Números 33/34 - Liceu Literário Português

Transcrição

Números 33/34 - Liceu Literário Português
CONFLUÊNCIA
ISSN 1415-7403
Per multiplum ad unum
“As armas e padrões portugueses
postos em África, e em Ásia, e em
tantas mil ilhas fora da repartiçam
das três partes da terra, materiaes
sam, e pode-as o tempo gastar: peró
nã gastará doutrina, costumes,
linguagem, que os portugueses
nestas terras leixarem.”
(João de Barros, Diálogo em Louvor
da Nossa Linguagem)
N.º 33/34 – 2.º semestre de 2007/1.º semestre de 2008 – Rio de Janeiro
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LICEU LITERÁRIO PORTUGUÊS
Corpo Diretivo 2009/2010
DIRETORIA
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Vice-presidente: Henrique Loureiro Monteiro
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DIRETOR DA REVISTA CONFLUÊNCIA
Prof. Evanildo Bechara
SUPERINTENDENTE
Albino Melo da Costa
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CONFLUÊNCIA
REVISTA
DO
INSTITUTO DE LÍNGUA PORTUGUESA
LICEU LITERÁRIO PORTUGUÊS
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CENTRO DE ESTUDOS LUSO-BRASILEIROS
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A matéria da colaboração assinada é da responsabilidade dos autores.
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Sumário
Pág.
Apresentação.................................................................................................... 7
Artigos
A língua literária portuguesa no século xvi: fatos linguísticos característicos
(Evanildo Bechara).................................................................................... 9
O poeta: por excelência o poliglota bechariano
(Maria Helena de Moura Neves)............................................................ 13
O conto machadiano
(Domício Proença Filho).......................................................................... 37
Língua portuguesa, identidade nacional e lusofonia
(José Luiz Fiorin)...................................................................................... 53
Mattoso Câmara e a língua literária
(Carlos Eduardo Falcão Uchôa)............................................................ 69
Evanildo Bechara e as fases históricas da língua portuguesa
(Rosalvo do Valle).................................................................................. 77
O pronome na Moderna Gramática Portuguesa de Evanildo Bechara
(Leonor Lopes Fávero e Márcia A. Guedes Molina).............................. 85
Aspectos da língua literária de Vieira no Sermão da sexagésima
(Horácio Rolim de Freitas).................................................................... 101
A linguagem literária contemporânea no Brasil: a elaboração da oralidade
(Dino Preti).............................................................................................111
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A língua literária do século xviii
(Paulo Roberto Pereira)........................................................................ 117
As gramáticas do português de Fernão de Oliveira (1536) e de Bento Pereira
(1672)
(Gonçalo Fernandes)............................................................................. 127
Complementos verbais preposicionados na Moderna Gramática Portuguesa
(Valter Kehdi)....................................................................................... 143
A língua literária contemporânea
(Gilberto Mendonça Teles)................................................................... 149
Machado de Assis e a retórica da dissimulação
(Castelar de Carvalho)......................................................................... 163
Duas tendências da língua literária contemporânea do Brasil
(Reginaldo Pinto de Carvalho)............................................................. 179
A língua literária e o ensino de português
(Terezinha da Fonseca Passos Bittencourt)......................................... 187
Alencar e Cândido Jucá
(Walmirio Macedo)................................................................................ 203
O Corpus literário na tradição gramatical brasileira
(Ricardo Cavaliere)............................................................................... 207
Resenha........................................................................................................ 215
Colaboradores.............................................................................................. 219
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Apresentação
Este número de Confluência reúne os textos apresentados no I Colóquio
Nacional sobre Língua Literária: Aspectos e Ensino, organizado pelo Liceu
Literário Português em setembro de 2008. O encontro reuniu pesquisadores
brasileiros e portugueses que se dedicam ao estudo da língua portuguesa, com
especial ênfase na interface entre língua e literatura. Na oportunidade, também
celebrou-se a passagem de três relevantes datas para os estudos linguísticos
brasileiros e sua repercussão no mundo literário: o 140.º aniversário de fundação
do Liceu Literário Português, o centenário da morte de Machado de Assis e o
80.º aniversário de nascimento de Evanildo Bechara.
Os frutos desse I Colóquio estão agora à disposição do público interessado nas questões linguístico-literárias, à guisa de um contributo valioso para o
desenvolvimento da pesquisa sobre o ensino do português nas classes de nível
fundamental e médio. Não se desconhece hoje a progressiva desconsideração
de que a língua literária se ressente na seleção dos textos utilizados em sala de
aula, preterição que, aparentemente, resulta de uma concepção enviesada sobre o
que se deve ensinar em matéria de linguagem aos alunos de primeiras letras.
A rigor, conferir legitimidade a todas as modalidades de uso linguístico
implica necessariamente abrir espaço equânime nas aulas de língua portuguesa
para os textos representativos desses variados registros, sem qualquer tipo de
predileção. Somente por iniciativa do mestre poderá o aluno manter contato
plural com os gêneros textuais, de tal sorte que com eles se familiarize como
leitor ou como redator. O que se percebe, aparentemente, é uma sensível prevalência do texto coloquial em face do texto literário no dia a dia da práxis
pedagógica, fato que não conduz à plenitude de informação linguística necessária à formação dos jovens para o exercício da cidadania.
Uma opinião dissidente objetaria com o argumento da imperatividade
de se conferir ao padrão coloquial maior presença nos textos trabalhados em
sala de aula, como uma estratégia de conferir-lhe legitimidade no conjunto
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dos usos linguísticos. Trata-se, decerto, de tema instigante, cuja discussão não
raro vem temperada pela polêmica acirrada. Os textos reunidos neste número
da Confluência contribuem para o aprofundamento dessa discussão, notadamente revestida de excepcional relevância para o aprimoramento da formação
linguística do educando.
Por fim, uma explicação: durante cerca de um ano e meio Confluência
sofreu interrupção em sua periodicidade. O fato se deveu a um ajuste editorial
que se impôs em face do falecimento de Evanildo Chauvet Bechara, diretor da
Editora Lucerna, em maio de 2007. Dono de rara vocação bibliofílica, Chauvet
Bechara fora o mentor do projeto editorial que vinha norteando a produção de
Confluência por vários anos, razão por que seu prematura passamento trouxe,
com o pesar dos amigos, a necessidade de que a revista passasse por reformas
estruturais. Com esta retomada de rumo, Confluência rende sua homenagem à
memória deste entusiasta amante do livro.
Rio de Janeiro, junho 2010
Ricardo Cavaliere
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A língua literária portuguesa no século xvi:
fatos linguísticos característicos
Evanildo Bechara
UERJ, ABL, LLP
Iniciados os esforços de escritores e intelectuais renascentistas no sentido
de preparar e enriquecer a língua portuguesa para a tarefa de substituir o latim
como veículo de manifestação de conteúdos espirituais e culturais em todos
os estilos, experimentou o idioma uma série de novidades que o iriam capacitar a traduzir as mais expressivas e estéticas necessidades do novo ambiente
literário.
Estimulados os escritores pelas exaltações exaradas nos diálogos em
louvor do vulgar de cada comunidade linguística partiu os prosadores a limar
e polir o idioma à semelhança do que fizeram seus antepassados clássicos com
o latim e o grego.
Este esforço dotou a língua portuguesa de recursos gramaticais, lexicais e
estilísticos para que pudesse, no século XVI, a acompanhar os melhoramentos
que iam experimentando seus parceiros europeus, especialmente os italianos,
franceses e espanhóis.
Sá de Miranda, Antônio Ferreira e Bernardim Ribeiro na poesia, e João
de Barros na prosa, abriram o percurso que foi logo preenchido por Luís de
Camões, Frei Heitor Pinto, Diogo do Couto e Frei Luis de Sousa, este último
já representando a fase de transição para o período seguinte, quando brilhariam
Antônio Vieira, Francisco Manuel de Melo, Manuel Bernardes e Rodrigues
Lobo, entre outros.
Esta relatização e modernização no material idiomático não ocorreram
abruptamente; houve um período em que as antigas formas conviviam lado a
lado com as novidades fonéticas, morfossintáticas e léxicas como mi e mim, si
e sim, craro e claro, despois e depois, pera e para, lhe (plural) e lhes, fruito e
fruto, perguntar e preguntar, cousa e coisa.
Neste sentido, vale a pena lembrar as seguintes considerações de M.
Said Ali sobre a participação de Camões no movimento de preferências entre
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Evanildo Bechara
uma das duas formas vigentes, e da ação difusora das opções de voto entre os
escritores posteriores:
Camões não foi propriamente o criador do português moderno porque essa nova
linguagem escrita já vinha empregada por outros escritores. Libertou-a sim de
alguns arcaísmos e foi um artista consumado e sem rival em burilar a frase portuguesa, descobrindo e aproveitando todos os recursos de que dispunha o idioma
para representar as ideias de modo elegante, enérgico e expressivo. Reconhecida a
superioridade da linguagem camoniana, a sua influência fez-se sentir na literatura
de então em diante até os nossos dias.
(Gramática Histórica, I, 4)
Adolfo Coelho aponta como fator de harmonização linguística do século
XVI a ação da obra gramatical e filológica iniciada nesse século; todavia, somos
de opinião de que os escritores quinhentistas e seiscentistas pouco encontraram
nas incipientes gramáticas, dicionários e obras de natureza filológica – como
seria natural àquela quadra de estudos - que justificasse o progresso, o apuro e
o senso estético postos em prática para que a língua atingisse, em verso e em
prosa, o plano extraordinário a que chegaria com a produção poética de um
Sá de Miranda, um Antônio Ferreira, ou a harmonia em prosa de um João de
Barros, um Heitor Pinto, um Diogo do Couto, ou, na passagem para o século
XVII, um Frei Luís de Sousa, um Manuel de Melo, um Rodrigues Lobo e um
Antônio Vieira, entre outros.
Naqueles tempos de florescimento renascentista e humanista como agora,
os escritores se anteciparam à ação linguística que a literatura científica lhes
poderia oferecer em seu trabalho de progresso. Camões nada devia a Fernão
de Oliveira, assim como José de Alencar nada devia à gramaticografia lusobrasileira de sua época para ambos enfrentarem os problemas e soluções de
renovação da língua literária de seus tempos.
Foi o esforço e o exemplo dos irmãos de profissão nacionais e estrangeiros
(não nos esqueçamos do que os nossos aprenderam e se modelaram com os
italianos, espanhóis e franceses, que também lutaram pela defesa, ilustração e
enriquecimento de novas formas de expressão em seus vulgares), que lhes abriram o caminho de criações novas, alimentadas da seiva do passado literário.
As qualidades da língua portuguesa, que foram altamente exaltadas nos
diálogos em seu louvor durante o século xvi, podem ser corretamente resumidos
nestas linhas escritas por Rodrigues Lobo para as páginas da Corte na Aldeia,
ultrapassando a razão primeira de ser, com pouca corrupção, a língua latina.
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A língua literária portuguesa no século xvi: fatos linguísticos característicos
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E verdadeiramente que não tenho a nossa língua por grosseira, nem por bons
os argumentos com que alguns querem provar que é essa; antes é branda para
deleitar, grave para engrandecer, eficaz para mover, doce para pronunciar, breve
para resolver e acomodada às matérias mais importantes da prática e escritura.
Para falar é engraçada como um todo senhoril, para cantar é suave como um certo
sentimento que favorece a música; para pregar é sustanciosa, com uma gravidade
que autoriza as razões e as situações; para escrever cartas nem tem infinita cópia
que dure, nem brevidade estéril que a limita; para histórias nem é tão florida que
se derrame, nem tão seca que busque o favor das alheias. A pronunciação não
obriga a ferir o céu da boca com aspereza nem a arrancar as palavras com veemência do gargalo. Escreve-se da maneira que se lê, e assim se fala. Tem de todas
as línguas o melhor: a pronunciação latina, a origem da grega, a familiaridade
da castelhana, a brandura da francesa, a elegância da italiana. Tem mais adajos
(= adágios) e sentenças que todas as vulgares, em fé da sua antiguidade. E se à
língua hebraica, pela honestidade das palavras, chamaram santa, certo que não sei
eu outra que tanto forja palavras claras em matéria descomposta quanto a nossa.
E para que diga tudo, só um mal tem: e é que, pelo pouco que lhe querem seus
naturais, a trazem mais remendada que capa de pedinte.
(Diálogo I, p. 25-26 da Ed. de Afonso Lopes Vieira).
Fases históricas da língua portuguesa
Tomando por referência fatos de línguas mais ou menos fixadas em cada
momento histórico do idioma, podemos dividir esse percurso em quatro fases,
tendo sempre presente a observação de Said Ali: “as alterações linguísticas
não dependem de calendário, nem do ano em que o século acaba ou começa”
(Gramática Histórica, IV), completada pela lição de outra importante figura
mais antiga, Jack Grimm, segundo o qual a evolução nas línguas não segue
um caminho retilíneo:
a) arcaica: séc. XIII ou XII ao final do XIV;
b) arcaica média: séc. XV à 1.ª metade do séc. XVI;
c) moderna: 2.ª metade do séc. XVI ao final do séc. XVII;
d) contemporânea: séc. XVIII aos nossos dias.
Percebe-se, pois, que o período de que até agora vimos tratando pertence
à fase moderna, e mantêm estreitíssimas ligações entre si os fatos linguísticos
que se uniformizaram nos séculos XVI e XVII.
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Evanildo Bechara
Fatos linguísticos novos que caracterizam a fase moderna da língua portuguesa
Na fase moderna registram-se os seguintes fatos linguísticos balizadores
dessa época nos textos literários ou não que se pautam pelo normal padrão:
a) o desaparecimento do não pleonástico imediatamente após a palavra
de sentido negativo pré-verbal ninguém não viu; nenhum não quer;
b) a eliminação progressiva da concordância em gênero e número do
particípio componente de um tempo composto com o complemento direto do
verbo principal: areia que tinha pisada com os pés;
c) a eliminação dos anafóricos (h)i e en como formas independentes;
d) a fixação do plural dos nomes em ão (mãos, cães, leões) e do feminino
dos adjetivos em ão (são/sã);
e) a progressiva ação analógica do radical do infinitivo sobre o radical
da 1.ª pessoa de muitos verbos, como senço → sinto, menço → minto, arço
→ ardo, etc;
f) a progressiva criação de novas formas de tratamento com verbo na 3.ª
pessoa do singular;
g) a presença obrigatória do pronome demonstrativo variável antecedente
do pronome relativo, em construções do tipo eu sou o que, tudo és o que, nós
somos os que, etc (construção que persiste até fins do século xviii).
Entre os fatos que vinham dos séculos anteriores, os escritores quinhentistas e seiscentistas ainda nesse período não abrem mão dos seguintes usos:
a) lhe e lhes ambos com valor de plural;
b) homem e im como pronomes aplicados a sujeitos indefinidos:
Desde que homem nasce até que morre...
c) cujo usado como predicativo;
d) nasalidade em palavras como lu)a, vĩr, ũa.
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O poeta: por excelência o poliglota bechariano*
Maria Helena de Moura Neves
UPM, UNESP, CNPq
Partindo da clássica afirmação de Bechara de que o falante tem de ser um
poliglota em sua própria língua (e apontando o fato de que teria de haver o levantamento de quantas teses e trabalhos de pesquisa citaram essa afirmação de
nosso mestre), eu levo minhas reflexões para aquele utente da língua que encontro
mais entranhadamente envolvido nessa proclamação bechariana: o poeta.
Obviamente não falo simplesmente de versejar, falo de inventar. Falo do
homem que inventa mundos, nesses mundos se instala, neles passeia, povoandoos de criaturas que são suas próprias criaturas — e criaturas com linguagem!...
Falo, pois, daquele “deus da criação” de mundos para os quais nos deixamos
ser levados quando lemos, e nos quais tudo vem do criador, do “poeta”, afinal,
da linguagem de cada um). E, incrivelmente, o que lá está, na verdade, é a língua que já temos — nativa ou aprendida, não importa — pois para seu mundo
novo o poeta carrega aquela mesma língua na qual se fazem os intercursos de
todos os dias — e de todas as noites, e até dos sonhos... — na qual se dizem
as maiores amenidades e as maiores atrocidades, na qual até se corrompe um
parceiro ou se xinga um desafeto. Mas, que diferença!
Tentemos explicar em uma aula bem preparada a tão citada afirmação
de Bechara, e nada a explicará melhor do que um passeio pela literatura. Não
é o que vou fazer, todos aqui já passearam bastante por essas plagas, só vou
fixar-me em um ponto, que considero a chave do profundo mistério da criação da poesia/ da literatura: a consciência que tem o poeta do funcionamento
linguístico, chave do seu poder de jogar com as possibilidades que a língua
oferece de criação de sentido em qualquer mundo, em qualquer situação, para
qualquer propósito. Ora, o que vai revelar e definir o mundo poeticamente
criado é exatamente a linguagem. E para aí eu estendo também outro conceito
bechariano, o de exemplaridade.
* Algumas reflexões deste texto foram aproveitadas em publicações da autora, especialmente
em neves, no prelo.
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Maria Helena de Moura Neves
Mas não vou falar de escritores “exemplares” quanto a julgamento de
mérito. Fixo-me nas concepções de língua, de linguagem e de gramática que
privilegiados manejadores — poetas — nos entregam e que merecem nossa
reflexão. Parto da visão de alguns daqueles que fizeram do uso linguístico a
sua aplicação de vida, e, por isso, tiveram uma particular relação com a criação linguística, com a mágica invenção da linguagem. E observo que falo no
passado, porque, neste momento, dedico-me ao exame de autores do passado,
o que é apenas um acaso.
Especialmente procuro ver neles sua posição libertária ou conservadora
do manejo da língua, e, assim, sua visão ampla da dimensão da linguagem.
Pode-se ir de um extremo do cuidado com a língua, em Monteiro Lobato,
até o extremo de ataque radical aos cultores da norma, em Lima Barreto, passando: pela reação ao purismo, entretanto com respeito à forma, em Alencar;
pelo reconhecimento de várias normas, em Mário de Andrade; e pela posição
equilibrada, em Machado e em Graciliano Ramos.
1. A visão de língua e linguagem
Ah, se toda a gente escrevesse como fala, a literatura seria uma coisa gostosa
como um curau que comi domingo no Tremembé. (Monteiro Lobato, em Urupês,
outros contos e coisas, p. 593)
Aí Lobato negaceia: ele não escreve como fala! Ele sabe que ninguém
escreve como fala. Mas ele sabe a que “sabe”, para o povo, a fala natural, e
sobre ela poetiza... Ele sabe o que representa prescindir da direta apreensão oral
da linguagem para “experimentar”, por outros sentidos, por vias mais tortuosas
e de tropeços, a apreciação escrita.
De fato, no tema de aqui trato talvez sejam Lobato e Mario de Andrade os
nomes mais significativos, pelo fato de que, ao par da sua invenção literária, ao
par da criação de suas obras, revelaram verdadeiros planos de visão da língua
em que as vertiam, empunhando, mesmo, bandeiras de propósitos conscientes
em relação à língua em si, em relação a seu domínio (este é, especificamente,
Lobato), em relação a sua função (este é, especificamente, Mário de Andrade),
em relação a sua natureza (estes são os dois). Mário de Andrade, por sua vez,
sempre “brincou’” de sociolinguista, enquanto Machado de Assis nunca desceu
de sua altura de perfeito representante da literatura... embora fosse um especial
representante da condição humana — portanto um especial representante do
ser dotado de linguagem.
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O poeta: por excelência o poliglota bechariano
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2. A visão multifacetada de Lobato: a língua múltipla em variações
e registros
Não seria necessário existir o Emília no país da gramática para mostrar
o cuidado de Lobato com o fazer da linguagem, sua consciência da existência
de uma gramática a reger os usos da língua e a sustentar as multiplicações de
registros e de variações, a serviço das funções da linguagem. A consciência
a que me refiro explicaria por que é tão fortemente detectável, em Lobato, a
constante análise da própria elaboração da linguagem (no nível literário e no
nível do uso linguístico em geral), o que se pode definir como uma metódica
ingerência do Lobato analista no Lobato literato, a lembrar-lhe, a cada passo,
que ao criador cabe labutar pelo domínio da língua. Por tudo isso, quanto à
decisão sobre se purista ou libertário, Lobato é, aparentemente, o mais controverso de todos os escritores que citei. Ele é a mesma pessoa que (cronologia
à parte) fala em “língua brasileira” no Emília no país da gramática (1934),
fala em “correção da língua” como “artificialismo” e em “incorreção” como
“o natural”, em Urupês, outros contos e coisas (1945, p. 593), mas, no mesmo
Urupês (1918), e em O macaco que se fez homem (1923), despeja e saboreia
apossínclises e regências lusitanas:
- em Urupês (1918),
Era certo, pois, que se não poderia traçar outro caminho (p. 33),
E me não mais aflorava à tona da memória. (p.54);
Ouvira a tenda ao pai. (p. 71);
me lembra de o ter lido (p. 40).
- em O macaco que se fez homem (1923)1,
Sou também o que se não interpela (p. 25),
para que se não extinguisse a Vida (p. 2);
tomasse o pulso a um doente (p. 7),
derrubaria o queixo a Newton ( p. 8).
O domínio da língua era o móvel de seus esforços, como demonstram não
apenas as suas criações literárias mas também sua produção de cunho pessoal,
especificamente sua correspondência. A barca de Gleyre, que abriga a correspondência de Lobato com Godofredo Rangel, é o território em que se costuma
Exemplos colhidos em Pinto
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(org.), 1994, p. 51-61
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Maria Helena de Moura Neves
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ir buscar as confissões desse empenho e do modo como Lobato considerava a
relação com seus modelos literários de leitura e estudo, particularmente Camilo
Castelo Branco. Nessa obra vê-se execrada a “má sintaxe” tanto quanto “as
obscuridades e impropriedades”, e vê-se exaltada “a boa expressão” “com ótima
forma” (p. 144-145), assim como se vê afirmado que a falta de “limpidez” e
“asseio” embacia qualquer ideia... (p. 144 -145).
Sem pejo, Lobato acentua o labor contínuo de garimpagem que ele opera
nas obras dos que seriam os bons escritores, aliás, portugueses na sua maioria,
pois, nas primeiras décadas do século XX, brasileiros não havia assim alçados à
condição de modelos (exceto, quem sabe, Machado de Assis). Afinal, sem pejo,
Lobato dá lição, a desejosos de entrar na carreira literária, no sentido de que
enfileirar palavras portuguesas sem a ordem e a elegância gramatical não produz
língua portuguesa (Cartas escolhidas II, p. 121).
Mas o libertário grita, do outro lado, a desfavor de uma
meia dúzia de gramaticantes cá de São Paulo (A barca de Gleyre, p. 369)
e de
quantos por aí sorvem literaturas inteiras e gramáticas na ânsia de adquirir o
estilo (Urupês, p. 125).
A chave está — sabiamente — no fato de que
Uma língua não para nunca. Evolui sempre, isto é, muda sempre. (Gente de fora,
Urupês, p. 100).
Assim:
O que sucede é que uma língua que muda de terra, começa a variar muito mais
depressa do que se não tivesse mudado. (Gente de fora, Urupês, p. 101).
E com o mais andradiano, ou alencariano, dos diagnósticos (isso veremos),
diz Lobato:
Os costumes são outros, a natureza é outra — as necessidades de expressão
tornam-se outras. (Gente de fora, Urupês, p. 101).
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O poeta: por excelência o poliglota bechariano
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Afinal, reza ele:
Uma língua é um elemento vivo, maleável, que se adapta às necessidades ambientes. Para que serve uma língua? Para exprimir as nossa ideias, os nossos
sentimentos, as impressões dos nossos sentidos. A língua lusa era um veículo
para que os portugueses residentes em Portugal externassem uns aos outros os
sentimentos, as necessidades, as ideias que o ambiente físico e social português
lhes suscitava. Está claro que o ambiente geográfico brasileiro era outro. (Língua
brasileira, p. 163)
Porém a sua reflexão sobre as “diferenças” não se fixa apenas em diacronia
ou evolução, mas também se assenta, muito reflexivamente, no próprio modo de
funcionamento linguístico. Lobato é o mesmo que, enquanto apregoa o “asseio
da forma” (A barca de Gleyre, p. 145), festeja as “improvisações e desleixos”
(Urupês, outros contos e coisas, p. 593)
Na questão da dicotomia entre língua falada e língua escrita, diz Lobato,
no Prefácio de Éramos seis:
Há duas línguas, a falada e a escrita. A falada é que é a grande coisa, pois que é o
meio de comunicação entre todas as criaturas humanas, afora as mudas. A língua escrita veio depois, e é coisa restritíssima. (Urupês, outros contos e coisas, p. 592.)
E, gracilianamente (veremos em Graciliano), ele continua:
A arte da língua escrita é a tal “Inania Verba” do Bilac, mas quanto mais um escritor escreve como fala, mais é lido e gostado. (Urupês, outros contos e coisas,
p. 592)
Lobato não toca no que vou apontar a seguir, mas há algo mais profundo
defendido nessas indicações que acabo de fazer. Os contrastes que ele faz entre
língua falada e língua escrita e entre linguagem do Brasil e linguagem de Portugal ficam no mesmo ângulo de análise: os ditames de colocação pronominal de
lá — que os “gramaticantes” querem que sejam respeitados cá — são perfeitos
para a fala de lá, em que esses elementos são átonos, mas quebram o ritmo na
fala de cá, que os tem tônicos, por vezes, ou, no mínimo, semitônicos. A rigor,
a língua escrita que ele cultiva e defende difere maiormente da de Portugal
pela diferença de cadência (especialmente a que a tonicidade dos pronomes
lhe confere), que a escrita é levada a refletir (com a sua bênção). E para mais
não vai a sua bênção libertária...
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3. O espírito social de Mário de Andrade: linguagem brasileira,
língua brasileira, língua nacional
Falar de Mário de Andrade é falar de um poeta que transparentemente se
despe de poeticidade e se reveste de espírito social para falar de língua, para
falar da língua portuguesa com seu direito e dever de, cá, ser brasileira — e não
apenas ser “linguagem” brasileira, mas, para além disso, ser “língua” brasileira
(ou seja: do Brasil, é esse, exatamente, o foco).
Na defesa desse estatuto, comprovação de ciência ele dispensava, que o
coração de poeta — e aí vem a poesia — criava as razões — ou provas — da existência de uma fala / língua brasileira, ao mesmo tempo que o coração de brasileiro
levantava a bandeira da existência de uma língua nacional. É o próprio Mário
que, a propósito dessa sua defesa da brasilidade da língua, fala dela como
o estandarte mais colorido dessa radicação à pátria (O movimento modernista,
Aspectos da literatura brasileira, p. 267).
O acento das propostas é de aberto proselitismo. Não se trata, porém,
de uma bandeira empunhada com ignorância da realidade dos fatos, ou desconsideração dessa realidade. Mário de Andrade legitimava a sua missão de
“forçar a nota” com o cuidado e o requinte de ir atrás dos fatos da realidade
linguística brasileira. Muito acuradamente ele mostrava sua consciência das
diferenças funcionais:
E existem as linguagens dos sentimentos, que fazem um burguesinho ter com a
mulher um linguajar amoroso muito especial, ou ter tal linguagem nos momentos
de cólera que jamais, como vocabulário e sintaxe, ele empregaria na festa de
aniversário da filhinha. (A língua radiofônica, O empalhador, p. 208)
Está claro que não é a mesma coisa escrever uma comunicação sobre a
moléstia de Chagas e uma poesia de amor. (A língua viva II, O empalhador,
p. 213)
E, debruçando-se realmente sobre os usos, comentava, porque via, as
diferenças
– diatópicas:
Agora você deve ver que pequenas diferenças entre falar duma para outra região
brasileira são fatais não só de pronúncia como de sintaxe. Em todos os países
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grandes se dá e até nos pequenos. Diferenças léxicas e sintáticas.” (Cartas de
Mário de Andrade a Manoel Bandeira, p. 86)
– diastráticas:
Toda língua inclui dentro do seu conceito uma infinidade de línguas particulares,
está claro. Tem a língua que a gente fala, a mais legítima, terrestremente falando.
Mesmo esta se subdivide na língua do ferreiro, na do marujo, na do professor, na
do aluno, na do amante, etc., etc.. E tem a língua literária, mesmo esta divisível
em muitas, a dos poetas, a dos pedagogos, a do naturalista, a das cartas, etc., etc.
(Carta a Sousa da Silveira, Mário de Andrade escreve cartas a Alceu, Meyer e
outros, p. 151)2.
– também o entrelaçamento delas ─
(....) os acidentes regionais, as profissões se encarregam de transformar essa língua
abstrata, propriedade de todo corpo social que a emprega, numa quantidade de linguagens concretas diversas. (A língua radiofônica, O empalhador, p. 207-208).
– e as diferenças diacrônicas:
[A língua] ainda tem a circunstância de ser mudável, permanentemente mudável,
viver em perpétuo fiat. (Carta a Sousa da Silveira, p. 151)
Mário fala do homem social, aquele que tem um local de nascimento a
lhe conferir estatuto, e por isso ele fala do falante brasileiro, que, como tal, tem
de falar de “outras coisas” que não aquelas de que os portugueses falam, pois,
como dizia ele no mais óbvio dos óbvios:
O Brasil é hoje outra coisa que Portugal. (Táxi: fala brasileira, p. 113].
E, sem nenhuma obviedade, ele continua:
Essa outra coisa possui necessariamente uma fala que exprime outras coisas de
que ele é feito. É a fala brasileira. (Táxi: Fala brasileira, p. 113).
Observe-se que esse trecho se segue a esta declaração: Foi, pois, dentro desta ordem
2
de ideias e sentimentos , que me pus escrevendo ‘brasileiro’. (Carta a Sousa da
Silveira, Mário de Andrade escreve cartas a Alceu, Meyer e outros, p. 151).
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Pelo que se pode ver — e aí já está o poeta —, para ele o Brasil não é apenas
outra coisa, mas é uma mais rica coisa que Portugal: aquilo que, naquele tempo,
ainda de nenhuma consciência de princípios científicos sobre o fazer linguístico,
poderia ser visto como desleixo, ou, pelo menos como incongruência, vem com
louvação. Referindo-se a uma “curiosidade original deste povo”, diz ele:
Ora sabereis que a sua riqueza de expressão intelectual é tão prodigiosa, que
falam numa língua e escrevem noutra. (Macunaíma, p. 105)
Aliás, Mário de Andrade falava das
duas línguas da terra, o brasileiro falado e o português escrito (Macunaíma, p. 111).
O próprio escrever, segundo ele, pode ser numa ou noutra língua, se muda
a função:
(....) numas cartas escritas alegremente para amigos, por brincadeira,com intenção
evidentemente pitoresca uso exageros de pândega, pra rir. Isso não quer dizer que
vá escrever sempre assim nos meus artigos. Não. Por mais que eu escreva agora
direto e simples, ainda faço distinção entre escrever pra público e pra amigos. As
cartas que mando pra você são suas. Si eu morrer amanhã não quero que você as
publique. (Cartas de Mário de Andrade a Manoel Bandeira, p. 87)
E onde, e como, vem vista a língua do poeta, a linguagem literária? Mário
de Andrade faz questão de afirmar-se como literato:
É que minha linguagem não é popular, nem mesmo popularesca. É uma linguagem
literária, artificial, e que portanto, poderá chagar a ilações, a generalizações de
fenômenos particulares. (Carta a Sousa da Silveira, p. 156)
Que a linguagem literária não é a linguagem ‘natural’ ele afirma quando
diz que “o mito de escrever ‘naturalmente’” é “o mais feiticeiro dos mitos”,
pois a língua escrita “é sempre artificial” (O movimento modernista, Aspectos
da literatura brasileira, p. 269)
Mas, por outro lado, diz ele:
A linguagem culta, especialmente quando artística, é também uma língua viva.
É mesmo a única língua viva que congraça em sua entidade todas as linguagens
parciais de uma língua. E das outras... (A língua viva II, O empalhador, p. 215)
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De novo a diferença faz a diferença, pois a tal “fonte riquíssima” de “linguagens parciais”, que é a língua brasileira, constitui o supremo instrumento
do artista:
Além da sua própria sensibilidade, é na fonte riquíssima de todas as linguagens
parciais de uma língua, que o artista vai encontrar o termo novo, o modismo, a
expressão justa, a sutileza sintática, que lhe permitem fazer da sua linguagem
culta, um exato instrumento da sua expressão, da sua arte. (A língua viva II, O
empalhador, p. 214)
É bem verdade que nem aí o literário se impõe ao social, pois a língua
literária não se desprende da condição de língua de um povo, de um lugar, de
um tempo. Essa é a grande mensagem do nosso artista. Mário declara tex­tual­
mente:
A língua literária do artista, si pode tomar em conta aquela qualidade transcendente às contingências, que faz duma língua viva um mecanismo eterno, deve
em principal organizar-se de forma a refletir a realidade quase atual da língua.
(Carta a Sousa da Silveira, p. 151)
Ora vejam!
4. O espírito literário de Machado de Assis: o dizer com estilo e o
zelo da língua
Mas, para cuidar da linguagem literária, há Machado de Assis, que entra
neste ponto do texto na sua paradoxal condição de especial representante do
criador literário / poético (sem receitas mas com sólidas crenças) e de especial representante do comum dos homens (e sem bandeiras, estandartes ou receitas).
Pois entra agora Machado, distinto, com requintes de pensador, no que
diz respeito à língua literária (lembrem-se suas obras de crítica). Sua busca de
“nacionalidade” nas obras, despida de combatividade social, centra-se, indubitavelmente, na própria tarefa de elaboração do texto literário, com todos os seus
componentes, o que o faz falar do “escritor” mais do que do falante comum, do
escritor como aquele que, por um “sentimento íntimo”, tem de tornar-se
homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no
tempo e no espaço. (Obra Completa III , p. 815)
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Ser um homem de seu tempo e de seu país — naquele tempo e no país
de Machado — significava desprender-se de Portugal, conscientizar-se de que
havia ali, em um novo tempo, em um espaço de “riquezas novas” (Crítica-Obra
Completa III , p. 817), povoado de outros “assuntos”, uma “literatura nascente”
(Crítica-Obra Completa III, p. 815). Significava dizer que, como tudo o que
nasce, estava o escritor a lidar com uma “nova” entidade... E significava, afinal,
estar o escritor Machado — com toda a sua reconhecida reserva — a defender
uma identidade para a língua que “nascia” na literatura.
Machado, como metaliterato, é, essencialmente, um doutrinário, e,
quando ele fala da entidade “língua”, o que está em vista é a língua literária
como tal, não a sua própria e específica língua, também não a língua, em si
e por si, que o povo use em qualquer lugar e para qualquer função. Ora, não
desconheço a afirmação de Machado, a respeito dessas “riquezas novas” que
a passagem dos séculos, ou a transplantação para a América, “inseriu” na
língua portuguesa de cá:
A este respeito a influência do povo é decisiva. Há, portanto, certos modos de
dizer, locuções novas, que de força entram no domínio do estilo e ganham direito
de cidade. (Crítica. Obra completa III, p. 817)
Claro que havia, mais que tudo, uma “fala” nascente, mas não era esse
o foco...
Fazer tal afirmação não é impingir alienação a Machado, pelo contrário, é
acentuar-lhe uma importância particular naquilo que se pode configurar como o
conjunto de ideias sobre língua literária reunido na nossa história da literatura.
Quando ele diz que
as línguas se aumentam e alteram com o tempo e as necessidades dos usos e
costumes (Crítica. Obra completa III, p. 817)
o que ele vem defender é a legitimidade da alteração de linguagem no devir da
literatura, mesmo porque a prova que ele traz vai no sentido de que
Há (...) certos modos de dizer, locuções novas, que de força entram no domínio
do estilo e ganham direito de cidade. (Crítica. Obra completa III , p. 817)
O que ele vem defender, pois, é o afastamento de uma consideração de
inal­teridade linguística no histórico das criações literárias de seu tempo e de seu
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lugar, mesmo porque as suas indicações sobre uso se acompanham de indicações
sobre a influência dos escritores clássicos e sobre a necessidade de leitura dessas obras no Brasil da época. Referindo-se, por exemplo, a Azurara e a Fernão
Mendes, Machado considera que, no seu tempo, escrever como eles seria um
“anacronismo insuportável”, mas a justificativa é que “cada tempo tem o seu
estilo”, o que transfere para o “dizer com estilo” o “falar a língua”. Afinal,
centrado na linguagem literária, ele arremata:
Nem tudo tinham os [escritores] antigos, nem tudo têm os [escritores] modernos;
com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum. (Crítica.
Obra completa III, p. 822)
Assim como há de louvar-se “o patrimônio de Vieira e Camões” (Obra
completa III, p. 943) há de entender-se que “cada passo do século renova o
anterior” (Obra completa III, p. 943).
A gramática, Machado a vê como sistema que os manuais expõem,
portanto, pela visão da pena dos escritores, que são os visíveis responsáveis
pela guarda e defesa da língua. Ele a vê mais como manual de consulta para o
obreiro da língua do que como sistema que sustenta o uso. Do povo também
ele fala, quando trata da questão relativa ao embate entre a conservação e a
vivificação da língua, mas por onde o povo entra é pelo lado da renovação,
como fonte das alterações — decididamente como fonte legítima, ao lado
dos escritores —, mas a guarda e defesa (e, portanto, toda a orientação) é
reservada a estes.
Em primeiro lugar, é neles — nos escritores — que se há de buscar essa
guarda:
para guardar uma língua, é preciso que ela se guarde também a si mesma, e o
melhor dos processos é ainda a composição e conservação de obras clássicas.
(Obra completa III, p. 936)
Em segundo lugar, são os escritores que, paralelamente à tarefa de criar
literariamente a linguagem que merece ser preservada, assumem a tarefa específica de zelar por ela e de defendê-la, como representantes dela mesma:
Caber-lhe-á [à Academia] então defendê-la daquilo que não venha das fontes
legítimas — o povo e os escritores — não confundindo a moda, que perece, com
o moderno, que vivifica. (Obra Completa, p. 936)
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Ou seja, renovam-se os usos (do povo e dos escritores), mas cabe às Letras
instituídas separar, no que vem dos usos, o joio do trigo.
5. O espírito libertário de José de Alencar: a língua que rompe
cadeias
Não toquei os escritores até aqui comentados pelo foco da sua própria
linguagem. O que realmente os caracterizou, dentro do tema que me propus,
foi a sua visão metalinguística, e especialmente num confronto com a produção
literária.
José de Alencar também falou de língua:
Falemos particularmente da língua portuguesa. (Pós-escrito a Diva, p. 195.)
Mas, particularmente, falou da sua língua. Num Poscrito de 1865 ele registra textualmente esse empenho. O texto começa com a afirmação do escritor de
que ele “gosta do progresso em tudo, até mesmo na língua que fala” (p.193):
A língua rompe as cadeias que lhe querem impor, e vai se enriquecendo, já de novas
palavras, já de outros modos diversos de locução. (Pós-escrito a Diva, p. 193)
O móvel das reflexões é este:
A língua é nacionalidade do pensamento como a pátria é a nacionalidade do povo.
(Pós-escrito a Diva, p. 194)
Entretanto, com Alencar, não vai por aí a direção mais produtiva das
reflexões, porque a sua metalinguagem, pesadamente libertária quanto à relação entre a língua do Brasil e a de Portugal, tem origem documentadamente
marcada nas críticas que a sua linguagem particular, moldada pelos ideais da
estética romântica, suscitou.
A atitude de Alencar é de defesa, mais que de libelo. Acredito que nesse
sentido é que se possa interpretar esta afirmação de Alencar:
As línguas, como todo instrumento da atividade humana, obedecem à lei providencial do progresso: não podem parar definitivamente. (O nosso cancioneiro,
Carta V, p. 15)
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A imagem que fica ao estudioso de todos os libelos linguageiros de José de
Alencar — confrontados com as críticas à linguagem de José de Alencar — é
a de uma “alma” em litígio, que se sente no “bom combate”, bem à moda do
Romantismo: mais que escritor que configura uma estética literária, ele se põe
como um, entre muitos, na situação de uso linguístico no Brasil da época, um
entre todos os “descendentes” dos “povoadores do Brasil”, “criando um vocabulário novo à proporção das necessidades da vida, tão outra da vida europeia” (O
nosso cancioneiro, p. 22). Mais uma vez eu sugiro um entrecruzamento de dois
conflitos conjunturais, agora no equacionamento do pensar alencariano sobre
a língua de seu povo no seu tempo: o “clássico” que se esvai (e que cobram a
Alencar) é o mesmo e completo além-mar de que os românticos nacionalistas
saltam fora, para garantir existência, presença e valor. É essa a sua “insurreição
contra a gramática” de que fala Coutinho (1965). E isso, para Alencar — bem
na estética romântica — não aparece resolvido ou defendido por uma elite, representada pelos que criam literatura, mas, ao contrário, é questão que envolve
o espírito e o gosto da nação.
Aí, eis o romântico com os pés no chão...
6. Lima Barreto: a língua desleixada, com talento
Talvez seja Lima Barreto aquele que, sem propriamente dar lições, melhor
possa servir de lição, no que diz respeito ao conflito entre o uso / a criação linguística e a norma, nesse apanhado que faço. Por essa condição, ele tem rápida
— mas significativa — presença aqui, e faz um belo contraponto.
Como escritor, dele diz Monteiro Lobato (depois de registrar que leu dois
contos dele e que soube pelos jornais do triunfo do Policarpo Quaresma, com
duas edições já esgotadas):
A ajuizar pelo que li este sujeito me é romancista de deitar sombras em todos os
seus colegas coevos e coelhos, inclusive o Neto. Facílimo na língua, engenhoso,
fino, dá a impressão de escrever sem torturamento — ao modo das torneiras
que fluem uniformemente a sua corda d’água. (Carta de 1/10/1916 em A barca
de Gleyre3)
Reconhecem-lhe talento, mas invariavelmente contra ele a crítica desanca:
Não se esqueça que Lobato foi editor de Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. (1919)
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[tem muitas] imperfeições de composição, de linguagem, de estilo e outras (...)
mas com todos os seus senões é um livro distinto, revelador, sem engano possível,
de talento real (Sodré, 1969: 507);
[obra] pontilhada de graves defeitos, realizada com deficiências insanáveis, descuidada na forma, por vezes desconexa (Sodré, 1969: 507);
matéria prima quase em estado bruto. (Proença, 1959: 39).
É de Alfredo Bosi a afirmação sobre Triste fim de Policarpo Quaresma:
Já se tornou lugar comum louvar a riqueza de observação desse romance para
deplorar-lhe, em seguida, o desleixo da linguagem enfeada por solecismos, cacófatos e repetições numerosas.” (Bosi, 1970 p. 359)
E não é pouco dizer, como Domingos Proença, que
A ânsia de clareza, levando à redundância, a vontade de esclarecer, detalhar
minuciosamente, presentes em Lima Barreto, a sua abundância de possessivos e
de artigos indefinidos, os professores vão encontrar nos meninos que começam
a escrever e receiam a incompreensão do leitor.” (Proença, 1959, p. 39)
Muita coisa vai na conta de más edições, ou da péssima letra do autor, por
culpa da qual, segundo ele próprio, “tem saído cada coisa de se tirar o chapéu”.
E ele continua:
“Se, às vezes, [a má edição] não me põe mal com a gramática, põe-me em
hostilidade com o bom-senso e arrasta-me a dizer coisas descabidas”. (Feiras e
mafuás, p. 292)
Chega ele a dizer a um editor e revisor (Francisco Schettino, 1920):
“nós ainda podemos fazer alguma coisa para salvar os contos estropiados que
são dos melhores”. (Correspondência, tomo 2, p. 104.)
Mas Lima Barreto se toca, sim, das inúmeras críticas. Como crítico literário
que também foi, ele aproveitou muitas vezes esse ofício para manifestar-se como
escritor desapegado das normas e das prescrições de puristas. E nas obras de
ficção (talvez ainda como reação às críticas de que era alvo), ele ridicularizou
constantemente as personagens que se preocupavam com essas questões. Nadólskis (1981, p. 46) dá exemplos, nos quais não é questão de nos determos,
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mas aqui vão dois deles: Em Recordações do escrivão Isaías Caminha, Lobo
é um “tirano gramatical” cujo sofrimento com os erros dos outros o levava ao
médico; no conto Nova Califórnia, o mestre-escola Pelino, leitor de gramáticos,
fazia da correção dos erros gramaticais dos outros um ‘apostolado de vernaculismo”. Uma manifestação ainda mais relevante é a que está na sátira sobre a
literatura de Bruzundanga: lá, os escritores considerados “importantes, solenes
e respeitados” redigem suas obras em língua diferente da usual, instituindo
como verdadeira aquela língua que traz a feição de dois ou três séculos atrás
(nadólskis, 1981, p. 46). E de A estação é este trecho amargo:
Os senhores devem ter verificado que todo sujeito de poucas luzes, de horizonte
intelectual estreito, sem nenhuma faculdade intelectual de primeira ordem seja
nesta atividade ou naquela gaba-se de saber português e vinga-se da sua inferioridade notando as negligências e descuidos dos outros. (Feiras e mafuás, p. 151)
Entretanto, dele também tem de ser dito o que disse Houaiss:
Lima Barreto poderá ser reputado ‘incorreto’ do ponto de vista ‘gramatical’, e
de ‘mau gosto’, do ponto de vista ‘estilístico’ — afinal de contas, o conceito de
correção, na nossa gramática, mandarina e bizantina, pode apresentar tais e tais
planos de julgamento, que poucos, pouquíssimos escritores poderão enfrentar
todas as sanções de todos os planos; e afinal de contas, ainda, o problema do
‘bom gosto’ é infinitamente flutuante, no espaço, no tempo, e no mesmo espaço
e no mesmo tempo, não parecendo constituir uma questão nodalmente estética.
(Houaiss, Prefácio a Vida urbana, Obras de Lima Barreto, 1956, p. 10)
Na verdade, como acentua Houaiss, só “levianamente” ele pode ser considerado “um absenteísta ou um ignorante da problemática da correção e da eficácia
estética da linguagem” (Houaiss, 1956, p. 11). E nem isso seria necessário para
dizer-se que ele tem um papel muito importante no curso destas reflexões.
7. O espírito de homem comum de Graciliano Ramos: a língua em
uso.
E chegamos a um artista da palavra que se revela sempre um teórico
natural, arguto e firme, sensível tanto aos apelos do uso quanto aos clamores
da arte. Um teórico que faz da fala das personagens um material de reflexão
sutil sobre a essência da tensão entre o uso linguístico e a pressão da norma.
Ora, vejamos:
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– Se Fabiano
admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade
e
tentava reproduzir algumas,
ao mesmo tempo ele
sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas (Vidas secas, p. 21);
– se o que Paulo Honório (narrador-personagem, portanto personagem de
estatuto particular) dizia era
simples, direto;
– se sua linguagem era
resumida, matuta (São Bernardo, p. 139 );
– se ele condenava quem queria
o romance em língua de Camões com períodos de trás para diante
e louvava quem contribuía para o
desenvolvimento das letras nacionais (São Bernardo, p. 7-9);
– e, ainda, se Graciliano não aceitava a
gramática pedantesca, cheia de sutilezas que o leitor não compreende (Linhas
tortas, p. 67),
ao mesmo tempo ele assegurava que as suas
infelizes criaturas abandonadas, incompletas, tinham sido quase mudas, talvez
por tentarem expressar-se num português certo demais, absolutamente impossível
no Brasil. (Linhas tortas, p. 206).
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Fabiano e sua mulher não conseguem entender-se, Paulo Honório e Madalena não conseguem entender-se. Mas cada caso é um caso, e ambos os casos
tocam a essência da linguagem. No primeiro caso de Vidas secas, o problema
de não adequação a qualquer norma de linguagem que sustente interação é de
cada uma das personagens em particular, secura resultante da secura, da improdutividade da vida de ambos. No segundo caso o problema não é de cada
uma das personagens em particular, mas da relação entre as duas, resultante
do fato de que, de um modo socialmente sustentado, a consciência da norma
que há de reger os usos é diferente em cada uma delas.
Graciliano faz questão de falar a linguagem que se fala — e da linguagem
que se fala —, não importa se oral ou escrita. Declaradamente, em Graciliano
não é a linguagem literária que está em foco, e, em São Bernardo, o narrador
(Paulo Honório) afirma, mesmo:
Não pretendo bancar o escritor. (p. 9-10).
Mas, por outro lado, é da linguagem literária que ele cuida quando pergunta:
Um artista não pode escrever como fala. Não pode? (p. 7).
E Azevedo Gondim lhe responde que não pode!
Talvez essa seja a maior qualidade da linguagem de Graciliano, e a que faz
a leitura de suas obras ser tão prazerosa, na naturalidade em que, nela, o leitor
ao mesmo tempo desliza e mergulha. Com toda a poeticidade de sua criação,
nada trai esforço de elaboração, nada é inusual e nada se arrevesa. Alguém poderia levianamente dizer que Graciliano é um escritor que não sai da linguagem
comum, aquela de todos os dias, e ele mesmo, figurativamente, diz:
As pessoas que me lerem terão pois a bondade de traduzir isto em linguagem
literária, se quiserem. (São Bernardo,p. 12).
Mas o caso é que essa é a linguagem literária de Graciliano — assim ela
funciona —, e ele sabe disso e quer isso: simples como o matuto, atual como
o matuto, natural como o matuto, nacional como o matuto. Tal como na linguagem do matuto, nada nela há de pesado, sofisticado, empolado, arrastado,
nada de pretensioso. E, apesar disso — ou por isso mesmo — trata-se de uma
linguagem sempre referida como de extremo acerto e “correção”.
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O que ele critica é a “idolatria da palavra, vazia embora” (Linhas tortas,
p. 62), ao mesmo tempo que defende uma gramática que “nos oriente (Linhas
tortas, p. 303).
Quando perguntaram a Graciliano, em entrevista, se ele sabia que era
apontado como um dos escritores modernos brasileiros que melhor manejavam
o idioma, ele respondeu:
Talvez se houvesse alguma verdade nisso, eu devesse muito aos caboclos do
Nordeste, que falam bem. Num caso de sintaxe de regência, por exemplo, entre
a linguagem de um doutor e a de um caboclo não tenha dúvida, vá pelo caboclo
— e não erra. (Senna, 1968, p.12).
O acerto de seu manejo da língua nunca foi negado pelos críticos, apesar do sabor da terra sempre nela impresso, um sabor que tem amostra numa
construção como esta:
Dou pra isso não, seu Luisinho. (Angústia, p. 160)
Alguém ousaria reclamar, aí, uma negação ortodoxa (anteposta), em
nome de uma norma abstrata? Ou alguém, por alguma regra preconcebida iria
reclamar, por exemplo, de suas repetições, depois de as ver aqui e lá caídas, a
serviço da obra, tão literariamente a pipocar nos pontos certos?
Eis um poliglota por excelência...
Palavras finais
Dentro da mais lúcida orientação teórica, nosso mestre Evanildo Bechara
insiste no conceito coseriano de língua funcional, no sentido de considerar
que a língua a que o analista se dedica é a língua — unitária mas de múltiplas
formas — que entra efetivamente nos discursos.
Ora, todos nós somos poliglotas, ou plurilíngues, em nossa língua, como
quer Bechara quando se refere aos “desvios” da “técnica normal” que somos
capazes de cometer. Mas é aí que o poeta transcende, com “desvios” que não
se cometem, mas se criam e se inventam, naquele poiein, naquele fazer de
demiurgo que os sem poesia não atingem.
Termino estas reflexões invocando Manuel Bandeira, para apontar que
a leitura desses versos facilmente nos lembrará uma obviedade: que poesia é
criação de vida, com tudo aquilo que lhe dá referência; que a poesia “inventa”
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terras com palavras, terras por onde andaremos também levados pelas palavras
da poesia (em prosa ou em verso):
Testamento
Vi terras da minha terra
Por outras terras andei
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado
Foram terras que inventei.
A tal ponto ao poeta aproveita a funcionalidade da língua que ele assume
os silêncios como ingredientes da palavra, como o faz Manoel de Barros, no
seu O apanhador de desperdícios:
Uso a palavra para compor meus silêncios. (Memórias inventadas: a infância)
Ao próprio silêncio, pois, o poeta consente lugar — e lugar privilegiado
— no seu fazer da linguagem. Aí está a incondicional, consentida — e privilegiada - submissão do poeta à palavra que compõe a sua invenção. Ou seja, por
aí se chega à plenitude da linguagem em função, que é o amarramento — até no
silêncio - das palavras, que saltam por aí fugidias, como diz mestre Drummond
(e palavras que o poeta recolhe para nós):
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.
(A rosa do povo)
Cecília Meireles também põe as palavras a voar, a dissolver-se a nosso
lado e sobre nós: alheias, mas nossas. Nossas, mas especialmente dela, da poeta,
capaz de governar o seu pousar naqueles desvios que os poetas multiplicam.
Voo
Alheias e nossas
as palavras voam.
E às vezes pousam.
(Dispersos)
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Maria Helena de Moura Neves
Quem, senão o poeta, pode, sem pejo, chegar ao requinte de declarar que
tem a chave de um reino que o espera para que ele simplesmente recolha os
poemas e lhes dê vida com as palavras? Drummond nos confessa que procura
a poesia penetrando no reino das palavras. Ele as vê paralisadas em seu reino,
para a recolha daquele que lhes dará a funcionalidade máxima, aquela que
atinge o reino da poesia:
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero
(...)
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
(A rosa do povo)
Como ninguém o poeta, com a chave e a posse do mundo das palavras,
cumpre, em plenitude, as funções que dizem os analistas — cada um a seu
modo - que a linguagem tem. Podemos até manter, em relação à obra do poeta,
o cansado rótulo “função poética”, porque esse é um título que, de fato, implica
abolição de circunscrições: a poesia é o “fazer” completo, em que nada falta
para o funcionamento linguístico, seja lá qual for o poeta, seja qual for sua
época, seja qual for sua “escola”.
E cá ficamos, os pobres mortais, na nossa lide comum (eficiente que seja)
com a linguagem, quem sabe aproveitando um pouco melhor o outro notável
conceito de pregação bechariana, o de exemplaridade, para levar ao cultivo da
escola a vivência da literatura, sempre modelar para o uso da língua.
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Maria Helena de Moura Neves
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O conto machadiano
Domício Proença Filho
UFF, ABL
Introdução
Todo texto é diálogo.
Mobilizado por esta convicção, é que me permito revisitar algumas configurações do conto machadiano, caracterizadoras do seu imaginário. Assumido
o risco calculado de reiterar o já afirmado em algum lugar da fortuna crítica do
autor, possivelmente a mais ampla da literatura brasileira.
O corpus, a época, o gênero
Machado de Assis escreveu mais de 200 textos do gênero. Desde 1858, data
da publicação de “Três tesouros perdidos”, na Marmota Fluminense até 1907.
A maioria foi objeto de divulgação em periódicos. Basicamente no Jornal das
famílias, entre 1864 e 1878; em A Estação, de janeiro de 1879 a 1898, na Gazeta
de Notícias, entre 1881 e 1897. São 163 contos no total, assim veiculados.
O Jornal das Famílias e A Estação eram revistas femininas. Trata-se,
portanto, de um público específico para o qual o autor direcionava basicamente
a sua produção.
O Bruxo do Cosme Velho, como o chamou Carlos Drummond de Andrade,
selecionou apenas 76 para figurarem nos sete livros em que os reuniu, a partir,
ao que parece, da acolhida do público — leitor: Contos fluminenses, Histórias
da meia-noite, Papéis avulsos, Histórias sem data, Várias histórias,Páginas
recolhidas, Relíquias de casa velha. De um lado, o rigor, de outro a praticidade:
duas faces de uma mesma moeda.
Esses os selecionados como corpus para as considerações que seguem.
Acredito que seja uma amostragem representativa. As fontes dos textos citados
são os volumes II e III dos três que integram a 2.ª edição da Obra completa, organizada por Afrânio Coutinho, publicada pela Editora José Aguilar, em 1959.
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Domício Proença Filho
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A época em que Machado se dedica mais intensamente ao conto marca, na
cultura ocidental, como assinala John Gledson, a emergência de um novo tipo de
respeitabilidade para o gênero, que ganha identidade, agora entendido como capaz
de uma estruturação apoiada em princípios singularizadores. O autor de Papéis
avulsos, antenadíssimo, navega seguro nessas águas. Mas sabe dos percalços da
navegação. Como ele mesmo atesta, numa passagem do conhecido ensaio denominado “Notícia da atual literatura brasileira — instinto de nacionalidade”:
É gênero difícil, a despeito de sua aparente facilidade, e creio que essa mesma
aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu,
o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor. (O.c., v. III, p. 819)
E conhece as palavras de Diderot, citadas na “Advertência” ainda de
Papéis avulsos, e delas e se vale como compensação:
Quanto a Diderot, ninguém ignora que ele, não só escrevia contos, e alguns deliciosos, mas até aconselhava a um amigo que os escrevesse também. E eis a razão
do enciclopedista: é que quando se faz um conto, o espírito fica alegre, o tempo
escoa-se, e o conto da vida acaba, sem a gente dar por isso. (O.c., v. II, p. 254)
Palavras reiteradas, no original, na epígrafe da “Advertência” de Várias
histórias, que, segundo o autor, “servem de desculpa aos que acharem excessivos tantos contos. É um modo de passar o tempo”:
Mon ami, faisons toujors de contes... Le temps se passe, et le conte de la vie s’
achève, sans qu’on s’en aperçoive. (O.c., v. II, p. 467)
O que não disseram nem Denis Diderot, nem Machado e nem Prosper Mérimée nem Edgard Allan Poe, também referidos como modelares na mesma “Advertência”, é que o conto da vida reduplica-se nos contos que escreveram.
E se o gênero se presentifica em alguns escritores do Brasil seus contemporâneos, é Machado de Assis que sedimenta efetivamente a sua configuração
no processo literário brasileiro.
A temática reiterada
Seus contos, como seus romances, como é consabido, nuclearizam-se
na atitude e no sentir dos personagens, elementos mobilizadores da reflexão.
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Importa mais a análise de uma situação do que a situação em si mesma. O
enfoque, a trama, o espaço situam-se, e Alfredo Bosi já o assinalou, “funcionalmente a serviço de um tema teórico, uma doutrina, uma ideia.” Evidencia-se
a prevalência da linguagem.
Ganha vulto, no fundo, a obsessão da forma. Cultivada ao longo de um
elaborado processo criativo, conscientemente assumido. Essa elaboração
envolve, sem prejuízo da representatividade literária do texto, a reiteração de
temas, reiteração equilibrada pela variedade de estratégias narrativas e uma das
marcas de sua produção ficcional.
Perpassa dominante a temática reiterada o autoritarismo das imposições
sociais como elemento determinador do comportamento dos indivíduos.
Configura-se o que me permito denominar a ditadura da aparência.
O contista trabalha generalizações conceituais, centradas sempre na natureza do ser humano. E destaca as escolhas, a partir da observação do psicológico. Sua linguagem singulariza-se quando funda a ambiguidade no conflito
semântico instaurado pela paródia irônica. A matéria que privilegia faz-se de
aspectos negativos intemporais próprios da humana condição.
Exemplifico, a partir de quatro textos.
A “Teoria do medalhão” explicita-lhe a fundamentação. Centraliza-se
no sentido figurado e pejorativo do termo, entendido como o indivíduo posto
em destaque, mas sem qualquer mérito que o justifique. Ao fundo, a crítica,
mediatizada sutilmente pela ironia que marca a conversa de pai e filho de que
se faz a história. Ironia, nas palavras paternas, compreendida como
Esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por um grego
da decadência, contraído por Luciano, transmitido por Swift e Voltaire, feição
própria de céticos e desabusados”. (O.c.,v. II, p. 288)
Machado, como se depreende, tem plena consciência dos fundamentos
de que se vale na sua criação literária e explicita também os autores dos textos
com que dialoga.
Três passagens da fala do pai exemplificam a teoria do título.
A primeira marcada de avaliação sincera e cruel:
Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental,
conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto á fidelidade com que
repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina ou vice-versa, porque esse
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fato, posto que indique certa carência de ideias, ainda assim pode não passar
de uma traição de memória (id., ib. p. 289).
A segunda, um conselho, carregado de atualidade:
— Não te falei ainda dos benefícios da publicidade. A publicidade é uma
dona loureira e senhoril que tu deves requestar à força de pequenos mimos,
confeitos, almofadinhas, coisas miúdas, que antes exprimem a constância do
afeto, do que o atrevimento e a ambição... (id., ib., p. 291)
A terceira, definidora:
O verdadeiro medalhão “longe inventar um Tratado científico da criação de
carneiros, compra um carneiro e dá-os aos amigos sob a forma de um jantar, cuja
notícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia traz outra,
cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante os olhos do mundo(...) Os sucessos
de certa ordem, embora de pouca monta, podem ser trazidos a lume, contanto que
ponham em relevo a tua pessoa. Explico-me: se caíres de um carro, sem outro
dano, além do susto, é útil mandá-lo dizer aos quatro ventos, não pelo fato em
si, que é insignificante, mas pelo efeito de recordar um nome caro às afeições
gerais. Percebeste? (id., ib., p. 289)
Desnecessário lembrar a atualidade do conselho. É ver, na mobilização
dos ventos hodiernos, assessorias e colunas especializadas, blogs e sites do
espaço virtual.
Nuclear, no conto, a exaltação irônica da vantagem da ausência de ideias
próprias.
Em “O espelho” subtitulado “Esboço de uma teoria da alma humana”,
retorna o mesmo tema, agora no exemplo prático. Os dois contos dialogam.
Jacobina, o protagonista, o exemplifica:
— (...) Cada criatura humana traz duas almas consigo. Uma que olha de dentro para
fora, outra que olha de fora para dentro (...) Há casos, por exemplo, em que um
simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa;... E assim também a polca,
o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor etc.
Está claro que o ofício desta segunda alma é transmitir a vida como a primeira; as
duas completam o homem que é, metafisicamente, uma laranja. Quem perde uma
das metades, perde naturalmente metade da existência. (O.c., v. II, p. 341)
Na atmosfera difusa da narrativa, a imagem sobrepõe-se à realidade física.
A tal ponto que o protagonista se vê reduzido à sua farda de alferes da guarda
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nacional, refletida no espelho real e no espelho da opinião alheia. Uma das antecipações machadianas: não é o que vivemos na realidade virtual da internet?
Qual é hoje a verdadeira natureza dos dialogadores do Rede? A da realidade
física de cada um ou a da imagem veiculada na tela do computador? A vida
vivida ou a second life? Fratura-se o corpo, envólucro da alma. Imagine-se a
perplexidade de Aristóteles.
O conto evidencia a consagração da máscara, essa identidade de cada um
condicionada pelo olhar do Outro.
Presentifica-se o signo do duplo, que frequenta com assiduidade a ficção
machadiana.
Em “O segredo do bonzo”, onde a ação desloca-se para 1552, na cidade
Fuchéu, retorna o predomínio das imposições sociais, agora associado à crítica
ao cientificismo, também ironicamente explicitado. Ganha vulto, paralelamente,
o relativismo dos comportamentos.
Recordemos: o narrador, identificado com Fernão Mendes Pinto, relata,
num pastiche de sua Peregrinação quinhentista, uma experiência vivida em
companhia de Diogo Meireles, naquele lugar e naquele tempo distante. Vinculada a três doutrinas, defendidas por três propositores, a última delas posta
em prática pelos dois e mais por um personagem local, um alparcareiro, um
fabricante de alparcas ou seja, de alpercatas, de nome Titané.
A primeira trata da origem dos grilos, defendida por Patimau. Para ele, tais
insetos “procediam do ar e das folhas do coqueiro, na conjunção da lua nova”,
conclusão que é fruto de dilatados anos de aplicação, experiência e estudos,
trabalhos e até perigos de vida”, levados a termo por ele, matemático, físico e
filósofo. A multidão que o ouve aclama-o em delírio.
A segunda, na palavra de Languru, consiste na descoberta do princípio
da vida futura, quando a terra houvesse de ser inteiramente destruída: uma
gota de sangue de vaca. Daí, conclui, a excelência da vaca como habitação da
alma humana. Outro aglomerado de povo aplaude-o com alarido. Observe-se
desde logo a natureza dos elementos relacionados, como recurso mobilizador
de humor e ironia.
A terceira é de autoria do bonzo do título, chamado Pomada, a quem o
cronista e o amigo são levados pelo alparcareiro. Pomada é um ancião de 108
anos, muito lido e sabido nas letras divinas e humanas. Deixemos que nos
explicite a sua teoria, novamente marcada pela duplicidade:
Haveis de entender, começou ele, que a virtude e o saber têm duas existências
paralelas, uma do sujeito que as possui, outra no espírito dos que o ouvem ou
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contemplam. Se puserdes as mais sublimes virtudes e os mais profundos conhecimentos em um sujeito solitário, remoto de todo contato com outros homens, é
como se eles não existissem. (O.c., v. II, p. 321-22)
E Pomada. (id., ib., p. 322) complementa:
Entendi que, se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir
na realidade sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas,
a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente.
Os três interlocutores resolvem aplicar a teoria, por meio, segundo o
cronista-narrador, de
uma idéia tão judiciosa quão lucrativa, pois não é só lucro o que se pode haver
em moeda, senão também o que traz consideração e louvor, que é outra espécie
de moeda, conquanto não dê para comprar damascos ou chaparias de ouro. (id.,
ib., p. 322-23)
Inventam uma fonte alimentadora dos ventos divulgadores: uma publicação chamada Vida e claridade das coisas mundanas e celestes e de toda a costa
malabar, destinada a exaltar as alparcas feitas por Titané. A cidade Fuchéu se
comove e as alparcas ganham fama e consumo.
O interlocutor-narrador pondera que não se cumpriu a doutrina pomadista, “pois não nos cabe inculcar a outros uma opinião que não temos, e sim
a opinião de uma qualidade que não possuímos; este é, ao certo, o essencial
dela.” (id., ib., p. 323-24)
E efetiva a sua proposta: põe-se a tocar charamela, que é o ancestral da
atual clarineta, para encanto geral da multidão, movida por seu discurso preparatório.
Diogo Meireles, por sua vez, que se dedicara à medicina, diante de uma
doença que grassava na cidade e que obrigava a extirpar os narizes dos atingidos,
propõe uma solução para a desnarização necessária: substituir o nariz cortado por
um nariz são, só que de natureza metafísica. E convence a todos, que o acla­mam
entusiasmados. afinal, “o ser humano não é outra coisa mais que o fruto da idealidade transcendental... Diogo lhes colocava o nariz metafísico que continuava
a prover-se dos mesmos lenços de assoar”.(id., ib., p. 325)
A localização num tempo e num lugar distante, a referência a um povo de
língua diferente constituem elementos garantidores de verossimilhança. Torna
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a mensagem capaz de mobilizar pessoas de todos os tempos e lugares. Ao
mesmo tempo em que asseguram o distanciamento próprio do jogo ficcional.
O leitor se dá conta de que se trata de ficção e da ironia que perpassa o conto.
Na mobilização do humor, entre outros fatores, o contraste entre elementos de
simplicidade e altissonância, concreção e abstração.
Parodiam-se o discurso filosófico e o discurso científico. Repare-se:
Machado traz para o vocabulário, nesse caso, como em outros, vocabulário
e expressões próprios de outras manifestações linguísticas, o que provoca,
necessariamente, um estranhamento. É nesse estranhamento que se apoia o
efeito irônico do seu texto.
O diálogo retorna no “Anel de Polícrates” agora assumido por dois interlocutores A e Z, a primeira e a última letra do alfabeto. Núcleo da conversa, um
terceiro, Xavier. Também de dupla face. “o Xavier nababo, exterior, o Xavier
que nunca teve mais de duzentos mil-réis”. De novo, o duplo, de novo a relatividade. Nuclear, o percurso de uma frase deste último: “A vida é um cavalo
xucro ou manhoso, e quem não for cavaleiro que o pareça”. A ideia era lançar
a frase, como aconteceu com o realizado Polícrates, rei de Samos, que lançou
um anel ao mar, para evitar percalços da fortuna, e o teve de volta no bucho de
um peixe e ver o que acontecia. E a frase volta. Leia-se o conto.
Configura-se, ao longo das narrativas, o destaque ao poder do discurso e a
presença sub-reptícia, da vassalagem à opinião, tão cara a Brás Cubas, como esse
personagem-narrador explicita no prefácio das suas Memórias póstumas.
A ditadura da aparência vincula-se à veleidade em “D. Benedita” e à vaidade em “Uma senhora”, personagens-título marcadas pela preocupação com a
corrosão do tempo. “A coisa mais árdua do mundo, depois do ofício de governar,
seria dizer a idade exata de D. Benedita”. Em D. Camila, protagonista do segundo, ressalta o medo de envelhecer. Atente-se para o feminino desespero que a
acomete diante do primeiro fio de cabelo branco, o impacto dos namoros da filha,
a expectativa nervosa diante da possibilidade de ser avó. Mas vem o neto.
Ela, porém, ia tão apertadinha, tão cuidadosa da criança, tão a miúdo, tão sem
outra senhora, que antes parecia mãe do que avó; e muita gente pensava que
era mãe. que tal fosse a intenção de Dona Camila não o juro eu (“Não jurarás”,
Mateus, v,34) tão somente digo que nenhuma outra mãe seria mais desvelada do
que Dona Camila com o neto; atribuírem-lhe um simples filho era a coisa mais
verossímil do mundo.
A mesma imposição associa-se à sátira aos costumes políticos em “A
Sereníssima República” um conto feito do texto de uma conferência sobre a
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Domício Proença Filho
república das aranhas, cujo idioma o conferencista, um cônego, decifrara. Em
destaque, o processo eleitoral necessário a dar-lhes um governo idôneo, baseado
no saco e bolas adotado na antiga Veneza, “iniciação dos filhos da nobreza no
serviço do Estado. Metiam-se as bolas com os nomes dos candidatos no saco
e extraía-se anualmente um certo número, ficando os eleitos desde logo aptos
para as carreiras públicas.” (O.c., v. II, p. 337) São de notar as vantagens do
método, segundo o seu propositor: “ele exclui os desvarios da paixão, os desazos da inépcia, o congresso da corrupção e da cobiça” (id., ib.). Mas houve
fraude, que exigiu mudanças. A última eleição destinada a eleger um coletor
de espórtulas, gerou uma crise, que levou à consulta a um filólogo, também
bom metafísico e não vulgar matemático.
Concorreram dois candidatos: Nebraska e Caneca. O primeiro foi eleito. A
bola tinha o seu nome. O segundo recorreu. O nome era o dele. E a filologia demonstrou que este último estava certo: Nebraska foi lido Caneca. Desnecessário
assinalar a atualidade dessa eleição veneziana, quintessência da relativização.
Sátira, no melhor estilo machadiano. Nem a filologia escapa do naufrágio das
nossas ilusões...
A valorização da aparência alia-se à crítica ao cientificismo em “o alienista”, centrado na esquizofrenia, e na relatividade dos diagnósticos. Lembro
a síntese do enredo.
Simão Bacamarte, um psiquiatra, “filho da nobreza da terra e o maior
dos médicos do Brasil, e das Espanhas” (O.c., p. 255), funda, no município
fluminense de Itaguaí, um hospício suntuoso: a Casa Verde. Dedica-se com
empenho raro ao ofício médico. E vai internando, com base em diagnósticos
surpreendentes e aleatórios, e os munícipes que considera doentes. Meses
depois da inauguração, confidencia ao boticário local a sua constatação de
que a loucura, núcleo dos seus estudos e preocupação, era, até então, “uma
ilha perdida no oceano da razão”, mas começa “a suspeitar de que se trata de
um continente”. E passa a recolher um contingente excessivo de pacientes: o
vaidoso, a supersticiosa, o bajulador, o orador hiperbólico. O terror toma conta
da cidade. E leva à rebelião, chefiada pelo barbeiro Porfírio e sua ambição.
Este culmina por assumir a prefeitura local e, de repente, começa a defender
a necessidade da Casa Verde. Eis que quatro quintos da população encontra-se internada. Bacamarte reexamina os fundamentos de sua teoria. E passa a
reconhecer a normalidade e a exemplaridade no desequilíbrio das faculdades
mentais. Patológicos eram os sintomas de normalidade ininterrupta. Libera os
antigos clientes. Interna então os tolerantes, os modestos, os simples, os cultores
da verdade, os sinceros etc. Nas palavras do narrador:
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Suponha um modesto. Ele aplicava a medicação que pudesse incutir-lhe o sentimento oposto. E não ia logo às doses máximas — graduava-as, conforme o
estado, a idade, o temperamento, a posição social do enfermo. Às vezes bastaria
uma casaca, uma fita, uma cabeleira, uma bengala, para restituir a razão ao alienado. Em outros casos, a moléstia era mais rebelde; recorria então aos anéis de
brilhantes.(O.c., v. II, p. 285).
Bacamarte conclui, após longa reflexão, pela relatividade da eficácia do
seu método terapêutico. Sadio, só ele, Simão, que, solitário, interna-se a si
próprio na Casa Verde. E ali falece.
Destaca-se na perspectiva irônica do conto o tema da irracionalidade do
comportamento humano, a relatividade dos conceitos éticos. A ética cede ao
arbítrio. A virtude é posta em questão.
Ganha destaque a superposição dos interesses pessoais aos interesses do
outro.
Presentifica-se ainda no conto a crítica ao arbítrio do poder. Nem o epílogo
redime o personagem: sua autointernação converte-se no paroxismo patético
da atitude egocêntrica.
A loucura, como tema, é retomada ainda, entre outras histórias, com variações sintomatológicas, como em “a causa secreta”, um dos raros contos marcados
de sadismo e morbidez, em que um rato é sacrificado com requintes de crueldade.
O sacrifício de um rato, assinale-se, volta a ser destacado, em outras circunstâncias, no capítulo 110 de Dom Casmurro. Aparece também em “O enfermeiro”,
centrado num criminoso impune, herdeiro de sua vítima. Neste último, o tema da
superposição da aparência liga-se ao poder corruptor da riqueza, também presente,
aliado ao requinte de crueldade no “conto de escola”, de Várias histórias.
De certa maneira, relaciona-se com o jogo da relatividade entre a verdade e a mentira, em “Noite de almirante”, de Histórias sem data, associado
à volubilidade de Genoveva, a jovem e perjura antagonista do desventurado
Deolindo Venta-Grande: abro espaço, como lembrete, para as palavras com
que ela justifica a sua infidelidade:
— pois sim, Deolindo, era verdade. Quando jurei, era verdade. Tanto era verdade,
que eu queria fugir com você para o sertão. Só Deus sabe se era verdade! mas vieram outras cousas... veio este moço e eu comecei a gostar dele... (O.c., p. 440)
Vincula-se também à máscara do ser humano relativizado pelo bem e pelo
mal em “A igreja do diabo”, do mesmo livro.
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Machado destaca ainda, na sua ficção, a instituição do casamento. Os
relacionamentos sociais deixam a superficialidade romântica para assumir
a complexidade a eles inerente. Não nos esqueça o rigor que caracterizava a
estratificação social à época.
O adultério ganha tratamento similar aos dos romances em que é tematizado.
É assumido, como nas Memórias póstumas de Brás Cubas, em dois contos de Várias histórias: em “A senhora do Galvão”, e em “A cartomante”, no
primeiro, punido pela ironia:
— Hoje quase não tenho tido tempo de estar com você disse ela a Maria Olímpia,
perto da meia-noite.
— Naturalmente, disse a outra, abrindo e fechando o leque; e, depois de umedecer os lábios, como para chamar a eles todo o veneno que tinha no coração:
Ipiranga, você está hoje uma viúva deliciosa... vem seduzir mais algum marido?
(O.c., p. 458)
No segundo tragicizado, com um desfecho também pouco comum em
Machado: a honra do marido lavada com o sangue dos dois amantes por ele
assassinados.
Afinal, pontua a digressão do narrador onisciente em “A senhora do
Galvão”:
Assim vai o mundo. Assim se fazem algumas reputações más, e o que
parece absurdo, algumas boas. (O.c., p. 453-54)
Figura insinuado, como no romance Quincas Borba, em “A causa secreta”,
além de, imerso na atmosfera intervalar de sonho e realidade, na sutileza dos
meandros da sedução em “A Missa do Galo”, de Páginas recolhidas.
É presumido em D. Casmurro, se concedemos a Capitu o beneplácito da
dúvida. Não nos esqueça de que o encanto da moça dos olhos de água reside
no seu mistério.
Os temas, além do enfoque diferenciado, emergem de elaborações distintas, a começar da natureza dos narradores, em que está presente a reflexão
integrada à narração e à ação, marcas da técnica do autor.
O tratamento conferido a eles, por outro lado, afasta-se do determinismo
característico do modelo realista dominante no último quartel do século; os
personagens machadianos estão longe de constituir vontades dominadas pelas
forças insuperáveis do determinismo biológico, atávico ou social.
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A ânsia de perfeição diante da precária condição humana está presente
no citado “D. Benedita”, e em “Trio em lá menor”, de Várias histórias, e,
associada à impotência criadora, em “Cantiga de esponsais”, de Histórias sem
data e ”em “um homem célebre”, também de Várias histórias. Com um aspecto
curioso: o impasse nos dois últimos centraliza-se na mesma nota musical. cito
o final do “Trio”:
— É a tua pena, alma curiosa de perfeição; a tua pena é oscilar por toda a eternidade entre dois astros incompletos, ao som desta velha sonata do absoluto: lá,
lá, lá. (O.c., p. 509)
Retomo o desfecho da “cantiga”:
Mestre Romão, ofegante da moléstia e de impaciência, tornava ao cravo: mas a
vista do casal não lhe supria a inspiração, e as notas seguintes não soavam:
— lá... lá... lá...
Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse momento,
a moça embebida no olhar do marido começou a cantarolar a toa, inconscientemente, uma coisa nunca antes cantada nem sabida, na qual um certo lá trazia após
si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão procurara durante
anos sem achar nunca. o mestre ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça , e à noite
expirou. (O.c., p. 385-86)
Mais uma vez, a reiteração. Até na vinculação à arte musical. frequente na
imagística machadiana. Lembro, a título de exemplo, a fala do maestro Marcolini, amigo de Bentinho, no capítulo IX, de D. Casmurro, intitulado muito
significativamente “A ópera”:
A vida é uma ópera e uma grande ópera. o tenor e o barítono lutam pelo soprano,
em presença do baixo e dos comprimários, quando não são o soprano e o contralto
que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e dos mesmos comprimários.
Há coros numerosos, muitos bailados, e a orquestração excelente... (...) Deus é
o poeta. a música é de satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no
conservatório do céu.Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não tolerava a precedência
que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser também que a música em
demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu
gênio essencialmente trágico. (O.c., v. I, p 737)
O interesse pessoal, sobreposto ao compromisso moral, revela-se em
“Evolução”, de Relíquias de casa velha, um retrato carregado de atualidade.
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Em síntese, um dos dois personagens envolvidos na história, de nome Benedito, moralmente bom, mas intelectualmente menos original, vai, aos poucos,
apoderando-se de uma frase do outro, Inácio, o narrador, até assumi-la como
sua. Vale reiterá-la. Trata-se de um comentário deste último, durante o primeiro
encontro de ambos.
Inácio — eu comparo o Brasil a uma criança que está engatinhando; só começará
a andar quando tiver muitas estradas de ferro.
— Bonita idéia! exclamou Benedito faiscando-lhe os olhos. (O.c., p. 681)
Trecho do diálogo, no segundo encontro:
Benedito — Na minha viagem de agora, achei ocasião de ver como o senhor tem
razão com aquela idéia do Brasil engatinhando.
Inácio — Ah?
Benedito Sim senhor; é justamente o que o senhor dizia na diligência de Vassouras.
Só começaremos a andar quando tivermos muitas estradas de ferro. Não imagina
como isso é verdade. (id., ib., p. 682)
Em novo encontro, depois de vários, consolidada a admiração mútua:
Inácio — Quero vê-lo ministro, disse-lhe.
(...)
Benedito — Não digo isso, respondeu. Quando, porém, seja ministro, creia que
serei tão — somente ministro industrial. estamos fartos de partidos; precisamos
desenvolver as forças vivas do país, os seus grandes recursos. lembra-se do que
nós dizíamos na diligência de Vassouras? O Brasil está engatinhando; só andará
com estradas de ferro.
Inácio — Tens razão, concordei um pouco espantado. E por que é que eu mesmo
vim à Europa? vim cuidar de uma estrada de ferro. Deixo as coisas arranjadas
em Londres. (id., ib., p. 683)
Distanciamentos físicos, mais um encontro. Benedito, agora deputado,
mostra ao interlocutor o borrão do discurso que faria na Câmara:
— Senhores, é tempo de cuidar, exclusivamente, — notai que digo exclusivamente — dos melhoramentos materiais do país. Não desconheço o que se me pode
replicar; dir-me-eis que uma nação não se compõe só de estômago para digerir,
mas de cabeça para pensar e de coração para sentir. Respondo-vos que tudo isso
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não valerá nada ou pouco, se ela não tiver pernas para caminhar. E aqui repetirei
o que, há alguns anos, dizia eu a um amigo , em viagem pelo interior: o Brasil
é uma criança que engatinha ; só começará a andar quando estiver cortado de
estradas de ferro (id., ib., p. 684).
A mesma sobreposição do interesse pessoal figura, pungente e denunciadora, em “O caso da vara” e em “Pai contra mãe”, de Relíquias de casa velha.
Nem faltam considerações sobre a arte de escrever em “O cônego ou metafísica do estilo” de Várias histórias e em “O dicionário”, de Páginas recolhidas.
Exercício de metalinguagem, frequente em inúmeros outros contos.
Como se percebe, nessas idas e voltas aos temas assinalados, o texto machadiano, em percursos técnicos distintos, satiriza o comportamento comprometido
dos personagens com as instituições, a sua subserviência ao parecer como garantia
do sobreviver. Caracteriza o reconhecimento, bastante comum, à necessidade
do bem material como forma de bem estar no mundo. Mas, importa afirmá-lo,
Machado não referenda: denuncia, embora não acuse diretamente. É atitude que
mantém diante de outras transgressões ou escoriações que atingem o socialmente
estabelecido pela moral convencional. Quase digo burguesa ou pequeno-burguesa.
Nesse sentido, acompanha o vezo dominante na visão de mundo do seu tempo,
marcada na literatura, pela observação e análise da realidade. Acompanha, mas
sem subserviência. Ao fundo, traços da ambiguidade moral, na esteira de Diderot. Sua denúncia envolve ainda a mediocridade dominante em certos setores
intelectuais do seu tempo. A “Teoria do medalhão” é, a propósito, exemplar.
O contista ironiza comportamentos, cosmovisões, modalizações românticas e realistas, satiriza discursos. Traço forte, no âmbito dos valores institucionalizados, notadamente em relação aos interesses pessoais e sociais, é o
idealismo frustrado.
Rumos da construção
Os contos fazem — se de histórias simples, despojadas. Ao fundo, vida.
Em primeiro plano, o tratamento da linguagem.
A trama se resume praticamente a uma situação ou a um conflito básico.
O que predomina e nucleariza o interesse do leitor ou ouvinte é a digressão,
carregada de argumentação persuasiva. O grande diferencial acaba sendo o
discurso retórico.
Em síntese, associam-se na construção do conto machadiano comportamento individual, digressão, multiplicidade de enfoques, linguagem trabalhada.
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Evidenciam-se, também na narrativa curta, sem prejuízo da singularidade, reflexos da forma shandiana, explicitada magistralmente, a propósito do
romance, por Sérgio Paulo Rouanet em Riso e melancolia: centramento na
subjetividade, presença forte da digressividade, esta traço diferenciador relevante em termos da reiteração apontada.
Na tessitura do texto, alternam-se pontos de vista.
Observe-se a variedade de narradores: em primeira pessoa, em terceira,
dialogadores. Em todos ou em quase todos, a prática frequente da citada digressão sobreposta à ação e de vária natureza: autorreflexivas, digressões sobre
digressões, digressões sobre os fatos. É elemento nuclear dos contos, na direção
dos temas evidenciados. Neste espaço, o narrador emite opiniões. Mobiliza o
leitor na direção delas.
Destacam-se, em termos de ambiência, a casa, a rua, a cidade, notadamente a primeira.
As histórias a privilegiam como espaço nuclear da ação. Essa limitação
espacial propicia maior concentração na tecedura da narrativa. Dois exemplos,
de rara ourivesaria: “Uns braços” e “ Missa do Galo”. Mesmo a casa de Deus
é assim utilizada, em “Entre santos”.
A casa assegura ainda uma certa atmosfera de intimidade familiar ou
propiciada pela amizade, coerente com a pessoalidade evidenciada.em “Teoria
do medalhão” e em “O espelho”, para citar dois exemplos.
A rua e a cidade alternam com espaços vagos e funcionam como circunstâncias contextualizadoras integradas e garantidoras de verossimilhança,. seja
a cidade Fuchéu de “O segredo do bonzo”, a Itaguaí, de “O alienista”, o Rio
de Janeiro, da maioria das histórias. Mas ambas em plano inferior à dimensão
individual dos personagens. Essa é que conta e, pouco a pouco, na frequência
do processo, ganha densidade. Talvez vinculada ao amadurecimento do próprio
escritor.
E mais: se seus personagens se movem nesses espaços urbanos do Brasil,
essa visão e essa localização em nada diminuem o caráter universal dos espaços
de reflexão que suas histórias nos lançam diante.
Sua obra ficcional, por outro lado, não é um espelho explícito do Brasil
em que vive: é fruto do que ele pensa sobre a realidade mais do que ele observa
sobre essa realidade.
O estilo entre outras marcas, assume o coloquialismo, com um excepcional
domínio da imagística.. Configura a descoberta, a partir de acontecimentos simples e comuns do cotidiano, de dimensões incomuns, a ponto de conferir-lhes
caráter de atemporalidade. esse jogo propicia efeitos humorísticos.
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Repare-se ainda na multiplicidade de formas, na multidimensionalidade
de sua prosa feita de histórias curtas, longas, diálogos, pastiches, monólogos,
cartas.
Machado de Assis domina gradativamente a técnica narrativa ao longo de
sua obra. Isso se presentifica nos romances como nos contos. Trata-se de um
criador consciente dos recursos de que se vale, fundados rigorosamente na sua
formação, quase digo na suas leituras.
O conto no processo literário brasileiro
No âmbito do processo literário brasileiro, seu texto ficcional é desvinculado de compromisso explícito com as tendências literárias que integram tanto
o Romantismo, como o complexo estilístico pós-romântico.
O relativismo que os caracteriza o afasta, desde logo, das dicotomias
radicais dos textos românticos e da perspectiva determinista de realistas e
naturalistas. Ele aproveita elementos desses estilos epocais, como se vale dos
clássicos e , em especial, de procedimentos impressionistas. Um impressionismo
à Machado de Assis.
Em relação ao processo de construção, seus personagens não são, como
tantos outros de obras do seu tempo, marcados pela distorção ou pela condição
marginal. Mesmo o retrato psicológico que os configura é complexo.
Se, por um lado, em termos de linguagem, sua produção ficcional dá
continuidade a certos procedimentos da tradição narrativa brasileira, por outro,
converte-se, sobretudo nos textos da chamada maturidade, numa ruptura com
essa mesma tradição e insere-se, antecipadora, na ficção moderna. E aqui retomo
apreciação que defendi em 1978, em conferência pronunciada na Universidade
Federal Fluminense.
No espaço dessa antecipação, configura-se o centramento na hipertofia da
problematização da existência.
A arte moderna privilegia a atividade lúdica, o jogo. Machado joga com
o conteúdo, por intermédio da paródia, no sentido baktiniano do termo, e, consequentemente, do humor, por meio do qual fratura-se a visão tragicizante da
vida. Isso se evidencia com maior nitidez nos romances. No conto, o escritor
parodia sutilmente, por exemplo, o discurso científico, como ficou assinalado.
Seu humor reveste-se de ironia, frequentemente mordaz.
Caracterizam-se ainda nos seus contos, na direção da ficção moderna,
a construção gradativa dos personagens por meio do fluxo de consciência;
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a valorização de estados mentais mais do que a ação e a trama; o frequente
exercício da metalinguagem; a fratura da visão tragicizante por meio do humor; o exercício da intertextualidade, destacado o texto filosófico; a prática
da narração como um processo de autorrevisão; o estímulo à participação do
leitor na composição da obra.
Atualidade da ficção machadiana
Polissemia e universalidade possibilitam que um texto permaneça e seja
atual.
A maioria dos contos e dos romances de Machado de Assis permanece e
é atual na medida em que, em textos multissignificativos, evidencia, a partir
de seu testemunho sobre o ser humano e a realidade do seu tempo, questões
relacionadas com a condição humana, numa temática que envolve, entre outros
destaques, além dos que foram assinalados, o amor, o ciúme, a morte, a afirmação pessoal, o jogo da verdade e da mentira, a cobiça, relação entre o ser e o
parecer, as oscilações entre o bem e o mal, a luta entre o relativo e o absoluto.
Sua percuciente visão de mundo aprofunda o nosso mergulho na direção de
nós mesmos e do outro, no percurso em que conduzimos miticamente as pedras
sisíficas ao alto da montanha existencial. Deus queira que nos imaginemos
felizes e carregados de esperança.
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Língua portuguesa, identidade nacional e lusofonia
José Luiz Fiorin
USP
A identidade nacional, em todo o mundo, é uma criação moderna. Tem
início no século XVIII e desenvolve-se plenamente no século XIX. Antes dessa época não se pode falar em nações propriamente ditas nem na Europa nem
em outras partes do mundo. Conta-se, como aprendemos em nossos livros de
História do Brasil, que D. João VI, ao deixar o Brasil, despediu-se de seu filho,
dizendo: “Pedro, se o Brasil vier a separar-se de Portugal, põe a Coroa sobre
tua cabeça, que hás de me respeitar, antes que algum aventureiro lance mão
dela”. Observe-se que D. João, como, aliás, qualquer outro rei europeu, não
tinha nenhum sentimento nacional, tinha um sentimento dinástico.
Renan mostra que uma nação é feita de “um rico legado de lembranças”,
que é aceito por todos (1947, p. 903); “como um indivíduo, ela é o ponto de
chegada de um longo passado de esforços, de sacrifícios e de devotamentos”
(1947, p. 904). Sublinha ele que “o culto dos ancestrais é inteiramente legítimo,
pois eles nos fizeram o que somos” (1947, p. 904). A nação é uma herança,
simbólica e material (Thiesse, 1999, p. 12). Assim, “pertencer a uma nação é
ser um dos herdeiros desse patrimônio comum, reconhecê-lo, reverenciá-lo”
(Thiesse, 1999, p. 12). A nacionalidade é, portanto, uma identidade. O processo de formação identitária consistiu, então, na “determinação do patrimônio
de cada nação e na difusão de seu culto” (Thiesse, 1999, p. 12). O primeiro
trabalho era estabelecer um patrimônio comum às diversas regiões de um país:
quais seriam, por exemplo, os ancestrais comuns de fluminenses, pernambucanos, baianos, paulistas e gaúchos? Para criar, de fato, um mundo de nações
não bastava fazer o inventário de sua herança; nem sempre ela existia, era
preciso, pois, antes de tudo, inventá-la (Thiesse, 1999, p. 13). Era necessário
buscar algo que pudesse ser “um vivo testemunho de um passado prestigioso
e a representação eminente da coesão nacional” (Thiesse, 1999, p. 13). Essa é
uma tarefa ampla, longa e coletiva.
A nação nasce, pois, de “um postulado e de uma invenção” (Thiesse, 1999,
p. 14). Ela condensa-se numa alma nacional, que deve ser elaborada. Uma nação
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deve apresentar um conjunto de elementos simbólicos e materiais: uma história,
que estabelece uma continuidade com os ancestrais mais antigos; uma série de
heróis, modelos das virtudes nacionais; uma língua; monumentos culturais; um
folclore; lugares importantes e uma paisagem típica; representações oficiais,
como hino, bandeira, escudo; identificações pitorescas, como costumes, especialidades culinárias, animais e árvores-símbolo (Thiesse, 1999, p. 14).
Como se disse, a identidade nacional surge “de um postulado e de uma
invenção. Mas só vive pela adesão coletiva a essa ficção” (Thiesse, 1999, p.
14). Com efeito, a construção da identidade nacional é a constituição de uma
narrativa e é preciso aderir a ela. As tentativas abortadas de construção de nações são inúmeras. Um fracasso que todos presenciamos foi o da Iugoslávia.
Saramago, em conferência na Universidade de São Paulo, afirma que a União
Europeia é a construção de uma nova Iugoslávia. De fato, sem a criação de
uma identidade comunitária, o que restam são as identidades nacionais, que
produzem mais ódios e ressentimentos do que um sentimento de unidade. O
sentimento nacional é difundido nas festas pátrias, em que se celebra o patrimônio comum.
No caso brasileiro, a constituição da nação se dá no quadro de uma monarquia e o monarca é um português, herdeiro do trono de Portugal. O trabalho de
construção da nacionalidade começa com a nacionalização do monarca. Pedro
I é mostrado como alguém que renuncia a Portugal e assume a nacionalidade
brasileira. Nossos livros de História repetem incessantemente o episódio do
Dia do Fico, em que o Príncipe afronta as Cortes Portuguesa, para “fazer o
bem de todos e a felicidade geral da Nação”. Na célebre representação da
independência, produzida por Pedro Américo, D. Pedro, do alto de cavalo, no
ponto mais elevado da colina do Ipiranga, está com a espada desembainhada,
apontada para o céu, gritando “Independência ou Morte”1. A descrição desse
fato nos manuais de História diz que D. Pedro, antes do grito inaugural de
nossa nacionalidade, arrancou fora os laços portugueses. Confronte-se essa
representação episódio da Independência, cujos contornos épicos são marcados
pela majestosa iconografia do Parque do Ipiranga, em São Paulo, com aquela
apresentada em carta pelo Padre Belchior Pinheiro de Oliveira, confessor de
D. Pedro (apud Schlichta, 206, p. 195).
A construção das nações foi o investimento simbólico mais bem sucedido
nos últimos duzentos anos. Mesmo os que se diziam internacionalistas jogaram
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Pedro Américo louva-se, principalmente, no relato de Francisco de Castro Canto e Melo a respeito do que aconteceu na colina do Ipiranga (apud Moraes, A. J. de M., 1982, p. 428-432).
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Língua portuguesa, identidade nacional e lusofonia
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com a simbologia nacional, como ocorreu, durante o período comunista, nos
países da Europa Central e Oriental. Na Romênia de Ceauşescu, instaura-se
um culto aos antigos ancestrais dácios e celebra-se o sufletul românilor, que
tinha raízes no campesinato. Citem-se como exemplos: os estudos linguísticos acentuavam, nesse momento, menos as origens latinas que os elementos
pré-latinos conservados na língua; o muzeul satului, grande museu ao ar livre,
mostra o culto das raízes camponeses da Romênia.
O princípio que rege a nação é o de que ela é uma “comunidade atemporal
cuja legitimidade reside na preservação de uma herança” (Thiesse, 1999, p.
16). A identidade nacional é composta de traços comuns a comunidades que
têm outras identidades (no caso brasileiro, a identidade estadual é algo forte:
veja-se, por exemplo, que, em qualquer festa no Rio Grande do Sul, canta-se
o hino do estado, ressalta-se a identidade gaúcha por meio de trajes, danças,
pratos típicos, etc.). A identidade nacional é considerada superior às outras determinações identitárias. Entretanto, a relação entre elas é bastante complexa.
Por isso, é absolutamente irresponsável o político que faz sua carreira jogando
um estado contra o outro. O que aconteceu no Quênia, em que as determinações identitárias étnicas se tornaram superiores à identidade queniana, pode
acontecer em qualquer país do mundo.
Numa política de nacionalismo integral, busca-se excluir as outras identidades. Só a identidade nacional é admitida. Depois do golpe de 1964, um tenente
que dava aula de Educação Moral e Cívica no Ginásio do Estado da Primeira
Aliança considerava a declamação dos poemas de Guilherme de Almeida sobre
a identidade paulista um ato subversivo.
Os elementos da composição identitária não são fixos: por exemplo, os
heróis mudam ao longo do tempo. Alguns entram no panteão nacional, enquanto
outros são esquecidos. No Brasil, indiscutivelmente, Tiradentes foi um herói
criado no período republicano e não nos primórdios da construção da identidade
nacional. Afinal ele lutara contra Portugal e fora condenado à morte pela avó
de nosso primeiro imperador.
Um dos problemas das entidades supranacionais (no caso da lusofonia,
a entidade transnacional é a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) é
que elas são um espaço jurídico, político, econômico, financeiro, monetário,
mas não um espaço identitário. Falta-lhes “um patrimônio simbólico”, que
proponha a seus componentes “um interesse coletivo, uma fraternidade, uma
proteção” (Thiesse, 1999, p. 18). No caso da CPLP, a situação é complicada,
pois o pertencimento de Portugal à União Europeia, entidade supranacional que
conseguiu o mais alto grau de integração econômica, limita as possibilidades
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José Luiz Fiorin
de transformação do espaço da lusofonia num espaço econômico e jurídico.
Voltaremos a essa questão das identidades comunitárias.
Uma certidão de nascimento serve, acima de tudo, para estabelecer uma
filiação. A vida das nações começa pela designação dos ancestrais. Aí a arqueo­
logia ganha um papel importante, pois a ela cabe desvelar vestígios do legado
original. Na Romênia, os ancestrais são os romanos e os dácios. Afirma-se que
os romenos descendem de Trajano e Dacebal.
O Brasil representou uma das primeiras experiências bem sucedidas de criar
uma nação fora da Europa. A nação é vista como uma comunidade de destino,
acima das classes, acima das regiões, acima das raças. Para isso, é preciso adquirir
uma consciência de unidade, a identidade, e, ao mesmo tempo, é necessário ter
consciência da diferença em relação aos outros, a alteridade. O grande outro
(sem trocadilhos lacanianos) da criação da nacionalidade brasileira é Portugal.
Para isso, a literatura teve um papel fundamental. Os autores românticos, com
especial destaque para Alencar, estiveram na linha de frente da construção da
identidade nacional. Entre todos os livros de Alencar, o mais importante para determinar esse patrimônio identitário é, sem dúvida, O guarani. Nele se determina
a paisagem típica do Brasil (o espaço da eterna primavera, onde não ocorrem
cataclismos naturais, como furacões, tornados, terremotos, etc.), a singularidade
de sua língua, mas principalmente o casal ancestral dos brasileiros.
O castelo nos trópicos edificado por D. Antônio de Mariz é o símbolo da
colonização portuguesa2. Está ele assediado por dois inimigos: um externo e
natural, os aimorés, e outro interno e cultural, o bando de aventureiros cúpidos
rebelados por Loredano. O edifício colonial está sendo atacado por elementos
naturais perversos e pelos baixos sentimentos de muitos colonizadores. D.
Antônio de Mariz manda seu filho D. Diogo ao Rio de Janeiro em busca de
socorro (1995, p. 161-162). A ajuda externa, porém, não chega a tempo. D.
Antônio espera o ataque final dos Aimorés e faz explodir o paiol de pólvora da
casa, matando a todos, os aimorés, os aventureiros, mas também a família (p.
272). É o edifício colonial que foi destruído e com ele seus inimigos externos
e internos. Todos estão mortos, resta apenas o casal inicial. Pode-se, então,
construir o mito de origem da nacionalidade.
Quando os aimorés puseram fogo na casa, Peri concebe um plano para
salvar sua senhora, a fuga de D. Antônio de Mariz com Cecília. O fidalgo
Nossa análise de O guarani é tributária da fortuna crítica desse romance, principalmente dos
estudos feitos por Affonso Romano de Sant’Anna (1974, p. 54-83) e Alfredo Bosi (1992, p.
176-193).
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português, contudo, rejeita a possibilidade de abandonar os seus. No entanto,
diz que, se Peri fosse cristão, confiar-lhe-ia a filha. O índio aceita ser batizado
e recebe o nome cristão de Antônio, o mesmo do velho fidalgo (p. 268-270).
Peri deve levar Cecília até o Rio de Janeiro, à casa de uma irmã de D. Antônio
de Mariz. Foge, então, com sua senhora pelo rio Paquequer.
Ao longo de todo o romance, Peri, apesar de toda sua nobreza, é apresentado com um selvagem (p. 97). Ao aceitar o batismo, transforma-se no herói
mediador mítico. Reúne natureza e cultura, a identidade tupi e a identidade
portuguesa. No mito, nomear é criar. Quando Peri, conservando o seu nome,
recebe o de D. Antônio, adquire uma identidade luso-tupi. Ao mesmo tempo, o
narrador vai mostrando a transformação de Cecília em mulher (p. 278). É então
que Cecília percebe o homem Peri. Antes o considerava apenas um escravo, um
amigo. Agora se apercebe de sua beleza (p. 279-280). Peri não está mais dentro
da civilização, mas no seu elemento, a natureza. Assim como D. Antônio é o
senhor cultural no romance, o índio é o senhor natural. No seu elemento, ganha
uma nova dimensão (p. 280). Cecília decide não ir para a casa da tia no Rio de
Janeiro, mas passar a viver com o índio (p. 288). Num movimento inverso ao
de Peri, que, ao tornar-se cristão, une natureza e cultura, Cecília assume sua
condição de elemento da natureza, englobando, assim, cultura e natureza.
Mas qual o laço que a prendia ao mundo civilizado? Não era ela quase uma filha
desses campos, criada com o seu ar puro e livre, com as suas águas cristalinas?
A cidade lhe aparecia apenas como uma recordação da primeira infância, como
um sonho do berço; deixara o Rio de Janeiro aos cinco anos, e nunca mais ali
voltara.
O campo, esse tinha para ela outras recordações ainda vivas e palpitantes; a flor
da mocidade tinha sido bafejada por essas auras; o botão desatara aos raios desse
sol esplêndido.
Toda a sua vida, todos os seus belos dias, todos os seus prazeres infantis viviam
ali, falavam naqueles ecos da solidão, naqueles murmúrios confusos, naquele
silêncio mesmo.
Ela pertencia, pois, mais ao deserto do que à cidade; era mais uma virgem brasileira do que uma menina cortesã; seus hábitos e seus gostos prendiam-se mais às
pompas singelas da natureza, do que às festas e às galas da arte e da civilização
(p. 288).
Nuvens negras acumulam-se nas cabeceiras do Paraíba. Pelo barulho das
águas, Peri percebe que as águas da chuva vão provocar uma grande inundação. Vai para a margem do rio com Cecília e vê uma grande massa de água
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precipitar-se pelo Paraíba. Não tem tempo de embrenhar-se na mata. Sobe então
no alto de uma palmeira e fica lá com Cecília. A tempestade continua ao longo
da cordilheira, a água cresce sempre (p. 293)
Peri diz que vai salvar Cecília e conta-lhe o mito de Tamandaré, que é o
Noé indígena. O mito narra que, tendo havido um dilúvio, que cobriu toda a
Terra de água e matou todos os homens, Tamandaré e sua mulher escaparam
em cima da copa de uma palmeira, pois a água cavara a terra, arrancara a palmeira e esta subira com as águas acima do vale, das árvores, das montanhas.
O casal povoou a Terra (p. 295). Peri abraça-se à palmeira em que está com
Cecília, sacode-a, abala suas raízes, que se desprendem da terra já minada
profundamente pela torrente. A luta do homem com a árvore é sobre-humana.
“Luta terrível, espantosa, louca, esvairada: luta da vida contra a matéria; luta
do homem contra a terra; luta da força contra a imobilidade” (p. 295). No fim,
a cúpula da palmeira resvala pela flor da água, levando o casal que escapara
do dilúvio. Os dois beijam-se. E o livro termina da seguinte maneira: “A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia... E sumiu-se no horizonte”. O
horizonte onde some a palmeira é o futuro do povo que se constituiria a partir
de um casal inicial formado de um índio que aceitara os valores cristãos e de
uma portuguesa que acolhera os valores da natureza do Novo Mundo. Essa
nação teria um caráter cultural luso-tupi.
O mito é sempre uma coincidentia oppositorum (Eliade, 1991, p. 127). No
nosso caso, o mito de origem da nação brasileira opera com a união da natureza
com a cultura, ou seja, dos valores americanos com os europeus. O Brasil seria
assim a síntese do velho e do novo mundo, construída depois da destruição do
edifício colonial e dos elementos perversos da natureza. Os elementos lusitanos
permanecem, mas modificados pelos valores da natureza americana.
A nação brasileira aparece, depois do dilúvio, em cuja descrição se juntam
os mitos das duas civilizações constitutivas da nação brasileira, o de Noé e o
de Tamandaré.
Como diz Alfredo Bosi, os mitos ajudam muito mais a compreender a
época em que foram forjados do que o universo remoto que pretendem explicar
(1992, p. 176). O selo de nobreza da nação brasileira é dada pela fusão sangue
português com o sangue tupi. Essa interpenetração une a nobreza de uma e de
outra cultura. Dela está excluído o elemento africano, que foi importantíssimo,
juntamente com o indígena e o europeu, para a formação da nacionalidade. No
período em que o romance foi produzido, os negros eram escravos no Brasil. Não
poderiam, portanto, os africanos estar no relato que se pretendia fosse sobre as
origens míticas da nacionalidade. No entanto, também essa conciliação luso-tupi
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não conta a realidade da ocupação portuguesa, com os massacres da população
indígena. Por outro lado, o indígena que está na base na nação brasileira é o que
aceita os valores cristãos, aquele que, em sua entrega ao branco, assume uma nova
identidade. Os outros são vistos como selvagens que devem ser exterminados.
O belo e heróico Peri junta-se a uma galeria de outras personagens criadas
por Alencar “como respostas ao desejo ideal de heroísmo e pureza a que se apegava, a fim de poder acreditar em si mesma, uma sociedade mal ajustada, presa a
lutas recentes de crescimento político. No meio de tanta revolução sangrenta (...),
em meio à penosa realidade da escravidão e da vida diária - surgia a visão dos
seus imaculados Parsifais, puros, inteiriços, imobilizados pelo sonho em meio à
mobilidade da vida e das coisas” (Candido, 1964, p. 220). Já um romance, como
Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, que retrata a
vida corrente, “obriga o personagem a dobrar, amoldar-se, recuar, a sofrer o medo,
os maus desejos; a praticar atos dúbios ou degradantes; obriga-o a tudo a que estamos obrigados” (Candido, 1964, p. 220). O tempo pós-independência, com todas
as lutas que se seguiram para consolidá-la, não era, porém, o tempo do homem
comum, mas o tempo de constituir identidades, de buscar heróis fundadores, de
procurar a profundidade do tempo lendário, de mitificar a origem do povo.
O que nos interessa, no entanto, é o papel da língua na construção da
identidade nacional. Durante o processo de formação das nações europeias,
teoriza-se não mais o problema da universalidade da linguagem, como elemento de constituição do ser humano, dotado de dignidade e direito, mas a
singularidade de cada língua nacional. Herder afirma que, no gênio da língua,
reside a alma das nações. As separações geográficas dos povos implicam que
comunidades distintas sofrem influência de condições materiais — por exemplo,
clima e modos de vida — diversas, o que acarreta diversificações linguísticas
e, por conseguinte, o aparecimento de línguas diferentes, que são as línguas
nacionais. Cada língua, segundo Herder, é a expressão viva, orgânica, do espírito do povo. Ela é o meio de conhecer a cultura e os valores de uma nação,
pois os cristaliza. Para constituir uma nação, segundo Herder, é necessário que
haja uma língua comum3 (1987, 1996).
Os Estados-nação tem uma língua nacional bem identificada, normatizada
por dicionários e gramáticas, cujo ensino é uma das bases da educação nacional
(Thiesse, 1999, p. 67).
Para Herder, não há línguas comuns a diferentes Estados nacionais, porque, em cada um, ele
assume feições distintas. Por outro lado, quando um Estado tem diversas línguas nacionais (por
exemplo, Bélgica, Suíça, Finlândia), o que ocorre é que ele é uma confederação de nações.
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Até o aparecimento dos Estados nacionais, a situação linguística era
muito complexa. A nobreza em geral falava francês; a massa da população,
rural e analfabeta, falava dialetos, que não eram objeto de gramatização. As
línguas com expressão escrita tinham papéis muito diversos (língua da
corte, língua de criação literária ou filosófica, língua litúrgica, língua administrativa, língua do ensino fundamental, médio ou universitário). Num dado
Estado, não havia necessariamente coincidência de línguas que tinham
funções diferentes. A questão da língua nacional enuncia-se a partir do
século XVIII, em que a construção da nação exigia que se tivesse consciên­
cia do fato de que os membros de uma comunidade nacional tinham em
comum o fato de pertencer a um dado campo linguístico. Até então, o que
se falava num território não tinha sido objeto de uma política. A difusão de
material impresso (principalmente jornais) tem uma função importante na
tomada de consciência de uma unidade linguística nacional. Muitas das
línguas nacionais europeias não existiam como tal antes do século XIX. Em
Portugal, tem papel relevante na criação de uma identidade linguística o
Marquês de Pombal. Ele tinha a nítida consciência da função da língua no
forjamento de uma identidade comum. Cite-se, como exemplo, o Diretório
dos Índios, de 3 de maio de 1757, confirmado por D. José I em 17 de agosto de 1758. Nele, exige-se que a língua geral deixe de ser usada e que o
português assuma seu lugar em todos os atos públicos da colônia (apud
Almeida, 1997, p. 3-4). Embora não se funde em valores republicanos como
no caso da França, mas no lema cujus regis, ejus língua, Pombal tem uma
visão moderna das funções simbólicas do idioma.
A língua nacional tem uma função prática, expressa por seu uso na administração, no ensino, etc., e uma função simbólica, a de encarnar a nação
(Thiesse, 1999, p. 70). A criação de uma língua nacional obedece a estratégias
muito distintas: escolha de um dialeto, seja por sua posição linguística média,
seja pela situação dominante em termos econômicos e sociais; estabelecimento de uma koiné (como ocorreu com o servo-croata); forjamento de uma
língua moderna, com inovação semântica e normatização gramatical (como
em hebraico ou italiano, por exemplo). Ao longo da História, pode-se alterar o
dialeto escolhido como língua nacional, como ocorreu em albanês. A República
Popular reconstrói a norma, substituindo aquela construída com os dialetos do
norte e escrita em caracteres latinos por uma constituída de falares do centro
e do sul.
De passagem, seria preciso manifestar um reparo às posições daqueles
que investem furiosamente contra a chamada norma culta. Seu raciocínio, na
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maioria dos casos, é a-histórico, quando não anti-histórico, pois desconhece o
papel da normatização na construção da nacionalidade.
Para o Brasil afirmar-se como nação era preciso mostrar sua identidade
linguística e, por conseguinte, a distinção entre o português falado em Portugal e o português brasileiro. Falávamos (como falamos ainda) português.
Contudo, era necessário demarcar a diferença da língua falada no Brasil.
Falava-se português sim, mas um português diferente (Alencar, 1965, v. III,
p. 260).
O guarani mostra, além da fundação da nacionalidade, a identidade da
língua falada no Brasil, que é correlata à do homem brasileiro, cuja origem o
romance descreveu. Não se trata do português tal como é falado em Portugal,
mas de um português modificado pela natureza brasileira (1995, p. 116-117). A
língua falada no novo país é um reflexo, na pronúncia, na sintaxe e no léxico,
das suavidades e asperezas da natureza da América. É uma fusão também da
cultura com a natureza4. Alencar não preconiza que se fale tupi, como Policarpo
Quaresma, mas esse português modificado no Brasil. Com essa concepção do
povo e da língua do Brasil, Alencar não poderia nunca admitir que a literatura
brasileira reproduzisse os cânones linguísticos portugueses. Deveria ela incorporar a variedade linguística que se falava no país agora independente. A
independência linguística dos padrões portugueses era tão importante quanto
a independência política. Essa proposta está na base na longa tradição de discussões sobre o estatuto da língua nacional, que perpassa todo o século XIX e
chega até o modernismo.
Em oposição a essa tentativa de demarcar as diferenças linguísticas do
português do Brasil em relação ao de Portugal, os portugueses e os brasileiros
lusitanizantes exerceram forte pressão, por meio principalmente de críticas às
obras literárias brasileiras, para que a língua usada no Brasil mantivesse uma
estrita fidelidade aos padrões lusitanos. Sirvam de exemplo as virulentas críticas
à obra de José de Alencar.
Pinheiro Chagas, escritor e crítico português, em Novos ensaios críticos,
depois de elogiar o valor literário de Iracema e a força de seu estilo, aponta um
Alencar diz que, além do vocabulário, também o “mecanismo” da língua se modifica. Pergunta
o romancista: “E como podia ser de outra forma, quando o americano se acha no seio de uma
natureza rica e opulenta, sujeito a impressões novas ainda não traduzidas em outra língua,
em face das magnificências para as quais não há ainda verbo humano?”. Depois de afirmar
que o Brasil vai aperfeiçoar a língua, diz que “todos os povos de gênio musical possuem
uma língua sonora e abundante. O Brasil está nestas condições: a influência nacional já se
fez sentir na pronúncia muito mais suave de nosso dialeto” (1965, p. 260-261).
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defeito fundamental nesse livro, a incorreção da linguagem e a preocupação de
diferençar o “brasileiro” do “português”:
...o defeito que eu vejo nessa lenda, o defeito que eu vejo em todos os livros
brasileiros, e contra o qual não cessarei de bradar intrepidamente, é a falta de
correção a linguagem portuguesa, ou antes a mania de tornar o brasileiro uma
língua diferente do velho português, por meio de neologismos arrojados e injustificáveis, e de insubordinações gramaticais, que (tenham cautela!) chegarão a
ser risíveis se quiserem tomar as proporções de uma insurreição em regra contra
a tirania de Lobato (apud Melo, 1972, p. 11-12)
Henriques Leal, brasileiro extremamente cioso da pureza da linguagem,
censura o descaso de Alencar pela “boa linguagem” e coloca-se frontalmente
contra a tese da diferenciação linguística entre Brasil e Portugal (Melo, 1972,
p. 12-15). Em Questões do dia, José Feliciano de Castilho, escritor português, e
Franklin Távora, escritor brasileiro, criticaram duramente os “erros” cometidos
por Alencar em suas obras (Melo, 1972, p. 15-23). Alencar polemizou com seus
críticos, principalmente no Pós-escrito à 2.ª edição de Iracema (1965, v. III,
p. 255-266); no Pós-escrito à 2.ª edição de Diva (1965, v. I, p. 399-406) e no
Prefácio de Sonhos d’Ouro (1965, v. I, p. 491-498).
O Romantismo é o movimento literário da construção das nacionalidades.
Em oposição ao Classicismo, valoriza as diferenças entre as nações, as peculiaridades das línguas nacionais, reflexos do gênio do povo, e as tradições de cada país.
Exalta o que é único, singular. O Romantismo brasileiro, aparecido no momento
posterior à independência, não poderia ser diferente. No seu esforço de criar uma
identidade nacional, espalha a confiança no futuro da jovem nação, canta sua natureza, nutre um forte entusiasmo pelo seu povo. Dois são os elementos básicos do
nacionalismo brasileiro: de um lado, a exaltação da grandeza da natureza tropical,
com sua variedade de flores e animais, com sua primavera eterna, com seus rios
imensos, com sua luminosidade crua, em oposição à natureza dos países não
tropicais, onde há o frio, a neve, a névoa, a escuridão5; de outro, a identificação
Observe-se este trecho de um poema de Gonçalves Dias:
(...) Ao ver nublado
Um céu de inverno e as árvores sem folhas,
De neve as altas serras branqueadas,
E entre esta natureza fria e morta
A espaços derramados pelo vale
Triste oliveira, ou fúnebre cipreste,
O coração se me apertou no peito (...)
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do homem com essa natureza exuberante, que lhe dava um espírito de liberdade
e de coragem e, ao mesmo tempo, restituía-lhe a inocência primitiva do jardim
do Éden. Todo nacionalismo precisa de origens, de mitos, de começos heróicos.
O índio do passado não constituía nenhum perigo à ordem vigente, fundada na
escravidão dos negros. Por outro lado, a ideia de que ele não se adaptava à escravidão servia para constituir o mito de um homem com espírito de liberdade e
coragem, qualidades necessárias para ser um dos heróis fundadores.
Sem dúvida nenhuma, a constituição da nação brasileira foi um sucesso.
Todos, filhos e neto de imigrantes, sentimo-nos brasileiros. No entanto, dizia
Renan que “as nações não são algo eterno. Elas começaram e acabarão. A
confederação europeia, provavelmente, as substituirá” (1947, p. 902).
As nações surgem há mais ou menos dois séculos no bojo de uma mutação
econômica importante, a consolidação do capitalismo com a revolução industrial. Elas parece estarem sendo ultrapassadas por outra mudança econômica
significativa, a internacionalização do capital. Com efeito, para os agentes
econômicos as fronteiras nacionais não fazem sentido: o capital desloca-se
sem nenhum constrangimento. E diante dessa movimentação do capital, os
estados nacionais vêem-se impotentes. Num movimento, só aparentemente
contraditório, explode na rede mundial de computadores uma produção cultural
fundada nas identidades nacionais, quando não regionais. Poder-se-ia pensar que
o multiculturalismo levará à criação de um novo patrimônio identitário a partir
da interpenetração de componentes das identidades nacionais. Entretanto, isso
não parece ser verdadeiro na medida em que a extrema direita, ressurgente em
todo o mundo, investe no culto ao legado ancestral, reanima-o, toma-o como
base de sua ação política. E assim o nacionalismo, um dos flagelos do século
XX, começa a novamente despertar, tornando-se o contraponto da globalização,
que liquida as nações.
A atual etapa do capitalismo exige a criação de entidades transnacionais. A União Europeia talvez seja a mais bem sucedida delas. Ela promulga
regulamentos comunitários sobre um sem número de temas, propicia a livre
circulação de bens e de pessoas, tem uma moeda comum, tem um parlamento
e um executivo. No entanto, falta-lhe aquilo que é próprio a uma nação: “uma
identidade coletiva, o apego a um território comum, o ideal partilhado de uma
fraternidade solidária” (Thiesse, 1999, p. 288). Os europeus têm identidades
Pátria da luz, das flores! - nunca eu veja
O sol, que adoro tanto, ir afundar-se
Nestes da Europa revoltosos mares (...) (1959, p. 470-471)
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nacionais (ou mesmo regionais), mas não uma identidade europeia. Se tivessem,
não teria ocorrido a recusa da Constituição Europeia em plebiscitos na França e
na Holanda. É pela ausência de uma identidade europeia que os bilhetes do euro
são ornados com pontes e janelas fictícias, inspiradas nos estilos arquitetônicos
da Europa Ocidental, ou seja, em motivos pré-nacionais. No entanto, há cerca
de dois séculos não existia uma identidade comum a um calabrês e um toscano
ou a um bávaro e a um hamburguês.
No que nos concerne, pertencemos todos à CPLP, ao espaço da chamada
lusofonia. Essa entidade transnacional tem escassas chances de se transformar
num espaço econômico, de livre circulação de bens. Isso se deve ao fato de
que o Brasil pertence ao MERCOSUL e Portugal, à União Europeia. Por outro
lado, pelos compromissos de Portugal com a União Europeia, nossa comunidade nunca será um espaço de livre circulação de pessoas. Só pode ser uma
comunidade política, cultural e linguística. Para isso, é preciso construir uma
identidade comunitária. A constituição das identidades nacionais mostra que
uma identidade comum se forja num trabalho coletivo, que atualmente deve
apoiar-se nas novas tecnologias de informação. Essa identidade estará apoiada
na diversidade, que agrega, e no fundo comum da cultura e da língua. Essa
identidade não é a assimilação de umas identidades a outras, não é a exclusão de
identidades, não é a segregação de patrimônios identitários. A ideia de nação foi
elaborada em conjunto com duas ideias novas, liberdade e democracia (Thiesse,
1999, p. 288). A identidade comum só fará sentido se estiver associada a um
projeto político que proponha aos comunitários ser atores de seu destino.
Passamos mal pelo primeiro teste de construção de uma identidade lusófona: a ratificação e a implementação do acordo de unificação ortográfica.
Talvez haja razões relacionadas à afirmação do português no mundo para essa
unificação. Entretanto, isso é o que menos importa. O que é significativo é que
o acordo é um instrumento político de construção de uma identidade comum.
O que houve? Completa indiferença no Brasil, onde o acordo foi tratado com
desdém (“há coisas mais importantes do que isso”; “é uma reforma meia-sola,
pois não unifica de fato”), quando não com chacotas, e um clima de beligerância
em Portugal.
Os linguistas têm graves responsabilidades no clima de confusão que se
formou. Não fomos capazes sequer de explicar que não se tratava de unificação
linguística, mas de unificação ortográfica. Até mesmo Luiz Fernando Verissimo
incorreu nessa confusão (O Estado de S. Paulo, 18/10/2007, D16). Uma das mais
lamentáveis intervenções dos que se dizem especialistas na linguagem foi a de
Amélia Mingas, Diretoria do Instituto Internacional de Língua Portuguesa, em
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entrevista ao Expresso das Ilhas (10/10/2007), jornal cabo-verdiano, intitulada
“Acordo ortográfico foi feito para viabilizar a variante do Português do Brasil”.
Para ela, a variedade falada no Brasil seria imposta a todos os países de língua
portuguesa. Criticou-se o fato de que se trata de uma reforma tímida, como
se hoje fosse possível uma radical reforma ortográfica. Se ela fosse possível,
de há muito os países de língua inglesa teriam feito uma. Mas, a meu ver, a
confusão maior foi dizer, como faz Pasquale Cipro Neto (VEJA, 12/9/2007,
p. 90), que, por aceitar dupla grafia de uma série de palavras, ela não unifica
nada. Entretanto, essa característica da reforma, o acolhimento da diversidade,
é exatamente seu ponto forte como instrumento de construção identitária.
Em Portugal, os argumentos para colocar-se contra o acordo foram de
“manutenção da pureza da língua original” (argumento que não resiste à mais
superficial análise dos fatos); “rechaço à brasilianização da ortografia”, ao
“colonialismo dos ex-colonizados”, que pretendiam impor uma “humilhação
estatística a Portugal: 1,4% de alterações para Portugal contra uns míseros 0,5%
do Brasil” (O Estado de S. Paulo, 2/12/2007, J7). Apesar de figuras do mais alto
significado nos estudos da linguagem em Portugal, como Malaca Casteleiro,
Carlos Reis e Maria Helena da Rocha Pereira, terem-se colocado a favor do
acordo, o jornal Público, de 8/4/2008, trazia na página 3 o seguinte título: “Livreiros e linguistas contra. Brasileiros, timorenses, ex-exilados e galegos, pró”.
Vasco da Graça Moura esgrimiu os seguintes argumentos diante da Assembleia
Nacional: 1) “o acordo serve interesses geopolíticos e empresariais brasileiros,
em detrimento dos interesses inalienáveis dos demais falantes de português no
mundo, em especial do nosso país”; 2) “é uma lesão de um capital simbólico
acumulado e de projecção planetária”; 3) “vai homogeneizar integralmente a
grafia portuguesa com a brasileira (...) desfigurando a escrita, a pronúncia e a
língua, que são nossas”. Não nego a complexidade da questão e os múltiplos interesses envolvidos no tema. Entretanto, a discussão do acordo revela-nos nossa
incapacidade de construir uma identidade lusófona. Os argumentos aparecidos
em Portugal de preservação da pureza da língua, de não aceitação da diversidade, são comuns aos argumentos da extrema direita na defesa da identidade
nacional. Revelam, ao mesmo tempo, um temor e um desdém pelo Brasil. No
Brasil, a discussão deixa patente uma completa indiferença por Portugal.
Não temos, como estudiosos da linguagem, o direito de fomentar ódios,
ressentimentos, fantasias nacionalistas. Não temos o direito de não perceber o
que está em jogo numa questão como a do acordo de unificação ortográfica.
Para que a lusofonia seja um espaço simbólico significativo para seus habitantes, para que seus membros tenham uma identidade lusófona, é preciso, no que
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diz respeito à língua, que seja um espaço em que todas as variedades linguísticas
sejam, respeitosamente, tratadas em pé de igualdade. É necessário que não haja
a autoridade “paterna” dos padrões lusitanos. Evidentemente, a lusofonia tem
origem em Portugal e isso é preciso reconhecer. No entanto, o que se espera na
construção do espaço enunciativo lusófono é a comunidade dos iguais, que têm
a mesma origem. Esse é o significado da afirmação de Caetano Veloso.
A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria (Velô, 1984)
Não se pode esquecer que pátria e pai são formados da mesma raiz. A
eles estava ligada a potestas (Benveniste, 1969, p. 217-218). A lusofonia não
será pátria, porque não será um espaço de poder ou de autoridade. Será mátria,
porque deve ser um espaço do sentimento, e será fátria, porque deve ser o espaço
dos iguais, que têm a mesma origem. Se assim não for, ela não terá nenhum
significado simbólico real, será um espaço do discurso vazio de um jargão
político sem sentido. Nesse caso, parafraseando Mário de Andrade, o melhor
será esquecer Portugal e ignorar essa tal de lusofonia (1958, p. 222).
Referências bibliográficas
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Mattoso Câmara e a língua literária
Carlos Eduardo Falcão Uchôa
LLP
Representa um consenso no mundo acadêmico brasileiro ser a obra de Mattoso Câmara sobre a língua portuguesa, na perspectiva sincrônica, um marco, um
patamar, na história do estudo e do ensino da nossa língua, pela nítida mudança
de paradigma por ele adotada, um referencial teórico novo, então, entre nós, o
estruturalismo, que contrastava de todo com o discurso metalinguístico então
dominante no Brasil, identificado como discurso filológico, centrado sobretudo
na história da língua e na documentação da língua literária clássica. Já disse, em
várias outras oportunidades, que a obra sincrônica de Mattoso Câmara sobre o
português foi o campo de sua profícua produção acadêmica em que o pioneirismo e a influência dele mais se fizeram sentir em nosso meio. Na verdade,
o seu maior legado em relação ao desenvolvimento da Linguística no Brasil,
a base fundamental para a progressão de uma linguística brasileira, crucial na
formação dos primeiros profissionais de Linguística em nosso país.
Mattoso Câmara não se afastou, no entanto, dos principais centros de interesse e de pesquisa da tradição filológica sobre a língua portuguesa, presentes
nas obras de seus mais prestigiados coevos. Um desses centros de interesse e
de pesquisa, já se disse, era o da língua literária clássica, reconhecida como a
língua padrão.
Se é verdade que, como linguista, Mattoso Câmara se interessa muito
pela realidade oral viva, corrente, da língua, como no seu pioneiro ensaio
sociolinguístico “Erros de escolares como sintomas de tendências linguísticas
no português do Rio de Janeiro”, de 1957, também é certo que a tradição literária nunca deixou de ser objeto de seus estudos. Vários deles contêm diversas
citações dos clássicos, mesmo as suas obras didáticas, como Gramática (1944
e 1945), em dois volumes, que integram o Curso de língua pátria, escrito em
colaboração com Rocha Lima, autor dos dois volumes da Antologia. Mas, no
que concerne à língua clássica, mostra-se sobretudo um leitor constante e sagaz
de Machado de Assis, cuja obra lhe mereceu onze sugestivos ensaios, reunidos,
em 1962, no volume Ensaios machadianos: língua e estilo.
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Carlos Eduardo Falcão Uchôa
Com efeito, desde o início de sua extensa produção intelectual, remontando ao ano de 1938, quando trata de “um caso de regência” em textos
machadianos — o emprego da preposição a, ao invés de em, junto a nomes
de rua indicativos de morada —, o nosso linguista manifestou o seu especial
interesse pelos recursos expressivos, sutis e múltiplos, da obra daquele que
ele tinha como “nosso maior romancista”. Em tais ensaios, Mattoso trata, no
entanto, de temas pouco usuais em relação aos estudos filológicos sobre nosso
grande romancista e contista, alguns, por exemplo, detendo-se na linguagem
comum transfigurada em arte literária, como em “Cão e cachorro no Quincas
Borba”, “O coloquialismo de Machado de Assis” e “A gíria em Machado de
Assis”. Neste último, defende a posição de que a gíria é a linguagem poética
correspondente à língua popular. Diz Mattoso:
Os recursos com que [a gíria] dá sentido afetivo às formas lingüísticas são,
em última análise, os mesmos que se encontram na linguagem poética mais
apurada. A diferença está no material de que se serve, e não nos processos por
que o submete a esse fim: a metonímia, a metáfora, a catacrese, a ironia e todas
as demais figuras de linguagem, que a retórica define e metodiza, aparecem na
gíria, exteriorizando estados psíquicos e visando a impressionar e sugestionar o
próximo. (1962: 136)
Numa breve ilustração, Mattoso Câmara nos mostra que Machado, de
acordo com o seu processo normal de expressão estética, nos diz muito mais
do que apresenta, quando declara pela boca de Quincas Borba: “Ao vencido,
ódio e compreensão; ao vencedor, as batatas!” Explica Mattoso:
Temos assim a gíria como uma espécie de forma interna do preceito filosófico do
Quincas Borba. Externamente há o endeusamento do vencedor; e, internamente,
está a irrisão da sua vitória. Ele vai às batatas num duplo sentido — material e
simbólico. E é o sentido simbólico, justamente estruturado na base da gíria, que
transfere o apólogo para um niilismo desencantado e definitivo. (1962: 143)
Machado joga assim, conclui Mattoso, “num refugo geral vencidos e
vencedores, dissolvidos na inanidade das lutas humanas” (id: 142).
Eis-nos, certamente, com estas reflexões, ante um Mattoso Câmara bem
pouco conhecido...
O linguista brasileiro revela também uma leitura assídua dos poetas
parnasianos que, segundo ele, procuravam “fazer a aproximação, na base da
tradição clássica entre as línguas literárias de aquém e além-mar” (1955: 105),
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e ainda dos poetas simbolistas, uns e outros citados com frequência em duas
de suas principais obras: Para o estudo da fonêmica portuguesa (1977, 2.ª ed.),
no capítulo dedicado à pesquisa da “Rima na poesia brasileira” — aplicação
literária da fonêmica —, e Contribuição à estilística portuguesa (1952).
Em 1967, Mattoso Câmara escreve um sugestivo ensaio: “Um caso de
colocação”, sobre o conhecido soneto “A Cavalgada”, do parnasiano Raimundo
Correia.
O nosso linguista chega a ser autor, o que é para ser destacado neste
texto, de um capítulo de livro, chamado especificamente “A língua literária”,
que integra a primeira edição, de 1955, da obra coletiva A literatura no Brasil,
dirigida por Afrânio Coutinho, em que tece considerações sobre o processo da
formação da língua literária no Brasil. Por se tratar de ensaio pouco conhecido
(retirado da obra coletiva citada, em sua 2.ª edição), vou deixar que o próprio
Mattoso Câmara com frequência nos fale, valendo-me do que julgo os trechos
mais expressivos do texto do linguista brasileiro, que nos darão sua visão, ainda
que em traços muito gerais, do movimento progressivo do discurso literário em
nosso país. Poder-se-á constatar que Mattoso se atém basicamente ao século
XIX e inícios do século XX, pois do Modernismo, exceção feita a um Bandeira e a um Mário de Andrade, este a defender toda uma política linguística,
ele não se mostra um leitor assíduo. Talvez, pelo fato mesmo de Mattoso ficar
praticamente restrito ao século XIX, este seu ensaio não tenha sido reimpresso
na 2.ª edição da obra coletiva referida.
No início de A língua literária, Mattoso tece considerações gerais sobre
a implantação do português no Brasil e sua existência nos séculos iniciais. É
a partir do Romantismo que historia as atitudes dos escritores em relação à
língua literária. Assim, mostra as diferentes direções adotadas por Casimiro
de Abreu, Gonçalves Dias e José de Alencar. Fala do afrancesamento da nossa
língua literária com o romance realista-naturalista, no vocabulário e na sintaxe.
A seguir, observa que
Há, porém, paralelamente, uma reação que inicia um retôrno à tradição clássica
em maior ou menor grau. É um movimento discreto na poesia parnasiana e em
Machado de Assis. Este aconselha aos nossos escritores a leitura dos clássicos
e um ecletismo linguístico entre antigos e modernos para enriquecer o pecúlio
comum. (1955: 104)
Em continuação, Mattoso declara que com Rui Barbosa, todavia, o movimento se intensifica e se torna marcha-a-ré, decidida, para as fontes clássicas:
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Podemos dizer que com Rui Barbosa se constituirá entre nós a escola tradicionalista e classicista em matéria de língua literária: rejeita-se a influência francesa e o
substrato coloquial brasileiro, e faz-se dos exemplos dos clássicos a jurisprudência
da norma linguística. (id: 105)
Ressalta, contudo, Mattoso:
É uma jurisprudência um tanto fluida e especiosa, como testemunham as divergências entre Rui e Carneiro Ribeiro, entre Cândido Figueiredo e Heráclito Graça. Isso
decorre de certa incoerência lingüística dos próprios clássicos, que não tiveram o
rigorismo lógico nem o purismo gramatical a êles assim atribuídos. (id: 105)
Para finalizar, Mattoso Câmara justifica o discurso ruiano:
Acresce que a atitude rígida só foi possível em Rui Barbosa por causa da natureza
especial de sua atividade literária, que não é a interpretação da vida ambiente,
como no romance, nem a exteriorização anímica, como na poesia, mas uma
formulação abstrata dos princípios jurídicos e políticos através da dissertação e
da oratória. (id: 105)
Para o linguista brasileiro, “A reação contra as ‘incorreções’ da linguagem
romântica se pauta muito mais por Machado de Assis” (105). E acrescenta:
No pólo oposto está a posição de Mário de Andrade (consubstanciada em Macunaíma, por exemplo), esforçando-se por criar uma língua literária em novas
diretrizes, mediante a exploração em profundidade da língua popular e sua racionalização e generalização sistemática. (id: 106)
No texto mattosiano, sobre o qual se está discorrendo, há, em sua continuidade, uma apreciação sucinta de alguns fatos linguísticos que, para ele, têm sido
“pontos nevrálgicos na consolidação da nossa língua literária” (id: 106). Assim,
fala da nossa ortoépia poética (a do século XIX), do vocabulário (os brasileirismos, os neologismos e os estrangeirismos) e, enfim, da disciplina gramatical,
em face da indisciplina do uso quotidiano com base em certos problemas, que
aparecem também em Portugal, mencionando os estrangeirismos sintáticos, o
abandono da impessoalidade de haver fora do indicativo presente (sobretudo,
no imperfeito, em frases do tipo haviam homens), a incompreensão do se como
partícula de apassivamento (donde construções como aluga-se casas, com
casas sentido como objeto direto), a delimitação do emprego entre o infinitivo
flexionado e o invariável (como o conhecido exemplo “possas tu... seres presa”,
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de Gonçalves Dias). Trata mais detidamente do problema da colocação dos
pronomes pessoais átonos antes ou depois do verbo: a colocação praticamente
livre dos românticos do uso brasileiro, em oposição a Machado de Assis e aos
parnasianos, que preferiram dobrar-se à disciplina gramatical do português
europeu. Rui Barbosa, pondera Mattoso Câmara, extremou nesta atitude. Em
conclusão deste rápido exame dos fatos da língua, o linguista brasileiro enfatiza
que “a atitude dominante dos escritores brasileiros (sempre considerando fundamentalmente os do século XIX como base de suas observações) é repelir como
“êrro” o que é sentido claramente como vulgarismo gramatical” (id: 109). Assim,
ilustrando, diz que “a forma verbal indicativa para o imperativo, tão arraigada
embora, mesmo na fala das classes brasileiras cultas, é banida em teoria, se bem
que entre os românticos se tenha insinuado às vêzes na prática” (id: 109).
Por fim, Mattoso conclui este seu texto com um cotejo entre as línguas
literárias de Portugal e do Brasil, ressaltando fatores de convergência e outros de
divergência. Entre estes últimos está a diferenciação quanto à língua cotidiana
falada. Dando, uma vez mais, a palavra a Mattoso:
É inegável que a forma literária tem de apoiar-se neste substrato para não perder
contato com a vida e o ambiente social. Nestas circunstâncias, é digno de atenção
a tendência moderna para a democratização da literatura, na língua como no seu
conteúdo, pois a base popular — em tantos aspectos distinta — do português do
Brasil trará cada vez mais, com essa tendência, um fator apreciável de divergência
entre os escritores de cá e os de lá, quanto à expressão formal. (id: 110)
No entanto, ressalta que não se pode esquecer que temos dois povos de
língua fundamentalmente una, “já que continuam coincidentes as linhas mestras
do sistema fonético, do sistema gramatical e do acervo vocabular”. Por isso,
acrescenta:
Não é provável, por outro lado, que se dê a cisão de estrutura linguística em futuro
próximo, ou mesmo remoto. A situação se prolongará, talvez indefinidamente,
para garantir às duas línguas literárias o caráter de variantes de uma unidade lata
(id: 110-111)
O interesse de Mattoso Câmara pelo estudo da língua literária clássica
não se esgota, contudo, com Machado de Assis, com os poetas parnasianos e
simbolistas, ou a este texto sobre a língua literária no Brasil, centrado em autores
do século XIX e inícios do século XX. Outros centros de interesse dos filólogos
em relação à língua literária também não deixaram de merecer sua atenção.
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A publicação de edições críticas de textos literários, entre nós, foi acompanhada atentamente por Mattoso, como se pode atestar através dos comentários
que figuram em dois elucidativos relatórios sobre os estudos da linguagem
no Brasil: “Brazilian linguistics” (1968), que, traduzido para o português,
integra o volume organizado por Naro (1976), intitulado Tendências atuais
de linguística e da filologia no Brasil, e “Os estudos de Português no Brasil”
(1969). Assinala, nestas publicações, que, por volta dos anos 40, a situação
no tocante à importância da fidedignidade dos textos mostra-se francamente
promissora, desde a interpretação crítica de textos medievais e de velhos
códices (com destaque para a atividade de Serafim da Silva Neto e de Celso
Cunha) até textos da literatura brasileira, cujas edições no passado muito
deixaram a desejar, tendo se sobressaído neste mister Sousa da Silveira, cuja
edição crítica das obras de Casimiro de Abreu vale, para Mattoso, como um
modelo. Chega ele a focalizar certos problemas de edição “cujas soluções em
geral recebidas nem sempre são satisfatórias”, como “a questão da virgulação
e da grafia, uma e outra propiciadoras, muitas vezes, de discrepâncias com as
intenções do autor”.
Por fim, o estudo da versificação na poesia brasileira, merecedor de
importantes contribuições de um Sousa da Silveira, por exemplo, foi também
foco da atenção de Mattoso Câmara. Ele deixou de escrever as poesias de sua
juventude, ou de traduzir outras, mas continuou a perseguir a musicalidade e
os metros dos versos. Apresenta, neste campo, duas importantes pesquisas. A
primeira foi “A rima na poesia brasileira” (1949), uma versão revista e bem
ampliada do artigo publicado em 1946, no conceituado periódico Word, do
Círculo Linguístico de Nova Iorque, sob o título “Imperfect Rhymes in Brazilian Poetry”, como “amostra das pesquisas que se pode fazer nas diretrizes
dos princípios fonêmicos”; a segunda, “O verso romântico” (1955), texto que
integrou também a 1ª edição da obra A Literatura no Brasil, dirigida por Afrânio Coutinho, em que fundamenta ter “O verso, na poesia romântica brasileira,
[participado] dos três traços característicos do Romantismo na sua mensagem de
renovação estética: abeberamento das fontes populares, culto à espontaneidade
da expressão e desprezo às regras resultantes da codificação coletiva, explícitas
ou implícitas. (1955: 602)
Pode-se, então, documentar facilmente que Mattoso Câmara não rompe
com a tradição filológica no seu estudo da língua literária que, já antes da
década de 1940, reunia um grupo de estudiosos (Said Ali, Antenor Nascentes,
Sousa da Silveira...) que, embora sem formação universitária — os primeiros
Cursos de Letras nasceram nos anos 30 — souberam, por si próprios, encontrar
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o caminho da Ciência, então denominada Filologia, vindo a produzir obras de
inestimável valor, reconhecido pelo linguista brasileiro, em passagens várias
de seus numerosos escritos. Mattoso Câmara convive, pois, com esta tradição,
mantido sempre o seu perfil de estudioso da linguagem, vindo a trazer, assim,
a sua contribuição em relação à pesquisa da língua literária, que, ao lado do
estudo diacrônico, imperava no mundo filológico, ao mesmo tempo que vai
inaugurar, em nosso meio, novos rumos em relação ao estudo da linguagem.
Coexistem, pois, na importante produção acadêmica de Mattoso, a tradição e
o pioneirismo no estudo da língua portuguesa no Brasil.
O tempo passa e, cada vez mais, valorizo este grande intelectual brasileiro
que foi Mattoso Câmara, pelo legado de sua modelar docência (fui seu aluno)
e pelo que tanto ficamos, os seduzidos pelo maravilhoso mundo da linguagem,
a dever a ele, pelo conjunto de sua obra, que veio para ficar como marco na
história dos brasileiros que passaram parte de suas vidas debruçados no estudo
da Última flor do Lácio”.
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Evanildo Bechara e as fases históricas
da língua portuguesa
Rosalvo do Valle
UFF, LLP
Dentre os muitos assuntos linguísticos de que vem tratando o Acadêmico
Professor Evanildo Cavalcante Bechara, a periodização da história da língua
portuguesa tem sido objeto de estudo e de reflexão desde suas primeiras publicações, ainda no verdor de seus vinte e poucos anos. Em 3 de fevereiro de
1952, publicou no Jornal do Comércio, o artigo As fases históricas do português
na Sintaxe Histórica de A.E. da Silva Dias, reproduzido em 54, nos Primeiros
Ensaios sobre a Língua Portuguesa. (Bechara, 1954: 133-146)
Com a leitura assídua dos melhores autores daquele rico momento dos estudos então ditos filológicos, e, sobretudo, com a sábia orientação de seu eminente
Mestre Said Ali, Evanildo Bechara inicia o artigo, levantando uma questão que
continuará discutidíssima e dependerá dos critérios do linguista histórico:
Não existe ainda uma delimitação geralmente aceita dos períodos literários em
que se acha dividida a nossa língua, desde os seus primórdios até o momento
atual. O fato constitui até uma tarefa assaz difícil para o linguista, porque não
se pode determinar com precisão a época do nascer e morrer de fenômenos de
linguagem. (Bechara, 1954: 133)
É a lição do mestre, bem assimilada pelo discípulo, atento ao famoso
prefácio da Lexeologia, em que diz Said Ali:
Limites entre os diversos períodos não podem ser traçados com rigor. Alterações
linguísticas não dependem do calendário, nem do ano em que o século acaba ou
começa [...]. Ignora-se a data ou momento exato do aparecimento de qualquer alteração linguística. Neste ponto nunca será a linguagem escrita, dada a sua tendência
conservadora, espelho fiel do que se passa na linguagem falada. (Ali, 1971: 8)
Esse texto de 1921 — sete anos antes do nascimento do nosso homenageado
— motivaria o jovem estudioso da língua, que aprendeu, no convívio com o mestre,
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Rosalvo do Valle
a estudá-la em seu desenvolvimento histórico. E o levaria a perscrutar na sempre
louvada Sintaxe Histórica de Epifânio Dias, uma das obras de sua predileção, as
fases históricas da língua. Perscrutar é bem o termo, no sentido etimológico de
“investigar minuciosamente”, “procurar cuidadosamente” (lat. perscrutare). É
que o grande latinista e arguto sintaticista não formalizou na obra uma proposta
de periodização, ou, como diz Bechara, “nunca a explicitou organicamente”.
De qualquer forma, Bechara pôde depreender três fases ou períodos: a)
período arcaico (que, no dizer de Epifânio Dias, “Vai até cerca dos fins da primeira metade do século XVI”); b) português arcaico médio (séc. XVI-XVIII);
c) português moderno (do séc. XVIII ou XIX-XX).
Ressalte-se que Evanildo Bechara, antes de se deter no objeto de seu
artigo, relaciona algumas propostas, anteriores e posteriores à publicação da
Sintaxe Histórica — um comportamento metodológico muito seu, que lhe dá
instrumentos de confronto, com o aval dos mestres.
Ressalte-se, mais que isso, a leitura exaustiva, a pesquisa pessoal com o
registro de todas as ocorrências de itens discutíveis (como a difícil interpretação de português arcaico médio) para cujo entendimento não falta a crítica
objetiva do fato, preservada, contudo, a figura do autor — atitude constante
nos seus juízos.
Um exemplo, apenas:
Infelizmente, o trabalho nasceu sob luz desfavorável, com a morte de seu autor,
que não conseguiu expurgar a sua produção dos defeitos materiais que hoje, nas
duas edições, se apresentam. Qualquer crítica à Sintaxe, portanto, fica sujeita,
em muitos lugares, a fazer injustiça ao espírito seguro e equilibrado do erudito
português: este trabalho é um esboço de um grande empreendimento que Epifânio
não chegou a concluir. (Bechara, 1954: 137)
A segunda abordagem, de 1962 — “As fases históricas da língua portuguesa” — é, digamos, incidental, porque inserida num contexto em que o
autor, na verdade, quer focalizar a posição inovadora de Said Ali na época
hegemônica dos estudos diacrônicos com fundamentação neogramatical. É o
item VII. 2 da tese M. Said Ali e sua contribuição para a filologia portuguesa,
para concorrer a uma cátedra de Língua e Literatura do Instituto de Educação
do Estado da Guanabara.
Bechara examina a proposta de Said Ali, que considera “excelente” (p.
56), e transcreve longo trecho do já referido prólogo da Lexeologia (1.ª edição,
páginas IV e V) — não sem antes, enfatizar que é uma “divisão mais completa,
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injustamente pouco aproveitada pelos que posteriormente trataram do assunto”.
(Bechara, 1962: 57).
A proposta de Said Ali, extraída do prólogo, é a seguinte: português antigo:
“que se escreveu até os primeiros anos do século XVI”; português moderno:
quinhentista, seiscentista e setecentista; e português hodierno: “mudanças
características do falar atual creadas ou fixadas recentemente, ou recebidas do
século XIX, ou que por ventura remontam ao século XVIII”. (Ali, 1971: 9)
A terceira abordagem, de 1985, é, compreensivelmente, o trabalho mais
extenso, e mais denso. E’ a tese de concurso para Professsor Titular de Língua
Portuguesa da Universidade Federal Fluminense: As fases históricas da língua
portuguesa. Tentativa de proposta de nova periodização.
O Professor Evanildo Bechara tem agora mais trinta e três anos, de idade
e de sabedoria, senhor de impressionante leitura especializada, e rigorosamente
em dia com as publicações linguísticas e filológicas. Na tese, de 94 páginas
mimeografadas, seleciona e examina, no primeiro capítulo, oito propostas de
periodização desde o século XVIII (de Antônio das Neves Pereira) até o século
XX (de Paul Teyssier) — sem esquecer uma referência a dois gramáticos do
século XVI, Fernão de Oliveira e, sobretudo, Duarte Nunes de Leão, este sim
o primeiro historiador da nossa língua, com a obra pioneira Origem da Língua
Portuguesa. Citou os gramáticos e não esqueceu os escritores, que, atentos às
mudanças, “e bem mais observadores dos usos linguísticos e suas variedades”,
registram variedades sincrônicas e variedades diacrônicas.
No segundo capítulo, apresenta sua “tentativa de uma nova proposta”
(Bechara, 1985: 49), que é a seguinte: a) fase arcaica (do século XIII ao final
do XIV); b) fase arcaica média (do séc. XV à 1.ª metade do séc. XVI); c) fase
moderna (da 2.ª metade do séc. XVI ao final do século XVIII); d) fase contemporânea (do século XVIII para cá). Sobre a última faz esta prudente afirmação:
A denominação contemporâneo não significa de modo algum, que novos fatos
linguísticos não se estão esboçando hoje para a constituição e caracterização do
português atual ou moderníssimo. Entretanto, ainda todos nós nos achamos muito
próximos dessas novidades para poder contempla-las com segurança. Eis uma
tarefa para o futuro historiador da língua portuguesa. (Bechara, 1985: 68)
Quanto a critérios metodológicos, Bechara toma “como pontos de referência fenômenos linguísticos balizadores”, privilegiando “fatos morfológicos e
sintáticos”; guia-se “fundamentalmente pela frequência relativa do emprego da
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forma linguística eleita como baliza, sem deixar de levar em conta a evidência da
variedade diafásica para caracterizar um gênero literário ou determinados tipos
de personagens de obras literárias (Bechara, 1985: 49). E relembra a advertência
de Said Ali quanto à cronologia das alterações linguísticas, naturalmente para
frisar que seus limites temporais são relativos.
Antes de ressaltar as contribuições de sua proposta, cabe registrar que Evanildo Bechara publicou na Europa em 1991, o artigo As fases da língua portuguesa
escrita, de que nos dá notícia a Profª. Ana Maria Martins, da Faculdade de Letras
e do Centro de Linguística de Lisboa, no artigo Mudança Sintática e História da
Língua Portuguesa, publicado em 2002. A autora registra “as mais relevantes propostas de periodização da história da língua portuguesa apresentadas entre 1911, por
José Leite de Vasconcelos e 1991, por E. Bechara. São as de Leite de Vasconcelos,
Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Manuel Said Ali, Pilar Vásquez Cuesta, Luís
Filipe Lindley Cintra e Evanildo Bechara. (Martins, 2002: 265-267)
Afinal, o não acolhimento da proposta de Said Ali, tão lamentado por
Bechara, também na tese de 1985 (“não foi levada em consideração, nem em
Portugal, nem no Brasil” – pág. 70), desfaz-se agora; e, para orgulho ainda
maior do discípulo, é posta ao lado da sua.
Mas, voltemos à tese, nos dez minutos que nos restam.
Ao tratar, num texto recente, do aqui referido artigo sobre a Sintaxe histórica, Ricardo Cavaliere diz que, com ele, Bechara ingressa na indigesta matéria
da periodização do português como língua de cultura (Cavaliere, 2008: 92). Por
prudência, ou por estratégia, deixei esta referência para o final, para dizer que
o autor a empregaria com ainda maior propriedade, se falasse da subdivisão do
extenso período arcaico (séc. XIII ao XVI) em dois subperíodos, como propôs a
respeitabilíssima D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos: “o período Trovadoresco
até 1350; e o da prosa histórica verdadeiramente nacional: o das Crônicas de
Fernão Lopes, da Ingenuamente linda Crônica do Condestável D. Nunálvares
Pereira e da do Infante Santo, o sacrificado de Tânger”. (Bechara, 1985: 33)
Aqui a “indigesta matéria” provocou a Introdução da tese de Bechara,
um tanto à moda de exórdio ex abrupto, ao discordar, logo no início de Paul
Teyssier, que, na História da língua portuguesa, síntese magistral (como, aliás,
reconhece o próprio Bechara), estuda em capítulos independentes “O galego-português (de 1200 a aproximadamente 1350)” e O “português europeu (do
século XIV aos nossos dias)” — como se considerasse um galego-português à
parte da tradicional compreensão de que o português histórico envolve toda a
documentação remanescente, a partir do século XIII.
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Evanildo Bechara e as fases históricas da língua portuguesa
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Que não se trata de bizantinice, prova-o a imensa bibliografia especializada.
Repito, transcrevendo-me, que Bechara reconhece que é um “árduo e pedregoso
caminho”, esse de divergências de língua nos inícios da fase arcaica. Ainda assim,
relaciona, com a maioria dos especialistas, alguns fatos tipicamente portugueses
e fatos tipicamente galegos, advertindo, porém, que muitos “concorreram no
mesmo texto dessa fase primitiva”. Só “um profundo estudo da frequência de
determinados fatos” é que “vai decidir a procedência galega ou portuguesa dessa
unidade entendida por galego-português”. (Bechara, 1985: 51-52)
Sua posição não é, pois, a de Paul Teyssier e assim se formaliza:
Prefiro submeter ao critério de periodização todo o momento histórico em que,
falando, ou escrevendo através de textos literários ou não, se utilizou a língua
portuguesa, quer na fase dessa realidade complexa — mas organicamente unitária do ponto de vista linguístico e representativa de uma unidade espiritual e
cultural — que tem por base os falares da Galiza e do Norte de Portugal, quer no
período em que, desgarrada politicamente do galego, a nossa língua prosseguiu
sua trajetória até nossos dias. (Bechara, 1985:6)
Teyssier, mesmo dentro do seu “português europeu”, prefere “isolar, na evolução histórica, vários eixos que permitam ordenar, esclarecer e melhor compreender os fenômenos linguísticos”. (Bechara, 1985: 5. cf. Teyssier, 1982: 35-36)
Entendo que mais digestível ou mais digerível — de qualquer modo
mais útil e eficaz — expor os fatos característicos de cada sincronia (períodos,
ou fases, ou épocas), com documentação segura colhida nos textos de época,
literários ou não-literários, e nas informações dos especialistas (gramáticos,
ortógrafos, lexicógrafos, filólogos...) — para, um juízo mais seguro da história
da língua.
Com a visão, já agora consagrada na formulação de Eugênio Coseriu, de
que a língua funciona sincronicamente e se constrói diacronicamente, acredito
que esse procedimento metodológico de arrolar os fatos e confrontá-los cronologicamente, sem a exigência de atestados de nascimento ou de morte, é um
modo de firmar, ou formar, a consciência da historicidade da língua.
Parece-me, aliás, que era o pensamento de Evanildo Bechara, como se
pode depreender deste comentário, no início da tese, por ventura mais prudente
e menos enfático do que minhas observações:
Acredito que nessa proposta possam existir ainda, como consequência, informações que nos dêem, de forma bastante precisa, uma ideia do estado da língua em
diversos dos seus momentos históricos. (Bechara, 1985: 6)
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Certo ecletismo, aqui e ali, de propostas que privilegiem fatos da história
externa não fará mal, se, mutatis mutandis, entendido no bom sentido que lhe
deu Coseriu ao interpretar superiormente esse aspecto da linguística latino-americana:
O que parece — e até é — ecletismo numa dada época, é também, numa perspectiva histórica mais ampla, abertura ideológica e antidogmatismo, não-limitação
a uma única tradição. (Coseriu, 1976: 39)
Afinal, a história externa e a interna têm de estar associadas, sem o que
não se pode entender a “história da língua como a história dos homens que
falam”. (Silva Neto, 1979: 54)
Concluindo, quero dizer que no ecletismo (na interpretação coseriana)
de meu feitio, tenho utilizado, no exercício docente de pós-graduação, tanto
a tradicional Gramática histórica, de Ismael de Lima Coutinho, (situando-a
criticamente no seu contexto linguístico), quanto a inovadora História da língua portuguesa, de Paul Teyssier, e as Fases históricas da língua portuguesa
— esta não para discutir os complexos problemas de periodização, mas para
comentar aquelas listas de balizadores linguísticos que, afinal, são as “informações”, referidas por Bechara que permitem fazer “uma ideia do estado da
língua [escrita] em diversos dos seus momentos históricos”. Neste uso didático
é um utilíssimo instrumento de trabalho, associado à indispensável leitura de
textos. E não vejo conflitos incontornáveis nesse comportamento metodológico,
porque todos esses grandes autores fazem linguística histórica histórica, e não
a-histórica, — aquela que parte da lição dos textos das várias épocas. Creio,
até, que o confronto dos fatos de diferentes períodos consolida a convicção da
importância da perspectiva diacrônica.
Vejo, assim, nas Fases históricas da língua portuguesa o fruto maduro da
leitura assídua de quem, desde os verdes anos, vem estudando a língua no seu
percurso histórico — lição que sempre guardou de seu Mestre inesquecível,
Manuel Said Ali Ida.
Referências bibliográficas
ALI, M. Said. Prólogo da Lexeologia do português histórico. 1.ª ed., 1921,
reproduzido na Gramática histórica da língua portuguesa, 7.ª ed., Rio de
Janeiro/ São Paulo: Livraria Acadêmica, Edições Melhoramentos, 1971.
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Evanildo Bechara e as fases históricas da língua portuguesa
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BECHARA, Evanildo. Primeiros ensaios sobre língua portuguesa. Rio de
Janeiro: Livraria São José, 1954.
BECHARA, Evanildo. M. Said Ali e sua contribuição para a Filologia portuguesa. Rio de Janeiro: Instituto de Educação do Estado da Guanabara, tese
de concurso para professor catedrático, mimeo, 1962.
BECHARA, Evanildo. As fases históricas da língua portuguesa. Tentativa de
proposta de nova periodização. Niterói: Universidade Federal Fluminense,
tese de concurso para professor titular, mimeo, 1985.
CAVALIERE, Ricardo Stavola. “Os primeiros ensaios de Evanildo Bechara”. In:
BASTOS, Neusa Barbosa et alii (org.). Homenagem: 80 anos de Evanildo
Bechara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Lucerna, 2008.
COSERIU, Eugênio. “Perspectivas gerais”. In: NARO. Anthony Julius (org.).
Tendências atuais da Linguística e da Filologia no Brasil. Rio de Janeiro:
Livraria Francisco Alves, 1976.
MARTINS, Ana Maria. Mudança sintática e história da língua portuguesa. In:
HEAD, Brian F. et alii (org.). História da Língua e História da gramática.
Actas do Encontro. Minho: Universidade do Minho, 2002.
SILVA NETO, Serafim da. História da língua portuguesa. 3.ª ed. Rio de Janeiro:
INL – Presença, 1979.
TEYSSIER, Paul. História da língua portuguesa. Lisboa: Sá da Costa Editora,
Trad. Celso Cunha, 1982.
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O pronome na Moderna Gramática Portuguesa
de Evanildo Bechara
Leonor Lopes Fávero
USP, PUC-SP
Márcia A. Guedes Molina
UNISA
1. Preliminares
O objetivo deste trabalho é examinar, dentro das propostas da Linguística
Textual, como Evanildo Bechara, o mais importante gramático deste século,
descreve e analisa o pronome, em sua Moderna Gramática Portuguesa nas
duas publicações em que ela se nos apresenta: a primeira, de 1961, com trinta e seis edições, e a segunda, revista e ampliada, de 1999, ou seja, editada,
praticamente quarenta anos depois, verificando o que há de inovador nessa
segunda, já que tantos anos as separam, anos esses que marcam uma profunda
modificação nos estudos linguísticos.
Mostraremos, em especial ao tópico analisado, o quanto a visão do linguista se expande, incorporando os mais recentes estudos sobre a linguagem,
acompanhando as vertentes da teoria da enunciação, da pragmática, da linguística textual, como ele mesmo diz na nova edição das Lições de Português pela
Análise Sintática (2000: 1):
(...) passados tantos anos, os estudos de sintaxe, tanto geral quanto de língua
portuguesa, têm-se beneficiado de alguns progressos que procuramos introduzir
nas recentes revisões de nossa Moderna Gramática Portuguesa, a partir da 37.ª
edição de 1999.
e no Prefácio de sua Gramática: “Dificilmente haverá seção da Moderna
Gramática Portuguesa que não tenha passado por uma consciente atualização
e enriquecimento no plano teórico da descrição do idioma”.
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Leonor Lopes Fávero e Márcia A. Guedes Molina
O trabalho insere-se na História das Ideias Linguísticas, lembrando que
uma ideia linguística é todo saber construído em torno de uma língua, num dado
momento, como produto quer de uma reflexão metalinguística, quer de uma
atividade metalinguística não explícita (Auroux, 1989), permitindo:
• estudarem-se não somente as antigas gramáticas portuguesas anteriores à de
Adolfo Coelho (2.ª metade do século XIX), como as primeiras escritas por
brasileiros (as de Moraes Silva e de Frei Caneca, por exemplo);
• analisar-se qualquer outro saber fundado na ciência linguística (obras gramaticais
surgidas a partir do compêndio de Júlio Ribeiro (1881))
Assim, toda a tradição gramatical é uma parte das ideias linguísticas:
Fazer história das idéias nos permite: de um lado, trabalhar com a história do
pensamento sobre a linguagem no Brasil, mesmo antes da Lingüística se instalar
em sua forma definida; de outro, podemos trabalhar a especificidade de um olhar
interno à ciência da linguagem, tomando posição a partir de nossos compromissos, nossa posição de estudiosos especialistas em linguagem. Isto significa que
não tomamos o olhar externo, o do historiador, mas falamos como especialistas
de linguagem, a propósito da história do conhecimento sobre a linguagem. (...)
portanto, capazes de avaliar teoricamente as diferentes filiações teóricas e suas
conseqüências para a compreensão do seu próprio objeto, ou seja, a língua.
(Orlandi, 2001: 16)
Essa disciplina contempla também, como ensinam Fávero e Molina (2006),
o estudo das Instituições onde, por exemplo, no século XIX, tais saberes eram
discutidos, alargados, disseminados, os veículos por onde circulavam e as
polêmicas que suscitavam, pois, de acordo com Auroux (1992), o historiador
deve projetar os fatos num hiperespaço que comporta essencialmente três tipos
de dimensão:
• uma cronologia;
• uma geografia;
• um conjunto de temas.
Nosso tema será a Moderna Gramática Portuguesa, no que tange ao estudo
dos pronomes e da coordenação; a cronologia, principalmente, os séculos XX
e início do XXI, a geografia, Brasil.
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O pronome na Moderna Gramática Portuguesa de Evanildo Bechara
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2. A obra publicada em 1961
A Moderna Gramática Portuguesa, explica o ilustre professor no Prefácio, foi escrita com o intuito de levar ao magistério brasileiro um compêndio
que, em um estilo simples, divulgasse os recentes resultados dos estudos da
linguagem e que dispusesse os conteúdos gramaticais de acordo com a recém
implantada Nomenclatura Gramatical Brasileira. Orientada pela lição de inúmeros mestres de dentro e de fora do país, faz ela uma homenagem especial
àquele que muito contribuiu para nossa formação linguística: M. Said Ali, no
centenário de seu nascimento.
Nas palavras introdutórias, Bechara explica o papel da gramática: “registrar
os fatos da língua geral ou padrão, estabelecendo os preceitos de como se fala e
escreve bem ou de como se pode falar e escrever bem uma língua”, justificando,
então, as duas conceituações conhecidas de gramática: “é ao mesmo tempo
uma ciência e uma arte” - e o papel do gramático, explicando que esse não
deve ser um “legislador do idioma nem tampouco um tirano que defende uma
imutabilidade do sistema expressivo, cabendo-lhe ordenar os fatos linguísticos
da língua padrão de sua época (...)” (Bechara, 1970[1960]: 25).
Alertamos aqui para o caráter inovador dessa obra, pois, na ocasião em
que foi escrita, os estudos sociolinguísticos aqui no Brasil ainda engatinhavam
e o autor, parece-nos, já comungava com as ideias de Coseriu (1982: 27).
El error corriente del hablante ingenuo y sobre todo el de los que llamamos puristas, es el de considerar sólo lo ejemplar y su realización como lo correcto, y de
pensar que todo otro modo de hablar diferente de lo ejemplar es, como lengua,
algo incorrecto. Pero adviertan que jamás una lengua puede ser incorrecta (…)
2.1 Morfologia
A Moderna Gramática Portuguesa apresenta um estudo bipartido da morfologia, na esteira dos mais renomados gramáticos. Na primeira parte Classes
de palavras, chamada por inúmeros estudiosos tanto do século XIX quanto do
início do século XX de Taxionomia, traz as dez classes de palavras, seguindo
as determinações da Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB): substantivo,
adjetivo, artigo, pronome, numeral, verbo, advérbio (incluindo aí os denotativos, diferentemente do apresentado nessas normas), preposição, conjunção e
interjeição. Na segunda parte, Estrutura dos vocábulos, já se ouve a voz pelo
menos de dois grandes estudiosos de morfologia: do brasileiro, Câmara Jr. e do
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Leonor Lopes Fávero e Márcia A. Guedes Molina
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americano Nida, especialmente, em questões antes pouco discutidas no âmbito
escolar: constituintes imediatos, neutralização, acumulação, etc.
Embora haja tanto a se falar a respeito dessa parte da obra, devido as
limitações de um trabalho desta natureza, deter-nos-emos no pronome.
2.1.1 O Pronome
O autor inicia a parte, definindo essa classe gramatical: “Pronome é a expressão que designa os seres sem dar-lhes nome nem qualidade, indicando-os
apenas como pessoa do discurso” (Bechara, 1970 [1960]: 114). Bastante calcado
em Said Ali (1965: 61) que afirmou: “pronome é a palavra que denota o ente ou
a ele se refere, considerando-o apenas como pessoa do discurso”.
Na sequência, explicita as três pessoas do discurso e traz a classificação
dos pronomes sugerida pela ngb: pessoais, possessivos, demonstrativos (neles
insere o artigo definido), indefinidos (incluindo o artigo indefinido), interrogativos e relativos.
Bechara classifica também os pronomes em substantivos e adjetivos,
explicando que, quando o pronome faz referência a um substantivo, temos o
pronome adjetivo; já quando faz “as vezes dele”, temos os substantivos. Contudo, esclarece, “há os pronomes que são apenas substantivos enquanto outros
podem aparecer nas duas funções”.
Devemos destacar alguns fatos, primeiramente em relação à discussão do
“o” como artigo ou pronome demonstrativo. Nesse sentido, esclarece Bechara
(1970 [1960]: 118):
O pronome o, perdido o seu valor essencialmente demonstrativo e posto antes
de substantivo, como adjunto, recebe o nome de artigo definido. Assim é que
a gramática, no exemplo seguinte, considera o primeiro os artigo definido e o
segundo pronome demonstrativo:
“Os homens de extraordinários talentos são ordinariamente os de menos juízo”.
(Marquês de Maricá)
navegando nas mesmas águas de Said Ali (1965: 64): “Seguindo o substantivo,
o demonstrativo ‘o’ confunde-se geralmente com o artigo definido”.
O outro fato que não pode passar despercebido relativamente aos pronomes
demonstrativos é quando o gramático, já antevendo a necessidade de, muitas vezes,
caminharmos para além dos limites da frase, ensina (Bechara,1970 [1960]:117):
Pronomes demonstrativos são os que indicam a posição dos seres em relação
às três pessoas do discurso. Esta localização pode ser no tempo, no espaço ou
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no discurso: 1.ª pessoa: este, esta, isto. 2.ª pessoa: esse, essa, isso. 3.ª pessoa:
aquele, aquela, aquilo. (...) Nem sempre se usam com este rigor gramatical os
pronomes demonstrativos; muitas vezes interferem situações especiais que
escapam à disciplina da gramática. (grifos nossos)
Observamos, finalmente, que o autor, em referência a alguns pronomes
indefinidos, explica:
Muitas vezes a posição da palavra altera seu sentido e sua classificação:
Certas pessoas (pron. Indef.) não chegam na hora certa (adjetivo), mas em certas
horas (pron. Indefinido). Algum livro (= certo livro). Livro algum (= nenhum
livro).
fazendo-nos recordar Pacheco da Silva Júnior e Lameira de Andrade (1887:
539):
A significação de muitos adjetivos1 é determinada pelo lugar que eles ocupam na
proposição, e este fato era estranho ao latim. No sentido próprio ocupa o lugar
que especialmente lhe convém; no figurado é proclítico (...)
O exemplo de certo é curioso. Notícia certa e certa notícia (...)
Consideremos, agora, a obra de 1999.
3. A obra publicada em 1999
A Moderna Gramática Portuguesa (37.ª edição revista, ampliada e atualizada), explica o ilustre professor no Prefácio, foi dada a lume pelos mesmos
propósitos que o fizeram produzir a de 19612, ou seja, principalmente o de
levar ao magistério brasileiro um compêndio que, escrito em um estilo simples,
divulgasse os recentes resultados dos estudos da linguagem. Nesta nova edição,
especifica o professor (1999: 19):
Amadurecido pela leitura atenta dos teóricos da linguagem, da produção acadêmica universitária, das críticas e sugestões gentilmente formuladas por companheiros
Na época da escritura da gramática desses autores, os pronomes eram, na maioria das vezes,
incluídos nos Adjetivos.
2
A edição consultada é a de 1970.
1
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da mesma seara e da leitura demorada de nossos melhores escritores, verá que
se trata aqui de um novo livro.
Com ele concordamos de a a z. Essa obra difere da anterior desde a
partição — agora não são mais sete, mas cinco os capítulos (Fonética e Fonologia, Gramática Descritiva e Normativa, Pontuação, Noções Elementares de
Estilística e Noções Elementares de Versificação) — até o tratamento dado ao
conteúdo. Na realidade, quer-nos parecer, realmente, que não estamos diante
de uma gramática, mas de gramáticas dentro de uma, conversando entre si
e conosco, seus leitores, o que fica ressaltado num outro trecho do Prefácio
(1999: 19-20):
A orientação aqui adotada resulta da nossa convicção de que ela [a gramática]
também pode oferecer elementos de efetiva operacionalização para uma proposta
de reformulação da teoria gramatical entre nós, especialmente quando aplicada
a uma obra da natureza desta Moderna Gramática Portuguesa, que alia a preocupação de uma científica descrição sincrônica a uma visão sadia da gramática
normativa, libertada do ranço do antigo magister dixit e sem baralhar os objetivos
das duas disciplinas.
E, agora, o objetivo dessa obra amplia-se porque é também o de fornecer
subsídios “aos colegas de magistério e pesquisa” a fim de que possam refletir
para melhorar a “vigente nomenclatura gramatical em nossos compêndios
escolares”. (1999: 20). Se na obra anterior a homenagem era ao centenário do
nascimento de Said Ali, nesta, começa fazendo referência ao mesmo Said Ali
e a Eugênio Coseriu, Herculano de Carvalho, Mattoso Câmara e em especial
ao estudioso Emílio Alarcos Lhorach, na ocasião falecido.
As obras diferem desde a Introdução. Nesta, a Introdução começa traçando
uma Breve História Externa da Língua Portuguesa, para, na sequência, apresentar a Teoria Gramatical dividida em seis partes, a saber: Linguagem: suas
dimensões universais, Planos e níveis da linguagem como atividade cultural,
Língua histórica e língua funcional, Sistema, norma, fala e tipo linguístico,
Propriedades dos estratos de estruturação gramatical e Dialeto — Língua
Comum — Língua Exemplar. Correção e exemplaridade. Gramática científicas
e gramática normativa. Divisões da gramática e disciplinas afins. Linguística
do texto, bastante ancorado em Coseriu. Comparemos:
A linguagem humana articulada se realiza de maneira concreta por meio de
formas específicas chamadas atos linguísticos, que se organizam em sistemas
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de isoglossas (isos = gual; glossas = línguas) denominadas tradicionalmente
línguas (Bechara, 1999: 30)
Tenemos, por consiguiente, tres conceptos de ‘lengua’ bien distintos: 1) suma
de actos lingüísticos concretos; 2) condición de todo acto lingüístico, sprachbesitz individual; 3) sistema isoglósico que reúne los aspectos comunes de los
sprachbesitze individuales de los hablantes de una comunidad. [cf. Jespersen, 3]
(Coseriu, 1967, p.23)
Também quando trata de ato linguístico:
Embora o ato lingüístico, por sua natureza, seja individual, está vinculado indissoluvelmente a outro indivíduo pela natureza finalística da linguagem, que é
sempre um falar com os outros (...)
podemos ouvir a voz de Coseriu que, sobre isso, assim se expressou:
(...) cada uno realiza la actividad lingüística individualmente. Es cierto que el
hablar se da en el diálogo, pero ello ocurre aún en el hablar uno consigo mismo.
Porque el hablar no es por ello una actividad coral o una actividad efectivamente
conjunta, puesto que cada uno realiza esta actividad bajo su propia responsabilidad y asumiendo cada uno sólo la comprensión por parte del otro, por parte del
interlocutor (1982:16).
E ainda quando arrazoa sobre os planos e níveis da linguagem:
(...) a linguagem como atividade humana universal do falar, que se realiza individualmente, mas sempre de acordo com tradições de comunidades históricas, pode
diferenciar-se em três planos relativamente autônomos (Bechara, 1999: 29)
lembra-nos Coseriu, (id., p. 30), quando lemos, por exemplo, “Volvamos ahora
a la distinción misma de los três planos y a su importância para la Lingüística
Integral”. Ou ainda no momento e em que trata do Sistema, Norma, Fala e Tipo
Linguístico, em que retoma o consagrado artigo de Coseriu Sistema, Norma
y Habla.
Bechara considera, de fato, a distinção formulada por Said Ali entre
gramática descritiva e normativa. A primeira, diz, é “uma disciplina científica
que registra e descreve (...) um sistema lingüístico em todos os seus aspectos
(...)”, já a normativa que, segundo ele, não é uma disciplina com finalidade
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científica, busca elencar “os fatos recomendados como modelos da exemplaridade idiomática para serem utilizados em circunstâncias especiais do convívio
social”. Acrescenta que a gramática normativa “recomenda como se deve falar e
escrever segundo o uso e a autoridades dos escritores corretos e dos gramáticos
e dicionaristas esclarecidos” (1999: 52).
Finalizando essa Introdução, ensina que a gramática descritiva “registra
e descreve todos os aspectos de uma língua particular, homogênea e unitária”
e, por isso, costuma pode ser apresentada nos capítulos: Fonética e fonologia3, Morfologia, Sintaxe (julgando ser melhor, Morfossintaxe), Semântica
e Estilística, partição essa seguida, como já dissemos, em sua obra: I – Fonética e Fonologia; II – Gramática Descritiva e Normativa (as unidades do
enunciado) e, como na obra anterior, delega a um capítulo à parte o estudo
da pontuação: III – Pontuação, e termina discutindo, também como na obra
anterior, Noções Elementares de Estilística (IV) e Noções Elementares de
Versificação (V).
Sob a perspectiva da Linguística Textual, devemos dizer que as vozes de
Halliday e Hasan (1976) fazem-se ouvir na discussão a respeito de hipertaxe
(ou superordenação), hipotaxe (ou subordinação), parataxe (ou coordenação),
antitaxe (ou substituição), assim como se percebem vozes de conceituados
estudiosos do século XX, como Beaugrande, Dressler, Van Dijk e outros:
Outro ponto que há de merecer a nossa atenção é o fato de que, partindo dos
três tipos fundamentais e opositivos de coordenação em português (a aditiva,
adversativa e a alternativa), essas construções podem ainda exprimir relações
internas de “dependência”, o que à primeira vista , parece paradoxal, porque
é o mesmo que dizer que a “parataxe inclui a hipotaxe” ou que “a parataxe
também é hipotaxe”. Na realidade o que temos nesses casos é, a uma só vez,
parataxe e hipotaxe, mas não no mesmo nível de estruturação gramatical. No
nível da oração tais construções são paratáticas; mas exprimem ao mesmo
tempo relações internas de dependência no que diz respeito ao sentido do discurso... Na realidade, são independentes no nível da oração, mas são elementos
subordinados do ponto de vista de unidades de conteúdo no nível superior do
texto. (1999: 49)
Vê-se aí sua oposição clara à ngb que conservou as coordenadas conclusivas e explicativas, recuperando, com novos argumentos, a posição de
Notamos aqui que, na obra anterior, o autor adotara, como o fizera Mattoso Câmara Jr., o
termo fonêmica.
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Maximino Maciel que via a existência de somente três tipos de coordenadas:
aditivas, adversativas e alternativas
E, à página 322, continua:
Não incluir tais palavras entre as conjunções coordenativas já era lição antiga
na gramaticografia de língua portuguesa; vemo-la em Epifânio Dias e entre brasileiros, em M. Maciel, mas últimas versões de sua gramática. Perceberam que
tais advérbios marcam relações textuais e não desempenham o papel conector
das conjunções coordenadas...
Esta proposta também é abraçada, por exemplo, pela Gramática da Língua
Portuguesa de Mira Mateus (1983), que distingue 4 tipos de junção: conjunção,
disjunção, contrajunção e subordinação.
As limitações do trabalho levam-nos a restringir a análise à segunda parte da gramática, quando o professor ensina classes de palavras e categorias
gramaticais.
3.1 Classes de palavras e categorias gramaticais
O autor começa apontando o fato de, muitas vezes, os estudiosos terem
englobado numa mesma relação palavras pertencentes a grupos diferentes,
como substantivo, adjetivo, artigo, numeral, pronome, verbo, advérbio, preposição, conjunção e interjeição, ou seja, as aristotélicas categorias gramaticais.
Esclarece:
Um exame atento facilmente nos mostrará que a relação junta palavras de natureza
e funcionalidade bem diferentes com base em critérios categoriais, morfológicos e
sintáticos misturados. E o elemento que as diferencia são os diversos significados
que lhes são próprios (1999: 109).
Relativamente a esses diversos significados, propõe que as palavras
sejam divididas em lexemáticas (substantivos, adjetivo, verbo e advérbio),
categoremáticas (pronome e numeral) e morfemáticas (artigo, preposição e
conjunção), explicando:
Isso não impede que uma palavra categoremática possa também aparecer com
significado instrumental, como é o caso de meu lápis, onde meu tem o significado
categorial “adjetivo” e o significado instrumental em relação ao substantivo lápis,
determinado como singular e do gênero masculino (1999: 112).
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Discutiremos, a seguir, uma das categoremáticas, ou seja, o pronome,
referindo-nos especialmente aos pessoais e demonstrativos.
3.1.1 O Pronome
O autor começa explicando (1999:162):
Pronome — é a classe de palavras categoremáticas que reúne unidades em número limitado e que se refere a um significado léxico pela situação ou por outras
palavras do contexto.
Depois, aponta as duas pessoas do discurso: eu e tu e, lembrando Benveniste (1969), afirma que a 3.ª pessoa, indeterminada, aponta para outra pessoa
em relação aos participantes do evento comunicativo.
Continua asseverando que, semanticamente, os pronomes indicam dêiticos, isto é, “verdadeiros gestos verbais, como indicadores, determinados ou
indeterminados, ou de uma dêixis contextual (...) ou de uma dêixis ad óculos,
que aponta ou indica um elemento presente ao falante” (1999: 162).
Interessa-nos lembrar que a característica gestual do pronome, especialmente do pessoal, havia sido outrora apontada por João Ribeiro (1887: 25),
recordando-se de Darmesteter:
... todos os pronomes têm por função situar coisas e pessoas no tempo ou no espaço; parecem deixar subentender um gesto, e se a expressão não fosse paradoxal,
poder-se-ia chamá-los gestos falados.
Fato esse apontado por Bechara em nota à página 163.
Dá prosseguimento ao estudo da função dêitica do pronome, relembrando os ensinamentos de Brugmann (1904), K. Bühler (1978) e Herculano de
Carvalho (1983), acrescentando que ela será anafórica se apontar para um
elemento já mencionado no texto, ou catafórica, quando o elemento ainda não
foi enunciado ou não está presente no discurso.
Citemos Halliday e Hasan (1976: 33):
We shall find useful in the discussion to have a special term for situational reference. This we are referring to as EXOPHORA, our EXOPHORIC reference;
and we could contrast it with ENDOPHORIC as a general name for reference
within the text:
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REFERENCE
[situational]
exophora
[to preceding text]
Anaphora
[textual]
endophora
[to following text]
Cataphora
A classificação dos pronomes é a mesma oferecida na obra de 1961,
ou seja: pessoais, possessivos, demonstrativos (abarcando também o artigo
definido), indefinidos (abarcando também o artigo indefinido), interrogativos
e relativos.
E, como o fizera na primeira, propõe também a bipartição dessa classe em
substantivos e adjetivos, informando: “o pronome pode aparecer em referência a substantivo claro ou oculto: Meu livro é melhor que o teu” (1999: 163).
Notamos que, desde aquela época, já mostrara a função referencial que podem
exercer os pronomes.
Continua caminhando nos mesmos passos de outrora até ampliar a discussão a respeito do “o” como pronome: “Considera-se o pronome demonstrativo,
de emprego absoluto, invariável no masculino e singular, quando funciona com
o valor ‘grosso modo’ de isto, isso, aquilo ou tal” (1999: 167).
Também vem ampliada a discussão acerca do pronome mesmo. Aponta
o fato de alguns estudiosos terem se insurgido contra o uso anafórico do demonstrativo mesmo, substantivado pelo artigo, precedido ou não de preposição,
sem apontarem razões para tal. Exemplificando: “Os diretores presos tiveram
habeas corpus. Apareceu um relatório contra os mesmos, e contra outros”
(1999: 168).
Nesse sentido, Milner (2003: 85-86) especifica:
Uma seqüência nominal possui, então, uma referência, a qual é o segmento da
realidade que lhe é associado. Contrariamente ao que se crê muitas vezes, este
segmento não é, necessariamente, espácio-temporal: um nome “abstrato” não é
menos associável a um segmento da realidade que um nome “concreto”, simplesmente o segmento não é referido da mesma maneira. Isto posto, basta refletir
um instante para observar que não é uma seqüência nominal qualquer que está
associada a um segmento qualquer; ou melhor, uma língua natural comporta um
léxico, e uma das propriedades deste último é a de distinguir as unidades segundo
o tipo de segmento que elas podem designar.
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O que não podemos deixar de registrar aqui é que o autor insere no
tratamento dos pronomes, digamos, um subcapítulo acerca de seu emprego:
Emprego dos pronomes (1999: 173) e é nesse momento que mais ainda inova
e acrescenta, porque executa papel de verdadeiro cientista da linguagem, não
só mostrando a norma, mas: a) discutindo o uso da língua: “Casos há, entretanto, em que esta norma pode ser contrariada. (...) A língua exemplar insiste
na lição do rigor gramatical, recomendando nestes casos (...)”; b) mostrando
o estado atual, as etapas por que passou o idioma: “São apenas dois estágios
diferentes de evolução” (trazendo diversas construções com o “se”) (1999:
178); c) não só revelando a ambiguidade produzida por alguns termos, mas
apontando soluções: “Se o autor usasse o possessivo seu, o coração poderia ser
tanto de Margarida quanto do rapaz” (referindo-se ao emprego de “seu e dele”
no exemplo: “Com efeito, Margarida gostava imenso da presença do rapaz,
mas não parecia dar-lhe uma importância que lisonjeasse o coração dele”);
e também discutindo o uso dos pronomes com valor afetivo, em construções
como: “O nosso herói... Meu prezado amigo, Qual cansadas, seu Antoninho”,
ou para dar ênfase, em: “O teu amor era como o íris do céu: era a minha paz,
a minha alegria, a minha esperança”.
E, no emprego do demonstrativo, aponta (1999: 187): “A posição indicada
pelo demonstrativo pode referir-se ao espaço, ao tempo (demonstrativos dêiticos
espaciais e temporais) ou ao discurso (demonstrativo anafórico)”.
Apothelóz (2003: 66) ensina, relembrando Lyons (1980: 261):
As expressões lingüísticas cuja interpretação se apoia nos parâmetros de lugar,
tempo e pessoa da situação de enunciação são chamadas de dêiticas. Por dêixis,
entende-se portanto ‘a localização e a identificação das pessoas, objetos, processos,
eventos e atividades [...] em relação ao contexto espácio-temporal acreditado e
mantido pelo ato de comunicação, e a participação, em regra geral de um locutor
único e de pelo menos um interlocutor.
E, ultrapassando em definitivo a limitação da frase, continua nosso professor:
Esse (e flexões) aplica-se aos seres que pertencem ou estão perto da 2.ª pessoa,
isso é, daquela com quem se fala (...) Na correspondência, este se refere ao lugar
donde se escreve, e esse denota o lugar para onde a carta se destina. A referência
à missiva que escrevemos se faz com este, esta. (...)
Levando-nos a Halliday e Hasan (1999: 57):
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The circumstantial (adverbial) demonstratives here, there, now and then refer
to the location of a process in space or time, and they normally do so directly,
not via the location of some person or object that is participant in the process:
hence they typically function as Adjuncts in the clause, not as elements within
the nominal group. They have a secondary function as Qualifier, as in that man
there. The remaining (nominal) demonstratives this, these, that, those, and the
refer to the location of some thing, typically some entity — person or object —
that is participating in the process.
Completando: (…) No discurso, quando o falante deseja fazer menção
ao que ele acabou de narrar (anáfora) ou ao que vai narrar (catáfora), emprega
este (e flexões), exemplificando, com Camilo Castelo Branco:
Entrou com Calisto na sala um pouco mais tarde que o costume, porque fora
vestir-se de calça mais cordata em cor e feitio. Não me acoimem de arquivista
de insignificâncias. Este pormenor (isto é: o pormenor a que fiz referência)
das calças prende mui intimamente com o cataclismo que passa no coração de
Barbuda. (p. 189)
Apothéloz e Chanet (2003: 144) registram a importância desse emprego
do demonstrativo:
Um primeiro fator que parece praticamente comandar o demonstrativo é o caso
em que o substantivo predicador escolhido opera uma recategorização mais ou
menos metafórica do processo, ou comporta uma conotação axiológica evidente,
uma iluminação (‘eclairage’) no sentido de Grice (1990). E é isso mesmo que
vemos no exemplo citado. O narrador esclarece, relembra, ilumina o anteriormente
dito por meio do demonstrativo.
E funções textuais dos pronomes vão sendo apontadas no capítulo: “na
construção do discurso, se quer juntar uma explicação, comparação, ou se lhe
quer apontar característica saliente, costuma-se repetir esse nome (...) acompanhado do demonstrativo esse (e flexões)”.
4. Considerações Finais
Pudemos constatar, pela análise desse tópico gramatical, que o Professor
Evanildo Bechara, como já nos referimos anteriormente, apresenta-nos, na edição
revisada e ampliada de sua gramática, não somente uma, mas várias gramáticas.
Ousamos mesmo dizer que não temos somente um tratado descritivo e/ou nor-
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mativo da Língua Portuguesa, mas também um tratado que aponta a necessidade
de, na instância de procedermos a estudos da língua, caminharmos para além
dos limites da frase, fazendo interagir interlocutor e contexto, por exemplo.
Vemos um enriquecimento grandioso na obra de 1999, no tocante ao estudo
do pronome, já que, somadas as importantes considerações gramaticais, temos,
praticamente, um outro e inovador capítulo acerca do emprego do pronome.
Nesse sentido, transcrevemos aqui as palavras de Kehdi (2001: 44): “não
podemos deixar de destacar o fato de que o professor Bechara não dissocia
um sólido embasamento de Linguística (aqui, marcadamente coseriano) do
aprofundamento de questões de língua portuguesa”.
Neste trabalho, que é apenas um pequeno estudo dos pronomes, frente à
densidade do capítulo, podemos afirmar com certeza que, se a obra de 1961 já
merece uma leitura atenta por parte dos estudiosos, a de 1999 é um verdadeiro
presente, fonte inesgotável de pesquisas àqueles que se dedicam ao estuda da
linguagem.
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O pronome na Moderna Gramática Portuguesa de Evanildo Bechara
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Aspectos da língua literária de Vieira no
Sermão da Sexagésima
Horácio Rolim de Freitas
UERJ, LLP
Para um estudo da língua literária no século XVII, escolhi aquele por
quem tenho profunda admiração: Pe. Antônio Vieira.
Nascido em 6 de fevereiro de 1608, estamos comemorando o seu quadringentésimo aniversário.
Nasceu em Portugal, mas veio, menino, para o Brasil, onde estudou no
Colégio dos Jesuítas, na Bahia.
Alfredo Bosi diz: “Existe um Vieira brasileiro, um Vieira português e um
Vieira europeu.” Portanto, Vieira também é nosso.
O texto escolhido é o Sermão da Sexagésima, proferido na Capela Real,
em Lisboa, em março de 1655, onde o exímio orador expõe sua parenética,
permitindo-nos apreciar as características do estilo barroco.
Para se ter certa dimensão de sua obra e de seus objetivos, é preciso lê-lo,
lê-lo inúmeras vezes, haurir de sua logicidade o empenho que marcou a trajetória de um dos três maiores oradores que o mundo conheceu. Antecederam-no
Demóstenes na Grécia e Cícero na Roma antiga.
Foi um verdadeiro agitador em favor dos índios e dos humildes. Sua linha
de pregador foi por ele descrita na frase: Ecce exiit qui seminat, seminare. (Cristo
diz “que saiu o pregador evangélico a semear”). Com base nesse “exiit seminare”, Vieira desenvolve sua parenética (< grego παραινετική), exortação sagrada,
explicitando-a no referido sermão: “As partes que constituem o perfeito orador
são três: ensinar, deleitar e mover.” Na lógica de Vieira, a função do orador não
reside apenas no persuadir, mas “persuadir a agir bem e com justiça.”
A oratória de Vieira dominava o público ouvinte, ao mesmo tempo em
que urdia críticas aos governantes e aos palacianos. Eis o trabalho do pregador:
fazer frutificar a palavra de Deus. Quando não ocorre, diz Vieira, “é por falta
do pregador ou por falta dos ouvintes.” No não frutificar, os pregadores culpam
os ouvintes. A esses responde Vieira:
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“Os ouvintes, ou são maus ou são bons; se são bons,
faz neles grande fruto a palavra de Deus; se são maus,
ainda que não faça neles fruto, faz efeito.”
Daí defender a doutrina que devem pregar os oradores. Ao fazê-lo, Vieira
demonstrou coragem diante dos reis e da Inquisição. Não era o agradar a que
visaria, mas ao fazer o bem.
Sempre baseando-se em passagens bíblicas, através delas explica a pregação:
“Brada, ó Pregador; e não cesses; levanta a tua voz como
trombeta, desengana o meu povo, anuncia-lhe seus pecados
e dize-lhe o estado em que está.”
No estilo de Vieira pode-se destacar o contraditório, por vezes paradoxal;
a exposição do inverossímil, do aparentemente impossível, não doutrinando
sobre o óbvio, mas procurando torná-lo estranho e surpreendente, eis o mistério
das idéias traduzido pelo paradoxo, pelas hipérboles e pelas metáforas. Estas
figuras, dentre outras, vão-nos traçando o painel do discurso parenético do
orador. Aparecem as contradições entre o céu e o terreno; o materialismo e o
espiritualismo; o claro-escuro, o fusionismo ou unificação dos detalhes. Chegamos, assim, ao princípio estético da época e do estilo de Vieira: o barroco.
Aqui, justifico esta breve introdução antes de abordar a língua literária
através do estilo de Vieira, lembrando a lição de Sílvio Elia: “O estilo não é
só o homem, mas o assunto, o tema, a obra. O estilo é, portanto, o homem e a
obra. Acrescente-se, também, o momento em que se situa a visão do homem: é
o vir a ser histórico, daí estilo clássico, barroco, romântico etc.”
O Barroco
O estilo barroco pretende traduzir o conflito espiritual do homem. Usa de
temas opostos amor/ dor; vida/ morte, juventude/ velhice etc., cuja finalidade é
infundir aversão à vida terrena e conduzir à vida espiritual. De suas características destaca-se o chamado fusionismo, isto é, unificação dos detalhes através da
fusão da luz e das trevas, fusão do racional e do irracional, ausência de limites.
Essa visão do barroco é bem explicada por Matias Aires, quando diz: “Vemos
as coisas pelo modo com que as podemos ver, isto é, confusamente, e por isso,
quase sempre as vemos como elas não são.”
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Aspectos da língua literária de Vieira no Sermão da Sexagésima
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Daí o homem barroco ser formado de inclinações opostas entre si, e tem
nele uma propensão oculta, que, numa aparente busca, só procura mudanças.
Ainda é Matias Aires quem nos diz que “a arte barroca traz consigo uma espécie
de rudeza: a formosura atrai por si mesma, afasta-se da regularidade e, aí, se
esforça e produz coisas admiráveis, ao fugir das proporções e das medidas cujo
resultado é uma fantasia tosca, não polida, mas brilhante e forte.”
Essa fuga das proporções e da regularidade foi bem definida por Damaso
Alonso, ao explicar a poesia castelhana na época de Góngora: “o gosto pelo
conceito, a metáfora rebuscada e a complexidade.”
Em síntese, caracteriza-se o barroco pelo adorno, pelos efeitos contraditórios de cor, luz e obscuridade. Esta obtém-se através da metáfora, das inversões
e da pomposidade das imagens. Há a preocupação de uma forma rebuscada.
Contudo, há de se distinguir dois veios do barroco: o cultista e o conceptista. O primeiro visa a tornar a linguagem culta, a aristocratizá-la. É a preocupação de rebuscar a forma, através da metáfora, do hipérbato, da hipérbole,
da mitologia. Ex.: “Era do ano a estação florida em que o farsante roubador
da Europa...”, versos de Luís de Góngora em Soledad Primavera. Estação
florida corresponde àquela em que o Sol entra no signo de Touro. Esse signo
do Zodíaco lembra passagem mitológica que descreve a transformação de
Júpiter em touro para raptar Europa. Essa é a descrição da primavera no mês
de abril na Europa.
Conceptismo ou conceitismo: há o rebuscamento da substância, das idéias.
Dentre várias figuras destaca-se a metáfora, mas a metáfora no seu aspecto
intelectual.
Eis a vertente do barroco que marca o estilo de Vieira.
Cumpre, aqui, fazer uma distinção entre estilo literário e língua literária.
A língua literária é “a comunicação envolta na expressão.” (Sílvio Elia).
Já o estilo vai além da frase de Buffon: “Le style est de l’homme même.” Não
é só do homem, mas da obra, do tema versado, o assunto, a obra e o momento.
Creio que por essa explicitação de Sílvio Elia se poderá melhor entender
o estilo do Pe. Antônio Vieira. Eis que a língua literária que Vieira nos deixou
se fundamenta no método parenético, isto é, παραινετική, do verbo παραινέω
(exortar), daí a exortação, a eloquência sagrada.
Sua lógica é a base fundamental de seus raciocínios.
Santo Agostinho já ensinava que a regra de conhecer o verdadeiro sentido
de qualquer texto é existir coerência com os antecedentes e os consequentes.
O verdadeiro sentido do texto reside na concordância com o que ficou atrás e
o que se segue adiante.
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A técnica do estilo de Vieira se desenvolve através da dialética, do paralelismo bíblico, partindo da periferia para o âmago do assunto, como se pode constatar
no Sermão da Sexagésima, onde, atacando a ordem religiosa dos dominicanos,
combate o cultismo, expondo e aplicando a verdadeira arte de pregar.
Inicia o belo sermão com um paralelismo bíblico, através da passagem
de S. Mateus, XIII, 3:
“Ecce exiit qui seminat, seminare” (Diz Cristo que saiu o pregador evangélico a semear a palavra divina.)
Assim Vieira desenvolve o seu raciocínio:
Entre os semeadores do Evangelho há uns que
saem a semear, há outros que semeiam sem sair.
Ah Dia do Juízo! Ah Pregadores! Os de cá,
achar-vos-eis com mais Paço; os de lá com mais passos.
Exiit seminare.
Aponta e critica aqueles que pregam nos palácios — os dominicanos que
utilizavam as rebuscadas formas de cultismo. Diferentes são os que saem a
pregar por toda parte.
Lembra outra passagem bíblica quando Cristo manda pregar os Apóstolos
pelo mundo, com estas palavras: Euntes in mundum universum, praedicate omni
creaturae (Ide por todo o mundo e pregai a toda a criatura).
Os Apóstolos iam pregar a todas as nações do mundo:
haviam de achar homens degenerados, haviam de
achar homens homens, haviam de achar homens
brutos, haviam de achar homens troncos, haviam de
achar homens pedras.
Destaquemos os traços marcantes do barroco: as perífrases verbais, repetindo-as, causa o eco. A metáfora visual: homens troncos, homens pedras.
O paralelismo bíblico: Vieira parte de passagem do Evangelho e a ela
compara o fato terreno para o qual quer chamar a atenção.
O Semeador e a Seara: Nessa passagem, Vieira descreve as grandes dificuldades do semeador.
A maior é a que se tem experimentado na seara aonde eu fui, e para onde venho.
Tudo o que aqui padece o trigo, padecemos lá os semeadores. Se bem advertirdes,
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Aspectos da língua literária de Vieira no Sermão da Sexagésima
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houve aqui trigo mirrado, trigo afogado, trigo comido (volucres coeli commederunt
illud), e trigo pisado. Tudo isto padeceram os semeadores evangélicos da missão
do Maranhão. Houve missionários afogados, porque uns se afogavam na boca do
grande rio das Amazonas; houve missionários comidos, porque a outros comeram
os bárbaros na ilha de Aroans; houve missionários mirrados, mirrados de fome e
de doença, onde tal houve que, andando dias perdido nas brenhas, matou somente
a sede com o orvalho que lambia das folhas. Não me queixo nem o digo, Senhor,
pelos semeadores, só pela seara o digo, só pela seara o sinto. Para os semeadores
isto são glórias: mirrados sim, mas por amor de vós mirrados afogados sim, mas
só por amor de vós afogados; comidos sim, mas só por amor de vós comidos;
pisados e perseguidos sim, mas só por amor de vós perseguidos e pisados.
Vieira, nessa passagem, compara o mundo com a natureza, representada
pelo trigo, e a semente da religião, representada pelo pregador. Observe-se
que descreve as fases por que passou o trigo, assim como as vicissitudes dos
pregadores são os detalhes que carreiam para uma unificação, traço esse do
barroco conhecido como fusionismo. Outra marca do barroco reside em causar
aversão à vida terrena, aproximando o fiel à vida religiosa, representada, aqui,
nos pregadores afogados e comidos. Essa descrição que desagrada visa a outro
traço do barroco: a estética do feio. Outros meios de traduzir o fusionismo estão
presentes na parenética de Vieira: a ausência de limite na pontuação, predominando a vírgula e o ponto e vírgula, assim como a coordenação. O eco é outro
expediente desse estilo para causar a repercussão fônica e melhor penetrar no
ouvinte; faz-se, por exemplo, através da anáfora: trigo mirrado, trigo afogado,
trigo comido etc.
Ainda temos nessa passagem um exemplo da riqueza dialética de Vieira:
o uso da ambigüidade quando diz: “trigo pisado, e os pregadores perseguidos
e pisados”. O sentido de pisados, ao final, traduz magoados, ofendidos.
Crítica à pregação dos cultistas (religiosos dominicanos)
O estilo há de ser muito fácil e muito natural. Por isso Cristo comparou o pregar
ao semear: Exiit, qui seminat, seminare. “Que diferente é o estilo violento e
tirânico que hoje se usa! Ver vir os tristes passos da Escritura, como quem vem
ao martírio, uns vêm acarretados, outros vêm arrastados, outros vêm estirados,
outros vêm torcidos, outros vêm despedaçados; só atados não vêm!
Pinta o estilo cultista com cores sombrias — é a estética do feio cujo
objetivo é despertar a aversão para as coisas terrenas. Usa a aliteração e a anáfora que traduzem bem a imagem dos passos tristes, do arrastar, do acarretar,
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do esticar, do despedaçar. É a visão que Vieira tem do discurso cultista: As
palavras não comovem, entristecem, não salvam, martirizam, vêm arrastadas,
sem unidade, não têm consistência.
É oportuno aqui lembrar a lição de Cícero no Orator, onde distingue a
atuação dos sofistas e as do orador:
Importa distinguir a maneira do sofista da do orador, pois a pretensão deles é de
enfeitarem de flores a eloquência, mas diferem dos oradores nisso: seu fim não
é persuadir, mas agradar; no pensamento preferem o brilho à justeza; amam as
digressões, as metáforas ousadas, servem-se das palavras como fazem os pintores
com as cores.
Diz-nos Vieira:
Já que falo contra os estilos modernos, quero alega por mim o estilo do mais antigo
pregador que houve no mundo. E qual foi ele? (Fonte da passagem: Salmo 18
de Davi: “E o Altíssimo fez soar a sua voz. E foram descobertos os fundamentos
do mundo.”)
O mais antigo pregador que houve no mundo foi o Céu Coeli enarrant gloriam
Dei et opera manuum eius annuntiat Firmamentum [Os céus descrevem a glória
de Deus e o Altíssimo anuncia as obras (as criações) pelas mãos dele] Suposto
que o Céu é pregador, deve ter sermões e deve ter palavras. As palavras são as
estrelas, os sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o curso delas.Vede
como diz o estilo de pregar do Céu, com o estilo que Cristo ensinou na terra. Um
e outro é semear: a terra semeada de trigo, o céu semeado de estrelas. O pregar
há de ser como quem semeia, e não como quem ladrilha ou azuleja. Sim, Padre,
porém esse estilo de pregar não é pregar culto. Mas fosse! (Que importa?). Este
desventurado estilo que hoje se usa, os que o querem honrar chamam-lhe culto,
os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra. O
estilo culto não é escuro, é negro e muito cerrado.
Compara a composição dos Sermões à formação celestial: em ambas há
ordem, harmonia e curso. Quem semeia o faz com constância e com clareza,
fazendo-se entender com a pregação do púlpito, não pela conversação exuberante
da forma como quem ladrilha ou azuleja. Critica a linguagem eivada de ornatos
através de metáforas, hipérboles, catacreses, trocadilhos e outras figuras, redundando na supremacia da imaginação sobre as idéias, sobre o raciocínio. Daí ser
descrito como escuro, ininteligível, não atingindo o objetivo da semeadura.
Os cultistas têm desbatizados os santos e cada autor que alegam é um enigma. O
Cetro Penitente dizem que é Davi, como se todos os cetros não foram penitência;
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Aspectos da língua literária de Vieira no Sermão da Sexagésima
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o Evangelista Apeles, que é São Lucas, a Águia de África, Santo Agostinho, a
Boca de Ouro, São Crisóstomo (isto é: Chrysós: ouro e stóma: boca). Se houvesse um homem que assim falasse na conversação, não havíeis de ter por néscio?
Pois o que na conversação seria necedade, como há de ser discrição no púlpito?
Uma mata brava, uma confusão verde. Eis aqui o que acontece aos sermões deste
gênero. Como semeiam tanta variedade, não podem colher coisa certa. Quem
semeia misturas, mal pode colher trigo.
Outra crítica faz Vieira ao estilo cultista, rebuscado pelos ornatos. Aqui
o uso da antonomásia, isto é, uma perífrase pelo nome próprio: Boca de Ouro,
por Crisóstomo, o Cetro penitente por Davi. Pergunta se alguém que assim
falasse não seria considerado ignorante. Se na conversação tal emprego seria
uma estultícia, como há de ser julgada no púlpito?
Com a frase: uma mata brava, uma confusão verde, exemplifica o caráter
pictórico do barroco, através da metáfora cultista, marca desse estilo decorativo para obter efeitos específicos. Ou seja, no cultismo, “há a preocupação
com tornar a linguagem culta; há uma tentativa de aristocratizar a expressão
literária”, repetindo aqui a lição de Domício Proença.
— Mas dir-me-eis: Padre, os pregadores de hoje não pregam do Evangelho, não
pregam das Sagradas Escrituras? Pois como não pregam a palavra de Deus?
— Esse é o mal. Pregam palavras de Deus, mas não pregam a palavra de Deus. Qui
habet sermonem meum, loquatur sermonem meum vere. — disse Deus a Jeremias.
Vieira parte do Capítulo XXIII, parágrafo 18, do livro de Jeremias: “O
profeta que tem um sonho, conte o sonho; e o que tem a minha palavra, fale a
minha palavra fielmente”
Pregar de — o posvérbio intensifica a idéia, expressa interesse. A dialética
de Vieira em função de sua parenética. Aqui vale-se da indeterminação do substantivo palavras e do uso do artigo que marca o substantivo (Pottier — marco
de classe). Distinção entre o conceptismo por ele utilizado e o estilo cultista
dos dominicanos.
Eis a síntese do barroco conceptista na passagem: “As razões não hão de
ser enxertadas, hão de ser nascidas. O pregar não é o recitar. As razões próprias
nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória, e os homens não
se convencem pela memória, senão pelo entendimento.”
Veio o Espírito Santo sobre os Apóstolos, e quando as línguas desciam do Céu,
cuidava eu que se lhe haviam de pôr na boca; mas elas foram-se pôr na cabeça.
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Horácio Rolim de Freitas
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Pois por que na cabeça e não na boca, que é o lugar da língua? — Porque o que
há de dizer o pregador, não lhe há de sair só da boca, há-lhe de sair pela boca, mas
da cabeça. O que sai só da boca para nos ouvidos; o que nasce de juízo penetra
e convence o entendimento.
Nesta passagem temos a síntese do barroco conceitista. Vieira, através
da argumentação, de sutilezas do raciocínio, desenvolve o processo gerador
por oposições.
O pregar — já aqui o infinitivo substantivado valoriza a ação — deve
apresentar razões, motivos nascidos do entendimento. Diferente será o pregar
recitativo, cantado com idéias de outrem. Estas ficam apenas na memória e não
convencem, ao passo que aquelas, pelo entendimento, convencem o ouvinte.
Temos, assim, o princípio dialético (> διά = através — λέγειν = discursar,
argumentar, daí a διαλεκτική, ‘raciocinar com método’, isto é, representa a
incessante união dos contrários: é a tese e a antítese.
“As línguas, cuidava eu que se lhes haviam de pôr na boca (significa: haviam de ser colocadas na boca), mas elas foram-se pôr na cabeça (significa: elas
foram-se pôr = dirigiram-se) personificação através da voz medial dinâmica. Daí
a tese: cabeça = entendimento x antítese boca = memória sem convencimento;
tese do juízo (convence, penetra) x antítese boca (para nos ouvidos).
Vê-se que Vieira tem um poderoso sentido de unidade. Aponta e critica a
multiplicidade caótica em muitos pregadores; levantam muitos assuntos e não
seguem nenhum. Condena a desagregação heterogênea e, aí, demonstra seguir,
na defesa da unidade, a lição de Horácio:
Supõe-se que um pintor tenha a idéia de juntar à cabeça de um homem o pescoço
de cavalo e cobrir de penas coloridas o resto do corpo composto de elementos
heterogêneos; de tal modo que um formoso busto de mulher terminasse com a
cauda de um peixe. A esse espetáculo, meus amigos, poderíeis conter o riso?
(Risum teneatis, amici?)
Para concluir, chamamos a atenção para a ausência da obra de Vieira nos
estudos linguísticos superiores, fato este muito precisamente explicado pelo Prof.
Evanildo Bechara em artigo publicado em Na ponta da língua, onde nos diz:
A exemplaridade da língua de Vieira continua a ser amparo às lições de nossos
gramáticos, até o momento em que, com o advento da perspectiva sincrônica in-
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Aspectos da língua literária de Vieira no Sermão da Sexagésima
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troduzida pelo estruturalismo linguístico, os clássicos foram postos de quarentena,
quando não de todo abolidos, e com eles a língua literária, ainda a contemporânea,
pelas hostes mais iconoclastas da linguística moderna.
Felizmente, passada a ênfase iconoclasta, já se vai a pouco e pouco revendo estes
pontos de vista, com a ajuda de teóricos da linguagem, entre os quais Vittore
Pisani, Antonino Pagliaro e Eugenio Coseriu.
Lembro, aqui, que conhecer a língua é conhecê-la em todos os seus níveis
socioculturais e em todas as fases históricas por que passou.
Sigamos os ensinamentos do Mestre Bechara: Sejamos poliglotas em
nossa língua.
Referências bibliográficas
ALONSO, Damaso. La Lengua Poética de Góngora. 3.ª ed. Madrid, 1961.
BECHARA, Evanildo. “Vieira como Padrão de Exemplaridade”. In: Bechara,
Evanildo et alii. Na ponta da língua. Rio de Janeiro: Lucerna/LLP, n.° 5,
2003, p. 200.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix,
1988.
ELIA, Sílvio. “A língua literária”. In: Bechara, Evanildo et alii. Na ponta da
língua. Rio de Janeiro: Lucerna/LLP, n.° 4, 2002, p. 101.
HADDAD, Jamil Almansur. Os Sermões. São Paulo: Edições Melhoramentos,
1963.
HORACE. Oeuvres complètes. Paris: Librairie Garnier Frères, tome deuxième,
1950.
JUCÁ (FILHO), Cândido. “A projeção de Camões na literatura barroca”. Revista
Filológica. Rio de Janeiro, n.º 2, 1955.
PROENÇA FILHO, Domício. Estilos de Época na Literatura. Rio de Janeiro,
Editora Liceu, 1969.
SILVA EÇA, Matias Aires Ramos da. Reflexões sobre a verdade dos homens.
Edições Cultura, s/d.
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A linguagem literária contemporânea no Brasil:
a elaboração da oralidade
Dino Preti
PUC-SP
Parece-nos difícil definir a língua de um período literário. Haveria, por
exemplo, um padrão literário coincidente com a época contemporânea?
A língua de um período histórico é a consequência de uma série de fatores
histórico-sociais. Assim, há uma sociedade renascentista influenciada pela cultura greco-latina que explica o estilo clássico, no século XVI. Assim, também,
uma revolução dos costumes da sociedade dos princípios do século XIX marcou
as transformações da literatura e da linguagem romântica.
Ainda que essas generalizações possam explicar a obra e o estilo de uma
série de escritores dessas épocas, seria preciso também mostrar que, dentro de um
mesmo cenário histórico, muitos artistas construíram sua obra com originalidade
e ousadia, fugindo aos cânones de seu tempo e criando uma linguagem, um
estilo, muitas vezes, precursor de revoluções artísticas que se lhes seguiriam.
Se pensarmos na literatura contemporânea, poderíamos estabelecer como
seus limites um período compreendido entre os últimos trinta anos do século
passado e a atualidade. Ou, precisando melhor, desde as revoluções estudantis
de 1968 até os dias atuais. No Brasil, esse período é marcado por uma série de
transformações, entre as quais lembraríamos as mudanças políticas, o processo
de democratização do país, a alteração dos costumes, o crescimento do papel
da mulher na sociedade, a crescente força da mídia (o quarto poder) e, mais
recentemente, o surgimento da internet.
A maior liberalidade trazida pelo regime democrático, com influência
decisiva da sociedade norte-americana, conduziu também a uma aceitação, a
uma valorização da língua falada pelo povo, e a um registro popular elaborado,
que passou a ter aceitação maior nos textos literários.
Nos estudos linguísticos, o aparecimento de teorias, como a Análise da
Conversação, conduziu a uma nova compreensão da língua oral, demonstrando que não se pode estabelecer uma dicotomia rígida entre fala e escrita, pois
há influências recíprocas. Um consenso a que se chegou nesses estudos é que
a língua falada não é desorganizada, como se costumava afirmar e tem uma
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Dino Preti
gramática própria que os falantes aprendem no uso diário e cujas categorias de
análise diferem da gramática da língua escrita.
Assim, na organização textual e interacional da fala, temos marcadores
conversacionais (então, daí, certo, bem, eu acho etc.), repetições e paráfrases,
parentéticas, sobreposição de vozes, anacolutos, hesitações, correções, frequên­
cia de construções impessoais de fundo atenuador etc. Na sintaxe, a predominância de períodos curtos, justaposição, frases incompletas (as chamadas frases
mínimas, suficientes para a compreensão do ouvinte e que se interrompem
quando isso acontece), baixa ocorrência de subordinação (principalmente de
orações adverbiais). As estruturas sintáticas, segundo Chafe (1985: 111), não
ultrapassariam sete palavras e dois segundos de duração. No vocabulário, o
uso, cada vez mais generalizado da gíria, mas também dos vocábulos obscenos
ou injuriosos, como elementos constantes da linguagem afetiva.
A literatura contemporânea reflete mais intensamente essas características.
Mas, é preciso lembrar que existe uma diferença estabelecida pela situação de
comunicação entre falante e ouvinte, de um lado, e escritor e leitor, de outro,
com a presença ou ausência dos recursos da produção linguística face a face,
para demonstrarmos que a escrita (literária ou não) jamais será a representação
absoluta e fiel da fala.
Talvez a literatura contemporânea seja a que apresenta maior número de
exemplos da influência da fala na escrita, sendo que essa oralidade no texto
literário corresponde a uma maior perda do preconceito contra a língua falada,
refletida no diálogo das personagens e até mesmo na voz narrativa. Mas, a rigor,
nenhum autor escreve para passar a idéia de uma fala transcrita.
O que se observa em alguns escritores é um hábil processo de elaboração, para
chegar ao leitor a ilusão de uma realidade falada. O escritor emprega as marcas da
oralidade que permitem ao leitor reconhecer no texto uma realidade linguística que
se habituou a ouvir ou que, pelo menos, já ouviu alguma vez e que incorporou a
seus esquemas de conhecimento frutos de sua experiência como falante (tanto para
usarmos a denominação introduzida por Deborah Tannen e Cythia Wallat). Esses
esquemas são também os responsáveis pelas suas estruturas de expectativa, isto
é, o que o ouvinte ou (o leitor) espera que o falante (ou escritor) fale (ou escreva)
e em que tipo de linguagem o faça. Por exemplo: ninguém esperaria encontrar
numa manchete de jornal conceituado um vocábulo obsceno que, no entanto,
estaria dentro de suas expectativas num discurso oral exacerbado.
Com relação à literatura, é comum encontrarmos juízos sobre certos textos,
apontando sua ligação com a linguagem falada. Afirma-se, por exemplo, que os
modernistas teriam procurado aproveitar a linguagem oral, quando escreviam,
para passarem a idéia de sua aproximação com povo, o que, talvez seja verdadeiro,
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A linguagem literária contemporânea no Brasil: a elaboração da oralidade
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em escritores como Alcântara Machado e o próprio Mario de Andrade, este muito
crítico em relação ao papel dos modernistas na integração com o povo1.
Essa aproximação com a linguagem popular é mais perceptível nos diálogos das personagens, em particular em alguns prosadores que se revelam muito
hábeis em levar para as obras o uso linguístico de sua época. E isso ocorre,
não só na literatura mais recente, em prosadores como João Antônio, Rubem
Fonseca, Luís Vilela, mas também em alguns autores do passado, como Manuel
Antônio de Almeida, Aluísio de Azevedo, Lima Barreto, entre outros.
Com referência à linguagem dos narradores (em particular, os de primeira
pessoa), a estratégia ficcional sempre encontrou sérios problemas para elaborar a
língua falada. Mas há exemplos na literatura contemporânea de narradores-personagens cuja linguagem representa bem essa elaboração da fala, com o objetivo de
atingir um diálogo “real”. É o caso de Rubem Fonseca, um dos grandes nomes da
literatura brasileira contemporânea, no conto “O caso de F.A.” Quando se inicia
a narrativa, o advogado (narrador-personagem) está no apartamento de encontros
amorosos do conselheiro de estado, referido no conto pela abreviatura F.A., olhando
pela janela, supomos, e refletindo sobre a paisagem, enquanto o seu interlocutor já
lhe está referindo um outro assunto, de que não temos conhecimento. De repente,
o advogado passa da reflexão para uma pergunta sobre o que está ouvindo:
“A cidade não é mais aquilo que se vê do Pão de Açúcar. Na casa de
Gisele?”
A frase mostra uma postura comum na conversação espontânea, em que,
muitas vezes, estamos distraídos quando alguém nos fala, mas voltamos à realidade, em função de alguma coisa que nosso interlocutor nos diz. Quer dizer,
o autor inicia o conto como se um diálogo estivesse em andamento. Trata-se
de um recurso original do ponto de vista estilístico, que nos introduz na naturalidade da fala: os tópicos ou subtópicos paralelos cruzando-se com um tópico
principal em desenvolvimento.
A dificuldade do escritor torna-se maior com os narradores ou personagens- narradores de baixa condição social, sem cultura, o que se reflete em sua
linguagem. É o que ocorre, por exemplo, no conto “Paulinho Perna Torta” de
um dos grandes escritores da literatura contemporânea: João Antônio que levou
para suas histórias, não apenas personagens de rua, mas os bairros paulistanos,
Numa conferência que pronunciou em 1942 fez um balanço crítico sobre o movimento
modernista e conclamou os estudantes a que se aproximassem mais do povo e não agissem
como os intelectuais de 22:
“Façam ou se recusem a fazer arte, ciências, ofícios. Não fiquem nisso [clara referência ao
que fizeram os modernistas] espiões da vida, espiando a multidão passar. Marchem com as
multidões.” (Andrade, Mário. O movimento modernista).
1
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Dino Preti
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numa descrição poética, mas nem por isso menos dramática. Nesse conto, o
narrador-personagem conta sua história, desde sua condição de menino de rua,
engraxate na beirada da antiga estação de trens Júlio Prestes, até tornar-se um
famoso gigolô da zona de prostituição de São Paulo.
Valeria a pena lembrar um trecho desse conto, para percebermos melhor
o recurso estilístico do autor. Assim, falando de sua vida de moleque como
engraxate, diz o narrador, depois de referir-se ao início de sua vida na rua:
Comecei por baixo, baixo, como todo sofredor começa. Servindo para um, mais
malandro, ganhar. Como todo infeliz começa.
E mais adiante:
Bem. Engraxando lá nas beiradas da Estação Júlio Prestes. Era um na fileira lateral
dos caras. Entre velhos fracassados em outras virações e moleques como eu e até
melhores, gente que tinha pai e mãe e que chegava lá da Barra Funda, da Luz,
do Bom Retiro... Porque isso de engraxar é uma viração muito direitinha. Não
é frescura não. A gente vai lá, ao trambique da graxa e do pano, porque anda a
faminta apertando. E é mais sério do que aquilo que os otários com suas vidas
mansas, do que os bacanas e os mocorongos com suas prosas moles julgam. Aquela
molecada farroupa com que eu me virava tirava dali uma casquinha para acudir lá
suas casas; e, engraxando, os velhos, sujos e desdentados, escapavam de dormir
amarrotados nas ruas, caquerados e de lombo no chão. Como bichos.
A Júlio Prestes dava movimento e éramos explorados por um só. O jornaleiro.
Dono da banca dos jornais e das caixas de engraxar, do lugar e do dinheiro, ele
só agarrava a grana. Engraxar, não; ele lá com seus jornais.
Eu bem podia me virar na Estação da Luz. Também rendia lá. Fazia ali muito
freguês de subúrbio e até de outras cidades. Franco da Rocha, Perus, Jundiaí...
Descidos dos trens, marmiteiros ou trabalhadores do comércio, das lojas, gente
do escritório da estrada de ferro, todo esse povo de gravata que ganha mal. Mas
que me largava o carvão, o mocó, a gordura, o maldito, o tutu, o pororó, o mango,
o vento, a granuncha. A seda, a gaita, a grana, a gaitolina, o capim, o concreto,
o abre-caminho, o cobre, a nota, a manteiga, o agrião, o pinhão. O positivo, o
algum, o dinheiro. Aquele um de que precisava para me agüentar nas pernas
sujas, almoçando banana, pastéis, sanduíches. E com que pagava para dormir a
um canto com os vagabundos lá nos escuros da Pensão do Triunfo. Onde muita
vez eu curti dor-de-dente sozinho, quieto no meu canto, abafando o som da boca,
para não perturbar os outros (João Antônio. 1975: 61-64).
Há alguns aspectos importantes nesse texto elaborado a partir de vocabulário e estruturas típicas da língua oral. Em primeiro lugar, a repetição, marca
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A linguagem literária contemporânea no Brasil: a elaboração da oralidade
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inconfundível da oralidade. Assim, sabemos que, na língua oral, repetindo,
o falante alivia a densidade das informações, dando tempo ao ouvinte de
compreendê-lo melhor e, por outro lado, reunindo condições de organizar ou
reorganizar o seu próprio discurso. Por isso, a repetição se tornou um recurso
discursivo tipicamente didático.
Na língua escrita, a repetição pode ser um índice de estilo descuidado e
as regras estilísticas recomendam que se use a sinonímia, que reflete um texto
mais elaborado. Todavia, a repetição pode ser um recurso intencional de estilo,
desde que concorra para dar um ritmo à prosa que tentaria, assim, aproximar-se
da própria frase oral.
Todo o texto de João Antônio revela esse cuidado pelo ritmo da frase, pela
repetição, não apenas de vocábulos, mas também de estruturas sintáticas:
Comecei por b aixo
baixo
Como todo infeliz começa
como todo sofredor começa
A repetição de sinônimos é um índice indiscutível da elaboração do texto
literário. Pretendendo manter o texto num registro coloquial de confissão, pois
o narrador faz do leitor seu confidente, o autor optou pela repetição e até, num
momento mais dramático, por uma gradação de sinônimos gírias da palavra
dinheiro, em três segmentos, separados intencionalmente no ritmo, por um
ponto final, até o vocábulo definitivo: o dinheiro que, embora não seja gíria, é
o mais comum e conhecido por qualquer falante:
Mas me largava
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o carvão
o mocó
a gordura
o maldito
a granuncha
o pororó
o mango
o vento
o tutu
a seda
a gaita
a grana
a gaitolina
o pinhão
o concreto
o abre-caminho
o cobre
a nota
a manteiga
o agrião
o capim
o positivo
o algum
o dinheiro
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O que nos parece importante lembrar no uso desse artifício estilístico do
autor é que se trata de aproveitar um vocabulário que, em princípio, estaria à
altura de um narrador de baixo nível de escolaridade. Ao ler, não discutimos
o problema da verossimilhança desse discurso, porque somos envolvidos por
uma estratégia da narração ficcional, pela qual o autor, elaborando cuidadosamente o texto, alcança um dos objetivos da ficção literária: a criação de uma
ilusão da realidade.
Enfim, numa visão rápida, seria, então, esse aproveitamento da oralidade
um dos índices mais originais, de que se serve a literatura contemporânea, como
pudemos observar em João Antônio.
Referências bibliográficas
CHAFE, Wallace. “Linguistics differences produced by differences between
speaking and writing”. In: D. OLSON et al. (eds.) Language and Learning:
the Nature and Consequences of Reading and writing. Cambridge: Cambridge University Press, 1985, p. 105-23.
TANNEN, Deborah & WALLAT, Cynthia. “Interactive Frames and Knowledge
Schemas in Interation: Examples from a Medical Examination/Interwiews”.
In: TANNEN, Deborah (eds) Framing in Discourse. New York: Oxford;
Oxford University Press, 1993.
Textos
FONSECA, Rubem. Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.
FERREIRA FILHO, João Antônio). Leão-de-chácara. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
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A língua literária do século xviii
Paulo Roberto Pereira
UFF
Entre a escrita pós-barroca e a pré-romântica, passando naturalmente pela
escrita artística do Arcadismo/ Neoclassicismo, a nascente literatura brasileira
do século XVIII moldou uma língua literária que influenciou as correntes
que solidificaram, com a primeira geração romântica, as bases da literatura
nacional.
Essa língua literária, utilizada por autores que produziram suas obras entre
1700 e 1800 traz a influência determinante do português culto da metrópole,
particularmente da atmosfera cultural da Universidade de Coimbra, para onde
se dirigiam os brasileiros a fim de receber a formação universitária. A existência do nativismo, a particularizar os textos desses autores denominados luso-brasileiros, deve ser examinada em virtude de vários historiadores da literatura
brasileira, como Antônio Cândido, Sérgio Buarque de Holanda, José Aderaldo
Castello1, a terem discutido. Quem é autor brasileiro: Antônio Vieira e Tomás
Antônio Gonzaga que nasceram em Portugal e escreveram parte significativa
de suas obras no Brasil; ou Antônio José da Silva e Matias Aires que, nascidos
no Brasil, vivenciaram toda a existência adulta em Portugal?
No século XVIII, temos dois grupos de autores. O primeiro, de nascidos
no Brasil, que viveram em Portugal e nunca retornaram ao nosso país, como
os irmãos Alexandre e Bartolomeu de Gusmão, os também irmãos Matias Aires e Teresa Margarida da Silva e Orta, além do poeta e dramaturgo Antônio
José da Silva. Esse grupo de intelectuais, incluído no movimento literário do
Barroco ibérico, pertence de fato àquela fase de transição entre os estertores do
exagero barroco e o alvorecer do Iluminismo, em que a língua literária torna-se
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos 1750-1880.
10.ª ed. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras/ Ouro sobre Azul, 2006; HOLANDA,
Sérgio Buarque de. Capítulos de literatura colonial. Org. Antonio Candido. São Paulo: Brasiliense, 1991; CASTELLO, José Aderaldo. Manifestações literárias do período colonial:
1500-1808/1836. 3.ª ed. São Paulo: Cultrix, 1972.
1
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Paulo Roberto Pereira
mais natural, pelo uso de uma terminologia mais precisa e clara, que denota a
contaminação dos ideais políticos da burguesia culta em ascensão.
Já o segundo grupo é filho da Arcádia Romana na sua vertente literária
e é também produto da Ilustração ideológica do enciclopedismo francês.
Constituído de numerosos poetas, o Neoclassicismo ou Arcadismo brasileiro
está envolvido pelos ideais libertários de sua época. No entanto, como lembra
Antônio Cândido, “O Arcadismo é o grande ausente, (dos estudos universitários) apesar de sua posição chave no processo de formação, não apenas da
literatura brasileira, mas da própria definição da identidade nacional, porque, na
América Latina, literatura e ideologia andaram durante muito tempo de mãos
ostensivamente dadas.”2 Assim, a Literatura Brasileira, na segunda metade do
século XVIII, está balizada pela retomada da tradição da preceptista clássica,
atualizada pelo pensamento racionalista da Europa pós-renascentista, que ensejou o aparecimento de algumas poéticas que serviram de modelo às literaturas
de língua portuguesa. É possível rastrear, na produção literária brasileira do
tempo, o ideal ético e estético dos árcades voltados para a aurea mediocritas
horaciana de cariz estoico-epicurista e as propostas filosófico-iluministas de
fundamento político-social. Os escritores neoclássicos brasileiros, na sua maioria, produziram uma obra comprometida, que abrigava, como eixo ideológico,
um nativismo fundamentado no enciclopedismo progressista e no despotismo
esclarecido, o que confirma prender-se o processo autonomista a fatores que
extrapolavam o literário. A poesia da época, consubstanciada no rígido esquema
da Poética clássica, sofria a inevitável influência dos teorizadores que, sob o
magistério de Horácio, se consideravam donos da verdade literária, como Nicolas Boileau-Despréaux, em França; Ignácio de Luzán, em Espanha; e Cândido
Lusitano (Francisco José Freire), em Portugal.
São três os poetas épicos do movimento em que se confirma a união da
lisonja com a reivindicação política, num momento em que o nativismo se confundia com o processo de aspiração autonômica. O primeiro, Cláudio Manuel
da Costa, considerado o chefe da escola árcade no Brasil, é autor do medíocre
poema heróico Vila Rica, publicado postumamente em 1839, que circulara em
manuscritos naquele período. O segundo é Frei José de Santa Rita Durão, o
mais velho desses autores, que teve a sua epopéia O Caramuru, editada em
1781. O seu projeto de imprimir cunho épico à nossa história foi baseado no
argumento nativista de que “os sucessos do Brasil não mereciam menos um
RUEDAS DE LA SERNA, Jorge Antonio. Arcádia: tradição e mudança. Prefácio Antonio
Candido. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995, p. XI.
2
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A língua literária do século xviii
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Poema, que os da Índia. Incitou-me a escrever este o amor da Pátria.”3 Assim, a
nascente literatura brasileira assistiu os nossos poetas árcades cultivarem, num
verdadeiro canto de cisne, a epopéia segundo o modelo camoniano. Apesar
de Sílvio Romero exaltar o livro de Santa Rita Durão, como o mais patriótico
poema brasileiro da época colonial, O Caramuru já nasceu cediço para o seu
tempo quanto à língua literária. É que o venerando frei, segundo um apanhado
quase consensual dos estudiosos de sua obra, prendeu-se demais à história do
seu herói romanesco — Diogo Álvares Correia, o Caramuru — e foi excessivamente servil, na estrutura épica do poema, a Camões, até no emprego da
oitava-rima. O terceiro e último autor de espírito heróico no arcadismo é José
Basílio da Gama, que teve seu poema épico O Uraguai, publicado em 1769,
portanto bem antes do de Santa Rita Durão. O interessante é que o livro de
Basílio, embora anterior ao de Durão, é mais moderno nos temas tratados e na
língua literária, pelo equilíbrio e bom gosto na construção das imagens. O Uraguai é uma obra singular que espelha a Guerra Guaranítica contra os Sete Povos
das Missões, os índios evangelizados por jesuítas espanhóis, que se recusavam
a sair de suas terras, negociadas pelos países ibéricos no Tratado de Madrid.4
O poema retrata o choque entre a realidade da conquista colonial e a utopia
de um universo edênico simbolizado pelo Novo Mundo, em que o indígena
encarna alegoricamente o homem americano. Nele se encontra a história do
herói indígena Sepé e os amores de Cacambo e Lindóia, que deram justa fama
ao criador de O Uraguai, devido aos versos que se tornaram célebres, como o
decassílabo do episódio de suicídio de Lindóia: “Tanto era bela no seu rosto a
morte!” Parece que o juízo dos contemporâneos e dos pósteros continua válido
sobre a grandeza do poeta Basílio da Gama, confirmando o dizer de Machado
de Assis de que “quanto à versificação nenhum outro, em nossa língua, a possui
mais harmoniosa e pura.”5
Do Arcadismo brasileiro na poesia lírica devem-se destacar, em primeiro
lugar, os escritores Cláudio Manuel da Costa, Inácio José de Alvarenga Peixoto e
Tomás Antônio Gonzaga, que se envolveram em um dos principais movimentos
políticos do Brasil, que antecedeu a independência nacional: a Inconfidência
Mineira. A língua literária desses autores difere muito entre si. A obra poética
de Cláudio revela um autor preocupado em obedecer aos cânones tanto linguís DURÃO, Frei José de Santa Rita. Caramuru. Poema épico do descobrimento da Bahia.
Lisboa: Régia Oficina Tipográfica, 1781, p. 3.
4
PEREIRA, Paulo Roberto. “Basílio da Gama, a diplomacia setecentista e o índio missioneiro”.
In: Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian. Paris: 1996, 271-281.
5
ASSIS, Machado de. Obra completa. Volume III. Rio de Janeiro: Aguilar, 1973, p. 815.
3
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tico quanto formal, como se depreende dos seus textos críticos e da sua obra
poética, conforme se pode observar nos seus sonetos, que estão entre os mais
perfeitos já escritos em língua portuguesa.
Já Alvarenga Peixoto, autor de pequena produção poética calcada na disciplina do modelo neoclássico, exalta, no seu nativismo, as riquezas da terra
como a flora, a fauna e o minério. Seus poemas contribuem para uma tomada de
consciência do ethos nacional que começava a nos diferenciar nesse caldeirão
multirracial, formado por “Estes homens de vários acidentes, / pardos e pretos,
tintos e tostados,” retratados no célebre “Canto Genetlíaco”, de 1782.6 Quanto
ao estilo e à língua literária, os nossos escritores neoclássicos ainda estavam
presos ao movimento árcade internacional, distante da liberdade vocabular de
utilização intensa de brasileirismos, oriundos de africanismos e tupinismos,
como já empregara Gregório de Matos no século XVII. A temática já é americana, a começar por Cláudio, em que a natureza típica das serras mineiras pôde
contrapor-se no mesmo espaço geográfico à natureza vista por Silva Alvarenga,
sob domínio do sol tropical.
Finalmente, tem-se a poesia de Gonzaga, autor do célebre livro Marília
de Dirceu. Esse ouvidor inconfidente, em que a vida mescla-se com a obra,
poetou em uma forma artística muito particular — a lira — que revela um verso
maleável e dúctil. Infelizmente, nem sempre sua língua literária demonstra a
impregnação da realidade brasileira na fatura estética das suas liras. A presença
do vocabulário coloquial do cotidiano mineiro na sua lírica está representada,
sobretudo, pela Lira 3, da terceira parte, que começa pela estrofe: “Tu não verás,
Marília, cem cativos/ tirarem o cascalho e a rica terra, / ou dos cercos dos rios
caudalosos, / ou da minada serra.”7 A influência de Gonzaga na poesia brasileira
foi avassaladora desde o aparecimento, em 1792, em Lisboa, da primeira parte
das liras de Marília de Dirceu quando o seu autor estava sendo julgado no Rio
de Janeiro por crime de lesa-majestade por suposta participação na Conjuração Mineira. Poucos anos depois, quando o antigo Ouvidor de Vila Rica já se
encontrava exilado em Moçambique, foi publicada, em 1799, a segunda parte
das celebradas liras. A autêntica terceira parte de Marília, entretanto, só veio a
lume em 1812, dois anos após a morte do poeta. Essa obra influenciou desde
os românticos até os modernos, devido a passagens extraordinárias como a Lira
LAPA, M. Rodrigues. Vida e obra de Alvarenga Peixoto. Rio de Janeiro: Instituto Nacional
do Livro/ MEC, 1960, p. 35-36.
7
GONZAGA, Tomás Antônio. Obras completas I: Poesias. Cartas chilenas. Edição crítica
6
de M. Rodrigues Lapa. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro/ MEC, 1960, p. 96-97.
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II da segunda parte: “Eu tenho um coração maior que o mundo, / tu, formosa
Marília, bem o sabes: / um coração, e basta, / onde tu mesma cabes.”8 Tais
versos vieram a repercutir no poema “Mundo Grande”, do livro Sentimento do
mundo, de Carlos Drummond de Andrade: “Não, meu coração não é maior que
o mundo. / É muito menor. / Nele não cabem nem as minhas dores.”9
Pode-se ainda falar de outro texto poético emblemático de Gonzaga, as
Cartas Chilenas, uma das grandes sátiras políticas da Literatura Brasileira, no
período colonial. Esse poema envereda por uma senda aberta por Gregório de
Matos no século XVII, em que os poderosos de plantão não estavam livres da
crítica ferina sobre os costumes da nascente sociedade brasileira. Aproveitando-se do modelo de Montesquieu nas Lettres Persanes, a ação das Cartas é
transportada para o Chile, que simboliza Minas Gerais. Gonzaga, na pele de
Critilo, narra a Doroteu as aventuras do governador Luiz da Cunha Menezes,
crismado de Fanfarrão Minésio. Essa sátira é a crítica mais violenta já feita
contra uma autoridade colonial no Brasil, a demonstrar a tomada de consciência
política das elites mineiras. Para traçar o seu vasto afresco sobre essa sociedade
de grandezas e misérias, construída na miragem do ouro e dos diamantes, o
cantor de Marília utiliza uma língua literária livre dos espartilhos neoclássicos,
em que o vocábulo culto de herança greco-latina convive com a palavra chula,
de origem popular. O ambiente gerador dessas missivas satíricas tem produzido grande polêmica, a começar pela questão da língua utilizada pelo poeta.
Alguns editores do poema, como Luís Francisco da Veiga e Afonso Arinos,
tentam manter o português corrente retratado nas Cartas; já Rodrigues Lapa,
no seu clássico estudo, faz acirrada crítica a essas duas edições, exatamente
por não tomarem a língua utilizada pelo poeta sob a perspectiva do português
europeu10. Num simples exame dos manuscritos, verifica-se que a “linguagem
vulgar” da sátira gonzagueana está eivada de termos exclusivos da língua falada
no Brasil. É necessário, pois, uma edição moderna capaz de levar em conta
a tradição manuscrita, com o seu vasto corpus de variantes, confrontando-o
com a tradição impressa para, enfim, poder-se fixar um texto mais próximo da
última vontade do autor.
A melhor edição, em conjunto, da obra literária desses três escritores pode
ser consultada na monumental A poesia dos inconfidentes, preparada por uma
Idem, p. 105-106.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Edição de Gilberto Mendonça Teles;
introdução de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p. 87.
10
LAPA, M. Rodrigues. As Cartas Chilenas: um problema histórico e filológico. Rio de Janeiro,
MEC/ INL, 1958. p. 115-116.
8
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equipe de especialistas, sob a coordenação de Domício Proença Filho, publicada
em 1996, pela Editora Nova Aguilar, que contém, em um só volume, todos os
poemas de Gonzaga, Cláudio e Alvarenga Peixoto.
Além desses cinco poetas, a arcádia ultramarina brasileira revelou também
outros líricos, como Manuel Inácio da Silva Alvarenga que, depois de formado, passou boa parte da sua vida no Rio de Janeiro como professor. Quando
estudante na Universidade de Coimbra, Silva Alvarenga publicou o poema
herói-cômico O Desertor das Letras, em que vergastava o ensino escolástico
e defendia as reformas empreendidas pelo Marquês de Pombal. Ao retornar
ao Brasil, este autêntico ilustrado colonial organizou associações culturais na
capital da Colônia, fundando, em 1786, a Sociedade Literária do Rio de Janeiro. Essa significativa atividade do poeta e professor Silva Alvarenga acabou
proibida pelo déspota reinol Conde de Rezende, Vice-Rei de 1790 a 1801, que
o perseguiu e o prendeu nas masmorras da Fortaleza de Santo Antônio.
O principal livro de poemas de Silva Alvarenga é Glaura, publicado em
1799. Nessa obra emprega uma dicção poética singular que capta o ambiente
nacional impregnado de nativismo, o que não significa, necessariamente, abandono da convenção neoclássica, mas apenas reforço da peculiar expressão local,
no intuito de exaltar a geografia privilegiada de seu país, em que os rondós
e madrigais, de intensa vibração, confirmam que “a Natureza que comparece
em Glaura faz de Silva Alvarenga o poeta do nosso Arcadismo que mais atenção lhe devotou”.11 Cultor de poesia arcádica que prenunciava características
pré-românticas, era um defensor da boa arte de escrever e procurava evitar,
em seus poemas, laivos de erudição que prejudicassem a composição da obra.
Daí poder-se dizer que a língua literária de Silva Alvarenga é mais flexível
do que a da maioria dos seus contemporâneos, reveladora da sua mestria em
que, “adotando nos rondós versos curtos, é hábil na expressão da clareza dos
sentimentos e na elaboração do estrato fônico dos poemas, perfeitos no ritmo,
na rima, inclusive nas rimas internas.”12
Quanto aos autores nascidos no Brasil, que se destacaram na primeira
metade do Setecentos, a língua literária por eles utilizada difere, em muitos
aspectos, da dos integrantes da “Escola Mineira”. Pertence a esse grupo o padre
Bartolomeu Lourenço de Gusmão, cognominado “O Voador”, que ficou célebre,
em sua época, por conta da invenção da “Passarola”, uma primitiva máquina
MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira. São Paulo, Cultrix, 1983. V. 1, p. 287.
LUCAS, Fábio. “Silva Alvarenga – luzes e trevas dos setecentos”. In: Autos da devassa:
prisão dos letrados do Rio de Janeiro, 1794. 2.ª ed. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2002, p. 29.
11
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aerostática precursora da navegação aérea13, cujos escritos se perderam. Já a
seu irmão, o diplomata Alexandre de Gusmão, são atribuídas obras originais
e algumas traduções. Dos seus escritos, o que de fato resta são algumas cartas
que, devido ao empenho generoso de Andrée Rocha, foram reunidas em livro.14
Mesmo sendo sua correspondência demonstradora do seu talento literário, a
verdade é que Alexandre de Gusmão sobrevive ainda hoje por ter defendido,
na década de 40 do século XVIII, a proposta de reconhecimento das fronteiras brasileiras, no acordo que selou o Tratado de Madrid. No dizer de Jaime
Cortesão, foi Alexandre de Gusmão quem “preparou, concebeu e negociou o
célebre Tratado, com que se esboça pela primeira vez a estrutura política da
América do Sul.”15
No segundo grupo de intelectuais brasileiros da primeira metade do século XVIII, que saiu do país ainda jovem e não mais retornou, estão os irmãos
paulistas Teresa Margarida da Silva e Orta e Matias Aires Ramos da Silva de
Eça. A escritora Teresa Margarida é autora do romance Aventuras de Diófanes,
publicado em 1752, cuja importância normalmente destacada é cronológica,
por ser ela a primeira mulher brasileira a publicar uma narrativa de ficção.16
Diferente é o caso de Matias Aires. É ele, sem favor, o primeiro filósofo nascido
no Brasil e um dos principais pensadores da cultura portuguesa. Matias Aires
nasceu em São Paulo em 1705 e seguiu muito jovem para Portugal, acompanhando o pai que retornara à pátria depois de enriquecer no Brasil. A obra que
consagrou Matias Aires foram as Reflexões sobre a vaidade dos homens, publicada em 1752. Todos os elogios que vêm sendo feitos a esse extraordinário
livro talvez não aquilatem a sua total grandeza. No dizer de Alceu Amoroso
Lima, este paulista insigne “foi seguramente o espírito mais sutil de toda a
literatura luso-brasileira antes de Machado de Assis.” A partir do versículo
do Eclesiastes “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade” (Vanitas vanitatum, et
omnia vanitas) o nosso pensador constrói uma sólida obra fundamentada no
pensamento cético epicurista imbuída dos ideais emergentes do Iluminismo,
TAUNAY, Afonso de E. Bartolomeu de Gusmão: inventor do aeróstato. São Paulo: Leia,
1942.
14
GUSMÃO, Alexandre de. Cartas. Edição de Andrée Rocha. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, 1981.
15
CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid. 5 partes, 9
13
16
tomos. Rio de Janeiro, Ministério das Relações Exteriores/ Instituto Rio Branco,
1950-1956. Ver especialmente, parte IV, tomos I e II, p. 7, tomo I.
ORTA, Teresa Margarida da Silva e. Obra reunida. Edição de Ceila Montez. Rio de Janeiro:
Graphia, 1993.
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ao fazer uma cerrada crítica à sociedade do seu tempo. À expressividade e à
pujança da sua língua literária, que tem sido reconhecida por tantos estudiosos,
dedicou-se, sobretudo, o professor Jacinto do Prado Coelho.17 Contemporaneamente, o principal ensaísta a trabalhar a obra capital de Matias Aires é Antônio
Pedro Mesquita que afirma ser as Reflexões sobre a vaidade dos homens “um
dos grandes momentos da prosa portuguesa de todos os tempos.”18
Cabe destacar, por fim, a figura do poeta e dramaturgo Antônio José da Silva, conhecido pela antonomásia de O Judeu. Vindo ao mundo no Rio de Janeiro,
no mesmo ano de Matias Aires, viveu sob a égide do governo de Sua Majestade
fidelíssima d. João V, que dirigiu o império português de 1707 a 1750.
Antônio José seguiu criança para Portugal acompanhando os pais presos
pela Inquisição, acusados de praticarem os ritos judaicos, em uma época em que
os descendentes de Moisés, conhecidos como cristão-novos, convertidos à força
ao cristianismo, não podiam seguir sua fé religiosa livremente. Em Portugal o
futuro teatrólogo estudou e se formou em direito, escrevendo e encenando suas
comédias paralelamente à sua atividade na vida forense. Preso duas vezes sob
a acusação de praticar o judaísmo às ocultas, Antônio José acabou garroteado
e morto pela Inquisição em Lisboa no auto de fé de 18 de outubro de 1739.
Tinha o escritor somente 34 anos. O caso desse escritor, descendente de judeus,
não é isolado, pois o também carioca Antônio de Moraes Silva (1755-1824), o
nosso primeiro dicionarista, nunca se refez das lembranças que a Inquisição lhe
deixou, a ponto de não participar do movimento libertário pernambucano.
A totalidade da obra de Antônio José é composta de oito comédias e dois
poemas, havendo ainda dois outros textos de autoria duvidosa que lhe vêm sendo
atribuídos. Sua dramaturgia completa, reunida pela primeira vez em 1744, foi
publicada com o nome de Teatro Cômico Português e organizada de acordo
com a ordem cronológica de sua subida à cena nos cinco anos em que o autor
escreveu esses textos. A riqueza e a originalidade da dramaturgia de Antônio
José, o Judeu — uma das mais importantes escritas em língua portuguesa —,
se caracteriza pelo emprego simultâneo de recursos cênicos extraordinários, só
possíveis através dos bonecos ou bonifrates. Outro fator importante é a utilização
da música, composta por Antônio Teixeira especialmente para suas comédias,
denominadas “óperas”, que foram as primeiras cantadas em língua portuguesa.
COELHO, Jacinto do Prado. “O vocabulário e a frase de Matias Aires”. In: Boletim de
Filologia. Lisboa: tomo XV, 1955.
18
AIRES, Matias. Reflexões sobre a vaidade dos homens. Prefácio de António Pedro Mesquita.
Fixação do texto e notas de Violeta Crespo Figueiredo e Jacinto do Prado Coelho. 2.ª ed.
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005, p. 10.
17
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Assim, a sua obra compõe-se de diferentes linguagens, fornecendo ao público
uma arte totalizadora pelo uso de diversos recursos teatrais de sua época.19
Na constituição de sua língua literária, o texto escrito empregado é a prosa
em vez do verso, colocando, na boca das suas personagens, a linguagem popular recheada de ditos e termos de uso corrente na época, desfazendo, assim,
os valores pomposos da linguagem barroca. Por isso, é comum no diálogo
travado entre os criados, denominados à maneira espanhola de “graciosos”, a
linguagem ser apresentada com forte realismo, misturando a forma culta com
a popular. Nessas comédias as falas das personagens populares, traduzindo
o espírito antiabsolutista, trazem à tona uma crítica aos valores que tinham
como modelo a linguagem empregada pela nobreza. Assim, pode-se dizer que
é pela linguagem que o escritor setecentista faz rir seu público. É por ela que
se poderá compreender o universo dramático do primeiro grande poeta cômico
nascido no Brasil.
19
PEREIRA, Paulo Roberto. As comédias de Antônio José, o Judeu. São Paulo: Martins,
2007.
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As gramáticas do português de Fernão de Oliveira (1536)
e de Bento Pereira (1672)
Gonçalo Fernandes
CEL, UTAD
1. A Grammatica da Lingoagem Portuguesa (Lisboa 1536) de
Fernão de Oliveira
Fernão de Oliveira (1507-1581), um “exímio cultor do português do seu
tempo (…), erudito e sábio, latinista, renovador da retórica de Quintiliano” (Assunção 1997: 42), terá nascido em Aveiro em 1507, ingressou na ordem de S.
Domingos em 1520, abandonou o hábito, publicou a Grammatica da Lingoagem
Portuguesa em 1536, entrou para a hierarquia eclesial secular, foi aprisionado
por galés francesas entre Barcelona e Génova em 1541, regressou à pátria em
1543 na companhia do Núncio da Santa Sé em Portugal, foi feito prisioneiro
de Inglaterra, frequentando a corte dos reis ingleses Henrique VIII e Eduardo
VII, que motivou, em 1547, a sua prisão pela Inquisição, saindo em liberdade
apenas em 1551 e, no ano seguinte, participou, na qualidade de capelão real,
numa expedição ao norte de África, acabando, uma vez mais, por ser preso,
conseguindo ir a Lisboa, em 1553, negociar a libertação dos seus compatriotas.
Em 1554, D. João III (1521-1557) nomeia-o revisor tipográfico da Universidade
de Coimbra, lecionando aí também retórica, publicou a Arte da Guerra do Mar
(Coimbra 1555) e, em 1557, voltou a ser preso pela Inquisição e terá falecido
em Pedrógão em 1581.
A Grammatica da Lingoagem Portuguesa (Lisboa 1536) é a primeira
gramática do Português e a terceira a ser publicada de uma língua romance em
toda a Europa. Com esta obra, Oliveira pretendeu fundamentalmente estabelecer
os princípios normativos da língua portuguesa de quinhentos, especialmente
no respeitante à ortoépia. A Grammatica está dividida em capítulos, cinquenta
no total, com exclusão da dedicatória-prefácio, onde se patenteia o objetivo
fundamental do autor, descrição fonética da língua portuguesa em contraste /
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por oposição com a castelhana e latina e na afirmação da sua autonomia face
às restantes.
Oliveira ambicionou “em dizer não tudo, mas apontar alghũas partes necessareas da ortografia, acento, etimologia e analogia da nossa linguagem, em
comum e particularizando nada em cada dição” (Oliveira, 2000: 82). O gramático beirão dedicou vinte e quatro capítulos à fonética e ortografia (VI-XXIX),
treze à lexicologia (XXX-XLII), seis à morfologia (XLIII-XLVIII) e apenas um
à sintaxe ou construção (XLIX). No último capítulo (L), em posfácio, Oliveira
reflete sobre a novidade da obra e a sua escusa a críticas não fundamentadas,
pois, como afirma, não teve outro exemplo antes e não a escreveu com malícia,
podendo esta ser emendada se assim o entender o público-alvo. Apresenta o seu
conceito de gramática como “arte que ensina a bem ler e falar” (Oliveira, 2000:
87), assinalando a finalidade principal da obra: por um lado, esta devia ser didática,
pois o seu objetivo essencial era “ensinar”, e o conteúdo desses conhecimentos /
ensinamentos devia ser a norma fonética ou a ortoépia portuguesa, pois o aluno
tinha de ser capaz de “ler bem” e “falar bem”. Esta é a ruptura epistemológica
mais evidente na Grammatica de Oliveira, pois este não faz qualquer referência
à norma escrita, como era habitual na época e na tradição gramatical.
O gramático português quinhentista, apesar de não estabelecer explicitamente o número das classes de palavras ou das partes da oração, aceita as oito
“tradicionais”1 da gramática latina, ao contrário, por exemplo, de Nebrija na
Grammatica de la Lengua Castellana, que dividiu em dez categorias, o que —
com o tratamento da consoante lateral dupla < ll >, que representava o fonema
/λ/, entre outras diferenças — nos leva a supor que Oliveira não conheceu a
referida obra do gramático salmantino, mas apenas as Introductiones Latinae.
Com efeito, para Fernão de Oliveira, a língua portuguesa é constituída por
oito partes da oração ou “dições”: nome, verbo, artigo [fol. 31 r. - fol. 32 r.:
pp. 140-143], pronome [fol. 35 r. - fol. 35 v.: pp. 149-150], advérbio [fol. 23
v.: pág. 126; fol. 30 v.: pág. 140], conjunção [fol. 22 v.: pág. 124], preposição
[fol. 22 v.: pág. 124], e interjeição [fol. 9 v.: pág. 98]. O nome é subdividido em
substantivo (comum e próprio, diminutivo e aumentativo, verbal e denotativo)
e adjetivo, e o verbo, em pessoal e impessoal [fol. 28 r.: pág. 134].
Quanto aos casos, Oliveira, diferentemente do Latim, admite haver (apenas) quatro em Português e propõe uma nova designação: “Prepositivo”, a que
Não são propriamente as oito partes “tradicionais” latinas, pois Oliveira retira o particípio
da sua lista, colocando-o no nome (assim como o gerúndio), e inclui, como os gregos, o
artigo.
1
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As gramáticas do português de Fernão de Oliveira (1536) e de Bento Pereira (1672) 129
os latinos chamaram nominativo; “Possessivo”, que corresponde ao genitivo das
línguas clássicas; “Dativo”; e “Pospositivo”, que é o acusativo da Latim (Cfr.
Oliveira, 2000: 141). Contudo, para Oliveira, estes estão marcados fundamentalmente pelos “artigos” (preposições), ainda que admita a existência de restos
de casos nos pronomes pessoais: “E contudo nós também temos casos em três
pronomes, os quaes são eu, me, mi, tu, te, ti, se, si” (Oliveira, 2000: 150).
Relativamente à “declinação” dos verbos, Oliveira admite que estes variam
em “generos, conjugações, modos, tempos, numeros e pessoas” (Oliveira,
2000: 150). Parece haver uma ligeira confusão, já que Oliveira admite o género (comum? ou indeterminado?) na primeira pessoa do singular do presente
do indicativo das formas terminadas em -o (Cfr. Oliveira, 2000: 150). As
conjugações são três na língua portuguesa, “o qual infinitivo ou acaba em ar,
como amar, ou em er, como fazer, ou em ir, como dormir” (Oliveira 2000:
151). Para Oliveira, os modos são quatro (“falamos, falemos, falae e falar”),
os tempos também são quatro (“falo, falava, falei e falarei”), os números,
dois (“falo e falamos”), as pessoas, três (“falo e falamos, falas e falaes, fala e
falam”), ainda que os não tenha especificado, ou melhor, atribuído qualquer
denominação (Cfr. Oliveira, 2000: 151-152). Interessante é Oliveira não ter
classificado o futuro do pretérito (Nomenclatura Gramatical Brasileira) ou o
condicional (Nomenclatura Gramatical Portuguesa) entre os tempos nem entre
os modos verbais.
Oliveira analisa desenvolvidamente a fonética portuguesa do século XVI,
apresentando a definição de “letra” e classificação dos sons do Português, a
ortografia, a especificidade da fonética portuguesa em oposição à latina, a classificação das vogais e consoantes, os ditongos e a prosódia portuguesa. Com efeito,
“letra”, para Oliveira, é sinónimo de fone ou, eventualmente, fonema; “sinal”
e “figura” equivalem a grafema (Cfr. Oliveira 2000: 89), não havendo assim
confusão entre os dois conceitos, como acontecia, por exemplo, em Nebrija.
Defende o gramático quinhentista que o Português tinha um número diferente de
fonemas que o Latim e o Castelhano, pois, “nós com os castelhanos que somos
mais vezinhos concorremos muitas vezes em hũas mesmas vozes e letras. E
contudo não tanto que não fique alghũa particularidade a cada hum por si: hũa
só voz e com as mesmas letras, e a nós e aos castelhanos guerra e papel. E, no
pronunciar, quem não sintirá a diferença que temos, porque elles escondem-se e
nós abrimos mais a boca?” (Oliveira, 2000: 91). Para chegar, contudo, à conclusão da função distintiva dos “fonemas”, Oliveira usou o método da comutação, já
anteriormente experimentado por Nebrija e somente sistematizado pelo Círculo
Linguístico de Praga, que criou, em 1926, a Fonologia. Oliveira é bem claro
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na seguinte passagem: “Só mudar hũa letra, hum acento ou som, e mudar hũa
quantidade de vogal grande a pequena ou de pequena a grande, e assi também
de hũa consoante dobrada em singela ou, ao contrairo, de singela em dobrada,
faz ou desfaz muito no sinificado da lingua” (Oliveira, 2000: 94).
Os fonemas ou, na sua terminologia, as “letras” dividem-se em vogais e
consoantes (Cfr. Oliveira, 2000: 89). Dentre as primeiras, distinguem-se oito
fonemas diferentes. Ao contrário de Nebrija na Gramática de la Lengua Castellana, Fernão de Oliveira distingue entre vogais abertas (“grandes”) e fechadas
(“pequenas”), à exceção da vogal palatal e velar. Assim, para o gramático luso, o
Português do século XVI tinha os oito seguintes fonemas vocálicos: /a/, /α/, /ε/,
/e/, / /, /o/, /i/ e /u/. É interessante ainda o facto de Oliveira apresentar apenas
exemplos tónicos para demonstrar esta teoria, como Almada, Alemanha, festa,
festo, fermosos e fermoso, e uma proposta de grafia diferente da habitual, muito
próxima da International Phonetics Association, ainda que, para Buescu, o uso
dos caracteres gregos se deva, primeiramente, a Gian Giorgio Trissino (14781550) e, mais tarde, a Leonardo Salviati (1540-1589) em quem Oliveira se terá
baseado (Cfr. Buescu, 1971: LXI-LXII; Cfr. tb. Buescu, 1975: 24-27). Com
efeito, para Oliveira, “temos oito vogaes na nossa lingua, mas não temos mais
de cinco figuras (...). O remedio que eu a isto posso dar é este: que nas vogaes
grandes dobremos as letras, mas de tal feição que o dobrar dellas se faça em hum
mesmo lugar e figura — o a nesta forma α, e e nesta ε, e o também nestoutra
ω; e os pequenos nas formas acostumadas” (Oliveira, 2000: 91-92), embora
não haja “diversidade em i nem u” (Oliveira, 2000: 91). Para uma mais fácil
visualização, poderíamos traçar o seguinte quadro, com a nomenclatura usada
por Oliveira, a descrição do grafema proposto, a correspondência fonológica
atual e o exemplo apresentado pelo gramático quinhentista:
Nome do som
a grande
a pequeno
e grande
e pequeno
o grande
o pequeno
i
u
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Grafema proposto
por Oliveira
<a>
<α>
<E>
<e>
<ω>
<o>
<i>
<u>
Fonema
atual
/a /
/α /
/E /
/e /
/ /
/o /
/i/
/u/
Exemplo
Almada
Alemanha
Festa
Festo
Fermosos
Fermoso
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A precocidade ou o pioneirismo de Oliveira nesta análise fonético-grafémica pode, por exemplo, constatar-se comparando o seu quadro (pré-) teorético
com a(s) perspectiva(s) de alguns fonólogos atuais. Com efeito, presentemente,
alguns fonólogos — e nem todos — apenas adicionam o fonema /ə/ em posição pós-tónica final (Cfr. Mateus 1996: 172). Quanto ao vocalismo tónico ou
acentuado, por exemplo, Morais Barbosa (Cfr. Barbosa, 1983: 51) e Ricardo
Cavaliere (Cfr. Cavaliere, 2005: 73) referem os mesmos oito que Oliveira.
Fernão de Oliveira diferencia também as vogais nasais e, nesse caso,
apenas considera cinco fonemas (tónicos): /ã/, /ẽ/, /ĩ/, /õ/ e /ũ/, como propõe,
hoje, v.g., Morais Barbosa (Cfr. Barbosa, 1983: 91), Mira Mateus (Cfr. Mateus,
1996: 175) e Ricardo Cavaliere (Cfr. Cavaliere, 2005: 86). Com efeito, para
Oliveira, “[as vogais] mudam a voz porque não é a mesma voz vila e vilã; mas
o til que lhe posemos muda a calidade do a de clara voz em escura e mete-o
mais pellos narizes. Outro tanto nas outras vogaes como e e ẽ, i e ĩ, o e õ, u e
ũ, onde o til faz alghũa cousa e tem poder alghum” (Oliveira 2000: 101). É
ainda “importante assinalar que esta caracterização da vogal nasal como som
vocálico simples representa uma notável contribuição de Oliveira, pois é a
primeira vez que as vogais nasais são consideradas como tais na România (e
talvez seja a primeira vez em geral)” (Coseriu 2000: 37-38).
2. A Ars Grammaticae Pro Lingua Lusitana (Lyon 1672) de Bento
Pereira
Bento Pereira nasceu em Borba, no Alentejo, em 1605, entrou para a
Companhia de Jesus, estudou em Coimbra e em Évora, publicou a Prosodia
in vocabularium trilingue Latinum Lusitanum et Castellanum digesta (Évora
1634), as Regras Gerays, breves, e comprehensivas da melhor Orthografia, com
que se podem evitar erros no escrever da lingua Latina, e Portugueza, para se
ajuntar á Prosodia (Lisboa 1666) e a Ars Grammaticæ pro Lingua Lusitana
addiscenda (Lugduni 1672), tendo sido, entre 1670 e 1672, o revisor geral da
Companhia de Jesus e Reitor do Seminário dos Jesuítas Irlandeses em Lisboa,
e faleceu em Évora em 1681.
Bento Pereira não é, strictu sensu, um gramático nem um ortógrafo nem
um lexicógrafo, mas, fundamentalmente, um homem das letras e um pedagogo,
um cultor das humanidades. Procurou sempre, ao logo da sua vida, elaborar
manuais que satisfizessem as necessidades de ensino-aprendizagem, particularmente, da língua portuguesa, uma vez que ainda não havia, em Portugal, uma
disciplina que ensinasse a língua materna (ou gramática portu­guesa), facto que
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se veio a verificar apenas um século depois, em 1770, por Alvará Régio de 30
de Setembro. Como jesuíta, Bento Pereira seguia as instruções da Ratio atque
Institutio Studiorum Societatis Iesu ou, como ficou conhecida, da Ratio Studiorum, “promulgada por circular de 8 de Janeiro de 1599” (Torres 1998: 86),
onde se propugnava o ensino do Latim pela gramática do P.e Manuel Álvares,
De institutione Grammatica Libri Tres (Lisboa 1572), e adoptada em todos os
colégios dos jesuítas. A língua de transmissão aí defendida era o Latim, a nosso
ver por três razões fundamentais (Cfr. Fernandes, 2002: 325-326): 1.ª) internacionalização da sua gramática, para servir para todos os colégios jesuíticos; 2.ª)
o Latim era, nessa altura, a língua franca de comunicação internacional (Ponce
de León, 2000: XLIV); e 3.ª) a apologia do uso do Latim como metalíngua para
o ensino-aprendizagem das ciências, em geral, e do Latim, em particular.
Contudo, na primeira metade do século XVII, esta metodologia iria ser
profundamente alterada em Portugal, em virtude, especialmente, de as obras
de Pedro Sánchez (1610) e de Amaro de Roboredo (1615-1625) terem sido redigidas em Português e de os seus autores defenderem o uso da língua materna
como metalíngua. Este facto motivou que outros gramáticos escrevessem as suas
obras em Português, como, por exemplo, Bartolomeu Rodrigues Chorro (1619),
Domingos de Araújo (1627), Frutuoso Pereira (1636), João Nunes Freire (1644)
e António Franco (1699). Bento Pereira, apesar de ter escrito em Português o
Florilegio dos modos de fallar e adagios da lingua portugueza (Lisboa 1655)
e as Regras geraes, breves e comprehensivas da melhor orthographia, com
que se podem evitar erros no escrever da lingua latina e portugueza (Lisboa
1666), sentiu necessidade de escrever uma gramática da língua portuguesa
especialmente para os estrangeiros que quisessem aprender o idioma luso. Por
isso, também como Álvares, fê-lo directamente em Latim, denominando-a Ars
Grammaticæ pro Lingua Lusitana addiscenda Latino Idiomate proponitur, in
hoc libello, velut in quadam academiola divisa in quinque classes, instructas
subselliis, recto ordine dispertitis, ut ab omnibus tum domesticis, tum exteris
frequentari possint2 e foi publicada em Lyon, em 1672, exactamente um século
depois da De Institutio Grammatica Libri Tres de Manuel Álvares — nesta
época, Bento Pereira era o revisor geral da Companhia de Jesus e o Reitor do
Seminário dos Jesuítas Irlandeses em Lisboa, tendo de conviver, por isso, com
“A Arte de Gramática para se aprender a Língua Portuguesa publica-se no idioma Latino,
por este livro, assim como em qualquer escola, dividida em cinco classes, ordenadas pelos
graus, distribuídas pela ordem correcta, para que possam ser frequentadas por todos, tanto
os nativos como os estrangeiros”.
2
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muitos estrangeiros —. Ainda no título está registado que, no final da gramática,
há um excurso sobre a ortografia portuguesa: Ac finem ponitur Ortographia,
ars recte scribendi, ut sicut prior docet recte loqui, ita posterior doceat recte
scribere linguam Lusitanam. In gratiam Italorum conjugationibus Lusitanis
Italæ correspondent3.
Este facto — de ter escrito a gramática e, especialmente, a ortografia
portuguesa em Latim — acarretou-lhe, acérrimas críticas, particularmente
na reforma pombalina, cerca de um século depois, por, por exemplo, de Luís
António de Verney (1747) e de António José dos Reis Lobato (1770) (Fonseca,
2006: 160): “E tomara que me dissessem (…) por que razão se haja de carregar a memória dos pobres estudantes com uma infinidade de versos latinos, e
outras coisas que não servem para nada neste mundo. Chega este prejuízo a
tal extremo, que o P.e Bento Pereira escreveu uma Ortografia Portuguesa em
Latim” (Verney, 1949-52 [1747]: 141); “Da Arte do P. Bento Pereira, impressa
em Londres [sic] no anno de 1672, podia deixar de fallar por duas razões: 1.º
Por ser escrita na lingua Latina, por cuja razão só póde servir para aquelles,
que tiverem ciência da dita lingua: 2.ª Por se achar este Author reprovado por
Sua Magestade Fidelissima; porém como poderão dizer, que a reprovação só
cahe sobre a Prosodia Latina do mesmo Author, e não sobre a dita Arte, se me
faz preciso mostrar-lhes, que se esta não está reprovada, o estão algumas das
suas doutrinas, por serem as mesmas, que seguio o P.e Manoel Alvares na sua
Grammatica Latina, de que Sua Magestade Fidelissima prohibio o uso nas
escolas” (Lobato, 2000 [1770]: 127-128).
Para além da referência ao título, na dedicatória Ad Mariam semper
virginem Dei matrem, Bento Pereira é claro quanto ao público preferencial
desta obra: “Meus iste liber nuncupatur Ars Grammaticæ pro Lusitanorum
lingua ab exteris nationibus addiscenda”4 (Pereira 1672: “ad Mariam”, ã 4
r.). E justifica-o com a propagação da fé católica entre os povos “bárbaros” e
incultos, “ut quicumpque velint Lusitanam linguam addiscere, possint in omni
vastissima Lusitanorum ditione inter barbaras, & incultas nationes Christianas fidei esse propagatores”5 (Pereira 1672: “ad lectorem”, ã 5 r.). Também
“E no fim coloca-se a Ortografia, a arte de escrever correctamente, para que, do mesmo modo
que, primeiro, ensine a falar bem, assim também, depois, [ensine] a escrever correctamente a
língua portuguesa. Para reconhecimento dos Italianos, as conjugações italianas correspondem
às Portuguesas”.
4
“Este meu livro chama-se Arte de Gramática da língua dos Portugueses para ser aprendida
pelas nações estrangeiras”.
5
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“de modo a que todos aqueles que queiram aprender a língua Portuguesa, possam ser propa3
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no Prefácio “Ad lectorem”, Bento Pereira, para além da evangelização dos
infiéis, acrescenta o comércio como condição básica para o uso do Português
como língua de comunicação e aproximação entre os povos: “Cum vero in me
patriæ amor, frigescente ætate non frigeat, sed magis ac magis exardescat, hoc
potissimum tempore, quo vídeo Lusitanam, postquam feliciter pugnavit, pace,
quam libens concessit, quiescere, habereque commercium cum omni natione
quæ sub coelo est, et Christiano nomine gloriatur, vehementer dolui carere
Lusitanos arte, qua suam linguam exteris addiscendam proponant. Est enim
perspicuum in spiritualibus, et temporalibus sperari maximum emolumentum ex
facilitate addiscendæ nostræ linguæ, ut exteri, sive mercatores suis opibus nos
distent, et nostris ditentur, sive concionatores pervadant usque ad fines Orbis,
seu Lusitani imperii, ubi nationes barbaras veris Evangelii divitiis locupletent”6
(Pereira 1672: “ad lectorem”, ã 6 v.). Esta gramática também se destinava aos
Portugueses, ainda que não fosse este o seu primeiro público. Bento Pereira
di-lo quer no título da obra (ut ab omnibus tum domesticis, tum exteris frequentari possint), como já fizemos referência, quer no prefácio ao leitor, logo no
primeiro parágrafo: “En Candide Lector, qui olim juvenis nondum attingens
trigesimum ætatis annum concinnavi Prosodiam, modo senex tribus jam annis
excedens sexagesimum concinnavi Lusitanæ linguæ Grammaticam, quam tibi,
si exter fueris, addiscendam, si domesticus, corrigendam offero”7 (Pereira
1672: “ad lectorem”, ã 6 r.). Não é, contudo, este o seu primeiro destinatário,
pois “com esta palavra [“domesticus”] o autor apenas pretendia indicar que, de
facto, ela servia igualmente para os compatriotas que, sabendo latim, quisessem
utilizá-la” (Gomes 1944: 650). Esta ideia volta a ser reforçada na última parte
gadores da fé Cristã em todo o vastíssimo império dos Portugueses entre as nações selvagens
e incultas”.
6
“Como não se me esfria o amor da pátria, embora se arrefeça a idade, mas mais e mais se
incendeia, sobretudo neste tempo em que vejo que Portugal, depois que lutou venturosamente,
está em paz, que concedeu de bom grado, e estabeleceu o comércio com toda a nação que está
sob o firmamento, e glorifica com o nome de Cristo, dói-me muito que os portugueses careçam
de uma arte com a qual apresentem a sua língua aos estrangeiros para ser aprendida.
É, pois, evidente que, quer no espiritual quer no laico, se espera um maior proveito na facilidade de aprender a nossa língua, para que quer os comerciantes estrangeiros nos enriqueçam
com os seus bens e se enriqueçam com os nossos, quer os pregadores vão até aos confins da
terra ou do império lusitano, onde as nações bárbaras se enriquecem com os bens verdadeiros
do Evangelho”.
7
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“Eis benévolo leitor, aquele que outrora jovem ainda não atingindo trinta anos de idade compus a Prosódia, somente velho excedendo em três anos o sexagésimo compus a Gramática
de Língua Portuguesa, que te ofereço, se fores estrangeiro, para que a aprendas, se nacional,
a corrijas”.
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(“classis V”) da Ars Grammaticæ quando afirma, por exemplo, que “nobis in
hac Lusitana Grammatica sermo non est de syllabis in ordine ad pangenda
carmina, sed solum in ordine ad erudiendos tum domesticos, tum exteros circa
quantitatem syllabarum, ut scilicet juxta certas normas de recta pronunciatione,
noscant Lusitana vocabula apte producere, vel corripere, quando pronuncient”8
(Pereira 1672: 204).
A Ars Grammaticæ é, em síntese, uma gramática normativa e o método é
unicamente o dedutivo e expositivo. Bento Pereira não dá quaisquer explicações
sobre a sua estrutura nem a sua ordenação e raramente faz menção a outros
gramáticos e autores, apenas, uma ou outra vez, a Marco Varrão (1779) e o P.e
António Vellez (18510 e 18911). O autor estabelece algumas comparações com
outras línguas, quase sempre com o Latim, mas também frequentemente com
o Castelhano e, nas conjugações verbais, apresenta a tradução italiana — inexplicavelmente, porque está completamente apartado do restante da obra, mas
anuncia-se no título: “In gratiam Italorum conjugationibus Lusitanis Italæ correspondent” —. A Ars Grammaticæ está dividida em 5 secções (“classes”), cada
uma das quais com um número variável de divisões / “cadeiras” (“subsellia”),
até à página 230, e dois excertos finais: um acroama moral (231-285) e a Orthographia Lusitana (286-323), acrescida de um índice temático remissivo.
A “Classis I” (“De nominibus, & eorum declinationibus”), constituída por
34 páginas, é dedicada à fonética e à morfologia portuguesas, particularmente
sobre o alfabeto português e o substantivo. Embora mantendo os seis casos das
línguas clássicas, defende que os nomes, substantivos ou adjectivos, não têm
variação e o caso é definido pela preposição ou “partícula” que lhe antecede:
“Nomina Lusitana quamvis in se ipsis nullam habeant diversitatem casuum,
“Nesta Gramática Portuguesa não temos o discurso acerca das sílabas em ordem a fazer
versos, mas só em ordem para os que ensinam, tanto nacionais como estrangeiros, sobre a
quantidade das sílabas, de modo a que, por exemplo, a par de certas normas sobre a correcta
pronúncia, saibam produzir correctamente ou adulterar os vocábulos Portugueses quando
[os] pronunciem”.
9
“Marcus Varro Grammaticus antiquus derivationes partitur in voluntarias & naturales” (Pereira
1672: 177).
10
“Quamvis apud Latinos genus sit triplex, masculinum, fæmininum, & neutrum, sub quibus
alia continentur, tamen apud Lusitanos (ut notavit P. Vellez in commen. Artis ad regulam
Respicimus fines &c.) genus est duplex, masculinum, & foemininum, sicut in lingua Hebræa,
Chaldaica, & Africana” (Pereira 1672: 185)
11
“Quamvis in lingua Latina nomina quæ significant insulas, províncias, civitates, naves, &
poeses sint generis foeminini cum exceptionibus, quas quas assert P. Vellez in Commen.
regularum generis, ad regul. Insula foeminea, &c. tamen in lingua Lusitana observabitur
sequens regula, quae longe diversa est” (Pereira 1672: 189).
8
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sicut habent pronomina (…) accipiunt tamen quandam veluti extrinsecam
diversitatem casuum a particulis a, o, ao: as, os, aos: de, da, do dos: & a propositionibus na, no nas, nos: pêra, em, com sem, quæ regulariter ponuntur ante
prædicta nomina, & absque ulla variatione intrinseca faciunt illa æquipollere
nominibus Latinorum casus diversos per intrinsecam mutationem habentibus
jam in numero singulari, quam in numero plurali”12 (Pereira, 1672: 18).
A “Classis II” (“De verbis, & eorum conjugationibus”) preenche mais
de metade de toda a gramática (143 páginas) e é dedicada à morfologia das
3 conjugações dos verbos portugueses. Para Bento Pereira, o verbo “est part
orationis, quæ modos & tempora habet: neque in casus declinatur”13 (Pereira,
1672: 34), divide-se em: pessoal e impessoal; activo, passivo e neutro, e tem
cinco modos (indicativo, imperativo, optativo, conjuntivo e infinitivo) e, no
indicativo, tem 6 tempos, dois supinos, quatro particípios e três gerúndios.
A “Classis III” (“De dictionibus Lusitanis absolute acceptis: & de illis quæ
nec sunt nomina, nec verba”) é o capítulo mais pequeno de toda a gramática
(apenas 10 páginas) e apresenta as outras “partes orationis” que não são verbos
nem nomes: advérbios, preposições, conjunções e interjeições.
A “Classis IV” (“De generibus nominum, ac præteritis verborum”) tem
16 páginas e analisa o género dos nomes em Português, no referente quer à sua
significação quer à terminação do mesmo, e ainda uma breve reflexão sobre a
formação dos pretéritos em Português, por comparação com a multiplicidade
de formas em Latim.
Por último, a “classis V” (“De syntaxi; & syllabis linguæ Lusitanæ”), com
31 páginas, apresenta um breve excurso sobre análise sintáctica, porque, segundo Bento Pereira, “[syntaxim] apud Lusitanos esse brevissimam, & facillimam
ex contraria ratione”14 (Pereira 1672: 200) e “hæc tam pauca complectuntur
universam syntaxim Lusitanæ linguæ, quam proinde summa facilitate, & absque erroris periculo nationes exterae possunt addiscere, simulque intelligere
12
13
14
“Os nomes portugueses ainda que em si próprios não tenham nenhuma diversidade
de casos, como têm os pronomes (...), recebem, contudo, igualmente uma certa
diversidade de casos com as partículas a, o, ao: as, os, aos: de, da, do dos: e com
as preposições na, no nas, nos: pêra, em, com sem, que se colocam normalmente
ante os declarados nomes, e sem nenhuma variação intrínseca fazem-nos equivaler
aos nomes dos Latinos que têm casos diferentes por mutação intrínseca tanto no
número singular como no número plural.
[O verbo]“é uma parte da oração, que tem modos e tempos: e não se declina em casos”.
…“[a sintaxe] é para os portugueses, pela razão contrária, muito breve, e muito
fácil”.
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quantum in hac parte lingua nostra excedat Latinam, in qua innumerabilium
præceptorum, & exceptionum vastitas obruit tyrones, torquet studiosos, &
etiam peritissimos quosque exponit errandi periculo”15 (Pereira 1672: 203),
embora, para o autor, esta não seja uma qualidade intrínseca do Português, por
comparação com o Latim, mas de todas as línguas vulgares: “Scio laudem hanc
non esse nostræ linguæ peculiarem, sed communem omnibus fere linguis, quæ
vulgares sunt, & jam in toto orbe percrebuere”16 (Pereira 1672: 203).
Entre as páginas 231 e 285, a Ars Grammaticae tem um conjunto de
frases bilingues, ou acroamas morais, em Português e Latim, sobre as virtudes
e os vícios, para a aquisição de vocabulário, tanto por estrangeiros como por
portugueses: Acroamata Moralia, Lusitanicolatina de virtubis, & vitiis: pro
acquirenda pia, atque uberi copia Lusitanæ linguae, tum ab exteris, tum a
domesticis17, com o duplo objetivo: aquisição de vocabulário e a formação
moral e religiosa dos leitores.
Por último, Bento Pereira apresenta um tratado sobre a ortografia portuguesa em Latim. Ao contrário da crítica de Verney anteriormente citada, trata-se
de uma tradução da primeira e da terceira partes das Regras Gerays Breves, &
comprehensivas da melhor ortografia (Lisboa 1666), isto é, das regras comuns
à ortografia portuguesa e latina (p. 286-298) e das regras que são específicas
da língua portuguesa (p. 298-323) e não de uma obra original primeiramente
escrita em Latim.
Conclusão
A Grammatica da Lingoagem Portuguesa de Fernão de Oliveira (Lisboa
1536), para além de ser a primeira gramática do Português e uma das primeiras
gramáticas de línguas romances em toda a Europa, é um marco na historiografia
linguística portuguesa, com análises minuciosas e rigorosas do Português do
15
“Estas tão poucas [palavras] abrangem toda a sintaxe da língua portuguesa, que, em
consequência, podem aprender as nações estrangeiras, com a máxima facilidade e sem
perigo de erro, e, ao mesmo tempo, compreender quanto nesta parte a nossa língua
excede a Latina, em que a vastidão dos inumeráveis preceitos, e excepções aniquila
os aprendizes, atormenta os estudiosos, e também expõe todos os inteligentíssimos
ao perigo de errar”.
16
“Sei que este elogio não é particular à nossa língua, mas comum a quase todas as
línguas, que são vulgares e já se espalharam em todo o mundo”.
17
“Acroamas Morais, Portugueses-Latinos sobre as virtudes e os vícios: para adquirir eloquência
piedosa e fecunda de língua Portuguesa, tanto pelos estrangeiros como pelos nacionais”.
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século XVI, demonstrando conceitos pré-teoréticos, muitos deles, ainda hoje
válidos e aceites pelos linguistas. Em síntese, apresenta os seguintes pontos
de interesse para a linguística portuguesa contemporânea: tratamento – ainda
que casuístico e pouco sistemático – das oito partes do discurso, com destaque
especial para o artigo – como marca do caso –, o nome e o verbo; constatação
da existência de quatro casos na língua lusa – nominativo (prepositivo), genitivo
(possessivo), dativo e acusativo (pospositivo) –; inovações terminológicas, fundamentalmente no referente à designação dos casos e às teorias de composição
e de derivação; e, sobretudo, a descrição fonética pormenorizada do Português
do século XVI, a delineação da norma linguística e a percepção da existência
de variantes diastráticas e diatópicas. “Fernão de Oliveira, não obstante as suas
tergiversações como homem, ganhou jus à imortalidade, que lhe outorgou sem
favor a língua portuguesa como ao primeiro que ousou objectivar-lhe as estruturas, delinear-lhe o corpo orgânico, captar-lhe o fôlego e o espírito, propô-la
como modelo de aprendizagem e de estudo contra o predomínio da latina e da
castelhana” (Torres e Assunção 2000: 26). Para Eugenio Coseriu, “Oliveira
(…) supera de longe tudo o que, pelo menos até hoje, conhecemos nesse campo [fonética empírica] em toda a România. Através da sua clara intuição da
funcionalidade linguística e da distinção, aplicada frequentemente também na
descrição concreta, entre os esquemas funcionais da língua, esquemas às vezes
só virtuais (“sistema da língua”) e a sua realização (“norma da língua”), ele
antecede o seu tempo na descrição linguística em geral e apresenta-se como um
dos gramáticos mais originais de toda a Renascença” (Coseriu, 2000: 31).
Por outro lado, havia mais de 135 anos que a gramática portuguesa
começara os seus primeiros passos, mas faltava uma gramática portuguesa
especialmente vocacionada para o ensino desta língua para estrangeiros. A
Ars Grammaticæ pro Lingua Lusitana addiscenda Latino idiomate proponitur (Lugduni 1672) de Bento Pereira é uma obra sistémica bastante completa,
expositiva, abrange todas as partes tradicionais da gramática (fonética, morfologia e sintaxe) e ainda têm um excurso bilingue (Português-Latim) com frases
que poderiam ser empregues, para além da formação moral dos jovens, para
exercícios de tradução (ou retroversão), e ainda a primeira e a terceira parte
das Regras geraes, breves e comprehensivas da melhor orthographia (Lisboa 1666), para facilitar e uniformizar a ortografia de ambas as línguas, mas
particularmente do Português. Os jesuítas tinham colégios em todo o mundo
e, por isso, sentiam necessidade de uma obra que pudessem ensinar a língua
de Camões a todos os estrangeiros que a quisessem aprender, para facilitar o
comércio com os portugueses e a evangelização dos povos “bárbaros”. Foram
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As gramáticas do português de Fernão de Oliveira (1536) e de Bento Pereira (1672) 139
fundamentalmente estes dois motivos que levaram o alentejano Bento Pereira
a escrever aquela que consideramos a primeira gramática de Português como
língua estrangeira, precisamente cem anos depois da De Institutione Grammatica Libri Tres (Lisboa 1572) do também jesuíta Manuel Álvares, obviamente
na língua franca da época: o Latim.
Referências bibliográficas
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As gramáticas do português de Fernão de Oliveira (1536) e de Bento Pereira (1672) 141
quinque classes, instructas subselliis, recto ordine dispertitis, ut ab omnibus
tum domesticis, tum exteris frequentari possint. Ac finem ponitur Ortographia, ars recte scribendi, ut sicut prior docet recte loqui, ita posterior doceat
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Complementos verbais preposicionados na
Moderna Gramática Portuguesa
Valter Kehdi
USP
Dada a dificuldade de caracterização dos complementos verbais preposicionados, em virtude de superposições funcionais e critérios formais e semânticos nem sempre utilizados com o devido rigor, julgamos oportuno retomar
esse tema, com base na 37.ª edição da Moderna gramática portuguesa (MGP),
de Evanildo Bechara.
Impõe-se, inicialmente, uma caracterização rigorosa do objeto indireto,
visto que é a partir dele que se podem identificar os demais complementos
verbais preposicionados, como o mostraremos ao longo deste artigo.
Termo oracional rigorosamente definido ao longo do século XIX, o objeto
indireto passa a ser conceituado de forma muito abrangente a partir da Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), como qualquer complemento verbal
integrante regido de preposição. Dessa forma, os sintagmas preposicionais sublinhados em frases como: “Dei um livro a Pedro” e “Gosto de Pedro” seriam
objetos indiretos, embora o primeiro seja pronominalizável em lhe (“Dei-lhe um
livro”), o que não ocorre com o segundo (“Gosto dele”, e não: *”Gosto-lhe”.
Cumpre, portanto, recuperar uma caracterização mais rigorosa, em função do
que já se propunha no século XIX.
A excelente English Grammar, de C. P. Mason, que exerceu grande influência em gramáticos nossos, como Júlio Ribeiro, Eduardo Carlos Pereira e
outros, definia com rigor formal, nos §§ 369 e 370, o objeto indireto, dando
destaque a alguns traços de construção desse termo oracional não coincidentes
com o seu funcionamento nas línguas neolatinas.
No terreno da linguística românica, podemos acompanhar as considerações
de F. Diez e W. Meyer-Lübke. Segundo Diez, o dativo latino, na passagem para
as línguas românicas, é representado pela preposição ad seguida de substantivo
no acusativo; como ad pode também expressar outros valores (p.ex., o locativo),
impõe-se uma caracterização mais específica da construção correspondente ao
dativo. Como os pronomes pessoais conservam, em românico, formas oblíquas
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Valter Kehdi
correspondentes ao dativo e ao acusativo latinos, só se devem considerar como
objetos indiretos os sintagmas preposicionais encabeçados por ad e pronominalizáveis em illi / illui (lhe(s) em português)1.
Meyer-Lübke acrescenta alguns detalhes enriquecedores, mas, essencialmente, permanece fiel à posição de Diez2. De capital importância, na Gramm.
de M.-Lübke, é a parte dedicada ao estudo do regime, subdividida em quatro
segmentos: l) o regime direto; 2) regime partitivo e regime relativo; 3) o regime
indireto; 4) combinação de regimes diferentes. Como o primeiro está, aqui, fora
de nosso interesse e o terceiro já foi explicitado em suas linhas gerais, vamos
fixar-nos no segundo e no quarto tópicos.
O regime partitivo, introduzido pela preposição de, aparece em construções
como: “beber do vinho”, “comer do pão”, etc., em que a preposição exprime a
ideia de parte que se retira de um todo. Cabe, aqui, um comentário parentético
relativo à análise dessa construção. Não é correto ver, na construção com de,
um caso de objeto direto preposicionado; lembre-se que o objeto direto encabeçado por a é pronominalizável em o/a/os/as e, na conversão passiva, figura
como sujeito: “Amo a Deus” — “Amo-o”, “Deus é amado”. Não é o que se
verifica com o regime partitivo: “bebi do vinho” — “bebi dele”, *“Do vinho é
bebido”. Cotejando essa construção com a do verbo gostar: “gostar do vinho”
(em que o de é, na origem, preposição de valor partitivo), verificamos que, com
esse verbo, a preposição é obrigatória; não é o que ocorre com o verbo beber,
pois “beber vinho” é igualmente aceitável, sem alteração de sentido. Isso nos
leva a postular, para efeito de análise, a elipse do núcleo do objeto direto (uma
parte, uma porção, um pouco), ao qual se acrescenta uma expansão com de:
“beber (um pouco) do vinho”.
O regime relativo, também introduzido por de, indica o objeto relativamente ao qual se produz algo: “ameaçar alguém de alguma coisa”. Apresenta-se,
aqui, um novo tipo de complemento verbal preposicionado, mais próximo do
objeto indireto, embora com diferenças relativamente a este3 e do qual voltaremos a falar mais adiante. São fundamentais as observações que faz M.-Lübke
nos §§ 373-6, relativas à combinatória de regimes diferentes. Na combinação
de regime direto de pessoa com regime direto de coisa, são possíveis três so Cf. Gramm... (t. 3e.), p. 114-5. �����������������������������������������������������������
Ressalte-se que a substituição pelo pronome tem, aqui, fundamento essencialmente diacrônico e não se deve confundir com a comutação como técnica
de análise na perspectiva sincrônica.
2
Cf. Gramm... (t. 3e), §§ 45 e 368-72.
3
Em nossa tradição gramaticográfica há também referência a esse tipo de regime. Cf., p.ex.,
Gram. expositiva, de E. C. Pereira (§ 406).
1
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Complementos verbais preposicionados na Moderna Gramática Portuguesa
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luções: os dois regimes podem ficar lado a lado ou o regime de pessoa passa
a objeto indireto (solução mais usual) ou o regime de coisa torna-se relativo.
Essas diferentes soluções explicam algumas diversidades de regência para um
mesmo verbo. A título de ilustração, consideremos o verbo informar; a regência
primitiva é “informar alguém de algo”, mas também é aceitável “informar algo
a alguém”, construção que resulta, em parte, da analogia com o verbo comunicar. Fica, assim, evidenciado que muitas construções com objeto indireto são
vivas em português (e noutras línguas românicas) e não se reduzem apenas a
casos herdados do latim.
Algumas gramáticas portuguesas mais antigas já veiculavam essas reflexões. Consulte-se, p.ex., a Gramática expositiva, de Eduardo C. Pereira,
que, nos §§ 405-6, subdivide o “complemento terminativo” (em linhas gerais,
complemento preposicionado ligado a substantivos, adjetivos ou verbos de
sentido incompleto) em terminativos de atribuição (a rigor, o objeto indireto),
de direção, de origem e de relação (este último correspondente ao regime
relativo de M.-Lübke). Hoje, classificam-se os complementos de adjetivos e
de alguns substantivos como complementos nominais e opera-se com técnicas
mais rigorosas na caracterização dos termos oracionais; observe-se, todavia,
que a classificação de Eduardo C. Pereira está mais próxima das investigações
atuais do que o quadro simplificado da NGB.
A retomada do conceito mais rigoroso de objeto indireto encontra-se na
MGP, de E. Bechara. Na 31.ª edição (que praticamente reproduz as anteriores),
é ainda fiel à definição abrangente da NGB, considerando, p.ex., que, em uma
frase como “Queixou-se da chuva”, o complemento sublinhado é objeto indireto; contudo, em observação ao parágrafo, assinala que esse rótulo abrange
complementos de natureza diversa (cf. p. 206). É na 37.ª edição, revista e ampliada, de 1999, que o autor estabelece os critérios de identificação do objeto
indireto: encabeçado pela preposição a (raramente para); referido a ser animado;
indicando beneficiário ou destinatário da ação e comutável pelo pronome pessoal objetivo lhe(s). Note-se que esses traços devem estar integrados. Assim,
a pronominalização em lhe(s), isoladamente, não revela que se trata de objeto
indireto (cf. “Bater nele” — “Bater-lhe”, à p. 181); é preciso também salientar
que o complemento deve estar introduzido pela preposição a.
Ressalta ainda o autor o fato de ser o objeto indireto um termo mais periférico com relação ao verbo4, o que uma análise em constituintes imediatos
Essa característica aparece mais enfatizada na Gramática normativa, de Rocha Lima (cf. p.
249-51).
4
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permite evidenciar. Em uma frase como “Dei uma bola ao garoto”, temos uma
primeira segmentação em:
Dei uma bola / ao garoto
A maior coesão do verbo com o objeto direto é justificada pelo fato de
haver algumas lexias de verbo + objeto direto (e não de verbo + objeto indireto): abrir mão, seguir viagem (observe-se a falta de artigo). Dessa forma,
o objeto indireto integra-se ao conjunto “Dei uma bola”5. Note-se, também,
que é mais aceitável a omissão do objeto indireto do que a do objeto direto:
“Dei uma bola”? “Dei ao garoto” (frase de aceitação duvidosa quando tomada
isoladamente, sem referência a contexto anterior). É o distanciamento maior
desse termo oracional que justifica, em parte, a existência dos “dativos livres”,
explicitados no item h) (p. 423-4).
No item f) (p. 422-3), o prof. Bechara chama a atenção para o fato de
que, normalmente, o objeto indireto não pode ser introduzido pela preposição para. Se na frase “Alguns alunos compraram flores para a professora”
o termo sublinhado poderia passar por objeto indireto, podemos mostrar
a impropriedade dessa análise levando em conta a frase “Alguns alunos
compraram flores ao florista para a professora”, em que o verdadeiro objeto
indireto é ao florista; observe-se: “Alguns alunos compraram-lhe flores para
a professora”6.
Relativamente aos demais complementos verbais preposicionados, menos
caracterizados que o objeto indireto, remetemos aos itens correspondentes da
MGP; o complemento relativo (p. 419-21), os determinantes circunstanciais (p.
436-49) e a preposição como posvérbio (p. 419) estão, em linhas gerais, satisfatoriamente tratados. Nos parágrafos seguintes, levantaremos e discutiremos
alguns problemas que esses tópicos apresentam.
O complemento relativo é um termo oracional depreendido mais recentemente, embora M.-Lübke já tenha feito referência a ele. Rocha Lima, em sua
Gramática normativa, define-o como um complemento verbal preposicionado
que integra, com o valor de objeto direto, a predicação de um verbo. Não representa o beneficiário da ação e não é pronominalizável em lhe(s). A designação
de “complemento relativo”, extraída da Grammaire...(v. 3), de M.-Lübke,
não é adequada, visto que o autor a utiliza apenas para alguns complementos
A análise deveria prosseguir até os últimos constituintes, avançando também no terreno da
morfologia. Não a realizamos totalmente aqui porque é desnecessário para o que queremos
mostrar.
6
O sintagma preposicional para a professora é, a rigor, um complemento de interesse, muito
próximo dos circunstantes de destinação, direção e fim.
5
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encabeçados pela preposição de; em todo caso, Rocha Lima, à p. 251, em
nota, esclarece que emprega esse rotulação para complementos antecedidos
de preposições diversas7.
Com relação ao exemplo proposto pelo prof. Bechara, à p. 421: “Seus
parentes moram no Rio”, pensamos que não se trata de complemento relativo8.
Embora complemento necessário, é comutável por advérbio de base pronominal: “Seus parentes moram aqui / lá”, o que indica tratar-se de um circunstante
(designação preferível a “adjunto adverbial”). Ao argumento de que se trata de
termo obrigatório, pode-se responder que o caráter facultativo ou obrigatório
de um complemento é sempre um critério secundário com relação aos demais,
pois depende do valor semântico do verbo regente; se “Seus parentes moram”
é frase de sentido incompleto, o locativo não se faz necessário em “Ela mora
só / sozinha”. O problema resulta do fato de a NGB estabelecer que os adjuntos são facultativos, ao passo que os complementos são obrigatórios, critério
muito frágil se dissociado de outros hierarquicamente organizados. Impõe-se
uma caracterização mais rigorosa do complemento relativo, que também leve
em conta suas possíveis vinculações com os circunstantes.
Referentemente aos circunstantes, cumpre observar que representam um
conjunto heterogêneo, ainda não suficientemente explorado. Além do aspecto da
coesão com relação ao verbo, acima discutido, a que se liga a maior ou menor
mobilidade do circunstante na oração em que figura, é preciso salientar o fato
de que a preposição que o introduz é normalmente comutável por outras: “Vou à
igreja” — “Vou perto da / longe da / atrás da igreja”9. A possibilidade de emprego
de preposições variadas indica que o conectivo é tomado em seu sentido pleno,
o que não ocorre com a preposição que encabeça os complementos relativos;
em uma frase como “Preciso de recursos”, o único nexo cabível é de.
É ainda ao tópico dos circunstantes que se integra o problema do posvérbio, definido por Antenor Nascentes como a preposição que, sem reger de
fato o termo que se lhe segue, passa a anteceder o objeto direto: “arrancar a
espada”/ “arrancar da espada”. Muitas vezes, a preposição empregada resulta
de um matiz semântico do objeto. É o que se verifica em: “Atirei-lhe a pedra
/ Atirei-lhe com a pedra”; a ideia de instrumento acarreta o uso da preposição
Na gramaticografia hispânica mais recente, o termo correspondente é suplemento e figura nos
Estudios de gramática..., de E. A. Llorach (cap. VII).
8
O autor atenua essa posição em observação, à p. 421.
9
Acrescente-se ainda a existência de circunstantes justapostos, como os que expressam, p.ex.,
medida, peso e preço. Para sua caracterização, é fundamental que se estabeleçam suas diferenças sintáticas relativamente ao objeto direto.
7
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com. Noutros casos, a preposição desloca-se em virtude da elipse do consequente primitivo; é o que temos em “cumprir o dever / cumprir com o dever”,
proveniente de “cumprir com alguém o dever”. Há ainda exemplos em que o
posvérbio se explica por mais de uma razão: em “atingir o limite / atingir ao
limite”, não só a influência da regência do sinônimo chegar, como também o
fato de o prefixo verbal a- projetar-se como preposição no complemento (cf.
depender de, encerrar em, etc.).
A edição atual da MGP elenca todos os complementos verbais acima
tratados e procura caracterizá-los em função de critérios como preposições introdutoras, pronominalização, valor semântico, devidamente articulados, o que
constitui apreciável contribuição e um avanço com relação a obras congêneres.
Pela abrangência de tópicos tratados, não poderia explorar exaustivamente todos
os aspectos discutidos ao longo deste artigo, sem correr o risco de desequilibrar o plano do conjunto. Foi, aqui, nossa intenção levantar e discutir questões
importantes ligadas à problemática dos termos oracionais como sugestão de
veios de pesquisa.
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A língua literária contemporânea
Gilberto Mendonça Teles
PUC-RJ, UFG
Eu penso que para melhor compreensão deste tema — A língua literária
contemporânea no Brasil — é preciso tocar inicialmente em dois tópicos: o
primeiro, de ordem terminológica, diz respeito à Linguística; o segundo, de
ordem propriamente histórico-literária, diz respeito à criação na Literatura.
Refiro-me à expressão “língua literária”, empregada, a meu ver, em lugar
de “linguagem literária”. É que, linguisticamente falando, não poderia haver
uma “língua literária” e sim uma (ou inúmeras) “linguagens literárias”. A língua
é usada para a comunicação (o que se chama linguagem comum); e usada para
a expressão estética (a “linguagem literária”). Tal observação vem a propósito
do funcionalismo de Martinet, cujos princípios gerais me parecem oportunos.
Para ele, a língua possui dupla articulação, que funciona simultaneamente na
produção de qualquer enunciado:
a) A primeira articulação é a dos monemas, a das unidades formais dotadas
de sentido, como as palavras do dicionário;
b) A segunda articulação é a dos fonemas, a das unidades distintivas
mínimas e sem significação, como o a, o b, o c, etc.
Ora, a linguagem (comum ou a literária) é uma função da língua e portanto não possui a 2.ª articulação, que é a mesma da língua. O escritor não cria
fonemas, cujo número é limitado em cada língua. Ao criar os neologismos ou
o seu vocabulário assêmico, está usando os fonemas já existentes, mesmo no
caso das palavras sem nexo, como nos bestialógicos. Numa crônica no Jornal
do Brasil, de 4.7.1974, Carlos Drummond de Andrade transcreve um poema
de Vinícius de Moraes “para curtição de quem ame a criatividade verbal”,
nele os significados não são os da língua mas da linguagem, isto é, da forma
inteligente de que ler:
Os clasmos d’Aparício
São flomas ereseibundas
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Gilberto Mendonça Teles
Erótomas jocundas
Enfácil de aurifácil
Santalmas! Nobildócio
Equiapa rício coalfa
Cambiuti cosseu
E prúdinas constrócios
Elentes ventadomas.
Trata-se de um prefácio que Vinícius fez para um livro de Aparício Torelly, o conhecido Barão de Itararé. Assim, no meu entender, deveria ser aqui
“A Formação da Linguagem Literária Contemporânea”.
O segundo tópico é com relação à Criação na Literatura Contemporânea.
Compreendo como tal a maior parte da produção literária a partir de 1922,
independente da denominação de fases dos livros didáticos e da moda universitário do “pós-moderno”. No livro A retórica do silêncio (1979), falo de
dois tipos de criação literária no modernismo: A vanguarda natural, que vem
acompanhando por dentro a transformação dos grandes escritores, poetas e
prosadores; e a vanguarda provocada, a dos manifestos que pregam a destruição da tradição e lutam por uma linguagem nova. Ora, toda transformação, por
dentro ou por fora, se manifesta pela e na linguagem. O ser nova ou velha é
que determina se o escritor está se repetindo ou repetindo os outros escritores
ou, pelo contrário, está criando formas novas ou modificando-as dentro das
possibilidades do idioma.
Como exemplo, selecionei apenas alguns poetas modernistas para, com
eles, procurar mostrar a diversidade de aspectos técnicos e estilísticos que
condicionam a linguagem da literatura contemporânea. Acredito que toda a
renovação pode ser motivada por duas atitudes perante a linguagem — a da
construção verbal (com predomínio da hipotaxe) e a da construção nominal
(com a ênfase posta na parataxe). O ideal tem sido a mistura harmônica dos dois
tipos de construção, como na poesia de Manuel Bandeira, Mário de Andrade,
Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Cassiano Ricardo e Murilo
Mendes. Posso também dar exemplos de Gilberto Mendonça Teles em vários
poemas e em teses de doutorado e várias dissertações de mestrado.
1. Manuel Bandeira – A competência estético-literária de Manuel Bandeira
levou-o a experimentar, de maneira aparentemente discreta, todas as possibilidades da linguagem poética. Às vezes, as suas inovações gritam por si mesmas,
chamam a atenção pelo seu tom de inusitado, mas acabam por conquistar o
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A língua literária contemporânea
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leitor. Daí a extrema popularidade de seus poemas, muitos dos quais, em versos
livres, na boca do povo. Mas veja como ele sabe fazer algo novo com as palavras
velhas: “Teu corpo claro e perfeito,/ Teu corpo de maravilha,/ Quero possuílo no leito/ estreito da redondilha”. A partir de esquema métrico tradicional
(a redondilha maior), com rimas conhecidas e palavras comuns da língua, ele
constrói a imagem da mulher — da Poesia — que o sujeito lírico quer possuir
(possuindo-a) dentro do próprio poema, num belo exemplo de metalinguagem
poética. Pode-se falar nos quatro pontos cardeais de experimentação poética
de Manuel Bandeira, assim compreendida:
a) Estudou a poética trovadoresca e escreveu poemas no estilo medieval,
como “Cossante” e “Cantar de amor”, de Lira dos cinqüent’anos, apropriando-se de formas, temas e técnicas dos trovadores, mas dando-lhes uma atualidade
carioca no refrão, como em “Cossante”:
Ondas da praia onde vos vi,
Olhos verdes sem dó de mim,
Ai Avatlântica!
b) Leu os poetas concretistas e soube imitar muito bem o “modelo” poemático de alguns textos concretos, como o poema “Ponteio” que dá uma idéia
das suas experimentações com as palavras se arrumando em três blocos e em
torno do eixo semântico verde/ negro. Veja-se o primeiro bloco do poema e
o jogo sonoro de que o poeta lança mão fazer algo difere, construindo e desconstruindo as palavras:
dever
de ver
tudo verde
tudo negro
muito verde
muito negro
verde-negro
c) Encontrou nos clássicos, românticos e parnasianos (Camões, Gonçalves Dias e Bilac) as principais formas fixas e os principais recursos poéticos.
Bandeira escreve que foi graças a Sousa da Silveira que ele pôde sentir “nos
grandes escritores do passado esse elemento indefinível que é o gênio da
língua”, acrescentando: “A sua lição foi, e continua sendo vida afora, muito
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Gilberto Mendonça Teles
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preciosa para a minha experiência poética”. Foi um exímio transformador das
formas clássicas, escrevendo poemas com o título de voltas, rondós, rimancetes,
madrigais, baladilhas e haicais. Das formas clássicas, ele conservou apenas o
nome e uma que outra característica estrutural, quase sempre de ordem repetitiva ou rítmica, como em “Balada de Santa Maria Egipcíaca” ou na construção
nominal de “Rondó dos cavalinhos”, como na sua última estrofe:
Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
O Brasil politicando,
Nossa! A poesia morrendo...
O sol tão claro lá fora,
O sol tão claro, Esmeralda,
E em minhalma – anoitecendo!
d) Além disso, Manuel Bandeira teve o talento e o bom senso de se abrir
também na direção da cultura popular, retirando de temas e formas populares
a substância mais íntima de sua dicção modernista. Poemas como “O Anel de
vidro” “Os sinos”, “Na rua do sabão”, “Irene no céu” e “Vou-me embora p’ra
Pasárgada”, “O amor, a poesia, as viagens”, a “Boca do forno” e “Trem de
ferro”, ou “Cantadores do Nordeste”, onde os principais elementos da poética
popular são admiravelmente dinamizados:
Anteontem, minha gente,
Fui juiz numa função
De violeiros do Nordeste,
Cantando em competição,
Vi cantar Dimas Batista,
Otacílio, seu irmão.
Ouvi um tal de Ferreira,
Ouvi um tal de João.
Um, a quem faltava um braço,
Tocava cuma só mão,.
Mas, como ele mesmo disse,
Cantando com perfeição.
Para cantar afinado,
Para cantar com paixão,
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A força não está no braço:
Ela está no coração.
2. Mário de Andrade – Na sua poesia a retórica antiga convive com a nova
que é responsável pela carga de estranhamento que vai sobressaltando o leitor,
em todos os níveis, como, por exemplo, na incorporação de palavras da linguagem comum, do tipo feijão, toucinho, carecas, cabelo nas ventas e tantas
outras. Fonte de admiração são também as palavras e expressões estrangeiras
(italianas, inglesas, alemãs e francesas), a que se juntam arcaísmos (giolhos),
prosaísmos, construções nominais, como nestes versos de “Tietê”, motivos aliás
de sua nova teoria poética (cf. “Prefácio interessantíssimo”):
Arroubos... Lutas... Setas... Cantigas... Povoar!...
Ritmos de Brecheret!... E a santificação da morte!...
Foram-se os outros!... E o hoje das turmalinas!...
Passa-se daí à criação de imagens em que o pensamento lógico cede
lugar ao analógico, criando-se imagens como homem-curva, homem-nádegas
bem de acordo com o processo de Marinetti. Com isso vai trazendo para a sua
poesia elementos da retórica popular, como o trocadilho, e jogos de palavras,
tipo: “Um penacho de viúvas restritas / restritas não restrutas”. Ou como nos
ludismos de:
Onde estão os coloridos italianos? onde estão os turcomanos?
Onde estão os pardais, madame La Françoise,
Ergo, ego. Ega, égua, iota, calúnia e notícias,
Balouçantes nas marquesas dos roxos arranha-céus?...
3. Oswald de Andrade – A obra de Oswald de Andrade — tudo o que ele escreveu de poesia, de romance, de teatro, de polêmica, de manifesto — contribuiu
para a linguagem moderna, como o simultaneísmo de que se vale para expressar
de uma só vez as duas ordens de idéias que andavam na cabeça do menino, que
rezava: “— Senhor convosco, bendita sois entre as mulheres, as mulheres não
têm pernas, são como o manequim de mamãe até em baixo. Para que pernas
nas mulheres, amém”.
O Manifesto da poesia pau-brasil e o Manifesto antropófago se valem
da descontinuidade do pensamento e da linguagem para subverter a maioria
dos valores consagrados pela nossa tradição cultural. No Manifesto pau-brasil
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escreve contra a gramatiquice da época, pedindo uma “A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos
os erros. Como falamos. Como somos”. E é por aí que ele chega a um tipo de
metalinguagem primária como nos poemas “Vício na fala”, “O gramático” e
“Pronominais”, de grande efeito humorístico e de notável sarcasmo perante a
crítica tradicional que, por volta de 1920, não conseguia sair do policiamento
gramatical. Eis o “Pronominais” feito a propósito para irritar os gramáticos
sem sensibilidade literária:
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro
O espírito brincalhão de Oswald o levou à construção de um dos seus
poucos poemas metrificados, de sete sílabas e, portanto, de feição bem popular.
É o que se lê em “Epitáfio”, onde, crítica às formas tradicionais, nos mostra
também como o poeta soube tirar proveito de associações como redondo (gordo) e redond’ilha e explorar uma referência fantástica (o riso da caveira) para
introduzir o eco de uma risada e quebrar o verso de sete sílabas:
Eu sou redondo, redondo
Redondo, redondo eu sei
Eu sou uma redond’ilha
das mulheres que beijei
Por falecer de oh! Amor
Das mulheres de minh’ilha
Minha caveira rirá ah! ah! ah!
pensando na redondilha.
É como se o próprio poeta, morto ou vivo, estivesse rindo de quem compõe redondilhas ou rindo de si mesmo, pelo fato de haver também feito esses
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versos redondilhos. Ou rindo, talvez, da pronúncia inglesa (Ôswald) de seu
nome entre os universitários, sobretudo no Rio de Janeiro.
4. Carlos Drummond de Andrade – Drummond é o poeta que conseguiu levar mais longe o projeto estético do modernismo, criando uma das vertentes
mais luminosas da poesia brasileira neste século. A sua obra se constrói sob
o impulso de duas energias criadoras: a consciência da criação pela literatura
(“Tudo é teu que enuncias”) e a consciência de que essa criação se processa
através da língua.
Com relação ao vocabulário, as suas palavras, em “estado de dicionário”,
podem ser selecionadas dentro de uma visão de tempo e espaço, ou seja: quatro
áreas lexicais ligadas ao tempo: arcaísmos (geolhos, fenestra), neologismos (insiderável, dangerosíssima), gíria (morou, manja) e profissionalismo (sintequeiro,
overloquista); e quatro áreas lexicais referentes ao espaço (os regionalismos):
termos do Sul (chê, guasca), do Nordeste (avexa, Senhor do Bonfim), do Norte
(caxiri, guapuiar) e termos do Centro-Leste, como as gírias cariocas (quadrado,
fundir a cuca). / E há vários processos retóricos,como: montagem (ferotriste, noitidão), estrangulamento (col/onizar, desfal / ecimento), repetição (canta, canta,
canarinho; fala fala fala fala), trocadilho (ações ao portador e portadores sem ação),
onomatopéia (vupt e rrr), modismos (quedê, sol danado), locuções e anexins (“viver
não era sangria desatada”, “bom era ter costas quentes”), termos indígenas (mayra,
tupi; girirebboy, bororo), estrangeirismos (smart, gauche), siglas (ABBR, BR-15),
deformações ortográficas (arkademia, jinela), motivações fono-semânticas (“De
repente uma banda preta/ vermelha retinta, suando/ bate um dobrado batuta/ na
doçura/ do jardim”), construções nominais (“O fácil o fóssil / o míssil o físsil / a
arte o infante”), ordem indireta (“de seu peso terrestre a nave libertada”), pontuação
(“A bomba / declara-se balança da justiça arca de amor arcanjo de fraternidade”),
além de procedimentos técnicos e semânticos, como: alusão (bíblica: “Meu Deus,
por que me abandonaste”; literária: “Bicho da terra, vil e tão pequeno”, Camões),
gradações sinonímicas (“Estou escuro, estou rigorosamente noturno, estou vazio”),
homônimos (cava, cava), antônimos (automóveis imóveis), parônimos (lavar,
lavrar) e, finalmente, a enumeração, sobretudo a caótica (“Pensando com unha,
plasma, / fúria, gilete, desânimo”). Mas não fica aí; o escritor fala em substantivo,
adjetivo, verbo, pronome, sintaxe, enumera as preposições e conjunções e chega
até a falar num “pequeno mistério policial ou a morte pela gramática”.
planta suas árvores no homem e quer vê-las cobertas
de folhas, de signos, de obscuros sentimentos.
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Os seus neologismos não tumultuam e, balançadas pelo ritmo do poema,
nos soam naturais, como em “Os materiais da vida”:
Drls? Faço meu ser em vidrotil
nossos coitos serão modernfold
até que a lança de interflex
vlpax nos separe
em clavilux
camabel camabel O vale ecoa
sobre o vazio de ondalit
a noite asfáltica
plkx.
Finalmente, dois exemplos metalingüísticos. No poema “Explicação”,
de seu primeiro livro, se vê que “A Europa é uma cidade muito velha onde só
fazem caso de dinheiro/ e tem umas atrizes de pernas adiectivas que passam
a perna na gente”.
5. Cassiano Ricardo – Cassiano Ricardo deixou a sua teoria poética codificada
em Algumas reflexões sobre poética de vanguarda (1964). E o seu espírito
irrequieto o levou a sondar as possibilidades mais extremas da expressão,
valorizando como ninguém os sinais auxiliares da escrita, como hífen, travessão, apóstrofe, barra, aspas e parênteses .Fez montagens do tipo M’orfeu,
juntando num só vocábulo o deus da poesia e o deus do sono, e sobretudo em
O arranha-céu de vidro, onde o mesmo processo se faz metalingüístico, como
na primeira estrofe de “O avião e o gavião”, conotando a linguagem de um
avião de guerra:
O gavião obrigou o avião
a descer em furiosa algazarra,
pois viu nele um outro gavião
só sem o g da sua garra.
6. Murilo Mendes – A poesia de Murilo Mendes, que começou parodiando a
história do Brasil, chegou à década de setenta numa convergência altamente
experimental. Vivendo há muito tempo na Itália, Murilo Mendes incorporou o
ritmo esdrúxulo do italiano e, tocado pela aura da vanguarda e da obra aberta, o
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poeta fez convergir uma série de experimentações, que fazem o leitor tradicional
torcer o nariz diante de muitas invenções, consideradas como brincadeiras. Os
procedimentos em si valem como tentativa pessoal de ir além das vanguardas,
mas têm o inconveniente de repetir-se várias vezes, o que nos leva à automatização do processo e, e, conseqüência, à interrupção do prazer estético. Um
desses procedimentos é o da declinação lúdica, como aparece no “Exergo” de
Convergência:
Orfeu Orftu Orfele
Orfnós Orfvós Orfeles
Noutro poema volta a escrever “Isabel. Isabelanda, Isabelinda, Isabelonda,
Isabelunda”; e noutro: “O caracol o caracal o caracul/ o caramelo caromel o
carofel”. Mas a capacidade de Murilo contemplar a linguagem está presente
num “Grafito segundo Kafka”, onde a letra k é que é o tema principal:
Os dois K do meu nome: num só nome.
O F comprimido entre dois A, dois K.
Pobre deste nome sem esfera. Só ângulo.
Toda a angulosidade do nome de Kafka se vê analisada num mínimo
poema, tão curto quanto o nome mas tão forte no seu poder de criar imagens a
partir do grafema e não somente do fonema.
Mas, do ponto de vista da invenção visual e dinâmica, o mais belo é mesmo o “Murilograma a João Sebastião Bach”, composto de duas colunas como
se fossem as teclas branca e preta do piano (ou do cravo): na primeira, as duas
primeiras partes do nome do compositor: “João Sebastião”, e, na segunda, a
variação, melhor, a transformação da ressonância de “Bach”:
João Sebastião
João Sebastião
João Sebastião
João Sebastião
João Sebastião
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mete o som na mão
mete o sol na mão
martelando o órgão
espaventa o górgão
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temperando o cravo
João Sebastião
tolhe-nos o travo
João Sebastião
restaurando Orfeu
Murilo Mendes, tal como Cassiano Ricardo, pôs em ação uma série de
elementos auxiliares da escrita, como hífen, travessão, longos traços, letras em
caixa alta, espaço em branco, esfera negra, números, barras, enfim elementos
que desviam a atenção do leitor e, ao mesmo tempo, lhe incorporam uma significação especial, mas ambígua, polissêmica. O poema “Texto de informação”,
de informação teórica, é todo um campo de verificação de novidades retóricas:
formado por seis partes, sintetizam o gosto, o conhecimento, as ousadias gramaticais e estética, as incoerências e a técnica poética de Murilo Mendes no
final da sua vida:
1
Noitefazes
Ou desfazes?
Noite redonda
Cararredonda
Ar voando:
Sono da palavra
Coisa-feita.
Dia quadrado
Caraquadrada
Ar parando:
Insônia da palavra.
Coisa-fazes.
Diafazes.
2
Tiro do bolso examino
Certas figuras de gramática
de retórica
de poética
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Considero-as na sua forma visual
Fora de função / no seu peso específico
& som próprio
de palavras isoladas:
Oxímoron; anaclase. Sinérese
Sinédoque. anacoluto. Metáfora
Hipérbato. hipérbole. Hipálage
Assíndeto
3
Ponga, s.f. Brás. Norte) Espécie de jogo. Consiste
num quadrilátero de madeira ou papel em que se- traçam
duas diagonais de papel e duas perpendiculares que se
cruz e em que se jogam dados.
4
Inserido numa paisagem quadrilingue
Tento operar com violência
essa coluna vertebral, a linguagem.
Esquadrinho nas palavras
Meu espaço e meu tempo justaposto.
E dobro-me ao fascínio dos fatos
Que investem a página branca:
Perdoar-me
Valéry
Drummond.
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5
... as palavras / coisas / são belas
No seu vestido justo
Criado por alfaiates-óticos.
6
Eu tenho a vista e a visão:
Soldei-me concreto e abstrato.
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Webernizei-me. Joãocabralizei-me.
Francispongei-me. Modrianizei-me.
O leitor é que se dane na obtenção de significações, o poeta quer apenas passar
a imagem das inúmeras possibilidade de pôr a língua a serviço da expressão estética
que se quer nova, embora nem sempre expressão rigorosamente estética.
7. Gilberto Mendonça Teles – Sobre um arcabouço tradicional herdado de
clássicos, românticos, parnasianos e simbolistas, este poeta vem procurando
construir a sua dicção moderna, fazendo convergir para ela as inúmeras experimentações de impressionistas, futuristas, cubistas, expressionistas, “espiritonovistas”, dadaístas e surrealistas, que ele tem sabido harmonizar com a
herança clássica.Tendo consciência de que o poeta está sempre em luta com
inúmeras restrições (gramatical, ética, estética, política quando não da própria
criação), Gilberto pensa que o poeta deve conhecer muito bem a sua língua, no
passado e no presente, a fim de poder jogar com as palavras de todas as épocas.
Para ele, o poeta sempre nos ensina que, brincando com as palavras, estamos
aprendendo a brincar com a vida e com o mundo. Esta alegria de viver que ele
passa a quem dele se aproxima — uma das marcas da personalidade de Gilberto,
como escreveu um crítico — transparece em todos os níveis da sua realidade: no
amor, na linguagem, no trabalho e na visão político-social, cheia de esperança
para o homem brasileiro e para os destinos mais altos do Brasil.
Desde os seus primeiros livros, ele vem trabalhando ludicamente com a
lingagem, sobretudo depois de A raiz da fala, onde já se encontra no soneto
“Pavloviana”, um verso decassílabo todo ele feito de relações fônicas e lexicais, como
No ar vou árvore vou ave vou
ando só e noturno.
A palavra “ar” se junta ao verbo “vou” e as duas sugerem o substantivo
“árvore” que começa a se decompor em “vou” e “ave” para depois com o
verbo “ando” sugerir “voando”, tudo a partir da repetição do verbo “vou” que,
fonicamente, lembra o substantivo “vôo”. Noutro poema, agora em Arte de
armar, retoma no poema “Peri-Patético” (um índio confuso andando na cidade), o processo de andar filosofando entre as coisas para contestar o serviço
mal feito das multas no Rio de Janeiro. Observe que os versos vão mudando
de tamanho (do tipo 9 para o 11, deste para o 14 e finalmente para o tipo 16,
com o último de le tre a do:
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Ando e tu m
ultas
ando e te multo
ando em tumulto
tumultuando
O poeta cria palavra como “finício” (fim e início) e o seu conhecido “falavra”, título de uma de uma antologia publicada em Lisboa., poemas inteiro
com versos nominais, como o “Chá das cinco”, de Plural de nuvens, também
editado em Lisboa e cujos primeiros três versos são:
chá de p oejo para o teu desejo
chá de alfavaca já que a carne é fraca
chá de poaia e rabo de saia
Com a 4.ª edição de Hora aberta (Vozes, 2003), apareceram os seus (Im)
provisuais, onde reúne alguns de seus poemas visuais (não concretos), entre
os quais
HUMO®DERNISMO
prepro-
antiυεωτερισμός
neo-
pósposter
j
m
m
a
k
i
n
a
z
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v
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e
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c
o
l
n
f
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humo®dernismo, gilberto mendonça teles
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8. Até agora falei apenas da linguagem de poemas, mas o que dizer da
linguagem da prosa (da ficção) de Guimarães Rosa, em texto como, por exemplo, o de Tutaméia, publicado em 1967, poucos meses antes de sua morte? Se
o leitor (sobretudo os privilegiados) não ler, reler e ler de novo (aliás como
sugere o próprio autor com as duas epígrafes de Shopenhauer), se o leitor não
souber ler com inteligência, passará por cima ou deixará logo o livro de lado.
Só depois que vai descobrindo as inúmeras nuances do texto e sentindo o
discurso em si mesmo, independente às vezes da história, é que irá encontrar
a beleza da sua linguagem, vendo-a desabrochar de todos os níveis de sentido
do discurso. É o caso, para ficar num só exemplo, o do conto “O desenredo”,
de duas páginas e meia e cujos primeiros 13 parágrafos expõem o enredo da
“estória” cujo “desenredo” é simplesmente belo. Vejam-se apenas os dois primeiros parágrafos e depois saiam correndo em busca do livro para conhecer
o final da estória, como o autor fez questão de denominou os seus pequenos
contos, cheios de oralidade:
Do narrador a seus ouvintes:
— Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja.
Tinha o para não ser célebre. Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir,
e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação,
a Jó Joaquim apareceu.
— Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim,
entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento. Mas
muito tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas
Conclusão
O objetivo era mesmo este: apresentação dos recursos retóricos de que se
valeram (e se valem) os poetas brasileiros do século e da atualidade, inclusive
os que recorreram a linguagens não-verbais, semióticas, visuais. Valeria por
último assinalar que o tipo de criação e de experimentação que arrolamos aqui
está na linha da competência. Criar dentro da tradição exige um saber desta
tradição e, mais ainda, exige um teor de originalidade que ultrapasse a própria
tradição. E, claro, toda essa linguagem literária acaba interferindo na dinâmica
da língua. Muito obrigado.
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Machado de Assis e a retórica da dissimulação
Castelar de Carvalho
UFRJ, LLP
No capítulo XXV de Dom Casmurro, José Dias, o homem dos superlativos, diz que Capitu tinha olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Mas oblíquo
e dissimulado mesmo era o escritor Machado de Assis (1839-1908), com seus
procedimentos narrativos sinuosos e enganadores, sobretudo a partir da segunda
fase de sua obra de ficção.
Machado é tido pela crítica como um mestre na arte do desmascaramento,
porém é mais mestre ainda na arte do despistamento, preferindo a insinuação
e a perífrase à abordagem direta e categórica. Afirmações de caráter absoluto
e dogmático não se coadunavam com seu temperamento cauteloso e evasivo,
mas nem por isso deixou de sondar os desvãos da alma humana ou de revelar,
nas entrelinhas de sua prosa enviesada, as mazelas da sociedade oligárquica do
Segundo Reinado (1840-1889). Mas soube fazê-lo à moda de Capitu: dissimuladamente. De tal forma, que ao leitor desatento passam despercebidos certos
artifícios narrativos, expressões do seu humor irônico e do seu olhar crítico e
zombeteiro. Rompendo os limites entre o sério e o cômico ou, em suas próprias
palavras, escrevendo com “a pena da galhofa e a tinta da melancolia”, à semelhança do seu defunto autor Brás Cubas, Machado de Assis aplica piparotes no
leitor sem que este o perceba, estruturando e desestruturando frases, compondo
e descompondo personagens, enfatizando sem enfatizar, dizendo sem dizer,
fingindo que não é aquilo que é ou poderia ser. Não foi por acaso que criou o
mais intrigante enigma da literatura brasileira e o encanto do romance Dom
Casmurro: a eterna dúvida sobre a traição de Capitu.
Recorrendo a procedimentos estilísticos como a antítese, a paródia, a
intertextualidade, a quebra de paralelismo, a adjetivação compensatória, misturando gêneros, subjetivando o tempo e o espaço, interrompendo a narrativa
com digressões, estilizando o discurso das personagens, fingindo que ignora
informações, usando fórmulas dubitativas e, sobretudo, abusando da litotes
e da preterição, duas figuras de retórica perifrásticas e sinuosas, Machado se
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Castelar de Carvalho
revela um narrador dissimulado e irônico, o tempo todo a brincar com o leitor
e a instigar-lhe a capacidade de percepção.
Embora alguns dos procedimentos acima já se encontrem em suas crônicas
(algumas delas são verdadeiros contos), é no romance Memórias póstumas de
Brás Cubas (1881) que se consolida o seu estilo ziguezagueante, assim definido
no capítulo LXXI: “Este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à
direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam
o céu, escorregam e caem...”. Nesse sentido, Brás Cubas seria um representante
moderno do gênero cômico-fantástico, por suas vinculações formais com a
chamada sátira menipeia, assunto que foge aos objetivos deste trabalho. Sobre
as influências presentes na narrativa machadiana da segunda fase, consultar os
estudos de Enylton José de Sá Rego, José Guilherme Merquior e Sergio Paulo
Rouanet, relacionados na bibliografia.
Machado teve a maior parte de sua obra de ficção publicada originalmente
sob a forma de folhetins. É uma circunstância que o leva a manter o interesse
constante do seu leitor, por meio de um jogo lúdico que inclui o suspense no
encadeamento da narrativa, principalmente na fase romântica, aliado a certas
estratégias estilísticas sutis, que tentaremos sistematizar neste trabalho. Privilegiamos na pesquisa exemplos extraídos de Memórias póstumas de Brás Cubas,
romance que, além de ser um divisor de águas na obra do autor, revela-se o
mais representativo conjunto dos procedimentos estilísticos originais adotados
por Machado de Assis, a partir da segunda fase de sua obra de ficção, marcada
pelo chamado realismo interior, de caráter intimista e introspecção psicológica.
Servimo-nos também de alguns contos publicados nessa fase, a partir de Papeis
avulsos (1882), livro que está para os contos assim como Brás Cubas está para
o romance, em termos de originalidade e renovação de técnica e estilo. No caso
dos romances, mencionamos nos exemplos citados o número dos capítulos, em
geral curtos, o que facilita a identificação pelo leitor.
Utilizamos sempre as edições críticas do Instituto Nacional do Livro. Por
questões de ordem prática, as referências ao nome de Machado de Assis envolvem as categorias de autor e narrador real, que nem sempre coincidem com as do
pseudonarrador das autobiografias ficcionais. Mas passemos à exemplificação,
que, em alguns casos, serve a mais de um item.
Adjetivação compensatória
É um artifício usado por Machado de Assis para transmitir, de forma
atenuada ou contrastiva, o que ele realmente quer dizer ou realçar. Algumas
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Machado de Assis e a retórica da dissimulação
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adjetivações apresentam-se impregnadas de humor, outras de ironia ou de
perplexidade diante de algum fato para o qual o autor/narrador não encontra
explicação.
Tinha então 54 anos, era uma ruína, uma imponente ruína. (BC, V. Brás Cubas
descreve Virgília, sua ex-amante da juventude, com um substantivo concreto:
ruína. Mas contrabalança a descrição acrescentando-lhe um adjetivo abstrato:
imponente. Como diz o ditado popular, “quem foi rei nunca perde a majestade”).
Tinha eu conquistado em Coimbra uma grande nomeada de folião; (...), fazendo
romantismo prático e liberalismo teórico. (BC, XX).
Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a pachorra de
um homem já desafrontado da brevidade do século, obra supinamente filosófica,
de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona. (BC, IV).
Minha mãe era uma senhora fraca, (...) caseira, apesar de bonita, e modesta,
apesar de abastada. (BC, XI).
Vi-o conversar com Dona Eusébia, irmã do sargento-mor Domingues, uma
robusta donzelona, que se não era bonita, também não era feia. (BC, XII).
Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril: e
coxa! (BC, XXXIII).
Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita? (BC, XXXIII).
Triste, mas curto. (BC, XXIII). Curto, mas alegre (BC, XXIV).
Positivamente era um diabrete, Virgília, um diabrete angélico, se querem, mas
era-o. (BC, XLIII).
Antíteses
Astrojildo Pereira (1959:167) foi quem primeiro percebeu os aspectos
dialéticos da prosa machadiana. Ficcionista que cultiva a contradição e o
conflito, Machado, já em seu primeiro romance, Ressurreição (1872), capítulo V, apresenta, pela boca da personagem Félix, uma definição de vida que
confirma o seu gosto pela expressão dialética: “Mas que é a vida senão uma
combinação de astros e poços, enlevos e precipícios?”. Ao longo de toda a sua
obra de ficção, Machado irá cultivar esse jogo de imagens duplas, antitéticas,
ora analisando seu processo narrativo, ora tecendo reflexões sobre a condição
humana, temperando-as com o molho do seu humor fino e irônico.
“Eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor” (BC,
I. Neste quiasmo perfeito (AB x BA), Machado explora estilisticamente a
permutabilidade sintática dos nomes substantivo e adjetivo, da qual podem
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resultar marcas gramaticais e semânticas distintas. Em “autor defunto”, autor
é substantivo, núcleo do grupo nominal, e defunto é adjetivo, na função de adjunto adnominal, referindo-se o sintagma a um sujeito que era escritor em vida.
Em “defunto autor”, ao contrário, defunto é substantivo e núcleo do sintagma,
enquanto autor é adjetivo e adjunto adnominal. Neste caso, trata-se de uma
personagem que se tornou autor depois de morto, em coerência com o título
do romance. Por outro lado, “autor defunto” também pode ser entendido como
uma referência irônica ao agonizante Romantismo, sobre o qual Machado de
Assis jogou a última pá de cal, com suas Memórias póstumas de Brás Cubas,
romance que inaugura o Realismo entre nós).
Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a pachorra
de um homem já desafrontado da brevidade do século, obra supinamente
filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, coisa
que não edifica nem destrói, não inflama nem regela e é, todavia, mais do que
passatempo e menos do que apostolado. (BC, IV. As ideias do narrador têm
duas faces, como as moedas, imagem apropriada para simbolizar a duplicidade
do discurso machadiano).
Cada século trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de
verdade e de erro. (BC, VII. Este capítulo, “O delírio”, que alguns consideram a
chave para o entendimento de Brás Cubas, é rico em imagens contrastivas).
Vi-o conversar com Dona Eusébia, irmã do sargento-mor Domingues, uma
robusta donzelona, que se não era bonita, também não era feia. (BC, XII).
Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita? (BC, XXXIII. Antítese formada por um quiasmo perfeito: AB x BA. Note-se também o humor irônico da
pergunta, questionando uma aparente incoerência da natureza).
Cinqüenta anos! Não é ainda a invalidez, mas já não é a frescura. (BC,
CXXXV).
Conversas com o leitor
Em seus romances e contos, Machado de Assis leva o leitor a exercer
um papel ativo, chegando quase a incutir-lhe a ilusão de que ele é coautor da
narrativa. Machado o conduz “pelo braço” de um lado para outro, suscita-lhe
reflexões, puxa-lhe as orelhas, convida-o a deslindar situações e comportamentos das personagens, aplica-lhe piparotes, enfim, não deixa o leitor um
só momento sossegado, principalmente a partir de Brás Cubas. Estes procedimentos emprestam ao seu texto um tom coloquial, a par de um humor fino,
por vezes irônico.
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A maior parte da obra de ficção de Machado de Assis foi publicada originalmente sob a forma de folhetins, dirigidos a um público heterogêneo. Lidando
com esse tipo de leitor, Machado usa a 3.ª pessoa indireta (amigo leitor, leitora,
senhor, senhora) ou a segunda pessoa direta (em geral, tu; algumas vezes, vós),
manobrando com mestria esse jogo lúdico cuja finalidade, em princípio, é
manter o interesse do leitor na narrativa, a par da criação de um certo clima de
suspense. Mas, por outro lado, esse artifício pode ser entendido também como
uma forma dissimulada de aliciamento do leitor, de envolvê-lo numa espécie
de cumplicidade com o narrador, num procedimento retórico que os clássicos
chamavam de captatio benevolentiae, “captação da benevolência”, literalmente.
Numa tradução livre, conquista da empatia do leitor.
Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto. (BC, II. Ma���
chado elege o leitor como árbitro).
Não se conclua daí que eu levasse todo o resto da minha vida a quebrar a
cabeça dos outros. (BC, XI. Machado adverte o leitor de que não faça ilações
precipitadas).
Não tremas assim, leitora pálida; descansa, que não hei de rubricar esta lauda
com um pingo de sangue. (BC, LXIII. Machado tranquiliza a leitora a respeito
do desenrolar da narrativa).
Vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu
tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e
nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios...
(BC, LXXI. Machado censura o leitor e aproveita para fazer uma crítica indireta
ao estilo linear da narrativa tradicional romântica).
Eis aí um mistério; deixemos ao leitor o tempo de decifrar este mistério. (BC,
LXXXVI. Aqui, Machado transfere ao leitor o encargo de desvendar um
enigma).
Não sendo meu costume dissimular ou esconder nada, contarei nesta página o
caso do muro. (BC, CXI. Machado, o dissimulador-mor, diz que não dissimula
nem esconde nada. Pura galhofa com o leitor).
Deixemos Rubião na sala de Botafogo, batendo com as borlas do chambre nos
joelhos, e cuidando na bela Sofia. Vem comigo, leitor; vamos vê-lo, meses antes, à cabeceira do Quincas Borba. (Quincas Borba, III. Machado trata o leitor
com intimidade,“pega-o pelo braço” e convida-o a conhecer, em flashback, as
circunstâncias em que Rubião conheceu Quincas Borba em Barbacena).
Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já ideias atrevidas. (Dom Casmurro,
XVIII. Exemplo típico de captatio benevolentiae, com Bentinho, narrador-
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personagem, dirigindo-se diretamente ao leitor, para tentar convencê-lo das
artimanhas precoces de Capitu).
Correlação “não A, mas B”
Esta estrutura correlativa, muito usada por Machado de Assis, é uma
variante ampliada da litotes tradicional. Nela, os termos “não A” e “mas B”
mantêm entre si as mais diversas relações de sentido e inferência estilística,
numa síntese dialética de negação e afirmação. Esse tipo de litotes se repete
inúmeras vezes em toda a ficção machadiana e, ao lado da figura chamada gradação, é uma das obsessões estilísticas do Bruxo do Cosme Velho. Sobre este
assunto, recomendamos a proveitosa leitura do capítulo “A litotes em Machado
de Assis”, de Hélcio Martins (v. bibliografia).
Eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor. (BC, I. O
termo B retifica o termo A).
Com esta reflexão me despedi eu da mulher, não direi mais discreta, mas com
certeza mais formosa entre as contemporâneas suas. (BC, V. O termo B destoa
do termo A).
Havia já dois anos que nos não víamos, e eu vi-a agora, não qual era, mas qual
fora. (BC, VI. O termo B corrige o termo A. Note-se a mudança de perspectiva
temporal na oposição entre as formas verbais era e fora).
Não era homem que visse a parte substancial da igreja; via o lado externo. (BC,
XI. O termo B ratifica o termo A).
Uma flor, o Quincas Borba. (...). Era a flor, e não já da escola, senão de toda a
cidade. (BC, XIII. O termo B amplia ironicamente o termo A).
Nunca o desejo era razoável, mas um capricho puro, uma criancice. (BC, XV.
O termo B reitera e amplia o termo A, aqui em sua variante com o advérbio
nunca).
Não estava magra; estava transparente. (BC, XIX. O termo B amplia a extensão
do termo A).
Não haverá estro, (...), mas ninguém me negará sentimento. (BC, XIX. O termo
B compensa o termo A).
Era um despotismo temperado, — não por cantigas, como dizem alhures, —
mas por penachos da guarda nacional. (BC, XCII. O termo B se contrapõe, de
forma zombeteira, ao termo A).
Não disse preços baratos, mas usou uma metáfora delicada e transparente. (BC,
XXXVIII. O termo B retifica o termo A).
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Não sei por que, imaginei que a carta imperial da nomeação podia atraí-la à
virtude, não digo pela virtude em si mesma, mas por gratidão ao marido. (BC,
CI. O termo B complementa o termo A).
Não era a frescura da primeira idade; ao contrário; mas ainda estava formosa, de uma formosura outoniça, realçada pela noite. (BC, CXXX. O termo B
compensa o termo A).
Cinqüenta anos! Não é ainda a invalidez, mas já não é a frescura. (BC, CXXXV.
Realçada pelos advérbios ainda e já, há uma espécie de dialética compensatória
entre os termos A e B, para destacar a meia-idade do narrador).
Digressões
A técnica do narrador intruso, a inserir digressões na narrativa, já existe nos
romances e contos da primeira fase da ficção machadiana, mas ela se acentua
a partir de Brás Cubas. Este, na condição de narrativa não-linear, apresenta
inúmeras interrupções, como, por exemplo, a do capítulo XXI, “O almocreve”, um conto dentro do romance, exemplo típico da mistura de gêneros. Ver
também os seguintes capítulos, todos dedicados a digressões filosófico-morais:
XVI, XLII, XLIX, XCVII, CXIII, CXIX, CXLIX. Os capítulos LXXI, LXXII,
CXXXII e CXXXVIII são digressões metalinguísticas, enquanto o CXXXV
trata do tempo, eterna preocupação do nosso proustiano romancista. Fragmentando e conduzindo o texto, o autor Machado de Assis intervém abertamente
na narrativa, à revelia do narrador Brás Cubas e do leitor. Este nem sempre
se dá conta de que está sendo enredado pelo estilo ziguezagueante da dupla
Machado-Brás Cubas.
Em Quincas Borba, romance em terceira pessoa, o narrador não interfere
tanto na narrativa, mas também se encontram digressões, como a do capítulo XL,
de natureza humorística, mitológica e literária. Em Dom Casmurro, narrativa
memorialista e pseudo-autobiográfica, que favorece a intervenção do narrador,
ver, dentre outros, os capítulos IX e X, dedicados a digressões filosóficas.
Estilização da fala das personagens
Machado de Assis é considerado um grande frasista. Já se publicaram
dicionários relacionando suas frases de efeito, cujo conteúdo gira em torno de
reflexões de natureza literária, filosófica ou moral. Mas nem sempre ele o faz
diretamente, preferindo, em alguns casos, filosofar de maneira sutil, por meio
da estilização do suposto discurso da personagem. Curioso é que esta, muitas
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vezes, seria incapaz de se expressar em termos elevados, como é o caso de Rita,
do conto A cartomante, pintada pelo narrador como “formosa e tonta”.
Foi então que ela [Rita], sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe
que havia muita coisa misteriosa e verdadeira neste mundo. (“A cartomante”,
Várias histórias).
Tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este
pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só
o interesse é ativo e pródigo. (“A cartomante”, Várias histórias).
Não disse preços baratos, mas usou uma metáfora delicada e transparente.
(BC, XXXVIII).
Frases dubitativas
Um dos exemplos mais representativos do estilo sinuoso de Machado
de Assis é o emprego de fórmulas de caráter dubitativo, por meio das quais o
narrador, mesmo o onisciente, em terceira pessoa, simula não conduzir a narrativa, e sim ser conduzido por ela. Ressalvas e pseudo-hesitações podem ser
entendidas como um artifício de efeito humorístico, e a crença ou descrença
nesses despistamentos fica por conta do leitor. Mas podem também escamotear
alguma intenção oculta do autor-narrador ou realçar a verossimilhança ficcional
da narrativa.
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim.
(BC, I. Já nesta primeira frase do romance, Brás Cubas, vale dizer Machado,
diz a que veio. Como se ele não soubesse antecipadamente por onde iria começar a narrativa).
Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto. (BC, II. Aqui,
Machado deixa ao leitor a tarefa de escolher entre o sagrado e o profano).
Meu tio João, não sei se por espírito de classe e simpatia de ofício, perdoava
no déspota o que admirava no general. (BC, XII. Referência ao general francês
Napoleão Bonaparte).
Creio que trazia também colete, um colete de seda, escura, roto a espaços, e
desabotoado. (BC, LIX. Para quem está em dúvida, o narrador sabe demais).
Talvez suprima o capítulo anterior. (BC, LXXII. Escusado dizer que ele não
suprimiu nada).
Talvez essa efusão o desconcertou um pouco; é certo que me pareceu acanhado.
(BC, LXXXI).
Digo apenas que o homem mais probo que conheci em minha vida foi um certo
Jacó Medeiros ou Jacó Tavares, não me recorda bem o nome. Talvez fosse Jacó
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Rodrigues; em suma, Jacó. (...) Ah! Lembra-me agora: chamava-se Jacó Tavares.
(BC, LXXXVII. Exemplo típico da retórica da pseudo-hesitação).
Estou com vontade de suprimir este capítulo. (...). Não; decididamente suprimo
este capítulo. (BC, XCVIII. A primeira frase abre o último parágrafo do capítulo.
A segunda encerra o capítulo. Mais um piparote no leitor).
Creio que nessa ocasião houve grandes aplausos, mas não juro; eu pensava em
outra coisa. (BC, XCIX).
Não sei por que, imaginei que a carta imperial da nomeação podia atraí-la à
virtude, não digo pela virtude em si mesma, mas por gratidão ao marido. (BC,
CI).
Suponho que Virgília ficou um pouco admirada, quando lhe pedi desculpas das
lágrimas que derramara naquela triste ocasião. (BC, CIII).
Não afirmo se os nossos lábios chegaram à distância de um fio de cambraia ou
ainda menos; é matéria controversa. (BC, CIII).
Nem então, nem ainda agora cheguei a discernir o que experimentei. Era medo,
e não era medo; era dó e não era dó; era vaidade e não era vaidade; enfim, era
amor sem amor. (BC, CVIII).
Não é impossível que eu desenvolva este pensamento, antes de acabar o livro;
mas também não é impossível que o deixe como está. (BC, CXIII).
Quero crer que o próprio marujo concordou com essa opinião. (“Noite de almirante”, Histórias sem data. O narrador, embora onisciente, simula ignorar
a reação da personagem).
Parece que a agulha não disse nada. (“Um apólogo”, Várias histórias. Aqui,
também, o narrador onisciente “finge” desconhecer detalhes de sua história).
Intertextualidade
Diálogo entre textos e autores, a intertextualidade sempre foi utilizada por
Machado de Assis, desde seus primeiros romances e contos. Em Brás Cubas,
ele exagerou na dose, e são tantas as remissões intertextuais que se tornam um
pouco cansativas, exigindo do leitor uma edição com notas de pé de página
que elucidem as inúmeras citações de natureza mitológica, bíblica, histórica,
literária, filosófica, algumas delas mencionadas na língua original. É possível
que esse procedimento seja um pretexto, uma forma indireta e dissimulada
de Machado, um autodidata, exibir erudição, ou de recorrer aos seus autores
preferidos para legitimar suas opiniões e ideias. A intertextualidade pode
apresentar-se também sob a forma de paródia, recurso bastante explorado por
Machado de Assis.
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Dos autores mais citados ou que mais o influenciaram destacam-se os
clássicos gregos e latinos: Aristóteles, Homero, Horácio, Virgílio. Referências
constantes, diretas ou indiretas, também são feitas a Dante Alighieri, Shakespeare, Molière, Montaigne, Pascal, Schopenhauer, Goethe, Laurence Sterne,
Camões, Garrett, dentre outros. Dos livros da Bíblia, Machado gostava muito
do Eclesiastes, que pode ter sido uma das fontes do seu relativismo filosófico.
Daremos aqui apenas alguns exemplos, mas se o leitor abrir Brás Cubas, ao
acaso, tropeçará em referências intertextuais.
E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei
para o undiscovered country de Hamlet. (BC, I. Alusão ao Ato III, cena I da
peça Hamlet de Shakespeare. É um monólogo em que o protagonista pronuncia
a célebre frase “To be or not to be: that’s the question” (Ser ou não ser: eis a
questão). O “undiscovered country from which no traveller returns” é o reino
da morte, de onde nenhum viajante retorna, exceto Brás Cubas).
Já o leitor compreendeu que era a Razão que voltava à casa, e convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras de Tartufo: La maison est
à moi, c’est à vous d’en sortir. “A casa é minha; você é que deve abandoná-la”.
(BC, VIII. Tartufo, símbolo da hipocrisia, é o protagonista da peça homônima
de Molière. A citação de Machado não corresponde fielmente ao original, como
adverte R. Magalhães Jr., 1957: 260).
Arma virumque cano. “Eu canto as armas e o varão”. (BC, XXVI. Verso com
que Virgílio começa seu célebre poema épico Eneida).
Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é uma errata
pensante, isso sim. (BC, XXVII. Machado “corrige” Blaise Pascal, moralista
e pensador francês, a quem muito admirava).
Um livro perdeu Francesca; cá foi a valsa que nos perdeu. (BC, L. Referência
a Francesca da Rimini, personagem do canto V do Inferno, da Divina comédia,
de Dante Alighieri).
Recuei espantado... Quem me dera agora o verbo solene de um Bossuet ou de
Vieira, para contar tamanha desolação! (BC, LIX. Note-se a falsa modéstia de
Machado).
Litotes
Maneira de afirmar alguma coisa por meio da negação. Por exemplo,
quando dizemos “Ele não é tolo”, querendo dizer, na verdade, que ele é esperto,
recorremos a uma litotes, uma espécie de perífrase, que pode soar como eufêmi-
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ca, enfática ou irônica, dependendo do contexto em que ela é usada. Vê-se que
a litotes é uma figura de retórica sinuosa, bem ao gosto de Machado de Assis,
que a emprega, sobretudo, na sua variante ampliada, a estrutura correlativa
“não A, mas B”, acima especificada.
Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não
é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. (BC, Ao leitor).
Naturalmente o Quincas Borba herdara de algum dos seus parentes de Minas,
e a abastança devolvera-lhe a primitiva dignidade. Não digo tanto; há coisas
que se não podem reaver integralmente; mas enfim a regeneração não era impossível. (BC, XCI).
Segundo parece, e não é improvável, existe entre os fatos da vida pública e os da
vida particular uma certa ação recíproca, regular, e talvez periódica. (BC, C).
Não é impossível que eu desenvolva este pensamento, antes de acabar o livro;
mas também não é impossível que o deixe como está. (BC, CXIII. A dupla Brás
Cubas-Machado é uma espécie de metanarrador, fazendo constantes reflexões
sobre o seu processo de narração).
Preterições
A preterição é uma figura de estilo mediante a qual o narrador/autor
“finge” que não sabe alguma coisa ou que não vai falar sobre determinado assunto, mas acaba fazendo exatamente o contrário. Como se vê, sinuosa e bem
machadiana é essa figura. O efeito estilístico pode estar na ironia ou no realce
que o autor pretende atribuir a um termo ou a uma situação. Empregando essa
figura, o narrador/autor acaba dizendo o que finge não dizer, numa espécie de
ênfase dissimulada. Curioso é que Machado de Assis revela ter consciência
do emprego da preterição e do seu valor estilístico, como é possível constatar
no exemplo abaixo, extraído do “Conto de escola”, narrativa impregnada de
reminiscências autobiográficas.
Não lhe chamo a atenção para os padres e sacristães, nem para o sermão, nem
para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para
as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes,
os incensos, nada. (“Cantiga de esponsais”, Histórias sem data).
Não lhe digo aqui os aborrecimentos que tive, nem a dor e o despeito que me
ficaram. (“A desejada das gentes”, Várias histórias).
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Não digo também que era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra convicção. (“Conto
de escola”, Várias histórias).
Se não conto os mimos, os beijos, as admirações, as bênçãos, é porque, se os
contasse, não acabaria mais o capítulo, e é preciso acabá-lo. (BC, X. Preterição
pura, pois ele acabou contando tudo antes de encerrar o capítulo).
Não direi as traças que urdi, nem as peitas, nem as alternativas de confiança e
temor, nem as esperas baldadas, nem nenhuma outra dessas coisas preliminares.
(BC, XV).
Não digo que já lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo,
porque isto não é romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os
olhos às sardas e espinhas; mas também não digo que lhe maculasse o rosto
nenhuma sarda ou espinha, não. (BC, XXVII. Por entre as frestas de um discurso
dissimulado, Machado usa o discurso de Brás Cubas para reiterar sua ruptura
com o Romantismo).
Creio que trazia também colete, um colete de seda, escura, roto a espaços,
e desabotoado. (BC, LIX. Note-se que a preterição é introduzida pela frase
dubitativa “creio que”).
Naturalmente o Quincas Borba herdara de algum dos seus parentes de Minas,
e a abastança devolvera-lhe a primitiva dignidade. Não digo tanto; há coisas
que se não podem reaver integralmente; mas enfim a regeneração não era impossível. (BC, XCI).
Esse retalhinho de papel, garatujado em partes, machucado das mãos, era um
documento de análise, que eu não farei neste capítulo, nem no outro, nem talvez
em todo o resto do livro. (BC, CVIII. Mas ele fez a análise, a ela dedicando
todo um parágrafo. Confira o leitor).
Deus me livre de contar a história do Quincas Borba, que aliás ouvi toda naquela
triste ocasião, uma história longa, complicada, mas interessante. (BC, CIX. Note-se a intratextualidade com o romance que viria a seguir, Quincas Borba).
Se falasse, por exemplo, no botão de ouro que trazia ao peito, e na qualidade do
couro das botas, iniciaria uma descrição, que omito por brevidade. (BC, CIX.
Não omitiu nada, como se vê).
Quanto aos cinco contos, não vale a pena dizer que... (BC, CXLV. Capítulo
curto, intitulado “Simples repetição”, composto inteiramente com base na
preterição. Confira o leitor).
Não obstante, calo-me, não digo nada, não conto os meus serviços, o que fiz
aos pobres e aos enfermos, nem as recompensas que recebi, nada, não digo
absolutamente nada. (BC, CLVII. A escancarada preterição acaba enfatizando
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as ações caritativas de Brás Cubas. Mas não era isso mesmo que ele queria?
Falsa modéstia é o que não falta ao cínico narrador).
Quebra de paralelismo
Em princípio, termos coordenados entre si devem conter algum tipo de
afinidade semântica. A desconexão lógica de sentido, nesses casos, caracteriza
a ausência de paralelismo semântico, recurso estilístico a que Machado de
Assis gosta de recorrer para enfatizar indiretamente determinadas situações ou
características e comportamentos das personagens. Misturando coisas desiguais
e inusitadas ou termos concretos e abstratos, ele quebra a isonomia semântica
que deveria existir numa frase coordenada. Esta se apresenta então impregnada
de ironia e de malícia, situação que desperta a atenção do leitor e, ao mesmo
tempo, suscita comicidade. Trata-se de um recurso usado com certa frequência
pelo autor das Memórias póstumas de Brás Cubas.
Minha mãe era uma senhora fraca, (...); temente às trovoadas e ao marido.
(BC, XI. Apesar do humor, a imagem é patética, deixando entrever a condição
social e humana da mulher na época a que se refere a narrativa, as primeiras
décadas do século XIX).
O Vilaça levava nos olhos umas chispas de vinho e de volúpia. (BC, XII.
Notem-se a malícia e a comicidade resultantes do contraste entre categorias
semânticas desiguais, representadas pelo substantivo concreto vinho e pelo
abstrato volúpia).
Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis. (BC, XVII.
Tempo cronológico e interesse financeiro se contrapõem nessa tirada de excepcional efeito humorístico).
Naquele ano, morria de amores por um certo Xavier, sujeito abastado e tísico,
— uma pérola. (BC, XIV. Roído de ciúmes do rival, Brás Cubas exulta com
sua doença e ainda sapeca-lhe uma metáfora mordaz: uma pérola).
Tinha eu conquistado em Coimbra uma grande nomeada de folião; (...), fazendo
romantismo prático e liberalismo teórico, vivendo na pura fé dos olhos pretos
e das constituições escritas. (BC, XX. Olhos e constituições, total incompatibilidade semântica).
E eis que me surge o passado, ei-lo que me lacera e beija; ei-lo que interroga,
com um rosto cortado de saudades e bexigas... (BC, XL. Contraste entre o sublime — saudades — e o grotesco — bexigas. A antecipação do termo abstrato
saudades realça esse contraste).
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As calças, de brim pardo, tinham duas fortes joelheiras, enquanto as bainhas
eram roídas pelo tacão de um botim sem misericórdia nem graxa. (BC, LIX.
Aqui, é ainda mais gritante o contraste cômico entre o sublime e abstrato misericórdia e o prosaico e concreto graxa. Pura galhofa machadiana).
Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da
Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. (Dom
Casmurro, I. O efeito humorístico resulta do inusitado contraste entre gestos
de natureza diferente).
No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta. (“A cartomante”, Várias histórias. Repete-se aqui o contraste entre
um adjetivo concreto — formosa — e outro abstrato — tonta, realçando, neste
caso, a contradição entre o aspecto físico e o caráter moral da personagem).
Conclusão
Pensamos que a exemplificação aqui apresentada, embora sumária, pode
ser considerada representativa dos procedimentos oblíquos e dissimulados da
retórica machadiana, sobretudo nos romances e contos da segunda fase, a partir
de Memórias póstumas de Brás Cubas. Com este estudo de estilística genética
ou do autor, prestamos uma homenagem à memória do nosso maior escritor,
neste momento em que se completam cem anos de seu desaparecimento. Que
as informações e os comentários apresentados neste artigo sirvam de estímulo
à leitura ou releitura prazerosa de seus textos. Esperamos ter atingido os nossos objetivos: reiterar (nunca é demais) a genialidade de Machado de Assis e
comprovar, com base nos textos, que Machado, ao lado de Fernando Pessoa,
também foi um grande fingidor, talvez o maior de todos da literatura de língua
portuguesa.
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TAVARES, Hênio. Teoria literária. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991.
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Duas tendências da língua literária
contemporânea do Brasil
Reginaldo Pinto de Carvalho
USP
Inicialmente, faço coro com aqueles que já cumprimentaram o Liceu
Literário Português pela iniciativa deste evento. É escusado dizer que as três
homenagens que o ensejaram são, todas, da maior relevância cultural. Agradeço
aos organizadores a honra que me proporcionaram, tanto por estar ao lado de
ilustres professores, quanto por ter a oportunidade de assistir a um programa
com uma série de intervenções do mais alto nível.
Quanto ao tema central deste Colóquio, vejo-o como oportuníssimo. Salvo
engano e excetuadas as honrosas exceções, nos últimos tempos, as pesquisas na
área de Língua Portuguesa não têm dado a devida atenção à questão da língua
literária. Esse é um tema que já viveu dias melhores. Talvez para se combater
uma excessiva valorização dessa variedade linguística como modelo, seja do
uso, seja do ensino, fomos cair no extremo oposto. Refletir sobre seus diferentes aspectos, como propôs este Colóquio, é a melhor maneira de dar à língua
literária a dimensão que ela deve ter em nossa cultura.
É mais ou menos consensual que a língua literária brasileira adquiriu
características próprias com o Romantismo. Curiosamente, um dos primeiros
balanços da língua literária desse período foi feito por um estudioso da literatura
e não da língua. No início do século passado, José Veríssimo (1954) depois de
lembrar que a educação literária da maioria de nossos românticos se dera aqui
mesmo, e que, em consequência disso, passaram a escrever sem mais arremedo do casticismo reinol, demonstrando sensibilidade também para a questão
linguística, afirmava:
É outro boleio da frase, a construção mais direta, a inversão menos freqüente.
Usam mais comumente dos tempos compostos dos verbos, à francesa ou à italiana. Refogem ao hábito clássico português de, nas suas orações de gerúndio
começá-las por ele. Colocam os pronomes oblíquos segundo lhes pede o falar
do país e não conforme a prosódia portuguesa que entra então a ser aqui motivo
de chufa e troça. (...) empregam vocábulos de origem americana ou africana, já
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perfilhados pelo povo. Aceitam as deturpações ou modificações de sentido das
formas castiças aqui popularmente operadas e começam a dar foros de literários
a todos esses vocábulos ou dizeres, de fato lidimamente brasileiros e para nós
vernáculos, por serem do povo que aqui se constituía em nação distinta e independentemente. (p. 160-161)
Para Serafim da Silva Neto (1977) a língua escrita e literária que tivemos até o século XVIII era a de Coimbra, ensinada pelos jesuítas. Só com o
Romantismo é que tivemos o aproveitamento artístico do padrão brasileiro.
Para ilustrar esse aproveitamento, ele cita a descrição feita por J. Veríssimo,
reconhecendo sua validade. Quanto à questão do aproveitamento dos brasileirismos pela literatura ele diz:
O brasileirismo literário não deve ser, pois, uma preocupação diferencial, um
esforço de originalidade a todo preço. O brasileirismo literário é, sim, uma atitude
em face do material lingüístico, uma atitude em face da concepção de vida e da
visão do mundo. (...) O estilo brasileiro deve ser a fusão de nossa sensibilidade e
sentido artístico com a fala diária. O brasileirismo literário é, pois, um espírito.
(1977: 232)
Outro estudo sobre a língua literária do romantismo foi o de Mattoso Câmara Jr. (1968). Nesse texto, ele discorre sobre o processo de implantação do
português em terras brasileiras e explica por que tivemos, nos primeiros séculos,
uma língua literária pautada pela do Portugal coevo em oposição ao chamado
sermo cotidiannus. Depois de falar sobre as dificuldades de interação entre as
duas modalidades, devido ao desprestígio da segunda, ele afirma:
Em princípio, o Romantismo favorecia a integração da língua popular na literária,
e os nossos românticos sofreram uma atração nesse sentido. As suas decantadas
“incorreções” não são apenas o resultado de um domínio imperfeito da norma
literária; têm também um aspecto positivo; que é o impulso para a espontaneidade
e para a libertação das peias convencionais, sob o signo de uma língua coloquial
haurida nos primeiros anos de meninice e, pois, veículo natural da exteriorização
psíquica (1968: 64).
Em seguida, enumera os principais fatos linguísticos que contribuíram
para a consolidação da nossa língua literária, caracterizando, quase todos, um
afastamento em relação ao modelo português.
Deixo de citar outros estudos sobre a língua literária desse período, como
o de Sílvio Elia (1975), por exemplo, lembrando que a contribuição de filólogos
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e linguistas nessa área será objeto de abordagens mais aprofundadas em outras
atividades deste Colóquio.
O objetivo dessa rápida introdução histórica é apenas o de chamar a
atenção para um importante aspecto de nossa língua literária: as forças opostas
que, já no início, atuaram sobre ela continuaram atuando ao longo de todo o
século XIX e XX. Para usar os termos de artigo sobre o Português do Brasil,
da autoria de Celso Cunha (1986), movimentos de conservação e de inovação
têm sido uma de suas principais características.
Se, no período mencionado, as forças de inovação foram mais atuantes, por
exemplo, com a legitimação de construções sintáticas ou de um léxico de sabor
popular pela língua usada no romance urbano por Manuel Antônio de Almeida,
ou ainda pela incorporação do léxico típico do indianismo ou do regionalismo
e mesmo de uma sintaxe abrasileirada por Alencar, Taunay e outros; no período
seguinte, o do Realismo, essas forças se atenuaram ou foram para o lado oposto,
em determinados autores. No Pré-Modernismo, pode-se afirmar que as duas forças
atuaram em pé de igualdade. A prosa de Euclides da Cunha, sem deixar de ser
criativa do ponto de vista estilístico, contém elementos de conservação bastante
fortes. Do outro lado, temos Lima Barreto, que ilustra bem a inovação, com sua
prosa aparentemente descuidada, porém estilisticamente adequada ao conteúdo.
A língua literária que se desenvolveu ao longo do século passado não
esteve imune a essa antinomia. Tal como ocorreu nos períodos anteriores, as
forças de conservação e de inovação que atuaram no Modernismo estão ligadas,
principalmente, à aproximação ou ao afastamento em relação à língua falada,
entre outros fatores. Segundo Afrânio Coutinho (1968), o Modernismo procurou diminuir o divórcio entre a língua falada e a escrita, numa integração da
primeira na segunda.
Terminado o século XX, é possível ter uma perspectiva sobre a literatura
que ele produziu, tanto do ponto de vista temático quanto do linguístico-estilístico. E é essa perspectiva que nos permite dizer que a língua literária da
primeira fase deixou-se marcar profundamente pela inovação. A prosa e a poesia
de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, por exemplo, se caracterizaram
principalmente pelo seu experimentalismo e inventividade. Ao contrário, a
língua que serviu para exprimir o chamado Neorrealismo da década de trinta,
a que produziu Graciliano Ramos, por exemplo, não deu prosseguimento à
experimentação. O que não significa que deixou de ser inovadora ou de incorporar elementos da oralidade.
No balanço da língua do Modernismo feito por Luís Carlos Lessa, em
1966, e ampliado dez anos depois, o eixo da descrição é a incorporação da lín-
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gua popular pela língua literária. A questão da resistência ao purismo também
é apontada por ele. Esse foi o modo que ele utilizou para fazer a descrição.
Evidentemente, há outros. Por exemplo, no livro Sociolinguística: os níveis da
fala, Dino Preti (1994) se detém nos diálogos para fazer um dos raros estudos
panorâmicos sobre nossa língua literária. Lembraria ainda a obra História da
Língua Portuguesa, coordenada por Segismundo Spina.
Antes de prosseguir com esse brevíssimo panorama e, portanto, mencionar
a terceira fase do Modernismo, cabe uma pergunta. Estaríamos, hoje, assistindo
aos estertores desse período? Ou ainda, sob o rótulo que dá título a esta mesa
caberia toda a produção literária dos anos 50 até hoje?
Essa questão pode ser colocada em outros termos: quando se fala em língua literária contemporânea podemos entender a língua praticada por todos os
escritores da atualidade, independentemente de sua filiação estética ou apenas
àqueles que poderiam ser incluídos num possível Pós-Modernismo?
Essa dúvida se justifica. Se tomarmos o conjunto de escritores reunidos
pelo professor Alfredo Bosi na antologia denominada O conto brasileiro
contemporâneo (1974), bem na metade do referido período, ou seja, 1974,
encontraremos desde Guimarães Rosa e Clarice Lispector até Rubem Fonseca
e Moacyr Scliar. Dos dezoito contistas lá reunidos, pelo menos um terço continua escrevendo.
A certeza é que a segunda metade do século, na qual se situa a terceira fase,
caracterizou-se pela convivência, em pé de igualdade, de forças e tendências
diversas e até opostas. O que se observa no período é uma arte literária caleidoscópica, tanto do ponto de vista temático quanto do linguístico-estilístico.
Dos anos cinquenta até pelo menos os oitenta, tivemos um grande número de
tendências, correntes, movimentos, seja na prosa, seja na poesia.
Como expressão dessa diversidade temática, tivemos uma língua literária pautada também pela diversidade. Para ficarmos apenas no terreno da
prosa, podemos citar a experimentação verbal, que retorna com todo o vigor
no conto e no romance de Guimarães Rosa, ou mesmo no memorialismo de
Pedro Nava. Nessa mesma linha se enquadra a prosa nada convencional que
procurava reproduzir um novo tipo de fluxo de consciência, retomando marcas
da vanguarda do início do século, conforme se pode ver nos contos de Luís
Vilela ou Ricardo Ramos; outra é a dicção elíptica de Clarice Lispector; já no
conto de Dalton Trevisan o que temos é uma busca incessante da concisão.
Em vários narradores mineiros observa-se o zelo pela correção gramatical; em
João Antônio e Rubem Fonseca vamos encontrar a forte presença da oralidade
como tradução de uma nova literatura urbana. Poderíamos citar ainda como
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produto desse período a prosa regionalista de Mário Palmério ou José Cândido
de Carvalho, mais convencional, se comparada com a de Guimarães Rosa.
Outra manifestação dessa diversidade é a prosa cultivada por cronistas como
Rubem Braga ou Drummond, a qual, pela sua simplicidade sem banalidade,
tanto contribuiu para a formação de novos leitores.
Voltando à pergunta acerca do enquadramento da língua literária atual,
eu optaria por dizer que a terceira fase do Modernismo se encerrou nos anos
80, assistindo o final do século XX a uma mudança de rumo da nossa língua
literária, como reflexo de mudanças em outras esferas da vida social, política
e individual. Podemos observar alguns sinais dessa mudança, como o recesso
da crônica de tradição literária, da temática regionalista etc. Talvez porque as
motivações ideológicas já não são as mesmas. Fala-se mesmo numa era pós-ideológica. Conforme Bittencourt Gomes1, “... o eixo das preocupações da
ficção brasileira contemporânea parece deslocar-se, cada vez mais, da discussão
sobre a identidade nacional (ou regional), para o questionamento da identidade dos indivíduos, dos seres fragmentados que vagam pelos caóticos espaços
urbanos”. O mesmo autor menciona ainda “as perdas das grandes referências
históricas”; “a crise do narrador”; “a indeterminação dos gêneros” etc.
Com a impossibilidade de uma mirada sobre a língua que nossos novos
escritores estão praticando dos anos noventa até este momento, porque nos falta
a necessária perspectiva, apenas poderemos fazer um recorte, que será sempre
arbitrário, e falar em tendências, sem poder afirmar, por enquanto, qual seria
a predominante.
Uma delas se caracteriza pela superação da necessidade de combater as
forças de conservação e, portanto, de assumir posições programáticas marcadas
pela necessidade de inovar, típicas da Modernismo em geral, conforme se pode
constatar pelo balanço que já se fez desse período.
Trata-se de uma linguagem que não foge demasiadamente da língua padrão,
com estruturas sintáticas intencionalmente bem articuladas, com os necessários
elementos coesivos. Os períodos estão harmonicamente construídos quanto aos
processos sintáticos, à extensão e ao ritmo. A regência e a concordância seguem
as normas prescritas pela gramática da língua escrita culta. A seleção lexical,
de um modo geral, é aquela própria dessa mesma variedade.
Tais características poderiam sugerir uma opção pelo convencional, pela
esterilidade estilística. Mas não é o que acontece. Essa tendência não exclui a
elaboração e a adequação dos meios linguísticos aos fins pretendidos. Mesma
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a incorporação de algum coloquialismo ou outro tipo de desvio em relação à
variedade predominante pode ocorrer, quando a situação exigir. Os principais
representantes dessa tendência demonstram o domínio da língua, sendo uma
opção consciente, portanto, tais características. São exemplos dessa tendência
escritores como Chico Buarque, Bernardo Carvalho, Milton Hatoun, Fabrício
Corsaletti e outros. A formação desses escritores lhes permite essa opção. Sobre
a formação de Chico Buarque seria desnecessário falar. Bernardo Carvalho tem
uma apreciável experiência como jornalista, Milton Hatoun é professor de literatura, e Corsaletti, o mais novo e o menos conhecido, é formado em Letras.
Como exemplo dessa tendência, leio dois trechos, aduzindo a eles um
breve comentário.
O primeiro é extraído de um dos mais recentes romances de Chico Buarque, Budapeste, publicado em 2003.
Fui dar em Budapeste graças a um pouso imprevisto, quando voava de Istambul a
Frankfurt, com conexão para o Rio. A companhia ofereceu pernoite num hotel do
aeroporto, e só de manhã nos informariam que o problema técnico, responsável
por aquela escala, fora na verdade uma denúncia anônima de bomba a bordo. No
entanto, espiando por alto o telejornal da meia-noite, eu já me intrigara ao reconhece o avião da companhia alemã parado na pista do aeroporto local. Aumentei
o volume, mas a locução era em húngaro, única língua do mundo que, segundo
as más línguas, o diabo respeita. Apaguei a tevê, no Rio eram sete da noite, boa
hora para telefonar para casa; atendeu a secretária eletrônica, não deixei recado,
nem faria sentido dizer: oi, querida, sou eu, estou em Budapeste, deu um bode
no avião, um beijo. (Trecho extraído do 1.º capítulo, reproduzido na capa e, de
maneira invertida, na contracapa.)
Trata-se de um romance metalinguístico. Seu tema principal é a questão da
autoria e suas relações com o mercado, apresentada em uma estrutura bastante
complexa e numa linguagem de alta elaboração.
Sobre essa obra, diz Luis F. Verissimo:
O livro de Chico é uma vertigem: você é sugado pela primeira linha e levado
ao estilo falso-leve, a prosa depurada e a construção engenhosa até sair no fim
lamentando que não haja mais, assombrado pelo sortilégio deste mestre de juntar
palavras. Literalmente assombrado.
As marcas estilísticas presentes neste fragmento ilustram o que dissemos
acima sobre uma das tendências: articulação sintática bem elaborada; ausência
de desvios de concordância ou regência; emprego discreto de um coloquialismo
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em “dar um bode”; uso da forma simples do mais-que-perfeito em “fora” e
“intrigara” em lugar da forma composta, bem mais usual.
A segunda amostra é um fragmento do romance O sol se põe em São
Paulo, da autoria de Bernardo Carvalho (2007).
Mesmo as obsessões mais compreensíveis na juventude ganham um aspecto
degenerado quando se perpetuam até revelar o sintoma de algum tipo fracasso
na maturidade. Foi assim que ela começou a falar. A minha obsessão cresceu
conforme todas as outras perspectivas foram por água abaixo. Eu estava desempregado. Para completar, fazia um ano que a minha mulher me deixado, sem
nenhuma explicação além de uma frase sem sentido (“Você me usa para a sua
própria felicidade”), para viver com um sujeito desprezível mas bem-sucedido.
O que eles chamam mercado de trabalho é só uma farsa que se auto-alimenta
para que uns possam foder os outros. Só quem não vê são os otários e os bem-sucedidos, sentados nos dois extremos da mesma gangorra. A minha obsessão
não era um capricho, era uma loucura. Se no início ainda podia parecer uma
veleidade adolescente, com os anos acabou se revelando uma reação natural
à constatação de que eu tinha esgotado todas as chances de fazer arte deste
mundo, de me sentir integrado a ele, e que não bastava falar português, ter
nascido no Brasil, era preciso escrever também , para não correr o risco de
algum dia ter de pisar no Japão, por necessidade, sem conseguir dizer mais
que duas frases em japonês, como a minha irmã, eu disse ao homem com lábio
leporino, em inglês, quando comecei a contar a história (parte do 1º. parágrafo
do 2º. Capítulo).
Este romance tem várias características também presentes em Budapeste. Ocorrem nele a metalinguagem, a complexidade da estrutura narrativa, o
narrador interno, a internacionalização temática (Budapeste e Tóquio, respectivamente), a escrita predominantemente formal, a elaboração estilística etc.
Coincidentemente, em nenhum dos dois romances se usa o travessão para
introduzir os diálogos. É como se aparentemente não existissem.
Sobre suas marcas de estilo, também se nota uma sintaxe elaborada, o
uso de um léxico culto. A presença de expressões populares também é moderada, como “foram por água abaixo”. O emprego de um vocábulo chulo cria
um contraste com o restante do vocabulário.
Quanto à outra tendência, trata-se dessa onda de romances que visam
transformar-se rapidamente em best-sellers, para a felicidade de seus escrevinhadores. Podem fazer uma pretensa reconstituição histórica ou uma mistura
de ficção com autoajuda. A língua que praticam, cuja principal característica
de estilo é a exatamente a falta de estilo, é absolutamente convencional.
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Como estou esgotando meu tempo, vou poupar a todos nós de dar
exemplos dessa prosa rala ou do que se poderia classificar como “banalidade
estilística”.
Para concluir, diria que, apesar dessa tendência de banalização, a língua literária contemporânea não está em crise. Vivemos, sim, uma crise de leitores.
Obrigado.
Referências bibliográficas
BOSI, Alfredo (org.) O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix,
s/d (1974?).
BUARQUE, Chico. Budapeste. São Paulo: Cia. Das Letras, 2003.
CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Cia das Letras,
2007.
COUTINHO, Afrânio. (Dir.) A literatura no Brasil. 2ª. ed., v. I. Rio de Janeiro:
Sul Americana, 1968.
CUNHA, Celso. “Conservação e inovação do Português do Brasil”. In: O Eixo
e a roda (5). Belo Horizonte, 1986.
ELIA, Sílvio. “A contribuição lingüística do Romantismo”. In: Ensaios de
filologia e lingüística. Rio de Janeiro: Grifo/MEC, 1975, p. 32-65.
LESSA, Luís C. O modernismo brasileiro e a língua portuguesa. 2.ª ed. Rio
de Janeiro: Grifo, 1966.
PRETI, Dino. Sociolingüística: os níveis da fala. 7.ª ed. São Paulo: EDUSP,
1994.
SILVA NETO, Serafim da. Introdução ao estudo da língua portuguesa. 4.ª ed.
Rio de Janeiro: Presença, 1977.
VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. 3.ª ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1954 [1.ª ed. 1916].
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A língua literária e o ensino de português
Terezinha da Fonseca Passos Bittencourt
UFF
A Linguística, nas últimas décadas, contrariando a orientação dos estudos
levada a cabo pelo estruturalismo de base saussureana, que centrava o foco de
suas pesquisas na langue, tem privilegiado o estudo do texto e do discurso em
todos os seus aspectos, dando amplo e profundo tratamento às suas variadas
manifestações quer na modalidade oral quer na modalidade escrita.
De fato, no que concerne ao ensino de língua materna e de língua estrangeira, é inegável o avanço de tais estudos, com reflexos notáveis nas orientações
curriculares e na organização dos conteúdos programáticos. Assim, a sugestão
feita pelos documentos oficiais de que as aulas de Língua Portuguesa devem
priorizar, principalmente no nível fundamental, a leitura, interpretação e produção de textos já determinou algumas transformações de caráter pedagógico,
conforme se pode verificar no material didático utilizado nas escolas.
É bem verdade que, por falta de orientação, os professores ainda não
possuem a segurança e firmeza indispensáveis para implementar as mudanças necessárias em seus programas, a fim de substituir, como acertadamente
indicam as diferentes orientações da Linguística Textual, a prática do ensino
da metalinguagem em si mesma e por si mesma, pela prática do ensino de
linguagem no sentido amplo.
No entanto, embora a Linguística do Texto já possa, inquestionavelmente,
apresentar resultados conspícuos, talvez porque suas pesquisas estejam ainda
numa fase inicial, grandes obstáculos têm aparecido nos trabalhos relativos ao
texto, determinando alguns equívocos e deixando certas lacunas que trazem
consequências negativas para o ensino de língua materna. Entre tais lacunas
sobreleva o secundaríssimo lugar reservado ao estudo do texto literário e da
língua que lhe serve de veículo, o que acarreta, como procuraremos mostrar,
toda sorte de problemas para a educação linguística dos alunos.
Sendo a língua um objeto histórico, fruto que é do movimento dialético
permanente entre ser e devir, é necessário investigá-la sob distintas perspectivas,
para que possamos obter uma compreensão ampla dos fatos investigados, em
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Terezinha da Fonseca Passos Bittencourt
todos os seus aspectos, até porque, muitas vezes, as respostas que procuramos
não se encontram nos próprios fatos linguísticos, mas se ocultam dispersas e
silenciosas na selva selvaggia da vida social.
Para tratarmos, pois, da língua literária e de seus vínculos com a Linguística e com o ensino de língua materna, impõe-se o entendimento de algumas
questões preliminares que só podem obter resposta satisfatória, se considerarmos
os mecanismos coercitivos do contexto histórico a que pertencem.
De fato, só com o auxílio da História podemos compreender as razões
pelas quais o texto literário tem sido relegado a um plano secundário e até
mesmo a um injustificado ostracismo na maior parte das obras de Linguística
do Texto e no material didático produzido para ser utilizado nas escolas de
ensino fundamental e médio.
O privilégio, no campo das ciências da linguagem, dado ao exame da
língua literária até o século XIX deveu-se ao fato de a Filologia, disciplina com
a qual a Linguística se confundia, dedicar-se fundamentalmente à investigação
dos textos literários como fonte privilegiada para a análise dos fatos de linguagem. E nem era possível ser de outra forma, porque não se podia contar ainda
com a valiosa ajuda de sofisticada tecnologia, como a que se encontra hoje à
nossa disposição, ficando, assim, os pesquisadores praticamente restritos ao
material escrito.
Por isso, até o advento da Linguística Estrutural, nas primeiras décadas
do século XX, não se havia estabelecido, de modo definido, uma consciência
clara acerca da diferença entre língua literária e língua padrão, constituindo
ambas uma unidade mais ou menos homogênea para os estudiosos.
Só com a chegada das novas ideias apresentadas por Saussure, na Europa,
e por Bloomfield e Sapir, nos Estados Unidos, a Linguística começou a tentar
traçar as fronteiras entre a standard language ou língua padrão e a língua literária, centrando seu interesse quase que exclusivamente na primeira. O estudo
da língua literária, além de se desvincular definitivamente da Linguística,
passou, a partir de então, a constituir objeto de interesse de outras áreas, afins
mas separadas da Linguística, como a Filologia, e a Estilística.
Assinale-se que mesmo a Estilística, que tradicionalmente tratava com
exclusividade do texto literário, se bipartiu em duas orientações: a de Vossler,
que continuou a investigar o texto literário e a de Bally que, seguindo as ideias
do mestre genebrino, dirigiu seu olhar para os enunciados produzidos na comunicação quotidiana.
Bloomfield (1984: 52), tomando como base a comunidade de língua inglesa
da Inglaterra e dos Estados Unidos, estabeleceu uma interessante classificação
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A língua literária e o ensino de português
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das principais variedades possíveis de serem encontrados numa comunidade
linguística complexa, que consistiria nos seguintes tipos: 1) padrão literário; 2)
padrão coloquial; 3) padrão dialetal; 4) subpadrão; 5) dialeto local.
Vale destacar que o conceito de standard language não ficou claro nem
na classificação de Bloomfield nem no uso que dele se fez posteriormente, haja
vista o emprego, entre nós, de expressões como norma culta, norma gramatical,
norma prescritiva, norma exemplar, norma ou língua padrão, com um valor
significativo equívoco. De fato, a falta de precisão desses termos, no âmbito da
metalinguagem, determina um emprego impreciso que não nos permite saber
se se equivalem, se se opõem, e ainda, se pertencem a paradigmas conceptuais
distintos. A rigor, eles são empregados de forma indiferenciada nos variados
contextos, ocasionando, não raro, ambiguidades de toda ordem.
Em consequência da separação, ainda que vaga e indeterminada, entre
a língua literária e a não literária, a Linguística começou, paulatinamente,
a estabelecer uma oposição radical entre a língua empregada nos textos de
literatura e a língua utilizada nas outras modalidades textuais, sobretudo, naqueles textos manifestados pelos falantes em situações do quotidiano. A língua
literária, construída com objetivos estéticos, passou a ser vista como uma
língua mais elaborada que a língua padrão e até mesmo artificial, em virtude
de aparecer apenas nos textos escritos e encontrar-se, via de regra, ausente da
comunicação diária.
Naturalmente que todas as transformações culturais são lentas e não se
fazem sentir, muitas vezes, de imediato. Por isso, durante um bom tempo, ainda
encontramos pesquisas sobre textos literários levadas a cabo por linguistas. Podemos citar, à guisa de ilustração, os primorosos trabalhos de Joaquim Mattoso
Camara, Carlos Eduardo Falcão Uchôa e Dino Preti.
Todavia, o fato é que o estudo do texto literário foi sendo cada vez mais
abandonado em proveito de todos os outros tipos de texto, conversas, entrevistas, editoriais, propagandas, receitas culinárias, bilhetes, cartas, manuais
de instrução, requerimentos, artigos jornalísticos e científicos, documentos
administrativos e legais, bulas, e-mails, blogs etc. Alguns, expressos em registro
formal, outros, vazados em registro informal, próprio da linguagem coloquial,
refletindo a nova orientação assumida pela Linguística, passaram a frequentar
o material didático utilizado em nossas escolas.
A tese de Doutorado, elaborada pela Prof.ª Marina Cezar sob a orientação do Prof. Carlos Eduardo Falcão Uchôa, não deixa dúvidas a respeito do
abandono a que foi relegado o texto literário. Examinando em sua pesquisa
duas coleções didáticas, a professora chegou à espantosa constatação de que,
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da totalidade dos textos utilizados, apenas 28,5% pertenciam à categoria dos
textos literários.
Ora, diante desse fato estarrecedor, só nos resta dizer que alguma coisa está
fora da ordem, e que tal desordem pode acarretar consequências desastrosas de
curto, médio e longo prazo para a educação de nosso povo. E, se nos recusamos
a aceitar com passividade a situação de aguardar para apenas dançar o tango
argentino de Bandeira, comecemos por compreender se as razões que nos conduziram a esse estado de coisas se devem a alguma distorção no entendimento
do que constitui efetivamente a natureza do fenômeno linguístico.
De fato, houve uma mudança profunda, a partir mais ou menos dos anos
setenta, quando da publicação da Lei 5692/71, que procedeu a uma modificação radical na educação, particularmente na educação humanística, tanto na
organização das disciplinas quanto no conteúdo do material didático utilizado
pelos professores.
Até a promulgação da referida lei, o texto literário era praticamente o único
que, nas aulas específicas de língua materna, chegava ao alunado, expresso nas
famosas seletas e antologias. Para comprovar o que estamos dizendo, basta
lembrar o sucesso entre nós da Antologia Nacional, de autoria de Fausto Barreto
e de Carlos de Laet, que teve 43 edições sucessivas, de 1895 até 1969.
É certo que o aluno precisa ter contato com os mais variados tipos de
texto, a fim de que possa conhecer as determinações discursivas ocasionadas
por circunstâncias, interlocutores e tema na atividade linguística. Por isso,
nesse ponto, a nova orientação foi muito acertada, levando o aluno a conhecer
a multiplicidade de estruturas à disposição do falante para sua expressão. Ademais, a pluralidade de tipos textuais permitiu o contato do alunado com muitas
variedades do português, contribuindo, assim, não apenas para a ampliação de
sua competência linguística, mas também para o repúdio de comportamentos
preconceituosos condenáveis.
Destarte, não se trata de contestar a moderna orientação dada pela Linguística Textual, no sentido de expor os alunos a toda sorte de textos, a fim
de que eles possam ampliar a sua competência linguística. A nosso ver, o que
constitui atitude absolutamente lamentável é, em primeiro lugar, a separação, na
escola, entre estudo de língua e de literatura e, em segundo, não em ordem de
importância, é claro, o verdadeiro abandono, seria melhor até dizer o absoluto
desprezo com que os textos literários e a língua que lhes serve de instrumento
vêm sendo tratados ultimamente nos currículos escolares, sob as mais inconsistentes e insustentáveis alegações. O texto literário constitui-se no texto por
excelência. Por sobrepor-se a todos os demais, já que nele se manifestam
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plenamente as propriedades da linguagem, lhe deve ser reservado um lugar
privilegiadíssimo no ensino de língua materna.
A justificativa costumeiramente apresentada para a rejeição do texto literário nas escolas é a de que não desperta o interesse do aluno, que não conseguiria
alcançar sua compreensão, por tratar-se de um texto muito complexo. Ora, o
texto literário, em virtude de sua própria natureza, determina a manifestação de
múltiplos sentidos e, por isso, permite ser interpretado em diferentes direções.
Quer isto dizer que seu alcance vai muito além do que estava na intenção de
quem o criou e, por isso, embora muitas vezes seja produzido para um determinado perfil específico de leitor, alcança um espectro de interlocutores muito
maior.
Tomem-se, a título de ilustração, os contos de fadas. Embora tais histórias
apresentem um conteúdo da maior complexidade, nem por isso deixam de ser
apreciadíssimas por pessoas de todas as idades, particularmente pelas crianças,
como podem comprovar as sucessivas gerações que se deleitaram e continuam
a se deleitar com as suas narrativas.
Ademais, se uma obra literária é de boa qualidade poderá ser apreciada
por qualquer leitor, independente de sua idade, pois sua interpretação será feita
de acordo com a dimensão cognitiva de cada um. Ainda que Monteiro Lobato
e Lewis Carrol tenham criado o mundo de Narizinho e Alice pensando nas
crianças, nem por isso encantam menos os adultos.
A rigor, a dificuldade apresentada para o entendimento das obras literárias
não se encontra na natureza de seus enredos, nem na profundidade psicológica de seus personagens, mas no instrumento utilizado para manifestá-las e
nas equivocadas estratégias empregadas para estabelecer o contato inicial do
aluno com esse material. A escrita constitui-se numa tecnologia sofisticada e
que impõe, para sua aquisição e domínio, um esforço muito grande, esforço do
qual, aqueles que com ela já têm familiaridade não se dão conta.
De fato, os sinais gráficos impressos no papel configuram meras sugestões,
indicando as tênues direções que devem ser tomadas pelo leitor, ficando a seu
cargo a responsabilidade de recuperar o que se encontra latente. Dito de outra
forma, na escrita as palavras estão embalsamadas e sua ressurreição só se torna
possível com um grande dispêndio de energia, pois todas as propriedades da voz,
indispensáveis para que qualquer texto adquira sentido, não podem manifestar-se sem o auxílio de um árduo trabalho de recriação que deve ser pacientemente
ensinado a quem ainda só costuma ter contato com o mundo dos sons.
Atribuir ao aluno, que não firmou ainda o hábito de apreender os sentidos
por trás dos sinais gráficos, a tarefa de ler um texto, sobretudo um texto literário,
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sem a necessária preparação, equivale a pedir a alguém, que não possui familiaridade com partituras musicais, para ouvir uma sinfonia a partir da leitura
silenciosa das notas escritas no papel.
Beethoven, depois de perder praticamente a audição, ainda conseguia
compor belas sonatas sem precisar ouvir-lhes os acordes, porque já estava de
tal modo familiarizado com o mundo fônico que não necessitava de sua materialização fora de sua imaginação. Mas nós, que não pertencemos ao universo
musical, evidentemente não lograremos êxito em semelhante façanha e, por
isso, não nos basta a leitura de uma partitura musical para conseguirmos ouvir
a melodia de uma composição.
Analogamente, o aluno que está ingressando no mundo da escrita sente
enorme dificuldade, quando não, impossibilidade mesmo, de recriar os sentidos
que carregam as frases, necessitando, para tanto, do auxílio da voz, com a qual
já está acostumado.
Essa dificuldade imposta pela escrita fica ainda mais evidente nos textos
de poesia, pois, nestes, o sentido se constrói com o auxílio de elementos que
apelam para a materialidade da linguagem, tais como ritmo, melodia, entonação,
quantidade, intensidade etc. Para que tais propriedades sejam adequadamente
manifestadas, permitindo, assim, que recursos expressivos como a aliteração,
a rima, a harmonia imitativa, enfim, para que as funções expressivo-apelativa,
evocativa e icástica da linguagem se consubstanciem, torna-se indispensável
ouvir a voz oculta nas palavras do texto.
Veja-se, a título de exemplo, como a exploração dos recursos materiais da
linguagem levada a cabo por Manuel Bandeira em Trem de ferro transforma
um tema banal em verdadeira obra de arte:
Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virge Maria que foi isto maquinista?
Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
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Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
Imitando o barulho feito pela locomotiva para pôr-se em movimento e
sugerindo a evocação da velocidade da máquina numa sucessão estonteante de
imagens multicores em sua passagem pela estrada, o poeta nos transporta para
dentro dos vagões do trem, provocando-nos o sentido da audição com impressões prolongadas de rapidez e com a modulação intensificada de fortes ruídos.
Todavia, todos esses recursos expressivos ficam irremediavelmente perdidos, se
não se atualizarem através da substância fônica, necessitando da concretização
do material sonoro, uma vez que foram feitos para serem apreendidos pelos
ouvidos e, não, pelos olhos.
Outro exemplo que nos permite perceber o aproveitamento das propriedades da elocução na constituição do poema é esse interessante soneto de Jorge
de Sena, de cujo primeiro quarteto faremos a transcrição:
Dentífona apriuna a veste iguana
de que se escalca auroma e tentavela.
Como superta e buritânea amela
se palquitonará transcêndia inana!
Note-se que o conteúdo das palavras utilizadas é o que menos importa,
visto ser o soneto construído em sua quase totalidade com signos pouco conhecidos. Não fora a estrutura expressa nas desinências nominais e verbais das
palavras, teríamos até dificuldade em reconhecê-lo como pertencente à nossa
língua. Todo o efeito de sentido se condensa justamente na força de sua elocução
e, portanto, se ele chegar apenas pelos olhos, sem a indispensável manifestação
da voz, sua beleza ficará comprometida.
De certo modo, os recursos expressivos utilizados nesse poema assemelham-se, em seu aspecto material, às brincadeiras infantis feitas com a
linguagem, que, por nos causarem intenso prazer, ficam para sempre guardadas
em algum lugar especial de nossa memória. Para que sejam recordadas, basta
proferir alguns mágicos sons, não raro, praticamente desprovidos de sentido:
unidunitê, salamê minguê; um dois, feijão com arroz; três quatro, feijão no
prato; abracadabra pé de cabra. Quase que inteiramente esvaziadas de qualquer
valor significativo, sua beleza reside apenas nas rimas, no ritmo e na musica-
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lidade. E as crianças gostam tanto que não só aprendem com impressionante
rapidez, mas carregam pela vida a alegre evocação desses singelos e toscos
enunciados.
As propagandas do passado, talvez por levarem a marca dos poetas que,
como artistas da palavra, sabiam explorar com sensibilidade os recursos expressivos do material sonoro, fixaram-se nos desvãos de nossa memória, de tal
modo que, tenho certeza, todos os que andaram nos bondes do Rio de Janeiro
hão de haver retido na lembrança esses ingênuos anúncios: Dura lex sed lex no
cabelo só gumex; Se o álcool te atrofia, hidrovita te alivia; Continental, uma
preferência nacional;
Veja o ilustre passageiro
O belo tipo faceiro
Que o senhor tem ao seu lado
E no entanto acredite
Quase morreu de bronquite
Salvou-a o rum creosotado
É indispensável oferecer aos alunos os meios para que possam aproveitar
o texto literário, sentindo prazer nesse trabalho. Se eles ainda não reúnem as
condições necessárias para recriarem, no isolamento da leitura silenciosa, os
múltiplos sentidos permitidos pelo texto, há que se apresentar atividades de
oralidade nas quais eles tenham a oportunidade de fazê-lo.
Poderíamos mostrar um sem-número de experiências bem sucedidas,
relatadas por nossos alunos em sua atividade de docentes, para comprovar que
o trabalho com o texto literário permite despertar o interesse do aluno para o
aprendizado da linguagem. Relataremos, apenas a título de ilustração, uma
dessas atividades levada a cabo por uma aluna do curso de pós-graduação,
professora de uma escola pública do Rio de Janeiro, que levou seus alunos a
ler o épico de Gonçalves Dias, I Juca-Pirama.
Para executar a atividade, ela usou algumas estratégias fundamentais.
Primeiramente, criou-lhes a cena enunciativa da obra, apresentando-lhes seu
contexto histórico, o conteúdo temático do poema, as peripécias de seus personagens, sua construção cadenciada de modo a sugerir com a rima de seus
versos o ruído de tambores (Tu choraste em presença de estranhos? Tu choraste?
Meu filho não és!). Feito isto, declamou um fragmento do texto, articulando
os vocábulos conforme a distribuição dos acentos musicais, imprimindo-lhes
o ritmo adequado por meio da modulação da voz e da cadência dos elementos
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sonoros. Despertado, assim, o interesse dos alunos, eles resolveram dividir-se
em grupos e ler o poema, a fim de declamá-lo. Tão empolgados ficaram com a
leitura, que optaram por dar-lhe um tratamento cênico, de acordo com o qual
cada um representaria determinado personagem, caracterizado por meio da
conveniente indumentária. O poema, previamente decorado, foi, então, apresentado para as demais turmas da escola. O sucesso foi tão estrondoso que chegou
ao conhecimento de alunos de outras escolas que solicitaram lhes fosse feita
também a apresentação. O êxito dessa experiência permitiu aos professores
perceber os múltiplos caminhos abertos pela leitura adequada do texto literário
e novas atividades, envolvendo a cada vez um maior número de turmas, foram
sendo criadas, muitas das quais pelos próprios alunos.
A importância da manifestação das propriedades da voz é fundamental
não apenas para os textos de poesia mas também para aqueles em prosa. Um
sermão de padre Antônio Vieira ou um romance de José Saramago ilustram essa
necessidade. Vale lembrar que Saramago, inclusive, afirma explicitamente que
seus textos são feitos para serem ouvidos, cabendo ao leitor, como ele orienta,
aceitar o pacto de recriar os sons e as pausas apenas sugeridos pelas letras e
pelos sinais de pontuação.
Aliás, a respeito da obra de Saramago, soubemos, recentemente, que o
currículo de escolas de Portugal passou a contemplar o estudo de sua produção literária. Surpreendentemente, entretanto, embora sendo um escritor contemporâneo, os alunos não apreciaram sua prosa, sob a alegação de que não
conseguiam alcançar o sentido de seus textos. Os professores, na tentativa de
descobrir as dificuldades dos alunos, tomaram a decisão de seguir o conselho
do próprio autor, lendo-lhes o texto em voz alta. A transformação foi imediata:
com o emprego da riqueza de recursos permitida pela elocução oral, incluindo-se, naturalmente, o jogo fisionômico e os gestos do corpo, os alunos, segundo
o relato de seus professores, passaram a se interessar pela obra de Saramago e,
depois de certo tempo, já tinham condições de fazer a leitura sozinhos, recuperando a sinfonia criada pelas palavras do texto, silenciosamente.
O encantamento provocado pela palavra poética é inerente à humana
condição, porque, em nosso mundo íntimo, as sombras de nossas emoções necessitam, para serem reveladas, desse exercício permanente de autossuperação
permitido pela liberdade da linguagem. Por isso, devemos dar a nossos jovens
o sublime conselho de Mario Quintana: Faze no teu cantinho o teu poeminho.
[pois] Esse absurdo de sempre existirem poetas apesar de tudo — deve significar alguma coisa... Deve ser o fio de vida que vai unindo, pedaço a pedaço,
essa colcha de retalhos que é a história do mundo.
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Mas, para que o aluno “faça no seu cantinho o seu poeminho”, é preciso
despertar-lhe na alma o poeta adormecido, libertando-lhe a palavra latente,
rompendo-lhe a fronteira do silêncio, vibrando-lhe a faísca do indizível. Mesmo
que ele ainda não conheça a poesia, é certo que nela se reconhecerá, pois, um
poema, como nos ensina Mario Quintana, é uma Nau do Descobrimento e, por
tal razão, quem lê [ou ouve] um poema é como se de súbito ouvisse gritarem
do topo do mastro: “Terra à vista! Terra à vista!”.
Os inquisidores espanhóis, como nos conta Mario Vargas Llosa (2004:
11-26), proibiram a publicação ou importação de romances nas colônias hispano-americanas, sob a alegação de que esses livros poderiam ser prejudiciais para a
saúde espiritual dos índios, por oferecerem uma visão mentirosa e inventada da
vida. E, como argumenta o escritor peruano, o Santo Ofício tinha razão, pois, no
que concerne à natureza de seu conteúdo, os romances mentem. No entanto, ao
mentir, expressam uma verdade que só pode expressar-se, por mais paradoxal
que isso possa parecer, se estiver oculta, disfarçada em algo que não é.
Dizendo de outra forma: por não estarmos nunca inteiramente satisfeitos
com nossas vidas, precisamos viver vidas diferentes daquelas que temos e só a
ficção consegue tal façanha, recriando a realidade por meio das palavras, transformando o mundo do real empírico em mundo do real fantástico. Ao aprisionar
a vida concreta dos indivíduos no mundo da linguagem, o ficcionista age como
o geógrafo ao representar determinadas regiões num mapa: reduzindo a vida
de escala, consegue colocá-la ao alcance de nossa percepção, ressaltando os
aspectos que julga importantes para a experiência de nossas fantasias e para a
vivência de nossas aspirações. Ou, como diria Manoel de Barros, ao atrapalhar as significâncias, o poeta faz o nada aparecer, porque as coisas que não
existem são mais bonitas.
Aqueles que julgam desnecessário o trabalho com o texto literário costumam
justificar sua opinião, argumentando que tais textos, por não tratarem de temas do
quotidiano e de situações conhecidas, se distanciam da realidade do aluno, não
conseguindo, por conseguinte, despertar-lhe o interesse. Afirmam, via de regra,
que os textos a serem utilizados em sala de aula devem representar a linguagem
do dia a dia usada em situações corriqueiras, tais como as receitas culinárias, os
manuais de instrução, os artigos de jornal etc, justamente porque essas modalidades textuais dirigem-se à realidade extralinguística existente e empiricamente
conhecida e, não, à realidade fictícia e inventada do mundo da imaginação.
Pensamos que, ao contrário, os textos não literários longe estão de apresentar quaisquer características — quer na forma quer no conteúdo — que
possam despertar o interesse do aluno, uma vez que seu objetivo é de natureza
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essencialmente informativa e, por tal razão, seus autores não têm ou não devem ter outra preocupação que não seja a de atender à finalidade de transmitir
informações acerca de determinado fato da realidade. Normalmente, com o
propósito acertado de alcançar a clareza necessária para que a informação
apareça despida de equivocidade, tais textos, sobretudo para quem ainda está
iniciando seu aprendizado no mundo da escrita, apresentam-se áridos, enfadonhos e cansativos1.
Ademais, textos dessa natureza, apresentados num livro didático, transformam-se em objetos artificiais, já que, deslocados da cena enunciativa que
lhes deu origem, não obedecem nem poderiam obedecer à intenção de quem
os produziu. Até o Conselheiro Acácio se sentiria afrontado, se disséssemos
que só se elabora uma receita de bolo, por exemplo, com o propósito único de
se fazer o propriamente dito bolo; logo, exposto num livro didático, o texto da
receita será um mero artifício de natureza metalinguística, enquanto a tarefa
não for executada. Assim também os textos de um manual de instrução, de um
artigo de jornal, de um documento administrativo, enfim, qualquer texto não
literário, fora da situação para a qual foi produzido, será sempre um construto
artificial, em virtude de não estar cumprindo a finalidade a que se destina e que
constitui a razão única de ter sido produzido.
O texto literário, por seu turno, além de despertar o interesse seja pela
riqueza dos recursos formais seja pelo inusitado do conteúdo, reúne as condições
necessárias para que o aluno lhe dirija sua atenção. Ao contrário dos demais
textos, que, por serem produzidos com a intenção de apreender um dado do
real empírico, necessitam sempre de um contexto vinculado também ao real
empírico, o texto literário, por estar centrado no logos fantástico, só precisa do
real imaginado e de seu fantasioso contexto para ser manifestado.
A linguagem é uma atividade finalística voltada para o duplo propósito de
apreender e manifestar a realidade extralinguística. Roman Jakobson apresentou
um quadro de funções da linguagem bastante utilizado nos livros didáticos, em
que considera tais funções, tendo em vista a predominância dos elementos que
compõem o processo comunicativo.
Consoante o entendimento de Jakobson, nos textos nos quais se verifica o
predomínio da função poética a linguagem constituiria um desvio em relação
àqueles textos usados na comunicação diária, em que predominam as demais
A prova irrefutável de que os alunos não se sentem atraídos por textos de natureza informativa
revela-se no fato de que a maioria das crianças e dos adolescentes que gostam dos programas
de televisão, via de regra, não toleram os telejornais.
1
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funções. Haveria, pois, uma oposição que poderia ser representada pela dicotomia linguagem automatizada X linguagem desautomatizada. Em outras palavras, o que na linguagem do quotidiano seria considerado como uma infração
à norma, na linguagem poética seria visto como criação.
Assim, por exemplo, na poesia pode-se transformar substantivos em verbos: No chão da água luava um pássaro; A água do lábio relvou entre pedras;
advérbios e pronomes em substantivos: A gente se acostumou de enxergar antigamentes, nascera engrandecido de nadezas; tornar regulares verbos irregulares:
O boi de pau era tudo que a gente quisesse que sesse; criar novos substantivos
por prefixação: Restolho tem mais força do que o tronco. Isso é uma desteoria:
ou por sufixação: A régua é a existidura do limite; ou ainda verbos inusitados
consoante o mesmo processo: Crianças desescrevem a língua, Anhumas premunem mulheres grávidas; usar a variante não padrão: Nós era um rebanho de
guris, Maria me espera debaixo do ingazeiro quando a lua tiver arta, como fez
com tanto engenho e arte nosso poeta pantaneiro Manoel de Barros.
Assim, enquanto no uso quotidiano da linguagem o falante comum não
estaria autorizado, como diz Guimarães Rosa, a sair empinando vocábulos
novos na língua tida e herdada de seus antepassados, o poeta, ao contrário,
gozaria de uma liberdade quase absoluta para infringir as regras estabelecidas
pelo uso rotineiro da linguagem, criando novas unidades linguísticas, de acordo
com suas necessidades expressivas.
Atribuindo-se, tal como quer Jakobson, o valor significativo de “criação”
à palavra “poesia”, podemos afirmar que todo texto verbal é, por definição,
um texto poético, uma vez que se trata, qualquer que seja o uso da linguagem,
de um ato essencialmente criativo. Afirmar, porém, que todo texto é poético
implica colocar na mesma categoria textos literários e não literários que, sabemos todos, não possuem a mesma natureza. Que traços serviriam, então, para
caracterizar uns e outros?
A rigor, a diferença entre os textos literários e não literários reside, como
mostra Eugenio Coseriu, no fato de que, enquanto nos primeiros ocorre a manifestação plena da linguagem, nos segundos, muitas das possibilidades permitidas pela linguagem ficam neutralizadas, em suspenso, não se concretizando,
pois, a complexa rede de relações que a linguagem permite estabelecer com
outros sistemas de signos, e que podemos, com o mestre romeno, denominar
de “evocação”.
É justamente em razão do fato de se encontrarem atualizadas tais relações o que torna os textos literários e a língua que lhes serve de veículo mais
complexos que os textos não literários. Disso decorre importante consequência
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para o aprendizado de língua materna, já que o trabalho com o texto literário
implicará necessariamente a elaboração de operações de natureza cognoscitiva
muito mais sofisticadas que aquelas de que se necessita para a compreensão
dos textos não literários.
Dizendo de outra forma: via de regra, quem é capaz de interpretar um texto
literário, está apto a interpretar também qualquer outra modalidade de texto,
uma vez que, como ensina a Lógica, quem sabe o mais, sabe o menos. De fato,
o texto literário, em virtude de sua própria natureza, constitui-se em privilegiado
espaço de liberdade para a criação e, por isso, apresenta estruturas lexicais e
morfossintáticas muito mais ricas e variadas que aquelas que habitualmente
aparecem nos textos não literários.
A ausência do necessário distanciamento do objeto da investigação não
nos permite perceber, muitas vezes, a complexidade do texto literário, quando
construído em nossa língua materna. Mas fica fácil comprovar o que estamos
afirmando, se tomarmos como exemplo, para a nossa comparação, textos literários e não literários expressos em língua estrangeira.
No início do aprendizado de língua estrangeira, as toscas estruturas sintáticas e o léxico pobre permite, com algum esforço, até alcançar o sentido de
textos de caráter informativo, mas de forma alguma se logra êxito na interpretação de um texto literário. Compare-se, por exemplo, a leitura de um manual
de instrução de um aparelho de computador escrito em inglês com um texto de
Charles Dickens: é claro que a interpretação do primeiro será muito mais fácil
que a do segundo, por causa do grau de complexidade das relações linguísticas
e extralinguísticas que constituem cada um deles.
A complexidade a que nos referimos se deve ao fato de que, enquanto os
textos literários determinam a constituição de uma dupla semiose, os textos não
literários apontam apenas para uma direção semiótica unívoca. Confronte-se, a
título de exemplo, o valor significativo da palavra “barata”, numa embalagem
de inseticida e no famoso conto de Kafka, A metamorfose. No primeiro caso,
a interpretação do signo linguístico “barata” seguirá uma única direção: significante/significado/referente, ao passo que, no segundo, no conto de Kafka, a
primeira fase interpretativa, significante-significado-referente, não dá conta do
sentido e, por conseguinte, deve-se ir além. Assim, depois dessa primeira fase
interpretativa deverá ocorrer outra, aquela na qual o leitor se pergunta “Que é
que se quer dizer com isto?” “Que simboliza a barata?” “Por que razão Kafka
transformou seu personagem, Gregor Samsa, num inseto repulsivo?”
Vê-se, com esse exemplo singelo, a complexidade das operações de
natureza cognitiva executadas, a fim de se alcançar o sentido do texto, ou
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melhor, os sentidos, porque o texto literário, por definição, permite sempre
a manifestação de múltiplos sentidos. Os textos informativos, ao contrário,
se são bem construídos, devem apontar para uma única direção e possuir um
único e inequívoco sentido, de modo que, em virtude de sua própria finalidade,
determinam operações cognitivas mais simples.
A ciência, conforme nos ensina nosso descobridor de mundos e de sonhos,
Manoel de Barros, pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá, mas não
pode medir seus encantos. Quem acumula muita informação perde o condão
de adivinhar: divinare. Os sabiás divinam. O texto literário nos ensina essa
sublime arte de divinar, ajudando-nos a superar o doloroso destino imposto por
nossa condição de ter de viver numa única vida os desejos e fantasias exigidos
pelas múltiplas personas que nos habitam. Só por isso, já se encontra justificado
o espaço privilegiado de que o texto literário é merecedor não apenas na escola,
mas em nossa própria vida.
Aqueles que não percebem a finalidade do texto literário na vida prática
costumam admoestar Bilac, indagando: Ora, direis, ouvir estrelas?! Certo,
perdeste o senso!, A eles responde Mario Quintana com a leveza de sua poesia:
Eu, passarinho, eles passarão.
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Alencar e Cândido Jucá
Walmirio Macedo
UFF, LLP
A obra de José de Alencar é muito rica para uma reflexão sobre a língua
portuguesa.
A época em que viveu era espaço de encontro (ou desencontro) de novas
concepções orientadoras de estudos linguísticos, nos séculos XVII e XVIII,
segundo as quais se pregava harmonia absoluta entre a razão e a língua.
Cândido Jucá estudou a sua obra com dedicação e paixão. Com profundidade e erudição.
Jucá — era assim tratado pelos amigos — nasceu no Rio de Janeiro no
dia dois de setembro de 1900. Formou-se em direito que era a principal opção
na sua época, mas a sua vocação era o magistério ao qual se dedicou por toda a
sua vida. Foi professor de português por concurso do Ensino Técnico da então
Prefeitura do Distrito Federal, depois catedrático do Colégio Pedro II.
Membro de diversas academias no Rio de Janeiro, como da Academia
Brasileira de Filologia, da qual foi presidente por muitos anos.
Camonista emérito, sintaticista de primeira grandeza, deixou sua marca
em muitos estudos e colaborações em revistas.
Sobre a obra de Mario Barreto, publicou um índice alfabético crítico na
revista Littera, trabalho de indispensável e obrigatória leitura.
Sua tese para a cátedra do Colégio Pedro II foi a Gramática de José de
Alencar que é o objeto de minha participação neste Colóquio.
Jucá era um leitor especial e atento de escritores portugueses e brasileiros. Dos brasileiros, dedicou especial atenção a Alencar que foi o tema de sua
tese.
Nessa caminhada, dedicada e sábia, na obra de Alencar, foi descobrindo,
a cada passo, novas marcas do escritor. Tomou a obra na tentativa de fazer um
estudo filológico-gramatical.
Observa Jucá que Alencar, sem ser filólogo, caminhou muitas vezes
nessa direção. Quando defendeu ponto de vista, baseado em Webster, de que
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Walmirio Macedo
a língua é um organismo vivo e estava sujeito a vicissitudes naturais e fatais,
de forma que, quando duas raças de homem de estirpe comum se separam e
se colocam em regiões distantes, a linguagem de cada um tende a divergir por
vários modos.
Mas Alencar ressalta Jucá, admitia ainda intervenção individual no aprimoramento e polimento das línguas. Assim, aceita como inelutável a divergência
brasileira.
A tese de Jucá foi apresentada em 1949 e tratava da linguagem de Iracema
que ele considerava ‘uma obra clássica brasileira’.
Em maio de 1965, quando completava o centenário de Iracema, volta com
mais vigor ao assunto, ou, como ele mesmo ele mesmo diz, com mais vagar.
No seu percurso de pesquisador, ou melhor, de leitor pesquisador, procurou observar aspectos lexiológicos, fraseológicos até chegar às relações
sintáticas.
Apesar de não concordar com a divisória /fonologia e fonética, morfologia
e sintaxe/, para efeitos didáticos, seguiu este caminho como inevitável.
Alencar, no seu testemunho, como assíduo frequentador dos clássicos
portugueses, também assíduo consulente das nossas crônicas, não desprezava
a saborosa linguagem da gente rude a qual, na sua rudez e bronquice, é a artesã
genial daquilo que há de mais sutil e pasmoso (sic).
Jucá lamenta que os livros de Alencar estejam prenhes de erros tipográficos, coisa de que ele próprio se queixava muito.
Na sua caminhada pela obra, começou pela fonética, incluindo os problemas ortográficos.
Quanto ä grafia da preposição /a/, observou o hábito de usar sempre grafado
com acento agudo. Levantou a hipótese de que o sinal gráfico tem neste caso
a virtude de evitar ambiguidades. O próprio Alencar declara que o artigo /a/ e
a preposição /a/ não se confundem na pronúncia, comentando que o artigo é
sempre reduzido e apresenta uma tendência vitoriosa em Portugal de fechar-se
em /a/, semelhante ao /ä/ francês.
Diz Jucá que, quando um português escreve/morrerá ä fome/ (Camilo),
ou um navio ä vela, ou entrar á pressa, acentua o /a/, não porque suponha uma
crase, pois sabe que se trata de uma preposição pura.
Assim procedia Alencar.
Outra observação diz respeito a uma de suas marcas.
Alencar distinguia a primeira pessoa do plural do presente do indicativo e
a do pretérito perfeito: amamos e amamos, diferença presente até hoje na fala
portuguesa e até preservada, em caráter opcional; pelo Acordo Ortográfico.
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Alencar e Cândido Jucá
car.
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As formas dos numerais dezasseis, dezassete, são preferenciais de Alen-
A expressão pouco a pouco perde em frequência para /pouco e pouco/.
Nota-se ainda uma nítida preferência pelo uso da terminação /a/ nos nomes
origem grega: Afrodita por Afrodite, heroida por heroide, entre outros.
As formas projétil e réptil perdem na sua preferência para as oxítonas. A
língua atual aceita as duas formas e os respectivos plurais.
Um caso interessante é o do superlativo relativo o mais... que os gramáticos consideram galicismo sintático quando se repete o artigo tipo o menino
o mais inteligente de todos... Alencar usa com frequência e Jucá dá uma lição
de sapiência defendendo esse emprego.
Jucá procura provar, para justificar o emprego, que a partícula introdutória
do superlativo não é funcionalmente artigo e que exatamente por isso necessita
de vir explícita e que a definitiva prova é que é empregada se esse superlativo
é um advérbio: A mulher gira o mais depressa possível.
No campo da concordância, registra casos com o verbo haver, pessoal,
com o significado de existir.
Em artigo publicado na Revista filológica, intitulado “Um caso de concordância”, Jucá arrola mais de 60 casos desse tipo, justificando a sua construção.
Não há espaço aqui para discorrer sobre o conteúdo do artigo.
Outro caso curioso, no campo da concordância, é o do sujeito composto
de diferentes pessoas. A frase de Alencar Não, ele e tu servem para combater
homens tem a companhia de Bernardes em Se Deus e mais tu o fizeram, ou de
Camilo em se tu e outros não me chamassem de covarde. E assim vai na farta
exemplificação.
No plano da regência, diz Jucá que Alencar apresenta perfeita consonância
com as normas gramaticais.
Outro caso citado por Jucá é o emprego de ele como objeto direto, fato
que ocorre até em Machado de Assis.
Cita ainda o caso de lhe por o, ressaltando que é para evitar ambiguidade.
Esse fato é comum na fala coloquial do brasileiro.
O espaço é pequeno. Nosso objetivo é motivar a todos para a leitura do
texto de Jucá e, consequentemente da obra desse grande escritor que foi José
de Alencar.
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O corpus literário na tradição gramatical brasileira
Ricardo Cavaliere
UFF, LLP
Inicialmente, agradeço à coordenação deste I Colóquio Nacional sobre
a Língua Literária pela oportunidade de compor uma mesa tão qualificada,
presidida por um amigo dileto e em que estão presentes dois mestres queridos,
cujas lições de toda hora enriquecem meu cotidiano de aulas no Liceu Literário
Português. Optei por tocar um tema que interessa a todos os que se dedicam à
descrição do português e, em especial, aos que estão envoltos com as questões
historiográficas: a presença do corpus de língua literária na Tradição Gramatical brasileira.
Em seu precioso estudo sobre a língua de José de Alencar, Gladstone
Chaves de Melo dá-nos conta das falsas verdades que “passam em julgado,
entram no patrimônio intelectual de uma comunidade e ganham a fôrça de um
axioma” (Melo, 1972: 7). Nosso saudoso filólogo exemplifica esse fato com a
corriqueira afirmação de que a Idade Média ter-se-ia configurado numa “idade
das trevas”, não obstante a simples leitura dos medievalistas mais conhecidos1
revele-nos um medievo de verdadeiro esplendor artístico e não desprezível
avanço científico. A linha de raciocínio de Gladstone busca remeter o leitor
para a igualmente inidônea afirmação — também acatada como uma verdade
inconteste em certas rodas — de que José de Alencar teria tido a intenção de
fundar as bases de uma língua brasileira, hipótese que não se coaduna com o
pensamento linguístico do grande romancista de Iracema.
Para exemplificar esse fenômeno da pseudoverdade acadêmica com um
fato que integra o conjunto das preocupações sociolinguísticas de nosso tempo,
ocorre-me a discussão em voga sobre o propalado hermetismo do texto jurídico.
Essa é daquelas assertivas frequentes nos estudos sobre o texto que devem ser
dosadas em seus devidos níveis. Ainda há cerca de um mês, participando do
último congresso da Associação Internacional de Lusitanistas (AIL) na jovem
e simpática Universidade da Madeira, pude ouvir uma comunicação em que se
Leia-se, por exemplo, o excelente relato da arte medieval em (Dahmus, 1995).
1
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pugnava pela simplificação da linguagem jurídica, considerada extremamente
complexa e inacessível ao leitor comum. A fundamentação era de que se a ninguém é dado o desconhecimento da lei, daí resultaria que o texto legal haveria
de ser escrito em linguagem acessível a todos.
A tese é a um tempo procedente e falaciosa. Procedente porque, se o Estado
impõe a todo cidadão o cumprimento da lei, decerto haverá de torná-la senão
íntima, ao menos conhecida de todos, independentemente de classes sociais,
credos, raças etc. A falácia, por seu turno, está em induzir a ideia de que, se
nem todo leitor é suficientemente escolarizado para entender o texto legal, então
que se proceda a uma reformulação de suas bases linguísticas para níveis mais
simplórios. A rigor, tirante este ou aquele termo técnico que um bom dicionário
saberá esclarecer, o texto legal é absolutamente compreensível de todo leitor
com razoável nível de formação linguística. Entretanto, vivemos uma época em
que, se o leitor não chega ao texto, o culpado é sempre o texto. Curioso notar
que, dentre os exemplos de hermetismo jurídico apresentados pela autora do
referido trabalho do Congresso da AIL, está uso da mesóclise pronominal, uma
construção considerada “impensável no português do Brasil”. Cabe perguntar:
será o texto jurídico realmente hermético, ou será que não temos conseguido
formar bons leitores em nossas escolas?
Em paralelo, uma semelhante linha de conduta acadêmica vem atribuindo ao texto literário, nos dias atuais, um certo teor de incompatibilidade com
o ensino da língua, tendo em vista as naturais peculiaridades que o espírito
de literariedade lhe conferem, tais como o vocabulário incomum, as inversões sintáticas, as flexões inusitadas, tudo em desacordo com o necessário
coloquialismo que deve reinar no uso da língua como meio de comunicação.
Assim, considerando a presença quase exclusiva da língua literária no campo
da descrição gramatical, passa a viger mais uma dessas “pseudoverdades” de
que traçamos juízo: a tradição gramatical brasileira peca pelo normativismo
exacerbado, com fulcro em um corpus de língua literária anacrônico. De que
elementos dispõe o historiógrafo da linguística para tratar imparcialmente essa
questão, sem deixar-se contaminar pela opinião desavisada de terceiros? Como
avaliar hoje a atividade de descrição gramatical implementada por pessoas que
viveram há várias décadas, há mais de século, sem contaminar a avaliação com
elementos que não integram a episteme da época estudada?
Inicialmente, cumpre definir o objeto da descrição gramatical. Partamos do
pressuposto de que a atividade de descrição dar-se-á necessariamente em face
de um corpus homogêneo e unitário, ou seja, em dado estado de língua Esta é
uma lição que nos vem de Saussure — “qui dit grammatical dit synchronique
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et significatif” (Saussure, 1949: 185) —, sedimentada na ordem linguística do
século XX, cujos princípios, entretanto, já grassavam entre os melhores filólogos
do século XIX, bem antes de o relato sobre o cours de Saussure difundi-los nos
meios acadêmicos. O que se quer dizer, enfim, é que não há possibilidade de
descrever o funcionamento do sistema linguístico em movimento.
Quando negou a existência de uma gramática histórica — “il n’y a pas
pour nous de ‘grammaire historique’ (Saussure, 1949: 185) —, Saussure tinha
em mente esse imperativo de método: gramática como descrição delimita-se
em um estado de língua, cujo corpus seja homogêneo e unitário. Em uma das
centenas de aulas que recebi do mestre Evanildo Bechara em nossas conversas
de toda hora, ouvi essa similitude esclarecedora: se quero descrever uma pessoa,
tenho de escolher essa pessoa aos cinco anos, aos dez, aos quinze, aos vinte
etc., mas não posso ter o retrato dessa pessoa reunindo numa só fotografia as
várias faces de sua fisionomia ao longo da vida.
Ultrapassado o primeiro ponto essencial, esse do objeto da descrição
gramatical, passo agora ao segundo: como garantir a unidade do corpus na
descrição? Esta é tarefa que não raro atormenta o linguista, visto que a variação
de usos é acentuadíssima, mesmo levando-se em conta uma perspectiva de
segmentação sociolinguística em registros ou variáveis diastráticas, exatamente
porque não são inteiramente nítidos os limites desses registros. Uma premissa,
entretanto, há de respeitar-se: não se podem imiscuir os fatos da língua oral
com os da língua escrita. Essa é daquelas obviedades que surpreendentemente
têm de ser reiteradamente repetidas, já que não costumam ser levadas em conta
nos textos sobre o tema.
Sabemos, pois, que o falante de uma língua, usado o termo aqui em
sentido lato, não mantém o mesmo comportamento em face do texto quando
simplesmente fala ou quando escreve. E quando fala, também altera certos
procedimentos de construção frasal — tais como a seleção de vocabulário e a
escolha de estruturas sintáticas — em face da situação fática em que se inscreve. Também quando escreve, o falante costuma desviar os rumos do texto em
face do grau de formalidade exigido, razão por que soa clara a noção de que,
senhor do texto, o falante intuitivamente o modula na tentativa de adequá-lo
ao ato de enunciação de que participa.
Essa mudança de comportamento do falante em face da língua, entretanto,
revela-se mais evidente quando comparamos os procedimentos da língua oral
e da língua escrita, sobretudo porque somente a segunda detém o necessário
pré-requisito de unidade e homogeneidade. A primeira, mesmo em norma
padrão, admite construções que a segunda rejeita, do que resulta admitir-se
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analogamente que o conceito de língua padrão não se aplica homogeneamente
ao texto oral e ao texto escrito. Em síntese, a descrição gramatical far-se-á
obrigatoriamente em corpus de língua escrita dada a cabal impossibilidade de
fazê-lo em corpus de língua oral.
Em síntese, especificamente no tocante à elaboração de uma gramática
descritiva ou mesmo normativa, a garantia de trabalhar-se com corpus unitário
e homogêneo obtêm-se nos limites da língua escrita, com específica referência
da do estrato de uso linguístico. Surge, então, a terceira indagação: por que
a língua literária goza da preferência dos antigos gramáticos como corpus de
apoio para a descrição gramatical?
Em um ensaio recente, que cuida de alguns aspectos da norma gramatical
em face do corpus de língua falada, Marli Quadros Leite assevera que “as regras
da gramática normativa são extraídas de textos escritos literários, de épocas
anteriores à da descrição. Aquela norma, portanto, jamais será integralmente
praticada e os pontos de discordância entre o que um usuário culto fala/ escreve
e o prescrito são exatamente os que ‘saltam aos ouvidos e olhos’ dos usuários e
causam a sensação de desconforto, de haver ‘erro de português’ (Leite, 2001).
A asserção procede exatamente porque a norma descrita, se jamais será integralmente praticada, decerto será parcialmente praticada pelo falante culto,
sendo que os pontos de divergência mais flagrante haverão de receber maior
atenção do professor na atividade pedagógica. Em verdade, especificamente
ao professor cumpre a tarefa de relativizar a influência da língua literária na
produção textual do aluno, demonstrando em que medida, pela experiência de
leitura, as construções gramaticais de textos passados são acolhidos pela norma
escrita contemporânea.
Mas a terceira e derradeira indagação é plenamente esclarecida se admitirmos que o papel da gramática é o de registrar os usos exemplares no
âmbito de uma língua histórica e, em aditamento, acatarmos a premissa de
que a língua literária é o locus dicendi das formas exemplares. Como reiteradamente nos ensina Eugenio Coseriu em seus estudos sobre a relação entre o
ensino da língua e a literatura, é nos limites dessa última que se encontra “a
plena funcionalidade da linguagem ou a realização de suas possibilidades, de
suas virtualidades” (Coseriu, 1993: 39). A lição de Coseriu resume-se na observação de que, diferentemente da língua presente na vida prática ou mesmo
das normas da linguagem científica — que constituem modalidades dos usos
linguísticos — a língua literária não se encerra em limites comportamentais,
pois percorre sem reservas as várias possibilidades de uso, de que decorre seu
expressivo caráter funcional.
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Por outro lado, a objeção ao fato de as gramáticas optarem por corpus
literário de épocas anteriores à data da descrição linguística deve ser avaliado
com maior cautela. Em sua Gramática expositiva, escrita em 1907, Eduardo
Carlos Pereira recorre a um corpus literário de autores antigos em companhia
de outros recentemente falecidos, tais como Alexandre Herculano (30 anos),
Antonio Feliciano de Castilho, Camilo Castelo Branco e Manoel Odorico
Mendes. Saltando para um exemplo de nossos tempos, encontra-se nas páginas
da Nova gramática do português contemporâneo, trazida a lume em 1980 por
Celso Cunha e Luís Lindley Cintra, um corpus em que figuram nomes como
Jorge Amado, Ciro dos Anjos, Manuel Bandeira, Pepetela, sem omissão, decerto, de nomes mais afastados no tempo, tais como Machado de Assis, José
de Alencar e Graça Aranha.
Decerto que há um certo afastamento temporal entre a descrição e o corpus
em que essa se assenta, mas talvez resida aqui uma atitude intuitiva do gramático
na busca de informações sobre usos da língua escrita que já se tenham estabelecido como um fato vernáculo definitivo, não mais sujeito aos modismos ou
às tendências que não resultam em formas de expressão efetivamente acatadas
como válidas pelo usuário.
Cuide-se, por exemplo, do atual hábito que no Brasil se percebe em usar
a perífrase de estar com gerúndio para expressar aspecto pontual no futuro,
do tipo “Amanhã vamos estar escolhendo o local do congresso”, em que o gerúndio toma as vezes ao infinitivo. Essa não é uma construção que se encontre
em língua literária escrita, mas não será de estranhar que esteja penetrando
no texto escrito publicitário ou mesmo jornalístico. Observe-se que, do ponto
de vista sistêmico, tem a construção largo amparo de uso em língua escrita,
contudo sempre para expressar aspecto progressivo presente ou futuro, que é
o tradicional do gerúndio em português. A novidade, a rigor, não é estrutural,
mas semântica.
Agora, considerando a nova face que a língua literária vem revelando
hodiernamente, em que a proximidade com o padrão falado parece ser mais
imediato em certos autores, não seria de estranhar que uma obra ou outra viesse
a incorporar a perífrase gerundial de aspecto pontual. Seria, assim, temerário
ao gramático acolher essa estrutura como uma expressão da exemplaridade
linguística do português brasileiro, pois não cuidou de dar tempo suficiente
para que efetivamente fosse eleita como uma forma de expressão empregada
sem restrições.
Esse é o motivo por que cumpre ao gramático verificar a ocorrência do
uso no conjunto dos textos literários produzidos em certo período, para que
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se certifique não se tratar de uma idiossincrasia. É o que ocorre, por exemplo,
com as ocorrências do verbo haver usado em construções pessoais em alguns
autores brasileiros e portugueses do século XIX. O português literário, por exemplo, consagrou o uso do verbo haver impessoal quando em sentido de existir.
Não obstante, nossa bibliografia filológica é farta em exemplos de haver flexionado, seja em obras brasileiras, seja em portuguesas, como nesse passo de
Camilo Castelo Branco: “Houveram muitas lagrimas de alegria. Abraçaram-se
todos no bemfeitor; e o velho era o mais commovido” (Camilo, 1882: 87). Por
sinal, a preferência pela concordância não era coisa rara nos textos oitocentistas, como nos faz observar Candido Jucá Filho e seu precioso estudo sobre
o texto de José de Alencar (Jucá Filho, 1966: 136). No próprio Alencar, por
exemplo, encontra-se nítida preferência pelo imperativo negativo em lugar do
subjuntivo: “Vamos, Álvaro, não desamparai o vosso posto, disse D. Diogo
(Alencar, 1977: 56).
Que postura terá o gramático diante dessas informações? Aqui, o critério
da sensatez orienta pela aferição da presença do fato gramatical não em um dado
autor, mas no conjunto dos autores literários que se relacionam pela contemporaneidade, porque essa é a garantia de fidelidade da informação. Observe-se
que tanto a concordância de haver quanto o imperativo em frases negativas são
fatos da oralidade que parecem remontar aos primeiros tempos de consolidação do português como língua urbana de uso ordinário. No entanto, não temos
convicção de que seu uso em Alencar é uma homenagem à língua falada ou
um traço idiossincrático. A avaliação criteriosa do gramático deverá ser a de
que se trata de construções que compõem o conjunto das estruturas linguísticas
presentes no corpus de língua literária, sem, contudo, haver merecido acolhida
de uma geração de autores, ou seja, não foi acolhida como um fato usual.
Em outra linha de avaliação dessa íntima relação que a Tradição Gramatical
estabelece entre a descrição linguística e o texto literário, percebemos que esse
perfil resulta de uma questão de método. Não desconhecem os que estudam os
textos gramaticais do passado que neles há um indissociável comprometimento
entre descrição e ensino. A rigor, as gramáticas do passado são eminentemente
manuais didáticos, obviamente distintas quanto à maior ou menor profundidade de tratamento dos fatos linguísticos. E será justamente esse compromisso
pedagógico que faz emergir como naturalmente preferível o corpus de língua
literária, no sentido exato de outra indissociável relação: língua e literatura.
Decerto que, nesses nossos tempos em que até nas classes de ensino
fundamental e médio língua e literatura ocupam lugares afastados entre si,
soa um tanto anacrônico o imperativo de ensinar a língua materna através do
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texto literário. Mas o anacronismo aqui, a rigor, é expressão do obscurantismo,
pois é fruto de uma avaliação textual que não atinge a plena funcionalidade
do texto literário.
Por fim, gostaria de tocar um fator que a meu juízo confere maior relevância à língua literária na descrição gramatical de uma língua histórica: a
fidedignidade do corpus. Não se duvida nessas linhas que o texto escrito não
literário possa servir de base para uma descrição gramatical contemporânea,
tomadas as precauções a que me referi linha atrás. A questão de fundo reside
em saber se o texto não literário é efetivamente da lavra do autor. Não é raro
no meio editorial que o texto passe por uma revisão gramatical que costuma
evitar certas construções sintáticas menos usuais, para não falar das emendas
em flexões do nome e até no uso do vocabulário.
Ora, dispensável dizer que uma descrição linguística pautada em corpus
alterado por terceiros vicia-se na gênese, pois jamais terá o investigador a
certeza de que uma dada construção seja fruto do uso contemporâneo ou do
rigor normativo dos revisores. A linguagem jornalística, em certa medida, é
fidedigna, se pensamos no universo dos editoriais ou dos textos assinados em
que a vontade do autor prevalece a todo custo. Essa é, por exemplo, a causa
de um Luis Fernando Verissimo registrar portuguesmente marquetchim por
marketing em várias de suas crônicas jornalísticas, sem que se ouse modificar-lhe a opção ortográfica.
A constatação, entretanto, é de que o texto na imprensa escrita é fruto de
uma interferência corrompedora, não por corromper a norma gramatical contemporânea, mas por adulterar a originalidade do texto com as regras, por exemplo,
dos manuais de redação próprios, que quase todos os periódicos jornalísticos
publicam, e das próprias gramáticas normativas de que dispomos hoje. Como
corpus de investigação, pois, trata-se de texto que carece de fidedignidade.
Diga-se o mesmo dos textos científicos e doutrinários que, embora sejam
expressão de uma norma escrita pautada no conceito de correção, revelam-se
inidôneos como fonte de norma exemplar, já que neles igualmente se ressente
da necessária garantia de fidedignidade.
Decerto que o tema, apaixonante e controverso, poderia conduzir-me numa
sucessão de vários e longos parágrafos adicionais, para desespero dos que ora
me ouvem, sobretudo do coordenador dessa mesa-redonda, cuja amizade não
lhe permite clamar por um ponto final com a veemência devida. Deixo, portanto,
aqui essas considerações, na esperança de haver contribuído para desfigurar esse
estigmatizado olhar sobre a Tradição Gramatical brasileira, que a enquadra como
um repositório de conceitos embotados pelo tempo. Recorrendo mais uma vez
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à clarividência de Eugenio Coseriu, deve-se ter em mente que “para interpretar
o sentido é necessário conhecer as possibilidades de construção de sentido que
se dão na linguagem” (Coseriu, 1993: 42) e é efetivamente na língua literária
que a linguagem alça aos mais amplos voos de sentidos possíveis.
Referências bibliográficas
ALENCAR, José de. As minas de prata. 7.ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio
Editora/MEC, 1977.
CASTELO BRANCO, Camilo. Vingança: romance original. Porto: Casa de
Cruz Coutinho Editor, 1858.
COSERIU, Eugenio. “Do sentido do ensino da língua literária”. Confluência.
Rio de Janeiro: Liceu Literário Português, v. 5, 1995.
DAHMUS, Joseph. A history of the Middle Ages. Illinois: Barnes & Noble,
1995.
JUCÁ (FILHO), Cândido. A gramática de José de Alencar. Rio de Janeiro:
Colégio Pedro II, 1966.
LEITE, Marli Quadros. “A influência da língua falada na gramática tradicional”. In: Preti, Dino (org.). Fala e escrita em questão. 2.ª ed. São Paulo:
Humanitas, 2001, p. 129-153.
MELO, Gladstone Chaves de. Alencar e a “língua brasileira”. 3.ª ed. Rio de
Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1972.
SAUSSURE, Ferdinand de. Cours de linguistique générale. 3.ª ed. Paris:
Payot, 1949.
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Resenha
NOBILING, Oskar. As cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e estudos dispersos. Niterói: Eduff, edição organizada por Yara Frateschi Vieira, 2007.
Recebem os estudiosos da Filologia portuguesa um presente raro e oportuno com a edição dos textos avulsos do romanista Oskar Nobiling, sob o título
As cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e estudos dispersos. O volume é o
segundo da coleção Estante Medieval, que a Editora da Universidade Federal
Fluminense oferece ao público sob a regência de Maria do Amparo Tavares
Maleval e Fernando Ozorio Rodrigues, dois eminentes estudiosos da Medievalística, mormente nas searas do galego-português.
Merece inicial referência o cuidadoso e eficiente trabalho de Yara Frateschi
Vieira, que, a par da organização dos textos de Nobiling em três harmônicos
setores — lírica medieval galego-portuguesa, língua portuguesa e literatura
popular —, ocupa-se na Introdução de uma informativa notícia biográfica
deste alemão naturalizado brasileiro e de sua presença no Brasil na virada do
século XX. Soa claro no texto de Frateschi Vieira o rigor da pesquisa às fontes
biográficas de Nobiling, que, diga-se necessariamente, não constituiu tarefa de
pouco fôlego, a perceber-se pela precariedade das informações disponíveis.
Mas não só os medievalistas ganham com a publicação dos textos de
Nobiling, senão também os historiógrafos da Linguística no Brasil. Isso porque
a referência a Nobiling via de regra se vem fazendo por citação de terceiros,
dada a dificuldade que até então tínhamos para manter contato direto com sua
obra. Agora, decerto, os que se dedicam ao estudo histórico do pensamento
linguístico no Brasil hão de pautar sua referência aos trabalhos desse teuto-brasileiro com maior segurança, à luz de suas próprias palavras, uma conquista
auspiciosa para o futuro de nossos estudos historiográficos.
No corpo do volume, desponta a tese As cantigas de D. Joan Garcia
de Guilhade, trovador do século XIII, tida como o texto mais substancial de
Nobiling em suas incursões no português antigo. As notas de Nobiling revelam um estreito parentesco intelectual com o trabalho de Carolina Michaëlis
e Leite de Vasconcelos, esse último um frequente destinatário da correspondência filológica que nosso romanista enviava à Europa na busca ansiosa de
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Ricardo Cavaliere
informações sobre o estado da pesquisa no Velho Mundo. Por sinal, Leite de
Vasconcelos muito lamento recebeu nas cartas de Nobiling acerca das dificuldades enfrentadas para desenvolver pesquisa filológica no Brasil, sobretudo em
face da escassez de livros e revistas especializadas: “Os livros e revistas que
se publicam sobre taes assumptos em Portugal ou outros paizes, só por rara
felicidade é se alguma vez apparecem aqui no commercio” (p. 29).
Não resta dúvida de que o Brasil não estava à altura do mercado editorial
europeu nos anos iniciais do século XX, mas não deixa de surpreender semelhante veemência de Nobiling se lembrarmos que outros tantos filólogos da
época demonstram profícua leitura ao menos dos principais textos de descrição
vernácula europeus, mormente os ingleses e franceses. Said Ali, por exemplo,
cita com desenvoltura os principais teóricos da Linguística alemã nas Dificuldades da língua portuguesa, fato que bem demonstra estarem eles entre os que
gozavam de sua leitura ordinária. Decerto que o acesso de Said Ali às fontes
europeias muito devia facilitar-se em face das constantes viagens do mestre
fluminense à Alemanha, mas outros pesquisadores, como João Ribeiro, que
igualmente revelam farta leitura doutrinária, não desfrutavam desse privilégio.
Talvez se deva interpretar o ressentimento de Nobiling quanto à inanição do
mercado livreiro no Brasil não como um fato genérico, mas atinente em particular aos estudos de crítica textual.
Na seara dos estudos descritivos, a paixão pelo português brasileiro flui
em pequenos estudos de grande valor testemunhal, já que servem hoje como
documentos fidedignos do comportamento linguístico do brasileiro no período que vai das últimas décadas do século XIX às primeiras décadas do século
seguinte. O temário vai da descrição fonológica — em que desponta o clássico As vogais nasais em português, cuja tradução de Dinah Maria Isensee Callou
e Maria Helena Duarte Marques, antes publicada no número 12 da Revista
Littera, em 1974, ganha uma atualizada revisão — ao estudo das frases feitas,
tema que o século XX viu desvanecer com o passar do tempo, para lamento
de nossa tradição filológica.
No tocante à fraseologia, por sinal, a pena de Nobiling não poupa críticas ferinas ao trabalho de João Ribeiro, a quem acusa de dar como suas “as
verdades descobertas por outros, e só os cita quando julga poder refutá-los”
(p. 374). O rigor do julgamento, entretanto, abre uma fresta de ressentimento
quando adverte ao leitor que tinha “um motivo pessoal para escrever a presente
crítica” (p. 375). As rusgas filológicas, sabemo-lo bem, muita inimizade criou
nos círculos intelectuais brasileiros, em sua maioria alimentada pela vaidade
que naturalmente acomete os homens de leitura. Fato é que, tanto a Nobiling
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Resenha
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quanto a Ribeiro muito hoje devemos como estímulo para retomar os estudos
fraseológicos, não obstante em ambos também se encontrem certos “devaneios”
justificados pelo que então se denominava “estudo conjectural”.
Uma especial referência merece o texto Brasileirismos e crioulismos, em
que Oskar Nobiling discorre sobre fatos gramaticais tidos inadequadamente
como típicos do contato linguístico, quando na realidade expressam uma natural mudança sistêmica. Um dos expressivos exemplos referidos por Nobiling
diz respeito ao uso de ter por haver, característico do português brasileiro e
de alguns crioulos africanos de base portuguesa, que tem sua real origem na
progressiva ampliação do espectro semântico de tenere a ponto de assumir
sentidos de habere nos romanços ibéricos.
Outra referência especial impõe-se ao capítulo Literatura Popular, em que
se reúnem várias canções populares brasileiras anotadas por Nobiling entre 1895
e 1897. A coletânea constitui um exemplário precioso para o estudo da língua
oral dos oitocentos, área de investigação que se ressente de corpora fidedignos,
não obstante muitos dos textos já tivessem sido publicados em 1883 por Sílvio
Romero em seus Cantos populares do Brasil. O traço inovador no trabalho de
Nobiling está na maior preocupação com o registro gráfico da pronúncia, como
se percebe, por exemplo, em A moça sendo feia/E sendo constante/É consederada. A preocupação com os detalhes gramaticais é nítida nos comentários
oferecidos em notas explicativas, tais como o que faz a respeito de uma das
estrofes da seguinte canção:
Naquele cordão de serra,
Naquela outra de lá,
Avistei a Serra Negra
Donde meu bem foi morar.
Esse texto, atribuído a um certo José Alves da Rocha, vem com emprego
de donde no último verso da estrofe, mas segundo Nobiling, ao ditar o verso
para registro, o cantador teria dito Adonde Marica foi morar. A par da presença
do advérbio regido por de, que por si constitui um fato sintático interessante,
ressalte-se que na outra versão incorporou-se um a protético, típico do cruzamento de aonde com donde. Cuide-se, por cautela, que esse a pode resultar
igualmente do alongamento do a final de Negra, o que desautorizaria a hipótese
do cruzamento. Este caso é constitui exemplo avulso do cuidado de Nobiling com
o rigor do registro, que se estende até mesmo para as informações sobre variáveis
sociolinguísticas, tais como a idade, a cor e a naturalidade do cantador.
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Ricardo Cavaliere
Enfim, o volume As cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade e estudos
dispersos resume-se em precioso repertório de textos do Oskar Nobiling, seja
na seara da crítica textual, seja na da descrição linguística do português, ou
mesmo no trabalho meticuloso da coleta de textos em língua oral. Ressalte-se,
ademais, a excelente produção editorial que a Editora da Universidade Federal
Fluminense dedicou à obra.
Ricardo Cavaliere
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Colaboradores
CARLOS EDUARDO FALCÃO UCHÔA. Professor Emérito e Titular de Linguística da Universidade Federal Fluminense, onde criou a linha de pesquisa
Linguística e Ensino de Português, na qual orientou inúmeras dissertações
e teses. Autor de numerosas obras publicadas na área de sua especialidade,
trouxe a lume recentemente O ensino da gramática: caminhos e descaminhos.
É membro da Academia Brasileira de Filologia e docente do Liceu Literário
Português.
CASTELAR DE CARVALHO. Professor adjunto (aposentado) de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor de livros e ensaios,
sobretudo da área da Estilística, é membro da Academia Brasileira de Filologia
e do Instituto de Língua Portuguesa do Liceu Literário Português. Dentre suas
obras, destaca-se Para compreender Saussure e Noel Rosa: língua e estilo.
Dino Preti. Professor e pesquisador da Universidade de São Paulo, membro
do Corpo editorial da Revista Linguagem, membro do corpo editorial da EDUC
– Editora da PUC-SP e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Análise da
Conversação, atuando principalmente nos seguintes temas: variação linguística,
gíria, língua falada, conversação e linguagem dos idosos. Publicou, entre outros
volumes, Sociolinguistica: os níveis de fala.
DOMÍCIO PROENÇA FILHO. Professor Emérito e Titular de Literatura Brasileira da Universidade Federal Fluminense. É membro da Academia Brasileira
de Letras e da Academia Brasileira de Filologia. Crítico, poeta, romancista e
filólogo, escreveu mais de 50 livros, dentre os quais Estilos de época na literatura, Capitu – Memórias Póstumas e Nova ortografia da língua portuguesa.
Evanildo Bechara. Professor Emérito e Titular de Língua Portuguesa
da Universidade Federal Fluminense e da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Atualmente leciona na pós-graduação do Liceu Literário Português. É
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Colaboradores
membro da Academia Brasileira de Letras, da Academia Brasileira de Filologia
e da Academia das Ciências de Lisboa. Dentre suas obras, desponta a Moderna
gramática portuguesa.
GILBERTO MENDONÇA TELES. Doutor em Letras e livre-docente em
Literatura Brasileira pela PUC-RS. É professor titular aposentado de Língua
Portuguesa da PUC-RJ e professor visitante de Literatura Brasileira em universidades estrangeiras. Poeta e crítico literário, pertence a várias instituições
especializadas, dentre elas a Société de Linguistique Romane, a Academia
Brasileira de Filologia e a Academia Carioca de Letras. Recebeu, pelo conjunto
de sua obra, o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras.
GONÇALO FERNANDES. Diretor do Departamento de Letras, Artes e Comunicação da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real, Portugal,
investigador efetivo do Centro de Estudos em Letras (CEL) e associado correspondente estrangeiro da Academia Brasileira de Filologia (ABRAFIL). Concluiu
o Doutorado em Linguística Portuguesa, com a Tese Amaro de Roboredo, um
Pioneiro nos Estudos Linguísticos e na Didáctica das Línguas, em 2003, e a
Agregação em Ciências da Linguagem com a lição Os contributos das Reglas
pera enformarmos os menỹos en latin (Ms. Digby 26) para a gramaticografia
medieval latino-portuguesa, em 2009.
HORÁCIO ROLIM DE FREITAS. Doutor em Letras e professor aposentado
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente coordena o Curso de
Especialização em Língua Portuguesa do Liceu Literário Português. É membro
da Academia Brasileira de Filologia. Dentre suas obras, destaca-se o volume
Princípios de Morfologia.
JOSÉ LUIZ FIORIN. Doutor em Linguística e livre-docente em Teoria e Análise
do Texto na Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Linguística,
com ênfase em Teoria e Análise Linguística, atuando principalmente em temas
relacionados à enunciação. Além de muitos artigos em revistas especializadas
e capítulos de livros, publicou diversos livros, entre os quais As astúcias da
enunciação e Lições de texto: leitura e redação.
LEONOR LOPES FÁVERO. Doutora em Linguística Aplicada e Estudos da
Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é
professora titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Professora
Titular da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Linguística,
com ênfase em Teoria e Análise Linguística. Dentre suas obras, cite-se As con-
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cepções linguísticas no século XVIII: a gramática portuguesa.
MÁRCIA GUEDES MOLINA. Doutora em Linguística pela Universidade
de São Paulo. Atualmente é pesquisadora da Universidade de Santo Amaro,
coordenadora da Faculdade de Letras (Presencial e a distância) e professora
titular da Universidade de Santo Amaro. Tem experiência na área de Letras,
com ênfase em Língua Portuguesa e Linguística, e na Educação a distância.
Dentre seus textos, cite-se As concepções linguísticas no século XIX: a gramática no Brasil.
MARIA HELENA DE MOURA NEVES. Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da UNESP-Araraquara, é bolsista de produtividade em
pesquisa nível I-A do CNPq. É autora, entre outros, dos livros Texto e gramática,
Gramática de usos do português, Que gramática estudar na escola? Norma e
uso na língua portuguesa. Pertence ao conselho consultivo 13 revistas especializadas, atua como consultora de 15 fundações de apoio à pesquisa e é sócia
de 6 associações de pesquisa no Brasil e no exterior.
PAULO ROBERTO PEREIRA. Doutor em Letras pela UFRJ e professor adjunto de Literatura Brasileira na UFF. Em 2009, organizou para a Editora Nova
Aguilar a edição do centenário da obra completa de Euclides da Cunha. Atua
principalmente na pesquisa sobre poesia do século XVIII, Arcadismo/Iluminismo, Inconfidência e bibliotecas coloniais. Organizou várias obras, dentre as
quais a Brasiliana da Biblioteca Nacional; Guia das fontes sobre o Brasil.
REGINALDO PINTO DE CARVALHO. Doutor em Letras e professor efetivo da Universidade de São Paulo. Exerce variada atividade de pesquisa, com
ênfase em Língua Portuguesa, atuando principalmente nos seguintes temas:
Estilística, Memórias de um Sargento de Milícias. É autor de numerosos textos
na área de sua especialidade.
RICARDO CAVALIERE. Doutor em Língua Portuguesa e professor associado
da Universidade Federal Fluminense. Desenvolve pesquisa com ênfase em
descrição do português e na historiografia dos estudos gramaticais. É membro
da Academia Brasileira de Filologia, conselheiro do Real Gabinete Português
de Leitura e conselheiro do Liceu Literário Português. Publicou, entre outras
obras, o livro Pontos essenciais em fonética e fonologia.
Rosalvo do Valle é professor emérito da Universidade Federal Fluminense. Latinista e filólogo, é autor da tese Considerações sobre a Peregrinatio
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Colaboradores
Aetheriae. Desenvolve pesquisa sobre a história da língua portuguesa e sua
posição dentre as línguas românicas. Atualmente, compõe o corpo docente do
Curso de Pós-Graduação do Liceu Literário Português.
TEREZINHA BITTENCOURT. Doutora em Letras (Semiótica e Linguística
Geral) pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professora da Universidade Federal Fluminense onde atua nos cursos de graduação e pós-graduação.
Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Língua Portuguesa e em
Teoria Linguística.
VALTER KEHDI. Livre-docente e doutor em Filologia e Língua Portuguesa
pela Universidade de São Paulo, onde atuou como professor do Departamento
de Letras Clássicas e Vernáculas. É especialista em descrição do português,
com publicação de vários textos acadêmicos, dentre eles Formação de palavras
em português e Morfemas do Português.
WALMIRIO MACEDO. Doutor em Letras, livre-docente em Língua Portuguesa
e professor
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titular aposentado da Universidade Federal Fluminense. É membro da Academia Brasileira de Filologia. Entre outros trabalhos de Filologia
e Linguística, escreveu Gramática da Língua Portuguesa, obra que mereceu
o prêmio João Ribeiro da Academia Brasileira de Letras, e Análise sintática
em nova dimensão. Atualmente, compõe o quadro docente do Liceu Literário
Português.
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LICEU LITERÁRIO PORTUGUÊS
INSTITUTO DE LÍNGUA PORTUGUESA
Confluência
Assinatura
Os nossos leitores poderão receber em suas residências a revista, ao preço de R$
25,00, correspondente ao número 31 do 1.º semestre de 2006, ou de R$ 30,00, para a
assinatura anual do número 32 do 2.º semestre de 2006, mais a despesa de porte, caso
utilizem os serviços dos correios.
Estes preços são válidos para os números anteriores, com exceção do 1 ao 5,
que estão esgotados.
Para os pedidos do exterior o preço de cada número será de US$ 10.00 (dez
dólares americanos) e de US$ 20.00 (vinte dólares americanos) para a anuidade, mais
as despesas de remessa.
Os interessados deverão enviar o seu pedido, com os dados solicitados na ficha
abaixo, e acompanhado do comprovante de depósito, para:
Confluência – Instituto de Língua Portuguesa
Rua Senador Dantas, 118 – 2.º andar – Centro
CEP 20031-201 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Tel.: (21) 2220-5495 / 2220-5445 – Fax: (21) 2533-3044
E-mail: [email protected] – www.liceuliterario.org.br
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PEDIDO DE ASSINATURA
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Endereço completo: _ __________________________________________
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Desejo receber: Confluência 31
Confluência 32
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Os depósitos deverão ser feitos em qualquer agência do Banco Itaú em ­favor
de: Liceu Literário Português – Banco Itaú – Agência São José – 0310, conta
corrente nº 42171-4 – Rio de Janeiro – RJ.
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