DIREITO E LITERATURA Diante da Lei
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DIREITO E LITERATURA Diante da Lei
DIREITO E LITERATURA Diante da Lei: Uma breve análise do sujeito no contexto processual Raquel Alkmim Figueredo Mendonça1 RESUMO O presente trabalho procura realizar uma reflexão acerca do problema da reconstrução narrativa do sujeito histórico no âmbito do tempo e do espaço ficcionais criados pelo processo judicial, desenvolvendo-o sob as perspectivas do Direito, da Literatura e da História. Palavras-chave: sujeito, narrativa, vida, processo, histórico. 1. INTRODUÇÃO A utilidade da literatura para melhor compreender o universo do Direito é facilmente demonstrável, visto que a hermenêutica literária permite uma multiplicidade de recursos interpretativos nem sempre viabilizados pela exegese restrita ao campo jurídico, ainda impregnado pelo descritivismo positivista do século XIX. Pretende-se, com o presente trabalho, demonstrar a dificuldade da reconstrução do sujeito histórico dentro dos limites do processo judicial, devido ao contingenciamento a que ele está submetido. Para tanto a autora estabeleceu conceitos e introduziu aspectos relevantes sobre a narração na perspectiva da história subjetiva e da Literatura, de modo que o contexto processual e o caso-mundo (conceitos delimitados no bojo das digressões que se seguem a esta pequena introdução) pudessem ser ampliados. 1 Bacharel em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Frise-se que ora se busca esse sujeito num mundo marcado pela equivocidade da comunicação e dominado pela burocracia das relações humanas. Fatores que são refletidos na sistemática dos tribunais e cartórios. A compreensão do processo como uma espécie de registro literário da história do sujeito jungido ao que as leis determinam como sendo importante e ao se quer provar no curso do processo, bem como a revelação de sua incapacidade para captar o sujeito histórico sem que se opere uma ruptura da unidade da vida, é função própria da Filosofia do Direito. Como saber se o que vem compor os autos é ficção ou é a própria vida? Fazer exsurgir o sujeito histórico, dotado de uma vivência, em um contexto processual, depurado de tudo o que é externo a ele – quod non est in actis, non est in mundus – depende de linguagem e, principalmente, depende de recompor o tempo e o espaço dos acontecimentos de acordo com regras pré-determinadas. Deve-se relatar que, a expectativa de desvendar o sujeito histórico no contexto processual conduziu ao desenvolvimento deste trabalho em três perspectivas. A primeira delas consiste em apropriar-se da crítica literária, trazendo-a para o universo jurídico, de modo que sua abertura em relação às outras narrativas, mormente em seus aspectos históricos, permita uma ampliação do contexto processual. Para tanto, escolheu-se alguém que, durante toda a sua carreira como escritor, cuidou de retratar o universo jurídico, Franz Kafka. A segunda é aquela que buscará fontes jurídicas que possibilitem a reconstituição do sujeito e de sua história no domínio dos autos. Trata-se de estudar alguns autores que lidam com o elemento subjetivo e seu comportamento em face das instituições jurídicas, principalmente do processo. A terceira perspectiva se pauta no encontro dos pontos de contato entre esse sujeito histórico que ora é esquadrinhado e a expectativa de visualizar a unidade da vida. Desse modo, esforça-se por trilhar o caminho da ampliação do contexto processual, com a finalidade precípua de tentar enxergar o sujeito que integra esse panorama em sua integralidade, visto que é tarefa primordial da Filosofia do Direito preocupar-se com o sujeito ao qual se destina a prestação jurisdicional. 2. O SUJEITO HISTÓRICO E A UNIDADE DA VIDA HUMANA O conceito de narrativa não se reduz à obra de poetas, romancistas e dramaturgos, porquanto é ela que permite que se estabeleça um fio condutor entre acontecimentos de caráter ficcional ou real, uma vez que é capaz de ressaltar os aspectos dramáticos e temporais dos acontecimentos, criando uma espécie de representação lingüística deles. Segundo Rogério Monteiro Barbosa, a narrativa “não é um projeto que se esgota, que tenha um fim pré-determinado, já que ela é a própria vida e que, portanto só acaba quando esta também acaba” (BARBOSA, 2008, p. 37). Mais que isso, a narrativa da vida humana possui inelutável caráter histórico. Todo personagem, todo sujeito histórico ingressa na história com um papel a desempenhar, porquanto quando nascemos a história já está em curso e não nos é dado escolher a que horas começaremos a fazer parte dela. Alasdair MacIntyre afirma que o homem é, em suas ações e práticas, bem como em suas ficções, essencialmente um animal contador de histórias. Não é, em essência, mas se torna no decorrer de sua história, um contador de histórias que aspiram à verdade (MACINTYRE, 2001, p. 363). Com isso, ele quer significar que só aprendemos os papéis a nós atribuídos ou como os outros reagem e interpretam nossas ações por meio da história. Assim, é ouvindo histórias sobre madrastas malvadas, crianças perdidas, reis bons, porém imprudentes, lobos que amamentam gêmeos, filhos caçulas que não recebem herança, mas precisam vencer na vida e filhos mais velhos que desperdiçam sua herança numa vida desregrada e vão para o exílio viver com porcos, que as crianças aprendem ou aprendem equivocadamente o que é um filho e o que é um pai, qual pode ser o elenco da peça dentro da qual nasceram e como é o mundo lá fora (MACINTYRE, 2001, p. 363). Então, em que se traduz a unidade da vida de um sujeito histórico? Alasdair MacIntyre responde dizendo “a unidade de uma vida humana é a unidade de uma busca narrativa” (MACINTYRE, 2001, p. 368). Desse modo, quando se busca essa unidade, para elucidá-la, o referido autor defende que há perguntas fundamentais que devem ser feitas ao sujeito histórico que se pretende conhecer: Perguntar “O que é bom para mim?” é perguntar como devo viver melhor essa unidade e levá-la a cabo. Perguntar “O que é o bem para o homem?” é perguntar o que todas as respostas à pergunta anterior devem ter em comum. Mas é importante enfatizar que é a formulação sistemática dessas duas perguntas e a tentativa de respondê-las tanto em atos quanto em palavras que proporcionam unidade à vida moral. (MACINTYRE, 2001, p. 367). Frise-se que, como pressuposto de toda busca empreendida, há sempre um telos, i. e., uma finalidade. “A busca é sempre uma educação quanto ao caráter do que se procura e de autoconhecimento” (MACINTYRE, 2001, p. 368). A busca pelo sujeito histórico é a busca pela unidade da vida. O homem não pode tolerar hiatos no conhecimento. O sujeito descentrado da modernidade vive angustiado porque perde suas referências históricas e narrativas, perdendo sua capacidade de reconhecer-se como um todo, i. e., como uma identidade. Conforme afirmou Alasdair MacIntyre, isso ocorre porque se tornou costumeiro tratar as coisas como se elas estivessem perfeitamente separadas e fosse possível dissociar vários “eus” de um só sujeito histórico. A representação de papéis sociais não deve significar que o sujeito é mera coleção deles. A narrativa de caráter histórico procura transcender os obstáculos sociais e filosóficos para dar um sentido unitário à vida humana. Atos e comportamentos momentâneos só fazem sentido no todo e é por isso que pretendemos, com o presente trabalho, transportar essas concepções de caráter holístico para que possamos visualizar como fica o sujeito histórico em um processo judicial. Como a história, segundo Alasdair MacIntyre, “é uma narrativa dramática encenada” (MACINTYRE, 2001, p. 361), devemos lembrar que toda narrativa dramática é composta por personagens. Observemos que esse autor estabelece que “a diferença entre personagens imaginários e reais não está na forma narrativa do que fazem; está no nível de autoria daquela forma e de seus próprios atos” (MACINTYRE, 2001, p. 361). Desse modo, é forçosa a conclusão no sentido de que os personagens reais são, por assim dizer, senhores e possuidores de suas ações e, apenas sob coação vis absoluta, estado de necessidade e legítima defesa poderiam alegar que não prevalece sua volição, se considerarmos apenas os indivíduos com capacidade plena para os atos da vida civil. Já os personagens fictícios teriam suas ações e comportamentos determinados pelo autor empírico da narração. Contudo, não há nenhum óbice de cunho literário que impeça que a figura do autor empírico se confunda com a figura do personagem. Os autores podem ser autodiegéticos quando protagonizam e narram sua própria história, ainda que esta seja meramente ficcional, heterodiegéticos quando se situam fora da história narrada e não participam dela e homodiegéticos quando participam da história narrando-a, sem, contudo protagonizá-la (REIS, LOPES, 2002, p. 259-267). Alasdair MacIntyre considera que a história: “é uma narrativa dramática encenada, na qual os personagens também são autores” (MACINTYRE, 2001, p. 361). Ao tratar do sujeito histórico moderno que é aquele que protagoniza sua própria história e atua de forma coadjuvante na história de outros sujeitos históricos, é fundamental considerarmos que ele enfrenta dois obstáculos que inviabilizam a visualização da “vida humana como um todo” (MACINTYRE, 2001, p. 343), um de caráter social e outro de caráter filosófico. O primeiro provém do modo como a modernidade divide a vida humana em uma série de segmentos, cada um com suas próprias normas e modalidades de comportamento. Portanto o trabalho fica afastado do lazer, a vida privada afastada da pública, a vida empresarial afastada da pessoal. Assim a infância e a velhice foram amputadas do resto da vida humana e transformadas em setores distintos. E todas essas separações foram criadas de tal forma que é a peculiaridade de cada uma delas, e não a unidade da vida do indivíduo, que se experimenta nessas partes, em cujos termos nos ensinam a pensar e sentir (MACINTYRE, 2001, p. 343). O segundo, de viés filosófico, consiste em duas tendências diversas, sendo que uma delas é “a tendência de pensar de maneira atomista na atividade humana e analisar atos e transações complexas em termos de componentes simples” (MACINTYRE, 2001, p. 343), enquanto a outra diz que a unidade da vida humana torna-se, igualmente invisível para nós quando se faz uma separação nítida entre o indivíduo e os papéis que ele interpreta (...) de modo que a vida não pareça ser nada além de uma série de episódios desconexos (MACINTYRE, 2001, p. 344). Pretender que ações particulares derivem seu caráter como partes de todos maiores é uma perspectiva alheia a nossos modos predominantes de pensar, porém é uma [perspectiva] que devemos levar em conta se pretendemos começar a entender como uma vida pode ser mais do que uma seqüência de atos e episódios individuais (MACINTYRE, 2001, p. 344). A vida do sujeito histórico, do nascimento até sua morte, é delimitada por uma ordem de acontecimentos que podem ser compreendidos de forma narrativa, uma vez que, apenas esta é capaz de dotá-los de sentido, conectando seu começo, meio e fim, sendo, pois, essa concepção própria da idéia identidade do eu, i. e., do sujeito. Para Alasdair MacIntyre é absolutamente natural pensar no eu em forma narrativa. É uma banalidade conceitual, tanto para filósofos quanto para agentes comuns, que o mesmo segmento do comportamento humano seja corretamente caracterizado de diversas maneiras. Para a pergunta “O que ele está fazendo?” as respostas podem ser com igual veracidade e propriedade, “Cavando”, “Cuidando do jardim”, “Exercitando-se”, “Preparando-se para o inverno” ou “Agradando a esposa”. Algumas dessas respostas caracterizam intenções do agente, outras caracterizam conseqüências não-intencionais, algumas podem ser tais que o agente tenha consciência delas e não de outras. O importante é perceber imediatamente que qualquer resposta a perguntas acerca de como devemos entender ou explicar determinado segmento de comportamento vão pressupor alguma resposta anterior à pergunta sobre como essas respostas corretas e diferentes à pergunta “O que ele está fazendo?” se relacionam entre si. Se a intenção principal da pessoa é deixar o jardim em ordem antes do inverno e é apenas incidentalmente que, ao fazê-lo, esteja se exercitando e agradando a esposa, temos um tipo de comportamento a ser explicado; mas se a principal intenção do agente é exercitar-se para agradar a esposa, temos outro tipo de comportamento bem diferente a ser explicado e teremos de procurar em outra direção o entendimento e a explicação (MACINTYRE, 2001, p. 346-347). Se pretendemos entender cada um dos exemplos acima, devemos analisar os prováveis contextos em que se situa a ação. No primeiro identificamos alguém que está cuidando do jardim de sua casa, enquanto no segundo exemplo nos deparamos com a existência de um contexto matrimonial. Todo comportamento ou atividade do sujeito histórico pressupõe a existência de um contexto, de acordo com o qual o comportamento ou atividade desse sujeito poderá ou não fazer sentido. Tomado em sua perspectiva mais abrangente o contexto é aquilo a que Alasdair MacIntyre dá o nome de cenário. o cenário social pode ser uma instituição, pode ser o que chamo de prática, ou um meio de algum outro tipo humano. Mas é fundamental à idéia de cenário, conforme meu entendimento, que o cenário tenha uma história, uma história dentro da qual as histórias de cada agente não sejam apenas, mas tenham de ser, situadas, simplesmente porque, sem o cenário e suas mudanças com o passar do tempo, a história do agente e suas mudanças com o tempo são ininteligíveis (MACINTYRE, 2001, p. 348). No entanto, deve-se considerar que o sujeito histórico que age e se comporta em um cenário, qualquer que seja ele, também é um sujeito de intenções e, para todo ato ou comportamento desse sujeito, é necessário que saibamos qual ou quais as intenções fundamentais o conduziram à sua realização, porquanto se não soubermos isso, poderemos entender equivocadamente ou mesmo deixar de entender porque o sujeito histórico age e se comporta desta ou daquela maneira. Assim, não podemos caracterizar o comportamento independentemente das intenções, e não podemos caracterizar as intenções independentemente dos cenários que tornam essas ações inteligíveis, tanto para os próprios agentes quanto para outras pessoas (MACINTYRE, 2001, p. 346-347). Se quisermos ligar determinado segmento do comportamento de maneira precisa às intenções do agente e, assim, aos cenários onde o agente habita, teremos de entender de maneira precisa como uma série de caracterizações corretas do comportamento do agente se inter-relacionam, primeiro identificando quais características nos encaminham a uma intenção e quais não o fazem, e depois classificando melhor os itens de ambas as categorias (MACINTYRE, 2001, p. 348). Segundo Alasdair MacIntyre as ações para serem inteligíveis pressupõem a organização das intenções subjetivas de acordo com critérios temporais e causais. No que tange ao critério causal, “precisamos saber qual intenção ou quais intenções eram fundamentais, isto é, de qual delas é o caso que, tivesse o agente pretendido outra coisa, ele não teria realizado aquele ato” (MACINTYRE, 2001, p. 348). A intenção conduz a uma ação para que determinado objetivo seja alcançado. O critério temporal constrói a relação entre intenções de curto prazo e as intenções de longo prazo, estas últimas de suma importância para que as ações do sujeito se tornem compreensíveis para nós, uma vez que são elas as orientadoras de seu comportamento. Cada uma das intenções de curto prazo é, e só pode ser, inteligível por intermédio de referência a intenções de longo prazo; e a caracterização do comportamento segundo as intenções de longo prazo só pode estar correta se também estiverem corretas algumas das caracterizações segundo as intenções de curto prazo. Portanto, só se caracteriza de maneira adequada o comportamento quando se sabe quais são as intenções de prazo mais longo invocadas e como as intenções de prazo mais curto se relacionam com as de prazo mais longo. Novamente nos envolvemos na escrita de uma história narrativa. (...) Não existe tal “comportamento”, a ser identificado antes das intenções, crenças e cenários, e independentemente destes (MACINTYRE, 2001, p. 349). A título de exemplo poderíamos tomar a produção do pré-questionamento nos recursos de natureza infraconstitucional pelo recorrente que deseja aviar, futuramente, nos termos da jurisprudência pátria, recursos de natureza constitucional. A falta de pré-questionamento impossibilita que o recorrente leve a demanda a exame nas instâncias superiores, visto que se trata de um pressuposto de admissibilidade, de modo que sua realização na instância inferior pode ser comparada a uma intenção de curto prazo que se relaciona e se projeta em uma intenção de longo prazo, qual seja: levar a efeito um recurso constitucional quando da abertura do prazo para a interposição deste. Aqui, se identificarmos o processo como contexto ou cenário, o sujeito de ação e comportamento como o recorrente, a ordem temporal e causal da efetivação do pré-questionamento e o conseqüente aviamento do recurso constitucional, teríamos uma seqüência de eventos humanos que pode ser compreendida como uma seqüência complexa de atos individuais, sendo que usualmente, em uma seqüência, cada elemento só pode ser captado “como elemento-possível-numa-seqüência. Além disso, mesmo tal seqüência depende de um contexto para ser inteligível” (MACINTYRE, 2001, p. 351). Esse contexto é o contexto das interações humanas que, de um modo geral, se constituem de narrativas encenadas. No exemplo citado acima o contexto é o processo que deve forçosamente ser visto como uma forma de interação humana. Alasdair MacIntyre visualiza a conversa como a forma por excelência das interações humanas porque além de pertencer a gêneros (uma conversa pode ser trágica tanto quanto pode ser cômica), possui início, meio e fim, contendo inversões e reconhecimentos, desvios, tramas e sub-tramas. A conversa é uma obra dramática, mesmo que curta, da qual os participantes são, além de atores, os co-autores, elaborando em concordância ou discordância a modalidade de sua produção. (...) Porém, se isso é verdadeiro com relação a conversas, também é verdadeiro, mutatis mutandis com relação a batalhas, partidas de xadrez, namoros, seminários de filosofia, famílias à mesa de jantar, executivos negociando contratos – isto é, com relação às interações humanas em geral. O comportamento conversacional não é um tipo ou aspecto especial do comportamento humano, embora as formas de uso da linguagem e de vida humana sejam tais que os atos das outras pessoas falem tanto por elas quanto suas palavras (MACINTYRE, 2001, p. 354-355). No entanto, se a conversa é a forma de interação humana mais comum entre os seres humanos, porquanto mesmo o livro fundador da civilização ocidental cristã reconhece que no princípio era o verbo, há outras formas de interação de caráter subjetivo que envolvem às vezes dois, às vezes uma pluralidade de sujeitos, como os jogos de futebol, os pregões que ocorrem diariamente nas bolsas de valores do mundo inteiro, o cinema e os processos judiciais. Nota-se que para cada um dos exemplos há uma linguagem própria que permite que os sujeitos envolvidos se comuniquem e se entendam: passes; gestos, imagens, documentos escritos. Vejamos, então, o que ocorre com o processo judicial. O processo judicial é uma espécie de interação humana de caráter retrospectivo, i. e., que se opera depois do acontecimento histórico que gerou pretensões opostas nos sujeitos que participaram dele, que, nos termos do princípio da jurisdição, caso se traduzam em lesão ou ameaça a direitos juridicamente protegidos, devem ser levadas a exame pelo Poder Judiciário. Deve-se salientar que o que se encontra ora em jogo, são as interações humanas protagonizadas por sujeitos históricos que agem ao mesmo tempo, dada a diversidade de espaços em que esses sujeitos podem agir e, mesmo, sujeitos históricos que interagem regidos por alguma espécie de ordem que é capaz de os obrigar ou se abster de agir em momentos determinados, como em um processo judicial. Não é difícil perceber que as interações humanas podem ser corriqueiras e informais – uma conversa entre pessoas que estão em uma fila sobre a demora do atendimento bancário, – tanto quanto podem ser formais e eventuais – insistimos na ilustração do processo judicial. No processo judicial podemos ver, claramente, como as ações de alguns personagens podem interferir nas ações e cenários de outros. A vida em sociedade implica conviver e contracenar com outros personagens coadjuvantes e que influenciam, positiva ou negativamente, nossa narrativa. Alasdair MacIntyre observa que “cada personagem sofre restrições das ações de outros e dos cenários sociais pressupostos em suas ações e na deles” (MACINTYRE, 2001, p. 361). Nessa esteira, pleitear um direito em juízo significa, em termos bem simples, tentar impor uma pretensão, na maioria das vezes, em detrimento de outrem, pois se assim não fosse o processo, de um modo geral, não seria contencioso, mas voluntário. Fato é que o processo existe para que seja atribuído a um terceiro, em tese imparcial, a solução dos conflitos que os sujeitos históricos interessados não estão aptos a dirimir por eles mesmos, sem se valer da figura penal conhecida como exercício arbitrário das próprias razões. Passemos à análise do sujeito histórico que se torna sujeito processual, bem como dos aspectos de tempo e espaço no contexto do processo. 3. O CONTEXTO PROCESSUAL A delimitação do âmbito de atuação do sujeito histórico, para o presente trabalho, depende da perfeita caracterização do que é um contexto processual. Várias discussões, segundo Aroldo Plínio Gonçalves, foram travadas para que se pudesse concluir que embora os conceitos de técnica processual, ciência processual, procedimento e processo não fossem equivalentes, cada um deles desempenha tarefas importantes quando se pretende o estudo do contexto que, fundamentalmente, depende deles para existir, porquanto um complementa o outro. Assim, buscar o sujeito histórico sob a égide da técnica processual de caráter objetivista significa, para Aroldo Plínio Gonçalves, adotar uma técnica de aplicação do direito que se vincula a elementos nãosubjetivos, a uma estrutura normativa que possibilita aos membros da sociedade que vão a Juízo, contarem com a mesma segurança, no processo, quer estejam perante um juiz dotado de inteligência, cultura e sensibilidade invulgares, quer estejam diante de um juiz que não tenha sido agraciado com os mesmos predicados (GONÇALVES, 1992, p. 46). Para o encontro do sujeito histórico, deve-se confiar ainda na contribuição do Direito Processual como ciência que, enquanto atividade que produz conhecimento (GONÇALVES, 1992, p. 46), sempre trabalha, elabora seus conceitos, unifica pontos dissociados e fragmentados, descobre semelhanças não-aparentes em seu campo de investigação, desenvolve sua tarefa de racionalização, de construção, reúne, no mesmo conjunto, normas, pelos critérios específicos da conexão da matéria, criando assim, categorias e institutos jurídicos, e organiza, a partir desses dados, os campos de seu desdobramento que podem, sob o aspecto didático-metodológico, constituir-se em novas disciplinas autônomas (GONÇALVES, 1992, p. 46). Aqui cabe a reflexão acerca da ciência processual como algo além de uma ciência de petições, provas, apelações e execuções, que são vistas apenas como instrumentos que podem conduzir à descoberta do real e, portanto, do sujeito histórico. Dizemos “podem” porque, na verdade não sabemos até que ponto a ciência processual é capaz, verdadeiramente, de unir pontos dissociados e fragmentados, pois esse é o papel fundamental da história. É ela, enquanto narrativa encenada, que pode tecer o fio condutor entre os acontecimentos ou pontos, como prefere Aroldo Plínio Gonçalves. Será que poderíamos chegar à conclusão de que a ciência processual possui caráter histórico? Voltaremos à pergunta mais adiante. Quanto à idéia de procedimento, Aroldo Plínio Gonçalves a trata, segundo o critério teleológico, como a “a realidade fenomenológica perceptível” (GONÇALVES, 1992, p. 65) do processo ou o “meio pelo qual a lei estampa os atos e fórmulas da ordem legal do processo” (GONÇALVES, 1992, p. 65), contrapondo-o ao vocábulo “processo” que, na acepção jurídica do termo, é dotado de natureza teleológica, uma vez que “nele se caracteriza sua finalidade de exercício do poder”2 (GONÇALVES, 1992, p. 65) ou “instrumento para a positivação do poder” (GONÇALVES, 1992, p. 65). No entanto, ao examinar o critério lógico de definição do procedimento, esse mesmo doutrinador atesta que, mais do que uma relação de distinção há, entre o processo e o procedimento, “uma relação de inclusão” (GONÇALVES, 1992, p. 68), porquanto o procedimento é gênero do qual o processo é espécie, sendo que o que diferencia este daquele é a existência do elemento do contraditório. Assim, o processo é um procedimento, mas não qualquer procedimento; é o procedimento de que participam aqueles que são interessados no ato final, de caráter imperativo, por ele preparado, mas não apenas participam; participam de uma forma especial, em contraditório entre eles, porque seus interesses em relação ao ato final são opostos (GONÇALVES, 1992, p. 68). O ato final pronunciado pelo doutrinador é o provimento, que, quando da formação da litiscontestatio, é esperado pelos sujeitos que a integram e cujos interesses estão em oposição. O procedimento não está circunscrito ao cumprimento de um único ato, 2 O exercício do poder de “dizer o direito”, i. e., conceder o provimento ao jurisdicionado que provoca o Poder Judiciário, poder orgânico e, portanto, estruturante do Estado, que serve para julgar litígios. mas requer toda uma série de atos e uma série de normas que o disciplinam, em conexão entre elas, regendo a seqüência de seu desenvolvimento. Por isso se fala em procedimento como seqüência de normas, de atos e de posições subjetivas (GONÇALVES, 1992, p. 108). Ocorre que essa série de atos e normas que disciplinam o procedimento que é a forma de exteriorização do processo de que fala o autor, faz com que os sujeitos e fatos que figuram no processo se tornem extremamente contingenciados. No procedimento a posição subjetiva é a posição dos sujeitos diante da norma, que atribui às suas condutas adjetivos, fazendo com que elas possam ser denominadas lícitas, ilícitas, devidas ou facultadas (GONÇALVES, 1992, p. 109). O procedimento prepara o provimento de maneira que os atos e as posições são normativamente previstos e se conectam de forma especial para tornar possível o advento do ato final, por ele preparado. Não só o ato final em sua existência, mas a própria validade desse ato e, conseqüentemente, sua eficácia, dependerão do desenvolvimento correto do procedimento (GONÇALVES, 1992, p. 109 110). O processo, espécie do gênero procedimento, vem a se caracterizar, conforme relatado anteriormente, pela participação dos interessados em contraditório entre si, sendo que esses interessados são os sujeitos processuais. Como personagens principais do processo, segundo Ada Pellegrini Grinover, Antônio Carlos de Araújo Cintra e Cândido Rangel Dinamarco, tem-se o juiz, o autor e o réu3. O primeiro é “sujeito imparcial do processo, investido de autoridade para dirimir a lide” (CINTRA, DINAMARCO, GRINOVER, 2002, p. 294), que possui o poder de conduzir o processo segundo a ordem legal estabelecida (devido processo legal), propiciando às partes todas as oportunidades de participação a que têm direitos e dialogando amplamente com elas mediante despachos e 3 Aqui a nomenclatura utilizada para a denominação dos interessados é própria do processo de conhecimento, visto que o objeto do presente trabalho está focado nele, porquanto é a espécie de procedimento em contraditório em que serão definidos os fatos ocorridos e quem são os legitimados para pleitear direitos a eles relativos, bem como quais serão esses direitos. Daí a origem do nomen iuris que o designa. A finalidade precípua do processo de conhecimento é a cognição. Contudo, não se pode olvidar que, também no processo de execução, é evidente que há contraditório, tendo em vista que o juiz, a todo momento, é convocado a decidir sobre pressupostos processuais, condições da ação, além dos pressupostos de todo tipo de ato levado a efeito por um interessado, após a manifestação do outro interessado sobre esse ato. decisões tão prontas quanto GRINOVER, 2002, p. 294). possível (CINTRA, DINAMARCO, Aroldo Plínio Gonçalves enxerga o juiz como sendo o sujeito que tem a titularidade não apenas do ato do provimento final, mas de provimentos emitidos no curso do procedimento, sempre que decisões são proferidas, e de outros tantos atos processuais que a lei lhe reserva, na preparação do ato final, enquanto investido na função jurisdicional, enquanto órgão pelo qual o Estado fala. Sendo sujeito de atos processuais, é claro que ele participa do processo (GONÇALVES, 1992, p. 120). O segundo é aquele que “deduz em juízo uma pretensão” (CINTRA, DINAMARCO, GRINOVER, 2002, p. 295), enquanto o terceiro é “aquele em face de quem a pretensão é deduzida” (CINTRA, DINAMARCO, GRINOVER, 2002, p. 295). De acordo com esses doutrinadores é possível dizer que as posições desses dois últimos sujeitos processuais são regidas por três princípios básicos: a) o princípio da dualidade das partes, segundo o qual é inadmissível um processo sem que haja pelo menos dois sujeitos em posições processuais contrárias, pois ninguém pode litigar consigo mesmo; b) o princípio da igualdade das partes, que lhes assegura paridade de tratamento processual, sem prejuízo de certas vantagens atribuídas especialmente a cada uma delas, em vista exatamente de sua posição no processo; e c) o princípio do contraditório, que garante às partes a ciência dos atos e termos do processo, com a possibilidade de impugná-los e com isso estabelecer autêntico diálogo com o juiz (CINTRA, DINAMARCO, GRINOVER, 2002, p. 295). Para Aroldo Plínio Gonçalves o contraditório, como garantia de participação paritária, em simétrica igualdade, das pessoas a que se destina o provimento, no processo, supõe, naturalmente, mais de um sujeito, na fase preparatória do ato final (GONÇALVES, 1992, p. 129). Não é difícil perceber que os sujeitos processuais, descritos supra, juiz, autor 4 e réu são sujeitos históricos, sendo que, cada um deles, possui diferentes vivências e intenções. 4 Em um processo pode haver pluralidade de partes tanto no pólo ativo quanto no pólo passivo da lide, o que se verifica quando há litisconsórcio, assistência e demais formas de intervenção de terceiros previstas no Código de Processo Civil brasileiro. Na verdade, no presente estudo, cuidamos de utilizar um paradigma processual de três personagens para efeito de simplificar a elucidação de nossa idéia central. Cumpre esclarecer que o processo deve ser tratado como uma forma de interação humana, extremamente formalista por sinal e, de forma lúdica, podemos compará-lo a um palco no qual os personagens encenam e dirigem suas ações para obter um provimento favorável do juízo. Conforme afirmado por Aroldo Plínio Gonçalves, o processo possui um telos, que se constitui no exercício do poder. Esse telos, entretanto, pertence somente ao Estado, ao órgão do juízo, que deve enxergar a lide com imparcialidade, julgando sempre em consonância com a legislação vigente e os princípios que norteiam o ordenamento jurídico. É evidente que o telos dos demais sujeitos que compõem a lide varia de acordo com o que cada um deles intenciona no processo. Deve-se frisar que no processo é perfeitamente possível visualizar as restrições provocadas pelos atos e comportamentos de um sujeito histórico na narrativa encenada de outro. Também no processo, o sujeito histórico atuará como um contador de histórias, i. e., narrativas dramáticas encenadas e, de um modo geral, protagonizadas por ele, sendo que dessa vez, mais do que nunca, elas terão a pretensão de verdade, pois está em jogo um interesse que encontra uma séria resistência de outrem. Estabelece-se então que, quando se trata de pleitear ou defender direitos em juízo, o cenário em que o sujeito histórico atua e se comporta é o do processo. Esse processo possui tempo e espaço próprios, i. e., diversos do tempo e do espaço cotidianos, com os quais estamos acostumados a lidar, inclusive tendo em vista que toda lide implica uma seqüência de atos complexos provenientes dos sujeitos interessados. Quanto à questão temporal diríamos da existência de momentos em que os sujeitos podem ou devem obrigatoriamente se manifestar, bem como momentos em que eles devem permanecer simplesmente aguardando algum trâmite. No processo, o tempo é minuciosamente contado por prazos sucessivos ou simultâneos, que darão a ordem correta de manifestação dos sujeitos. O desrespeito ao tempo processual acarreta sanções, às vezes de caráter irreversível, como a preclusão consumativa e a perempção. Quanto ao espaço, devemos relatar que os sujeitos atuam num pequeno espaço a que se dá o nome de “autos” que, para o Direito Processual, são a representação física do processo. Os “autos” são o agrupamento de informações e documentos referentes a pessoas e fatos5, reunido em uma pasta, dotada de etiqueta de identificação. Ao organizar as peças6 que compõem os autos, verifica-se que há uma pretensão de mantê-las na ordem cronológica de apresentação ao juízo, de maneira que sua reunião esteja apta a documentar a ocorrência de um fato jurídico que envolve sujeitos. Observe-se que um processo poderia ser visto como uma narrativa encenada dentro da narrativa encenada que é a história de um sujeito, mas, igualmente, poderia ser tratado como um episódio da vivência desse sujeito, sendo que, se levarmos em consideração um dos primeiros pontos estabelecidos neste capítulo, essa seria a visão mais comum, uma vez que, há uma tendência, criada na modernidade, de que enxerguemos as coisas em uma série de segmentos, “cada um com suas próprias normas e modalidades de comportamento” (MACINTYRE, 2001, p. 343), o que implicaria ver as coisas não pelo critério de unidade da vida, mas a peculiaridade de cada uma delas. O sujeito histórico redunda contingenciado pelas circunstâncias de tempo e espaço processuais, assim como pela finalidade a que se propõe no processo. Além disso, é possível que esse sujeito manipule as histórias que contará nas peças que serão apresentadas ao juiz de modo que possa restar favorecido por este. Geralmente, o que ocorre é uma seleção por parte do narrador – sujeito histórico e sujeito processual – daquilo que é relevante para a sua versão dos acontecimentos. Rogério Monteiro Barbosa sustenta que “há uma grande perda com relação à seleção empreendida pela narração, já que nesta, as coisas aparecem na medida que têm importância para os acontecimentos humanos que fazem parte da narrativa” (BARBOSA, 2007, p. 38). 5 Pessoas no sentido de interessados, conforme anteriormente delimitado, e fatos de caráter jurídico. Miguel Reale define o fato jurídico como sendo “um fato juridicamente qualificado, um evento ao qual as normas jurídicas já atribuíram determinadas conseqüências, configurando-o e tipificando-o objetivamente” (REALE, 2002, p. 200). 6 No presente trabalho, trata-se como peças tudo aquilo que é carreado ao processo com finalidade de provar, documentar, informar, resolver questões incidentes ou definitivas de mérito. A título de exemplos pode-se elencar recursos, memoriais, petições iniciais, decisões interlocutórias, despachos e sentenças. Na verdade, o que ocorre é que, dentro do contexto processual, o sujeito histórico é reinventado, senão pelos condicionamentos que sofre, por sua própria vontade. Aqui retornamos à pergunta: será que a ciência processual poderia ser vista como uma ciência de caráter histórico? Alasdair MacIntyre entende que “o que fornece o histórico é o conceito de história e daquela espécie de personagem que a história requer” (MACINTYRE, 2001, p. 365). Tendo em vista que o processo é composto por fragmentos de histórias subjetivas trazidos aos autos pelos sujeitos interessados no provimento final e o fato de que, em nome de intenções que o juiz pode desconhecer, há a possibilidade de emprego por esses mesmos sujeitos de todos os ardis para ocultar situações reais, tudo nos leva a crer que no processo o sujeito histórico está a representar um papel. Esse papel representado pelo sujeito, embora verossímil, i. e., embora guarde semelhança com a realidade é dotado de coerência própria. As ações e comportamentos do sujeito ficcional criado para a lide seguem a lógica da melhor estratégia para a obtenção de um provimento favorável. Devemos estar atentos ao fato de que a incorporação de papéis que seguem uma lógica específica é capaz de produzir inversões no sentido do real. O inocente pode querer representar o culpado e vice-versa. Geralmente, quando incorporamos algum papel, assumimos uma identidade que é transitória, e, levando em consideração a assertiva de Peter Berger de que “os papéis trazem em seu bojo tanto as ações como as emoções e atitudes a ele relacionadas” (BERGER, 1988, p. 109), poderíamos dizer que quando o sujeito histórico se torna sujeito processual, i. e., sujeito interessado, é capaz de criar um corte ritual e estabelecer um foco central, na vida desse sujeito. Conforme François Ost, isso significa que as peculiaridades do tempo e do espaço processuais contribuem para a separação entre a vida do indivíduo e o papel interpretado por ele no âmbito do processo. Voltaremos a esse ponto mais adiante. O que se sustenta aqui é a possibilidade de invenção e reinvenção do sujeito que passa a integrar o processo, o que faz com que sua identidade naquele momento, passe a ser apenas discursiva, tornando a unidade de sua vida invisível. 4. O CASO-MUNDO O caso-mundo é delimitado pelos condicionamentos espaciais e temporais, aos quais é submetido o sujeito histórico, no momento em que passa a figurar no processo. Trata-se de uma concepção que evidencia a separação existente entre a ambientação externa (ampla) ao processo e seu ambiente interno (restrito)7, milimetricamente calculado pelas normas postas erga omnes pelo ordenamento jurídico. É, em suma, a reunião subordinada a regras previstas em um sistema jurídico, de elementos ou fragmentos que fazem parte da experiência subjetiva para compor as narrativas presentes nos autos. Essa visão do caso-mundo guarda verossimilhança com a realidade, sendo que, se trata, por meio de uma ficção literário-jurídica, de substituir a perspectiva do mundo real pela perspectiva do mundo criado pelas narrativas dos autores e réus do processo, as quais compõem os autos processuais, fazendo com que cada caso se torne um mundo paralelamente à realidade. Quando Jorge E. Douglas Price afirma que “cada caso (casus) es um mundo” (PRICE, 2007, p. 63)8, sendo que a expressão se presta não só à reprodução de decisões anteriores, mas, também, à sua renovação, destruindo e ao mesmo tempo reativando a confiança no direito (PRICE, 2007), quer significar que isso que chamamos caso-mundo é engendrado pelos sujeitos processuais no desenvolvimento do contraditório, o qual não é outra coisa senão a construção participada do provimento. Se considerarmos que substituir significa pôr uma coisa no lugar de outra e se fizermos menção a um brocardo latino que costumamos ouvir e ler desde os nossos estudos mais introdutórios na faculdade de direito: quod non est in actis non est in mundus, ou seja, o que não está nos autos não está no mundo, poderíamos sustentar que, no processo, essa substituição é feita de forma tão completa, de maneira que seja ignorado tudo que não lhe é intrínseco, i. e., tudo que não faz parte 7 Por restrito entende-se aqui que seu ambiente, conforme ressaltado acima, é milimetricamente calculado por normas. Não se afirma que é restrito porque não comporta abertura, uma vez que acreditamos que uma das possibilidades de tornar o Direito aberto é tomar de empréstimo formas interpretativas próprias da Literatura. 8 cada caso é um mundo (PRICE, 2007, p. 63). Tradução livre da autora. de sua estrutura interior, o que pode denotar também que para além das peças e documentos processuais só existem externalidades9. O processo, enquanto procedimento realizado em contraditório, é algo que procura compor intenções ou interesses opostos com vistas a resolver um conflito entre sujeitos históricos partindo de regramento específico para tal. Conforme dito anteriormente, é forma de interação humana de caráter formalista, sendo reflexo de relações humanas travadas em tempo e espaço reais. É importante frisar que, no processo, o sujeito histórico trabalha, por assim dizer, com os acontecimentos que considera relevantes para compor uma versão do que realmente ocorreu. Trata-se de selecionar fragmentos da sua narrativa encenada para integrar esse episódio, uma vez que estamos considerando que existe certa tendência humana a ver as coisas de maneira atomística, de modo que esse sujeito conte em juízo ou carreie aos autos apenas o que é importante para o fato que foi capaz de gerar o processo e, ainda, de maneira que essas informações possam fomentar a explicação que ele intenta lhe dar. A retrospecção realizada pelo sujeito, em termos de reconstrução dos fatos e de si próprio no contexto processual, é extremamente incompleta, porquanto aquelas informações trazidas por ele, que é interessado na lide são tudo quanto existirá no momento em que o juiz tiver que proferir o julgamento10. Comecemos pela forma como o Direito e o Estado, são capazes de inspirar confiança nos sujeitos que lidam e estão submetidos à sua ordem. Jorge E. Douglas Price sustenta que essa confiança é conseguida mediante operaciones que permitem pensar el futuro, construyendo vínculos com esse horizonte, que nunca comienza porque siempre es horizonte, que permite actuar porque paradójicamente “orienta” y no 11 “ocidenta” (PRICE, 2007, p. 56). 9 As externalidades são tudo que existe “fora” do processo e as partes não consideram relevante para trazer aos autos. 10 Nos processos criminais verifica-se que anteriormente a eles, devido à gravidade das sanções que são impostas aos condenados, é perpetrada uma espécie de investigação dos fatos pelo poder de polícia estatal, que geralmente tem a forma de inquérito policial. Poderíamos dizer que nesse caso, tendo em vista as penalidades a serem aplicadas e a visão do Direito Penal como ultima ratio, o Estado não se contenta apenas com as explicações dadas pelos sujeitos. 11 mediante operações que permitem pensar o futuro, construindo vínculos com esse horizonte, que nunca começa porque é sempre horizonte, que permite atuar porque paradoxalmente “orienta” e não “ocidenta” (PRICE, 2007, p. 56). Tradução livre da autora. Conforme François Ost essas operações devem ser realizadas de maneira narrativa, i. e., sempre se apresentar por meio de histórias cuyo sentido solo se manifiesta al ser incesantemente retomado bajo la forma de relato contado, y hasta eso que llamamos la Historia se construye a través de la repetición del relato, de “las historias”, lo que significa según el mismo Ost, dos cosas esenciales: “de um lado, lo prescriptivo solo se produce em el modo narrativo: lejos de tener la necessidad o la ineluctabilidad de uma ley natural, le se arriesga en el juego de la interlocución, que és también el de la transgresión, de la interpretación, de 12 la reformulacion (PRICE, 2007, p. 56). Desse modo, os juízes, com o fito de realizar essas operações e oferecer provimentos aos interessados, utilizam uma mecânica semiótica (PRICE, 2007), que, além dessas histórias, pressupõe os dispositivos das leis processuais e materiais e mesmo as interpretações dessas leis e os princípios que fundam o ordenamento jurídico. Essa mecânica semiótica segundo Jorge E. Douglas Price é algo que incluyo las previsiones de los códigos procesales, las interpretaciones de las interpretaciones, los invenciones lógicas de las dogmática y las historias mínimas de la jurisprudencia, pero incluye sobre todo (el razonamiento judicial) las restricciones de la misma narración, entre tantos otros recursos semióticos tomados como referencia del decidir (PRICE, 2007, p. 58).13 Outra questão que deve ser pensada é o modo como a Ciência Jurídica é uma ciência da “autofundação”, conforme expõe Jorge E. Douglas Price. Toda narrativa deve estabelecer parâmetros de começo, meio e fim para fazer sentido como ressaltamos anteriormente. Ocorre que a determinação desses parâmetros acaba por se tornar arbitrária, porquanto há uma ampla margem de escolha de inícios e finais. O referido autor diz que “es cierto que toda novela14, para 12 cujo sentido somente se manifesta ao ser incessantemente retomado sob a forma de relato contado, sendo que até isso que chamamos de História se constrói por meio da repetição do relato, das “histórias”, o que significa segundo Ost, duas coisas essenciais: “que de um lado o prescritivo só é produzido de forma narrativa: longe de ser necessária ou inelutável uma lei natural, ele se arrisca no jogo da interlocução, que é também o da transgressão, da interpretação, da reformulação (PRICE, 2007, p. 56). Tradução livre da autora. 13 inclui as previsões dos códigos de processo, as interpretações das interpretações, as invenções lógicas da dogmática e a jurisprudência, mas sobretudo (a fundamentação judicial) inclui as restrições da mesma narração entre tantos outros recursos semióticos tomados como referência do decidir (PRICE, 2007, p. 58). Tradução livre da autora. 14 A novela também é um gênero narrativo. finalizar, necesita de um buen principio: y en comienzo era el “verbo”, por eso es necesaria una narración de fundación” (PRICE, 2007, p. 59)15. Isso significa que quando iniciamos uma narrativa, podemos escolher uma dentre várias possibilidades para principiá-la. Alasdair MacIntyre, a respeito dessa questão afirma que a verdade é que, ao considerarmos determinado acontecimento como início ou final, nós lhe atribuímos uma importância que pode ser discutível. A república romana acabou com a morte de Júlio César, ou em Filipos, ou com a instituição do principado? A resposta é que, seguramente, como a de Carlos II, foi uma morte muito lenta; mas essa resposta implica tanto a realidade de um final quanto qualquer uma das antecedentes. Há um sentido fundamental no qual constituem inícios o principado de Augusto, ou o juramento na quadra de tênis, ou a decisão de construir uma bomba em Los Alamos; a paz de 404. a. C., a abolição do Parlamento Escocês e a batalha de Waterloo, igualmente constituem finais; embora existam muitos outros eventos que são tanto começos quanto finais” (MACINTYRE, 2001, p. 357). Voltemos à questão da história como narrativa dramática encenada em que os personagens são autores, relacionando-a com a questão da autofundação ou da escolha de um começo para as narrativas. Poderíamos, segundo Alasdair MacIntyre, afirmar que “os personagens, naturalmente, nunca começam ab initio; eles mergulham in media res, os inícios de suas histórias já feitos para eles por quem ou pelo que passou por ali antes” (MACINTYRE, 2001, p. 361). A fixação de um determinado início é que norteia o processo retrospectivo de narração dos acontecimentos de acordo com uma finalidade ou motivo específico, os quais estão escondidos no animismo do sujeito histórico. Segundo Jorge E. Douglas Price, essa autofundação depende da coerência narrativa entre as complexas interpretações, relatos e decisões, sendo que esse começo nos afigura natural, porque geralmente não o pensamos como algo que foi inventado, i. e., arbitrariamente delimitado. Além disso, podemos dizer que aqui também estão presentes as operações que permitem que o direito seja confiável e perdure no tempo, embora sempre passe por mudanças. O autor observa ainda que, “así, toda la Literatura, toda la Historia, toda la Ciencia Jurídica, llamadas pomposamente com mayúscula, las tres, podrían ser recorridas por el camino de la invención de la distinción” (PRICE, 2007, p. 61).16 15 é certo que toda novela para finalizar necessita de um bom princípio: no começo era o “verbo”, portanto é necessária uma narração de fundação (PRICE, 2007, p. 59). Tradução livre da autora. Na verdade todas três procuram dotar de sentido as narrativas dramáticas encenadas dos sujeitos históricos, ainda que estes, por exemplo, estejam vestidos com a máscara de sujeitos processuais, dentro do espaço e do tempo. Jorge E. Douglas Price atesta que a confiança depositada no direito se construye en el marco de la simultaneidad ciega del obrar del sistema, que justamente porque es ciego permite pensar que no innovará, es decir que no frustrará las expectativas, confianza como la confianza de quien habita sobre uma falla geológica, que puede obrar porque ignora que habita sobre ella o porque desprecia el peligro del cismo (PRICE, 2007, p. 63).17 Segundo o referido autor, “la experiencia del mundo es experiencia de la contingencia, es decir do que sucede como sucede y pudo no suceder, um mundo donde toda posibilidad está abierta a cada vez” (PRICE, 2007, p. 63)18. O direito deve ser capaz de lidar com essa possibilidade infinita. O processo, conforme já salientado anteriormente é uma forma de interação humana, uma vez que ninguém pode litigar consigo mesmo. É nele que se tornam claramente perceptíveis as interferências que as ações dos sujeitos que figuram na história provocam umas nas esferas de atuação dos outros. O sujeito histórico que, ao figurar no contexto processual, se torna sujeito interessado no provimento, passa a atuar como se o fato que ensejou a instauração do processo fosse somente aquilo que foi trazido aos autos na forma de peças e provas19. Traçaremos agora a construção literária do contexto processual, tendo como foco as semelhanças entre a figura do juiz e a figura do historiador, demonstrando que não é coincidência o fato de as narrativas jurídicas, históricas e literárias sejam parecidas. 16 assim toda a Literatura, toda a História, toda a Ciência Jurídica, chamadas pomposamente com maiúscula poderiam ser percorridas pelo caminho da invenção da distinção (PRICE, 2007, p. 61). Tradução livre da autora. 17 se constrói no marco da simultaneidade de operação do sistema, que justamente porque é cego permite pensar que não inovará, não frustrará expectativas, confiança como a confiança de quem habita sobre uma falha geológica, que pode operar porque ignora que habita sobre ela ou porque despreza o perigo do cismo (PRICE, 2007, p. 63). Tradução livre da autora. 18 a experiência do mundo é a experiência da contingência, i.e., dizer do que sucede, como sucede e pode não suceder, um mundo onde sempre está aberta toda possibilidade (PRICE, 2007, p. 63). Tradução livre da autora. 19 A prova testemunhal pode corroborar ou refutar a encenação do sujeito. É por esse motivo que possui fama de “prostituta das provas”, é seu caráter de imprevisibilidade que faz com que seja conhecida assim. 5. HISTÓRIA E CASO-MUNDO, VERDADE E FICÇÃO Segundo Jorge E. Douglas Price é certo que Franz Kafka escreveu O Processo como juiz, porquanto abandonou a forma narrativa mais ou menos linear, para escrever uma história com um final predeterminado (PRICE, 2007). Podemos constatar que o escritor escribió el último capítulo de la novela inmediatamente después del primeiro, probablemente el mismo dia, según sus biógrafos. Entre estos dos extremos Kafka escrebió em diez cuadernos la obra que luego 20 “encajaria” reconstructivamente como su obra (PRICE, 2007, p. 64). Essa técnica de escrita faz com que enxerguemos alguns paralelismos entre ela e o ato de proferir o provimento dos juízes, uma vez quer podemos perceber que ela deve trabalhar com vazios, falhas e faltas da seqüência lógica (PRICE, 2007) dos acontecimentos históricos trazidos pelos sujeitos processuais aos autos. Jorge E. Douglas Price é capaz de verificar que “en una suprema ironia podrían incluso hasta permitir anular la sentencia o variar el “final”, son parte del recurso habitual del sistema judicial” (PRICE, 2007, p.64)21. Desse modo, o juiz poderia ser visto como um historiador, porquanto não se pode olvidar das similitudes entre as narrações que ambos utilizam como modo prevalente para realizar suas exposições. Isso ocorre porque toda narração jurídica, quando estamos a considerar o processo, pretende ser uma explicação para determinados fatos, com possível imputação de responsabilidades aos sujeitos históricos. Jorge E. Douglas Price entende que essa perspectiva parte da visão do modelo de juiz comumente encontrado na Europa continental22 e na América Latina, onde podemos encontrar estruturas tribunalícias fortemente centralizadas e hierarquizadas, herdeiras, por assim dizer, das estruturas judiciais da inquisição da Idade Média (SALGADO, 2004 apud PRICE, 2007). 20 escreveu o último capítulo da novela imediatamente depois do primeiro, provavelmente no mesmo dia, segundo seus biógrafos. Entre esses dois extremos escreveu em dez cadernos a obra que logo “encaixaria” de forma reconstrutiva como sua obra (PRICE, 2007, p. 63). Tradução livre da autora. 21 em uma suprema ironia poderiam inclusive permitir anular a sentença ou variar o “final”, são parte dos recursos habituais do sistema judicial (PRICE, 2007, p. 64). Tradução livre da autora. 22 A Inglaterra adota uma sistemática chamada common law em contraposição à romano-germânica adotada na Europa continental e na América Latina, mais conhecida como civil law. Assim, o juiz também opera com a história dos acontecimentos e, sobretudo, com a história política. As demais modalidades de investigação histórica, a exemplo da história social ou econômica, i. e., aquilo que a Escola dos Anais chamou de história de longa duração – la longue durée – apreendem muito mais os aspectos gerais dos acontecimentos de uma época ou sociedade, sendo que não podem ser facilmente capturadas por essa analogia. Isso ocorre porque a História logrou possuir status de ciência, o que a afastou do caráter único dos acontecimentos e, desse ponto de vista a analogia juiz/historiador é um obstáculo à compreensão da natureza do conhecimento histórico (SALGADO, 2004 apud PRICE, 2007). Jorge E. Douglas Price atesta que la historia del historiador nos remite indefectiblemente a la historia de la verdad. Como recuerda Hayden White, desde su invención por Heródoto la historiografia tradicional ha defendido la idea de que lo que llamamos la historia es uma colección de agregados de relatos vívidos, individuales y colectivos, develados e reescritos por el historiador, donde el aspecto literário de la terea histórica era apenas um aspecto estilístico, meramente estético (PRICE, 2007, p. 64).23 Devemos dizer que essa pretensão de verdade é revelada pelo apego às referências documentais empíricas de uma investigação de caráter histórico. Também este trabalho, se destituído de referências a textos acadêmicos, seria considerado uma obra de ficção. Por conseguinte “apenas na narrativa histórica pode haver uma referência mais direta à realidade empírica. A história não pode se furtar de ter em vista fatos que realmente ocorreram, assim como não pode inventar acontecimentos” (BARBOSA, 2008, p.80). No processo judicial também é possível identificar essa pretensão de reconstituir os fatos da maneira como ocorreram. A instrução do processo se presta a colher provas que tragam elementos para o fomento de uma versão para o caso jurídico que está sendo examinado. Na construção dessa versão atuam juiz, autor e réu. 23 a história do historiador nos remete indefectivelmente à história da verdade. Como recorda Hayden White, desde sua invenção por Heródoto, a historiografia tradicional defende a idéia de que aquilo que chamamos de história é uma coleção de relatos vividos, individuais e coletivos, revelados e reescritos pelo historiador, daí o aspecto literário da tarefa histórica como apenas estilístico, meramente estético (PRICE, 2007. p. 64). Tradução Livre da autora. O vocabulário jurídico reafirma essa perspectiva com o secular brocardo jurídico que professa: res judicata pro veritate habetur, ou seja, a coisa julgada24 é tida como verdade, é sagrada. Recordemos que geralmente as teorias semiológicas atuais do discurso sustentam que a distinção entre a narrativa de caráter histórico difere da narrativa de caráter ficcional porque a primeira trabalha com referências reais e a segunda com referências imaginárias (WHITE, 1992 apud PRICE, 2007). É certo que as divergências entre personagens reais e ficcionais não retiram a condição de ambos de unidades significativas, i. e., de seres dotados de vivência narrável como um todo. Nessas teorias semiológicas do discurso, a narração se constitui em um sistema de produção de significado discursivo, sendo que, por meio dele, é possível ensinar os sujeitos a viver relações de caráter imaginário com suas condições reais de vida, o que culminaria na vivência de relações irreais mas válidas se as considerarmos dentro de um contexto, a exemplo do processo judicial. Fato é que el debate sobre a naturaleza de la narrativa se había centrado sobre la adecuación de la forma historiada del discurso para la representación de la realidad. En un sentido más radical aún que el de White sostengo una teoría de la verdad judicial como ficción narrativa que de un modo menos científico aún que la historia, pero tan restringidos como el último capítulo del Quijote, reconstruye infinitos raccontos donde si es/inscriben vidas que irreductiblemente reales para cada cuerpo singular, para cada mente singular, resultan sin embargo renombradas, redescriptas, reinscriptas, ficcionalmente, en la historia del Proceso que no tiene límites, donde todo es Tribunal como en la ficción de Kafka (PRICE, 2007, p. 65).25 O caráter ficcional da decisão pode ser entendido como aquele que compreende a suspensão do liame entre o falso e o verdadeiro. Isso significa dizer 24 A “coisa julgada” adquire status de verdade após a ocorrência da preclusão que inviabiliza a interposição de recursos capazes de promover a reforma da decisão por órgãos colegiados, i. e., instâncias hierarquicamente superiores àquela prolatora da decisão, quando esta então só seria passível de impugnação pela ação rescisória se o processo, a despeito de ter padecido de nulidade insanável, culminar em um decisório produtor de efeitos jurídicos inter partes ou quiçá erga omnes, como no caso da Ação Civil Pública. 25 o debate sobre a natureza da narrativa era centrado na adequação da forma historiada do discurso para a representação da realidade. Em um sentido mais radical ainda que aquele defendido por White sustento uma teoria da verdade judicial como ficção narrativa que de um modo menos científico que a história, mas tão restrito como o último capítulo de Dom Quixote, reconstrói infinitas narrativas nas quais se são/inscrevem vidas irredutivelmente reais para cada corpo singular, para cada mente singular, resultando sem embargo relembradas, redescritas, reinscritas, ficcionalmente, na história do Processo, de um Processo que não tem limites, onde tudo é Tribunal como na ficção de Kafka (PRICE,2007. p. 65). Tradução Livre da autora. que se trata muito mais de construir uma versão dos fatos da qual participem os personagens do processo pela via do contraditório. Deve-se frisar que o Direito não tem pretensão de buscar a verdade com tanto afinco como a História, porquanto essa busca da verdade foi uma obcessão que embora tenha atormentado os positivistas, encontra-se superada. As doutrinas pós-positivistas postularam para o Direito a busca de correção normativa. Dessa forma, a escolha de Franz Kafka para ilustrar o que estamos defendendo – o sujeito histórico moderno no contexto processual – tem por objetivo maior demonstrar a um só tempo, segundo Jorge E. Douglas Price, “la lógica y el absurdo del texto judicial” (PRICE, 2007, p. 65)26. Temos que en El Proceso de Kafka, contrariamente al Caso Dreyfus de Emile Zola, no se pretende pintar una excrecencia, una anomalía, un cáncer; sino describir, casi anodinamente, el drama de Joseph K. como un episodio más 27 de la producción de un sistema (PRICE, 2007, p. 65) . Assim, poderíamos dizer, juntamente com Jorge E. Douglas Price, que “el derecho se vuelve un libro infinito, como un puente circular” (PRICE, 2007, p. 67)28. O direito é algo que se volta sobre si mesmo e está permanentemente sendo construído e reconstruído. O livro infinito de Jorge Luis Borges serve para elucidar o que ocorre. O referido autor sugere que imaginemos “uma obra platônica, hereditária, transmitida de pai a filho, na qual cada novo indivíduo aditasse um capítulo ou corrigisse com piedoso cuidado a página dos antepassados” (BORGES, 1972, p. 104)29. 26 a lógica e o absurdo do texto judicial (PRICE,2007. p. 65). Tradução Livre da autora. em O Processo de Kafka, contrariamente ao Caso Dreyfus de Émile Zola, não se pretende pintar uma excrecência, uma anomalia, um câncer, mas descrever mesmo que ineficazmente, o drama de Joseph K. como mais um episódio da produção do sistema (PRICE, 2007, p. 65). Tradução Livre da autora. 28 O direito regressa ao ponto de partida como se fosse um livro infinito, como uma ponte circular (PRICE, 2007, p. 67). Tradução Livre da autora. 29 Do mesmo modo se passa com o que Dworkin chama de chain novel em sua obra Uma Questão de Princípio. 27 6. O FRACASSO DA TRIANGULAÇÃO ÉTICA A escolha de Franz Kafka para ilustrar o que pretendemos demonstrar neste trabalho se deu porque numa primeira abordagem, o estilo de Kafka distingue-se por sua ausência de qualidade: neutro, quase opaco, renunciando a toda espécie de complacência estilística, alheio a todo efeito retórico, ele tem naturalmente a forma glacial do registro de ocorrência policial, o tom indiferente do protocolo de inquérito (OST, 2005, p. 426). Além disso, “apoderando-se dos símbolos convencionais do universo jurídico, o autor do Processo imprime-lhes um leve deslocamento que logo irá mostrar uma fenda abissal” (OST, 2005, p. 379). Contudo, devemos estar atentos para o fato de que o referido escritor não tem a intenção, como muitos poderiam pensar, de desinstituir a ordem jurídica, mas de denunciar suas imposturas de modo que os sujeitos que estão submetidos a ela não se quedem inertes e busquem a edificação de um direito que efetivamente os considere, afinal, um provimento que não seja capaz disso é propriamente uma construção retórica vazia. Ao tratar o processo como forma de interação humana de caráter formalista, em que as restrições que as ações e comportamentos que um sujeito desenvolve interferem sobremaneira na esfera de outro ou outros, poderíamos classificá-lo na perspectiva ostiana do “triângulo ético”, do que se passa quando ele é decomposto e da função simbólica da linguagem. O triângulo ético, como o próprio nome diz, procura trabalhar com uma abordagem ética do direito, sendo que, para François Ost, essa abordagem deve ser a que faz justiça ao maior número possível de sugestões do texto. Também aquela que, longe de excluir outras leituras, as torna possíveis e as aproxima, por estar mais perto do fundamento (OST, 2005, p. 386). Além disso, para o autor francês, a abordagem que faz justiça ao maior número possível de sugestões do texto, será aquela realizada, na perspectiva do órgão prolator das decisões judiciais, por um juiz Hermes30 uma vez que essa espécie de juiz é capaz de privilegiar el carácter hermenéutico o <<reflectante>> del juicio jurídico que no se reduce ni a la improvisación ni a la simple determinación de una regla superior (OST,1993, p. 189). 31 Isso porque o direito deve ser un procediemiento de discusión pública razonable, un modo de solución de 32 conflictos equitativo y contraditorio (OST,1993, p. 190). É importante vislumbrarmos que o juiz Hermes não se encontra em uma posição superior a aquela ocupada pelos principais sujeitos processuais, i. e., pelas partes, autor e réu, sem as quais o processo não existiria. Devemos pensar que a perspectiva triangular proposta por François Ost se presta a explicar as relações fáticas e jurídicas travadas entre os sujeitos que integram o processo judicial ou o caso-mundo. Na geometria o triângulo é uma figura plana que possui três lados e, por conseguinte, três vértices, sendo que cada vértice é dotado de um ângulo com graduação diversa dos outros33. O triângulo é também uma figura que pode ser invertida sem que perca suas características geométricas, não sendo possível confundi-lo com a figura da pirâmide que integra o campo da geometria sólida e é constituída por três planos triangulares, cuja inversão inviabilizaria a possibilidade de equilibrá-la em um outro plano. Cumpre esclarecermos que o triângulo ético de François Ost significa a intersubjetividade institucionalizada pelo ordenamento jurídico, mais precisamente pelo processo judicial34. Poderíamos dizer que se trata de uma forma de simbolizar 30 Hermes é retratado na mitologia grega como o deus capaz de interpretar a mensagem dos deuses para levá-la até os mortais. 31 o caráter hermenêutico e reflexivo do juízo jurídico que não se reduz nem à improvisação e nem à simples determinação de uma regra superior (OST,1993, p. 190). Tradução livre da autora. 32 um procedimento de discussão pública racional, um modo de solução de conflitos eqüitativo e contraditório OST,1993, p. 189). Tradução livre da autora. 33 Matematicamente, é possível que os ângulos sejam iguais, mas, no presente trabalho tratamos da apenas da hipótese de serem diferentes, porquanto, quando da formação do processo, conforme relatado anteriormente, nos deparamos com sujeitos que procuram defender perspectivas opostas e, portanto, possuem diferentes visões ou ângulos de visão sobre os fatos objeto da lide. 34 Conforme menção anterior, podemos visualizar, existindo permissão legal nesse sentido, que há processos com pluralidade de partes em um e/ou outro pólo, além de haver a possibilidade de que terceiros interessados na lide intervenham no processo. Contudo, a metáfora do triângulo ético procura dar os contornos de uma forma interação entre sujeitos, quais sejam, autor, réu e juiz, para efeitos de simplificar a compreensão do presente estudo. as interações humanas travadas entre juiz, autor e réu35 dentro do contexto processual e, para o presente trabalho, do caso-mundo, como se cada um deles representasse um dos lados do triângulo e estivessem permanentemente em contato, formando sempre três vértices: autor-réu, autor-juiz e réu-juiz. Não é só, devemos, também, estar atentos para o fato de que essas interações pressupõem a utilização de uma linguagem que seja capaz de permitir que os sujeitos possam comunicar-se entre si e compreender-se. A linguagem é dotada de uma função simbólica, i. e., possui a função de tornar os acontecimentos e coisas existentes no mundo representáveis e compreensíveis para os sujeitos que se relacionam. Isso ocorre tanto dentro quanto fora do contexto processual. Para François Ost, as questões mais fundamentais que um jurista deve enfrentar, e Franz Kafka trabalha justamente com elas, perpassam pela decomposição desse triângulo ético, sendo essencial que se saiba, ao querermos evidenciar as celeumas dessa intersubjetividade institucionalizada que é o processo, mormente se nos preocuparmos com a unidade da vida, o que ocorre quando cada um desses sujeitos deve “assumir sua parte de lei” (OST, 2005, p. 384). Alertamos para o fato de, no presente trabalho, estarmos apenas cuidando de interpretar o caso-mundo e o sujeito histórico, sem pretender dar-lhes uma explicação perfeita e acabada, uma vez que, na perspectiva de François Ost, enquanto a explicação encerra o movimento do pensamento ao relacionar os fatos a uma ou a várias causas determinadas, a interpretação, em troca, não cessa de relançá-lo num jogo de remissões sempre recomeçado – como convém particularmente a uma obra labiríntica e inacabada (OST, 2005, p. 386-387). Segundo o referido autor a função simbólica trata da produção pela linguagem de um sentido que possa ser partilhado entre os sujeitos, é a possibilidade de significarmos nosso mundo e nosso eu, de chegarmos à interlocução e à interação, de nos referirmos a verdades partilhadas e normas aceitas. Por esse registro simbólico, o homem sai da animalidade e tem acesso comum à humanidade (OST, 2005, p. 387). 35 Aqui adotou-se a terminologia do processo de conhecimento prevista no Código de Processo Civil brasileiro. Contudo, no momento em que aqueles que participam das diferentes formas de interação humana passam a não mais se fazerem entendidos uns pelos outros. haverá o desregramento dessa função simbólica, de modo que os sujeitos ficarão confusos. Franz Kafka trabalha com o desregramento dessa função simbólica quando nos traz “inúmeras narrativas de metamorfose em animal ou de hibridação homemanimal” (OST, 2005, p. 387), nas quais o personagem deixa de se comunicar de maneira inteligível, sendo que suas ações e comportamentos começam a perder o sentido dentro de um determinado contexto. Assim, é possível constatar que os personagens de Franz Kafka possuem dificuldade para se comunicar e ficam imersos em confusões. Esse desregramento, por sua vez, significa “que o que está em jogo terá sempre uma relação íntima com o regulamento e a lei” (OST, 2005, p. 387), porquanto é no fracasso da triangulação ética que o observaremos em primeiro lugar: a incapacidade de colocar corretamente as relações do si-mesmo e do outro, do si e de todos, do si e da lei, e finalmente do si a si mesmo, revelado exemplarmente pela dificuldade de uso dos pronomes pessoais eu, tu, ele -, balizas da intersubjetividade institucionalizada (OST, 2005, p. 387). Assim, dentro do contexto de um processo judicial contamos com um “eu” um “tu” e um “ele” que, para François Ost, são balizas da intersubjetividade institucionalizada, i. e., são os vértices do triângulo ético que darão os limites da lide que o juiz terá que decidir. É importante verificarmos que o processo que, reitere-se, é uma forma de interação humana travada no âmbito jurídico entre sujeitos históricos, a qual poderia ser tomada, se considerarmos principalmente a perspectiva da linguagem utilizada para o entendimento mútuo, entendimento que não significa acordo, mas mera inteligibilidade, em termos pronominais. Exemplifiquemos, de modo a tornar mais simples o estudo. Em um contrato de mútuo o sujeito ativo empresta ao sujeito passivo determinada quantia em dinheiro, por um tempo e sob certas condições. Essa relação poderia ser vista da seguinte maneira em termos pronominais: “eu” “lhe” emprestei uma determinada quantia em dinheiro, para que “tu” me restiuísses dentro de um prazo previamente estipulado e sob certas condições. Passado o prazo a quantia não “me” foi reembolsada e “eu” não pude entrar em acordo “contigo”, motivo pelo qual “eu” ingressei em juízo para que “ele”, o juiz pudesse decidir a contenda instaurada entre “nós”. Assim, quando há interação entre os sujeitos históricos, a linguagem e mais precisamente a palavra se prestam à interlocução e, nos termos do triângulo éticopronominal, o “tu” passa a se interpor entre o “eu” e o mundo. Tomando a triangulação ética como uma forma de tentar reconstituir de forma retrospectiva o que se passa no contexto processual teríamos que o “eu” é seu ponto de partida: um ser que gostaria de se afirmar, designarse como um ser único, dotado de uma identidade estável; aparecer como o autor, livre, de seus atos, como sujeito de sua história e de seus avatares, como o responsável, digno ou indigno, por suas escolhas. Uma pretensão se faz valer, uma aspiração a ser, uma virtualidade de existência que, nesse estágio ainda solipsista, não estão seguras de nenhum êxito. Entre essa pretensão e seu reconhecimento percebe-se a distância da falibilidade – o sujeito em potência é colocado em risco em relação a outrem (OST, 2005, p. 388). As interações humanas pressupõem o contato entre os sujeitos históricos. O “eu” pode até ser o ponto de partida mas, à parte a possibilidade de que essa interação possua caráter meramente narcisístico ou sedutor, ela constitui-se em uma das formas de acesso ao outro e, do acesso pelo outro a qualquer outro. O sujeito histórico solipsista dotado de uma pretensão necessita que ela seja reconhecida, o que só ocorrerá por intermédio de outrem. Contudo há a possibilidade de que essa pretensão não seja reconhecida e, por isso, o “eu” é colocado em risco. Quando se trata da prolatar uma sentença, da mesma forma, o sujeito processual estará em risco, i. e., na dependência de que outrem reconheça sua pretensão para que o decisório seja a seu favor. Nessa linha, François Ost constata que esse desdobramento do tu, que abre caminho à terceira pessoa, o “ele”, dá uma profundidade à relação dual: ele substitui a imediatez da passagem ao ato pela mediação reflexiva num outro que não nós, a instância terceira (julgamento, razão da instituição).O “ele” que se faz então valer, no terceiro momento dessa construção, não é portanto apenas essa pessoa que se interpõe entre o “eu” e o “tu”: é também o desdobramento reflexivo do “eu” e do “tu” (OST, 2005, p. 389). Considerando três estágios, podemos observar, quanto à triangulação ética, que, no primeiro, o sujeito solipsista “eu” é capaz de fazer valer suas pretensões, enquanto no segundo momento há um sujeito “tu” que se interpõe e pode ou não reconhecer essas pretensões, tendo em vista sua maior ou menor abertura para o terceiro estágio, que é o do momento impessoal do “ele” que é, também o momento impessoal do “todos”. Esse momento impessoal do “todos” é, no caso-mundo, a construção participada do provimento em virtude da realização do contraditório. Isso implica que o sujeito que se torna refletido, i. e., o sujeito que participa de alguma forma de interação humana, seja capaz de “distanciar-se em relação a si mesmo, de designar-se reflexivamente como “si” - um “si” que é a forma reflexiva de todos os pronomes e que pressupõe a mediação da alteridade” (OST, 2005, p. 390). Assim, o “eu” é para o “tu” um “tu” e para si mesmo um “eu”. O sujeito ao narrar-se acaba por dissociar-se de si mesmo, tornando-se múltiplo e pondo em xeque a unidade de sua vida (SANTOS, OLIVEIRA. 2001, p. 18). Isso ocorre porque ele estará focado em conseguir que seus interesses sejam reconhecidos quando chegar esse momento impessoal do todos. Ele dará uma versão dos fatos que permita que suas pretensões sejam acolhidas, ainda que essa versão não seja verdadeira, mas apenas verossímil. O sujeito que se narra recria sua história de acordo com a sua conveniência e, conforme ressaltado no capítulo anterior passa a representar um papel. A multiplicidade subjetiva possibilitada pela narração pode fazer com que haja inversão das posições dos sujeitos processuais e, havendo a possibilidade de que os sujeitos ocupem diversas posições, no que tange à função pronominal – como o réu que passa a ser autor quando ocorre reconvenção –, François Ost dirá que essa reversibilidade do uso dos pronomes é essencial: ela tem por efeito, entre outras coisa, desdramatizar as dissimetrias que marcam a maior parte das interações humanas: por mais poderoso que seja, o “tu” (por exemplo a figura do pai) está envolvido em uma troca da qual a reciprocidade ou a intercambialidade é a regra - como se nenhuma posição fosse absoluta ou incontornável (OST, 2005, p. 390). Aquele que age, se comporta e conta sua história está obrigado a utilizar algum tipo de linguagem comum para fazê-lo. Essa linguagem vem antes do sujeito histórico e certamente o abarca. No entanto esse sujeito sempre possui a possibilidade de manipulá-la de acordo com os diferentes contextos em que atua, sendo que cada pronome pode comportar uma perspectiva diversa dos fatos. Assim, o perfeito entendimento da reversibilidade do uso dos pronomes e seu papel fundamental – alcançar o estágio da pluralidade, da impessoalidade do “ele” – pressupõe um esforço hermenêutico que seja capaz de superar as distorções espácio-temporais do processo, transpondo os acontecimentos de forma retrospectiva para o plano real. Os autos, compostos apenas por fragmentos préselecionados da narrativa encenada que é a vida do sujeito, não podem se arrogar o papel de mundo. Segundo François Ost, por falta de uma compreensão correta da reversibilidade das relações pronominais, por falta de acesso à posição reflexiva do “ele” que desdobra os sujeitos em confronto, referindo-os a instituições compartilhadas, os heróis de Kafka são logo obrigados a encontros face-a-face, ou mesmo corpo-a-corpo, ora fusionais, ora violentos – mas sempre mortíferos. Nessa derrocada, não é somente a figura do outro que confunde-se, mas a do próprio “eu”, condenado à impotência física e psíquica, e enredado em problemas de identificação cada vez mais insolúveis (OST, 2005, p. 392). Anteriormente, dissemos da forma glacial das narrativas de Franz Kafka, sendo que o modo de exposição do discurso kafkiano é perfeito para demonstrar a dificuldade de encontrar o sujeito histórico no contexto processual. François Ost relata que o mencionado autor consegue apresentar simultaneamente a tese e a antítese – no mesmo momento e com a mesma credibilidade, de modo que, no final do exercício, dificilmente alguém poderia arriscar uma síntese. Uma afirmação principal é proposta, acompanhada de seus corolários e derivadas. Logo em seguida, porém, enunciam-se uma ou outra reserva, interrogação ou nuança, que ainda não chegam a arranhar a certeza da afirmação central. Mas, quando a cadeia dos considerandos finalmente se interrompe, as reticências adquiriram pelo menos tanta consistência quanto a proposição inicial, sem que esta seja retirada – então não se sabe se é o direito ou o avesso da afirmação (OST, 2005, p. 427). Isso é precisamente o que ocorre na forma processual de interação humana. A peça pórtica do autor inicia o procedimento e será combatida pela resposta do réu, que por sua vez será alvo de impugnação do autor. Nesse jogo, considerando os incidentes processuais e as formas de intervenção de terceiros no processo, as diferenças entre o sujeito de enunciação - sujeito histórico, personagem da narrativa encenada que é sua vida - e o sujeito enunciado que se torna objeto do discurso processual acabam desaparecendo. O sujeito processual é um sujeito enunciado e o é por causa dos condicionamentos espácio-temporais próprios do processo e também pelas suas próprias pretensões numa lide, conforme já explicitado acima. Na verdade, uma última observação virá confirmar a maneira de solilóquio que a narrativa kafkiana produz. Ela diz respeito ao estatuto do narrador em seus textos. O que chama a atenção, numa primeira análise, é a ausência total de visão de conjunto deste: proibindo-se todo tipo de comentário ou perspectiva, o narrador nunca sabe mais que seus personagens, descobrindo como eles, e com o mesmo espanto, o fio complexo da história que por meio deles se desenvolve (OST, 2005, p. 433). François Ost atenta para o fato de, nos romances de Kafka, ocorrer uma substituição do “mundo real” pelo mundo interior de seus personagens. É assim que o processo judicial se torna o único mundo, a realidade dos autos a única existente. Trata-se de um mundo reconstituído pelos fragmentos do mundo real, i. e., recontado pela imaginação subjetiva, por sujeitos que se dissociaram de si mesmos. No entanto, quando cada caso tem a capacidade de ser um mundo ou o mundo, isso significa que não se considera nada que seja exterior a ele, pois se considera que os sujeitos já postularam tudo o que era pertinente para a lide e o que foi excluído da demanda não é importante para o convencimento do órgão julgador. Há, portanto, a criação de um mundo paralelo que passa a existir per si, a qual é de inteira autoria dos sujeitos histórico-processuais. O mundo é também uma forma de expressar tudo o que existe, mas devemos estar atentos para o fato de que “num mundo sem exterioridade, a interioridade é tida como única e verdadeira realidade; ou melhor, as distinções interior/exterior, objetivo/subjetivo, realidade/ficção perdem toda pertinência” (OST, 2005, p. 433). 7. O PROCESSO DE KAFKA Analisando aspectos da obra O Processo de Franz Kafka verificamos que o autor, longe de criar uma mera paródia do desenvolvimento de um processo judicial, desenha, com os seus próprios traços, uma série de características que são comuns a este último. Assim, o papel às vezes ambíguo do advogado, a dificuldade de acesso ao pretório, a lentidão da ação judicial, a imprevisibilidade da decisão, a 36 “construção” do acusado pelo dossiê – caracterizam, ainda hoje, não os disfuncionamentos (excepcionais) da justiça, mas seu funcionamento mais ordinário (OST, 2005, p. 452). Ocorre que Franz Kafka, no intuito de fazer com que as mazelas do sistema jurídico sejam enxergadas pelos operadores do direito e mesmo por todos aqueles que fazem parte do sistema, pelo simples fato de se encontrarem sob a jurisdição estatal, acaba criando caricaturas do universo jurídico, de maneira a salientar seus defeitos. Desse modo, a ação judicial de Joseph K. apresenta um tempo distendido e aleatório, fato que é demonstrado quando o personagem é convocado para o tribunal em pleno domingo, além de pairar dúvidas sobre quando a ação se inicia e quando termina, se é que termina. François Ost, embora não diferencie categoricamente os conceitos próprios das disciplinas jurídicas lecionadas nas universidades, relata que é possível visualizar a questão temporal do seguinte modo, quando se trata dos litígios judiciais: uma justiça instituinte, restauradora de paz social, de reconhecimento das vítimas e reabilitação dos culpados, possui uma temporalidade claramente distinta do tempo ordinário (ela representa um corte ritual instaurador de uma ordem superior), inteiramente regida por regras precisas e obrigatórias, e geradora de efeitos definitivos e irreversíveis: assim um tempo neguentrópico e criador substitui a desordem social denunciada pela queixa (OST, 2005, p. 452). Em O Processo não é só o tempo que apresenta distorções, mas também o espaço. O espaço da justiça instituinte é um espaço separado daquele onde se desenvolve a vida cotidiana, trata-se de um lugar sagrado que existe somente para que o direito seja dito. De acordo com François Ost, trata-se de um espaço separado da vida cotidiana, claramente delimitado, e ao mesmo tempo central como um foco que se irradia sobre a cidade – uma área sagrada, entre os antigos, significando a uma só vez a transcendência da justiça, sua radical diferença, e sua presença tangível no meio dos homens (OST, 2005, p. 454). 36 Autos processuais. A justiça instituinte é aquela que procura restabelecer a ordem, compondo as pretensões e interesses dos sujeitos históricos que se envolvem numa lide. O processo é o procedimento em contraditório pelo qual os sujeitos tentam reconstituir essa ordem. O espaço da justiça instituinte pretende o estabelecimento de uma distância conveniente entre os sujeitos que possuem interesses opostos, de modo a possibilitar que os acontecimentos sejam desvendados conforme ocorridos no plano da realidade. Em O Processo esse espaço inexiste, uma vez que as salas do tribunal estão sempre atulhadas de pessoas que se empurram e objetos que vão desde cestos de roupa suja a livros de conteúdo pornográfico, configurando sempre uma atmosfera sufocante. Assim, se o tempo da justiça instituinte é claramente distinto do tempo da vida cotidiana, “em O processo, ao contrário, o tempo da justiça não se distingue mais do tempo da vida privada – o domingo e a noite parecem mesmo seus momentos prediletos” (OST, 2005, p. 453). Além disso, uma justiça instituinte emite decisões que interrompem o curso das coisas, põe um termo à disputa, bloqueando o ciclo infernal da violência e da degradação. Muito pelo contrário a justiça com que K. está às voltas é a de uma tramitação indefinidamente distendida, sem verdadeiro começo nem fim (OST, 2005, p. 453). Ainda nessa obra nos deparamos com juízes perversos que acumulam as funções da promotoria, fato que provoca um desequilíbrio maior na composição da contenda judicial. A garantia de igualdade dos interessados que demandam resta totalmente prejudicada, porquanto o juiz não pode assumir seu papel de sujeito imparcial do processo e organizar as manifestações dos demais sujeitos. Devemos nos lembrar que a posição dos sujeitos no processo é extremamente importante para a definição dos contornos da lide e, se pensarmos na questão pronominal, verificaremos que o juiz ao tornar-se parte processual passa a ser também interessado na lide. Isso faz com que o momento impessoal do “todos” ou do “ele” se perca. Quando Franz Kafka se propõe a escrever narrativas que podemos chamar de “abertas”, é porque não pretendem ser nem o começo e nem o fim da ficção individualista que é a vida do sujeito, sendo que tudo isso converge para que o leitor de Franz Kafka possa enxergar, através de seu exagero caricatural do universo jurídico, como é difícil chegar aos acontecimentos e sujeitos em si. Podemos observar que, no processo judicial, os acontecimentos deverão ser reconstituídos retrospectivamente, em forma de linguagem, pelos sujeitos e, tal qual existe, procura trabalhar com o tempo e o espaço da justiça instituinte, mas acaba por criar uma ruptura entre o mundo real e o mundo dos autos, cuja autoria é atribuída inteiramente aos sujeitos que narram os acontecimentos no processo judicial. 8. INSTRUMENTALIDADE, CONTRADITÓRIO, SUJEITOS A vertente instrumentalista do processo o enxerga como a ferramenta de concretização do direito material, que possui o objetivo precípuo de pacificar os conflitos de ordem jurídica, tendo em perspectiva escopos de caráter metajurídico, ou seja, sociais, políticos e econômicos. Assim, a importância do processo estaria pautada no alcance de resultados e, segundo Ricardo de Barros Leonel, “vale afirmar que sua utilidade é medida justamente na razão direta dos benefícios que possa trazer para o detentor de um interesse juridicamente protegido no ordenamento material” (LEONEL, 2002, p. 21). Devemos ressaltar que a teoria instrumental do processo se apropria da concepção relacionista do direito processual com o intuito de caracterizar a contenda que deverá ser dirimida. Segundo Aroldo Plínio Gonçalves, a se admitir o processo como relação jurídica, na acepção tradicional do termo, ter-se-ia que admitir, conseqüentemente, que ele é um vínculo constituído entre sujeitos em que um pode exigir do outro uma determinada prestação, ou seja uma conduta determinada. Seria o mesmo que conceber que há direito de um dos sujeitos processuais sobre a conduta do outro, que o primeiro é obrigado, na condição de sujeito passivo, a uma determinada prestação, ou que há direitos das partes sobre a conduta do juiz, que, então, compareceria como sujeito passivo de prestações, ou ainda, que há direitos do juiz sobre a conduta das partes, que então, seriam os sujeitos passivos da prestação (GONÇALVES, 1992, p. 97). De acordo com essa visão, os sujeitos históricos podem se encontrar em posições de subordinação, um em relação ao outro, e de ambos àquela ocupada pelo juiz. Além disso, é importante lembrar que o processo não se confunde com a situação de direito material, ou situação de direito substancial, cuja existência ou cujos efeitos nele se discutem, mas deve relevar que mesmo na situação de direito material, como se expôs, já não se concebe a possibilidade de que um sujeito possua o poder de exigir a conduta de outro sujeito. É por isso que o particular tem, na função da jurisdição, a possibilidade de pedir que o Estado o substitua, na imposição do ato de caráter imperativo. Assim, mesmo à situação de direito substancial já não se poderia, coerentemente, aplicar a figura da relação jurídica que, nascida do individualismo do século passado, constituía-se em vínculo entre sujeitos, vínculo que, mesmo quando dito de “coordenação” expressava, apenas, momentos alternados de subjugação (GONÇALVES, 1992, p. 98). O Estado Democrático de Direito não pode se contentar com essa perspectiva, visto que, conforme menção anterior, um provimento pautado numa perspectiva da subjugação de um sujeito pelo outro é incompatível com a idéia de democracia. Ao longo deste trabalho procuramos adotar a concepção fazzalariana do processo como procedimento em contraditório, por ser aquela que pretende construir um provimento de forma participada pelos sujeitos históricos que o integram em simétrica paridade. Não é só, a noção de processo como procedimento em contraditório também se presta a limitar o provimento a aquilo que foi trazido aos autos no exercício da ampla argumentação pelos sujeitos históricos. Isso significa dizer que o provimento que deixe de considerar as versões dos fatos retratadas pelos sujeitos históricos que fazem parte do processo e se enverede por uma terceira via é totalmente descabido e não poderá subsistir, pois a sentença só poderá, dentro da concepção democrática, se sustentar porque o seu conteúdo foi objeto de larga discussão no iter processual. Cabe ressaltarmos que ainda que a idéia de caso-mundo traduza um panorama de rompimento com a realidade, i.e., fictício, tendo em vista que os sujeitos interessados em um provimento manipulam as informações carreadas aos autos, bem como o fato dessas informações serem apenas fragmentos do que realmente ocorreu, devemos ter em mente que a decisão, i. e., a prestação jurisdicional, não poderá passar daí. Embora seja costumeiro, em virtude da nossa herança positivista, dizer que o processo pretende chegar até a verdade, por tudo que já dissemos até aqui, podemos observar que seria mais viável nos contentarmos com uma versão construída de forma participada pelos sujeitos do processo em simétrica paridade que juntos se tornam autores do provimento. Somente assim será possível vislumbrarmos que as razões que sustentam o provimento não são absolutas e nem tampouco definitivas, mas, ao menos, partem daquilo que foi objeto da discussão travada pelos sujeitos interessados na lide e intermediada pelo juiz em um contexto espácio-temporal próprio, sendo suficientes para a resolução de um caso concreto específico, podendo ser tidas como válidas, desde que respeitem o ordenamento jurídico e a ampla argumentação. Essas constatações nos levam, uma vez mais, à proclamação da pertinência da denúncia de Franz Kafka sobre o universo jurídico. O processo, pensado sob os auspícios do instrumentalismo somado à perspectiva relacionista possui uma tendência, conforme explicitamos, de colocar os sujeitos históricos em posições de desigualdade e subordinação quando é instaurada uma interação humana de caráter processual. Em O Processo esse autor retrata as dificuldades que os sujeitos históricos enfrentam a partir do momento em que se tornam sujeitos processuais, tendo em vista a perversão de um Estado autoritário que possui leis perversas, conduzindo, principalmente por razões políticas, à ruína da intersubjetividade institucionalizada e, muito embora não tenhamos, até aqui, mencionado o tom político de sua narrativa, devemos esclarecer, após essa breve explanação das correntes processualísticas dominantes no cenário jurídico brasileiro, que, com o intuito de encerrar a presente análise, devemos procurar enxergar que a ruptura instaurada pelo processo, a falta de visão do todo, i. e., da unidade da vida e da fragmentariedade dos sujeitos, torna essa interação humana que é o processo uma forma de legitimação dos abusos cometidos pelo Estado no seu manejo. Desse modo, François Ost nos alerta para o fato de, na obra mencionada, podermos visualizar que duas cenas, a do primeiro inquérito e a da execução final, merecem ser destacadas, não tanto para ilustrar a perversão da justiça, agora evidente, mas antes a ruína da intersubjetividade instituída, da qual são o signo. Durante o primeiro inquérito, único momento em que Joseph K. será confrontado a um simulacro de justiça oficial, ele toma, desde o começo a iniciativa, não hesitando em questionar essa justiça abusiva que inquieta inocentes. O tom é político – nesse estágio do processo (estamos nos primeiros dias), Joseph K. está convencido de sua inocência e crê poder ainda reclamar justiça a quem de direito. Mas um curioso fenômeno se produz na sala de audiência, a topografia nos servindo, também aqui, de revelador: eis que a assistência que, no começo da sessão, estava dividida em dois partidos opostos, à direita e à esquerda da sala, com a mesa do juiz de instrução à frente, num pequeno estrado (configuração, de resto, mais política do que estritamente judiciária) – eis que então o público se funde então em uma confusão geral e indistinta, em meio à qual Joseph K. percebe indistintamente as mesmas insígnias na gola de todos os casacos, inclusive a do juiz de instrução. Portanto, longe de representar ponto de vistas opostos – um deles podendo se mostrar sensível à argumentação de K. –, todos se juntam num bando único, no interior do qual o intruso, visivelmente, não tem lugar. Passagem imperceptível do espaço ternário do triângulo judiciário ao espaço binário do confronto político (um partido contra o outro), para finalmente desembocar na indiferenciação da unidade fusional (a confusão geral e as insígnias idênticas) que só pode traduzir-se pela rejeição do “outro”. Desestruturação do espaço (do triângulo à linha, e da linha ao ponto) reveladora, evidentemente, da desintegração das relações interpessoais e da capacidade de institui-las por representações partilhadas (OST, 2005, p. 459). A noção de processo como procedimento que deve ser realizado em contraditório pelas partes em simétrica paridade se presta justamente a evitar as distorções que podem advir das relações de subordinação entre os sujeitos processuais instauradas pela concepção relacionista-intrumentalista. Manter os sujeitos em condições de igualdade dentro do contexto da interação humana de caráter processual serve para significar que não há precedência de um sobre o outro, não há precedência de visões subjetivas e mesmo de versões dos acontecimentos, mas há, repita-se, a construção participada de um provimento que só poderá considerar os argumentos que esses sujeitos trouxeram para o conhecimento da jurisdição estatal. 9. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho procurou demonstrar o que ocorre com o sujeito histórico dotado de uma vivência narrável quando ele se torna sujeito processual. Trata-se de enxergamos como o sujeito é criado de forma ficcional, o que significa dizer que ele é uma construção imaginária, às vezes dele próprio, às vezes de alguma espécie de sistema. Durante um longo tempo a visão positivista exerceu grande influência no domínio jurídico e buscou a verdade. Contudo, a abertura dos horizontes do Direito para outros campos do conhecimento como a Literatura e a História fizeram com que pudéssemos enxergar o quão insólito era o ideal dos positivistas. Após, essa breve análise, podemos entender que a verdade, à moda daquela corrente, acaba por ser apenas uma forma provisória de interpretação. O homem indivisível e uno é substituído pelo homem fragmentado que não sabe quem é. E isso ocorre porque, no momento da substituição do mundo real pelo mundo dos autos, i. e., quando do surgimento do caso-mundo, até o tempo e o espaço passam a ser concebidos de maneira ficcional. Mesmo os sujeitos do casomundo representam um papel e até são de papel. Deixemos claro, que substituir o mundo real pelo mundo dos autos implica o risco de reduzir e simplificar a complexa realidade dos acontecimentos. Além disso, o sujeito processual é alguém que possui uma necessidade premente de fazer com que sua pretensão seja reconhecida e, portanto, se vale de todos os meios para ganhar a lide. A vertente que proclama ser o processo uma espécie de procedimento feita em contraditório parte do pressuposto de que devemos buscar as razões que sustentam uma determinada versão dos acontecimentos na própria construção em contraditório do provimento. Devemos ter em mente que essas razões não podem ser absolutas, porquanto o Direito está em constante transformação. As concepções mudam com o passar dos anos, a forma de enxergar e interpretar também muda. Assim, poderíamos dizer que as semelhanças entre Direito, Literatura e História não são produto do acaso, mas de um grande esforço dos homens para conhecer e interpretar a origem das coisas. Admirar-se foi só o primeiro passo. ABSTRACT The present work intends to promote a reflection about the problem of the narrative reconstruction of the historic subject under the context of the fictional time and space created by the judicial process, developing it under the perspectives of Law, Literature and History. Key-words: subject, narrative, life, process, historic. REFERÊNCIAS AUGUSTO, Cristiane Brandão. Em busca das verdades jurídicas. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 4, n.15, p.117-126, jul./set.2004. BARBOSA, Rogério Monteiro. A narração e a descrição: uma análise do positivismo e do pós-positivismo. 2008. 104p. Dissertação (Mestrado em Teoria do Direito) – Pontifícia Universidade Católica de minas Gerais, Belo Horizonte. BERGER, Peter. Perspectivas sociológicas: uma visão humanística. Tradução de Donaldson M. Garschagen. 8ª ed. Petrópolis, 1988. p. 78-166. BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Abril Cultural, 1972. 189p. CHUEIRI, Vera Karam de. 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