstancia-se na fidelidade do cônjuge, como coroação do mútuo
respeito. Na esteira da repersonalização das relações privadas, o dever de mútua assistência, ao ser interpretado à luz da solidariedade, passa a significar muito mais a
assistência pessoal, moral ou existencial do que propriamente a assistência material.
O direito à fidelidade do cônjuge encontra-se nesta encruzilhada movimentada:
entre a boa-fé e o afeto, entre a liberdade e a solidariedade. Ou seja, o método da
BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 107.
39
TARTUCE, Flávio. Princípios constitucionais e direito de família. In: CHINELLATO, S. J. de A.; SIMÃO, J. F.;
FUJITA, J. S.; ZUCCHI, M. C. Direito de família no novo milênio: estudos em homenagem ao Professor Álvaro
Villaça Azevedo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 45.
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Raul Cézar de Albuquerque
subsunção da norma ao fato de nada serve nesta questão, bem como em boa parte
das questões de responsabilidade civil familiar.
Diante desses dilemas, Roberto Paulino de Albuquerque Jr., na esteira da construção de uma teoria da responsabilidade civil familiar e com base na doutrina mais
apurada no tratamento do assunto, aponta uma solução:
[A ponderação] deve presidir o exame dos casos de reparação de dano
em relação familiar. Se o esquema subsuntivo clássico não se mostra
preciso o suficiente para resolver os problemas da responsabilidade familiar, é à ponderação que se deve recorrer, concretizando-se a eficácia
da cláusula geral de responsabilidade.40
Portanto, é fácil perceber que os casos de reparação civil que tangem relações
familiares nunca serão decididos satisfatoriamente pelo método da subsunção, uma
vez que a presença dos princípios constitucionais e do processo de repersonalização
é tão evidente, que os interesses em jogo não poderão ser simplesmente descartados, mas cuidadosamente sopesados, ponderados, a fim de que se chegue a uma
conclusão justa.
Nesse sentido, as aparentes contradições entre afeto e boa-fé objetiva, bem
como as que são supostas entre a liberdade e a solidariedade — que sempre entraram na dança, quando o assunto for família — hão de ser deslindadas com o advento
da ponderação dos interesses, devendo sempre prevalecer aquele que melhor atenda
à dignidade das pessoas envolvidas na questão posta em juízo.
10 Considerações finais
O adultério é uma questão que envolve o direito matrimonial há séculos. Aliás,
um problema que sempre faz reacender as raízes canônicas do direito matrimonial
brasileiro. Sendo uma questão eminentemente moral, o direito sempre teve dificuldades em tratá-la e dá-lhe os devidos efeitos.
Nos ventos da Constituição de 1988, do Código de 2002 e da consequente
repersonalização das relações privadas, a família deixou de ser entendida como um
centro emanador de deveres para ser um locus afetivo. No entanto, ainda há deveres
que envolvem o seio familiar e o dever de fidelidade parece restar de eficácia pendente num contexto que preza pela liberdade e pela privacidade.
Pelas linhas que se passaram, analisou-se que não se pode continuar utilizando
o critério da dor moral para conceder indenizações (ou ressarcimentos) por ocasião
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino. Ensaio introdutório sobre a teoria da responsabilidade civil familiar.
In: ALBUQUERQUE, F. S.; EHRHARDT JÚNIOR, M.; OLIVEIRA, C. A. de. Famílias no direito contemporâneo:
estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 419.
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A (des)consideração do direito à fidelidade do cônjuge: um contributo à teoria ...
de dano moral em caso de adultério, sendo de bom alvitre passar a utilizar o critério
da lesão a direito da personalidade, in casu, o direito à fidelidade do cônjuge, que
surge por via reversa do dever de fidelidade elencado no Código Civil e que integra a
personalidade do indivíduo que ingressa no estado matrimonial. Aliás, este direito foi
afetado pela repersonalização do direito privado, passando a ser expressão da boa-fé
objetiva e do afeto, e não mais do arcaico e inconstitucional jus in corpus.
No entanto, essa retificação ainda não é suficiente para criar um contexto eficaz
no tratamento da questão da reparação civil em caso de infidelidade conjugal, uma
vez que nenhum dos dois regimes clássicos de responsabilidade civil oferece boas
respostas ao pleito.
No caminho aberto por Roberto Paulino de Albuquerque Jr., cremos que se faz
necessária a construção de uma teoria da responsabilidade civil familiar, já que as
relações familiares urgem por mais proteção, pleito que inclui a tutela da reparação
civil. O que, como vimos, não é monetarizar afeto, antes significa abrir mais uma via
para proteger a dignidade da pessoa humana, mormente em suas relações de família.
Essa nova teoria — à qual este artigo pretende ser um contributo —, além de
plenamente necessária, espera inaugurar uma nova fase no tratamento da questão
da infidelidade conjugal no âmbito da responsabilidade civil, bem como nas demais
questões de danos morais em relações familiares, prezando sempre pelos “princípios
próprios da matéria familiar, procurando-se afastar os riscos da repatrimonialização.”41
Abandonado o critério atécnico da dor moral e eleito o critério do direito à fidelidade do cônjuge, os casos de indenização por danos morais em caso de infidelidade
conjugal hão de ser conhecidos e decididos tendo por base os princípios constitucionais que informam o direito de família — notadamente o direito matrimonial — e
tendo por método a ponderação de interesses legítimos entre a liberdade e a solidariedade, entre a boa-fé objetiva e o afeto, sempre na persecução do melhor caminho
à proteção da dignidade humana.
The (dis)Regard of the Right to Fidelity of Consort: a Tribute to the Theory of Familial Civil Liability
Abstract: Between the marital duties, fidelity is probably the most polemic one, involving moral, religious
and law issues. Beyond that, the infringement is surrounded by problems of juridical order, in view of
the entrance of civil liability of the family law is a stony path, facing questions about the monetization of
affection and about the privacy and freedom as fundamental rights. Described the picture, it is necessary
to open new paths in order to find new answers.
Keywords: Family Law; marriage; marital duties; familial civil liability.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino. Ensaio introdutório sobre a teoria da responsabilidade civil familiar.
In: ALBUQUERQUE, F. S.; EHRHARDT JÚNIOR, M.; OLIVEIRA, C. A. de. Famílias no direito contemporâneo:
estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 421-422.
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Raul Cézar de Albuquerque
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):
ALBUQUERQUE, Raul Cézar de. A (des)consideração do direito à fidelidade do
cônjuge: um contributo à teoria da responsabilidade civil familiar. Revista Fórum
de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 257-277, set./dez. 2015.
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Da legitimidade do sublocatário para a
consignação de aluguel
Leonardo Mattietto
Professor de Direito Civil na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e na
Universidade Candido Mendes. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Procurador do Estado do Rio de Janeiro.
Resumo: O objetivo do presente trabalho é discutir a legitimidade ativa do sublocatário para a consignação
de aluguéis e acessórios devidos ao locador, ainda que a sublocação não tenha sido previamente
autorizada. Identifica-se no sublocatário um terceiro interessado no cumprimento da obrigação contraída
pelo locatário, assistindo-lhe o direito de pagar diretamente ao credor.
Palavras-Chave: Locação de imóveis. Sublocação. Consignação em pagamento. Legitimidade ativa.
Sumário: 1 Locação, sublocação e conflitos de interesses – 2 Sublocação: autorizada ou irregular – 3 A
consignação como um direito do sublocatário – 4 Conclusão – Referências
“(...) Tanto a obrigação — como expectativa de prestação —
quanto a ação reconduzem até o mesmo preceito concreto de
direito que garante a alguém um bem determinado e tendem à
realização deste mesmo bem, embora de maneiras diferentes
e com diferentes meios.”1
(Emilio Betti)
1 Locação, sublocação e conflitos de interesses
Na expressão do professor Sylvio Capanema de Souza, o “sensível e nervoso
mundo dos contratos”, tradicionalmente impregnado pela visão individualista, passa
por mudanças paradigmáticas.2
1
2
BETTI, Emilio. Teoria generale delle obbligazioni. Milano: Giuffrè, 1953, v. II, p. 11.
“No sensível e nervoso mundo dos contratos, até então impregnado pela visão individualista, as mudanças
serão paradigmáticas, ainda que não possam ser sentidas imediatamente. Os princípios da função social e
da boa-fé objetiva, insculpidos nos arts. 421 e 422 [do Código Civil], serão os dois inexpugnáveis pilares de
sustentação da teoria geral dos contratos, traduzindo necessário temperamento dos valores clássicos da
autonomia da vontade e da força obrigatória.” SOUZA, Sylvio Capanema de. Comentários ao novo Código Civil.
Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. VIII, p. XII.
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Leonardo Mattietto
O contrato de locação, na experiência social, tem se mostrado um campo fértil
para a eclosão de litígios,3 dados os variados pontos de atrito entre locadores e locatários. Não por acaso, o legislador brasileiro decidiu tratar da relação locatícia em
leis especiais, vislumbrando a missão de promover o equilíbrio dos contratantes, o
que tem sido razoavelmente alcançado com a disciplina decorrente da já longeva Lei
nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, conhecida como Lei de Locações de Imóveis
Urbanos ou simplesmente Lei do Inquilinato.
Um dos fatores de tensão, muito acentuadamente, envolve a chamada sublocação, assim enunciada por Caio Mário da Silva Pereira:
Esta é uma operação análoga à locação, e envolve a utilização da coisa locada por um terceiro, mediante remuneração ao locatário, o qual
permanece vinculado e responsável perante o locador pela locação do
imóvel e solução dos alugueres; na sublocação as cláusulas podem diferir da locação; na sublocação o locatário continua devedor de todas as
obrigações contratuais.4
Quanto à permissão para que o locatário possa sublocar, a regra legal acentua
que “a cessão da locação, a sublocação e o empréstimo do imóvel, total ou parcialmente, dependem do consentimento prévio e escrito do locador” (art. 13, caput, da
Lei do Inquilinato).
No cenário retratado, o presente artigo cuida da legitimidade do sublocatário
para a consignação de aluguéis devidos pelo locatário ao locador, quando houver a
recusa deste a recebê-los espontaneamente ou a emitir a respectiva quitação.
2 Sublocação: autorizada ou irregular
Uma possível vicissitude pode se encontrar na distinção entre a sublocação
autorizada pelo locador e a operada indevidamente pelo locatário.
Tendo o locador, nos termos do art. 13 da lei, manifestado a sua expressa aprovação, não parece haver qualquer óbice para que o sublocatário possa diretamente
lhe pagar, tendo, por conseguinte, insofismável legitimidade para a consignação, do
“A dificuldade psicológica de fazer funcionar um contrato duradouro não escapou aos juristas. Após o momento
de entusiasmo, no qual a contraparte é admirada e estimada, vem depressa o momento do arrependimento
(que as legislações por vezes levaram em conta para aí enxertar um jus poenitendi); depois se estende a longa
planície da frieza, do cansaço e até do ódio, que pode conduzir à inexecução e ao processo. Os peritos em
psicossociologia procurarão as causas para tentar agir sobre elas. De onde sopra o frio? Onde estão os nós
de tensão?” CARBONNIER, Jean. Sociologie juridique. 2. ed. Paris: PUF, 2004, p. 261.
4
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, v. II, p. 194.
Na doutrina portuguesa, obtém-se o seguinte conceito: “A sublocação é um contrato subordinado, pelo qual
o sublocador, ao abrigo de sua qualidade de locatário, proporciona a terceiro o gozo de uma coisa, mediante
retribuição. Na medida em que o subarrendamento consubstancia uma relação arrendatícia de segundo grau,
ficam subsistindo duas locações sobrepostas”. MARTINEZ, Pedro Romano. O subcontrato. Coimbra: Almedina,
1989, p. 28.
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Da legitimidade do sublocatário para a consignação de aluguel
mesmo modo que o senhorio poderia dele exigir o pagamento das somas devidas
pelo locatário, ainda que subsidiariamente, à luz do art. 16 do mesmo diploma legal.
Questão mais difícil é saber se o sublocatário que participe de uma sublocação
não autorizada pode acionar o locador para pagar os aluguéis devidos pelo locatário-­
sublocador, em caso de inércia deste. O inadimplemento dos aluguéis pelo inquilino,
como amplamente sabido, conduz ao drástico corolário do despejo que, se prima
facie atinge o locatário, repercute inexoravelmente contra o sublocatário. É o que reza
o art. 15 da Lei do Inquilinato, verbis: “finda a locação, qualquer que seja a sua causa, resolvem-se as sublocações, assegurado o direito de indenização do sublocatário
contra o sublocador”, isto é, contra o locatário inadimplente.5
A rigor, a Lei de Locações é omissa quanto à legitimidade do sublocatário para
o ajuizamento de ação de consignação de aluguéis e acessórios (arts. 67-70), levando a doutrina a abrigar correntes de entendimento dissonantes sobre a respectiva
viabilidade jurídica.
Note-se, inicialmente, que o art. 16 da lei, ao prever a responsabilidade subsidiá­
ria do locatário quanto aos aluguéis inadimplidos pelo sublocador, não distingue se a
sublocação foi ou não autorizada pelo locador.
Entretanto, alguns autores sugerem que abrir a possibilidade de consignação
para o sublocatário não autorizado significaria propiciar uma espécie de intromissão
indevida na relação entre o locador e o locatário original, até mesmo porque o art. 13
da lei exige o “consentimento prévio e escrito” daquele.
Na prática, o locatário poderia ter simplesmente se omitido, não fazendo a
necessária comunicação ao locador ou, o que seria mais grave, ter clamado pela
concordância respectiva, mas recebido uma resposta negativa. Poderia, por outro
lado, verificar-se a tolerância do locador, caracterizando de tal maneira a aquiescência tácita, o que não seria o bastante, de um ponto de vista literal, para atender ao
comando do citado art. 13, que teria fixado, nessa ótica, uma primazia absoluta da
vontade do locador.
Sintetizando tais premissas, observa-se a advertência de José da Silva Pacheco:
Assim, há que se considerar o sublocatário em relação ao locatário-sublocador. Para que a sublocação seja legítima, insta que seja autorizada
pelo locador. Dessa forma, tem o sublocatário o direito de exigir do sublocador, ao ser contratada a sublocação, o consentimento escrito, do
5
Ainda que se possa cogitar de que o despejo seja pleiteado pelo locador não apenas em virtude da falta de
pagamento de alugueis, mas também em decorrência da prática de infração legal ou contratual (art. 9º, II, da
Lei de Locações), consistente na sublocação não-autorizada, é preciso entrever que o rompimento da locação
não é automático, dependendo de decisão judicial que reconheça os fatos alegados pelo locador, prolatada
com observância do devido processo legal. Vale ademais lembrar que, “em razão da análise da infração exigir
exame pormenorizado não incluiu o legislador essa causa petendi como daquelas autorizadoras do despejo
provisório”. FUX, Luiz. Locações: processos e procedimentos. Rio de Janeiro: Destaque, 1992, p. 59.
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locador (...). O sublocatário tem o direito de não pagar mais do que o
preço da locação; de ser intimado por ocasião da propositura da ação de
despejo ou de reajustamento do aluguel, de purgar a mora, de continuar
a locação diante da falta de sucessores e de preferência à aquisição.
Para o gozo desses direitos há que ser legítima a sublocação.6
Como se aduz, o sublocatário não poderia afrontar diretamente o locador,7 por
não manter com este uma relação jurídica imediata, ou por não ter recebido o beneplácito do assentimento do titular do imóvel.
3 A consignação como um direito do sublocatário
A posição negativa, mencionada anteriormente, talvez contenha um desvio de
perspectiva. Se é certo que o sublocatário não é parte, originalmente, do contrato de
locação, e por isso não deveria intervir na relação jurídica alheia; há de ser qualificado, contudo, como um terceiro.8
Compete indagar se, por não ser parte e, em consequência, por enquadrar-se
como um terceiro diante da relação jurídica original, ostentaria o subinquilino ainda
assim algum interesse juridicamente tutelável.
Na sua preciosa obra sobre a teoria jurídica da circulação dos bens, Francesco
Carnelutti ensina que a legitimação é coisa diversa da titularidade do direito, da posição de parte da relação jurídica, mas “idoneidade para o seu exercício; em outras
palavras, idoneidade para a realização de um ato eficaz frente ao mesmo direito”.9
Sobre a legitimidade para cumprir, colacione-se a noção difundida por Inocêncio
Galvão Telles:
Neste domínio a lei amplia extraordinariamente o requisito da legitimidade ativa (legitimidade para cumprir) reconhecendo-o a todos. E procede
assim porque o cumprimento realizado por terceiro satisfaz do mesmo
modo o interesse do credor, a quem é indiferente receber a prestação
desse terceiro ou do devedor, e porque este também verá geralmente
com agrado semelhante intervenção, que o exonera perante o seu credor
e o liberta das pressões por ele feitas.10
PACHECO, José da Silva. Tratado das locações, ações de despejo e outras. 11. ed. São Paulo: RT, 2000, p. 265.
“O sublocatário legítimo disporá de ação consignatória para compelir o sublocador a receber o aluguel avençado,
mas não poderá afrontar, diretamente, o locador, com o qual não mantém relação jurídica imediata.” SOUZA,
Sylvio Capanema de. A lei do inquilinato comentada. 7. ed. Rio de Janeiro: GZ, 2012, p. 314. No entanto,
a bem da verdade, o eminente professor não afasta que, havendo omissão do locatário no pagamento de
aluguéis ao locador, possa o sublocatário consignar, e não descarta que este possa se apresentar como um
terceiro interessado, no tratamento sistemático da obrigação.
8
“(...) com relação ao direito das obrigações, a noção de ‘terceiro’ mostra-se quase auto-explicativa. É terceiro
aquele que não é credor nem devedor, ou seja, aquele que não participou da formação do vínculo e tampouco
tornou-se pólo da relação jurídica durante o seu desenvolvimento.” SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Adimplemento
e extinção das obrigações. São Paulo: RT, 2006, p. 77.
9
CARNELUTTI, Francesco. Teoria giuridica della circolazione. Padova: CEDAM, 1933, p. 165-166.
10
TELLES, Inocêncio Galvão. Direito das obrigações. 7. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 229.
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Da legitimidade do sublocatário para a consignação de aluguel
Na legislação brasileira, distingue-se entre o terceiro interessado e o não
interessado. O critério de diferenciação parte do interesse jurídico na causa, não
propriamente de interesse econômico ou moral.11 Considera-se, pois, juridicamente
interessado o terceiro que pode sofrer consequências danosas a partir do inadimplemento do devedor, ou que, em outras palavras, pode vir a ser patrimonialmente
atingido se o desempenho da prestação não for efetuado.
“O interesse é que legitima”, como se colhe da dicção certeira de Pontes de
Miranda.12 Não é por outra razão13 que o Código Civil vigente estatui que “qualquer
interessado na extinção da dívida pode pagá-la, usando, se o credor se opuser, dos
meios conducentes à exoneração do devedor” (art. 304), como explica o professor
Guilherme Calmon Nogueira da Gama:
Relativamente às obrigações em geral, qualquer interessado pode pagar
(art. 304 do Código Civil), assim considerado aquele que tenha interesse
jurídico (não apenas econômico ou moral) no cumprimento da obrigação.
Em primeiro plano, localiza-se o devedor como a pessoa vinculada à obrigação que, não cumprindo voluntariamente a prestação, sujeitar-se-á a
determinadas sanções pelo inadimplemento — a eficácia do pagamento
é liberar o devedor. (...)
Em segundo plano, também é considerada interessada qualquer pessoa
sobre quem poderá repercutir o inadimplemento da obrigação, como o fiador, sublocatário, herdeiro, sócio, outro credor desse mesmo devedor, adquirente do imóvel gravado do direito real de hipoteca em virtude da dívida,
entre outros. Tais pessoas, a despeito de não serem devedoras, podem
pagar porque querem se livrar de eventuais consequências contrárias aos
seus interesses em decorrência da possível configuração do inadimplemento da obrigação pelo devedor. E, como tais, além do devedor, elas
têm possibilidade de utilização dos meios conducentes ao cumprimento
da obrigação — inclusive com a consignação da prestação em pagamento
—, sub-rogando-se na qualidade de credor em relação ao devedor.14
Sem embargo, “censura-se modernamente a tese de que só serão interessados na extinção da dívida os que
têm sub-rogação legal, tendendo-se, por interpretação extensiva, que basta para legitimar a intervenção de
terceiro um interesse puramente econômico”. GOMES, Orlando. Obrigações. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2004, p. 115.
12
“Tratava-se de problema de técnica legislativa, que o Código Civil resolve, à semelhança de outros, pela
necessária existência do interesse. O interesse é que legitima. (...) Na composição do suporte fático do
art. 930 [do Código Civil de 1916, correspondente ao art. 304 do Código atual], há o elemento ‘interesse’;
qualquer outro seria um plus.” MIRANDA, F. C. Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsói,
1959, t. XXIV, §2.906, p. 87-88.
13
Cabe acrescentar que “o fator legitimador do pagamento é o interesse do terceiro, o que lhe defere o poder
jurídico liberatório da obrigação. Daí a impossibilidade de o credor a ele se opor, sob pena de utilização por
parte do interessado dos meios conducentes à exoneração do devedor (art. 304 do CC). Se houver recusa
pelo credor ao pagamento oferecido pelo terceiro interessado, será deferida a este a tutela e o instrumental
normalmente concedidos ao devedor, não apenas a constituição do credor em mora para o subsequente
exercício da pretensão de consignação, como a possibilidade de compensar o seu crédito com o do credor
e alegar exceções comuns e pessoais”. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito
Civil. São Paulo: Atlas, 2015, v. 2, p. 372-373.
14
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito Civil: obrigações. São Paulo: Atlas, 2008, p. 225-226
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À conclusão favorável quanto à legitimidade do sublocatário para consignar chegaram, de modo geral, os juristas que se dedicaram a comentar o Código Civil de
2002, como se permite haurir das obras de Gustavo Tepedino, Maria Celina Bodin
de Moraes e Heloisa Helena Barboza,15 Judith Martins-Costa,16 Jorge Cesa Ferreira da
Silva17 e Mário Delgado,18 entre outros.
Em grande parte, a doutrina especializada acompanha o entendimento que está
assentado no direito comum. Nessa direção, lê-se que:
(...) como a consignação em pagamento nada mais é do que modalidade
do pagamento, não somente o locatário pode figurar no pólo ativo, mas
também qualquer terceiro, interessado ou não, desde que atendidas as
regras gerais subjetivas do pagamento (...). Até o terceiro não interessado, se pretender pagar em nome e por conta do devedor, estará legitimado para a ação (...). Não há interesse do credor em recusar o pagamento
em dinheiro.19
A disciplina processual confirma o postulado do direito material. Sabendo que a
consignação é versada tanto pelo Direito Civil, como pagamento indireto, como pelo
Direito Processual Civil, que lhe imprime a feição de procedimento especial, tem-se que:
Conforme estabelece o art. 890 do CPC, assim como o art. 304 do CC,
tem legitimidade para a propositura da ação de consignação o devedor
e o terceiro juridicamente interessado no pagamento da dívida. Nessas
hipóteses, o terceiro se sub-roga nos direitos do credor. (...) Assim, quem
pode promover a ação de consignação de aluguéis e acessórios é o locatário e, havendo, também os sublocatários do imóvel (...).20
“Considera-se como juridicamente interessado o terceiro que poderia ter que suportar as consequências da
inexecução da obrigação, ou mesmo que esteja diante da possibilidade do agravamento de sua situação,
apontando-se como exemplo o sublocatário, que pretende evitar o risco de ser despejado em virtude do
inadimplemento do locatário em face do locador.” TEPEDINO, Gustavo; MORAES, Maria Celina Bodin de;
BARBOZA, Heloisa Helena. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. 2. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2007, v. I, p. 598.
16
“São também interessados, além do fiador, o coobrigado, no todo ou em parte (art. 346, III), o sucessor, o
sócio, o credor do devedor (art. 346, I), o que garante a dívida de terceiro por hipoteca ou outro direito real
de garantia, bem como o terceiro que efetiva o pagamento para não ser privado de direito sobre o imóvel (art.
346, II), o cessionário da posição contratual ou a pessoa a quem a dívida foi transmitida, nos termos dos
artigos 286 a 303 do Código Civil, e o subinquilino, entre outros.” MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao
novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, v. V, t. I, p. 106.
17
SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Op. cit., p. 76.
18
RÉGIS, Mário Luiz Delgado. In: FIÚZA, Ricardo (Coord.). Novo Código Civil comentado. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2005, p. 287.
19
VENOSA, Silvio. Lei do Inquilinato Comentada. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 316. Com semelhante
essência, declara-se: “A consignatória terá, como primeiro requisito para sua admissibilidade, a legitimidade
do devedor para consignar. A legitimação ativa para o exercício dessa ação será do locatário, (...) podendo,
ainda, ser de terceiro interessado (cônjuge do locatário, sublocatário, fiador) ou não (parente do inquilino),
desde que efetue o depósito em nome do locatário (...)”. DINIZ, Maria Helena. Lei de locações de imóveis
urbanos comentada. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 273.
20
ZARIF, Cláudio Cintra; FERNANDES, Luís Eduardo Simardi; MELLO, Rogerio Licastro Torres de. Ações locatícias.
São Paulo: Método, 2010, p. 131. Anote-se que o Código de Processo Civil de 2015, no art. 539, caput,
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Da legitimidade do sublocatário para a consignação de aluguel
Como em outra oportunidade já se deixou verter, cumpre revelar que uma rigorosa relatividade dos efeitos do contato,21 que seja lida no sentido de enclausurar o
negócio apenas para os contraentes, sofre o impacto do princípio da função social:
O desenho das relações de crédito tem sido até hoje pensado com base
no acordo de vontades. Deve-se ofertar um novo esquema baseado
não mais no consentimento, mas no interesse protegido, ou, em outras palavras, da estrutura à função. O contrato não consiste apenas na
convergência de vontades ou de declarações (realidade empírica), mas
evidencia valores presentes no mundo jurídico. (...)
A função social do contrato, como acertadamente o novo Código dispõe,
não deve ser apenas um limite, como algo externo, uma barreira ou
obstáculo à contratação privada. Mais valiosa que a ideia de limite é a de
que a função social que o contrato se presta a desempenhar é uma razão
(embora obviamente não seja a única) para a admissão do contrato, pelo
ordenamento, como fonte de obrigações. (...)
O reconhecimento de uma função social para o contrato atinge, em cheio,
o princípio da relatividade, pois o negócio deixa de ser algo que interessa
apenas às partes, podendo suscitar, ainda que de maneira oblíqua ou
reflexa, efeitos para terceiros.22
No contemporâneo Direito das Obrigações, não há que se confundir a relatividade do contrato — na acepção de que este é fonte de direitos e deveres para as
partes — com uma suposta inoponibilidade de efeitos para terceiros.23 Há mesmo um
movimento que aconselha superar a rígida distinção entre as partes e os terceiros,24
uma vez que, ainda que indiretamente, cada contrato pode beneficiar e prejudicar
inúmeras pessoas estranhas à sua celebração, para quem os seus efeitos, não obstante, podem ser oponíveis.25
manteve a regra estabelecida pelo Código de Processo Civil de 1973, no art. 890, caput, acolhendo a
legitimação ativa do devedor e do terceiro para a consignação.
21
A relatividade dos contratos é um dos princípios que servem para modelar a teoria contratual clássica. Recordese do brocardo res inter alios acta aliis nec nocet nec prodest, para exprimir que o contrato não prejudica
nem aproveita a quem dele não seja parte. Em outras palavras, o contrato cria direitos e deveres apenas
para as pessoas que o celebraram, não para terceiros. No Código Civil francês, de 1804, o princípio aparece
explicitamente no art. 1165: “As convenções só têm efeito entre as partes contratantes; não prejudicam ao
terceiro nem lhe aproveitam a não ser no caso previsto no artigo 1121”. O referido artigo 1121, por sua vez,
abre uma única exceção, para consagrar a estipulação em favor de terceiro, que só é admitida por ter origem
nas vontades dos próprios contratantes.
22
MATTIETTO, Leonardo. Os contratos na complexidade contemporânea e os novos princípios: boa-fé objetiva,
função social e equilíbrio contratual. In: AZEVEDO, Fábio; MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Direito Imobiliário:
estudos em homenagem ao Professor Ricardo Pereira Lira. São Paulo: Atlas, 2015, p. 107-109.
23
A invocação de um contrato por um não contratante remonta à oponibilidade, que se liga à projeção da
eficácia de um direito subjetivo para terceiros. CARDOSO, Patrícia. Oponibilidade dos efeitos dos contratos:
determinante da responsabilidade civil do terceiro que coopera com o devedor na violação do pacto contratual.
Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 20, out./dez. 2004, p. 131.
24
MIRAGEM, Bruno. Diretrizes interpretativas da função social do contrato. Revista de Direito do Consumidor,
São Paulo, v. 56, out./dez. 2005, p, p. 36.
25
O programa contratual inferido da autonomia privada não é autossuficiente, recebendo a incidência da lei.
Sabe-se que “as partes têm tendência a não assumir os reflexos negativos, e os exportam para que os outros
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Pelo ângulo de observação das funções econômica e social do adimplemento,
a sua consecução pelo devedor é apenas um dos meios pelos quais o crédito é
tutelado pelo ordenamento, sendo que o pagamento da prestação pecuniária consistente no aluguel, pelo sublocatário, produz o mesmo resultado de satisfação do
credor.26 Não sem motivo, prestigia-se a consignação como mecanismo de facilitação
do adimplemento.
Pagar os aluguéis devidos ao locador não é, portanto, uma providência exclusiva do locatário, estendendo-se ao sublocatário, configurada a mora do credor pela
respectiva recusa. Na dogmática hodierna, governada pela boa-fé objetiva, o dever de
pagar convive com o direito de realizar a prestação.27
4 Conclusão
Com a vênia de quem entenda pela ilegitimidade, que se alinha a uma visão
jurídica de perfil mais individualista, os argumentos trazidos ensejam concluir que o
sublocatário é legítimo para consignar os aluguéis e acessórios devidos pelo locatário
ao locador, mesmo que a sublocação não tenha sido previamente assentida.
A posição favorável à legitimidade do sublocatário é a que melhor se ajusta
à interpretação sistemática do ordenamento e que, em boa hora, compatibiliza-se
com a função social do contrato, no sentido específico em que este princípio confere
abertura à relação jurídica contratual, mitigando uma concepção vetusta e hermética
da relatividade dos efeitos do contrato.
Standing of the Subtenant for Consignation of Rent
Abstract: This paper aims to discuss the locus standi of the subtenant for paying by deposit (consignation)
of rent and accessory charges owed to the lessor, even if the sublease has not been previously authorized.
The subtenant is qualified as an interested third party in the performance of the obligation incurred by the
lessee, granting him the right to pay directly to the lender.
Keywords: Lease of Real Estate. Sublease. Payment into Court. Third Party Standing.
os sofram. Em troca, o Estado toma em conta estes reflexos e os regulamenta, pondo limites mais ou menos
extensos à programação contratual em função de como influem materialmente nos terceiros”. LORENZETTI,
Ricardo Luiz. Fundamentos do direito privado. São Paulo: RT, 1998, p. 537.
26
“Sob este perfil, o adimplemento pelo terceiro está no mesmo plano do adimplemento do devedor; ambos têm
a mesma eficácia instrumentalmente a respeito do comum ponto de referência que é o direito do credor, com
a única diferença de que o segundo é um meio à disposição de um terceiro estranho à relação obrigacional.”
NICOLÒ, Rosario. L’adempimento dell’obbligo altrui. Milano: Giuffrè, 1936, p. 113.
27
“Aliás, o interesse do devedor em liberar-se do vínculo pode até conexionar-se com a posição de terceiros.
Há que avaliar em concreto este interesse para compreender que, socioeconomicamente, ele representa
bem mais do que a exoneração da simples adstrição a um comportamento positivo ou negativo em benefício
do credor.” SÁ, Fernando Augusto Cunha de. Direito ao cumprimento e direito a cumprir. Coimbra: Almedina,
1997, p. 34.
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Da legitimidade do sublocatário para a consignação de aluguel
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TEPEDINO, Gustavo; MORAES, Maria Celina Bodin de; BARBOZA, Heloisa Helena. Código Civil
interpretado conforme a Constituição da República. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. v. I.
VENOSA, Silvio. Lei do Inquilinato Comentada. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
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zARIF, Cláudio Cintra; FERNANDES, Luís Eduardo Simardi; MELLO, Rogerio Licastro Torres de. Ações
locatícias. São Paulo: Método, 2010.
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):
MATTIETTO, Leonardo. Da legitimidade do sublocatário para a consignação de
aluguel. Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 4, n. 10,
p. 279-288, set./dez. 2015.
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Interpretação e o protagonismo da
doutrina*
António Pinto Monteiro
Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e da Universidade
Portucalense
Sumário: 1 Introdução – 2 O sentido do direito – O positivismo jurídico e sua superação – 3 A jurisprudência
e a doutrina entre as fontes do direito – 4 O modo de ser do direito – 5 Uma amostra dos contributos da
doutrina – 6 Conclusão
1 Introdução
I O tema deste Congresso é extraordinariamente rico e multifacetado. Ele convoca alguns dos principais problemas com que se vem debatendo, na actualidade, o
pensamento jurídico. Neste sentido, ele é universal, não se confina à Europa nem à
América do Sul, vai muito para lá das fronteiras de Portugal e do Brasil. Mas tendo em
conta que partilho esta sessão com o meu prezado colega e amigo, Professor Paulo
Lôbo, não me atreverei a fazer especiais incursões pelo direito brasileiro, até porque
o Professor Paulo Lôbo fará isso muito melhor do que eu o faria.
Prestado este esclarecimento prévio, importa ainda advertir de que o tempo de
que disponho, para o efeito — mesmo limitado à Europa —, é escasso, muito escasso, razão por que pouco mais farei do que enunciar, a traço grosso, os principais
tópicos a que este tema tão aliciante nos desafia.
II Assim, adianto desde já que o primeiro tópico a tratar é o da ligação do tema
à concepção sobre o sentido do direito. A interpretação será tanto mais valorizada,
mais rica e criativa, e o protagonismo da doutrina tanto maior, quanto mais aberta for
a compreensão do direito. Não poderei, neste contexto, deixar de aludir ao positivismo jurídico e às correntes metodológicas que o superaram.
* Publica-se, com brevíssimas notas, o texto da conferência que proferi na abertura do III Congresso de Direito
Civil, promovido pelo IBDCivil – Instituto Brasileiro de Direito Civil, no Recife, em 10 de Agosto de 2015. O
tema que me foi proposto fez-me recordar um tempo, já distante, mas ainda bem vivo e actual, em que iniciei
o meu percurso pela vida académica, como Assistente da Introdução ao Estudo do Direito, regida pelo Doutor
Castanheira Neves. O texto que se segue é um claro testemunho desse passado e do lugar marcante que nele
ocupa aquele nosso querido e ilustre Mestre.
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António Pinto Monteiro
Um segundo tópico, umbilicalmente ligado a este, é o das fontes de direito.
Qual o papel da doutrina nesse contexto? Como compreender a expressão “fontes de
direito”? Não estará hoje superada a concepção tradicional das fontes?
Igualmente ligado a estes tópicos está o do modo-de-ser do direito, para me
servir da expressão que a este propósito utiliza Castanheira Neves.1 Como se manifesta o direito? Como surge ele perante nós? Não se reduzindo o direito à lei nem à
norma jurídica, avultando hoje, pelo contrário, a importância dos princípios jurídicos,
facilmente se compreende o maior relevo da doutrina para a compreensão e identificação desses princípios.
III Uma vez considerados estes tópicos, perguntar-se-á: mas o que tem a ver,
afinal, a interpretação com tudo isso? E a doutrina? Muito, como iremos comprovar!
Adiantaria, desde já, que a evolução jurídica se processa, em primeira linha,
através de um rejuvenescimento interno do sistema jurídico, pela via da interpretação.
Efectivamente, mesmo quando, na sua aparência formal, o sistema se mantém inalterado, a evolução jurídica vai-se processando internamente, ao nível de um
desenvolvimento do sentido de princípios e normas, formalmente inalteradas, mas
substancialmente enriquecidas por outros sentidos e conteúdos, susceptíveis de fundamentar novas soluções.2 É oportuno observar, por isso, com Savatier, que é “por
dentro, mais depressa do que pelo seu aspecto formal, que as instituições jurídicas
mudam”;3 ou, com Orlando de Carvalho, que “nenhum direito (…) admite uma paralisação no tempo: mesmo que as normas não mudem, muda o entendimento das normas, mudam os conflitos de interesses que se têm de resolver, mudam as soluções
de direito, que são o direito em acção. Nenhum direito é definitivamente factum: é
sempre alguma coisa in fieri”.4
Ora, esse rejuvenescimento interno do sistema jurídico ocorre, em primeira via,
através da interpretação. Como afirma Becker, “toda a interpretação jurisdicional de
uma lei implica uma correcção ou um aperfeiçoamento do direito”.5 E muitas reformas
jurídicas se têm processado, efectivamente, por via interpretativa, extraindo da norma
um novo sentido, mais adequado à realidade do momento em que ela vai ser aplicada, conseguindo-se assim um rejuvenescimento de textos que largamente contribui
para a revitalização do sistema. A tarefa do intérprete não se esgota em explicar quod
implicitum est, antes lhe compete igualmente adaptar a norma jurídica ao ambiente
Cfr., deste Autor, por ex., as Lições de Introdução ao Estudo do Direito, ed. policopiada, Coimbra, 1968-69,
pp. 265,ss.
2
Assim, já o nosso Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil, Almedina, Coimbra, 1985 (2ª
reimpressão, 2011), p. 18.
3
Les Métamorphoses Économiques et Sociales du Droit Civil d’Aujourd’hui, première série, 3ª ed., Paris, 1964,
p. 4.
4
A Teoria Geral da Relação Jurídica (seu sentido e limites), 2ª ed., Coimbra, 1981, pp. 50-51.
5
In Festschrift für Heinrich Lehman, Band I, p. 82.
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Interpretação e o protagonismo da doutrina
social, económico e jurídico do tempo presente, no respeito pela sua ratio e pela
unidade do direito.
Esse avanço, essa evolução interna do sistema jurídico deve-se, em grande
medida, ao trabalho conjunto de jurisprudência e doutrina — à jurisprudentia (juris-­
prudentia), enquanto ciência do direito.
É claro que é na aplicação que o direito se realiza — e aí é determinante a
actividade do juiz. Mas a formação jurídica que permite ao juiz essa realização é
essencialmente fruto da doutrina. Recorrendo a Ulpiano, lembraria que Iurisprudentia
est, divinarum atque humanarum rerum notitia, iusti atque iniusti scientia,6 ou seja,
tendo em conta as coisas divinas e humanas, a jurisprudência é a ciência do justo e
do injusto.
Nesta concepção ampla, a jurisprudência não se fecha nos tribunais, não é
apanágio dos juízes, ela inclui também a doutrina, a dogmática, o “direito dos juristas”, pois é esse trabalho conjunto de doutrina e jurisprudência, complementar ao do
legislador, que é a mola real do desenvolvimento do direito. Claro que, hoje em dia,
identifica-se a doutrina com quem, especialmente na Universidade, pensa o direito e
faz ciência — já o juiz é aquele que, no tribunal, decide. Longe vão os tempos, porém,
em que se reduzia o juiz à mera “boca da lei” — o seu papel constitutivo, jurisgénico,
é hoje amplamente reconhecido. Daí a importância do juiz na realização do direito.
Mas para o reconhecimento dessa função contribuiu decisivamente a superação do
positivismo jurídico e a nova concepção do direito, a inclusão dos princípios e cláusulas gerais no sistema jurídico e o reconhecimento das limitações da lei, ainda
que constitucional — e tudo isto é trabalho da ciência do direito, a qual, não sendo
exclusivo da doutrina, encontra nela o seu protagonista por excelência, o seu agente
mais activo.
Assim, quando o juiz decide o caso concreto e contribui, nessa medida, para
a realização do direito, como agente activo da constitutividade jurídica, ele está a
dar vida e a concretizar toda a ciência jurídica que está a montante, onde a doutrina
ocupa um lugar privilegiado.
Razão tem por isso o (à época) Presidente da Cour de Cassation francesa,
Pierre Bellet, quando, no “Rapport” de síntese das Jornadas italianas de Florença, de
1980, dos “Travaux de l’Association Henri Capitant des amis de la culture juridique
française”, sobre La réaction de la doctrine à la création du droit par les juges, sublinha que é na realização do direito que este se cria, mas é a doutrina que, “antes
de mais, prepara a jurisprudência e que, de seguida, a comenta”, desenvolvendo,
continua, um “importante trabalho a montante e em aval das decisões judiciárias”,
6
Ulpianus, D. 1.1.10.
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chegando esse ilustre Magistrado a dar conta do desejo dos juízes de que a doutrina
se tenha pronunciado antes de eles terem de intervir.7
Na mesma linha de pensamento e nas mesmas Jornadas, os Professores
Hondius e Wedekind interrogam-se, precisamente, no relatório holandês sobre o
mesmo tema, se, em vez de ser a doutrina a aprovar ou a desaprovar a “criação” do
direito pelos juízes, não será, pelo contrário, a doutrina que prepara o caminho e a
jurisprudência que o segue, numa relação dialéctica permanente entre a doutrina e
a prática.8
IV Posto isso, vejamos então, ainda que tão só fotograficamente, os vários tópicos a que acabo de aludir, na tentativa de melhor compreendermos a “interpretação
e o protagonismo da doutrina”.
2 O sentido do direito – O positivismo jurídico e sua superação
I A concepção do direito perfilhada pelo positivismo jurídico reduzia consideravelmente o papel da doutrina e da jurisprudência, uma vez que o direito seria oferecido como um dado pronto e acabado, que importaria meramente conhecer para depois
aplicar mecanicamente, de acordo com um processo lógico-subsuntivo, numa atitude
de indiferença perante o problema da validade material ou da justiça do direito. Daí
a conhecida frase de Montesquieu de que o juiz seria a mera boca da lei (“la bouche
de la loi”).
É sabido que o direito e o pensamento jurídico, como realidades culturais, nunca são alheios ao contexto cultural fundamental da época histórica que se considere.
Ora, o positivismo jurídico, pensamento do século XIX, tem uma das suas raízes
culturais no pensamento filosófico e político do Iluminismo.9
No quadro do pensamento filosófico geral avultou então a Crítica de Kant, o que
teve como consequência, por um lado, a radical distinção entre o ser (determinado
pela experiência empírica segundo a Razão Teórica) e o dever ser (definido autónoma-­
racionalmente pela Razão Prática) e, por outro lado, teve ainda como consequência a
identificação do direito com a legalidade.
No quadro do pensamento filosófico-político não se pode esquecer o iluminismo individualista, com o “contrato social” de Rousseau e a “volonté générale” em
que todos participariam, pelo que os homens seriam legisladores de si próprios e a
lei expressão da vontade geral, razão por que “il ne faut pas se demander si la loi
peut-être injuste, puisque nul ne sauraît être injuste envers soi-même” (Rousseau).
Cfr. o referido “Rapport de synthese” de Pierre Bellet, no citado volume dos Travaux, tome XXXI (1980), ed.
Economica, Paris, 1982, pp. 5 e 6.
8
No mesmo volume, p. 147.
9
Acompanhamos os nossos Sumários de Introdução ao Estudo do Direito (de harmonia com as Lições do Prof.
Doutor Castanheira Neves), ed. policopiada, Coimbra, 1978, pp. 68,ss.
7
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Assim como também não se pode esquecer, neste plano, o estatismo, concebendo
o Estado como a instituição política da sociedade político-civil e o titular exclusivo do
direito: a lei (= direito) era a vontade do Estado.
Mas outros factores contribuíram também para este estado de coisas, como
a Revolução Francesa, tendo a identificação do direito com a lei atrás de si uma
nova concepção do Estado instituída pela revolução triunfante de 1789 — o Estado
demo-liberal.
E também a Escola Histórica, em que sobressai Savigny, viria concorrer para o
positivismo jurídico, embora com uma contribuição de tipo diferente, ainda que com
idêntico resultado. Reagindo contra a identificação do Direito à lei, veio defender que
o direito seria uma realidade histórico-cultural que se manifesta na vida sociologicamente real e historicamente condicionada de um povo. O direito é agora entendido
como um facto histórico-cultural, uma expressão do “espírito do povo” (Volksgeist),
uma entidade empírico-real. Deixa de ser um princípio da razão, ou mera prescrição
de uma vontade legitimada para o ditar, para ser um histórico objecto de conhecimento. O direito é feito. É obra das gerações que se sucedem no tempo. “O direito
cria-se primeiro pelos costumes e crenças populares, depois pela ciência do direito;
e portanto, sempre em virtude de uma força interior, nunca em virtude do arbítrio do
legislador.”10
A Escola Histórica opõe-se, pois, ao Iluminismo e à Revolução, vindo contudo
também ela contribuir para o positivismo jurídico, na medida em que o direito deveria
ser, como dissemos, um histórico objecto de conhecimento. Também aqui o direito
seria afinal um dado que interessaria apenas conhecer, tal como se nos depara na
vida de um povo, como sua expressão sociocultural. O direito já não é a lei, mas um
facto cultural e histórico, que interessa apenas determinar.
Podemos já aperceber-nos, em conclusão, que a atitude geral do positivismo
jurídico se dispersou em várias direcções, conforme a natureza do dado de que ao
direito seria lícito ocupar-se. O ponto comum a todas elas é a concepção de que o
direito é um pressuposto-dado. Para a Escola da Exegese (francesa — positivismo
exegético), o dado-direito é a lei escrita. Para a “Jurisprudência dos conceitos” (alemã
— positivismo científico ou conceitual), é o conceito, a elaboração científica de um
sistema de conceitos.11 Perante esse dado, o pensamento jurídico deveria ter uma
mera função de conhecimento — papel apagado, pois, o da doutrina e jurisprudência.
II Mas não podemos sustentar hoje uma compreensão positivista do direito. O
direito não é um mero dado, mas vai antes referido a um princípio normativo, a valores, que nós mesmos somos chamados a cumprir e realizar. O direito é algo por que
SAVIGNY, no manifesto em que se definiam as teses fundamentais da Escola Histórica, apud José Hermano
Saraiva, O que é o Direito?, Gradiva, Lisboa, 2009, p. 129.
11
ANTÓNIO PINTO MONTEIRO, Sumários de Introdução ao Estudo do Direito, cit., p. 77.
10
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se luta, vive conosco na história, ele “não pode refugiar-se no ‘céu dos conceitos’,
pois é seiva e exigência da vida real e concreta”.12
Como já dissemos, o direito é sempre função e condicionado por uma certa
cultura. Qualquer época cultural representa uma tentativa de dar resposta aos problemas do homem. Há problemas que se mantêm, sendo, contudo, a sua resposta
diferente. Por outro lado, novos problemas surgem, a exigirem uma nova resposta. O
direito é um modo particular de pôr e de pretender resolver um problema humano — o
da convivência social justa, aceitável.
Além de factores culturais e filosóficos gerais, como o fracasso do racionalismo
conceitualista e do cientismo, houve também outro tipo de factores a contribuir para
a superação do positivismo jurídico, designadamente factores ideológico-políticos. Na
verdade, no positivismo o Estado era tido como mero garante das posições e direitos
adquiridos espontaneamente, não devendo intervir nas relações sociais. Ao Estado
competia apenas garantir a ordem existente e as relações jurídico-sociais estabelecidas, só intervindo quando se verificasse uma qualquer violação. O Estado era um
simples árbitro dos interesses individuais. Era esta a concepção do Estado-de-direito
formal correspondente ao positivismo.
Hoje ao Estado compete uma bem diferente atitude. Cumpre-lhe alcançar uma
verdadeira justiça social, pelo que deverá intervir directamente na tentativa da sua
realização. O princípio do “laissez-faire, laissez-passer” resultou em flagrantes e clamorosas injustiças e o Estado deu conta de que não poderia continuar de braços cruzados, indiferente e passivo, mas deveria ele próprio tomar uma atitude de dinâmica
intervenção, para corrigir as desigualdades e injustiças a que o liberalismo conduzia.
As realidades concretas vieram mostrar que o esquema da liberdade e igualdade
vinha apenas beneficiar alguns. A igualdade abstracta fomentava as maiores injustiças, pois tratava “igualmente” situações desiguais à partida. Ora o desigual exige um
tratamento desigual. O jurista deu conta de que não poderia pensar as coisas num
plano abstracto. A justiça só se realiza se se tiverem em conta as condições reais,
concretas. Reconhece-se hoje, em conclusão, a necessidade de uma justiça material
e concretamente fundada, a exigir a intervenção do Estado, directamente comprometido na sua realização.
E há também factores imediatamente jurídicos. Efectivamente, em todos os
ramos do direito se faz sentir a necessidade de uma tomada de atenção especial pela
configuração concreta e material das situações a regular, por forma a conseguir-se
uma verdadeira justiça material.
No direito privado acentua-se toda uma intenção de justiça concretamente social. Assim, a autonomia privada, com os seus princípios da “liberdade contratual” e
12
CASTANHEIRA NEVES, op.cit., p. 13.
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da rígida “obrigatoriedade dos contratos” — pacta sunt servanda, recorde-se —, deixa de ser entendida num sentido exclusivamente individualista e formal, tendo cedido
perante a intenção de realizar em todo o domínio contratual uma juridicidade social e
materialmente fundada. Neste sentido, tem vindo o princípio da autonomia privada a
deparar com toda uma série de limites à sua afirmação absoluta, expressão, afinal,
dos limites derivados da nossa integração social. Se aquele princípio nunca se poderá omitir, pois é ele uma das formas mais relevantes da nossa participação pessoal,
a verdade é que hoje não se pode pensar a pessoa a não ser integrada na sociedade,
com os limites e exigências que daí decorrem e, desde logo, o da função social do
contrato (art. 421 do actual Código Civil brasileiro).
Por isso se nota actualmente um conjunto de alterações que mais não são do
que expressão desta alteração de sentido do princípio da autonomia privada. Assim,
controlam-se as condições reais do acordo estabelecido, dá-se relevo à alteração
anormal das circunstâncias, impõem-se vínculos contratuais, ampliam-se e restringem-se as obrigações contratuais para além do que se poderá imputar à “vontade
das partes”, ao lado dos “deveres primários” afirmam-se os “deveres secundários”,
laterais (de conduta, de colaboração), etc., deveres que o saudoso Professor Carlos
Alberto da Mota Pinto tão bem identificou e sistematizou, na esteira do notável trabalho feito a esse respeito pela ciência jurídica alem13 Tudo isto a traduzir a pretensão
de realizar uma concreta justiça material, “pois verdadeira justiça só será a que se
recusa a cobrir com o equilíbrio aparente das justificações formais, as manifestas
injustiças dos desequilíbrios reais”.14
Também o “princípio da igualdade” terá de ser entendido de modo muito diferente do sentido que lhe era dado pelo positivismo jurídico. Este entendia-o tão só de um
modo formal, de “igualdade na aplicação da lei”, vendo nesta o “prius” a fim de se
alcançar uma igualdade “ante” a lei. Ora hoje este princípio terá de entender-se como
um princípio material — a igualdade como uma intenção normativa que a própria lei
será chamada a cumprir. Antepõe-se agora à lei um critério normativo material de que
ela é apenas um meio ou instrumento, perante o qual terá de ser aferida e em função
do qual deverá aplicar-se. Trata-se não já de uma igualdade “ante” a lei, mas de uma
igualdade “na” lei, igualdade perante o direito. Ela deixa de ser uma simples garantia
jurídica que delimita e preserva uma determinada situação e um certo “status”, para
passar a ser uma categoria dinâmica de intervenção e de conformação material. Daí
que o princípio da igualdade tenha agora um carácter normativo fundamental, a impor-­
se a toda a ordem jurídica, onde a igualdade perante a lei é agora complementada
pelas duas outras dimensões da igualdade (uma igualdade de participação em todas
Cfr. desse Autor, a sua Cessão da posição contratual (ou, na ed. brasileira, Cessão de contrato), Atlântida
Editora, Coimbra, 1970, nºs 45 e 46.
14
CASTANHEIRA NEVES, op. cit., p. 79.
13
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as decisões comunitárias e uma igualdade social que postula uma real “equality of
opportunity”, uma efectiva “igualdade de chance”).15
A traduzir toda esta superação de um entendimento formalista e geral-abstracto
por uma intenção normativa material e concreta, verifica-se também a cada vez maior
inclusão de “cláusulas gerais” nas suas normas, que vão permitir uma aplicação do
direito normativamente adequada às circunstâncias do caso concreto.
E não há só a apontar esta nova dimensão concreta e material da juridicidade.
Deve igualmente ter-se em consideração o apelo que constantemente se faz, e cada
vez com maior insistência, a princípios jurídicos, expressão, pois, da superação do
positivismo legalista — os princípios da “boa-fé” (arts. 227º, 239º e 762º, nº 2, do
Código Civil português), do “abuso do direito” (art. 334º do C.C.), da “confiança”,
do “enriquecimento sem causa” (art. 473º do C.C.), etc. E se estes princípios normativos foram já em grande parte assimilados pelos códigos, a verdade é que foi
essa uma assimilação “a posteriori” de uma juridicidade que o pensamento jurídico
começou por constituir para além dos sistemas legais positivos.
Consideremos agora um outro ponto, já implícito nas considerações acabadas
de fazer, que veio mostrar a necessidade de superação da identificação do direito à
lei — o problema das lacunas.
Consequência da historicidade da vida jurídico-social, a lei não poderá contemplar todas as hipóteses, pois muitas situações são de todo em todo imprevisíveis no
momento da elaboração da lei. A lei não pode suspender o dinamismo histórico-social, pelo que constantemente surgem casos que exigem uma solução jurídica e que
não foram previstos pelo sistema legal. Por outro lado, surgem também situações
que, apesar de serem objectivamente previsíveis, não foram contempladas pela lei,
quer pelo facto de as questões que essas situações suscitam não estarem suficientemente amadurecidas para o legislador se achar habilitado a intervir, quer mesmo
porque o legislador, por mais inteligente e experimentado que seja, não consegue
prever todas as situações da vida real, consequência directa dos limites da natureza
humana. Por tudo isto, sempre os casos serão mais do que as leis. E uma vez que o
juiz não pode proferir uma decisão de “non liquet”, há que reconhecer a insuficiência
de um pressuposto sistema legal na sua pretensão de regulamentação jurídica de
toda a vida social.
Ainda aqui, porém, o positivismo legalista pretendia encontrar uma solução para
estes problemas, que não pusesse em causa o seu ídolo, a lei. Para isso recorria ao
dogma da plenitude lógica do sistema jurídico, pretendendo que este sistema conteria em si a regulamentação adequada de todas as situações dignas da sua tutela. Se
15
CASTANHEIRA NEVES, O instituto dos assentos e a função jurídica dos Supremos Tribunais, separata da
“Revista de Legislação e Jurisprudência”, Coimbra Editora, 1983, pp. 118-144.
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não se encontrasse uma lei que directamente contemplasse o caso jurídico que urge
resolver, ter-se-ia de recorrer à analogia legis ou à analogia iuris — num caso, haveria
que procurar uma lei análoga, no outro, tratava-se de considerar um conjunto de leis
que regulamente um determinado instituto jurídico, para de lá se poderem extrair os
princípios gerais que o informam. Ainda aqui, numa palavra, o critério era a lei ou os
princípios logicamente obtidos dela. O direito fechava-se todo dogmaticamente num
sistema. As lacunas seriam reabsorvidas pelo espírito do sistema.
Esta concepção é hoje inteiramente insustentável. O sistema normativo constituído não pode ultrapassar os seus limites; o seu possível desenvolvimento é sempre
um desenvolvimento implícito, que não ultrapassa os seus limites lógicos. Os casos
jurídicos que revelam a lacuna da lei são justamente casos imprevistos ou novos e,
portanto, estão para além do sistema normativo constituído, ultrapassando os seus
limites. Daí a necessidade de compreender o papel fundamental que o pensamento
jurídico tem, ao assumir ele próprio a específica intenção do Direito para participar na
sua constituição e realização históricas.
III Em suma, para concluir este ponto, com a superação do positivismo jurídico
e a tomada de consciência da importância que assumem os princípios jurídicos e a
dimensão social-concreta dos problemas, ganhou crescente relevo a jurisprudência e
crescente protagonismo a doutrina, ou seja, a ciência do direito.
Mas se é assim, com a nova concepção do direito e o reconhecimento do papel
de vulto que desempenham a doutrina e a jurisprudência, pergunta-se: não serão estas, hoje, fontes de direito? Não terá de reconhecer-se à doutrina e à jurisprudência,
na actualidade, esse atributo?
3 A jurisprudência e a doutrina entre as fontes do direito
I Efectivamente, decorre do que acaba de ser dito que não podemos deixar de
incluir a jurisprudência e a doutrina entre as fontes do direito.
É certo que o direito só verdadeiramente o é enquanto direito positivo. Daí que
nos interroguemos sobre a forma, os modos ou processo da positivação do direito.
Na perspectiva tradicional, o problema das fontes de direito traduz-se na determinação das formas que um certo sistema jurídico admite para a criação das normas
jurídicas. O problema das fontes de direito volve-se assim na determinação dos modos ou formas jurídicas que um direito pressuposto, um certo direito formalmente
positivo, admite e prescreve para a sua própria produção. O que significa, afinal, que
se omite aquele problema, pois parte-se já de um direito dado, de um direito positivo
(omitindo, assim, o problema do próprio direito positivo), com os critérios que esse
mesmo direito oferecerá. Quer dizer, o problema traduz-se numa simples questão de
interpretação do direito positivo, “quando o que verdadeiramente está em causa é o
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critério da sua própria positividade jurídica, o problema das ‘fontes’ constitutivas da
sua jurídica positividade”.16
II Ora, segundo a orientação tradicional, ainda herdeira do positivismo jurídico,
só verdadeiramente a lei seria fonte de direito, rejeitando-se esse atributo ao costume e à doutrina. Quanto à jurisprudência — com a excepção de vulto do sistema
anglo-saxónico —, ela só seria fonte de direito quando as suas decisões tivessem
eficácia vinculativa erga omnes, para lá da força do caso julgado, de modo semelhante à eficácia da lei, o que sucederia com os assentos, em Portugal (e com as
súmulas vinculativas, creio, no Brasil). Entretanto, os assentos desapareceram da
ordem jurídica portuguesa, com a revogação do art. 2º do Código Civil. E os Acórdãos
Uniformizadores de Jurisprudência, que lhe sucederam, deixaram de ter a força vinculativa e a natureza dos assentos.
Mas não pode ser assim.
Por tudo o que já deixámos antever, a nossa perspectiva não poderá ser esta.
No problema das fontes do direito o que está em causa é a vigência do direito e,
portanto, o que importa saber não é onde está o direito, e sim como advém essa
vigência — ou seja, verdadeiramente, o que constitui o direito como direito. É um problema transistemático e não intrassistemático. Sendo o direito um sistema normativo
histórico-socialmente vigente ou positivo, trata-se, pois, de saber como se constitui e
manifesta essa normativa vigência ou positividade.
Ora, sem dúvida que a lei é hoje a principal fonte de direito. Mas não é a única.
Podemos considerar como instâncias constitutivas do direito, em maior ou menor
medida, além da lei, também o costume, a jurisprudência e a doutrina.
O costume teve uma grande importância histórica, actualmente bastante diminuída. Com a afirmação progressivamente maior do Estado moderno, o costume foi
perdendo gradualmente a sua importância histórico-social, em favor da lei, um modo
particularmente expedito, seguro e adequado, para o Estado poder realizar o seu
“programa”. Paralelamente, a sociedade actual impõe um conjunto de exigências a
que seria inadequado e impróprio um direito de conteúdo tão impreciso, local e de
difícil determinação.
Quanto à jurisprudência, como já por várias vezes deixámos antever, deverá
ser-lhe reconhecido, na nossa opinião, um papel especial na constituição do direito.
Na verdade, o dinamismo histórico-social continuamente suscita novos problemas não regulados pela lei, pelo que será necessário desenvolver-se toda uma actividade constituenda que possa preencher aquele espaço em branco deixado pela lei.
É o juiz quem directamente dá conta desta carência e é ele quem terá de dar uma
resposta jurídica adequada a essas questões. O juiz cria verdadeiramente direito,
16
CASTANHEIRA NEVES, Lições..., p. 412-a.
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fazendo apelo a padrões e critérios normativos transpositivos e particularmente aos
princípios normativos em que se vai constituindo e se manifesta a “consciência jurídica geral” da comunidade. Não só no caso das lacunas, mas em toda a aplicação
da lei.
Finalmente, quanto à doutrina (“o direito dos juristas”), o pensamento jurídico
tradicional não a considera um modo próprio de constituição do direito, embora reconheça a sua importância como elemento persuasivo, influenciador, das decisões dos
juízes. Terá, porém, de se reconhecer a sua necessidade, manifestada no momento
dogmático do sistema jurídico, e a sua função complementar da jurisprudência — a
explicitação e fundamentação normativo-dogmáticas da experiência constitutiva do
direito.17
E é à doutrina que se deve, em maior medida, o desenvolvimento científico
do direito. Se é a jurisprudência que realiza o direito, a verdade é que, como temos
dito, é todo o trabalho que está a montante que permite ao juiz o bom cumprimento
dessa tarefa. Como iremos ver, todas as grandes doutrinas e teorias que permitiram
o avanço do direito, fosse através da lei, fosse através das decisões judiciais, todas
essas teorias e construções jurídicas foram elaboradas pelo pensamento jurídico,
pela ciência do direito — pela doutrina! O próprio incentivo à intervenção judicial e
ao papel constitutivo da jurisprudência, esse incentivo deve-se, em grande medida,
afinal, à própria doutrina!
4 O modo de ser do direito
I Do que acaba de ser dito decorre que o direito não se esgota na lei. Procurando
sistematizar agora o que fomos analisando, e em conformidade com a posição que
fomos assumindo, é chegado o momento de determinar o modo por que o direito
objectivamente se manifesta na realidade histórica.
Por um lado, ele aparece quer como direito objectivo, quer como direito subjectivo, tratando-se de dimensões complementares e dialecticamente constitutivas do
direito.
Mas, por outro lado, o direito surge-nos como sistema jurídico e sistema aberto,
de desenvolvimento regressivo, na medida em que está aberto à inclusão de novos
princípios jurídicos, através dos quais se produz a entrada de novos “pontos de vista
de valor” no sistema jurídico, os quais podem conduzir a uma reelaboração e recompreensão de todo o sistema.
17
Haverá ainda que falar na autonomia privada, como modo deliberado e expresso de constituição normativa,
de que são autores os próprios destinatários da normatividade constituida. V. CASTANHEIRA NEVES, Lições,
cit.,pp. 426-1, ss,
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Ora, a positivação destes princípios realiza-se tanto pelo direito formalmente
positivo (pela lei, designadamente), como pela “prática jurídica”, pela jurisprudência,
muito especialmente.
Mas para a identificação desses princípios e sua sistematização é decisivo o
trabalho da dogmática, do “direito dos juristas”, do pensamento jurídico, da doutrina
— isto é, da jurisprudência, no sentido clássico do termo, enquanto ciência do direito
ou, na formulação de Ulpiano, já atrás citada, enquanto ciência do justo e do injusto
(“iusti atque iniusti scientia”).
Finalmente, é na ordem jurídica que convergem todas estas dimensões do direito, é a ordem jurídica a “institucionalização histórica do direito” (Castanheira Neves).
II A superação da perspectiva positivista do direito e da sua identificação com a
lei, por um lado, e a compreensão da necessidade de fazer apelo a princípios jurídicos
transpositivos, por outro lado, os quais constituem um dos modos-de-ser do direito,
isto é, um dos modos por que o direito se manifesta na realidade histórica, implicam
um árduo trabalho científico a cargo da doutrina, na identificação e sistematização
desses princípios, contribuindo para a sua densificação pela jurisprudência, em contacto com a vida.
Como se vê, é todo um imprescindível trabalho de construção praeter legem
que vai muito para lá da interpretação jurídica e que tem como protagonista principal
a doutrina — mas é pela jurisprudência que esses princípios se positivam, passando
do plano da validade para o plano da vigência, sendo por aí, por essa via, que o direito
se realiza.
5 Uma amostra dos contributos da doutrina
I Procurando agora identificar algumas — apenas algumas! — das inúmeras
construções científico-dogmáticas que permitiram o avanço do direito nestes últimos
anos, e quedando-nos apenas pelo direito privado, não sabemos, sequer, por onde
começar...
Muitas dessas construções vieram a ser incluídas, “a posteriori”, no sistema
jurídico positivo, mormente por via legal; outras permanecem fora dos códigos e das
leis, obtendo o seu reconhecimento por via jurisprudencial. Neste último caso, é pela
interpretação e pelo apelo a cláusulas gerais e a conceitos indeterminados que esse
labor doutrinal se vê reconhecido pelo exercício da função judicial.
Mas é importante salientar que o próprio direito positivo é produto da ciência jurídica, na medida em que o legislador tem por detrás de si toda a reflexão e propostas
que a doutrina apresenta a partir dos problemas concretos suscitados pela vida real.
Por outras palavras, o esquema metodológico da realização do direito parte do
caso concreto, do problema, sendo este o “prius”, o ponto de partida. A partir daqui,
a resposta será dada pelo juiz, na decisão, se o legislador não tiver tido ainda a oportunidade de intervir; ou pela lei, se essa possibilidade de intervenção já tiver surgido.
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Interpretação e o protagonismo da doutrina
A lei não é, assim, o ponto de partida — antes o ponto de chegada, pois ela não é
mais do que a resposta a um problema ou conjunto de problemas da vida social. Por
outro lado, mesmo que essa resposta haja sido já dada pelo legislador, a tarefa do
juiz, como vimos já, não é hoje entendida como uma tarefa menor, de mera aplicação
lógico-subsuntiva, antes uma tarefa da maior responsabilidade, pois é na aplicação
da lei que o direito se realiza.
E para essa realização do direito é imprescindível o apoio da doutrina, quer as
suas propostas tenham obtido já o acolhimento do legislador, quer tais propostas
continuem fora do direito legislado e façam parte do chamado Richterrecht ou direito
praeter legem, direito para lá da lei mas dentro do sistema jurídico, numa concepção
do direito que não se identifica mais com a construção do positivismo jurídico e faz
apelo a princípios jurídicos.
Ora, para a identificação desses princípios, para a sua densificação e sistematização foi e continua a ser essencial o trabalho da doutrina, da dogmática jurídica.
A sua concretização e positivação no direito vigente, diria, depende do juiz, na sua
sentença — mas é todo o trabalho a montante, da dogmática jurídica, que facilita e
viabiliza essa aplicação prática. Daí, como temos dito e repetido, que esse deva ser
visto como um trabalho conjunto de doutrina e jurisprudência, complementar ao do
legislador, no sentido tradicional do termo jurisprudentia, enquanto ciência do direito.
E ela tem sido fundamental para o avanço do direito numa sociedade em constante evolução, onde a aceleração da história, do que nos falava há anos Savatier, se
vem processando hoje a um ritmo vertiginoso.
II Relembremos algumas — apenas algumas — das inúmeras doutrinas, figuras e construções que ao longo dos últimos anos foram enriquecendo a ordem
jurídica, sendo certo que a algumas delas foi já conferida noblesse legislative, mas
permanecendo outras ainda fora das leis, sendo o seu reconhecimento obtido por
via jurisprudencial. Todas elas são o produto, no entanto, repete-se, da reflexão e
propostas da ciência jurídica.
A doutrina da relação obrigacional complexa, no seio da qual se inclui toda uma
série de deveres para lá do singular dever principal de prestação, como os deveres
laterais ou acessórios (os Nebenpflichten), fundados no princípio da boa fé e em
atenção ao fim contratual — deveres de informação, de colaboração, de segurança,
de cuidado com a pessoa ou o património da contraparte —, a doutrina da relação
obrigacional complexa, dizia, abarcando todo esse enriquecido conteúdo da relação
contratual, é obra da doutrina alemã, a partir do §242 do BGB (Treu und Glaube).
Assim como foi ainda com fundamento no mesmo princípio da boa fé que entrou
na ordem jurídica alemã a doutrina da base do negócio (Geschäftsgrundlage), que
inspirou o legislador português de 1966 (art. 437º CC), e que só pela reforma do BGB
de 2001/2002 o legislador alemão acolheu por via legislativa (§313 BGB), apesar de
há muito fazer parte do direito em vigor na ordem jurídica alemã.
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Ainda da doutrina alemã, os contratos com eficácia de protecção para terceiro
(os Verträge mit Schutzwirkung für Dritte), para explicar que certos terceiros, apesar de
o serem (terceiros), pela sua proximidade ao contrato, devem ser incluí­dos no âmbito
de protecção deste (ex., os familiares do adquirente de um bem de consumo deteriorado); tal como a doutrina da liquidação do dano de terceiro (Drittschadensliquidation),
através da qual se concede ao credor a faculdade de pedir (liquidar) a indemnização do
dano sofrido por terceira pessoa com quem tem uma relação especial (“a pessoa que
sofreu o dano não tem remédio, enquanto que a pessoa que tem o remédio não sofreu dano”). E quem não se lembra da tese de doutoramento (a “Habilitationschrift”),
já de 1970, do Professor Canaris, sobre a responsabilidade pela confiança? (Die
Vertrauenshaftung im deutschen Privatrecht).
Temos nós próprios defendido, a este respeito, que em certos casos deve relevar juridicamente a confiança justificada de alguém no comportamento de outrem,
quando este tiver contribuído para fundar essa confiança e ela se justifique igualmente em face das circunstâncias do caso concreto. Essa relevância pode levar a
atribuir efeitos jurídicos a uma situação tão-só aparente, ou ficar-se, como sucederá
normalmente, por criar a obrigação de indemnização pela frustração das legítimas
expectativas.18
Uma importante aplicação deste princípio e da tutela da representação aparente
temo-la no art. 23º do Decreto-Lei nº 178/86, de 3 de Julho, sobre o contrato de
agência, com base numa proposta legislativa por nós mesmo feita e que o legislador
português acolheu no referido diploma legal.19
E quem não se lembra, igualmente, da “descoberta”, por Rudolf von Ihering, da
doutrina da culpa in contrahendo, hoje generalizadamente acolhida no contexto da
responsabilidade pré-contratual? E dos estudos que a esse respeito (e não só) se
vêm fazendo sobre o interesse contratual negativo e o interesse contratual positivo
relativamente ao dano a indemnizar em tais hipóteses de responsabilidade civil?20
Ainda a este respeito, e no contexto, designadamente, da responsabilidade pela confiança, é de recordar a defesa, por alguns, de uma terceira via (“dritte Spur”), para
lá da tradicional dicotomia entre a responsabilidade contratual e a responsabilidade
extracontratual, com um regime jurídico próprio. Tal como os chamados danos puramente patrimoniais (pure economic loss), ou seja, danos que atingem o património de
alguém mas não resultam da violação de direitos absolutos ou relativos nem de uma
disposição legal destinada a proteger interesses alheios.
Assim, a nossa posição in CARLOS MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed., por ANTÓNIO PINTO
MONTEIRO e PAULO MOTA PINTO, Coimbra Editora, 2005, p. 127.
19
Cfr. ANTÓNIO PINTO MONTEIRO, Contrato de Agência. Anotação ao Decreto-Lei nº 178/86, de 3 de Julho, 7ª
ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2010, pp. 115,ss (anot. ao art. 23º).
20
Cfr. PAULO MOTA PINTO, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, vols. I e II, Coimbra
Editora, Coimbra, 2008.
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Interpretação e o protagonismo da doutrina
Ainda a respeito dos avanços feitos em sede de responsabilidade civil, recorde-se
como uma engenhosa, ousada e imaginativa interpretação actualista do Code Civil francês, designadamente a propósito da responsabilité du fait des choses, tem permitido
responder a necessidades do mundo contemporâneo com normas que têm já mais de
dois séculos! E é esse constitutivo labor da doutrina e jurisprudência francesas que
tem dado razão ao dito de Napoleão, de que o Code Civil seria a sua maior conquista,
que jamais seria destruída...
Numa rápida incursão pelo direito comercial, limito-me a mencionar a riquíssima
construção no tocante à chamada indemnização de clientela do distribuidor comercial, em que avulta a construção desenvolvida pela ciência jurídica alemã no tocante,
precisamente, à Ausgleichsanspruch, através da aplicação analógica do §89b) do
HGB, sobre o agente mercantil, ao concessionário e ao franquiado; tal como toda a
doutrina construída a respeito das garantias autónomas à primeira solicitação ou pedido (on first demand) ou das cartas de conforto (confort letters), na ausência de uma
regulamentação própria, apesar de hoje generalizadamente praticadas nas relações
jurídicas mercantis, mormente no comércio internacional.
6 Conclusão
Eis, em suma, uma pequeníssima amostra de alguns dos muitos contributos da
doutrina, sendo certo que vários deles foram já integrados na ordem jurídica por via
legislativa, enquanto que outros fazem parte do sistema jurídico através da sua consagração por via judicial. Num caso e no outro, porém, tem sido a doutrina a principal
responsável por essa obra, que enriquece a ciência jurídica.
Mas há uma dificuldade própria com que se depara o jurista, quando se pretende incluir no sistema jurídico — isto é, tornar vigente — doutrinas que ainda não
obtiveram a chancela do legislador. É que é preciso encontrar fundamento jurídico no
próprio sistema para nele fazer entrar tais doutrinas, figuras ou construções. Esse
é o grande desafio do jurista. Não lhe basta justificar perante terceiros a justiça ou
adequação das medidas que propõe — é indispensável encontrar uma via, uma porta
de entrada para tais medidas no sistema jurídico. Ora, essa porta de entrada é mais
visível quando se trata de preencher o conteúdo aberto de cláusulas gerais ou conceitos indeterminados, pelos quais entram na ordem jurídica princípios jurídicos transpositivos, assim como quando se trata de integrar lacunas jurídicas, especialmente
quando, não sendo possível recorrer à analogia, pode recorrer-se a uma norma ad
hoc, criada pelo próprio intérprete-aplicador do direito, ainda que “dentro do espírito
do sistema”, para ultrapassar e preencher esse vazio da lei (art. 10º, nº 3, CC).
Mas uma outra via, quotidianamente utilizada por quem lida com o direito, é a
interpretação jurídica, uma vez ultrapassada, porque falsa, a velha máxima de que in
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claris non fit interpretatio, pois a interpretação é um passo indispensável e permanente na tarefa diária de realização do direito.
Ora, é pela interpretação, como já dissemos, que o sistema jurídico tem rejuvenescido, pois antes de ser possível qualquer intervenção legislativa, é sempre pela
interpretação que se abrem as portas do sistema jurídico às novas construções,
princípios e valores. Para esse efeito, o Código Civil português consagra importantes
regras de auxílio à interpretação, no diálogo entre a letra e o espírito da lei, com
auxílio dos tradicionais elementos histórico, sistemático e racional ou teleológico. E
culmina esse esforço hermenêutico com a consagração do postulado metodológico
do legislador razoável, determinando que “na fixação do sentido e alcance da lei, o
intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube
exprimir o seu pensamento em termos adequados” (nº 3 do art. 9º). Quer dizer, ainda
que o legislador histórico tenha sido um asno, tem o intérprete de presumir que ele
foi um ás! Pondo de lado a ironia, esta é uma regra da maior importância, pois permite rejeitar posições legislativas absurdas, uma vez que temos de partir do princípio
de que um legislador razoável, sensato, medianamente sagaz, diligente e competente
(enfim, um “bonus paterfamilias”) não teria consagrado soluções absurdas — pelo
contrário, temos de presumir que ele consagrou “as soluções mais acertadas”!
De algum modo em harmonia com esta posição legislativa, uma outra norma do
Código Civil português consagra uma doutrina objectivista em sede de interpretação
da declaração negocial, isto é, do negócio jurídico, recorrendo, também aqui, a um
declaratário normal, razoável, para fixar o sentido com que deve interpretar-se a declaração negocial (art. 236º, 1, CC). E abre as portas a interpretações que conduzam
ao “maior equilíbrio das prestações”, em caso de dúvida (237º), assim como aos
“ditames da boa fé”, na interpretação-integração do negócio jurídico (art. 239º).
Para finalizar, procurando unir as pontes, facilmente se pode concluir que a
interpretação é a via mais frequente e adequada para fazer entrar na ordem jurídica
princípios, construções e valores pelos quais se enriquece e permanentemente se
actualiza o sistema jurídico, assim como é a interpretação a via mais apropriada para
adequar às circunstâncias do caso concreto os juízos valorativos consagrados na lei.
A interpretação é, afinal, a via mais adequada à realização do direito — e a doutrina
ocupa aí um posto fundamental, em permanente diálogo com a jurisprudência e com
a vida concreta.
Nós próprios, na nossa carreira académica, passe a imodéstia, temos procurado intervir, por via interpretativa, na busca das soluções mais adequadas e justas,
para que, já hoje, no plano do direito constituído, seja possível alcançar as melhores
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soluções, não esperando pela intervenção tardia — e quantas vezes incorrecta — do
legislador.21 Essa é uma tarefa a cargo de todos nós!
Diria, com Castanheira Neves, que “verdadeiro jurista não é aquele que ‘conhece’ o direito conseguido, mas aquele que, assumindo a intenção do direito, colabora
no acto do seu histórico constituir-se”.22
Termino com o vosso Olavo Bilac, “ouvi as estrelas”… elas desciam pressurosas … mas educadamente … pela “Via Láctea” … e sussurravam baixinho aos meus
ouvidos… discretamente … pedindo-me que não vos incomodasse mais…
Muito obrigado pela vossa paciência!
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):
MONTEIRO, António Pinto. Interpretação e o protagonismo da doutrina. Revista Fórum
de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 291-307, set./dez. 2015.
Cfr. ANTÓNIO PINTO MONTEIRO, Cláusula penal e indemnização, Almedina, Coimbra, 1990 (2ª reimpressão,
2014), Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil, já citado, e Erro e vinculação negocial,
Livraria Almedina, Coimbra, 2002 (2ª reimp. 2003).
22
Lições, cit., p. 18.
21
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Trabalho criativo subordinado – A criação
de obras intelectuais em execução
de contrato de trabalho (com uma
perspectiva de direito comparado)1
Alberto de Sá e Mello
Doutor em Direito. E-mail: <[email protected]>.
Palavras-Chave: Trabalho criativo. Contrato. Direito de autor.
Sumário: 1 Trabalho criativo e liberdade criativa – 2 Enquadramento empresarial do trabalho criativo. Os
fins do contrato – 3 Criação intelectual assalariada, alienação do resultado do trabalho e atribuição do
direito de autor – 4 O contrato de trabalho de direito de autor – 5 Obras criadas em execução de contrato
de trabalho – Em especial: os trabalhos jornalísticos, as fotografias, os programas de computador, as
bases de dados – 6 O direito pessoal (“moral”) de autor nas obras criadas em cumprimento de contrato – 7
Trabalho e prestação de serviço para criação de obras intelectuais – Confronto de ordenamentos jurídicos
estrangeiros
1 Trabalho criativo e liberdade criativa
I O simples enunciado do título — “trabalho criativo subordinado” — parece encerrar uma contradição nos seus próprios termos. Dir-se-ia que a actividade criadora,
entendida no sentido constitucional como “liberdade individual de acção criativa e da
sua expressão (criadora)”, não se compadece com as características apontadas à
prestação de trabalho subordinado.
A incongruência é, porém, só aparente: na criação de obra em execução de contrato, não é a “liberdade criativa” que se cerceia, são as condições concretas em que
se desenvolve o processo criativo que se (pré) determinam; pelo que, salvaguardada
a “autonomia técnica” do trabalhador contratado (o que as leis do trabalho em geral
consagram), é a especificidade do conteúdo e a eficácia dos contratos de trabalho
que tenham por objecto a criação de obras intelectuais que justifica exame autónomo.
O presente escrito adapta Capítulo do nosso “Manual de Direito de Autor”, Edições Almedina, Coimbra, 2014,
que reproduz parcialmente. Foi publicada uma outra versão in “Estudos dedicados ao Senhor Prof. Doutor
Bernardo da Gama Lobo Xavier”, Lisboa, 2015 e em “JURISMAT – Revista Jurídica”, nº 7, 2015, Pontimão.
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Analisem-se, então, as condições concretas da prestação de actividade criadora
em execução de contrato de trabalho para criação de obras intelectuais.
2 Enquadramento empresarial do trabalho criativo. Os fins do
contrato
I A actividade criativa realizada em cumprimento de contrato de trabalho é normalmente enquadrada por uma organização (uma empresa-empregadora) e desenvolvida sob a autoridade e direcção de um empresário/empregador.2 Mas, como bem se
entende, nem toda a criação de obra intelectual realizada em execução de contrato
de trabalho é enquadrada por uma organização/empresa e nem todo o trabalho subordinado é executado num quadro empresarial.
II Deve, aliás e em geral, refutar-se a ideia de “incorporação do trabalho na
empresa” como marca distintiva da situação juslaboral: a prestação principal devida
pelo trabalhador caracteriza-se, sobretudo, pela hetero-determinação do seu objecto,
predeterminado pelo empregador que fixa a função, e conforma-se, em cada momento, pelo poder de direcção patronal.
Referido à actividade criativa subordinada, significa isto que são as condições
concretas de prestação da actividade laboral que devem conformar-se ao poder director
A noção de contrato de trabalho subordinado — dita emergente da de locatio operarum — não se contraporia
exactamente ao tipo do “contrato de obra” que, por exemplo, o direito civil italiano tipifica como “aquele em
que uma pessoa se obriga a cumprir/completar, mediante uma contrapartida, uma obra ou um serviço, com
trabalho predominantemente próprio e sem vínculo de subordinação para com o comitente” e que, distinto da
locatio operis, teria a sua génese e fundamento em actividades de cariz pré-industrial enquadradas por uma
estrutura empresarial.
P. ROMANO MARTINEZ, “Direito das Obrigações (Parte Especial) – Contratos (Compra e venda, Locação,
Empreitada)”, 2ª ed. Coimbra, 2001, Parte III, n.º II. §4, 1.-I e respectiva nota (3), pags. 326/327, considera
estas figuras emergentes (com reflexo, ainda hoje, no Código Civil espanhol — arts. 1583 a 1603 — e no
Código Civil francês — arts. 1713 a 1778 e 1779 a 1799) da distinção da “locatio conductio do Direito
Romano em três modalidades: a locatio conductio rei, que corresponde à actual locação; a locatio conductio
operarum, antecedente histórico dos contratos de trabalho e de prestação de serviço; e a locatio conductio
operis faciendo, que veio dar origem ao contrato de empreitada.”.
Já PERULLI (“Il Lavoro Autonomo” – Contratto d’Opera e Professioni Intellettuali, in “Trattato di Diritto Civile e
Commerciale”, vol. XXVII t. 1 (coordenado por CICU, A.; MESSINEO, F.; MENGONI, L.), Milão, 1996, pags. 172
ss.) reconduz a noção de locatio operis — tida como contrato que tem por objecto uma actividade que visa a
obtenção de um determinado resultado com a contrapartida de uma correspectiva vantagem patrimonial — a
uma espécie de um género, a locatio et conductio, paralelo ao que filiaria a locatio rei e a locatio operarum.
Seria então imprópria a pertença desta última a uma mesma estirpe da locatio operis, da qual supostamente
resultaria, por seu lado, o que hoje se caracteriza como “trabalho autónomo”. Este Autor considera mais
correcto reconduzir a distinção clássica a apenas dos tipos de locatio: a locatio rei utendae et fruendae e
a locatio operis faciendi, estando a noção de locatio operarum reservada à prestação material de trabalho
escravo.
Em desenvolvimento desta análise pode confrontar-se MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO (“Da Autonomia
Dogmática do Direito do Trabalho”, Coimbra, 2000, §3º, n.º 4.3.-III, pags. 75 ss. e §7º, n.º 12-II a –V, pags.
168 a 183), que afirma como princípio de demonstração: “[…], parece-nos que, mesmo sem uma indagação
histórica mais profunda sobre a figura da locatio, a delimitação unitária do direito laboral como área jurídica,
[…], aponta para a modernidade do fenómeno do trabalho subordinado, que deve assim ser reconhecido como
um produto da Revolução Industrial.”
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Trabalho criativo subordinado – A criação de obras intelectuais...
patronal e que o objecto dessa prestação deve servir os fins de utilização da obra pelo
empregador que contrata a criação.
No contrato de trabalho para criação de obras intelectuais, o objecto da prestação devida é conformado por outrem, o credor-empregador. Mas a conformação da
prestação laboral aos fins de utilização da obra pelo empregador não implica uma definição prévia do objecto concreto dessa prestação; tal só ocorreria se, contratualmente, se fixasse cada uma das tarefas, actos e obras intelectuais contidos na prestação
devida pelo autor-trabalhador, o que, manifestamente, não acontece.3
O empregador define as condições concretas (objecto, tempo, local) em que a
actividade criadora se realiza. Ao dirigir a actividade laboral, determina a função e conforma o conteúdo da prestação; deve identificar, o mais que seja possível considerando a autonomia criativa do trabalhador, o género e características das obras a criar.
Mais, pré-determina os fins a cuja realização a prestação laboral deve subordinar-se
e, ao fazê-lo, deixa conhecer os fins de utilização patrimonial das obras a criar em
cumprimento do contrato.
III Os fins de utilização das obras intelectuais criadas em cumprimento de um
contrato de trabalho serão os contratualmente identificados (idealmente, empregador
e trabalhador criativo convencionariam os fins de utilização das obras a criar) ou os
que se deduzam dos fins da própria organização/empresa do empregador, a quem o
trabalhador criativo está vinculado.
A concessão de uma ou mais faculdades de utilização patrimonial de obras
intelectuais é uma atribuição finalista de direitos, como, aliás, toda a atribuição patrimonial jusautoral.4 Por esta via, apenas se outorgam os poderes expressamente
Em tese geral, explica-o bem BERNARDO LOBO XAVIER, que, em aproximação à ideia de subordinação jurídica,
salienta um aspecto conexo: a indeterminação do conteúdo da prestação devida: “Não individualiza […] o
contrato de trabalho aqueles serviços que o trabalhador é chamado concretamente a desenvolver: neles
apenas se refere um tipo genérico de actividade. […]. Ora, a determinação a cada momento das tarefas a
prestar pertence, no contrato de trabalho, ao outro contraente, que não as desenvolve, isto é, ao empregador.
O conteúdo da prestação de trabalho é, pois, relativamente indeterminado, havendo lugar a uma especificação,
a cargo do empregador, no que toca à modalidade concreta pretendida do serviço abstractamente prometido
no contrato.” (BERNARDO DA GAMA LOBO XAVIER, “Manual de Direito do Trabalho”, com a colaboração de
Pedro Furtado Martins, António Nunes de Carvalho, Joana Vasconcelos e Tatiana Guerra de Almeida, 2ª ed.,
Lisboa, 2014, 9.1.3., pag. 310).
Também JÚLIO GOMES aduz: “Embora balizada, designadamente pela categoria ou pelo conteúdo funcional
desta, a prestação exigível há-de ser concretizável a par e passo, não se podendo sequer excluir que
temporariamente sejam exigidas ao trabalhador outras funções, desde que não haja “modificação substancial”
da sua posição [...].” (JÚLIO MANUEL VIEIRA GOMES, “Deve o trabalhador subordinado obediência a ordens
ilegais?”, in “Trabalho e Relações “Laborais – Cadernos Sociedade e Trabalho”, n.º 1, Lisboa, 2001, pag. 181).
4
O carácter finalista da atribuição patrimonial de direito de autor foi erigido em princípio fundador no ordenamento
jurídico alemão.
Em explicação sumária da teoria da atribuição finalista ou da disposição funcional (“Zweckübertragungstheorie”),
segundo SCHACK (“Urheber– und Urhebervertragsrecht”, 2ª ed., Tübingen, 2001, §16-IV-3., pag. 249 (547),
intercalados nossos): “[…] o autor, em caso de dúvida, não concede outras faculdades de exploração
[“Nutzungsrechte”] que não as exigidas pela finalidade da “disposição”/atribuição [“Verfügung”]”. Mais
acrescenta (ibidem) que deste princípio de interpretação — consagrado em várias disposições da lei de autor
alemã, §§31(5), 37, 43, 88(2) UrhG alemã* (UrhG alemã* — lei de autor federal da Alemanha (“Gesetz über
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designados no acto de licenciamento/autorização de utilização5 ou, na falta de designação, estritamente os que se mostrem necessários à prossecução dos fins da
atribuição.6
Os fins da atribuição podem ser expressamente enunciados no acto de concessão ou deduzir-se, por exemplo, dos fins da organização para a qual a obra é criada.
A concessão de faculdades (de)limitada pelo fim da atribuição não é mais do
que uma regra interpretativa, a aplicar quando subsistam dúvidas sobre o âmbito
dos direitos concedidos. Cede sempre que o âmbito (objecto) da atribuição esteja
expressamente enunciado ou resulte inequívoco do acto.
IV Quando pensamos na actividade laboral específica do autor-empregado, entendemos que a este não é exigível que prefigure mais do que os objectivos imediatos
necessários à satisfação do interesse do credor-empregador. O trabalhador criativo
cumpre a sua obrigação laboral diligenciando pelo resultado esperado pelo empregador que o contrata.7 Ao trabalhador contratado para criar obras intelectuais, podem
Urheberrecht und verwandte Schutzrechte — Urheberrechtsgesetz”, sucessivamente alterada até Lei de 1-102013), se conclui a tendência do direito de autor para permanecer ligado ao autor, na medida do possível: “A
teoria finalista visa proteger o autor que, devido a desconhecimento ou necessidade económica, abdique dos
seus direitos de forma generalizada. Pretende-se que o autor goze, na medida o mais alargado possível, dos
frutos económicos da exploração da sua obra. Recorrendo a uma fórmula conhecida, ‘in dubio pro auctore’”.
No entanto, como acrescenta SCHACK (ibidem): “O §31 não estabelece mais do que uma regra de interpretação
que apenas pode aplicar-se quando existam dúvidas relativamente ao âmbito e dimensão da concessão de
direitos.”. E prossegue (ibidem, também com intercalados nossos): “[O princípio da atribuição finalista/
disposição funcional] Não serve as situações em que os tipos de utilização são enumerados individual e
precisamente no contrato individual […].”
5
OLIVEIRA ASCENSÃO, “Direito Civil – Direito de Autor e Direitos Conexos”, Coimbra, 1992, n.º 260, pag. 385,
faz questão na precisão terminológica.
6
Assim, por exemplo, celebrado o contrato de realização e produção cinematográfica, os autores conservam
todos os poderes relativos às suas obras não relacionados com a exploração audiovisual, permitindo-lhes a
utilização e reprodução “em separado” das mesmas, por qualquer modo, “contanto que não prejudiquem a
exploração da obra no seu conjunto” (art. 135º CDA*). Assim, também, por exemplo, celebrado o contrato de
edição, o autor não só não transmite o próprio direito de publicação da sua obra como conserva o direito de
autorizar a tradução e qualquer outra adaptação da mesma (art. 88º/2 CDA*).
7
Em termos gerais, LOBO XAVIER esclarece: “O contrato de trabalho é […] inacabado — no sentido de não
estar tudo definido no momento e fixado no momento da estipulação […]. Não se identificam, pois, completa
e pormenorizadamente no contrato todos os elementos da actividade laborativa. A sua fixação fica ao cuidado
da entidade empregadora que, no exercício do seu poder complementar de “escolha”, desenha o programa
de cumprimento do trabalhador, a executar de acordo com os fins que ela tiver por convenientes e que são
caracteristicamente os da organização ao serviço dos quais está o contrato” (BERNARDO DA GAMA LOBO
XAVIER, “Manual de Direito do Trabalho”, cit., 9.1.3., pag. 311, com intercalados nossos).
Especificamente sobre a relevância geral da prefiguração dos fins na conformação da actividade laboral,
afirma MONTEIRO FERNANDES: “[…] o fim da actividade só é, neste plano, relevante se e na medida em
que for ou puder ser conhecido pelo trabalhador. Já se vê que tal conhecimento pode ser impossível quanto
ao escopo global e terminal visado pelo empresário-empregador; todavia, o processo em que a actividade do
trabalhador se insere é naturalmente pontuado por uma série de objectivos imediatos, ou, na terminologia dos
autores alemães, fins técnico-laborais […], os quais, ou uma parte dos quais (pelo menos os directamente
condicionados pela execução do trabalho), se pode exigir — e presumir — sejam nitidamente representados
pelo trabalhador. […] A relevância do fim da actividade comprometida pelo trabalhador manifesta-se, antes de
tudo, no elemento diligência que integra o comportamento por ele devido com base no contrato.” (ANTÓNIO
MONTEIRO FERNANDES, “Direito do Trabalho”, 17ª ed., Coimbra, 2014, n.ºs 83 e 84, pág. 117, com
intercalados nossos).
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ser fixados objectivos e parâmetros da criação (género de obras a criar, prazo para
a criação), bem como as condições concretas de realização da prestação laboral
(horário e local de trabalho, enquadramento funcional e hierárquico). Mas é um “trabalhador intelectual”, para usar a expressão tradicional que o Código do Trabalho
abandonou, a quem não pode exigir-se uma “medida concreta” de obras criadas, mas
tão-só que empreenda diligentemente para criar as que tenham sido contratadas.
O trabalhador contratado para criar obras intelectuais deve ter o seu plano de
laboração definido superiormente, quer quanto a disciplina e horas de trabalho, género de obras a criar e respectivas características, quer quanto aos fins da utilização
jusautoral pretendidos para as obras que crie.
E é precisamente porque a prestação criadora do trabalhador subordinado deve,
neste sentido, realizar-se conformada às condições impostas pelo empregador, que
é essencial que se conheçam os fins de utilização das obras criadas ou a criar em
adimplemento de contrato de trabalho criativo subordinado.
V É que a determinação dos fins de utilização patrimonial consentida à obra ou
obras criadas em execução de contrato, como o de trabalho (ou o de prestação de
serviços), limita o aproveitamento económico que possa ser feito das mesmas. O
seu criador, ainda que permaneça titular do direito de autor sobre as suas criações,
não pode utilizá-las para fins diferentes dos convencionados no contrato (art. 15º/1
CDA*8), o mesmo sucedendo com o empregador.
A lei refere os “fins previstos na convenção” sem indicar qual esta seja. Deve
entender-se que se trata daquela em que está estipulada a atribuição do direito de
autor sobre as obras assim criadas. Convenção esta que, como veremos, assoma
como autónoma, específica, no contrato de trabalho.
Na falta de convenção, não pode, em qualquer caso, o trabalhador-criador fazer
da obra ou obras criadas em cumprimento do contrato utilização que prejudique os
“fins para que foi produzida” (art. 15º/3 CDA*): os da exploração económica da
mesma segundo os fins para que foi criada e que são, como vimos, se não convencionados, os que sejam próprios da empresa do empregador.
A delimitação dos fins de utilização patrimonial da obra criada é ainda relevante
para definir a remuneração do autor-criador. Ainda que, por convenção ou presunção
legal (como se verá), o direito de autor seja atribuído ao comitente/empregador, toda
a utilização da obra para além dos fins previstos e retribuídos convencionalmente
CDA* – Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos de Portugal, aprovado pelo Decreto-lei n.º 63/85,
de 14 de Março, alterado por ratificação pela Lei n.º 45/85, de 17 de Setembro; também alterado pela Lei
n.º 114/91, de 3 de Setembro, pelo Decreto-lei n.º 332/97 e pelo Decreto-lei n.º 334/97, ambos de 27 de
Novembro, pela Lei n.º 50/2004, de 24-8, pela Lei n.º 16/2008, de 1-4, pela Lei n.º 65/2012, de 20-12, pela
Lei n.º 82/2013, de 6-12, e pela Lei n.º 32/2015, de 24-4, e pela Lei nº 49/2015, de 5-6.
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confere ao autor-empregado direito a uma “remuneração especial” (art. 14º/4 CDA*),
para além da “ajustada” (sic, no texto da lei).9
2.1 A criação em execução de contrato de trabalho e as obras
colectivas
A ideia de incorporação empresarial do trabalho criativo subordinado deve ser
articulada com a de obra colectiva.
A obra colectiva é uma obra intelectual autónoma, da autoria de uma empresa.
É fruto da conjugação de esforços (porventura também criativos) de vários sujeitos,
mas autonomiza-se no seu todo como obra organizada e divulgada em nome dessa
entidade (empresa), pessoa singular ou colectiva (art. 16º/1-b) CDA*).
São exemplos de obras colectivas os jornais e outras publicações periódicas
(como tal legalmente presumidos, art. 19º/3 CDA*) ou as enciclopédias. Nestas, é
distinguível a acção individual criativa dos colaboradores da da empresa — pessoa
individual ou colectiva — que organiza a obra colectiva e em nome de quem esta é divulgada. À empresa, pertence a titularidade originária do direito de autor sobre a obra
colectiva como um todo autónomo; àqueles, cujos contributos sejam distinguíveis, os
direitos relativos às suas criações individuais.
Ora, é perfeitamente configurável a colaboração individual para uma obra colectiva sob contrato de trabalho que vincule os colaboradores criativos à empresa
titular da obra colectiva. Em regra, o direito de autor sobre os contributos para obra
colectiva que sejam discrimináveis pertence aos respectivos autores, que não podem, porém, fazer das suas obras utilização que prejudique a exploração da obra
colectiva no seu todo (art. 18º/2 CDA* ex vi art. 19º/2 do mesmo Código). Mas, se
a colaboração criativa individual para a obra colectiva for realizada em cumprimento
de contrato de trabalho, aplica-se a regra geral para as obras criadas por conta de
outrem, que consta do art. 14º CDA*. A titularidade do direito de autor determina-se,
neste caso, de acordo com o que houver sido convencionado (art. 14º/1 CDA*). Na
falta de convenção, presume-se que o direito pertence ao autor (art. 14º/2 CDA*).
E, na circunstância de o nome do criador não ser mencionado, vigora a presunção
contrária: o direito de autor é daquele para quem a obra foi criada (art. 14º/3 CDA*).
Sobre o fundamento do reconhecimento deste direito a uma “remuneração especial”, pela utilização para
além dos fins contratados de obras intelectuais (incluindo programas de computador) criadas em execução de
contrato, ligando-o ao enriquecimento sem causa ou à alteração das circunstâncias contratuais, pode ver-se
a interessante análise de PEDRO ROMANO MARTINEZ, “Direito do Trabalho”, 7ª ed., 2015, §25-8-b.3, págs.
603 segs.
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3 Criação intelectual assalariada, alienação do resultado do
trabalho e atribuição do direito de autor
I Considera-se, em termos gerais, a alienação do “resultado” da actividade
laboral como efeito natural da execução do contrato de trabalho. Ora, o “resultado”
(esperado ao menos pelo empregador) da prestação laboral criativa é naturalmente
a criação de obras intelectuais, melhor, a aquisição do direito de autor sobre as que
forem criadas em execução do contrato.
Mas a titularidade dos direitos respeitantes aos “resultados” da actividade laboral do autor-empregado — precisamente quando esses produtos constituam obras
intelectuais — não se forma na esfera jurídica do credor de tal prestação como efeito
natural do contrato de trabalho.10 A lei é expressa em investir na titularidade originária do direito de autor o criador da obra (art. 11º CDA*), prevendo — tão só e em
condições estritas — a sua atribuição por convenção ao que com este contrate a sua
criação (art. 14º CDA*).
A verdade é que, quando a obra for criada no âmbito de uma actividade vinculada contratualmente, a situação jurídica de direito de autor constitui-se ainda na esfera
jurídica do autor contratado. Qualquer atribuição de faculdades de utilização da obra
— entenda-se como originária ou derivada, constitutiva ou translativa — depende,
em primeiro lugar, da exteriorização da obra segundo expressão formal criativa: este
é o facto — o facto singular — que faz nascer a situação jurídica de direito de autor.
Mas não basta que se exteriorize criada: a atribuição de faculdades jusautorais pelo
autor-empregado depende de convenção que o estipule.
Quem se vincula contratualmente a criar uma ou mais obras intelectuais cumpre
a obrigação pela adopção de uma conduta diligente que revele o “esforço criador”.
Mas, ainda que da sua actividade resulte a criação de uma ou mais obras no âmbito
contratado, a “obrigação de criar” a que aquele se vinculou não compreende, por si só,
qualquer efeito atributivo de faculdades de direito de autor: o direito de autor constitui-­
se independentemente do vínculo contratual; a atribuição da sua titularidade a pessoa
diferente do autor-criador depende de convenção específica que o determine — e este
Desta, se diz — como ROMANO MARTINEZ — que: “[…] o trabalhador exerce uma actividade para outrem,
alienando a sua força de trabalho; o trabalhador põe à disposição de outra pessoa a sua actividade,
sem assumir os riscos. Assim, os resultados dessa actividade entram, desde logo, na esfera jurídica do
empregador.” (PEDRO ROMANO MARTINEZ, “Direito do Trabalho”, cit., §24-9-a), pág. 527, com intercalado
nosso). Contudo, o mesmo Autor logo considera (ibidem, com intercalado nosso) que: “[…] esta perspectiva da
alienabilidade da prestação de trabalho, válida no que respeita à generalidade das actividades desenvolvidas
por trabalhadores, carece de uma adaptação no caso de se estar perante o cumprimento de um contrato de
trabalho que pressupõe o desempenho de actividade criativa.”; e — depois de haver já admitido que possam
suscitar-se “dúvidas quanto à integração no âmbito laboral no domínio de actividades artísticas, nas quais a
criatividade tem um papel relevante” (P. ROMANO MARTINEZ, “Trabalho subordinado e Trabalho Autónomo”,
in “Estudos do Instituto de Direito do Trabalho”, vol. I, Coimbra, 2001, 3.-b.2)-II, pag. 281) — desenvolve a
explicação do regime “de Direito de Autor” nas obras criadas “por conta de outrem”. Logo aí julgamos que
evidencia que, neste domínio, a titularidade dos (direitos respeitantes aos) “resultados” da actividade laboral
do autor-empregado — precisamente quando esses “produtos” constituam obras intelectuais — não se forma
na esfera jurídica do credor de tal prestação como efeito natural do contrato de trabalho.
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é um desvio importante, por exemplo, à ideia de “apropriação originária pelo empregador” de todo o resultado da actividade laboral do empregado.
II O problema que se resolve pela averiguação do enquadramento (material e
jurídico) da actividade criadora não é o da susceptibilidade de tutela jusautoral dos
bens criados, mas o da conformação da situação jurídica de direito de autor nas
criações “para outrem”. É verdade que, usualmente, o empregador enquadra empresarialmente a actividade de criação intelectual do seu trabalhador; nesta medida,
organiza e dirige o processo de criação, determina uma função, deve até conformar a
prestação do trabalhador/empregado, impondo-lhe uma disciplina laboral, pode fixar,
de forma mais ou menos rígida, um período, horário e local de trabalho, fornece-lhe
os instrumentos de trabalho adequados, se for o caso. Não se segue, porém, que a
mera adstrição de origem contratual, ainda que de característica juslaboral (“subordinada”), à criação de obras intelectuais determine, por si só, a constituição, na esfera
jurídica do empregador, de direitos sobre os “resultados criativos do trabalho”. Tudo
depende do que se descobrir sobre o conteúdo da obrigação pelo que cria em execução de contrato de trabalho e dos efeitos do seu cumprimento: afinal, se aquele que
“subordina” a sua actividade criativa aos poderes de autoridade e direcção patronais
se vincula apenas à realização diligente de “prestações criativas” ou se, pelo mesmo
acto negocial que o vincula à prestação laboral, também (ante-)dispõe do direito de
autor nas obras que crie nesse enquadramento.
4 O contrato de trabalho de direito de autor
I Como se disse, nem todo o contrato que tenha por objecto a criação de obras
intelectuais tem eficácia jusautoral. A eficácia jusautoral depende de convenção específica que estipule que o contrato tem por objecto a criação de obras intelectuais
e que estabeleça, se tal for pretendido, a atribuição do direito de autor à pessoa do
empregador.
De outro modo, actos como os de execução (e, quiçá, a própria celebração) de
um contrato de trabalho que compreendesse a prestação de “trabalho intelectual”11
aspirariam a uma plena eficácia jusautoral, pois qualquer obra intelectual criada “pertenceria”, a par de todos os demais “produtos” da actividade assalariada, à entidade
empregadora. Na mesma linha de raciocínio, os actos pertinentes ao giro empresarial (e, quiçá, logo o próprio contrato constitutivo) de uma sociedade que tivesse
por objecto principal (ou até por objecto único) a concepção, produção, divulgação
Conforme caracteriza o expressamente previsto nomeadamente no art. 5º/1 da LCT* (“Lei do Contrato
(individual) de Trabalho”/”Regime jurídico do contrato individual de trabalho”, de Portugal, aprovada pelo
Decreto-lei 49408, de 24-11-1969; foi objecto de múltiplas alterações e está hoje revogada). O Código do
Trabalho português vigente abandona a distinção terminológica entre trabalho manual e trabalho intelectual.
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e exploração económica de escritos, de programas de computador ou de bases de
dados poderia considerar-se também com relevância jusautoral, independentemente
de essa acção empresarial vir a traduzir a criação de qualquer obra literária, obra
audiovisual, programa de computador ou base de dados “criativos”, contanto que
todos(as) os(as) que produzisse e divulgasse o fossem no âmbito dessa iniciativa
empresarial e divulgados(as) em nome de tal pessoa jurídica.
No entanto, é também verdade que daquele contrato de trabalho ou deste contrato de sociedade se diz que proporcionam o enquadramento jurídico necessário,
quando conjugados com manifestação de vontade apropriada, à constituição (ou conformação do conteúdo) de situações jurídicas de direito de autor. A ser assim, tal
bastará para que se considere que deparamos com “contratos de direito de autor”?
Deverá antes reclamar-se a configuração de contratos de trabalho e de contratos de
sociedade com “regime especial”? A proposição verdadeira parece dever formular-­
se em moldes diferentes: para a produção de efeitos jusautorais é necessário que,
da prestação de actividade contratada, advenha a criação de obra, já que só a sua
exteriorização segundo expressão formal criativa constitui o direito de autor. Por outro
lado, para que a conformação desse direito se verifique segundo modelo diferente do
que resulta supletivamente da lei — que, em regra, imputa a titularidade originária
do direito ao autor —, é necessário que a vontade contratual se manifeste especificamente nesse sentido: a atribuição do direito de autor nas obras criadas a ente
estranho ao seu autor só se produz por efeito de convenção que o estipule especificamente. A convenção com eficácia jusautoral assoma, assim, como autónoma,
específica e atípica da convenção laboral.
II Conclui-se, então, que, para que ocorra a atribuição ao empregador — pessoa
individual ou colectiva diferente do criador — do direito de autor sobre obras intelectuais criadas em execução de contrato,12 são necessárias várias condicionantes:
1.A prestação laboral contratada deve ter por objecto a criação de uma ou mais
obras intelectuais pelo trabalhador.
Se a criação de obras intelectuais não estiver fixada como objecto do contrato, às obras criadas acidentalmente pelo trabalhador não se aplica o regime de atribuição do direito de autor sobre as obras criadas para outrem
em execução de contrato. Se, por exemplo, um trabalhador contratado para
processar texto em computador criar acidentalmente uma ou mais obras
intelectuais durante o período laboral e no local de trabalho (usando até,
eventualmente, equipamentos do empregador) pertence-lhe o direito de autor sobre as mesmas nos termos gerais. Não se aplica o regime das obras
Sobre a natureza desta atribuição patrimonial, cfr. o nosso “Contrato de direito de autor — a autonomia
contratual na formação do direito de autor”, Coimbra, 2008., n.º 85-V, pags. 551 e segs..
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criadas para outrem (até porque estas o não são), já que a criação — aquela
criação específica — não se dá em cumprimento de um contrato ou dever
funcional.
2.O género da obra intelectual criada deve corresponder àquele ou àqueles que
estejam fixados como objecto do contrato.
Se um trabalhador contratado para escrever comentários jurídicos criar, durante o período laboral e no local de trabalho, uma peça musical ou um belo
desenho, o direito de autor relativo a estes não segue as regras de atribuição
do direito de autor em execução de contrato, já que a criação destas obras
também não integra o objecto da prestação laboral contratada.
3.O direito de autor sobre a obra ou obras criadas em execução de contrato
de trabalho com esse objecto deve ser atribuído àquele ou àqueles que
contratam a criação com o autor empregado.
Só por efeito de convenção que estipule essa atribuição o contrato (de
trabalho, de prestação de serviço) para criação de obras intelectuais adquire
eficácia jusautoral com atribuição ao empregador comitente da titularidade
do direito de autor nas obras assim criadas. Se faltar a convenção específica
com incidência jusautoral, segue-se a regra geral (art. 14º/2 e /3 CDA*):
o direito de autor pertence ao criador, salvo se, ao divulgar a obra, faltar a
menção de autoria.
4.Em síntese, para que o contrato revista eficácia jusautoral, ou seja, para que
seja atribuído o direito de autor sobre as obras criadas em sua execução a
pessoa individual ou colectiva diferente do autor, é decisivo que, com ou sem
enquadramento empresarial, se convencione:
a)que a criação de obra intelectual é objecto do contrato; e
b)que o direito de autor sobre as obras que sejam criadas é atribuído ao
comitente (empregador, beneficiário da prestação de serviço) como efeito da
convenção que vincula à criação em execução do contrato.
5 Obras criadas em execução de contrato de trabalho – Em
especial: os trabalhos jornalísticos, as fotografias, os
programas de computador, as bases de dados
I No caso específico dos “trabalhos jornalísticos” (sic, no texto da lei) criados
em execução de contrato de trabalho, mesmo que a colaboração seja assinada e
o direito pertença ao respectivo autor, como é regra (art. 174º/1 CDA*), veda-se a
sua publicação em separado antes de decorridos três meses sobre a data em que
tiver sido posta a circular a publicação em que haja sido inserido tal trabalho, salvo
autorização da empresa proprietária do jornal ou publicação congénere (art. 174º/2
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CDA*). Quando o trabalho jornalístico não seja assinado ou identificado, o direito de
autor é atribuído à empresa titular do jornal ou publicação e só com autorização desta
poderá ser publicado em separado (art. 174º/4 CDA*).
II Já quanto às fotografias criativas13 criadas em execução de contrato de trabalho, a lei estabelece presunção (ilidível) contrária à do citado art. 14º/2 CDA*
(ver supra): presume-se que o direito de autor pertence ao empregador (art. 165º/2
CDA*). Embora se possa pensar que as regras referidas como aplicáveis aos “trabalhos jornalísticos” são pensadas apenas para os textos escritos, não distinguindo a
norma o género de obras, deve aplicar-se às fotografias publicadas em jornal o regime
especial descrito para os restantes “trabalhos”.
O art. 165º/2 CDA* não é explícito na consagração de uma atribuição da titularidade da globalidade do direito patrimonial de autor ao comitente da obra fotográfica.
Estabelece: “[…] presume-se que o direito previsto neste artigo pertence à entidade
patronal ou à pessoa que fez a encomenda”. E que “direito” é esse? Não mais do
que o conjunto de faculdades (“de reproduzir, difundir e pôr à venda com as restrições
referentes à exposição, reprodução e venda de retratos …”) que enumera no n.º 1 e
que não preenchem o conteúdo íntegro do direito patrimonial, enunciado no art. 68º
CDA*.
Em todo o caso, depara-se uma inversão do sentido da presunção (ex art. 14º/2
CDA*) de atribuição do direito ao autor. A inversão desta presunção não invalida,
porém, que o direito de autor possa ser atribuído convencionalmente ao autor. Tudo o
que o art. 165º/2 CDA* faz é estabelecer que, quando a obra fotográfica seja criada
em execução de contrato de trabalho, o direito de autor (os conjuntos das faculdades
enunciadas no art. 165º/1) pertence ao empregador, salvo convenção em contrário.
É só o sentido da presunção do art. 14º/2 CDA* que se inverte.
III Os programas de computador beneficiam de “protecção análoga à das obras
literárias”, quando “tiverem carácter criativo” (art. 1º/2 LPC*14). Embora não deva
entender-se que são “obras literárias” (nem a lei o consagra), é expresso que os programas de computador, bem como o respectivo material de concepção, beneficiam
da protecção por direito de autor como obras intelectuais, mas com regime especial.
A lei estatui que os programas de computador criados no âmbito de uma empresa se presumem obras colectivas. A norma não escamoteia que muitos programas
de computador são criados no seio de organizações empresariais, mas como contributos individuais para outras obras, colectivas ou em colaboração, como por exemplo
as audiovisuais/cinematográficas. Nos que sejam contributos para obras colectivas,
A lei (art. 164º/1 CDA*) estabelece requisitos mais exigentes de especial criatividade para a protecção pelo
direito de autor destes objectos fotográficos, limitando a tutela como obras intelectuais às fotografias que
revelem criatividade “na escolha do objecto” ou nas “condições de execução”.
14
LPC* – “Lei de Protecção jurídica dos Programas de computador”, de Portugal, aprovada pelo Decreto-lei
n.º 252/94, de 20-10, rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 2-A/95, de 31-1.
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aplicar-se-á o regime que atrás se descreve (cfr. supra, 2.1); nos que sejam, eles
mesmos, obras colectivas, criados com enquadramento empresarial e divulgados em
nome de uma empresa, o direito de autor pertence ao titular da empresa, pessoa
individual ou colectiva.15
Quando o programa de computador é criado em cumprimento de contrato de
trabalho (ou de prestação de serviço), o direito de autor é do empregador (ou outro
“destinatário” do programa16), salvo convenção em contrário (art. 3º/3 LPC*). Invertese, assim, o sentido da atribuição do direito nas restantes obras criadas em execução de contrato (art. 14º/2 CDA*).
Sem novidade, a lei especifica que esta atribuição do direito de autor ao empregador só se verifica quando: a) o programa seja criado em execução de contrato que
tenha por objecto essa criação; b) o trabalhador criativo crie o programa no exercício
das suas funções; c) a obra seja criada para fins de utilização consentâneos com os
do empregador ou da sua empresa. A lei expressa o último dos requisitos assinalados de forma singular: estatui que o direito não pertencerá ao empregador “se outra
coisa resultar das finalidades do contrato”. Evidencia-se que devem transparecer do
contrato os fins a que a utilização destas obras se destina e, como é regra geral,
limitar-se em função destes a utilização dos programas de computador assim criados.
Quanto ao mais, aplicam-se aqui as demais regras que apontámos para as
criações em cumprimento de contrato, incluindo o reconhecimento do direito a uma
“remuneração especial” por utilização “não prevista na fixação da remuneração ajustada” (art. 14º/4 CDA* ex vi art. 3º/4 LPC*).
IV As bases de dados são colectâneas de obras ou elementos informativos
(dados) independentes, dispostos de modo sistemático ou metódico, susceptíveis de
acesso individual (art. 1º/2 LBD*17). As bases de dados que revelem criatividade na
organização ou selecção dos dados são protegidas por direito de autor (obras-base
de dados) (art. 4º/1 LBD*).18
Presumem-se obras colectivas as obras-base de dados criadas no âmbito de
empresa, segundo norma (art. 5º/2 LBD*) em tudo semelhante à que regula os programas de computador e que merece a mesma análise que esta.
A lei consagra, de resto, a presunção de que os programas de computador “realizados” no âmbito de empresa
são obras colectivas (art. 3º/2 LPC*), ou seja, fruto do esforço conjugado de equipas de criadores enquadradas
pela organização empresarial, investindo-se na titularidade do direito de autor a pessoa individual ou colectiva
titular da empresa. Esta presunção pode ser ilidida, mediante prova de que o programa é antes exclusivamente
fruto de acção individual ou em colaboração de criador(es) identificado(s), não sendo determinante para a
criação o enquadramento empresarial.
16
A referência a “destinatário” do programa — vaga — destina-se a abranger em expressão única todo aquele
para quem a obra seja criada, indiciando já a afectação da utilização destas obras aos fins deste.
17
LBD* – “Lei das Bases de Dados”, de Portugal, aprovada pelo Decreto-lei n.º 122/2000, de 4-7.
18
Em desenvolvimento deste tema, pode confrontar-se o nosso “Tutela Jurídica das Bases de Dados (A
transposição da Directriz 96/9/CE), in “Direito da Sociedade da Informação” – vol. I, Coimbra, 1999, 3.1.B),
págs. 129/130.
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A LBD* (art. 5º/3) atribui a titularidade do direito (patrimonial) de autor sobre as
bases de dados criadas por “um empregado” (entenda-se, um trabalhador ou funcionário vinculado — também — à criação destas) no exercício das suas funções, e bem
assim, nas que sejam criadas em execução de contrato de prestação de serviços,
ao “destinatário da base de dados” (entenda-se, àquele para quem a base de dados
foi criada).
Tal só assim não será se houver convenção em contrário ou se outra coisa resultar da finalidade do contrato. Inverte-se, assim, o sentido da presunção legal geral
vigente para as obras criadas em cumprimento de contrato ou de dever funcional (art.
14º/2 CDA*).
6 O direito pessoal (“moral”) de autor nas obras criadas em
cumprimento de contrato
Como se disse, nas obras criadas no âmbito de contrato para criação de obras
intelectuais, o direito de autor pode ser atribuído, por convenção expressa, a pessoa
diferente do criador da obra intelectual (art. 14º/1 CDA*); presume-se ser também
essa a vontade das partes caso na obra falte a menção da designação que identifica
o verdadeiro criador (art. 14º/3). Nos demais casos, segue-se a regra geral do art.
11º CDA* (cfr. art. 14º/2).
Nos casos em que o direito de autor é convencionalmente atribuído ao credor
da prestação criadora, dito “comitente”, a atribuição circunscreve-se ao respectivo
conteúdo patrimonial e, ainda assim, limitada à finalidade que a determinou.19 20
Não concebemos (nem as “referências éticas” para o seu exercício o justificam) que
o direito de autor possa constituir-se amputado do núcleo de faculdades de índole
pessoal — situação aliás não prevista nas leis de autor sob a CB* (por todos, cfr.
art. 6-bis/1 CB*21).22
Situação essa — limitação convencional da utilização pela estipulação da sua destinação ou deduzida da
própria convenção de atribuição do direito — que sempre podemos verificar ser comum ao dito credor e ao
próprio criador, independentemente de a titularidade do direito pertencer a um ou ao outro (cfr. art. 15/1 e 3
CDA*).
20
Mesmo num ordenamento jurídico, como o alemão — que veda a transmissão do direito de autor (incluindo
o direito patrimonial), apenas consentindo na concessão (atribuição constitutiva) de faculdades jusautorais
isoladas —, também ADOLF DIETZ (in “Urheberrecht — Kommentar”, coordenado por GERHARD SCHRICKER, 2ª
ed., Munique, 1999, em anotação I-4, pag. 249 (17) ante §§12 ss. UrhG alemã) refere que a irrenunciabilidade
e indisponibilidade do direito pessoal não obsta a que, no contexto da exploração económica da obra, possam
ser transferidas certas faculdades ou se abdique da sua reivindicação, só sendo intransferível o núcleo
fundamental do direito pessoal.
21
CB* – Convenção de Berna “para a protecção das obras literárias e artísticas”, de 9-9-1886. O Acto de Paris
desta Convenção foi aprovado, para adesão, em Portugal, pelo Decreto-lei n.º 73/78, de 26-7.
22
OLIVEIRA ASCENSÃO (“Direito Civil – Direito de Autor e Direitos Conexos”, cit., n.º 129-IV, pags. 195/196, com
intercalados nossos), contudo, sustenta: “O titular originário que não for o criador intelectual não tem o direito
pessoal de autor. Não tem o direito à integridade […], pois a sua honra e reputação não estão em causa.
Não tem o direito de retirada. Pode exercer os poderes correspondentes ao direito ao inédito, de modificação,
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Sendo o direito pessoal de autor indisponível (cfr. art. 56º/2 CDA*), o criador da
obra intelectual, conserva, assim e sempre, a titularidade do conjunto de faculdades
que integram o direito pessoal, independentemente das vicissitudes que sofra o direito patrimonial de autor. Antecipa-se a dificuldade que reveste o seu exercício pelo
autor quando se encontre afastado de qualquer utilização patrimonial da obra. Mas
esta “dificuldade” não é diferente da que se sentirá em caso de transmissão total
do direito patrimonial; ou quando, sob pena de perder o principal objectivo da sua opção, o autor tenha escolhido divulgar anonimamente. Ora, em nenhum destes casos
alguém questiona que o criador da obra conserva o direito pessoal na sua plenitude.
Formulam-se, então, de seguida, as regras sobre o exercício do direito pessoal
(dito “moral”) de autor em caso de atribuição do direito de autor a pessoa diferente
do criador da obra intelectual, por efeito de convenção em contrato para criação de
obra para outrem.
6.1 Direito de divulgação (ao inédito)
O principal problema aqui suscitado é o que nasce de o autor que cria a obra
para outrem pretender que esta não seja (ainda) utilizada por não a considerar completa, perfeita, pronta para ser utilizada pelo comitente. Sendo o autor titular do
direito pessoal ao inédito (de divulgar a obra como, quando e pelos modos que entender — e o de recusar essa divulgação, mantendo-a “inédita”), pode perguntar-se
se, ao criar em cumprimento de contrato, está de algum modo inibido de exercer este
direito ou se pode, invocando “o inédito”, recusar a utilização de obra sua, criada em
execução do contrato, que chegue ao poder do empregador.
O autor, que haja criado a obra em execução de contrato para criação de obras
intelectuais, apenas pode evitar a utilização nos termos convencionados, opondo-lhe
o seu ineditismo, caso não tenha “manifestado por sinais inequívocos a intenção de
divulgar ou publicar” (art. 50º/2 CDA*). Esta manifestação da intenção de divulgar
pode deduzir-se, nomeadamente, de actos pelos quais o autor revele “completa” a
obra criada, como seja a divulgação da obra pelo autor empregado pelos seus próprios meios, à revelia do empregador. É certo que a lei outorga ao autor a faculdade
de recusar até a “penhora e arresto de manuscritos inéditos, esboços, desenhos,
telas ou esculturas”, “quando incompletos” (art. 50º/1 CDA*). Porém, se tiver revelado por actos seus que a considera divulgável — e consideramos que a entrega ao
empregador comitente de suporte em que esteja fixada a obra é “sinal inequívoco do
propósito de divulgar” (art. 50º/2 citado) —, não poderá depois opor um ineditismo
que, assim, o próprio já quebrou.
ao nome e à paternidade. Mas supomos que nestes casos se trata de meros poderes patrimoniais.” —
intercalado nosso.
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Depois de divulgada a obra — entenda-se, depois de quebrado o ineditismo,
visto que sustentamos que o direito de divulgação se tem por exercido embora “não
esgotado” —, o autor que tenha atribuído a outrem faculdades de utilização apenas
poderá obstar à exploração económica da obra, conforme aos fins da utilização consentida, pelo exercício do direito de retirada. Vejamos em que termos.
6.2 Direito de retirada
O direito de retirada é reconhecido ao criador da obra intelectual como poder de
interromper a “circulação” da obra impedindo a utilização por comitente, bem como
novas utilizações ou a continuação de utilizações em curso. Para tanto, deve invocar
razões morais atendíveis e indemnizar os lesados (art. 62º CDA*). Revelar-se-á ilícito
o exercício do direito de retirada se o autor autorizar posteriormente outras (ou idênticas) utilizações da obra sem a modificar ou sem que se alterem as circunstâncias
que motivaram a retirada.
O autor empregado também pode “retirar” obras suas que estejam a ser utilizadas pelo empregador ou por terceiros autorizados por este. Deverá, para tanto,
invocar razões morais que sobrelevem os interesses do seu empregador na utilização
da mesma e indemnizar os lesados, nos termos gerais de direito.
O art. 114º CDA* permite ao autor que, sem que fique obrigado a indemnizar,
retire a obra que entenda desvirtuada (ou “comprometida” — sic no texto da lei) pela
supressão de trechos imposta por decisão judicial. Esta norma permite igualmente
a resolução do contrato de utilização (ou de criação) dessa obra, que o autor tenha
celebrado, sem incurso em qualquer responsabilidade.
6.3 Direito à menção da designação de autoria
O direito à menção da designação que identifica a autoria integra o poder do
criador da obra intelectual de exigir que, em caso de utilização da obra, seja feita
menção da designação que o identifica como autor. A falta da menção de qualquer
designação que identifique a autoria — ou a menção de autoria alheia23 — deixa
presumir a atribuição do direito patrimonial de autor (ou de faculdades neste compreendidas) a favor do comitente, se se evidenciar a criação por contrato com esse
objecto (art. 14º/3 CDA*).24
O autor que cria para outrem pode consentir que em obra sua seja mencionada a autoria alheia (é o caso
frequente dos “ghost writers”).
24
Esta regra aplica-se também, no caso da obra em colaboração, quando esta seja divulgada ou publicada em
nome de apenas algum(uns) dos colaboradores. Presume-se, neste caso, que os não designados cederam os
seus direitos àquele ou àqueles em nome de quem a obra em colaboração é divulgada ou publicada (art. 17º/3
CDA*).
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Pode constituir-se voluntariamente a obrigação de não revelar a identidade do
autor com a divulgação da obra. Tal obrigação tanto pode ser assumida no interesse
deste como no dos coautores da obra em colaboração, do comitente nas obras criadas em execução de contrato ou, no caso das obras anónimas, do que “representa
o autor”.
A menção de autoria permite presumir titularidade do direito correspondente;
o verdadeiro criador pode ter a sua qualidade obnubilada voluntariamente, sem que
isso implique (ou possa implicar, vista a irrenunciabilidade do direito pessoal) renúncia à paternidade da obra. Admite-se, então, a renúncia ao exercício desta faculdade
de exigir menção da designação que identifica o criador da obra, mas não a renúncia
à faculdade pessoal correspondente: o autor pode a todo o tempo revelar a sua identidade e exigir a menção do seu nome como autor da obra.
6.4 Direitos de reivindicação da paternidade da obra e de
defesa da integridade da obra
I O direito de reivindicar a paternidade da obra intelectual reserva ao respectivo
criador o poder de reclamar a todo o tempo a autoria de obra sua, independentemente das vicissitudes que sofra o direito patrimonial de autor.
O direito de defesa da integridade da obra faculta ao autor a oposição à utilização da obra segundo expressão formal não correspondente à que esta revela no
momento da sua exteriorização e subsequente divulgação. Não obstante, ao atribuir a
outrem faculdades de utilização patrimonial da obra — designadamente por efeito de
convenção em contrato para criação de obras intelectuais —, o autor deve conformar-­
se à utilização pelo beneficiário dessa atribuição conforme aos fins que a determinam; nesta medida, deve conformar-se às modificações que se deduzam consentidas
pela convenção — e apenas a estas (art. 15º/2 CDA*); qualquer modificação para
além dos limites antes definidos veda a utilização da obra com imputação da respectiva autoria ao seu criador intelectual.
Sem que tal constitua derrogação das regras antes enunciadas, alterada a estrutura formal que identifica objectivamente a obra — e assim desfeita a imputação
de autoria da obra primitiva modificada —, pura e simplesmente deparamos com
uma nova obra, realizada a partir daquela, cuja autoria é unicamente imputável ao
utilizador que a alterou. Não obstante, pelas razões que se explicam de seguida, a
modificação de uma obra intelectual depende de autorização do autor, pois bule com
a integridade da obra.
II O direito de modificação — direito de introduzir ou autorizar modificações na
obra — tem fundamento idêntico ao do direito de defesa da integridade: o que pode
opor-se a modificações (não consentidas) na obra, pode consentir nestas ou não se
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lhes opor. O que autoriza a utilização da obra cuja transformação consentiu exerce
uma faculdade patrimonial; e exerce o seu direito pessoal de modificação ao consentir que se modifique a obra: nada impede que, pelo mesmo acto (de autorização de
utilização da obra modificada), se manifestem simultaneamente as duas faculdades.
O exercício do direito de modificar a obra pelo seu criador/titular não sobrestá às utilizações consentidas: para modificar obra em curso de utilização pelo comitente para
quem foi criada, o autor terá de interromper a circulação da obra com a “forma” em
que a divulgou e, para que possa interrompê-la, deverá apresentar as “razões morais
atendíveis” que lhe permitiriam a retirada.
7 Trabalho e prestação de serviço para criação de obras
intelectuais – Confronto de ordenamentos jurídicos
estrangeiros
7.1 Direito alemão: oneração do direito de autor e atribuição
finalista de faculdades de utilização da obra
I O §43 UrhG alemã* estabelece a aplicação das regras gerais sobre atribuição
de direito de autor às obras criadas em execução de trabalho ou de serviço (“Arbeits
oder – Dienstverhältnis”, na expressão original da lei citada25). Refere às normas dos
Em caracterização das figuras de “Arbeitsvertrag”/”Dienstvertrag” e de “Werkvertrag”, recorremos à explicação
de WOLFGANG ZÖLLNER / KARL-GEORG LORITZ (“Arbeitsrecht”, 5ª ed., Munique, 1998, Parte I, §4 III e III-1.,
pags. 40/41): [“[...] A situação/relação de trabalho é o conjunto das relações jurídicas constituídas entre o
empregador [“Arbeitgeber”] e o empregado/trabalhador [“Arbeitnehmer”] através de um contrato de trabalho.
O contrato de trabalho [“Arbeitsvertrag”] é um contrato de serviço [“Dienstvertrag”] de direito privado. A sua
característica é que o empregado se auto-obriga à prestação de trabalho dependente. [...].
E ZÖLLNER / LORITZ continuam (última ob. cit., III-2., pags. 41/42): “[...] a) Os contratos de obra
[“Werkverträge”], como são celebrados sobretudo com empresários independentes, não constituem qualquer
situação/relação de trabalho. A diferença entre um contrato de prestação de serviço e um contrato de obra
pode, no entanto, ser problemática sob certas circunstâncias. […].
As dificuldades de delimitação resultam do facto de, no fundo, tanto um contrato de obra como um contrato
de prestação de serviço apresentarem como objecto da prestação uma prestação de trabalho. Quando é
dito por motivos de delimitação que, no contrato de obra, o objecto da prestação é o resultado do trabalho
[“Arbeitserfolg”, no original], tal é dúbio dado que o que se deve é a “produção” [“Herstellung”, no original]”
que é um processo, e frequentemente esta deve ser feita pelo devedor. No caso do contrato de prestação de
serviço, por outro lado, o mero investimento de trabalho [“Arbeitseinsatz”] como objecto de prestação não será
totalmente suficiente, uma vez que não são devidos apenas “esforços subjectivos” […]. A regra genérica para
uma delimitação segundo a qual o contrato de obra é definido, em primeiro lugar, pelo resultado, enquanto
o contrato de serviço é definido, em primeiro lugar, pela actividade, é apenas uma ajuda com limitações,
nomeadamente quando o resultado devido reside numa actividade que se repete sempre. [...]” — intercalados
nossos.
MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO (“Da Autonomia Dogmática do Direito do Trabalho”, cit., §3º, n.º 5.1.II, pag. 113 e respectiva nota (242)) discorre sobre as consequências da “falta de autonomia [no sistema
germânico] do contrato de trabalho na lei civil, concomitante com as diversas referências à relação de
trabalho em sede do regime legal do Dienstvertrag”, na origem das denominadas teorias institucionalistas,
“que deslocam o cunho laboral da actividade de trabalho do momento do consenso negocial para a fase do
desenvolvimento da relação na organização (instituição) do credor.”
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§§31 a 44 UrhG alemã* que constituem — em conjunto com as plasmadas nos §§7
e 28 a 30 (maxime a do §29) da mesma UrhG alemã* — a espinha dorsal em que assenta o sistema monista que estrutura o direito de autor no ordenamento alemão.26
II Por aplicação conjugada dos preceitos dos §§31 a 42 e 43 da UrhG alemã*,
para a atribuição de faculdades de direito de autor por efeito de contrato de trabalho
(ou de prestação de serviço), requer-se que o autor-empregado execute contrato cujos
deveres contratuais compreendam a criação de obras, com exclusão daquelas em
que, sem prejuízo da “dependência contratual, juslaboral ou de serviço”, a criação
é meramente ocasional ou puramente acidental. Quanto a estas últimas, criadas no
âmbito do que o direito alemão caracteriza (ex §631 BGB*) como “contrato de obra”
sem enquadramento organizacional, aplicar-se-ão as regras gerais de toda a atribuição de faculdades de direito de autor (§§31 a 42), dependente de convenção que a
determine, sem que se presuma acordo tácito na utilização da obra pelo comitente,
deduzido do vínculo funcional preestabelecido27
III Nos demais casos, a atribuição de faculdades de utilização patrimonial da
obra depende sempre de convenção escrita, integrante do referido contrato que constitui a obrigação de criar em cumprimento de dever funcional. Esta deve ser interpretada não como antedisposição de faculdades jusautorais, mas como atribuição de
faculdades sobre obras futuras (cfr. §40 UrhG).28
Em qualquer caso, o âmbito material da concessão de faculdades jusautorais,
como efeito do contrato em cumprimento de dever funcional de que conste cláusula
específica de atribuição de faculdades de direito de autor, é definido de acordo com a
teoria da atribuição finalista (a “Zweckübertragungstheorie” — em aplicação do §31(5)
ex §43 UrhG — que traduz, afinal, não mais do que um princípio para a interpretação
Sobre os pressupostos e implicações das teorias monistas do direito de autor, pode confrontar-se o nosso
“Manual de Direito de Autor”, Coimbra, 2014, n.º 101.
27
Neste sentido, SCHACK, “Urheber– und Urhebervertragsrecht”, cit., §29, V-1., pag. 438 (981): “A história da
criação e a finalidade do §43 [UrhG alemã*] de abranger todos os empregados numa situação dependente
constituem um argumento forte para que devam ser consideradas como relações de serviço apenas
contratos de serviço de direito público, mas não de direito privado no sentido do §611 [BGB*]. O critério
de delimitação [para aplicação] do §43 não é a natureza jurídica [de direito público ou privado] da situação/
relação de emprego, mas a dependência do artista [autor]. É empregado [“Arbeitnehmer”] quem está integrado
num espaço organizacional alheio, está dependente de instruções e presta trabalho definido por outrem.
Independente e por isso não abrangido pelo §43 é, no entanto, o artista que pode organizar a sua actividade
livremente e livremente pode determinar o seu tempo/horário de trabalho.” — intercalados nossos.
28
KAI VINCK (em anotação 3 ao §43 UrhG alemã*, in “Urheberrecht – Kommentar zum Urheberrechtsgesetz und
zum Urheberrechtswarnehmungsgesetz”, coordenado por NORDEMANN, Wilhelm, 9ª ed., Estugarda/Berlim/
Colónia, 1998, pag. 369 (3)) é explícito sobre o que caracteriza como “Der Zeitpunkt der Einräumung der
Nutzungsrechte”: “[No caso de se concluir que a atribuição de faculdades de direito de autor é efeito normal
do contrato que determina que todo o resultado do trabalho pertence ao empregador (“Arbeitgeber”)], tal
concessão [do direito ao empregador] pode ser feita no entanto também no momento da celebração do
contrato de trabalho ou de serviço. Nesse caso, trata-se, então, de uma concessão de direitos em obras
futuras, para a qual necessita de forma escrita [§40 UrhG*]. Contratos de trabalho celebrados oralmente ou
contratos de trabalho sem cláusula de autor [“Urheberklausel”, no original] não produzem, por isso, o efeito
de uma transferência de direitos antecipada.” — intercalados nossos.
26
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do conteúdo da atribuição voluntária de faculdades), limitado às faculdades requeridas pela exploração empresarial do “Arbeitgeber”.29 Assim, salvo convenção específica em sentido diverso, não se devem ter por atribuídas ao empregador faculdades
estranhas ao objectivo empresarial da entidade “por conta de quem” a obra é criada.
7.2 Direito francês: titularidade originária e inalienabilidade do
direito pelo autor
I Na principal lei de autor francesa, o art. L.111-1, §3, do CPI fran.*30 estabelece que a existência ou celebração de um contrato de “louage d’ouvrage” ou “de service” pelo autor de uma obra intelectual não implica nenhuma derrogação do gozo do
direito reconhecido pela alínea 1ª (§1 deste art. L.111-1) que consagra a “atribuição
ao autor de uma obra, pelo simples facto da sua criação, de um direito exclusivo de
propriedade incorpórea oponível a todos”.
II A partir da norma citada, a doutrina francesa revela interpretação de sentido
não uniforme.
Segundo parte desta doutrina, o direito de autor “constitui-se sempre na titularidade (originária) do autor-assalariado, ainda que a obra seja criada em execução de
instruções dadas pelo empregador”.31 Verifica-se que parte da doutrina refuta mesmo
— por a considerar contra legem — a admissibilidade de uma “cessão implícita” do
direito em benefício do empregador, deduzida da execução da obra no âmbito de contrato em que o trabalhador se vincula especificamente à criação de obras intelectuais.
A aplicação à criação em cumprimento de contrato da teoria da “atribuição finalista” ou “disposição funcional”
[a “Zweckübertragungstheorie”] é genericamente sustentada pela doutrina alemã, em aplicação — ex §43 UrhG
alemã* — da regra do §31(5) da mesma Lei. Assim, EUGEN ULMER (“Urheber– und Verlagsrecht”, Berlim/
Heidelberg/Nova Iorque, 3ª ed., 1980, §95-III, 2., pags. 404/405) sustentava que a regra da “atribuição
em função da finalidade (“Zweckübertragung”) se aplica nas obras criadas sob vínculo laboral ou de serviço,
sendo decisiva a finalidade prosseguida pela empresa beneficiária dessa atribuição. Assim também VINCK,
em anotação 3 ao §43 UrhG alemã*, in “Urheberrecht – Kommentar…”, cit., pags. 369/370, que afirma:
“Relativamente ao âmbito da concessão, aplica-se, na medida em que não exista acordo expresso, a teoria
da atribuição finalista, em forma adaptada. Não se pode imaginar qualquer situação de trabalho ou de serviço
de cuja natureza e conteúdo se possa concluir que o âmbito dos direitos de utilização a conceder se possa
definir independentemente do objectivo empresarial da editora [“Verlagszweck”, no original]. Nesse sentido
continuam a valer as regras de interpretação […], quando no caso individual não resultar nada em contrário
do carácter ou do conteúdo da situação/relação de trabalho ou de serviço. […]. Uma transferência de direitos
tácita é feita apenas com o âmbito necessário à exploração empresarial da obra.” — intercalados nossos.
30
CPI fran.* – lei de autor de França (“Code de la Propriété Intellectuelle”), que resulta da aprovação de Lei de
1-7-1992 e que funde nomeadamente as leis de autor francesas de 11-3-1957 e de 3 de Julho de 1985,
sucessivamente alterado até à Loi nº 2015-195, de 20-02-2015.
31
Como expõem ANDRÉ LUCAS/HENRI-JACQUES LUCAS/AGNÈS LUCAS-SCHLOETTER, “Traité de la Propriété
Littéraire et Artistique”, Paris, 4ª ed., 2012, n.º 169 e n.º 174, pags. 175 e 181. Assim também segundo
jurisprudência da “Cour de cassation”, apud A. LUCAS, “Traité de la Propriété Littéraire et Artistique”, cit., n.º
169, pag. 176 e respectiva nota (18).
Contra, ANDRÉ BERTRAND (“Le Droit d’Auteur et les Droits Voisins”, Paris/Milão/Barcelona/Bona, 1991,
n.º 7.41., pag. 324) que sustenta: “[…], desde que uma criação seja realizada por vários empregados ou
em colaboração, por um empregado com outros empregados, no âmbito do seu trabalho, logo num contexto
hierarquizado, estamos naturalmente na presença de uma obra colectiva que pertence ao empregador.”
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Esta não é posição uniforme, uma vez que se admite, pelo contrário, que: “O
contrato de trabalho, com ou sem cláusula relativa à cessão de direito de autor, pode
constituir instrumento suficiente para induzir uma transferência dos direitos patrimoniais do assalariado para o empregador”.32
7.3 Direito italiano: aquisição derivada do direito pelo comitente
I A lei de autor italiana não disciplina expressamente a criação de uma obra
em cumprimento de contrato de trabalho subordinado ou de prestação de serviço.
No entanto, face à regra geral, a doutrina italiana consultada admite que o contrato
que tenha por objecto o “trabalho criativo” tenha eficácia atributiva de faculdades
jusautorais:33 o art. 107 L.aut.ital.*34 prevê que “os direitos de utilização dos autores
da obra intelectual [“… spettanti agli autori delle opere dell’ingegno”, no original],
[…], podem ser adquiridos, alienados ou transmitidos por todos os modos e formas
admitidos pela lei, […]”.
II Em aplicação conjugada dos arts. 2580 e 2576 do C.Civ.ital.* (este com
redacção coincidente à do art. 6 L.aut.ital.*), o direito de autor, com excepção das
obras colectivas, constitui-se sempre na titularidade do autor contratado. A aquisição
do direito (patrimonial) de autor pelo comitente é efeito do contrato e é considerada
sempre derivada. A actividade criadora deve ser o objecto do contrato.35
Assim, ANDRÉ BERTRAND, “Le Droit d’Auteur et les Droits Voisins”, cit., n.º 7.421., pag. 326.
BERTRAND, “Le Droit d’Auteur et les Droits Voisins”, cit., n.º 7.422., pag. 328, mais refere que, nesta, que
designa “cessão de facto dos direitos patrimoniais do criador-assalariado ao seu empregador”: “o assalariado
deve realizar a sua obra no âmbito da sua actividade normal; a cessão está limitada ao objecto social da
empresa.”.
33
Neste sentido, veja-se: LUIGI CARLO UBERTAZZI/MAURIZIO AMMENDOLA, “Il Diritto d’Autore”, Turim, 1993
(7ª reimp. 1998), n.º 7, pag. 27; TULIO ASCARELLI, “Teoria della Concurrenza e dei Beni Immateriali”, Milão,
1956 (tradução espanhola da 3ª ed. de 1960, por E. VERDERA e L. SUAREZ-LLANOS, Madrid, XIII-31, pags.
732/733); PAOLO GRECO/PAOLO VERCELLONE, “I diritti sulle opere dell’ingegno”, in “Trattato di Diritto Civile
Italiano”, vol. 11º, t.3, Turim, 1974, n.º 81, pag. 253/254; VALERIO DE SANCTIS, “Contratto di Edizione —
Contratti di Rappresentazione e di esecuzione”, in “Trattato di Diritto Civile e Commerciale” (coordenado por
CICU, A.; MESSINEO, F.; MENGONI, L.), vol. XXXI, t. 1, Milão, 1984, n.º 8, pags. 27-30; VITTORIO DE SANCTIS/
MARIO FABIANI, “I Contratti di Diritto di Autore”, in “Trattato di Diritto Civile e Commerciale” (coordenado por
CICU, A.; MESSINEO, F.; MENGONI, L.), vol. XXXI, t. 1, Milão, 2000, n.º 16, pags. 81-83; MARIO FABIANI, “I
contratti di utilizzazione delle opere dell’ingegno (Arti figurative, cinema, editoria, informatica, musica, radio
e televisione, teatro)”, in “Raccolta Sistematica di Giurisprudenza Commentata”, 8 (coordenada por GIULIO
LEVI), 2ª ed., Milão, 2001, n.º 68, pags. 277/278.
34
L.aut.ital.* – lei de autor de Itália (“Legge sulla protezione del diritto d’autore e di altri diritti connessi al
suo esercizio” n. 633., de 22 de Abril de 1941, sucessivamente alterada, mais recentemente pelo Decreto
legge n.º 207, de 30-12-2008, com modificações pela “Legge di conversione” n.º 14, de 27-2-2009 e, mais
recentemente pelos D. Legs. n. 22, de 21-2-2014 e n. 163, de 10-11-2014.
35
Os autores italianos consultados são, com divergências de pormenor, unânimes quanto a este ponto. As
diferenças assinalam-se — se bem que não sobretudo quanto ao carácter derivado da transmissão senão
quanto à fonte dessa transmissão (o próprio contrato de trabalho de per se ou acto translativo subsequente)
— a propósito da aplicação à aquisição do direito de autor nestes casos do art. 23 das “disposizioni legislative
in materia di brevetti per invenzioni industriali” (R.D. 29-6-1939, n. 1127): Art. 23 §1 – “Quando a invenção
industrial é realizada em execução ou cumprimento de um contrato ou de uma situação/relação de trabalho
ou de emprego, no qual a actividade inventiva está prevista como objecto do contrato e da relação e para esse
fim retribuída, os direitos derivados dessa invenção pertencem ao “dattore di lavoro” [que preferimos traduzir
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Trabalho criativo subordinado – A criação de obras intelectuais...
III Quando a obra é realizada, por um ou mais autores, no âmbito de uma empresa, sem que se questione que o direito é adquirido a título derivado, traçam-­se
duas correntes de opinião sobre a natureza e eficácia do acto atributivo. Por um lado,
sustenta-se que o direito se constituiria imediata e directamente — em momento
cronologicamente coincidente à formação originária da situação jusautoral — na esfera do credor da prestação de “trabalho intelectual”. Uma outra corrente doutrinária
favorece a ideia, segundo a qual, constituindo-se ainda e sempre o direito de autor
originariamente na titularidade do autor-trabalhador/prestador de serviço, a sua aquisição pelo credor da prestação de trabalho ou de serviço (para criação de obras intelectuais) seria efeito do mesmo contrato como acto translativo ulterior à constituição
do direito de autor.36
“beneficiário da prestação”, trate-se ou não, no caso em apreço, de um empregador], salvo o de o inventor ser
reconhecido autor.” — intercalados nossos. Esta norma está hoje reproduzida, no essencial e com o mesmo
sentido, no art. 64 do “Codice della proprietà industriale” (Decreto Legislativo n. 30, de 10-2-2005).
Assim T. ASCARELLI, “Teoria della Concurrenza e dei Beni Immateriali” (tradução espanhola), cit., XIII-31, pags.
731/732: “Para que o direito, ainda que a título derivado, pertença ao empregador, deverá poder incluir-se,
como objecto do contrato, a própria actividade criadora de obras intelectuais. […], actividade criadora que não
pode confundir-se com a simples prestação intelectual.
Em sentido sensivelmente distinto, P. GRECO/P. VERCELLONE, “I diritti sulle opere dell’ingegno”, cit., n.º
81, pags. 253/254, são peremptórios: “Afirma-se geralmente que o efeito jurídico do contrato de trabalho
subordinado é a atribuição ao empregador [“dattore di lavoro”, no original] do resultado da actividade produtiva
do trabalhador. É afirmação a partilhar, mas com os esclarecimentos convenientes. […] trata-se de um efeito
não essencial mas apenas natural da relação. É perfeitamente admissível que as partes prevejam a atribuição
ao trabalhador dos direitos (de propriedade ou sobre bens imateriais) que tenham por objecto o bem produzido,
contentando-se o empregador com outras utilidades que lhe advêm da actividade do trabalhador. […]. Por outro
lado, e sobretudo, não é exacto que todo e qualquer resultado da actividade devida pertença ao empregador;
porque para a atribuição a este é necessário que a actividade seja devida em função daquele resultado. […].
[…] seria verdadeiramente excessivo aplicar esta regra [que faz compreender na “função económica e social”
da situação de trabalho subordinado a apropriação pelo empregador do resultado do trabalho] também às
hipóteses em que a actividade devida por força do contrato não está em si mesma vocacionada à aquisição
de direitos a título originário e portanto o comportamento que a lei liga a esta aquisição é simplesmente
devido à existência da relação de trabalho. […]. Pelo que, se a regra deve aplicar-se também em sede de
obras intelectuais criadas por dependentes, o âmbito limitar-se-á sempre aos casos em que (para parafrasear
a expressão contida no art. 23) [da lei italiana “sobre invenções”] a obra intelectual é realizada em execução
de uma relação de trabalho na qual a actividade criativa está prevista como objecto do contrato e para tal fim
retribuída.” — intercalados nossos.
36
L. C. UBERTAZZI/M. AMMENDOLA (“Il Diritto d’Autore”, cit., n. º 7, pags. 27/28) são explícitos na afirmação do
carácter derivado da aquisição directa e imediata do direito patrimonial por efeito da realização/exteriorização
da obra, no desenvolvimento da actividade criativa prevista no contrato de trabalho. Defendem — apesar de
admitirem a aplicação da regra citada do art. 23 da lei italiana “sobre invenções” — a necessidade de forma
escrita, exigida pelo art. 110 da L.aut.ital.* para a transmissão de direitos patrimoniais.
Também VITTORIO DE SANCTIS / M. FABIANI, “I Contratti di Diritto di Autore”, cit., n.º 16, pags. 81/82,
defendem que a aquisição do direito patrimonial pelo comitente ou pelo empregador é efeito do contrato:
“…, efeito que é substancialmente idêntico ao do acto de transferência de direitos de utilização patrimonial
de obras preexistentes. Acrescentam, porém (na sequência de posição de OPPO, “Creazione intelletualle”, in
“Riv. Dir. Civ.”, 1969, I, apud VITTORIO DE SANCTIS / FABIANI, ob. e loc. citt., nota (46) à pag. 82), que: “[…],
a aquisição do direito em benefício do comitente ou do empregador [“dattore di lavoro”] verifica-se em todo e
qualquer caso em que a criação da obra ocorra no âmbito da empresa por conta da qual a obra é realizada com
recurso aos meios e enquadramento organizacional daquela e para os fins pré-definidos (ob. cit., pags. 82/83,
com intercalados nossos). Assim também MARIO FABIANI, “I contratti di utilizzazione delle opere dell’ingegno”,
cit., n.º 68, pag. 277.
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IV Tudo considerado, parece prevalecer hoje a opinião segundo a qual, no ordenamento italiano, seja a obra criada em execução de contrato de trabalho seja
de “contratto d’opera”,37 o direito de autor é adquirido pelo credor da “prestação
criativa” a título derivado. A atribuição jusautoral é efeito conjugado da celebração
do contrato para criação de obras intelectuais e da exteriorização da obra (ou da
aceitação desta, se se tratar de obra criada em resultado de prestação de actividade
não subordinada).
Quando a actividade criadora seja enquadrada numa empresa, para que a atribuição do direito se verifique com a natureza e os efeitos assinalados, é necessário
que a obra seja criada no âmbito (com recurso a meios e no quadro organizacional)
da empresa por conta de quem (e para os fins da qual) a obra é criada. Em qualquer
caso, a “prestação criadora” deve realizar-se (e ser retribuída) em execução da actividade contratada que tenha por objecto a criação de obras intelectuais.
A atribuição é limitada às faculdades necessárias à satisfação do interesse pretendido pelo credor com a contratação, que se deduz por interpretação do contrato,
visto (também, e se for o caso) o objecto da actividade organizacional que enquadra
a “prestação criadora”.
7.4 Direito espanhol: atribuição finalista presumida do contrato
I A principal lei de autor espanhola (LPI esp.*38) estabelece que “a transmissão
dos direitos de exploração na obra criada “por causa” de uma relação de trabalho
reger-se-á pelo convencionado no contrato, devendo este celebrar-se por escrito.” —
cfr. art. 51/1 LPI esp.*. Logo o n.º 2 do mesmo art. 51 presume da falta de pacto
escrito a cedência, em exclusivo, ao empregador de certas faculdades jusautorais, no
momento da entrega da obra realizada “em virtude da dita relação laboral”.
Por outro lado, especificamente em relação aos programas de computador, o art.
97/4 (ex vi art. 51/5 LPI esp.*) da mesma Lei dispõe: “Quando um trabalhador assalariado crie programa de computador, no exercício das funções que lhe tenham sido
confiadas/determinadas ou seguindo as instruções do seu empregador [“empresario”, no texto original da lei], a titularidade dos direitos de exploração correspondentes
O art. 2222 C.Civ.ital.* descreve o conteúdo do “contratto d’opera” no direito italiano como: um contrato
sinalagmático, oneroso, que vincula à realização de uma obra ou serviço, sem subordinação ao comitente. No
seu “Commentario breve al Codice Civile”, 5ª ed., Pádua, 1997, em anotações I e II-1 e –2, pags. 2147/2148,
ao art. 2223 deste Código, G. CIAN /A. TRABUCCHI referem este como: “um fattispecie residual de trabalho
autónomo: […].”. Mais acrescentam (ibidem): “Qualquer actividade humana, economicamente relevante, pode
ser objecto quer de relação de trabalho subordinado quer de relação de trabalho autónomo. O elemento
essencial do primeiro tipo de relação é a subordinação, entendida como vínculo de sujeição pessoal do
prestador ao poder directivo do “dattore di lavoro” que é inerente à particular modalidade de desenvolvimento/
realização, e não apenas ao resultado, da prestação laboral”.
38
LPI esp.* – lei de autor de Espanha (“Ley de Propiedad Intelectual”) – BOE n.º 97, de 22-4-1996), segundo
texto refundido pelo R.D.Leg. 1/1996, de 12-4-1996, alterado designadamente pela Ley 5/1998, de 5-3-1998
e pela Ley 1/2000, de 7-1. Esta Lei foi recentemente alterada pela Ley 21/2014, de 4-11 (que entrou em vigor
em 1-1-2015).
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ao programa […] assim criado, […], atribuir-se-á [“corresponderán”, no original], em
exclusivo, ao empregador, salvo convenção em contrário.” — intercalados nossos.
Resulta das disposições consagradas que o empregador é beneficiário de uma
atribuição derivada de faculdades de direito de autor nas obras criadas por trabalhador subordinado. Esta atribuição pode ter por fonte pacto (autónomo) que a determine
nos termos gerais — e segue, então, sem qualquer especialidade, a regra geral para
a atribuição translativa de faculdades jusautorais, que determina que a cessão de
faculdades patrimoniais atribuídas com carácter exclusivo deve ter carácter expresso
e escrito (art. 51/1, 43 e 48 LPI esp.*).39 A atribuição de faculdades jusautorais
pode também ser efeito do próprio contrato de trabalho com cessão presumida das
faculdades de utilização “necessárias para o exercício da actividade habitual do empresário” (art. 51/2 LPI esp.*).40
A cessão presumida de faculdades jusautorais tem como pressupostos: que
a obra seja criada em execução de contrato de trabalho que compreenda, entre os
deveres específicos emergentes do vínculo laboral, a criação de obras intelectuais;
que tal contrato seja “escrito e que inclua uma cláusula que estipule as condições de
transmissão dos direitos de propriedade intelectual”.41
Produz-se o mesmo efeito atributivo presumido do enquadramento juslaboral
quando a obra intelectual seja criada, embora para fins não compreendidos nos da
actividade habitual do empregador, seguindo instruções do empregador que empreende uma nova actividade empresarial: condição é que a obra seja criada no âmbito da
actividade devida pelo trabalhador sob o poder de direcção patronal.
J. M. RODRÍGUEZ TAPÍA / F. BONDÍA ROMÁN (“Comentarios a la Ley de Propiedad Intelectual”, Madrid, 1997,
em anotação IV ao Art. 51, pag. 230) afirmam que a convenção que estabeleça a cessão de faculdades
jusautorais: a) pode ser cláusula do contrato de trabalho ou de convenção colectiva; b) que este pacto pode
ser parte do contrato de trabalho ou aquela cláusula ser estipulada a posteriori, desde que respeite os
requisitos formais do contrato de trabalho; c) tal convenção está sujeita aos limites a que o art. 43 LPI esp.*
[“transmissão inter vivos” de direito de autor] subordina toda a cessão de faculdades patrimoniais [v.g. limites
temporais, espaciais e decorrentes da independência das faculdades compreendidas no direito patrimonial de
autor].
40
EDUARDO GUTIÉRREZ-SOLAR BRAGADO, “Transmisión de los Derechos de Explotación de la Obra del Creador
Asalariado”, in “Revista General de Legislacion y Jurisprudencia”, ano CXLIX, n.º 1, Madrid, Jan.-Mar. 2002,
pag. 11, considera que: “Uma interpretação global do art. 51 obriga a entender a referência a contrato não
como alusiva a contrato de trabalho, senão a qualquer acordo consensual que acolha a transmissão, já que o
número 2, diversamente do 1, não se refere a contrato de trabalho.”
41
Como enuncia GUTIÉRREZ-SOLAR BRAGADO, “Transmisión de los Derechos de Explotación de la Obra del
Creador Asalariado”, cit., pag. 12.
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7.5 Direito brasileiro: o direito de autor na titularidade do
empregador
I A lei de autor brasileira (LAB*)42 não consagra autonomamente o regime das
obras criadas em execução de contrato de trabalho ou de prestação de serviço, tradicionalmente designadas no Brasil como obras (intelectuais) sob encomenda.43
Caracteriza-as BITTAR (ob. cit., págs. 219 e segs.) como apresentando-se sob
três formas possíveis: a funcional, a de prestação de serviços e a decorrente de relação de emprego; a estas, acrescentava a que chama “encomenda pura e simples,
ligada a contrato específico de encomenda, como a própria Lei admite”.
A propósito do art. 36 da, então vigente no Brasil, Lei autoral n.º 5.988, de 1412-1973, BITTAR considerava que (ob. cit., pág. 220): “a) a lei admite outras formas
de encomenda, além das enumeradas no art. 36 (como a de produção independente
do autor); b) o contrato de encomenda não se confunde com o de edição, representando figura especial; c) pode, no entanto, coexistir com a edição […]; d) pode, ainda,
coexistir com outros contratos, como a cessão de direitos”. Consideramos significativa a destrinça entre o contrato que vincula à criação de obra intelectual (encomenda)
e: por um lado, o de edição, pelo qual o autor contrata a publicação e comercialização
de obra presente ou futura, mas não se obriga a criar;44 por outro lado, uma normal
transmissão de direitos de autor de origem contratual, acto pelo qual o cedente
transfere direitos de autor que adquiriu pela criação da obra, independentemente de
a haver criado ou não por encomenda.45
Sobre as posições jurídicas do autor e do encomendante, sustenta BITTAR (ob.
cit., pág. 221) que “os direitos e obrigações das partes reger-se-ão pelo contrato
específico, obedecidas as normas definidas na lei, em especial quanto aos direitos
morais de autor”. Admite, contudo, que o autor possa vincular-se ao encomendante
através de contrato de trabalho; situação da qual poderiam “surgir, conforme o caso,
a obra individual de autor assalariado e a obra colectiva”.
Significativamente, BITTAR (ibidem) reconhece que, no caso da obra individual
de autor assalariado, que recebe remuneração para prestar trabalho intelectual, “os
direitos de autor, no aspecto patrimonial, pertencem à empresa ou empresário que o
contrata, mas na forma avençada e normal de produção da empresa”. Consideramos
significativo que BITTAR identifique já aqui uma manifestação do carácter finalista
da atribuição — de toda a atribuição — de direito de autor, limitando as utilizações
LAB* – lei de autor do Brasil (“Lei n.º 9610, de 19-2-1998, da República Federativa do Brasil”), alterada
sucessivamente até à Lei 12.853, de 14-8-2013.
43
Por todos, assim as designava já C. A. BITTAR, “Obra sob encomenda”, in R. Inf. Legisl. Brasília, a. 15, n. 57,
Jan./Mar. 1978.
44
Veja-se o nosso “Manual de Direito de Autor”, cit., n.º 77, pág. 272.
45
Veja-se o nosso “Manual de Direito de Autor”, cit., n.º 50.2, pág. 166.
42
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consentidas ao comitente encomendante, salvo convenção e remuneração específica
do autor, às que se coadunem com os fins para que a obra foi criada e que são os
que forem estipulados (“os avençados”) ou os que se deduzam da actividade (“produção”) da empresa.46
Dedica-se, então, C. A. BITTAR (ob. cit., pág. 222) a identificar as características
contratuais típicas da encomenda. A saber:
a)caber a iniciativa criadora ao encomendante, que contrata o autor;
b)ser o objecto — sempre obra intelectual — destinado a utilização económica
ou uso particular;
c)ser admitida na consecução da obra maior ou menor liberdade criativa do
autor vis-à-vis o encomendante, tanto podendo este sugerir apenas linhas
gerais para a criação como até trabalhar com o autor na criação;
d)ser fixada remuneração ao autor, o que não prejudicaria, porém, criações a
título gratuito;
e)ser necessário o respeito pelos direitos morais de autor (direito de inédito
em oposição à divulgação da obra, direito de sequela à cobrança de maisvalias obtidas em alienações ulteriores das obras);
f) ser a situação jurídica emergente caracterizada por posições jurídicas que
vão da subordinação jurídica do autor-trabalhador até à prestação autónoma
de serviços.
II Convenhamos que o reconhecimento de um regime legal autónomo para as
obras intelectuais criadas em execução de contrato (de trabalho ou de prestação
de serviço) é um passo importante na autonomização da figura e dos problemas
conexos.
No entanto, os importantes enunciados de BITTAR, premonitórios que são, não
dilucidam completamente os problemas que aqui podem suscitar-se. Em primeiro
lugar, a quem pertence — e com que limites — o direito de autor nas obras criadas
em execução de contrato. Em segundo lugar, que utilizações da obra são consentidas
ao “encomendante” (empregador, beneficiário de prestação de serviços, empresa
que organiza obra colectiva); isto, claro, admitindo-se que não se lhe reconhece a
titularidade originária do direito de autor nas obras encomendadas.
III Como se disse, a Lei de autor brasileira vigente não trata autonomamente
o regime das obras intelectuais criadas em execução de contrato (sob encomenda).
ROBERTA DIAS TARPINIAM DE CASTRO,47 depois de definir as obras encomendadas como “aquelas realizadas a pedido de um terceiro que pode ser tanto empregador (contrato laboral) como tomador de serviços (contrato de prestação de serviços)”,
Cfr. supra, 2-III.
ROBERTA DIAS TARPINIAM DE CASTRO, “Obra sob encomenda”, Julho 2010 (consultado em http://
dalmazzoecastro.com.br/informativos/artigo48.html).
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recusa aceitar que o direito de dispor financeiramente da obra encomendante só
pertença ao contratante (comitente) em caso de cessão expressa dos direitos por
parte do autor. TARPINIAM DE CASTRO parte, então, para uma construção — que consideramos controversa — sobre o processo criativo destas obras, já que, ao afirmar
que “a obra [encomendada] só existe porque foi requerida por um terceiro, havendo
prestação de serviço de criação”, não menciona que, não obstante as directivas
e eventual enquadramento funcional do autor-comissário (prestador de serviços ou
assalariado), nada há no enquadramento da acção criativa pelo encomendante-comitente que justifique que lhe seja atribuída a titularidade originária do direito de autor
nas obras assim criadas.
IV Prossegue TARPINIAM DE CASTRO (ibidem), su