O texto completo da monografia - Centro Cultural do Ministério da
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O texto completo da monografia - Centro Cultural do Ministério da
Proposições de estratégias para a desinstitucionalização de uma instituição psiquiátrica decorrente de transformações operadas pela Reforma Psiquiátrica na cidade do Rio de Janeiro " Engenho de Dentro do lado de fora: o Território Como um Engenho Novo" (Constituição histórica e propostas de transformação assistencial no Instituto Municipal Nise da Silveira, conhecido como Hospital de Engenho de Dentro, ex-Centro Psiquiátrico Pedro II, ex-Centro Psiquiátrico Nacional, exHospício Nacional, ex-Hospício de Pedro II) Curso MBA Gestão em Saúde Edmar Oliveira Monografia apresentada como requisito de título para o Curso de Especialização de Gestão em Saúde - Fundação João Goulart Edmar de Sousa Oliveira Orientador: Prof. Benilton Bezerra Jr. Fundação João Gulart, 2004 2 "Pegar no espaço contigüidades verbais é o mesmo que pegar mosca no hospício para dar banho nelas. Essa é uma prática sem dor. É como estar amanhecido a pássaros. Qualquer defeito vegetal de um pássaro pode modificar os seus gorjeios". (MANOEL DE BARROS) 3 Agradecimentos: À minha companheira e filhos, Marcelina, Januária, Juliano e Janaína, por compreenderem que depois de velho continuamos obrigados a estudar da mesma forma de quando éramos jovens. À Ariadne, amiga que ajudou a decifrar o dialeto nordestino na artimanhas da língua portuguesa. Aos diretores e gerentes do Instituto Municipal Nise da Silveira, por sonharem juntos comigo uma projeção de realidade. Aos companheiros do passado do antigo Centro Psiquiátrico Pedro II que são personagens da história recente do CPPII. A cada um dos usuários do Engenho de Dentro que, na sua idiossincrasia, construíram comigo, por longos anos, o pano de fundo da história que aqui é abordada. Só entendendo que esta história se passa na vida de cada um deles, podemos tentar compreende-la melhor. E que os ensinamentos destas histórias de vida nos apontem os melhores caminhos... 4 Índice AGRADECIMENTOS:..................................................................................... 4 RESUMO.................................................................................................. 8 DA METODOLOGIA....................................................................................... 9 INTRODUÇÃO: INÍCIO DATADO, O FIM POSSÍVEL........................ 12 CAPÍTULO 1: PARA IMAGINAR ONDE CHEGAR É PRECISO UM PONTO DE PARTIDA........ 13 PRIMEIRA PARTE: CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA............................ 24 CAPÍTULO 2: A MESMA CENA SE REPETE QUASE UM SÉCULO DEPOIS: O NASCIMENTO DO HOSPÍCIO NO BRASIL. .............................................................................. 25 CAPÍTULO 3: HIGIENE MENTAL: UM ENGENHO DE DENTRO QUE SUBSTITUI A PRAIA DA SAUDADE................................................................................................ 42 CAPÍTULO 4: PERDE-SE O PASSADO, FICA-SE SEM O FUTURO: A PSIQUIATRIA, ENVERGONHADA, FOI PRIVATIZADA PELOS MERCADORES DE INFORTÚNIOS... .............. 62 ......................................................................................................... 62 SEGUNDA PARTE: ECOS DA REFORMA NO ENGENHO DE DENTRO............................................................................................ 72 CAPÍTULO 5: A RECONSTRUÇÃO DA FORMA: A REFORMA PSIQUIÁTRICA NÃO MODIFICA O CONTEÚDO MANICOMIAL. ............................................................................ 73 TERCEIRA PARTE: PROPOSIÇÕES ESTRATÉGICAS ................... 95 CAPÍTULO 6: A INTENÇÃO DE CHEGAR AO TERRITÓRIO: DE UM ENGENHO DE DENTRO PARA UM ENGENHO DO FORA ........................................................................ 96 5 .......................................................................................................... 99 ENGENHO DE DENTRO............................................................................................................. 101 PROPOSIÇÕES ESTRATÉGICAS AINDA NO LADO DE DENTRO, MAS QUE POSSIBILITEM AÇÕES DO LADO DE FORA..102 UM ENGENHO DO FORA........................................................................................................... 109 O PROVISÓRIO DA CONCLUSÃO................................................................... 119 BIBLIOGRAFIA........................................................................................ 121 FONTES PRIMÁRIAS................................................................................. 125 ANEXO: DOCUMENTAÇÃO FOTOGRÁFICA....................................................... 126 6 Resumo Este trabalho pretende, em um primeiro momento, ser uma revisão do processo histórico da constituição do Hospício do Engenho de Dentro. Esta revisão tem por objetivo situar o lugar desta Instituição na história da psiquiatria brasileira e realçar as marcas desta história no conjunto das práticas, rupturas e tentativas de rupturas, com o intuito de deixar aparente as possibilidades de um aprofundamento no assunto. Pois é necessário afirmar a superficialidade deste trabalho neste aspecto, que não se pretende abrangente e muito menos capaz de examinar todos os movimentos enunciados. Num segundo momento, na história contemporânea do Centro Psiquiátrico Pedro II, são examinadas as marcas produzidas na instituição pelo movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira, com destaque para o produto do embate entre as novas práticas desta reforma e as antigas práticas manicomiais que são realçadas pelo contexto histórico anterior. Também aqui são apontados alguns movimentos que carecem de um exame mais aprofundado, mas que nos soa como necessário para o iniciar de uma discussão que não está neste trabalho. Por fim, são apresentadas proposições estratégicas para a superação da prática manicomial que está presa na própria história da Instituição. Proposições estratégicas que aparecem como se vislumbrar no horizonte a superação do manicômio, que já é aceita pelo conhecimento acumulado, fosse possível. Por isto é que no início nos reportamos a Foucault, que na sua “História da Loucura” desnuda o saber psiquiátrico como um fato datado de um contexto da história e não da ciência. E em Basaglia e na Reforma Italiana, que materializam a saída para o fim do manicômio. E o autor, por ser ator de um momento da história narrada e diretor de uma equipe que elabora o roteiro das proposições estratégicas, pede desculpas pela deformação que o afeto produz. Mas sem o afeto não me atreveria nesta jornada... 7 Da metodologia "A interrogação enorme em torno da cientificidade das ciências sociais se desdobra em várias questões. A primeira diz respeito à possibilidade concreta de tratarmos de uma realidade da qual nós próprios, enquanto seres humanos, somos agentes. Esta ordem de conhecimento não escaparia radicalmente a toda possibilidade de objetivação? "Em segundo lugar, será que, buscando a objetivação própria das ciências naturais, não estaríamos descaracterizando o que há de mais essencial nos fenômenos e processos sociais, ou seja, o profundo sentido dado pela subjetividade? Por fim e em terceiro lugar, que método geral poderíamos propor para explorar uma realidade tão marcada pela especificidade e pela diferenciação? Como garantir a possibilidade de um acordo fundado numa partilha de princípios e não de procedimentos?" (MINAYO, 2002; 11/2) Estas interrogações colocadas por Minayo a respeito da pesquisa social, notadamente da pesquisa qualitativa, dão a idéia de quão difícil está colocada a questão do método neste campo. No caso deste trabalho não temos a pretensão de fazer uma pesquisa desta ordem. O que não nos deixa menos enredado e, pior, sem a ajuda das propostas metodológicas que tentam contornar estas interrogações. Na primeira parte deste trabalho tentamos fazer uma revisão bibliográfica sobre a constituição do saber psiquiátrico no Brasil e suas implicações na formação histórica de uma Instituição que fabrica as práticas deste saber. E numa revisão bibliográfica, outras interrogações são colocadas para dificultar a validade do trabalho. Quais fontes são consultadas? Quais privilégios são dados a determinadas fontes? Que ordem de importância? Quais fontes foram excluídas propositadamente ou ignoradas? Como a posição política do investigador interfere na importância dada às fontes? Como o julgamento do que hoje é consensualmente aceitável é criticado com preconceitos ao que na época histórica era "verdadeiro"? 8 Não temos a pretensão de responder a estas questões. Dentro do possível, sabendo da dificuldade do cumprimento da tarefa, tentamos seguir as recomendações de Minayo (2002; 12/3): "A cientificidade (...) tem que ser pensada como uma idéia reguladora de alta abstração e não como sinônimo de modelos e normas a serem seguidos. A história da ciência revela não um 'a priori', mas o que foi produzido em determinado momento histórico com toda a relatividade do processo de conhecimento (...) "O objeto das ciências sociais é histórico. Isto significa que as sociedades humanas existem num determinado espaço cuja formação social e configuração são específicas. Vivem o presente marcado pelo passado e projetado para o futuro, num embate constante entre o que está dado e o que está sendo construído. Portanto, a provisoriedade, o dinamismo e a especificidade são características fundamentais de qualquer questão social". Na segunda parte deste trabalho os problemas metodológicos são bastantes mais complicados. Nesta talvez tenha sido cometido um "crime de método". O autor foi ator participante, de um lado, de embates pesquisados em documentos da época. A narrativa, apesar de todos os cuidados tidos e havidos, só pode ser tomada como "versão" do acontecimento. Não se resolvem estes problemas com os atenuantes da chamada observação participante. Encarar a narrativa como uma "versão" e deixar a possibilidade da existência de outras versões, talvez seja a melhor solução ao problema. Na terceira parte, quando falamos de proposições estratégicas, tomamos como referência SERRA, TORRES & TORRES (2003) e CHIAVENATO (1999) para separar o campo da Estratégia e o do Planejamento. Na estratégia são priorizados objetivos para a definição de uma missão institucional. O planejamento permite alcançar estes objetivos. O Planejamento Estratégico é a elaboração de um plano para uma missão. Como aqui só vamos falar de estratégia, faz sentido diferenciá-la do planejamento e separar os dois termos da trajetória administrativa. Segundo os autores citados, enquanto a essência da estratégia é a síntese, no planejamento é a análise; o tempo da primeira não é determinado, enquanto no planejamento ele 9 é definido; na estratégia a fonte é a criatividade e o resultado uma visão, enquanto no planejamento o método é a fonte e o plano é o resultado. Portanto, como estamos falando apenas de estratégia, nossa missão metodológica fica facilitada. Não nos propomos em amarrar o guizo no gato... Melhor seria definir este trabalho na categoria de um ensaio. Se usado verbo no lugar de substantivo, esperamos que depois de muito ensaiar a apresentação seja possível. 10 INTRODUÇÃO: INÍCIO DATADO, O FIM POSSÍVEL 11 Capítulo 1: Para imaginar onde chegar é preciso um ponto de partida.1 A publicação em 1961 da “História da Loucura” de Michel Foucault (1993) abalou os alicerces da Psiquiatria na sua constituição enquanto ciência que nascera como a primeira especialidade médica. Aplicando um método de pesquisa histórica (FOUCAULT, 1972; ROUDINESCO, 1994; MACHADO, 1982; PORTOCARRERO, 1988) Foucault disseca as camadas arqueológicas da constituição do saber sobre a loucura, refazendo o percurso das relações sociais e o contexto da loucura nestas relações, desde a Idade Média, detendo-se com mais rigor na era clássica (séculos XVII e XVIII), que antecede ao nascimento da ciência psiquiátrica, que a medicina faz brotar no final do século XVIII e em fecundo prosseguimento no século XIX. Sobre o método desenvolvido por FOUCAULT, PORTOCARRERO (1988) vai analisar o que chama de dispersividade discursiva, na qual recebem a atenção do historiador mesmo as mesquinharias, que geralmente são desconsideradas, mas que aparecem nos processos judiciais, laudos, relatórios, etc., minúcias do cotidiano social que Foucault trata como manifestações do saber e poder de uma determinada época. Outra característica evidenciada é que Foucault não parte do saber principal a que pertence o objeto de estudo, mas do emaranhado de saberes que o estão sustentando, em um determinado momento histórico. Assim, para elucidar o aparecimento da "doença mental", reúne os discursos que sustentam os saberes da medicina, da psiquiatria, da biologia, da política, da filosofia, como também são considerados no mesmo nível os discursos de textos religiosos, da literatura e das artes em geral, além dos discursos internos de uma instituição, seus regulamentos, normas, notas e, inclusive, o saber presente na 1 Este capítulo serve de introdução ao trabalho, com uma revisão bibliográfica de dois autores e os marcos conceituais estabelecidos: FOUCAULT e BASAGLIA. 12 arquitetura e objetos pertencentes e constituintes da época estudada. Seguindo PORTOCARRERO, FOUCAULT pretende desvelar a história da verdade constituída. E aqui ele divide a história em suas vertentes arqueológica e genealógica. Na primeira, desloca a questão da ciência para o saber constituído e disseca o como este saber emerge e se transforma; na segunda, trata da questão da forma como o poder gera o saber e, no mesmo momento, o saber gera o poder. "Aliás, Foucault não acredita na verdade. Para ele, a idéia de uma verdade eterna, universal, que está em toda parte e sempre, e que qualquer pessoa pode descobrir, pois está bem próxima à nossa espera, esta idéia é dominante num sistema de cultura como o nosso. É veiculada pela ciência e pela filosofia. (...) "Tal idéia deixa de lado uma série de práticas sociais que foram historicamente muito importantes em nossa cultura e que talvez ainda o sejam. Sempre houve, em nossa civilização, instituições, técnicas e rituais que reservaram momentos e lugares específicos para a produção de verdade, não como uma possibilidade, mas como um dever. Ou seja, em uma sociedade como a nossa, há um certo número de práticas pelas quais se tenta não descobrir, constatar ou estabelecer uma verdade que estaria à espera para ser desvendada, mas produzir uma verdade que não existia antes. A reconstituição (de processos geradores de uma verdade) se opõe à história dos comportamentos ou das representações, mesmo quando analisa condutas e idéias, abandonando, por meio da arqueologia, a história das idéias" (PORTOCARRERO, 1988). Esta pequena incursão na história arqueológica de FOUCAULT era necessária para voltarmos à História da Loucura. A loucura que, com outras formas de comportamento anti-sociais, FOUCAULT vai chamar de desatino, estava prisioneira do grande internamento produzido socialmente na Idade Clássica. Aparece no nascimento da Psiquiatria apropriada pelo saber médico como que libertada por Pinel, na França, e Tuke na Inglaterra, no grande mito da inauguração da ciência psiquiátrica moderna, primeira especialidade médica surgida. Primeira especialidade pelo afastamento que a loucura, enquanto doença da alma, tinha da medicina, já que tanto os seus métodos de diagnóstico quanto os de cura eram de outra natureza em relação `a medicina do corpo. De qualquer forma, a loucura não havia sido conhecida no seu passado, pois só a medicina podia revelar a sua verdade. E esta verdade carecia 13 de seu estatuto enquanto doença, objeto da medicina, para se revelar verdadeira. Todo o arcabouço da Psiquiatria se sustenta após este paradigma da transformação da loucura em doença mental. Como que numa revelação da verdade, a doença mental aparece no nascimento da Psiquiatria enquanto entidade pertencente ao campo do saber médico, estado ignorado anteriormente, e, só a partir deste momento, entendida na sua essência. Ora, o que FOUCAULT vai atacar é esta idéia de essência revelada pela medicina. Em seu minucioso método da arqueologia do saber, camadas da história são revolvidas para, juntando peças de descobertas históricas, localizar a loucura enquanto historicamente produzida, estando a própria verdade da descoberta médica produzida pelas relações sociais mantidas pela sociedade e seus valores. E, nesta forma de leitura, o alicerce da Psiquiatria, enquanto ciência, está abalado. Lá mais embaixo, na arqueologia do conhecimento2, camadas da história são colocadas em discussão para que a constituição da loucura seja buscada nas relações sociais estabelecidas com ela, das quais o saber médico é apenas uma - datada e determinada. E isto muda a relação social para com o saber médico - a Psiquiatria. Este golpe atinge a "verdade" do saber psiquiátrico. Há muito mais que a redução à doença na loucura. No capítulo dedicado ao nascimento do asilo, na “História da Loucura”, FOUCAULT (1993; 459 e segs.) faz um exaustivo paralelo entre a constituição do Retiro3 de Tuke, na Inglaterra, e a constituição de Bicêtre, organizado por Pinel como o primeiro asilo médico destinado à loucura, em Paris. Interessante perceber que, embora com trajetórias distintas, convergem ao mesmo ponto de chegada para o nascimento do asilo na época moderna. No entanto, Pinel era um médico conceituado na França e Tuke, um Quaker na Inglaterra, líder de uma comunidade religiosa fechada. Pontos de partidas distintos? É aí que FOUCAULT demonstra que o ponto de partida é igual: a base é de um tratamento moral. "O asilo atribui-se por objetivo o reino homogêneo da moral, sua extensão rigorosa a todos aqueles que tendem a escapar a ela"(FOUCAULT, 1993, 488). É este ponto de partida comum que faz com que a medicina, ao incorporar a psiquiatria como 2 Melhor seria concordar com PELBART (1989; 64): "...se trata de uma arqueologia da percepção - e não a história de uma experiência vivida.(...), arqueologia da percepção sobre a loucura e, nos seus interstícios, lêem-se os recuos, silêncios, contorções e fulgurações da desrazão." 3 Asilo religioso inglês para o “tratamento” da loucura. 14 primeira especialidade, produzindo uma medicina da alma, tenha na base da moral, tanto a sua criação, o seu início, quanto a própria constituição do espaço asilar como um lugar de segregação da loucura que não pode ter lugar na sociedade. Assim também estava traçada a sua lógica: o método de cura moral. O asilo, colocado neste lugar, vai perpassar dois séculos para chegar no mundo contemporâneo carregando sua mesma marca inicial. Claro que a constituição da Psicanálise, iniciada no final do século XIX por Freud, e proficuamente fecunda no século XX, manteve um duelo com o saber psiquiátrico de forma arrivista e provocando mudanças na história da psiquiatria. É justo dizer que existe uma psiquiatria antes e outra depois de Freud, apesar da psicanálise se considerar um saber afastado da psiquiatria, nunca querendo com ela um vínculo histórico. Apressadamente podemos dizer que o modelo freudiano e, posteriormente, a fórmula estrutural lacaniana4, estão colocados em um campo de saber que questiona de outra forma, com outro modelo explicativo, o entendimento da loucura, contrapondo e pretendendo superar o modelo clínico da psiquiatria. No entanto, se dizem que o saber psiquiátrico está equivocado no entendimento da loucura, não disparam, como faz FOUCAULT, um desmoronamento da constituição do saber da psiquiatria5. E nem é esta a pretensão da psicanálise. Com isto queremos justificar a escolha de FOUCAULT como ponto de partida. Roberto Machado, em “Ciência e Saber - A Trajetória da Arqueologia de Foucault”, destaca a extraordinária importância que a “História da Loucura” tem: "Demostra, por um lado, que a psiquiatria é uma 'ciência' recente: que a doença mental não tem nem mesmo duzentos anos, como também que a intervenção da medicina com relação ao louco, em vez de ser atemporal, é historicamente datada. Histoire de la folie analisa as características, as verdadeiras dimensões e a importância desta ruptura de tal modo que, depois dela, não é mais possível falar rigorosamente de doença mental antes do final do século XVIII, 4 Conferir CHECCINATO, 1988, que interpreta o modelo estrutural de J. Lacan. Deixemos FOUCAULT falar de FREUD: "Freud desmistificou todas as outras estruturas do asilo: aboliu o silêncio e o olhar, apagou o reconhecimento da loucura por ela mesma no espelho de seu próprio espetáculo, fez com que se calassem as instâncias da condenação. Mas em compensação explorou a estrutura que envolve a personagem do médico; ampliou suas virtudes de taumaturgo, preparando para sua onipotência um estatuto quase divino. Trouxe para ele , sobre essa presença única, oculta atrás do doente e acima dele, numa ausência que também é uma presença total, todos os poderes que estavam divididos na existência coletiva do asilo. Fez dele o Olhar absoluto, o Silêncio puro e sempre contido, o Juiz que pune e recompensa no juízo que não condescende nem mesmo com a linguagem; fez dele o espelho no qual a loucura, num movimento quase imóvel, se enamora e afasta de si mesma." ( FOUCAULT, 1993; 502). 5 15 momento que se inicia o processo de patologização do louco. A partir de então a história da loucura deixava de ser a história da psiquiatria. Por outro lado, a psiquiatria é o resultado de um processo histórico mais amplo, que pode ser balizado em períodos ou épocas, que de modo algum diz respeito à descoberta de uma natureza específica, de uma essência da loucura, mas à sua progressiva dominação e integração à ordem da razão. Livro que, sem dúvida, revolucionou a maneira de pensar a psiquiatria, dando as reais dimensões do propalado gesto libertador de Pinel e do humanismo terapêutico que o caracteriza; desmascara as imagens que dão à psiquiatria o mérito de ter possibilitado à loucura ser finalmente reconhecida e tratada segundo sua verdade, mostrando o caminho que foi preciso a história seguir para que a psiquiatria tornasse o louco doente mental"(MACHADO, 1982). Ressaltamos este momento inaugural como necessário ao trabalho que aqui se pretende desenvolver. É também no ano 1961 que Franco Basaglia assume a direção do Hospital Psiquiátrico de Gorizia, norte da Itália. Tendo uma trajetória acadêmica anterior, com os conhecimentos da fenomenologia existencial, BASAGLIA percebeu, diante do choque da realidade do manicômio, que a academia e os cursos de psiquiatria não se deixavam penetrar por aquela realidade6. É na própria experiência do manicômio que ele vai buscar alternativas para lidar com a realidade encontrada. Ensaia modelos de reformas manicomiais como a comunidade terapêutica e a psicoterapia institucional7. Mesmo percebendo que "a fenomenologia existencial poderia ser, enfim, um primeiro instrumento de desmascaramento do terreno ideológico sobre o qual a ciência se funda” (BASAGLIA APUD AMARANTE, 1996), BASAGLIA sente a superficialidade que estas reformas têm quando atingem apenas o interior do manicômio. Segundo vários autores8 foi decisiva a influência exercida pela “História da Loucura” e de GOFFMAN (1974) no pensamento de BASAGLIA. A primeira experiência em Gorizia durante os anos 60 mostra que as reformas no interior do manicômio 6 Muito parecida com nossa situação atual, com o agravante de que, no Brasil, nem as experiências de modelos substitutivos (de que falaremos adiante) são percebidos pelo saber acadêmico. 7 Maxwel JONES (comunidade terapêutica) na Inglaterra e TOSQUELLES (psicoterapia institucional) na França tiveram interferências em propostas de reformas psiquiátricas também entre nós. 8 Conferir AMARANTE (1994, 1996, 2000) BASAGLIA (1985), BASAGLIA & GALLIO (1991), DELGADO (1991) NICÁCIO (1989, 1994), ROTELLI (1987, 1994) e TYKANORY (1986, 1996), em obras citadas ao longo do texto sobre a Reforma Italiana. 16 como se nele fosse encontrada a deformação, não colocava o problema no seu lugar, deixando intacto o saber psiquiátrico. Todas as reformas anteriores a Basaglia tinham esta característica: a ciência psiquiátrica não era questionada, o manicômio era o lugar do exercício de deformação desta ciência. O objetivo destas reformas era modificar o manicômio que, com suas práticas autônomas, engendravam uma interpretação equivocada do que a ciência, fora dele, formulava para a cura da doença mental. Como se o manicômio, historicamente, tivesse ganho uma função que, por forças internas, impedia o desenvolvimento verdadeiro da ciência psiquiátrica. Dito de outro modo, estas reformas objetivavam transformar o manicômio no seu figurino original, onde a roupagem da cura, oferecida pela psiquiatria, pudesse exercer a sua verdade. Ora, o que FOUCAULT havia desvelado era que o manicômio, em qualquer fase em que estivesse , era o mesmo do seu início histórico e datado. A partir daí, "encerrado nesses valores fictícios, o asilo será protegido da história e da evolução social" (FOUCAULT, 1993; 485). E na descrição do seu estado original, o autor desnuda o encantamento que uma "ciência" psiquiátrica ajudara a esconder: "O louco 'libertado' por Pinel, depois dele, o louco do internamento moderno, são personagens sob processo. Se têm o privilégio de não mais serem misturados ou assimilados a condenados, são condenados a estar, a todo momento, sujeitos a um ato de acusação cujo texto nunca é revelado, pois é toda a vida no asilo que o formula. O asilo da era positivista, por cuja fundação se glorifica a Pinel, não é um livre domínio de observação, de diagnóstico e de terapêutica; é um espaço judiciário onde se é acusado, julgado e condenado e do qual só se consegue a libertação pela versão desse processo nas profundezas psicológicas, isto é, pelo arrependimento. A loucura será punida no asilo, mesmo que seja inocentada fora dele. Por muito tempo, e pelo menos até nossos dias , permanecerá aprisionada num mundo moral" (FOUCAULT, 1993; 496). É nesse manicômio desvelado com toda crueza na obra de FOUCAULT que BASAGLIA vai formular seu pensamento e com ele fazer a prática9. A operação efetuada por BASAGLIA e seus colaboradores consiste em inverter o lógica das 9 A coletânea publicada por BASAGLIA, originalmente em 1968, "A Instituição Negada - Relato de um Hospital Psiquiátrico", (aqui citada, publicada pela Graal, RJ, 1985) relatando esta experiência, vai influenciar a Reforma Psiquiátrica brasileira de maneira marcante. 17 reformas anteriores. Não é no interior do manicômio que ela deve acontecer para produzir o efeito desejado. Mas na estrutura do saber psiquiátrico, posto que ele é quem produz o manicômio. A ponte colocada por BASAGLIA, que liga o manicômio ao saber psiquiátrico, permite que circule um conjunto de problemas que não estavam postos na mesa das reformas anteriores: a que classe social pertencem a maioria dos internos no manicômio? Que ciência é esta que pretende ser neutra e produzir verdades? De que forma o manicômio e o representante do saber aí colocado são agentes do controle social exercido pela psiquiatria? "Para Basaglia, mudar a psiquiatria é mudar a instituição e suas práticas; mudar a instituição e suas práticas é mudar o saber psiquiátrico" (AMARANTE, 1996). Dos muitos conceitos trabalhados por BASAGLIA, para efeito da intenção aqui colocada, o de "desinstitucionalização", um neologismo em uso corrente na Reforma Psiquiátrica brasileira, traduz de maneira simplificada, mas marcante, a reforma inaugurada pelo psiquiatra italiano: "A desinstitucionalização não poderia ser definida positivamente, seria uma incongruência lógica; podemos tentar delimitá-la negativamente, isto é, não é uma técnica, não é uma fórmula, não é um conjunto de normas, não se identifica com a análise institucional de Lourau e Lapassade,10 não é uma fórmula administrativa. Tentando uma aproximação, diria que é a desmontagem de aparatos externos e internalizados, é 'desconstrução' de modelos e valores racionalísticocartesianos; é transformação das relações de poderes codificados e cristalizados. É fundamentalmente um trabalho prático que, a começar pelo manicômio, desmonta a solução institucional existente para desmontar o problema! Transformam-se os modos pelos quais são tratadas as pessoas para transformar o seu sofrimento; a terapia não é a perseguição eterna atrás de uma solução-cura, mas um conjunto complexo, também cotidiano e elementar, de estratégias indiretas e mediatizadas, que dizem respeito ao problema em questão, através de um processo crítico sobre os modos de ser da própria ação terapêutica" (TYCANORI, 1986). "A Instituição Negada", marco das idéias basaglianas publicado em 1968, discute a primeira experiência de BASAGLIA em Gorizia. Em 1971 ele assume a direção do "Ospedalle Psichiatrico Provinciale de Trieste" (OPP) onde opera uma desconstrução radical a partir de dentro do manicômio e, em 1980, o hospital é 10 Autores "em moda" na década de 70 na psiquiatria brasileira (nota do autor). 18 oficialmente abolido. Trieste é a primeira cidade do mundo onde foi encontrada a ausência do manicômio a partir de um trabalho de desconstrução11. Não é objeto deste trabalho investigar esta obra monumental da história contemporânea da psiquiatria, mas situar esta realidade como nosso segundo ponto de partida. Nestes nove anos de desconstrução, o trabalho, a partir de dentro do manicômio, contamina a sociedade gerando a lei 180 do parlamento italiano, em maio de 1978, que vai oficializar a abolição do asilo: "A lei proíbe a construção de novos hospitais psiquiátricos; os serviços de saúde mental passam a ser os serviços de território, podendo existir enfermarias psiquiátricas em hospitais gerais com no máximo quinze leitos; o estatuto jurídico em relação ao doente mental que durante o processo passou de internado coagido a voluntário, depois hóspede, garante-lhe agora todos os direitos civis e sociais incluindo o direito ao tratamento; fica abolido o estatuto de periculosidade social do doente mental, base de todas as legislações anteriores. A lei estabelece ainda o Tratamento Sanitário Obrigatório no qual o usuário mantém todos os seus direitos sendo o juiz o responsável por estes direitos. E o tratamento, de responsabilidade do Serviço Sanitário competente(...) A Lei 180 mantém todas as características da desinstitucionalização abre as contradições e propõe a produção, a experimentação, a necessidade de enfrentar novas respostas e possibilidades; não representa o início deste processo, nem o seu final; é um marco fundamental produzido pela desinstitucionalização e que a coloca adiante"( NICÁCIO, 1989). É interessante notar que a Lei 180 coloca para o aparelho de Estado e para a sociedade os princípios da desconstrução que estava sendo operada no interior do aparato manicomial, construindo de direito a ponte que BASAGLIA tinha proposto na sua práxis de reforma psiquiátrica. Para que aconteça uma transformação no interior do manicômio é preciso sair do terreno pantanoso do saber psiquiátrico e construir na sociedade e através dela, espaço onde ocorram trocas e afetos de vidas, propostas para a solução de um problema que parecia singular e apartado da realidade "lá fora". 11 Não se pode comparar este trabalho à desospitalização americana, no governo Kennedy, onde os doentes abandonados transformaram-se em "homeless". Em Trieste foi construída toda uma rede de serviços "substitutivos" que reorganizou a assistência psiquiátrica. 19 E claro que é problemático para uma cidade perder o seu manicômio. Em duzentos anos de história da psiquiatria é a primeira vez que isto acontece12 e não é fácil lidar com esta nova realidade. Sem ter o tapete do asilo para jogar debaixo seus loucos, Trieste deve conseguir conviver com a loucura na via pública. Mesmo tendo sido montada toda uma rede de cuidados, o contato destes novos membros da comunidade saídos do hospício não se faz sem traumas na sociedade e é agravado pelos problemas de uma clientela existente em potencial na comunidade: "A parábola do doente do hospital psiquiátrico, onde permaneceu sem identidade e sem história, por anos, para o social, que exige uma identidade fora da tutela médica, libera novas contradições, uma vez que se unifica aqui com a condição de todos aqueles que são, por definição, o reservatório da tradicional clientela psiquiátrica" (BASAGLIA & GALLIO, 1991). Para dispensar o manicômio foi proposto um trabalho muito maior: além de dar conta dos problemas do antigo regime foi necessária a montagem de uma estrutura visando os quadros insurgentes que naturalmente requisitavam o manicômio na sua resolução. Como se não bastassem os problemas inerentes a esta engrenagem, o "saber" que havia sido atingido gravemente pela Psiquiatria Democrática Italiana passou a divulgar algumas dificuldades como fracasso do modelo. Franco Rotelli, Coordenador dos Serviços de Saúde Mental de Trieste, em 1991, numa entrevista concedida a DELGADO(1991; 81 e segs.) reclama que nenhuma universidade italiana tinha tomado os princípios da reforma ou mesmo as diretrizes geradas pela lei 180 (em vigor) em seus currículos. Esta negação silenciosa era reforçada por um ataque explícito nas páginas de revistas científicas de conceito internacional: ROTELLI, na mesma entrevista, acusa o "The British Journal of Psichiatry" e o "The American Journal of Psichiatry" como propagadores de "mentiras absolutas" sobre a Reforma Italiana (DELGADO, 1991; 88). No entanto, apesar das dificuldades encontradas, colocadas em todo o mundo como fracassos pelos centros do saber, Trieste atraía voluntários de vários países que fizeram toda uma desconstrução da estrutura do saber acadêmico, 12 Uma cidade sem manicômio não é a mesma coisa que uma cidade que perdeu seu manicômio. Embora tenhamos vários exemplos, aqui no Brasil, como é mais fácil se construir uma rede alternativa onde não existe ainda a presença do manicômio, há reivindicações políticas do sua necessidade em nome do progresso. 20 mostrando nos seus países a verdade do que vinha ocorrendo.13 ROTELLI faz um balanço da Reforma Italiana: "Existem algumas cidades na Itália em que não apenas foram realmente fechados os hospitais psiquiátricos, como também se constituiu uma rede orgânica suficiente e significativa de serviços alternativos. Trieste, Arezzo, Perugia, Parma, Pordenove, Livorno e algumas outras cidades são exemplo disso. Existem outras cidades nas quais os hospitais psiquiátricos foram fortemente redimensionados depois da lei, mas até hoje existem, com um grande peso e com uma situação bastante dramática das pessoas que ainda estão internadas. Existem cidades nas quais os hospitais psiquiátricos foram efetivamente reduzidos a pouca coisa, mas nas quais não feito nenhum serviço alternativo, o que criou, portanto, uma situação de crise muito grave, por falta de assistência psiquiátrica. Todavia, se existe um dado generalizado, é certamente que o antigo papel do hospital psiquiátrico como lugar de tratamento, ou para o qual os pacientes são enviados, desapareceu. Passou-se de mais de 100 mil pessoas internadas no final dos anos 60, aos atuais 25 mil internados nos hospitais psiquiátricos. É importante enfatizar que estas 25 mil pessoas já pertenciam ao grupo das 100 mil. Em outras palavras, nos últimos dez anos, salvo pouquíssimas exceções, novas pessoas não foram efetivamente internadas no manicômio" (ROTELLI IN DELGADO, 1991; 82). Embora a Reforma Italiana, como situa bem este balanço feito por Franco Rotelli, tenha mudado a Saúde Mental na Itália, é no exemplo de Trieste que vamos eleger o nosso segundo ponto de partida. Nesta cidade que foi despida do seu manicômio, que construiu uma rede de serviços alternativos no território, que promoveu a participação da comunidade num problema que não aparecia como seu historicamente, acontece uma possibilidade real da legitimidade do que diz FOUCAULT. A praxis basagliana só foi possível porque radicalizou a desmontagem de formulações tidas como verdades na nossa sociedade moderna: "o mito da periculosidade do louco, o conto de fadas de que o manicômio trata e a ideologia da neutralidade da ciência psiquiátrica" (NICÁCIO, 1989; 93). A valorização desta experiência está em que não se pode anular, como pretendem seus opositores, sequer minimizar, um movimento que foi o único, em nível internacional, que de fato aboliu o manicômio, rompendo de modo radical com a constituição do saber 13 No Brasil, Amarante, Nicácio, Kinoshita e Delgado, aqui citados, entre outros autores, produziram uma vasta bibliografia sobre a situação italiana. 21 psiquiátrico, diferente, portanto, das reformas que se deram na Europa e nos EUA a partir da década de 60.14 É a partir destes dois momentos que pretendemos desenvolver este trabalho. O primeiro, no qual FOUCAULT desvela a transmutação da loucura em doença mental: diferente da maioria das doenças clínicas, onde a descoberta pela ciência mostra um conceito de delineação perceptível, que diminui o nível de saúde do indivíduo ou de toda uma coletividade e que, pela ciência, na sua interferência, é passível de modificação ou, em sua plenitude, de métodos de cura no plano corpóreo do físico, a loucura, conceito existente que vem de muito antes na história da humanidade, é, no final do século XVIII, transformada em doença mental que, a partir deste nascimento mutante, passa a diminuir o nível de saúde de um indivíduo ou da coletividade - no plano moral e não físico e, neste mesmo plano, é proposta a cura que, a princípio pode ser feita pelo próprio asilo, já que ele é organizado para o tratamento moral. É a partir deste momento que vamos acompanhar o nascimento do Hospício de Pedro II - que está na origem da instituição, objeto deste trabalho, a constituição do saber e das práticas que ali foram plantadas e justificar suas ramificações na instituição hoje. No segundo momento, passaremos a investigar algumas propostas de reformas, comparadas à Reforma Italiana, para tentar entender o reforço que a estrutura manicomial adquire, apesar de todas as reformas serem declaradamente antimanicomiais. Por fim, tentaremos justificar as propostas atuais que acontecem na instituição dentro destes momentos, tentando examinar o entorno conjuntural como estrutura limitante de suas efetivações. 14 Estas experiências tinham como objetivo renovar os conhecimentos da psiquiatria e humanizar as relações nas instituições, como já foi dito anteriormente. 22 PRIMEIRA PARTE: CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA 23 Capítulo 2: A mesma cena se repete quase um século depois: o nascimento do Hospício no Brasil.15 Decreto nº 82 de 18 de julho de 1841 Fundando hum Hospital destinado privativamente para tratamento de Alienados, com a denominação de Hospicio de Pedro Segundo. Desejando assignalar o fausto dia da Minha Sagração com a creação de hum estabelecimento de publica beneficencia, Hei por bem fundar hum Hospital destinado privativamente para tratamento de Alienados, com a denominação de Hospicio de Pedro Segundo = o qual ficará annexo ao Hospital da Santa Casa da Misericordia desta Corte, debaixo da Minha Imperial Procteção, Applicando desde já para principio de sua fundação o producto das subscrições promovidas por huma Commissão da Praça do Commercio, e pelo provedor da sobredita Santa Casa, alem das quantias com que Eu Houver por bem contribuir. Candido José de Araujo Vianna, do Meu Conselho, Ministro e Secretario de Estado dos Negocios do Imperio, o tenha assim entendido e faça executar com os Despachos necessários. Palacio do Rio de Janeiro em desoito de julho de mil oito centos e quarenta e hum, Vigesimo da Independencia e do Imperio. 16 No Brasil, desde 1830, quando aparecem os primeiros protestos da classe médica relativos à situação do louco na Santa Casa de Misericórdia, eles são assimilados ao projeto de José Clemente Pereira, provedor da Santa Casa (entre 15 Neste capítulo, através de uma revisão bibliográfica, procura-se narrar alguns fatos da conjuntura do nascimento do Hospício de Pedro II, a formação do arcabouço dos saberes que se constituíram na Praia Vermelha, em Botafogo e que, no atravessar do tempo e da geografia, chegaram ao Engenho de Dentro, bairro do outro lado da cidade do Rio de Janeiro. Serão revistos, entre outros, os seguintes autores: Roberto MACHADO, Vera PORTOCARRERO, Paulo AMARANTE, Jurandir Freire COSTA, Magalí ENGEL e Tácito MEDEIROS em obras que serão citadas ao longo do texto. 16 Este decreto é assinado com o selo Imperial do Imperador D. Pedro Segundo e encontra-se no Arquivo Público Nacional. 24 1838-1854), que pretendia fazer da Santa Casa um verdadeiro hospital17. Em 1839, num relatório sobre a situação encontrada, Pereira diz textualmente que "não temos hospital que mereça este nome" (MACHADO, 1978; 426). Eram assunto da Santa Casa os mortos, doentes contagiosos e os loucos, impedindo que sua vocação de hospital fosse exercida como mandava os ditames da higiene e da função terapêutica moderna. O projeto do nascimento do asilo no Brasil aparece como um projeto de medicina social.18 Para que a Santa Casa tivesse um projeto de hospital era necessário o surgimento de espaços específicos para o cemitério, para os bexiguentos e tuberculosos, para os loucos. Só é possível compreender o nascimento da psiquiatria brasileira como um projeto da explicitação política da medicina social como forma de controle do comportamento dos indivíduos e da sociedade. No relatório da Comissão de Salubridade de 1830, da recém criada Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, aparece, pela primeira vez, a reivindicação de um estabelecimento para a cura dos loucos (MACHADO, 1978). Por esta época o hospício é colocado como uma necessidade para a higiene e disciplina de uma sociedade que já sentia parte de sua população como desviante. Urgia que a medicina social, como braço político do poder de Estado, instituísse regras para a constituição de uma sociedade civilizada e moderna. E nesta sociedade, principalmente o louco pobre, que perambula pela via pública, pode tornar-se perigoso. A noção de periculosidade, como atentado à moral pública e à segurança, aparece como um imperativo da necessidade do hospício. O Hospital da Misericórdia, para onde iam alguns loucos, além de não comportar todos os desviantes, que neste momento não podem mais serem tolerados na paisagem urbana, não é um lugar adequado para uma ação medicalizante e de recuperação do louco. Mas o discurso médico, que coloca este assunto na ordem do dia, deve ser embalado de maneira vendável para que a sociedade compre essa idéia: a situação dos loucos é criticada tanto na rua como na Santa Casa. Nos dois lugares ele é perigoso e injustiçado; é, ao mesmo tempo, criminoso em 17 Aqui seguimos o levantamento de MACHADO, 1978. Os principais representantes no campo da psiquiatria neste projeto são: José Martins da Cruz Jobim, Joaquim Cândido Soares de Meirelles, Luiz Vicente de Simoni, Jean-Maurice Faivre e Francisco Xavier Sigaud, citados por COSTA, 1981. 18 25 potencial e vítima indefesa. O seu lugar não pode ser na rua nem na prisão. Ele não pode ter liberdade nem ser reprimido, mas sim disciplinado. É o asilo o lugar da disciplina, enquanto o alienista representa a medicina social, poder político instituído pelo saber médico, única autoridade capaz de instituir a norma social.19 "A partir de então, a loucura e a prevenção estarão para sempre ligadas. Ainda não no sentido de uma intervenção sobre a loucura antes mesmo que ela ecloda, que é a grande pretensão da atualidade. Mas enquanto a loucura é um comportamento caracterizado medicamente no momento em que, formulando uma etiologia social da doença, a medicina urbana detecta os diversos perigos que podem ameaçar a existência de uma sociedade em vias de normalização. Coube à medicina social a tarefa de isolar preventivamente o louco com o objetivo de reduzir o perigo e impossibilitar o efeito destrutivo que ela viu caracterizada em sua doença. Nasce assim, no Brasil dos meados do século XIX, não uma 'psiquiatria preventiva', mas a psiquiatria como instrumento da prevenção" (MACHADO, 1978; 380). Quase vinte anos antes do nascimento do hospício no Brasil, o saber que deu nascimento à doença mental no continente europeu, no final do século anterior, estava entre nós já circulando como um discurso da medicina social: os guardiães da norma colocam todos os indivíduos da sociedade e seus atos, em princípio, sob a suspeita da anormalidade; como conseqüência, a proposta da medicalização, não dos atos, mas da totalidade da vida do indivíduo já estava colocada. Faltava apenas que o hospício ocupasse o lugar que o discurso médico já havia preparado para o seu nascimento. É o decreto imperial de 18 de julho de 1841, data da sagração do Imperador Pedro II, que dá início à concretização do projeto arquitetônico do nascimento do Hospício de Pedro II, que ocorreria onze anos depois, como símbolo imponente20 do projeto de medicina social para o controle solicitado no discurso médico. O que estamos assistindo neste momento, no nascimento do hospício no Brasil, é um monumento ao poder disciplinar, grande realização da psiquiatria: 19 É interessante constatar que a maior parte do poder médico contemporâneo, como de autoridades sanitárias e de poder político do Estado, ainda hoje operam com a mesma lógica deste pensamento inicial da psiquiatria brasileira. 20 “O mais belo edifício da América do Sul, em sua época”(MEDEIROS, 1977). 26 "A psiquiatria, portanto, não se constitui no Brasil como uma idéia, uma idealidade discursiva, um simples efeito ideológico: uma justificação ou legitimação que tem como objetivo ofuscar, mistificar, obscurecer os mecanismos de dominação de uma classe sobre outra. Sua ação é muito mais penetrante, eficaz e positiva. Ela atinge diretamente o corpo das pessoas; é uma realidade que desempenha um papel de transformação dos indivíduos, assumindo o encargo de sua vida, gerindo sua existência, impondo uma norma de conduta a um comportamento desregrado. Denota, assim, a presença da medicina em um aspecto da realidade que até então lhe era estranho, desconhecido, exterior. Através da psiquiatria o médico penetra ainda mais profundamente na vida social, dá as cartas em um jogo que passa a existir segundo regras por ele mesmo criadas" (MACHADO, 1978; 447). No entanto, é preciso que nos detenhamos nas contradições, nas inadequações que surgem na concretização do próprio monumento: o Hospício. Se, por um lado, o decreto que acontece no dia da sagração do Imperador parece mostrar a importância do pensamento psiquiátrico na época, por outro , o papel do provedor da Santa Casa, José Clemente Pereira, ministro e conselheiro do pequeno imperador, uma liderança do movimento da Maioridade, aparece como um decisivo empreendedor da idéia, coletando recursos beneficentes, cuidando da construção até sua inauguração em 05 de dezembro de 1852. MEDEIROS (1977) assinala que não encontra fatos "que revelem ter sido o problema do doente mental uma questão que pessoalmente preocupasse de modo prioritário (o Imperador)”. E é sabido que os gostos intelectuais de Pedro II passavam pela educação, invenções, fotografia, arquitetura, etc. No entanto, o hospício enquanto um monumento representante de uma corrente de pensamento social, não parece ter tocado o Imperador. A aliança deste pensamento aos interesses pessoais de Pereira, e a interferência deste junto ao Imperador parece ter sido decisiva para o nascimento do Hospício. Com uma careira política de destaque no Império, foi um dos responsáveis pela independência, no famoso gesto do "Fico", ocupando gabinetes importantes. Em 1841 era Ministro da Guerra. MACHADO diz que os biógrafos-admiradores assim situavam José Clemente: "Chamado de herói da Santa Casa, procurador dos pobres, homem da caridade, protetor dos órfãos, doentes, loucos, expostos, pai de todos os desvalidos da sociedade, José Clemente é, ao mesmo tempo, grande político e 27 filantropo. Personagem em torno do qual se criou o mito do libertador da pátria e da humanidade sofredora" (MACHADO, 1978; 425). Um cronista da época assim descreve a imponência da obra de José Clemente: "Na Praia Vermelha, denominada outrora de Santa Cecília, vê-se um edifício de arquitetura severa, um palácio construído em dez anos, levantado pela caridade pública; é o primeiro monumento da cidade, é o Hospício de D. Pedro II. "Vendo os alienados encerrados em um corredor térreo do Velho Hospital da Misericórdia, recolhidos em enxovais e tratados não como enfermos, porém como animais ferozes, tendo o chão frio por leito, o pão duro por alimento e o azorrague como remédio, o provedor José Clemente Pereira, inspirado pela luz da caridade, resolveu levantar um hospital, aonde os doidos tivessem asilo decente e pudessem achar lenitivo a seus males. Vimos os esforços que fez para erguer o Hospício de D. Pedro II. Deus favoreceu a obra do homem caridoso. " No curto espaço de dez anos, José Clemente concluía a sua missão; ergueu no Rio de Janeiro o primeiro hospital de alienados. O Hospício de D. Pedro II acha-se construído em uma superfície de 1562 braças quadradas. É majestoso o frontispício deste monumento. O pórtico revestido de cantaria apresenta uma escadaria de dez degraus. Quatro colunas de granito com capitéis dóricos sustentam uma balaustrada de mármore. Há três portas entre as colunas. No segundo pavimento erguem-se outras quatros colunas de ordem jônica, coroando o corpo um frontão reto e havendo no tímpano as armas imperiais trabalhadas em mármore. Há entre as colunas três janelas. "Os corpos laterais constam de vinte janelas de peitoril no primeiro pavimento, cuja arquitetura é da ordem dórica do teatro de Marcelo, em Roma. O segundo pavimento é da ordem jônica, sob o sistema do templo de Minerva Poliada da Grécia. Tem vinte janelas, das quais treze têm sacadas de grades de ferro e sete são arqueadas e têm todas varões de ferro. Um ático ornado de estátuas e de vasos de mármore oculta o telhado do edifício, dando mais beleza ao prospecto do monumento. Há, nas faces laterais, treze janelas em cada pavimento. As sete janelas do segundo pavimento têm sacadas de grades de ferro. Vêm-se, no fundo, quatro torreões com três janelas em cada pavimento; no centro a rotunda da capela e, ligando os torreões, corpos de um só pavimento com seis janelas cada uma. O desenho deste palácio foi dado pelo engenheiro arquiteto Domingos Monteiro, exceto o pórtico, que é do engenheiro Guilhobel. O engenheiro Sr. Major José Maria Jacinto Rebelo fez algumas modificações no plano primitivo do monumento. "No vestíbulo, cujo pavimento é ladrilhado de mármore, se erguem sobre pedestais as estátuas em gesso dos sábios Esquirol e Pinel. 28 Foram trabalhados pelo escultor Pethrich, que é o autor de todas as estátuas que ornam o palácio. "A escadaria é iluminada por uma cúpula primorosamente construída sob a direção do arquiteto Rebelo. A capela é de um gosto simples e grave; não tem ornatos de luxo. A construção severa desse recinto impressiona o cristão que, penetrando ali, só pensa na majestade de Deus e vai orar. Tem quatro tribunas de cada lado, de onde vêm ouvir missa os doidos que podem assistir a este ato. O altar está encerrado em uma rotunda e sobre ele se venera a imagem de S. Pedro de Alcântara. Esta imagem de mármore custou cinco contos de réis. É do escultor Pethrich” (MOREIRA DE AZEVEDO APUD PACHECO E SILVA, 1967; 155/6). 21 Esta crônica, verdadeira ode ao monumento, é de um detalhamento necessário à compreensão da importância da ação de José Clemente. Entretanto outra é a história dos bastidores... Deve ser levada em consideração alguns fatos implicados no nascimento do Hospício. Teixeira Brandão22 , em suas ácidas críticas dirigidas aos desvios no hospício, vai identificar, já no seu nascedouro, que a Santa Casa se apropriara de algo que não lhe pertencia. A Santa Casa, não podendo sustentar os loucos ali existentes, assoberbada por dificuldades financeiras, tinha na proposta do Hospício um alívio para sua situação financeira. O que vai falar a favor do ideal de José Clemente em transformar a Santa Casa em um hospital realmente. Teixeira Brandão se refere à Santa Casa de Misericórdia, serviço filantrópico, como "aquela confraria" no sentido pejorativo do termo Para ele, José Clemente se apropriara de um bem público. O edifício fora levantado em um terreno público, com subscrições públicas ou doados pela "munificência imperial". E mais grave: "os encargos da construção salvou a Santa Casa de embaraços financeiros pela facilidade com que dispunha dos cofres do Hospício" (MACHADO, 1978; 486). O artigo escrito por Teixeira Brandão, citado acima, explicita que com a fundação do Hospício "as subscrições e donativos avultaram. Os cofres do Hospício regurgitavam, enquanto os da Santa Casa permaneciam em anemia profunda". Neste episódio, o que Teixeira Brandão queria era o direito do saber psiquiátrico ocupar o seu devido lugar no Hospício, mas os ataques a detalhes da 21 Depois da morte de José Clemente Pereira, em março de 1854, um decreto de Pedro II manda fazer uma estátua em sua homenagem para "ornar o palácio" (PACHECO E SILVA, 1964; 157). 22 "Questões relativas à assistência médico-legal a alienados e aos alienados", 1897. Apud MACHADO, 1978. 29 administração mostra algumas contradições e que a viabilidade do Hospício dependeu das artimanhas de José Clemente, num caso de privatização da coisa pública. Teixeira Brandão vai dizer que não se pode confiar a uma "confraria" deveres de Estado: " cabe à segurança pública, determinar os casos em que a defesa social exige o sacrifício da liberdade individual, regular a sucessão pela gestão de bens dos alienados" (MACHADO, 1978; 487). Por fim Teixeira Brandão decreta a Santa Casa "um verdadeiro Estado dentro de um Estado" e, que pela enorme influência política de seus provedores, o Hospício foi arrancado do Estado e entregue àquela confraria privada. Até agora nos detivemos nesta questão apenas para, nos interstícios dos discursos, percebermos que a criação do Hospício teve algo de uma privatização do Estado e interferências e favorecimentos políticos, muito comuns desde o início, quase uma característica do Estado brasileiro. Mesmo neste projeto, que contava com um movimento social que parecia determinar o nascimento do Hospício enquanto monumento desta posição política, vemos, numa melhor aproximação, os jogos de influência, a apropriação de parte do Estado pelos interesses privados presentes na cena política da Corte. Mas isto era o que, poderíamos dizer, estava por trás da verdadeira guerra enunciada por Teixeira Brandão. Sua crítica ao Hospício estava na falta do controle do objeto da ação pelo saber oficial. Afinal, os leigos detinham o poder de executar as tarefas que a medicina social tinha, de forma clara, como missão. Os loucos estavam nos presídios, em casas de correção ou em exibição nas ruas dos centros urbanos. Só uma pequena parcela estava nos porões das Santas Casas . "O mais antigo registro conhecido de internação psiquiátrica data de 1817, na Santa Casa de São João del Rei" (MEDEIROS, 1977). Em Pernambuco, Bahia e algumas outras províncias a situação era parecida com a do Rio de Janeiro. Três razões fazem com que nos detenhamos nesta cidade: o acesso mais fácil para uma revisão bibliográfica; o centro político e administrativo que o Rio representava, irradiando para o país procedimentos similares e, mais importante do ponto de vista do objetivo deste trabalho, o exame do Hospício do 30 Engenho de Dentro como a continuidade ou não do Hospício de Pedro II. A realidade dentro de um engenho que substitui a praia da Saudade. O processo de medicalização da loucura, nos meados do século XIX, se fundamenta em dois marcos: a própria fundação do Hospício de Pedro II, marco concreto e, suporte necessário, a criação da cadeira de clínica psiquiátrica na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que converte o país, na passagem do Império para a República, num núcleo de produção e divulgação do saber alienista. A situação dos loucos na cidade do Rio de Janeiro não corrobora para as razões do saber que inaugura o Hospício. Nem todos os loucos estavam nos porões da Santa Casa. Como já foi citado, casas de correção, prisão, "gaiolas humanas perto de cemitérios" (MEDEIROS, 1977) e, principalmente, a via pública eram locais freqüentados pela loucura e o mesmo indivíduo circula entre estes dispositivos. A presença dos loucos na urbe, apesar do seu exotismo e a decantada periculosidade, "não impediu que de alguma forma tenham sido incorporados ao dia-a-dia da cidade(..)": "a presença da loucura nas ruas da cidade despertava o riso, a compaixão, as injúrias grosseiras e a troça, às vezes, cruel. Sentimentos mistos e contraditórios que, oscilando entre a aceitação e a rejeição, demonstram de qualquer forma a existência de um espaço de convívio entre o louco e o não louco, no qual ambos sabiam perfeitamente como se defender um do outro" (ENGEL, 2001; 24). Magali ENGEL, no primeiro capítulo da obra citada, faz um interessante apanhado nos documentos e periódicos da época, sobre as "vivências e convivências" dos loucos de rua deste período, no Rio de Janeiro, mostrando, num levantamento minucioso da história de cada personagem23, que a sociedade e os loucos tinham uma forma de convívio muito diferente das razões defendidas pelos enunciadores do alienismo. No misto de "rejeição e aceitação" podemos acompanhar, por um lado, as troças, o "jogar pedras e correr atrás" sem conseqüências sérias das crianças e dos caixeiros, mais parecendo um jogo 23 Barbara Onça, Castro Urso, Picapau, Capitão Nabuco, Padre Quelé, Bolenga, Maria Doida, entre tantos outros personagens, que nos relatos de ENGEL saltam das ruas da história para contarem, eles mesmos, a relação da loucura com a sociedade, de forma viva e emocionante. 31 lúdico, no qual o louco desempenha o papel principal.24 Por outro lado, muitos tinham o seu papel social muito bem desempenhado, morando em locais conquistados junto à comunidade, exercendo atividades para o seu sustento,25 divertindo os transeuntes, exibindo talentos e papéis sonhados e exigidos pela comunidade. Quando, de vez em quando, fosse esse equilíbrio quebrado, a internação ou a prisão ou qualquer outro recolhimento, quase nunca de forma definitiva,26 interrompia esta convivência, geralmente pacífica. "Trata-se apenas de sublinhar a existência histórica de diversas possibilidades de se conceber a loucura e de se lidar com ela, distintas daquelas que caracterizariam sua transformação em doença mental, submetida ao controle do alienista. Possibilidades que, aliás, não seriam varridas completamente do cenário da cidade, apesar das vitórias profundamente significativas que (...) seriam conquistadas pelos psiquiatras a partir do último quartel do século XIX, com o fim da escravidão e com o advento do regime republicano" ( ENGEL, 2001; 49). A defasagem histórica de quase cem anos entre o nascimento do Hospício na Europa para sua imagem e (des)semelhança no Brasil, permite um acúmulo de conhecimento no saber psiquiátrico, que atravessa o Atlântico de modo descontínuo e desigual, com implicações idiossincráticas para a nossa história. Da fundação do Hospício em 1841 para sua inauguração em 1852 são onze anos de união em torno de um discurso que possibilitasse o feito. Da inauguração até a virada do século, são cinqüenta anos de polêmicas e desacertos27 em torno da sua posse pelo saber, para que as teorias da psiquiatria fossem aplicadas. Acirrando os debates do período estavam em cena importantes fatos históricos: a lei Áurea, que mais liberta os senhores de escravos do fardo improdutivo para um desenvolvimento industrial; o ocaso do Império, que não mãos de Pedro II durou quarenta e nove anos; a proclamação de uma República, mais conservadora que liberal; o alvorecer do século XX, onde a temporalidade, modificada pelo 24 Há os que aceitam a provocação e correm atrás dos provocadores. No entanto, outros invertem as regras do jogo e reconhecem nas vaias aplausos, nos apupos reverências... 25 A venda de bilhetes de loteria, onde a loucura faz parte do convencimento, era uma destas atividades. 26 Internamento definitivo que vai aumentando a partir do nascimento do Hospício. 27 Que se tornam um movimento a partir da década de 70 do século XIX, sendo vitorioso na República. 32 progresso, se faz de modo muito mais rápido e a ciência que avança de forma nunca dantes imaginada. É neste redemoinho que nos deteremos rapidamente para os fatos a seguir. Ora, em 1857, com a publicação do Traité des Dégénérescences, de Morel, a Europa estava entrando no que Robert CASTEL (1991) chama de Segunda Psiquiatria, que tinha na teoria da degenerescência - união da hereditariedade, ambiente e declínio racial, a tão sonhada aproximação da psiquiatria à medicina do corpo. Na verdade essa Segunda Psiquiatria corresponde a um terceiro movimento do saber psiquiátrico. Na Primeira Psiquiatria dois movimentos já tinham acontecido anteriormente: a doença mental como oposição à razão no seu nascimento e, na seqüência, a cura ligada a um ajustamento social; fundamentando estes dois movimentos, a psiquiatria moral. "a teoria de Morel ampliaria e consolidaria a influência do organicismo, resultando, por um lado, em uma mudança do enfoque da loucura (...) no questionamento da prática asilar; por outro, no restabelecimento da credibilidade da medicina mental, que definindo a doença mental com base na ênfase de uma racionalidade anatomoclínica, reconciliava-se definitivamente com a medicina geral" (ENGEL, 2001; 132). É ao sabor destas duas psiquiatrias, representadas pelos acadêmicos da Academia Imperial de Medicina28 e da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro29 que acontecem os debates para a tomada pelo saber do Hospício de Pedro II. Entretanto, o Hospício fora criado e existia, no Império, sob uma direção leiga, quase que completamente divorciado da produção teórica da academia. A crítica que se faz, neste período, é a de que o Hospício não estava submetido aos ditames da Primeira Psiquiatria. "Até a República, segundo Teixeira Brandão, que não teme se considerar o Pinel brasileiro, não há medicalização do hospício nem do louco" (MACHADO, 1978; 490). Interessante notar que Teixeira Brandão, mesmo sendo nomeado diretor sanitário do Hospício de Pedro II, ainda sob gestão leiga, em 1886, continuaria sendo o representante do grupo do saber dominante, e vai ser a figura de destaque nos dois movimentos importantes para a medicalização da instituição: a estatização do Hospício na República, com o conseqüente 28 29 Que cria um campo especializado no estudo da alienação mental em 1878. Que cria o Curso de Psiquiatria em Medicina em 1879. 33 rompimento com a Santa Casa, e a lei dos alienados, de 1903, quando Teixeira Brandão é eleito deputado da República. A psiquiatria é fundada concebendo o hospício como um lugar de destruição da loucura, cuja ação terapêutica Roberto MACHADO intitula como "pedagogia da ordem". Esta pedagogia seria composta pelo isolamento, pela organização do espaço terapêutico, pela vigilância, pela distribuição do tempo e pela repressão e controle. "O isolamento do louco no hospício justifica-se ao nível das causas da doença e ao nível do tratamento" (MACHADO, 1978; 430). Tirar o louco do ambiente onde ele adoeceu possibilitaria convencê-lo do erro de seu delírio, ao mesmo tempo em que o alienista protege e defende a família e a sociedade. Portanto, só o isolamento produziria uma ação terapêutica ampla. A organização do espaço terapêutico permite, no Hospício de Pedro II, a divisão dos pacientes por sexo, por classes sociais e, dentro dessas divisões, em tranqüilos e agitados. Os indigentes ainda se subdividem em "tranqüilos limpos, agitados, imundos e afetados de moléstias contagiosas"30. A vigilância era exercida pelo Panopticon de Bentham31. Se o "tratamento é mais uma educação que uma medicação", a distribuição do tempo regula horas de alimentação, de passeios, de recreio, de trabalhos dos alienados, que eram prescritos como ação terapêutica32. O controle e a repressão permitiam a camisa de força e outros meios que o artigo 32 do Regulamento do Hospício de Pedro II, citado por Roberto MACHADO (1978; 446), enuncia de forma clara: "Artigo 32: os únicos meios de repressão permitidos para obrigar os alienados à obediência são: 1. A privação de visitas, passeios e quaisquer outros recreios. 2. A diminuição de alimentos, dentro dos limites prescritos pelo facultativo. 3. A reclusão solitária, com a cama e os alimentos que o clínico prescrever, não excedendo a dois dias. 4. O colete de força, com ou sem reclusão. 30 Estatutos do Hospícios de Pedro II in MACHADO, 1978; 433. Onde a presença total e constante do alienista ou seu representante induz um estado de visibilidade permanente que assegura o funcionamento da disciplina e do poder. Este instrumento faz parte das instituições totais estudadas por GOFFMAN, (1974). 32 Mesmo não sendo uma prescrição terapêutica, nos dias de hoje as enfermarias de qualquer hospital psiquiátrico mostram estas marcas de sua origem. 31 34 5. Banhos de emborcação, que pela primeira vez só poderão ser empregados na presença do clínico e nas vezes seguintes na presença da pessoa e pelo tempo que ele designar". Teixeira Brandão não está questionando estas normas de funcionamento do hospício. "O que é denunciado pelos médicos é justamente o que escapa de seu controle" (MACHADO, 1978; 449). As críticas são dirigidas aos leigos: os diretores e as irmãs de caridade da Santa Casa33. Os argumentos de Teixeira: o Hospício não está a serviço da ciência; o médico tem quase nenhum papel na internação; é o juiz, o chefe de polícia, são os administradores da Santa Casa que autorizam a internação, assim como a alta, podendo ser usados favores políticos ou de apadrinhamento, relegando a ciência a um papel subalterno. A mistura de doentes curáveis com incuráveis dificultava o exercício terapêutico. A existência de uma população louca nas ruas atesta a ineficiência do Hospício. O Hospício não cura e não produz conhecimento enquanto o médico não exercer o poder total e completo sobre os internos e sobre todo o pessoal administrativo. A má gestão do poder leigo desvirtua o papel que o Hospício deveria ocupar. As críticas não só nos fóruns acadêmicos, mas também abertamente na imprensa, misturam aspectos que seriam preservados depois da tomada do poder com aspectos condenáveis na visão médica, para tentar ocultar o caráter político da discussão. "a organização arquitetônica não é tão perfeita quanto se supunha, aos olhos de novas concepções de loucura, do mal aproveitamento do espaço, de construções desordenadas no interior do hospício ou em sua circunvizinhança; o exame do pessoal clínico e administrativo evidencia claramente que o médico não tem todo o poder sobre a loucura, mas está subordinado ao pessoal religioso ou é tolhido pela incompetência, ignorância ou maldade dos enfermeiros; o processo de internação independe de sua vontade ou competência, o que ainda permite a presença de não-loucos no hospício e de loucos excluídos em prisões ou outros lugares não especificamente criados para eles; não há, finalmente, uma lei nacional de alienados e um serviço de assistência organizado pelo Estado que faça com que o Hospício de Pedro II deixe de ser uma exceção" (MACHADO, 1978; 449). 33 O poder religioso tem a “ativa participação da Irmandade de São Vicente, pertencente aos setores mais conservadores do clero” (AMARANTE, 1994; 75). 35 O que estava sendo denunciado no discurso do saber psiquiátrico era que nos estertores do Império estava sendo criado um paradoxo: o Hospício, defendido ardorosamente pelos alienistas fora posto em situação desviante: ele, que por si só era terapêutico, tornou-se uma aberração, tinha os vícios das casas de detenção de antes da Revolução Francesa, que não deram conta de operar sua constituição enquanto asilo depois da queda de Bastilha. O que se desejava aqui era um retorno no tempo, quase um século antes, para o seu nascimento acontecer. E o século precisou ser concluído para que, no Brasil, o Hospício fosse desempenhar seu papel. Em 1789, a Revolução Francesa. Em 1889, seu simulacro na Proclamação da República. Em 1890, o Hospício de Pedro II passa a chamar-se Hospício Nacional de Alienados, é separado da Santa Casa e organiza-se a Assistência Médico-Legal dos Alienados. Teixeira Brandão é seu primeiro diretor. Nesta época, por cerceamento das atividades das religiosas, as irmãs de caridade se retiram do Hospício, sendo substituídas por enfermeiras leigas, contratadas na Europa, "com grande proveito, no dizer do médico" que "tem o dever humanitário e o dever cívico de chamar atenção do governo para os perigos que podem advir do poderio do reacionarismo ultramontano, do qual elas são meros instrumentos passivos" (TEIXEIRA BRANDÃO APUD MACHADO, 1978, 446/7) No entanto, a tarefa não estava concluída. Faltava a lei. Faltava medicalizar a legislação. Como deputado federal, em 1903, no mesmo ano de sua eleição, Teixeira Brandão consegue a aprovação da lei dos alienados: "Esta lei faz do hospício o único lugar apto a receber loucos, subordina sua internação ao parecer médico, estabelece a guarda provisória dos bens do alienado, determina a declaração dos loucos que estão sendo tratados em domicílio, regulamenta a posição central da psiquiatria no interior do hospício, subordina a fundação de estabelecimentos para alienados à autorização do Ministério do Interior ou dos presidentes ou governadores dos estados, cria uma comissão inspetora de todos os estabelecimentos de alienados. Esta lei faz do psiquiatra a maior autoridade sobre a loucura, nacional e publicamente conhecido" (MACHADO, 1978; 484)34 34 Apesar do uso de outras fontes, "Danação da Norma" foi a principal fonte utilizada com relação ao período anterior à proclamação da República, pela sua importância histórica para a história da psiquiatria no Brasil. Publicada em 1978, sob a influência da "História da Loucura" de FOUCAULT (MACHADO é considerado o mais importante "foucaultiano" brasileiro), é obra chave para o entendimento no nascimento do Hospício no Brasil. Quinze anos após a publicação, o próprio Machado situa que: 36 O período conturbado que estamos tentando recortar até aqui, vai do nascimento do Hospício na Praia Vermelha, da década de 30 aos anos 70 do século XIX; passa pelo seu funcionamento no Império que, pelo caráter leigo, no dizer de Teixeira Brandão, desviava do curso, mesmo da Primeira Psiquiatria, até a Proclamação da República; e aborda sua consolidação enquanto instrumento dos alienistas, que vai da República até a Lei dos Alienados. A narrativa sobre a Segunda Psiquiatria que começa, no Brasil, com Juliano Moreira, será objeto do próximo capítulo. A não separação clara dos momentos deste período fica na dependência de poder olhar a história com auxílio da genealogia de FOUCAULT, onde se busca o começo e não a origem. “Origem implica em causas, enquanto os começos implicam em diferenças” (ENGEL, 2001; 118). No primeiro momento, o Código Criminal de 1830 que tratava dos crimes relativos às ofensas morais e aos bons costumes, misturados à vadiagem e mendicância, tentando regular o espaço urbanos sobre os desviantes, foi reformulado cientificamente pela Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, pelo Código de Posturas, promulgado pela Câmara Municipal em 1832. O recolhimento policial da ordem pública é substituído pela “limpeza e desempechamento das ruas e praças e providências contra a divagação de loucos e embriagados, de animais ferozes que podem incomodar o público”.35 Vê-se, neste momento, a preocupação da medicina social, através da psiquiatria, de normatizar a sociedade. A reivindicação do hospício mostra que ele seria a forma de tratar das questões da ordem urbana e não a prisão, esta apenas da esfera do jurídico criminal. A loucura teria que ser transformada em doença mental para que os "Danação da Norma, querendo entender o que aconteceu historicamente no campo da saúde mental, no Brasil, relaciona a psiquiatria com a medicina social, partindo da idéia de que é no seio da medicina social que se constitui a psiquiatria brasileira; que é do processo de medicalização da sociedade que surge o projeto de patologizar o comportamento do louco, só a partir de então considerado efetivamente curável.” "Ao escrever este livro, observamos, a esse respeito, duas coisas. A primeira é que, no momento em que a medicina se dá como um de seus objetivos combater a desordem social decorrente da não-planificação da cidade, na primeira parte do século XIX, o hospital é percebido como causa de doença e até mesmo de morte, sendo para isso necessário transformar o seu espaço e funcionamento, para capacitá-lo a realizar a cura. A segunda é que, no momento em que o hospital se torna uma peça-chave da medicina, nasce, em 1852, o primeiro hospital psiquiátrico brasileiro, com o objetivo de inserir, como doente mental, uma população que começa a aparecer como desviante aos olhos da medicina social nascente". (Prefácio de Roberto MACHADO in PORTOCARRERO, 2002) 35 Código de Posturas de 1932, citado por ENGEL, 2001, 186. 37 alienistas tivessem o poder sobre a ordem pública. Neste primeiro momento os alienistas brasileiros estão em sintonia com ensinamentos de Pinel, no século anterior, que inaugura a Primeira Psiquiatria: a doença mental opõe-se à razão e é responsável pelos comportamentos de desajustamentos sociais. Mais ainda. Neste momento, os contatos com os escritos de Esquirol (De la Folie, de 1816 e Sur l’Isolement des Aliénés, de 1832) pregavam proteger o louco contra os males de conviver com pessoas normais e proteger a sociedade contra os perigos da loucura. O hospício, antes de sua construção, está sendo reservado como um local de cura, mas também como destino dos incuráveis e sempre aberto ao retorno dos reincidentes. Portanto, aqueles personagens36 que aparentemente estavam integrados ao espaço urbano, deveriam ser recolhidos a um hospício, segundo pregava a teoria chegada do outro lado do Atlântico. E assim, quando o Hospício é inaugurado, a simbologia do monumento pode ser sentida na descrição de Engel (2001; 209): “a ornamentação do edifício do Hospício de Pedro II contava com a presença de sete estátuas de mármore de Carrara, encomendadas ao alemão Pettrich: a da Ciência, a da Caridade, a do Imperador, a de José Clemente Pereira, a de São Pedro de Alcântara e as de Pinel e Esquirol. Desse modo, o hospício sintetizaria, na linguagem expressa em sua arquitetura, uma rede de relações entre saberes e poderes pertencentes a diferentes instâncias dominantes – composta por médicos, religiosos, filantropos e pelo próprio governo monárquico”. Num segundo momento deste período, temos a realidade do Hospício contra sua imagem sonhada. Logo não há vagas para tanto desatino. Antes de completar um mês de vida já conta com 144 internos. Em 1868 tem 339 almas.37 O problema da superlotação é o centro das críticas de Teixeira Brandão. A composição de sua clientela entrava em deterioração. Segundo os prontuários constantes do Arquivo Morto do Instituto Municipal Nise da Silveira,38 as fichas de observação do Hospício de Pedro II traziam como principal registro 36 Os loucos de rua relatados anteriormente também no trabalho de ENGEL. Relatório do Ministério do Império, citado por ENGEL. 38 Todo o arquivo original encontra-se no arquivo morto do Instituto Municipal Nise da Silveira. 37 38 não o nome ou diagnóstico do paciente, mas a sua classe social.39 No entanto, em 1870, mais de 70% dos internos eram indigentes. O que não poderia deixar de acontecer se a população alvo do hospício além de louca era também de miseráveis, vagabundos, embriagados, desviantes de todo o gênero. Esta situação de superlotação pode ser acompanhada na pesquisa de ENGEL (2001; 243): “A preocupação com a periculosidade representada, segundo o parecer das autoridades públicas, pelo número crescente de mendigos nas ruas do Rio de Janeiro, ensejaria a criação, em 1854, do Albergue de Mendigos, o qual, subordinado ao chefe de Polícia, deveria recolher todos os mendigos encontrados durante a noite nas ruas, nas praças públicas e nos adros das igrejas. Desde pelo menos o início da década de 60 do século XIX, os ‘alienados mansos’ ou ‘menos furiosos’ encontrados pela polícia vagando nas ruas da cidade, cuja admissão no Hospício de Pedro II fosse recusada por problemas de superlotação, eram encaminhados para a Albergaria, enquanto os ‘mais furiosos’ eram enviados à Casa de Detenção”. Ora, o que já assistimos nas críticas de Teixeira Brandão foi proporcionado mais pelo saber médico que criou o hospício e muito menos pelas razões que ele apresentava. Mas isto é uma característica dos movimentos psiquiátricos, e será visto neste trabalho para o caso examinado. O terceiro movimento do período que examinamos neste capítulo, fala sobre a tomada do hospício pelo saber que o reivindicara. Os primeiros governos republicanos reconheceram nos alienistas e na ciências a transformação da loucura em doença mental e providenciaram um arcabouço de leis para instituir o poder usurpado: a criação da Assistência Médica e Legal de Alienados (decreto 206A, de 15/02/1890)40, que subordina o Hospício - que já se chama dos Alienados, deixando o Pedro II para trás, e que tem como diretor Teixeira Brandão, premiado com sua luta em nome do saber;41 a anterior separação da administração do Hospício da Santa Casa de Misericórdia (decreto 142A de 11/01/1890), que tira o poder do leigo e entrega ao alienista a sorte dos alienados 39 Observação nossa. As classe eram: Primeira, Segunda, Terceira (livre), Terceira (escravo) e Indigentes (escravos, livres e libertos). 40 Datas e decretos citados da pesquisa de Engel. 41 Note-se que ele tinha um cargo técnico no antigo Hospício. 39 e, mais importante, com o decreto 1.132, de 22/12/1903, que cria a Lei de Assistência Médico Legal aos Alienados, institui-se definitivamente a medicalização da lei, maior reivindicação dos alienistas neste período. Claro que os decretos, como sempre sói acontecer, não mudam a realidade. O final do período, apesar das muitas vitórias do saber instituído, encontra o velho Hospício, mesmo fingindo ser novo, com todos os problemas antigos. Mas quando o saber já está esgotado, necessita-se de um novo. “No século XX, a prática psiquiátrica incidirá sobre aqueles que apresentam desvios mentais, atuais ou potenciais, loucos ou virtualmente loucos, e penetrará em instituições, como a família, a escola, as Forças Armadas, com o objetivo terapêutico e preventivo de lutar contra a criminalidade e a baixa produtividade, combatendo a doença mental propriamente dita e a anormalidade” (PORTOCARRERO, 2002). Dentro desta perspectiva, e diferente do que aconteceu até o final do século XIX, os alienistas brasileiros não fizeram apenas uma transposição do saber europeu. Na passagem de uma psiquiatria eminentemente moral para fundamentar cientificamente a prática psiquiátrica, a participação de nossos médicos higienistas foi de fundamental importância na constituição de nossa história psiquiátrica. acontecendo neste Mas o começo e não a origem desta história estava já período. Juliano Moreira, o principal nome do desenvolvimento científico no período seguinte, já vinha trabalhando neste período que estamos encerrando. Enquanto Teixeira Brandão encerrava este ciclo, Juliano Moreira começava o novo. Há muito vinha sendo o representante da Segunda Psiquiatria. Mas este é um novo capítulo... 40 Capítulo 3: Higiene Mental: um engenho de dentro que substitui a praia da saudade...42 “Tirar a medicina mental da esfera demasiado estreita dos asilos de alienados, na qual a tendência de então era confiná-la; dar a esta ciência especial uma base mais larga e extensa; voltar, no passado, até às origens mais distantes das doenças mentais e prosseguir, no futuro, até às últimas conseqüências; procurar, no estudo da etiologia, os meios de preservação mais eficazes, e, na higiene geral e social, os meios da cura verdadeira; abandonar o exame exclusivo dos casos crônicos, o mais freqüentemente irremediáveis, para dedicar-se sobretudo à observação dos casos recentes constatados na sociedade, ao estudo das neuroses e dos estados mórbidos gerais do sistema nervoso, são o verdadeiro ponto de partida da evolução das doenças mentais; procurar, em uma palavra prevenir a produção destas doenças, em vez de combater em vão seus períodos terminais, tal foi a via particular na qual se engajou, desde o início de seus estudos especiais, o doutor Morel; tal foi a idéia-mãe que se destacou pouco a pouco de todos os seus trabalhos para culminar, em definitivo, na teoria geral das degenerescências da espécie humana e dos meios de regeneração tomados da higiene geral e social”.43 O que de mais importante a Teoria das Degenerescências traz no fundamento da Segunda Psiquiatria é a reconciliação definitiva da medicina mental com a medicina geral. No Brasil, mesmo ainda durante o Império, na década de 70 do século XIX, com a criação da especialidade de psiquiatria nas faculdades de medicina, esta teoria já tinha adeptos, mas lembramos que o Hospício de Pedro II estava completamente dissociado das reflexões teóricas do seu tempo. Teixeira Brandão, nomeado “facultativo clínico” do Hospício, em 42 Neste capítulo serão abordados aspectos da Segunda Psiquiatria, Juliano Moreira - prático e teórico da escola alemã, A Liga Brasileira de Higiene Mental e a substituição do Hospício Nacional de Alienados, na antiga praia da Saudade, hoje Vermelha, pelo Centro Psiquiátrico Nacional, no bairro do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro. 43 Jules Falret, alienista francês da Société Médico-Psychologique, em 1873, discursando na cerimônia religiosa do velório de Bénédict-Augustin Morel, destacando a importância que o autor da Teoria das Degenerescências tinha para o saber psiquiátrico da época, segundo SERPA JR., (1998; 38). Com a publicação de “Traité des Dégénerescences” (1857) e de “Traité des Maladies Mentales” (1860), Morel coloca as bases para o que CASTEL chama de Segunda Psiquiatria. 41 1886, sendo representante da academia, seria a ponte entre a prática e a teoria. Porém o momento, como foi visto, era de debates políticos conseqüentes ao ocaso da monarquia vigente. Foi na esfera política que aconteceu a sua participação. Como deputado do regime nascente é que consegue a aprovação da lei dos alienados que foi abordada no capítulo anterior. Mesmo assim, Teixeira Brandão, embora não reclamando de ser considerado o Pinel brasileiro,44 foi autor de uma classificação própria das doenças mentais já com influência da Teoria das Degenerescências45. No entanto, é Juliano Moreira, recém chegado de uma viagem científica à Europa, que assume, em 1903, a Assistência Médico-Legal dos Alienados e nela permanece até a Revolução de 1930, quem vai consolidar a moderna psiquiatria brasileira, no período que faz a passagem da Segunda Psiquiatria Francesa para o modelo alemão, de importante significado nos aspectos étnicos, éticos, políticos e ideológicos na vida social nacional. Morel, embora de origem francesa,46 possibilita a entrada do saber psiquiátrico na escola alemã, no que mais tarde, na sua vertente social e política, seria desenvolvido com a eugenia: “Para mim é impossível, daqui para frente, separar o estudo da patogenia das doenças mentais daquele das causas que produzem as degenerescências fixas e permanentes, cuja presença no meio da parte sã da população é um caso de perigo incessante. “Se é assim, o tratamento da alienação mental não deve mais ser considerado como independente de tudo que é indispensável tentar para melhorar a espécie humana. A conseqüência é rigorosa e é no sentido deste tratamento, compreendido sob um ponto de vista médico mais amplo, mais filosófico e mais social, que se dirigirá, daqui por diante, toda atividade das minhas investigações terapêuticas” (MOREL APUD SERPA JR, 1998; 50). 44 Como também foi citado anteriormente, para reforçar sua luta na crítica ao desvio do Hospício de Pedro II. “De acordo com este psiquiatra, as perturbações mentais seriam divididas em duas categorias: as que se manifestavam nos cérebros de evolução normal, compreendendo três classes (as psicoses, as cerebropsicoses e as cerebropatias) e as que se manifestam em cérebros de evolução anormal, ou seja, as degenerações”. Para Henrique Roxo “esta classificação era mais perfeita que a de Kraepelin porque, enquanto o primeiro baseia-se nos dados evolucionistas, patogênicos, anatopatológicos e sintomáticos, o segundo leva em conta apenas o caráter sintomático” (ENGEL, 2001; 138). 46 Segundo SERPA JR, op. cit., nascido num acampamento do exército napoleônico na Alemanha, Morel viveu sua infância e juventude naquele país, tinha amplo conhecimento da língua e costumes alemães e vai fazer a ponte, no seu retorno à França, onde escreve suas principais obras, entre a psiquiatria francesa e alemã. 45 42 Diferente da doença mental como oposta à razão e como um ajustamento de cunho moral, como tentou operar a Primeira Psiquiatria, com a Teoria das Degenerescências vai-se examinar os desviantes do tipo normal da humanidade e apontar causalidades orgânicas na hereditariedade, originadas por intoxicações diversas, moléstias adquiridas ou congênitas ou, mesmo por influência do meio social, comportamentos anormais que vão marcar na herança a doença. O enfoque, neste período, passa a ter como problema central a geração de indivíduos degenerados. Na nossa sociedade, no início do século XX, a alta taxa de criminalidade e baixa produtividade em relação aos países desenvolvidos da Europa, faz Juliano Moreira apontar como causa a degenerescência de nossa formação. A teoria psiquiátrica é alargada em suas tendências organicistas, mas também sociogenéticas, deixando o conceito estreito da doença mental para voltar sua atenção para a anormalidade e ter na causa desta anormalidade a sua ação. A saúde mental, e não a doença, segundo Juliano Moreira (APUD PORTOCARRERO 2002; 52), é “um problema que concerne ao estudo dos fatores de desenvolvimento físico e intelectual das raças”. Esta anormalidade que aparecia no corpo social tem como causa a organicidade marcada na herança genética. Mas Kraepelin,47 no seu Tratado de Psiquiatria, inclui na sua classificação, como estados mórbidos, os “irritáveis, instintivos, disputadores, mentirosos, fraudadores, anti-sociais, exaltados, fanáticos, etc”, categorias muito próximas do que um julgamento moral da psiquiatria anterior seria capaz de fazer... Na verdade do que se está apropriando é de um comportamento desviante, explicado de forma “científica”, novamente utilizando-se da psiquiatria como medicina social, auxiliar do Estado, para implantar a ordem urbana: 47 Representante da escola alemã com enorme influência sobre Juliano Moreira. 43 “O ‘Tratado’ de Morel se constitui, portanto, num legítimo representante de uma época que procurava neutralizar conflitos sociais, por um lado, e pretendia atribuir ao resultado de uma ‘escolha moral indevida’ o assombroso rosto que a parcela abastada da população enxergava nos miseráveis que se comprimiam na periferia das cidades, nas prisões e nos asilos, por outro. Indo ao encontro de alguns dos mais importantes medos coletivos da época, não é de se estranhar que a teoria da degenerescência tenha conhecido a difusão que teve e tenha servido como caução para uma legitimidade social que a corporação psiquiátrica tanto buscava” (SERPA JR., 1998; 99). Enquanto se aproxima da medicina geral pela causalidade orgânica e genética, o discurso psiquiátrico, enquanto ação, volta-se para a anormalidade social e aumenta seu envolvimento com a origem moral, tendo, na educação, na higiene física e mental, no aprimoramento da raça, na eugenia, uma marca no saber psiquiátrico daquele momento, que vai ecoar por muito tempo, até mesmo na moderna psiquiatria biológica, neste início de século XXI.48 Numa nova concepção de doença mental, de acordo com Morel e Kraepelin, Juliano Moreira (APUD PORTOCARRERO, 2002; 59) vai defini-la como “um desvio da normalidade que é uma exceção biológica”. Sob esta ótica toda a população pode estar potencialmente doente, se não estiver preparada para enfrentar seu meio social. Sendo assim, a psiquiatria deve escapar dos muros do hospício para uma ação de prevenção e higiene mental na sociedade. Até a delinqüência e a criminalidade fazem parte deste comportamento anormal. “Com Juliano Moreira, inaugura-se no Brasil um novo momento do saber psiquiátrico. Ao se introduzir um modelo teórico que tenta atribuir lesões específicas aos diversos tipos de doença mental e refere-se não só ao louco mas a outros tipos de desviantes, os anormais, estabelecese uma descontinuidade em relação a generalidade causal das teorias morais do século XIX e em relação ao seu objeto. A psiquiatria não é mais o discurso científico sobre a loucura e suas causas somente: ela é o saber médico sobre todo desvio da normalidade – criminalidade, degeneração, doença mental” (PORTOCARRERO, 2002; 91). Vera Portocarrero, na obra citada que tem como subtítulo “Juliano Moreira e a descontinuidade histórica da psiquiatria”, justifica esta ruptura por ações que não estão mais na esfera do velho hospício, mas num conjunto de propostas de intervenção na sociedade. As colônias agrícolas, o manicômio judiciário, a 48 As doenças no DSM último saem da classificação sindrômica para uma classificação sintomática, comportamental, em plena sintonia com o desenvolvimento da indústria farmacêutica, que cria drogas seletivas para o comportamento que se quer mudar. 44 assistência heterofamiliar, o ambulatório, a assistência aos epilépticos, os reformatórios para alcoólatras, a reformulação do hospício e a implantação do regime de open-door49, seriam novos dispositivos responsáveis pela descontinuidade anunciada. À desorganização do velho Hospício e sua inadequação se opõem uma nova concepção de doença mental, métodos terapêuticos e categorias nosográficas modernos, introduzidos por Juliano Moreira. Mas se afirma que, em 1910, Juliano Moreira explicitava sua proposta de “retirar das instituições de assistência tudo aquilo que lembre caserna ou prisão, pois estas irritam o doente, atrapalhando o tratamento”. PORTOCARRERO critica a produção da “ilusão de liberdade” obtida com o sistema de open-door, que só demonstrava “o caráter sutil do exercício do poder na instituição psiquiátrica”. Mesmo a eliminação da camisa de força, das grades e a liberdade de circulação do alienado não significavam, contudo, “uma diminuição da repressão” no Hospício. No entanto, afirma que a diferença entre os métodos coercitivos do hospício do século XIX para o do século XX “consiste no fato de que os primeiros se caracterizavam pela punição e de não terem em si fins terapêuticos, enquanto que o pouso no leito e os banhos, substituindo a violência pelo ‘deleite’, propõe-se como meio curativo e eficaz”. Sendo esta eficácia “medida pelo nível de sujeição à força da disciplina que a terapia psiquiátrica impõe” (PORTOCARRERO, 2002; 126).50 Em suma, nos Arquivos da Loucura, Juliano Moreira teria passado do “princípio do isolamento” de Esquirol, onde a assistência psiquiátrica se restringe ao espaço de exclusão do hospício, para uma ampliação de ações terapêuticas que são dirigidas tanto para os loucos quanto para os anormais da sociedade, através de medidas “preventivas que pretendem garantir a segurança da sociedade, do anormal e do poder do psiquiatra” (PORTOCARRERO, 2002; 131). Entretanto, esta ruptura é vista por outro autor (ENGEL, 2001) como fruto de uma multiciplidade de tendências que afetou a produção dos psiquiatras brasileiros e que, mesmo sendo tendências de linhas diversas e conflitantes, 49 Alguns destes dispositivos serão abordados mais adiante, neste trabalho. O open-door era um sistema de circulação no Hospício e nas Colônias agrícolas que, nas palavras de Juliano Moreira, traria um sentimento de “ilusão de liberdade” propício `a aplicação dos “modernos” tratamentos. 50 Interessante que no intróito do terceiro capítulo dos Arquivos da Loucura, um texto de Rotelli, tirado de Desinstitucionalização, propõe ilustrar as transformações da ruptura de Juliano Moreira (pg. 107)... Rever o trecho da entrevista com Rotelli no primeiro capítulo. 45 tinham pontos em comum porque foram elaboradas e difundidas num mesmo contexto e influenciaram nossos psiquiatras pelas características de seus aspectos-chave em dois fatores: a necessidade de que os estigmas físicos e psíquicos se traduzissem em degeneração e, por conseguinte, em doença mental; e a intenção de colocar a hereditariedade como primeiro e mais importante fator da alienação mental. Esta teoria de perspectivas organicistas “...tenderia a predominar no âmago da psiquiatria brasileira, assumindo, no entanto, várias matizes, cujos tons eram dados pelas diferentes fontes nas quais de inspiravam seus edificadores, entre os quais figuravam, por exemplo, a degenerescência de Morel – reformulada e ampliada por Valentin Magnan -, a eugenia de Francis Galton, o darwinismo, o neolamarckismo, a antropologia criminal da escola positivista de Cesare Lombroso e da escola sociológica de Alexandre Lacassagne, e o organicismo de Kraepelin” (ENGEL, 2001; 161).51 O uso destas tendências, com o direcionamento claro de um projeto de medicina social de controle, teve conseqüências profundas no estado brasileiro. Magali ENGEL, na obra citada, examina, no capítulo 2, os “Personagens Aprisionados”, através de um minucioso levantamento de casos jurídicos, no começo do século XX, colocando nos laudos psiquiátricos o poder de interferir na vida dos cidadãos da República. Apenas vamos citar dois casos, de forma muito resumida, dos muitos ali registrados, por serem opostos e que ilustram este poder. Bárbara de Jesus, viúva de 67 anos, escandaliza a sociedade do Distrito Federal, com amplo destaque na imprensa, por querer casar com um tal de Ayres Pereira de Mello, português, também viúvo, de 52 anos. A mídia da época, contrária ao casamento, já noticiava Bárbara como octogenária e Ayres como um moço de trinta e poucos anos, aumentando o escândalo. A família de Bárbara se opõe ao casamento, por ser Ayres desempregado e temendo pelos bens de 51 Vale notar aqui que, apesar das críticas de FOUCAULT a FREUD, abordadas na nota 5, “desde os anos 1860, Freud já tomava distância da degenerescência e da enorme importância que era atribuída à etiologia hereditária, como é possível acompanhar na sua correspondência com Flies, assim como nos ‘Estudos sobre a histeria’ e em textos como ‘As neuropsicoses de defesa’, ‘Obsessões e fobias: seu mecanismo psíquico e sua etiologia’, ‘A etiologia da histeria’ ou a ‘A hereditarieade e a etiologia das neuroses’. Freud começa assim a afrouxar as amarras que atrelam os destinos humanos a uma única determinação biológica para entregá-los à sua dimensão de linguagem e de cultura possibilitando a construção, em todas as suas dimensões, de uma outra clínica da loucura” (SERPA JR., 1998; 150). E esta vertente freudiana não estava contaminando, de forma decisiva, os alienistas brasileiros do início do século XX. 46 Bárbara. Contrata Juliano Moreira e o Dr. Rego Barros para um parecer psiquiátrico, usado juridicamente, atestando que a septuagenária, apesar “de não sofrer nenhuma psicose definida, tem, por sua extrema ignorância”, uma evidente “insuficiência mental”. Apesar de longa briga judicial, com ganhos de Bárbara em dois julgamentos, ela termina por ser interditada, de acordo com o diagnóstico pericial dos doutores psiquiátricos. O outro caso é o de João Barreto, um poeta, alto funcionário público, cunhado de Sílvio Romero- intelectual proeminente da elite local e que defende o parente com advogados. João Barreto, após embriaguez, assassina a esposa, por quem nutria ciúmes doentios. Desta vez é um laudo pericial do alienista Ernani Lopes que salva João da prisão, por ser um degenerado e irresponsável por seu atos. Nestes dois exemplos temos a psiquiatria exercendo funções ideológicas, interferindo na vida social. Pelas ações de intervenção na ordem social, Juliano Moreira é comparado a Oswaldo Cruz.52 O sanitarista medicaliza o espaço urbano e em nome de sanear as epidemias ajuda o Estado na organização do espaço da urbe. A retirada de cortiços, no Rio de Janeiro, possibilita a ordenação do espaço da cidade, com abertura de novas avenidas, praças, novos prédios públicos da ordem e da cultura no centro da cidade, com a organização de bairros para os mais pobres, que são retirados de onde a cidade precisava se estender de forma higiênica. Juliano Moreira faz o mesmo com a vertente comportamental de seus moradores. Os alienistas reivindicam o direito de aconselhar casamentos ou o divórcio: “A esterilidade, a alienação mental, a sífilis e o alcoolismo justificam o divórcio e em que condições?” – perguntava um documento da época. O Dr. Henrique Roxo defendia “não apenas a proibição de casamentos consangüíneos, mas também o impedimento da procriação dos degenerados” (ENGEL, 2001; 167/8). Ainda estamos nos anos 10 do século XX. A partir de 1923, com a criação da Liga Brasileira de Higiene Mental, este projeto seria levado ao ápice. Entretanto, antes de abordamos a Liga, é necessário que voltemos ao Hospício da Praia da Saudade e ao nascimento da Colônia de Alienados do Engenho de Dentro. 52 Tanto PORTOCARRERO quanto ENGEL encontram, nas suas respectivas pesquisas, esta comparação nos escritores da época. Sobre Oswaldo Cruz ver LUZ (1981). 47 No capítulo anterior, vimos que dois males impossibilitavam o desenvolvimento do Hospício Nacional de Alienados: a superlotação, que misturava curáveis e incuráveis, e a formação dos seus quadros profissionais. A nomeação de Juliano Moreira para dirigir a Assistência Médico-Legal dos Alienados, antes ocupada por Teixeira Brandão em 1903, por um longo período de vinte e sete anos, enfrenta esta questão nos seus dois aspectos: no caso da formação, aproxima a academia ao Hospício. São as teorias modernas da Segunda Psiquiatria francesa e, principalmente, a filiação de Juliano à escola alemã, as molas mestras para o enfrentamento do segundo problema: a superlotação. As Colônias da Ilha do Governador e São Bento, em um terreno pertencente à ordem religiosa, e Barão de Mesquita, pertencente à Marinha, já existiam desde 1887 como anexos da Praia Vermelha, para conter a superlotação do Hospício de Pedro II. De forma indiscriminada, recebiam os incuráveis, principalmente os pobres miseráveis. O que Juliano Moreira vai imprimir é uma organização “científica” a estes espaços. Esta organização “científica” era sobremaneira ampliada nos seus aspectos sociais, de organização da norma, como já foi visto. A moral da época pós-abolicionista, via no trabalho livre a instância máxima de adaptação social. Juliano vai direcionar às Colônias Agrícolas os incuráveis “mansos”, os epilépticos, anormais de todos os matizes que abarrotavam o espaço do Hospício Nacional. Se, para este contigente de incuráveis, as Colônias propunham na constituição de seu espaço a tão propagada “ilusão de liberdade”- a reeducação pelo trabalho, para que seres inúteis pudessem ser úteis à sociedade, o espaço do Hospício fora remodelado para pavilhões de agudos, de crianças, de perigosos 48 e criminosos,53 no seu esforço de cura. A reordenação possibilitada pelas Colônias faria o Hospício ter a sua função de verdadeiro Hospital.54 Juliano propõe para o Hospital, como função vocacional, o “tratamento não só de casos agudos ou de fases de reativação de casos crônicos, mas ainda de velhos doentes inadaptáveis ao regime de trabalho que nas colônias deve ter o seu devido desenvolvimento”.55 Desta forma, centra no Hospital o papel da cura ou remissão de sintomas agudos em pacientes crônicos, que deveriam, após a alta, retornar às Colônias por dois motivos: livres da reagudização, os crônicos não poderiam permanecer por trazer vícios ao asilo tradicional; por sua vez, o asilo deveria viabilizar sua vocação de cura e, assim, manter-se aberto à demanda que o alienista vislumbrava na sociedade. Mesmo toda esta reordenação assistencial tinha limites espaciais. Ainda mais com a expansão populacional do Rio de Janeiro no início do século XX, com o agravante de que Juliano tinha “uma crença inabalável de que o crescimento da população urbana corresponderia necessariamente e na mesma proporção – ou até em proporções superiores – ao aumento do número de doentes mentais”. Assim, “os psiquiatras sustentavam, por exemplo, que as grandes cidades teriam tanto maior necessidade de uma hospitalização imediata de alienados quanto maior ou mais densa tornava sua população” (ENGEL, 2001; 308/9).56 Juliano Moreira escreveu vários textos propondo um espaço de tratamento para epilépticos, colônias para eles, e de reformatórios para alcoólatras, conforme a pesquisa de PORTOCARRERO. Se estes espaços nunca foram concretizados, servem para demostrar a extensa intenção de reordenação da assistência a alienados proposta por Juliano.57 Entretanto, o que aconteceu na realidade- o possível na reordenação proposta por Juliano Moreira, foi a inauguração da Colônia de Alienadas do 53 A seção Lombroso abrigava os criminosos no Hospício Nacional. Uma revolta de internos deste pavilhão, de grande repercussão na imprensa da época, vai forçar a inauguração do Manicômio Judiciário, em 1921, um dos dispositivos da moderna psiquiatria propagada por Juliano Moreira. 54 A partir de 1911 o Hospício passa a chamar-se Hospital Nacional de Alienados, nome que não “pegou”. A data é coincidente com a inauguração da Colônia de Alienadas do Engenho de Dentro, para onde foi levado o excesso das mulheres incuráveis, abrindo no Hospital o espaço da cura. 55 Juliano Moreira, Relatório de 1925 citado por ENGEL, 2001; 288. 56 Em referência a um texto de 1909 de Juliano Moreira. 57 Se o advento de drogas anticonvulsivantes cessou, nos dias de hoje, a solicitação deste espaço, o mesmo não ocorreu com o alcoolismo. Os centros de cura religiosos, hoje existentes, têm algumas características dos reformatórios propostos por Juliano Moreira. 49 Engenho de Dentro, em 1911, num terreno cedido pela Marinha, onde funcionava o antigo pavilhão dos beribéricos, no bairro do Engenho de Dentro, para abrigar as indigentes que superlotavam o Hospital Nacional de Alienados.58 As duas Colônias da Ilha do Governador seriam desativadas a partir de 1921 e, em 1923, era inaugurada, em substituição à de Barão de Mesquita e de São Bento, a Colônia Agrícola da Jacarepaguá, hoje Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira, antiga Colônia Juliano Moreira. Em 1921 é inaugurado o Manicômio Judiciário, no terreno da Casa de Correção do Rio de Janeiro, e Heitor Carrilho é seu primeiro diretor. A Colônia de Alienados (inicialmente, alienadas) do Engenho de Dentro, na gestão de seu primeiro diretor, Braule Pinto, tem apenas um papel complementar na reordenação da assistência, proposta por Juliano Moreira, de sua inauguração até 1918. O período de Gustavo Riedel (de 1918 a 1932) é marcado por fatos que vão reformular o papel da Colônia, dando a ela destaque na assistência psiquiátrica do período. Como uma listagem deste fatos para demonstrar a importância assumida pela Colônia em relação ao Hospício Nacional, temos: 1. Inauguração do Ambulatório psiquiátrico da América Latina, Rivadávia 59 Correa, primeiro ambulatório com um papel importante na profilaxia de doenças mentais, adotado pela Liga Brasileira de Higiene Mental a partir de l923. 2. A Escola de Enfermeiros Alfredo Pinto, que seria um marco na formação profissional e especialização em psiquiatria, primeira preocupação de Juliano Moreira quando assumiu o velho Hospício. Se ele tinha formado uma geração de alienistas, seus auxiliares continuavam sendo profissionais sem a formação necessária, que esta escola veio proporcionar. 58 SAMPAIO (1988) afirma que o pavilhão de beribéricos no Engenho de Dentro foi destinado “a abrigar as mulheres que sairiam da Colônia Conde de Mesquita, criada na Ilha do Governador, por Teixeira Brandão, e que se encontrava em desativação”(Pg. 297). Não encontramos em outros textos publicados este registro. No entanto, há referências de que o terreno do Engenho de Dentro, que era da Marinha, foi trocado pela União com um terreno no Andaraí, onde hoje funciona o Hospital do Andaraí. A Colônia de Barão de Mesquita era da Marinha. 59 É verdade que já existia um serviço de atendimento externo no Hospício Nacional, desde Teixeira Brandão, e que Juliano Moreira ampliaria este serviço na sua gestão. Mas a dimensão e papel do Ambulatório (a primeira utilização do nome) Rivadávia Correa faz Juliano Moreira sugerir que se criem serviços semelhantes, não só em Jacarepaguuá, mas nas policlínicas da cidade, nos dispensários, escolas, numa espécie de “liga de profilaxia e higiene mental". 50 3. Serviço Heterofamiliar, um dos dispositivos sonhados por Juliano Moreira. Composto de 15 casas construídas no entorno da Colônia, eram habitadas por funcionários que cuidariam de doentes postos sob sua guarda domiciliar.60 4. Instituto de Profilaxia Mental, primeiro órgão responsável pela divulgação da higiene mental, originará, em 1923, a Liga Brasileira de Higiene Mental que vai marcar na psiquiatria seu projeto de sair do espaço asilar para a psiquiatrização do espaço social. 5. A criação, em 1923, do Laboratório de Psicologia Experimental da Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro que, em 1932, se transforma no Instituto de Psicologia, uma extensão do curso de Psicologia e Psiquiatria da Universidade dentro de um dispositivo assistencial, trazendo o saber para junto da prática.61 Toda esta reordenação assistencial, acontecida na Colônia de Alienados do Engenho de Dentro, vai fazer este lugar ocupar um destaque especial na assistência psiquiátrica do Rio de Janeiro durante a gestão de Gustavo Riedel. Por um lado, dentro da própria organização assistencial, dois novos dispositivos alteram o quadro existente no velho Hospício: o Serviço Heterofamiliar e o Ambulatório Rivadávia Correa; por outro, a Escola de Enfermagem e os Institutos de Profilaxia e de Psicologia trazem a formação necessária ao saber que vai ter um papel importante na sociedade através da Liga Brasileira de Higiene Mental. E, se observamos com cuidado, estes dois propósitos eram a preocupação de Juliano Moreira para a reordenação da psiquiatria: a superlotação e a formação de pessoal, já citados anteriormente. 60 Este modelo inspira-se em experiências européias, que por sua vez são baseadas numa prática natural de uma aldeia belga, segundo AMARANTE (1982): “Desde o século VII, os loucos eram levados para Gheel, na Bélgica, em peregrinação até a Igreja de Santa Dimphne, na esperança de uma cura milagrosa. Os doentes que não ficavam bons até o final da novena eram, muitas vezes, deixados na casa de algum habitante do lugarejo até a próxima festa da padroeira. Assim a população foi criando o hábito de acolher alienados e até tratá-los como doentes” 61 Para o Laboratório de Psicologia, Riedel nomeia Waclaw Radecki, médico polonês radicado no Brasil, que se dedica ao estudo da Psicologia. O Instituto também é uma obsessão de Radecki. Porém, após sete meses de existência, é fechado pela ditadura Vargas e Radecki emigra para o Uruguai. A profissão de psicólogo só vai ser regulamentada em 1962. Conf. CASTRO, V. S. O. & JACÓ-VILELE, A. M., A Psicologia no Brasil: Waclaw Radecki in AMARANTE (2000). 51 O Serviço Heterofamiliar, composto de 15 casas no entorno da Colônia,62 foi um projeto de duração efêmera para a história,63 mas chegou a abrigar 10 doentes em assistência familiar e 8 em domicílio afiançado,64 e seguia as determinações de Juliano Moreira: “Anexo ao hospital-colônia, em seus limites, deve o Governo construir casinhas para alugar às famílias de bons enfermeiros, que poderão receber pacientes suscetíveis de serem tratados em domicílio: far-se-á assim assistência familiar. Se nas redondezas houver gente idônea a quem se possa confiar alguns doentes, poder-se-á ir estendendo essa assistência heterofamiliar e até se tentar a homofamiliar”.65 Não encontramos registro do término desta experiência. Entretanto, as fotos dos bangalôs- construções de esmero arquitetônico, que através dos tempos aparecem ainda como aspectos da memória desta época, apesar das reformas sofridas de forma desordenada, atestam que, pelo menos na intenção, o Serviço Heterofamiliar fez parte do projeto de Gustavo Riedel para remodelar a antiga Colônia de excedentes da Praia Vermelha ou da Ilha do Governador. Na prática, tanto este projeto, quanto todo o complexo do open-door, com a “ilusão da liberdade”, criou condições de trabalho para os internos e “parece ter funcionado efetiva e prioritariamente como um meio de submeter e controlar o contigente de internados provenientes, sobretudo, dos setores mais pobres da sociedade, ao mesmo tempo em que estes eram utilizados como mão de obra gratuita, contribuindo para a própria manutenção da instituição asilar” (ENGEL, 2001; 316). Seja como for, no momento em que o trabalho garantia, em si mesmo, uma aproximação da cura, a organização efetuada por Gustavo Riedel no Engenho de Dentro caminhava para o estabelecimento de uma “vida em comunidade”,66 mesmo que da comunidade dos excluídos. Vale notar que no sistema de open62 É importante notar que algumas das 15 casas deste Serviço ainda existem hoje, ocupadas por ex-servidores e seus descendentes. São oito casas na rua Bernardo, espaço externo do Instituto, em processo judicial para retomada pelo poder público e quatro construções internas, que estão sendo recuperadas, para o Programa de Moradias, assunto que será tratado mais adiante. 63 Não conhecemos documentos de sua desativação; parece um projeto que fracassou. 64 ENGEL (2001; 319) em nota de rodapé, sem especificar estas diferenças. 65 Juliano Moreira, Quais os melhores meios de assistência aos alienados, documento de 1910, citado por PORTOCARRERO (2002; 138), sugerindo que afiançado, diferente da hetero e homofamiliar, seria com pessoas idôneas, não servidores e não parentes. Não encontramos, no tempo que nos foi possível pesquisar, referências de quando acabou o programa e porque. Gostaríamos de registrar, para uma pesquisa posterior, que quando chegamos, em 1981, para trabalhar na Saúde Mental, o Centro Psiquiátrico Pedro II possuía uma categoria de habitantes diferente dos internos, tidos como pacientes: eram os Agregados. Estavam agregados ao Asilo, com estatuto de moradores, exercendo algumas atividades de servidores, sem remuneração. Seriam originários da assistência heterofamiliar que fracassou? 52 door preconizado por Juliano Moreira, os médicos residentes do hospital deviam contar com os serviços particulares de alguns internos, pois isto ajudava no estudo do casos que estavam sendo tratados.67 O outro dispositivo que mudou a assistência psiquiátrica, sob a responsabilidade de Gustavo Riedel, foi o Ambulatório Rivadávia Correa. Primeiro dispositivo que adotou uma terminologia ambulatorial, tinha na profilaxia o seu papel preponderante. Este dispositivo foi, de fato, o que possibilitou um controle ordenado da vida social. “As estratégias profiláticas de controle da doença mental difundidas, sobretudo, a partir dos anos 20 do século XX, sob a égide dos princípios eugênicos propalados pelos defensores de uma politica de higiene mental, serviriam para, de um lado, ampliar os mecanismos de identificação dos que deveriam ser imediatamente internados e de outro, estender os tentáculos do poder do psiquiatra para muito além dos limites do mundo asilar, tal como sonhavam os alienistas do século XIX” (ENGEL, 2001; 309). O ambulatório vai funcionar dentro dos preceitos da higiene mental e permite demarcar na comunidade os problemas a serem enfrentados. Gustavo Riedel, em um relatório apresentado a Juliano Moreira, em 1924, exaltava o potencial do dispositivo: “A observação do doente no próprio lar tem a vantagem de surpreendê-lo no meio familiar onde a anamnese pode ser mais completa e onde os conselhos distribuídos aos parentes calam mais profundamente e produzem melhores resultados” (MOREIRA APUD ENGEL, 2001; 306). O Ambulatório integrado à Colônia de Alienados do Engenho de Dentro permitia conciliar as estratégias de reclusão e prevenção, ambição antiga dos alienistas. Na Colônia o espaço fora “humanizado” pelos artifícios do open-door. Mas continuava um espaço recluso. O Ambulatório delimitava este espaço, captava os anormais e doentes necessários à reclusão, funcionando como uma 66 Além das fotos das residências heterofamiliares, no arquivo do Instituição podemos observar fotos do lago, dos corredores bem cuidados, dos espaços das alamedas, do refeitório, do prédio destinado a teatro e cinema (ver fotografias no anexo). 67 Aqui vale reproduzir uma história bastante interessante que nos foi contada por Lula Mello, hoje diretor do Museu de Imagens do Inconsciente e que foi, durante boa parte de sua vida, escudeiro de Nise da Silveira: quando a jovem doutora Nise fazia residência no Hospital Nacional, era sempre acompanhada por uma destas internas serviçais. Muito tímida e dócil, a paciente serviu a Nise durante todo o período de sua formação no Hospital Nacional. Na perseguição política, que ocorreu aos comunistas no Estado Novo, Nise foi presa, dentro do Hospital Nacional, por uma enfermeira ter denunciado que ela tinha livros “comunistas”. Após a prisão de Nise, a paciente entrou em estado de agitação psicomotora dirigida à enfermeira “dedo-duro”, que levou uma surra. Lula diz que ouviu a história da própria Nise. 53 porta de entrada de captação ativa, ao mesmo tempo em que possibilitava ao alienista sair detrás dos muros para um controle da doença e da anormalidade, lá onde ela nem mesmo se manifestara ainda. Estando já pronto o dispositivo, a teoria de convencimento da comunidade, ainda que apenas de sua elite formadora de opinião, foi anunciada e propagada pela Liga Brasileira de Higiene Mental. Fundada por Gustavo Riedel, em 1923, a Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM) “era uma entidade civil, reconhecida de utilidade pública, que funcionava como uma subvenção federal, com a ajuda benévola de filantropos e, posteriormente, em 1925, com a renda dos anúncios publicados na sua revista, Archivos Brasileiros de Hygiene Mental, surgida neste mesmo ano” (COSTA, 1981; 27/8). Se no início propagava o poder do dispositivo assistencial, a partir de 1926 passa a dedicar-se à educação, à eugenia, ao controle da qualidade e aprimoramento da raça, para evitar ao degenerado e anormal o direito de nascer. O objetivo dos cuidados dos psiquiatras passou a ser os cidadãos normais e não os doentes (COSTA, 1981; 28). Mas antes é necessário buscar no seu começo, na Teoria das Degenerescências, passos que possibilitaram a passagem da higiene a uma concepção eugênica. Curiosamente, se essa Teoria aproximou a medicina mental da clínica médica através de um substrato anátomo-patológico, bem a gosto dos alienistas em paz com a ciência física, as suas ações na ordem da cura estabeleciam íntimas relações com procedimentos morais, tendo na educação o método privilegiado. Havia, de fato, uma preocupação que, através da educação, a criança fosse protegida contra a patologia que o meio social pudesse exercer em sua saúde mental, assim como ao degenerado tentava-se reeducar pela terapia moral. Juliano Moreira responsabilizava a má educação em uma sociedade civilizada, tanto por distúrbios psíquicos, como por formação de uma “raça de degenerados”. Preocupavam-lhe, sobremaneira, os imigrantes europeus que “infestavam” o país: “O Brasil está destinado, como país de imigração a ser o rebotalho movediço (...) seremos o refúgio dos piores imigrantes”.68 Henrique 68 Juliano Moreira apud PORTOCARRERO (2002; 75). 54 Roxo, também alienista famoso, em um artigo de 190469 explicita estas idéias racistas e enfatiza a poderosa ação do meio no aprimoramento racial: “Não é a constituição física do preto, a sua cor escura que lhe marcam o ferrete da inferioridade. É a evolução que não se deu. Ficaram retardatários. Ao passo que os brancos iam transmitindo um cérebro em que as dobras de passagem mais se aprimoravam, em que os neurônios tinham uma atividade mais apurada, os negros que indolentemente se furtaram à emigração, em que a concorrência psíquica era nula, levam a seus dependentes um cérebro pouco afeito ao trabalho, um órgão que de grandes esforços não era capaz. “Suponhamos... que um negro com esta má tara hereditária se transportasse para um centro adiantado e que com sua congênere viesse a ter descendência. Imaginemos... que esta fosse pouco a pouco progredindo e que de pai a filho se fosse legando cada vez mais um cérebro exercitado, ativo. Dentro de um certo número de descendentes chegaria, finalmente, um cérebro tão evoluído quanto de um branco. Seria tão inteligente quanto este”. (grifos nossos) Sílvio Romero, o mesmo que “degenerou” seu cunhado para que ele escapasse da prisão, na sua História da Literatura Brasileira (ROMERO APUD ENGEL, 2001; 173), publicada em 1888, discursando sobre as diferenças étnicas e a lei do predomínio do mais apto, acreditava que o elemento branco era superior, e previa um “embranquecimento” da população brasileira em “três ou quatro séculos”. Embora este racismo dos alienistas possa ser atenuado pela cura nas ações do meio, traz aqui embutida uma idéia de superioridade cultural, que não passa de um preconceito racista para com as culturas dominadas. Estes são fatos do início do século XX, muito antes da constituição da LBHM. Ainda em São Paulo, em 1917, Renato Kehl funda a Sociedade Eugênica de São Paulo (ENGEL, 2001 E PORTOCARRERO, 2002) que, embora de existência efêmera, prega a doutrina de Sir Francis Galton de forma aberta: a eugenia como produto da ciência no aprimoramento racial. A LBHM vai ser a voz oficial e científica deste caldo de cultura onde proliferava a pura eugenia, ainda disfarçada de Higiene Mental. Costa, em seu estudo sobre a LBHM, buscando o momento do aparecimento da eugenia no Brasil, infere que “A intelectualidade brasileira enfrentava, na época, graves problemas ideológicos que a eugenia ajudou a solucionar. O regime republicano 69 Henrique Roxo, Perturbações mentais nos negros do Brasil, apud ENGEL (2001; 174). 55 atravessava, nas duas primeiras décadas do século XX, um período de convulsões. A abolição da escravatura; a imigração européia; a migração de camponeses e antigos escravos para as cidades; enfim, os efeitos econômicos da industrialização nascente agravaram as tensões sociais e colocavam em questão o próprio regime, cuja legitimidade a elite dirigente procurava justificar por todos os meios” (COSTA, 1981; 31). Numa primeira etapa a LBHM dedicou-se, com Gustavo Riedel, à higiene psíquica individual. Dentro do modelo alemão de Kraepelin, a higiene individual fazia parte do contexto da psiquiatria da época. O organicismo estava implantado na psiquiatria de então e, neste princípio, o “aconselhamento genético”, a profilaxia de “taras” e a “degenerescência” estavam no campo da higiene mental, no que o Ambulatório Rivadávia Correa agia com distinção, já nos bairros vizinhos do Engenho de Dentro. A hereditariedade era a causa, para a psiquiatria da época, da epilepsia, da esquizofrenia, da imbecilidade e da paralisia geral progressiva. O que caracterizava este primeiro momento da Liga era uma terapêutica empregada na prevenção da doença mental. Mas, aos poucos, ela se afasta deste campo restrito da função psiquiátrica para propagar sobre o coletivo social as suas idéias e procedimentos ideológicos. Vejamos em dois textos da época, citados por Costa, como as ações médicas saem do indivíduo para o coletivo, do singular ao plural: “...os espartanos, como geralmente é sabido, chegaram ao extremo de arremessar ao Eurotas os meninos nascidos defeituosos. D’esta mesma idéa simplista de preservar a raça, afastando os anormaes da possibilidade de reproducção, proveio por certo uma forma moderna que prescreve esterilizar alienados delinquentes, degenerados alcoolicos inveterados, quer como penalidade, quer como prophylactico. Para obter a esterilização basta no homem ressecar um centímetro do cordão espermático, de cada lado. (...) O alvitre, exellente ‘a priori’, tem o inconveniente de attingir apenas os casos mais graves”. (Juliano Moreira) Ernani Lopes, que vai substituir Gustavo Riedel na direção da Colônia dos Alienados do Engenho de Dentro, no artigo “Menores Incorrigíveis”, propondo medidas profiláticas nestes casos: “a) combate ao alcoolismo e a syphilis dos procreadores; b) evitação das uniões de indivíduos tarados; c) segregação e esterilização dos degenerados, de accordo com o parecer de comissões technicas”. Embora ainda no campo médico, as ações não são propostas no caso em estudo, mas no atacado. No coletivo. Logo estas ações saem do campo 56 médico para assumir seu viés ideológico. O mesmo Ernani Lopes, em 1933, em outro artigo, “pede então que sejam criados no Brasil tribunais de eugenia, a reforma eugênica dos salários e o seguro de paternidade eugênica, três instrumentos jurídicos-institucionais criados por Hitler, a fim de aperfeiçoar a ‘raça’ alemã” (COSTA, 1981; 48). Em 1934, a LBHM publica nos seus Archivos uma solicitação ao Chefe de Polícia do Distrito Federal, Sr. Major Filinto Müller, para que seja intensificada a fiscalização nos botequins, propondo horário de funcionamento e solicitando uma listagem, “tão pormenorizada quanto possível, de todos os ébrios contumazes de que tenham conhecimento, fornecendo-a, em caráter confidencial, a esta Instituição, que se propõe a dar os passos necessários para submeter o paciente ao cuidado de nossos serviços...” (ARCHIRVOS APUD COSTA, 1981; 66). Costa identifica na LBHM as seguintes características: antiliberalismo, moralismo, racismo e xenofobia. Cita ainda, como figuras expressivas da psiquiatria da época que não participaram deste pensamento: Odilon Galotti, no Rio, James Ferraz Alvim, em São Paulo e Ulisses Pernambucano, em Recife. Curiosamente, as idéias eugenistas de aprimoramento da raça, que pregavam, no início, a miscigenação para uma evolução dos brasileiros, após a Revolução de 30 desaparecem com a ideologia nazista que contamina o aparelho de Estado. No 3º Congresso Brasileiro de Neurologia, Psiquiatria e Medicina-Legal, o psiquiatra Xavier Oliveira propunha artigos a serem implantados na legislação brasileira como “votos de profilaxia defensiva”: “que só seja permitida a entrada no país de imigrantes da raça branca”; e “que seja expressamente proibida para efeito de residência além de seis meses, a entrada no país de quaisquer elementos das raças negras e amarelas” (COSTA, 1981; 86). Juliano Moreira, um mulato baiano, não está mais à frente da política das doenças mentais. Continua na academia como um eminente professor, respeitado por todos... Morre aos 60 anos, em 1933. A Colônia de Alienados do Engenho de Dentro, aberta em 1911 com a transferência de mulheres para o antigo pavilhão de beribéricos da Marinha, como 57 já foi referido, é ampliada com a construção de um pavilhão para 200 internas em 1912. Em 1918, na gestão Gustavo Riedel é inaugurado o Ambulatório Rivadávia Correa. A Assistência Heterofamiliar é implantada em 1921, ano em que também é inaugurada a Escola Profissional de Enfermeiras Alfredo Pinto. Em 1932 Ernani Lopes substitui Gustavo Riedel na direção da Colônia. Em 1937, com a morte de Riedel, a Colônia ganha o seu nome, por pouco tempo. Em 1938, quando Adauto Botelho assume a direção da Assistência aos Alienados, propõe a criação do Serviço Nacional de Doenças Mentais (SNDM) e a transformação da Colônia Gustavo Riedel em Centro Psiquiátrico Nacional. Desde 1938 era idéia de Adauto Botelho transferir o Hospício Nacional de Alienados para o Engenho de Dentro. No período da Higiene Mental, o complexo de serviços da Colônia estava em franca ascensão, como foi referido acima. Além do Hospício Nacional já não ser tão importante, a Urca, já um bairro residencial ocupado pela classe média, reclamava da vizinhança da loucura. Em 1943 esta passagem é definitiva. O Centro Psiquiátrico Nacional é formalizado como substituto do Hospício Nacional de Alienados. Fica, na praia Vermelha, antiga praia da Saudade, O Pavilhão de Observação e Diagnóstico, que passou a se chamar Instituto de Psicopatologia, onde é hoje o Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro e o Instituto de Neuro-Sífilis, hoje o Instituto Municipal Philippe Pinel. O Centro Psiquiátrico Nacional foi constituído, principalmente na década de 40, por um complexo hospitalar: o Hospital Gustavo Riedel, primeira ampliação em homenagem ao grande empreendedor que, por breve tempo, foi nome da antiga Colônia; o Hospital de Neuro-Psiquiatria Infantil, inaugurado em 10 de outubro de 1942, absorvendo os menores que estavam internados no Hospício Nacional e em Jacarepaguá;70 o Hospital Pedro II, inaugurado em 1943, para receber todo o Hospício Nacional de Alienados, definitivamente fazendo com que o complexo do Engenho de Dentro substituísse de fato o antigo Hospício da Praia da Saudade, hoje Centro Comunitário que substituiu a denominação de Odilon Galotti; o Instituto de Psiquiatria, construído para receber pacientes 70 Só em 1974, com o fechamento do pavilhão de adolescentes de Jacarepaguá, passa a ser chamado Hospital de Neuro-Psiquiatria Infanto-Juvenil (SAMPAIO, 1982). Na década de quarenta sua clientela era, basicamente, de crianças oligofrênicas. 58 previdenciários, passou a se chamar Adauto Botelho, hoje Casa do Sol. O antigo prédio da Praia Vermelha foi entregue à Universidade do Brasil, juntamente com o Instituto de Psicopatologia. O Instituto de Neuro-Sífilis, embora tendo continuado na Praia Vermelha, era subordinado ao Centro Psiquiátrico Nacional. Dois outros acontecimentos neste fim de período são necessários destacar. O antigo pavilhão Braule Pinto, onde eram internadas as intercorrências clínicas da Colônia, principalmente os doentes infecto-contagiosos, é substituído, em 1948, pelo Bloco Médico Cirúrgico, monumental hospital de oito pavimentos, onde também passou a funcionar a administração do Centro Psiquiátrico. Destinava-se à internação clínica, cirúrgica e obstétrica dos pacientes psiquiátricos de todos os estabelecimentos do Estado do Rio de Janeiro. Havia uma recomendação técnica para que os doentes mentais não fossem aceitos nos hospitais gerais que não tivessem locais preparados para eles (MEDEIROS, 1977).71 O segundo fato é que em 1944, começa a funcionar o Setor de Terapia Ocupacional e Reabilitação (STOR), comandado por Nise da Silveira, que vai inaugurar em 1952 o Museu de Imagens do Inconsciente (MII) e se tornar, posteriormente, uma unidade independente do Centro Psiquiátrico. Até a Revolução de 30, Juliano Moreira, como diretor da Assistência aos Psicopatas, mesmo de atuação local no Rio de Janeiro, inspirou a criação de grandes manicômios no Brasil. “A ele muito devemos do que existe científica e praticamente realizado na assistência aos psicopatas da Capital e de toda a República” (CUNHA LOPES APUD MEDEIROS, 1977). Após a Revolução de 30, o Governo Provisório tira a Assistência aos Psicopatas do Ministério da Justiça e a agrega ao recém criado Ministério da Educação e Saúde Pública, mesmo período em que Juliano Moreira deixa o cargo público. Mas sua influência se faria sentir em 1938, quando seu discípulo, Adauto Botelho, assume o novo Serviço Nacional de Doentes Mentais, em substituição à antiga Assistência aos Alienados. É deste momento em diante que o Centro Psiquiátrico Nacional passa a assumir o lugar de destaque em substituição ao antigo Hospício Nacional de Alienados, por sua vez sucessor do Hospício de Pedro II. 71 Como veremos adiante, hoje a proposta é radicalmente contrária. 59 Esta metamorfose, que traz toda a história da psiquiatria no Brasil para dentro dos altos muros da Colônia de Engenho de Dentro, um longínquo bairro do subúrbio do Rio de Janeiro, tem conseqüências no simbólico e no destino desta Instituição. O pavilhão das crianças, hoje desativado, com corredores labirínticos e infindáveis, janelas e passagens de ar tão altas, inacessíveis a seu habitantes, grita alto para os que não forem surdos refletirem na experiência do passado para um destino melhor. Da arquitetura de suas construções é possível ouvir Teixeira Brandão reclamando um mandato científico para o Hospício de Pedro II; Juliano Moreira construindo a moderna psiquiatria no Brasil; Gustavo Riedel expandindo a psiquiatria do Engenho de Dentro para a comunidade; os higienistas da Liga Brasileira de Higiene Mental propondo a esterilização daquela gente que lá dentro anda como que, buscando escutar o passado, fosse possível entender o seu presente... 60 Capítulo 4: Perde-se o passado, fica-se sem o futuro: a psiquiatria, envergonhada, foi privatizada pelos mercadores de infortúnios... Depois da Segunda Guerra, a vitória das forças aliadas diminuiu o ímpeto da ciência organicista na psiquiatria, em todo o mundo. A migração de pensadores dos países europeus, que saíram do nazismo derrotado, ligados a correntes psicológicas, entre elas a psicanálise,72 para os países da América do Sul, trouxe para o Brasil ares novos no campo da psiquiatria, anteriormente dominada pelo organcismo alemão. Entanto, no período da guerra fria, que se estende pós Segunda Guerra até a queda do muro de Berlim, o mundo vai estar dividido entre as ideologias de esquerda e direita que marcaram esta época. Se os saberes psicológicos ficaram restritos à academia ou sociedades acadêmicas, os hospícios ficaram dormindo nos braços do saber organicista anterior, também ele desacordado. 72 “No Rio de Janeiro, a instalação do movimento foi gravemente perturbada pelo conflito entre Mark Burke [judeu polonês, radicado na Inglaterra, mandado por Ernest Jones para o desenvolvimento da psicanálise no Brasil] e Werner Kemper [ psicanalista alemão, defensor de teses eugênicas, reabilitado por Erneste Jones e também mandado ao Brasil], ex-colaborador de Matthias Heinrich Göring e mandatário de Ernest Jones para desenvolver a psicanálise no Brasil. Em 1953, Kemper fundou a Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), reconhecida pela IPA em 1955. Quanto aos partidários de Burke, depois de violentos confrontos, associaram-se aos seus colegas formados na Argentina para criar um outro grupo em 1959: a Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ). (...) A partir de 1973, o caso Kemper perturbou de novo as duas sociedades psicanalistas do Rio de Janeiro. Antes de sua partida para a Alemanha em 1967, o excolaborador de Göring analisara um dos didatas mais ativos da SPRJ, Leão Cabernite. Tornando-se presidente de sua sociedade e ligado de perto ao poder militar, este teve depois, como aluno em formação, de 1971 a 1974, um médico-tenente da polícia militar, Amílcar Lobo Moreira da Silva (1939-1997), torturador a serviço da ditadura” (ROUDINESCO & PLON, 1998; 88-90). Segundo os mesmos autores, Juliano Moreira teve contato com a psicanálise: “Foi o primeiro, no seu país, a dar às idéias freudianas um lugar importante, primeiro na Bahia e depois no Rio de Janeiro, onde dirigiu o hospital nacional de alienados. Foi também um reformador dos asilos. Humanizou os métodos de tratamento dos doentes mentais, principalmente suprimindo os instrumentos clássicos de confinamento. Não praticou pessoalmente a psicanálise, mas criou, em 1928, no Rio de Janeiro, a primeira filial da Sociedade Brasileira de Psicanálise, fundada no ano anterior por Durval Marcondes, em São Paulo” (Pg. 523). 61 É um período de profunda separação entre a academia, as sociedades acadêmicas e os serviços de psiquiatria. Se na primeira há uma batalha entre as teorias psicológicas que chegavam e o velho organicismo, remoçado pela descoberta dos neurolépticos na década de 50, nos hospitais nada se ouvia, a não ser ecos dos áureos anos do alienismo do passado. A camisa de força, o quarto forte, que tinham diminuído na reforma de Juliano Moreira, voltaram de forma mais intensa. O eletrochoque era a terapia de eleição. "No Brasil, tanto o instrumento psicoterapia como a atitude pscoterápica se revelam como possibilidade permanentemente abortadas, nas tentativas de adquirir cidadania dentro do hospital psiquiátrico. Designa-se o instrumento como mais adequado à prática ambulatorial, entanto no hospital as experiências correrão por conta de voluntarismos, voltados para grupos. A categoria médica, de maior estatuto social continua ligada exclusivamente ao modelo biológico. Os psicólogos, que buscam se assenhorar do instrumento, não conseguem impô-lo pois sequer conseguem se impor aos médicos. Os médicos que se apropriam da psicanálise, através do recurso da reserva de mercado, preferem usar o instrumento de tão alto custo formacional onde ele mais renda, isto é, junto à clientela privada de consultório. As experiências com grupos, de maior sucesso terapêutico, serão relatadas por psicodramicistas, mas como circunscritos voluntarismos" (SAMPAIO, 1982; 41). Como foi dito por PORTOCARRERO anteriormente, comentando a arqueologia de FOUCAULT, optamos por não dividir este ou qualquer outro momento deste trabalho em períodos definidos por origens bem demarcadas. Falamos de começos, no plural, para nos colocarmos dentro de um período, e de outros começos, para sairmos do período em estudo. Os começos deste período têm causas em diferentes fatos históricos: o papel importante desempenhado pela Colônia de Alienados do Engenho de Dentro na fase áurea da higiene mental; o declínio da importância do Hospital Nacional de Alienados e sua absorção pela Colônia; a separação entre o saber e prática, com o retorno das atividades de ensino da Colônia para o lugar do antigo Hospital Nacional; a vitória dos aliados na Segunda Grande Guerra e o declínio do fascismo e, como conseqüência, a diminuição do ímpeto organicista das teorias psiquiátricas dominantes; o desenvolvimento, no Brasil, das teorias psicológicas, entre elas, a psicanálise; o fosso que aconteceu entre a academia e 62 o Centro Psiquiátrico Nacional; os movimentos de reforma acontecidos nos Estados Unidos e na Europa (Inglaterra, França e Itália). Para o esmaecimento deste período teremos a crise do modelo privado da assistência; a reformulação da assistência, decorrência inevitável da crise do modelo; a redemocratização do país na década de 1980; o retorno da academia para interferir no modelo assistencial. Em resumo, os começos do próximo período. Um fato intrigante marca o nascimento do Centro Psiquiátrico Nacional como substituto do modelo do Hospício Nacional de Alienados73 na década de 1940. A sua independência e organização como o centro da psiquiatria brasileira coincide com o declínio das teorias assistenciais, baseadas nos modelos relatados no capítulo anterior. É como se a prática de uma “psiquiatria envergonhada”, tendo perdido seu passado, não soubesse construir um futuro. “A partir dos anos 50, algo acontece de novo na assistência psiquiátrica brasileira. O hospital como lugar assistencial privilegiado se reforça mas o predomínio do setor público desaparece, a psicofarmacologia é incorporada e alguns discursos psicoterápicos tentam penetrar na instituição. A queda da hegemonia do setor público se fará sentir no número de estabelecimentos, no número global de leitos, na possibilidade de conferir prestígio, no ritmo de incorporações dos procedimentos terapêuticos mais avançados de cada época, na competência normalizadora e fiscalizadora. A discriminação classista de serviços dentro de uma mesma unidade cede lugar à discriminação classista das unidades: privada liberal para as classes altas; privada concessionária do setor público para as classes médias e os trabalhadores urbanos, pública para os trabalhadores rurais e sobrantes de todo o gênero” (SAMPAIO, 1982; 85). A privatização do sistema psiquiátrico foi uma característica do período. Se tomarmos, como um simples exemplo, a Casa de Saúde Dr. Eiras, temos que da sua inauguração no Império, em 1860, seus 40 leitos cresceram para 143 em 1943, ano da transferência do Hospício Nacional para o Centro Psiquiátrico Nacional; em 1976 possuía 1300 leitos, além dos 3000 leitos de sua filial, no município de Paracambi, inaugurada em 1964 (SAMPAIO, 1982; 86). E esta ampliação é feita com dinheiro público ou de fundos previdenciários. 73 Apesar de ser renomeado como Hospital Nacional, ficou conhecido como Hospício até sua extinção. Conf. PORTOCARRERO (2002) E ENGEL(2001). 63 O modelo psiquiátrico de assistência privada existia desde o Império. Porém, o papel desempenhado pelo setor público, como centro do saber, de controle e fiscalização, sempre foi dominante.74 O que vai caracterizar a privatização deste período é a inversão do modelo, como aponta Sampaio na citação anterior. E é o Estado que vai desencadear este processo. Em 1964, após um golpe militar, o Brasil entra nos chamados “anos de chumbo” da ditadura, que dura mais de vinte anos. Em l968 o Ministério da Saúde propõe um Plano Nacional de Saúde, de nítido caráter privativista. Era Ministro da Saúde Leonel Miranda, curiosamente um dos proprietários da Casa de Saúde Dr. Eiras. Este Plano Nacional possibilita a privatização de todo setor saúde a partir da década de 1960, após o golpe: “A ‘privatização da Medicina”, processo que se acelera a partir de 1967, encontra suas bases materiais no setor privado hospitalar, ‘lucrativo’ e ‘não-lucrativo’ cujo número de estabelecimentos superava o setor oficial em 1956, sendo de 82,2% e 17,8% respectivamente. A capacidade instalada aumenta, principalmente, às custas do setor privado lucrativo, que em 1960 participava com 14,4% do total de leitos e em 1971 já era de 44,0%. A opção política encontrou como justificativa ‘racional’, a existência de um setor médico-hospitalar privado que em 1967 detinha 2.766 estabelecimentos hospitalares, aliada a expansão da demanda gerada pela incorporação de grandes contigentes de assalariados urbanos ao sistema previdenciário” (CORDEIRO, 1980; 162). O que se assiste neste período é a privatização do setor saúde levando no bojo a assistência psiquiátrica. Em 1967 há a unificação dos vários Institutos de Aposentadorias e Pensões no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Dez anos depois, 90% dos recursos previdenciários destinados à assistência médica eram aplicados na compra de serviços, denunciando a hipertrofia da privatização da saúde no Brasil. Neste modelo, a participação da psiquiatria é decisiva para primeiro, impulsionar, de forma rápida, dada a ausência de equipamento tecnológico, a privatização do sistema e, num segundo momento, interferir, de forma drástica, no esgotamento do modelo. Vários estudos75 demonstram que a privatização da assistência psiquiátrica se deu de forma impetuosa neste período, dentro do 74 Teixeira Brandão e outros alienistas do Império e da Primeira República eram sócios de Casas de Saúde (conf. ENGEL,2001), mas o seu papel público era de importância principal. 75 SAMPAIO (1982), DELGADO (1983), CERQUEIRA (1984), MACEDO (1982), entre outros. 64 quadro de desemprego e da política pública de benefícios. Parcela da crise social foi contornada pela ditadura com o internamento psiquiátrico. Nesta época, a internação psiquiátrica assume a segunda causa diagnóstica de internação no Brasil, contribuindo de forma decisiva na crise do modelo, no início da década de 1980. Outra característica do período é o atendimento ambulatorial. Dado o grande crescimento populacional e a grave crise social e política que se atravessava, não é possível o internamento solucionar a questão. No plano ideológico, o crescimento ambulatorial aparece como um cruzamento da Psiquiatria Comunitária Americana - que promoveu uma grande desospitalização de graves conseqüências naquele país, com os antigos preceitos da Liga Brasileira de Higiene Mental. Mas, se no plano ideológico, a ambulatorialização estava justificada para diminuir a internação que corroía o recurso público da saúde, na prática só conseguiu ativar mais ainda aquele dispositivo. Sampaio apresenta um gráfico na sua pesquisa, mostrando que de 1951 a 1981 as consultas ambulatoriais em psiquiatria foram aumentadas em 80% no Brasil. Como então os recursos em internamento eram aumentados no mesmo momento em que o ambulatório também crescia? O atendimento ambulatorial inadequado e apressado, mantendo uma longa fila de espera e com uma quantidade de oferta sempre inferior à procura alimentava o dispositivo do internamento.76 E enquanto o modelo privativista estava em desenvolvimento, o serviço público era sucateado e desativado. No nascimento da filial da Casa de Saúde Dr. Eiras, em Paracambi, os recursos para sua construção foram públicos e seus primeiros pacientes transferidos da Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, para aquele município.77 Estava descoberta a galinha dos ovos de ouro. Recursos e pacientes públicos transferidos ao setor privado. A indústria da loucura alimentava seu moinho com as camadas excluídas pelo modelo econômico. E quanto menor a participação pública, maior o crescimento do setor privado. Além 76 Ainda hoje a situação é muito parecida, apesar de inúmeros planos de reorientação da assistência ambulatorial, com será visto adiante. 77 Depoimento de Paulo Mariz, na época diretor da Divisão Nacional de Saúde Mental, ao autor, na década de 1980. A forma de manutenção do empreendimento foi estudada por DELGADO (1983): a desativação de uma indústria na região produziu o contigente de pacientes internados em Paracambí. 65 da psiquiatria estar envergonhada, estava sendo vendida aos mercadores de infortúnio. E no Engenho de Dentro, como vivia a parcela mais desvalida dos excluídos amordaçados pela prática de uma psiquiatria envergonhada da sua teoria? Pior sem ela. O sucateamento do setor público, a diminuição dos insumos e de pessoal qualificado e a deteorização das suas imponentes edificações trouxeram de volta o isolamento, o castigo, métodos coercitivos, sem sequer o objetivo do tratamento moral anterior. Enfermarias apinhadas de mortos-vivos, com espaço mínimo de circulação, denunciando verdadeiros quartos-fortes coletivos; pátios e alamedas vazios, tendo sido abolida, inclusive, a “ilusão de liberdade”; a quantidade de portas que se fechavam umas sobre outras, só possibilitando a circulação dos carcereiros que possuíam as chaves; a terapêutica reduzida aos choques elétricos e ao uso de dispositivos coercitivos e repressivos.78 O desenvolvimento dos neurolépticos, na década de 50, e dos ansiolíticos e antidepressivos a partir dos anos 60, vai possibilitar, no início da década de 70,a substituição do arsenal biológico anterior (os antigos choques por cardiazol, insulina e eletricidade, as cirurgias de lobotomias). Mas, para os hospícios no Brasil, esta nova tecnologia trouxe dois agravantes. O uso deliberado dos efeitos colaterais como castigo, no uso de uma verdadeira camisa de força química que, ao invés de produzir a reintegração, cronificava o doente no hospício, agora "doente do remédio". Por outro lado, a medicação disponível é aquela que o poder público compra na imposição feita pela indústria farmacêutica.79 Enquanto a psiquiatria era privatizada, o Centro Psiquiátrico Nacional, através de um decreto do Marechal Humberto Castelo Branco, em 1965, muda de nome. Passa a chamar-se Centro Psiquiátrico Pedro II (CPPII), como se a 78 Na década de sessenta assiste-se a um caso de extração de todos os dentes de um paciente masculino, descendente indígena, com dentes perfeitos, por ele ter a “mania” de morder outros pacientes e os enfermeiros. A “prescrição” foi feita por seu médico assistente (relato de antigo funcionário ao autor). 79 Para os hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro (Centro Psiquiátrico Pedro II, Hospital Pinel e Colônia Juliano Moreira), no início da década de 70, através de uma licitação centralizada em Brasília, o Ministério da Saúde adquiriu uma quantidade infindável de Clorpromazina em gotas, medicamento de uso infantil, que teve de ser usada nos adultos para que o estoque acabasse antes de vencer o prazo de validade. Nos ambulatórios, por exemplo, um paciente levava mais de trinta frascos, pois teria que tomar um por dia. Depoimento de Paulo Mariz, diretor da Divisão de Saúde Mental do Ministério da Saúde, na época, feito ao autor. 66 intenção fosse voltar toda a sua história a um século antes, de onde nunca deveria ter saído: o Hospício de Pedro II, agora sem sua estratificação original. Os doentes de primeira classe estavam nos consultórios e clínicas privadas. Os de classe média e as classes trabalhadoras nos hospitais conveniados pelos Ministérios da Saúde e da Previdência. Ao Hospício, ou Centro Psiquiátrico de Pedro II, eram destinados os indigentes (os excluídos dos excluídos). Parecia que os mesmos desatinados que habitavam as ruas do Rio de Janeiro no Império foram recolhidos pela ditadura militar para o Pedro II, como o hospício agora era novamente chamado... Mas, neste período de sombras, duas experiências marginais ousaram tirar a mordaça de dentro dos muros do hospício. E os nomes de seus representantes, amaldiçoados e perseguidos naqueles tempos, saltam para a história, como tende a acontecer com quem escreve linhas que mudam o destino: Nise da Silveira e Oswaldo Santos. Aqui só iremos tocar em detalhes mínimos dos trabalhos dos dois, para efeito do nosso objetivo. Cada experiência merece uma pesquisa detalhada.80 Nise da Silveira, médica alagoana, fez sua formação psiquiátrica no Hospício Nacional, onde foi presa, pela ditadura Vargas, dividindo uma cela com Olga Benário Prestes. Reintegrada ao serviço público na década de 40 do século XX, vai trabalhar no Centro Psiquiátrico Nacional. Recusando os métodos coercitivos da época, funda, em 1944, o Setor de Terapêutica Ocupacional e, em 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente, acervo de imagens de trabalhos plásticos de esquizofrênicos, reconhecidos mundialmente a partir de seu encontro com Carl Jung. Monta um grupo de estudos, que funciona às terças-feira, durante décadas, formando gerações de adeptos das teorias junguianas. O trabalho marginal é reconhecido numa primeira fase, em 1961, quando, por interferência da Presidente Jânio Quadros, o Setor de Terapia Ocupacional e Reabilitação (STOR) é regulamentado como uma unidade independente do Centro Psiquiátrico Nacional. Antes desta data e após o golpe militar de 64 o trabalho de Nise acontecia sem o reconhecimento da psiquiatria oficial. Após a redemocratização 80 Sobre Nise ela mesma fala até agora na sua obra. Sobre Oswaldo Santos conf. TEIXEIRA (1993). 67 do país, no final dos anos 80, Nise, apesar de aposentada compulsoriamente,81 no período dos anos de chumbo, retoma o seu trabalho e colhe os louros do seu reconhecimento internacional. A experiência de Nise sobrepõe-se à história do próprio Centro Psiquiátrico Pedro II. A quantidade de exposições que o Museu de Imagens do Inconsciente (MII) fez no Brasil e no exterior basta para elevar o nome de Nise na psiquiatria brasileira.82 A mostra permanente, o estoque de 350 mil obras, os audiovisuais e filmes, culminando com a trilogia de Leon Hischman, cineasta consagrado, sobre três pacientes do MII, estão à disposição, mostrando permanentemente o trabalho desta guerreira, ou psiquiatra rebelde, como se nomeava. Nise recheou a história da psiquiatria com obras de arte, que falam de um modo todo especial do seu trabalho que, de resistência, se apresenta como uma nova possibilidade da psiquiatria se relacionar com a loucura, quando tudo estava escuro.83 Oswaldo Santos não teve a mesma sorte. Seu trabalho foi efêmero, mas não menos importante. Os pacientes que por lá passaram trazem marcada na pele a experiência de liberdade ali vivida. Seu trabalho dura de 1968 a 1975. O esboço deste trabalho começa antes, em 1962, quando os psiquiatras Oswaldo Santos e Wilson Simplício assumem a supervisão e direção de uma enfermaria masculina na seção Olavo Rocha do Hospital Odilon Galloti, no Centro Psiquiátrico Nacional.84 Influenciados por uma formação psicanalista e marxista, começam por tentar escutar um grupo de alcoólatras, indigentes internados no hospital público. Logo os esquizofrênicos solicitam estas “conversas”. Começam com grupos operativos. Em 1967, o trabalho é apresentado em Porto Alegre, no VII Congresso Brasileiro de Neurologia Psiquiatria e Higiene Mental e Marcelo Blaya, importante psicanalista gaúcho, nomeia a experiência como sendo uma 81 Luis Carlos Mello, colaborador de Nise, conta que no dia seguinte a sua aposentadoria compulsória, por idade, Nise retorna , munida de lápis e caderno, dizendo ser estagiária voluntária do Museu. E continuou assim sua resistência. 82 O módulo "Loucura" da Mostra Brasil 500 anos é composta, na sua maior parte, dos trabalhos de Nise com seus pacientes. 83 Em conversa com Nise, nomeamos seu trabalho como “alternativo”. Nise, na veemência que lhe era característica disse que não fez nada “alternativo”, mas “outra coisa”. Foi quando percebemos que “alternativo” permite a presença da psiquiatria tradicional, que Nise abominava. 84 As informações seguintes são tiradas de TEIXEIRA (1993), DUARTE, & FERNANDES, & RODRIGUES (2000). Neste último trabalho, as autoras tentam diferenciar a experiência de Oswaldo Santos da comunidade terapêutica clássica inspirada em Maxell-Jones. Na experiência clássica seria uma “humanização disciplinadora”, crítica que Basaglia fez (ver capítulo I deste trabalho), enquanto a experiência de Santos seria uma resistência sitiada. 68 comunidade terapêutica. É com este nome que ela passa a ser conhecida a partir de 1968. Nos parece que é muito mais que isto. Mais se pareceria com a Psiquiatria Institucional85 de Tosquelles. Vejamos como o próprio Oswaldo definia a sua Comunidade Terapêutica: “O conceito de comunidade terapêutica é liberdade e igualdade entre equipe e paciente, então não há mais essa relação médico-paciente. Há uma relação em que o ato terapêutico se dá. E isso é uma afronta ao regime totalitário, aonde o poder é centrado na mão do militar ou, no caso da Medicina, no médico, era uma revolução dentro de um país em ditadura(...)”(apud DUARTE & FERNANDES & RODRIGUES, 2000). Ora, antes da nomeação, desde o golpe de 64, o trabalho é visitado por estudantes, intelectuais, para saber o ali estava ocorrendo. O que se vivia era uma experiência democrática com loucos e excluídos, enquanto os sãos e inclusos na sociedade viviam uma ditadura. Por bater de frente com o regime autoritário, o trabalho seria abortado prematuramente. Mas, antes, vejamos o que diz um intelectual internado na comunidade terapêutica: “hoje, agora estou fazendo tempo enquanto os remédios que tomei fazem efeito e vou dormir. Este sanatório é diferente dos outros por onde andei – talvez seja o melhor de todos, o único que talvez possa me dar condições de não procurar mais o fim de minha vida. Soube hoje que o Rogégio esteve aqui, antes preciso muito explicar ao médico tudo o que é necessário(...) o dr. Oswaldo não pode fugir, nem fingir: mas isso eu começarei a ver, de fato, logo mais quando teremos a nossa primeira entrevista” (TORQUATO NETO, 1973) 86 Como continuidade desta experiência, a comunidade terapêutica de Oswaldo Santos inaugura o primeiro Hospital-Dia no Brasil para o acompanhamento de psicóticos. Esta modalidade, que vai ser um marco na reforma psiquiátrica da década de l980, já acontecia ali. Apesar da importância do trabalho de Oswaldo Santos, a experiência é curta. Em 1973 ele é transferido para outra unidade, num intuito da psiquiatria tradicional esvaziar sua ação, que ainda perdura até 1975, quando é extinta. 85 Movimento francês, surgido na França ocupada, caracterizado por uma resistência política e em considerar as instituições e seus membros como possuidores de partes doentias, que permite um questionamento permanente das instituições e dos papéis ali exercidos. Basaglia também critica esta corrente por não questionar o saber psiquiátrico supra-estrutural, que de fato é o responsáveis pela estrutura (ver capítulo I). 86 Em conversa com o autor, Torquato falou que estava internado antes, na psiquiatria tradicional, mas fugiu do hospício, só aceitando voltar para se tratar com Oswaldo Santos. 69 Mas estas duas experiências são exceções no ambiente cinza do hospício, caracterizado neste período. Ainda nos Diários de Engenho de Dentro, Torquato Neto faz poesia com a tristeza monumental da internação. Não importa se estava na comunidade terapêutica, nos ateliês de Nise ou na psiquiatria tradicional. À noite todas as enfermarias são pardas:87 “pela primeira vez estou sentindo de fato o que pode ser uma prisão. Aqui, as portas que dão para as duas únicas saídas existentes, estão permanentemente trancadas – e há uma pequena grade em cada uma delas, de onde se pode ver os corredores, que dão para as outras galerias. Depois delas, uma espécie de liberdade. Não se fica trancado em celas aqui dentro: é permitido passear até rachar por um corredor de 100 metros por 2,5 de largura. Somos 36 homens aqui dentro, 36 malucos, 36 marginais – de qualquer maneira esperamos a “cura” no sanatório como a sociedade espera que os bandidões das cadeias se “regenerem”, etc, etc. Aqui, o carcereiro é chamado de plantonista – e são aqueles homens de branco sobre os quais Rogério se referiu um dia, há pouco tempo. Aqui, nesta vida comunitária, a barra é pesada, como eu gosto. Minha enfermaria tem 12 camas ocupadas por doentes mentais de nível que poderia muito bem ser classificado pelo IBOPE como pertencentes às classes C, D, Z. Estamos aí! Em cana. O chato é a comida, que é péssima (...) Eles não deixam ninguém ficar em paz aqui dentro. São bestas. Não deixam a gente cortar a carne com faca mas dão gilete pra se fazer a barba. Pode me dar um cigarro? Eu só tenho um maço, eu tenho que pedir porque senão acaba. Pode me dar as vinte?” (TORQUATO NETO, 1973). 87 Uma das críticas que Oswaldo faz ao trabalho é a qualidade do pessoal de enfermagem e a situação de hotelaria. 70 SEGUNDA PARTE: ECOS DA REFORMA NO ENGENHO DE DENTRO 71 Capítulo 5: A reconstrução da forma: a reforma psiquiátrica não modifica o conteúdo manicomial. No final da década de 1970, o modelo de privatização da saúde emitia sinais de esgotamento no bojo da crise de todo o modelo do "milagre econômico" da ditadura. No plano político, tem início o processo de abertura do regime autoritário. No contexto das lutas setoriais contra o regime (associações de bairros, sindicatos, igreja, movimento negro, partidos políticos saindo da clandestinidade imposta, setores profissionais, entre outros), a área da saúde, no movimento conhecido como reforma sanitária, articula as denúncias sobre o falido modelo de saúde pública do país, mobilizando a mídia e sensibilizando a opinião pública. Antes de examinar a situação específica da saúde mental nos anos 80, é necessário olhar no contexto, nesta época, dois marcos que expressaram a vitória dos ideários do movimento da reforma sanitária. A VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, e a instalação, um ano após, da Assembléia Nacional Constituinte, que incluiria na nova Constituição Brasileira, de 1988, os princípios fundamentais da reforma sanitária proposta pela conferência. A VIII Conferência reuniu, em Brasília, quatro mil pessoas, dentre elas, pela primeira vez, representantes da comunidade organizada. Propunha os princípios que, no ano seguinte, geraram a implantação do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS). Como primeiro princípio, a “unificação dos serviços de saúde”: instituições de diversas naturezas, municipais, estaduais, federais, deveriam ser unificadas institucionalmente, para que o Ministério da Saúde fosse o gestor da reforma sanitária; em segundo lugar, “a descentralização dos serviços de saúde”: previa a transparência e a criação de conselhos de saúde para a execução local; em terceiro, “a hierarquização de serviços e cuidados de saúde”: este princípio se opõe à tendência dominante, até então, da valorização dos atos tecnológicos em detrimento dos programas dirigidos às enfermidades “banais” da população; por 72 último, “a participação popular nos serviços de saúde”: propondo a participação da comunidade nos programas de saúde a ela dirigidos. Estes quatro princípios vão ser materializados, após intensa discussão na Assembléia Nacional Constituinte, na Constituição Brasileira de 1988, que implanta o Sistema Único de Saúde (SUS) e define Saúde como direito de cidadania e dever do Estado. “No contexto desta nova definição, a noção de saúde tende a ser socialmente percebida como efeito real de um conjunto de condições coletivas de existência, como expressão ativa – e participativa – do exercício de direitos de cidadania, entre os quais o direito ao trabalho, ao salário justo, à participação nas decisões e gestão de políticas institucionais, etc. Assim a sociedade teve a possibilidade de superar politicamente a compreensão, até então vigente ou socialmente dominante, de saúde como um estado biológico abstrato de normalidade (ou ausência de patologias)” (LUZ, 1994-A; 136/7). É no calor deste debate nacional, com transformações muito rápidas para situações há muito cronificadas, típicas de um período de mudança de um regime autoritário para uma democracia, que o hospício é acordado. Na saúde mental, é de dentro do adormecido manicômio do Engenho de Dentro que a crise irrompe. Uma significativa quantidade de jovens psiquiatras, ligados ao movimento da reforma sanitária, que atuam como bolsistas nos hospitais psiquiátricos da Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAN)88, no Rio de Janeiro, são demitidos, em 1978, pelas denúncias que faziam sobre o abandono e a situação de violência vividos pelos pacientes psiquiátricos. Esta crise tem intensa repercussão na mídia e é hoje considerada, por vários autores, como um marco responsável pelas mudanças dela decorrente.89 Como resultado deste evento é organizado o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), com participação decisiva na Reforma Psiquiátrica brasileira (RPb). No mesmo ano acontecem dois Congressos na área psi de enorme importância para o movimento deflagrado. Em Camboriú, Santa Catarina, o V Congresso Brasileiro de Psiquiatria é marcado por posições políticas avançadas, que contrastam com o conservadorismo da Associação Brasileira de Psiquiatria. 88 Órgão do Ministério da Saúde que substituíra o antigo Serviço Nacional de Doenças Mentais (SNDM) pelo decreto 66.623 de 1970. 89 Paulo AMARANTE, Benilton BEZERRA JR ., Jurandir Freire COSTA, Joel BIRMAN, Pedro Gabriel DELGADO, entre outros, em obras citadas ao longo do texto. 73 Neste congresso, as recomendações para a assistência psiquiátrica estão intimamente ligadas às reivindicações de maiores liberdades sociais e políticas no Estado brasileiro, transferindo o eixo de ação da doença para a saúde mental. No Congresso de Psicanálise, ainda em 1978, no Rio de Janeiro, a presença de Franco Basaglia, Félix Guattari, Robert Castel e Goffman,90 conhecidos pelas obras que influenciaram a nova geração de psiquiatras e psicólogos, agora denominados trabalhadores em saúde mental, foi fundamental no direcionamento do MTSM à Reforma Psiquiátrica brasileira. A situação da saúde mental no Brasil, deteriorada pela política pública examinada no capítulo anterior, que aqui é denunciada pelo movimento insurgente, pode ser assim resumida: “...o quadro de assistência no país era lamentável. Resumia-se aos ambulatórios da Previdência, aos macro-hospitais do Ministério da Saúde, no Rio, aos asilos das Secretarias de Saúde e às inúmeras clínicas privadas conveniadas, de modo geral superlotadas e com alto grau de mortalidade. A internação indiscriminada seguida de sucessivas reinternações era a regra. A cronicidade dos pacientes era tomada como evolução natural do quadro patológico. Praticamente inexistiam dispositivos assistenciais intermediários. Nos ambulatórios, repetiam-se, em tom diferente, os mesmos processos de cronificação e uso excessivo de medicamentos. Embora houvesse, desde os anos 60, uma política oficial de saúde mental, inspirada no preventivismo e consubstanciada em diversos documentos que determinavam uma rede assistencial ampla, integrada e com recursos múltiplos, não havia efetiva preocupação com o setor” (BEZERRA JR., 1994; 174/5). A política oficial de saúde mental referida na citação acima foi proposta na VI Conferência Nacional de Saúde, em 1977, com a criação do Plano Integrado de Saúde Mental (PISAN), “baseado na matriz teórica da Psiquiatria Comunitária norte-americana, parcialmente financiado com recursos de Fundações internacionais, que defende extensa ambulatorização do sistema" (...) Este plano propunha também a "descentralização e interiorização dos cuidados psiquiátricos através do treinamento de médicos generalistas, assistentes sociais e enfermeiros; identificação precoce das populações de risco para intervenção preventiva; e a criação dos Centros Comunitários de Atenção” (SAMPAIO, 1982; 90 Conf. BEZERRA JR. (1994). O autor chama à atenção para a presença anterior, no Rio de Janeiro, de Foucault e do retorno de alguns destes pensadores ao país, numa marcante contribuição para a Reforma Psiquiatria brasileira. 74 109). O autor chama à atenção que o PISAM aconteceu de melhor forma no nordeste do país. Nos grandes centros urbanos, apenas ampliou a atenção ambulatorial, com os vícios e distorções já referidos. Em 1979, uma portaria ministerial vincula a contratação de novos leitos psiquiátricos à oferta de maior assistência na rede de ambulatórios. Esta política amplia a crise da Previdência Social. Nos anos da crise do modelo econômico, as doenças psiquiátricas ocupam três lugares, entre os cinco primeiros, nos diagnósticos responsáveis por auxilio-doença.91 No início dos anos 1980, o mecanismo conhecido por Co-gestão transfere recursos da Previdência ao Ministério da Saúde para um reforço das Ações Integradas de Saúde. No Rio de Janeiro, os Hospitais da DINSAM recebem estes recursos para enfrentar a crise interna e a externa, que ameaçava de falência o sistema. A Co-gestão dos hospitais tinha por objetivo a redução de custos, em primeira instância, e, para isto, a modernização gerencial. Para SAMPAIO (1982) “o Ministério da Previdência, em crise, coopta planos dos sanitaristas e dos planejadores lotados no Ministério da Saúde, articula com seus próprios quadros progressistas, e passa a viabilizar, financeira e politicamente, as Ações Integradas de Saúde e certo renascimento do sistema público de cuidados". Estes sanistaristas e planejadores do Ministério nos hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro, segundo BEZZERRA JR., foram originados pela situação conjuntural da crise denunciada pelo MTSM: “pressionado pelas péssimas condições de funcionamento dos hospitais, o Ministério da Saúde contrata, a título precário, através da Campanha Nacional de Saúde Mental, técnicos para suas unidades. Pela primeira vez desde a década de 50, entra nos hospitais uma grande quantidade de profissionais cuja formação estava marcada pela resistência política ao autoritarismo e pela crítica teórica ao modelo asilar” (BEZERRA JR., 1994; 175). No início da década de 1980 inicia-se o movimento de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica nos Hospitais do Ministério da Saúde, no Rio de Janeiro.92 91 Dados do primeiro semestre de 1975: 1º lugar: Neuroses; 2º lugar: Osteoartrites; 3º lugar: Hipertensão; 4º lugar: Epilepsias e 5º lugar: Esquizofrenias (SAMPAIO, 1982). 92 A partir deste momento começa a minha participação pessoal no movimento da Reforma Psiquiátrica. De agora em diante são consultados os documentos da época, como fonte primária, e a memória, com as 75 Um documento da época fala do contexto em que esta estruturação estava acontecendo: “Em fins de 1980, data da assinatura da portaria interministerial que estabeleceu o regime administrativo de co-gestão entre o Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) e o Ministério da Saúde (MS), a administração de algumas unidades hospitalares, até então sob a responsabilidade do MS, passou a ser feita também pelo MPAS. Tal portaria foi assinada com finalidades muito especiais e objetivas. Procurava-se, desta forma, abrir as perspectivas formais necessárias, a fim de alocar os recursos financeiros que viabilizassem a recuperação assistencial das unidades públicas, então já em estado de avançada decomposição, graças ao completo abandono que sofreram em decorrência das políticas anteriores de saúde.” “Essa medida administrativa, mesmo que beneficiasse diretamente a clientela usuária do serviço público, não se fez com resultado de uma súbita ‘conscientização’ por parte dos órgãos governamentais. Se assim fosse, respeitando as inúmeras convocações de protesto, os mesmos órgãos do governo não teriam deixado a assistência pública submergir no abandono e descaso como ocorreu. Não teriam deixado as enfermarias públicas permanecerem no horror a que chegaram por sua miséria material e humana, como também não teriam deixado asilos funcionando em condições desumanas como masmorras sem condições mínimas de cuidado, exceto na função de zelar pela segregação e pelo afastamento daqueles que sempre foram indesejáveis pela sociedade. Triste forma de gerir os gastos da União e de dirigir a política de saúde mental!” “Acreditar que tal mudança se deu ao acaso e desfazer a importância que o jogo de interesses tem como força motriz de mudanças sociais. Em nosso entender, a mudança ocorrida na política de saúde mental a partir do acordo de co-gestão se deveu ao pesado ônus que a Previdência Social vinha cada vez mais trazendo ao bolso da União.” “A assinatura pelo Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (INAMPS), em novembro de 1980, de acordos de co-gestão com os hospitais psiquiátricos do MS, iniciou um plano de integração interinstitucional para serem executadas as transformações necessárias desses grandes hospitais-asilos, no sentido de armadilhas traiçoeiras da sua inevitável deformação afetiva, passa a interferir nos fatos narrados. Fui contratado pela Campanha Nacional de Saúde Mental em dezembro de 1981, na Colônia Juliano Moreira. Naquela unidade, participei do seu primeiro Núcleo de Planejamento, na honrosa companhia de Pedro Gabriel Delgado, César Vitor Duarte e Walnei Ferreira de Moura. Dirigi o Centro de Reabilitação Psicossocial até 1984, quando fui transferido para o Centro Psiquiátrico Pedro II. Nesta Unidade, na qual permaneço até hoje, ocupei vários cargos gerenciais e integrei uma equipe, da qual fizeram parte: Paulo Amarante, Benilton Bezzerra Jr., Jurandir Freire Costa, José Jackson Coelho Sampaio, Carlos Augusto de Araújo Jorge, Luis Carlos Wanderlei, Sheila Lemos Lima, Ariadne de Moura Mendes, Esther de Rezende Bussman, Cândido Espinheira, Sônia França, Sérgio Munk, João Paulo Hidelbrandt, Annibal Amorim, Luis Carlos Rangel, entre tantos outros que contribuíram para a Reorientação da Assistência Psiquiátrica daquela Unidade. 76 simplesmente poderem atender aos interesses da Previdência Social, então preocupada em se desvencilhar da crise em que mergulhou. Procurava-se através disso, priorizar a rede assistencial pública com utilização máxima de sua capacidade de trabalho, a fim de aliviar as distorções que o modelo assistencial centrado na contratação de serviços particulares, vinha trazendo ao INAMPS. Partia-se do princípio que a rede pública, ao contrário da rede privada, não incorreria nas mesmas distorções, já que não se comprometeria com fins lucrativos. Nessa política de contenção de despesas e remanejamento dos recursos próprios a fim de minimizar o rombo da Previdência, o serviço público pode finalmente vislumbrar novos horizontes, há muito reivindicados tanto pelos servidores como pelos usuários. Os primeiros por terem sido anos a fio impedidos de executar políticas assistenciais mais amplas e renovadoras, já que estas não se encaminhavam pela rede pública. Os segundos, porque com a reestruturação da assistência, passaram a ter pelo menos a promessa de novas formas assistenciais” (OLIVEIRA & REIS & GOLDENSTEIN, 1985).93 Em 1983 é publicado o primeiro Plano Diretor do Centro Psiquiátrico Pedro II (CPPII) com o nome de Plano Diretor para Reorientação da Assistência Psiquiátrica do CPPII. O Plano previa um eficiente sistema de atenção extrahospitalar como parte de “soluções poupadoras de recursos capazes de enfrentar a angustiante questão dos crescentes gastos com o setor de saúde”.94 Tinha como objetivos: executar toda e qualquer atividade terapêutica por intermédio de equipes multidisciplinares; diversificar o arsenal terapêutico, ampliando o leque de ofertas; priorizar e enfatizar recursos e técnicas extra-hospitalares, aumentando sua capacidade resolutiva; redimensionar os serviços de internação, utilizando-os como último recurso, diminuir o tempo de internamento (taxa de permanência), para devolver o paciente ao seu meio social; criar meios para promover criticamente a reintegração de sua clientela com a família, trabalho e comunidade; integrar, racionalizar e otimizar procedimentos, métodos e técnicas administrativas; implantar amplo e inovador programa de desenvolvimento de recursos humanos; desenvolver estudos e pesquisas em Saúde Mental para qualificar a prática assistencial e fazer evoluir o conhecimento sistematizado existente; desenvolver programa de treinamento em serviço, conveniado com Universidades; contribuir para um programa de Saúde Mental, integrado, 93 Note-se a postura política que todo o grupo de novos profissionais, sem vínculos estáveis, assumia em relação ao nível central do MS. Esta postura não deixa de provocar níveis de tensão. 94 Plano Diretor do CPPII, 1983. 77 regionalizado e extensivo para toda sua população de referência (na época, 2 milhões e 500 mil habitantes); iniciar trabalho permanente de integração com a comunidade (incluindo associações de moradores, de profissionais, grupos de ajuda mútua, religiosos, etc.), respeitando as práticas informais ditadas pela cultura popular. Estes onze objetivos se desdobram em vinte e duas metas com um calendário de curto, médio e longo prazo. O Plano Diretor preocupa-se, também, para alcançar seus objetivos na reordenação administrativa, com a implantação de um organograma que divide suas atividades em cinco áreas: a) atividades de direção e assessoramento; b) atividades de ensino e pesquisa; c) atividades de documentação e auditoria médica; d) atividades administrativas, propriamente ditas; e) atividades assistenciais. O fluxograma das atividades assistenciais propunha um sistema de “vasos comunicantes”, sendo a porta de entrada o Ambulatório e o Pronto Socorro Psiquiátrico. O sistema previa ainda uma internação breve em contraposição às internações prolongadas. O Plano marca, de forma enfática, a transformação assistencial, centrada na equipe multidiscilinar e a busca de um novo modelo técnico, assim como a necessária reforma administrativa para viabilizar o projeto: " É importante observar que o trabalho em equipe implica numa compreensão de que as reações psicopatológicas requerem avaliação, diagnóstico e tratamento adequados à multifatoriedade que as determinam. A equipe é mais que um espírito de trabalho, é uma forma de saber e de prática deste saber. O paciente é visto de maneira dinâmica dentro do seu contexto familiar e sócio-cultural, sujeito a influências diversas em seus contatos interpessoais e ambientais. Conclui-se, portanto, que o trabalho em equipe multidisciplinar traduzse por uma mudança de postura frente à doença e o paciente, onde o 'episódio' psicopatológico surgido em seu processo de vida necessita de uma compreensão e de um apoio estruturado para auxiliá-lo no desenvolvimento de potencialidades de saúde". (pg. 15) "O setor público da nossa psiquiatria brasileira tem diante de si um desafio: o de elaborar e tornar viável um novo modelo de assistência que consiga se contrapor à prática lucrativa das empresas privadas e se apresentar como alternativa ao modelo liberal. Em outras palavras não se trata apenas de agilizar as instituições prestadoras de serviço nesta área para que possam produzir mais atendimentos, mas 78 efetivamente construir uma forma diferente de tratar o fato psiquiátrico tomado em sua dimensão coletiva". (pg. 60) "(...) é oportuno considerar a questão do Regimento Interno do CPPII, que está em vigor desde o ano de 1944. Este Regimento, de algum tempo para cá, vem influenciando de forma retrógrada todas as ações administrativas no âmbito do Complexo Hospitalar, o que, direta ou indiretamente, se faz sentir a nível das atividades assistenciais. O tempo e as próprias práticas encarregaram-se de torná-lo obsoleto e arcaico". (pg. 69) PLANO DIRETOR DO CPPII (1983). No decorrer da década de 1980 até o processo da democratização definitiva do país - na eleição direta para presidente, são vários os documentos e outros Planos95 propostos ao Centro Psiquiátrico Pedro II. As mudanças, tanto em referência aos objetivos, quanto à estrutura administrativa são mínimas e relativas ao contexto imediato. As observações feitas ao Plano Diretor de 1983 tentam dar conta dos movimentos da instituição no período examinado. O que chama à atenção nas aspirações dos planejadores da época é a amplitude do leque de objetivos, como se fosse possível realizar todas as urgências, de imediato, que se acumularam num longo período de esquecimento a que o infortúnio da loucura ficara trancado nos corredores e guardado por chaves e muros da exclusão. No entanto, parecia ser a intenção distribuir todas as cartas do baralho para que o jogo começasse o mais depressa possível. Claro que objetivos imperativos tipo “criar meios de promover criticamente a reintegração da clientela com famílias, trabalho e comunidade “, tão comuns em documentos oficiais da época, são inócuos. Primeiro, porque a meta apontada não possui o caminho a ser percorrido para o objetivo. Falta o guizo no gato. Depois, porque o objetivo é muito ambicioso, contendo quase que todos os desafios impostos mais tarde à Reforma Psiquiátrica para os novos dispositivos, e que estavam sendo oferecidos a uma população de crônicos, sem contato com o mundo externo, há dezenas de anos perdidos. Poderíamos fazer a crítica, neste momento, aos vários objetivos traçados naquele momento. Mas nos parece mais vantajoso examinar entre os dois momentos, entendendo os objetivos propostos no campo das utopias, quais as transformações ocorridas, no possível contextual: os recuos na continuidade da proposta, por crises provocadas pelas tensões entre 95 Listados na fontes documentais. 79 grupos internos e com a hierarquia ministerial; as propostas que se mostraram inadequadas quando submetidas ao “teste de realidade”. Poderíamos colocar no saldo positivo do período a organização do atendimento extra-hospitalar. Em 1981, o atendimento ambulatorial, irregular, insuficiente, espalhado nas várias unidades do complexo do CPPII é centralizado. Em 1985 ele é estruturado dentro do modelo de hierarquização, regionalização e apresenta uma proposta clínica ousada. Pela primeira vez é organizado um atendimento público, de massa, com referencial psicanalítico. Sob a supervisão de Jurandir Freire Costa e Benilton Bezerra Jr., iniciou-se um atendimento grupal para as chamadas “queixas difusas” de uma população de baixa renda, o que resultou numa reflexão teórica, através de uma pesquisa com resultados significativos para os desafios da época. Desmedicalizou-se um dispositivo complicado do aparelho psiquiátrico. A abertura de vários e diferentes atendimentos em grupo, a atenção ao paciente por uma equipe multidisciplinar, o atendimento domiciliar e comunitário, a supervisão e discussão de casos em equipe incrustaram na proposta técnica o diferencial característico que marcou o dispositivo em transformação. Após a “crise de 1988”, que será abordada posteriormente, o Ambulatório Central sofre um retrocesso gradativo e constante, onde a proposta anterior não pode mais ser reconhecida. Entretanto, após 1988, dois novos dispositivos vão aumentar o saldo positivo das experiências daqueles tempos: a “Casa d’Engenho” e a “Enfermaria de Portas Abertas”96 vão inaugurar a experiência do Hospital-Dia como um dispositivo extra-hospitalar de atenção em saúde mental, anterior à proposta dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) ser implantada na cidade do Rio de Janeiro. No coração do manicômio uma enfermaria chegou a desenvolver uma experiência clínica, também sob a supervisão de COSTA e BEZERRA JR., a enfermaria masculina 2 do Hospital Gustavo Riedel, com formas de tratamento radicalmente 96 Esta, depois chamada “Espaço Aberto ao Tempo”, vai aproximar as linguagens das artes plásticas à terapêutica com psicóticos, diferente da proposta de Nise da Silveira, com uma experiência única e profícua em Saúde Mental, sob a coordenação do médico e artista plástico Lula Wanderley. Os fundamentos desta inusitada experiência clínica está documentada em WANDERLEY (2001). A Experiência da Casa d'Engenho está relatada em JORGE (1997). 80 diferente da experiência asilar do modelo anterior, mas que não contaminou a maioria das enfermarias tradicionais do CPPII, mesmo nesta época de mudanças, e foi extinta com a chamada “crise de 1988”. Talvez o projeto mais bem sucedido desta época tenha sido o lugar onde as transformações na clínica estavam sendo lapidadas: o Centro de Estudos, definido no Plano Diretor de 1983 como núcleo responsável pelo ensino e pesquisa. “Os serviços onde estas experiências tinham lugar passaram a atrair progressivamente estudantes, novos profissionais e professores do universo psi interessados em encontrar fora do estagnado mundo da academia o movimento, a inquietação, a inovação. Foram sendo criados cursos de extensão e especialização para profissionais de diversas áreas, voltados para formação de recursos humanos aptos a enfrentar os desafios que a realidade asilar impõe e que as salas de aula não conseguem reproduzir. Este é um ponto seguramente dos mais importantes na trajetória da reforma psiquiátrica no país nesta década. Deve-se à consolidação dos serviços públicos como local de ensino e formação o fato de que foi possível avançar na reprodução de quadros capazes de atuação crítica, apesar das enormes oscilações políticas no período e do conservadorismo, quando não do franco reacionarismo psiquiátrico da maioria dos espaços acadêmicos” (BEZERRA JR., 1994; 178). Não foi diferente no CPPII. Apesar do treinamento em serviço, diversas vezes oferecido, só atingir uma pequena parte dos servidores, com maior aceitação entre os novos contratados, o Centro de Estudos transformou-se em um lugar de formação de quadros em saúde mental. O Curso de Especialização em Saúde Mental, por exemplo, oferecido aos trabalhadores em saúde mental de nível superior, equivalente a um curso de Residência, vem formando novos quadros a cada ano e são estes a maioria dos contratados por concurso público que hoje reforçam a instituição. Ainda contam, no lado positivo, a modernização administrativa e as “atividades de documentação e auditoria médica” propostas no Plano Diretor. O sistema de custos e de informação, montados nesta época, impulsionaram as reformas propostas de forma a garantir sua credibilidade junto aos órgãos de controle e avaliação do Ministério da Saúde. A modernização administrativa pode também ser observada como um componente impulsionador da proposta técnica no trabalho executado por José Jackson Coelho SAMPAIO, na direção de uma 81 unidade do CPPII - a Unidade Hospitalar Professor Adauto Botelho, e está minuciosamente descrita em sua dissertação de mestrado ( SAMPAIO, 1982). Por outro lado, os objetivos do Plano Diretor estavam condicionados pelas tensões, inerentes aos embates políticos característicos desta época. Estas tensões estão situadas em dois campos: entre os planejadores, quadros dirigentes da nova geração, na sua maioria recrutada no interior do movimento dos trabalhadores em saúde mental (MTSM) e “ocupando espaço” no aparelho de Estado, e a hierarquia dominante deste aparelho pressionada pelo poder dos “donos de hospitais privados”, representados na Federação Brasileira de Hospitais (FBH). No outro campo, as querelas e divergências no próprio interior do movimento de renovação, divididos, numa formulação grosseira, entre “políticos” e “técnicos”, ou seja, os “engajados” e os “assistencialistas”. Os embates, no primeiro campo, traziam à baila toda a contradição do sistema. O modelo que se estava a combater, na reformulação da assistência psiquiátrica, era o modelo da privatização da saúde, exacerbado durante o “milagre econômico” da ditadura e que se havia exaurido. Os interesses do setor privado haviam sido atingidos no alvo: o lucro. Basta o exemplo da regulamentação das internações psiquiátricas na cidade do Rio de Janeiro: antes da regulamentação, que estabeleceu pólos de internações nos hospitais públicos, como reguladores do sistema, a internação psiquiátrica era feita numa ampla porta de entrada: consultórios ambulatoriais do INAMPS, onde, quase sempre, o médico que emitia a guia de internação era funcionário ou sócio da clínica conveniada direcionada. Com a regulamentação das internações pelos hospitais públicos, houve uma redução imediata de 30% das internações em clínicas privadas. A reação se fez pública e atingindo politicamente os “comunistas” infiltrados no aparelho de Estado. No Congresso de Psiquiatria de Belo Horizonte, a Federação Brasileira dos Hospitais (FBH) se apresenta como uma entidade que está “...lutando por seus interesses legítimos, que em nada se afastam dos interesses do país. A referência é necessária e mesmo indispensável, porque, como todos sabem, os interesses de grupos mais ou menos encapuçados, tem se servido de todos os meios de divulgar para tentar 82 persuadir a opinião pública e as autoridades de que é preciso destruir o que chamam pejorativamente de ‘empresas de saúde’. Tais grupos são, uns motivados por tendências estatizantes que redundariam, no que concerne à psiquiatria, na volta aos superados macro-hospitais públicos, outros, motivados pelo insopitável anseio, ainda que justo e compreensível, de conseguir emprego ou campo de ação profissional, através de instituições que já são conhecidas no jargão psiquiátrico pelo apelido de mini-clínicas e que redundariam na volta à medicina de consultório, com toda sua inadequação ao atendimento de massas; e, finalmente, os grupos interessados nos indizíveis propósitos da ‘contracultura’ anarquizante. Além destes, restam os grupos que propõem a via socialista, ao menos nos matizes da social-democracia, a qual pressupõe entretanto a socialização conjunta do ensino, dos meios de divulgação, dos serviços sociais em suma, e não só da medicina”.97 O texto, hoje ridículo, manifesta a virulência do setor privado contra a reforma que estava acontecendo. Em alguns momentos ele pode ser lido como dirigido diretamente contra o Plano Diretor e os resultado das reformas no CPPII. A FBH se notabiliza, neste período, por centrar seus ataques à reforma na psiquiatria. Nos anos 70, as internações psiquiátricas só perdiam, nas internações privadas, para parto. E o setor privado tinha amplo poder de pressão junto ao Congresso Nacional e ao Ministério da Saúde. É neste jogo de forças que as tensões acontecem. Das inúmeras crises vividas neste período, vamos destacar duas, dado que suas causas envolviam interesses da Presidência da República que ainda estão muito presentes na memória nacional, e tendo em vista o corte político de sua representação no projeto assistencial da instituição. A primeira remonta à negociação política empreendida por José Sarney para conseguir mais um ano na presidência do Brasil, embora viesse de uma eleição indireta e vivêssemos o clamor pela primeira eleição direta depois dos anos de chumbo da ditadura. Neste contexto, as alianças buscadas por Sarney foram com os setores mais atrasados do quadro político nacional. O Ministério da Saúde coube a um obscuro ministro sensível às pressões da FBH. Estamos no que se convencionou chamar “crise de 1988”. A direção do CPPII é entregue a um insignificante professor do departamento de psiquiatria da Universidade Federal Fluminense. A sua intervenção é avassaladora. Menos porque estivesse ligado aos interesses privados, mas, muito mais, pelas concepções no campo da 97 “Assistência Psiquiátrica Brasileira: realidade e perspectivas”, documento da Federação Brasileira de Hospitais apresentado ao Congresso de Psiquiatria de Belo Horizonte. 83 psiquiatria. O parecer da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, reunida em 14 de junho de 1988 destaca que esta intervenção no Centro Psiquiátrico Pedro II “teria acarretado o retorno a práticas retrógradas e ultrapassadas tais como confinamento de pacientes, medicalização excessiva e uso indiscriminado de eletrochoques, assim como a desativação da enfermaria de crise e de oficinas terapêuticas. “[o interventor] passou a imprimir uma orientação oposta à que vinha sendo seguida. A filosofia assistencial foi totalmente alterada e sob o pretexto de que a loucura é uma questão meramente médica passouse a utilizar como práticas terapêuticas o uso excessivo de medicamentos e a eletroconvulsoterapia. O confinamento de pacientes foi outra prática inaugurada na instituição, com a justificativa do controle da sexualidade. Como corolário da nova política e atestando o clima de terror instalado, três supervisores foram demitidos e quinze técnicos (quase todos não-médicos) foram colocados numa lista de “prescindíveis” para serem demitidos, o que só não aconteceu porque a Colônia Juliano Moreira resolveu solicitar para lá a transferência dos mesmos. Por outro lado, através de ameaças de demissão, um ambiente de perseguição foi instaurado, com o objetivo de evitar qualquer discussão técnica ou política, ao mesmo tempo que o Gabinete de Planejamento, instância estratégica na execução da política do CPPII, foi desativado e os programas de capacitação de recursos humanos foram deixados de lado. As relações com as clínicas privadas conveniadas com o INAMPS foram invertidas. Numa atitude de clara mercantilização da doença passou-se a privilegiar a internação nessas clínicas, mesmo com vagas no CPPII. Para tal, o Pronto Socorro Psiquiátrico que vinha funcionando como barreira às internações desnecessárias, tanto no CPPII como nas casas de saúde conveniadas, foi desestruturado voltando a funcionar nos moldes antigos (contenção ou medicalização generalizadas)”.98 O que mais chama à atenção nesta intervenção foi seu curto período - não chega a um ano - contraposto ao seu efeito devastador. Garantido o ano extra de 98 “Comissão de Defesa dos Direitos Humanos – Crise no Centro Psiquiátrico Pedro II – Parecer da Comissão”. Deputada Lúcia Arruda – relatora, Deputados: Alberto Brizola, Alice Tamborindeguy, Heloneida Stuart, e Rubens Bomtempo – membros. 14 de junho de 1988. Neste mesmo relatório, o depoimento de João Paulo Hidelbrandt esclarece que o interventor, antigo dirigente do CPPII, no início dos anos 80, teria [naquela época] “encaminhado para o Serviço Nacional de Informações uma lista de nomes, de profissionais do hospital, que seriam esquerdistas, que teriam invadido o hospital e que a direção da época estaria de acordo com estes comunistas, estes esquerdistas...”. Como componente da mesma crise, a intervenção na Colônia Juliano Moreira foi feita com intervenção do exército para a posse do interventor e evitar as manifestações dos trabalhadores em saúde mental. Ainda sobre esta crise, coberta com destaque na imprensa, o “Jornal da Resistência” número único, elaborado pelo movimento de resistência traz uma charge de Ricardo Cruz com uma caricatura de Hitler, travestido de interventor do CPPII, com a legenda: “Eugenia, aqui me tens de regresso...”. E transcreve o artigo de Jurandir Freire Costa, publicado no Jornal do Brasil, “Faca no Coração”, sobre um paciente que impedido de ver seus terapeutas comete o suicídio. 84 mandato na presidência, Sarney recompõe as alianças. O ministério da Saúde volta ao projeto interrompido. A maioria dos técnicos afastados no CPPII volta para a direção da instituição, na intenção de retomar o projeto anterior. Mas o hospício tinha renascido de forma assustadora. Este curto período de intervenção conseguiu devastar anos de vagarosa transformação. Era preciso começar de novo... A segunda grande crise política com reflexos na instituição é bem mais recente. Na pressa de modificar a constituição, para conseguir o segundo mandato presidencial, Fernando Henrique Cardoso opera de modo similar a Sarney. Reflexo na instituição: substituição de uma direção eleita, no meio de um mandato, para colocar no cargo um diretor que usou a instituição para uso inescrupuloso da política partidária. Nesta crise vamos chegar mais tarde, pois a direção eleita já era fruto de outras tensões no campo das querelas e divergências entre os combatentes do campo da reforma psiquiátrica. Em 1987 acontece a I Conferência Nacional de Saúde Mental e o II Encontro dos Trabalhadores de Saúde Mental. Segundo BEZERRA JR. no artigo citado, a Conferência discutiu as dificuldades da reforma dentro do aparelho estatal; o Encontro marca uma nova etapa do movimento com o lema “Por uma sociedade sem manicômios”, pregando ações de forma ampla no interior da própria cultura. Para o autor, a primeira posição estava se esgotando, porquanto “a desospitalização, em si mesma , em nada abalou os alicerces da cultura manicomial”, enquanto “uma sociedade sem manicômios” deslocava o conceito de “desinstitucionalização” do manicômio para desinstitucionalizar a doença mental na sociedade. Neste ponto há uma inflexão no discurso do movimento: “vai se passando de uma fase em que a direção do discurso reformista é predominante contra o manicômio para outra em que a psiquiatria é inserida no campo social como aparelho regular de relações subjetivas, que devem ser, elas mesmas, analisadas em suas determinações” (BEZERRA JR., 1994; 181). É neste contexto que acontece a “crise de 1988” no Centro Psiquiátrico Pedro II. De certa forma, a repercussão que ela teve na mídia, nas organizações sociais e políticas, deveu-se ao deslocamento que estava em operação no interior 85 do movimento. No entanto, este deslocamento ainda era insipiente. Entretanto, a sociedade mostrou-se solidária neste momento de crise. Era preciso uma construção bem mais alicerçada, na qual novos dispositivos pudessem ser concebidos na comunidade, dependendo dela, na sua concepção ideológica, para criar no campo social o fluir das relações que a loucura pudesse estabelecer com a sociedade sem a mediata intervenção do manicômio. Em 1989, em Santos, SP, numa intervenção da Prefeitura no manicômio local - a Casa de Saúde Anchieta, hospital particular - pode ser construída uma rede de serviços de Atenção Diária, na comunidade, provocando um modelo novo de atenção em Saúde Mental no território de uma cidade.99 Nesta ação, pode-se observar dois aspectos relevantes. Primeiro, o poder público executa uma ação de conseqüências ímpares até então no Brasil: a intervenção numa casa de saúde particular para executar a reforma psiquiátrica no manicômio, e a construção de uma rede de serviços alternativos, criando novos dispositivos em Saúde Mental. Segundo, a construção destes dispositivos na comunidade com a participação popular (nas associações, rádio comunitária, centros culturais, etc.), mudando o cenário do acontecimento do adoecer e do tratamento da doença mental. Estes fatos, entre tantos outros acontecimentos do período, são necessários para emoldurar o quadro institucional que se desenrolava no CPPII. Após a intervenção que gerou a “crise de 1988”, a instituição é retomada por parte da equipe anterior. Um número significativo de quadros do movimento, responsáveis pela proposta que vinha sendo executada, não retorna ao CPPII, até coerente com os novos rumos tomados pelo MTSM. Na sua maioria são absorvidos pelas instituições acadêmicas, onde até hoje desenvolvem atividades relacionadas à reforma psiquiátrica. No movimento “pré-crise”, o coração do manicômio não foi atingido pela reforma acontecida na instituição. O Pronto Socorro Psiquiátrico e as enfermarias tradicionais seguiam inatingíveis pelo grande esforço que vinha acontecendo no atendimento extra-hospitalar e no desenvolvimento do ensino e pesquisa. O velho hospício estava dividido em dois: a face moderna e progressista da reforma 99 Sobre esta experiência ver NICÁCIO (1994). 86 convivia com a face cinzenta da psiquiatria. Esta parecia ter vida própria e seguia preceitos que não estavam sendo prescritos, mas se repetiam como gestos automáticos codificados na história do passado da praia Vermelha e da velha Colônia de Alienados do Engenho de Dentro. O movimento pós-crise começa com o sentimento de começar de novo. Mesmo o que tinha avançado, com a crise, recuou. Arregaçar mangas, refazer canteiros, semear o trigo, separar o joio, são movimentos necessários para quem tem pressa do pão. Considerando o contexto da reforma acontecendo lá fora, dois movimentos são impulsionados neste retorno. Criar novos dispositivos que deslocasse a atenção em saúde mental das enfermarias do manicômio: acontecem os Hospitais-Dia,100 já referidos, com a pretensão que, no futuro, eles fossem para a comunidade e criassem uma rede social no território a ser conquistado. Institui-se um “Conselho Diretor Tripartite”, repetindo a representação dos seguimentos exigidos nos Conselhos Municipais de Saúde, para a gerência do CPPII. Retomam-se a modernização administrativa e as informações gerenciais. Característica deste momento é a reforma da área física de alamedas, parques e a substituição dos altos muros por grades, semelhantes à cerca de jardins, juntamente com a aproximação dos programas desenvolvidos com a comunidade do Engenho de Dentro. Há uma circulação da vizinhança no espaço do CPPII, incentivando-se a participação comunitária nos programas desenvolvidos na Instituição. Não há espaços proibidos ao olhar de todos. O horário de visitas é permanente e o familiar pode acompanhar a internação do seu paciente. A porta de entrada é estruturada para um atendimento personalizado da demanda. Para uma internação não era necessária a passagem na emergência. Vários serviços começaram a experimentar uma proximidade maior com seus clientes. Um fórum semanal discutia as mudanças da instituição, com a 100 Um dos Hospitais-Dia funcionava diretamente vinculado à Emergência Psiquiátrica, numa tentativa de incluí-la na reforma. A este respeito, ver JORGE (1997). O Espaço Aberto ao Tempo é contemporâneo do Centro de Atenção Psicossocial Luis Cerqueira, inaugurado em 1887 em São Paulo, reconhecido serviço de atenção diária em saúde mental, que emprestou a sigla CAPS para outros serviços, em todo o país (ver GOLDBERG 1994). O Espaço Aberto ao Tempo fez vários encontros com o CAPS Luís Cerqueira, discutindo novos dispositivos em saúde mental. 87 participação de familiares e pacientes. Apesar da simplicidade destas ações, permear o espaço, antes proibido, possibilitou uma mudança das relações existentes. Em pouco tempo o colorido venceu o cinza. A aparente ingenuidade das ações exigia uma vigilância redobrada de seus atores. A maquiagem não apaga o fogo do dragão. Era preciso atravessar tempos difíceis, esperar a redemocratização definitiva do país. Municipalizar o Centro Psiquiátrico era um desejo levado a todas as Conferências Municipais de Saúde pela equipe dirigente. Desenvolver ações de saúde mental na rede pública de saúde do município era uma aspiração para a progressiva desativação do manicômio. Neste compasso de espera, apesar das tensões com a hierarquia ministerial serem absorvidas, mesmo no atribulado governo Collor até o seu impedimento,101 as tensões internas tomaram um rumo inesperado. O “Conselho Diretor Tripartite”, sonho democrático e tentativa de envolver servidores e comunidade no projeto, com o tempo passou de palco de pacto para arena de disputas políticas. Se os interesses da comunidade e da direção em muitas vezes pudessem ser próximos, os interesses dos servidores estavam distantes dos outros dois seguimentos. O fórum semanal de discussões passou a ser o espaço de reivindicações políticas explícitas. Dentro do campo de tensões das querelas e discórdias, dentro do próprio movimentos dos reformistas, o CPPII desenvolve uma via particular. Aqui os "assistencialistas", que priorizavam a execução de projetos técnicos, estavam ocupando os cargos administrativos, enquanto os "políticos" se organizaram em um Núcleo Sindical, filiado a um sindicato de servidores públicos. O Núcleo Sindical participava do "Conselho Diretor Tripartite" e seu campo de luta prioritário estava na defesa dos direitos dos servidores, naquele momento de 101 Fatos dignos de nota no período: no início do governo Collor foi desencadeada uma "reforma administrativa" com a demissão em massa de todos os diretores de órgãos públicos, por decreto. No CPPII aconteceu algo inusitado. A destituição do diretor fez assumir o cargo o vice-diretor, que esperou uma nomeação do Ministério. Passado um ano, como a mudança não ocorreu, o diretor em exercício solicita sua demissão. O Ministério não quer aceitar e pede que o diretor no cargo indique alguém para assumir definitivamente o cargo vago. O vice diretor indica o diretor demitido pela "reforma administrativa", e ele é renomeado pelo mesmo governo que o demitiu. Também neste período, ocorre, dentro da "reforma administrativa" as temíveis listas de disponibilidades de servidores públicos. Os hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro, agindo politicamente em conjunto, foram os únicos hospitais da cidade onde não houve servidores colocados em disponibilidade. 88 efervescência política, pós-impedimento de um presidente da república. Os Congressos Internos do CPPII, num movimento que capturava os fóruns semanais, mesmo dividindo os aspectos "assistenciais" e "políticos" das discussões, dirigiu sua meta para uma disputa de poder na instituição. No II Congresso Interno do CPPII, em 1992, a tese de "eleição direta" para a direção da instituição é vencedora em oposição à velha tese do "conselho diretor". Dois meses após o Congresso a eleição é realizada. Uma chapa única é inscrita, representando o Núcleo Sindical. A direção do momento pede demissão e encaminha ao Ministério da Saúde o nome eleito, como se fosse uma indicação da instituição para a continuidade do processo. O novo diretor é nomeado, sem o Ministério da Saúde perceber que havia acontecido um "processo eleitoral". Em continuidade, o Núcleo Sindical entra em processo de dissolução, sendo seus membros nomeados para cargos de direção na nova administração. Após quatro anos, duração do mandato, nova eleição é realizada com apresentação de chapa única, que foi reeleita. Novamente não há percepção pela hierarquia ministerial. Após dois anos, no segundo mandato, a instituição é sacudida pela segunda grande crise, já referida. Numa negociação política para a reeleição de Fernando Henrique Cardoso, na presidência do Brasil, cargos são loteados e o CPPII cai nas mãos de um diretor que vai usar o cargo em benefício do processo eleitoral da época. Esta crise, diferente da de 1988, não provoca reação interna ou externa. Na própria "direção sindical" existente, cargos da direção exonerada vão servir ao interventor nomeado. Esta direção interventora só fica um ano no cargo, quando uma nova direção, fora dos quadros da instituição, cumpre a última gestão ministerial, por um ano e meio, até o início de 2000, momento da municipalização do Centro Psiquiátrico. Com o retraimento da corrente "assistencialista" o CPPII ficou, num período de seis anos, governado pela corrente "política".102 Cabe ressaltar que os 102 Neste período cabe destacar, como ponte entre as duas correntes, a inauguração do Centro Comunitário. "Mais do que uma idéia, nascia um compromisso ético que, propondo o redesenho da forma e o conteúdo das relações entre comunidade interna e externa, colocava-se como interface, entre o hospital e a comunidade. Esta inserção ganhava os contornos de um centro de convivência, um espaço de encontros, onde seria estimulada e garantida a participação da clientela em atividades diversificadas propostas pelos parceiros comunitários do CPPII. Construía-se no plano da relação política dos vários seguimentos participantes dos congressos internos um espaço permanente de inter-trocas da comunidade com nossos usuários, que acreditássemos fosse capaz de redimensionar o universo simbólico da instituição pela construção social de um trabalho em rede, até então inédito na área de saúde mental" (AMORIM, 2000; 289 E SEGS.). 89 Congressos Internos do período, na esfera assistencial, defendeu as teses mais avançadas da reforma que vinha acontecendo. E a direção eleita, em nenhum momento, se opôs ao projeto assistencial. Não houve, de forma explícita, uma imposição da psiquiatria tradicional ao projeto da reforma. O mesmo aconteceu, em relação ao projeto, com a postura das duas direções posteriores à crise que interrompe o mandato "sindical".103 O que ocorre, então, para ter acontecido uma recuperação do manicômio e para que os projetos reformistas tivessem sido incrustado em guetos? A resposta a esta pergunta requer uma tarefa que não está ao alcance deste trabalho. Primeiro, pela exigência de uma pesquisa neste campo para elucidar as principais questões que se apresentam. Segundo, como informado no início deste capítulo, a nossa participação nos acontecimentos, assumindo uma posição política definida, nos tira a isenção necessária que o rigor da interpretação histórica exige. Entretanto, na tentativa de colaborar para uma pesquisa futura, os comentários aqui expostos, se colocados na categoria de depoimento, poderão vir a ter alguma utilidade. O II Congresso Interno do CPPII, ocorrido em junho de 1992, muda o modelo de gestão da instituição. Dois grandes temas perpassam o congresso: o Projeto Assistencial e o Modelo de Gerenciamento. O artigo 2º do regimento daquele congresso destaca: "Art. 2º - são participantes do II Congresso: 1. Delegados: a) - funcionários eleitos nas reuniões das Unidades; b) comunidade em número paritário aos delegados dos funcionários 2. Delegados natos: participantes do Conselho Diretor Tripartite"104 103 A primeira só se preocupou com o uso político da instituição. Desde que as práticas da reforma não interferissem diretamente neste objetivo, e nem havia como, não houve proibições técnicas. Houve, no uso político, um esvaziamento de quadros da instituição. Todos os pedidos eram atendidos, sem a preocupação de reposição de pessoal, o que ajudou a esvaziar o já tão carente quadro de servidores. A última contratação acontecera no início da década de 1980. A segunda direção tinha pretensões assistenciais. Chegou a elaborar um novo organograma para a instituição, no qual se destaca um departamento de pacientes de "longa permanência" (DELONG, no organograma) e a reativação de uma antiga unidade, onde funciona o Centro Comunitário, para a recuperação do papel assistencial de um macro-asilo. O projeto não vai em frente pelo processo da municipalização da unidade que estava em curso. 104 Relatório do II Congresso Interno do CPPII, arquivo do Centro de Estudos do Instituto Nise da Silveira. 90 Na abertura do Congresso um fato marca, de antemão, a mudança do modelo gerencial: a comunidade não aceita participar com seus delegados.105 Estava quebrada a paridade e determinada a mudança na forma de gestão do CPPII.106 Quanto às teses sobre a Proposta Assistencial, nota-se que só a Direção Executiva, afastada durante o Congresso, apresentou uma proposta global para a assistência em saúde mental da instituição, aprovada com adendos das teses particulares que foram também aprovadas.107 O que acontece neste momento é uma disputa entre os "reformistas assistencialistas" e os "políticos" na corrente dos trabalhadores em saúde mental que estavam preocupados com a Reforma Psiquiátrica na instituição. Entretanto, a vitória da corrente "política" vai descaracterizar este papel na instituição. Para ocupar os cargos de direção há, necessariamente, a desativação do Núcleo Sindical. Sua tarefa agora era dirigir o CPPII. A corrente "assistencialista" não ocupa este lugar político. Muito dos seus membros saem da instituição e os que ficam se afastam da arena política para exercerem atividades assistenciais. É a partir deste momento, durante um longo período de nove anos, que as propostas reformistas na instituição entram num período de inércia e há mesmo uma involução, com um retorno às velhas práticas tradicionais da psiquiatria. 105 "Após a leitura do Regimento foram feitos os seguintes destaques: Rogério (membro do Núcleo Sindical do CPPII) e Cosme (membro do Conselho Diretor Tripartite, seguimento comunidade) destacaram o Art. 2º nº 1, letra B. Rogério pediu esclarecimentos sobre a escolha dos delegados da comunidade. Cosme esclareceu que por deliberação da Zonal Suburbana da FAMERJ (Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro) os representantes da Zonal participariam do Congresso como observadores, pedindo que ficasse registrado em ATA. Informou ainda que os delegados natos, representantes da FAMERJ no Conselho Diretor, também abririam mão desta condição e participariam como observadores. Rogério propõe que o item B do Regimento fosse retirado, o que não foi aprovado" ( Ibidem, pg. 3) 106 São 45 votos para a eleição direta; 28 para a manutenção do Conselho Diretor Tripartite; 4 votos para "eleição direta" do Diretor Geral e manutenção do Conselho Diretor; e 2 abstenções. (Ibidem, pg. 9). 107 Teses livres: 1- Projeto Saindo para o Trabalho (tratava de uma feira livre na comunidade); 2 Desconstruindo: para mudar de vida ( sobre atendimento ambulatorial de pacientes internados em uma Unidade de Pacientes Agudos); 3 - Atendimento Ambulatorial e Práticas Alternativas (sobre o atendimento clínico com uma proposta preventivista); 4 - Enfermaria de Crise (modelo de atenção multidisciplinar na internação); 5 - Hospital Vicente Rezende (sobre a atenção à criança e adolescência, que reivindicava a reativação do antigo Hospital de Neuropsiquiatria Infanto-Juvenil); Enfermaria de Alcoolismo (tese defendida pelos Alcóolicos Anônimos). Vale notar que a tese sobre a Casa d'Engenho, projeto que vai acontecer na instituição posteriormente, não foi aceita por não cumprir "preceitos regimentais" do congresso. (Ibidem) a) 91 Como explicar que, sem uma participação ativa das direções do período sobre o projeto assistencial, diferente da intervenção direta que ocorreu na efêmera intervenção de 1988, a maioria das práticas retornem ao leito do velho asilo adormecido? Mesmo que a maioria dos reformistas tivessem já aprendido com BASAGLIA que era na psiquiatria, enquanto saber, que a reforma teria que atacar o modelo manicomial, a lição parecia não ser seguida. A execução do projeto dentro da estrutura asilar estava condenada ao fracasso. O que acontece neste período só vai negar a reforma que parecia acontecer no período anterior. Se os documentos e vídeos da época atestam a efervescência de uma mudança nas práticas, elas só aconteceram enquanto eterna vigilância ativa de um poder instituído. E este poder nunca parece ser suficiente para que as mudanças nas bases do processo aconteçam de forma autônoma. Não porque não tenha criado focos de resistência e porque não existiram experiências fecundas no seu desenvolvimento.108 Elas estão ainda hoje como testemunhas do movimento. Mas o manicômio é mais forte e a sua regeneração é inexorável se não se mata o dragão.109 Esta época tão próxima, ainda tem a nos colocar, pelo menos, duas lições. A primeira, característica da cidade do Rio de Janeiro: sendo os hospitais psiquiátricos federais, eles não estavam, mesmo depois do Sistema Único de Saúde, na rede municipal de saúde. A loucura era federal. Em nenhum momento deste período há propostas concretas de inter-relações com outros serviços da rede de saúde. As propostas não saem do espaço asilar. A comunidade é que é chamada para entrar no espaço da loucura. A loucura não tem como se aventurar na rede de atenção à saúde. O sistema de trocas é tentado no espaço manicomial e não na comunidade. Este problema só vai ser enfrentado quando acontece o processo de municipalização que será tratado a seguir. A segunda lição diz respeito ao modo de reprodução da cultura do manicômio. Aqui, a história não é ensinada para a modificação do presente. O presente está aprisionado na história do manicômio que, pela normatização 108 Como, por exemplo, o Espaço Aberto ao Tempo, a Casa d’Engenho, o Centro Comunitário. No vídeo “Transformações Assistenciais no CPPII”, de 1989, o texto prevê que o manicômio “é como rabo de lagartixa, cresce outra vez, se cortado. Era preciso matar a lagartixa”. (Arquivo do Centro de Estudos do Instituto Municipal Nise da Silveira). 109 92 intrínseca exercida sobre os corpos dos loucos, sempre retorna como uma “experiência de governo (...) paternal e autoritário que tem por objetivo medicalizar, mesmo se é incapaz de medicar” (MACHADO, 1978; 491). Sobre esta lição nos ensina Rotelli: “A deslegitimação dos hospitais psiquiátricos é um processo que envolve, de alguma forma, todo o mundo. Não se deve ter ilusão, contudo, de que esta leve à superação dos mesmos. Na França, mais ou menos há 20 anos, dizia-se que os hospitais psiquiátricos eram uma realidade sociologicamente condenada, resíduos arcaicos dentro da sociedade moderna, que seriam eliminados naturalmente, através da história. Ao contrário, sabemos que os hospitais psiquiátricos deverão ser afrontados radicalmente, ou jamais desaparecerão de fato. (...) O desaparecimento dos hospitais psiquiátricos não tem nenhuma relação com a modernização ou com a modernidade, muito pelo contrário, a sua existência acompanha a modernidade. (...) Na verdade, interessanos que eles desapareçam, pois um papel menor dos hospitais psiquiátricos freqüentemente vem acompanhado de um reforço qualitativo destes, o que não é o objetivo de nossa luta” (ROTELLI, 1991; 88/9). 93 TERCEIRA PARTE: PROPOSIÇÕES ESTRATÉGICAS 94 Capítulo 6: A intenção de chegar ao território: de um engenho de dentro para um engenho do fora "Um modelo é, sem dúvida, uma representação da realidade, cuja aplicação, ou uso, só se justifica para chegar a conhecê-la, isto é, como hipótese de trabalho sujeita a verificação. Da mesma maneira que dos fatos empiricamente apreendidos se chega à teoria por intermédio de conceitos e de categorias historicizadas, volta-se da teoria a coisa empírica através dos modelos. Desta forma, e com ou sem intuito de reformulá-la, submete-se a teoria a um teste, pois a realidade não é imutável. Assim, o modelo se encontra no mesmo nível do conceito neste caminho incessante do vai-e-vem, do fato cru à teoria e desta, de novo, ao empírico. "Este movimento permite que os fatos sejam melhor conhecidos (pela utilização da teoria) e que a teoria seja melhorada (pela prova dos fatos). "Assim, os dois - conceito e modelo - devem permanentemente ser revistos e refeitos; e isto só pode ser obtido levando em conta que tanto a teoria como a realidade se encontram em processo de permanente evolução. "A partir do momento em que se esquece tudo isto e se aplica um modelo congelado para explicar uma realidade em movimento, trata-se de uma violência metodológica pura e simples, cuja aplicação não pode conduzir à realidade científica e sim ao erro" (SANTOS, 2002; 89). Este cuidado sobre o método, contextualizado na preocupação dialética de Milton Santos, deve servir de balizamento para as propostas e intenções do direcionamento apresentados a seguir. O próprio termo "modelo", na linguagem cotidiana, ainda segundo SANTOS (2002; 85), tem usos diferentes: como substantivo significa uma representação; como adjetivo implica numa idealização e enquanto verbo, modelar significa demonstrar algo. Na prática, o uso corrente do termo contém partes destes três significados. De antemão, pedindo desculpa pelo conteúdo afetivo na proposição conceitual que, inevitavelmente, carrega tintas na idealização da "idéia", queremos trabalhar com a representação substantiva e os tempos verbais da demonstração no conceito dialético de permanentemente rever e refazer o modelo frente à realidade mutante. Como adjetivo nunca: no campo psi não existe um modelo ideal. E como estamos 95 trabalhando com categorias historicizadas, os capítulos anteriores nos parecem absolutamente necessários para colocar a instituição, marcada na sua constituição com a herança da história da psiquiatria no Brasil, numa situação ímpar diante da Reforma Psiquiátrica brasileira. Todas as propostas de reformulação apresentadas no decorrer de sua história ficam presas ao aperfeiçoamento de um modelo primeiro, de instância manicomial, que no caso em questão está diretamente afeito ao primeiro manicômio do hemisfério sul, tendo aqui uma dimensão maior nas críticas formuladas por FOUCAULT e BASAGLIA. A história que constitui a instituição examinada tem um poder de aprisionar o presente. Aqui, muito mais que em outro lugar, a instituição deve ser negada. Os modelos que serão apresentados pretendem uma reformulação necessária para a superação do manicômio. E a superação só parece possível com a assimilação dos programas assistencias, já modificados, na rede de saúde da cidade. E a cidade pode oferecer seu território para que a saúde mental possa superar o manicômio. "O território em si, para mim, não é um conceito. Ele só se torna um conceito utilizável para a análise social quando o consideramos a partir de seu uso, a partir do momento em que o pensamos juntamente com aqueles atores que dele se utilizam (SANTOS EM ENTREVISTA A SEABRA & CARVALHO & LEITE, 2000; 22)". Portanto, a proposta que será aqui apresentada parte de dois pontos: a negação da instituição manicomial e a absorção dos programas assistenciais, com as necessárias modificações de ajuste dos modelos à realidade, pelo território. O diferencial com as reformas acontecidas, até aqui, parte do pressuposto da negação do manicômio enquanto lugar das ações propostas. As reformulações que possam estar acontecendo na instituição só serão efetivadas se levadas ao território da área programática, espécie de distrito sanitário na cidade do Rio de Janeiro. Mas a noção de território não pode ser confundida com o espaço geográfico da área programática ou ao bairro do domicílio do sujeito, mas "o conjunto de referências socioculturais e econômicas que desenham a moldura do seu quotidiano, de seu projeto de vida, de sua inserção no mundo. Claro que é uma enorme complicação ajustar este conceito à selva anônima e desumana das grandes metrópoles. Como pensar os territórios subjetivos e, portanto, a área de alcance das intervenções 96 de atenção psicossocial, no meio das balas perdidas da crise urbana? Que cidade real será capaz de sediar a pólis da antiga utopia grega, lugar onde convivem harmonicamente os cidadãos livres? Mais que livres, desejamos hoje que sejam fraternos, iguais em direitos, e tolerantes em suas diferenças. Uma rede de atenção psicossocial faz parte deste esforço de construção de uma cidade capaz de abrigar em harmonia os inumeráveis territórios subjetivos. Retornando ao modo de realizar o cuidado psicossocial, um serviço só será possível se, localizado em um bairro, emoldurado pelas referências sociais e culturais daquela comunidade específica, puder dar uso prático ao conceito de território. Para cada cliente, seu território familiar, cultural, mitológico, socioeconômico, jurídico. Este me parece um desafio teórico, com notáveis implicações clínicas, e que só passou a ter existência com a regionalização do atendimento e a criação de serviços locais de atenção psicossocial." (DELGADO, 1997-B; 42). A partir da segunda metade dos anos 90, o município do Rio de Janeiro vem experimentado, embora timidamente, a criação de serviços locais de atenção psicossocial, com um resultado muito positivo, como efeito demonstrativo do novo modelo. Em maio de 1996, foi inaugurado o primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), com o nome de Rubens Corrêa, no bairro de Irajá. Em 1997 dois outros foram implantados: em janeiro, o CAPS Pedro Pelegrino, em Campo Grande e em março, o CAPS Simão Bacamarte, em Santa Cruz. Naquela época uma avaliação assim era feita: "A montagem destes serviços não é uma tarefa fácil. Por um lado estamos construindo uma lógica de cuidados para uma clientela que historicamente nunca foi objeto da Secretaria Municipal de Saúde. Por outro lado, a construção de dispositivos de atenção com a perspectiva de tratamento e reabilitação psicossocial deve ser cautelosa e atentar para o risco de repetição do modelo excludente do manicômio no microespaço do novo serviço. Ou seja, além da constituição de uma ética de cuidados, é necessário estar atento para a desconstrução das relações, dos valores, dos comportamentos, das atitudes, decorrentes da concepção de negatividade da loucura" (FAGUNDES & LIBÉRIO, 1997; 34). Os cuidados com estes primeiros serviços locais de atenção psicossocial foram necessários para consolidar um modelo assim definido: "Os CAPS representam algo mais que uma mera alternativa ao modelo hospitalar predominante, funcionando de forma a evitar as internações psiquiátricas e diminuir sua reincidência, mas sobretudo, por possibilitarem o desenvolvimento de laços sociais e inter-pessoais 97 essenciais para o estabelecimento de novas possibilidades de vida." (FAGUNDES E& LIBÉRIO, 1997; 33). Em 1998 foi a vez da Ilha do Governador ter o CAPS Ernesto Nazaré e, no ano seguinte, em Jacarepaguá, era inaugurado o CAPS Artur Bispo do Rosário e em Bangu, o CAPS Lima Barreto e o CAPS Infanto-Juvenil (CAPSi) Pequeno Hans, primeiro serviço local para o atendimento de crianças e adolescentes na cidade, que foi seguido do segundo, em Jacarepaguá, o CAPSi Helena Santa Rosa. A figura abaixo mostra a distribuição destes dispositivos na cidade do Rio de Janeiro e a projeção prevista para este ano. Na área de planejamento 3.2, o CAPS previsto é a saída para um bairro próximo e de referência de um dos serviços de atenção diária do Instituto Municipal Nise da Silveira, que serão tratados adiante. CAPS existentes CAPSi existentes CAPS projetados AP 3.1 AP 3.3 AP 5.1 AP 3.2 AP 1 AP 5.3 AP 5.2 AP 2.2 AP 4 AP 2.1 A distribuição dos serviços de saúde no município do Rio de Janeiro se faz de maneira bastante desigual dentro das áreas de planejamento (APs) em que foi dividida a cidade. Nas APs 1 (zona centro) e 2.1 (zona sul) está concentrada a maioria dos serviços de saúde da cidade. Nas APs 2.2 (zona norte), 3.2 (Grande Méier, onde está localizado o complexo do Engenho de Dentro) e 4 (Jacarepaguá e Barra da Tijuca), a rede de saúde só não é suficiente pela pressão de demanda das outras áreas, onde a escassez de serviços de saúde é dramática. Na zona oeste (APs 5.1, 5.2 e 5.3, Bangu, Campo Grande e Santa Cruz, respectivamente), 98 o "vazio sanitário" é um problema crônico, num território de grandes distâncias, com o agravante de possuir áreas de grandes concentrações populacionais entrecortadas com paisagens rurais. Mais grave ainda é a situação sanitária do subúrbio carioca (APs 3.1 e 3.3), que possui a maior concentração de habitantes por metragem quadrada dentro de um território com os menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) da metrópole, onde são piores as habitações, saneamento, serviços públicos de qualquer natureza e maiores os níveis de violência em comunidades abandonadas pelo poder público. A distribuição dos serviços de atenção diária de base territorial, do Programa de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde, se fez dentro de uma lógica de prioridade para as comunidades carentes, como pode ser evidenciado na figura acima. Entretanto, apesar do efeito demonstrativo da qualidade do atendimento,110 não há possibilidade de cobertura, mesmo com a projeção de novos serviços. Os CAPS estão trabalhando com uma pressão de demanda impossível de ser atendida. Para exemplo, tomemos a área de planejamento do primeiro CAPS em funcionamento: a AP 3.3 possui uma população de mais de 1 milhão e 200 mil habitantes, comportando, no mínimo, seis serviços de base territorial.111 Apesar das dificuldades encontradas, o modelo proposto aponta para uma mudança da atenção em saúde mental, antes centrípeta em direção ao hospital psiquiátrico. O nível de satisfação do usuário com o sistema de saúde mental da cidade parece estar colocado em dois extremos: satisfatório, para os que conseguem ingresso no sistema; péssimo ou inalterado em relação à situação anterior, para os que não têm acesso ao novo modelo. Entretanto, é dentro deste planejamento estratégico, para a ocupação da saúde mental da cidade, dentro do modelo de serviços de atenção diária de base territorial, que acontece o conjunto de reformas atuais no complexo hospitalar do Engenho de Dentro. 110 Dentre os indicadores de eficiência destes dispositivos, pode ser destacada a taxa de reinternações psiquiátricas dos pacientes dos CAPS que teve uma queda significativa (Relatório de Atividades da Coordenação de Saúde Mental) e o nível de satisfação do usuário e familiares (LIBÉRIO, 1999). 111 Em Trieste, Itália, calculou-se um serviço territorial para 70.000 habitantes. No Brasil tenta-se trabalhar com um máximo de 200.000 habitantes por serviço, o que exigiria um total de 30 serviços na cidade. 99 Engenho de Dentro O Centro Psiquiátrico Pedro II, complexo hospitalar do Ministério da Saúde, é municipalizado em janeiro de 2000. Neste momento, este complexo era constituído por: um Bloco Médico Cirúrgico, prédio de oito andares com o funcionamento de apenas duas enfermarias clínicas, com 30 leitos, uma enfermaria psiquiátrica de crise, um ambulatório clínico, um ambulatório psiquiátrico e a emergência psiquiátrica; a Unidade Hospitalar Adauto Botelho, prédio de seis andares com duas enfermarias de agudos e quatro enfermarias de pacientes crônicos; a Unidade Hospitalar Gustavo Riedel, prédio de três andares, com uma ala para atendimento infanto-juvenil (enfermarias com 30 leitos e ambulatório), outra ala para moradores com alguma autonomia e uma enfermaria de pacientes crônicos; a Unidade Hospitalar Odilon Galotti, prédio de três andares, com a maioria dos espaços desativados, com espaços ocupados por projetos comunitários- o Centro Comunitário, contendo ainda um abrigo para crianças da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social; o Pavilhão Braule Pinto, prédio de dois andares e um anexo contendo uma escola para alunos especiais (Escola Ulisses Pernambucano), um Núcleo de Artes e um Centro Escolar, todos projetos da Secretaria Municipal de Educação, além de um hospital-dia para crianças autistas; o Museu de Imagens do Inconsciente, prédio de dois andares com o acervo e oficinas terapêuticas do Museu; o Espaço Aberto ao Tempo, hospital-dia funcionando no antigo pavilhão infanto-juvenil; a Casa d'Engenho, hospital-dia funcionando em duas casas do complexo; e o antigo Hospital de Neuropsiquiatria Infanto-Juvenil, prédio de dois andares completamente desativado. Mesmo contendo apenas 350 leitos em espaços que, nos momentos de pujança do manicômio, já possuíra mais de 1500 almas dentro de suas enfermarias, cada prédio conservava sua autonomia, sua história, uma direção 100 herdeira da história de outras direções e uma equipe com saudades do passado. Como exemplos, a equipe do projeto de atenção à infância e adolescentes sonhava com a volta ao velho prédio de neuropsiquiatria. A Unidade Hospitalar Gustavo Riedel, que agora hospedava o hospital infanto-juvenil, contava com apenas uma enfermaria de pacientes crônicos (20 leitos), mas mantinha uma direção com um gabinete com a mesma estrutura de quando a unidade tinha 200 leitos. A Unidade Hospitalar Adauto Botelho possuía enfermarias de pacientes agudos, pacientes crônicos e um ambulatório de egressos funcionando como uma unidade autônoma. O processo de municipalização não foi bem recebido na instituição. Temiase a desativação do manicômio e do seu projeto, primeiro desde a sua vocação imperial como monumento, depois na destinação do Centro Psiquiátrico como referência nacional. O temor se justificava. Na posse da primeira direção na instituição municipalizada foi explicitado que o Centro Psiquiátrico Pedro II deveria deixar de ser um centro para que as ações centrípetas de saúde mental fossem transformadas em movimentos centrífugos em direção à rede de saúde municipal e de base territorial.112 Proposições estratégicas ainda no lado de dentro, mas que possibilitem ações do lado de fora Em setembro de 2000, o Centro Psiquiátrico Pedro II, através de decreto do prefeito da cidade do Rio de Janeiro,113 passa a ser denominado Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira. No mesmo momento, o prédio do antigo Bloco Médico Cirúrgico passa a denominar-se Hospital Municipal de Reabilitação, separando-se do complexo do Engenho de Dentro.114 Veremos a seguir a primeira versão da proposta de mudança decorrente do processo de municipalização. O texto foi produzido antes da atual proposta de 112 Conferir vídeo "Solenidade de posse do Diretor do CPPII", de 17 de abril de 2000. Biblioteca do Instituto Municipal Nise da Silveira. 113 Decreto "N" nº 18917 de 05/09/2000 publicado no Diário Oficial Municipal do dia seguinte. 114 A publicação em Diário Oficial sobre a estrutura de uma nova unidade só vai acontecer em 16/01/2003, mas o Hospital Municipal de Reabilitação já vinha funcionando de forma autônoma. 101 mudanças na instituição. Apesar de longa, a citação integral das propostas primitivas é necessária para a comparação com a realidade existente. "A ruptura do modelo manicomial, inerente à estrutura organizacional do antigo CPPII, hoje é tarefa prioritária para o Programa de Saúde Mental da cidade do Rio de Janeiro, sob pena deste modelo ultrapassado, mas de uma força histórica considerável, pôr em risco a hegemonia do modelo dos centros de atenção diária. Há um lugar, ocupado ainda pelo manicômio, que deve sofrer as transformações necessárias para a consolidação de um projeto da Reforma Psiquiátrica no município. "A lógica do modelo das instâncias de departamentos entre internação, emergência e ambulatório traz em si a força centralizadora da enfermaria, do leito, para onde são drenados e, quase sempre, depositados os casos diagnosticados como mais graves. O próprio nome, Centro Psiquiátrico, em contraposição ao Centro de Atenção, tem uma função simbólica que deposita na psiquiatria o seu poder centralizador de um saber sobre a doença, sem prestar a atenção que o doente requer(...) "Voltando a invenção em curso para desconstruir este hospital psiquiátrico: "A polêmica do nome: Nise da Silveira não precisa de apresentações. A psiquiatra rebelde foi peça de resistência dentro desta instituição. Vale lembrar que CPPII foi uma homenagem da ditadura militar aos anseios do império. Como instrumento de ditaduras (Vargas, Castelo Branco), as mudanças do nome desta instituição foram operadas por decreto-lei. Na democracia o decreto-lei fica vazio e possível de mudanças dependendo da alternância de grupos políticos no poder. Portanto, o nome hoje tem apenas uma importância simbólica: direciona um desejo de mudança. Talvez mais no nível interno: toma partido entre práticas tradicionais e a Reforma. "A importância histórica: O Centro Comunitário já vem organizando um museu da história do Centro Psiquiátrico Pedro II: vasto material fotográfico documentando construções de pavilhões, inaugurações, festas, enfermarias, além de galeria dos personagens históricos, diretores, visitantes; objetos de uso histórico: camisa de força, aparelhos de eletrochoque, seringas de insulinoterapia, balanças de precisão, acervo da histopatologia (fetos, cérebros, órgão internos); móveis e camas que existiram no passado nas enfermarias; placas de inauguração de serviços, entre outros. A Reforma pressupõe uma ruptura com o manicômio. A possibilidade de colocar o CPPII no museu também é simbólica. Sabemos que as práticas asilares permanecem em vários setores da instituição e é nelas onde devemos operar a desconstrução. 102 "Inverter a Hierarquia Institucional: A lógica manicomial trabalha com porta de entrada sem porta de saída, conforme foi exposto no sistema de vasos comunicantes que tende a transbordar a instância da internação. Ora, a Reforma Psiquiátrica pressupõe estreitar a porta de entrada, uma missão para os serviços de atenção diária que atuam a partir do território e abrir uma porta de saída através da consolidação de um programa de moradias. No Instituto temos em funcionamento quatro serviços de atenção diária (dois de adultos, um de crianças e outro de adolescentes)115, além das oficinas do Centro Comunitário e do Museu de Imagens do Inconsciente. Está sendo estruturada uma proposta de territorialização destes serviços para que tenham autonomia e que sejam responsáveis pelo mapeamento e decisão da melhor forma de tratamento para sua clientela. Assim, dentro do território estabelecido, são estes serviços que devem regulamentar a utilização da Emergência e da Internação, sendo os serviços substitutivos colocados para a clientela do território antes do oferecimento dos mecanismos tradicionais da porta de entrada. Por outro lado, o Programa de Moradias (hoje responsável por pensões e moradias protegidas no espaço do Nise da Silveira, mas com um projeto a ser implantado a curto prazo de Residências Terapêuticas na comunidade) deve ser responsabilizado pelos moradores nas enfermarias de internação invertendo o fluxo hierárquico para a efetivação da porta de saída. "A Responsabilidade no Território: O compromisso proposto é com o rompimento do modelo manicomial para a implantação de programas dentro dos preceitos da Reforma Psiquiátrica. Reforma que tem um compromisso com o território e com a atenção integral ao usuário de qualquer dispositivo de atenção. Dispositivos que possam ser criados para tirar o cliente do circuito das instâncias do modelo tradicional, com sua característica centrista na enfermaria, no leito(...) "Encontrar a Porta de Saída: O Instituto Municipal Nise da Silveira tem hoje 300 leitos (longe já se vão os anos de mais de um milhar de internos), dos quais a metade para a internação de curta e média permanência e a outra metade, de moradores.São 150 moradores, dos quais só 53 nos projetos de pensões e moradias assistidas internas. São quase cem pessoas morando em enfermarias de características manicomiais. O Programa de Moradias hoje responde pela regulamentação destes internos em busca de uma porta de saída. A construção deste inventar já atende na forma de pensões protegidas, república de passagem e moradias independentes no espaço interno do Instituto. Estamos no caminho da construção de Residências Terapêuticas na comunidade. Este Programa discute hoje a transformação de enfermarias em espaços residenciais protegidos para 115 Espaço Aberto ao Tempo, serviço de atenção diária com 180 clientes cadastrados; Casa d'Engenho, serviço de atenção diária que funciona como hospital-dia para 30 vagas diárias; Casa Cor, serviço de atenção diária para atendimento de crianças em parceria com uma turma especial da Secretaria de Educação que funciona no Instituto; Centro de Atenção Psicossocial para adolescentes iniciado no mês de abril/2001. 103 os idosos e para os que precisem de cuidados mais intensos: o desafio é a transformação do espaço arquitetônico das enfermarias para que o recorte espacial normativo possa ser substituído por um espaço da individualidade que permita o fluir da temporalidade. "Permear o Espaço da Instituição a Projetos Comunitários: O Projeto do Centro Comunitário vem sendo construído há quase uma década. A condução do processo de desconstrução do hospital psiquiátrico hoje provoca a visibilidade destas ações que antes eram marginalizadas. Os trabalhos de dança, culinária, terceira idade e o funcionamento da Rádio Comunitária, por exemplo, levam para o mesmo espaço de trocas sociais a comunidade que mora no entorno do hospital e os clientes internos e externos. Dois eventos de grande porte demonstram esta integração: o Bloco "Loucura Suburbana" composto de pacientes do Nise e de outros serviços de Saúde Mental, inclusive do interior do estado, com participação de alas da comunidade de moradores, inaugurou este ano o Carnaval de rua, que promete repetir nos próximos carnavais. Um show musical com conjuntos e composições de usuários do Nise e de outros serviços com a participação do compositor Lobão, coloriu o espaço cinzento do hospital numa noite memorável com a participação de moradores dos bairros vizinhos cujo acesso foi trocado por doações de móveis e utensílios para o Programa de Moradias. "A Visibilidade da História: O Museu de Imagens do Inconsciente, com um acervo de 350.000 obras que documenta o trabalho de pesquisa da Dra. Nise da Silveira, não é conhecido dos cariocas. Visitantes estrangeiros e de outros estados o conhecem mais. O módulo da Loucura, na Mostra do Descobrimento Brasil 500 Anos mostrou a importância deste trabalho. É proposta a organização de exposições permanentes abertas ao público, também nos finais de semana, e que constem no calendário turístico da cidade. O Museu da História do Centro Psiquiátrico Pedro II vem se organizando para receber visitantes e pesquisadores. A Biblioteca do Centro de Estudos hoje está num espaço adequado para a pesquisa, possuindo obras raras em edições originais do antigo Hospício de Pedro II. "Entretanto, como estamos falando da difícil arte do inventar, as propostas anunciadas não fazem parte de um roteiro de cumprimento obrigatório. A avaliação diária e a certeza de que muito ainda se tem por fazer e o refazer de propostas são inerentes à desconstrução do hospital psiquiátrico. "Para um trabalho de tamanha envergadura, devemos ter no horizonte a "utopia da realidade", conceito desenvolvido por Basaglia, em contraponto à utopia-ideologia116, que permite transceder a realidade para operar uma transformação institucional. 116 Esta seria a ideologia da transformação, mas que por não poder revelar as contradições de uma realidade, termina por justificar o imobilismo. 104 "O esforço que se fez aqui foi o de imaginar caminhos para a transformação, já que faz parte da utopia o imaginar. No entanto sabemos que o caminhar nesta transformação faz o próprio caminho. O que significa que estas propostas aqui defendidas são mutantes" (OLIVEIRA, 2002). A intenção destas propostas, no entanto, parecia impedida pela estrutura organizacional do manicômio. Esta estrutura mantinha o modelo arcaico em funcionamento. A estrutura das diversas unidades hospitalares do Complexo do Engenho de Dentro, baseada na história da instituição, impossibilitava a mudança proposta. Isto é, a estrutura arcaica da forma de direção existente não permitia o desenvolvimento do novo modelo. Era necessária a implantação de um novo modelo na estrutura organizacional de direção do Instituto para que um novo modelo clínico pudesse existir. E, se o direcionamento do modelo clínico fosse na direção do território, na superação do manicômio, a estrutura organizacional interna, na forma de gerir a instituição, deveria, ela mesma, possuir o paradoxo de sua própria superação. Assim, a estrutura organizacional proposta deveria ser datada, neste momento de transformação, permitindo a sua extinção a partir do êxito de sua missão. É neste sentido que acontece uma radical transformação na estrutura organizacional do Instituto. Extinguem-se os cargos de diretores de unidades hospitalares do Complexo do Engenho de Dentro, extinguindo-se os limites geográficos e arquitetônicos do modelo arcaico da estrutura manicomial, e é proposto um Conselho de Diretores de Programas Assistenciais, a partir da proposta clínica para cada seguimento de projetos que seriam desenvolvidos no território. Isto significa que cada Programa Assistencial passa a ser desenvolvido dentro de uma fronteira clínica, e não arquitetônica e geográfica do modelo arcaico anterior. E o êxito de cada Programa Assistencial proposto pressupõe a extinção da estrutura organizacional existente. Vejamos assim a formulação estratégica de cada programa existente: 1. Atenção Clínica: Ao longo da história da instituição, a constituição de um Bloco Médico Cirúrgico no Engenho de Dentro (datado da década 105 de 40) propiciou uma verdadeira distorção na atenção às doenças clínicas em pacientes psiquiátricos: um hospital clínico especializado para loucos. A inserção dos pacientes da Instituição na rede de saúde do município do Rio de Janeiro passou a ser o objetivo deste programa. A transformação do Bloco Médico Cirúrgico no Hospital Municipal de Reabilitação, que será tratada adiante, favoreceu a consolidação do programa de atenção clínica dos pacientes da instituição na rede de atenção à saúde da cidade. 2. Programa de Atenção Psicossocial: Sob a direção deste programa foram subordinados o Ambulatório de Saúde Mental e os Hospitais-Dia: Espaço Aberto ao Tempo, Casa d'Engenho e Centro de Convivência, este último resultado da transformação do ambulatório de egressos da antiga Unidade Hospitar Adauto Botelho em um Serviço de Atenção Diária. Este Programa tem como objetivo a transformação dos Hospitais-Dia em Centros de Atenção Psicossocial no território da Área Programática 3.2 e a descentralização do Ambulatório Central do Engenho de Dentro para a rede básica de saúde municipal da mesma área, como será visto mais adiante. 3. Programa de Moradias: Enfermarias de pacientes crônicos, pensões protegidas e lares abrigados foram referidas a este Programa, independente da localização arquitetônica nas antigas unidades da instituição. O Programa propõe considerar que os moradores do Instituto, na sua maioria, são sujeitos para os quais ações executadas em enfermarias psiquiátricas mais produzem efeitos iatrogênicos que de saúde, e que as ações individualizadas com ênfase num programa residencial terapêutico podem recuperar alguma auto estima, requisito essencial para a saúde mental de cada um. Para este Programa, enfermarias devem ser transformadas em alojamentos, em pensões protegidas, até a saída para o território num Programa de "Serviços Residenciais Terapêuticos em Saúde Mental," dos quais trata a Portaria 106 do Ministério da Saúde, de 11 de fevereiro de 2000. 106 4. Programa de Internação Psiquiátrica: A Emergência do antigo ProntoSocorro Psiquiátrico e todas as enfermarias de pacientes agudos do Instituto ficaram subordinadas a uma mesma gerência, independente do espaço físico ocupado na Instituição, com a finalidade de organizar uma porta de entrada e uma porta de saída que se relacionem com os dois programas anteriores e com a rede de ambulatórios e de CAPS da cidade do Rio de Janeiro, respeitando os princípios de regionalização e territorialização da atenção em saúde mental. 5. Programa de Atenção à Criança e ao Adolescente: Na gerência deste Programa ficaram as ações dirigidas a esta clientela com uma permanente interlocução com os outros programas da Instituição e com a rede de ambulatórios e CAPSis do município do Rio de Janeiro. 6. Centro Comunitário: Programa responsável por reforçar as ações de organizações não-governamentais e da comunidade organizada nos programas da Instituição e na rede de saúde mental da cidade. 7. Museu de Imagens do Inconsciente: Projeto para que este museu, único no mundo e reconhecido internacionalmente, ocupe um lugar de destaque na história da psiquiatria brasileira. 8. Centro de Estudos: Projeto voltado ao treinamento, desenvolvimento e formação de recursos humanos para a rede de saúde mental do município. Esta proposta foi fruto de um planejamento estratégico com o objetivo de ações para: primeiro, criar uma estrutura organizacional na Instituição de forma horizontal a partir de programas que se interpenetram; segundo, que esta estrutura possa permitir a saída destes programas para o território, dentro do Programa de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde, ou, no caso de permanecerem neste espaço, construírem um novo território comunitário no lugar do espaço asilar. Antes de iniciarmos a última parte deste trabalho, duas preocupações devem ser colocadas, já que são inerentes à elaboração de propostas dentro de um movimento institucional em acontecimento, pertencentes à própria dinâmica 107 da mediação de modelos com a interação da realidade, que está em permanente mutação, como alertou Milton SANTOS nas citações anteriores. Primeiro, deve-se ter em consideração que "as propostas anunciadas não fazem parte de um roteiro de cumprimento obrigatório. A avaliação diária e a certeza de que muito ainda se tem por fazer e o refazer de propostas são inerentes à desconstrução do hospital psiquiátrico". Segundo que, mesmo que o êxito das propostas possa vir a acontecer, elas não necessariamente serão da forma como previstas na descrição a seguir. Um Engenho do Fora Sendo ainda muito longo o caminho a percorrer para a superação do manicômio, neste momento apresentamos um balanço do direcionamento em curso na Instituição. As propostas apresentadas estão em consonância com as deliberações da III Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em Brasília, DF, entre 11 e 15 de dezembro de 2001, conforme seu Relatório Final. A mudança da estrutura organizacional está possibilitando o momento de transição atual entre o dentro e o fora da instituição. A própria intenção da construção deste texto tem o sentido de permitir esta passagem, mesmo que muitos ajustes sejam necessários à sua efetivação. Este trabalho pretende registrar esta tentativa de mudança. Mesmo que ela não aconteça em decorrência desta intenção, a Reforma Psiquiátrica no Rio de Janeiro, inevitavelmente, tem na sua pauta a superação deste manicômio e de sua história. Em resumo, transcrevemos a seguir, algumas conquistas transacionais entre o dentro o fora em andamento na proposta de desconstrução. Atenção em Clínica Médica Como já foi relatado, o antigo Centro Psiquiátrico Pedro II, em setembro de 2000 foi denominado Instituto Municipal Nise da Silveira e separado do Bloco 108 Médico Cirúrgico, que passou a ser denominado Hospital Municipal de Reabilitação, com outra vocação assistencial. O antigo Bloco Médico Cirúrgico, com o sucateamento ocorrido no serviço público nos anos 1960 e 70, já vinha em processo de desativação. Mesmo com a última reforma de suas instalações, ocorrida na década de 80, na intenção dos reformistas da época de municipalizarem a unidade para um atendimento aberto à comunidade, ele nunca recebeu recursos humanos que permitisse seu pleno funcionamento e nem interessou às autoridades municipais. Vinha sendo desativado pelo desuso e por falta de proposta técnica. Tinha duas enfermarias para atendimento aos pacientes psiquiátricos internados no antigo CPPII e um ambulatório com algumas especialidades, que existiam no interesse dos médicos e não da demanda. Internava apenas os pacientes psiquiátricos com intercorrências clínicas. Num estudo realizado durante o primeiro semestre de 2000 evidenciou-se que o índice de óbitos nas suas enfermarias estava em torno de 30%, níveis encontrados em centro de internação intensiva de alta complexidade. Decidiu-se, na ocasião, que os pacientes psiquiátricos com intercorrência clínica deveriam ser atendidos na rede de saúde comum aos usuários não internados na psiquiatria. Mas, para que esta proposta pudesse ser viável, era necessário o desaparecimento deste dispositivo manicomial histórico: o hospital clínico para internar loucos. E, enquanto esta desativação não ocorreu, a internação dos loucos e doentes físicos continuava a acontecer por uma pressão interna e externa. Interna, pela pressão histórica do "sempre assim será". Externa, pela existência do dispositivo especializado. Ora, há anos a comunidade já aprovara no Conselho Distrital da Área de Planejamento 3.2 a transformação do antigo Bloco Médico em um hospital de apoio ou de reabilitação. Com a municipalização do Complexo do Engenho de Dentro acontecia a possibilidade de uma ação política para a implementação da proposta. E assim nascia o Hospital Municipal de Reabilitação, destinado a doentes em recuperação cirúrgica que necessitassem de reabilitação física. Mesmo que esta proposta ainda não tenha acontecido em sua plenitude (ele continua com o mesmo número de leitos e com falta de investimento para a consolidação da proposta), a mudança de seu perfil obrigou a psiquiatria buscar 109 na rede de saúde da área a solução para os problemas de intercorrências clínicas dos pacientes internados. Com as dificuldades iniciais na mudança de uma prática historicamente determinada, hoje podemos dizer que a atenção às intercorrências dos pacientes internados na psiquiatria está consolidada na rede de saúde da área e ocorre de forma natural. Com a extinção de um dispositivo inoperante acontecia uma transformação na assistência clínica e cirúrgica dos pacientes psiquiátricos internados, mudando, sobremaneira, a qualidade do cuidado. A conclusão desta ação exitosa, interferindo na própria percepção dos serviços de saúde em relação ao paciente psiquiátrico, reforçou a intensidade e implementação dos outros programas. Atenção Psicossocial A organização de uma "porta de entrada" para o atendimento dos casos de emergência e de pronto atendimento impôs, como missão, a responsabilidade pelo atendimento integral em saúde mental no território da área de planejamento 3.2 (Grande Méier, composto pelas XIIª, XIIIª e XVIIIª regiões administrativas, com uma população de aproximadamente 600.000 habitantes). Dentro desta organização, os três Hospitais-Dia foram sub-regionalizados dentro da área programática, cada um ficando responsável por uma sub-região, conforme visualização na figura abaixo. A proposta desta divisão prevêr a saída dos serviços para a área geográfica de sua responsabilidade. Neste momento, o primeiro Hospital-Dia que sai para a comunidade (e assim assume o seu papel de um Centro de Atenção Psicossocial) é o Espaço Aberto ao Tempo, que está sendo transferido para o bairro do Lins, ficando localizado no território da clientela que a ele já está sendo referida. Como conseqüência à descentralização do ambulatório da instituição na rede básica de saúde do município, existe a proposta de sua deistribuição conforme a territorialização, visualizada na figura abaixo, nos postos e centros de saúde hoje existentes na rede. 110 Com esta proposta, em fase de implantação, temos uma cobertura territorial em saúde mental, na comunidade. O complexo do Engenho de Dentro derrama-se para fora, na proposta de atenção territorial e descentralização dos serviços presos na história do manicômio. Espaço Aberto ao Tempo Grande Méier: 235.959 hab. Casa d’Engenho Inhaúma: 215.361 hab. Centro de Convivência Eng. de Dentro: 113.511 hab. Postos de Saúde ou PAM Esta ocupação territorial, prevista no mapa acima, em relação aos ambulatórios, não necessariamente ocupará todos os pontos potenciais indicados, mas se dará na medida das possibilidades e demandas. De qualquer forma, o planejamento estratégico em discussão propõe uma ocupação territorial e integração destes serviços à rede de saúde mental do município. No espaço institucional, a proposta pretende a permanência de um CAPS referenciado à sua população adstrita, entre eles os moradores (denominação para os antigos pacientes crônicos) que permanecerão na instituição dentro do programa de moradias, que será examinado na seqüência. Também o ambulatório nuclear, que restará dentro da instituição, na proposta estratégica, terá uma missão diferenciada dos atuais serviços ambulatoriais. Sua missão será, prioritariamente, examinar a situação dos 111 pacientes que estão sendo internados, para o encaixe deles, caso a caso, na rede de atenção psicossocial da cidade. Numa proposta em construção, como já foi sinalizado, os modelos deverão ser submetidos a um teste de realidade com os ajustes necessários. O essencial nesta construção é a descentralização dos serviços do interior do antigo espaço manicomial para o território comunitário e o preenchimento deste espaço por serviços não exclusivos aos loucos, como no antigo manicômio, mas serviços de atenção à comunidade que incluam ações em saúde mental. Programa de moradias Seguindo as recomendações da legislação em vigor (Portaria MS 106/2000,117 bolsa auxílio-desospitalização118), a instituição vem trabalhando em três frentes para a ressocialização possível de parcela de sua clientela de pacientes antes ditos crônicos. Primeiro, através da bolsa auxílio-desospitalização, com reintegração de alguns pacientes em suas famílias, proposta que tem um limite, dado o rompimento de laços afetivos, sociais e familiares provocados por um longo período de internação no antigo modelo manicomial. Segundo, a mesma bolsa possibilitou a pacientes com um maior grau de autonomia partirem para o aluguel de casas, sendo assistidos por visitas domiciliares do Programa de Moradia da instituição e recebendo atenção nos serviços territoriais em saúde mental. Mesmo não sendo este um número expressivo quantitativamente, é surpreendente o grau de autonomia alcançado por pacientes com mais de trinta anos de internação psiquiátrica.119 117 Cria e regulamenta o funcionamento dos "Serviços Residenciais Terapêuticos". "Desde a 2ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em dezembro de 1992, já se apontava a importância estratégica, para a reestruturação da assistência psiquiátrica, da implantação de lares abrigados, agora mais apropriadamente designados de serviços residenciais com função terapêutica, parte que são do conjunto de cuidados no campo da atenção psicossocial. Esta portaria tem um papel crucial na consolidação do processo de substituição do modelo tradicional, pois possibilita desenvolver uma estrutura que contrapõe-se à tão propalada, e para alguns insubstituível, 'hospitalidade' do hospital psiquiátrico" ( MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002; 89). 118 Lei nº 3400 de 17 de maio de 2002, "Cria a Bolsa de Incentivo para Assistência, Acompanhamento e Integração fora de unidade hospitalar de paciente portador de transtorno mental com história de longa permanência em unidade hospitalar psiquiátrica". 119 Aqui autonomia não leva em consideração o quadro clínico psiquiátrico, mas o nível de relações alcançadas na comunidade. Sobre o conceito de autonomia ver TYKANORI (1996). 112 Em terceiro lugar, a combinação da bolsa com a instituição de residências terapêuticas, financiadas pelo instrumento da Portaria 106/2000, vem possibilitando a saída de um número maior de pacientes longamente internados.120 Entretanto a grande maioria de moradores continua a ocupar espaços de enfermaria na instituição. Para estes foi proposta uma reformulação arquitetônica de uma unidade da instituição, projeto aprovado, aguardando a liberação de recursos, e detalhado numa tese de mestrado da arquiteta Maria Paula Zambrano Fontes (FONTES, 2003), autora do projeto. Sobre a requalificação dos espaços do antigo pavilhão Adauto Botelho a autora escreve: "Quanto ao pavimento tipo, o programa fornecido pela Instituição já se encontrava bastante definido, compondo-se, basicamente, da concepção dos apartamentos, no lugar das atuais enfermarias. A ele foi acrescentada a ampliação do número de apartamentos, eliminando os ambientes atualmente destinados às equipes. Propomos que as equipes ocupem apartamentos comuns, iguais aos pacientes, de modo a permitir uma maior integração entre os clientes e funcionários, reduzindo a sensação de hierarquia entre eles. Desenvolvemos, também, diferentes tipos de apartamentos, de modo a flexibilizar a sua ocupação. Foram criados apartamentos de um e dois quartos, a serem ocupados por duas a quatro pessoas. "Os apartamentos possuirão uma pequena copa, para que os clientes possam, de acordo com suas condições de autonomia, preparar suas próprias refeições. "Foi criada uma área central de convívio e refeitório (para os clientes que não quiserem utilizá-la, haverá espaço para refeições nos apartamentos), já que as alas não terão mais as portas de grades na sua entrada. O espaço das circulações se encontrará livre, integrado às duas alas de moradias. "Cada ala contará, em sua extremidade, onde atualmente se localiza o banheiro coletivo, com uma área de serviço, onde os moradores poderão proceder aos cuidados com suas roupas. "O dimensionamento dos vãos das portas e ambientes, especialmente os banheiros privativos dos apartamentos foi projetado segundo as normas da ABNT para acessibilidade. Os banheiros deverão receber, conforme a necessidade, equipamentos para portadores de dificuldades de locomoção, como barras de apoio e bancos. 120 A primeira residência, para quatro ex-pacientes, foi viabilizada em outubro de 2003. Nesta primeira etapa já há liberação de recursos para mais três residências terapêuticas, em fase de implantação. 113 "Durante a pesquisa de campo, foi observado que algumas clientes não gostam de descer ao térreo para atividades, que outras gostam de realizar trabalhos manuais, e que algumas atividades, como musicoterapia, às vezes são realizadas nos halls dos pavimentos. Por isto, foi criada, por pavimento, na área central, uma oficina, onde estas atividades possam ser realizadas com mais conforto. "Foi eliminado o posto de enfermagem, considerado desnecessário, segundo alguns entrevistados, sendo mantida apenas uma sala de serviços, que também poderá ser utilizada para as reuniões das equipes" (FONTES, 2003): 155/6). Esta longa citação sobre a requalificação dos espaços destinados a moradias internas mostra o refinamento do projeto elaborado por FONTES, que partiu de uma discussão interna com os funcionários e pacientes a quem o projeto se propõe a abrigar. No proposta de restruturação assistencial este prédio não será destinado exclusivamente a moradores egressos do hospital psiquiátrico, como será explicitado na seqüência. A projeção futura para o Instituto Municipal Nise da Silveira O projeto de ocupação do espaço institucional passa por uma reformulação do projeto assistencial. A radicalidade da descentralização imposta na desmontagem manicomial impõe, por sua vez, uma nova destinação da missão organizacional das formas de ocupação do espaço. Da mesma forma que a incorporação dos programas de saúde metal pela rede de saúde e na comunidade está sendo proposta aos serviços que estão sendo colocados fora do espaço institucional, dentro da instituição, os programas de saúde metal que ficam têm de incorporar outros programas de saúde, sociais, educacionais, de habitação, lazer, esportivos e comunitários em geral. As instituições totais são autônomas, prescindem de relações exteriores, bastando a si mesmas, o que tira a autonomia dos seus habitantes. A autonomia do sujeito está relacionada ao grau de dependência às suas relações sociais,121 o 121 Sobre autonomia enquanto dependência de relações, consultar TYKANORY (1996). 114 que tira a autonomia da instituição e força a sua interação ao ambiente. A dependência institucional possibilita a autonomia dos seus freqüentadores, que se torna maior na dependência de relações externas. Esta compreensão leva inevitavelmente a abertura do espaço da instituição para projetos além dos que exclusivamente tratam o saber psiquiátrico. Até porque o conceito de saúde metal não pode ser reduzido a um campo do saber, mas, inevitavelmente, propõe a participação de vários saberes e interações com as relações sociais pertencentes à vida em comunidade. Dentro desta perspectiva e numa projeção futura, a saída de vários serviços para a composição da rede de saúde mental da cidade, direção que está sendo seguida, não esvazia a missão institucional do Instituto Municipal Nise da Silveira. Mas, é necessária a requalificação do seu papel. Uma redefinição institucional, dentro da mudança de sua função histórica, passa a fazer parte de um planejamento estratégico voltado a dois campos de ação: adequação de serviços complementares para o desenvolvimento dos projetos da rede de saúde mental no município, seja no campo da pesquisa histórica, recuperando a documentação pertencente à história da psiquiatria, ou da formação de recursos humanos e supervisão para um melhor funcionamento da rede, ou, ainda, na prestação de serviços que não possam passar, de imediato, para a rede de saúde mental municipal. No outro campo de ação temos a inter-setorialidade da instituição com projetos de outras secretarias, proposta que no município do Rio de Janeiro convencionou-se chamar de macro-função,122 além da interação com projetos comunitários e da sociedade civil organizada. Campo de ações inter-setoriais: De certa forma, na história recente da instituição podemos encontrar um embrião da proposta de inter-relações: a existência de um abrigo para menores pertencente à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS), o funcionamento de uma escola para alunos especiais, um Núcleo de Artes e Clube 122 No âmbito da Prefeitura do Rio de Janeiro a macro-função é entendida como um somatório de esforços de diferentes secretarias municipais para uma ação comum em um determinado problema. Como exemplo podese falar do projeto Favela-Bairro, já que numa intervenção comunitária é necessária a discussão do saneamento, habitação, educação, esporte e lazer, saúde, etc., como parte do mesmo problema, juntando nesta ação na comunidade diversas esferas do poder público com suas secretarias específicas. 115 Escolar, serviços da Secretaria Municipal de Educação (SME), o recém-criado Hospital Municipal de Reabilitação da SMS e, ainda, as diversas entidades comunitárias e sociais que compõem o Centro Comunitário, já permeiam o espaço institucional. Entretanto, avançar na proposta de inter-relações significa ampliar estas ações para outras atividades e criar um "condomínio" gerencial, superando as ações isoladas, para que as atividades sejam integradoras e os projetos se interrelacionem de forma a constituírem ações inter-setoriais. A ampliação destas ações permite parcerias as mais diversas. O Museu de Imagens do Inconsciente e seu rico acervo, assim como os arquivos da história da psiquiatria, permitem uma parceria com a Secretaria Municipal das Culturas (SMC) para uma melhor divulgação e utilização pela comunidade. O projeto de moradias internas permite uma parceria com a Secretaria de Desenvolvimento Social (SMDS) para a implantação de abrigos destinados a populações marginalizadas, não exclusivas do campo do saber psiquiátrico. Os projetos de ensino e pesquisa permitem ampliar parcerias com Universidades e propiciar campo para pesquisa acadêmica. A comunidade do entorno e os clientes do Instituto solicitam a implantação de um parque esportivo, parceria possível com a Secretaria Municipal de Esporte e Lazer (SMEL). O campo de ações inter-setoriais é um projeto em construção, que tem um viés de ocupação do espaço público e outro para ações conjuntas no campo da saúde mental, não podendo ser projetado em detalhamento futuro. O campo em construção permite ações inter-setoriais de acordo com as necessidades estabelecidas no processo. Adequação de serviços complementares à rede de saúde mental: A Emergência Psiquiátrica Especializada e a Enfermaria de Crise são dispositivos descendentes do manicômio. Hoje é consenso que a Emergência Psiquiátrica deve ser integrada à Emergência Clínica Geral e que a Enfermaria Psiquiátrica deve ser acoplada aos Hospitais Gerais (DELGADO, 1997-A, BRASIL, 1982). Entretanto, presos à história do manicômio no Rio de Janeiro, estes dispositivos especializados ainda perdurarão por um período considerável, 116 mormente seja examinada a situação de dificuldades por que passa os hospitais gerais no município. Esta proposta, sem dilemas no campo da saúde mental, encontra forte resistência na rede de saúde hospitalar. As dificuldades por que passam os hospitais gerais não permitem esta passagem necessária à construção de uma rede de saúde mental que, no momento, possa prescindir da especialização e fazer acontecer a proposta da Reforma Psiquiátrica brasileira com a radicalidade do sonho "por uma sociedade sem manicômios". Enquanto perdure a Emergência Especializada e as Enfermarias de Crise no Instituto Municipal Nise da Silveira, a proposição estratégica pressupõe um serviço pequeno, sendo vigilante nas suas práticas antimanicomiais, estando em permanente reavaliação e estando pronto para a absorção na rede de saúde em geral logo que possível. A proposição estratégica deve levar em conta seu caráter provisório e a vigilância para que seu fim seja a meta. No espaço do Instituto algumas moradias, na forma de lar abrigado, serão viáveis conforme aconteceu na reforma italiana em Trieste. O Museu de Imagens do Inconsciente com o seu novo projeto arquitetônico, já aprovado, tem no espaço do Instituto um lugar de destaque. Na proposição estratégica, o espaço para um Museu da História da Psiquiatria e um Centro de Pesquisa que abrigue a biblioteca, prontuários e livros de ocorrências que documentem as práticas da história psiquiátrica devem ocupar o projeto de desinstitucionalização do antigo Hospício de Engenho de Dentro. Finalmente, o Centro de Estudos deve ter caráter formador e de supervisão dos projetos assistenciais desenvolvidos na rede de saúde mental do município. 117 O provisório da conclusão... Este ensaio não se propõe conclusivo. Nem o caminho percorrido pretende um desfecho inevitável. São vários os destinos apresentados ao manicômio que procura seu fim. Aqui importa apontar saídas para o fim. Tentando concluir este trabalho, sabidamente de uma forma provisória, deixamos para uma reflexão futura, ou retomada desta empreitada, que a história da psiquiatria no Brasil marcou de uma forma indelével a constituição do Hospício do Engenho de Dentro. As proposições estratégicas para a sua superação devem levar em conta esta marca. Dois momentos trazem para a discussão de sua superação marcas históricas de profunda intensidade. Um pouco ao longe temos a constituição do Hospício do Engenho de Dentro com uma história própria que tem em Gustavo Riedel seu marco fundador simbólico. O primeiro Ambulatório de Doenças Mentais da América Latina, o Rivadávia Correa, e a constituição de residências heterofamiliares são marcos do Engenho de Dentro. Apesar dos impedimentos concernentes à história da psiquiatria e à hegemonia do pensamento eugênico, como vimos no terceiro capítulo, são projetos para fora do manicômio, precursores do ambulatório na rede, dos centros de atenção psicossocial e de um programa de moradias e lares abrigados. O desenvolvimento do pensamento psiquiátrico na época tornou possível a absorção do Hospício de Pedro II pelo Hospício do Engenho de Dentro. O projeto da Praia Vermelha já vinha em declínio, após o período de Juliano Moreira, e o momento histórico permitiu a hegemonia do projeto do Engenho de Dentro e a incorporação do antigo Hospício de Pedro II. Num momento mais recente, a Reforma Psiquiátrica brasileira pecou na superação do manicômio. Primeiro com uma proposta tênue de humanização na década de 1980; depois, com a desistência dos atores para o movimento da superação. A resistência burocrática permitiu a recuperação dos princípios manicomiais. 118 Neste momento presente o que se propõe é uma reformulação estratégica de superação, aproveitando a municipalização de um hospital federal, para que os serviços existentes possam, de fato, serem absorvidos pela rede de saúde mental da cidade, tirando do manicômio a organização e execução das ações em saúde mental. Os primeiros passos nesta direção coincidem com o provisório desta conclusão. O que está proposto neste ensaio é a direção que o acúmulo de conhecimento diz ser possível, não quais os caminhos que serão percorridos. Não se pode perder o tempo de plantar para que a colheita seja farta. E o tempo de sonhar "por uma sociedade sem manicômios" permite o devaneio poético: "Minha fé em todas as colheitas do futuro se afirma no presente. E declaro, por muito que se saiba, que a poesia é indestrutível." (PLABO NERUDA) 119 Bibliografia AMARANTE, P., PSIQUIATRIA SOCIAL E COLÔNIA DE ALIENADOS NO BRASIL. 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