11 de Setembro
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11 de Setembro
Outono | Inverno O 2011 53 06 AUMENTAR NÚMERO DE ESTUDANTES AMERICANOS EM PORTUGAL Boas razões para estudar numa universidade portuguesa Maria de Lurdes Rodrigues Mais uma forma de fortalecer a relação luso-americana Allan J. Katz Um contributo importante para o “Business in Portuguese” Rui Boavista Marques Um país para viver, um país para aprender Luís Patrão António Rendas ESPECIAL Programa pioneiro 11 de Setembro Uma década depois Fundação Luso‑Americana Conselho Directivo: Teodora Cardoso (Presidente) Embaixador dos EUA Jorge Figueiredo Dias Jorge Torgal Luís Braga da Cruz Luís Valente de Oliveira Michael de Mello Vasco Pereira da Costa Vasco Graça Moura Conselho Executivo: Maria de Lurdes Rodrigues (Presidente) Charles Allen Buchanan, Jr Mário Mesquita Secretário‑Geral: José Sá Carneiro DIRECTORes: Fátima Fonseca, Paulo Zagalo e Melo, Miguel Vaz subdIRECTORes: Rui Vallêra Responsável pelos Serviços Financeiros: Maria Fernanda David Responsável pelos Serviços Administrativos: Luiza Gomes Assessores: João Silvério, Paula Vicente Rua do Sacramento à Lapa, 21 1249‑090 Lisboa | Portugal Tel.: (+351) 21 393 5800 • Fax: (+351) 21 396 3358 Email: [email protected] • www.flad.pt Paralelo DIRECTORa: Maria de Lurdes Rodrigues EDITORA: Sara Pina coordenadora: Paula Vicente Colaboram neste número: Allan J. Katz, Álvaro Rosendo, Ana Curtinhal, Ana Maria Silva, Ana Marques Gastão, António Rendas, Carla Maia de Almeida, Carla Martins, Carlos Leone, Clara Pinto Caldeira, Claudia Colla, Catarina Martins, Cátia Soares, Charles Buchanan, E. Mujal‑Leon, Eduardo Pereira Correia, Fábio Rodrigues, Isabel Marques da Silva, Isabel Nery, Isabel Carreto, João Miranda, José Carlos Carvalho, Luís Patrão, Kathleen Gomes, Manuel Silva Pereira, Maria de Lurdes Rodrigues, Marina Almeida, Marta Rocha, Mónica Carvalho, Patrícia Fonseca, Paula Vicente, Pedro Faro, Raquel Duque, Raquel Ubach Trindade, Rui Boavista Marques, Rui Ochôa, Sara Pina, Sandra Pereira, Susana Almeida Ribeiro, Susana Brito, Susana Neves, Vanessa Rodrigues Design: José Brandão | Susana Brito [Atelier B2] Revisão: António Martins Impressão: www.textype.pt tiragem: 3000 exemplares NIF: 501 526 307 Nº de Registo na ERC: 125 Periodicidade: semestral 563 [email protected] Depósito legal: 269 114/07 ISSN 1646‑883X © Copyright: Fundação Luso‑Americana para o Desenvolvimento Todos os direitos reservados 2 Caro leitor O s dez anos passados sobre o 11 de Setembro de 2001 foram intensamente relembrados nos Estados Unidos e testemunhados pelos jornalistas do programa “José Rodrigues Miguéis 2011”, da flad. Em Lisboa, organizámos um ciclo de conferências agora publicadas em livro, pela Almedina, de que damos conta neste número. Uma das grandes apostas da Fundação foi o lançamento do programa “Study in Portugal”, em parceria com o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (crup), a Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (aicep), o Turismo de Portugal e a Fullbright, que visa atrair para Portugal mais alunos universitários norte‑americanos. Cerca de 140 mil estudam fora do seu país e mais de metade escolhe a Europa. Portugal quer ficar entre os primeiros mais procurados e, por isso, esta edição é especialmente dedicada ao “Study in Portugal”. Para o próximo ano, preparamos a realização do III Fórum Roosevelt, cuja temática será o mar, a sua importância histórica, estratégica e cientí‑ fica. O encontro transatlântico decorrerá entre 27 e 29 de Abril na Horta, ilha do Faial, com vista privilegiada para a ilha do Pico e a sua montanha, a mais alta de Portugal, aqui reproduzida por Lucina Ellis, pintora luso ‑americana que vive na Califórnia. SAra Pina Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 Outono | Inverno índice O 2011 53 06 AUMENTAR NÚMERO DE ESTUDANTES AMERICANOS EM DO EDITOR 04 | Editorial de Maria de Lurdes Rodrigues Mobilizar a memória para construir o futuro Imagem da campanha “10 reasons” por www.ideia.pt PORTUGAL COMPLIMENTARY COPY Boas razões para estudar numa universidade portuguesa Maria de Lurdes Rodrigues Mais uma forma de fortalecer a relação luso-americana Allan J. Katz Um contributo importante para o “Business in Portuguese” Rui Boavista Marques Um país para viver, um país para aprender Luís Patrão Programa pioneiro António Rendas ESPECIAL OFERTA capa 11 de Setembro Uma década depois 11 DE SETEMBRO Uma década depois 14-27 | Ciclo de Conferências 11 de Setembro – Uma década depois 08 | O 11 de Setembro e a memória colectiva americana por Kathleen Gomes 12 | Uma década de terrorismo global por Patrícia Fonseca 44-49 | Study in Portugal 44 | Boas razões para estudar numa universidade portuguesa 48 | Um país para viver, um país para aprender por Luís Patrão por Maria de Lurdes Rodrigues 46 | Mais uma forma de fortalecer a relação luso‑americana 49 | Programa pioneiro por António Rendas por Allan J. Katz 47 | Um contributo importante para o “Business in Portuguese” por Rui Boavista Marques [POLÍTICA] 32 | “Transatlantic Trends” 2011 A Ásia ganha terreno na opinião pública norte‑americana por Ana Maria Silva [Sociedade] 50 | Não há glória sem riscos Entrevista a Paul Jerde 52 | Perder para ganhar Entrevista a Michael Fernandez 53 | Antes oportunidades que dinheiro Entrevista a Mario Calderini por Sara Pina Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 3 editorial Mobilizar a memória para construir o futuro maria de lurdes rodrigues 1. Quando se assinalam dez anos sobre o 11 de Setembro de 2001, a flad não podia deixar de participar no vasto movimento de mobili‑ zação da memória sobre os acontecimentos daquele dia, bem como nas múltiplas activi‑ dades de debate e reflexão que, a propósito, permitiram lembrar e celebrar os valores da liberdade, da razão e do universalismo. Estes valores, premissas fundamentais da democracia, foram ameaçados tanto pelos atentados como pelas leituras que destes foram feitas como tempo como de orientações convergentes que permitem a construção de um futuro comum. As percepções partilhadas em matérias como o papel dos eua na liderança das relações tran‑ satlânticas, a evolução da construção da ue, as dinâmicas da crise económica e financeira internacional e as relações com as economias emergentes, como a China e o Brasil, consti‑ tuem uma base comum de entendimento, de partilha de valores e de ambições, que permi‑ tem sustentar a vida democrática para além das naturais divergências político‑ideológicas. 3. Finalmente, a referência ao novo programa da Fundação, que designámos “Estudar em Portugal” [...] O objectivo por “Estudar em Portugal”. Trata‑se de um projecto que é trazer para Portugal mais alunos visa apoiar as universidades que possam beneficiar do muito portuguesas no esforço de divulgação e promoção das de bom que Portugal e as universidades suas actividades junto dos portuguesas podem oferecer. alunos e das famílias norte ‑americanas. O objectivo é trazer para Portugal mais alunos que possam benefi‑ expressão de confronto civilizacional. Mobilizar ciar do muito de bom que Portugal e as uni‑ a memória para lembrar o 11 de Setembro é, versidades portuguesas podem oferecer. A por essa razão, indispensável para promover o exportação de serviços de ensino superior é entendimento dos trágicos acontecimentos que um desafio que enfrentam todas as universi‑ se assinalam. Aprofundar o nosso conhecimen‑ dades do mundo, sobretudo na Europa e nos to sobre o que se passou, reflectir sobre as eua. Nesse desafio, Portugal pode apresentar ‑se com recursos específicos, com vantagens causas e as consequências dos factos é indis‑ pensável para seguir em frente, construindo o únicas, sobretudo as que resultam da sua inclu‑ são no espaço da cplp e as consequentes opor‑ futuro com base em escolhas partilhadas em lugar do conformismo com o destino que tunidades de acesso a países como Angola, Cabo Verde, Moçambique e Brasil. O trabalho outros nos tracem. a fazer é aproximar os eua e Portugal, apre‑ 2. Os resultados de mais uma edição do “Transatlantic Trends Survey” permitem con‑ sentando as universidades portuguesas e a lín‑ firmar a existência, entre os cidadãos dos dois gua portuguesa como portas abertas ao mundo, lados do Atlântico, tanto de uma visão comum através das quais se pode ter acesso a mais oportunidades profissionais. sobre alguns dos grandes problemas do nosso ‘ ’ 4 Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 11 DE SETEMBRO Uma década depois REVISTA DE IMPRENSA por Ana Maria Silva* Lastro de guerra e dívida A realidade ultrapassou a ficção “Dez anos depois, os ataques de 11 de Setembro deixaram um lastro de guerra e dívida. Um estudo do Instituto Watson estima que até Junho, as duas guerras – Iraque e Afeganistão – custaram pelo menos 225 mil vidas, entre as quais 6.000 militares dos EUA e 1.200 aliados. A guerra ao terrorismo, levada a cabo por George W. Bush, terá uma factura que o Congresso dos EUA estima ser entre os 3,6 e 4,4 biliões de dólares. Só as despesas em serviços secretos, responsáveis pela captura de Osama bin Laden este ano, aumentaram 250% e cerca de 30 mil pessoas trabalham nos EUA só nos serviços de escuta.” [ Diário Económico, 7 de Setembro, Lionel Barber ] “No 11 de Setembro, a realidade ultrapassou a ficção, com os atentados mais improváveis de sempre, e nos dez anos seguintes vimos a ficção a querer superar essa realidade, par‑ tindo dela para refletir sobre o que mudou no mundo. Escritores como os norte‑ americanos Philip Roth, Don DeLillo e John Updike, o britânico Ian McEwan ou o portu‑ guês Pedro Guilherme‑Moreira foram apenas alguns dos que publicaram romances sobre a realidade excessiva desse dia, em que uma organização terrorista infligiu aos Estados Unidos o maior número de vítimas civis da sua história, ao fazer embater nas torres gémeas do World Trade Center, em Nova Iorque, e no Pentágono [...].” [ Lusa, 10 de Setembro ] Ser muçulmano nos EUA “Ser muçulmano nos Estados Unidos naqueles tempos ainda não era estar sob suspeita – a maior barreira era a da ignorância. Depois aconteceu o 11 de Setembro. [...] Nenhuma comunidade sofreu um maior impacto com o 11 de Setembro do que a muçulmana. Muçulmanos começaram a ser questionados e impedidos de via‑ jar por causa da sua aparência [...] O legado do 11 de Setembro produziu diferentes reacções dentro da comunidade muçulmana nos Estados Unidos, estimada em 2,4 milhões de pessoas.” [ Público, 7 de Setembro, Kathleen Gomes ] Na América e no Afeganistão “Os EUA, especialmente Washington e Nova Iorque, estão hoje em estado de alerta. Isto após terem sido recebidas infor‑ mações ‘específicas, credíveis mas não confirmadas’ de que a Al‑Qaeda estaria a preparar um atentado [...]. ‘Cada 11 de Setembro lembra aos afegãos um acontecimen‑ to no qual não desempenharam qualquer papel, mas que serviu de pretexto ao colonialismo americano para verter o sangue de milhares de afegãos inocentes e miseráveis’, dis‑ seram os talibãs.” [ Diário de Notícias, 11 de Setembro, Susana Salvador ] Obras de arte destruídas “Um número significativo de obras de arte [...] perdeu‑se para sempre com o colapso do World Trade Center, em resultado dos atentados do 11 de Setembro, em Nova Iorque, faz domingo dez anos. [...] Ainda hoje não há certezas sobre a verdadeira dimensão de obras de arte e documentos históricos que desapareceram para sempre devido aos atentados. Entre os registos, contam‑se cartas e 40 mil negativos de fotografias do ex‑presidente americano John F. Kennedy. O World Trade Center acolhia a sede de mais de 400 empresas e pelo menos 21 bibliotecas com documentos foram destruídas. Na biblioteca Ferdinand Gallozzi havia uma coleção de documentos relacionados com o comércio dos Estados Unidos desde 1840.” [ Lusa, 9 de Setembro ] Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 O mundo mudou “Que o mundo mudou desde o 11 de Setembro de 2001 é praticamente indiscutível. O ataque às Torres Gémeas em Nova Iorque pela Al‑Qaeda veio transformar conceitos, opiniões e a década seguinte, que se concluiu este fim‑de‑semana. Os ataques empurraram os EUA para duas guerras, para uma crise financeira que a potência nunca tinha vivido, e hoje pode arriscar‑se a afirmação de que o país já não é hegemónico como até 2001.” [ Jornal i, 10 de Setembro, Joana Azevedo Viana ] 5 11 DE SETEMBRO Uma década depois EUA mais fortes Bush e Obama “Dez anos depois dos atentados de 11 de Setembro o mundo está ‘mais seguro’ e os Estados Unidos são um país ‘mais forte’, disse hoje o embaixador norte‑americano em Portugal, Allan J. Katz. Falando num encontro com jornalistas sobre o 10.º aniversário dos atentados, que se cumpre no domingo, o diplomata disse pensar que ‘o mundo está mais seguro’ atualmente.” [ Lusa, 6 de Setembro ] “George W. Bush e Barack Obama encerraram ontem juntos a primeira década marcada pelos atentados do 11 de Setembro. [...] o antigo e actual presidentes dos eua passearam pelo memo‑ rial às vítimas dos ataques, com ar de pesar. [...] Juntos, numa aparição inédita em Nova Iorque, o homem que levou os norte ‑americanos para a guerra no Afeganistão e no Iraque, e o que promete tirá‑los de lá [...].” [ Diário de Notícias, 12 de Setembro, Patrícia Viegas ] Catarse colectiva “Estamos atentos e vemos gente de mapa na mão. Há con‑ tingente policial, operações stop, raio‑x nas principais estações de metro de Nova Iorque, ruas interditas, militares de armas, caixotes do lixo inspeccionados. Há sirenes, buzinas, passos apressados, turistas e gente de cá, ao redor do novo centro de negócios de Manhattan. [...] E hoje é ‘dia de caridade’, lê‑se no cartaz nas costas do Ground Zero, onde o Memorial 9/11 abre portas, numa cerimónia privada [...]. É a memória com a onomástica do mundo: 2983 nomes, geometricamente gravados em bronze – há, pelo menos, 1100 ainda por identificar. [...] O 11 de Setembro é, por isso, uma catarse colectiva: hoje somos todos nova‑iorquinos.” [ Diário de Notícias, 11 de Setembro, Vanessa Rodrigues – nos EUA pelo programa “José Rodrigues Miguéis” da FLAD ] Nascimento de uma geração “A administração americana afirma que os ataques marcaram ‘o nascimento de uma geração’. Os EUA acreditam ter saído mais fortes e unidos do que nunca dos atentados terroristas que atin‑ giram Nova Iorque e Washington no dia 11 de Setembro de 2001. [...] ‘Posso dizer, sem receio de contradições ou de ser acusado de exagero, que a geração do 11 de Setembro está entre as melhores que o nosso país jamais produziu. E nasceu aqui mesmo, nesse dia’, disse Joe Biden.” [ Diário Económico, 12 de Setembro, Pedro Duarte ] Cerimónia no Pentágono Estratégia revisionista O mundo não mudou a 11 de Setembro de 2001. Ele mudou em 1989 e 1991, com a queda do muro de Berlim e a implo‑ são da União Soviética. [...] Todavia, a América mudou a 11 de Setembro de 2001. Alterou‑se a sua perspectiva de segu‑ rança e a sua política externa. [...] Assistiu‑se então a uma mudança de fundo na política externa da América, com a passagem de uma estratégia conservadora [...] para uma estra‑ tégica revisionista.” [ Público, 11 de Setembro, Tiago Moreira de Sá ] 6 “Cerca de 1600 pessoas, incluindo cem sobreviventes ao aten‑ tado, estiveram na cerimónia, que inclui a exibição de uma enorme bandeira dos EUA na parede do edifício que sofreu o embate do avião. Os dez anos dos atentados do 11 de Setembro foram assi‑ nalados ontem em todo o mundo, de diversas formas. Em Lisboa, o Presidente Cavaco Silva fez uma declaração na qual lembrou ‘a necessidade de cooperação internacional face ao terrorismo’.” [ Público, 12 de Setembro, Marco Vaza – nos EUA pelo programa “José Rodrigues Miguéis” da FLAD ] Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 11 DE SETEMBRO Uma década depois Três locais emblemáticos Tributo no Ground Zero “No 10.º aniversário do 11 de Setembro de 2001, enquanto a nação reflectiu sobre as suas perdas, milhares de famílias reuniram ‑se no novo World Trade Center, na baixa de Manhattan, no Pentágono e num campo de flores silvestres, na Pensilvânia, para comemorar quase três mil mortos naquela manhã infame, quan‑ do aviões foram transformados em mísseis e uma nova era de terrorismo nasceu. O momento central do dia teve lugar no Ground Zero, onde mais de dez mil membros das famílias das vítimas [...], reunidos num parque com carvalhos brancos e jardins de esmeraldas – uma praça estranhamente futurista com árvores pro‑ positadamente espaçadas, passando por um terrenos de cinco hectares de granitos, rodeado por um terreno baldio de arranha ‑céus inacabados e guindastes de construção silenciosos.” [ New York Times, 11 de Setembro, Robert McFadden ] “Os nomes dos mortos do 11 de Setembro, alguns pronun‑ ciados por crianças que mal têm idade para lembrar as mães e pais perdidos, ecoaram no Ground Zero no domingo, num tributo assombrado mas esperançoso, sobre o 10.º aniversário do ataque terrorista. [...] Familiares das vítimas, chorosos, entraram num memorial recém‑inaugurado e colocaram foto‑ grafias e flores ao lado dos nomes gravados em bronze. Obama e o seu predecessor, George W. Bush, inclinaram a cabeça e tocaram as inscrições.” [ Washington Post (Associated Press), 12 de Setembro ] 10 anos de guerra A superpotência esgotada “É difícil decidir se o mundo muda num instante ou se os grandes momentos históricos são apenas o culminar de um pro‑ cesso longo e profundo que decorre de forma quase invisível. É difícil determinar se o 11‑S transformou os Estados Unidos e se foi o catalisador para um declínio já inevitável. Os 10 anos desde os ataques confirmaram, em todo o caso, que a grande superpo‑ tência está esgotada. Não só sofre sozinha para continuar a assu‑ mir o seu papel de guardiã dos valores universais defendidos, mas também perde terreno em concorrência com outras nações, num novo século que deixa de ser exclusivamente americano.” [ El País, 11 de Setembro, Antonio Caño ] Simplicidade, unidade e devoção “Simplicidade, unidade, devoção. O décimo aniversário dos atentados do 11 de Setembro foi marcado por inúmeras come‑ morações, quando o povo norte‑americano, liderado por Barack Obama, honrou a memória das cerca de 3.000 pessoas que morreram em Nova Iorque, Washington e Shanksville, Pensilvânia, a 11 de Setembro de 2001. [...] Num silêncio surreal, os traba‑ lhos pararam pela manhã e o tráfego foi interrompido nesta área de Manhattan, Barack Obama tocou os nomes das vítimas gra‑ vados em pedra, antes de cumprimentar os familiares das vítimas e personalidades. Tomou então a palavra, lendo o Salmo 46, que afirma ‘Deus é o nosso refúgio e fortaleza’.” [ Le Monde (Agence France Press e Reuters), 11 de Setembro ] Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 “A América sofre, reflecte. [...] A América parou no domingo para lembrar o que foi perdido e como a América mudou para sempre, uma década após quatro aviões sequestrados terem derrubado as Torres Gémeas de Nova Iorque, aberto o Pentágono e furado o chão, num campo tranquilo da Pensilvânia. O aniversário dos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 proporcionou um momento para fazer um balanço dos 10 anos de guerra e para se preocupar, enquanto ao mesmo tempo presta homenagem às acções honrosas realizadas não só nos primeiros momentos após o ataque, mas também nos anos que se seguiram.” [ The Wall Street Journal, 12 de Setembro, Michael Howard Saul ] Memorial 9/11 “Algumas pessoas choravam. Algumas abraçavam‑se. Outras olham em silêncio para as piscinas escuras onde as Torres Gémeas uma vez existiram, à medida que o memorial 09/11 no Ground Zero abriu as suas portas ao público. Cerca de 7.000 pessoas tinham bilhetes para visitar o memorial, que foi inau‑ gurado na segunda‑feira, e outras 400 mil inscreveram‑se onli‑ ne para visitar o local nos próximos meses.” [ Chicago Tribune (Associated Press), 13 de Setembro, Samantha Gross e Verena Dobnick ] *LPM 7 11 DE SETEMBRO Uma década depois O 11 de Setembro e a memória colectiva americana Do Holocausto ao 11 de Setembro, porque precisamos de memoriais para nos recordarem acontecimentos trágicos? A memória alguma vez pode ser excessiva? Por Kathleen Gomes fotografias Sandra pereira e vanessa rodrigues no World Trade Center, em Nova Iorque, inaugurado a 11 de Setembro, no 10.º aniversário dos ataques. Os memoriais intersectam a forma como queremos ser recordados no futuro com a nossa necessidade de consolo mais ime‑ diata. Eles “dizem mais sobre nós e os nossos tempos do que sobre os aconteci‑ mentos que é suposto comemorarem”, afirma Brent Glass. [Paralelo] Do massacre de Columbine ao 11 de Setembro, a construção de memoriais parece ser uma indústria em crescimento nos Estados Unidos. Porquê? [Brent Glass] Recordar é um atributo Sandra Pereira Brent Glass, director do Museu Nacional da História Americana em Washington, faz também parte da Comissão do Memorial do Voo 93, cujo objectivo foi construir um memorial em Shanksville, na Pensilvânia, no local da queda de um avião sequestrado por terroristas a 11 de Setembro de 2001. Tal como o memorial As unidades do Memorial estão posicionadas de maneira a distinguir‑se as que simbolizam as vítimas que estavam no Pentágono das que vinham no avião. Aquelas em que se lê o nome da vítima e, na mesma linha do olhar, se vê o Pentágono, correspondem às pessoas que se encontravam no edifício. As que se encontram no sentido oposto, em que para ver o nome da vítima temos o céu como pano de fundo, dizem respeito aos passageiros. 8 Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 11 DE SETEMBRO humano. É o que nos define, de certo modo, como seres humanos. Para um indivíduo, a perda de memória é uma catástrofe. Para uma sociedade, é igual‑ mente importante possuir uma memória colectiva. E uma forma de fazer isso é através da memorialização – em que ten‑ tamos captar, reconhecer e homenagear um acontecimento ou pessoas pelos seus actos ou pela sua experiência. O que pode tomar uma variedade de formas: pode ser uma paisagem, uma estátua, ou algo mais abstracto. Já alguma vez visitou o Ground Zero, em Nova Iorque? Há um posto de bom‑ beiros do outro lado da rua que se far‑ tou de esperar e criou o seu próprio memorial. Que é bastante figurativo: vemos os bombeiros a correr para um edifício, vemos as torres a arder. No dia em que visitei o local tinha um pai e um filho ao meu lado, e o rapaz teria uns oito ou nove anos, portanto não tinha nascido quando o 11 de Setembro aconteceu. O pai explicou para que ser‑ via o memorial e o rapaz não parava de perguntar: “O que os levou a fazer isto?”; “Porque é que os aviões foram contra as torres?”; “Porque sequestraram os aviões?”; “Porque não estavam con‑ tentes com os Estados Unidos?”. O rapaz não parava de perguntar porquê. Dei‑me conta de que é isso que temos de fazer com os nossos museus e centros interpretativos – responder aos porquês. E isso é o que os memoriais não fazem necessariamente. Não têm essa obrigação. Cabe‑lhes evocar a perda que ocorreu e têm uma função terapêutica. [P] Os memoriais são diferentes dos factos his‑ tóricos. São mais sentimentais. [BG] Sim. Os piores memoriais são aque‑ les que tentam contar uma história. Alguns dos memoriais do Holocausto no mundo e nos eua são bastante evocativos sem apresentarem uma longa narrativa sobre o que aconteceu. Alguns falharam porque tentam ser enciclopédicos e contar essa história. A mensagem não é necessariamente objectiva. Aliás, por definição é subjectiva porque é patrocinada ou por um Estado ou por um grupo de pessoas que querem lembrar indivíduos ou um acontecimen‑ to de uma forma particular. [P] O que é que o memorial do 11 de Setembro, planeado para o World Trade Center, pretende comemorar? Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 Vanessa Rodrigues Uma década depois “Hidden constellations” assim caracteriza o Memorial do Ground Zero o seu arquitecto Michael Arad. Os nomes das pessoas foram agrupados em razão das suas relações familiares e de amizade. ‘ [P] É habitual estes memoriais incorporarem a contagem das vítimas. Nesse sentido, não representam uma certa vitimi‑ zação, ou mesmo martírio? [BG] É uma questão inte‑ ressante porque no memorial do voo 93 pre‑ ferem usar a palavra “heróis”. Porque os pas‑ sageiros, ou pelo menos muitos deles, resistiram e tentaram impedir os pla‑ nos dos sequestradores. Talvez tenham tentado recuperar o con‑ trolo do avião – não sabemos exactamen‑ te o que se passou naqueles trinta minutos, do que deve ter sido puro caos e puro terror. Mas em Nova Iorque a história é mais complexa. Temos os passageiros, temos as pessoas que estavam a trabalhar nos seus escritórios, temos as equipas de socorro. Há pessoas que sobreviveram, há bombei‑ ros que morreram, há pessoas que perde‑ ram a vida sem sequer saber o que lhes aconteceu. O Memorial da II Guerra Mundial, em Washington, é claramente um memorial aos soldados – que foram para a batalha sabendo que corriam o risco de morrer, inteiramente conscientes de estarem a lutar pelo seu país. No caso das Torres Gémeas é diferente. Há pessoas que morreram sem saber a causa. Tanto quanto conseguiram perce‑ ber, foi um acidente: um avião terá voado Recordar é um atributo humano. É o que nos define, de certo modo, como seres humanos. Para um indivíduo, a perda de memória é uma catástrofe. Para uma sociedade, é igualmente importante possuir uma memória colectiva. ’ [BG] Acho que a primeira preocupação é homenagear as pessoas que morreram. No memorial projectado para o local onde o voo 93 se despenhou [no mesmo dia], vamos ter 40 nomes, dos passageiros e da tripulação que morreram nesse voo. Mas os nomes dos quatro sequestradores que tam‑ bém morreram não serão incluídos. É uma questão interessante: O que é que se faz com os nomes dos terroristas? Como é que reflectimos a tragédia se não os men‑ cionamos? É como ir ao Ford’s Theatre em Washington sem mencionar John Wilkes Booth [actor que assassinou Lincoln naquele teatro durante uma representa‑ ção]. Mas parece‑me correcto não men‑ cionar estes indivíduos num memorial porque não são os homenageados; os homenageados são as vítimas. Mas um museu talvez encontrase alguma forma de apresentar os nomes dos 19 seques‑ tradores. 9 11 DE SETEMBRO Uma década depois acidentalmente em direcção à sua torre, pelo menos o primeiro. Suponho que é uma morte diferente. Parece‑me legítimo perguntar: porque precisam de um memorial? Há quem acre‑ dite que honrar um ente querido dessa ‘ Os memoriais não terão, em última análise, mais a ver com as nossas sensibilidades contemporâneas do que com os acontecimentos dramáticos que evocam? Sandra Pereira ’ forma proporciona algum alívio, e os familiares [das vítimas] costumam ter um papel muito activo nisso. Quase imediatamente depois da Guerra Civil – mesmo antes do conflito terminar – alguns dos combatentes voltaram aos campos de batalha e começaram a plane‑ ar a construção de memoriais. Existem mais de 1300 memoriais em Gettysburg. [P] Até muito recentemente, uma cidade como Berlim, bombardeada durante a II Guerra Mundial, não tinha memoriais. Eles pareciam supérfluos num lugar onde as ruínas da destrui‑ ção ainda são visíveis. Mas na última década Berlim viu surgir um museu e um memorial dedicados ao Holocausto. Os memoriais não terão, em última análise, mais a ver com as nossas sensibilidades contemporâneas do que com os acontecimentos dramáticos que evocam? [BG] Penso que sim. Quando estive em Portugal recentemente, dei uma conferên‑ cia sobre “Memória Pública nos EUA” em quatro universidades. Uma estudante pôs a mão no ar e perguntou: “Não acha que há demasiadas evocações do Holocausto?” Ela teria talvez uns 20, 25 anos. Eu respon‑ di que depende do país e da sensibilidade actual em relação ao impacto do Holocausto no nosso país ou na nossa comunidade. Não sei se alguma vez a memória pode ser excessiva ou se o passado se pode tor‑ nar um fardo e impedir‑nos de seguir em frente. Mas concordo que [os memoriais] dizem mais sobre nós e os nossos tempos do que sobre os acontecimentos que é suposto comemorarem. [P] Uma questão que se pode colocar em relação ao Memorial do 11 de Setembro é a escala. Apesar de representar menos de três mil pessoas, ele irá ultrapassar a dimensão de outros memo‑ riais dedicados a milhões de vítimas. O que pensa sobre isso? [BG] Bem, é em Nova Iorque, que faz tudo em grande. Tem de ter uma escala que os nova‑iorquinos sintam que está de acordo com a sua identidade. É a maior cidade do país, uma capital mundial... E há a questão moral de construir um memorial ou fazer alguma coisa num local onde pessoas morreram e onde provavelmente os seus restos ainda se encontram. Sei que isso é uma questão na Pensilvânia. O Memorial do Pentágono é constituído por 184 unidades: uma por vítima, com o seu nome. Passageiros e pessoas no edifício do Pentágono morreram na sequência da queda do avião, do voo 77 da American Airlines, às 9h37 de 11 de Setembro de 2001. 10 [P] Para muitos familiares, aquele é o seu cemitério. [BG] Exacto. Apesar de terem encontrado e identificado restos humanos, acho que só Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 11 DE SETEMBRO Uma década depois marido ou a mulher, mas é mais complicado quando o parentesco é mais distante. Mas sim, esse é o público principal. No caso de Nova Iorque, em que tem quase três mil mortos, não vai ser possível um consenso. Mesmo em Shanksville não houve con‑ senso total em relação ao design do memorial. O avião caiu num terreno onde em tempos existiu uma mina de carvão e apesar de a paisa‑ gem ter sido restaurada, o local ainda mantinha um certo declive. O arquitecto do projecto ven‑ cedor aproveitou isso para recomendar um semicírculo de árvores. Creio que são 40 árvores por cada vítima, portanto, ao todo, Não sei se alguma vez a memória pode ser excessiva ou se o passado se pode tornar um fardo e impedir‑nos de seguir em frente. Mas concordo que [os memoriais] dizem mais sobre nós e os nossos tempos do que sobre os acontecimentos que é suposto comemorarem. conseguiram identificar um terço das pes‑ soas que morreram em Nova Iorque. Sei que ainda existe uma polémica em relação ao cofre onde os restos serão preservados no local. Há uma inscrição que está pro‑ jectada para a parede junto ao cofre, mas alguns dos familiares disseram: “Não que‑ remos nada nessa parede porque não que‑ remos que o cofre se torne parte de uma exposição ou uma atracção turística em que as pessoas tirem fotografias.” A Comissão do Memorial do Voo 93 reúne‑se quatro vezes por ano, e em cada reunião há sempre um grupo de familia‑ res das vítimas que participa e ainda há muitas lágrimas e muita emoção. O cho‑ que já passou, mas tem sido um processo de luto prolongado no tempo. Não me parece que alguma vez tenha fim. Mas julgo que com o décimo aniversário, em Setembro, irão sentir que a sua missão foi cumprida. “OK, fizemos a nossa parte para lembrar os nossos familiares.” [P] Falando com nova‑iorquinos, tem‑se a sen‑ sação de que o memorial, em termos individuais, não é importante para eles. A reconstrução do World Trade Center, o facto de estarem a reerguer torres no mesmo local, parece ter um poder sim‑ bólico muito maior para eles. Portanto, a função do memorial parece ser, sobretudo, a de consolar as famílias das vítimas. [BG] Sim, toda gente é muito deferente para com os familiares porque estão mais directamente ligados ao acontecimento. Em relação ao voo 93, que envolve um núme‑ ro de pessoas muito menor, muitas vezes pergunto‑me: O que é que define se alguém é ou não um membro da família? É preciso ter um elo de sangue? Até onde é que se pode ir – um primo em segundo grau, uma tia ou um tio? É uma questão política: quem fala em nome das vítimas? É fácil se for um filho ou uma filha, o Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 [P] O que aconteceu depois? [BG] O arquitecto tornou o memorial mais parecido com um círculo, prolongando os dois extremos do crescente. Vanessa Rodrigues ’ serão plantadas 1600 árvores nesse semi‑ círculo. E ele chamou ao memorial “Um Crescente de União”. E houve uma pessoa que reagiu imediatamente, dizendo: “Ah‑ha, isto é um tributo ao islão”. Porque eram aceres vermelhos e, no Outono, as folhas ficam vermelhas. Sempre que um avião sobrevoasse o local, pareceria um crescen‑ te vermelho visto do céu. Isso gerou algu‑ ma controvérsia, e um familiar de uma das vítimas declarou que nunca aprovaria. As famílias tinham estado muito unidas até então e isto foi duro porque queriam que toda a gente estivesse de acordo. Sete mil pessoas com bilhete puderam visitar o Memorial do Ground Zero no dia 11 de Setembro deste ano. Mais de 400 mil compraram bilhetes para os próximos meses. Glass em Portugal Guardião da memória. Assim pode ser descrito Brent Glass que acredita que "a maneira como recordamos o passado revela muito sobre o presente". Durante a sua primeira visita a Portugal, Glass partilhou a sua visão da história e experiência musiológica com curadores e funcionários em Lisboa, Porto, Coimbra, Madeira e Açores. No seu esforço de gestão da lembrança e do esquecimento, o planeamento, as parcerias, a divulgação e o feedback são, segundo Glass, instrumentos fundamentais nos museus de hoje em dia. D.R. ‘ 11 11 DE SETEMBRO Uma década depois Uma década de terrorismo global Há dez anos, o mundo tremeu com o impacto dos aviões contra as Torres Gémeas. E não mais seria o mesmo, dessa manhã em diante. TEXTO Patrícia Fonseca INFOGRAFIA Álvaro Rosendo 18 1 2 14 11 5 4 6 23 1 11 de Setembro de 2001 (EUA, Nova Iorque, Washington, Pensilvânia) Torres Gémeas – 2752 mortos Pentágono – 169 mortos Voo 93 – 44 mortos 2 26 de Outubro de 2001 (EUA, Washington) George Bush assina o polémico “USA Patriot Act”, acrónimo para “Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism”, que retira muitos direitos aos cidadãos, em nome da luta contra o terrorismo O Grupo Salafista para a Pregação e Combate decide unir esforços com a organização de Bin Laden, passando oficialmente a designar-se por Al-Qaeda do Magrebe Islâmico a partir de 2007 3 7 de Outubro de 2001 6 11 de Abril de 2002 (Tunísia) (Afeganistão) A invasão do Afeganistão, realizada à revelia das Nações Unidas, marca o início da guerra declarada pelo Governo Bush contra o terrorismo global 4 2002 (Guantánamo) Os primeiros prisioneiros da guerra no Afeganistão são levados para a prisão de Guantánamo, em Cuba. Outras prisões, algumas geridas pela CIA e com localizações secretas, são usadas para interrogar suspeitos de terrorismo, um pouco por todo o mundo 1 12 Sublinhados a amarelo os atentados atribuídos à Al-Qaeda 5 2002 (Argélia) Um bombista suicida-se na sinagoga de Ghriba, em Djerba, matando 21 pessoas (14 alemães) 7 12 de Outubro de 2002 (Indonésia, Bali) Um carro-bomba e um bombista suicida lançam o caos em Bali, matando 202 pessoas (164 eram turistas estrangeiros). O ataque foi atribuído a um grupo radical islâmico com ligações à Al-Qaeda 8 28 de Novembro de 2002 (Quénia) Um suicida faz-se explodir num hotel de Mombaça que alojava um grupo de israelitas, matando 18 pessoas 9 20 de Março de 2003 (Iraque) Aviões norte-americanos iniciam os bombardeamentos sobre Bagdade, enquanto forças britânicas ocupam o Sul do país regido por Saddam Hussein. O Iraque que, com o Irão e a Coreia do Norte, constituía o que Bush designava como “Eixo do Mal”, era atacado por alegadamente possuir armas de destruição maciça 10 12 de Maio de 2003 (Arábia Saudita) Um triplo atentado provoca 35 mortes, numa zona residencial de Riade 11 16 de Maio de 2003 (Marrocos) Quatro bombistas suicidas matam 33 pessoas em Casablanca 12 15 e 20 de Novembro de 2003 (Turquia) Quatro carros-bomba explodem em Istambul junto a duas sinagogas, ao consulado britânico e ao banco inglês HSBC, provocando 63 mortos, entre eles o cônsul-geral britânico Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 11 DE SETEMBRO Uma década depois Revolução a bordo Os atentados de 11 de Setembro alteraram radicalmente as regras de segurança da aviação mundial Facas proibidas Todos descalços Set 2001 Os passageiros passam a ter de comparecer com três horas de antecedência no aeroporto, para voos internacionais. Os canivetes suíços ficam proibidos, e até os isqueiros e os corta-unhas passam a ser vistos como armas perigosas Dez 2001 Após um passageiro ter conseguido transportar explosivos nos sapatos, com a intenção de fazê-los explodir num voo Paris-Miami, todo o calçado passa ser vistoriado ao raio-x Lista negra Líquidos banidos Set 2004 Os EUA analisam os dados biométricos dos passageiros e instituem uma No-fly list com milhares de nomes suspeitos de ligações terroristas (o que gera inúmeros mal-entendidos) Nov 2006 Um atentado frustrado, usando uma combinação de líquidos para criar uma bomba a bordo, levou à proibição quase total do transporte de líquidos na bagagem de mão Fontes TSA - Transportation Security Administration (USA); EASA/European Aviation Safety Agency 12 15 22 9 13 10 16 21 3 25 26 19 17 24 8 7 13 2004 (Iraque) 18 7 de Julho de 2005 Uma série chocante de fotografias é publicada, revelando que militares norte-americanos praticavam actos de tortura na prisão de Abu Ghraib (Reino Unido, Londres) A Al-Qaeda consegue fazer explodir três bombas na rede de metropolitano de Londres, matando 52 pessoas 14 11 de Março de 2004 19 23 de Julho de 2005 (Egipto) Uma série de atentados suicidas contra locais turísticos de Sharm el-Sheikh causa 68 mortos (Espanha, Madrid) A Al-Qaeda reivindica os atentados coordenados a comboios das cercanias de Madrid, que matam 191 pessoas 15 8 de Outubro de 2004 (Egipto) 20 1 de Outubro de 2005 Três atentados em locais turísticos da península do Sinai fazem 34 mortos (Indonésia, Bali) Três bombistas suicidas fazem mais 23 mortos em Bali 16 6 de Dezembro de 2004 21 9 de Novembro de 2005 (Arábia Saudita) O consulado dos EUA em Jeddah é atacado: nove mortos 17 14 de Fevereiro de 2005 (Filipinas) No mesmo dia, três atentados provocam 12 mortes e deixam mais de 130 feridos em Manila, General Santos e Davao Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 (Jordânia) A Al-Qaeda reivindica um triplo atentado suicida contra hotéis em Amã: 60 mortos 22 24 de Abril de 2006 (Egipto) Três bombistas atacam a zona balnear de Dahab (mar Vermelho), causando 20 mortos 20 23 11 de Dezembro de 2007 (Argélia) Argel é abalada por dois atentados suicidas, reivindicados pela Al-Qaeda do Magrebe: 62 mortos, entre eles 17 funcionários da ONU 24 17 de Setembro de 2008 (Iémen) Um atentado com carros-bomba faz 16 mortos na Embaixada dos EUA em Sanaa 25 20 de Setembro de 2008 (Paquistão) Um camião explode junto ao hotel Marriott de Islamabad: 60 mortos 26 1 de Maio de 2011 (Paquistão) Osama Bin Laden é morto por militares norte-americanos, em Abbottabad, no Paquistão. Segundo documentação encontrada na casa onde se escondia, estaria a preparar novos atentados nos EUA para coincidirem com o 10.º aniversário dos ataques às Torres Gémeas 13 11 DE SETEMBRO Uma década depois O 11 de Setembro de 2001 analisado dez anos depois Dez anos após os atentados da Al‑Qaeda aos Estados Unidos é possível uma análise mais clara destes acontecimentos. Para discutir as repercussões dos atentados não apenas na América, mas em todo o mundo, a flad organizou um ciclo de cinco conferências intitulado “10 Anos do 11 de Setembro”, comissariado por Sara Pina. Por Marta Rocha* “Propiciar a reflexão e o debate sobre algu‑ mas das grandes temáticas decorrentes dos atentados terroristas que, de forma tão bru‑ tal, marcaram o início do século xxi”, o objectivo das conferência sintetizado por Mário Mesquita, administrador da FLAD. Outrora the land of the free, os Estados Unidos assumiram‑se mais tarde como the land of the powerfull, tendo a implosão formal da União Soviética em 1991 cimentado esta linha de pensamento estratégico. A 11 de Setembro de 2001, e pela primeira vez na sua história, os Estados Unidos foram surpreendidos e atacados no seu território continental por um agente externo, acto que destruiu ine‑ quivocamente a intocabilidade de que os Estados Unidos pensavam ser detentores e, tal como Mário Mesquita salientou na pri‑ meira conferência do ciclo, “nos mega‑aten‑ tados dos Estados Unidos, confrontámo‑nos com o profissionalismo de uma estratégia minuciosa e cinicamente planificada”. E não apenas foram atingidos implacavel‑ mente no seu território nacional como o alvo da mensagem do grupo extremista foi o coração dos Estados Unidos, o símbolo do mundo livre e emblema do Ocidente, Nova Iorque. Contudo, o que concede uma maior brutalidade e desumanidade aos ata‑ ques, como afirmou Mário Mesquita, foi “não estarem apenas em causa símbolos, mas seres humanos”. Um mundo diferente? Na primeira conferência do ciclo, o embai‑ xador norte‑americano em Lisboa, Allan J. Katz, e Francisco Seixas da Costa, embai‑ 14 xador português em França e em 2001 Al‑Qaeda e o 11 de Setembro nasceram num chefe da diplomacia portuguesa nas Nações estranho caldo de cultura, gerado em mun‑ Unidas, em Nova Iorque, destacaram que dos por onde perpassava, como constante, é possível falar num mundo antes do 11 um permanente discurso anti‑israelita, aliás de Setembro e num mundo pós‑11 de o único verdadeiro cimento de ilusória Setembro. união dentro do mundo árabe”. Após deli‑ O embaixador nor‑ te‑americano referiu‑se ao 11 de Setembro “como o A 11 de Setembro de 2001, tipo de momento que e pela primeira vez na sua história, todas as nações têm, um momento seminal, um os Estados Unidos foram momento a partir do qual surpreendidos e atacados no tudo é diferente”. Na sua perspectiva, e numa análi‑ seu território continental por um se de primeiro plano, os agente externo, acto que destruiu atentados terroristas opera‑ ram um muito necessário inequivocamente a intocabilidade wake up call para os nor‑ de que os Estados Unidos te‑americanos, um ganho de consciência de que “não pensavam ser detentores. resta mais nenhum lugar no mundo onde a acção de pessoas determinadas em destruir possa ser near o mapa no qual surgiram os atentados impedida”. terroristas, considerou essencial destacar que Francisco Seixas da Costa focou a sua aná‑ o “11 de Setembro acabou por ser um teste lise inicial na conjuntura internacional que positivo à unidade de princípios estratégicos motivou os atentados terroristas, frisando em que assenta o mundo transatlântico”, que “esse acto havia tido lugar porque exis‑ uma vez que originou de imediato “uma tia um contexto internacional, perante o reacção muito alargada e solidária na luta qual os Estados Unidos eram vistos, em lar‑ contra o terrorismo”. gos sectores do mundo árabe e não só, como muito complacentes com a política seguida por Israel face aos territórios e aos direitos O sentido do conceito dos palestinianos”, o que justifica o aplauso de guerra contra o terrorismo com que estes actos terroristas foram aco‑ Mitchell Cohen, politólogo norte‑ameri‑ lhidos em algumas zonas da “rua árabe”. O cano e antigo editor da revista Dissent, e embaixador Seixas da Costa realçou que “a Nuno Severiano Teixeira, professor de ‘ ’ Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 11 DE SETEMBRO RUI OCHÔA Uma década depois O Grémio Literário abriu as portas ao público para as conferências sobre os dez anos do 11 de Setembro. Muita assistência, entre a qual estudantes universitários, encheu o seu salão nobre. Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Nova de Lisboa e antigo ministro da Administração Interna e da Defesa, debateram, na segunda conferên‑ cia do ciclo, a nova concepção estratégica implementada por George W. Bush (Global War on Terrorism), o seu impacto nas políti‑ cas assumidas pelos eua desde os atenta‑ dos bem como as soluções encontradas para o combate ao terrorismo nos dife‑ rentes contextos governamentais. Foi dis‑ cutida a percepção da segurança como um fenómeno global que exige medidas, estratégias e políticas articuladas entre países e a natureza do terrorismo contem‑ porâneo, cuja principal dissemelhança em relação ao dito terrorismo tradicional se prende com o alvo dos ataques civis. Mitchell Cohen analisou o conceito ino‑ vador introduzido por George W. Bush (Global War on Terror) que consistia generi‑ camente numa guerra contra “grupos terroristas de alcance global e os seus aju‑ dantes”. Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 Já Nuno Severiano Teixeira referiu que com o 11 de Setembro teve a confirma‑ ção da sua percepção de que “a segu‑ rança, a natureza da segurança tinha mudado e era absolutamente global”. A sua intervenção deu especial atenção ao eixo segurança/liberdade e à relação conflitual, porém inalienável, entre estes dois conceitos uma vez que “o terroris‑ mo neste modelo transnacional levanta problemas entre os valores fundamentais das sociedades democráticas, dois dos valores fundamentais das sociedades democráticas, que são a liberdade e a segurança […] esta relação entre a liber‑ dade e a segurança depois do 11 de Setembro alterou‑se e a questão é que para garantir a segurança, que é um direito fundamental de todos os cida‑ dãos, se calhar, houve que […] transigir, modelar alguns dos direitos, liberdades e garantias que são também eles pró‑ prios constitutivos de uma sociedade democrática”. No Afeganistão e no Iraque A terceira conferência contou com a pre‑ sença de Carlos Gaspar, do Instituto Português de Relações Internacionais (ipri), do general Loureiro dos Santos e de François Lafond, do German Marshall Fund (gmf). O principal tópico em dis‑ cussão foi o presente e o futuro do Afeganistão e do Iraque, nomeadamente o seu protagonismo na política interna‑ cional, que se constitui como um dos temas principais da agenda da ordem e da estabilidade da política mundial, bem como as mudanças e as implicações na governação destes dois países. Os orado‑ res procederam a uma análise da justifi‑ cação dos eua das estratégias militares adoptadas e da invasão do Afeganistão e do Iraque. François Lafond debruçou‑se ainda sobre a dificuldade de os países democráticos desenvolverem e operacio‑ nalizarem estratégias democráticas para travar o terrorismo. 15 11 DE SETEMBRO Uma década depois RUI OCHÔA ‘ “Fazer prevalecer o diálogo, a reflexão e o pensamento lógico sobre a irracionalidade das acções violentas” – Maria de Lurdes Rodrigues, presidente da FLAD, com Sara Pina (FLAD) e Walter Dean (jornalista) e Adelino Gomes (jornalista), da esquerda para a direita. Carlos Gaspar afirmou que os Estados Unidos da América “estiveram concen‑ trados numa questão relativamente secundária e presos em duas guerras peri‑ féricas” o que correspondeu a “um perí‑ odo atípico na política externa norte‑americana que se pode resumir em três palavras: GWOT (Global War on Terrorism), Afeganistão e Iraque”. Sob as repercus‑ sões destas duas guerras, salientou que “a invasão do Iraque provocou a pior crise da história da nato e as dificulda‑ des de missão da Aliança Atlântica no Afeganistão prolongaram as tensões entre os Aliados nos anos seguintes”. O general Loureiro dos Santos abordou essencialmente o desenvolvimento das duas guerras que sucederam o 11 de Setembro assim como as estratégias mili‑ tares “notáveis” arquitectadas pela Administração Bush nos dois palcos de guerra no Médio Oriente. O caso da invasão do Afeganistão, país onde se loca‑ lizava a Al‑Qaeda, constituiu a resposta imediata aos ataques, acto que foi pela primeira vez reconhecido pelas Nações Unidas como legítimo quando declarou que “se aplicava à situação o artigo 5.º do tratado fundador”. Uma das principais reflexões de François Lafond, do German Marshall Fund, foi “que é sempre difícil para as democracias encontrar as soluções correctas contra os terroristas de uma forma democrática”, o que nos coloca a questão de “Como é que devemos reagir face a pessoas que estão a 16 utilizar ferramentas não democráticas se queremos continuar a agir de uma forma democrática?”. Civilizações, ideologias e religiões O modo como a religião e as ideologias fundamentalistas estão associadas à géne‑ se dos atentados, a influência das crenças religiosas nas questões políticas e a rele‑ vância da fé no contexto social do mundo ocidental em comparação com o mundo árabe e islâmico foi uma temática explo‑ rada pelo reverendo Kevin Madigan, padre católico da capela do Ground Zero, António Dias Farinha, professor de estudos árabes, e Esther Mucznik, responsável da comunidade israelita em Lisboa. O padre António Rego presidiu à con‑ ferência e alertou que “A 10 anos do 11 de Setembro temos uma carga invulgar de imagens e emoções” o que torna “difícil perceber e aprofundar uma reflexão sere‑ na sobre o lugar das civilizações, ideolo‑ gias e religiões”. Kevin Madigan referiu que o ataque às Torres Gémeas em Nova Iorque para os terroristas “não foi apenas um ataque a um símbolo do poder americano mas também o esmagamento de um falso ídolo, de uma representação blasfémica de uma Meca de comércio”. Relativamente à sua experiência pessoal na manhã de 11 de Setembro de 2001, o reverendo contou que após o choque inicial nas ruas da “É sempre difícil para as democracias encontrar as soluções correctas contra os terroristas de uma forma democrática”, o que nos coloca a questão de “Como é que devemos reagir face a pessoas que estão a utilizar ferramentas não democráticas se queremos continuar a agir de uma forma democrática?”. ’ François Lafond, German Marshall Fund (gmf) cidade que nunca dorme, a sua atenção focou‑se em “procurar os feridos a fim de ser de alguma ajuda”. António Dias Farinha frisou que os aten‑ tados do 11 de Setembro exigem “uma análise da ideologia desse grupo [da Al‑Qaeda] e o entendimento dos pressu‑ postos que levaram à sua larga aceitação em lugares e países muito diversos e à programação de numerosos atentados”. Porém, é fundamental não homogeneizar o mundo árabe como uma amálgama de fundamentalistas radicais adeptos de atro‑ cidades como a perpetrada pelo grupo terrorista dirigido por Bin Laden. Esther Mucznik pensa que “o mundo muçulmano foi a principal vítima do 11 de Setembro e de Bin Laden”, uma vez que “o terrorismo causou um imenso desgaste da imagem do mundo islâmico que se reflecte no medo e na rejeição de que é frequentemente alvo”. Na comunicação social e na opinião pública O ciclo foi encerrado com Abderrahim Foukara, director da Al Jazeera em Washington, Wally Dean, do Committee of Concerned Journalists, e Adelino Gomes, professor e jornalista, que deba‑ teram a cobertura mediática e o impacto do 11 de Setembro na opinião pública. Maria de Lurdes Rodrigues, presidente da flad, reiterou o empenho da Fundação, que este ciclo de conferências sobre os Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 11 DE SETEMBRO Uma década depois atentados do 11 de Setembro manifesta, nas a cores”. Até o jornal desportivo Record “de fazer prevalecer o diálogo, a reflexão assinalou no seu editorial “a urgência de e o pensamento lógico, sobre a irraciona‑ construir um mundo mais justo e de lidade de acções violentas”. distribuir melhor a riqueza” como forma Abderrahim Foukara tocou num ponto de evitar “o desespero”. A cobertura sensível ao referir não ter a certeza em mediática foi intensa nos meios televisi‑ concordar com quem frequentemente vos com, por exemplo, a rtp a prolongar afirma que “os ataques de 11 de Setembro “o seu noticiário da hora de almoço até mudaram o mundo irrevogavelmente”, ao jornal da hora de jantar… 7 horas, uma vez que “muitos dos problemas do 59 minutos e 52 segundos”. mundo continuam na mesma se não fica‑ * Aluna finalista do Curso de Ciências da Comunicação ram ainda piores”. Wally Dean afirmou que “o jornalismo da Universidade Nova e estagiária da FLAD para a área da alterou‑se dramaticamente na última déca‑ Comunicação da […] mas acredito que essa alteração se deve a forças muito maiores e que ocorreria independentemente dos ata‑ ques do 11 de Setembro”. A Al‑Qaeda e o 11 de Setembro Adelino Gomes referiu a nasceram num estranho caldo extensiva cobertura mediáti‑ ca dada aos acontecimentos de cultura, gerado em mundos nos jornais portugueses, com por onde perpassava, como o Público a “cobrir” o tema na primeira página “entre 12 de constante, um permanente Setembro e 30 de Dezembro”, discurso anti‑israelita, aliás o único e com a decisão da Visão de “fazer capa semana após verdadeiro cimento de ilusória semana, durante três meses união dentro do mundo árabe. ininterruptos – 14 semanas”, e com o Correio da Manhã a Seixas da Costa, embaixador fazer “uma edição especial logo no dia 11, com 16 pági‑ ‘ RUI OCHÔA ’ 11 de Setembro Dez anos depois em livro Textos dos vários especialistas que participaram nestas conferências da FLAD foram publicados em livro pela Almedina e apresentados nos seguintes capítulos: 11 de Setembro: um mundo diferente? • Mário Mesquita Arcaísmo fundamentalista e modernidade tecnológica • Allan J. Katz Um mundo diferente • Francisco Seixas da Costa O 11 de Setembro na história contemporânea O SENTIDO DO CONCEITO DE GUERRA CONTRA O TERRORISMO • Mitchell Cohen A guerra contra o terrorismo • Nuno Severiano Teixeira O terrorismo transnacional AFEGANISTÃO E IRAQUE • Carlos Gaspar Dez anos depois • José Loureiro dos Santos • Os Estados Unidos e as duas guerras do Afeganistão François Lafond Democracia e terrorismo CIVILIZAÇÕES, IDEOLOGIAS E RELIGIÕES • António Rego • • • Elementos comuns na procura do transcendente António Dias Farinha A evolução política do moderno islão Esther Mucznik O 11 de Setembro e o “choque de civilizações” Kevin Madigan Uma voz da rua OPINIÃO PÚBLICA E COMUNICAÇÃO SOCIAL • Maria de Lurdes Rodrigues • • Na discussão do tema “11 de Setembro: Um mundo diferente”. Na primeira fila, da esquerda para a direita, o embaixador António Monteiro e o presidente do Grémio, José Macedo e Cunha. Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 Fazer prevalecer o diálogo Abderrahim Foukara Um património civilizacional comum Adelino Gomes 11 de Setembro revisitado • Walter C. Dean O 11 de Setembro mudou o jornalismo norte‑americano? 17 11 DE SETEMBRO Uma década depois [ visto pelos estudantes universitários ] Todas as conferências organizadas pela FLAD no âmbito dos dez anos do 11 de Setembro foram participadas por alunos de várias universidades portuguesas que fizeram trabalhos sobre o tema. Os melhores textos são publicados nas páginas seguintes. Um mundo diferente “Todos os países têm um momento em que tudo passa a ser diferente.” Por Fábio Rodrigues e João Miranda* Quando Allan Katz, embaixador dos Estados Unidos da América ( EUA) em Portugal, materializou a sua convicção sobre o instante que alterou o curso do seu país, estava longe de imaginar que, menos de um mês depois, toda a dis‑ cussão em torno do 11 de Setembro voltaria às primeiras páginas dos jornais, depois da captura de Bin Laden. Não que, no entender de Katz, fosse a Al‑Qaeda, e muito menos o seu líder, a grande preocupação com que a Administração Obama lidava naquele dia. Dez anos são muito tempo. E como o embaixador fez questão de sublinhar, o mundo conheceu novas e extasiantes realidades. Foi, de resto, esta a ideia que atraves‑ sou toda a discussão que a Fundação Luso‑Americana levou ao Grémio Literário de Lisboa, no primeiro de um ciclo de seis conferências em torno do décimo aniversário do ataque ao World Trade Center (wtc) e ao Pentágono. Mas se o mundo está diferente, tudo se deve àquele dia de 2001, que apanhou toda a América de surpresa. “Acreditávamos, inocentemente, que nada nos podia atin‑ gir”, lembra o embaixador, para quem o ataque se traduziu num duro despertar para a questão da segurança global. “Hoje, não resta um lugar seguro no mundo.” Na opinião de Katz, tratou‑se de um despertar difícil com um caminho erran‑ te e, sobretudo, errado. “Antes, íamos para o aeroporto e não tínhamos que tirar os sapatos.” Agora tudo se trans‑ formou: “A América tornou‑se um país preocupado com a segurança de forma incompatível com os valores‑base da sociedade.” 18 Fria, aproximar Washington e Moscovo – Putin consentiu a presença americana em águas russas –, eles tiveram também como resultado a fragmentação do apoio europeu. “A União Europeia estava expectante e existia ainda uma falta de eficácia nas relações entre a Europa e os países árabes, com a falência do Pacto de Barcelona”, considerada a primeira tentativa séria de criar um marco insti‑ tucional nas relações entre a União Europeia e os países árabes. Para Seixas da Costa, as reper‑ cussões acabaram por fragilizar “Acreditávamos, inocentemente, o peso simbólico dos ataques ao wtc. Por um lado, “o trauma que nada nos podia atingir”, do 11 de Setembro foi atenua‑ lembra o embaixador, para do pela imensidão de mortes iraquianas e pela violação dos quem o ataque se traduziu direitos humanos”; por outro num duro despertar para lado, as consequências do con‑ flito revelaram‑se contraditó‑ a questão da segurança global. rias: “do vazio do Iraque “Hoje, não resta um lugar emergiu o Irão”, defende o embaixador português. seguro no mundo.” Para Seixas da Costa, o Irão, juntamente com a Arábia Saudita, assumem‑se como o cerne do que deve ser hoje a Também na mesa do debate, Seixas da discussão internacional no plano árabe. Costa, nessa altura o representante por‑ Com efeito, refere o actual embaixador tuguês na Assembleia das Nações Unidas português em Paris, “ninguém ousa ter ( onu) e actual embaixador português uma palavra sobre a ditadura da Arábia em Paris, vai mais longe nesta análise. Saudita, por causa do petróleo”. Em seu entender, “existia uma postura Por seu lado, Allan Katz, está mais opti‑ conservadora e agressiva na Administração mista em relação ao mundo muçulmano. americana” que rompeu com todo o Os acontecimentos no Magrebe, no Egipto plano ocidental até então estabelecido. e na Síria são uma questão de valores Se, por um lado, os acontecimentos de humanos: “Trata‑se de países que escolhe‑ 11 de Setembro conseguiram, depois ram a democracia.” Contudo, alerta para a de quarenta e quatro anos de Guerra possibilidade do crescimento dos movi‑ Mas, para o embaixador americano, a maior inflexão no caminho que os eua percorreram deu‑se no plano interna‑ cional. Se o ataque ao Afeganistão se afigurava, então, como “a única respos‑ ta possível”, a Guerra do Iraque derivou de informações erradas da Administração republicana. “Com os democratas no poder, o Iraque não aconteceria, Obama tentaria uma solução multilateral” – considerou Allan Katz. ‘ ’ Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 11 DE SETEMBRO Uma década depois mentos radicais na zona, uma vez que, para o embaixador, os eua estão “sobretudo preocupados com a questão da segurança”. Movimentos radicais que Seixas da Costa e Allan Katz são unânimes em considerar que baseiam toda a sua acção no apoio à causa palestiniana, no ataque a Israel e, por arrasto, à complacência norte‑americana. Mas não se pense que é no islamismo que reside o núcleo ideológico do extre‑ ‘ Na opinião de Katz, “A América tornou‑se um país preocupado com a segurança de forma incompatível com os valores‑base da sociedade.” mismo árabe. Katz faz questão de deixar isso claro. “A problemática da Mesquita no Ground Zero é uma discussão infeliz. Não foi o mundo muçulmano que pro‑ vocou o ataque”, defende o embaixador americano. Mas acrescenta: “Acreditamos na liberdade religiosa e somos tolerantes, mas não em todas as situações.” * Alunos do 2.º ciclo em Comunicação e Jornalismo, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra RUI OCHÔA ’ Para Seixas da Costa (embaixador português em Paris e em 2009 em Nova Iorque) “as repercussões acabaram por fragilizar o peso simbólico dos ataques ao WTC”. Ao lado de Seixas da Costa, Mário Mesquita (administrador da FLAD) e Allan Katz (embaixador dos EUA em Lisboa). Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 19 11 DE SETEMBRO Uma década depois [ visto pelos estudantes universitários ] Um novo conceito de terrorismo Mitchell Cohen, cientista político e antigo co‑editor da revista Dissent, e Nuno Severiano Teixeira, ministro da Administração Interna de Portugal na altura do ataque de 11 de Setembro de 2001, foram convidados a reflectir sobre a “guerra ao terror”, dez anos volvidos sobre esta data. Num debate presidido por Mário Mesquita, membro do Conselho Executivo da FLAD, e moderado por Abigail Dressel, representante da Embaixada dos EUA. Por Cátia Soares e Joana Isabel Carreto* Era terça‑feira, 11 de Setembro de 2001. A semana começara com o regresso de milhares de alunos portugueses às aulas. O País preparava‑se para mais um duelo entre o S. L. Benfica e o F. C. Porto ainda no antigo Estádio da Luz. A terceira edição do polémico “Big Brother” acabara de estrear na tvi. Havia poucos meses que a ponte de Entre‑os‑Rios ruíra, fazendo tre‑ mer a Nação e o Governo chefiado por António Guterres. Em Agosto, um avião vindo do Canadá aterrara de emergência no aeroporto das Lajes por falta de com‑ bustível. O País preparava‑se para se des‑ pedir do velhinho escudo e adoptar a moeda única, efectivando a União Europeia. A palavra “recessão” ecoava nos noticiá‑ rios. O mundo estava a mudar. Em Nova Iorque, o dia 11 de Setembro amanheceu límpido. Era apenas mais um dia de trabalho. Mas, para os Estados Unidos e o resto do mundo, nada mais seria o mesmo. Quatro aviões. Duas torres. O Pentágono. Mais de três mil mortos. Os números não dizem tudo sobre o horror das imagens do maior ataque terrorista de sempre, semelhantes aos efeitos especiais de um filme de Hollywood. O que estava em causa era não só as perdas, incalculáveis, mas também o simbolismo da acção. Em poucas horas, os ícones económicos, mili‑ tares e políticos da maior potência mun‑ dial foram atacados, mostrando a sua vul‑ nerabilidade. Ainda antes do fim O terrorismo não é um fim em si, do dia, a autoria dos mas um meio para atingir outros atentados foi atribuída a uma organização de objectivos, nem sempre claros. [...] terroristas fundamen‑ E combater um meio não suprime talistas islamitas, Al‑Qaeda, personaliza‑ o problema dos fins. da na figura do seu líder, Osama bin 2001 – Odisseia no Espaço, a obra de Clarke Laden. Bush declarava uma “guerra ao e o filme de 1968, preconizaram que este terror” de contornos difusos a um inimi‑ seria o ano do início das viagens turísti‑ go transnacional. cas espaciais. Apareceu a Wikipedia, o Uma década volvida, tudo mudou. primeiro filme de Harry Potter e o Windows Existe um “antes” e um “depois”, uma XP. Por terras norte‑americanas, George marca que assinala a vermelho sangue a W. Bush subira ao poder em Janeiro, após data dos atentados. O líder da Al‑Qaeda uma disputa polémica que deu mais está morto. Mas a luta contra o terroris‑ votos populares ao candidato Al Gore. mo não tem fim à vista. ‘ ’ 20 Por não estar prevista, a morte de Bin Laden veio, de certa forma, boicotar aqui‑ lo que estava delineado – a figura do líder da Al‑Qaeda e a organização em si torna‑ ram‑se os temas‑chave deste debate. Mitchell Cohen referiu que o conceito de terrorismo, tal como o de democracia, é utilizado indiscriminadamente na actuali‑ dade. O que o distingue de outras formas de violência (como a guerra ou o crime) é o facto de qualquer cidadão ser um pos‑ sível alvo. Nuno Severiano Teixeira acres‑ centou que o terrorismo do século xxi visa “a maximização da capacidade de causar sofrimento”. O grande impacto das acções terroristas torna‑as simbólicas e reprodu‑ zidas mediaticamente por todo o mundo, criando uma atmosfera de terror. A questão pode enquadrar‑se como meios e fins. O terrorismo não é um fim em si, mas um meio para atingir outros objectivos, nem sempre claros. Até onde os terroristas estão dispostos a ir e até onde se torna justificável chegar para travá‑los são perguntas cuja resposta não é consensual entre os governos, entre os países e entre os cidadãos. E combater um meio não suprime o problema dos fins. Nuno Severiano Teixeira considera que o 11 de Setembro mudou a natureza da segurança e do terrorismo, globalizando ‑os. O que a nova noção de terror põe em causa já não é a disponibilidade para matar, mas para morrer por parte daque‑ les que se entregam a uma causa, levando com eles milhares de inocentes. O antigo ministro remete ainda para a surpresa que este atentado foi para toda a gente – ele Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 11 DE SETEMBRO Uma década depois me contornos de mártir, revestindo‑se de um simbolismo mítico que encoraja os seus seguidores. O politólogo alerta ainda para as possí‑ veis represálias que se poderão vir a sen‑ tir, provocadas por uma organização que promete vingança. Além disso, acentua a improbabilidade de se saber aquilo que realmente vai acontecer: “Eles [terroristas] não me vão ligar!”, afirmou com humor à pergunta de um dos participantes no debate, que foi assistido por estudantes de Ciências da Comunicação e de Ciência Política da Universidade Nova de Lisboa. Mas que modelo conceptual deve ser utilizado para lidar com o terrorismo? Um modelo criminal, de matriz na justiça, ou estratégico, fundado na guerra? Estas são questões que, perante a inevitabilidade do seguimento da “guerra ao terror”, impor‑ ta pensar e discutir. Cohen salientou que a abordagem adop‑ tada pelo Presidente Barack Obama pro‑ cura distinguir entre a Al‑Qaeda e o mundo árabe e islâmico, ao qual “tem tentado estender a mão”, nomeadamente no seu célebre discurso no Cairo. Certo é que a popularidade do Presidente nor‑ te‑americano cresceu vertiginosamente junto da população nos dias que se segui‑ ram à execução de Bin Laden. O cientista político alerta, porém, que as questões internas e a resposta a pos‑ síveis retaliações podem enegrecer o caminho para a reeleição. Os recentes acontecimentos e a forma como o Governo norte‑americano irá lidar com esta nova forma de terrorismo, global e organizada em rede, são talvez os desafios actuais mais determinantes do futuro político de Barack Obama. Bin Laden pode estar morto, mas a Al‑Qaeda continua viva. O principal rosto da guerra desapareceu e a questão reside agora nos contornos obscuros desta “guer‑ ra ao terror” com fim indeterminado. Uma década depois, as perguntas continuam a ultrapassar largamente as respostas. E, em Nova Iorque, o vazio deixado pelas duas torres continua tão visível como naquela negra manhã de Setembro. * Alunas do 1.º ano de Ciências da Comunicação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa RUI OCHÔA próprio, quando soube, ainda pensou em acabar de almoçar antes de responder ao apelo de António Guterres, então primei‑ ro‑ministro, para que fosse rapidamente para o Palácio de Belém – pois só após a visualização das imagens do acontecimen‑ to conseguiu ter noção das repercussões que, através dele, o mundo iria sofrer. O terrorismo, fenómeno antigo na his‑ tória da humanidade, exerce‑se agora em rede, com grande disponibilidade de meios e alvos indiscriminados. Valores essenciais são postos em causa, criando necessidade de articular segurança interna e externa. Em nome deste valor, algumas liberdades são sacrificadas num combate a um inimigo sem rosto. A morte recente do dirigente da Al‑Qaeda reveste‑se, para Severiano Teixeira, fundamentalmente de simbo‑ lismo, pois a estrutura horizontal da organização confere‑lhe autonomia para continuar a funcionar. Mitchel Cohen concordou, considerando, porém, que os pretendentes ao vazio deixado por Bin Laden não possuem o carisma do líder. Depois da morte, a sua figura assu‑ Mitchell Cohen, professor em Nova Iorque, e Nuno Severiano Teixeira, professor na Universidade Nova, participaram na conferência dedicada ao sentido do conceito de guerra contra o terrorismo. Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 21 11 DE SETEMBRO Uma década depois [ visto pelos estudantes universitários ] Afeganistão e Iraque: a global war on terrorism A conferência “11 de Setembro: O Afeganistão e o Iraque” mostra‑nos como um assunto americano se tornou uma guerra global. Por Raquel Ubach Trindade* No Grémio Literário, esteve em debate “11 de Setembro: O Afeganistão e o Iraque”, em que se pretendeu analisar o presente e o futuro destes dois países face às guer‑ ras neles travadas. O general José Loureiro dos Santos, um dos oradores, caracterizou as duas guerras sucessivas no Afeganistão e no Iraque como “consequência directa do ataque do dia 11 de Setembro”, faseando os desen‑ laces das guerras. A primeira fase, afirma, inicia‑se com o lançamento da guerra ao Afeganistão jus‑ tificado pela nato (invocando o artigo 5.º do Tratado de Washington), ao que acorrem 14 dos 19 aliados da nato com forças armadas. O general Loureiro dos Santos, apesar de reconhecer o direito dos Estados Unidos em contra‑atacar após o atentado, confessa que “Não houve a habi‑ lidade de malhar o ferro enquanto estava quente para trabalhar a vontade dos ame‑ ricanos”, enquanto os Estados Unidos entenderam não ser necessário avançar com mais forças militares, pois o assunto estaria resolvido, o exército afegão trei‑ nava. Ainda nesta fase, em 2003, os eua invadem o Iraque segundo razões que mais tarde se provaram inexistentes – armas de destruição maciça e ligações à Al‑Qaeda – com a intenção de tomarem uma posição mais central na zona e con‑ trolarem o petróleo. Esta invasão carece de suporte político uma vez que a nato fica de pé atrás. Três semanas depois o regime político iraquiano é baqueado e surgem insurreições. 22 A segunda fase estabelece um pós‑domí‑ nio político no Afeganistão com a disper‑ são dos talibãs, principalmente para o Paquistão. O general Loureiro dos Santos afirma que “as forças americanas estavam distraídas no Iraque”, não sobrando forças para enviar para o Afeganistão, o que resulta no regresso dos talibãs que iniciam uma política de domínio de territórios e de actos terroristas. No Iraque, o reforço das milícias xiitas confere‑lhes um poder formidável, salientando o general que “o Estado iraquiano xiitizou‑se com milí‑ cias”, transformando‑se de tal maneira que o Presidente Bush não tinha possibi‑ lidade de aumentar as forças. a questão das guerras”. Concluindo a sua participação nesta conferência, o general Loureiro dos Santos afirmou que a solu‑ ção do problema no Afeganistão passa pelo Paquistão. O orador Carlos Gaspar, do Instituto Português de Relações Internacionais (ipri), centrou a sua participação em qua‑ tro palavras, como ele mesmo resume: Global War on Terrorism. Esta é a política exter‑ na dos norte‑americanos que, defende Carlos Gaspar, “estiveram os últimos 10 anos presos em questões secundárias”, pagando o alto preço da política seguida que se traduziu na crise transatlântica e numa crise de legitimidade com a oposi‑ ção nas democra‑ cias aliadas à política americana – deixaram o O general José Loureiro dos Santos [...] campo livre para uma emergência caracterizou as duas guerras sucessivas das novas potências no Afeganistão e no Iraque como internacionais. O papel dos ame‑ “consequência directa do ataque ricanos face aos do dia 11 de Setembro”. atentados de 11 de Setembro reflec‑ tiu‑se no que Carlos A terceira e quarta fase englobam a reti‑ Gaspar, citando Philip H. Gordon, carac‑ rada dos norte‑americanos dos países teriza como “a guerra certa e a guerra invadidos e o fim da guerra. Estas guer‑ errada”. A guerra certa é vista como a ras conduziram os eua a um enfraque‑ resposta ao atentado às Torres Gémeas, cimento natural, tanto militar quanto a guerra contra o terrorismo da Al‑Qaeda. económico, afirmando o general que A guerra errada é a Guerra do Iraque – linha “hoje em dia os Estados Unidos gastam que queria democratizar o Médio Oriente. por mês 10 mil milhões de dólares com Estes anos atípicos terminam com a eleição ‘ ’ Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 11 DE SETEMBRO Uma década depois ‘ O assassinato de Bin Laden tornou possível A morte política da Al‑Qaeda uma tripla negociação, em movimento, com o e a sua separação dos talibãs deixa e o Irão, com a o caminho livre para uma negociação Paquistão Índia (estabelece relações importantes com os directa entre os americanos Estados Unidos e com o e os talibãs. Irão) e em terceiro lugar com a China (principal aliado do Paquistão). A morte política da Al‑Qaeda e a sua separação dos tali‑ bãs deixa o caminho livre para uma negociação presidencial de 2008, confessando Carlos directa entre os americanos e os talibãs. Gaspar que “a política externa de Obama é “É difícil para as democracias encon‑ desfazer tudo o que o antecessor fez”. Na trarem uma solução democrática para o narrativa de Philip H. Gordon a retirada terá terrorismo que não usa maneiras demo‑ de ser feita mas uma de cada vez: primeiro cráticas de agir”, afirma François Lafond, o Iraque e depois o Afeganistão. o terceiro orador desta conferência. * Estudante do Curso de Comunicação Social e Cultural da Universidade Católica Portuguesa RUI OCHÔA ’ Lafond declara também que não se trata de uma luta entre dois blocos, nem sequer da conquista de territórios, mas sim da implantação do sistema capita‑ lista. A responsabilidade da luta contra o terrorismo não é de um só país – Sarkozy apoia Obama e segue a mesma linha de luta contra o terrorismo inter‑ nacional. A mesa moderada por Rui Vallera, sub‑ director da Fundação, finalizou a confe‑ rência com um espaço para debate em que se levantaram questões como o con‑ flito israelo‑palestiniano. A sessão presi‑ dida por Rui Machete, ex‑presidente da flad, terminou com a expectativa das conferências que se seguiriam no ciclo em questão. Da esquerda para a direita: Carlos Gaspar (IPRI), general Loureiro dos Santos, Rui Machete (antigo presidente da FLAD), François Lafond (German Marshal Fund) e Rui Vallêra (FLAD) discutiram a situação no Afeganistão e no Iraque. Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 23 11 DE SETEMBRO Uma década depois [ visto pelos estudantes universitários ] Deus não se mete em religiões Por Ana Curtinhal* e da religião na origem do atentado às Torres Gémeas. Esther Mucznik, vice‑presidente da Comunidade Israelita de Lisboa e fun‑ dadora da Associação Portuguesa de Estudos Judaicos, iniciou as intervenções afirmando que “o século xxi começa com o 11 de Setembro”, tal é a impor‑ tância deste marco. A instrumentalização da religião, o crescimento de forças fun‑ damentalistas e o extremismo religioso em que política e religião se fundem num desfecho de violência, foram as questões abordadas. “O mundo muçul‑ mano foi a principal vítima do 11 de Setembro”, comentou, uma vez que a facção extremista não é representativa de todo o povo árabe e islâmico. O islão RUI OCHÔA Miguel Vaz, subdirector da flad e mode‑ rador do debate, iniciou a sessão dedi‑ cada ao tema “11 de Setembro: Civilizações, Ideologias e Religiões”. Na sala ladeada de pesados armários, coro‑ ados com bustos de Eça e Camilo, com os seus tectos altos e grandes janelas por onde passava a luz pálida do dia chuvo‑ so, falou‑se do papel do fundamentalismo Kevin Madigan, padre de uma das capelas do Ground Zero, atingida nos ataques, deixou um relato comovente dos acontecimentos. Da esquerda para a direita: Miguel Vaz (FLAD), Esther Mucznik (vice‑presidente da Comunidade Israelita de Lisboa), António Rego (cónego), Kevin Madigan (padre) e António Dias Farinha (professor de Estudos Árabes e Islâmicos). 24 Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 11 DE SETEMBRO RUI OCHÔA Uma década depois “O mundo muçulmano foi a principal vítima do 11 de Setembro, já que a facção extremista não é representativa de todo o povo”, foi uma das ideias em debate nesta conferência. ‘ O islão é compatível com o exercício da democracia, apontando a Turquia como um caso de sucesso devido à autonomia da esfera política e à liberdade Esther Mucznik, Comunidade Israelita de Lisboa religiosa. ’ é compatível com o exercício da demo‑ cracia, apontando a Turquia como um caso de sucesso devido à autonomia da esfera política e à liberdade religiosa. O exemplo turco também foi mencio‑ nado pelo professor catedrático António Dias Farinha, director do Instituto de Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade de Lisboa, no seu apaixo‑ nado enquadramento histórico dos acontecimentos que culminaram nesse dia de Setembro de 2001. Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 Esta iniciativa contou também com a presença do católico Kevin Madigan, reve‑ rendo da capela do Ground Zero. O seu sentido relato dos acontecimentos que viveu no fatídico dia que mudou o mundo impressionou a audiência. Recordou epi‑ sódios como o pedido de desculpas de um médico judeu que rasgou as toalhas do altar para fazer torniquetes para os feridos, as pessoas que saíram das suas casas para acudir e dar água aos feridos, os “relatórios de finanças e fotografias de família” que voavam pelo céu, espalhan‑ do‑se pelas ruas. O padre Madigan propôs um olhar diferente sobre os acontecimen‑ tos: tendo descoberto que o edifício do World Trade Center, no seu interior, imi‑ tava dois locais em Meca, sugeriu que uma possível motivação passe por “esmagar um falso ídolo, uma Meca do comércio”. No fim, salientou a bondade dos nova‑ior‑ quinos que encontraram “uns nos outros a sua força”. A penúltima conferência, que ficou mar‑ cada pelo tom positivo, pela perspectiva de entendimento e paz, com o Cónego António Rego questionando se “vale a pena a distância que nos separa?”, acabou em tom de brincadeira com uma anedo‑ ta sobre um homem que questiona Deus sobre qual a religião verdadeira tendo como resposta: “Não sei, não me meto em religiões”. * Aluna do Curso de Ciências da Comunicação e Cultura da Universidade Lusófona 25 11 DE SETEMBRO Uma década depois [ visto pelos estudantes universitários ] O atentado visto pela imprensa Maria de Lurdes Rodrigues, presidente da flad, iniciou a última das cinco conferências sobre os dez anos do 11 de Setembro sublinhando que este ciclo de debates foi uma forma de a Fundação “afirmar o seu desejo e a sua vontade de fazer prevalecer o diálogo, a reflexão, o pensamento lógico sobre a irracionalidade de acções violentas e contribuir para valorizar as ideias e a razão no debate político e, dessa forma, valorizar a democracia”. Por Catarina Martins* O primeiro orador foi Adelino Gomes, que fez uma breve reflexão sobre a forma como o campo jornalístico respondeu aos múltiplos desafios que o mundo enfrentou desde o 11 de Setembro. pelas novas tecnologias, mas também à perda de credibilidade de alguns jornais e jornalistas. No entanto, e centrando‑se nos media portugueses, elogiou o traba‑ lho desenvolvido por parte de alguma imprensa escrita na cobertura do 11 de Setembro de 2001. Publicações como o Público e a Visão mobi‑ Os meios de comunicação tradicionais lizaram grande parte dos seus recursos e estão a viver “uma crise dramática”, capacidades para dar que se deve não apenas às vantagens ao espaço público uma multiplicidade oferecidas pela internet e pelas novas de olhares sobre o tecnologias, mas também à perda que se passava, diz. Adelino Gomes viu de credibilidade de alguns jornais algum desse “fulgor e jornalistas. Adelino Gomes jornalístico” na cober‑ tura das revoltas no mundo árabe, no iní‑ cio deste ano. Mas, O jornalista referiu que, no campo medi‑ afirma, “depois da queda de Ben Ali, após ático, “o início e o fim deste ciclo de dez a demissão de Mubarak e desde o momen‑ anos é delimitado por dois marcos sim‑ to em que Khadafi susteve o avanço dos bólicos: o ecrã da televisão ao longo rebeldes, deixámos de ter os nossos olhos daquela terça‑feira, 11 de Setembro de e ouvidos no terreno”. 2001, e as redes sociais, em particular os Num momento em que se fala de um 140 caracteres dos tweets de um desconhe‑ “next journalism, um jornalismo por‑ cido cidadão de Abbotabad através dos vir”, Adelino Gomes considera funda‑ quais o mundo soube da operação que mental que os “utilizadores tenham uma levou à morte de Bin Laden”. perspectiva crítica” para que as poten‑ Nas suas palavras, os meios de comu‑ cialidades da internet, enquanto força nicação tradicionais estão a viver “uma transformadora do campo jornalístico, crise dramática”, que se deve não apenas possam ser usadas. Utilizadores capazes às vantagens oferecidas pela internet e de exigir um “jornalismo que forneça ‘ ’ 26 informação testada, investigada, organi‑ zada, confirmada, analisada e apresen‑ tada de forma credível”, conclui. O 11 DE SETEMBRO MUDOU A AMÉRICA, MAS NÃO MUDOU O JORNALISMO AMERICANO “Terá o 11 de Setembro e as reacções que se lhe seguiram alterado os processos ou o conteúdo dos meios de comunicação noticiosos nos Estados Unidos?” – foi a pergunta colocada por Wally Dean, jorna‑ lista e director do Committee of Concerned Journalists. A resposta foi simples: “Nem por isso.” O norte‑americano lembrou que o impac‑ to dos atentados terroristas de 2001 na opi‑ nião pública americana é frequentemente considerado equivalente ao impacto de Pearl Harbor ou do assassinato de Kennedy. O ataque japonês à base americana no Pacífico concentrou as famílias em torno da rádio. A morte do Presidente deixou o país colado à televisão e tornou Walter Cronkite, o célebre pivô da cbs, na pessoa em quem os americanos mais confiavam. No entanto, o 11 de Setembro não foi responsável por nenhuma mudança sig‑ nificativa na forma de fazer jornalismo. “Forças mais poderosas, incluindo opiniões acerca daquilo que as audiências querem, e também o efeito disruptivo das novas tec‑ nologias foram demasiado fortes. O 11 de Setembro pode ter mudado a América, mas fez muito pouco para mudar o jornalismo americano”, afirma Wally Dean. Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 11 DE SETEMBRO Uma década depois ser consideradas simples vírgulas na História”. O jornalista considera que, apesar do 11 de Setembro e do debate sobre as suas causas e consequências, “os seres humanos têm a oportunidade de pensar sobre o futuro e voltar à crença de uma herança civilizacional comum, mesmo numa altu‑ ra em que os sons de tiros e de explosões os empurrem na direcção oposta”. O jornalista marroquino expressou a sua felicidade por estar em Portugal e afirmou estar convencido de que os povos do Médio Oriente e do Norte de África res‑ ponsáveis pela “Primavera Árabe” irão concentrar a sua atenção nas experiências portuguesa e espanhola de transição para a democracia. * Aluna do 2.º ano do curso de Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social do Instituto Politécnico de Lisboa ‘ Entusiasmado com os recentes acontecimentos no mundo árabe, o jornalista marroquino [Abderrahim Foukara] lembra que a região vive um período único em que árabes e não‑árabes lutam pela liberdade e pela dignidade – valores que os americanos compreendem bem. ’ RUI OCHÔA UMA HERANÇA CIVILIZACIONAL COMUM Abderrahim Foukara, chefe da delegação americana da Aljazeera em Washington, afirmou não estar totalmente convencido de que o 11 de Setembro tenha mudado o mundo de forma irrevogável. Entusiasmado com os recentes aconte‑ cimentos no mundo árabe, o jornalista marroquino lembra que a região vive um período único em que árabes e não‑árabes lutam pela liberdade e pela dignidade – valores que os americanos compreendem bem, afirma. Para Foukara, “a forma pacífica e cria‑ tiva como milhões de egípcios tentaram recuperar o controlo do seu destino polí‑ tico e a forma como milhões de ameri‑ canos receberam e celebraram a notícia da morte de Bin Laden, não podem No âmbito das conferências foi inaugurada uma exposição, cedida pela Embaixada dos EUA em Lisboa, de edifícios emblemáticos de Nova Iorque. Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 27 11 DE SETEMBRO Uma década depois Exposição “Transições: Honrar o Passado, Seguir em Frente” Obras da Colecção FLAD assinalam o futuro, depois do 11 de Setembro Inaugurada a 11 de Setembro de 2011, a exposição “Transições: Honrar o Passado, Seguir em Frente” assinalou dez anos dos atentados às Torres Gémeas. RUI OCHÔA Por ana maria silva* Abertura da exposição de arte comemorativa promovida pela FLAD em parceria com a Embaixada americana. Da esquerda para a direita: Maria de Lurdes Rodrigues, presidente da FLAD, Allan Katz, embaixador dos EUA em Portugal, Paulo Portas, ministro português dos Negócios Estrangeiros, e Luís Santos Ferro, membro da administração da Fundação Arpad Szenes‑Vieira da Silva. 28 Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 11 DE SETEMBRO “Assinalamos hoje dez anos sobre os actos terroristas de 11 de Setembro. Também hoje – com a inauguração da exposição ‘Transições: Honrar o Passado, Seguir em Frente’ – prestamos homena‑ gem às vítimas do terrorismo e olhamos o futuro, resolutos, esperando que a pró‑ xima década seja tão vibrante e cheia de esperança como as obras de arte que hoje aqui vão ver.” Foram estas as primeiras palavras de Allan Katz, embaixador dos eua em Portugal, na inauguração da exposição “Transições: Honrar o Passado, Seguir em Frente”, que a Embaixada norte‑america‑ na promove em parceria com a Fundação Luso‑Americana e com a Fundação Arpad Szenes‑Vieira da Silva (fasvs). Com o objectivo de assinalar os dez anos cumpridos desde 11 de Setembro de 2001, a mostra é composta integral‑ mente por obras da colecção de arte da flad, entre as quais se encontram obras de Álvaro Lapa, Fernando Calhau, Joaquim Bravo e José Pedro Croft, artistas portu‑ gueses, e também do norte‑americano Joel Shapiro. Focada no conceito de memória e de transição, a mostra evoca uma reflexão sobre as transformações que o mundo tem atravessado desde o 11 de Setembro de 2001 – como as pessoas mudaram a sua forma de estar no mundo e de enca‑ rar o futuro. Assumindo‑se como uma homenagem ao passado, a exposição pretende incentivar uma nova forma de ver o futuro, uma noção reforçada pela presidente da flad , Maria de Lurdes Rodrigues: “mobilizar a memória é hoje indispensável para promover o entendi‑ mento dos trágicos acontecimentos que se assinalam, condição necessária para se poder seguir em frente, construindo um futuro que seja mais do que um destino.” Dadas as motivações na génese desta iniciativa e a carga simbólica da expo‑ sição, a sessão de abertura contou com a presença de convidados como Paulo Po r t a s , m i n i s t ro d o s N e g ó c i o s Estrangeiros, Álvaro Pereira, ministro da Economia, entre vários outros represen‑ tantes oficiais, cujas intervenções evi‑ denciaram a relevância desta homenagem e o impacto que o 11 de Setembro demonstra ter, ainda hoje, na forma como o mundo se tem governado ao longo da última década. Neste contexto, Maria de Lurdes Rodrigues assinalou esta homenagem prestada, afirmando ser “uma forma de celebrar os valores da liberdade e do Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 RUI OCHÔA Uma década depois João Silvério, curador da Colecção FLAD, Allan Katz, embaixador dos EUA, e Paula Vicente, assessora da FLAD, da esquerda para a direita. ‘ Focada no conceito de memória e de transição, a mostra evoca uma reflexão sobre as transformações que o mundo tem atravessado desde o 11 de Setembro de 2001 – como as pessoas mudaram a sua forma de estar no mundo e de encarar o futuro. ’ universalismo na construção do nosso mundo comum”. No mesmo sentido, também Luís dos Santos Ferro, adminis‑ trador da fasvs, reiterou a vertente sim‑ bólica da exposição e, por conseguinte, da presente data: “Celebramos a vida e a criação, contra a morte, a violência e a destruição. A força regeneradora da arte sobre as cinzas inertes do desastre. A convivência e a tolerância em liber‑ dade, opostas ao fanatismo e à opressão. […] Também a escolha de obras da Colecção da Fundação Luso‑Americana, permite conferir à data amarga um pouco daquela Luz, criadora, limpa e matinal, da qual a Arte é portadora.” A exposição inclui um conjunto alar‑ gado de obras da colecção de arte da flad , da autoria de Joaquim Bravo, Fernando Calhau, José Pedro Croft, Álvaro Lapa e Joel Shapiro. A selecção das obras esteve a cargo de João Silvério, respon‑ sável pela colecção da flad e comissário da exposição. * LPM 29 POLÍTICA Why can't we cross the line? Apesar de Portugal e os Estados Unidos serem aliados históricos, com uma sólida relação de amizade que se afirma numa cooperação cada vez mais ampla e diversificada, é relevante compreender que estamos longe de atingir o vasto potencial de cooperação ao nível das políticas públicas de segurança. Por RAQUEL DUQUE* e EDUARDO PEREIRA CORREIA** A segurança, como bem comum, é divul‑ gada e assegurada através de um conjunto de convenções sociais, denominadas medi‑ das de segurança. Pese embora diversas alterações do paradigma de segurança esta‑ belecido desde Vestefália, as políticas de segurança não podem actualmente ser tidas em consideração como medidas repressivas, mas como um sistema integrado e optimi‑ zado ao longo dos anos, envolvendo desde logo complexos instrumentos de preven‑ ção, justiça e inclusão social. Se admitirmos então que a ordem pública se baseia num estado de apaziguamento e tranquilidade pública, em consonância com a justiça e as leis que regulam um Estado de direito, então podemos alcançar um conceito de segurança pública. Apesar de, em 1974, Portugal se afirmar perante o mundo como um Estado em D.R. Na última década, o tema central da essên‑ cia dos estados centrou‑se na defesa e na segurança interna. O poder público dese‑ ja manter o estatuto de Estado protector uma vez que se tem deparado com o esva‑ ziamento das suas funções, restando pou‑ cas alternativas de se afirmar enquanto garante da coisa pública, sendo a segurança um dos pilares mais marcantes da sua institucionalização. Surgiram novos conceitos como community policing e problem‑oriented policing, como garantia da necessidade de uma resposta rápida. 30 Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 POLÍTICA processo de consolidação democrática, sobre dois caminhos: o policiamento de foram precisos vários anos para imple‑ proximidade (de influência gaulesa), e mentar um verdadeiro espírito democrá‑ o policiamento comunitário (natural dos tico na estrutura burocrática e nas países anglo‑saxónicos). Porém, proble‑ instituições policiais. Com a adesão à mas materiais como a complexidade dos Comunidade Económica Europeia em sistemas informáticos, incompatibilidade 1986, surge a necessidade de o País adap‑ dos sistemas de comunicações, sobrepo‑ tar as forças de segurança às actuais con‑ sição do nível territorial das forças de dições, de acordo com os novos níveis de segurança e investigações não comple‑ exigência e de segurança comunitários. mentares continuam a ditar as dificulda‑ Contudo, somente na última década do des entre as duas forças de segurança século xx, Portugal adopta políticas de (psp/gnr) em Portugal. segurança verdadeiramente transformado‑ E se foram feitas diversas reestruturações ras da realidade policial, com mutações na organização das instituições, nomea‑ organizacionais decisivas em relação ao damente ao nível da formação de agentes que conhecemos hoje enquanto força de e oficiais, esta realidade é contrastante segurança. com a realidade norte‑americana, onde os O modelo policial português é forte‑ concursos públicos são uma raridade, mente influenciado pelo sistema dualis‑ dando seguimento a uma estratégia com‑ ta francês, caracterizado pela Police provada de contratações em programas Nationale e Gendarmerie Nationale que abertos quase em permanência (e.g. LAPD Hiring), e onde os limites de idade de interagem permanentemente com os res‑ admissão são mais extensos do que os tantes corpos de segurança. Portugal adopta, respectivamente, o sistema de verificados em Portugal para pessoal não uma força de segurança civil (psp) e uma policial. de car iz militar (gnr). Não obstante diversas considera‑ ções sobre o tema, é Enquanto Portugal enfrentava vulgarmente aceite que se este sistema as dificuldades naturais de dualista de forças de transformação do Estado em pleno segurança é baseado num princípio de processo revolucionário democrático, complementaridade, os EUA punham em prática alguns poderá também exercer um efeito estudos de concepção das políticas contrário de compe‑ de segurança. titividade e sobrepo‑ sição de funções, atingindo um resul‑ Enquanto Portugal enfrentava as dificul‑ tado contrário ao pretendido. Subjacente a este sistema acreditou‑se durante mui‑ dades naturais de transformação do Estado tos anos que uma única força policial em pleno processo revolucionário demo‑ poderia concentrar poderes excessivos e crático, os EUA punham em prática alguns colocar em causa o regular funcionamen‑ estudos de concepção das políticas de to das instituições democráticas. Contudo, segurança. Por forma a atravessar diversas limitações, surgiram novos conceitos veja‑se, a título de exemplo, o caso da como community policing e problem‑oriented Áustria que mantinha até 2005 o sistema policing, como garantia da necessidade de dualitário, através de uma complexa rede policial e que perante a inevitabilidade uma resposta rápida, bem como a adopção das abundantes disfunções no sistema, de uma atitude policial dirigida também passou a adoptar em larga medida para os problemas sociais e comunitários evoluções oriundas do modelo nor‑ e não estritamente de natureza criminal, te‑americano, apelando à concentração a diversificação de métodos de investiga‑ ção para corrigir problemas recorrentes e policial. No caso português, algumas mudanças sobretudo uma forte participação da têm ocorrido no sentido de reestruturar comunidade na avaliação do papel policial em programas constantes de apreciação. as forças de segurança, designadamente Desde a década de 1980, países como a actualização das estratégias de seguran‑ os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália ça. É seguro afirmar que as políticas de segurança em Portugal tendem a evoluir e alguns países escandinavos, têm desen‑ ‘ ’ Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 volvido programas integrados nas polí‑ ticas públicas de segurança, aplicando‑os a uma larga escala de problemas de crime e de desordem pública, procedendo à transformação das suas organizações. Estes programas centraram a sua atenção sobre a avaliação dos problemas, a importância da análise contínua, o desenvolvimento de respostas pragmá‑ ticas, e a necessidade de acoplar estra‑ tégicas a outros países. A adopção do modelo de examinação dinâmica para desenvolver e avaliar de forma rigorosa respostas eficazes utili‑ zado na América do Norte ( SARA – Scanning, Analysis, Response and Assessment), baseado numa complexa identificação das consequências do pro‑ blema para a comunidade e para a polí‑ cia, determinando quão frequentemente o problema ocorre, compreendendo os eventos e as circunstâncias que precedem e acompanham o problema, identifican‑ do os dados relevantes e progredindo numa avaliação e construção de bases de dados qualitativos e quantitativos dos objectivos específicos, é actualmente ignorado pela burocracia das estatísticas policiais dos países da Europa do Sul. Esta importante reprovação não se resu‑ me a um problema político ou governa‑ mental situacionista, mas a uma questão estrutural das dinâmicas de influência e cooperação interestadual. Apesar de Portugal e os Estados Unidos serem aliados históricos, com uma sóli‑ da relação de amizade que se afirma numa cooperação cada vez mais ampla e diversificada, é essencial compreender que estamos longe de atingir o vasto potencial de cooperação ao nível das políticas públicas de segurança. Nesse sentido, é importante ultrapassar a linha imaginária que nos separa, e reforçar o diálogo e a cooperação, com base no Acordo de Defesa e Cooperação assina‑ do em 1995 entre os dois estados, e que permanece como o enquadramento ins‑ titucional do nosso relacionamento. Portugal deverá reforçar os laços para lá do Atlântico, adoptando políticas públi‑ cas de segurança revigoradas, capazes de responder de forma eficaz aos desafios e às ameaças que se colocam, hoje, à segurança interna. Perante estes factos, subsiste a questão: “Why can’t we cross the line?” * Politóloga e investigadora do Observatório Político da Universidade Nova de Lisboa ** Politólogo, professor universitário no Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna 31 POLÍTICA “Transatlantic Trends” 2011 A Ásia ganha terreno na opinião pública norte‑americana A Fundação Luso‑Americana divulgou os resultados da edição 2011 do estudo “Transatlantic Trends”, um inquérito mundial que todos os anos dá conta de como o mundo se vê. O projecto, promovido pelo German Marshall Fund (GMF), inclui a participação de 14 países e analisa o estado da opinião pública em relação aos principais temas que marcam a actualidade global. Por Ana Maria Silva* Este ano, a divulgação dos resultados con‑ vergiu com as comemorações dos dez anos do 11 de Setembro, tema incontornável que desde então passou a integrar o projecto. A partir de 2002, o estudo “Transatlantic Trends” incluiu um conjunto de questões ligadas ao terrorismo e à governação das várias potências mundiais, numa perspecti‑ va relacionada com a defesa da nação, como a ameaça e a luta contra o terrorismo. Pode dizer‑se que as conclusões deste ano não são polémicas, ainda que o perfil por‑ tuguês nos dê a conhecer alguns números interessantes do ponto de vista nacional (ver caixa). De uma forma geral, o que se reve‑ la mais notório nestes resultados são algu‑ mas posições mais acentuadas, e que até agora não eram tão evidentes de uma pers‑ pectiva global e comparada. Liderança norte‑americana De acordo com esta sondagem internacio‑ nal, realizada nos eua, na Turquia e em 12 Estados‑membros da União Europeia (ue) incluindo Portugal, 54 por cento dos entre‑ vistados dos países da ue querem que os eua exerçam uma liderança forte no que diz respeito aos principais temas globais. De todos os países participantes, o maior apoio é registado pelos próprios america‑ nos, com 85 por cento dos inquiridos a manifestarem um claro desejo de lideran‑ ça do seu país. Em conformidade – e no seguimento do que já se registou em 2010 – a popularidade dos eua permanece ele‑ vada nos dois lados do Atlântico: na ue, 72 por cento dos inquiridos têm uma opinião favorável dos eua, a par com 83 por cento dos americanos, mas contra apenas 30 por cento dos turcos. 32 Neste contexto, os eua, na figura de Barack Obama, continuam a ter o apoio da ue, uma vez que 73 por cento dos entrevistados aprovam a forma como o Presidente norte‑americano tem gerido a luta contra o terrorismo internacional: um valor ao qual se juntam 68 por cento dos americanos inquiridos, e que revela uma subida considerável em relação a 2009. No entanto, é evidente uma grande dife‑ rença transatlântica de opinião quando se aborda a questão da necessidade da guer‑ ra para obter justiça, um conceito com o qual concordam 75 por cento dos inqui‑ ridos americanos, em comparação com apenas 33 por cento dos europeus. China conquista juventude norte‑americana Neste contexto, os eua apresentam agora uma nova perspectiva face ao panorama mundial, onde 51 por cento dos inquiridos afirmam que a Ásia (em particular países como a China ou o Japão) foram mais rele‑ vantes para os seus interesses nacionais do que a Europa. Este valor, ainda que numa maioria pouco significativa, constitui uma inversão a assinalar na opinião pública nor‑ te‑americana, podendo iniciar alterações de comportamento ou de importância estraté‑ gica da ue para os eua. Importa, contudo, afirmar que este favori‑ tismo face aos países asiáticos assenta, essen‑ Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 POLÍTICA cialmente, na juventude norte‑americana; cerca de três em cada cinco norte‑americanos (59 por cento), com idades entre os 18 e os 24 anos, têm uma opinião favorável da China, um valor que é significativamente mais baixo nos restantes grupos etários (por exemplo, 33 por cento no grupo etário 45‑54 anos, ou 37 por cento no grupo 55‑64 anos). A mesma diferença em termos de idade torna‑se tão mais evidente quando se trata dos interesses nacionais dos eua, onde os 66 por cento dos jovens (no grupo 18‑24 anos) identificaram os países da Ásia, como a China, o Japão ou a Coreia do Sul, como sendo mais importantes do que os países da ue (17 por cento). Apesar de tudo, são os europeus que reve‑ lam uma maior tendência para acreditar que a China é uma oportunidade económica e não uma ameaça, algo que se inverteu nos eua, onde 63 por cento dos inquiridos con‑ sideram a China uma ameaça económica e onde são mais propensos a ver a China como uma ameaça militar, do que os europeus. NATO mantém‑se “essencial” para a segurança transatlântica No que diz respeito às questões relacionadas com as políticas de segurança, americanos e europeus demonstram opiniões muito seme‑ lhantes: 62 por cento dos entrevistados dos eua e da ue sentem que a nato é essencial, e 66 por cento consideram que o número de soldados deve ser reduzido ou pura e simplesmente anulado no Afeganistão. Paralelamente destaca‑se, pela primeira vez, o pessimismo norte‑americano em relação às perspectivas de estabilização da situação no Afeganistão (56 por cento), um valor que na Europa se manteve desde anos anteriores (66 por cento). Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 Crise económica: redução da despesa e impacto do euro Quando se fala da situação económica, as opiniões são maioritariamente convergentes. No decorrer das medidas de austeridade tomadas nos vários países, cerca de 50 por cento dos entrevistados da ue preferem dimi‑ nuir a despesa, a par de 61 por cento dos americanos, que demonstram maior tendên‑ cia para a redução do que para qualquer outra opção. No caso específico da ue, importa desta‑ car os 67 por cento dos inquiridos que consideram a adesão à ue como algo “bom para a economia”, o que já não acontece quando questionados sobre o impacto do euro: apenas 40 por cento dos inquiridos em países da Zona Euro afirma que a moeda única foi algo de bom para a economia do seu país. Na esteira destes resultados está também o descontentamento que os euro‑ peus revelam face à gestão económica dos seus governos – 56 por cento dos inquiri‑ dos na ue não aprovam. Da mesma forma, a sondagem demonstra também os efeitos da crise: 82 por cento dos americanos afirmam que foram pessoalmen‑ te afectados pela crise económica, o que cor‑ responde a um aumento de sete por cento face ao ano passado. Por sua vez, a ue apre‑ senta um valor mais reduzido (61 por cento), revelando estabilidade em relação a 2010. A capacidade de aferir e analisar anualmen‑ te a opinião pública mundial através do estu‑ do “Transatlantic Trends”, tem permitido aos especialistas traçar padrões de comportamen‑ to e prever tendências no que diz respeito às principais linhas estratégicas internacionais que marcam a actualidade económica, polí‑ tica e social. Neste contexto, e apesar de se reconhecer que “em ambos os lados do Atlântico há a consciência de que os eua e a ue partilham valores comuns fundamen‑ tais”, conforme afirmou Craig Kennedy, do German Marshall Fund, em comunicado, os resultados da sondagem em 2011 permitem assinalar “uma potencial mudança de fundo nas relações transatlânticas”. *LPM Opinião pública portuguesa reforça Obama As respostas dos cerca de mil inquiridos portugueses, que integram este estudo internacional devido à parceria da FLAD, demonstram, em grande parte, que o País está em linha com a Europa, apresentando resultados semelhantes. No entanto, podem destacar‑se algumas questões onde Portugal tem valores mais altos ou mais baixos em relação aos restantes países que integram a sondagem. É o caso da aprovação face à gestão de Obama da política internacional, em que o nosso país apresenta a percentagem mais alta entre todos os países inquiridos – 82 por cento dos portugueses aprovam a sua actuação nesta matéria. Verifica‑se a situação em relação à adesão da Turquia à UE, em que 56 por cento dos portugueses afirmam que não seria boa nem má, a mais alta percentagem entre todos os países, um valor que corrobora os 52 por cento que têm uma opinião favorável sobre a Turquia (um aumento de 11 pontos percentuais desde 2010). No que diz respeitos aos novos poderes mundiais emergentes, Portugal mantém uma opinião favorável do Brasil (85 por cento, que se destacam como a percentagem mais alta entre todos os países). Quanto à China e à Índia, apenas 37 e 26 por cento, respectivamente, têm uma opinião desfavorável, ambos os valores mais baixos do que os registados em 2010. No âmbito económico, 80 por cento dos portugueses consideram que o Governo português deveria reduzir as despesas para reduzir o défice, mais uma vez a maior percentagem entre todos os países inquiridos. Neste sentido, apenas seis por cento pensam que o Governo deveria aumentar as despesas, um valor que ascende aos 10 por cento quando se refere às despesas na área da defesa – ainda assim, é a percentagem mais baixa, a par com a Espanha e a Eslováquia. 33 POLÍTICA Howard Dean O Presidente é o melhor gestor de campanhas dos Estados Unidos “A morte de Bin Laden favoreceu Obama”, considerou Howard Dean, um importante membro do Partido Democrata que deixou a actividade profissional de médico para ser governador do Vermont tendo não só implementado um programa inovador nos cuidados de saúde para todos como equilibrado o orçamento deficitário. Por Sara Pina e Charles Buchanan* Na política americana, Dean salientou‑se pela recolha de fundos para a campanha do actual Presidente, nomeadamente atra‑ vés da internet e do facebook, e conside‑ ra que a fraca projecção na área da defesa e segurança que a Administração Obama sofria se tornou um trunfo para a reelei‑ ção do Presidente graças à morte do líder da Al‑Qaeda. do movimento Tea Party. Os americanos esperavam alguém que fosse capaz de resolver o problema orçamental e votaram nele, mas não aceitam ataques contra os trabalhadores americanos, e é isso que se tem visto em todo o país – no Ohio, na Florida e em muitos estados, incluindo a Pensilvânia. [P] E quais são as componentes da estratégia? [HD] Vamos ocupar‑nos do emprego e da criação de empregos. É disso que o povo americano quer ouvir falar. Muito since‑ ramente, penso que o povo americano se assustou com algumas das experiências ‘ Chris Graeme [Paralelo] Considera que o Partido Democrata está preparado e organizado para conseguir ree‑ leger o Presidente Obama? [Howard Dean] Penso que está muito bem preparado. Como sabe, temos um Presidente democrata e é o Presidente que assume a organização do partido. Neste caso, o Presidente é o melhor gestor de campanha que existe actualmente nos Estados Unidos e vai dirigir a “rede de reeleição”. Portanto, julgo que estamos em muito boa forma em termos da mecânica de vencer as eleições. A vitória nas eleições vai ser decidida pelos independentes. ’ [P] Então considera que o movimento Tea Party vai ajudar o Partido Democrata a conquistar votos dos republicanos? [HD] O movimento é uma vantagem para os republicanos porque mobiliza o elei‑ torado. Mas assusta os independentes, e são os independentes que vão decidir quem ganha as eleições. [P] Como é que a Organização dos 50 Estados, criada por si, vai ajudar os democratas a vencer em estados conservadores? [HD] Tudo depende daquilo que o Presidente quiser fazer. Mas, basicamente, quando eu estava no Comité Nacional Democrata, tínhamos uma estratégia para cada estado. Investimos em todos os esta‑ dos sem excepção, para garantir que esti‑ vessem actualizados e que houvesse pessoas qualificadas no terreno. E julgo Charles Buchanan (esq.) e Howard Dean no almoço organizado pelo American Club of Lisbon. 34 Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 Chris Graeme DR POLÍTICA [P] O que pensa do poder da internet? [HD] A internet funciona para ambos os partidos. Os republicanos têm estado a fazer um bom trabalho copiando o que vamos fazer na internet, tal como eu copiei algumas das coisas que os republi‑ canos estavam a fazer bem em 2004 quan‑ do me tornei presidente do Comité Nacional. Portanto, os dois partidos vão ambos usar a Internet. [P] A juventude e as minorias étnicas do país são muito poderosas (segundo Obama). Não acha que vai ser um enorme desafio mobilizá‑las nova‑ mente? [HD] O desafio é precisamente esse! O Presidente ganhou porque teve uma enorme vaga de apoio, sobretudo por parte dos jovens, e é necessário repetir isso. E não vai ser fácil. Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 A crise: houve alguns comportamentos muito, muito errados por parte dos bancos internacionais. ’ da função pública e, portanto, Portugal está numa situação bastante melhor do que a Irlanda e a Grécia, por exemplo. No entanto, Portugal é um país muito peque‑ no e vai evidentemente sofrer alguns abanões. Portugal vai ter de fazer o que todos os outros países têm de fazer: vai ter de fazer cortes. Mas não se podem introduzir demasiados cortes nem fazê‑lo demasiado depressa, porque isso pode prejudicar a economia em vez de a ajudar. Mas não há dúvida de que no Ocidente – tanto na Europa como nos Estados Unidos – se tem gasto demasiado, e houve, evidentemente, alguns comporta‑ mentos muito, muito errados por parte dos bancos internacionais. Não estamos a falar dos bancos portugueses, estamos a falar dos grandes bancos multinacionais. Alguns destes problemas não têm nada a ver com Portugal. Têm a ver com o facto de os grandes bancos multinacionais terem especulado e apostado nas bolsas de valo‑ res. E depois há, evidentemente, a questão das sociedades de notação de risco de crédito… [P] Mas a utilização intensiva da internet foi instituída por si. Porque escolheu esse método? [HD] Aprendemos com os jovens que o estavam a fazer. A nossa capacidade para organizar uma campanha com lógica base‑ ada na internet foi fruto de termos obser‑ vado o que os jovens estavam a fazer e a forma como consultavam a internet. [P] Portugal está em crise devido ao seu orça‑ mento. O orçamento do estado de Vermont foi equilibrado por si, e conseguiu fazê‑lo sem aumentar os impostos. Que sugestões faria ao nosso país? ‘ [HD] Penso que o primeiro‑ministro José Sócrates começou a tentar resolver o pro‑ blema muito antes de alguns dos outros países. Introduziu muito cedo mudanças na idade da reforma, alterou os salários Chris Graeme que isso ajudou a aumentar o número de estados em que os democratas puderam competir. O Presidente [Obama] ganhou porque teve uma enorme vaga de apoio. Dean espera que isso se repita. * Com André Sebastião 35 POLÍTICA EUA: a história deste país é também a nossa É uma história de amor em quatro actos. Como em todas as histórias de amor houve paixões, desencontros, mal‑entendidos, arrufos e fúrias. E sobretudo muita influência mútua. É assim a relação entre os EUA e a Europa, contada na exposição “America – It’s Also Our History”, uma iniciativa da presidência belga da União Europeia. Por Susana Almeida Ribeiro fotos Tempora Perante os nossos olhos vai desfilando o melhor e o pior da Humanidade. A colo‑ nização da América e a escravatura; a inde‑ pendência dos Estados Unidos e o dizimar da população nativa americana; as con‑ quistas científicas e tecnológicas e a bomba atómica... Desde que os Estados Unidos emergiram como uma das mais impor‑ tantes potências mundiais que o país este‑ ve na linha da frente dos principais capítulos da história moderna. A exposição – com artefactos riquíssimos e artigos museológicos de grande enver‑ gadura, como carros de combate e um pedaço do Muro de Berlim – está dividi‑ da em quatro movimentos. O primeiro destes movimentos conta a história da “América Europeia”. Ou seja, descreve o período da história (1620‑1783) em que os europeus atravessaram o Atlântico e rumaram ao grande continente desconhe‑ cido, um pedaço de terra vinte vezes maior que a Velha Europa Ocidental. De Inglaterra, França e Espanha sai o grosso dos emigran‑ tes. Os portugueses também emigram para a América, mas para o Sul do continente. Estima‑se que entre 1600 e 1760, cerca de um milhão de cidadãos nacionais tenha partido para o Brasil. As potências europeias foram conquis‑ tando o vasto continente e as forças bri‑ tânicas acabaram vitoriosas neste mosaico de ocupação. Ideologicamente, os filósofos europeus olharam para este admirável mundo novo como o laboratório ideal para pôrem em prática os seus ideais. As mesmas que acabaram por contagiar a própria Europa, dando origem à Revolução Francesa de 1789. “Se Locke e Montesquieu ditaram, por assim dizer, aos americanos a sua Constituição, Jefferson ajudou os franceses a escrever a sua própria Declaração dos 36 Direitos dos Homens e dos Cidadãos”, pode ler‑se no catálogo da exposição. No final deste primeiro movimento, os Estados Unidos eram independentes. Com o advento do dia 4 de Julho de 1776, a América entra numa segunda era: a da América Americana. Neste acto II (1783‑1917), fala‑se da epopeia dos europeus que come‑ çaram a partir de uma Europa com fome e socialmente estática – onde um sapateiro não podia aspirar a ser nobre – para abrir os braços à Estátua da Liberdade, uma ofer‑ ta francesa (1886) ao povo americano. “Nasce assim uma nação do tamanho de um continente”, resume o catálogo. À medida que os colonizadores se vão instalando no vasto território, a popula‑ ção indígena vai sendo dizimada. Quando os primeiros colonos chegaram ao terri‑ tório hoje identificado como eua, esti‑ ma‑se que existissem entre quatro e 12 milhões de nativos. Em 1900, estes eram apenas 250 mil. Chegados à I Guerra Mundial começa o terceiro movimento – o da Europa Americana – durante o qual os americanos regressam à Europa uma primeira e, mais tarde, uma segunda vez (durante a II Guerra Mundial) para ajudar a livrar os velhos europeus dos seus ditadores. Entretanto, os eua vão contagiando o velho mundo com os seus ritmos de jazz e a génese do star system. Mesmo durante a Grande Depressão os Estados Unidos são Em Bruxelas, a exposição sobre os EUA foi organizada em quatro movimentos. Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 POLÍTICA ‘ O período de 1989 até hoje assinala o quarto e último movimento desta extraordinária exposição em que Europa e América se afirmam por si e tentam redefinir a sua relação. ’ O período de 1989 até hoje assinala o quarto e último movimento desta extraordinária exposição. já uma potência em quase todos os domí‑ nios. Tornam‑se refúgio de alguns dos principais pensadores do nosso tempo, como Einstein e Claude Lèvi‑Strauss. Depois da derrota de Hitler e das bombas atómicas de Hiroxima e Nagasáqui, os eua emergem, em definitivo, como a maior potência mundial, que vai crescendo dian‑ te do seu rival: a urss. À semelhança da Alemanha, o mundo divide‑se em dois blocos: o Ocidente e o Leste. Chegamos assim à Guerra Fria (sim‑ bolicamente tratada nesta exposição como um tabuleiro de xadrez), mas também a uma América do pós‑guerra. Uma América próspera e com subúrbios ricos; com elec‑ trodomésticos e televisão; com um carro para cada família e uma juke box em cada bar. Estamos na era dourada do rock, do Elvis, e depois da Febre de Sábado à Noite e da Coca‑Cola. Mais tarde chegaríamos a Madonna e a Michael Jackson; aos micro‑ ondas e aos videojogos; ao ET – O Extraterrestre e à Queda do Muro. O mundo deixa então de estar bipolari‑ zado. Com a derrocada da Cortina de Ferro enterra‑se a Foice e o Martelo. O período de 1989 até hoje assinala o quarto e últi‑ mo movimento desta extraordinária expo‑ sição em que a Europa e a América se afirmam por si e tentam redefinir a sua relação. Os Estados Unidos vivem o seu estatuto de verdadeira superpotência e de hegemonia militar, económica e cultural num mundo pós‑11 de Setembro e que começa a ver um novo “rival” económico no horizonte: a China. Por seu lado, a Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 União Europeia continua a fazer o seu caminho de reunificação e união, lamben‑ do ainda as feridas de guerra nos Balcãs. eua e Europa são hoje aliados e parceiros. Os seus destinos começaram cruzados e é assim que permanecem hoje. Prova disso é a grave crise financeira mundial que come‑ çou do outro lado do Atlântico e cujas reper‑ cussões cruzaram O Charco com efeitos ainda hoje visíveis, especialmente em Portugal. A exposição termina da mesma forma que a aventura dos colonos começou: no mar. A derradeira sala da exposição foi transfor‑ mada – literalmente – numa praia, marcan‑ do o “atlanticismo” desta relação. Tal como as marés, que vão recuando e avançando ao longo dos séculos, assim se mantém a rela‑ ção entre os dois continentes. Uma relação de influência e de contágio. Retratada a divisão da Alemanha e do mundo em dois blocos. 37 POLÍTICA É preciso falar da República sem falar só da questão religiosa As relações entre o Estado e a Igreja são um dos temas que fixam a agenda analítica da I República mas, na opinião do historiador José Medeiros Ferreira, essa agenda deve alargar‑se ao impacto na sociedade da institucionalização de um Estado que se pretendeu laico. “É preciso falar da República sem falar só da questão religiosa”, desafiou, no lançamento de Repúblicas em Paralelo: Portugal e os Estados Unidos da América. Por Carla Martins Catroga (Universidade de Coimbra) e José Esteves Pereira (Universidade Nova de Lisboa) entregaram‑se ao “desafio inova‑ dor” e “risco calculado”, nas palavras de Mário Mesquita na nota introdutória, de realizar uma análise comparada das revo‑ luções americana e portuguesa. As relações entre o Estado e a Igreja, na viragem para o republicanismo, domina‑ ram a parte inicial do comentário de Medeiros Ferreira à obra, que salientou, no caso americano, a rejeição da experi‑ ência de Cromwell e o acolhimento de uma ética inspirada no período republi‑ cano da civilização romana. Outra influ‑ ência relevante foi, claro, o princípio da RUI OCHÔA Numa sessão intimista presidida por Maria de Lurdes Rodrigues e moderada por Mário Mesquita, o historiador José Medeiros Ferreira, da Universidade Nova de Lisboa, apresentou Repúblicas em Paralelo: Portugal e os Estados Unidos da América. A obra integra as intervenções dos historiadores portugueses e norte‑americanos que par‑ ticiparam no colóquio homónimo, que teve lugar o ano passado, na flad, que assim se associou às comemorações do Centenário da República Portuguesa. Alexander Keyssar (Universidade de Harvard), António Reis (Universidade Nova de Lisboa), Horst Mewes (Universidade do Colorado), Fernando “Falar da República sem colocar a questão religiosa no centro do debate” foi o desafio de José Medeiros Ferreira que apresentou o livro sentado entre Mário Mesquita e Maria de Lurdes Rodrigues, presidente do conselho executivo da FLAD. 38 tolerância de John Locke, que deveria guiar a secularização da instância política face ao religioso. Os constituintes ameri‑ canos beberam directamente as concep‑ ções do iluminismo – como sublinha António Reis, “os republicanos portugue‑ ses são filhos do positivismo e netos do iluminismo, enquanto os pais fundadores da república norte‑americana são, eviden‑ temente, filhos directos do iluminismo” (p. 31). Cem ANOS DEPOIS, UMA IGREJA MAIS ABERTA Os eua instauraram a primeira república contemporânea e o primeiro sistema de separação de igrejas, o que foi “muito importante, porque contrariava a ideia de que teria de haver uma religião do Estado”. Tratou‑se de um processo com particu‑ laridades, como observou Mário Mesquita na sessão: nos Estados Unidos a seculari‑ zação faz‑se “num quadro deísta, remeten‑ do, é certo, para um Deus esvaziado do conteúdo que lhe desse ligação a um culto religioso concreto”. Recorrendo a um enunciado de Fernando Catroga, “se toda a laicidade é uma secularização, nem toda a secularização é (ou foi) uma laicidade e, sobretudo, um laicismo” (p. 65). No que toca à lei da separação, em Portugal houve diferenças quer em relação aos eua, quer à França. Se o período monárquico‑constitucional dera sinais de alguma abertura (como o artigo 6.º da Carta Constitucional, pelo qual se permi‑ tia a prática de outras religiões por estran‑ Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 geiros, desde que os seus lugares de culto não tivessem forma exterior de templo), a Revolução de 1910 introduziu as noções de Estado laico e de laicismo. Por outras palavras, veio terminar com o Estado con‑ fessional, através da lei da separação da Igreja e do Estado, e instituir a liberdade religiosa. Em Portugal, o anticlericalismo dos republicanos cruza‑se, de forma conflitu‑ osa, com uma Igreja Católica traumatiza‑ da pela anexação dos Estados Pontifícios e pelo laicismo da III República Francesa, mais dogmática e fechada às instituições do republicanismo e seu ideário. Posteriormente, muitos católicos portu‑ gueses recusaram participar nas institui‑ ções republicanas (não sendo, ainda assim, essa a visão de Oliveira Salazar). “Depois do 25 de Abril, encontramos não só protagonistas políticos que perce‑ beram as lições da I República mas a pró‑ pria Igreja Católica já era outra, aquela saída do Concílio Vaticano II, mais aberta a entender os princípios democráticos e a separação entre a Igreja e o Estado”. O professor Medeiros Ferreira lembra que, na sua visita a Portugal, o Papa Bento XVI fez um elogio à separação Igreja‑Estado. RUI OCHÔA POLÍTICA “Na prática, a República portuguesa vai viver sozinha até 1917, num continente marcadamente monárquico e até imperial”, disse Medeiros Ferreira. Portuguesa no contexto europeu”, que explica nos seguintes termos: “Gostamos de acentuar que o 25 de Abril de 1974 foi um movimento precursor da queda das ditaduras no con‑ tinente europeu e na Os EUA instauraram a primeira América do Sul, o que é república contemporânea e o primeiro verdade, mas a República também teve as mesmas sistema de separação de igrejas, características pioneiras em relação à difusão dos regi‑ o que foi “muito importante, porque mes republicanos europeus contrariava a ideia de que teria depois da I Guerra Mundial”. À época, existiam na Europa de haver uma religião do Estado”. apenas as repúblicas france‑ sa e suíça, “mas, fora isso, podemos dizer que a República Portuguesa não PRECURSORA COMO O 25 DE ABRIL foi implantada por indução ou por causas Não obstante a importância deste tema exteriores”. Sublinha que, “na prática, a para pensar a génese republicana – na República Portuguesa vai viver sozinha até terminologia moderna, foi de facto uma 1917, num continente marcadamente “questão fracturante” –, Medeiros Ferreira monárquico e até imperial”. considera essencial “falar da República Como segundo ponto, o professor assi‑ sem colocar a questão religiosa no centro nala o programa modernizador do Estado do debate”. Em seu entender, há aspectos republicano. “Vamos assistir, na República, da República Portuguesa que têm sido ao crescimento das funções do Estado libe‑ pouco acentuados porque os temas histo‑ ral em Portugal. O Estado penetra no ter‑ riográficos e analíticos se fixaram nas ritório”, sustenta. Surgem novos serviços relações entre a Igreja e o Estado e na públicos, como o registo civil, a instrução instabilidade política. “Estes dois temas pública e o serviço militar obrigatórios e tomaram conta da agenda analítica da uma nova filosofia contributiva. I República”. Como terceira ideia fundamental, Medeiros Preconiza que “vale a pena realçar as outras Ferreira aponta a singularidade do Partido questões que ficaram soterradas”, como o Republicano Português (prp), que revela características diferentes e únicas, ao assen‑ “carácter pioneiro da Revolução Republicana ‘ tar a sua acção tanto numa táctica eleitoral como numa táctica insurreccional. “Não houve na altura nenhum partido que tives‑ se tomado o poder – estou a falar em termos europeus – da forma como o Partido Republicano Português o fez, pelas armas, pela força. Não há!” O prp não era o parti‑ do bolchevique mas também não era pro‑ priamente um partido clássico, parlamentar, como os partidos da III República. O prp foi um partido de massas, eleitoralista, mas também insurreccional. ’ Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 39 POLÍTICA Angola: o “Vietname invertido” da América Os Estados Unidos e a Descolonização de Angola é o mais recente livro de Tiago Moreira de Sá que analisa, na perspectiva americana, a luta pelo poder depois da independência do país em 1974. Por Marta Rocha Kissinger: os Estados Unidos e a Revolução Portuguesa, com o Dr. Bernardino Gomes. Percebi que não era possível trabalhar toda a questão da revolução portuguesa num só livro e decidi fazer mais tarde a análise do pro‑ cesso de descolonização e em particular na jóia da coroa do império colonial por‑ tuguês, Angola. Sob a perspectiva dos Estados Unidos, não só porque esta é a minha área de estudos mas também por‑ que os norte‑americanos têm uma polí‑ tica de disponibilização dos arquivos o Marta Rocha [Marta Rocha] Em que contexto surgiu este livro? A que se deve a escolha dos anos de 1974 a 1976? [Tiago Moreira de Sá] Bem, a ideia para este livro surgiu ainda no período em que estava a fazer o livro anterior, Carlucci vrs O autor Tiago Moreira de Sá assina os livros na sessão de apresentação. 40 Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 POLÍTICA que permite ter acesso a uma grande quantidade de documentação de fontes primárias. O livro começa basicamente com a Revolução Portuguesa de 25 de Abril de 1974 e vai terminar, no caso de Angola, em Fevereiro‑Março de 1976, pois é o momento em que o mpla ganha a primeira fase do conflito angolano. [MR] O que é que fez com que, na fase da deténte, a Guerra Fria se estende‑se para a periferia do sistema internacional, mais especificamente para Angola? [TMS] A Guerra Fria já tinha sido estendi‑ da para a periferia do sistema internacio‑ nal muito antes, aqui a extensão é para a África Austral. Num primeiro momento, no caso de África, a Guerra Fria tinha sido estendida para o Congo, durante a guerra civil do Congo, em 1960‑1965, aí com a vitória dos Estados Unidos, e depois no final de 1974 vai ser estendida para a África Austral, para Angola. Porquê numa altura da deténte bipolar? Por duas razões. No caso dos Estados Unidos tem a ver, sobretudo, com o que eu chamo no livro de efeito do Vietname invertido. Isto é, os norte‑americanos vão intervir em Angola, não porque Angola tivesse per si uma gran‑ de importância geopolítica para os Estados Unidos mas porque a Administração nor‑ te‑americana de Ford, e em particular Henry Kissinger, o secretário de Estado, vai chegar à conclusão de que depois de terem perdido no Vietname têm de vencer os soviéticos naquilo que eles consideram a periferia do sistema internacional, para demonstrar ao resto do mundo que, ape‑ sar do Vietname, ainda têm a força e a vontade para derrotar os soviéticos no chamado Terceiro Mundo. [MR] Durante muito tempo, os Estados Unidos decidiram não intervir em Angola. No lançamen‑ Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 ‘ O Zaire vai ser o principal informador dos Estados Unidos sobre Angola, ou seja, a visão que os Estados Unidos têm do conflito angolano é, em grande parte, a visão que lhe é transmitida por Mobutu. ’ to do seu livro o embaixador António Monteiro afirmou que Mobutu, de certo modo, “conduziu a política norte‑americana”. [TMS] Os Estados Unidos, durante muito tempo, não intervieram em Angola. Podemos dizer que há quatro fases na política norte‑americana. A primeira fase é uma fase de praticamente indiferença, que vai até Janeiro de 75. É quase como se Angola não existisse para o secretário de Estado, Henry Kissinger. Depois, em Agosto de 1975, começam a chegar aos Estados Unidos informações de que os soviéticos estariam a apoiar, com armas e dinheiro, o mpla e também por causa da pressão do Zaire, de Mobutu, nesse sentido. Numa terceira fase, os Estados Unidos vão, finalmente, adoptar uma estratégia ofensiva, é a fase que começa em Julho de 1975 com a aprovação do programa secreto para Angola, a chama‑ da a operação IAfeature, em que os Estados Unidos vão apoiar maciçamente a fnla e a unita, e finalmente a última fase, que começa na prática em Novembro de 75 – a fase da derrota norte‑america‑ na. O papel do Zaire é muito importan‑ te. O Zaire vai ter uma grande influência na política dos Estados Unidos para Angola, não porque seja Mobutu a con‑ duzir a política norte‑americana para Angola mas porque o Zaire vai ser o prin‑ cipal informador dos Estados Unidos sobre Angola, ou seja, a visão que os Estados Unidos têm do conflito angolano é, em grande parte, a visão que lhe é transmitida por Mobutu. Em segunda instância, como os Estados Unidos que‑ rem evitar aparecer publicamente como estando envolvidos em Angola – por isso é que o programa é secreto – o que vão fazer é canalizar todo o programa via Zaire. Os fundos são canalizados via Zaire, o armamento concedido é também via Zaire, inclusive com a preocupação de esse armamento aparecer como sendo armamento do Zaire e não armamento norte‑americano. [MR] A operação IAfeature foi um ponto de mudança na política norte‑americana para Angola. Em que consistiu exactamente? [TMS] Consistiu sobretudo em três tipos de medidas: um apoio de 32 milhões de dólares à fnla e à unita, segundo alguns autores estas verbas terão sido até maiores. Uma segunda medida: a concessão de armamento à fnla e à unita via Zaire – e armamento signifi‑ cativo e pesado. Uma terceira medida, o recrutamento de mercenários em Portugal, no Reino Unido, em França e 41 POLÍTICA ‘ A FNLA era “uma marioneta do Mobutu”, e portanto o MPLA era o que tinha melhores condições para garantir a viabilidade do Estado angolano pós‑independência, e é também, neste sentido, o que ia mais ao encontro dos próprios interesses portugueses. ’ em alguns países africanos. Para além disso, apesar das instruções dadas pelo Governo norte‑americano à cia – que é quem vai ficar com a responsabilidade de conduzir este programa secreto – ins‑ truções no sentido de não haver milita‑ res americanos ou dirigentes americanos envolvidos no conflito angolano, a cia – como está provado nas memórias do seu dirigente nesta operação em Angola, John Stockwell – vai desobedecer a estas ordens e enviar paramilitares para o ter‑ reno. [MR] Os Estados Unidos da América só real‑ çaram a incompatibilidade das acções soviéti‑ cas em Angola com a política da deténte muito tarde. [TMS] Verdade. Esse é um dado funda‑ mental. A minha opinião é que só vão fazê‑lo em Novembro de 1975. A con‑ clusão a que cheguei é que os Estados Unidos estão convencidos, até muito tarde, que vão ganhar, que a fnla vai ganhar. E só quando se convencem que a fnla está a perder é que suscitam a incompatibilidade do envolvimento sovi‑ ético em Angola com a deténte. Curiosamente, até muito tarde os sovi‑ éticos estão disponíveis – apesar de esta‑ rem claramente na ofensiva – para negociar – e é preciso não esquecer que a deténte é também uma prioridade para Brejnev. A União Soviética vai inclusive quando os Estados Unidos suscitam a incompatibilidade entre a deténte e Angola suspender, durante parte do mês de Dezembro, a ponte aérea soviética que transferia os soldados cubanos para Angola. E só quando é aprovada a Emenda Tunney – quando os soviéticos percebem que os norte‑americanos já não têm con‑ dições para apoiar a fnla e a unita – é 42 Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 POLÍTICA que retomam a ponte aérea e, a partir daí, recusam‑se a negociar com os Estados Unidos em relação a Angola. reentrar em Luanda depois de ter sido expulsa pelo mpla e, segundo as infor‑ mações dos serviços secretos norte‑ame‑ ricanos em particular – informações essas que são negadas pelos oficiais por‑ tugueses com quem eu falei – alguns militares portugueses combatem ao lado do mpla para impedir a reentrada da fnla em Luanda. A terceira questão é a questão do esforço negocial que Portugal leva a cabo em dois momentos: o momento do Acordo do Alvor em Janeiro de 75 e um segundo momento, uma tentativa de aliança entre o mpla e a unita contra a fnla em Agosto de 75. Nos dois casos, as superpotências, no caso particular que me interessa no livro, os Estados Unidos, vão empe‑ nhar‑se em destruir estes esforços diplo‑ máticos portugueses e vão conseguir. te‑americanos que estavam em Angola, que conheciam a realidade angolana. Os que não estavam em Angola, tal como Kissinger, não tinham propriamente essa visão. Porque sabia‑se muito pouco, mas A intervenção portuguesa os que estavam lá, os que conheciam a e os apoios de Melo Antunes realidade no terreno achavam exactamen‑ te isso. A fnla era – a expressão é esta mesmo – “uma marioneta do Mobutu”, [MR] E Portugal? Como é que se processavam e portanto o mpla era o que tinha as relações diplomáticas entre os Estados Unidos melhores condições para garantir a via‑ da América, Portugal e Angola? bilidade do Estado angolano pós‑inde‑ [TMS] Portugal foi um actor relevante. pendência, e é também, neste sentido, o A ideia de que Portugal não foi um actor que ia mais ao encontro dos próprios relevante é falaciosa. A partir do momen‑ interesses portugueses. Depois há outras to em que as superpotências entram “em questões. No caso de um grupo, repre‑ cena” todos os outros actores ficam com sentado em Angola pelo almirante Rosa um espaço de manobra muito reduzido, Coutinho, há, na minha opinião, outras o que não significa que não sejam acto‑ motivações inclusive ideológicas e geo‑ res também relevantes. No caso de políticas mas, independentemente de Portugal, há três ou quatro questões que toda esta questão, ele beneficiou são muito importantes no sempre a União Soviética. Eu reve‑ contexto de Angola. Em pri‑ lo no livro – penso que pela pri‑ meiro lugar, segundo as meira vez – que Melo Antunes, informações dos norte‑ame‑ a determinada altura, começou a ricanos, grande parte do apoiar Jonas Savimbi e a unita mas armamento das forças arma‑ fê‑lo no contexto do projecto de das portuguesas é deixado aliança entre o mpla e a unita. para o mpla. Aliás, Kissinger vai chegar a fazer uma chan‑ E a ideia era conseguir uma Angola Portugal foi um actor relevante. tagem com o Governo por‑ independente governada por uma tuguês – e a expressão aliança mpla/unita, com prevalên‑ A ideia de que Portugal não foi cia do mpla – que era, de longe, “chantagem” é dele, não é um actor relevante é falaciosa. o movimento mais forte – mas minha – dizendo que o equilibrando o poder do mpla – e Governo português ou garan‑ A partir do momento em que do próprio Agostinho Neto – com te que não há armamento as superpotências entram “em cena” a unita e com Jonas Savimbi, isto deixado para o mpla ou os Estados Unidos acabam com por um lado. Por outro lado, redu‑ todos os outros actores ficam toda a ajuda que estão a con‑ zir a dependência – o que se acha‑ com um espaço de manobra muito ceder no contexto da chama‑ va ser a dependência – do mpla da “ponte aérea”, a ponte reduzido, o que não significa que não em relação à União Soviética, aju‑ dando a estabelecer outros canais aérea para transferir os colo‑ sejam actores também relevantes. diplomáticos, como por exemplo nos portugueses para junto da Argélia e da Jugoslávia. Portugal. É preciso ver tam‑ Melo Antunes vai tentar convencer bém que Portugal está pro‑ os norte‑americanos a manter o fundamente dividido. Há mínimo das boas relações com o várias políticas e vários cen‑ mpla – e mesmo a apoiar o mpla tros de poder. A segunda – de modo a reduzir a dependên‑ questão, que é uma questão cia do movimento face a Moscovo. muito importante mas que não é pos‑ [MR] Os próprios Estados Unidos da América sível esclarecer porque as fontes primá‑ consideravam que o mpla era realmente o único Revelo, também, “em primeira mão”, movimento com representatividade em Angola, que Agostinho Neto “não fecha a porta” rias não são suficientemente boas, é a a ter boas relações com os Estados questão da célebre Batalha de Luanda, o único que representava o povo angolano. de Julho de 75, quando a fnla tenta [TMS] Consideravam os elementos nor‑ Unidos, pelo contrário. ‘ ’ Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 43 Boas razões para estudar numa universidade portuguesa www.ideia.pt Por Maria de Lurdes Rodrigues* Hoje, um dos critérios de avaliação do grau de internacionalização das universidades é o número de alunos e de professores estrangeiros que inte‑ gram as suas actividades. Neste domínio, as universidades portuguesas progrediram muito em resultado, por um lado, de mais de vinte anos do programa Erasmus e, por outro, de medidas específicas de apoio à mobi‑ lidade de investigadores e à cooperação científica. Em relação à internacionalização do sistema cien‑ tífico o patamar alcançado é notável: 48 por cento da produção científica portuguesa é realizada em co‑autoria com instituições estrangeiras. Porém, em relação à internacionalização do sistema de ensino superior, os dados revelam que a percen‑ tagem de alunos estrangeiros é de apenas cinco por cento, existindo ainda um enorme potencial de crescimento. De facto, Portugal tem hoje uma infra‑estrutura de ensino superior de elevada qualidade, com capa‑ cidade para acolher muito mais alunos. O aumen‑ to de alunos nacionais está fortemente dependente da melhoria da performance do ensino secundário e da diminuição do abandono escolar precoce, bem como da capacidade de atracção de adultos, designadamente para os cursos dos segun‑ do e terceiro ciclos. Todavia, as características socio‑ demográficas de um e de outro segmento, embora por razões diferentes, permitirão apenas crescimentos muito limitados. Uma fonte possível e inesgotável para o recru‑ tamento de novos alunos reside em outros países cuja língua oficial é o português, mas também nos países estrangeiros da diáspora, como é o caso dos eua. A nossa vizinha Espanha atrai anualmen‑ te mais de 20 mil alunos norte‑americanos. O mesmo se passa em todos os países da Europa: a colaboração com universidades norte‑americanas em cursos de Verão, em programas de study abroad, 44 programas de troca de estudantes e de professores, entre outros, permite manter na generalidade das universidades europeias uma capacidade de atrac‑ ção de milhares de alunos estrangeiros que em muito contribui para a sua internacionalização. Portugal, embora tenha já inúmeros alunos estran‑ geiros, maioritariamente do programa Erasmus, dos eua tem atraído apenas cerca de 150 alunos por ano. Todavia, visto do lado de lá do Atlântico, Portugal e o seu sistema de ensino superior ofe‑ recem várias vantagens competitivas que podem ser exploradas numa campanha mais forte de promoção das universidades portuguesas no estrangeiro. Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 www.ideia.pt Em primeiro lugar, a qualidade e a ino‑ vação: a qualidade das instalações, da inves‑ tigação científica, dos recursos de acesso ao conhecimento e à informação coloca muitas das nossas instituições em lugares honrosos dos rankings internacionais. Por outro lado, Portugal foi um dos países europeus que mais cresceu nos indicadores de inovação. Em segundo lugar, os custos das propi‑ nas e o nível de vida. No nosso país, o esforço financeiro das famílias com a edu‑ cação, quando comparado com o esforço realizado em média pelas famílias nor‑ te‑americanas, para qualidade equivalen‑ te, dá a Portugal uma enorme vantagem, Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 tornando as nossas universidades verda‑ deiramente atractivas. Em terceiro lugar, a integração de Portugal no espaço europeu. O facto de os nossos certificados e diplomas, no qua‑ dro do Processo de Bolonha, permitirem o reconhecimento automático e a livre circulação para efeitos de prosseguimen‑ to de estudos em qualquer universidade da Europa, tem em si um enorme valor. Finalmente, a oportunidade de aprender português, língua que abre as portas tam‑ bém para o Brasil e os palop, alargando enormemente as possibilidades de reali‑ zação profissional. Tendo presentes estes argumentos, a flad iniciou um programa de promoção das universidades portuguesas nos eua, tendo em vista a atracção de alunos nor‑ te‑americanos, designadamente jovens emigrantes portugueses de segunda ou de terceira geração. A iniciativa “10 Reasons to Study at a Portuguese University” con‑ tou com o apoio do Turismo de Portugal, do crup, da Fulbright e da aicep, tendo estas instituições firmado entre si um pro‑ tocolo de colaboração para lançar outras iniciativas com o mesmo objectivo. * Presidente do Conselho Executivo da FLAD 45 Mais uma forma de fortalecer a relação luso‑americana Por Allan J. Katz* Enquanto embaixador dos Estados Unidos em Portugal tenho, com frequência, o prazer de conhecer estu‑ dantes e académicos portugueses, muitos dos quais estudaram nos eua. Estes indivíduos – através de pes‑ quisa conjunta, laços pessoais, e intercâmbios entre estudantes e professores – ajudam a fortalecer, ainda mais, os fortes laços entre os nossos dois países. Tenho a esperança que novas iniciativas como as da Comissão Fulbright, da Fundação Luso‑Americana, da aicep, do Turismo de Portugal e do Conselho de Reitores proporcionem um aumento do número de estudan‑ tes americanos em Portugal. Dados recentes mostram que o número total de americanos que estudaram no estrangeiro no ano lectivo de 2008‑2009 foi de 260 327, valor que continua a assinalar uma década de crescimento sem precedentes no que respeita ao número de estudantes americanos que recebem cré‑ ditos académicos pela sua experiência além‑fronteiras. Se analisarmos as últimas duas décadas, a participação de estudantes americanos em programas de estudo no estrangeiro mais do que triplicou. Nesse mesmo ano lectivo, 240 estudantes america‑ nos escolheram Portugal como país de destino, o que constituiu um aumento de 61 por cento em relação ao ano anterior. Estes números mostram, uma vez mais, que o intercâmbio educacional entre os Estados Unidos e Portugal está a aumentar e fico muito satis‑ feito pelo facto de cada vez mais estudantes america‑ nos decidirem estudar em Portugal. Enquanto presidente honorário da Comissão Fulbright em Portugal, tenho o privilégio de teste‑ munhar em primeira mão a estreita cooperação entre o Governo americano e o Governo de Portugal, atra‑ vés do Programa Fulbright, para apoiar o intercâmbio académico entre os nossos dois países. A Comissão Fulbright tem reforçado, particularmente nos últimos anos, a atribuição de bolsas que permitem a coloca‑ ção de estudantes americanos em universidades por‑ tuguesas como assistentes de língua inglesa, assim como o apoio a projectos de investigação conducen‑ tes a mestrado e doutoramento desenvolvidos em Portugal por estudantes americanos. Numa parceria recentemente instituída entre a Fulbright e a Fundação Luso‑Americana foram também criadas condições para que o número de bolseiros americanos 46 de investigação venha a crescer num futuro próximo. As iniciativas do Programa Fulbright inserem‑se no objectivo mais abrangente do Governo e das institui‑ ções americanas de aumentar o número de estudan‑ tes americanos a viver uma experiência de estudo no estrangeiro, quer seja participando em programas de Verão, levando a cabo projectos de investigação, ou frequentando programas de atribuição de grau, que neles desenvolvam capacidades valiosas para colaborar além‑fronteiras, num ambiente multicultural e de desafios globais. Este é, pois, o momento de aproveitar a oportuni‑ dade e tentar recrutar em número cada vez maior de estudantes americanos para universidades e centros de investigação portugueses, que dispõem de todas as condições para os acolher da melhor forma. Neste contexto, a Comissão Fulbright acredita e apoia o programa “Study in Portugal”, que visa contribuir para a promoção nos Estados Unidos das instituições de ensino superior portuguesas e, nessa medida, aumentar o número de estudantes americanos que escolhem Portugal como destino de formação. A Comissão Fulbright empenhar‑se‑á nas acções a desenvolver no âmbito deste programa, com especial destaque para a iniciativa, já agendada para 2012, que pretende enviar a primeira representação de um grupo de universidades portuguesas para participar na con‑ ferência e exposição anual da NAFSA – Association of International Educators. A nafsa é uma associação pioneira a nível mundial no sector da educação inter‑ nacional e de intercâmbios e a sua conferência anual atrai milhares de profissionais de todo o mundo para promover o intercâmbio com os seus países. É o local ideal para apresentar aos representantes das instituições académicas americanas e aos profissionais da área da educação internacional todas as potencialidades que as universidades e os centros de investigação portu‑ gueses têm para oferecer aos estudantes americanos. O programa “Study in Portugal” representa uma forma de aproximar ainda mais os Estados Unidos e Portugal. Assim, é com orgulho que vejo a Comissão Fulbright, juntamente com os nossos estimados par‑ ceiros, a apoiar este inestimável programa. * Embaixador dos Estados Unidos da América em Portugal, presidente honorário da Comissão Fulbright Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 Um contributo importante para o “Business in Portuguese” Por Rui Boavista Marques* A imagem de um país é um complexo puzzle em que entram componentes variadas e tão reais como a da dívida soberana, o reconhecimento das mar‑ cas, as quotas de mercado globais e regionais, o potencial do turismo e a arte e cultura, entre mui‑ tas outras. No entanto, no caso A relação bilateral Portugal‑EUA do puzzle Portugal, a lín‑ gua tem uma dimensão não só é uma das mais antigas, e parcela maior, por‑ como está recheada de casos quanto põe Portugal em rede com a sua história, de excelência. os seus parceiros e o futuro. A valorização da língua portuguesa como um activo no mundo dos negócios (como noutros) tem vindo a ser acarinhada pela AICEP, sendo muito encorajador saber que o número de estudan‑ tes de português nos EUA tem crescido a dois dígitos. Temos sido testemu‑ nhas da importância do intercâmbio entre estu‑ dantes portugueses e norte‑ americanos, a todos os níveis da cadeia de valor acadé‑ mica, que tem resultado das parcerias entre o Estado português e qua‑ tro das mais reputadas instituições de investi‑ gação científica aplica‑ da: o Massachusetts Institute of Technology, a Carnegie‑ Mellon University, a University of Texas in Austin e a Har vard Medical School. A um outro nível tem a AICEP vindo a apostar neste tipo de intercâm‑ ‘ www.ideia.pt ’ Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 bio através do programa INOV‑CONTACTO, ao enviar anualmente 550 jovens licenciados para estagiarem em empresas por esse mundo fora, tendo, em 2010, 65 tido a experiência de estagiar nos EUA. A relação bilateral Portugal‑EUA não só é uma das mais antigas, como está recheada de casos de exce‑ lência. A título de exemplo, podemos mencionar a Efacec que tem vindo a trazer dezenas de forman‑ dos norte‑americanos à sua sede em Portugal para aprendizagem de tecnologia state‑of‑the‑art no seu sector. É igualmente relevante mencionar que o nível da credibilidade de Portugal como destino de investimento directo norte‑americano tem vindo a aumentar, como o confirmam os seguintes casos: inauguração em Maio pela Xerox do Global Delivery Center Lisbon, o primeiro centro fora dos EUA da Microsoft R&D Center for Speech Recognition, o Microsoft Language Development Center (para o Brasil e Portugal), o centro de BPO da IBM, e os cinco centros de competências da CISCO, todos em operações de outsourcing ou de desenvolvimento de novas aplicações de software, que confirmam o reco‑ nhecimento do nível de competitividade e patamar de excelência existente em Portugal. Acreditamos que chegou agora a hora de apos‑ tarmos também no incremento de mais norte ‑americanos a estudarem em Portugal. O impacto que este intercâmbio pode ter numa melhor inser‑ ção global da economia portuguesa é muito signi‑ ficativo. A AICEP saúda o envolvimento de vários parceiros no projecto “Study in Portugal” e está apostada em contribuir para o sucesso desta ini‑ ciativa, nomeadamente através de uma participação alargada e digna na NAFSA 2012. Mais norte‑americanos a aprender português em Portugal é um dos melhores contributos que pode‑ mos dar para o desenvolvimento de um conceito mais alargado que queremos promover, o do “Doing Business in Portuguese Language”, num reconhe‑ cimento à presença de ligações portuguesas em todos os continentes, com um potencial que exis‑ te e ainda pode ser mais concretizado. * Director coordenador para a América do Norte, AICEP Portugal Global, Nova Iorque 47 Um país para viver, um país para aprender Por Luís Patrão* ‘ ’ RUI OCHÔA O programa “Study in Portugal” é uma oportunidade relevante para promover Portugal enquanto destino turístico e atrair ao nosso país um maior número de alunos e investigadores norte‑americanos. A escolha de um destino pelos jovens que procuram um programa de estudos no estrangeiro não se baseia apenas em critérios meramente académicos. Muitas vezes, paralelamente à qualidade de ensino, é a atractividade do país de acolhimento que muito influencia a decisão. Entra‑se em linha de conta com vários factores, como o clima, o património, a beleza natural, o estilo de vida, o povo, a segurança, a animação e a oferta cultural que os países proporcionam. Escolhe‑se um país para viver, e não só um país para aprender. Portugal apresenta bons argumentos e pode com‑ petir par a par com qualquer outro destino. Especificamente para os jovens norte‑americanos, o nosso país proporciona experiências claramente distintas e diferenciadas, que enriquecem e com‑ plementam os excelentes programas académicos disponíveis nas universidades portuguesas. A aposta nestes públicos, jovens e exigentes, é, em si, um acréscimo de responsabilidade e acima de tudo uma clara visão de futuro. É uma respon‑ sabilidade porque exige que se reforce o desenvol‑ vimento de ofertas dedicadas aos interesses destes públicos, e uma visão de futuro pelo potencial de dinamismo que incorporam no país e por serem agentes de promoção externa por excelência. A capacidade de disseminação e veiculação da imagem de Portugal e das qualidades do destino turístico junto das suas famílias e comunidades de origem é uma mais‑valia para a captação de mais e melhores fluxos turísticos para o nosso país. Mas é igualmente um grande investimento na criação de laços emocionais com potenciais con‑ sumidores, que queiram voltar uma e outra vez e dar a conhecer, aos amigos e família, o sítio onde foram felizes. O programa “Study in Portugal” é pois uma oportunidade relevante para promover Portugal enquanto destino turístico e atrair ao nosso país um maior número de alunos e investigadores norte‑americanos. * Presidente do Turismo de Portugal 48 Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 Programa pioneiro ‘ A mobilidade académica, com períodos de estada variáveis e com objectivos diversos destinada a multiplicar os fluxos de estudantes, professores e investigadores, constitui um factor de progresso, de alargamento de horizontes, e de corte transfronteiriço que tem permitido o cruzamento de identidades culturais, de partilha de valores e de experiências. RUI OCHÔA Por António Rendas* ’ Portugal conta com uma rede de 16 universidades públicas que oferecem formação em todos os níveis do ensino superior, incluindo programas de pós‑dou‑ toramento e investigação em todas as áreas científi‑ cas. Devido às exigências de internacionalização, as universidades portuguesas oferecem programas e planos curriculares para alunos estrangeiros, ensi‑ nados em língua inglesa, em variados domínios científicos e graus académicos. Portugal tem, assim, particulares vantagens para o estudo de temas diversificados que vão desde a história à biologia marinha e oceanografia, da economia e direito à literatura comparada, da medicina às engenharias e à arquitectura, entre tantas outras. A experiência internacional é de grande relevância para a troca de saberes entre as instituições e representa um importante passo para o crescimento das universidades. Neste sentido, o programa “Study in Portugal”, cujo protocolo foi assinado recentemente pelo Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas ( crup ) com a Fundação Luso‑Americana, o Turismo de Portugal, a aicep e a Comissão Fulbright deverá contribuir para a promoção das universidades e centros de investigação portugueses, junto das universidades americanas. Este programa pioneiro representa um contribu‑ to decisivo para a divulgação das universidades e Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 centros de investigação portugueses, nos Estados Unidos, visando ainda aumentar o número de alu‑ nos norte‑americanos que escolhem as universida‑ des portuguesas como destino de formação. Neste contexto, as parcerias estratégicas entre as univer‑ sidades portuguesas e prestigiadas universidades norte‑americanas ganharam força nos últimos anos. A mobilidade académica, com períodos de estada variáveis e com objectivos diversos destinada a multiplicar os fluxos de estudantes, professores e investigadores, constitui um factor de progresso, de alargamento de horizontes, e de corte transfron‑ teiriço que tem permitido o cruzamento de iden‑ tidades culturais, de partilha de valores e de experiências. O crup, criado em 1979, aposta na mobilidade e na formação pós‑graduada em parceria com ins‑ tituições estrangeiras de referência. Promover a mobilidade académica significa compartilhar conhe‑ cimentos, e ampliar a visão de cooperação multi‑ lateral entre os países, com especial enfoque no ensino, na investigação científica e na extensão universitária. * Presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) 49 SOCIEDADE Não há glória sem riscos O empreendedorismo pode e deve ser ensinado. Paul Jerde faz disso um modo de vida na Universidade do Colorado e noutros centros de ensino, como o Unreasonable Institute, porque a inovação também é ir além do razoável. Os administradores da Fundação Luso‑Americana, Charles Buchanan e Mário Mesquita, reuniram‑se com o professor norte‑americano de visita a Portugal. texto e fotografias de Sara Pina [Paralelo] Há quem ache que o empreendedoris‑ mo não pode ser ensinado. Ou se tem ou não se tem... Como é que se ensina? [Paul Jerde] Será possível ensinar alguém a ser um empresário e será possível ensinar o empreendedorismo? Estabeleço uma dife‑ rença entre as duas coisas. Não creio que se possa ensinar alguém a ser um empresário. Isso é algo que vem de dentro. Mas creio firmemente que é possível ensinar as com‑ petências, transmitir o conhecimento e ensi‑ nar as metodologias do pensamento crítico, de modo que as pessoas aprendam a reco‑ nhecer os desafios e a identificar oportuni‑ dades, agindo depois com base nas suas ideias. É nisso que consiste o ensino do empreendedorismo. [P] Quais são as características pessoais que permitem que uma pessoa se torne um empre‑ sário bem‑sucedido? [PJ] Há várias coisas. Para uma pessoa efec‑ tivamente dar o passo e dizer “Vou come‑ çar algo de novo” é sempre um acto muito pessoal. Mas costumo dizer aos meus alu‑ nos que algumas pessoas o conseguem fazer, têm jeito para isso. Outras não. E essas pessoas necessitam de outras para as ajudar. Necessitam de ter na sua equi‑ pa pessoas empreendedoras que as ajudem a construir aquilo que têm em mente. E essas pessoas precisam de ter compe‑ tências complementares. Têm de ser pes‑ soas que não só são peritas em assuntos como finanças, ou marketing, ou operações, ou estratégia, ou gestão, mas também pes‑ soas que saibam funcionar em ambientes muito difíceis. Metade de todos os ambien‑ tes não dispõem de capitais suficientes e mudam rapidamente. Por isso, as pessoas têm de ser muito flexíveis, saber aceitar a mudança e conseguir mexer‑se num ambiente muito ambíguo. Na minha opi‑ nião, é este o conjunto de competências 50 “Para uma pessoa efectivamente dar o passo e dizer ‘Vou começar algo de novo’ é sempre um acto muito pessoal.” que deve ter uma pessoa que quer ser um empresário ou funcionar num ambiente empresarial. [P] É possível ser‑se um empresário sem correr riscos? [PJ] Não creio. Mas, surpreendentemente, deveria discutir‑se muito mais esse assun‑ to nos Estados Unidos. Curiosamente, assim que uma pessoa tem uma ideia empresarial, aquilo que faz é tentar reduzir os riscos. Portanto, a pessoa aceita o risco, mas depois disso concentra todos os seus esforços em reduzir os riscos. E isto significa riscos tec‑ nológicos, riscos de mercado, riscos de liderança… todos os riscos a que as empre‑ sas estão expostas. Os empresários estão sempre, persistentemente, a tentar reduzir os riscos. Mas assumem efectivamente um risco quando iniciam a sua actividade. [P] Pode partilhar connosco algum caso de empre‑ endedorismo por parte de um aluno? [PJ] Vou contar‑lhe o meu caso preferido. Há cinco anos, havia uma jovem chamada Sara Shude a tirar o nosso curso de empre‑ endedorismo. Identificou uma ideia que tinha a ver com o facto de as universidades terem dificuldade em comunicar eficazmen‑ te com os pais dos seus alunos. Publicam Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 SOCIEDADE material informativo, mas não têm muito jeito para comunicar. Portanto, aquela jovem identificou essa área e disse: “E se eu me tornasse editora do material que a univer‑ sidade quer publicar e começasse a editar uma publicação intitulada University Parents?” A ideia teve tanto êxito que ela acabou por alargar o serviço. Penso que actualmente tem contratos com cerca de 160 universidades. E fê‑lo com muito pouco capital. [P] Como concilia o empreendedorismo com a sustentabilidade? [PJ] Conseguimo‑lo depois de sermos reco‑ nhecidos, durante vários anos, como um dos principais cursos de empreendedoris‑ mo. Portanto, tivemos de pensar seriamen‑ te em que direcção o futuro iria avançar. O que descobrimos foi que, cada vez mais, os consumidores estavam a mudar a forma como exerciam a sua actividade de modo a tornarem‑se mais sustentáveis. E, tal como os empresários fazem sempre, considerá‑ mos mudanças fundamentais. Quando as empresas mudam de rumo, ainda que ligei‑ ramente, isso cria oportunidades para os empresários, porque as grandes empresas necessitam de novas soluções. [P] Ensinar os portugueses a assumirem riscos é diferente de ensiná‑lo aos americanos? [PJ] Penso que há muitas diferenças. Quando penso na história de Portugal, vejo que é um dos melhores exemplos de empreende‑ dorismo baseado no risco movido pelo desejo de tirar partido de novas oportuni‑ dades. É uma coisa natural, é uma coisa que está no ADN aqui em Portugal. Na verdade, para mim, à medida que aprendo mais sobre o país, parece‑me uma anomalia. Eu diria que há várias coisas que são muito diferentes, e não sou um economis‑ ta, não sou um político do governo – estou a observar isto de longe. Porque muitos empresários tendem a ser bastante apolíti‑ cos. Estamos no terreno a criar empresas. E temos um ambiente que nos permite adaptar‑nos, um ambiente que muda quan‑ do se trata de sectores regulamentados. Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 Portanto a energia e muitas outras coisas ajudam‑nos, cada vez mais, a sermos ino‑ vadores, e as respostas que encontramos estão a tornar‑se mais importantes para as gerações vindouras nos Estados Unidos. É tudo muito dinâmico. Quais são então as diferenças? A primei‑ ra coisa que digo sempre é que nunca devemos pensar nos Estados Unidos como um país em que toda a gente faz a mesma coisa. Há áreas nos Estados Unidos que são muito empreendedoras. Nós estávamos numa dessas áreas, portanto, isso fazia parte da nossa cultura. No entanto, há muitas áreas nos Estados Unidos que não são nada empreendedoras. Mas as semelhanças surgem ao nível estadual. Todos sabemos o que a Califórnia fez. É preciso que haja líderes com um plano, líderes que preparem o cenário de modo a que as empresas possam funcio‑ nar com confiança. Isso faz toda a dife‑ rença. Temos isso no Colorado. Portanto, a diferença é que não o podemos fazer a nível federal. Penso que Portugal tem a possibilidade de ser muito mais eficaz, definindo políticas a nível federal. [P] É preciso não estar no seu perfeito juízo ou ter um parafuso a menos para se ser um líder? Ou ser emocional e impulsivo? E o que tem a dizer sobre o Unreasonable Institute? [PJ] Sem dúvida, sim. [Ri‑se.] Faz parte da natureza humana resistir à mudança. Há uma característica que define os empresários, nomeadamente o facto de procurarem algu‑ ma coisa – vivem no limiar do que é sen‑ sato. Eu sei que eu vivo. Acredito que quando não mudamos, ficamos para trás, porque o mundo está a mudar. Está a mudar [bate com os dedos na mesa] a cada segun‑ do. Qualquer pessoa que deseje manter o status quo está a ficar para trás, porque o mundo está a avançar rapidamente. Há sem‑ pre uma maneira melhor, uma maneira diferente; há sempre uma nova oportunida‑ de. Há sempre uma mudança para identifi‑ car e para adoptar e da qual se pode tirar partido de uma maneira ou outra. Os empresários assumem riscos que a maioria das pessoas não assume, e, depois, põem‑se imediatamente a trabalhar no sentido de reduzir esses riscos. Não gos‑ tam de viver num estado de risco cons‑ tante, mas têm as competências necessárias. E isto conduz‑nos à educação. Se conse‑ guirmos ensinar uma pessoa a avaliar um risco e quais são as coisas que é necessá‑ rio considerar para reduzir esse risco, então conseguiremos colocá‑la numa posi‑ ção em que se sente confortável e diz: “Creio que isto é um risco razoável que posso assumir. Não é insensato da minha parte assumi‑lo, porque há uma boa pro‑ babilidade de eu conseguir superar os outros riscos. E, se eu conseguir fazê‑lo, então vou aprender com isso”. * Com André Sebastião Sobre o Centro de Educação do Empreendedorismo em Portugal (Ceep) O Centro de Educação do Empreendedorismo em Portugal (CEEP) é uma associação sem fins lucrativos, na qual participam indivíduos, organizações de educação, empresas, entidades governamentais e da sociedade civil. A missão do CEEP é apoiar o desenvolvimento e a implementação de programas nacionais de apoio à educação e formação para o empreendedorismo através de projectos de investigação, educação e formação e ao processo de desenvolvimento de políticas. O CEEP foi criado em 2010 e tem acordos com entidades nacionais incluindo: Universidade de Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, Centro Regional do Porto, Universidade do Algarve e a ISCTE‑Audax – Centro de Investigação e Apoio ao Empreendedorismo e Empresas Familiares. 51 SOCIEDADE Perder para ganhar Michael Fernandez dirige em São Francisco uma empresa que apoia outras empresas e indivíduos a criarem novos negócios e a investir em áreas inovadoras, a JMF & Co. Fundou a Little Kids Rock, uma das maiores organizações não lucrativas que ensina música nas escolas públicas americanas a mais de 100 mil crianças. Explica que para ganhar geralmente se começa por perder e que isso justifica que os californianos corram mais riscos. SARA PINA Por Sara Pina e Claudia Colla* [Paralelo] O que é a inovação? [Michael Fernandez] Segundo a minha pers‑ pectiva, inovação significa ter novas ideias. E isso não é muito fácil, porque todas as pessoas se sentem muito confortáveis com aquilo que estão a fazer. Na verdade, ser inovador é um estado de espírito. Ser ino‑ vador é correr alguns riscos, é correr o risco de fracassar e, por outro lado, tam‑ bém, pôr em risco a forma como os outros nos vêem. [P] Se a inovação é um estado de espírito, como se pode aprender a ser inovador? [MF] Estou firmemente convencido de que não é possível ensinar alguém a ser um empresário. Mas, em parte, trata‑se de ajudar uma pessoa a perceber que pode correr um risco, e a primeira coisa que ela dirá será talvez: “Curioso. Estou cons‑ tantemente a ter percepções que não me deixam fracassar. E sou capaz de tomar decisões mesmo que as pessoas não este‑ jam de acordo comigo.” A outra parte consiste em ensinar‑lhes um conjunto de competências diferentes. A primeira é compreenderem a imagem que têm de si mesmas – aliás, a compre‑ enderem as decisões que tomam. Quando uma pessoa pensa que não é capaz de fazer qualquer coisa, ou se tem um diálogo interior negativo, então está como que a limitar a sua capacidade de agir. [P] Qual é a diferença entre lançar uma nova empresa na Europa e na América? [MF] Quanto a esse aspecto, os Estados Unidos são diametralmente opostos à Europa, pelo menos em São Francisco. Em São Francisco não se pode dizer que o fracasso seja considerado uma coisa boa, mas é geralmente aceite – embora não seja fácil sair de uma situação de fracasso, é preciso todo um processo para compre‑ ender “Fiz isto e falhei”. Quando uma 52 “Os Estados Unidos são directamente opostos à Europa” no que diz respeito a lançar uma nova empresa. Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 SOCIEDADE pessoa fracassa, sente‑se perfeitamente confortável com isso. Na Europa, há a ideia de que as pessoas não podem fracassar. Em termos de empreendedorismo, os investidores reconhecem que aprendemos mais se reflectirmos sobre os erros que cometemos. Isto é o extremo oposto do que se passa na Europa e é o maior desafio da Europa. É o maior desafio da Europa porque penso que, para o mercado europeu ser inovador ou experimentar coisas novas, tem de haver algum gosto pelo risco, algum gosto pelo fracasso. Não se pode pensar que se uma pessoa tentar fazer qualquer coisa e fracassar a sua vida acabou. Tanto mais que as probabilidades de sermos bem ‑sucedidos à primeira tentativa são extre‑ mamente remotas. Por vezes, alguns dos casos mais interessantes são aqueles em que as pessoas fracassam muitas vezes. ‘ Na Europa, há a ideia de que as pessoas não podem fracassar. ’ [P] Acha que os americanos são mais inovadores do que os europeus? [MF] Penso que os americanos estão dispos‑ tos a correr riscos que lhes permitem ser mais inovadores. Não creio que sejam mais inteligentes ou mais criativos, nem mais inovadores. Penso que há uma cultura que lhes permite correr riscos, uma cultura que diz que não faz mal uma pessoa sair de onde está e começar algo de novo. [P] E o que tem a dizer sobre a Little Kids Rock? [MF] A Little Kids Rock é uma sociedade sem fins lucrativos que lançámos em finais de 1999 e princípios de 2000. Havia uma professora que tinha um programa de músi‑ ca para as escolas e fizemos uma parceria. Ela sabia ensinar as crianças a tocar música e eu sabia juntar pessoas. Arranjámos pes‑ soas com competências de contabilidade, de gestão e jurídicas e formámos um conselho de administração, e depois, juntos, come‑ çámos a angariar fundos. Começámos com apenas 25 crianças nos Estados Unidos, e agora já temos mais de cem mil crianças. Temos mais de mil escolas no país, em 20 estados diferentes. Somos actualmente uma das quatro principais organizações sem fins lucrativos dos Estados Unidos em termos de eficiência e impacto. * Com André Sebastião Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 Antes oportunidades que dinheiro Por Sara Pina* Professor de Estratégia e Gestão de Inovação do Instituto Politécnico de Turim, em Itália, e membro da direcção da Agência Nacional Italiana para a Inovação, Mario Calderini considera que, para incentivar a inovação, os governos não podem concentrar‑se ape‑ nas no financiamento da investigação. [Paralelo] Como é que as políticas públicas podem criar as condições necessárias para que os países se tornem mais inovadores? [Mario Calderini] As políticas públicas devem deixar de conceder dinheiro e financiamen‑ tos directamente às empresas e ser orien‑ tadas, principalmente, para a criação de novas oportunidades de negócios e novos mercados, baseando‑se na procura por parte do público. Devemos obter consumi‑ dores para as empresas e proporcionar‑lhes oportunidades de mercado, em vez de lhes darmos dinheiro. Dessa maneira, as empre‑ sas assumem mais riscos e tornam‑se mais inovadoras. Se lhes dermos dinheiro, tor‑ nam‑se preguiçosas. [P] Já disse em várias ocasiões que a inovação é gerada de cima para baixo. Pode explicar essa ideia? [MC] Se o modelo considerar grandes empresas com grandes laboratórios de investigação ou grandes universidades a fazer muita investigação, então a inovação é simplesmente gerada por essas actividades de investigação. Mas, hoje em dia, penso que os utilizadores finais/consumidores são fontes de inovação muito importantes. Muitas das inovações que temos, por exem‑ plo, no sector automóvel e no sector do desporto devem‑se aos consumidores e não à investigação. São fruto da procura. Portanto, creio que devemos considerar a investigação como apenas uma das muitas fontes de inovação. Por que havemos de descurar todas as outras? [P] Considera que a Itália está a investir dema‑ siado nas universidades e na investigação? [MC] Na minha opinião, não se devem conceder fundos para investigação a empresas que não fazem investigação. Seria talvez mais útil dar esse dinheiro às uni‑ versidades e a umas quantas empresas que se dedicam efectivamente à investigação. O problema é que temos 77 universidades, mas só dez, provavelmente, é que conse‑ guem gerar conhecimentos verdadeiramen‑ te avançados e novas empresas. A escolha é muito clara. Ou concentramos os nossos financiamentos nessas dez universidades, ou se reparte o dinheiro pelas 77. Se repar‑ tirmos o dinheiro, temos um modelo de educação e investigação com uma orienta‑ ção mais social, e todas as universidades poderão fazer um pouco de investigação. Mas nunca ninguém atingirá a massa crí‑ tica necessária para produzir um grau de conhecimento elevado. [P] Considera importante aprender sobre empre‑ endedorismo desde muito cedo? Desde a escola primária ou secundária? [MC] A minha opinião pessoal é que não se deve começar com o empreendedoris‑ mo muito cedo. É necessário criar estu‑ dantes com uma mentalidade muito flexível; é necessário que eles se apaixo‑ nem por assuntos como a engenharia e a ciência. O que é importante é que o sis‑ tema educacional os ajude a terem um espírito mais aberto do que voltado para o empreendedorismo. O empreendedo‑ rismo vem mais tarde. [P] Não acha que o sistema educacional na Europa é em certa medida contrário a esse tipo de mentalidade aberta? [MC] Estou inteiramente de acordo. De um modo geral, se pegarmos em estudantes universitários europeus e lhes concedermos fundos para fazerem um doutoramento ou programas de pós‑graduação nos Estados Unidos eles têm um excelente desempenho, porque têm uma óptima formação. Mas o lado negativo é, evidentemente, que se o seu ensino tiver sido muito rigoroso e vie‑ rem de programas muito rígidos, muitas vezes, não estão habituados a ser flexíveis. Se pegarmos num estudante inglês ou – mais ainda – num estudante americano, é provável que ele tenha passado menos tempo a estudar o que vem nos livros e mais tempo a divertir‑se e a ser criativo. Portanto, há aspectos negativos e positivos. * Com André Sebastião 53 SOCIEDADE Anita Catlin “O cuidado paliativo é como fazer um parto do processo de morrer” “Esta é Anita Catlin. Convidámo‑la para falar, embora não acreditemos em nada do que diz.” Foi deste modo que em 1996 a investigadora americana Anita Catlin foi apresentada a uma plateia de médicos de uma grande unidade perinatal num importante hospital dos Estados Unidos. Por MÓnica Carvalho* Na ocasião, a doutora em enfermagem materno‑infantil e especialista em ética perinatal foi convidada para falar sobre o fim de vida dos recém‑nascidos, então uma espécie de tabu entre os profissionais da área. “As pessoas não queriam falar; não acreditavam que houvesse qualquer outro modo de tratar um recém‑nascido que estava a morrer.” Anita Catlin esteve em Portugal para dar um curso aos alunos do doutoramento em Bioética, na Universidade Católica Portuguesa, onde nos falou do seu trabalho. No início dos anos 1990, Anita Catlin interessou‑se pelo estudo dos direitos da mãe e da criança ao observar que o tra‑ tamento das grávidas focava‑se mais no feto do que na mãe. Narra o caso de uma mulher de origem indígena que desen‑ volveu diabetes gestacional e foi atendida na unidade em que trabalhava. É‑lhe recei‑ tada insulina, tratamento que a mulher recusa. Sem mais argumentos para con‑ vencê‑la a tomar insulina, os médicos ameaçam denunciá‑la por abuso do seu futuro filho. “Ninguém lhe perguntou o que significava a insulina para ela. Teria medo da injecção? Teria conhecido alguém que morrera por causa da insulina? Estavam tão focados no feto, nas suas necessidades, que me pareceu que não pensavam na mãe”, diz Catlin. Além do direito da mãe e da criança, Anita Catlin também começa a estudar ética nos cuidados paliativos neonatais. Catlin foi uma das pioneiras nesta área. De facto, nos eua, em meados dos anos 1990, os deba‑ tes sobre os cuidados paliativos neonatais ainda não eram muito considerados pelos 54 profissionais de saúde. “Vi médicos muito las de enfermagem é comum haver um irritados porque eu dizia que se devia olhar capítulo sobre o fim de vida. Contudo, para o contexto da família.” o mesmo não acontece em medicina, Para a investigadora, as tecnologias cos‑ embora haja crianças que morrem com tumam ser aplicadas de forma muito ampla frequência nas unidades neonatais e nos sem qualquer reflexão ética acerca da sua cuidados intensivos pediátricos. “Se abrir utilização. Dá o exemplo da nutrição arti‑ qualquer livro usado na formação dos ficial por sonda. A prin‑ cípio, esta técnica destinava‑se aos que recuperavam das lesões causadas pela ingestão Se abrir qualquer livro usado de veneno ou que na formação dos médicos – conheço tinham cancro no esó‑ fago. Actualmente é uti‑ todos, também são usados em Portugal lizada em qualquer – a palavra morrer não aparece. doente que não tenha apetite. Segundo Anita Não há nada nos livros que ensine Catlin, “No meu país, ao médico como retirar um tratamento, põe‑se uma sonda em muitas pessoas e come‑ como limitar o uso da tecnologia, ça‑se a alimentá‑las arti‑ como proporcionar um fim de vida ficialmente, de modo a mantê‑las vivas por digno. Nenhuma palavra. muito tempo, embora não se consiga alterar o seu prognóstico. Na bioética as pessoas médicos – conheço todos, também são preocupam‑se com essas questões. Já que usados em Portugal – a palavra morrer se sabe o que fazer, deve‑se fazê‑lo? Será o não aparece. Não há nada nos livros que benefício maior que o malefício?” ensine ao médico como retirar um tra‑ tamento, como limitar o uso da tecno‑ logia, como proporcionar um fim de vida Ignorar a morte na saúde digno. Nenhuma palavra”. Anita Catlin destaca que a dificuldade em Declara, porém, que o cenário tem vindo lidar com a morte nas unidades pediá‑ a alterar‑se, inclusive em Portugal, que tricas ou neonatais se deve, em grande considera estar em grandes mudanças. parte, à própria formação em saúde, em Destaca o Hospital de São João, no Porto, especial na medicina. Afirma que nos que se prepara para criar uma unidade de livros de enfermagem neonatal das esco‑ cuidados paliativos pediátricos, a primeira ‘ ’ Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 SOCIEDADE do País. Apesar deste passo importante, inquieta‑se por ainda existirem em Portugal muitos casos de crianças que vivem em Angola, nos Açores ou na fronteira com a Espanha, e que são transferidas para hos‑ pitais centrais, na esperança de obterem a cura ou a melhora do seu estado. Contudo, muitas dessas crianças têm prognósticos graves e acabam por morrer longe da sua comunidade, por vezes afastadas também dos seus familiares. “Creio que se houves‑ se bons cuidados paliativos talvez isso não acontecesse tanto”, diz. Para a investigadora, os cuidados palia‑ tivos envolvem um grande esforço de equipa, onde cada profissional tem um papel. Para os que estudam ou querem trabalhar nesta área, destaca que os cui‑ dados paliativos pressupõem que diferen‑ tes pessoas possam trabalhar em conjunto, de modo que todos se sintam bem com o próprio trabalho. “Certa vez ouvi alguém dizer que os cuidados paliativo são como fazer um parto. A parteira e a equipa tra‑ zem a pessoa à vida. Há a parteira e o médico, o assistente social, o nutricionis‑ ta, o farmacêutico, muitos estão envolvi‑ dos em trazer para a vida. E eu creio que o cuidado paliativo também é como fazer um ‘parto’ do processo de morrer.”. * Psicóloga e jornalista. Doutora em Comunicação e Cultura. Investigadora do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa DR Pensar menos na eutanásia Embora a eutanásia não seja permitida nos eua , nos estados de Oregon, Washington e Montana há o suicídio assistido – Physician aid‑in‑dying ou pad. No suicídio assistido, o médico, a pedido do doente, prescreve medicamentos que antecipam a sua morte. Mas Anita Catlin acrescenta que entre aqueles que solici‑ tam a prescrição ao médico, a maioria não toma esses medicamentos. Portanto, conclui a investigadora, o suicídio assis‑ tido parece mais uma questão de contro‑ lo sobre o próprio destino, “controlo sobre como morrer”. Catlin acha que as pessoas tenderão a pensar cada vez menos na possibilidade da eutanásia ou do suicídio assistido se puderem tratar os sintomas desconfortá‑ veis da morte e ter um fim de vida com qualidade. A sua ideia tem por base o aumento dos cuidados paliativos no esta‑ do de Oregon desde que o suicídio assis‑ tido passou a ser legal. Uma reacção, segundo ela. Anita Catlin esteve em Portugal para falar dos cuidados paliativos. Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 55 PERFIL Donald Finberg, primeiro presidente da FLAD Um espírito independente com sentido de missão “Finberg representava todas as qualidades que eu identifico nos EUA: simplicidade, mérito, solidariedade”, refere um ex‑funcionário da Embaixada dos EUA que trabalhou com o primeiro presidente da FLAD. O diplomata e administrador Donald Finberg regia a sua actividade profissional por uma elevada bitola ética, que deixou marcas indeléveis na Fundação Luso‑Americana. O sentido de solidariedade, o humor e a cortesia deixaram outras tantas na vida dos seus colaboradores e amigos, que o recordam com saudade e deferência. Os mais desavisados podiam interpretar o “tome assento” que Donald Richard Finberg dirigia à secretária, Luiza Gomes, como uma solicitação para anotar instruções e dados para uma qualquer tarefa. Mas não, o primeiro presidente do Conselho Executivo da Fundação Luso‑Americana para o Desenvolvimento estava apenas a ser cortês na sua forma bem humorada, con‑ vidando a actual chefe dos serviços admi‑ nistrativos para confortavelmente take a seat num sofá ou cadeira do gabinete. “Era muito competente, seguro, organizado. Também era muito teimoso, directo e não guardava esqueletos no armário. E aprecia‑ va que as pessoas também fossem assim com ele”, descreve Luiza Gomes que, em três curtas frases, resume muito do que pensavam os mais próximos do diplomata que morreu, no passado dia 25 de Abril, em McLean (Virgínia). A personalidade, educação e experiência do homem nascido a 23 de Novembro de 1931, em Baltimore (Maryland), terão con‑ corrido em doses complementares para formar o espírito livre, de arreigada inde‑ pendência e firmes princípios éticos que caracterizavam Donald Richard Finberg. Formado na Universidade de Princeton nas áreas da administração pública e relações internacionais, ingressou em 1960 na Agency for International Development, entidade do Departamento de Estado nor‑ te‑americano para a cooperação económi‑ 56 DR Por Isabel Marques da Silva Mário Soares com Donald Richard Finberg nos anos 1980. Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 PERFIL Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 ‘ cepção funcional criou raízes que perduraram: Finberg era um pedagogo no sentido “Dava muita importân‑ cia à avaliação dos resul‑ de veicular uma certa ética na forma tados, criou grelhas de fazer os projectos. Questões como muito claras e fazia questão de difundir o não conflito de interesses e a boa junto dos media os pro‑ gestão de dinheiro público eram jectos que estavam no terreno e de fazer o José Luís Almeida Pinheiro, consultor sagradas. balanço do que tinha sido realizado. Era um entusiasta do projecto flad e isso era con‑ peia, pessoa muito honrada, com visão tagiante para todos os que trabalhavam com aberta da vida e do mundo, muito inteli‑ ele”, recorda Fernando Durão, que ocupa‑ gente, democrata e de enorme integrida‑ va na altura a direcção da Educação. de”. Tal como o colega da Educação, Outro director, na área da Ciência e o actual eurodeputado socialista destaca Tecnologia, António Correia de Campos, o papel fundamental de Finberg na criação também recorda com saudade “o diplo‑ de mecanismos que credibilizaram a acção mata polido, conhecedor da cultura euro‑ da flad. “Acreditava na desburocratização ’ DR ca com países em desenvolvimento. Passou pelo Brasil, Paraguai e Peru até chegar à Embaixada dos eua em Portugal onde ficou até 1985. Com o estatuto de ministro‑con‑ selheiro, reformou‑se da carreira diplomá‑ tica para regressar pouco depois a Lisboa e lançar a flad, presidindo ao primeiro Conselho Executivo. Vinha lançar as semen‑ tes de uma instituição para a cooperação de tipo novo num país marcado pela dita‑ dura mais longa da Europa. Com ele tra‑ balhar ia estreitamente o ainda administrador Charles Buchanan, incondi‑ cional admirador do seu espírito de missão. “Era muito convicto das suas ideias e per‑ sistente, porque era muito trabalhador e sustentatava as decisões com base em tra‑ balho intenso. Algumas pessoas considera‑ vam até que era um workaholic, porque não descansava até terminar uma tarefa ou uma investigação. Fez muitas consultas com peritos e muitas visitas a instituições para que fosse feito o melhor projecto de fun‑ dação, para conceber o melhor sistema de gestão”, afirma. A sua rectidão e rigor destacaram‑se desde sempre aos olhos dos mais próxi‑ mos. “Ele traçava a direito, dizia o que tinha a dizer e seguia os seus critérios. Tinha a percepção que em Portugal a ges‑ tão de lugares de poder era feita na base da cunha e da filiação partidária, o que lhe fazia muita confusão. Finberg era um pedagogo no sentido de veicular uma certa ética na forma de fazer os projectos. Questões como o não conflito de interes‑ ses e a boa gestão de dinheiro público eram sagradas. Ele costumava dizer que mais do que uma democracia, Portugal precisava de uma meritocracia e traduziu isso no seu projecto para a flad”, expli‑ ca o consultor José Luís Almeida Pinheiro, que trabalhou para Finberg na Embaixada dos eua em Lisboa e que ajudou a con‑ ceber a orgânica da Fundação. Em 1986, Portugal tinha pouco mais de uma década de experiência democrática e estava a iniciar a aventura como membro da comunidade europeia, mas sofria de um grande atraso ao nível das competências para evoluir para uma sociedade mais aber‑ ta e competitiva. A educação, a ciência e a tecnologia, o desenvolvimento regional, o apoio à sociedade civil e ao sector privado eram prioridades fundamentais. Finberg queria que os mais de 100 milhões de dólares de dotação financeira fossem empregues de forma muito criteriosa, em menos de uma década, para acelerar esse processo, mas a flad acabou por ter um estatuto perpétuo. A sua tese sobre a lon‑ gevidade da flad não venceu, mas a con‑ “Finberg representou todas as qualidades que eu identifico nos EUA: simplicidade, mérito, solidariedade”, caracteriza Almeida Pinheiro que trabalhou com ele. 57 PERFIL Um democrata teimoso Charles Buchanan regressou recentemen‑ te dos eua onde foi convidado a fazer mais uma apresentação sobre a forma como foi concebida e implementada a flad, tal o carácter inovador e de sucesso do projecto. Muito desse sucesso deve‑se, como se viu já, ao rigoroso espírito de missão de Finberg, mas essa sua determi‑ nação exigia um certo travão externo. “Era muito centralizador e logo no início tive de ter uma conversa com ele porque não gostava de delegar e eu exigia ter mais autonomia. Ele entendeu o meu ponto de vista e aceitou”, afirma Fernando Durão, que reconhece na teimosia a faceta mais difícil de gerir nas relações com o primei‑ ro presidente da Fundação. “Finberg repre‑ sentava todas as qualidades que eu identifico nos eua: simplicidade, mérito, solidariedade. Mas era muito teimoso e tinha que se lhe fazer frente. E ainda assim era difícil fazê‑lo mudar de opinião, por‑ que era muito impaciente e decidido”, acrescenta Almeida Pinheiro. Nem sempre Finberg conseguiu levar a sua avante e como democrata de cepa que era acabava por aceitar a vontade da maio‑ ria e, até, reconhecer mais tarde o mérito de ideias que ao início lhe desagradavam. “Devido às suas convicções, ele não tinha sempre a concordância dos outros mem‑ bros do conselho executivo. Era teimoso, mas acabou por rever a sua posição em alguns casos. Havia muito debate sobre algumas áreas, como por exemplo a coo‑ peração com a África lusófona. Ele achava que não era a vocação da flad, mas mais tarde reconheceu que foram bons os resul‑ tados dos projectos trilaterais que eu tanto defendera”, refere Charles Buchanan. Correia de Campos recorda outras duas áreas onde a famosa teimosia de Finberg acabou por não se traduzir no terreno: “Votou vencido na compra deste edifício e tinha enorme reserva sobre a colecção de arte da Fundação, mas era muito demo‑ 58 crata e respeitava a decisões do Conselho Executivo. Para José Luís Almeida Dava muita importância à avaliação Pinheiro, esta rectidão dos resultados, criou grelhas muito e teimosia não se coa‑ dunavam muito com claras e fazia questão de difundir junto uma certa tradição do dos media os projectos que estavam “politicamente correc‑ to” que marcava as no terreno e de fazer o balanço do que decisões e relações de tinha sido realizado. Era um entusiasta poder em Portugal. “Ele chamava os bois pelos do projecto FLAD e isso era contagiante nomes e acabou por para todos os que trabalhavam sair de Portugal em parte por razões políti‑ Fernando Durão com ele. cas. Ele disse ‘não’ a algumas figuras de muito poder em sido reconhecida oficialmente a sua con‑ Portugal. Além disso, os três primeiros tribuição para o desenvolvimento do País: mandatos deveriam ter sido presididos por norte‑americanos, para desampatar as situ‑ “Uma das coisas que mais me magoou foi ele nunca ter sido condecorado pelo ações mais complicadas entre os adminis‑ tradores portugueses ligados aos dois Estado português, tendo em conta que fez principais partidos (ps e psd) e ele fez um trabalho importante. Mas na altura esse desempate várias vezes. Mas quando ninguém gostou muito de que o primei‑ saiu da flad, o princípio da não partida‑ ro presidente da flad tivesse sido um rização da presidência deixou de ser res‑ norte‑americano e não um português. Isso peitado.” Correia de Campos reconhece foi uma fonte de dificuldade, mas ele que Finberg nunca se preocupou em dei‑ merecia ter sido mais reconhecido. Os seus xar uma marca ideológica, em “ficar na três anos de trabalho moldaram a Fundação História”, porque “pensava operacional‑ numa cultura de independência e aparti‑ mente face à missão que lhe foi entregue”. darismo, que funcionava sem filtragem Mas o ex‑director lamenta que não tenha ideológica.” ‘ ’ DR e na avaliação interpares e independente. Criou um pequeno papel, uma espécie de folheto, que dava toda a informação sobre os concursos e, depois de uma primeira triagem, entregavam‑se as candidaturas a peritos para fazerem pareceres de não mais de 20 páginas. Só depois os directores pegavam nos projectos e estruturavam o processo de subsídio. Ao fim de um ano o projecto era avaliado por alguém con‑ vidado externamente e com visitas ao terreno para aferir das reais transforma‑ ções”, refere. Finberg e Buchanan, dois americanos em Lisboa enquanto administradores da FLAD, nos anos 1980. Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 Paula Vicente PERFIL Em Junho de 2010, Donald e Hela Finberg visitaram Portugal. Do humor e dos pequenos gestos Mas Portugal tinha conquistado definitiva‑ mente o coração de Finberg, que ao fim do seu mandato regressa aos eua para tra‑ balhar de novo na área das relações com a América Latina, na Pan American Development Foundation e na Partner of the Americas. Mas não sem deixar de com‑ prar um apartamento na Praia Maria Luísa, no Algarve, onde continuou a receber os seus amigos portugueses nas férias. Com eles podia discutir muitos dos problemas nacionais porque continuou a assinar o semanário Expresso e com certeza pergunta‑ va pela qualidade do programa musical da Fundação Gulbenkian. “Não perdia os con‑ certos e organizava idas em grupo, fazendo circular o programa. E também tinha muito sentido de humor, embora um bocadinho corrosivo. Tenho saudades daquele tempo em que trabalhávamos muito, em espaços pequenos e de forma muito profissional mas também familiar. Por vezes trazia bolo de casa, feito pela mulher”, recorda Luiza Gomes, que se tornou amiga de Finberg. Almeida Pinheiro também considera um privilégio ter podido continuar a convi‑ ver com o seu chefe na Embaixada dos Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 eua em Lisboa e recorda com saudade as corridas pelas tasquinhas da cidade “porque ele adorava a nossa comida”, as conversas temperadas com um bom vinho e o “notável espírito de humor, com um sarcasmo muito queirosiano. Mas debai‑ xo do seu sarcasmo era de uma ternura comovente”, refere. da Paula Vicente, que trabalhou como secretária de Finberg desde os primeiros dias de formação da flad . Apesar da grande exigência profissional, o bem‑estar dos colaboradores e oportunidades para o seu crescimento eram uma divisa. “Engravidei logo no arranque da Fundação, quando ainda trabalhava aqui há poucos meses, mas Finberg fez questão que depois da licença Tenho saudades daquele tempo em regressasse ao meu posto. Aprendi muito que trabalhávamos muito, em espaços com ele porque ajuda‑ pequenos e de forma muito profissional va as pessoas a valori‑ zarem‑se e não queria mas também familiar. Por vezes trazia que estagnassem”, refe‑ bolo de casa, feito pela mulher. re a actual assessora junto da administração. Luiza Gomes Paula Vicente relembra ainda a visita que Finberg fez ao seu “Dizia ‘Our house is your house’, e bebé, o sorriso com que perguntava pela via‑se que sentia isso mesmo. Aliás, todos família de todos, e de como passava pelos os anos enviava cartões de boas‑festas corredores com os auscultadores na cabe‑ acompanhados de uma carta detalhada ça a ouvir música clássica. “E às vezes que dava conta dos principais aconteci‑ perguntava: ‘Any news? When the cat is mentos do ano na sua vida. Era uma away...’, e eu respondia ‘the mice will espécie de newsletter da sua família”, recor‑ play!’”, recorda. ‘ ’ 59 SOCIEDADE Entre Tires e Rhode Island, USA Histórias de reclusas Um dos poucos estudos que existem sobre mães presas foi publicado por uma norte‑americana, neta de portugueses. Sandra Enos, de 61 anos, recebeu‑me na sua casa tipicamente americana de Providence, Rhode Island. Por Isabel Nery DR Mais do que as origens lusas, temos em comum o interesse pela maternidade atrás das grades, que deu origem ao seu livro Mothering from the Inside – Parenting in a Women’s Prison (A Maternidade a Partir de Dentro – Ser Mãe numa Prisão de Mulheres). O estabelecimento prisional onde Sandra Enos entrevistou as reclusas para o seu estudo fica a pouco mais de 40 quilóme‑ tros. Deixamos a casa da socióloga e entra‑ mos na movimentada Interstate 95, uma das maiores auto‑estradas do país, que liga Rhode Island a Nova Iorque. Sandra Enos estudou a maternidade das reclusas em estabelecimentos prisionais americanos. 60 No Centro de Detenção A prisão é um aglomerado de edifícios em tijolo burro, adaptados e aumentados ao longo dos anos para albergar 3400 presos, dos quais apenas 181 são mulhe‑ res. O conjunto que nos interessa – o feminino – abriu em 1936 como hospital psiquiátrico. Hoje tem dois edifícios para reclusas. Assim que chegamos sou apresentada à directora responsável pela área de reinser‑ ção, Roberta Richman, que nos aguardava. Embora não seja de segurança máxima, o estabelecimento tem prisioneiras com sentenças que vão dos três meses à prisão perpétua. O calor húmido, típico da costa leste americana, fez subir os temómetros acima dos trinta graus. Para lá das paredes do velho prédio chega‑se facilmente aos qua‑ renta. A temperatura no edifício dispara à medida que deixamos os serviços e segui‑ mos em direcção às celas. Talvez por isso, mas também porque não há trabalho para muitas reclusas, vejo várias estendidas na cama, num estado que só parece oferecer duas esco‑ lhas: letargia e depressão ou depressão e agressividade. Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 As prisioneiras com quem me cruzo parecem mais derrotadas do que assusta‑ doras. Vestem andrajos laranja ou caqui, consoante sejam condenadas ou aguardem julgamento. Algumas usam t‑shirt branca por debaixo do uniforme. As fardas têm apenas duas peças: umas calças de elásti‑ co e uma camisa de gola em bico. Sempre com o argumento da segurança, até a lingerie vinda de fora da cadeia foi proibida, como recorda a guarda Miller, de 50 anos. “Uma reclusa conseguiu pas‑ sar droga na bainha das cuecas. A partir daí deixaram de poder trazer a própria roupa.” Aquele que é considerado o maior esca‑ pe legal para qualquer prisioneiro – o tabaco – é completamente interdito em todos os espaços da penitenciária, inte‑ riores ou exteriores. A única proibição que admitem não levar tanto à letra é a que impede o toque físico, embora nos eua, não levar tanto à letra signifique apenas isto: “Se for um abraço curto fechamos os olhos, mas se ficarem nisso muito tempo são castigadas. É proibido tocarem‑se!” Nas visitas repete‑se o espírito proibi‑ cionista. Abraçar os filhos, só sentadas. Durante duas horas, as reclusas não se podem levantar. Nem para brincar com as crianças, aliciadas com doces para prolon‑ gar ao máximo o raro momento de pro‑ ximidade física entre mãe e filho. Para evitar entrada de drogas, as conde‑ nadas são obrigadas a despir‑se ao serem admitidas ou ao regressarem de uma saída. Por vezes, a revista implica também o “controlo das cavidades”. A guerra contra a droga, em crescendo nos eua desde a Administração Reagan, sem efeitos práticos na redução do crime e con‑ sequências brutais para as mulheres – em 2008, havia 2821 reclusas no estado de Nova Iorque e uma em cada três estava presa por crimes relacionados com narcó‑ ticos –, sente‑se há muito nas cadeias. Mães reclusas Já percorremos vários corredores de celas e reparo que nada as distingue. Ao con‑ trário do que acontece em Tires, não há corações nem fotografias nas divisórias. Explicam‑me que é assim – limpo e des‑ personalizado – para evitar incêndios. Penduradas nas paredes só as câmaras de videovigilância instaladas nas celas. Servem para controlar, mas não inibem a repetição da contagem de reclusas seis vezes por dia. No próximo apuramento já todas as Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 José Carlos Carvalho SOCIEDADE Estendal com roupa de crianças, mostra‑nos que aqui não vivem só condenadas. país democrático, as pri‑ sões são os espaços com mais analfabetos por metro Sempre com o argumento quadrado. Deste lado do da segurança, até a lingerie vinda Atlântico, 58 por cento das reclusas não terminaram de fora da cadeia foi proibida, como sequer o ensino secundá‑ recorda a guarda Miller, de 50 anos. rio. Petra, porém, concluiu “Uma reclusa conseguiu passar droga um curso de Marketing. Um número elevado de na bainha das cuecas. A partir daí criminosos queixa‑se da falta de trabalho regular – deixaram de poder trazer a própria 74 por cento das america‑ roupa.” nas estavam desempregadas antes de serem condenadas. Ela tinha um bom empre‑ go, ganhava 15 dólares por hora e ainda mulheres deverão ter regressado às cama‑ ratas. Devo aproveitar este intervalo para aspirava a progredir na carreira. Proprietária entrevistar as prisioneiras que aceitaram de casa e carro, até estava economicamen‑ falar comigo. Disponibilizaram‑nos uma te acima dos excluídos do costume. Não é um caso óbvio, mas isso não a sala climatizada, o que explica os sorrisos de alívio à entrada. Reflectindo a ciência impede de ter um passado afectivo com dos dígitos – o número de reclusas cres‑ ajuste perfeito nos estudos sobre crimi‑ ceu 138 por cento nos últimos dez anos nalidade. Várias investigações concluíram devido à guerra contra as drogas – a esma‑ que mais de 50 por cento das prisioneiras gadora maioria cumpre pena por tráfico. foram vítimas de abusos físicos ou sexu‑ Comecemos pela excepção. Quem se ais antes da reclusão. Para os homens a encontrasse com ela na rua apostaria tudo taxa ronda os 15 por cento. Antes de fazer menos um percurso criminal. Ela própria vítimas já Petra o era. O namorado abu‑ perderia a aposta. Petra, 27 anos, tem um sava sexualmente dela. Roubou‑lhe a belo cabelo louro enrolado com esmero auto‑estima. Mais do que confessar crimes, custa‑lhe, em forma de novelo. Os óculos estreitos, que se antecipam a profundos olhos azuis, como a todas as outras mulheres, confessar maternidades interrompidas. Quando lhe dão‑lhe um ar intelectual. Nada da sua biografia encaixa em esta‑ pergunto com quem deixou os filhos de 4 tísticas ou sequer estereótipos. Nos eua, e 7 anos, responde com prantos. “Na altu‑ a maioria da população prisional é negra. ra da detenção o mais novo tinha 3 anos. Ela é loura, de olhos claros. Em qualquer Com o desgosto caiu‑lhe o cabelo todo.” ‘ ’ 61 SOCIEDADE ‘ Na maior parte dos estabelecimentos prisionais dos EUA as mães reclusas e os filhos não podem estar juntos. Algumas mulheres são incapazes de pôr a maternidade em primeiro lugar, mas entre as reclusas encontrei boas mães e famílias estáveis. ’ que tem vivido tão depressa como fala. De rajada, ficamos a saber que o filho de 11 meses nasceu viciado no mesmo pó que fazia a mãe prostituir‑se. Sophy, condenada por tráfico de droga, é o fim de uma linha de exclusão e ins‑ titucionalizações familiares. Vítima de abusos em criança, antes de ser apanhada pela polícia vendia‑se por 20 dólares. Não lhe custa admitir que precisava da ajuda encontrada na cadeia: “Estar aqui sal‑ vou‑me a vida. Se não fosse a consulta a que me obrigaram a ir depois de ser presa, o meu filho teria nascido cego!” Menos insegura, Tricha, condenada a uma curta pena de 18 meses, personifica o papel da pobreza e do crime geracionais nas vidas destas reclusas. Viciada desde os 13 anos, mãe dependente de heroína, pai de álcool. Dois fugazes encontros mater‑ nais durante uma vida foi o mais próximo que teve de relação familiar. As palavras partilhadas com dureza soam a autoflagelação. Como se merecesse o sofrimento e não precisasse de ninguém para lhe dizer como tudo está errado. “Sou uma junky de 22 anos e estou presa. Sou incapaz de ser mãe. Sinto muitos José Carlos Carvalho O outro filho está perto de perdido para a custódia do pai, que se nega a trazê‑lo à visita. Uma vez iniciada uma guerra judicial, o sistema americano será impla‑ cável. Ao pai não custará provar que é melhor educador do que uma mãe delin‑ quente. Petra não vê este filho há quase um ano porque o ex‑companheiro boi‑ cota todas as visitas. Depois das entrevistas feitas na peniten‑ ciária, Sandra Enos concluiu que o crime no feminino tem dupla penalização. Além do castigo legal, as mulheres perdem, muitas vezes, a custódia dos filhos. “Na maior parte dos estabelecimentos prisio‑ nais dos eua as mães reclusas e os filhos não podem estar juntos. Algumas mulhe‑ res são incapazes de pôr a maternidade em primeiro lugar, mas entre as reclusas encontrei boas mães e famílias estáveis.” De acordo com o Prison Activist Resource Center, todos os dias há 90 mil detidas nos eua e 167 mil crianças são obrigadas a crescer longe das mães. Quando se ouve Sophy, de 24 anos, sen‑ tada mesmo ao lado de Petra, percebe‑se Jesufina, na ala da “Casa das mães”. 62 Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 remorsos, mas isso não muda nada. Antes, se me dessem a escolher entre a cocaína e a bebé, entregava‑a no momento em troca de umas linhas.” De acordo com o Departamento de Justiça dos eua, cerca de dois milhões de menores de 18 anos têm o pai ou a mãe na cadeia. Os quilómetros que separam as reclusas da sua descendência é um dos efeitos do aprisionamento mais gravoso para as mulheres, e um daqueles que é uma consequência de género. O estado de Nova Iorque foi inovador ao permitir a presença de crianças junto das mães em 1902, data em que abriu a primeira creche numa prisão. Levou quase um século até que outros estados seguis‑ sem o exemplo. Mesmo assim, Nova Iorque manteve‑se excepção até 1994, quando o Nebrasca repetiu a iniciativa. Desde o final dos anos 1990, abriram mais sete estabelecimentos deste tipo no sistema prisional norte‑ame‑ ricano. Embora Portugal tenha uma experiência longa – a prisão feminina de Tires, inau‑ gurada em 1953, sempre permitiu a pre‑ sença de menores – não há estudos que avaliem estas medidas. A somar a todos os constrangimentos sociais comuns à maternidade atrás das grades, as reclusas americanas têm ainda de ultrapassar um obstáculo menospreza‑ do pelos sistemas prisionais, todos eles com uma visão demasiado masculina – os quilómetros. DR SOCIEDADE “Mais de metade das presas nunca foram visitadas pelos seus filhos durante a reclusão”, conclui Sandra Enos no seu estudo. reclusas que deu toda uma vida ao sistema de justiça. Trança negra a fazer de bande‑ lete, tem o ar zangado que uma vida de cinquenta e quatro anos a entrar e sair de prisões lhe merece. Está detida por causa de “um acidente com drogas”. Da sua história faz parte um filho de 12 anos que anda em pais adoptivos desde os 18 meses – por causa da cocaína. Tráfico para consumir, Em Rhode Island as grávidas sustentar a família, calar o vício do companheiro. ficam livres de algemas durante Sempre o tráfico na vida o trabalho de parto, o que não das reclusas. Em Portugal, como do outro lado do impede as autoridades de as Atlântico. Em Portugal, um acorrentarem à cama do hospital dos países mais pobres da União Europeia. Como nos por um tornozelo logo que EUA, um dos mais ricos do o bebé nasce. mundo. Augustine voltará a ser livre já daqui a quatro meses, mas o que a espera lá fora Sandra Enos lembra uma investigação são cinco filhos e 12 netos. Uma das rapa‑ de 1993 indicando que “mais de metade rigas já esteve presa, um dos rapazes cumpre das presas nunca foram visitadas pelos pena por duas condenações à morte. Tem o discurso ensaiado à custa da expe‑ seus filhos durante a reclusão”. A distân‑ cia entre a casa e a cadeia era o principal riência prisional acumulada: “Eduquei os meus filhos o melhor que pude. Se fazem factor desencorajador das visitas, já que “60 por cento das reclusas estavam a mais o que fazem é responsabilidade deles. Peço a Deus que me perdoe e tento avançar, de 150 quilómetros das suas famílias”. Augustine é apenas uma das muitas mas estou dentro e fora desde miúda.” ‘ ’ Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 O relato é tão duro que me lembra uma das ironias destes modos de vida: quanto mais brutais as memórias, mais urgente é resumi‑las. A maior parte das mulheres que me rodeia na sala do estabelecimen‑ to prisional de Rhode Island retrata‑se como Augustine. Arremessam a sua histó‑ ria de vida com uma crueza que parece querer neutralizar o ouvinte, esvaziá‑lo de crítica. Já perto do gradão de ferro que se abri‑ rá para eu sair quase tropeço numa negra grande e sorridente. Parece‑se com Adília, a reclusa portuguesa que acompanhara no início do trabalho de parto, no Estabelecimento Prisional de Tires, antes de partir para os eua. Imagino‑a a arfar de dores nestas celas de temperaturas irrespiráveis. E decido saber mais sobre partos e cadeias. Em Rhode Island as grávidas ficam livres de algemas durante o trabalho de parto, o que não impede as autoridades de as acorrentarem à cama do hospital por um tornozelo logo que o bebé nasce. É assim neste estabelecimento prisional. Noutros estados as mulheres condenadas ainda são obrigadas a dar à luz algemadas. 1. Os nomes de reclusas e guardas prisionais foram alte‑ rados para sua protecção. 2. Este artigo é o excerto de um livro sobre mães nas prisões, a publicar pela Livros de Seda, da Plátano Editora, e de uma grande reportagem a publicar na revista Visão. 63 CULTURA As sementes viajantes Aplaudimos o gigantismo do tulipeiro‑da‑virgínia. Fomos contagiados pela euforia de produzir duas “super‑árvores”, a catalpa e a robínia, mas nunca elas nos conseguiram colonizar. A presença destas três belíssimas árvores índias, em Portugal, evoca o tempo dos caçadores de plantas cuja correspondência era feita de sementes. Texto e fotografias de Susana Neves* Tulipeiro‑da‑virgínia, Parque de Monserrate, Sintra, 2009. 64 Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 CULTURA ‘ A febre de plantar catalpas nos EUA, iniciada em 1870 [...] foi noticiada no Jornal de Horticultura Prática, em finais do século XIX, mas não existem informações quanto à sua aplicação maciça em Portugal. ’ Ao atingirem mais de 40 metros de altura, os dois tulipeiros, plantados por George Washington, em 1785, no Mount Vernon, Virgínia, tornaram‑se proibitivos mesmo para a mais audaciosa das abelhas, de tal forma que, a partir de 1989, foi necessário recorrer a uma grua para proceder à poli‑ nização das suas flores: “Perante as câmaras televisivas retransmitindo as imagens a milhões de espectadores, a grua ergueu ao topo das árvores uma ‘abelha’ humana, que polinizou as flores à mão”1. Ultrapassada a surpresa face ao aparato mediático, o gigantismo dos tulipeiros ou tulipeiras, espécie que remonta ao período Cretáceo, apenas confirma a sua natureza de “Gran Diva”, da floresta dos eua, cuja bele‑ za merecia, em meados do século xix, as palavras apaixonadas na imprensa de horti‑ cultura norte‑americana: “Árvore Celestial”: o seu tronco é “de belas proporções e macio como uma coluna grega”, as folhas “artís‑ ticas”, “recortadas como os arabescos de um palácio mouro”, as flores “semelhantes aos lírios e agradáveis de ver […] douradas e sombreadas”. E a defesa da sua plantação enquanto árvore ornamental, apesar das reconhecidas dificuldades em transplantá‑la: “Precisamente, é mais fácil andar do que dançar e tal como todas as pessoas que dese‑ jam ter graça nos seus movimentos apren‑ dem a dançar […] também todos os plantadores que desejem ter uma árvore particularmente elegante, têm que aprender a plantar o liriodendron [tulipeiro].”2 Em Portugal, a imprensa especializada oitocentista partilha o mesmo entusiasmo por uma árvore que ainda era invulgar no País e suscitava “admiração” pela desme‑ sura e qualidade da madeira. Na Segunda Exposição Agrícola, realizada no Porto, a 20 de Novembro de 1860, ”um grande Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 Tulipeiro‑da‑virgínia, Parque Nacional da Pena, Sintra. 65 CULTURA ‘ Apesar dos méritos reconhecidos ao tulipei‑ É impossível não associar a presença ro (árvore dos estados do Indiana, Kentucky e destas árvores norte‑americanas, Tennessee, a partir da em Portugal, aos interesses botânicos qual os índios faziam canoas de uma só peça), da elite inglesa residente no nosso bem como a outras país e empenhada em fazer jardins, árvores norte‑america‑ nas, entre elas, a mag‑ representativos das espécies, cuja nólia‑branca, a robínia descoberta tinha sido promovida e a catalpa, introduzidas em Portugal ao longo pela aristocracia, os botânicos dos séculos xvii, xviii e e a própria monarquia inglesa. xix, nunca se procedeu à sua generalização e menos ainda a um plan‑ tio intensivo. pranchão de um Tulipeiro da Virginia per‑ A febre de plantar catalpas nos eua, ini‑ tencente ao Sr. Visconde de Samodães” ciada em 1870 – em virtude de se ver nesta imobiliza os visitantes e leva o repórter do árvore, muito resistente e de crescimento Archivo Rural a declarar: “Era notável esta rápido, conhecida dos índios Muskogee (da larga tábua pela qualidade do lenho, isen‑ tribo Creek), um recurso indispensável to de nós, ou inflexões; a sua madeira imita usado nas travessas da via férrea em expan‑ a da acácia sem todavia ter a venação desta, são – foi noticiada no Jornal de Horticultura nem a sua rijeza […] É uma espécie digna Prática, em finais do século xix, mas não existem informações quanto à sua aplicação de generalizar.”3 ’ maciça em Portugal. Apesar da primeira viagem de comboio ter sido realizada a 28 de Outubro de 1856, a ruralidade do País dispunha os articulistas a propor a plantação da catalpa de “mistura com o Eucalyptus” porque “sanearia as terras humidas, daria variedade à paisagem e contribuiria larga‑ mente para a riqueza material do paiz”4. De certa forma, porventura inconscien‑ te, tornavam‑se cúmplices da destruição da paisagem levada a cabo nos eua, devi‑ do ao crescente desenvolvimento indus‑ trial. Deslumbrados com a possível rentabilidade destas “super‑árvores” nem sequer se questionavam sobre o impacto da sua introdução em Portugal. Em 1886, num artigo publicado no Jornal de Horticultura Prática, M. de Freitas começa por fazer um elogio do valor ornamental da robínia – uma árvore nativa dos montes Apalaches, cujo “effeito encantador” da folhagem e o “odor suave” das flores lem‑ brava as flores da “laranjeira”, e por isso, à semelhança do que observara em Paris, merecia ser plantada nos “bosques”, “ave‑ nidas” e “jardins públicos” nacionais – para depois, feitas as contas, entrar em delírio Catalpa, pormenor da flor, 2006. 66 Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 CULTURA Robínia, 2009. Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 67 CULTURA ‘ Tal como Thomas Jefferson [...] e John Adams tinham podido constatar, numa visita a vários jardins londrinos famosos, no final do século XVIII, ironicamente o jardim inglês era de facto americano. e defender a sua plantação por todo o lado: “O interesse dos proprietários, despertado pela certeza do lucro, não deve desprezar estas indicações úteis, e torna‑se‑lhe mister multiplicar por toda a parte esta árvore, hoje a mais preciosa de todas.”5 Neste caso, a falta de empreendedorismo contribuiu para que as robínias, actualmente consideradas inva‑ sivas (espécie proibida, pelo Decreto‑Lei 565/99), não tivessem, qual praga, coloni‑ zado o nosso território, encontrando‑se, à semelhança dos tulipeiros e catalpas, disper‑ sas como espécies ornamentais de jardins públicos e privados, parques e avenidas. É impossível não associar a presença des‑ tas árvores norte‑americanas, em Portugal, aos interesses botânicos da elite inglesa residente no nosso país e empenhada em fazer jardins, representativos das espécies, cuja descoberta tinha sido promovida pela aristocracia, os botânicos e a própria monarquia inglesa, investindo e patroci‑ nando continuamente as explorações de, entre outros, dois caçadores de plantas incansáveis: o americano John Bartram, que introduziu a magnólia‑branca na Europa, e Mark Catesby, naturalista inglês, ilustrador e autor de Natural History of Carolina, Florida and the Bahama Islands (1731‑1743), primeiro livro com gravuras coloridas sobre a flora e fauna da América do Norte, a quem se deve a descoberta da catalpa, no interior da Geórgia e do Alabama. Não é por acaso que um dos articulistas regulares do Jornal de Horticultura Prática, autor de vários textos sobre árvores norte‑ame‑ ricanas, é justamente o inglês William C. Tait, cujo jardim no Porto era essencialmen‑ te uma colecção botânica e tem hoje um dos tulipeiros mais antigos do País, com 250 anos. Em Sintra, o Parque de Monserrate, propriedade de Sir Francis Cook (1817‑1901), onde também podemos encontrar um grande tulipeiro, magnólias e outras árvores provenientes de vários con‑ tinentes, foi concebido com o apoio do pintor paisagista William Stockdale, o botâ‑ nico William Nevill e James Burt, mestre jardineiro do Kew Garden. Não parece de todo indiferente o facto de encontrarmos no Parque Nacional da Pena, em Sintra, algumas espécies nor‑ te‑americanas, entre outras, um tulipeiro 68 ’ majestoso, uma sequóia e uma tuia gigan‑ te, tendo em conta que D. Fernando II e a condessa D’Edla, cultivando o interesse pela botânica – desde logo simbolizado pela plantação de um eucalipto no Parque da Pena, no dia do seu casamento, 10 de Junho de 1869 – beneficiavam do con‑ tacto com um silvicultor americano, John Slade, cunhado da jovem esposa do monarca português. Tal como Thomas Jefferson, enquanto ministro dos eua em França, e John Adams tinham podido constatar, numa visita a vários jardins londrinos famosos, no final do século xviii, ironicamente “o jardim inglês era de facto americano”6. Muitos dos arbustos e árvores provinham da América do Norte e tinham sido envia‑ dos por John Bartram, cujas caixas de sementes levaram muitas espécies nor‑ te‑americanas até à Europa, sobretudo, e uma vez mais à Inglaterra, onde, em 1765, o rei George III, lhe atribuiu uma pensão anual de £50, enquanto “Botânico do Rei na América do Norte”, cargo que manteria até ao fim da vida. A partir de Filadélfia, John Bartram tro‑ cava correspondência com Mark Catesby enquanto ele viajava pelo interior da América no tempo da colonização ingle‑ sa e descobria árvores que ninguém conhecia, como a catalpa que, para os Creek, quer dizer “cabeça alada”, devido à forma das flores. Catesby era conhecido por ser de poucas falas o que devia agradar bastante aos povos nativos da América do Norte, cujos conhe‑ cimentos agrícolas e botânicos não dispen‑ sava. Vários comentadores da sua obra, recordam, no entanto, o seu desaponta‑ mento ao perceber o desinteresse dos colo‑ nos europeus face a uma natureza que já tinham começado a destruir. 1. PAKENHAM, Thomas, Le Tour du Monde en 80 Arbres, Éditions du Chêne, 2002, p. 100. 2. Shade‑Trees in Cities, Rural Essays, DOWNING, A. J., Geo. A. Leavitt, New York, 1869, pp. 316‑318 [Google Livros]. 3. “Impressões da Exposição Agrícola Portuense”, LAPA, J. L. Ferreira, Archivo Rural, 1860, vol. 3, p. 373 [Google Livros]. 4. “As catalpas”, KNOTT, Edmond, Jornal de Horticultura Prática, vol. X, 1879, pp. 66, 67 e 68. Outro artigo interessante: “A catalpa bignonioides como árvore económica”, TAIT, William C., Jornal de Horticultura Prática, vol. XVIII, 1887, p. 153. [online: FUNDO ANTIGO, Faculdade de Ciências Universidade do Porto]. 5. “Robinia Pseudo‑Acacia”, FREITAS, M. de, Jornal de Horticultura Prática, vol. XVII, 1886, pp.198‑200 [online: FUNDO ANTIGO, Faculdade de Ciências Universidade do Porto]. Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 CULTURA Catalpa, árvore de folha em forma de coração, com flor e frutos suspensos, Rua Barata Salgueiro, Lisboa, 2009. 6. “The Founding Fathers and Their Gardens”, DEITZ, Paula, Sunday Book Review, NYTimes.com, May 6, 2011, recensão do livro Founding Gardeners – The Revolutionary Generation, Nature, and the Shaping of the American Nation, WULF, Andrea, Alfred A. Knopf, New York, 2011. Os nomes científicos e respectivas famílias das três árvo‑ res estudadas neste artigo são: tulipeiro (Liriodendron Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 Tulipifera L., Magnoliaceae), catalpa (Catalpa Speciosa e Bignonioides, Bignoniaceae) e robínia (Robinia Pseudoacacia L. Fabaceae). * Susana Neves assina, desde 2007, uma crónica mensal sobre histórias de árvores em Portugal, publicada na revista Tempo Livre, Fundação Inatel. Desde 2010, está a desenvolver, no Museu do Douro, “As Árvores que Comiam Papel”, um projecto de etno‑ botânica e fotografia sobre o património arbóreo duriense. Representou Portugal na Kulturnatten, Noite da Cultura, em Copenhaga, mostrando “Trip To the South Pollen – Photographic Work, 2007‑2009”, com mais de 100 fotografias, apresen‑ tadas em várias exposições individuais, em Lisboa, e na pri‑ meira edição da Land Art Cascais. [email protected] 69 CULTURA Novos Dabney despertam para a história da família Fred Dabney folheia o livro, onde se alinham palavras, frases, capítulos em português. Apesar das oito décadas de vida dos seus antepassados nos Açores, este americano de 65 anos não consegue ler as páginas do volume que tem nas mãos, mas reconhece uma palavra na capa: Dabney. Pega no livro como num bebé e sorri: “É uma coisa maravilhosa este livro, esperamos que seja traduzido para inglês...” DR Por Marina Almeida Fred e Kate Dabney receberam a edição portuguesa da antologia dos Anais da Família Dabney. Esperam entusiasmados pela versão inglesa, que está a ser preparada e deverá ser lançada nos EUA em 2012. 70 Fred e a mulher, Kate, estão na Sala Açores do New Bedford Whaling Museum num evento onde foi apresentada a edição por‑ tuguesa da antologia dos Anais da Família Dabney, em Março. A sala é dominada pelo enorme Lagoda, o maior modelo de navio baleeiro do mundo. Há relatos de vida no mar e da faina baleeira que durante déca‑ das uniu os dois lados do Atlântico. Nas vitrinas, vários objectos documentam a ligação entre a América e Portugal. Fred é sobrinho em terceiro grau do segundo dos três cônsules que entre 1806 e 1892 repre‑ sentaram os eua no Faial, Charles William Dabney. Naquelas vitrinas estão pedaços da história da sua família e, também, dos Açores. Um rasto de história que atraves‑ sa o Atlântico. A antologia dos Anais desta família ame‑ ricana, editada pela Tinta‑da‑China com apoio à investigação da flad, é um resumo dos três volumes de cartas que constituem a versão original, compilada por Roxana Dabney. Esta prima antiga de Fred empe‑ nhou‑se, depois do regresso definitivo da família aos eua, em 1892, em juntar a correspondência dispersa: quando acabou tinha 1797 páginas, distribuídas por três volumes. Muita informação difícil de dige‑ rir nos dias que correm, reconhece Fred Dabney, empenhado em aproximar‑se de uma realidade de que o pouco tempo e a pressa da vida moderna o afastaram. “Temos lá em casa uma cópia da versão original dos Anais, mas é muito difícil para mim persuadir as minhas filhas a lê‑la, é muita leitura! É interessante, mas difícil de ler. Estou desejoso de ler a versão abre‑ viada”, diz com os olhos azuis reluzentes de curiosidade. Ao seu lado, Kate partilha do mesmo entusiasmo. Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 CULTURA DR ‘ Uma coisa é saber a história da família, outra é estar lá, ir aos locais. Fiquei emocionado com a forma como a minha família foi tratada nos Açores. Sentimo‑nos honrados, sentimos que não temos prestado atenção suficiente e que é preciso abanar os familiares mais novos para ir lá e ver. Fred Dabney ’ Do outro lado do oceano, àquela hora, talvez os investigadores Maria Filomena Mónica e Paulo Silveira e Sousa estivessem debruçados sobre as imensas páginas ori‑ ginais dos Anais da Família Dabney. Estão a fazer uma nova edição das cartas que a família, amigos e conhecidos trocaram nos oitenta e seis anos de presença nos Açores para fazer nascer a edição inglesa e assim tornar a obra mais acessível. A selecção é distinta da edição portuguesa porque há um outro “leitor ideal”. O prefácio de Maria Filomena Mónica está pronto e já a ser traduzido, a selecção das cartas a incluir nesta edição está feita: “Já estive a rever a tradução para inglês do meu prefácio para a versão a sair nos eua. A tradutora está a ultimar a tradução das notas. O Paulo já cortou tudo o que havia a cortar – a selecção das passagens é naturalmente diferente, dando nós agora mais ênfase às cartas sobre a guerra civil americana – e está a introduzir as notas”, disse a investigadora. Ganha assim corpo o volume que Fred Dabney conseguirá ler e com o qual ten‑ tará cativar as filhas para a história da família. Vai chamar‑se The Dabney’s – A Bostonian Family in Portugal e será dirigida a luso‑descendentes e americanos que se interessem pelo tema, aponta Mário Mesquita, administrador da flad. A nova antologia com cerca de 400 páginas deve‑ rá ser lançada em 2012. Este lançamento é aguardado com muita curiosidade. Muitos Dabney parecem estar Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 Na Sala Açores do New Bedford Whaling Museum estão objectos dos Dabney do Faial. Como o chapéu e os galões do segundo cônsul dos EUA no Faial Charles William Dabney (1794‑1871), de quem Fred é sobrinho em terceiro grau. a despertar para a história dos antepassa‑ dos do Faial. O casal Fred e Kate já esteve nos Açores em 2007 e deverá voltar para o ano, numa das viagens que o Museu da Baleia de New Bedford promove. “Uma coisa é saber a história da família, outra é estar lá, ir aos locais. Fiquei emociona‑ do com a forma como a minha família foi tratada nos Açores. Sentimo‑nos hon‑ rados, sentimos que não temos prestado atenção suficiente e que é preciso abanar os familiares mais novos para ir lá e ver”, disse Fred Dabney, apostado em organizar uma excursão de filhos e primos no pró‑ ximo Verão. Fred tem uma estufa e dedica‑se à horti‑ cultura a poucos quilómetros de New Bedford, Massachusetts. Por isso, as ilhas e o passado da família têm um interesse muito especial: “Os Açores são um local magnífico para visitar porque há plantas de quase todos os continentes levadas pelos capitães de navios que pararam nos Açores ao longo dos anos.” Este Dabney contem‑ porâneo descobriu recentemente o gosto dos seus antepassados insulares pela botâ‑ nica e das novas plantas que levaram para o Faial. Esteve numa das casas da família na Horta, a Bagatelle, e os sentidos ficaram presos nos jardins: “Fiquei fascinado por ver que muitas das plantas originais ainda lá estão, apesar do abandono.” Não lhe foi difícil imaginar, talvez, um cenário seme‑ lhante ao descrito pelo também americano Thomas Wentworth Higginson quando esteve no Faial entre 1855 e 1856. “Dificilmente se pode exagerar a singular beleza dos jardins dos Dabney; cada degrau era uma nova incursão nos trópicos – uma palmeira, uma magnólia, uma canforeira, um dragoeiro...” O Dabney horticultor gos‑ tava de juntar passado e presente à sua maneira: “Adorava recuperar a ligação com as sementes originais e plantá‑las aqui.” Em particular uma: a recém‑baptizada Veronica Dabney, uma espécie endémica que existe actualmente no banco de sementes raras no Jardim Botânico do Faial. Fred Dabney foi, sem saber, a figura cen‑ tral do jantar que juntou portugueses e americanos na Sala Açores do Museu da Baleia de New Bedford – um espaço que, nas palavras da cônsul Graça Fonseca, “celebra o mundo falante português”. Fred ouviu dizer que os Dabney foram a “força da economia nos Açores naquela época” e que os Anais são “um trabalho polifóni‑ co”. O jantar foi precedido de uma visita ao museu, feita pelo próprio director, James Russell. Deve ter regressado a casa orgulhoso da sua família e, seguramente, desejoso de voltar aos Açores. “Há tanta história que não conhecemos!”, diz Fred Dabney. Crescer com “objectos invulgares” A curiosidade não dá tréguas a Sally Dabney Parker. Há anos que se dedica a estudar a história da família e recebeu com agrado o e‑mail repleto de perguntas da 71 CULTURA DR ‘ Sally cresceu numa espé‑ cie de filme, em que não faltavam caixotes no sótão com objectos estranhos para os pequenos Dabney. Tal como Sally, muitos familiares da sua geração passaram a infância e juventude a ouvir falar da vida dos antepassados do Faial. “Muitas casas dos Dabney tinham uma foto‑ grafia da Bagatelle, talvez um retrato (no nosso caso era de Francis Oliver jornalista: “São boas notícias saber que há Dabney [irmão de Roxanna Dabney]) e alguém interessado nos Dabney e nos seus objectos invulgares, como uma Bagatelle descendentes.” Sally tem 72 anos. Conta de porcelana, meio tabuleiro de xadrez que está a terminar a biografia do bisavô, em marfim, uma pequena caixa de cos‑ Frank Dabney (1873‑1934), e que passou tura completa (que veio da Fredónia), “anos” a estudar os objectos que herdou panos de linho bordados em crivo (dese‑ e a colocar documentos e materiais em nhos bordados numa técnica muito com‑ “museus adequados”. plexa).” No sótão lá de casa, no estado do Massachusetts, havia “caixas misteriosas contendo o cha‑ péu e a espada de cerimónia do cônsul, um modelo do barco baleeiro português e muitos pacotes com cartas que foram enviadas de barco”. Conta Sally que, quando era criança, recebera da tia‑avó Edith Dabney Ford muitos dos objectos das casas do Faial que foram para os Estados Unidos. A Sally calha‑ vam‑lhe muitas coisas que eram de Sariha Dabney, uma irmã da tia que morreu com 16 anos e com quem parti‑ lhava as iniciais (sd). E terá sido assim entre objectos misteriosos, caixotes no sótão e a colecção de memorabilia com as suas ini‑ ciais que ganhou a imensa curiosidade que alimentou ao longo da vida. Depois de educar os filhos, começou a trabalhar num gabinete de arquitectura e começou a escavar a história da família. Quando regressaram do Faial em 1892 os Dabney instala‑ ram‑se na zona da Califórnia onde “o clima fazia lembrar A Câmara da Horta doou, em 1862, uma parcela de terreno onde os Dabney fizeram o jazigo da família. Permanecem no Faial os Açores”, relata Sally. Um 14 campas, entre as quais as dos dois primeiros cônsules, destes Dabney construiu uma John Bass e Charles William. Este ano a autarquia reabilitou casa chamada Fayal Ranch. As o local e editou uma pequena brochura sobre os Dabney, gerações seguintes (Frank, com enfoque no cemitério. No sótão lá de casa, no estado do Massachusetts, havia “caixas misteriosas contendo o chapéu e a espada de cerimónia do cônsul, um modelo do barco baleeiro português e muitos pacotes com cartas que foram enviadas de barco”. Sally Dabney Parker 72 Sally Dabney tem 72 anos e dedica‑se a estudar o património e a história da família. Todos os anos reúne‑se com dois primos e trocam recordações e fotografias antigas. Está a terminar a biografia do bisavô, Frank Dabney. Bert e John) tiveram um papel importan‑ te: um construiu uma vinha e depois uma linha de caminho‑de‑ferro na Califórnia, outro dedicou‑se à importação e expor‑ tação, outro à arquitectura. “Todos os jovens rapazes tinham educação superior, a maior parte em Harvard e dois no MIT (Massachusetts Institute of Technology)”. Sally Dabney conta‑nos que doou a maior parte dos seus objectos e cartas ao Peabody Essex Museum, em Salem. Não quer deixar apagar este passado tão rico. Todos os anos faz, com dois primos, uma verdadeira via‑ gem no tempo. Juntam‑se para contar histórias, trocar pequenos tesouros da família e fotografias antigas. E, tal como Fred, também fez a sua “peregrinação familiar” ao Faial. Mas trinta e três anos antes, em 1974. “Fui com a minha mãe, irmão e primo, todos Dabney. Fizemos belas viagens ao interior da Bagatelle e da Cedars. Mas houve uma ocupação comu‑ nista durante aquela semana e fomos acon‑ selhados a deixar a ilha de imediato. Foi uma bela aventura!”, relata‑nos a partir da casa de férias, no Maine, onde passa os meses de Verão. DR ’ Medalha de 1862 ganha pela C.W. Dabney&Sons do Faial num concurso de vinhos em Londres. É um dos tesouros guardados por Sally. Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 CULTURA Bagatelle pode ser classificada Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 me estar “naturalmente preocupada com o estado de conser vação deste como de outros imóveis históricos da cidade da Horta. Inclusive, ao longo dos anos, tem vindo a trabalhar no sentido de não só delimitar a zona histórica da cidade, mas também a con‑ ceber uma estratégia para a sua reabilitação”. A Câmara da Horta também parece ter despertado para o potencial “diamante” que tem em mãos: incrementar o turis‑ mo cultural na cidade, desen‑ volvendo a ligação à herança dos Dabney e a faina baleeira que ligou o Faial e New Bedford. E se em Setembro de 2009 denunciámos o abandono do talhão Dabney no Cemitério do Carmo, fonte do gabinete do presidente adianta que a autarquia “procedeu à reabili‑ tação do talhão da família Dabney no Cemitério Municipal do Carmo e procedeu à elabo‑ ração de uma pequena brochu‑ ra que regista esse memorial. Esta brochura foi distribuída, inclusive, a uma comitiva do N ew B e d fo r d W h a l e u m Museum que esteve recente‑ mente na ilha do Faial, a desen‑ volver um turismo cultural.” A família americana repousa na memória e na terra preta do Faial: 14 campas no canto mais recôndito do cemitério. Para as encontrar é preciso subir até ao topo do cemitério, deixando‑se guiar pela palmei‑ ra que se alimenta da história da família para chegar mais perto do céu. ‘ A Bagatelle marcou uma mudança de estilo, com a importação da arquitectura típica das casas da Nova Inglaterra, com três andares, uma generosa varanda sobre o alpendre, janelas de guilhotina e as bay windows, com vista privilegiada para o canal e para a ilha do Pico. ’ DR A Bagatelle é a casa mítica dos Dabney na Horta. Foi a primeira e para a cons‑ truir, entre 1812 e 1814, viajaram mes‑ tres carpinteiros dos eua. Marcou uma mudança na cidade e na ilha com a fixa‑ ção de uma cosmopolita e bem‑sucedi‑ da família americana. Marcou uma mudança de estilo, com a importação da arquitectura típica das casas da Nova Inglaterra, com três andares, uma gene‑ rosa varanda sobre o alpendre, janelas de guilhotina e as bay windows, com vista privilegiada para o canal e para a ilha do Pico. Ainda resiste no número 19 da Rua de São Paulo, mas é impossível vê‑la, pois a vegetação cresce desenfre‑ ada. A enorme casa cor‑de‑rosa está a degradar‑se, mas os actuais proprietários puseram‑ na à venda para lhe dar um novo rumo – como tiveram a Fredónia, actualmente uma creche, a Cedars, que é a residência oficial do presidente da Assembleia Legistativa Regional dos Açores, e mesmo a casa de férias de Porto Pim, que passou de ruína a obra e deverá receber um núcleo museológi‑ co sobre as nove ilhas, da responsabili‑ dade da Secretaria Regional do Ambiente e do Mar. A Câmara da Horta, através do gabine‑ te do presidente, esclarece que o imóvel, que ocupa um quarteirão na malha da cidade, na freguesia dos Mártires, não está classificado, mas “o plano de urba‑ nização da cidade da Horta, que entrou em vigor no ano passado, prevê a pos‑ sibilidade de classificação”. Em tempo útil não foi possível perceber que clas‑ sificação é esta e que consequências terá para eventuais novos usos a atribuir ao casarão. Questionada sobre a degradação do imóvel e do abandono de todo o nobre quarteirão em que está implantada a casa – 500 metros quadrados de área cober‑ ta e 1500 de jardins – a autarquia assu‑ A Bagatelle foi a casa mítica dos Dabney e hoje está em ruínas. A Câmara da Horta admite estar preocupada com o estado de conservação da casa e pondera a possibilidade de classificação. 73 CULTURA A casa da escrita Desde 1992 que a Ledig House, perto de Nova Iorque, recebe centenas de criadores de todo o mundo em regime de residência artística. Entre eles, escritores e tradutores que ali encontram as condições indispensáveis para desenvolver o seu trabalho. O tempo para pensar faz a palavra certa. Por Carla Maia de Almeida Outono”, diz, em resposta por correio electrónico. “Além disso, recordo‑me dos jantares, dos momentos em que estávamos juntos e acabávamos por partilhar algo do que íamos fazendo. Depois havia o quar‑ to, onde passava grande parte do tempo a escrever.” A casa, o tempo estendido, a aventura humana. Nove anos depois da Ledig House, José Luís Peixoto fala das três coisas mais importantes que a memória reteve; comuns aos outros escritores, como se verá a seguir. “Recordo sobre‑ tudo as pessoas que tive oportunidade de conhecer”, acrescenta. “A escocesa Ali Smith, que ainda encontro, ou a ameri‑ cana Ellen Miller, prematuramente desa‑ parecida.” Não se lembra das rotinas nem do desenrolar metódico das oito semanas em que trabalhou no esboço do roman‑ ce Cemitério de Pianos, concluído quatro anos depois. “Nem me recordo qual foi DR Passaram‑se já nove anos e a memória de José Luís Peixoto começa a resistir ao escrutínio das perguntas. Em 2002, foi o primeiro escritor português a usufruir de uma residência na Ledig House, ao abrigo do programa da Direcção‑Geral do Livro e das Bibliotecas (dglb). Contrariando o ritmo non‑stop de quem não tem mãos a medir para tantas solicitações, insistimos. “Recordo‑me de uma casa rodeada de belas paisagens, todas as tonalidades do Ledig House: a casa, o tempo estendido, a aventura humana foram vividos por vários escritores portugueses em residência artística. 74 Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 a fase mais produtiva”, confessa. Para trás, ficavam dois livros de poesia e o roman‑ ce revelação Nenhum Olhar, publicado nos Estados Unidos sob o título The Implacable Order of Things. Tal como José Luís Peixoto, também Rui Zink e Inês Pedrosa viram livros seus vertidos para inglês depois da passagem pela Ledig House. “Com estes programas, há o intuito de ter um pé no mercado norte‑americano e naquele meio literário, por causa da importância da língua ingle‑ sa”, explica Ana Castro, responsável da dglb . Não sendo esse o aspecto mais marcante das residências, pelo menos para experiência pessoal para quem escre‑ ve, os programas de apoio à tradução fazem parte da mesma política de divul‑ gação de autores portugueses no estran‑ geiro. Ou faziam. Em Outubro de 2010, a Direcção‑Geral do Livro e das Bibliotecas viu o seu funcionamento normal inter‑ rompido, após um ano que já tinha sido de forte contenção orçamental. As coisas pioraram em 2011, com a queda do Governo e o estado de impasse geral que se abateu sobre o País. Tal como outros programas da dglb – caso das históricas “Itinerâncias”, ligadas à promoção da leitura –, este ano não houve residências literárias, apesar de os pedidos terem aumentado. “Cresceram nos últimos dois anos”, confirma Assunção Mendonça, outro elemento da dglb a quem cabe acompanhar de perto estes processos. “É o passa‑a‑palavra a funcionar.” No ano em que José Luís Peixoto deu início às residências na Ledig House, Paulo Moreiras estreava‑se no romance histórico com A Demanda de D. Fuas Bragatela, precursor de Os Dias de Saturno. Foi um dos últimos escritores a usufruir do apoio da dglb, juntamente com João Tordo, o ano passado. Na altura, tinha em mãos o terceiro romance histórico (ainda por publicar), situado na época das guerras liberais em Portugal. Aquele mês revelou‑se essencial para o avanço da obra. “Quando parti, já ia com a ideia toda do romance. Tinha desenvolvido as minhas investigações históricas e algu‑ mas linhas alinhavadas. Na Ledig con‑ segui escrever muitos capítulos e dar‑lhes uma densidade que, de outra forma, seria mais difícil e morosa. O facto de dispor de tantas horas de trabalho per‑ mitiu‑me limar as arestas do texto que ia compondo. Escrevia, revia o texto e escrevia, revendo sempre. Havia tempo para tudo. Uma bênção.” Até mesmo os escritores que confiam nessa entidade incorpórea a que se cos‑ Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 DR CULTURA “Quando cheguei senti logo aquele silêncio, tudo muito calmo, muito sereno”, David Machado esteve um mês em residência artística. todos nos reuníamos para confraternizar. Por tudo isto, tinha longas horas Com estes programas, para trabalhar e burilar o há o intuito de ter um pé no mercado meu texto.” Também David Machado norte‑americano e naquele meio é um escritor persistente literário, por causa da importância e metódico nas suas rotinas: “Levava escrito o Ana Castro, DGLB da língua inglesa. primeiro capítulo do Deixem Falar as Pedras e tinha ideias já muito concretas tuma chamar “inspiração” sabem que não sobre o resto do livro. Acordava entre as há livro que se eleve das trevas da gaveta 7h00 e as 8h00 e trabalhava oito horas para os céus da visibilidade pública sem seguidas, com uma pausa rápida para o um trabalho aturado, cansativo, esforçado, almoço. De vez em quando dava uns pas‑ desgastante e, vamos lá dizê‑lo, rotineiro. seios pela quinta e pelos bosques à volta. Se não é exactamente como ter um empre‑ Não trabalhava à noite, porque não go nos Correios, também não se trata de gosto.” Ficou um mês na Ledig House, a uma vida romântica à la Lord Byron, na média habitual, e só lá para a quarta maior parte dos casos. Mas serão as rotinas semana começou a ver esmorecer o facilmente recuperáveis quando se muda ânimo. “O mais produtivo foi o início. de quarto, de casa, de país, de fuso horá‑ Quando cheguei, senti logo aquele silên‑ rio? A resposta depende de vários factores, cio, tudo muito calmo, muito sereno. incluindo a organização mental do escri‑ Percebi isso e comecei a trabalhar inten‑ tor e a fase em que se encontra a obra. sivamente. Faço sempre aqueles planos, Paulo Moreiras não teve dificuldade em género ‘se todos os dias escrever quatro voltar a acordar às seis da manhã, tal como páginas daqui a um mês tenho x páginas’. sempre faz em Portugal. “Era sempre o Depois não aconteceu bem isso, porque primeiro a levantar‑me, a ver os veados a o ritmo variou.” passear no jardim, tomar o pequeno‑almo‑ Com excepção de José Luís Peixoto, que ço e assistir ao nascer do sol. Por volta das não considera “particularmente benéfico” sete horas, começava a escrever. O único escrever fora de casa, todos os escritores compromisso na casa era o jantar, quando contactados pela Paralelo vêem vantagens ‘ ’ 75 CULTURA ‘ Recordo sobretudo as pessoas que tive José Luís Peixoto oportunidade de conhecer. tempo num sítio ‘estra‑ nho’. Durante aquelas quatro semanas dedi‑ quei‑me sobretudo a ler e a pensar no alinhamento do romance que estava então em preparação [A Mão Esquerda de Deus, 2009]. Contactar com uma outra realidade foi obviamente benéfico, mais para a parte mental e emocional do que para a escrita propria‑ mente dita.” Recorda o Paulo Moreiras numa paragem do seu trabalho na casa. sítio, “que é belíssimo”, e também as noites, “quan‑ do os escritores se reuniam para o seu processo criativo nessa espécie à mesa para conversar e jantar as excelên‑ de “estranhamento” que advém da mudan‑ cias feitas pela cozinheira portuguesa”. ça de cenário. David Machado já ia bastan‑ Saudades? “De nada. Às vezes faz‑me é te adiantado na concepção de Deixem Falar falta não estar lá de novo.” as Pedras, mas foi nos Estados Unidos que De 2002 a 2004, a parceria da dglb com teve a ideia para o seu quinto livro para a Ledig House resultou na atribuição anual crianças, A Mala Assombrada, publicado quase de uma residência, começando por José Luís Peixoto. Seguiram‑se Rui Zink e José ao mesmo tempo. “A distância ajuda‑me Riço Direitinho, em 2003 e 2004, respec‑ muito, sobretudo numa fase antes da escri‑ ta, enquanto estou a ter ideias e a pensar tivamente. A partir de então, passaram a sobre as coisas, porque proporciona uma ser concedidas duas vezes por ano, uma na Primavera e outra no Outono. Em reflexão diferente daquela que temos no 2005, foi a vez de Jacinto Lucas Pires e lugar habitual”, explica. O caso de Pedro Almeida Vieira, que Pedro Rosa Mendes. Em 2006, Pedro chegou à Ledig em Maio de 2006, seis Almeida Vieira e Ondjaki. Em 2007, Inês meses depois de ter publicado O Profeta do Pedrosa e Filipa Melo. “Às vezes havia dificuldade para que as Castigo Divino e terminado O Vermelho e o Negro, também foi especial. “Geralmente escrevo pessoas se mobilizassem para estar um mês inteiro fora, mas nunca ficámos um ano sem um romance de forma intensa em seis meses, mas talvez estranhasse estar tanto atribuir residências”, revela Ana Castro. Uma das razões do sucesso tem a ver com “a desburocratização a nível de candidaturas e requisitos”, acrescenta Maria Carlos Loureiro, também responsável da dglb. Ao contrário das antigas bolsas de criação literária, em que era dado um valor monetário para a prossecução de determinada obra, aqui acharam‑se outros moldes de funcionamen‑ to menos rígidos e institucionais. “O pro‑ grama surgiu de acordo com as necessidades de os escritores terem o seu espaço. Nunca foi uma candidatura muito procurada, não são ‘sete cães a um osso’. Só tivemos de fazer escolhas duas ou três vezes, porque havia mais do que uma pessoa para o mesmo período.” A liberdade não desvinculou os escritores de honrarem o seu compromisso. “Toda a gente produziu obra e toda a gente fez relatório à chegada”, conclui Maria Carlos Loureiro. Aquando da impressão e publicação do livro, surge uma referência ao apoio da dglb. David Machado esteve um mês na Ledig House, durante a Primavera de 2009, um ano partilhado com Luísa Costa Gomes. “Estive apenas quinze dias, em Setembro”, conta a escritora. Levava na bagagem a tra‑ dução de um conto que acumulou com a dramaturgia de O Príncipe de Hamburgo. “A fase mais produtiva foi a segunda semana. Fiz tudo o que levava para fazer e ainda me sobrou tempo para começar outra coisa.” Talvez quinze dias pareça pouco, se medir‑ mos o tempo pelo calendário; mas quinze dias com o mínimo de dispersão, sem interrupções, telefonemas e e‑mails – e tudo o que faz com que o quotidiano de um DR DR ’ ‘ Era sempre o primeiro a levantar‑me, a ver os veados a passear no jardim, tomar o pequeno‑almoço e assistir ao nascer do sol. Por volta das sete horas, começava a escrever. [...] Por tudo isto, tinha longas horas para trabalhar e burilar o meu texto. Paulo Moreiras ’ “Talvez quinze dias pareça pouco se medirmos o tempo pelo calendário; mas quinze dias [...] podem valer três ou quatro vezes mais”, recorda Luísa Costa Gomes acerca da Ledig House onde esteve. 76 Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 CULTURA ‘ A distância ajuda‑me muito, sobretudo numa fase antes da escrita, enquanto estou a ter ideias e a pensar sobre as coisas, porque proporciona uma reflexão diferente daquela que temos no lugar habitual. ’ DR David Machado A mesa para jantar os petiscos da cozinheira portuguesa. ‘ ’ escritor se pareça com a gestão de um império solitário –, podem valer três ou quatro vezes mais. “Uma bênção”, como diria Paulo Moreiras. Luísa Costa Gomes subscreve: “Para mim é comovente ouvir: ‘diga‑nos do que precisa que nós vamos buscar, o seu trabalho é escrever’. Mulher não ouve muito disso. Basta dizer que eu na altura andava com uma sede de mirtilos frescos, e que eles nunca faltavam no fri‑ gorífico! Eram o ‘velho Jim’ e o ‘Jim filho’ quem fazia as compras. Em certo momen‑ to, um grupo de escritoras e poetisas de todas as nacionalidades teve de se dirigir ao mall [centro comercial], para matar sau‑ dades do supermercado.” Além do tempo livre, que classifica como “extremamente benéfico”, Luísa Costa Gomes recorda a disponibilidade constan‑ te das pessoas que gerem a Ledig House: D.W. Gibson (“jovem, culto, alegre, empe‑ nhado, afectuoso”), dinamizador das acti‑ vidades e principal elo de ligação entre a instituição e os residentes; e a cozinheira de ascendência portuguesa, Rita Soares‑Kern. Agradou‑lhe também o “con‑ Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 DR Tínhamos no grupo uma crítica da Wine Spectator, o que aumentava a exigência, mas os vinhos portugueses foram muito Paulo Moreiras elogiados. “Portentosa experiência”, assim caracteriza Paulo Moreiras a sua estada na Ledig House. forto austero” da casa, “velhos móveis essenciais, muitas janelas, muitas árvores, muito animalejo. A pessoa sente‑se quase um autor americano”. Quem também não esquece Rita Soares‑Kern é Paulo Moreiras, a quem se conhece a queda hermenêutica – uma queda redentora, é certo – para a gastro‑ nomia. “Aprendi muitos truques e troquei algumas receitas com a Rita”, diz o autor de Elogio da Ginja. D.W. Gibson confirma: “Ele ajudava‑a muitas vezes e habituá‑ mo‑nos a vê‑lo na cozinha. É um bom exemplo de como o sentido de comuni‑ dade funciona na Ledig House.” Como coroas de glória, Paulo Moreiras refere a confecção de um jantar colectivo de favas com chouriço e entrecosto, e o achado providencial de algumas marcas de vinho portuguesas em lojas próximas. “Tínhamos no grupo uma crítica da Wine Spectator, o que aumentava a exigência, mas os vinhos portugueses foram muito elogiados.” Além dos jantares em grupo, uma obriga‑ ção diplomática que rapidamente se trans‑ forma em gosto e até em terapia informal – afinal, no fim de um dia de rotina, escri‑ tores e tradutores partilham as mesmas angústias e dilemas –, a Ledig House pro‑ move, aos fins‑de‑semana, encontros infor‑ mais com convidados do meio editorial de Nova Iorque. Foi esse espírito de intercâm‑ bio literário que presidiu à sua fundação, na continuidade do trabalho desenvolvido pelo editor alemão Heinrich Maria Ledig‑Rowohlt, cujo apelido baptizou a casa. Os escritores e tradutores residentes – sem‑ pre no máximo de dez – também são desa‑ fiados a apresentar‑se junto da comunidade local. “Participei numa leitura pública e apercebi‑me do grande interesse e curiosi‑ dade que existe pela língua portuguesa”, afirma Paulo Moreiras. O mais difícil pode ser mesmo voltar para casa, apesar das sau‑ dades da família e até de “um bom baca‑ lhau”. O autor de Os Dias de Saturno sofreu mais com o jet lag da chegada. “Mas após duas semanas voltei em força ao trabalho, com saudades daquela portentosa experiên‑ cia.” Não parece haver divergências nesta matéria. Afinal, sem viver, um escritor terá sempre muito pouco para contar. 77 D.R. CARTA BRANCA “Laureana”, o teatrophone e o Rei pioneiro Manuel Silva Pereira* Sentado no cadeirão régio, D. Luís I acompanha deliciado as aventuras da marquesa Laureana, sedutora inveterada por uma vez seduzida por Giovellino, máscara lírica do conde de Florença. A trama, em quatro actos e seis quadros, dá corpo à ópera de Augusto Machado (1845‑1924) com libreto de Jean‑Jacques Magne e A. Guiou, inspirado por seu turno no romance Les Beaux Messieurs de Bois‑Doré de Georges Sand e Paul Maurice. Dedicada a Sua Majestade, estreia a 1 de Março de 1884 no Teatro Nacional de São Carlos, figurando hoje em lugar de honra nos livros de história das... telecomunicações em Portugal. as etiquetas cortesãs nem as luvas gris perle do camarote real, sentado no trono, de manto de arminho, ou metido na cama, de barretinho de algodão, consoante os seus apetites ou as suas necessidades corporais”. Inspirado no sucesso, o Teatro de São Carlos publicita a tem‑ porada líríca de 1885 com a novidade das assinaturas por tea‑ trophone: por 180 mil réis, 90 récitas ficam ao alcance do ouvinte, morador que seja em Palhavã, Olivais ou Braço de Prata, onde as ondas geradas pelo aparelhómetro de Ader che‑ gam em perfeitas condições. Reza a edição de época do Le Times que, por tal feito, o director da companhia Edison Gower Bell, responsável pela insta‑ lação da linha telefónica dedicada entre o Sua Majestade pôde ouvir toda a ópera muito Teatro de São Carlos e o Palácio da Ajuda, mais tarde a ser distinguido com a alegremente, com toda a comodidade do lar doméstico, viria Ordem Militar de Cristo! sem as etiquetas cortesãs nem as luvas gris perle Ainda que pouco lembrado – o sistema só foi comercializado em França cinco anos do camarote real, sentado no trono, de manto de mais tarde, em 1890 –, o capricho do arminho, ou metido na cama, de barretinho de algodão, melómano D. Luís I é conhecido e está relatado em fontes várias. Menos divulga‑ consoante os seus apetites ou as suas necessidades do é todavia o interesse e admiração da revista António Maria, 6 de Março corporais. Metropolitan Opera de Nova Iorque pelo pioneirismo luso. Com quase oito décadas de transmissões radiofónicas, em directo e ao vivo, colocan‑ Inibido de aparecer em público, de luto por sua irmã Maria do ao dispor de milhões de ouvintes as suas melhores produções, Ana de Bragança, princesa da Saxónia, o rei decide “encomendar” o teatro lírico mais importante do mundo iniciou em 2003 as a audição da ópera via teatrophone, recorrendo à mais recente emissões televisivas em alta definição, hoje captadas e difundi‑ invenção de Clément Ader, posta à prova em Paris em 1881. dads em cerca de 40 países, vistas e ouvidas num sem‑número Colocados em arco à boca de cena, assentes em pedestais com de teatros e salas de espectáculo. pés em borracha, para uma eficaz absorção das vibrações, alimen‑ Interessados em documentar este novo ciclo de globalização, tados por três conjuntos de baterias, conectadas em série e alter‑ fidelizando audiências e conquistando novos públicos para a nando a cada vinte minutos, assegurando a estabilidade da ópera, o met e em particular os responsáveis pelo “Live in HD program” ressuscitaram o teatrophone de Ader e a ousadia do rei corrente eléctrica, seis microfones operam o milagre da captação português. Em contacto pessoal, para solicitarem contactos e e transmissão, permitindo ao rei e à rainha seguir a ópera do princípio ao fim, de pouco valendo as distorções, espasmos sono‑ intermediação para uma investigação aprofundada nos arquivos do nosso único teatro lírico, argumentariam perante a minha ros ou eventual desafinação da orquestra, cantores ou coro. No António Maria de 6 de Março, Rafael Bordalo Pinheiro incredulidade e espanto, com a frase mortífera de “não me diga que vamos escrever‑vos a história”. Assim será? assina a caricatura que imortaliza o evento, enquanto Pan * Antigo assessor na Embaixada de Portugal em Washington e na Missão de Portugal em Nova legenda que “Sua Majestade pôde ouvir toda a ópera muito Iorque alegremente, com toda a comodidade do lar doméstico, sem ‘ ’ 78 Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 CULTURA Gente de Escrita Sylvia Plath, o falso mito suicida Quando penso em Sylvia Plath (n. 1932), vejo‑a encoberta pelo falso mito suicida – à maneira de Marylin ou James Dean – repetido até à exaustão pela autodevo‑ radora máquina mediática e/ou literária. Suicidou‑se, de facto, em 1963, aos 30 anos, num Fevereiro glacial, em Londres, em Primrose Hill, na casa que sonhou habitar, a do poeta Yeats. Mas viveu e escreveu; não só morreu. Acabara de se divorciar de Ted Hughes, poeta fascina‑ do pela astrologia e as ciências ocultas, mais tarde acusado de lhe amputar a obra, embora lha publicasse: poemas, diário, contos e correspondência. Como Dylan Thomas, outro autor que admira‑ va, nascera num 27 de Outubro, em Boston, Nova Inglaterra. Era jovem, pele de tulipa e mãos velozes de veias azuis. Imagino‑a a voar de bicicleta sobre a espessura das folhas, erguendo‑se sobre as pedras como quem cavalga um peixe. Oiço‑a rir, obsessiva, a intervalos metá‑ licos, já “com água pela cintura”, quan‑ do o amor, demasiadamente material, chega tarde, destroçado em “bocados de sangue adocicado”. Vejo a sombra e o desejo de luz que a fez partir, mas não só porque os amantes não se pertencem, mas porque os pés eram sudários de um mundo oco e os olhos “bolas vazias”, oscilando entre o estudo/leitura, volta‑ do para a escrita, e as palavras e os ges‑ tos dos outros que, de ausência, não vinham. Sylvia não se bastava, em seu narcisis‑ mo negativo, e demasiado talento. Dizia‑se, no entanto, genial, confirma‑o uma carta à mãe. Racionalizava a fuga, queria escrever com “mais inventivida‑ de que Deus”, desejava o berço da per‑ dida consolação paterna, acreditava que Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 Corbis/ VMI Por Ana Marques Gastão Sylvia Plath. o trabalho e o sonho movem o mundo, escutava passos, ouvia vozes, era habi‑ tada por um grito lunar: “Se não me mexo, se não faço nada, o mundo con‑ tinua a soar como um tambor mal esti‑ cado, desprovido de sentido” (Diário, 25 de Fevereiro de 1956). Sabia, como Fausto, que “há um pân‑ tano aos pés do monte”, mas não supor‑ tou o esforço da realização da obra, excesso de fogo. A vida ficou para trás, sem purga nem bálsamo; lírio branco o do seu lápis feroz e sublime que escreve o corpo ferido em lágrimas de fel e abis‑ mos sem fundo. O aparente confessiona‑ lismo da escritora d’A Campânula de Vidro, na verdade simbólico, tão coloquial como espesso de metáfora, transformava o desa‑ justamento e a estranheza em algo que lhe não pertencia. Por isso se deixou ir, escolhendo entre escrever, “segundo o legado poundiano entre a emoção e o intelecto” (Mário Avelar, Sylvia Plath, O Rosto Oculto do Poeta com uma antologia poética bilin‑ gue, Edições Cosmos, 1997), e morrer: “Ó Meu Deus, o que sou eu / para que estas derradeiras bocas gritem / numa floresta de geada, num amanhecer de centáureas” (Papoilas em Outubro, 27 de Outubro de 1962, trad. do mesmo). Se alguém pode ser poema, Sylvia Plath era Lady Lazarus, título de um seu monólo‑ go escrito onze dias mais tarde que Daddy, em Outubro de 1962, e que constrói uma falsa agonia: “Dying / Is an art, like everything else, I do it exceptionally well” (Morrer / É uma arte, como outra coisa qualquer / Executo‑a excepcionalmente bem). Há dor, inteligência e ironia nestes versos, mas trespassa‑os uma alegria mór‑ bida, um clamor sulfúrico, uma altivez que a voz denuncia: há que ouvi‑la e não só lê‑la. Na verdade, como sublinha Maria Filomena Molder, em A Imperfeição da Filosofia (Relógio d’Água, 2003), comentando um texto de Paul Valéry, Lázaro “só volta à vida porque está vivo ainda”, não é um agonizante, mas um Cristo. Lady Lazarus é o relato de uma crucificação, após a qual, morrendo, se revive. Pele, osso, joelhos, mãos, cicatrizes, a coroa e o ouro são elementos simbólicos de um caminho espiritual que a ficção de vidro denuncia. Numa aproximação arquetípi‑ ca a uma linguagem das profundezas, mas em dualidade irresoluta, o poema termi‑ na numa teia labiríntica de cabelo ruivo. Sylvia renasce das cinzas como a Fénix – da náusea a uma oculta escatologia. Deixou‑se arrastar, no entanto, para um não‑tempo. Mais róseo? 79 LIVROS George Steiner em The New Yorker George Steiner (org. Robert Boyers) Gradiva, Lisboa, 2010.1 A cornucópia da abundância Mas, lendo‑o, mesmo quando se discorda (o que não é estranho, tamanha é a sin‑ gularidade do autor), a sensação que fica pode bem ser descrita noutro termo: sobreabundância. Nascido em Paris em 1929 mas com educação académica nos Estados Unidos (comentada pelo próprio no último ensaio deste volume, cujo título, “Vida examina‑ da”, não é contudo autobiográfico), Steiner é actualmente académico de Oxbrigde – literalmente divide o seu tempo entre Oxford e Cambridge. Passou Por Carlos Leone Apesar de muito falada, a “morte do inte‑ lectual” está ainda por demonstrar. Um pouco como outrora sucedeu com a não menos comentada “traição”, a figura pública do “intelectual”, típica da moder‑ nidade, persiste no meio do declínio generalizado das condições que lhe deram protagonismo e, mesmo, possibilidade de existência. Findo o optimismo iluminista, finda a crença generalizada na neutralida‑ de da ciência, finda a cultura letrada tendencialmente universalizável, e quando mesmo aqueles acquis civilizacionais do Ocidente surgem ameaçados (direitos humanos, desde logo), essa figura ambí‑ gua e polimórfica que o intelectual sem‑ pre foi persiste. Dificilmente, em regra, mas com situações de estrelato mediático assinaláveis: Eco, Savater, Habermas, Bloom, e, para não alongar demasiado (ainda que sempre imperfeitamente) esta lista, George Steiner. Seria de esperar que a crítica de sobreexposição fizesse aqui sentido, tantos são os seus títulos publi‑ cados, mesmo em tradução para circulação em pequenos mercados como o portu‑ guês: desde a conferência ocasional “A Ideia de Europa” ao ensaio erudito (Antígonas), passando por recolhas como esta organizada por Robert Boyers, cen‑ trada na colaboração de décadas de Steiner com a célebre revista nova‑iorquina. Aliás, é o próprio organizador que refere a crí‑ tica há muito movida a Steiner (e a outros como ele) de se aventurar em áreas que não domina, justamente nesse processo de sobreexposição editorial e mediática. 80 ‘ Parecia ilustrar a intuição de Nietzsche da existência nos homens e mulheres de uma motivação mais forte do que o amor, o ódio ou o medo: o estar‑se interessado – num corpo de conhecimento, num problema, num hobby, no jornal de amanhã. George Steiner ’ por muitas outras universidades europeias e americanas de prestígio e, além dos seus livros, escreveu assiduamente em publi‑ cações prestigiadas de língua inglesa. A recolha dos textos publicados na New Yorker serve também de ilustração do que permite uma linha editorial efectivamen‑ te apostada na qualidade e atenta ao valor dos seus leitores, em vez de simplesmen‑ te interessada em contar caracteres e dimi‑ nuir tudo ao nível de um “leitor médio” aliás inexistente. É por isso instrutiva para o leitor português a publicação desta colectânea, se se pensar em que jornal ou revista portuguesa se poderia encontrar semelhante acervo. A falta de um equiva‑ lente é sintomática das diferenças culturais de fundo, bem mais fundas do que a habi‑ tual dicotomia entre a suposta “pressa americana” e a “lenteur europeia”. Isto, claro, dando de barato a nossa “europei‑ dade”, que a avaliar pela não referência de Portugal ou autores e obras portugue‑ ses por Steiner também é questionável (quando esteve em Lisboa, numa confe‑ rência na flad em 2002, Steiner produziu aliás declarações bem claras sobre a sua visão dessa questão). E o que esta liber‑ dade de escrita permite é uma diversida‑ de de interesses e uma prodigalidade de perspectivas que compõem a sobreexpo‑ sição ou sobreabundância, em termos que o próprio Steiner magistralmente expõe ao escrever sobre Koestler: “Parecia ilustrar a intuição de Nietzsche da existência nos homens e mulheres de uma motivação mais forte do que o amor, o ódio ou o medo: o estar‑se interessado – num corpo de conhecimento, num problema, num hobby, no jornal de amanhã” (p. 350). Esta cita‑ ção parcial de um parágrafo brilhante de um dos melhores ensaios do livro, “Le Morte d’Arthur”, não só se adequa a Steiner no seu melhor como identifica a matriz dos textos: uma conexão sempre renovada entre o filosófico, o literário, o político e o histórico, mantendo sempre uma perspectiva pessoal muitas vezes baseada (como no caso de Koestler) num relacionamento privado com o tema de cada ensaio. Há limitações, de resto comuns à gene‑ ralidade dos ensaios de Steiner: o foco no Ocidente e uma redução da contempora‑ Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 SUSANA BRITO LIVROS neidade à alta cultura (a tv e a publici‑ dade são alvos de remoques constantes, aliás divertidos, a música rock ou a net não existem). Mas estamos aqui mais no domínio da idiossincrasia do que no do defeito. E, quanto ao tom, este é bem mais equilibrado do que acontece noutras peças do autor, sem nunca incorrer em pater‑ nalismo ou pretensiosismo, mesmo quan‑ do recorre ao velho tropo professoral do lamento pela degradação do ensino. Subdividido em quatro secções, este livro de cerca de 400 páginas lê‑se como um todo e praticamente de um fôlego. A afinidade com autores tão diferentes Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 como Cioran, Orwell, Céline ou Brecht, o cuidado posto no comentário de temas como o do julgamento de Nuremberga (vide “Da Casa dos Mortos”, notável crí‑ tica aos diários de cárcere do ex‑ministro do Reich Albert Speer), a sensibilidade para o significado cultural de obras não literárias (como a de Webern, no contex‑ to da cultura centro‑europeia, e depois no contexto do Ocidente em geral), enfim, a unidade criada pelo autor para um conjunto tão grande de temas, impressionam mesmo quem já se habi‑ tuou a lê‑lo. Assim, “História e Política”, “Escrita e Escritores”, “Pensadores” e “Estudos de Uma Vida” são divisões razo‑ áveis, mas longe de decisivas ou sequer necessárias; correspondem a uma orga‑ nização do volume cujo principal méri‑ to consiste em não desvirtuar a riqueza dos textos. O que, como qualquer leitor interessado não tardará a confirmar, difi‑ cilmente seria possível. 1. A tradução a duas mãos é de Joana Pedroso Correia e Miguel Serras Pereira. Pequenas e raras “gralhas” ou difi‑ culdade de transpor a expressividade da prosa de Steiner não maculam o resultado final. Pena é a ausência da data de publicação original dos textos, embora isso não impeça a sua leitura e talvez já esteja em falta na edição original. 81 LIVROS A Letra Encarnada Nathaniel Hawthorne Dom Quixote, Biblioteca Lobo Antunes, 2009 O escritor mais impopular da América Por Clara Pinto Caldeira É um dos livros escolhidos por António Lobo Antunes para integrar a colecção que pretende tornar acessível ao grande públi‑ co obras incontornáveis da literatura inter‑ nacional de todos os tempos. Com prefácio do escritor que dá nome à colec‑ ção, introdução de Georges Monteiro, e tradução do poeta Fernando Pessoa. Publicado originalmente em 1850, A Letra Encarnada é considerada a obra‑pri‑ ma de Nathaniel Hawthorne. Escritor errático e indeciso, que se dedicou obses‑ sivamente à escrita em longos períodos da sua vida, arredando‑se dela noutros, é‑lhe atribuída a frase: “Quem se atreve‑ ria a publicar um livro escrito por mim, o escritor mais impopular da América?” Quem o conta é James T. Fields, encora‑ jador da obra, sócio da editora que apos‑ ta num manuscrito ainda incompleto chegando mesmo a anunciá‑lo como um conjunto de contos, género em que Hawthorne já se tinha destacado, em Twice Told Tales. Quando A Letra Encarnada vê a luz do dia, em forma feliz de romance, os primeiros 2500 exemplares esgotam em dez dias. Uma história dentro da história, ou além dela. É que, neste livro, Hawthorne ofereceu ao seu público um capítulo semi‑autobiográfico, intitulado “A Alfândega”, um relato da sua passa‑ gem por aquela instituição de Boston, 82 ‘ Quando A Letra Encarnada vê a luz do dia, em forma feliz de romance, os primeiros 2500 exemplares esgotam em dez dias. Uma história dentro da história, ou além dela. É que, neste livro, Hawthorne ofereceu ao seu público um capítulo semi‑autobiográfico, intitulado “A Alfândega”, um relato da sua passagem por aquela instituição de Boston, numa época em que lhe parecia impossível escrever. ’ numa época em que lhe parecia impos‑ sível escrever. Mas é precisamente no capítulo sobre o velho porto, cujo ambiente evoca os primórdios da América e remete simultaneamente para o fun‑ cionalismo público da actualidade, que Hawthorne revela como nasceu A Letra Encarnada – a partir do acaso que leva o escritor até um pedaço de trapo velho com um bordado e um manuscrito assi‑ nado por um inspector do século xvii. O romance passa‑se, pois, na Nova Inglaterra puritana dessa época, e é ali‑ ciante acreditar que as personagens prin‑ cipais possam ter existido. Uma mulher condenada a exibir um símbolo de infâ‑ mia no peito, bordado pela própria com talento, rigor e uma quase vaidade, na pequena cidade que a estigmatiza, da qual aceita todas as humilhações, entre a resignação e o orgulho. Uma criança tocada pela beleza e pela transcendência, ora angélica ora diabólica, prova viva e despudorada do adultério da mãe, esta digna no silêncio que insiste em manter sobre o homem que a fez pecar. Um pároco bondoso e exemplar, adorado por uma população cruel e de falsa moral, consumido por sofrimentos insondáveis. E um estrangeiro enigmático que turva de escuridão uma história, uma época, uma dor já de si tenebrosos. A Letra Encarnada poderia ser apenas uma história de crime e castigo, de bem e de mal, de pecado e redenção. Mas é, no estilo sublime de Hawthorne, um docu‑ mento sobre a natureza humana, um elogio das subtilezas da dignidade, uma arrebatadora história de amor, um con‑ vite à reflexão sobre o simbólico e sobre a relação entre o individual e o colectivo. É também uma reconstrução vívida, quase sufocante, da sociedade fundadora de uma identidade nacional. “Curioso o facto de uma novela tão americana na sua trama essencial tocar o leitor de uma cultura muito diferente pelo jogo de emoções e tramas”, escreve Lobo Antunes no prefácio. Curioso também que Nathaniel Hawthorne, nascido exacta‑ mente quarenta anos depois da declara‑ ção de independência do seu país, seja descendente de um juiz do famoso jul‑ gamento das Bruxas de Salem. Sobre A Letra Encarnada, Henry James afir‑ mou ser “a peça mais distintiva de ficção em prosa que tem produzido o solo ame‑ ricano”. Intemporal e universal. Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 LIVROS Cem Poemas Emily Dickinson Tradução, posfácio e organização de Ana Luísa Amaral Relógio d’Água, 2010 O ofício do silêncio enxuta, sendo que a relativa regularidade métrica dissimula violações sintácticas e jogos bruscos de palavras: a geada per‑ corre os versos que transformam o fogo em figura. A pontuação é errática e os travessões são linhas, seres invisíveis, isto se os virmos à luz de uma geometria sagrada, rastos de pontos em movimento que nascem da imobilidade do ponto, imaterial e comparável ao zero: união entre silêncio e palavra. Por Ana MaRques Gastão A circunferência é o contorno do círculo, lugar geométrico de todos os pontos de um plano que estão a uma certa distância (o raio) de um certo ponto chamado centro. A definição é oblíqua ao tentar desvendar‑se a poesia de Emily Dickinson (1830‑1886), como oblíquo dir‑se‑ia o seu discurso, quer nos poemas, quer nas cartas: silencia‑se o que se diz porque não pode ser dito. Quando Emily Dickinson escreve: “O meu Ofício é a circunferência” (carta 268, Julho de 1862) reformula a ideia de Nicolau de Cusa: “Ele [Cristo] é o centro e a circunferência da natureza intelectual, e, porque o intelecto abraça todas as coisas, está para lá de tudo” (A Douta Ignorância, Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, tradução, introdução e notas de João Maria André). A poeta estava consciente daquilo que Pascal lembra, citando Hermes Trismegisto: “Deus é uma esfera cujo centro está em todo o lado e a circunferência em lado nenhum.” A presença‑ausência divina, porque ilimitada, só poderia estar no centro invisível do ser, algo que justificaria a vida silente da autora. O “elemento branco” da sua esotérica poesia fala de uma coisa querendo dizer outra. Influenciada pela herança da teologia negativa – num certo sentido neoplató‑ nica –, Emily Dickinson vive entre a ten‑ são interna do poema e a sua desfiguração Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 ‘ A presença‑ausência divina, porque ilimitada, só poderia estar no centro invisível do ser, algo que justificaria a vida silente da autora. O “elemento branco” da sua esotérica poesia fala de uma coisa querendo dizer outra. ’ Ana Luísa Amaral, em Cem Poemas (Relógio d’Água, 2010, tradução, posfácio e orga‑ nização da autora), explica que, “ao uti‑ lizar, para definir a sua poesia, a figura da circunferência, Emily Dickinson privilegia […], do ponto de vista estilístico, a elip‑ se”, acrescentando que a poeta subverte duplamente a figura de círculo, “quer substituindo‑a pela distorção do centro no abaixamento e descentramento presen‑ tes na geometria da elipse, quer pelo que é ausente do centro”. Em ambos os casos trabalha‑se a alusão e, conforme salienta, o paradoxo na definição do “excesso pela própria presença do limite”, quer no que se refere à visualidade do poema, quer à sua significação. Na verdade, Emily Dickinson, cuja ousa‑ dia experimental ainda hoje surpreende, viu apenas publicados dez poemas em vida. Se Lavinia, sua irmã, tivesse respei‑ tado o pedido de destruição de tudo quan‑ to escreveu (Max Brod também não cumpriu a solicitação de Kafka), que conheceríamos desta mulher, enclausura‑ da entre a casa e um jardim coroado de ausência? E porque não terão eles pró‑ prios, os autores, feito desaparecer os seus papéis? A ambiguidade mantém‑se, bem como a questão ética; obras extraordiná‑ rias teriam sido aniquiladas, mas hon‑ rar‑se‑ia a vontade de ambos. O trabalho de Ana Luísa Amaral (que faz justiça à descoberta de Sena e Cesariny, bem como a tradutores como Hatherly, Llansol ou Júdice) não só constitui a mais rigoro‑ sa e poética tradução da intraduzível obra de Dickinson (a partir da edição de Johnson) como resulta na mais vasta anto‑ logia publicada em Portugal. O leitor é ainda brindado com um elucidativo e denso prefácio – em torno de uma autora de contornos imprecisos e certamente vio‑ lentados –, uma minuciosa tábua cronoló‑ gica (não meramente enunciadora, mas aproximada de um consistente registo bio‑ gráfico, porque apoiada em informações extraídas de cartas e escritos memorialís‑ ticos), sendo‑lhe ainda fornecida uma lista exaustiva do material bibliográfico sobre a poeta produzido entre nós. 83 LIVROS Carlucci versus Kissinger Bernardino Gomes e Tiago Moreira de Sá Dom Quixote, 2008 Os portugueses vistos pelos americanos Por E. Mujal‑Leon O Department of Government e o BMW Center for German and European Studies da Universidade de Georgetown tiveram o prazer de promover a apresentação do livro Carlucci versus Kissinger, da autoria de Bernardino Gomes e Tiago Moreira de Sá. Presentes na cerimónia estiveram a antiga embaixadora dos Estados Unidos em Portugal, Elizabeth Bagley, e o actual embai‑ xador de Portugal nos Estados Unidos, Nuno Brito, bem como Miguel Vaz, repre‑ sentante da Fundação Luso‑Americana para o Desenvolvimento. Foi um privilégio espe‑ cial para nós podermos contar, naquela ocasião, com a presença de um dos prota‑ gonistas do livro, o embaixador Frank Carlucci. Carlucci versus Kissinger é um livro impor‑ tante, original e oportuno. Não só nos recorda quanto esteve em jogo naqueles anos cruciais em Portugal, como também oferece ao leitor um relato perspicaz e minucioso da Revolução, das acções dos principais actores e grupos, e da transição extraordinária para a democracia que se seguiu à Revolução. Já foram escritas outras obras sobre este período. O livro Carlucci versus Kissinger representa um con‑ tributo com dois aspectos únicos. Em primeiro lugar, oferece uma análise muito 84 ‘ Passados quase quarenta anos, este livro torna muito claro o significado da Revolução portuguesa e conta a história da luta intensa de uma nação pela democracia. ’ válida da Revolução portuguesa vista de Washington pelos responsáveis pela polí‑ tica externa americana. Em segundo lugar, apresenta um relato íntimo dos debates que tiveram lugar ao nível da Administração americana e das divergências que surgiram entre Henry Kissinger e Frank Carlucci sobre a forma de responder aos aconteci‑ mentos em Portugal. Passados quase quarenta anos, este livro torna muito claro o significado da Revolução portuguesa e conta a história da luta intensa de uma nação pela demo‑ cracia. Quem teria imaginado que um pequeno país da periferia europeia iria despertar do torpor de uma ditadura que durava há quase cinquenta anos, rechaçar os esforços dos radicais do Movimento das Forças Armadas e do Partido Comunista no sentido de instaurar uma democracia “popular”, e, depois, num escasso número de anos, assumir o seu destino democrático? Este processo his‑ tórico levou uma das grandes figuras da ciência política americana, Samuel Huntington, já falecido, a identificar a Revolução portuguesa como o ponto de origem da Terceira Vaga que, no espaço de duas décadas, acabaria com as dita‑ duras do Sul da Europa e da Europa Oriental, e, também, da América Latina. Carlucci versus Kissinger ajuda‑nos a compre‑ ender por que razão Portugal esteve no epicentro da política mundial durante os meados e os finais da década de 1970. Durante a Revolução portuguesa, gerou‑se alguma incerteza quanto à futura confi‑ guração da segurança europeia e ao papel da Aliança Atlântica. E, também, quanto à forma como se iria processar a descolo‑ nização da África Austral. A própria Guerra Fria e o equilíbrio de poder entre os Estados Unidos e a União Soviética seriam profundamente influenciados pela luta bem‑ sucedida pela democracia neste pequeno país. Este livro contém uma análise penetran‑ te da política externa americana durante um período tumultuoso e realça a impor‑ tância da liderança nos processos políti‑ cos. Acontece com demasiada frequência os historiadores e os cientistas políticos concentrarem‑se em processos amplos e estruturais. Este livro recorda‑nos que são os indivíduos que fazem a história. Qualquer pessoa que esteja interessada em saber como é feita a política externa ame‑ ricana deve ler este livro. Os documentos e entrevistas que contém são um verda‑ deiro manancial de informação. O livro conta a história absorvente de duas gran‑ des figuras da política externa americana – Henry Kissinger e Frank Carlucci –, os seus confrontos e as suas divergências de opinião em relação aos acontecimentos em Portugal. Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 BREVES À Procura da Grande Estratégia – de Roosevelt a Obama e Fórum Roosevelt apresentados na Califórnia Retomar os contactos da FLAD com as comunidades portuguesas na Califórnia foi um dos objectivos da visita de lan‑ çamento do livro À Procura da Grande Estratégia – de Roosevelt a Obama e apresen‑ tação do Fórum Roosevelt. Tony Goulart, empresário e livreiro de grande projecção junto da comunidade portuguesa da costa oeste, planificou as sessões nos departamentos de Português e em associações comunitárias de luso ‑descendentes, num total de 12, de São Francisco a São Diego. Mário Mesquita, administrador da FLAD , António Vicente, até recentemen‑ te responsável na Fundação pelo ensino do português nos Estados Unidos, e Sara Pina, coordenadora das edições por‑ tuguesa e inglesa do livro À Procura da Grande Estratégia – de Roosevelt a Obama, parti‑ ciparam em sessões e encontros na California State University, na biblioteca J.A. Freitas, na San Jose High School e State University, no Portuguese Atheletic Club, na conferência da Luso ‑American Education Foundation, no San Diego Portuguese Hall, entre muitos outros. Um protocolo de empréstimo de obras da colecção de arte da FLAD, destinadas a serem expostas nos Açores, no quadro do projecto cultural denominado “Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas”, sediado na Ribeira Grande foi assinado em Julho passado. Jorge Paulus Bruno, director regional da Cultura dos Açores (DRaC) e Mário Mesquita, representando a FLAD, realçaram a importância desta parceria, que vai per‑ mitir que o acervo da Fundação Luso ‑Americana possa figurar, por empréstimo temporário, em várias mostras e exposi‑ ções, a realizar na Região. Para cada exposição prevista, a DRaC vai apresentar à FLAD o tipo de projecto e os artistas que pretende ver representados. A FLAD compromete‑se a satisfazer os pedidos apresentados e a avançar com sugestões, sempre que possível. Com este acordo o Governo Regional Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 D.R. FLAD assina Protocolo de Cooperação Cultural com o Governo Regional dos Açores dos Açores e a FLAD pretendem dar con‑ tinuidade a uma iniciativa que entre 2007 e 2008 permitiu realizar três exposições – “Sinais”, “Corpo Intermitente” e “Passagem” – em Ponta Delgada, Angra do Heroísmo e Faial. 85 COLECÇÃO FLAD Jorge Molder en garde Por vezes só. Outras acompanhado. O mundo já lá está antes de fias mostram‑nos poses obtidas directamente), concentra, de modo qualquer reflexão? Pequenos enquadramentos exploram saturada‑ quase seminal, algumas das qualidades, temas e eixos fundamentais mente a imagem de uma relação enigmática de um duplo contra da discursividade desenvolvida em diferentes momentos, desde ou perante o seu duplo, isolam as figuras duplicando‑as, questionam 1977 até à actualidade, por Jorge Molder. Essencial, desde logo, é ‑nos sobre a paradoxal originalidade do outro, daquele que se o conceito de “série” que, como refere o próprio, alicerça o seu replica infinitamente, manifestando subtilezas, tensões e fragilida‑ significado num “bem conhecido conceito filosófico”, com alusões des enganadoras, num jogo corporal sedutor e potencialmente temporais, de pertença e de outros atributos difíceis de clarificar. agressor. Aproximamo‑nos. Através da relativa opacidade das ima‑ “Sei perfeitamente quando começa, acabo por conseguir descobrir gens, espessas, densas, sombrias, obscuras, matizadas, quase des‑ quando termina, consigo compreender os seus elementos consti‑ focadas – destrói‑se a nitidez pela nitidez? –, pouco definidas ou tutivos, mas escapa‑me totalmente o seu modo de funcionar e a precárias, entre o fainting, falling, fading and faking (título do texto de sua ocorrência” (tradução livre de texto no website do artista). Delfim Sardo, in Luxury Bound), Jorge Molder, cujo trabalho, essen‑ Inacabada, com alpha e sem omega, esta série de obras em torno do cialmente fotográfico, trata, segundo os seus vários críticos, da universo da esgrima permite‑nos perceber algumas das suas obses‑ “duplicidade”, esgrime, com uma impressionante economia de sões, sobretudo, em torno da temática do conceito de doppelgänger: recursos, os argumentos que se digladiam sobre a inevitável e uncanny criatura dividida ou réplica vagueante? divisão do ser. O que vemos são pequenas imagens polaroids, obti‑ Nestas obras, a figura do esgrimista – “são seres um bocado das a partir de vários registos em vídeo que Molder realizou sobre especiais”, segundo Jorge Molder –, as suas roupas, o movimento os movimentos de um duelo de esgrima. Dois corpos ou figuras dos seus gestos, a anatomia de uma rotina nos limites do ritual, (ou o mesmo corpo duplicado?), vestidos com os habituais fatos ensaiam sobre a ideia ou sobre a memória de um arquétipo essen‑ brancos, com máscaras protectoras que escondem e revelam o rosto, cial que se confronta com a impossibilidade do golpe mestre, da as mãos descobertas, relacionam‑se em diferentes momentos atra‑ estocada perfeita, imparável, a mais depurada criação iluminada vés de diferentes poses/gestos numa arena, cujo fundo indistinto, pelo talento humano, modelo de inspiração e eficácia, desvelando, iluminado por um foco circular, permite um recorte expressivo de por isso, um certo espírito de agonia, num silencioso duelo com um aqui e de um agora – hic et nunc –, de natureza quase arcaica, a própria imagem, cujo reflexo parece escapar aos limites impos‑ fundadora, inicial e indicial, mas que nos remete automaticamen‑ tos pelo artista, entre rejeição e retenção, obsolescência e ritual, te para um antes e um depois sem tempo: “ainda não e já não”. numa constante variação aprisionada. Para George Kubler, “a repli‑ Um passado que é futuro? Para João Miguel Fernandes Jorge, “as cação que enche a história prolonga efectivamente a estabilidade polaroids potenciam o lance possível desse passado vivido”, subli‑ de muitos momentos passados, permitindo que sentido e modelo nhando, quando ensaia sobre o trabalho de Molder, a relevância de possam emergir sempre que atentamos nesses momentos. No entan‑ “um ‘estar em guarda’. Os Esgrimistas são o seu domínio. Neles, a to, esta instabilidade é imperfeita. Qualquer réplica feita pelo fotografia é precisamente o seu pensamento. Os golpes certeiros homem difere do seu modelo devido a divergências mínimas e levam a um constante voltar a olhar a fotografia. Estabelecem uma não premeditadas. Os efeitos acumulados destas divergências são necessidade de tempo, e de mais tempo ainda, para se provar a como que uma lenta deriva em relação ao arquétipo” (A Forma do consistência de um rosto que se recolhe a cada instante em fuga Tempo). Tocar e evitar ser tocado? Pedro Faro (e em fusão) com o negro do fundo” (João Miguel Fernandes Jorge, texto para o catálogo Algum Tempo Antes/Algun Tiempo Antes, 2006). Licenciado em Filosofia, Jorge Molder ganha forma a partir de 1987, através Enuncia‑se discretamente uma certa dialéctica (Lisboa, 1947) iniciou o seu percurso de várias séries de obras. Em 1999, paradoxal do espelho, num sedutor jogo de em 1977 com uma exposição indivi‑ Jorge Molder foi convidado por Delfim revelação e ocultação, através de duas perspec‑ dual dedicada a Vilarinho das Furnas Sardo para representar Portugal na 48.ª tivas, em cada um de nós – “Il faut que je sois – “Vilarinho das Furnas (Uma Encena‑ Bienal de Veneza, confirmando‑o como mon extérieur, et que le corps d’autrui soit lui ‑même” (M. Merleau‑Ponty, Phénoménologie de la ção), Paisagens com Água, Casas e Um um dos nomes mais importantes da Perception) –, sem tempo e espaço objectivos. Trailer”. Em 1980, em colaboração com arte contemporânea portuguesa. Foi Constantemente citada nos vários textos sobre os poetas João Miguel Fernandes Jorge director do Centro de Arte Moderna da a obra e percurso de Jorge Molder, mas pouco e Joaquim Manuel Magalhães, realiza Fundação Calouste Gulbenkian, de 1993 explorada para além da sua razão essencial, a série “Uma Exposição”. A auto‑representação, a 2009. O trabalho de Jorge Molder está de polaroids Esgrimistas, de 1986, com 8 x 8 cm, complementada por um pequeno conjunto de aliada a fortes referências cinemato‑ representado em importantes colecções duas fotografias, a preto e branco (as polaroids gráficas, do quotidiano e da literatura, de arte portuguesas e internacionais. são feitas a partir de registos vídeo e as fotogra‑ 86 Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 COLECÇÃO FLAD “Não te mexes. Não te mexerás. Um outro, um sósia, um duplo fantomático e meticuloso talvez faça, por ti, um a um, os gestos que tu não fazes.” Laura Castro Caldas e Paulo Cintra Georges Perec, Um Homem Que Dorme Sem Título (da série “Os Esgrimistas”) 1986, Polaroid colada em papel Canson, 8×8 cm Paralelo n.o 6 | OUTONO | INVERNO 2011 87 D.R. Lua sobre o Pico Lucina Ellis, 1996, 48"×54", óleo sobre tela Cresci a ouvir contar histórias sobre o meu avô. Era um pintor, um homem severo. Partiu do Faial rumo ao Brasil, deixando para trás a mulher, que esperava um bebé, uma filha mais velha, um filho que se preparava para entrar para o exército e o meu pai, então com 13 anos. Deslocaram‑se todos à Terceira, com as suas melhores roupas, para se despedirem do meu avô no cais. A família iria esperar que ele se instalasse no Brasil, e depois iria ter com ele. Passaram‑se anos à espera – talvez o meu avô tivesse adoecido, constituído uma nova família, ou sido morto! Ele nunca soube até que ponto faz parte de mim e, no fundo do meu coração, também eu esperei por ele. Hoje, tenho uma fotografia do Pico na parede do meu ateliê. Um dia o meu pai subiu o caminho até à minha porta trazendo uma fotografia escura e cinzenta. Queria que eu lhe fizesse uma pintura da fotografia. O meu pai ansiava pela vida que em tempos vivera com o seu pai, quando era jovem, e pintava igrejas no Faial e no Pico. Pintei um dia luminoso que perdurasse, grandes manchas de amarelo, texturas e pinceladas visíveis, e o Pico ornamentado com nuvens de tons suaves, recordando um passeio de barco do Pico ao Faial, com a água do oceano a bailar à volta dos meus dedos. Lucina Ramos Ellis, pintora