Viagem nos Jogos Olímpicos: uma perspectiva histórica
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Viagem nos Jogos Olímpicos: uma perspectiva histórica
Viagem nos Jogos Olímpicos: uma perspectiva histórica Arianne Carvalhedo | [email protected] Lamartine DaCosta Grupo de Pesquisas em Estudos Olímpicos – UGF, Rio de Janeiro 0 | Abstract This investigation aimed at providing an understanding of the correlation between tourism/travel and the Olympic Games in order to clarify the meaning, importance and function of both of these typical activities in contemporary society. The origins of this presupposed relationship have been historically reviewed, beginning with ancient Greek society, the cradle of the Olympic Games. Also the means of and reasons for traveling in ancient times have been investigated in order to identify a possible relationship with present day tourism. This research focuses on the historical antecedents of these connections at the Olympic Games in particular. 1 | Introdução Os gregos antigos deslocavam-se por longas distâncias com o intuito de celebrar jogos atléticos sagrados. As crenças religiosas e míticas voltadas para múltiplos deuses podem ser consideradas as principais motivações pelas quais viajava-se 691 | para presenciar festivais. Esta condição estava associada também à inclinação cultural para competição (agon) que permeava a sociedade grega como um todo. Com efeito, o culto à perfeição dos empreendimentos humanos (arete) estava intrinsecamente associado às crenças populares e detinha uma importância ímpar na celebração dos Jogos, como Da Costa (2001) enfatiza em um de seus estudos. Em síntese, a fusão da cultura atlética, com a comparação e a competição inter-pessoais sob forma de ritos, era de fato uma busca pela divindade e sublimação impulsionadas por crenças mitológicas. Durante o início do reinado de Iphitus, os Jogos Olímpicos foram suspensos e durante este mesmo período a região de Elis - onde se situava Olímpia - estava sendo devastada por pragas e guerras internas. Nesta ocasião, os Jogos Olímpicos não eram considerados tão importantes, possivelmente por se tratar de um evento eminentemente aristocrático (Yalouris, 1996). Na versão desta lenda, quando o rei foi a Delfos em busca de conselhos para livrar seu reinado destas tormentas, Pythian ordenou-o a reinstituir os Jogos Olímpicos. Depois desta ordem os gregos passam a dar destaque aos Jogos. Após o reinício da celebração, o rei de Elis e o rei de Esparta concordaram em declarar Elis sagrada a Zeus e estabeleceram uma trégua durante os Jogos, que passaria a ser um ínterim pacífico de neutralidade cívica e militar em honra a Zeus. Esta trégua teria duração de, aproximadamente, três meses antes e depois dos Jogos, para que espectadores e atletas pudessem viajar livremente e participar do festival (Crowther, 2001). Este acordo (ekeicheria) foi respeitado pela civilização helênica durante | 692 dez séculos, consistindo hoje em um símbolo de paz promovido pelas Nações Unidas. É importante notar que, durante este novo estágio, os Jogos Olímpicos tornaram-se abertos a todos os cidadãos gregos e não apenas aos aristocratas como na tradição anterior. O evento então passou a ser uma oportunidade para que o povo helênico contemplasse sua própria cultura em um glorioso ritual (Da Costa, 2001). Apesar dos Jogos Olímpicos serem o festival mais popular da Antigüidade grega, e do acesso facilitado pelo mar e estradas, viajar até Olímpia ainda era um grande feito e uma conquista. De acordo com Crowther (2001), uma visita a Olímpia incluía perigo físico e desconforto, além do longo tempo gasto para chegar ao local de competições. Provavelmente, não havia qualquer tipo de hospedagem para espectadores comuns. Há indícios somente de local reservado para personalidades de destaque. A viagem, na maioria das vezes, não teria duração menor do que duas semanas. Alguns caminhavam levando suas próprias provisões, enquanto outros, os mais ricos e poderosos, tinham animais e escravos para carregar o que necessitavam. Esta é, provavelmente, uma das razões pelas quais atletas chegavam com grande antecedência em Olímpia: era necessário descansar antes de iniciar seus treinamentos e competições. Durante os Jogos os problemas eram ainda maiores. O fato dos festivais acontecerem durante o verão era um grande desconforto e até mesmo um perigo para os mais velhos. A grande quantidade de gente, instalações sanitárias de 693 | péssima qualidade, mosquitos, a falta de lugares para sentar para o espectador comum e a chuva, tornavam tudo ainda pior (Crowther, 2001). Ainda assim, existem poucas evidências de violência ou tumultos e isto pode ser explicado pelo aspecto religioso desta celebração. Diante de tais dificuldades pergunta-se então: porque as pessoas suportavam provações para participar dos Jogos Olímpicos? Argumentamos no início deste estudo sobre as crenças e mitos como fatores de grande motivação. Esta era, por hipótese, a explicação plausível por que indivíduos adotavam a peregrinação para assistirem aos Jogos. Todavia, no ato de celebração e devoção reside um compromisso ritualístico da repetição, o que também implicaria em presumir que espectadores se extasiavam ao participar dos Jogos e buscavam voltar numa próxima vez. Neste propósito, Crowther (2001) aponta para o fato de que, para alguns, assistir aos Jogos de modo cíclico era um ideal estético. A masculinidade, a força, a perfeição de corpo e mente, a beleza e o afã pela vitória eram cultivados e venerados pelos Gregos. Estes viajavam para os Jogos pelo simples prazer do espetáculo. Jaeger (in Da Costa, 2001) faz também uma reflexão sobre a dedicação religiosa na busca da perfeição, concluindo que existia um estilo e uma visão bastante particulares gerando uma identidade totalizadora típica da cultura Grega. Assim sendo, é pertinente ora se cogitar os Jogos Olímpicos como uma expressão do ideal estético-religioso que permitiria aos gregos encontrarem a identidade de si mesmos em peregrinações cíclicas de quatro em quatro anos. | 694 Tal tese encontra suporte em fragmentos escritos de Lucian (ca.590 B.C.) e Pausanias (ca. A.D. 170), nos quais encontramos descrições da paixão dos Gregos por tais festividades, tal como segue: “Eu não posso, apenas com palavras, lhe convencer do prazer que toma este festival (…), apreciando a perfeição humana e a beleza física, o incrível condicionamento e a grande habilidade e irresistível força e orgulho intrépido e determinação imbatível e indescritível paixão pela vitória” (in Miller, 1979, p. 44). Bento (1998) faz outra interpretação neste tema, entendendo o esporte como uma manifestação de cultura restrita ao homem, sendo expressão e símbolo do desejo deste de transcender. Por esta via, prosseguindo além dos valores estéticos, culturais e religiosos, podemos argumentar que o equilíbrio humano (estético) aliado à ordem do cosmos (divino) teve seu maior palco nos Jogos Olímpicos, como uma representação ritual de toda a sociedade grega e seus conceitos de vida, incluindo até mesmo a filosofia então praticada (Da Costa, 2001). É significativo notar também a importância que o povo grego impunha à conquista física. Como relata Mandell (1986), as cidades sentiam-se tão orgulhosas de seus atletas vencedores que esculpiam esculturas em sua honra e as colocavam no santuário de Olímpia, onde os deuses eram representados. Aqui novamente os fragmentos de Lucian e Pausanias (in Miller, 1979) são fontes importantes para a pesquisa da cultura da atividade física e competições na sociedade grega antiga. De acordo com estes narradores, 695 | era imperativo para o povo helênico estar bem preparado fisicamente para ir à guerra; também importante era a necessidade de se revelarem para os deuses e para si mesmos como virtuosos competidores. Havia, por outro lado, um interesse comercial nos Jogos. Devido à grande quantidade de espectadores, os Jogos Olímpicos eram uma boa oportunidade para alguns se beneficiarem financeiramente. Era comum mercadores fazerem acordos e vendedores ambulantes oferecerem estátuas, objetos de lembrança e alimentos (Mandell, 1986), não muito diferente do que presenciamos nos dias atuais. Faz-se também essencial constar que os Jogos Olímpicos não eram somente um espetáculo esportivo como entendemos hoje. Era também um encontro artístico, onde artistas celebravam; poetas, atores e pintores mostravam sua arte (Piperidou, 2002). Herodotus, o famoso escritor grego, costumava recitar seus poemas nos Jogos Olímpicos, assim como outras tantas personalidades. De acordo com Lucian (in Miller, 1979), Olímpia era o local perfeito para desenvolver a reputação de um artista por toda a nação grega. Neste sentido, Olímpia era um palco para o artista mostrar seu trabalho e esta era uma razão adicional pela qual indivíduos viajavam para Olímpia. Sinteticamente, podemos assumir que existiam, de modo fundamental, razões culturais para indivíduos viajarem para os antigos festivais atléticos. Razões estas que poderiam ser religiosas, artísticas ou filosóficas, mas elas representavam, | 696 na realidade, importantes tradições culturais. Assim, podemos concluir a partir desta breve revisão histórica que, apesar da competição “esportiva” não ser a única motivação para os gregos viajarem para os festivais, ela situava-se, indubitavelmente, como um elemento de atração central. 2 | Referências BENTO, J. Desporto e Humanismo: o Campo do Possível. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. CROWTHER, N. Visiting the Olympic Games in ancient Greece: travel and conditions for athletes and spectators. The International Journal of the History of Sport, London: Frank Cass, v.18, n. 4, p.37-52, 2001. DA COSTA, L. P. Visões de Atenas – 2004: filosóficos, da arte e da história nas representações sociais. In: VOTRE, S. (org.) Imaginário e Representações Sociais em Educação Física, Esporte e Lazer. Rio de Janeiro: Editora Gama Filho, 2001. pp.327-336. MANDELL, R. Historia Cultural del Deporte. Barcelona: Ediciones Bellaterra, 1986. MILLER, S. Arete: Ancient Writings, Papyri and Inscriptions on the History and Ideals of Greek Athletics and Games. Chicago: Ares Publishers, 1979. PIPERIDOU, E. The sports fans in ancient Olympia. In: PÓST-GRADUATE SEMINÁR IN OLYMPIC STUDIES, 10., Ancient Olympia, 2002. Proceedings... Athens: IOA, 2002. YALOURIS, N. Ancient Elis: Cradle of the Olympic Games. Athens: Adam Editions, 1996. 697 |