Leia aqui - Contos de Terror
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Papêra Uirandê Especial # Outubro de 2015 9 Editado por Roberto de Sousa Causo Vagner Vargas Timothy Zahn George Roux Miguel Carqueija Marcello Simão Branco Luiz Bras Henrique Alvim Corrêa Cesar Silva Roberto de Sousa Causo Ahvid Engholm Edgar Indalécio Smaniotto Ilustração de Henrique Alvim Corrêa para A Guerra dos Mundos de H. G. Wells (1906) TUPINIPUNK NO SÉCULO XXI Editorial: pelo prazer de ser fanzine N a manhã de 12 de novembro de 2014, recebi um telefonema de Mário Sérgio Cruz, funcionário do jornalista político Bob Fernandes, o criador do Terra Magazine, uma espécie de revista eletrônica do Portal Terra, e onde eu mantinha o blog “Ficção Especulativa”. Cruz me informou que o Terra Magazine não existia mais – aparentemente cancelado enquanto eu postava o obituário do escritor de ficção científica André Carneiro (1922-2014), com 13 apreciações feitas por personalidades do mundo da FC brasileira que haviam convido com esse autor. A razão do encerramento do Terra Magazine ainda não ficou clara para mim, mas parece que se deveu a um afastamento dos objetivos do Portal Terra, que mantinha essa iniciativa de Bob Fernandes. O telefonema também visava me convidar para um novo projeto – semelhante, eu imagino, que Bob vai conduzir na Internet. A previsão para a coisa entrar online era fevereiro de 2015, diante disso me pareceu mais interessante – e até apropriado, considerando a ligação de André Carneiro com o Clube de Leitores de Ficção Científica – aceitar a sugestão de Eduardo Torres na Lista do CLFC e redirecionar o obituário e as apreciações escritas para o editor do Somnium, a publicação oficial do CLFC, que vai ter uma edição especial dedicada ao escritor. Como eu tinha muito material para o blog, decidi não esperar, e retirar meu fanzine crítico Papêra Uirandê Especial, da sua cova no proverbial “Cemitério do Dr. Ruby Felisbino Medeiros”, um importante fã, criador do fanzine Notícias... Do Fim do Nada, também ele já falecido, e que registrava no seu fanzine uma profusão de publicações brasileiras, de vida curta, dedicadas à ficção científica e fantasia. Assim, posso publicar o material inédito no blog e parte dos últimos textos que apareceram lá, agora que os links estão inativos. Eu reputo Papêra Uirandê (sem o Especial), na sua primeira encarnação em fins da década de 1980 (estreou em 1988), como tendo alguma importância na incerta história da FC brasileira, já que ele concentrou discussões sobre o Movimento Antropofágico da Ficção Científica Brasileira, lançado por Ivan Carlos Regina no fanzine Somnium também em 1988, e que, não me canso de lembrar, foi o primeiro movimento conceitual da história da FC do Brasil. Em sua segunda encarnação, já como Papêra Uirandê Especial, lançou logo no seu primeiro número (1996) o conceito do tupinipunk, forma tupiniquim de cyberpunk hoje discutida no ambiente acadêmico nacional e internacional (o tupinipunk não deixa, a propósito, de ter uma ligação com o teor do movimento lançado por Ivan Regina). Eu também devo dizer que estou curioso para saber que lugar tem um fanzine crítico no fandom atual, dominado por blogs, redes sociais e listas de discussão. E confesso que a idéia de ressuscitar esta minha criatura vem de algum tempo. Nada me dava mais prazer como fã de ficção científica, do que editar fanzines – apesar de tarefa inglória de pouca difusão e prestígio. Quando editava este e outros fanzines, eu me sentia mais conectado com as cabeças pensantes da FC brasileira do que hoje, na era da Internet... Talvez seja apenas como a minha cabeça foi formatada, lá nos longínquos anos 80 e sua onda de fanzines e intensa troca de snail mail... Para mim, de qualquer modo, o fanzine é um gesto de carinho e devoção a uma literatura, e a seus praticantes e amantes, maior do que qualquer outra forma, digital ou palpável. Em 25 de julho, num encontro fortuito durante o lançamento em São Paulo de Homem Não Entende Nada!, livro de Saulo Adami sobre a franquia Planeta dos Macacos, o fã e fanzineiro Renato Rosatti me lembrou da nova onda de fanzines impressos, me animando a retomar este aqui. Papêra Uirandê sempre foi de periodicidade irregular. O seu primeiro ciclo foi de sete edições, e o segundo, já como Papêra Uirandê Especial, de oito. Mantive a seqüência de numeração. Para os eventuais colaboradores (tão insanos quanto eu?), nesta primeira fase do retorno estou interessado em resenhas, ensaios e textos opinativos sobre o estado atual da FC no Brasil e no mundo. Os objetos da crítica podem ser literatura (preferencialmente), cinema, quadrinhos, jogos. Também gostaria muito de publicar ilustrações originais, ou recuperadas de livros antigos ou revistas de ficção científica brasileira. --Roberto de Sousa Causo Ensaio FICÇÃO CIENTÍFICA SEM CULPA Ramiro Giroldo “ GUILTY PLEASURE” (“PRAZER culposo” ou “prazer com culpa”) é uma expressão bastante disseminada da língua inglesa e remete a algo que simultâneamente provocaria o prazer e a culpa por senti-lo. A escapadela de expectativas dadas no âmbito da cultura (entendida aqui em seu sentido amplo, equivalente ao kultur freudiano) é o que pode provocar a sensação: comer um doce quando se está de dieta; masturbar-se sob preceitos religiosos rígidos; fofocar sobre a vida do vizinho; consumir a arte que não é encarada como tal. São, portanto, pecadilhos incapazes de desestabilizar a organização social, em muito diferentes, por exemplo, do roubo e do assassinato. Não se enquadram nas grandes privações que o homem se impõe para viver em sociedade. Tema de O MalEstar na Cultura (1930), de Sigmund Freud, tais privações provocam um recalque que, por sua vez, será responsável pelo constitutivo mal-estar que o homem sente quando imerso em um coletivo organizado. Porém, por trás da noção de guilty pleasure também habita um recalque. O mal-estar advindo das grandes privações que o homem impõe aos seus instintos é necessário, é constitutivo da kultur: sem ele a vida social não se manteria coesa e a barbárie imperaria em todas as esferas. O pequeno mal-estar que um guilty pleasure provoca, contudo, é necessário? É sequer justificável cognitivamente? Cumpre algum papel constitutivo na cultura? Como o assunto aqui é a ficção científica, cabe perguntar o que faz alguns leitores do gênero segurarem seus livros com apenas a contracapa à mostra, impossibilitando assim a leitura do título. Ou, pior, o que os faz esconderem o livro de FC sob um livro endossado pelo “bom gosto” (um Machado ou um Shakespeare, por exemplo)? A resposta não pode ser outra senão o status que cada obra ou autor culturalmente possui. O que faz determinado status ser atingido é fruto de diversos fatores que seria impossível abordar extensivamente neste texto. Um deles, contudo, nos interessa de pronto. É interessante observar que a produção literária continuamente tomada como inferior é a que lida de forma mais plana com as privações instintuais necessárias para a manutenção da vida social: a aventura, o terror, o erotismo, a FC de space opera. Ou seja, gêneros que abordam com imediatismo os prazeres sensuais e a violência ou a reação a ela – e experimentar o que tais textos oferecem, assim, não parece socialmente aceitável. Os gêneros elencados no parágrafo anterior não são intrinsecamente menos dignos de atenção ou menos passíveis de produzir grandes obras, talvez até pelo contrário: de certa forma, o visceral pode ser justamente aquilo que aparenta maior objetividade e crueza, aquilo que satisfaz o primário de forma mais plena. A atual crítica literária se debruça sobre o caráter branco, masculino e cristão do cânone literário, que se vê criticado e denunciado. Resta, porém, cuidar do caráter hipócrita e pedante do cânone. Hipócrita porque esconde toda uma produção que é lida (não raro pelos próprios críticos a condenála), que deixa suas marcas na tradição e que, portanto, atua sócio-culturalmente. Pedante porque nega espaço ao que não usa um verniz “sofisticado” ou “erudito” na abordagem das paixões humanas. O resultado é uma historiografia literária que não corresponde sequer à própria cultura que lhe dá origem. Uma historiografia que nasce da culpa, marcada por um tipo de guilty pleasure. Se não a culpa de consumir determinado tipo de literatura, ao menos a culpa e a vergonha de fazer parte de um momento histórico que produz a dita “paraliteratura” – e todos os momentos produziram. Tendo culpa, finge que o pecado não foi cometido. Contemporaneamente, há uma tentativa de corrigir o problema. A presença da ficção científica em estudos acadêmicos é inegavelmente superior hoje, e talvez o cânone que estamos a fundar venha a ser mais sincero. Colaboram nesse sentido a produção e a postura de autores como Umberto Eco, que é claramente um leitor sem culpa: “Eu poderia ler a Bíblia, Homero ou Dylan Dog por vários dias sem me sentir enfastiado”, já disse. Contudo, ainda é preciso atentar para uma revisão da historiografia literária brasileira que de fato se mostre livre da culpa. Embora os estudos sobre FC tenham aumentado expressivamente, a produção nacional ainda é pouco estudada. Não parece ser o interesse acrescentar algumas páginas no passado da nossa literatura para incluir, por exemplo, os autores da Geração GRD. A FC parece ser atraente enquanto estrangeira, e a novidade que é discutir o gênero no ambiente acadêmico acaba se equiparando à novidade de estudar o que é de fora. Não há combate; há adequação. Uma historiografia literária nacional despida de culpa, disposta a assumir adequadamente as facetas que se propõe a descrever, necessita que mesmo os estudos acerca da produção contemporânea se revistam de uma perspectiva histórica. O esforço de reavaliar autores de FC esquecidos não é anacrônico, mas assenta as bases para compreender o momento atual. Sem a culpa de ler o que lê, de escrever o que escreve e de ser o que é. O abandono do guilty pleasure é uma prerrogativa para a discussão da FC e para que a historiografia do gênero cimente suas bases. Essa discussão precisa ser plena, sem o resquício de culpa próprio da condenação da space opera por parte dos autores e críticos de FC “sé- rios”. Para que de fato leiamos sem culpa o que realmente queremos ler, e não o que é pretensamente correto ler. Ramiro Giroldo é Doutor em Literatura Brasileira pela USP, hoje pesquisador DCR UNDECT/Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, e autor de Ditadura do Prazer: Sobre Ficção Científica e Utopia (2013). Ensaio internacional Sobre Sam Moskowitz, Sam J. Lundwall e as Revistas de Ficção Científica Ahvid Engholm D epois da LonCon 3, em 2014, Andy Sawyer me enviou um pacote de Foundation, a revista acadêmica da Science Fiction Foundation, para substituir algumas edições que eu perdi, e ao folheá-las encontrei um artigo interessante na Foundation N.º 36 (verão, 1986), que eu gostaria de comentar. É um texto de Sam Moskowitz, “Setting the Record Straight: A Response to Lundwall’s‘Adventures in the Pulp Jungle’”.Esse Lundwall é Sam J. Lundwall, que escreveu o referido artigo na Foundation N.º 35. Moskowitz também comenta os livros anteriores de Lundwall, Science Fiction: What’s It All About (1971) e Science Fiction: An Illustrated History (1977). Capa de Hans Arnold O debate entre Moskowitz e é em grande parte a respeito de duas coisas: 1) o que é uma revista de FC e qual foi a mais antiga?; e 2) qual foi a natureza, a extensão e a importância da ficção científica antiga anglo-americana, em relação ao resto do mundo? (A isto eu somarei um par de coisas não relacionadas ao debate, do artigo de Moskowitz na Foundation que achei interessantes.) Em Science Fiction: What’s It All About Lundwall promove a Hugin (1916-1920) de Otto Witt como a primeira revista de FC. Em Science Fiction: An Illustrated History ele, ao invés, muda para uma publicação, suplemento de uma outra revista, chamada Stella, que diz ter sido publicada em quatro edições, de 1886 a 1888. Muitos que conheceram Moskowitz podem considerá-lo antiquado em suas visões acerca da literatura e um pouco árido (quando ele entra em detalhes, há um bocado de detalhes! – mas eu gostei do artigo dele, apesar). Ele sempre foi um pesquisador cuidado, porém. Quanto à Hugin, relata no seu artigo em Foundation, ele pegou uma edição que emprestou a Hans Stefan Santesson, que sabia sueco, e deixou-o relatar a respeito do comteúdo. E ele relatou de volta que ela tinha dois artigos sobre telescópios, dois sobre astronomia, um sobre máquinas de moto perpétuo, um sobre metalurgia, etc. “Não havia absolutamente nenhuma ficção”, Sam Moskowitz observa, por isso ela não podia ser uma revista de FC, conclui. Eu li um pouco mais da Hugin. Enquanto outras edições apresentariam ficção, Moskowitz está basicamente correto. Hugin foi uma revista de ciência popular para meninos. O conteúdo de ficção era às vezes muito estranho. Witt escreveu histórias nela para ensinar aos jovens ciência e tecnologia, onde ele, por exemplo, deixava elementos como o carbono e o hidrogênio aparecerem como personagens vivos falando um com o outro para revelar as suas propriedades químicas... Num sentido formal, é ficção, talvez até ficção científica, mas um tanto estranha, e o propósito era ensinar ciência. Outros textos eram FC mesmo, mas como eu me lembro, tal material era uma pequena minoria no conteúdo. (Muitos dos romances de Witt eram mesmo de FC, porém. Ele sem dúvida era interessado n esse tipo de literatura.) Quanto a Stella, Sam Moskowitz argumenta que o tipo de revista que é um suplemento irregular de outra revista (neste caso, Svenska FamiljJournalen Svea, “Jornal Sueco Svea da Família”) não pode ser considerado como uma revista ou revista de FC de fato. Mas o problema aqui é que, antes de tudo, essa Stella provavelmente nunca existiu! Desde que Sam J. Lundwall começou a escrever sobre Stella, fãs locais de FC a têm procurado extensivamente – sem encontrar nada. A Biblioteca Real, bibliotecas universitárias, catálogos de diferentes tipos, não se acha nada sobre Stella. Um Hans Persson (da Sociedade de FC Linköping) provavelmente fez a maior parte dessa busca extensa e ele apresentou a sua falta de resultados neste artigo de 2007 em http://vetsaga.se/?p=29. Infelizmente está em sueco, exceto pelas citações em inglês. Qualquer interessado pode tentar algum serviço de tradução baseado na rede. O título do texto é “Stella – sf-magasin eller bluff?” (“Stella – revista de FC ou um blefe?”), o que já diz tudo. Sam J. Lundwall mencionou Stella várias vezes, e também reproduziu capas (Jules Verne Magasinet N.ºs 487 e 489) em tamanho pequeno, o que poderia muito bem ter sido produzido por qualquer programa gráfico ou até com um processador de texto, já que não tinha ilustrações e apenas texto tipográfico. Já no final do seu artigo, Sam Moskowitz escreve: “Lundwall descreve o seu “relacionamento de amor e ódio’ com a ficção científica. Não sou psiquiatra, nem conheço o assunto bem o bastante para diagnosticar as raízes básicas das atitudes dele.” Isso nos leva ao segundo tópico principal do debate Sam Moskowitz/Sam Lundwall: a FC Anglo-Saxã vs. o Resto do Mundo. Essa não é uma questão de psiquiatria, mas de visão de mundo e de política. (Deixe-me primeiro mencionar apenas que Moskowitz, a respeito dos EUA/GB vs. os Outros, argumenta por exemplo, que Gernsback, que também falava francês e alemão, publicou um bocado de FC estrangeira em Amazing Stories e que ele também calculava que até a altura em que escreveu seu artigo em Foundation que mais de 450 romances de FC não escritos em inglês foram publicados nos Estados Unidos e GrãBretanha.) Eis a questão: Lundwall formou a sua visão de mundo na época da “revolta da juventude”, a geração 1968, Woodstock, protestos antiguerra e tudo aquilo; i.e., uma forte corrente de esquerda que envolvia a sociedade. Isso também significava ser contra a maior parte das coisas vindas dos Estados Unidos e tudo o mais que fosse “comercial”. Muito da ficção científica é e era vinda dos EUA, e por assim dizer, muito dela também é, claro, comercial. Sam J. Lundwall agora está aposentado e não tem mais nada a ver com o gênero. Mas se você por exemplo acompanhar a sua revista Jules Verne Magasinet, que foi encerrada há poucos anos, poderia ver como ele falava constantemente sobre como a FC Americana – a inglesa era tratada com mais misericórdia – não passava de lixo comercial, e que a FC do resto do mundo era muito melhor, subvalorizada demais e muito mais importante do que esse lixo vindo do outro lado do Atlântico Norte. Ele com freqüência apresentava material histórico do gênero proveniente do resto do mundo, para fortalecer a sua tese de que a FC americana nunca foi de importância no campo da FC e que muitos de nós foram fracos de cabeça, por termos acreditado que tinha. Estranhamente, a JulesVerne Magasinet também publicou um bocado de FC americana, bem mais do que a de qualquer outro país... E isso ano após ano, década após década. O pequeno boletim estencilado de FC que eu co-editei (VÄ, mais tarde Fanytt, agora transmutado como conta de notícias no Twitter, SFJournalen) conduziu uma longa entrevista com Lundwall em 1979, quando a visão de mundo dele já estava pesadamente estabelecida. Aprendemos, por exemplo, que a América era iletrada porque “havia apenas três livrarias em Nova York”, a maior revista de FC do mundo vinha da União Soviética (a verdade: a liga da juventude comunista uma vez fez uma edição especial sobre o futuro na sua revista regular), o fandom de FC era muito maior na Polônia do que na América, o Prêmio Hugo era uma piada porque havia uma conspiração secreta para leiloar o resultado pelo lance maior, etc., etc. Mas não há razão para se reclamar demais. As pessoas, é claro, têm o direito às suas próprias opiniões. Eu encontrei outras coisas de interesse no artigo de Moskowitz em Foundation. Ele mencionou que a revista The Overland Monthly em 1890 teve “uma edição inteira inspirada pelo romance de Edward Bellamy, Daqui a Cem Anos: Revendo o Futuro”. E: “Durante os anos vinte e começo dos trinta, revistas russas republicaram um número substancial de histórias das revistas de Gernsback” – o que foi uma novidade total para mim. Isso deve ter sido antes do stalinismo ter estrangulado definitivamente a sociedade russa, quando houve um período de mais liberdade artística. Alguém deveria pesquisar mais isso. Como as revistas de Gernsback chegaram na URSS? O próprio Hugo Gernsback tinha contatos com editores russos? Etc. E isto também foi novidade para mim: “[...] o editor da sueca Häpna parou no meu escritório um dia para negociar os direitos de reimpressão de Science-Fiction Plus [da qual Moskowitz era o managing editor] e quando sugeri a ele que já que ele estava pagando um bom preço justo, poderia escolher qualquer uma das quase trinta outras revistas existentes, ele afirmou com franqueza que queria a nossa porque nas nossas primeiras edições as histórias menos sofisticadas seriam mais facilmente compreendidas.” O editor em questão não seria nem KG nem Kurt Kindberg, e a coisa interessante é que isso foi antes de Häpna ter começado. Claramente, isso aconteceu enquanto Science-Fiction Plus existia, tendo ela durado só sete edições em 1953, e Häpna N.º 1 saiu em março de 1954. Eu não sabia que os irmãos Kindberg fizeram tais contatos antes de lançarem sua revista e que chegaram a visitar Moskowitz no seu escritório, embora deva ter sido em conexão com uma viagem de negócios visando suas outras atividades. Uma nota final sobre as primeiras revistas de FC: eu mesmo escrevi em Foundation (N.º 72, primavera de 1998) sobre o que eu chamaria de uma revista de “proto FC”, Relationes Curiosae – de 1682! Uma revista alemã de ciência popular, com muitas histórias sobre “coisas fantásticas” escritas num estilo ficcionalizado, que no mesmo ano foi traduzida para o sueco e publicada em uma edição sueca, de vida curta. Especulações sobre pessoas vivendo na Lua, dragões, gente verde surgindo dos subterrâneos, máquinas fantásticas, etc. E essa revista existe. Está preservada, a edição sueca pelo menos, num volume encadernado na Biblioteca Real em Estocolmo. Ahvid Engholm é um fã e fanzineiro sueco ativo desde 1976. Jornalista free-lancer, é contista e pesquisador da história da FC. Publicou a coletânea Mord på månen (“Assassinato na Lua”; Zen Zat, 2006). Teve como colega no fandom sueco o famoso romancista Stieg Larsson. Ensaio Dilemas Atuais da Ficção Científica Brasileira Roberto de Sousa Causo A RECENTE MORTE de André Carneiro (em 4 de novembro de 2014), aos 92 anos, me fez pensar na velha questão da persistência dos escritores brasileiros de ficção científica. Carneiro, que também foi poeta e fotógrafo, artista plástico e cineasta, tinha seis décadas de prática no campo da FC. Isso é muito incomum. Mesmo assim, ele produziu apenas seis livros: quatro coletâneas e dois romances curtos, tendo sido atrapalhado ao longo do percurso pela perseguição do regime militar, pelo glaucoma que o deixou com apenas 10% da visão, e pela dedicação às várias artes que praticou. Mas foi certamente mais atrapalhado pela falta de um mercado sólido para o gênero no Brasil. Os sucessos das séries Harry Potter e O Senhor dos Anéis mudaram o cenário da publicação de ficção especulativa no Brasil, enchendo as livrarias de volumes de fantasia, horror e ficção científica, a maioria dirigida ao leitor jovem, reorientando a política editorial de médias e grandes editoras – e fazendo surgir uma dúzia de pequenas editoras voltadas para esses gêneros. Mas dessa serra pelada de interesse pela fantasia e FC, as grandes e médias ficaram com os veios principais, geralmente compostos de sucessos vindos do exterior – e as pequenas ficaram com as igualmente minúsculas pepitas, reveladas pela enxurrada de autores brasileiros em busca de publicação e de público. Ao se olhar para o sucesso de vendas sem precedentes de nomes como André Vianco, Eduardo Spohr e Raphael Draccon, é impossível não deixar de enxergar um vigor que apenas debilmente alcança a ficção científica. Esse gênero está na lanterna das vendas e do interesse dos leitores, quando comparado com a fantasia e o horror. É vítima do duplo e arraigado preconceito de que ficção científica não vende, e de que brasileiro não sabe escrever FC – coisa de sociedades baseadas na inovação e na técnica. A caminho de se tornar uma grande editora voltada primariamente para a publicação de ficção científica, a Aleph, de São Paulo, ainda não investiu em autores locais. É um paradoxo que apenas a academia olha mais para a ficção científica, provavelmente refletindo um interesse internacional estabelecido lá fora há mais tempo – aqui também com uma revolução de anos recentes: uma “troca de guarda” na universidade brasileira abriu espaço para pesquisadores focados no gênero. Ainda assim, nunca se publicou tanta ficção científica brasileira. Mas enquanto Carneiro atravessou diversos períodos da evolução do gênero aqui – a Primeira Onda da Ficção Científica Brasileira (1957-1972), a Onda de Utopias e Distopias (1972-1982), a Segunda (1982-2015) e a Terceira Ondas (2004 ao presente) –, é difícil dizer o que será dos autores em atividade hoje. Eles estão em pequenas editoras que pouco conseguem promovê-los, ou na Internet, suposta panaceia para se contornar todos os intermediários: o editor, o distribuidor, o publicitário e o vendedor. O recente encerramento da Tarja Editorial (novembro de 2013), é revelador das dificuldades enfrentadas pelas pequenas editoras voltadas à FC brasileira. Não obstante, são as pequenas – Draco, Estronho, Giz, Gutenberg, Ornitorrinco – que se dedicam a atualizar a FC brasileira em relação aos últimos movimentos e tendências da FC anglo-americana: o New Weird, o steampunk, a ficção científica queer, e ainda o cyberpunk. Isso é algo que está além das grandes editoras, em geral voltadas só ao potencial de vendas; ou do jornalismo cultural, que coloca toda ficção de gênero no mesmo saco. Mas paradoxalmente, tal distribuição de esforços editoriais em tendências e o entusiasmo dos autores em persegui-las parece sintoma de certa falta de rumo da FC brasileira, fazendo-a parecer uma tropa estropiada arrastando-se atrás da vanguarda de uma legião estrangeira. O exemplo de André Carneiro também nos lembra da importância da reputação literária, que ele perseguiu a vida toda. Gênero marginal, parte a uma fringe publishing, a ficção científica no Brasil pouca recompensa oferece aos seus praticantes. Daí nomes promissores como Cristina Lasaitis te- Ilustração Arte em grafite de Vagner Vargas ilustrando o conto de Leonardo Nahoum, “Controlador”, publicado na revista Quark (MB Editora) de Marcelo Baldini, na edição N.º 10, de outubro de 2001. Esse foi o último número da revista criada por Baldini e editada por Aldo Novak. O conto de Nahoum foi mais tarde incluído na antologia Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica: Fronteiras (Devir, 2010). O ilustrador brasileiro de FC mais experiente em atividade, Vargas começou a trabalhar com ilustração em 1990, e com arte de ficção científica logo a seguir, pintando capas para Editora Aleph, de São Paulo. Já fez capas para as editoras Arte & Ciência, Devir e Estronho, entre outras, e ilustrou obras importantes da FC brasileira e internacional, como a Trilogia Padrões de Contato, de Jorge Luiz Calife, A Cidade e as Estrelas, de Arthur C. Clarke, e O Jogo do Exterminador e Orador dos Mortos, de Orson Scott Card. Em 2015, teve perfil publicado na revista francesa Galaxies N.º 34, que também trouxe uma de suas artes na capa. site: http://www.vagnervargas.com.br/ e-mail: [email protected] rem, aparentemente, se desanimado e abandonado a marcha. Pior, a Internet favorece mais a formação de consensos fabricados em torno de um ou outro nome ou tendência, dependendo do grupo, do que a formação de reputações sólida. E a crítica na era dos blogs pouco avançou, de modo que mesmo surgindo autores de qualidade e originalidade, talvez ninguém os perceba. Ainda assim, pode-se apostar em alguns nomes que têm estado na boca dos fãs ou dos observadores mais abalizados: Luiz Bras (pseudônimo de Nelson de Oliveira), Cirilo S. Lemos, Flávio Medeiros Jr., o internacional Jacques Barcia, Simone Saueressig, e o persistente Tibor Moricz. Dificilmente as grandes editoras irão pescar desse contexto autores de FC a promover, como costumam fazer com escritores mainstream, muitos surgidos de pequenas casas regionais. Mas mesmo restrito às pequenas, seria possível a cada autor explorar aquilo que realmente falta à ficção científica nacional: escrever a partir do seu tempo e lugar, olhando para o mundo a partir da experiência brasileira. Oferecendo, neste momento do “Brasil país emergente”, letra inicial dos BRICS e com maior papel econômico e político no mundo, algo também em termos da literatura da mudança e da especulação do futuro. --Roberto de Sousa Causo Miguel Carqueija Resenha Cinema Clássico Vinte Mil Léguas Submarinas (20.000 Leagues under the Sea). EUA, 1954. Direção de Richard Fleischer. Produção de Walt Disney. Roteiro de Earl Felton, com base no romance de Júlio Verne. Efeitos especiais de Elmo Williams. Com James Mason, Kirk Douglas, Peter Lorre, Paul Lukas. Em criança, com minha família, assisti pela primeira vez, no cinema, ao filme Vinte Mil Léguas Submarinas (20.000 Leagues under the Sea), de Walt Disney, produzido em 1954. Depois pude reassisti-lo diversas vezes e de diversas maneiras. Ele marcou a minha vida, despertou em mim o amor pela ficção científica e pela fantasia. Até hoje eu vejo esta extraordinária película como uma cabal demonstração do gênio de Walt Disney, talvez o maior cineasta de todos os tempos e aquele que realizou o maior número de filmes de arte, vale dizer, de obras-primas. Trata-se aqui da adaptação de um romance de outro gênio, Júlio Verne (Vingt mille lieus sons le mers, no original francês), lançado em 1870. Verne é considerado o pai da ficção científica, que ele “emendou” com o romance de aventuras e viagens. É bem verdade que, antes de Verne (1828-1905) já existia ficção cientifica – por exemplo, na obra de Edgar Allan Poe (1809-1849), mas não tão copiosa. O romance de Verne, volumoso e cansativo, porém notável, antecipa a invenção do submarino marítimo de longo alcance, pois há notícia de modelos toscos utilizados em rios, na Guerra de Secessão dos norte-americanos. Walt Disney produziu Vinte Mil Léguas Submarinas com grande requinte. O roteiro de Earl Felton enxugou o romance, propiciando um espetáculo grandioso e sublime, desde a parte técnica (fotografia, cenário, efeitos especiais) à parte moral, passando pela emocional (é eletrizante) e pelas interpretações exemplares do reduzido elenco. De fato, importantes na trama são quatro personagens: o Professor Aronnax, oceanógrafo (Paul Lukas), seu assistente Conseil (Peter Lorre), ambos franceses, o arpoador canadense Ned Land (Kirk Douglas) e finalmente o majestoso, sinistro e misterioso comandante do Nautilus, o Capitão Nemo (James Mason). Este foi, provavelmente, o maior papel da carreira de Mason, que está soberbo na interpretação do herói trágico e meio louco, de origem desconhecida – não revelada no filme e no livro, mas sabemos tratar-se de um hindu. Nemo é um grande cientista e navegador, com um trágico passado que o torna obcecado por vingança. Preso e torturado pelos colonizadores ingleses, recusou revelar os seus segredos: a energia atômica, que depois moveria o Nautilus. Ao fugir com um grupo de seguidores fiéis, Nemo deixou para trás a família morta (esposa e filho) e tratou de construir o submarino atômico, que usaria para atacar os navios britânicos de guerra ou transportadores de armas, tornando-se assim um terrível “anjo da vingança”. Sobre isso a película mostra uma cena antológica quando Nemo, com um olhar ensandecido, comanda a carga do Nautilus contra um navio, até a colisão. Aronnax, embora fascinado pelo imenso mundo submarino posto à disposição da sua curiosidade cientifica, não pode concordar com tais procedimentos, e fará o possível para convencer o capitão a disponibilizar os seus conhecimentos para a humanidade, e cessar a sua “jihad”. Outra cena antológica – dessas que a gente grava para o resto da vida – é a luta da tripulação do submarino com a lula gigante, o terror dos oceanos. Por ela se vê que na década de 1950 já havia boas trucagens no cinema. Aliás, Walt Disney e sua equipe sempre foram bons em trucagens. Ned Land (Kirk Douglas) faz o contraponto humorístico do austero e sombrio Capitão Nemo. Ned faz amizade com a foca de bordo e acidentalmente engole um peixinho em conserva. É também o rebelde da história, que não se conforma com o cativeiro e luta pela liberdade, bem mais que Aronnax e Conseil. Vinte Mil Léguas Submarinas é um épico grandioso que se sustenta na fatídica figura do Capitão Nemo. E em seu final trágico, quando Nemo agoniza ao ser mortalmente baleado, resta uma profecia de esperança: de que aqueles segredos cientí-ficos, que se perdem com Nemo, serão um dia descobertos pela humanidade, “quando a Deus aprouver”. --Miguel Carqueija POESIA: CAPITÃO NEMO Miguel Carqueija No tempo em que ele viveu foi o maior gênio do mundo, mas um dia se escondeu no seio do mar profundo. Perseguido e torturado, seu desígnio é extremo: e agora, transtornado, tornou-se o Capitão Nemo. Em seu Nautilus alcança todos os mares da Terra; ele é o Anjo da Vingança, guerreando a Inglaterra. Mas o ódio não constrói, tenebrece o coração: Nemo agora só destrói, é um herói ou é um vilão? Seu destino está marcado, até o trágico fim: com o Nautilus sepultado, tornou-se a lenda enfim. Oh Deus, recebe em teu seio quem tanto bem planejou, que a Ciência fosse o esteio do mundo que ele sonhou. Que o mar abastecesse a terra, que a paz fosse universal; mas pela paz fez a guerra, misturou o bem e o mal. Que Deus lhe dê o perdão e o repouso merecido; Nemo em nosso coração jamais será esquecido. NOTA: O Capitão Nemo é o herói fatídico do romance Vinte Mil Léguas Submarinas, de Júlio Verne, escrito na década de 1860. A imagem é do filme de Walt Disney (1954), com Nemo magistralmente interpretado por James Mason. O Capitão Nemo em ilustração de George Roux .. .. Seção Especial...... . ... .. . . . .. ... .... .. ... . .... .. ... .. .. .. ... ... . .. ..... . ..... ... ..... O Estado da Arte: Ficção Científica Tupinipunk . ...Roberto de Sousa Causo.... .. ..... .. .... . ..... .. .... . . ... ..... ... ..... . . ..... . ..... ..... I (cyberpunk tupiniquim) foi um fenômeno característico das décadas de 1980 e 90.1 Basta conferir a parte inicial do corpus existente: Silicone XXI (1985), romance de Alfredo Sirkis; contos de Braulio Tavares como “Stuntmind” e “Jogo Rápido” (1989); novelas como Santa Clara Poltergeist (1991), de Fausto Fawcett, e Piritas Siderais: Romance Cyberbarroco (1994), de Guilherme Kujawski; os contos e noveletas de Fawcett no seu segundo livro, Básico Instinto (1992); e os contos “Ananda, o Homem que Purpurava” e “O Caipira Caipora” (1993), de Ivan Carlos Regina – além do seu importante “Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira” (1988). E finalmente, “O Altar dos nossos Corações” (1993), excepcional noveleta de Ivanir Calado. É de causar certa surpresa, dado o relativo anonimato dessa forma literária descaradamente brasileira – que não é rótulo comercial e é rejeitada por vários setores do fandom –, passe por um ressurgimento neste começo de século XXI. Inspirada no Modernismo e no Tropicalismo, repleta de referências antropofágicas e de jocosidade e iconoclastia marcadamente brasileiras, tem apresentado histórias curtas que vem pipocando aqui e ali, como a elogiada noveleta “Questão de Sobrevivência” (2005), de Carlos Orsi, recentemente analisada pela brasilianista M. Elizabeth “Libby” Ginway (que muito tem feito para difundir o conceito),2 além de “Instinto Materno”, de Pedro Vieira – o único conto tupinipunk contrabandeado para dentro da pioneiríssima antologia Cyberpunk: Histórias de um Futuro Extraordinário (Tarja Editorial; 2010); e a notável noveleta “A Lua É uma Flor sem Pétalas” (2012), de Cirilo S. Lemos. Eu mesmo investi em histórias como “Vale-Tudo” (2010) e “Para Viver na Barriga do Monstro” (2012), que tentam seguir a trilha aberta por Sirkis, Braulio e Ivanir – com textos que, para além da linguagem “cubista” do nosso Modernismo e de um espírito NICIALMENTE O TUPINIPUNK O conceito foi lançado no meu artigo “Tupinipunk – Cyberpunk Brasileiro” no Papêra Uirandê Especial # 1: Tupinipunk, em 1996. 2 Veja o livro de Ginway, Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro (Devir; 2005). 1 satírico que marca o tupinipunk de Fawcett, Kujawski e Regina, tentam abordar questões sóciopolíticas e tecnológicas. O próprio Fausto Fawcett pelo jeito nunca abandonou o subgênero – como sugere o seu conto “Visita Veneno”, de 2005. Ele também publicou em 2012 um novo romance tupinipunk, Favelost (The Book), mencionado e resenhado na imprensa cultural. E Fawcett, o praticante de tupinipunk mais fiel ao subgênero, retorna em 2014 com novas edições de Santa Clara Poltergeist e Básico Instinto (com novas histórias), pela editora curitibana Encrenca – Literatura de Invenção, com ilustrações de Theo Szczepanski e projeto gráfico de Fred Marés Tizzot. Outra novidade foram obras fora da página literária, como o filme animado Uma História de Amor e Fúria (2013), dirigido por Luiz Bolognesi e ganhador de cinco prêmios internacionais em festivais de cinema; e o livro de quadrinhos do estilista Martielo Toledo, Sci-Fi Punk Projects (Devir; 2013). Sem falar do interesse pelo conceito despertado junto aos pesquisadores universitários: além de Ginway, Suzane Lima Costa, da Universidade da Bahia, trabalhou com o tupinipunk, assim como Ed King, de Cambridge, no livro Science Fiction and Digital Technologies in Argentine and Brazilian Cultures (Palgrave; 2013). Recentemen- te, os mestrandos Charles Dall’Agnol e Eduardo Cabeda o discutiram em evento da PUC do Rio Grande do Sul em 15 de agosto de 2014. E agora, além das novidades “recentes” (surgidas a partir de 2010), o importante pseudônimo/heteronômio de Nelson de Oliveira, “Luiz Bras”, apresentou em 2014 uma “guindada para o tupinipunk” com alguns dos minicontos de Pequena Coleção de Grandes Horrores (2013) e no romance rapsódico Distrito Federal (2014). Nesta seção especial, leia uma entrevista com Luiz Bras, dois de seus minicontos tupinipunks (do livro Pequena Coleção de Grandes Horrores. --Roberto de Sousa Causo ENTREVISTA COM LUIZ BRAS SOBRE SEUS TRABALHOS TUPINIPUNKS O que o levou a buscar uma exploração ficcional e visual do tupinipunk, com Distrito Federal? Foi o desejo de trazer pra minha literatura a demonologia brasuca: o curupira, o saci, o boitatá e outras criaturas fascinantes. Fazia tempo que eu queria escrever sobre os demônios de nossa cultura popular, mas num contexto urbano e adulto. Reunir folclore, mitologia indígena e africana, xamanismo e candomblé, realidade virtual e possessão demoníaca, biotecnologia e revolução pós-humana foi um desafio maravilhoso. Descobri novas possibilidades ficcionais e existenciais. Desconfio que a literatura sempre foi, pra mim, um exercício de autoconhecimento. Por isso meus livros são tão diferentes uns dos outros. Paraíso líquido e Máquina Macunaíma assemelham-se, mas são muito distintos de Sozinho no Deserto Extremo (2012) e Pequena Coleção de Grandes Horrores (2013). Mudam a forma e o gênero. Distrito Federal, por sua vez, apesar de ser uma ampliação da poética fragmentária e maldita da Pequena Coleção, concentrase em questões mais filosóficas. O humor e o nonsense ainda estão presentes, mas num grau mais moderado. Distrito Federal acompanha a convergência homem-máquina e a extinção da raça humana. A narrativa é e não é um romance, é e não é uma rapsódia. E as gravuras de Teo Adorno, cheias de seres estilizados e eviscerados, são uma espécie de pintura rupestre da era digital. Em alguns dos minicontos de Pequena Coleção de Grandes Horrores já se percebia essa inclinação. Os dois projetos foram desenvolvidos ao mesmo tempo? É verdade. Distrito Federal dialoga com uma parte dos minicontos da Pequena Coleção. Os dois projetos foram desenvolvidos ao mesmo tempo. A intertextualidade aproxima os dois livros. Há também o folclore tupiniquim e a antropofagia… Certas passagens da Pequena coleção ecoam no Distrito Federal. E a protagonista do conto Distrito Federal, incluído na Máquina Macunaíma, reaparece na rapsódia. Gosto dessa reverberação entre livros. Ela realça o parentesco latente. Por que a escolha do formato rapsódia, para Distrito Federal? A sugestão veio da releitura de Macunaíma, obra máxima de Mário de Andrade. Enquanto um romance pede uma estrutura rígida, coerente com o encadeamento dos fatos, a rapsódia é mais livre, permitindo a justaposição de capítulos soltos, de estilos diferentes. A prosa vira poema, que vira prosa; parágrafos viram versos, que voltam a ser parágrafos. O discurso indireto livre impera. O foco narrativo é mais ambíguo. Em Distrito federal há uma quantidade grande de personagens secundários: pessoas, deuses, demônios e máquinas. E essa avalanche de coadjuvantes quase chega a encobrir a jornada tortuosa dos poucos protagonistas. Quais são suas influências tupinipunks nesse livro? Senti algo de Ivan Carlos Regina na premissa... O célebre “Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira” teve uma participação importante, mais inconsciente do que consciente, na matriz ideológica de minha rapsódia. Mas creio que a maior influência foi a obra de Fausto Fawcett, ficcionista que admiro incondicionalmente. Apesar de pouco visível na superfície do texto, também vejo, nas profundezas, na liberdade narrativa, a presença forte do Mário de Andrade do Macunaíma. E do Oswald de Andrade do Manifesto antropófago, que por sua vez influenciou o Manifesto do Ivan. Mas posso estar enganado. O autor raramente é um leitor privilegiado do que escreve. É comum a autoilusão. Na história da literatura, foram poucas as vezes em que a intenção de um autor se realizou plenamente, sem desvios ou derrapadas, numa obra literária. Distrito Federal e alguns dos contos tupinipunks em Pequena Coleção de Grandes Horrores parecem sugerir que Luiz Bras está em uma fase “pósMensalão do PT” de grande desilusão e indignação com os rumos do país. Como o atual contexto brasileiro te motiva? Os principais casos recentes de corrupção na política brasileira são citados na rapsódia. Meu herói demoníaco é um serial killer que ataca apenas políticos e empresários corruptos, em Brasília. Pena que o livro já estava na gráfica quando veio à luz o escândalo da Petrobras. Meu curupira homicida teria adorado pôr as mãos em vários protagonistas desse caso tão abjeto, de proporções impensáveis. São monstruosas a ambição e a ganância dessa gente. O tupinipunk está no cerne de algumas disputas de política literária em setores do fandom. Você tem uma posição? Diferente de Oswald de Andrade, eu perco a piada − e a discussão − pra não perder o amigo. Minha natureza é avessa a disputas e polêmicas. Nunca fiz questão de impor minhas ideias, isso sempre fez de mim um alvo fácil para os militantes mais radicais. As teorias são interessantes, mas prefiro ler as obras, livre de qualquer influência classificadora. Prefiro não ser assimilado, escolho não pertencer inteiramente a qualquer grupo ou elite. Assim minhas opções de leitura não ficam restritas. Posso experimentar o cardápio inteiro. Fiquei emocionado, certa vez, ao encontrar uma referência ao Finnegans Wake num romance de Philip K. Dick, intitulado A Invasão Divina. Eu amo Finnegans Wake, que no Brasil virou Finnicius revém, nas mãos do tradutor Donaldo Schüler. E ao descobrir que Dick também amava, senti uma felicidade imensa. Mas também amo obras muito diferentes, romances de fantasia e ficção científica, que, por preconceito, sempre estiveram fora do horizonte de possibilidades da maioria dos cursos de Letras. Entre isso ou aquilo, prefiro ficar com isso e aquilo. Luiz Bras/Nelson de Oliveira tem contribuído substancialmente para o estreitamento das relações entre ficção científica e o mainstream literário brasileiro. Como você avalia tal atuação neste ponto? Os dois volumes da coletânea Hiperconexões: Realidade Expandida, de poemas sobre o pós-humano, surgiram exatamente pra isso: estreitar a FC e o mainstream, aproximar a FC da poesia. Mas Einstein estava certo: é mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito. Eu gostaria de ser mais otimista. Gostaria de enxergar um cenário mais equilibrado. Porém ainda vejo a ficção científica tupiniquim muito longe de vencer os dois desafios que o momento lhe impõe. Número um: conquistar a crítica especializada, de viés acadêmico. Número dois: conquistar mais leitores brasileiros. São poucos os cursos de Letras que respeitam e estudam a FC brasileira. São poucos os leitores brasileiros que apreciam e incentivam os autores brasileiros. Por enquanto. CABEÇAS TROCADAS NO FUNDO DO MATO-VIRGEM nasceu Macunaíma, herói de nossa gente — Era preto retinto e filho do medo da noite — Araras, papagaios e curicas fizeram algazarra — Viraram gente: cunhantãs — O recém-nascido chorou, expulsando do céu a lua, chamando o sol — As cunhantãs prepararam chicha — Macunaíma bebeu até cair bêbado — As cunhantãs também trouxeram milho torrado quentinho na cestinha de tucumã — Toda a maloca comemorou — Macunaíma, já crescido, agradeceu, irradiando pequenos arco-íris — Só o velho pajé não estava feliz — Ele era irmão dos tamanduás e tinha inveja de Macunaíma — No verão, toda a maloca entrava no mato, à noite, pra pegar saúva pra comer — Uma noite o pajé segurou Macunaíma e cortou seu braço esquerdo, saiu correndo com o braço do herói — Macunaíma riu e fez aparecer um braço novo, biônico, mais forte e mais rápido do que o braço original — As cunhantãs gostaram do novo braço, ficaram assanhadas, com vontade de brincar — Macunaíma brincou durante horas, em muitas redes — Outra noite o pajé roubou a perna esquerda do herói — Macunaíma riu e fez aparecer uma perna nova, biônica, mais forte e mais rápida do que a perna original — As cunhantãs gostaram da nova perna, ficaram assanhadas, com vontade de brincar — Macunaíma brincou durante horas, em muitas redes — O pajé conseguiu roubar quase todas as partes do herói, menos a cabeça — O pajé estava construindo um escravo com as partes de Macunaíma — Faltava só a cabeça — Então o pajé desmontou seu laptop e seu celular e construiu uma cabeça artificial — Macunaíma vinha distraído, mastigando uma folha de macaxeira, quando deu de cara com o escravo do pajé — Macunaíma era inteiro máquina com cabeça de gente, o escravo do pajé era inteiro gente com cabeça de máquina — Os dois trocaram as cabeças e tudo ficou bem — Toda a maloca comemorou — Menos o pajé, que ficou furioso com a troca — Uma noite o pajé segurou novamente Macunaíma e cortou mais uma vez seu braço esquerdo — A confusão se repetiu — O pajé cortava, Macunaíma ria e fazia aparecer, o pajé cortava, Macunaíma ria e fazia aparecer — Foram tantas idas e vindas que em pouco tempo não havia mais espaço — Milhares de escravos-máquinas habitavam a maloca THE WALKING DEAD VOCÊ PRECISARÁ DE MUITA coragem pra fazer o que pretende fazer, ela diz. Bebo uma superdose de uísque. Ela mordisca o lóbulo de minha orelha. Eu recebo o baseado de sua mão pequena e morena e dou uma boa tragada. Então toda a coragem de que precisarei me invade com os fios de fumaça. Ela começa a chorar, me abraça, pede que eu não cometa mais essa loucura. Eu choro com ela. Preciso ir, eu digo. Visto cuidadosamente o traje de metamaterial. Fico invisível e muito mais leve. (Tudo isso seria ridículo se fosse apenas literatura. Acreditem em mim, aconteceu de verdade.) Guiada apenas pelo instinto de sobrevivência, entro no plenário e identifico, entre os monstros da corrupção ativa e passiva, o homem de meus sonhos. O único deputado íntegro e honrado é também o sujeito mais solitário do edifício. O congresso nacional inteiro foi tomado pelos zumbis. Patas pegajosas e línguas fedorentas adulteram licitações, contaminam-se mutuamente. Os congressistas estão tão mortos que mal sabem que estão mortos. Sua saliva é vinagre, sua pele é mofo. A partir do distrito federal, a podridão já começa a corroer todo o reino de Pindorama. Seguro a mão do único deputado íntegro e honrado. Com paciência e devoção eu o conduzo pra longe do pandemônio. Uma tribo de tupinambás cercou o congresso nacional. Cantam alto. Batucam com vontade. Mas não tenho certeza se conseguirão abafar a ziquizira zumbi com seu ritual ancestral. O único deputado íntegro e honrado agora parece em transe. O batuque está afetando sua percepção de um jeito sombrio. Ele ainda não consegue me enxergar, mas suas mãos apalpam o vazio até encontrarem meus ombros. Ele diz, você precisa sair daqui. Eu respondo, não sem você. Ele aperta meus ossos, você precisa sair daqui AGORA. Sobre o distrito federal reúnem-se nuvens obstinadas e vingativas. Nuvens sólidas feito montanhas de ferro. Nuvens-orixás. Começa a avalanche de violência. Xangô e Oxum e Oxumarê e Oxóssi e os outros deslizam pra baixo e cobrem os zumbis de porrada. Mas eu sei que nem mesmo esses justiceiros conseguirão deter a necrose que já começa a escurecer todo o reino de Pindorama. O único deputado íntegro e honrado, ainda em transe, aperta meus ombros e grita, vai embora, some daqui, desaparece. (Acreditem em mim, aconteceu de verdade. JURO. Tudo isso seria MUITO ridículo se fosse apenas literatura.) Fazendo uso de suas habilidades de xamã, o único deputado íntegro e honrado abre um portal atrás de mim. Odeio essas trapaças improvisadas. Metade da esplanada dos ministérios afunda, em chamas. Eu sou sugada pelo portal, que me arremessa pra fora do jogo. Acordar em meu quarto de pensão, banhada em suor, é a pior coisa que podia me acontecer. Pior até do que a morte cerebral. Tento voltar ao jogo mas a conexão fraqueja e falha. Maldito deputado íntegro e honrado. Minha prótese neural queimou. Fui exilada definitivamente. Duas semanas depois a cidade continua quieta. O vento reúne e leva pra longe, em redemoinhos, a fedentina das casas e dos apartamentos. A popula- ção morreu jogando, combatendo os zumbis, só eu sobrevivi. Dois meses mais tarde o país continua em silêncio. Se ainda existe vida inteligente além de mim, ela está longe, muito longe, noutra realidade. Dois anos depois o mundo continua quieto. Tudo me assombra, vejo espíritos nas janelas, embaixo de viadutos. Apenas miragens. Ainda há energia elétrica, mas em poucos lugares. A comida industrializada sadia também está acabando. Em breve terei que cultivar uma horta, criar umas galinhas, uma vaca. Caminho pelas avenidas tomadas pelo mato. Alguém segue meus passos. Quem está aí? Apareça! É apenas a solidão e o eco criando novos mitos. Após a queda de um raio, numa esquina mal iluminada eu finalmente me encontro comigo mesma. Pareço mais velha, menos ingênua. Conversamos. As noites estão cada vez mais longas e frias, ela diz. De quem você sente mais saudade, eu pergunto. Essa palavra não faz sentido algum neste lugar, ela responde. Espero nunca precisar de um médico, eu comento. Se você ainda pensa no ciberespaço, em voltar pra lá, esqueça, não existe mais, ela me avisa. Os zumbis destruíram tudo, eu pergunto. Não há mais zumbis, não há mais orixás, não há mais nada, ela diz. Eu sei, eu já desconfiava, mas não destrua minha última esperança, por favor, eu preciso muito acreditar que um dia voltarei pra lá, eu explico. Estou procurando um bom maço de Gudang Garam, ela suspira. A melhor tabacaria da região fica a seis quadras, eu indico com o queixo. Você sabe que uma das duas, você ou eu, não existe realmente, não sabe, ela me avisa muito séria. Isso não tem importância neste lugar, tem, eu pergunto. Começa a garoar. Os ratos e os buracos na avenida estão cada vez maiores. De mãos dadas comigo mesma, eu caminho sozinha até a tabacaria. (Vinte anos mais tarde já não sei se tudo isso não foi apenas literatura. Já não tenho certeza se aconteceu de verdade.) Luiz Bras é autor de Paraíso Líquido (2010), e Sozinho no Deserto Extremo. Mais recentemente, publicou o satírico Citizen Who: Peripécias do Famigerado Escritor Que Não Tem Boas Ideias (2015). É o titular da coluna “Ruído Branco” no Rascunho: O Jornal de Literatura do Brasil. Vive em São Paulo. ROBERTO CAUSO RESENHA FICÇÃO CIENTÍFICA INTERNACIONAL Ancillary Justice, Ann Leckie. Nova York: Orbit, 1.ª edição, 2013, 410 páginas. Capa de John Harris. The Cage of Zeus (Zeusu no ori), Sayuri Ueda. San Francisco: Haikasoru, 2011 [2004], 284 páginas. Capa de Tatsuyuki Tanaka. Tradução de Takami Nieda. The Quantum Thief, Hannu Rajaniemi. Nova York: Tor Books, 1.ª edição, maio de 2012 [2010], 332 páginas. Capa de Kekai Kotami. The City & The City, China Miéville. Nova York: Del Rey, 2009, 304 páginas. A Cidade & a Cidade. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014, 292 páginas. Capa de Fábio Cobiaco. Tradução de Fábio Fernandes. Raymond Chandler, o criador do detetive Philip Marlowe, era um grande missivista. Seus biógrafos dizem que para compensar a relativa solidão em que Chandler e sua esposa Cissy viviam, na Califórnia. De qualquer modo, ele escreveu muitas cartas, que, ao lado de seus poucos ensaios e compiladas em diversos livros, formam uma rica e original reflexão literária, especialmente por ter sido desenvolvida a partir do ponto de vista de um convicto escritor de ficção popular. Em uma de suas cartas, ele escreveu a um amigo, informando que lia um romance de Graham Greene. “Tem tudo o que faz a literatura”, afirmou, “exceto verve, espírito, gusto, música e mágica...” O que é o mesmo que dizer que tinha tudo o que faz a literatura, exceto tudo o que faz a literatura... Chandler dava muito valor à vitalidade como qualidade literária: “Há uma certa qualidade indispensável à escrita, do meu ponto de vista, que eu chamo de mágica, mas que poderia ser chamada por outro nome. É um tipo de força vital. Por isso eu odeio a escrita estudada, o tipo de coisa que fica afastada para poder se admirar.” Mas quanto ao romance de Greene, Chandler ao terminá-lo escreveu: “O final do livro de Greene foi ótimo. Ele redime aquela carência que eu senti antes.” Algo semelhante pode ser dito de Ancillary Justice , o multipremiado romance de Ann Leckie, que embolsou o Prêmio Hugo – depois de ter recebido o Nebula, o Arthur C. Clarke Award, e o Prêmio da British Science Fiction Association, além do Locus de melhor romance de estréia. Uma das obras mais premiadas dos últimos anos, no mundo da ficção científica em língua inglesa, comparável apenas a The Windup Girl (2009), de Paolo Bacigalupi, e a Neuromancer (1984), de William Gibson – para citar só romances de estréia como o dela. E não obstante, para mim foi uma das leituras recentes mais difíceis de terminar. Não que o romance seja particularmente complexo na estrutura. Narrado em primeira pessoa por uma certa Breq, abre com a protagonista encontrando alguém caído na sarjeta de um planeta gelado, na fronteira do Império Radch. Breq reconhece na pessoa uma antiga companheira de armas, Seivarden, que prontamente recolhe, embora isso possa vir a atrapalhar sua missão. O segundo capítulo tem a seguinte sentença como início: “Dezenove anos, três meses e uma semana antes de encontrar Seivarden na neve, eu era um transporte de tropas orbitando o planeta Shis’urna.” Isso acontece porque no Império Radch a maior arma de conquista e controle são naves comandadas por inteligências artificiais que, por sua vez, comandam à distância extensões humanas. Breq é uma dessas extensões, ou “acessórios”, da nave Justice of Toren, que é uma das traduções de “ancillary”. Como as naves são chamadas de “justice” – “justiça” ou “juiz” em inglês –, já tem-se uma possível tradução do título: “Justiça Acessória”, que tem embutido um toque de ironia, e por isso funciona um pouco melhor para mim. Os tais acessórios das naves parecem ser “holográficos”, quer dizer, cada um deles se comporta como sendo efetivamente aquela inteligência artificial, e seus corpos são como zumbis de aluguel, gente capturada e induzida a esse serviço, com suas identidades apagadas. Até certo ponto, mas muito além disso, são como os escravos do Império Romano, a partir do qual Leckie admite ter modelado (algo feito de modo ainda mais explícito na série de space opera militar Tour of the Merrimack da autora R. M. Meluch) o seu Império Radch. O romance avança alternando o tempo presente nos capítulos ímpares, com a narrativa passada de Breq em Shis’urna, um planeta recém-ocupado, nos pares. O truque de ter uma protagonista-narraadora que é uma entidade múltipla presente em diversos lugares da superfície e na órbita é um recurso engenhoso de se readmitir um narrador onisciente, embora limitado, à narrativa contemporânea. Em Shis’urna, ela inadvertidamente toma contato com segredos envolvendo uma intriga enraízada no coração dirigente do império – composto, também ele de uma entidade múltipla. Essa descoberta sela o destino da nave, com Braq sendo a única sobrevivente, agora uma desgarrada disposta a tudo para realizar sua vingança. O outro aspecto muito elogiado desse romance é um truque que Leckie pode ter sacado do clássico de Ursula K. Le Guin, A Mão Esquerda da Escuridão (1969),3 ambientado em um planeta no 3 Disponível em edição recente pela Editora Aleph. qual os humanos locais são hermafroditas. Lá pelas tantas, no excerto de um relatório do Investigador Ong Tot Oppong, o livro de Le Guin filosofa sobre como chamar pessoas que possuem ambos os sexos: não dá para usar o pronome neutro do inglês, “it”, porque eles não são castrados. “São potenciais, ou integrais.” Ele opta portanto por usar o “ele”, “pelas mesmas razões que usamos o pronome masculino em referência a um deus transcendente: ele é menos definido, menos específico, do que o neutro ou o feminino. Mas o próprio uso do pronome em meus pensamentos me leva continuamente a esquecer que o karhider com quem estou não é um homem, mas um homemmulher.” Mais tarde, a também autora de FC Joan D. Vinge ironizou: “o ‘it ’ não serve para seres humanos... e nem, evidentemente, o ‘ela’.” Ann Leckie, porém, foi lá e fez um império galáctico usar pronomes femininos para todos os seus súditos. O recurso intriga num primeiro momento, mas o leitor (ou este leitor, ao menos) logo se habitua a suspender a definição fisionômica e sexual dos per-sonagens – embora nunca totalmente, pois alguns se impõem como um ou outro. Em entrevista, Leckie afirmou que o gênero sexual dos “personagens não importa”. Mas é justamente a falta de definição, a ausência de detalhes específicos, que torna esse romance tão insosso para mim. O gênero sexual é só um de muitos detalhes específicos ausentes. O planeta Shis’urna, por exemplo, é definido em termos de “juncos nos brejos” e “chá de gosto estranho”. Chandler novamente: “Para escrever sobre um lugar você tem que amá-lo ou odiá-lo ou fazer os dois alternando... Mas um senso de vacuidade e chatice – isso é fatal.” Não sabemos o sexo dos personagens, e também nada de sua fisionomia. E pouco ou nada sobre a tecnologia do seu futuro de milhares de anos adiante. O império é truculento, implacável, centralizado, mas igualmente sem textura. A aristocracia grudada nele parece mais baseada na posse da terra do que na de uma hipertecnologia. As religiões têm ídolos, mas seus princípios e práticas são vagos e descoloridos. Mas essa indefinição afeta os personagens mais do que outros aspectos da composição do romance – são pouco mais que diálogos pendurados no ar. Ou como Nina Allan escreveu em sua resenha do livro: “Não há personagens em Ancillary Justice, com isso eu quero dizer que os personagens embrionários, qualquer um dos quais poderia ter se provado interessante se a autora tivesse devotado atenção suficiente em dar-lhes vida própria, não têm vitalidade para além de seu propósito no enredo.” Mesmo a Tenente Awn (nomes neutros assim também não ajudam), que deveria ser o centro emocional do romance, já que é o seu abuso pela autoridade que motiva a rebeldia de Breq, vive o dilema moral de ser a executora de um massacre em Shis’urna, e sua personalidade claramente deixou forte marca em Breq. Não obstante, também ela não tem cor, nem viço nem mágica, como diria Chandler. Shis’urna é ocupado pelas legiões de Radch – assim como o Iraque foi ocupado pelos Esta- dos Unidos e sua “Coalizão dos Dispostos”, ou a Palestina é ocupada por Israel – e de maneira francamente tirânica. Mas mesmo aí Leckie não abandona o seu distanciamento emocional e intelectual, deixando de nos fornecer qualquer pista de qual metáfora ela poderia estar construindo. Desse modo, uma voz átona e uma composição estéril dominam o romance em vários níveis. As coisas só se animam um pouco, e os detalhes específicos passam a comparecer, quando as duas linhas temporais da narrativa se fundem e o leitor compreende quem é Braq e qual é sua missão e com quais motivações. Nesse ponto, a intriga palaciana e a ação dos personagens também se tornam mais vivazes e significativos – mas aí o leitor descobre que este é o primeiro livro de uma trilogia, com tudo terminando no gancho para a continuação. Receio que o denouement e o fecho não sejam o suficiente para tornar junto a mim Ancillary Justice o romance marcante de que todos falam e os prêmios corroboram. Não é a primeira vez, aliás, que nomes de peso me desapontam. Autores como Jay Lake e Kelly Link têm uma prosa tão sem relevo, que mal sustentam o meu olhar, e a do também premiado John Scalzi me parece esquálida apesar de todo o seu humor e espirituosidade. Isso não é monopólio da ficção científica e sua suposta superficialidade de ficção de gênero, eu já adianto: obras como A Summons to Menphis (1986), de Peter Taylor, um romance ganhador do Pulitzer de 1987, tem personagens complexos mas é um perfeito soporífero, enquanto o celebrado Dois Irmãos (2000), de Milton Hatoum, padece de um narrador que é quase um eunuco emocional. É claro que toda unanimidade é burra, mas não obstante o crítico que se sente isolado em sua opinião apela para outros que também foram desapontados pela mesma obra. Nina Allan é essa outra crítica que não entendeu bem o fuzuê, mas a conclusão da sua resenha é impertinente – Ancillary Justice não desaponta por ser, no fim das contas, segundo ela, uma space opera convencional e simplória, mas justamente por ter negado as lições de intensidade e vivacidade narrativas que a ficção de gênero construiu desde a sua fase pulp. Algo que se pode dizer do romance da japonesa Sayuri Ueda, The Cage of Zeus (Zeusu no ori), é que ele não tem os mesmos pruridos do livro de Ann Leckie. Ueda mergulha na questão das diferenças sexuais, e seu romance é mais vívido e pleno de detalhes específicos, embora mais superficial na forma e dependente demais de diálogos expositivos. A história abre com um oficial antiterrorista baseado em Marte, Shirosaki, sendo transferido para uma estação espacial na órbita de Júpiter. Suspeitase que um grupo conservador chamado Vessel of Life (“receptáculo da vida”) planeja fazer um ataque lá. O seu alvo é um distrito especial dentro da estação Jupiter-I onde vivem os “rounds”, seres humanos engendrados geneticamente para possuírem os dois sexos ao mesmo tempo. No caminho, Shirosaki recebe ordens para exterminar qualquer terrorista que consiga pôr as mãos – sem prisioneiros. Aos meus ouvidos ingênuos, soa como uma ordem extrema, e ordens extremas exigem preparações extermas. Mas ao chegar a Jupiter-I, com semanas à sua disposição, Shirosaki não investiga os recursos e deficiências do lugar, nem conduz entrevistas para sentir as vulnerabilidades psicológicas ou emocionais do pessoal, ou se entre eles há infiltrados da Vessel of Life – nem negocia acordos de assistência com estações orbitais vizinhas. Ele apenas senta lá e espera a merda bater no ventilador – o que é exatamente a sensação que o leitor tem do que vai acontecer –, enquanto se mete em intermináveis conversas sobre os rounds com a médica/médico Tei (uma round) e a administradora Kline, e mede a constante tensão entre o chefe de segurança que encontra no lugar, o estereotipado machão Harding. Aqui também pode-se enxergar a sombra de Ursula K. Le Guin e o seu A Mão Esquerda da Escuridão: os hermafroditas do seu planeta Gethen teriam sido um antigo experimento científico clandestino. The Cage of Zeus nos dá a oportunidade de investigar o que um experimento como aquele desejaria alcançar. Neste caso, criar um ser humano mais equilibrado – daí “round”, “redondo” – para enfrentar o desafio da exploração interestelar. Há, porém, um propósito sociológico subjacente e implícito: “Resolver as questões surgidas das diferenças de gênero sexual. Nossa sociedade não conseguiu superar a discriminação de gênero só com nossas leis e éticas.” Daí o projeto de dispensar “os problemas que podem ser resolvidos pela reinvenção do corpo. Uma sociedade onde somos iguais, onde apenas diferenças individuais existem.” (Pág. 59) Existe aí também aquilo que chamo de “fetiche da evolução”, tão típico da ficção científica américana – fetiche porque a evolução é um processo lentíssimo de adaptação a dinâmicas específicas do meio ambiente e de outras espécies. Não há por que acreditar, por exemplo, que a emulação da “lei da selva” em ambientes corporativos, culturais, científicos ou políticos de algum modo promoveria a evolução ou a melhoria da espécie humana, ou honraria a “Lei Natural”. Ou como a personagem Kline afirma (citando algum discurso trans-humanista?): “A humanidade tem de mudar – não, a humanidade deve buscar ativamente a mudança, di- zem eles. Pela questão da diversidade sexual, chegaram à conclusão de que o corpo humano deve e deveria ser reinventado.” (57) Nisso, o livro de Ueda expressa a transição, considerada por muitos como própria do pós-modernismo, do desejo utópico depositado nos grande sistemas econômicos e sociais, para o campo das identidades. Como o leitor já antecipa, a ameaça já está instalada em Jupiter-I, na figura da terrorista de carreira Karina Majella, que, incógnita no lugar, envenena os rounds com um composto desconhecido. Para obter informações que salvem suas vida, ela é torturada por Harding – mas não antes dela mesma abusar sexualmente de um round, embora não tivesse interesse na questão desses humanos engendrados – chantageada pela Vessel of Life, está agindo para proteger os organismos dos mares de Europa, a lua de Júpiter, de uma contaminação fatal. Este leitor sentiu que Ueda forçou a mão (se perdoam o trocadilho, já que o estupro foi cometido com a mão) na questão sexual como um todo. Para o romance funcionar plenamente, é preciso crer, por exemplo, que os rounds exercem uma atração irresistível junto aos tipos machões, como Harding, ou “masculinizados”, como a mortal Karina (assim como muitos militantes gays afirmam que a homofobia de alguns não passa de rejeição da própria homossexualidade?). Quando Ueda parece tentar relativizar um pouco o papel dos rounds – com o personagem secundário Barry Wolfren, o outro terrorista infiltrado – ela parece mesmo aí embutir uma condenação, talvez de fundo biológico, do masculino: Wolfren é um round que deseja ter uma identidade apenas masculina, mas não pode deixar a estação, voltando-se contra os companheiros. Mesmo na adoção dos “pronomes de Spivak” pela tradução americana para indicar a ambiguidade dos rounds, pode haver um toque de “chauvinismo trans”, se dá para chamar assim: nesse emprego, usa-se “em” para a terceira pessoa do singular, em vez de he ou she. Mas no inglês isso soa exatamente como a contração de them (eles), embutindo aí uma sugestão de superioridade de um ser que seria mais do que um. Mas o romance funciona bastante bem como thriller, especialmente depois que Karina escapa dos seus torturadores e tenta fugir da Jupiter-I, deixando um rastro de mortos e feridos. Essa personagem acaba emergindo como a mais trágica e complexa do romance, até por levantar questões que fogem do assunto dominante, a sexualidade. Não sei se é isso o que Ueda pretendia, mas ao meu ver, essa caracterização da “vilã” tem o efeito de minar o momento final do romance, com os ineptos Shirosaki e Harding flutuando sozinhos no espaço. A editora Haikasoru tem prestado um grande serviço ao traduzir obras importantes da ficção científica japonesa para o inglês, franqueando boa parte da FC japonesa em literatura para o público leitor ocidental. Apesar da autora soar muitas vezes como uma estudante de pós-graduação exagerando no jargão teórico para agradar à sua orientadora ou orientador, The Cage of Zeus está entre elas e merece ser lida, até por nos fazer refletir sobre o seu polêmico assunto – um dos papéis centrais da ficção científica, a propósito. O finlandês Hannu Rajaniemi (hoje radicado na Escócia) causou certo alvoroço ao publicar em inglês este romance de estréia, The Quantum Thief, o primeiro de uma trilogia. Assim como o clássico Estrelas meu Destino (Stars my Destination;1956), de Alfred Bester, é um uma space opera circunscrita ao Sistema Solar. E assim como Fearsum Endjinn (1994), de Ian Banks, descreve uma sociedade num futuro distante, posterior ao colapso da civilização humana, e no qual grande parte da existência das pessoas é virtual – sob forma de identidades “subidas” em sistemas computacionais, truque que já é um staple da ficção científica póscyberpunk – e das empresas de alta-tecnologia – embora o matemático inglês Roger Penrose declare que isso é matematicamente impossível.4 Com doutorado em física da teoria das cordas, o que Rajaniemi faz é atualizar esse tipo de recurso com todo um jargão quântico e com um tipo de espírito brincalhão que é ao mesmo tempo pós-moderno e pós-cyberpunk: Bruce Sterling deve ter sido o primeiro a brincar com a aura revolucionária da Europa circa Revolução Francesa – no seu inventivo Schismatrix (1985), que, por sua vez, deve ter inspirado Singularity Sky, do escocês Charles Stross, um dos mentores de Rajaniemi na Escócia. Primeiro publicado na Inglaterra em 2010 e depois nos EUA, The Quantum Thief abre com Jean le Flambeur, o protagonista e ocasional narrador (o livro alterna primeira e terceira pessoas) sendo resgatado de uma prisão virtual de segurança máxima por uma garota durona e sem senso de humor chamada Mieli, a serviço de revolucionários estabelecidos na nossa “nuvem de Oort”, região do Sistema Solar composta de planetas-anões e corpos cometários, e, no romance, colonizada por finlandeses. O objetivo de Mieli é obrigá-lo a roubar algo de importância para a sua mentora, tratada como uma deusa. Isso acontece porque le Flambeur tem fama de ser o melhor do ramo. Os dois partem na nave/inteligência artificial Perhonen com destino a Marte, onde terão como principal antagonista o jovem detetive amador Isidore Beautrelet, contratado pela aristocracia local par antecipar as ações de le Flambeur. É no cenário marciano que as coisas se desenrolam, numa sociedade de cores aristocráticas, apesar de toda a hipertecnologia. O enredo do romance é tão complicado e a prosa tão carregada de informação, que muitos críticos no exterior recomendaram que o leitor não tentasse entender tudo o que se passa, concentrando-se na fruição do estilo pós-cyberpunk de Rajaniemi. Basta dizer que muitos dos antagonistas e auxiliares que le Flambeur encontra pelo caminho, são identidades digitais dele mesmo, em uma complicada trama política. Recentemente, o multipremiado editor e crítico Gardner Dozois disse sobre Rajaniemi, comparando-o a Sterling: Com justiça se poderia dizer que Rajaniemi seria um cyberpunk de segunda geração, tipo de Bruce Sterling 2.0, com uma taxa de bits ainda mais rápida, maior densidade de informação e mais do que o próprio Sterling uma vez se referiu como sendo “chutes nos zóios” [...] mas o grosso das [suas] melhores histórias são acelerados textos pós-cyberpunk hardcore, ambientado em futuros pós-humanos tão diferentes do hoje que alguns leitores podem ter problemas para descobrirem o que diabos está acontecendo.5 Sendo que a segunda parte da afirmativa soa quase anti-Sterling, pois esse é um autor que cultiva um forte pendor futurista e que, mesmo quando ele aborda o futuro distante e transformações radicais no ser humano, como em Schismatrix, ancora suas especulações e voos de fantasia na história, na cultura e na ciência & tecnologia de uma maneira mais consistente do que Rajaniemi, que parece mais ancorado em literatura e folclore (boa parte dele, finlandês). Daí, inclusive, soar mais pós-moderno. Outro índice da diferença dos dois escritores – e do quanto Rajaniemi abraçou o espírito brincalhão pós-modernista –, está na atribuição do advento do seu mundo futuro de existência digital a partir de um hipertrofiado RPG de Internet. The Quantum Thief , é seguido de The Fractal Prince e The Causal Angel. Gardner Dozois. “Short Fiction: Gardner Dozois”. Locus— The Magazine of the Science Fiction & Fantasy Field Vol. 74, N.º 6, edição 653 (junho de 2015), p. 56. 5 4 En Shadows of the Mind: A Search for the Missing Science of Consciousness (Oxford; 1994). O inglês China Miéville é o mais premiado escritor de ficção científica e fantasia em atividade. Famoso pelo romance Perdido Street Station (2000), Miéville se tornou o principal nome da corrente New Weird da FC e fantasia. No Brasil, chegou em 2010 com a publicação do seu livro de estréia, o romance de horror Rei Rato (King Rat; 1998), pela pequena editora paulistana Tarja Editoral (que já não existe mais). Em fins de 2014, Miéville retornou ao Brasil com muito mais pompa e circunstância, com A Cidade & a Cidade, este pela Boitempo Editorial, livro que chamou muito a atenção da imprensa mainstream. O romance parte da noção de que duas cidades de culturas e regimes políticos diferentes, Besźel e Ul Qoma, habitam o mesmo espaço, sem que suas populações se toquem. Premissas semelhantes já foram vistas na ficção científica e fantasia, mais notadamente na trilogia Dayworld (1985-1990), de Philip José Farmer, em que um mundo superpovoado confere a um sétimo da população um dia por semana, enquanto os outros seis sétimos ficam em animação suspensa, e assim alternadamente. O protagonista, que vive ilegalmente mais de um dia na semana, é espião a serviço de um grupo anti-governo. O clima de paranóia talvez inerente a esse tipo de premissa é uma das realizações centrais de A Cidade & a Cidade. Adequadamente, essa atmosfera está aplicada a uma trama de ficção de crime: Mahalia Geary, jovem estudante americana de pósgraduação em arqueologia é encontrada morta em Besźel, e as investigações do protagonista do romance, o Inspetor Tyador Borlú, apontam para uma violação da ordem existente entre as duas cidades, naquilo que é chamado de “breach” – a passagem não autorizada de uma cidade para outra, ou até mesmo a percepção de ocorrências e eventos da outra cidade. Outra sacada genial é essa sugestão de que a alteridade invasora não está lá – o que por si só representa uma crítica ao modo como o mundo moderno se comporta em relação a grupos, classes sociais ou opções de vida consideradas indesejáveis. Os habitantes de Besźel e Ul Qoma são meio que treinados desde cedo a controlarem sua cognição de modo a tornar invisível o entrecruzar eventual entre as duas cidades. Quando alguém distraído é surpreendido por alguma ocorrência, é de bom-tom seguir como se ela não tivesse acontecido. As violações são punidas por uma todo-poderosa polícia secreta, temida pelos dois lados e que aparentemente surge do nada e dispensa justiça de imediato. Habilmente, Miéville não perde tempo descrevendo nem esmiuçando os mecanismos para essa estranha cognição seletiva, nem como opera a polícia anti-breach. Basta que experimentemos essas coisas pelas reações de Borlú e outros personagens. As complicações do romance envolvem Borlú sendo enviado para Ul Qoma, onde ele se liga à equipe do detetive Qussim Dhatt, investigando e enfrentando um grupo de nacionalistas ou unionistas radicais (estes, um grupo que propõe a união das duas cidades, uma fantasma da outra). As investigações apontam para um sítio arqueológico e uma teoria apócrifa de que haveria uma terceira cidade, esta sim efetiva em sua invisibilidade, tratada por “Orsiny” – o que lembra as histórias do livro de Ursula K. Le Guin, Orsinian Tales (1976), ambientadas em um país imaginário situado na Europa Central ou do Leste, assim como as cidadessiamesas de Miéville. Entre as muitas lendas em torno de Orsiny ou do lugar primordial de onde teriam surgido as duas – ou três – cidades, há a de que existiriam objetos capazes de manipular poderosas energias – algo que chama a atenção de industriais e financistas estrangeiros. Infelizmente, a complexa sugestão de camadas de paranoia, conspirações e enigmas, assim como a rica e noturna caracterização das duas cidades, não têm paralelo na caracterização dos personagens nem na riqueza do enredo. Borlú, mesmo que disposto a enfrentar os poderes em jogo para chegar ao fim do mistério, é um herói tedioso e limitado, assim como o mais bonachão e violento Dhatt. Há um problema quase tão grave quanto, mas relacionado ao estilo. Numa nota à edição brasileira, o tradutor Fábio Fernandes explica a intenção de Miéville de escrever propositalmente num inglês ruim, caracterizando personagens que teriam pouca familiaridade com essa língua. Eu sou muito a favor desse tipo de recurso, especialmente se ele expressa a variedade sociolinguística e cultural que compõe una realidade que vai além do falar – ou escrever – corretamente. Isso, porém, impõe, na escala em que Miéville emprega o recurso, uma prosa titubeante que, por reflexo ou não, é enfatizada por diálogos gagejantes e excesso de reticências. Franz Kafka é uma influência clara entre os autores da New Weird, com sua propensão à deformidade corporal e ao clima de paranoia, daí não se estranhar que nos agradecimentos Miéville registre o seu débito ao autor tcheco, também imensamente influente na ficção pós-modernista brasileira dos últimos 35 anos. Eu certamente não vou disputar a evidente marca kafkiana no livro. Outros nomes mencionados nos agradecimentos são os do escritor e pintor simbolista austríaco Alfred Kubin (talvez com Die andere Seite, de 1909, ambientado em um país imaginário ) e do escritor e arquiteto judeu polonês Bruno Schultz (que fornece a epígrafe do romance de Miéville), além da historiadora e romancista galesa Jan Morris (provavelmente com o romance Last Letters from Hav, de 1985, também sobre um país imaginário). As coisas se complicam quando ele incluiu o americano Raymond Chandler na lista. Conhecido por colocar a vivacidade da prosa e a imprevisibilidade do enredo à frente de tudo o mais, Chandler certamente teria problemas com a prosa e o enredo de Miéville. É a imprudência de se pronunciar a genealogia literária de uma obra, antes mesmo de ela começar: os críticos vão logo comparar e apontar as deficiências e limitações, em relação a essa paternidade. No meu caso, fica apenas a impressão de que um discípulo hábil de Chandler como Martin Cruz Smith, autor de excelente qualidade e que já se meteu na Europa do Leste com a série de romances do Inspetor Arkady Renko, teria nos dado uma inesquecível obra-prima, a partir da premissa de Miéville, com mais proximidade emocional e maior agudeza de espírito. (O próprio Chandler, que uma vez ambicionou escrever fantasia, também teria feito um ótimo trabalho, eu imagino.) A ficção de crime é um gênero rico e de sólida tradição, não dá para apenas pegá-lo da prateleira e tentar encaixá-lo numa proposição kafkiana e surreal como A Cidade & a Cidade, sem uma intimidade maior com ele. Aqui, além da ausência do frescor e da ironia, não temos um herói contra o qual se chocam as sujas ondas da hipocrisia social e da dependência política ou econômica. O final previsível, tanto para a fonte maior das tramoias, quanto para o destino pessoal de Borlú, também não ajuda e mal escapam de serem staples muito repetidos desde a década de 1980 – da vilania das grandes corporações e a incapacidade do indivíduo de fazer frente ao sistema. E o que fazer de Besźel e Ul Qoma como metáfora? Muito se disse na imprensa brasileira sobre o socialismo praticante de Miéville, já evocando a divisão de Berlim em Oriental e Ocidental, durante a guerra fria. Mas não seria meio que restringir o socialismo do autor a um saudosismo de um tempo em que as linhas ideológicas eram mais claras? A interpretação de uma cognição treinada pelo sistema para tornar invisíveis e indizíveis as estruturas subjacentes à vida humana nos grandes centros, me parece mais atual e válida. --Roberto de Sousa Causo MERCADO EDITORIAL BRASILEIRO: O QUE VEM POR AÍ Fonte: Locus–The Magazine of the Science Fiction and Fantasy Field, edições de novembro de 2014 e abril, junho e agosto de 2015. *A Bertrand, do Rio de Janeiro, adquiriu os direitos de The Bone Labirynth, de James Rollins. *A Vergara & Ribs adquiriu os direitos de The Fever Code, de James Dashner. *A Editora Aleph, de São Paulo, adquiriu os direitos de Cat’s Cadre, The Sirens of Titan e de Galapagos, todos de Kurt Vonnegut. *A Intrínseca adquiriu os direitos de The Water Knife, de Paolo Bacigalupi. *A Marsupial adquiriu os direitos de In Real Life, de Cory Doctorow – autor antes publicado na Galera Record. *A Universo dos Livros Editora adquiriu os direitos de The Shadows, de J. R. Ward. *A Companhia das Letras, de São Paulo, adquiriu os direitos de The Selection Journal, de Kiera Cass. *A Editora Record, do Rio de Janeiro, adquiriu os direitos de Judgement Day, de Andrew Neiderman. * A DarkSide adquiriu os direitos de The Girl Next Door, de Jack Ketchum. * A Saraiva adquiriu os direitos de A Fest of Ice and Fire, de Chelse Monroe-Cassel – esse é um livro de culinária inspirado pelas Crônicas de Gelo e Fogo, de George R. R. Martin. ROBERTO CAUSO RESENHA FICÇÃO CIENTÍFICA BRASILEIRA A Rainha do Ignoto, Emília Freitas. Florianópolis, SC/Santa Cruz do Sul: Editora Mulheres/EDUNISC, 2003 [1899], 430 páginas. O Rei do Mundo Perdido, Hamilcar de Garcia. Porto Alegre: Livraria do Globo, Coleção Aventura N.º 9, 1944, 192 páginas. Capa e ilustrações de João Mottini. Asilo nas Torres, Ruth Bueno. São Paulo: Círculo do Livro, s.d. [1979], 178 páginas. Capa de Sílvio José Vitorino. O Alienado, Cirilo S. Lemos. São Paulo: Editora Draco, 1.ª edição, 2012, 240 páginas. Capa de Erick Sama. Primeiro publicado em 1899, A Rainha do Ignoto, da escritora cearense Emília Freitas (1855-1908), possui duas edições críticas, a primeira de 1980,6 e a segunda (que eu resenho aqui) de 2003. É às vezes apontado como o primeiro romance fantástico brasileiro, algo que vale discutir brevemente: existem, é sabido, romances de ficção científica (O Doutor Benignus, de 1875, por Augusto Emílio Zaluar), de fantasia contemporânea humorística (A Luneta Mágica, de 1869, por Joaquim Manoel de Macedo) e sátira política futurista (Páginas da História do Brasil, Escritas no Ano 2000, publicado em seriado entre 1868 e 1872, por Joaquim Felício dos Santos), vistos antes e que certamente não são obras realistas. Portanto, só é possível aceitar a reivindicação a respeito de A Rainha do Ignoto pelas qualidades oníricas e talvez pelo ilogicismo ocasional, que esse trabalho possui – aproximando-o de uma definição do “romance fantástico” não a partir da ficção de gênero, mas do fantástico como parte do mainstream literário. Não obstante, ele pode ser lido como ficção científica, como veremos, e igualmente como romance de aventura. Por sua vez, a autora chamou-o de “romance psicológico”, menos na acepção costumeira, imagino, e mais em conexão com o espiritismo kardecista – junto ao qual o fenômeno mediúnico é às vezes referido como “psicológico”. O espiritismo tem papel no romance, assim como a maçonaria e a hipnose, esta vista por Freitas como ciência ou tecnologia – algo também presente em contos de Edgar Allan Poe como “Os Fatos no Caso do Sr. Valdemar” (1845), e muito mais tarde, nos de André Carneiro, como “O Homem que Hipnotizava” (1966). A história abre com o jovem Dr. Edmundo, na localidade cearense de Passagem das Pedras, interessando-se por uma misteriosa mulher do lugar, “a Funesta”, uma das muitas alcunhas da poderosa aventureira e líder de uma sociedade secreta (tema da literatura de capa-e-espada e, mais tarde, do steampunk) de mulheres, as “Paladinas do Nevoeiro”. Protagonista do romance, a mulher também é conhecida como “Diana, a Filha do Caçador de Onças”, “Cônsul Geral do Infortúnio” e, finalmente, “Rainha do Ignoto”, sendo vista acompanhada, às vezes, de um orangotango amestrado (antropóides como o gorila assassino de Poe, os macacos alados de O Mágico de Oz, e chegando ao King Kong,7 foram comuns na ficção de aventura do século XIX até meados do XX). Edmundo acaba caindo no raio de influência do mesquinho Probo, um homem tão conservador e tacanha quanto a rainha parece ser progressista e visionária. Contrário à postura republicana, abolicionista e espírita da líder feminina, Probo convence Edmundo a se disfarçar como Odete, mulher emudecida pelo mal de amor (o noivo se interessara mais por sua mãe do que por ela). Assim disfarçado, o jovem médico pode assistir às cerimônias e testemunhar as façanhas das paladinas. O leitmotif do homem que se disfarça de mulher ou da mulher que se disfarça de homem é constante no livro e bate com as convenções literárias da capa-e-espada e romances de cavalaria de momentos anteriores da literatura, certamente introduzindo um frisson junto aos leitores, este também chegando até meados do século xx, nas histórias de Dashiell Hammett, por exemplo, em que esse índice de ambigüidade sexual costumava figurar. Como o assunto de A Rainha do Ignoto é a condição feminina, os constantes disfarces masculinos da heroína – muitas vezes ampliados pela hipnose – são meio de ilustrar os estritos limites dos papéis sexuais da época. O assunto do livro também significa um grande peso dado à observação social ou aos “costumes”, como se dizia. De fato, uma tensão central no romance é aquela entre a literatura de costumes e a de aventura, tensão central também de boa parte da ficção científica e fantasia nacionais ao longo do século XX. O que dá a esta obra de Emília Freitas a qualidade de prenunciar isso que pode muito bem ser uma questão literária característica da nossa ficção popular – dilema a ser superado ou fusão de tendências quase opostas, a ser criativamente explorada. Louva-se, de qualquer modo, o olhar de Freitas sobre a situação feminina, se por um lado mediada constantemente pelos estilemas do Romantismo, por outro visitada por um olhar cálido que empresta charme e introspecção à narrativa e compõe uma panorâmica que parece transcender as situações regionais e de classe social. O ponto pivotal do romance é a descrição de longas cerimônias em que a rainha passa em re- 6 Quando foi redescoberto pelo Prof. Otacílio Colares, da Universidade Federal do Ceará. 7 O orangotango de Diana também se chama King. vista as muitas atividades culturais e militares das paladinas, culminando em uma sessão mediúnica na qual uma vidente prevê uma série de situações nas quais as paladinas deverão intervir. A profecia dá uma nova orientação ao romance, até então dominando pelos costumes. As paladinas embarcam no navio Tufão e partem para uma seqüência de aventuras humanitárias que inclui libertar mulheres do jugo masculino, resgatar náufragos e noivos injustiçados, e soltar escravos de um engenho no sertão – espécie de ápice das façanhas das raparigas, em torno de um episódio de hipnose coletiva. Elas viajam do litoral cearense até a Amazônia (Freitas foi professora e m Manaus) e, empregando uma tecnologia superior (o porto de onde se chega à Ilha do Nevoeiro, base das moças, é acessado por uma ferrovia secreta) e a técnica da hipnose, são descritas como capazes, intrépidas e determinadas. Sua rainha, porém, também sofre do mal de amor e tem um destino trágico, fiel, também ele, às convenções do Romantismo que balizam integralmente a narrativa. Um dos grandes problemas do livro está no fato de que a aventura de Edmundo no universo feminino não lhe traz nenhuma transformação pessoal, ao mesmo tempo em que o destino final da heroína é determinado por fatores vagos e preexistentes. A edição da Editora Mulheres e da Universidade de Santa Cruz se esforça para honrar o pioneirismo de Emília Freitas, mas é amadora e coalhada de problemas, de hifenização a uma marcação acidentada dos diálogos. A introdução de Constância Lima Duarte e as muitas notas explicativas compensam, porém. A grande questão, na verdade, é o que fazer da leitura de A Rainha do Ignoto. Duarte se diz “fascinada pela leitura dessa (quase) ficção científica”. No século XIX, a ficção científica já possuía uma latitude tal que seria possível deletar esse “quase” e colocá-lo no rol dos raros romances brasileiros de FC desse período. É mais difícil, porém, enxergar a sua mistura de literatura de costumes e literatura de aventuras como coesa e produtiva. Fica um romance pioneiro e singular, registro dos apelos dos estilemas românticos sobre uma sensibilidade feminina – a de Emília Freitas – que, por baixo de tudo isso, ainda parece se firmar. romance que em momento algum pede desculpas por abraçar a aventura, nem tenta disfarçá-la com observação social. Na década de 1930, Garcia fez traduções para a “revista de emoção”8 A Novela, editada Erico Verissimo, e parece ter assimilado algo de positivo, pelo contato com o material estrangeiro. Nisso, produziu quase que o oposto exato d’A Rainha do Ignoto. Abre com o narrador ouvindo lorotas em um bar de cais, o Papagaio de Ouro. Ele ouve Martinho, um marinheiro de perna-de-pau – e também com uma estranha orelha de madeira – contar, em “História de uma Perna de Pau”, como perdeu a perna para um marujo apavorado com tubarões, durante um naufrágio em viagem de volta de Calcutá. Uma história puxa outra e estamos diante do que é provavelmente um dos primeiros exemplos de um romance fix-up (narrativas que podem ser independentes, mas costuradas como um feixe de histórias conectadas) brasileiro. Na história (ou capítulo) seguinte, “Seis Cavaleiros de Verde”, Martinho está na Índia fugindo dos acólitos de uma seita que querem sua cabeça por ter matado uma naja – numa história em que entram elementos sobrenaturais, com direito a iogues, gurus, e uma providencial intervenção do deus Ganesha, para salvar o desventuroso marinheiro com o auxílio de um elefante. Já “Entre os Braços Vermelhos” é uma nova aventura nos mares, na qual o estranho desaparecimento da tripulação de um barco leva Martinho ao confronto com um monstro marinho, imaginativa mistura de lula-gigante com enguia elétrica. Alguém conhece outra história de monstro, dessa época, escrita no Brasil? Em “A Cova das Surpresas”, o herói está em terra novamente, trabalhando como foguista na locomotiva de uma composição atacada por bandidos munidos de gases paralisantes e armas automáticas, que atacam em um túnel ferroviário. Um exemplo de ficção crime, para expandir o espectro da aventura que governa o livro, e que na época era um grande campo de múltiplos gêneros, assim como o é a ficção especulativa atualmente. A narrativa seguinte é a última, e cobre metade ou pouco mais, do livro: “O Rei do Mundo Perdido” traz no título o tipo de subgênero a que pertence, muito popular, a partir de As Minas do Rei Salomão (1885), de H. Rider Haggard, de fins do século XIX até meados do século XX. O gigantismo do território brasileiro forneceu inspiração para um bom número de romances de mundo perdido entre nós, a começar muito provavelmente de A Amazônia Misteriosa (1925), de Gastão Cruls – e também provavelmente inspirados por O Mundo Perdido (1912), de Sir Arthur Conan Doyle e seu platô amazônico com dinossauros e hominídeos. Esse subgênero rendeu alguns dos melhores trabalhos da FC brasileira, entre eles o livro de Cruls e A Re8 Rainha e Rei fazem par, e, no caso de O Rei do Mundo Perdido, de Hamilcar de Garcia, temos um Termo brasileiro para designar as revistas pulp, cunhado por Athos Eichler Cardoso a partir de certos usos populares no período aproximado de 1930 a 1950. Veja o seu ensaio “As Revistas de Emoção no Brasil (1934-1949): O Último Lance da Invasão Cultural Americana” (2009), disponível em www. intercom.org.br /papers/nacionais/2009/resumos/R4-1833-2.pdf pública 3000 ou A Filha do Inca (1930), de Me- notti Del Picchia, e a novela “O Rei do Mundo Perdido” se coloca muito bem dentro dessa ilustre companhia (quem sabe eu ainda não terei a chance de incluí-la num segundo volume d’As Melhores Novelas Brasileiras de Ficção Científica). O exame de “revistas de emoção” como a já mencionada A Novela (1936-1938?) mas também Contos Magazine (1937-1945), informa que um modo muito comum de se chegar ao mundo perdido era por via marítima, especialmente nos Mares do Sul, rota explorada nas histórias do subgênero escritas pelo prolífico H. Bedford-Jones, autor pulp inglês e muito reproduzido em Contos Magazine, ou pelo americano A. Merritt, famoso por suas histórias de mundo perdido como The Moon Pool (1918). Sendo Martinho, o herói de Hamilcar de Garcia, um marinheiro, nutri o breve suspense de que a novela seria uma rara história brasileira de mundo perdido ambientada em uma ilha e não na floresta amazônica. Mas não – nela, Martinho está aposentado dos mares e cansado das aventuras, vivendo no Rio de Janeiro, e se dá ao luxo de uma paixão secreta: voar de balão. Adivinhem: uma tempestade tropical o sopra por milhares de quilômetros da costa para o coração selvagem do Brasil da década de 1940. Ao cair, o balão está sobre uma cidade de pedra enfiada na selva. Ao passar por uma caverna com ossos de “mamutes” (o elefantídeo que viveu no Brasil foi o mastodonte), o aventureiro conclui que o lugar é muito antigo – talvez uma civilização anterior à chegada dos portugueses ao continente... Martinho é prisioneiro de suas muralhas, e tem que lutar contra a fome, a sede e o desespero. Explora – e a narrativa com ele – as minúcias do lugar, encontrando entrada para os subterrâneos da cidade, onde trava contato com seus habitantes. São homens baixos, barbudos e barrigudos que portam lanças e são comandados por um homem alto, descrito como “curioso tipo entre índio e europeu; as feições eram por certo indiáticas, mas a barba negra e a tez esbranquiçada desorientavam a quem desejasse descobrir-lhe a raça” (pág. 170). Puluk, o líder do lugar, insiste em transformar Martinho no seu rei de antão, Tomovak, e para ajustar a aparência do marinheiro, corta-lhe a orelha esquerda e coloca nele a estranha prótese de madeira: o aventureiro apalpou a sua nova orelha e não percebeu indício de emenda: “era como se ainda tivesse a orelha com a qual nascera, parecendolhe que esta apenas ficara dura como a madeira.” (Pág 175.) Além desse elemento fantástico ou quase, há um estranho violino (que figura em outros pontos do livro), num estojo de granito depositado na cela onde o herói é feito prisioneiro. Ao finalmente arriscar tocá-lo, Martinho é levado a um transe que revela tudo o que há para saber sobre a civilização perdida: Caíra entre muralhas construídas há milhares de anos. Uma longa dinastia reinara sobre aquela terra. Uma grande civilização florescera ali onde a floresta se estendia interminavelmente. Aqueles homens pelu- dos, disformes, eram os descendentes de uma raça forte, de guerreiros audazes e robustos trabalhadores. E “chegava a época do rei Tomovak, que morrera havia dois ou três séculos ...” sem deixar descendentes, sendo eternizado na consciência dos seus súditos, como uma ausência, passando de “rei a deus, de deus a demônio”... (Págs. 181-82) O final do livro é obviamente previsível – Martinho precisa escapar para contar a história. Aprotando-se do transe dos nativos diante das notas do violino, ele tenta fugir, lutando como Puluk e encontrando uma passagem secreta para fora. O que encanta nesta narrativa de mundo perdido é o tom sombrio e o passo narrativo desapressado, que permitem que todo o estranhamento do lugar penetrem com naturalidade a consciência do leitor. Essa qualidade de prosa é, mesmo na ausência de complicações de enredo e de grandes recursos simbólicos, superior a de outros esforços brasileiros dentro do subgênero – como os de Jerônymo Monteiro com O Irmão do Diabo (1938) e A Cidade Perdida (1948), e de Menotti Del Picchia em A Filha do Inca (1930) e Kalum (1936). Publicado na Coleção Aventura da Livraria do Globo, de Porto Alegre (em edições capa-dura, ilustradas e com capa com relevo), em que apareceu outro clássico brasileiro, 3 Meses no Século 81 (1947), de Monteiro, O Rei do Mundo Perdido traz ótimas ilustrações de João Mottini, algumas coloridas e outras num traço econômico e preciso.9 Abraçando sem pudores a aventura, e buscando a técnica narrativa efetiva, Hamilcar de Garcia produziu um dos melhores livros brasileiros de FC da primeira metade do século XX. Durante a década de 1970, com a ditadura militar bem estabelecida e com o A.I.5 em pleno vigor, os escritores brasileiros buscaram na ficção científica recursos para uma literatura crítica do regime, da tecnocracia e do aparato repressivo que o acompanhavam, da censura, da arregimentação da sociedade para um projeto de desenvolvimento e crescimento a qualquer custo, da ingerência sobre a sexualidade, e do enfraquecimento dos valores humanistas. Tais recursos vieram mais comumente das tradições da distopia, da ecocatástrofe e da fábula política, muitas vezes de modo francamente alegórico, enigmático e obscuro (até para fugir da odiosa censura). É claro, findo o regime militar e com a redemocratização, esse flerte em particular entre o mainstream literário a FC terminou ou tornou-se apenas residual.10 Asilo nas Torres, de Ruth Bueno, é um caso exemplar. Romance curto ou novela ambientada num planeta Saturno que tem sabiás e flores tropicais, nada exibe das convenções literárias usuais da ficção científica – nada sobre a terraformização de Saturno, vôos interplanetários ou da história da colonização do planeta gigante gasoso, nem mes9 Mottini também ilustrou 3 Meses no Século 81, num estilo completamente diferente. 10 Uma obra distópica particularmente interessante é tardia dentro dessa tendência, a novela de Paulo de Sousa Ramos, O Outro Lado do Protocolo (1985). mo uma civilização particularmente high-tech... É obra típica do Ciclo de Utopias e Distopias (19721982) do período ditatorial brasileiro, combinando crítica política, social e ambiental, num formato de anti-romance – sem divisão em capítulos, sem trama ou enredo, e com personagens sem caracterização psicológica. O texto se desenvolve como fragmentos ou situações encapsuladas, às vezes umas entrelaçadas nas outras. Um reforço dessa estrutura fragmentada está na finalização de certo segmentos, com uma sentença de cunho aforístico e em itálico. Já o vício das sentenças entrecortadas por vírgulas parece mais um problema estilístico mesmo. Os fragmentos são em sua maior parte observações sobre a corrupção no trabalho e na repartição pública, o machismo, a burocracia, a prevaricação do poderoso, o envelhecimento e a promiscuidade sexual, a falta de valores – o componente de costumes, presente no livro. Observações de cunho feminista, como esta, eclodem dentro desse componente: São machos e fêmeas, mais machos que fêmeas, os machos comandam, as fêmeas cumprem. Poucas, pouquíssimas mandam, e mesmo mandando pouco, cumprem. Fêmeas que servem, trazem os pratos e os copos nas mãos. Machos que não dão vez. Fêmeas que não querem ter vez. Poucas fêmeas falam; a maioria espreita. Uma ou duas pensam alto, mas foram notadas, e agora estão marcadas, porque disseram o que pensavam. Machos tantos, o peito ufano, a glória pouca, o mando, muito. Misturados, machos e fêmeas formam juntos a multidão. – As fêmeas, no comando, não. Mala na mão, não. Sorvete na mão, não. Pacotes na mão, não. Palito na mão, não. Copo na mão, não. Flor na mão, não. – E o pênis na mão? (Pág. 25.) Salomé, a figura maligna do livro, “tinha muitos maridos, submissos, mansos”, que ela controlava pelo terror, assumindo o arquétipo da bruxa. Como Libby Ginway apontou em Ficção Científi- ca Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro, no livro todo apenas duas persona- tiam escravos, desejavam, apenas, recobrar a liberdade perdida. Zumbi zumbindo em seus ouvidos, enquanto a esperança dorme envolvida em casulo de seda. (Pág. 24.) A denúncia do consensualismo político brasileiro presente em Ruth Bueno talvez seja típica, pois também está presente na excepcional novela utópica de Paulo de Sousa Ramos, O Outro Lado do Protocolo (1985): Para fazer passar qualquer ordem nas torres não se podia ter contra nem um voto sequer. Direito de minoria. Láaa, aaaqui, aaali, dentro, fora, perto e longe, hoje e amanhã, a ninguém é lícito desrespeitar o direito das minorias. (Pág. 29) A morte ou burocratização da poesia é outra característica da distopia, presente no livro de Ramos, mas também em Admirável Mundo Novo (1938). Em Asilo nas Torres: “O requerimento foi redigido sob forma poética, pois tal pedido requeria essa roupagem, não admitindo fórmulas comuns, usadas nas petições endereçadas ao Senhor Rei.” (Pág. 30.) A burocratização e o controle da sexualidade, também – presente em passagens como esta: “Calcularam a energia gasta nos orgasmos (com a dedução natural da média dos fracassos) e chegaram a estranhas conclusões.” (Pág. 47.) Asilo nas Torres pode ter envelhecido mal, como ocorre com muito da literatura pop brasileira da década de 1970, por seu emprego de recursos já originalmente tênues. Mas ao lado de outras obras do período que flertam com a ficção científica, como Miss Ferrovia 1999 (1982), de Dolabella Chagas,11 dá testemunho de que as circunstâncias do Brasil pós-Mensalão já estavam configuradas há algum tempo, com as hostes de prevaricadores, empreiteiros corruptores e políticos vendidos então alinhadas com a ditadura militar – o inimigo ideológico dos donos do poder de hoje. “[A]qui vale a fala do rei e a dos amigos do rei, o resto é conversa fiada.” (Pág. 75.) gens possuem nome: Assunta (de “ascendida”), representação simbólica de um princípio feminino positivo e promessa de renascimento da sociedade; e Salomé, a encarquilhada rainha das harpias e representação simbólica de um princípio feminino negativo, aderida ao regime monárquico sem face e representando a degradação que o regime impõe à sociedade. Sempre misteriosas, as duas figuras orbitam-se mas não se tocam, já que a autora evita os recursos do conflito e dramaticidade, de modo que elas nunca abandonam a sua dimensão de símbolo. Assim, o próprio fantástico pouco se caracteriza, com o romance valorizando apenas o seu formato incomum e os tópicos enfocado por uma crítica política menos a partir das estruturas do que dos costumes. Ainda assim, têm-se em Asilo nas Torres a figura central da distopia: os dissidentes. Os asilados sentiam-se presos; as torres lhes pareciam o espectro de um colosso que os esmagava; as chefias lhes eram francamente hostis, e porque se sem- 11 O livro de Chagas saiu na Coleção Jogral, coordenada por Nelly Novaes Coelho e que chegou a publicar dois livros de Murilo Rubião, e o romance de FC pré-histórica O Homem do Sambaqui: Uma História da Pré-História(1974), de Stella Carr. Cirilo S. Lemos é um jovem escritor da Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira (2004 ao presente) que tem se desgarrado do rebanho. Seu primeiro trabalho a chamar a minha atenção foi a noveleta tupinipunk “A Lua É uma Flor sem Pétalas”, na antologia Geração Sub-Zero: 20 Autores Congelados pela Crítica mas Adorados pelos Leitores (2012), editada por Felipe Pena. Seu primeiro romance, O Alienado é uma fic- ção científica sobre realidades sintéticas, que faz um bom uso das lições do pai da matéria, o autor americano Philip K. Dick. Particularmente no clima de paranóia, de opressão, e de inconstância do real, além do fundo filosófico das suas especulações. Esse romance pelo jeito fez muito para sedimentar a reputação de Lemos como uma das revelações genuínas da Terceira Onda, especialmente, no meu entender, depois de uma resenha elogiosa de Cesar Silva no Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica 2012. No livro, o protagonista Cosmo Kant, operário e romancista frustrado, perde o emprego e passa por uma crise de angústia que o faz sair de casa e entrar num labirinto de situações que envolvem sua internação em estranha instituição na qual ele é tratado por “AM013”, e o contato com uma sociedade secreta de “metafilósofos”, um software de psicanálise, e a revelação de uma personalidade cindida por um acidente de carro e um trauma familiar envolvendo uma paixão homossexual feminina. O romance, porém, abre com o primeiro de uma seqüência de flashbacks em que o protagonista vive situações na infância, com seu amigo imaginativo e inquieto Virgílio, um aspirante a desenhista de histórias em quadrinhos. As histórias curtas de Lemos já dão conta da importância das relações familiares e da infância na sua obra, e em O Alienado esses flashbacks também expressam a importância da figura paterna no passado do personagem. As páginas do livro cedem espaço a uma HQ (Lemos também milita nessa área) que narra um acidente com um Chevrolet Opala vermelho, uma das muitas imagens recorrentes no livro. Também contribuindo para a abordagem pós-modernista do texto com recursos de montagem compondo uma estética do fragmento, têm-se além dos flashbacks, a HQ e o fio central da narrativa, trechos do romance inacabado que vinha sendo escrito por Cosmo Kant – narrando uma investigação e os percalços sentimentais do violento Inspetor Carvalho. Essas diversas linhas e recursos não marcham em separado, mas se entretecem e se completam em torno de momentos-chave e por uma figura feminina recorrente, tudo bem marcado ao longo do texto. Em O Alienado, os temas de Dick encontram os contextos kafkianos da burocracia brasileira e são transformados por um ethos menos californiano e mais característico da realidade suburbana fluminense, sem dúvida um bem-vindo tempero, e numa prosa às vezes dotada de uma aspereza e sensacionalismo pulps. A ambientação é freqüentemente obscura e indistintas – os flashbacks da infância parecem ocorrer em época bem mais antiga do que a linha narrativa no presente daria a entender, as cenas no sanatório são coloridas pelo delírio e pelo exagero sensorial, enquanto a trama investigativa remete ao período da ditadura. Note-se que a atmosfera sombria foi habilmente reforçada pela diagramação de Erick Sama (que também enfatiza o aspecto retrô com truques gráficos de impressora matricial). O romance teria se beneficiado de uma edição que atenuasse algo dos seus excessos expressivos e tornasse o texto mais agudo e seus efeitos um pouco menos diluídos. Complexo e intrincado, O Alienado é não obstante leitura tensa que também funciona no plano narrativo. Sem dúvida, um dos melhores romances da ficção científica brasileira dos últimos anos, torna Cirilo S. Lemos um autor a se observar, e a Editora Draco faz bem em invéstir no seu trabalho com uma atenção especial. --Roberto de Sousa Causo Edgar Smaniotto Resenha Ficção Científica Francesa Encontro com o Destino (Rendez-vous avec le destinée). Jean-Pierre Laigle. São Paulo: Devir Livraria, 2012, 128 páginas. Tradução de Humberto Moura Neto & Martha Argel. Capa de Vagner Vargas. O livro Encontro com o Destino, do francês JeanPierre Laigle, traz na capa a seguinte mensagem: “A guerra nas estrelas será entre dois ramos da humanidade separados pela engenharia genética.” Logo na primeira página temos uma citação, retirada da História de Humânia do ano de 1107 da fundação de Humânia, referindo-se a um confronto secular, ou melhor, milenar entre dois impérios galácticos: os humanianos e os modificados. Encontro com o Destino é o relato do início deste conflito. Arca 01 é o nome de uma nave geracional que leva um grupo de 120 mil humanos para colonizar um planeta no sistema de Cōr Serpentis. À semelhança da SOL, a espaçonave de gerações utilizada por Perry Rhodan, uma civilização de desenvolve na nave, já que gerações inteiras de crianças nascem e morrem, tendo nela seu único lar. Assim como na SOL, em que seus habitantes passam não mais a referirem-se uns aos outros como “terranos”, mas “solanenses”, os habitantes da Arca 01 se autodenominam “arqueanos”. A missão transcorria normalmente até que os arqueanos recebem uma mensagem da nave Macbarath vinda da Terra. Na mensagem consta que o ecossistema terrestre foi completamente destruído, e que, a mando do novo poder político e econômico da Terra, o Monopólio Corporativista, se espera que a Arca 01 volte à Terra para utilizar sua carga (espécies vegetais e animais) constituída para terraformar um novo mundo, ou seja, que agora seja utilizada para recuperar a Terra. Caberá então aos arqueanos decidir se continuam sua viajem, faltando apenas vinte anos para chegar ao novo planeta, ou retrocedem cento e oitenta anos de viagem para retornar à Terra. Além da carga material, em espécimes, a Arca 01 também leva todo o conhecimento científico e cultural da humanidade. Daí a trama segue em duas direções principais, o confronto entre a Arca 01 e a Macbarath (uma guerra fria no espaço), e a disputa pelo poder político a bordo da Arca 01, que tem por sistema de governo um triunvirato formado pelos três principais senadores: Jüraté Nauronaité Kalonaityté, Garuda Sumargono Antonioni e Torshamr Johansni Declercq; ao qual se somam a Memória Prima, inteligência artificial consciente e com poder de decisão nas questões que envolvem a segurança da missão de colonização planetária. Mesmo sendo uma nave de colonização, a Arca 01 conta com armamentos e quatro naves de escolta ligeiras bem armadas – um fator importante na disputa que se segue. Logo de início, a primeira senadora, Jüraté Nauronaité Kalonaityté, obtém maior poder junto à Memória Prima, passando a ser a personagem central da narrativa. No decorrer do texto acompanhamos a senadora tentando assegurar seu poder majoritário a bordo da Arca 01, ao mesmo tempo em que mantém um tenso contato diplomático com a Macbarath. A Arca 01 havia sido lançada por um consórcio formado pela União Paneuropeia, União do Pacífico Sul e a Confederação Lunar. Os idiomas principais são o lituano, o nordsprak (fusão entre dinamarquês, sueco e norueguês) e o bahasa (fusão de malaio com indonésio). Apesar de comentários sobre a existência de diversos povos e línguas a bordo da nave, fica claro pelos principais idiomas e também pelas entidades políticas que enviaram a nave que os colonizadores são descendentes dos europeus do norte (União Pan-européia?); malásios e indonésios (União do Pacífico Sul) e Confederação Lunar (talvez já um empreendimento entre estas duas comunidades). Mas, é claro, são conjecturas nossas. Já o planeta Terra está quase toda sobre o controle do Monopólio Corporativista, uma entidade políticoeconômica ultracapitalista. É bom lembrar que a bordo da Arca 01 reina uma economia de cunho quase socialista, outro elemento a se somar na disputa entre arqueanos e os tripulantes da Macbarath. Um terceiro elemento de disputa é a utilização da engenharia genética, como já referido no comentário da capa anteriormente citado: “dois ramos da humanidade separados pela engenharia genética.” Os arqueanos são eugenistas e os tripulantes da Macbarath, trans-humanos. Trans-humanismo é uma filosofia que defende a hibridização entre homem e máquina, ou a transgenia entre homem e outras espécies; neste caso, o homem passa a ser agente de sua própria evolução, uma tese atualmente defendida por cientistas como Raymond Kurzweil. A eugenia, diferentemente do trans-humanismo, é uma filosofia social que prega a defesa de que um determinado grupo étnico humano seria superior biologicamente aos demais. Essa filosofia foi criada pelo estatístico inglês Francis Galton no final do século XIX e inspirou o nazismo. Em um debate entre a primeira senadora e Makthor Antonov, comandante da Macbarath e embaixador do Monopólio Corporativista fica claro as posições de ambos com relação às questões genéticas. Segundo a primeira senadora “os habitantes da Arca 01 foram selecionados a partir de linhagens sem ma- nipulação genética, para garantir que a colonização se dê nas melhores condições” (p. 34), e “a menor anomalia justifica um aborto preventivo, e com isso as perdas eram significativas. Portanto, a prática eugênica decorria sobretudo da fobia de mutações.” (P. 35) Já os próprios tripulantes da Macbarath são transgênicos, no caso uma associação entre genes humanos e ursos, o que possibilitou a estes a capacidade de entrar em hibernação, assim como os ursos, fator importante na colonização espacial. Está é, sem duvida, uma das melhores ideias apresentadas no livro. O escritor norte-americano de ficção científica James Blish deu o nome de pantropia a este tipo de adaptação dos seres humanos para a colonização do espaço. Como afirma Makthor Antonov na novela de Laigle: “Somos produtos de uma combinação de genes de ursos e de humanos.” Nossa espécie está a serviço do Monopólio Corporativista para fazer a prospecção e a exploração de planetas extrassolares, e manter a ordem neles. Somos geneticamente criados para sobreviver às longas viagens interestelares. Agora substituímos os humanos-padrão em todas as missões, e outras espécies foram criadas para se adaptar a diversos planetas” (p. 34). Vemos aqui dois conceitos distintos de colonização espacial em antagonismo, de um lado a terraformação, ou seja, modificar um ambiente planetário para este se adaptar o homem; e a pangenia, adaptar o homem a ambientes planetários diversos. No meu entender, se vamos colonizar o espaço, provávelmente será através de uma associação entre estas duas PAPÊRA UIRANDÊ ESPECIAL vertentes. Outra ideia interessante discutida no texto é a mudança cultural e a formação de novas culturas no espaço. Temos então uma disputa entre uma espécie de híbridos transgênicos representando um monopólio corporativo ultracapitalista que acabou com o ecossistema da Terra em busca de lucro e pensa a Galáxia como um mercado natural; e um grupo de humanos com propensões eugenistas e caminhando para uma ditadura fascista. Vale lembrar que a primeira senadora não tem nenhum apreço pela democracia e vai fazer de tudo para destruí-la: “aqui como na Terra, não praticamos a democracia” (p. 81). Ficou difícil escolher por qual lado torcer? Certamente! Mas é justamente nesta ambiguidade ética, onde ninguém está inteiramente errado ou certo em seus propósitos é que torna esta uma ótima ficção científica, por explorar tanto o lado tecnológico da ficção científica (hard) como o social (soft). A guerra fria entre a Arca 01 e a Macbarath tenderá a ficar quente, com direito a espionagem, conspirações e batalhas espaciais, em uma trama que equilibra uma boa narrativa e especulação científica e social. Edgar Indalecio Smaniotto é filósofo, mestre e doutor em Ciências Sociais. Professor Universitário, desenvolve pesquisas relacionadas a ficção científica, trans-humanismo, ética e história social da ciência. Já escreveu para a revista Macrocosmo.com (revista de astronomia), e livros e capítulos de livros relacionados à ficção científica. PROCURA COLABORAÇÕES Nas próximas edições: o fanzine pretende publicar resenhas de ficção científica, fantasia e horror, nacionais e estrangeiras. Também buscamos ensaios avaliativos do campo dessas literaturas, e entrevistas com escritores, editores e artistas – além de contos, inicialmente apenas de ficção científica. Ilustrações originais também são bem-vindas. As próximas duas edições terão como tema a Terceira Onda da Ficção Científica (com um ensaio de Marcello Simão Branco; uma emtrevista com Erick Sama, editor da Editora Draco; e uma seção especial sobre a ficção steampunk); e space opera (procuramos quem resenhe as quatro antologias de space opera publicadas recentemente no Brasil, pela Editora Draco e pela Argonautas Editora). A edição 10 vai contar também com um relato de viagens de Marcello Branco, e uma entrevista do escritor Jorge Luiz Calife dada a Jean-Pierre Laigle. Envie suas colaborações ou perguntas para rscauso@yahoo. com.br, ou para Roberto Causo, Rua André Dreifus, 109/163 – bloco 2, São Paulo-SP, CEP 01252-901. Expediente: Papêra Uirandê Especial 9: Tupinipunk no Século XXI. Editor: Roberto de Sousa Causo. Edição concluída em 9 de outubro de 2015, em São Paulo-SP. Colaboradores desta edição: Ahvid Engholm, Cesar Silva, Edgar Indalécio Smaniotto, Luiz Bras, Marcello Simão Branco, Miguel Carqueija, Ramiro Giroldo, Vagner Vargas e Timothy Zahn. Endereços para correspondência: Rua André Dreifus, 109/163 – bloco 2, São Paulo-SP, CEP 01252-901; [email protected]. Este fanzine não segue o no- vo acordo ortográfico. Papêra Uirandê Especial pode ser copiado livremente, contanto que de maneira integral (todas as páginas, na ordem original) e preservando os créditos de cada colaborador. Se em cópia de papel, recomenda-se que o preço cobrado corresponda apenas aos custos de impressão e envio. Agradecimento: a Renato Rosatti, pela conversa que inspirou o retorno deste fanzine. Entrevista TIMOTHY ZAHN O escritor americano Timothy Zahn, famoso pela Trilogia Thrawn iniciada com o romance Herdeiro do Império (1991), esteve em São Paulo para o relançamento desse livro pela Editora Aleph com nova tradução de Fábio Fernandes e ilustração de Capa de Marc Simonetti capa do artista francês Marc Simonetti (das capas nacionais das Crônicas de Gelo e Fogo de George R. R. Martin). A principal atividade de Zahn no Brasil foram longas sessões de autógrafos na ComicCon Experience, em dezembro de 2014. Nascido em setembro de 1951, Zahn é conhecido por suas colaborações na revista Analog Science Fiction and Fact, que recentemente chegou à sua milésima edição. Conversei com Zahn muito rapidamente na loja Geek.Etc.Br, no Conjunto Nacional, marco da Av. Paulista em São Paulo. Estavam lá, além dele, sua esposa Anna e o jovem Lucas Alves, da assessoria de imprensa da Aleph. Levei alguns livros para Zahn autografar, e vários números de Analog com histórias dele. A revista foi um dos assuntos da conversa, e Zahn informou que sua série Star Song, originalmente vista em Analog, estava programada para aparecer como eBook. Outros assuntos da conversa incluíram, é claro, os caminhos de Star Wars nas mãos da Disney, e a importância dos romances de Star Wars de Zahn, na evolução da franquia. Seu comentário sobre a situação do mercado americano para a FC de aventura nos ajuda a entender a atual situação do gênero em língua inglesa. --Roberto de Sousa Causo Roberto de Sousa Causo É a sua primeira vez no Brasil? Timothy Zahn Sim. Primeira visita ao Brasil, e primeira visita a qualquer lugar da América do Sul. RSC Quais são as suas impressões do país? TZ Não vi muito do país, mas os fãs e as pessoas são extremamente bacanas, muito calorosas, muito amigáveis. É um prazer me sentar em uma mesa de autógrafos e saber que ficarei lá pelas próximas duas horas fazendo as pessoas felizes, assinando livros e tirando fotos. Todo mundo estava tão satisfeito e feliz, e tem sido simplesmente maravilhoso. RSC Suponho que você seja um veterano de convenções de mídia como esta Comic Con Experience em São Paulo. Como ela se compara? TZ Se compara muito bem. Não sei qual foi a contagem final de frequentadores, ainda não ouvi a respeito disso, mas parecia ser muito bem frequentada, todo mundo parecia estar se divertindo. Tinha um bocado de boas cabines e fornecedores, e no geral uma boa representação de todas as coisas geeks – tudo de pequenos imãs a camisetas a livros a sabres de luz e a tudo o mais. Ela parecia, até onde eu possa dizer, muito bem organizada. Não tivemos qualquer crise na cabine da Aleph, de que eu saiba. Quando fui a seminários e às palestras eles tinham tudo organizado, tinham bons intérpretes para mim, tinham o sistema de microfone funcionando, tinham gente para nos guiar, na ida e na vinda. Foi simplesmente muito, muito eficiente, muito bem organizado, especialmente para o primeiro ano de uma convenção. Fiquei muito bem impressionado. Muitas vezes em estreias de convenções, especialmente uma grande assim, tem-se todo tipo de problemas. Esta pareceu ser conduzida de modo bem suave. RSC E quanto ao público? TZ O público foi maravilhoso. Eles… Foi muito como se as multidões de pessoas que chegavam à convenção fossem bem parecidas com o trânsito brasileiro. Sabe, é muito aglomerado, mas as pessoas sabem como entrar e sair sem baterem parachoques ou outras coisas… Não vi ninguém ficar bravo, não vi ninguém arrumar encrenca. Havia filas compridas, e todo mundo muito paciente nelas. Um público muito bom, muito entusiasmado. Espero que esta convenção se torne anual, por muitos e muitos anos ainda. RSC Você começou na revista Analog e continuou com ela por um bom tempo. O que significa ser um escritor da Analog? TZ Os escritores da Analog, eu acho, têm de ser um pouco mais centrados nas ciências exatas. Isso começou com John Campbell, continuou com Ben Bova e então com Stanley Schmidt – a maioria das minhas histórias na Analog foram publicadas com ele como o editor. Mas havia mais de uma textura… talvez um componente científico, que algo como uma revista como a Fantasy and Science Fiction… não seria tão importante para as suas histórias. Mas Stan e os outros editores sempre tentaram manter a ciência acurada, um pouco mais… a ciência um pouco mais no coração da história. Sempre achei uma honra ser considerado um escritor da Analog. RSC Num certo ponto da sua carreira você tomou a decisão de escrever ficção científica de aventura. Eu suponho que isso tenha um lado positivo, mas também um lado negativo. Pode comentar? TZ Você quer dizer, como oposto a um tipo de ficção científica de idéias, esta mais de aventura?... O problema é, meu agente argumentou… Eu tinha o outline de uma história que tinha um interessante tema de ficção científica, um tipo incomum de propulsão estelar, e ele escreveu de volta e disse: “Este é o tipo de livro que foi realmente popular vinte anos atrás. O problema é que livros com ideias grandes não vendem mais tão bem quanto costumavam. Agora é muito mais centrado em histórias de aventura, militar, e nas de fantasia.” Então não é uma questão de eu não querer escrever mais histórias de ideias, é só que não há mais tantos mercados para elas. E estou fazendo isso para ganhar a vida, então tenho que escrever o que as pessoas gostam de ler – e também gosto de escrever histórias de aventura. Mas tento manter um pouco de ciência nelas, e tento colocar algumas boas ideias também, mas isso é uma questão do que o mercado é – ou pelo menos de como os editores enxergam como o mercado é. O que pode não ser a mesma coisa. RSC Você é um escritor em tempo integral desde quando? TZ Comecei a escrever em tempo integral em 1980. Comecei a ganhar a vida com isso em 1984. RSC Parabéns! TZ Obrigado. Mas isso não é um sucesso do dia para a noite, para a maioria de nós. De fato, a maioria dos escritores nunca consegue escrever em tempo integral. Eles têm que ter outros trabalhos ou fazer outras coisas para suplementar sua renda. Tenho tido muita, muita sorte em ter a oportunidade de fazer o que eu amo, que é escrever, e ganhar a vida com isso. RSC O que escrever os romances originais de Star Wars representou para a sua carreira? TZ Foi obviamente um grande impulso. Meus dez livros de Star Wars são é claro aqueles pelos quais sou mais conhecido. Isso me permitiu realizar outros projetos que eu queria fazer. Eu acho que isso me deu uma certa credencial entre… não apenas leitores de ficção científica. Por exemplo, há um cavalheiro na Califórnia, chamado Ryan Schifrin, que está escrevendo uma série de romances gráficos sobre uma dupla de espertalhões chamados Basil & Moebius (http://whoisthecollector. com), e ele me pediu para escrever contos conectados com isso. E a razão dele me conhecer foram os livros de Star Wars. Então, isso me deu alguma entrada em outras áreas. Muitas vezes você houve falar de escritores ou compositores cujo trabalho mais famoso está vinte anos no passado e eles são ranzinzas com respeito a isso. Eu não sou. Adoro escrever Star Wars. Sempre faço cada livro o melhor livro que eu conseguiria escrever. E então tenho muita satisfação com os livros de Star Wars. Se for isso pelo que eu sou mais lembrado, está bem, eu adoro escrevê-los, eles demonstram minhas habilidades como escritor, e se menos gente conhece o que escrevi há três anos, do que o que escrevi há vinte anos, está tudo bem. O ego não está envolvido. Eu apenas fico feliz que as pessoas estejam lendo algo que e escrevi, e gostando. RSC Há um fato interessante sobre os seus romances. Star Wars foi muito importante para o mercado de space opera nos Estados Unidos, e então os seus livros trouxeram algo para Star Wars. Há uma bela circularidade nisso. TZ Sim, pude fazer algumas coisas que você simplesmente não pode fazer num filme. Pude entrar nas cabeças dos personagens e ver o que eles pensavam naquela hora. Pude visitar planetas e fazer coisas que seriam terrivelmente caras de se fazer com efeitos especiais. Pude acrescentar mais ciência e política e pano-de-fundo aos livros, porque simplesmente não havia tempo para essas coisas num filme. Então eu pude não só expandir para dentro de uma nova era, pude acrescentar alguma profundida ao universo de Star Wars que não existia lá entes apenas porque não havia tempo para colocá-las nos filmes. Então consegui fazer algumas coisas realmente boas com o universo de Star Wars, e equilibrar a space opera com alguma ficção científica, com aspectos militares e políticos, e tudo isso. RSC Você sente que abriu o campo para novos romances originais de Star Wars? TZ Bem, certamente há duzentos ou mais deles por aí agora, então acho que a resposta par isso teria de ser sim. Acho que a Trilogia Thrawn de muitas maneiras mostrou à LucasFilm que ainda havia um público para Star Wars lá fora. E isso levou a mais livros, levou aos jogos, levou aos programas de TV, possivelmente levou aos novos filmes, ou pelo menos eles sabiam que havia um público para os novos filmes. E agora isso levou a ainda mais filmes, outro programa de TV [a animação Rebels], e quem sabe o que mais, mais adiante. A coisa a respeito da Disney é que eles têm muito dinheiro, o que significa que se querem fazer mais filmes de Star Wars, ou se querem fazer um programa de TV live-action, eles têm os recursos para isso, e, ao contrário de muitas empresas de produção, acho que eles já mostraram que entendem, com a Marvel e com a Pixar, que podem comprar a empresa, mas que então deviam recuar e deixar as pessoas criativas criarem, porque essas são as pessoas que entendem da coisa. Acho que outras empresas de produção poderiam entrar e tentar refazer tudo do jeito deles. A Disney parece ser mais esperta do que isso, e a Pixar e a Marvel têm se dado muito bem sob a bandeira da Disney. Acho que Star Wars também vai. RSC O que acha do trabalho editorial feito agora pela Aleph com o seu romance Herdeiro do Império? TZ Tem uma bela capa, não posso falar pela tradução porque não leio em português, mas pessoas que leram tanto a versão da Aleph quanto a anterior me disseram, de muitos anos, que a tradução da Aleph é muito melhor. Então vou me apoiar Anna Zahn, Lucas Alves e Timothy Zahn nessas pessoas que leram as duas, na opinião delas. Mas tudo o que posso dizer é que tem uma bela, bela capa, e que eles tratam os autores extremamente bem. Têm sido muito gentis, muito, muito bons conosco por todo o tempo que estivemos aqui. RSC Você assinou para fazer a trilogia e mais livros, ou só a trilogia por ora? TZ Eles ainda estão escolhendo. Precisam fazer dezenove livros em dois anos, só de livros de Star Wars. Sei que estão comprometido em fazer outros livros além da Trilogia Thrawn. Estão olhando outros livros de Star Wars e decidindo quais eles vão fazer. Dependendo do quão populares estes sejam, podem pegar outros dos meus. Não sei quais são os planos deles. Acho que neste momento se fizerem a Trilogia Thrawn, vão olhar para o futuro depois disso. RSC Gostaria de saber mais dos seus planos para a sua própria ficção científica, nesse ponto da sua carreira. TZ Eu terminei a minha série Cobra [de space opera militar], estou trabalhando no nono livro. Estou fazendo uma série de space opera militar de aventura com o autor David Weber no universo [Honor] Harrington, e tenho dois ou três outros projetos que estou desenvolvendo para decolar e oferecer ao meu agente. E é claro, se eles voltarem a me chamar para fazer mais livros de Star Wars, eu certamente estou pronto e disposto a ver o que posso fazer aí. Zahn autografa Entrevista Marcello Simão Branco & Cesar Silva ________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ ______________________________________________________________ ________________________________________________________ __________________________________________________ ___________________________________________ Entrevistamos Cesar Silva & Marcello Simão Branco, os editores do Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica, que em 2014 completou dez anos de atividade com uma bojuda edição especial publicada no selo Enciclopédia Galáctica da Devir Brasil. Infelizmente, será a última aparição dessa importantíssima fonte de análise e informação sobre o campo da ficção científica, fantasia e horror no Brasil, seu mercado, evolução, história e destaques. Mas a dupla não está pronta para encerrar a sua parceria, e anuncia planos para o futuro. Capa de Teo Adorno Como está esta edição especial do Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica, que deverá ser a última? Cesar Silva A edição está pronta, aguardamos apenas a produção gráfica que deve entregar a tiragem em alguns dias. Trata-se de uma edição ampliada, com mais de 400 páginas que, além da avaliação do desempenho da FC&F no Brasil no ano 2013, está também dedicada a avaliar os últimos dez anos de publicação de FC&F no país, exatamente o período que foi acompanhado pelo Anuário. Revistamos resenhas dos melhores livros publicados na década, promovemos um debate entre personalidades de destaque no gênero e integralizamos a relação de efemérides da nossa FC&F, em literatura, cinema, quadrinhos e eventos, ao longo de mais de um século de atividades, com direito a todas as resenhas de títulos clássicos publicados no Anuário ao longo de sua existência. Ou seja, este é o “Anuário dos Anuários”, o mais perto que já chegamos de uma enciclopédia da ficção fantástica brasileira. Mas dizer que este é o último Anuário é apenas uma meia verdade. Na verdade, a publicação passará por uma reformulação um pouco mais profunda do que aquelas pelas quais passou ao longo dos anos. Em primeiro lugar, a publicação passará a se chamar “Almanaque Brasileiro de Literatura Fantástica”, desvinculando-se da obrigatoriedade de estar ligado a um ano oficial, superando assim vários problemas de caráter autoral, organizacional e editorial que enfrentamos no Anuário. Também construiremos um blog que publicará, online, boa parte do conteúdo do Anuário e do futuro Almanaque, especialmente as resenhas, que ficarão disponíveis continuamente para pesquisa. Marcello Simão Branco É uma edição realmente diferente das demais, pois além de cobrir a produção literária do ano de 2013, realiza uma análise crítica dos últimos dez anos, quando o Anuário passou a ser publicado. Desta forma, traz um longo artigo sobre os gêneros fantásticos no país, do ponto de vista do fandom, literário e do mercado editorial. Selecionamos as resenhas dos melhores livros publicados na última década e as republicamos. Ao invés de entrevistarmos uma personalidade de destaque no ano, perguntamos a dezenas de pessoas que se destacaram neste período como vêem a FC&F no país, seus problemas, virtudes e perspectivas. E na parte histórica, tradicional no Anuário, consolidamos as listagens de eventos e publicações de todas as edições, cobrindo 168 anos de atividades de FC&F no Brasil, do início do século XIX até meados dos anos 1990. O núcleo desta edição parece ser um conjunto de entrevistas com diversas personalidades, sobre o estado da literatura especulativa no Brasil. Qual é o quadro que as respostas pintam? MSB Não há um quadro mais definido, pois as respostas são muito heterogêneas em termos de conhecimentos, opiniões e interesses de cada um. Isso porque o grupo de entrevistados se divide entre os mais antigos (da Segunda Onda, mais voltados para uma compreensão mais social e histórica dos gêneros), e aqueles surgidos nos anos 2000 (com outras referências sobre os gêneros, mais ligados à Internet e tendências recentes em termos internacionais). Em todo caso, constata-se que o mercado cresceu mas prossegue segmentado, com a FC&F sendo efetivamente valorizada nos grupos específicos a ela ligadas e editoras pequenas e médias, com alcance restrito de divulgação e distribuição. Que falta mais profissionalismo àqueles que escrevem, o que também sugere a ausência de ambientes mais institucionalizados de competição e seleção de trabalhos, além de um feedback mais concreto por parte dos leitores. Os gêneros no país cresceram no atacado, mas estão frágeis no varejo, isto é, na forma como são publicados, vendidos e analisados, tanto por aqueles que os produzem como por aqueles “de fora”, do ambiente do mainstream e do jornalismo cultural e universidade que, com algumas exceções, continuam desinformados e desinteressados. Para uma produção de mais qualidade é preciso capacitar melhor autores e editoras, além de um ambiente mais claro de incentivo à leitura e valorização dos livros e demais publicações. Esta tarefa cabe àqueles que se importam com os gêneros, e menos daqueles que o vêm apenas do ponto de vista econômico, como uma oportunidade de ganho rápido, descartável ao sabor do contexto de interesse e vendas para leitores mais voláteis. Ao contrário dos anos 1980 e 1990 existe um mercado bom, razoável em termos quantitativos, mas a comunidade literária da FC&F precisa continuar lutando para abrir seus espaços e institucionalizá-los, e um bom ponto de partida para isso é a melhora contínua da qualidade literária do que produzimos, além da presença direta em editoras, no trabalho de edição e supervisão editorial. CS A maior parte dos entrevistados preferiu não se envolver com uma discussão mais conceitual e preferiu tratar apenas de sua própria carreira e projetos. Ainda assim, é possível perceber um grande otimismo de todos quanto à estabilidade e crescimento do mercado para o autor brasileiro. A entrada das grandes editoras no mercado de FC&F, criando selos exclusivos, parece ter afastado definitivamente o temor de que esti-véssemos vivendo uma bolha co-mercial, e os autores já pensam para além de projetos imediatos, que era a prática do final do sécu-lo, e realmente projetar suas car-reiras no futuro. Mas ainda há um certo cuidado quanto ao tamanho real desse mercado, se ele dará su-porte profissional aos autores e editores. O Anuário teve diversas encarnações, como fanzine, depois como publicação semiprofissional em duas editoras diferentes. Como vocês dois sentem essa trajetória? ção amadora. Quando passamos do formato amador para o profissional, pela extinta editora Tarja, sentimos bastante com a perda de autonomia, que foi recuperada em parte na Devir, que sempre nos deu bastante liberdade no processo de edição e publicação. A experiência ajudou-nos a afinar o Anuário como projeto, e a compilação final de toda a lista de efemérides cumpre um dos primeiros objetivos que tínhamos para ele desde a sua primeira edição, em 2005. Aprendemos muito com a experiência nas editoras e pretendemos seguir na Devir com o Almanaque e com outros projetos que estão em nossa pauta, se for possível. MSB Como um processo de desenvolvimento de nossas atividades editoriais, seja como editores de fanzine, como mantenedores de blogs, autores e organizadores de antologias. Na verdade nunca enfrentamos barreiras para termos o Anuário aceito como um livro, e nossa opção inicial de o editarmos nos três primeiros anos de forma mais amadora talvez tenha contribuído com isso. Ou seja, depois que as pessoas viram do que se tratava a publicação e gostaram do resultado, tivemos alguns contatos com editoras, até sermos publicados por duas edições pela Tarja Editorial e cinco edições pela Devir Livraria. Infelizmente, contudo, a repercussão não acompanha esta boa aceitação das editoras, pois quase não temos retorno (nem que seja negativo!) do trabalho extenuante que realizamos. Ninguém comenta as resenhas (nem mesmo o autor resenhado), as entrevistas, os artigos (nossos ou de convidados). São sempre a mesma meia-dúzia que nos valorizam e, claro, agradecemos muito por isso, até porque são pessoas de destaque dentro dos gêneros no país. Em tese esperaria que uma edição que faz um balanço da década – como a deste ano – pudesse ser objeto de interesse dos mais diferentes segmentos (afinal quando foi feito algo semelhante na FC&F brasileira?), mas não creio nisso, e acho que passare-mos “em brancas nuvens”, como nas edições anteriores. Certamente este desinteresse incomoda, mas nem é só com o Anuário, é fato, lançamentos de livros de autores importantes também são pouco comentados, o que mostra que os canais de interlocução no interior do fandom estão muito desarticulados e fragmentados. (Sem fanzines, revistas – sim existe a Bang!, mas ainda é uma experiência recente e de resultado incerto –, e encontros regulares). Além disso a enorme quantidade de livros, em especial de autores estrangeiros, também direciona o interesse, difi- Capa de Silvio Ribeiro CS O Anuário teve uma evolução cultando um acompanhamento gradual nestes dez anos; um pouco mais próximo de esta ou aquela disso foi por nossa própria culpa, que sempre vipublicação. Enfim, como já parei de me importar mos o Anuário como uma continuidade dos nossos com esta questão, a real dificulda-de que nos faz fanzines pessoais. Gostamos de ter total autoridade interromper o Anuário é muito mais a incompatisobre ele, não apenas como autores, mas também bilidade entre a quantidade de trabalho e tempo como editores. O meu formato ideal seria publicar que temos para nos dedicarmos. Como o Anuário com qualidade profissional e a autonomia da edireflete o tamanho do mercado editorial, a sua grande expansão também nos impactou numa quantidade crescente de trabalho, muitas vezes maior do que as primeiras edições, por exemplo. Qual é o legado, neste dez anos de atividade do Anuário e da incrível pesquisa que vocês fizeram para ele, que vocês deixam – ou que gostariam de deixar? MSB Gostaria que este trabalho fosse continuado. Não necessariamente da forma como realizamos, mas que a importância da pesquisa, do registro histórico, da análise crítica fosse mais valorizado, aperfeiçoado. De certa forma, estes anos ficaram contextualizados, com um grau de informação e crítica jamais visto. Seria triste que houvesse uma descontinuidade. Porque, se pensarmos, os anos 1980 e 1990 puderam fazer um acompanhamento semelhante por meio dos fanzines. Depois deles, o que veio depois? Várias iniciativas, sem dúvida, mas a mais regular e voltada à informação, balanço histórico e análise crítica coube ao Anuário. Que novas cabeças possam pensar em novos projetos que contemplem um perfil informativo e crítico semelhante. Gente capacitada para isso existe, embora reconheça que o trabalho é árduo, precisa realmente gostar muito, se envolver demais para que o resultado seja minimamente interessante. Certamente o passar dos anos poderá valorizar o Anuário, servir como uma baliza a orientar futuros trabalhos. CS Acredito que cada leitor terá uma percepção particular do alcance do trabalho realizado pelo Anuário, pois o que fizemos não teve um foco definido e cada proposta desdobrou-se em outras tantas que, nesta altura, já nem sei mais até onde realmente chegamos com ele. De minha parte, prefiro acreditar que o Anuário contribuiu de forma importante para o entendimento do papel da FC&F no contexto brasileiro, principalmente do ponto de vista histórico, que desmontou a crença corrente antes dele, de que não existia FC&F brasileira fora do fandom. Não só existe neste momento, como sempre existiu no passado, até mesmo antes dos gêneros terem sido esquematizados na pulp age, e esse material tem muito a dizer aos atuais autores e produtores culturais como um caminho legítimo a ser experimentado em direção a uma FC&F autenticamente brasileira, caso isso seja desejado, é claro. A sua parceria é antiga. Imagino que começou na época da II Convenção Brasileira de Ficção Científica, que vocês organizaram, depois teve expres- são profissional com a revista HorrorShow. Que planos vocês têm para o futuro? CS Nossa parceria tem sido produtiva e desejamos que ela siga frutificando. O Almanaque será o próximo passo desse trabalho, mas há outros projetos em gestação, como a montagem de antologias e coletâneas, e um levantamento histórico dos fanzines de FC&F brasileiros, entre outros. Pessoalmente, tenho interesse em voltar a escrever ficção, coisa que não faço há algum tempo, além de sustentar o trabalho nos meus blogs. Creio que é o bastante para colorir os meus dias futuros. MSB De fato, este é uma das parcerias mais antigas dentro do fandom de FC&F brasileiro. Já organizamos convenções, prêmios, editamos fanzines, revistas e o Anuário. E, sim, pretendemos seguir em frente, seja com projetos individuais, seja com a manutenção da parceria. Dentro deste contexto, na verdade, o Anuário não vai desaparecer por completo. Apenas não queremos mais ficar presos ao calendário anual. Está nos planos um site que consolide o conteúdo do Anuário e receba atualizações, como os lançamentos de livros e as resenhas. Depois de um certo tempo poderíamos lançar um edição com o conteúdo novo. Certamente o nome não será mais Anuário, mas isso é o de menos. Uma idéia também é que façamos uma espécie de almanaque, aprofundando mais a parte histórica da FC&F, com resenhas, artigos e listagens de obras e eventos. Também estamos planejando montar uma antologia de histórias de horror por autores nacionais, um pouco na linha desenvolvida no projeto Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica. O ano de 2014, provavelmente, será de muita leitura e pesquisa para viabilizarmos uma seleção caprichada que poderá resultar numa antologia formadora do que de melhor a literatura brasileira produziu em termos de horror. Felizmente temos muitas ideias, o que só nos dá certeza de que esta parceria continuará rendendo frutos. Já está online o blogue Almanaque de Arte Fantástica Brasileira, de Cesar Silva & Marcello Simão Branco, com vários colaboradores. Veja em www.almanaqueafb.blogspot.com.br Correspondência Que choque! Obrigada por nos oferecer a explicação sobre o Portal Terra. Eu sempre tive prazer em ler a sua coluna, e pensava que fosse permanente. Tomara que o novo projeto continue a sua presença na Internet. Fiquei contente com a sua re-iniciação de Papêra Uirandê. Sempre achei um projeto valioso e válido. --Libby Ginway, Gainesville, FL, EUA, por e-mail. [Eu] o felicito vivamente por trazer de volta o Papêra! --Marcello Simão Branco, São Paulo, SP, por e-mail. Desejo-lhe grande sucesso com a volta do fanzine, a FC&F nacional certamente precisa dele. --Cesar Silva, São Bernardo do Campo, SP, por e-mail. Publicações Recebidas Citizen Who: Peripécias do Famigerado Escritor Que Não Tem Boas Ideias, de Nelson de Oliveira & Teo Adorno. São Paulo: Terracota Editora, 2015, 64 páginas. Capa e ilustrações internas de Teo Adorno. Nelson de Oliveira escreve ficção científica como “Luiz Bras”, e neste opúsculo metaficcional ataca as redes sociais como formadores de opinião literária e a frequente incapacidade dos observadores literários atuais de entenderem o jogo intertextual e a ironia, apoiando-se apenas nos conceitos superficiais das “boas idéias” ou “idéias originais”. Ótimas ilustrações de Adorno. Site: www. terracotaediotora.com.br. Boca do Inferno: Fanzine de Horror Ano 3, N.º 10, agosto de 2015, 4 págs. Editado por Marcelo Milici & Renato Rosatti. Esta edição traz um apanhado da filmografia de George Romero sobre zumbis, e resenha do filme da Hammer, O Monstro do Himalaia (1957). Site: www.bocadoinferno.com.br Locus–The Magazine of the Science Fiction & Fantasy Field Issue 655, Vol. 75, N.º 2, agosto de 2015, 62 págs. A principal trade magazine do campo da FC e fantasia. Nesta edição, entrevistas com Neil Stephenson e Wesley Chu, cobertura do Locus Award Weekend na ReaderCon 26, reportagem sobre a FC na Índia, e homenagem a James Gunn. Site: www.locusmag.com. The Wellsian: The Journal of the H.G. Wells Society N.º 37, 2013, 68 págs. Editado por Simon J. James. Revista acadêmica de uma sociedade dedicada aos estudos da obra de Wells, um dos pais da ficção científica. Esta edição traz o ensaio “The Mysterious Amazonia: Moreau’s Legacy in Brazil”, do pesquisador brasileiro Vitor da Matta Vívolo, tratando primeiramente do romance pioneiro de raça perdida, A Amazônia Misteriosa (1925), de Gastão Cruls. E-mail do editor: [email protected]. ÍNDICE Editorial: Pelo Prazer de Ser Fanzine Ensaio: Ficção Científica sem Culpa 3 4 Ensaio Internacional: Sobre Sam Moskowitz, Sam J. Lundwall e as Revistas de Ficção Científica 5 Ensaio: Dilemas Atuais da Ficção Científica Brasileira 7 Ilustração: Vagner Vargas Miguel Carqueija Resenha: Cinema Clássico 8 9 Ramiro Giroldo Ahvid Engholm Roberto de Sousa Causo Miguel Carqueija Poema: Capitão Nemo 10 SEÇÃO ESPECIAL: O ESTADO DA ARTE: FICÇÃO CIENTÍFICA TUPINIPUNK Apresentação 11 11 Entrevista com Luiz Bras 12 Contos de Luiz Bras 13 Roberto Causo Resenha Ficção Científica Internacional 15 Roberto Causo Resenha Ficção Científica Nacional 21 Edgar Smaniotto Resenha Ficção Científica Francesa 25 Entrevista: Timothy Zahn 28 Entrevista: Cesar Silva & Marcello Simão Branco 31 Mercado Editorial Brasileiro: O Que Vem por Aí Correspondência Publicações Recebidas 20 33 34 Miguel Carqueija Roberto de Sousa Causo Luiz Bras & Roberto de Sousa Causo Roberto de Sousa Causo Roberto de Sousa Causo Edgar Smaniotto Timothy Zahn & Roberto de Sousa Causo Cesar Silva, Marcello Simão Branco & Roberto de Sousa Causo — Ilustrações: Henrique Alvim Corrêa (1876-1910) capa; 3; 7; 25); George Roux (10); Vagner Vargas (8). Fotos: R. S. Causo (30).