Daniel Hora - Universidade de Brasília
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Daniel Hora - Universidade de Brasília
INSOLÊNCIA NA ARTE HACKER: CRÍTICA CONTRA O CINISMO DIGITAL Daniel Hora, Universidade de Brasília* Arte e Tecnologia Resumo O texto apresenta uma reflexão sobre aspectos convergentes da arte em meios tecnológicos e da cultura hacker, com a observação de práticas comuns de crítica insolente. A insolência é apontada por Peter Sloterdijk como elemento fundamental do kinismo, termo com o qual remete a uma postura de resistência anti-idealista com raízes no filósofo da antiguidade grega Diógenes de Sínope. Na contemporaneidade, o kinismo rivaliza com o cinismo, estratégia de dominação que tenta absorvê-lo e deturpá-lo, carregada pela infelicidade de falsas consciências esclarecidas. Ante o cenário de disseminação das mídias digitais, utilizaremos a insolência como tática de luta contra os cinismos cardinais revistos a partir das definições de Sloterdijk: 1. o cinismo militar é dilatado pela telestesia; 2. os cinismos de Estado e de supremacia são assumidos pelas corporações transnacionais; 3. os cinismos sexual e clínico comparecem rearticulados na digitalização do corpo; e 4. os cinismos religioso e do saber conjugam-se com a indústria da revitalização e o informacionalismo. This paper presents a reflection on converging aspects of technological media art and hacker culture, with the observation of frequent practices of insolent criticism. Following Peter Sloterdijk, insolence is adopted as the essential feature of kynicism, expression related to an anti-idealistic attitude of resistance with roots in the life of Greek philosopher Diogenes of Sinope. In contemporary world, kynicism opposes cynicism, oppressive strategy that intends to absorb and spoil the former. Cynicism is charged with the unhappiness of enlightened false consciousness. Considering the present time of digital media dissemination, we will use insolence as a kind of struggle tactics against the cardinal cynicisms, reviewed accordingly to Sloterdijk definitions: 1. military cynicism is dilated by telesthesia; 2. cynicisms of state and hegemonic power are taken over by transnational corporations; 3. sexual and medical cynicisms attend the debate reconfigured with body digitalization; and 4. cynicisms of religion and knowledge combine themselves with the revitalization industry and informationalism. Palavras-chave: Insolência. Dissenso. Arte e tecnologia. Arte hacker. Gargalhadas contra a sua segurança O lema adotado pelo grupo de hackers LulzSec é um exemplo recente, de referência fisionômica, do gesto galhofeiro que acompanha as experiências atuais de desvio e interferência na operacionalidade da tecnologia. Esta característica consiste na zombaria dirigida contra as falsas determinações, esclarecidas e defendidas pela busca da eficiência, que disfarçam a imposição de uma racionalidade instrumentalizada para a (re)produção do poder. O codinome LulzSec resulta da junção do neologismo lulz (a partir da sigla LOLs para laughing out loud -- gargalhar) com a palavra security. Suas ações são pautadas pelo protesto risonho que desfaz a segurança, com a derrubada de sites de governo e corporações ao redor do mundo (incluindo o Brasil). Insolência que por outro lado se manifesta na invasão, alteração e redirecionamento dos sites dos jornais britânicos The Times e The Sun. Neles são então divulgadas notícias falsas sobre a morte de Rupert Murdoch, magnata do 1 império de comunicação News Corporation, empresa responsável pelas duas publicações invadidas. O ataque foi motivado pelo aparecimento de alegações da prática ilegal de grampos telefônicos realizados pela News Corporation contra celebridades e cidadãos comuns, com a finalidade de produção de notícias. Caso que transformou Murdoch em alvo de investigações por suborno e corrupção. Como se sabe, o exemplo citado acima não é um caso isolado. As práticas de decodificação, exploração e interferência na operacionalidade dos sistemas constituem um gesto recorrente da resistência hacker, com diversas intenções. Entre os casos históricos está a contracultura de interferência nas redes de telefonia por phreakers (phone + freaks). Entre eles está John Thomas Draper, programador que desenvolve no início da década de 1970 aparelhos eletrônicos para reprodução das frequências sonoras utilizadas para controle do roteamento de chamadas por companhias telefônicas nos EUA. O dispositivo pirata denominado blue box é fruto de experiências com um apito de brinquedo empacotado nas caixas do cereal Cap’n Crunch, que ao emitir a frequência de 2600 hertz habilitava a realização gratuita de chamadas de longa distância. O riso persiste nas abordagens do software livre, que articulam esforços colaborativos para a programação em código aberto isenta das restrições de condições para uso, estudo, aprimoramento e redistribuição de cópias idênticas ou não à fonte. A atuação pública de Richard Stallman é carregada de humor: com aparência marcada pelos cabelos longos e barba, faz a defesa da liberdade com recurso ao sarcasmo contra as tecnologias proprietárias hegemônicas da Microsoft e Apple – o trocadilho entre iPad e iBad é apenas um exemplo. Essas ações acendem uma controvérsia em torno de sua pertinência, uma vez que podem se inclinar a diversos usos -- o jogo com as (im)possibilidades dos sistemas, o desenvolvimento de tecnologias alternativas, o protesto político, o crime. Emerge da polêmica uma abordagem de discernimento ético, que parte tanto de fora quanto de dentro da comunidade que a expressão cultura hacker abrange. No exterior, o sensacionalismo da mídia, pautado pelo conservadorismo cínico de interesses corporativos, incita a condenação da suposta falta de escrúpulos de todos que desrespeitem as normas estabelecidas do bom uso da tecnologia, denominados indistintamente como hackers. Internamente, grupos de programadores, adeptos do software livre, ativistas de direitos civis na era digital defendem que a atividade hacker é guiada e discernível por uma ética1 particular. Assim é traçada a especificidade ética da cultura hacker, que procede 1Como se sabe, os preceitos dessa ética hacker abrangem: a apologia do compartilhamento e da liberdade de informação, o desmonte das restrições de acesso ao conhecimento, a descentralização do poder e a confiança nas possibilidades de aprimoramento das condições de vida e de produção artística com ajuda da tecnologia (LEVY, 2001). Outras versões da ética acrescentam o cuidado para que a ação hacker não gere danos a outras pessoas, a proteção da privacidade, a disponibilidade de informações de interesse público, o aproveitamento de recursos ociosos e a redução de desperdícios (CHAOS COMPUTER CLUB, 2002; MIZRACH, 2001). 2 como diferença dissidente tanto em relação a outras éticas existentes, quanto em relação à antiética cracker do cibercrime aderente ao cinismo do prejuízo alheio para o proveito próprio. De maneira distorcida, esta antiética é atribuída ao hacker, graças à opinião equívoca do pensamento sensacionalista e conservador. Em paralelo ao viés de sua ética contracultural, persiste o escárnio hacker que se manifesta como uma possível forma de atualização do kinismo. Com este termo, Peter Sloterdijk (2011) designa um pensamento e prática insolentes e realistas, cuja genealogia remete à Diógenes de Sínope, filósofo da antiguidade grega que, em nome de uma existência plenamente livre, adotou um modo de vida desprendido de bens e regras morais, sendo por isso comparado a um cão. Guardadas as distâncias culturais, temos na cultura hacker um modo kínico de resistência contrário às apropriações da tecnologia digital pela falsidade esclarecida do cinismo contemporâneo. A indagação sobre a filiação kínica da zombaria hacker nos encaminha a uma recuperação de alguns de seus gestos, que fornecem exemplos dos embates travados com variantes cardinais do cinismo -- a inversão senhorial da ofensiva kínica, em que o idealismo se desmascara parcialmente, sem dar lugar ao materialismo libertário kínico, mas sim à opressão. Para esta abordagem do combate entre o kinismo hacker e o cinismo digital, assumimos que hackear é explorar os limites daquilo que é previamente possível ou admissível. Neste ponto convergem tanto a perspectiva da liberdade de programação em Richard Stallman (2010) quanto o pensamento da produção da diferença como abstração, ou inovação, em McKenzie Wark (2004). Deriva daí a extensibilidade das ações hackers para campos relacionados (ou não) à tecnologia telemática, em diferentes gradações, como a política, a filosofia, a biologia e a arte. No território da produção artística, identificamos uma atitude hacker, digamos de tecnoinsolência contra o cinismo tecnocrático, que agencia o desenvolvimento e uso poético de máquinas improvisadas, aplicações anárquicas, programas inconvencionais, algoritmos abertos, ações colaborativas, táticas de desvio e interferência em circuitos. Essas apropriações da tecnologia alcançam uma abrangência maleável que concerne tanto ao emprego de mecanismos e lógicas no cotidiano, quanto aos experimentos que desviam as fronteiras da ciência, da indústria e da arte. Trata-se de um impulso de adoção autônoma de recursos da eletrônica, informática e engenharia biológica, que corresponde ao conceito de artemídia em Arlindo Machado (2007) ou ao jogo de desvendamento crítico das rotinas predeterminadas da caixa-preta tecnológica, conforme sugere Vilém Flusser (FLUSSER, 2002). A genealogia da insolência da arte hacker abrangeria, portanto, produções das vanguardas do futurismo, construtivismo e dadaísmo; do cinema experimental e arte 3 cinética; dos Experimentos em Arte e Tecnologia liderados por Robert Rauschenberg, Robert Whitman e os engenheiros Billy Klüver e Fred Waldhauer; da antiarte da rede Fluxus; do conceitualismo e exploração das mídias na videoarte, instalações, performances e arte correio; da net.art, mídia tática e hacktivismo. Escapa ao propósito desde artigo um panorama extenso dessa produção. Por isto, discutiremos aspectos das produções mais recentes que dialogam de modo mais direto com os debates em torno da cultura hacker. A opção visa, de certo modo, a uma atualização da crítica da razão cínica, proposta há três décadas por Sloterdijk. Neste sentido, pensaremos essa crítica em um contexto histórico em que as mediações alcançam um estágio avançado que, embora seja derivado da situação das tecnologias de comunicação disponíveis à época da reflexão de Sloterdijk, oferece circunstâncias específicas de produção da informação, bem como de seu armazenamento, processamento, instrumentalização programável e difusão em rede. Violência na telestesia Um espaço superlativo dilata a comunicação, se a entendermos na atualidade como processo de afecção em que são implicados corpos que afetam e corpos que são afetados, conforme Deleuze (2002). Pois com o desenvolvimento das tecnologias de telecomunicação e processamento da informação nas últimas três décadas, agrava-se o fenômeno de distanciamento entre o agente e o paciente da ação. Contextos físicos de partida e de chegada estão cada vez mais mediados. Aumenta o grau abstrato desse percurso, e isto vale tanto para a atração quanto para a agressão. Na afirmação de supremacias, aprofunda-se a cisão cínica entre consciências heroicas e covardes, na aceleração da lógica de afastamento daquele que combate em relação ao campo de batalha, conforme o argumento de Sloterdijk (2011) sobre o desenvolvimento da artilharia de longo alcance, como a bomba atômica. “Quanto mais uma arma é devastadora à distância, mais se permite em princípio aos seus portadores que sejam cobardes” (p. 289), embora se apresentem como heróis, também por meio da mediação tecnológica, para legitimar o seu poder. Luta-se na retaguarda dos dispositivos inteligentes, capazes de telestesia, a “percepção à distância” do “telégrafo, telefone, televisão, telecomunicações” (WARK, 2004, parágrafo 154 e 3142). Em lugar do refúgio antiatômico, para escapar dos efeitos da radiação nuclear da bomba disparada, a covardia dos heróis cínicos encontra guarida perversa no aspecto pervasivo dessas tecnologias que se propagam pelo mundo, efetuando a transcodificação (MANOVICH, 2001) dos átomos dos fenômenos sensíveis ao corpo 2 O texto de Wark contém apenas numeração de parágrafos, e não de páginas. 4 biológico para os átomos em que são codificadas as informações nas mídias digitais para o seu eventual processamento3. Graças à telestesia e aos bancos de dados, o armamento é cada vez mais acionado e guiado à distância de seu alvo – que, por sua vez, passa para a condição de uma informação do ambiente físico-biológico captada e processada por máquinas, para se transformar em coordenadas, modelos de abstração do mundo ou representações gráficas e sonoras. As interfaces da guerra real e dos jogos eletrônicos de batalha se mesclam em uma lógica comum do exercício do cinismo da violência militar e policial, que ilude o público ao explorar uma virtualidade apartada de suas efetivas atualizações materiais expressas em ruínas e vítimas. Mesmo quando os afetados são vistos de perto pela telestesia, aparecem apenas como sofredores vicários que substituem as vítimas reais produzidas à distância, conforme o pensamento de Wark. Neste cenário, a resistência kínica dos hackers encontra modos insolentes de refazer a conexão entre o fluxo de dados e as afecções dos corpos -- entendidos de modo abrangente como pessoas, vida animal e vegetal, matéria sem vida, corpos abstraídos em ideia, conforme Deleuze. A revelação em 2010 do vídeo conhecido como Collateral Murder pela organização Wikileaks remonta esse circuito, ao demonstrar como jornalistas iraquianos foram assassinados em um ataque aéreo em Bagdá, por soldados instalados em um helicóptero das forças armadas dos Estado Unidos4. O escárnio reside no uso da própria telestesia do vídeo e de sua difusão pela internet como meio de denúncia de um fato desconhecido, numa tentativa de reaproximar o público da realidade de uma guerra conhecida, parcialmente, em sua manifestação na mídia. O kinismo hacker também zomba dos dispositivos bélicos ao desmascarar sua vinculação com a cultura cotidiana. É o que ocorre em Serious Games I–IV, obra produzida entre 2009 2010 pelo artista Harun Farocki, composta por quatro videoinstalações que situam os videogames no contexto militar do qual derivam. O trabalho justapõe exercícios reais de guerra com reencenações no ambiente virtual, para criticar os elos intrínsecos entre tecnologia, política e violência. Desse modo, podemos perceber um exemplo dos entraves para o difícil aprendizado pacifista, conforme alerta Sloterdijk, pois o reforço do aprendizado da violência se infiltra nas malhas da indústria cultural e dos hábitos de consumo e entretenimento5. Além de reconectar a virtualidade à materialidade e de demonstrar a presença disfarçada da violência na cultura, a ação de hackear os dispositivos bélicos em favor de 3Conforme Wark, “o armazenamento da informação pode ser tão valioso quanto a sua transmissão, e o arquivo é o vetor [o modo e meio de transmissão] através do tempo, assim como a telestesia é o vetor através do espaço” (parágrafo, 318). 4Disponível em http://www.collateralmurder.com/. 5Mais informações na página sobre exposição do artista no MoMA, realizada entre junho de 2011 e janeiro de 2012: http://www.moma.org/visit/calendar/exhibitions/1196. 5 poderes dissidentes e alternativos é outra tática de kinismo. Transborder Immigrant Tool é um aplicativo de celular desenvolvido em 2009 pelo coletivo Electronic Disturbance Theater – EDT para auxiliar o planejamento de rotas para a travessia de imigrantes entre México e Estados Unidos. O trabalho parodia as tecnologias de Global Positioning System (GPS) e de processamento de dados geoespaciais, que também podem servir à estratégias de repressão policial da imigração ilegal. Outro código que orienta o projeto é o algoritmo Virtual Hiker escrito para mapear trilhas para montanhistas, o que indica uma ligação entre uma atividade de lazer com a aventura de quem tenta a travessia para escapar de condições de vida precárias. A ironia se completa com o fato do aplicativo ser resultado do trabalho do laboratório de mídias b.a.n.g. Lab6, em que atuam artistas e pesquisadores da Universidade da Califórnia como o líder do coletivo EDT, Ricardo Dominguez. Supremacia das corporações As companhias transnacionais fazem da transcodificação e da telestesia suas armas de dominação, apontadas contra a realização de Estados efetivamente democráticos. Seu esforço é modelar a cultura segundo a lógica do cinismo dos livres fluxos globais. Ao contrário da liberdade, o que se verifica é a persistência das fronteiras. Informações e capitais transitam apenas conforme a conveniência, enquanto as rotas das multidões são severamente vigiadas. Para que os seus interesses sejam respeitados e até mesmo defendidos por quem está alheio aos seus dividendos, as corporações seguem a clássica estratégia de extensão territorial e temporal da influência dos poderosos, cujas origens Sloterdijk (2011) remonta aos césares do império romano (p. 295). Assim, pela telestesia fazem com que suas marcas alcancem os confins da Terra, seja pela presença física ou ciberespacial. Por sua vez, o gerenciamento da informação que lhe pertence ou diz respeito é direcionado para a sua sobrevivência temporal. Frente a este estágio de poder em que o governo do mundo é apropriado por uma governança corporativa cuja responsabilidade social e ambiental tende a estar cinicamente a serviço dos lucros, a dissidência hacker exerce seu kinismo pela revelação do caráter opressor desse poder e pela oposição insolente dos mais fracos ao gigantismo das empresas. Em uma linha encontramos a zombaria contra os ritmos acelerados da obsolescência programada da indústria tecnológica em trabalhos como Mobile Crash, videoinstalação interativa montada desde 2009 por Lucas Bambozzi, em que o público aciona com o movimento do corpo sequências de destruição de celulares antigos7. 6Endereço 7Mais na internet: http://bang.calit2.net/ informações em: http://www.lucasbambozzi.net/index.php/projetosprojects/mobile-crash/. 6 Na via das táticas de guerrilha contra os poderes das corporações, encontramos o projeto de uma cerveja em código aberto, com a versão modificável de sua receita impressa no rótulo das garrafas da Free Beer (2005), do coletivo Superflex. O grupo é responsável ainda por Guaraná Power (2003), refrigerante com identidade visual remixada a partir da marca Guaraná Antárctica, produzido em conjunto com uma cooperativa de guaranaicultores amazônicos. Os dois projetos são exemplos de como a insolência pode recuperar a produtividade sequestrada pelas indústrias de bens de consumo e retomá-la em um nível de artesania inclinado à horizontalidade do poder. Entre outros casos com táticas semelhantes8 não podemos deixar de mencionar o protesto em rede TOYWAR.com, articulado entre 1999 e 2000 pelo coletivo etoy para evitar a perda do direito de uso de seu nome e domínio de seu site, em virtude de uma ação judicial em que a loja on-line de brinquedos eToys Inc alegava o plágio de sua marca. Apontada ironicamente pelo grupo como “a performance mais cara da história da arte”, a mobilização correspondeu a uma redução de 4,5 bilhões de dólares no valor acionário da companhia, em virtude da ampla campanha de apoio público ao grupo de artistas e de uma sequência de ataques eletrônicos para derrubada do site da eToys. Em sentido oposto ao da corporização das vítimas na insolência dirigida à violência telestésica, a abordagem kínica pode ainda personificar e dar alguma materialidade às estruturas incógnitas do poder corporativo-estatal. No trabalho They Rule,9 de 2001, Josh On desenvolve uma interface na web para que o público possa pesquisar informações e montar mapas sobre as relações entre os ocupantes dos altos cargos de conselhos das mil empresas mais influentes e de alguns órgãos de governo dos Estados Unidos. Por meio do cruzamento de organogramas, o capitalismo transnacional torna-se incorporado na figura de seus líderes, que se mostram presentes em cinco a sete conselhos empresariais e burocráticos diferentes. Corpo de dados Quanto ao corpo, a digitalização aprofunda dois traços do cinismo indicados por Sloterdijk: a sua cisão esquizoide em relação ao espírito (mente ou alma) e o idealismo que deprecia o corpo, em favor da racionalidade. O processo de esquadrinhamento clínico e psicológico da vida humana chega ao ápice. O sujeito existe como “insuficiência abstrata”, consciente de sua própria lacuna e de sua abstração gerada pela imersão na telestesia, que 8Está disponível no site do grupo de pesquisa em arte, economia e sociedade Art&Flux, ligado à Universidade de Paris 1 – Pantheón-Sorbonne, uma compilação de projetos do gênero, categorizados como “empreendimentos críticos”: http://art-flux.univ-paris1.fr/spip.php?rubrique7. A expressão é adotada ainda como título de livro sobre o tema publicado em 2008. 9Trabalho disponível em: http://www.theyrule.net. 7 substitui “o objeto de desejo por sua imagem, uma imagem que pode ser anexada a qualquer objeto” (WARK, 2004, parágrafos 279 e 285). De fenômenos descritos por Sloterdijk (2011) como a reificação do corpo pelo voyeurismo e pornografia, a tentativa de domesticação da animalidade interior pela psicanálise e, sobretudo, a experimentação genética e protésica, militar-biológica e farmacológica, emerge o corpo virtual, definido pelo coletivo Critical Art Ensemble (1998, p. 144-146) como uma promessa utópica de recodificação rebelde. Com o corpo virtual, novas configurações e amostras de imortalidade independentes da realidade física e circunstância socioculturais são acessadas, na desencarnação da consciência por meio de avatares e simulações de ambientes, como nas salas de bate-papo on-line, serviços de cibersexo, videogames e sistemas do gênero Second Life. Essas tecnologias do corpo virtual, que podem ser usadas para apropriações de resistência como a organização política de redes emergentes conectadas pelo ciberespaço, geram, por outro lado, o gêmeo fascista do corpo de dados (data body). Segundo o coletivo Critical Art Ensemble, o corpo de dados consiste em um uma coleção de arquivos relacionados a uma subjetividade. Trata-se de uma evolução das formas antigas de registro de informações pelas autoridades, que se destaca pela enorme capacidade de armazenamento e processamento das mídias digitais. Dessa evolução derivam condições de sustentação de dispositivos repressores, amparados na vigilância pervasiva, e dispositivos de marketing, usados na padronização dos nichos de consumo que compõem a economia movida por desejos erguida sobre a economia baseada em necessidades. Pela insolência, o impulso kínico pode denunciar e desviar essas estratégias de controle e comércio cínico do corpo de dados, retomando a rebeldia do corpo virtual. Em 2011, adeptos do conceito anárquico da rede de ativistas Anonymous lançaram a chamada Operação Darknet com o objetivo de cessar as atividades de sites de pornografia infantil. O funcionamento de 40 sites de pedofilia foi interrompido. Um deles, denominado Lolita City, continha mais de 100 gigabytes de conteúdos. Mais de 1,5 mil usuários do site tiveram suas informações pessoais divulgadas pelo Anonymous, que segue seu ataque contra a exploração sexual de crianças via internet com a campanha #OpPedoChat10, aberta em julho de 2012. O controle e comércio cínico do corpo de dados é alvo da zombaria em dois projetos da dupla 0100101110101101.ORG, formada por Franco Birkut e Eva Mattes. Em Life Sharing11, realizado entre 2000 e 2003, os artistas liberam em seu site na internet o acesso a todos os dados pessoais armazenados em seus computadores (TRIBE; JANA, 2009). Por 10Notícia sobre as campanhas: http://www.pcmag.com/article2/0,2817,2406981,00.asp. Vídeo: http://youtu.be/B6If7vTIf1A. 11Hospedado em: http://0100101110101101.org/home/life_sharing/index.html. O título do projeto é um anagrama da expressão file sharing (compartilhamento de arquivos). 8 sua vez, em Vopos, de 2002, a dupla carrega transmissores de GPS para informar em tempo real a sua localização e disponibilizam ao público suas conversas por telefone celular12. Ambos os trabalhos lidam com questões de transparência, exibicionismo, voyeurismo e vulnerabilidade na comunicação telemática, indicando como a privacidade se reconfigura a partir do arranjo cibernético. O projeto Female Extension de Cornelia Sollfrank poderia, por sua vez, ser tomado como amostra de um kinismo hacker e feminista, herdeiro dos poderes da cortesã Phyllis sobre Aristóteles e de Xantipa, esposa insubmissa de Sócrates. No trabalho, Cornelia Sollfrank utiliza um software para gerar 200 trabalhos de net.art a partir de amostras e remixagem de elementos de sites existentes. As obras são, então, enviadas a um concurso de uma galeria alemã, com autoria identificada com pseudônimos femininos. A intervenção é realizada com o objetivo de protestar contra o machismo da tecnologia e da arte tecnológica. A reificação do corpo de dados é contestada ainda nos trabalhos que lidam com a intervenção no próprio organismo do artista. A trajetória de Stelarc 13 é marcada pelo questionamento das fronteiras entre o natural e o artificial, com a realização de performances baseadas em seu corpo, aparatos robóticos e um implante em seu braço de uma terceira orelha moldada em tecido cultivado em laboratório. Por sua vez, em Natural History of the Enigma, de 2009, Eduardo Kac14 insere um gene de seu próprio DNA em sementes da flor Petúnia. O resultado é um híbrido denominado Edunia, que expressa o código genético do artista em nervuras vermelhas sobre suas pétalas rosadas. Ao romper com as barreiras da biologia, Stelarc e Kac suscitam a polêmica e sugerem uma reflexão sobre o exercício histórico da capacidade humana suspender os condicionamentos naturais da vida. Conforme apontado por Sloterdijk (2011), enquanto o cinismo clínico procura tirar proveito desse poder ao dar atenção aos efeitos da doença e da dor, o kinismo procura se apropriar do saber do corpo e da morte para alertar contra a cegueira daqueles que se submetem ao controle totalitário sobre o somático. Stelarc e Kac conduzem-nos a um enfrentamento de questões que a bioengenharia tende a fazer cada vez mais evidentes: em que ponto começa e termina a vida? Até que limite a artificialidade da terapia e da prótese podem ser admitidas? Como a vida humana deve se relacionar com a alteridade da vida dos demais seres? 12 As conversas gravadas foram remixadas em uma composição da banda Negativland, conhecida por suas colagens de obras de músicos famosos que lhe converteram em réu de vários processos por infração de copyright. 13 Site do artista: http://stelarc.org/. 14 Site do artista: http://www.ekac.org/. 9 Indústria da revitalização e informacionalismo Ante a certeza do destino da morte, a nostalgia da alteridade de uma vida plena faz com que o humano medite em suas compensações. Sloterdijk (2011, p. 360-362) aponta o aproveitamento cínico dessa conjectura na conversão das religiões que, de caminhos para a liberdade, resistência e criatividade, se convertem em sistemas de legitimação paralógica e instrumental da opressão, povoados por ídolos, mitos e dogmas. Em paralelo a esta transformação, as revitalizações não-religiosas da secularização – “a arte, a ciência, o erotismo, as viagens, a consciência do corpo, a política e a psicoterapia” – são ideologizadas no consumismo, sexismo, desporto, turismo, culto da violência, cultura de massas e o comércio do sem sentido para satisfação do desejo de sentido. Por outro lado, uma visão utilitária do conhecimento acompanha o avanço desse cinismo religioso, que se ampara ou na sobrevalorização secular dos bens materiais ou nas estratégias de autoajuda e teologia da prosperidade. O saber é poder comentado por Sloterdijk é atualizado em formas de produção imaterial, em que a informação que importa é aquela a partir da qual é possível de gerar mais informação. Isto é o que se denomina como informacionalismo, forma específica de organização social que vem ocupar o lugar do industrialismo (CASTELLS, 1996). Geração, processamento e transmissão de informação tornam-se fontes da produtividade e do poder graças às circunstâncias tecnológicas contemporâneas. Assim, o cinismo do saber reforça o utilitarismo do modelo de revolução industrial e cultural permanente movido pela tecnociência, conforme Sloterdijk. Neste mundo em que o ímpeto de traição do progresso é disfarçado como tradição, o kinismo da arte hacker insiste em trazer para o campo tecnológico a heterogeneidade de uma Gaia Ciência 15, que zomba da seriedade das mercadorias dogmáticas da falsa revitalização religiosa e da ambição da produção informacional rendida ao capitalismo. Assim, o arbitrário, o caótico, o ridículo e o falho são empregados como elementos de uma poética de subversão, transformadora, mas sem planificação prévia cristalizada. A arte hacker apela então a uma “dimensão satírico-polêmica-estética” do saber (SLOTERDIJK, 2011, p. 369) para jogar com a lei e corporizar o vivo. No projeto Chanology, de 2008, ativistas ligados à temática Anonymous lançam uma campanha envolvendo vídeos e ataques virtuais contra a Igreja da Cientologia. A iniciativa nasce de uma reação às tentativas da instituição de censurar e remover da internet uma entrevista do 15 Nestes termos, poderíamos pensar ainda na cultura hacker como ciência nômade (DELEUZE; GUATTARI, 2007) que é constantemente inibida, proibida ou caracterizada como instância pré-, sub- ou para- científica, por conta das condições impostas pelo poder dominante e o primado regulador e constituído da ciência régia. Essa subestimação, no entanto, disfarça uma estratégia a ser combatida: a expropriação de componentes da ciência nômade que interessam ao poder dominante. 10 ator e cientologista Tom Cruise16. Outras práticas perniciosas da Cientologia envolveriam ainda torturas, abortos forçados, tráfico de pessoas, perseguições, difamação, extorsão, fraudes tributárias e métodos de infiltração em escolas por meio de organizações educacionais e de caridade de fachada17. No que diz respeito a uma abordagem sátira dos saberes canonizados, ecoa o ímpeto do faça-você-mesmo e da tecnofagia, em “operações de combinação entre a tradição e a inovação, arranjos inusitados entre saberes científicos e artesanais˜, práticas de ressignificação de signos “mediados por dispositivos tecnológicos e ações essencialmente micropolíticas de apropriação crítica das mídias e recursos técnicos” (BEIGUELMAN, 2010). São exemplos os aparatos que contrariam a obsolescência programada da indústria tecnológica. Em Milton Marques, dispositivos audiovisuais são construídos com peças de equipamentos eletromecânicos e eletrônicos descartados do uso. Com os coletivos Marginalia e Gambiologia18 encontramos engenhocas montadas com técnicas de circuit bending19. Com estas táticas subversão e zombaria, a arte hacker proporciona tanto a experiência de histórias alternativas da tecnologia, dissidentes de seus caminhos hegemônicos, quanto a exploração de histórias de tecnologias alternativas, desenvolvidas em uma instância em que o irracionalismo constrói operacionalidades desobedientes das certezas da tecnociência, da indústria e da produção informacionalista. Com base em Sloterdijk, poderíamos dizer que o saber não-vivível é oferecido na estética para que possa se tornar vivível. Neste sentido, verificamos como a arte hacker pode suscitar a reapropriação crítica da rítmica e a polêmica, consideradas por Sloterdijk como características próprias do iluminismo que foram, no entanto, expropriadas pelo cinismo senhorial. Essa consciência provincial, inclinada à sabedoria tradicional, questiona a aliança cega do pensamento com o complexo científico-técnico-industrial. A programação opressora que aliena e mediatiza a racionalidade se depara então com formas de autodesprogramação próximas das ideias anarquistas de Stirner debatidas por Sloterdijk. * Aluno do curso de doutorado em Arte pela Universidade de Brasília, na linha de pesquisa Arte e Tecnologia, sob orientação da Profa. Dra. Maria Beatriz de Medeiros. Atua como teórico e professor nas áreas de artes visuais, audiovisual e comunicação. Pesquisador selecionado pelo prêmio Rumos Itaú Cultural Arte Cibernética de 2009. 16Vídeos disponíveis no YouTube: http://www.youtube.com/user/Church0fScientology; publicadas em: https://whyweprotest.net/community/threads/read-this-first-scientologyactivism-general-information.67664/. 18 http://www.gambiologia.net 19 Recebe este nome a personalização e alteração criativa de circuitos de aparelhos eletrônicos como brinquedos e sintetizadores digitais para a geração de novos instrumentos sonoros e visuais. 17Informações 11 REFERÊNCIAS BEIGUELMAN, G. Tecnofagias emergentes na Artemídia.BR. Revista Marginalia+Lab, n. 1, 2010. Disponível em: <http://www.marginaliaproject.com/ lab/magazine/002/>. Acesso em: 24/6/2011. CASTELLS, M. Rise of the Network Society. 2nd edition. Malden, USA: WileyBlackwell, 2010. CHAOS COMPUTER CLUB. Hacker Ethics. Disponível em: <http://dasalte.ccc.de/ hackerethics?language=en>. Acesso em: 28 jun. 2012. CRITICAL ART ENSEMBLE. 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