Clique para conhecer o livro internamente
Transcrição
Clique para conhecer o livro internamente
Letícia Lanz (Geraldo Eustáquio de Souza) Psicanalista, Mestra em Sociologia e Especialista em Gênero e Sexualidade Uma introdução aos Estudos Transgêneros O Corpo da Roupa © 2015 by Companhia Paracrescer/Editora Transgente. Todos os direitos reservados. Reprodução proibida. T www.paracrescer.com 1ª edição – setembro de 2015 Capa, edição, diagramação e montagem: Letícia Lanz. Revisão de Texto: Adilson Fernandes Alves. Foto de Letícia Lanz: Lucas Pontes, fotógrafo. Imagem da capa: sete bonecas para vestir, cabeças de biscuit. Alemanha, cerca de 1900, leiloadas no site da Theriault’s Dollmasters. Geraldo Eustáquio de Souza é o nome civil de Letícia Lanz. Os nomes de pessoas cujos depoimentos eventualmente aparecem neste livro foram alterados para nomes fictícios, a fim de se preservar suas respectivas identidades. Lanz, Letícia O corpo da roupa : a pessoa transgênera entre a transgressão e a conformidade com as normas de gênero. Uma introdução aos estudos transgêneros./ Letícia Lanz. / Curitiba : Transgente, 2015 . 456 p. 1. Identidade de gênero. 2. Transgeneridade. 3. Pessoas transgêneras. 4. Transexuais. 5. Travestis. I. Título. CDD 306.77 Letícia Lanz www.leticialanz.org www.facebook.com/leticialanz email: [email protected] Movimento Transgente www.transgente.com.br www.facebook.com/grupos/transgente Este livro poderá ser adquirido on line através do site www.transgente.com.br Letícia Lanz (Geraldo Eustáquio de Souza) Psicanalista, Mestra em Sociologia e Especialista em Gênero e Sexualidade Uma introdução aos Estudos Transgêneros O Corpo da Roupa A Pessoa Transgênera entre a Transgressão e a Conformidade com as Normas de Gênero Texto baseado na Dissertação de Mestrado em Sociologia, apresentada ao Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná. A Bandeira do Orgulho Transgênero foi criada pela mulher trans norte-americana Monica Helms, em 1999, e exibida pela primeira vez em uma parada em Phoenix, Arizona, no ano 2000. A bandeira representa a comunidade transgênera e consiste em cinco faixas horizontais: duas azul claro, duas rosa e uma branca, no centro. Segundo Helms "as listras na parte superior e inferior são em azul claro e rosa, as cores tradicionais para meninos e meninas, respectivamente. A listra no meio é branca, representando as pessoas intersexuadas, as que se encontram em transição ou que consideram seu gênero neutro ou indefinido. O padrão é tal que, não importa o lado que a bandeira tremular, ela sempre estará correta, como corretas são as vidas das pessoas transgêneras". Para Angela Autran Dourado, companheira amorosa, sensível e verdadeira de muitas décadas, cujo apoio incondicional tornou possível a família, o mestrado, esse livro e a minha travessia. Para Rachel, Raphael e Samuel, filhos que certamente toda pessoa, transgênera ou não, gostaria de ter. Para Helena, Davi e Vitor a fim de conhecerem e entenderem melhor a história do seu avô, quando chegar o momento. À memória do meu pai, Geraldo, o melhor homem que conheci em toda a minha vida, que sempre me aceitou e me amou de todo o coração, apesar do esforço que teve que fazer, desde o começo, para me entender com a cabeça. À População Transgênera do Brasil, especialmente às nossas travestis históricas, cuja luta para viver com dignidade, tendo os seus direitos civis reconhecidos e respeitados pela sociedade, tem sido o meu grande estímulo para levar adiante o Movimento Transgênero no Brasil. À minha mãe, Adir, para que ela possa compreender melhor a pessoa que eu sou. Agradeço a todas as pessoas que, durante os quatro anos em que estive mais diretamente empenhada na elaboração deste trabalho, compartilharam comigo um pouco do seu tempo, do seu conhecimento, da sua criatividade e do seu carinho, facilitando e viabilizando a sua realização. Em especial, agradeço o meu anjo da guarda, Profª Drª Maria Rita César, por ter me acolhido e ajudado num dos momentos mais difíceis da elaboração da minha dissertação de mestrado; à Profª Drª Marlene Tamanini, por ter me ajudado a compor uma dissertação suficientemente boa, dentro dos padrões metodológicos que ela conhece e domina com tanta maestria e à Profª Drª Miriam Adelman, por ter me aceito como sua orientanda no programa de pós-graduação do Departamento de Ciências Sociais da UFPR. Também quero agradecer ao Adilson Fernandes, por suas competentes e oportunas revisões de texto e ao Lucas Pontes, pela linda foto e por autorizar o seu uso na capa do livro. Agradeço também, de todo o meu coração, às pessoas do meu círculo de amizades, que continuam a gostar de mim, a me acolher, a me aceitar e a conviver comigo e com a minha família, independentemente da forma com que eu passei a me apresentar no dia a dia. Agradeço, por fim, aos meus clientes de consultoria e analisandos, que continuaram me prestigiando, permitindo que eu exercesse os meus ofícios, num relacionamento de confiança e respeito, sem jamais confundirem a minha mudança de identidade de gênero com a minha competência profissional. Letícia Lanz, julho de 2015. Entradas Introdução 11 Prólogo: Viajando ao Território Transgênero 17 Nem Homem, Nem Mulher, Nem Outro Gênero Qualquer 25 Pratos Principais Objeto e Campo dos Estudos Transgêneros 33 Sexo, Gênero e Orientação Sexual 37 Discussão Crítica sobre Sexo, Gênero e Orientação Sexual 47 A Abordagem Essencialista 49 A Abordagem Construtivista 54 A Abordagem Pós-Estruturalista 59 Especial Judith Butler 63 Transgênero e Cisgênero 69 Um Breve Histórico de Transgênero 79 O Uso do Termo Transgênero no Brasil 93 Desvio Social de Conduta 101 A Transgressão como Matriz da Transgeneridade 111 Especialidades da Casa A Formação das Identidades Transgêneras 121 1. Corpo 135 1.1 Homem e Mulher Já Tiveram o Mesmo Corpo 140 1.2 Corpo Não Existe e Gênero Não Está no Corpo 144 1.3 Simbologia, Significados e Transformações do Corpo 147 1.4 Corporificação e Corporalidade 155 2. Roupa 171 2.1 Roupa e Expressão de Gênero 179 2.2 Travestilidade: a Roupa no Corpo Errado? 187 2.3 Travestismo Ritual 196 3. Identidade de Gênero e Sexualidade 203 4. Status Socioeconômico 225 5. Família e Socialização 231 6. Escola 247 7. Armário e Transição 257 7.1 Autodepressão e Autoaceitação 267 7.2 Assumir-se, Revelar-se e Transformar-se 271 8. Passabilidade 285 9. Visibilidade Social da Pessoa Transgênera 297 Complementos Dialogando com os Estudos Existentes no Brasil 309 Estudos sobre a Identidade Travesti 313 Estudos sobre a Identidade Transexual 329 Origens da Transexualidade 332 A Identidade Transexual no Brasil 339 Estudos sobre a Identidade Crossdresser 353 Identidades? Para que identidades? 365 Sobremesas (in)Conclusões 373 Epílogo: O Corpo da Roupa 383 Dicionário Transgênero 399 Bibliografia Geral 433 Notas 446 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Introduçao O exótico expõe, da maneira mais óbvia possível, a artificialidade do convencional. O convencional, por sua vez, parece tão natural que mascara a sua própria condição de mera construção social. Shari L. Thurer, em The End of Gender1 E xpressões transgêneras são cada vez mais explícitas e visíveis na paisagem do mundo contemporâneo. Apoiadas nos avanços sociais dos últimos tempos, particularmente nas conquistas do Movimento Feminista, mais e mais pessoas transgêneras, de ambos os sexos, em todas as faixas etárias e classes sociais, estão abandonando seu autoexílio no armário e assumindo publicamente suas identidades gênerodivergentes, até agora mantidas em estrito, vergonhoso e sofrido sigilo. Em toda a história da humanidade sempre existiram identidades gênero-divergentes, mas, com raríssimas exceções, sempre permaneceram na penumbra, à margem da vida sociopolítico-cultural, sem direitos civis e profundamente marcadas por um forte estigma. Somente a partir do final do século XX, na esteira das conquistas feministas, pessoas transgêneras começaram a sair do armário em maior número, desafiando abertamente a dicotomia homem-mulher que caracteriza o sistema binário de gênero em vigor na sociedade. Como nunca aconteceu antes, em nenhuma outra época, a cada dia, nesta segunda década do século XXI, mais pessoas de todas as idades, etnias, crenças religiosas e classes sociais, estão se abrindo para o mundo, revelando a sua condição transgênera para suas famílias, amigos, colegas de escola e de trabalho. As pessoas transgêneras definitivamente estão se tornando cada vez mais visíveis na sociedade. Esse crescente convívio entre os padrões clássicos de homem e mulher e toda uma multiplicidade de expressões de gênero não convencionais, tende a agravar ainda mais as inevitáveis tensões já existentes entre valores e estilos de vida tradicionais e reivindicações de inclusão social de um extenso segmento de pessoas gênero-divergentes, a quem historicamente sempre foi negado lugar e voz na ordem social. 11 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Um dos reflexos do ganho de visibilidade da diversidade de gêneros na sociedade contemporânea é o crescente interesse social, político e cultural pelas identidades transgêneras. As representações populares de pessoas transgêneras são cada vez mais frequentes em novelas, programas de variedades e reality shows. Do ponto de vista acadêmico, o tema da transgeneridade também tem sido tratado exaustivamente, das mais variadas formas e sob os mais diversos enfoques, dentro da trilha dos estudos relacionados a gênero, inaugurada pelo Movimento Feminista. Contudo, do ponto de vista prático, pouca coisa está sendo alterada na mecânica social de aceitação e inclusão das pessoas transgêneras como resultado do ganho de visibilidade da sua própria condição. Na realidade, a despeito do interesse cada vez maior pelo tema e dos significativos avanços em termos de aumento da sua visibilidade social, as pessoas transgêneras ainda padecem de níveis altíssimos de preconceito, discriminação e exclusão social. A segregação e a intolerância continuam muito presentes no dia a dia dessas pessoas, tanto nas suas relações familiares, interpessoais e grupais (hostilidade nas ruas, incompreensão doméstica, isolamento no trabalho, etc), quanto na legitimação e legalização de seus direitos (tratamento amplamente desigual perante instituições públicas e privadas, impedimento do direito da escolha do gênero no ato de emissão de documentos oficiais, repressão ao exercício pleno da liberdade de expressão assegurada pela Constituição, etc). Enfim, ao trocarem a invisibilidade social do armário pelo contato direto e permanente com o mundo real, travestis, transexuais, crossdressers, andróginos, dragqueens, transformistas e inúmeras outras identidades gênero-divergentes, isto é, fora do binômio oficial masculino/feminino, vão perdendo a mística de exóticas, perversas e bizarras criaturas que povoam o imaginário popular para tornar-se um dos focos de maior potencial de conflito dentro da sociedade contemporânea. De onde vêm, o que fundamenta, como se explica e por que se justifica o estigma, a invisibilidade social, a privação de oportunidades e a indigência legal e moral a que estão condenadas as pessoas transgêneras na nossa sociedade? Por que, em pleno século XXI, continua sendo prática corrente a interdição e a negação aos direitos civis dessa população, direitos esses que são amplamente assegurados, sem nenhuma restrição, a homens e mulheres cisgêneros? 12 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Vivendo há muito tempo em regime de tempo integral no gênero oposto àquele em que fui classificada ao nascer, sempre me intrigou, de um lado, o caráter transgressivo da condição transgênera em relação aos rígidos padrões socioculturais das normas binárias de gênero e, de outro, o caráter patológico que a sociedade impõe às pessoas transgressoras, mediante a inserção das diversas identidades e expressões transgêneras nos códices internacionais que descrevem e classificam os distúrbios físicos e mentais (DSM-IV e V e CID-10). Ou seja, é lícito pensar que rotular pessoas que infringem as normas de gênero como delinquentes, perversas ou doentes mentais é uma forma que a sociedade encontrou, não só de punir sua transgressão, mas também de dissuadir novos potenciais candidatos de cometer infrações semelhantes? Afinal de contas, muitos regimes totalitários ao redor do planeta recorrem aos argumentos de subversão da ordem e de doença mental como forma de punir e retirar de circulação pessoas consideradas como ameaça à ordem vigente. Este trabalho é uma resposta a muitas dessas indagações. Trata-se de uma investigação da transgeneridade como fenômeno de desvio das normas sociais de conduta de gênero, ressaltando a sua natureza essencialmente sociopolítico-cultural e localizando-o fora do domínio dos saberes médicos, onde, infelizmente, continua sendo tratado como perversão, causadora de delinquência social, e de doença mental, na forma de transtorno de identidade de gênero, distúrbio recentemente “amenizado” para “disforia” de gênero. O DSM-V – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, finalmente publicado pela APA – American Psychiatric Association em meados de 2013, passou a denominar o antigo GID – Gender Identity Disorder como GID – Gender Identity Disphoria. Como se vê, a rigor, nem a sigla foi alterada. Ainda há a esperança de que o CID, Classificação Internacional de Doenças, publicado pela OMS – Organização Mundial de Saúde, em sua 11ª versão, a ser publicada possivelmente a partir de 2015, elimine da sua lista de patologias mentais o item F.64, no qual as identidades gênero-divergentes são listadas como transtornos mentais. O âmbito do nosso estudo é o território transgênero, composto por identidades gênero-divergentes ou identidades transgressoras do dispositivo binário de gênero. Entende-se por identidades transgêneras aquelas identidades de gênero que se constituem a partir de alguma forma de 13 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz transgressão, desvio ou violação das normas de conduta estabelecidas pelo dispositivo binário de gênero masculino-feminino. Em vez de se conformarem tacitamente com essas normas como, pelo menos teoricamente, acontece com a maioria cisgênera da população, as pessoas transgêneras se caracterizam pela sua não conformidade a essas normas, por afrontá-las ou transgredi-las, confrontando-as de muitas e de variadas maneiras, praticando atos considerados delituosos pela sociedade, que vão desde faltas muito superficiais, como vestir-se, eventualmente, com roupas culturalmente designadas para o gênero oposto ao delas, até a total insubmissão à ordem binária de gêneros, com total repúdio ao enquadramento de gênero recebido ao nascer e a consequente busca pelo reenquadramento na categoria de gênero oposta àquela na qual a pessoa foi originalmente classificada. Na condição de pessoa transgênera, minha primeira justificativa para o desenvolvimento deste trabalho é necessariamente de ordem pessoal. Para mim é uma questão ética da maior importância poder compreender – e discernir – sobre a humanidade que reside debaixo da minha própria pele. Acredito, porém, que este trabalho também se justifica em outras dimensões, muito mais significativas até do que esse meu pleito de ordem pessoal. Trata-se de um estudo voltado para a afirmação da disciplina de Estudos Transgêneros no Brasil, cujo objeto é o “T” do acrônimo LGBT que, internacionalmente, está para transgênero. O uso desse termo ainda sofre grandes restrições aqui no Brasil, principalmente de alguns autodenominados “movimentos organizados”, que hoje se apresentam como representantes oficiais e interlocutores das identidades travesti e transexual, especialmente MtF, em organismos municipais, estaduais e federais, e que ignoram, pura e simplesmente, a existência de quaisquer outras identidades gênero-divergentes além dessas duas. Apesar das resistências, totalmente irracionais, indevidas e desnecessárias, sob a alegação vaga e absurda de que a adoção do termo transgênero “sufocaria” as “lutas históricas” das travestis e transexuais, acredito no enorme potencial do guarda-chuva transgênero para agregar e representar o amplo espectro das identidades gênero-divergentes no Brasil, como já ocorreu em muitos outros lugares do mundo. A tendência que se afigura como irreversível é que o termo transgênero também se torne 14 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz entre nós um elemento fortemente catalizador, mobilizador e desencadeador de um movimento social robusto, capaz de sensibilizar a sociedade, fazer reivindicações junto aos poderes públicos e resgatar o respeito aos direitos civis da população transgênera. Ainda que o seu alcance não seja tão amplo como eu gostaria, é possível identificar neste trabalho interfaces e desdobramentos da maior importância para a realização de estudos futuros, que focalizem a condição transgênera como um todo, sem vinculações específicas a essa ou àquela identidade gênero-divergente. Dessa forma, ele poderá servir como estímulo para que a condição transgênera passe a ser estudada no meio acadêmico brasileiro dentro de uma perspectiva mais ampla e inclusiva, sem os vieses produzidos por enfoques fortemente influenciados por movimentos identitários com tendências hegemônicas, como ainda é fato comum hoje em dia. Letícia Lanz julho de 2015. 15 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz 16 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Pro logo: Viajando ao Territorio Transgenero É só como história contada que podemos existir. Por isso, escolhi buscar os invisíveis, os sem voz, os esquecidos, os proscritos, os não contados, aqueles à margem da narrativa. Eliane Brum, em Meus Desacontecimentos – A história da minha vida com as palavras 2. D os meus sessenta e três anos de vida, cinquenta foram passados no armário. Por meio século, vivi reprimida e recalcada, sentindo-me vigiada e aterrorizada por normas de conduta da “masculinidade”, com as quais eu jamais me identifiquei, mas às quais, por falta de estrutura psíquica, acabei me submetendo no início da fase adulta. De um lado, premida pela sensação de impotência em lutar numa guerra que eu via como perdida antes mesmo de ser iniciada. De outro, para conseguir sobreviver, com um pouco de segurança e dignidade, em um mundo absolutamente cisgênero, heteronormativo, patriarcal e machista. Sem compreender quem eu era, e desconhecendo inteiramente de onde vinha o mal-estar que eu sentia em relação ao rótulo de “menino” que me havia sido dado ao nascer, por cinco décadas eu me resignei a viver como homem, mesmo tendo a clara percepção íntima de não pertencer ao universo masculino, de não ter nada a ver com ele. Na minha infância, tudo que eu sabia de mim era aquela necessidade incontrolável de fazer coisas que os adultos imediatamente repeliam e censuravam, dizendo tratar-se de “coisa de mulherzinha”. Sendo apenas uma criança, eu não entendia como podia ser censurada por coisas que eu fazia com tanta naturalidade, como se tivessem sido feitas sob medida para mim – ou eu para elas. Como se fossem parte de mim e eu, delas. Mas eu sentia um prazer enorme fazendo aquelas coisas porque eu sabia, intuitivamente, que, através delas, eu conseguia expressar externamente a pessoa que eu sentia ser por dentro. Passar tanto tempo no armário não me fez esquecer nem um pouquinho de quem eu sempre fui. Mesmo confinada naquele vácuo de espaço e de tempo, inteiramente desempoderada para me assumir de corpo e alma, nunca deixei de esperar por mim mesma, de procurar, ainda que sem esperança, uma chance de algum dia conseguir expressar livremente quem eu realmente era. 17 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Obrigada a ser e a agir “como homem”, tive que conter desde muito cedo a irresistível atração que eu sempre senti pelo universo feminino. Pouco a pouco, fui entendendo, desolada, que só fêmeas biológicas, isto é, pessoas que nasciam com uma vagina, podiam ter acesso àquele mundo que me fascinava. E eu tinha nascido com um pênis. No meio dos meus tormentos de adolescente, sem ter nenhum conhecimento ou informação a respeito do que se passava comigo, e sem me sentir segura para me abrir com outras pessoas, por gostar tanto de coisas de mulher eu cheguei a pensar que eu fosse viado3, embora jamais tivesse sentido atração física ou emocional por homens. Como acontece ainda hoje, viado, naquela época, designava, indistintamente, todo homem que parecesse diferente dos outros homens, que saísse fora, o mínimo que fosse, dos rígidos padrões e normas de conduta da masculinidade. E não existia nada mais “diferente”, nada mais fora da conduta socialmente esperada de um homem, do que um menino que sonhava em ser menina. Isso me deixava confusa, ao mesmo tempo deprimida e revoltada, pois eu vivia permanentemente atraída pelas mulheres, não só pela companhia delas, que eu queria para tudo, inclusive para fazer sexo, mas também pelo desejo, intenso, imenso, rigidamente controlado, duramente reprimido e recalcado, de me tornar uma delas. Demorou muitas décadas para que “a minha ficha caísse” e eu finalmente compreendesse que não era nem homem nem mulher, mas uma outra categoria qualquer, para a qual a sociedade até hoje não tem nome nem definição exatos. Levou tempo demais até que eu me descobrisse, me compreendesse e me aceitasse como uma pessoa “transgressora” do dispositivo binário de gênero, socialmente desviada das normas de conduta da masculinidade, categoria de gênero em que fui enquadrada ao nascer em razão de ter um pênis. 18 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Hoje, que posso finalmente me considerar dona da minha própria história, brinco dizendo que não sou homem, nem mulher, nem trans, mas Letícia Lanz, estágio atual de uma longa e interminável construção de mim mesma. Dar nome e definir a identidade de gente como eu implica mexer – e mexer profundamente – no imenso castelo social que está erguido sobre o dispositivo binário de gênero, do qual a sociedade, tal como conhecemos, depende para o seu “perfeito funcionamento”, para continuar de pé. Por colocar em risco esse mesmo dispositivo, ameaçando a estabilidade de toda a imensa estrutura social, política, cultural e econômica sobre ele erguida, gente igual a mim tem sido considerada infratora da ordem vigente, tratada como doente mental e rotulada de coisas como perversa, depravada e delinquente. É sobre essa gente que eu vou falar. É a essa gente, à qual eu pertenço, que eu desejo dar voz. Muito se escreveu e ainda se escreve no Brasil sobre travestis, transexuais, crossdressers, dragqueens e transformistas, mas praticamente não há registro escrito a respeito da pessoa transgênera – ou transgeneridade –, como é internacionalmente conhecido o fenômeno sociológico de desvio ou transgressão do dispositivo binário de gênero, fato que caracteriza todas as identidades anteriormente enumeradas e que faz com que elas sejam marginalizadas, excluídas e estigmatizadas pela sociedade. O que caracteriza a pessoa transgênera é a transgressão de normas do dispositivo binário de gênero – homem/mulher ou masculino/feminino. Tal desvio, não importa em que grau ou de que forma ocorra, é sempre duramente rechaçado, reprimido e castigado por atingir frontalmente o principal pilar da organização sociopolítica do mundo em que vivemos: a divisão dos seres humanos em dois e somente dois grupos de pessoas, homens e mulheres. Essa divisão, conhecida como “divisão por gênero”, é antes de tudo um sistema de controle dos indivíduos e, como tal, quem escapa da sua órbita coercitiva será “gentilmente convidado” a voltar para a “normalidade”, ou seja, para o cumprimento cego e totalmente acrítico das normas de conduta vigentes. Nesse sentido, um homem usando saias é prontamente considerado como sociodesviante, por descumprir ou afrontar o código de vestuário estabelecido para a 19 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Nem Homem, Nem Mulher, Nem Outro Genero Qualquer Penso que estamos vivendo os últimos dias do que poderia muito bem ser chamado de "era da identidade". Kate Bornstein, em My Gender Workbook 7. O que é ser homem? O que é ser mulher? O que distingue uma identidade da outra? Indigestas, incômodas e totalmente sem respostas definitivas, essas perguntas têm estado cada vez mais na pauta do dia da sociedade contemporânea. Talvez você faça parte da grande maioria de pessoas que, em virtude do condicionamento sociopolítico-cultural recebido até antes do seu próprio nascimento, acredita que ser homem ou ser mulher é algo inexoravelmente associado ao órgão genital que traz entre as pernas. Praticamente todo mundo acredita que alguém é homem porque nasceu macho, ou seja, com pênis, ou que é mulher porque nasceu fêmea, isto é, com vagina. Por mais rústico e primitivo que seja esse método – e é – o órgão genital continua sendo usado como único referencial na hora de definir o destino de uma pessoa durante sua vida neste planeta. Diante da fartura de conhecimento, no mundo de hoje, sobre a complexa constituição e funcionamento da pessoa humana, chega a ser ridículo e grotesco a sociedade continuar se valendo de um simples órgão genital como critério de diferenciação, classificação, hierarquização e atribuição de papéis e funções sociopolíticoSerá justo que a sociedade culturais. Assim, como acontece há milênios, defina o destino de uma pesem pleno século XXI, se a pessoa tiver um pê- soa exclusivamente em função do seu órgão genital? nis, será classificada no gênero masculino ou homem, da mesma forma que uma vagina determinará sua classificação como membro do gênero feminino, ou mulher. Assim é que, por preguiça, ultrassimplificação e excesso de conservadorismo a sociedade continua praticando o exagero de colocar em dois 25 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz únicos órgãos – a vagina e o pênis – a responsabilidade pela origem e a manutenção de um vasto arsenal de diferenças existentes entre o homem e a mulher, a maioria delas totalmente irreais e sem fundamento. Diferenças que incluem desde coisas ingênuas e prosaicas, como cores e tipos de roupa “próprios” e “impróprios” para cada categoria de gênero, até complexos e refinados atributos físicos, comportamentos, atitudes, estilos de vida e papéis e funções na família e na sociedade. Todo o vasto conhecimento que adquirimos a respeito de nós mesmos e do nosso funcionamento como seres humanos mais do que nos autoriza a concluir que ser mulher ou ser homem está longe de ser um dado inexorável da natureza, como a ordem (ainda) vigente prefere acreditar, tendo em vista a manutenção das estruturas sociais construídas sobre essa divisão arbitrária e espúria dos seres humanos em dois grupos, radicalmente opostos e totalmente irreconciliáveis, com base exclusivamente no pênis e na vagina. Em uma palestra sobre FeminiHOJE EM DIA JÁ NÃO É TÃO FÁCIL lidade, no ano de 1933, Freud afirmaShari Thurer va, com absoluta convicção, que, Houve um tempo em que havia apenas dois gêneros: masculino e feminino. “quando a gente encontra uma pessoa, Homens eram, tipicamente, sujeitos a primeira distinção que fazemos é se grandes e peludos que não necessitaela é homem ou mulher. E estamos vam abaixar o assento do vaso sanitário. Mulheres eram as pessoas meno- acostumados a fazer tal distinção com res e menos peludas, que abaixavam o certeza absoluta”8. De acordo com assento do vaso sanitário para usá-lo. Os membros desses dois grupos só esse testemunho do pai da psicanálise, tinham olhos uns para os outros. Era naquela época devia ser perfeitamenfácil distinguir quem era quem. Hoje te possível distinguir um homem de em dia deixou de ser tão fácil. Homens usam rabo de cavalo e brincos e fre- uma mulher sem nenhum esforço e quentam cursos de como cuidar de com absoluta certeza quanto ao acerto bebês; mulheres exibem tatuagens e bíceps fortes e fumam charutos. Onde dessa diferenciação. quer que a gente olhe – na TV, no No mundo atual, isso tem se cinema, em revistas, em livros de tornado uma tarefa cada vez mais autoajuda – vemos não dois gêneros, mas algo mais próximo de um cruza- difícil e complexa. Hoje em dia, é muimento entre eles, um ponto qualquer to pouco provável que o próprio dentro de um “continuum”. (THURER, Freud tivesse tanta certeza que uma 2005, p. 1) pessoa é homem ou mulher, apenas por uma rápida inspeção visual. 26 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Objeto e Campo dos Estudos Transge neros Tentar ocupar um lugar como sujeito falante dentro do quadro tradicional de gênero é tornar-se cúmplice do discurso que se pretende desconstruir. Susan Stone13 O objeto dos Estudos Transgêneros é a pesquisa e a análise sistematizada das múltiplas dimensões do fenômeno transgênero, considerado como transgressão das normas de conduta do dispositivo binário de gênero, fato que, sociologicamente, configura a gênese da pessoa transgênera ou gênero-divergente. De acordo com o Núcleo de Estudos Transgêneros da Universidade do Arizona (University of Arizona Transgender Studies Faculty Cluster14), os Estudos Transgêneros se ocupam com a diversidade e a contingência de gênero, sexualidade, identidade e corporalidade ao longo do tempo, do espaço, linguagens e culturas, dedicando especial atenção às consequências sociopolíticas, legais e econômicas da não conformidade com as normas de gênero; às narrativas de vida e organização social de pessoas e comunidades transgêneras; às formas de produção cultural que representam ou expressam a diversidade de gênero; à medicalização das identidades transgêneras e despatologização das diferenças corporais; assim como ao surgimento de novas formas de subjetividade corporificada dentro de ambientes tecnoculturais contemporâneos. Como cadeira independente e autônoma, os Estudos Transgêneros começaram a ser introduzidos nas universidades americanas em princípios da década de 1990, apoiados principalmente nos Estudos Feministas e na Teoria Queer15. Segundo a acadêmica transgênera Susan Stryker, da Universidade do Arizona, e uma das principais representantes desta nova disciplina, o propósito central dos Estudos Transgêneros é “mudar as condições da produção de conhecimento sobre o fenômeno transgênero e ampliar o escopo do que é considerado como conhecimento especializado nessa área”16. 33 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Acompanhando o aumento da visibilidade de identidades e expressões transgêneras na cultura popular, através de uma crescente participação de pessoas trans em shows de TV, concursos de beleza, jornais, revistas, filmes, tirinhas cômicas e, naturalmente, na internet, a área dos Estudos Transgêneros está se A MATURIDADE DOS ESTUDOS TRANSGÊNEROS tornando rapidamente um imporBettcher & Garry tante campo de pesquisa acadêOs Estudos Transgêneros surgiram no mica nos EUA, no Canadá e na início dos anos noventa em estreita cone- Europa. xão com a teoria queer. Essa disciplina Em sua obra The Transgenpode ser melhor caracterizada como o ganho-de-voz de (algumas) identidades der Studies Reader (2006), Stryker gênero-divergentes que, há muito tempo, vinham sendo objetos de pesquisa da sexo- esboça os principais fundamentos logia, psiquiatria, psicanálise e teoria femi- dos Estudos Transgêneros definista. O texto pioneiro de Sandy Stone, “O nindo-os como uma área acadêImpério Contra-ataca: Um Manifesto Póstransexual” (1991), buscou ir além do mica inter e multidisciplinar com conhecimento até então existente mediante objeto próprio, que são o corpo, as a introdução do olhar de uma (pós)transexual. Reconhecendo as pessoas memórias e as subjetividades das trans como gente de carne e osso e tendo pessoas transgêneras, surgida a as próprias experiências de transgeneridapartir dos Estudos Feministas e de e opressão transfóbica como ponto de partida, os Estudos Transgêneros objeti- como um desdobramento natural vam abrir um caminho para a teorização da e necessário dos estudos LGBT, condição transgênera capaz de resistir aos mecanismos de transfobia, em vez de re- particularmente a Teoria Queer. forçá-los. A publicação da obra The TransNascidos sob a égide da gender Studies Reader, em 2006, evidencia despatologização da condição o notável crescimento e amadurecimento dessa área de estudos. (BETTCHER & GAR- trans, os Estudos Transgêneros RY, 2009, p. 1) partem corajosamente da premissa de que ser uma pessoa transgênera não significa ser portadora de transtorno mental. Isso significa a rejeição total e absoluta da transgeneridade como condição clínica e transtorno mental, mantida sob a tutela da medicina desde o final do sec. XIX e, de forma ainda mais acentuada, a partir da década de 1950, com os estudos de Harry Benjamim, John Money e Robert Stoller, que impuseram critérios extremamente rígidos para diagnóstico e tratamento das pessoas transgêneras. Essa posição, desenvolvida e sustentada dentro da academia por acadêmicas transgêneras do porte de Susan Stone, permitiu o empoderamento das pessoas trans para 34 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz reivindicarem a posse e o uso dos seus corpos sem a intervenção da medicina. Na prática, portanto, o Movimento Transgênero e os Estudos Transgêneros se completam e se superpõem para todos os efeitos e em todos os sentidos, de modo que podemos afirmar que os Estudos Transgêneros são o Movimento Transgênero dentro da Academia, assim como o Movimento Transgênero são os Estudos Transgêneros na rua, engajados na luta pelos direitos civis da população gênerodivergente. Esse aspecto revolucionário dos Estudos Transgêneros denuncia claramente a sua origem e filiação radical ao Movimento Feminista e à Teoria Queer. Em termos estritamente acadêmicos, os Estudos Transgêneros podem ser considerados como um lugar de fala das pessoas trans dentro da Universidade. Os Estudos Transgêneros vieram conferir identidade própria às identidades gênero-divergentes, estabelecendo, na teoria e na prática, a separação crucial que deve existir entre gênero e orientação sexual. Nem uma determina a outra, nem a outra determina a uma. Entretanto, antes do Movimento Transgênero e dos Estudos Transgêneros, como já mostramos, a tendência era de as identidades e expressões gênero divergentes serem vistas pelo grande público – e abordadas em estudos e pesquisas da própria academia – como simples corolário da homossexualidade. Uma vez constituídos como campo de conhecimento autônomo, é justo e necessário que os Estudos Transgêneros se apropriem e passem a concentrar temas de estudo e pesquisa até hoje dispersos em diversas outras áreas de conhecimento. Temas como conformidade e transgressão de gênero, identidades e expressões gênero-divergentes, travestilidade, transição, passabilidade, inclusão/exclusão das identidades transgêneras no DSM e CID, etc., devendo ainda incorporar, como patrimônio próprio, os numerosos estudos e pesquisas já realizados por diversos especialistas sobre questões relacionadas à transgeneridade. Embora ainda muito pouco divulgada, é fato notório que, na esteira dos grandes debates, conquistas e avanços feministas, a área dos Estudos Transgêneros está ganhando importância crescente no meio acadêmico brasileiro. Prova disso é a recente e até então inédita realização do I Congresso “Des-fazendo Gênero”, promovido pelo Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande Norte, em agosto de 2013, 35 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz na cidade de Natal-RN. Esse foi o primeiro evento acadêmico, realizado no país, inteiramente dedicado a estudos, análises e debates a respeito das identidades transgêneras. Os Estudos Transgêneros constituem uma área de pesquisa e ensino acadêmico praticamente desconhecida e muito pouco difundida no Brasil. Tratando-se de uma disciplina ainda muito recente, não há registro de representação significativa no meio acadêmico brasileiro. Pelo que pudemos apurar, a disciplina de Estudos Transgêneros ainda não aparece oficialmente em nenhuma ementa de curso universitário do país, nem como matéria curricular, nem como matéria opcional. Por sua vez, a bibliografia da área de Estudos Transgêneros também é ainda muito pouco conhecida e divulgada no Brasil, embora contenha títulos que, isoladamente, já são bastante conhecidos em outras áreas do conhecimento. É o caso de autores importantíssimos, como Susan Stryker, Kate Bornstein, Virginia Prince, Leslie Feinberg, David Valentine, Sandy Stone, Patrick Califia, Rita Felski, Viviane Namaste, Patricia Soley Beltran, dentre outros, cujos estudos em grande medida forneceram as bases teóricas para a realização deste trabalho. Os Estudos Transgêneros abordam, dentre outros, temas como transgressão e conformidade de gênero; sexo, gênero e orientação sexual; assumir e transicionar; roupa como veículo de expressão de gênero; subjetivação; corpo e corporalidade; travestismo; passabilidade e visibilidade social das pessoas gênero divergentes. Tendo como referência o enfoque que esses temas têm adquirido dentro da área de Estudos Transgêneros, iremos, em seguida, abordar cada um deles, olhando simultaneamente a questão central deste trabalho, que é a compreensão da pessoa transgênera como alguém em permanente conflito entre a transgressão e a conformidade com as normas de conduta do dispositivo binário de gênero. 36 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Sexo, Ge nero e Orientaça o Sexual Uma coisa é uma coisa e outra coisa não é a mesma coisa que a coisa. Letícia Lanz S exo não é nada disso que andam dizendo por aí. E o problema maior é que todo mundo está convencido de que já sabe tudo a respeito de sexo. Sabe tanto, que não é preciso perguntar nem comentar nada de sexo com ninguém, uma vez que todo mundo já deve saber tudo sobre sexo também. Tanto quanto a própria pessoa sabe... Apesar da “extraordinária bagagem de conhecimento sobre sexo” que cada pessoa acha que tem, é preciso reconhecer que um dos maiores não ditos a respeito de sexo é exatamente que ninguém sabe nada sobre sexo. Ou, pelo menos, que saiba algo minimamente consistente e verdadeiro, pois todo esse vasto “conhecimento generalizado” não passa de lixo informativo da pior espécie, criado e mantido por fantasias, crenças absurdas, preceitos religiosos sem fundamento, preconceitos e superstições de toda ordem. Assim, apesar de estar direta e indiretamente presente na maioria das nossas conversas diárias (junto com as “condições do tempo”, sexo pode ser considerado como “assunto universal”...), ninguém fala realmente sobre sexo, mas sobre o que acha que sexo é, com base em um monte de informações absolutamente distorcidas e inverídicas. Em qualquer ambiente em que seja pronunciada, sexo é uma palavra pesada, não apenas pelo conteúdo pornográfico imediatamente deduzido pelos interlocutores, mesmo quando não há nada de libidinoso na fala, mas também por trazer embutido uma multidão de significados que, uma vez dissecados, não guardam nenhuma relação direta com o que sexo realmente é. No entanto estão lá, firmes e vigilantes, transformando a fala num labirinto incompreensível, que todo mundo finge entender só para não deixar transparecer que não sabe nada a respeito de sexo, o que parece ser uma vergonha imperdoável para a maioria das pessoas. Apesar de grande parte das conversas girarem em torno de sexo, nada é dito nem falado sobre sexo: apenas conjecturado. E talvez o sexo 37 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz não seja muito mais mesmo do que uma grande conjectura. Embora a cara de todo mundo seja Vamos combinar uma coisa, de novo e de sempre a de “perfeitos entendenovo e quantas vezes ainda forem necessárias: sexo é uma coisa, gênero é outra coisa e dores e entendidos”, a realidade orientação sexual é outra coisa ainda. Sexo é é que ninguém sabe o que está genital: macho e fêmea (além de intersexuado e nulo). Gênero é social: homem e mulher falando ou o que está ouvindo. ou masculino e feminino. Orientação sexual é Da multidão de significaerótico-afetivo: homo, hetero, bi, assexual, dos embutidos e naturalizados pansexual, etc. Não é porque alguém nasceu macho (i.e., com um pinto) que tem que ser na palavra “sexo”, vamos analisar homem (gênero masculino) e querer a com- três, cujas características, muito panhia de mulher (heterossexual), como consta da regra chamada heterossexualida- especiais, definem os próprios de compulsória, em pleno vigor na nossa contornos do nosso estudo: sexo sociedade. A pessoa pode nascer com um pinto e descobrir (identidade de gênero) que biológico, gênero e orientação não tem a menor afinidade com o gênero sexual. masculino pessoa transgênero = transgresQuando se fala de sexo, o sora de gênero) no qual, por possuir um pinto, a pessoa é compulsoriamente classifi- primeiro significado que está cada ao nascer e, ainda assim, gostar de embutido na fala e, de longe, o mulher para namorar e fazer sexo. Assim como há muitos machos de nascimento (por- mais poderoso e influente de tadores de pintos) que se sentem bem en- todos, é o sexo biológico ou gequadrados na condição de homem mas que nital de cada pessoa, represensentem atração não por mulheres (como estabelece a regra da heterossexualidade tado principalmente pelo órgão compulsória, já mencionada antes) mas por genital que cada pessoa traz enhomens. Da mesma forma, se um macho sente atração por outro macho não quer tre as pernas ao nascer. dizer que ele está necessariamente em confliA natureza fornece o sexo to com a sua categoria de gênero (homem) e genital em quatro diferentes verque, portanto, deve mudar de gênero. sões: a) Macho, a pessoa que nasce com pênis; b) Fêmea, a pessoa que nasce com vagina; c) Intersexuado, a pessoa que nasce com pênis e vagina, siVAMOS COMBINAR? Letícia Lanz multaneamente; d) Nulo, pessoa que nasce destituída de qualquer traço genital definido. Além do órgão genital que o bebê traz entre as pernas ao nascer, indicador supremo e soberano da sua condição de macho ou de fêmea biológica, o sexo genital também é representado pelas 38 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Discussao Crí tica sobre Sexo, Ge nero e Orientaçao Sexual Se esperamos que as mulheres façam as mesmas coisas que os homens, elas devem ser educadas da mesma maneira que os homens. Platão, em A República O conceito de gênero como categoria analítica, assim como a diferenciação entre sexo biológico, gênero e orientação sexual, dois debates fundamentais introduzidos pela Teoria e pelo Ativismo Feminista, constituem um importante ponto de partida para o pensamento e o ativismo transgênero. Os Estudos Transgêneros, assim como o Movimento Transgênero já nasceram como grandes beneficiários do Feminismo, tanto como um corpo de ideias quanto como uma bem sucedida estratégia de abordagem política da questão das desigualdades entre homens e mulheres, a qual se aplica integralmente à compreensão e ao combate das desigualdades existentes entre pessoas transgêneras e cisgêneras. O propósito deste capítulo é fazer uma retrospectiva da evolução dos debates Feministas sobre sexo, gênero e orientação sexual, do seu surgimento até os dias atuais. Em geral, o feminismo é dividido em três momentos distintos, chamados de “ondas”. Para o feminismo da primeira onda, tanto o sexo quanto o gênero têm origem biológica e, portanto, as diferenças existentes entre homens e mulheres são resultantes de fatores naturais, ou seja, de atributos geneticamente herdados e imutáveis, responsáveis tanto pelas características físicas quanto pelas características sociopsicológicas que distinguem indivíduos machos de indivíduos fêmeas. O feminismo da segunda onda separa “gênero” de “sexo”, afirmando que gênero é social e sexo é biológico. Embora as feministas da segunda onda tenham introduzido o conceito de gênero como construção social, conferindo importância capital à socialização como mecanismo central 47 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz AS TRÊS ONDAS DO FEMINISMO Krolokke & Sorensen O feminismo da primeira onda vai do final do século XIX até o final da primeira metade do século XX e está relacionado basicamente com os movimentos pelos direitos civis da mulher, nos Estados Unidos e na Europa. Focado essencialmente na igualdade de direitos e oportunidades iguais da mulher em relação ao homem, o feminismo da primeira onda continuou a influenciar sociedades ocidentais e orientais durante todo o século XX e sua influência deve se estender por muito tempo, uma vez que em muitas sociedades a luta por direitos iguais ainda nem começou. O feminismo da segunda onda emergiu nas décadas de 1960 e 1970 dentro de sociedades ocidentais que atingiram alto nível de bemestar social no pós-guerra, onde outros grupos oprimidos como negros e homossexuais estavam se mobilizando e a Nova Esquerda (New Left) estava em ascensão. Essa segunda onda está intimamente relacionada com as vozes radicais pelo empoderamento da mulher na sociedade. Nos anos oitenta e noventa, a segunda onda conheceu a luta das mulheres não brancas e das mulheres do terceiro mundo para se diferenciar seus pleitos e demandas dentro do próprio movimento feminista, constituído até então a partir da ideia de uma “mulher universal”. A terceira onda feminista se instala a partir da metade dos anos noventa em diante, na esteira da nova ordem pós-colonial e pós-socialista do mundo e no contexto da sociedade da informação e da política neoliberal global. O feminismo da terceira onda se apresenta a si mesmo com uma retórica forte, que busca superar a questão teórica da igualdade ou diferença e a questão política da evolução ou revolução, ao mesmo tempo em que desafia a noção de uma “liga universal das mulheres” e abraça a ambiguidade, diversidade e multiplicidade numa teoria e política transversal. (KROLOKKE, 2006, p. 1-2) 48 na criação e na manutenção das diferenças entre os gêneros, elas não dispensam e, pelo contrário, reforçam, a necessidade de um “corpo físico”, de macho ou de fêmea, sobre o qual se dará a “incorporação” do gênero através de aprendizado social. Por sua vez, no pensamento feminista da terceira onda, tanto gênero quanto sexo são considerados como meros discursos normativos, artifícios de linguagem que dão sustentação ao dispositivo binário de gênero, o qual é, em si, um mecanismo de hierarquização e controle social. Sexo e gênero, portanto, não estão diretamente ligados a nenhum inexorável determinismo biológico, mas a um previsível e bem calculado determinismo político-cultural. Examinaremos a seguir esses três modos de abordagem de sexo e gênero que, em nossa exposição, associamos ao pensamento feminista, mas que, naturalmente, encontram raciocínios paralelos, semelhantes e também opostos em outras correntes do pensamento contemporâneo, nas diversas ramificações da atividade acadêmica. O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz A Abordagem Pós-Estruturalista As duas abordagens anteriores – essencialismo e construtivismo social – são amplamente contestadas pelo pensamento pós-estruturalista, que exerce uma enorme influência no feminismo da terceira onda, do qual a filósofa Judith Butler é uma das figuras de maior expressão. As ideias pós-estruturalistas, em grande parte enfeixadas pela Teoria Queer, defendem que sexo e gênero não têm qualquer base biológica, sendo conceitos política e culturalmente construídos na sua totalidade, ou seja, apenas “discursos normalizadores” de condutas sociais. Assim, em vez de considerar o sexo como biologicamente determinado e o gênero como culturalmente aprendido, a corrente pós-estruturalista sugere que deveríamos ver o gênero – e também o sexo – como meros discursos, social, cultural e politicamente construídos. Para o pós-estruturalismo, não apenas o gênero é um discurso normatizador sem nenhuma base ou essência material, mas também o sexo e até o próprio corpo. Todas essas entidades não tem nenhuma existencia em si próprias, estando sujeitas a forças sociais que, de muitas e de variadas formas, modelam permanentemente a sua configuração. Nem o sexo, nem o corpo, nem a própria biologia existem ou funcionam fora dos seus significados culturais. Tal como o gênero, também são discursos normatizadores e estão sujeitos ao agenciamento humano e às escolhas que as pessoas realizam, individual e coletivamente, em diferentes épocas e contextos sociais. Gênero e sexo constituem um verdadeiro campo de batalha ideológica, em que se trava a luta pela desconstrução de seus significados sociopolítico-culturais. Embora construídos a partir de fatores biológicos, físicos, sociais, psicológicos e culturais múltiplos, variáveis e inteiramente heterogêneos, esses dois conceitos são mantidos e reverenciados pela sociedade como um conjunto discursivo unitário, fixo e livre de contradições e problematizações, tendo em vista a sua função precípua de ordenar, normatizar e manter os indivíduos dentro dos trilhos comportamentais ditados pela ordem vigente. Constituindo o núcleo central do dispositivo binário de gênero, o discurso sexo/gênero é responsável pela criação, naturalização e manutenção de diferenciações artificiais e arbitrárias entre homens e mulheres 59 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Especial Judith Butler Antes de entrarmos nesse resumo básico sobre alguns conceitos fundamentais de Judith Butler é preciso frisar que o esforço intelectual dessa notável pensadora contemporânea nunca foi dirigido para destruir a noção de gênero como construção sociopolítica-cultural, mas para problematizar esse conceito, tão caro quanto necessário ao desenvolvimento do feminismo como um corpo de ideias e uma práxis, dentro do mais puro espírito do processo crítico de Gênero não é algo que a pessoa é, mas desconstrução42 proposto por algo que a pessoa faz: uma ação. Um Jacques Derrida. “fazer”, em vez de um “modo de ser”. A ideia de corporificaJudith Butler (em “Problema de Gênero”) ção social da norma de gênero está no centro do pensamento Ser uma categoria de gênero é um efeida filósofa feminista Judith to. Aceitar esse caráter de gênero como Butler. Em um trecho do seu efeito é concordar que uma identidade ensaio Criticamente Queer de gênero nada mais é do que a própria (1997), a autora afirma que “a expressão desse gênero. formulação do corpo como Judith Butler, 1999, p. 28 um modo de dramatizar ou ratificar possibilidades oferece um modo de entender como uma norma cultural é personificada e ordenada”43. Com efeito, Butler estende o pensamento de Foucault sobre a relação entre sujeito, poder e sexo à questão da relação sujeito, poder e gênero. Aliás, para Butler, sexo sempre foi gênero, uma vez que os padrões de conduta de gênero são impressos no corpo, que os incorpora e os repete mecânica e compulsoriamente, do berço ao túmulo. Argumentando que não há nada que possa ser chamado de “sexo verdadeiro” por trás da identidade de gênero, que possa ser tomado como a causa e a base biológica do gênero, Butler afirma que, muito ao contrário, a identidade de gênero, construída como um ideal normativo e regulatório nas redes de poder/saber, é que seria a base da existência do sexo. Gênero não está para a cultura como o sexo está para a natureza; gênero é o meio discursivo/cultural pelo qual a “natureza sexuada” ou o “sexo natural” é construído e estabelecido como “pré63 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz 68 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Transge nero e Cisge nero Transgênero é, antes de mais nada, um termo politicamente engajado, nascido na luta pelos direitos civis das pessoas gênero-divergentes, que são aquelas cuja identidade de gênero assumida não corresponde à classificação recebida ao nascer. Letícia Lanz Q uando falamos de transgênero e cisgênero falamos necessariamente de gênero, conceito do qual essas duas palavras se originam e ao qual estão inextricavelmente associadas. A palavra transgênero (do latim trans = do lado oposto, além) conceitua e descreve o comportamento da pessoa gênero-divergente, isto é, aquela cuja identidade e/ou expressão de gênero apresenta algum tipo de divergência, conflito ou não conformidade com as normas socialmente aceitas e sancionadas para a categoria de gênero em que foi classificada ao nascer. Essas normas estabelecem, por exemplo, que homens não devem vestir-se, maquiar-se ou comportar-se socialmente como mulheres. Diante dessa interdição, independentemente dos motivos que o levam a isso ou da frequência com que o faz, um homem que se veste como mulher, buscando expressar-se como mulher, está claramente transgredindo as normas de conduta do dispositivo binário de gênero. Assim, o que identifica e distingue a pessoa transgênera dentro da sociedade é a transgressão de gênero, a sua ousadia, insistência e determinação em confrontar o dispositivo binário de gênero, instituído e mantido pela sociedade como forma de classificação e hierarquização dos seres humanos, tendo como referência única e exclusiva o órgão genital que cada indivíduo traz entre as pernas ao nascer. Esse fenômeno de desvio social de gênero é conhecido como transgeneridade e é capaz de causar sérios transtornos à saúde física e mental das pessoas gênero-divergentes, cuja superação inclui a adoção de canais de expressão que lhes permitam elaborar e manifestar pelo menos os aspectos mais conflituosos da sua transgeneridade. Em casos extremos, a eliminação do sofrimento psíquico das pessoas transgêneras poderá exigir a cirurgia de reaparelhamento genital. A transgeneridade é 69 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz um fenômeno extremamente amplo, podendo apresentar uma imensa variedade de manifestações. Transgênero não é uma caLeslie Feinberg, transhomem e ativista tegoria identitária de gênero, transgênero norte-americano, autor do mas a condição sociopolíticaManifesto Transgênero, também aponta para a “transgressão” do dispositivo cultural do indivíduo que transbinário de gênero como sendo o “deslize” gride o dispositivo binário de de comportamento que coloca a pessoa transgênera no epicentro de um verda- gênero, ou seja, que se desvia das deiro “terremoto existencial”: normas oficiais de conduta de gênero, - homem/mulher ou Estamos falando de pessoas que desafiam os limites artificiais e arbitrários de gêne- masculino/ feminino. O termo ro. Gênero diz respeito a autoexpressão, transgênero pode ser visto como não a anatomia. A vida inteira a sociedade tem nos ensinado que sexo e gênero são um imenso guarda-chuva para inúsinônimos. Homens são "masculinos" e meras (des)identidades de gênero, mulheres são “femininas”. Cor-de-rosa constituídas a partir da negação, do para as meninas e azul para os meninos. Essas coisas “são naturais”, é o que dizem. desvio e/ou da afronta ao dispositiMas na virada do século XIX, o azul era vo binário de gênero, oficialmente considerado cor de menina e rosa, de menino. Códigos de gênero, rígidos e sim- estabelecido, legitimado e legalizaplistas, não são nem eternos, nem naturais. do pela sociedade. Nesse conceito São eles que estabelecem e fixam conceitos e comportamentos sociais. São eles que guarda-chuva se abrigam todas manifestações gênerodeterminam que não há nada de errado as com homens que são considerados "mascu- dissidentes que se conhece, deslinos" e mulheres cuja autoexpressão está dentro da faixa do que é considerado de o CD de armário até a transe"feminino". O problema é que as tantas xual operada, passando pela trapessoas que não se encaixam nesses estreitos parâmetros sociais sofrem uma gama vesti e pela dragqueen. Justade perseguições e violências. Isso levanta a mente por abrigar, indistintaquestão: quem decidiu qual é a "norma" mente, todas as identidades gêque deve prevalecer? Por que algumas pessoas são punidas pela expressão da sua nero-divergentes, transgênero é identidade de gênero? (FEINBERG, 2006, internacionalmente adotado copp. 205-206) mo o “T” da sigla LGBT. O termo transgênero também vem sendo utilizado para classificar pessoas que de alguma forma, não se reconhecem e/ou não podem ser socialmente reconhecidas nem como homem, nem como mulher, pois a sua identidade de gênero não se enquadra em nenhuma das duas categorias disponíveis. 70 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Um Breve Historico de Transge nero Desde muito tempo, a população transgênera é confundida ou simplesmente tratada como homossexual. Em razão disso, a principal meta das pessoas transgêneras deveria ser o resgate da sua própria história, da Antiguidade até o presente. Leslie Feinberg 59 C omportamentos que bem podem ser considerados como manifestação de transgeneridade sempre fizeram parte da história da civilização. Contudo, as reações da sociedade sempre estiveram (como ainda estão) muito longe de ser homogêneas. Enquanto em diversos locais e épocas as pessoas transgêneras foram naturalmente incluídas e aceitas pela ordem social vigente, sendo até mesmo reverenciadas como interlocutoras das divindades, em outros foram duramente rechaçadas, combatidas e punidas pela sua transgressão de gênero. Ao longo da história, têm sido registradas, inúmeras culturas nas quais prevalece a diversidade de gênero, ou seja, nelas as pessoas não estão confinadas a apenas duas categorias de gênero – homem e mulher ou masculino e feminino: outras categorias de gênero são aceitas de maneira absolutamente natural. A Índia, onde as hijras foram recentemente reconhecidas oficialmente como uma 3ª categoria de gênero; as tribos norte-americanas, em que os berdaches ou two-spirit people ainda hoje continuam a ser considerados como pessoas com dons especiais e as ilhas Samoa, com seus fa’afafine60, são exemplos de sociedades em que o gênero não acompanha o sexo genital. Em muitas dessas culturas, inclusive, outras categorias de gênero além do binário masculino-feminino têm sido celebradas e veneradas como representantes de uma ligação direta com os deuses. Ao contrário, na nossa cultura ocidental, pessoas que não se ajustam à categoria de gênero que lhes foi designada ao nascer em função do seu sexo genital são consideradas sociodesviantes, ou seja, transgêneras – transgressoras da ordem social, em franca dissonância com as pessoas cisgêneras, que são aquelas pessoas bem-ajustada à categoria de gênero que receberam ao nascer. 79 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Ao mesmo tempo em que pessoas transgêneras puderam A natureza contemporânea do termo desempenhar papéis de destaque "transgênero" e sua especificidade cultural nos rituais religiosos do antigo tornam complicadas e complexas quaisquer tentativas de escrever a “história Oriente Médio, em diversas cultutransgênera". Devemos incluir ou não ras indígenas norte-americanas e indivíduos de séculos passados que poderiam ser classificados como transgêneros, nas populações nativas da Oceafavorecendo o nosso ponto de vista, mas nia, na Europa católica foram enque do ponto de vista deles jamais conceberam seu modo de vida sob tal perspecti- viadas para a fogueira, deportadas va? E o que dizer de pessoas que hoje estão ou simplesmente atiradas aos perfeitamente enquadradas como transgêmastins, como fizeram os colonineras, mas que por inúmeras razões rejeitam tal classificação, incluindo a percepção zadores espanhóis com nativos da de ser um termo ocidental e “branco de América Central e do Norte. classe média”? Essas pessoas devem ficar De acordo com estatísticas de fora da "história transgênera", porque não se identificam especificamente como 61 - International Lesbian, da ILGA transgêneros? Tendo em vista as ricas histórias de indivíduos que se perceberam Gay, Bisexual, Trans and Intersex e foram percebidas por suas sociedades e Association, em pleno século XXI, a épocas como gênero-divergentes, não seria adequado limitar a "história transgênera" transgressão de gênero, ao lado de para pessoas que viveram em um tempo e transgressões da “heterossexualilugar onde o conceito de "transgênero" esteve disponível e foi por elas utilizado. dade compulsória”, continua senMas, ao mesmo tempo, também seria ina- do crime sujeito a penas que varipropriado assumir que pessoas "transgêneras", dentro da concepção atual do ter- am de prisão, castração química, mo, existiram ao longo da história açoites físicos e até pena de morte (BEEMYN, 2013, p. 113). em mais de 80 países, dentre os quais estão incluídos a Rússia, a Indonésia, o Paquistão, Cingapura e Arábia Saudita. Mesmo em países onde não existe especificamente uma legislação antitransgênera, e até mesmo naqueles em que já existe uma legislação de proteção às identidades gênero-divergentes, os usos e costumes que sustentam as normas culturais podem ser tão arraigados que simplesmente desconhecem os limites impostos pela lei. Na maioria das tribos nativas da América do Norte, identidades sexuais e de gênero que hoje conhecemos como transgêneros, gays, lésbicas e bissexuais eram reverenciadas como pessoas-de-dois-espíritos (two spirit people). Apelidadas pelos colonizadores espanhóis de berdaches, desempenhavam, como ainda desempenham, importantes funções de curandeiros-xamãs, conselheiros e interlocutores com os deuses. Essas ESCREVER A HISTÓRIA TRANSGÊNERA Genny Beemyn 80 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz pessoas, tanto machos quanto fêmeas, tinham autorização cultural para misturar categorias de gênero, podendo livremente vestir roupas de gêneros opostos ou de ambos e se engajarem livremente em relações homossexuais. Na maioria das culturas nativas norte-americanas, estavam associados a mitos da criação e lendas de origem da tribo. Um mito da criação da tribo Zuni, do Novo México, relata que na origem dos tempos as primeiras criaturas eram de dois espíritos, nem macho nem fêmea, mas ambas as coisas. Fortemente ancorados na moral cristã da santa inquisição (a mesma que "despachou" para o Brasil, em regime de desterro, centenas de homossexuais condenados nos processos guardados na Torre do Tombo...), os colonizadores espanhóis trataram os berdaches com total desprezo e violência, sem levar em conta o status altamente respeitável, de natureza mágico-religiosa, que essas pessoas desfrutavam em suas tribos. Em um posicionamento radicalmente oposto ao das tribos norteamericanas, a lei mosaica que governava as tribos israelitas estabelecia severas proibições a quaisquer manifestações de transgeneridade, condenando abertamente o travestismo, como sendo uma prática abominável aos olhos de Jeo- Junto aos seus cortesãos, o colonizador espanhol Vasco Nuñez de Balboa (1475-1519) assiste um vá62. Diversos historiadores grupo de berdaches ser destroçado pelos seus masdestacam que essa abomi- tins. (Gravura de Theodore de Bry) nação bíblica do travestismo está claramente relacionada à afirmação do patriarcado que, através do colérico e guerreiro deus Jeová, lutava para se impor e substituir o culto à Deusa-Mãe, extremamente difundido e muito popular em todo o Oriente Médio, no qual os sacerdotes homens se travestiam e até mesmo se castravam para servir à Deusa63. Apesar do fenômeno da transgeneridade ser, hoje em dia, muito mais focado em pessoas MtF, ao longo da história sempre predominaram os casos de mulheres que transicionaram para o gênero masculino. Esse 81 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz O Uso do Termo Transge nero no Brasil Embora a sua aceitação venha crescendo substancialmente nos últimos tempos, especialmente em setores mais bem informados e politizados da população, ainda há uma expressiva oposição ao uso de transgênero como termo guarda-chuva, abrigando todas as identidades gênerodivergentes no país. Prova disso, é a aborrecida e incômoda repetição de “tês” na sigla internacional LGBT. É comum ver-se a sigla ser grafada aqui no Brasil como LGBTT, LGBTTT, LGBTTI e até LGBTTIQ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, intersexuados e queer). Isso comprova a recusa sutil e ostensiva que há no Brasil ao reconhecimento de transgênero como termo designativo de todas as identidades gênerodivergentes. Ademais, mesmo quando o termo transgênero é utilizado, seu significado sociopolítico original é quase sempre adulterado. Assim, a palavra transgênero é frequentemente empregada como sinônimo de transexual, como sinônimo de crossdresser e até adotada por travestis, geralmente na forma contraída "trans", como maneira de se apresentarem à sociedade sem o pesado estigma que a palavra travesti possui entre nós. Seria mesmo preferível que os movimentos oficiais de travestis e transexuais, assim como os órgãos e serviços públicos que executam políticas públicas relacionadas com esses grupos, como é o caso do SUS, omitissem por completo qualquer referência ao termo transgênero, em vez de o empregarem de maneira totalmente inadequada, escrevendo “travestis, transexuais e transgêneros”, como se transgênero fosse uma simples identidade gênero-divergente e, é claro, travestis e transexuais não fossem categorias de pessoas transgêneras. Há grupos nas redes sociais que se intitulam “travestis, transexuais e transgêneros”, sem que seus membros ao menos expliquem o significado que dão à palavra transgênero, como de resto tampouco conseguem fornecer definições minimamente consistentes para “travesti” e “transexual”. Na mídia, onde transgênero é frequentemente traduzido como transexual – como faz, por exemplo, o utilizadíssimo tradutor do Google – muitas vezes o termo chega a ser confundido até com “transgênico”, demonstrando o descuido jornalístico e o descaso pela correta utilização do termo. Até mesmo ilustres representantes do meio médico desconhecem 93 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz e desprezam o uso do termo transgênero no Brasil. Ouvi, recentemente, um renomado “especialista” em transexualidade, dizer que o termo transgênero nem sequer existe oficialmente no vocabulário médico, sendo apenas um termo de uso “popular”. Com essa afirmação, o renomado “especialista” demonstra desconhecer até mesmo a existência do WPATH – World Professional Association for Transgender Health (www.wpath.org), conhecido até recentemente como Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association. Com efeito, é fato amplamente conhecido que essa associação, de cuja fundação, em 1979, participou o próprio Dr. Harry Benjamin, congrega médicos e outros profissionais de saúde do mundo inteiro, especialistas no atendimento de pessoas transgêneras. Sua importância é tão grande no meio médico que ela é a responsável pela emissão dos chamados protocolos de tratamento de pessoas transgêneras (Standards of Care), periodicamente atualizados e atualmente na sua sétima versão. Para os autodenominados “movimentos organizados”, que direta e indiretamente influenciam a mídia e a população em geral, transgênero parece significar uma palavra altamente ameaçadora ao status sociopolítico adquirido por essas entidades. Elas insistem que a introdução desse termo, em vez de fortalecer a defesa dos direitos civis de travestis e transexuais iria destruir sua luta histórica, confiscando-lhes o mérito das conquistas obtidas a tão duras penas. Essa defesa, intransigente e obstinada, da hegemonia identitária de travestis e transexuais, com a exclusão sumária de qualquer outra expressão de identidade gênerodivergente, constitui um dos principais pontos de resistência ao avanço do Movimento Transgênero no Brasil. Essa ostensiva e inoportuna resistência conta muitas vezes com o respaldo dos poderes públicos, de um grande número de profissionais de saúde e até de pesquisadores do meio acadêmico. Surgidos na esteira dos esforços governamentais para dar combate à epidemia de HIV-AIDS, no 94 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Desvio Social de Conduta As pessoas são socializadas no sentido de alcançarem uma plena compreensão das normas e valores da sua sociedade. Mas elas nunca são 100% socializadas. Isso significaria que nenhum membro da sociedade jamais tivesse sequer um único pensamento divergente, e isso não é possível. Èmile Durkheim, em As Regras do Método Sociológico D esde o seu surgimento como disciplina independente, a sociologia tem se dedicado a estudar as causas dos desvios de comportamento, buscando pesquisar e entender a fundo por que algumas pessoas se conformam às normas e expectativas sociais e outras, não. Nas suas Regras do Método Sociológico (1895), Emile Durkheim, o pai da sociologia, concebe todos os tipos de desvio de comportamento como violações das normas sociais. Para ele, qualquer desvio de conduta, inclusive o crime e, por extensão, a doença mental, não têm substância real em si mesmos, ou seja, não existem fora das normas culturais que são, precisamente, aquilo que define a sua existência, a partir do momento em que sofrem transgressão90. Aquilo que é estabelecido como transgressivo ou criminoso independe do comportamento do indivíduo em si, mas dos sistemas de valores de cada coletividade, que compreendem as normas de conduta consideradas apropriadas e não apropriadas, assim como os critérios de aplicação e as formas de sanção aos seus eventuais infratores. Assim, um mesmo tipo de comportamento, manifestado em diferentes contextos e condições socioculturais, pode ser avaliado de maneiras totalmente distintas e até antagônicas, dependendo de como esse comportamento está posicionado no sistema de classificação de condutas próprio de cada sociedade em particular91. 101 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Durkheim oferece uma importante contribuição aos Estudos Transgêneros ao deixar de focalizar a ação individual de cada sujeito como causadora dos desvios, para focalizar as definições políticas e culturais que estabelecem a noção de desvio em cada sociedade em particular, ou seja, movendo, do plano individual para o plano coletivo, o objeto de análise dos estudos sobre desvio social. AS REGRAS SOCIAIS DE CONDUTA Emile Durkheim O sistema de signos de que me sirvo para exprimir meu pensamento, o sistema de moedas que emprego para pagar minhas dívidas, os instrumentos de crédito que utilizo em minhas relações comerciais, as práticas observadas em minha profissão, etc., funcionam independentemente do uso que faço deles. Que se tomem um a um todos os membros de que é composta a sociedade; o que precede poderá ser repetido a propósito de cada um deles. Eis aí, portanto, maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam essa notável propriedade de existirem fora das consciências individuais. Esses tipos de conduta ou de pensamento não apenas são exteriores ao indivíduo, como também são dotados de uma força imperativa e coercitiva em virtude da qual se impõem a ele, quer ele queira, quer não. Certamente, quando me conformo voluntariamente a ela, essa coerção não se faz ou pouco se faz sentir, sendo inútil. Nem por isso ela deixa de ser um caráter intrínseco desses fatos, e a prova disso é que ela se afirma tão logo tento resistir. Se tento violar as regras do direito, elas reagem contra mim para impedir meu ato, se estiver em tempo, ou para anulá-lo e restabelecê-lo em sua forma normal, se tiver sido efetuado e for reparável, ou para fazer com que eu o expie, se não puder ser reparado de outro modo. Em se tratando de máximas puramente morais, a consciência pública reprime todo ato que as ofenda através da vigilância que exerce sobre a conduta dos cidadãos e elas penas especiais de que dispõe. Em outros casos, a coerção é menos violenta, mas não deixa de existir. Se não me submeto às convenções do mundo, se, ao vestir-me, não levo em conta os costumes observados em meu país e em minha classe, o riso que provoco, o afastamento em relação a mim produzem, embora de maneira mais atenuada, os mesmos efeitos que uma pena propriamente dita. Ademais, a coerção, mesmo sendo apenas indireta, continua sendo eficaz. (DURKHEIM, 2007. p. 2) A partir da década de 1960, foi a vez do médico psiquiatra Thomas Szasz, um dos expoentes da luta antimanicomial, mostrar que uma das formas utilizadas pela sociedade moderna para “punir” pessoas sociodesviantes era classificá-las como portadoras de doença mental. Szasz desafiou abertamente a psiquiatria tradicional afirmando que os sintomas psiquiátricos deveriam ser vistos muito mais como transgressões de normas sociais do que como distúrbios intrapsíquicos do indivíduo. Criticando duramente os fundamentos morais e científicos da psiquiatria, Szasz argumentou que a psiquiatria havia assumido um papel eminentemente de controle de conduta dos indivíduos, sob um disfarce de atendimento e tratamento médico. 102 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz A Transgressao de Genero como Matriz da Transgeneridade O que vamos dizer então? Que a própria lei é pecado? É claro que não! Mas foi a lei que me fez saber o que é pecado. Pois eu não saberia o que é a cobiça se a lei não tivesse dito “não cobice”. Romanos, 7:7 O que há em comum entre uma caixa de fósforos, um isqueiro e uma lupa refletindo o sol na palha seca? Embora diferentes um do outro, todos esses três recursos são capazes de acender uma fogueira. O que há em comum entre uma transexual, uma dragqueen, uma travesti e um crossdresser? Jocosamente, poderíamos responder que essas pessoas também têm potencial para atear fogo na ordem vigente. Em se tratando de identidades gênero-divergentes elas realmente são capazes de causar incêndios na sociedade que, dentre outras interdições bestas, proíbe terminantemente aos machos biológico, classificados, em função disso, como homens, ao nascer, de se apresentarem publicamente vestidos “com roupas de mulher”. Todas aquelas personagens se comportam de modo socialmente divergente, destoante, desviado e transgressivo em relação às normas de gênero que regem – e regem com a máxima rigidez – a vida das pessoas no seu dia a dia. Esse é o núcleo comum entre todos esses rótulos de pessoas gênero-divergentes: a natureza transgressiva em relação às normas de gênero que regulam o comportamento socialmente esperado de homens e mulheres. Quando a pessoa, pelo motivo que for, apresenta algum tipo de não conformidade104 com as normas de conduta que lhe são impostas pelo dispositivo binário de gênero, independentemente da profundidade, extensão, frequência ou gravidade do seu delito ou violação, comete um desvio social denominado transgressão de gênero. A origem do fenômeno transgênero é essa transgressão do dispositivo binário de gênero: nenhum estudo sobre identidades transgêneras pode ignorar esse fato. 111 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz De todas as maneiras e para todos os efeitos, a pessoa transgênera é, antes de tudo, O que marca e diferencia a pessoa transgêne- alguém que viola normas, que se ra, e marca de maneira tão drástica e radical desvia do que é considerado na sociedade, não é ser uma profissional do sexo, como é o caso da identidade travesti no “normal”, que subverte e transBrasil; nem o seu suposto “transtorno men- gride a ordem social, política e tal”, rótulo pesadamente colado na testa da cultural vigente. Por isso mesmo, identidade transexual por um grande número de psiquiatras e psicólogos clínicos; nem o representa uma clara e evidente ato de montar-se como mulher da forma ameaça à estabilidade do dispomais requintadamente exagerada possível, como ocorre com a identidade dragqueen; sitivo binário de gênero que está nem vestir-se de mulher “pelo prazer de ser na base da nossa organização mulher”, que hipocritamente caracteriza a sociopolítica e cultural. Em razão identidade crossdresser entre nós. Nenhum comportamento ou traço específico de per- disso, por mais que a pessoa sonalidade é capaz, por si só, de construir e transgênera apresente atestados manter o estigma que paira sobre as pessoas transgêneras. Independentemente das iden- de sanidade mental, inteligência tidades e/ou das expressões de gênero com e lucidez, será considerada que as pessoas transgêneras se apresentam “anormal” por transgredir os socialmente – travesti, transexual, homem trans, crossdresser, dragqueen, transformis- parâmetros de normalidade dita, etc., etc., etc. –, o que as caracteriza é a tados pela ordem instituída. Justransgressão das normas de conduta do dispositivo binário de gênero. É esse desvio tamente por subverterem o par da norma que marca e diferencia a pessoa sagrado homem-mulher ou mastransgênera. culino-feminino, é que as identidades transgêneras são social, política e culturalmente repudiadas pela ordem vigente. O prefixo trans vem de transgressão, fato que marca, distingue e separa a população transgênera da população cisgênera, sempre de maneira tão cruel e radical. A intolerância e a discriminação existentes contra a pessoa transgênera confirmam e atestam essa origem totalmente transgressiva do prefixo trans. Se o prefixo trans, de transgênero, viesse de coisas sublimes como transcendência, transbordamento e transformação, como sugerem algumas cabeças mais românticas e deslumbradas, nenhuma pessoa transgênera seria tratada como transviada ou transtornada pela sociedade. Ao contrário, seria reconhecida e louvada como fenômeno de perfeita transfiguração humana. Trans-gênero não vem tamÉ O DESVIO DA NORMA QUE MARCA E DIFERENCIA A PESSOA TRANSGÊNERA Letícia Lanz 112 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz A Formaça o das Identidades Transge neras Ninguém nasce transgênero. A pessoa descobre que é, ao descobrir que não é o que a sociedade diz que ela é e exige que ela seja, custe o que lhe custar, até mesmo a sua própria identidade social. Letícia Lanz A reconfiguração, pelo próprio indivíduo, da identidade de gênero recebida ao nascer, resulta de um processo de subjetivação dos modelos identitários de gênero que são estabelecidos pela sociedade, de tal forma que, pelo menos em parte, há uma escolha consciente e deliberada da pessoa em adotar essa identidade, em lugar daquela que lhe foi imposta, sobretudo quando a transição ocorre em fases mais tardias da vida adulta. Discutiremos aqui os principais fatores pessoais e sociopolíticoculturais que interagem nesse processo a fim de que aconteça na prática tal reconfiguração, da descoberta da inadequação do indivíduo ao modelo identitário que lhe foi imposto ao nascer à implementação da mudança. Não vamos nos deter em levantar hipóteses sobre por que aparece tal comportamento de não conformidade e sim sobre como ele aparece e quais são as variáveis que o influenciam. Examinaremos, também, por que ele é considerado perversão ou transgressão e por que combatê-lo é algo que a sociedade enxerga como tão crucial para a estabilidade e o funcionamento dos processos sociais dentro da ordem vigente, ao ponto de ser classificado como transgressão – ou perversão – e, em função disso, tornar-se proscrito, sendo duramente repelido, estigmatizado e punido pelo establishment. Todo comportamento humano, e o comportamento transgênero não seria uma exceção, é influenciado por inúmeros fatores, das mais diversas e variadas naturezas: genética, linguística, psicológica, sociológica, antropológica, histórica, política, religiosa, etc., etc. Ninguém “se transforma” em transgênero, nem esse processo ocorre da noite para o dia, de modo totalmente imprevisível e aleatório. Cada pessoa transgênera tem uma história e uma trajetória de vida absolutamente únicas. Embora não haja nenhuma explicação conclusiva a 121 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz respeito dos fatores que causam a transgeneridade, uma coisa é certa: ninguém escolhe ser ou não transgênero, como se escolhe uma profissão ou um lugar para passar férias. Da mesma forma, ninguém pode influenciar ninguém a se tornar ou a deixar de ser transgênero. O simples convívio com uma pessoa transgênera (transexual, travesti, crossdresser, dragqueen, etc.) não faz com que alguém também se torne assim. Identidade de gênero é algo apreendido e elaborado subjetivamente, através da combinação da pessoa original que cada um de nós é com os modelos de gênero que nos são oferecidos pela sociedade. Num certo sentido, a pessoa transgênera já nasce transgênera. Não no sentido de estar presa em um corpo oposto ao que ela “deveria ter”, como reza o mito que circula por aí, mas no sentido de que só a própria pessoa sabe, sente e percebe a transgeneridade como parte integrante do seu próprio ser. Cada pessoa que chega a este mundo traz consigo algo muito especial que, na falta de outro nome, chamaremos de “essência de si mesma”. Ao contrário do que supõe o senso comum, tal essência não é nem feminina nem masculina e tampouco está ligada ao sexo genital da pessoa. Essa essência é simplesmente humana, atributo da própria natureza humana. A sociedade vai fazer de tudo para reduzir e enquadrar essa essência, única em cada pessoa, em alguma categoria inteligível de identidade. Assim, a partir do momento que somos concebidos, essa essência única que trazemos dentro de nós é continuamente forçada a enquadrar-se nos modelos identitários que a sociedade determina. Não se trata de uma opção, mas de uma imposição: quem nasce com um pênis é obrigado a se enquadrar como homem, ainda que sua essência individual não tenha nenhuma afinidade, simpatia ou atração pelo modo masculino de ser. É assim que nos tornamos homens e mulheres. A maioria não tem a menor consciência de que é através da comparação da sua “essência interior” e suas características físicas individuais com os estereótipos socioculturais de gênero que consegue descobrir o quanto está sendo ou deixando de ser homem ou mulher. 122 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz 1. Corpo Meu corpo não é meu corpo, é ilusão de outro ser. Sabe a arte de esconder-me e é de tal modo sagaz que a mim de mim ele oculta. Carlos Drummond de Andrade, As contradições do Corpo. N inguém nasce um corpo: torna-se um. Para viver em sociedade, é preciso ter um corpo e para ter um corpo, é preciso construir um. Ninguém nasce com um corpo “pronto pra ser usado”. Cada pessoa nasce um organismo biológico, da espécie homo sapiens, à qual pertencemos todos nós seres humanos. Para tornar-se um corpo, o organismo biológico terá que se submeter a um longo processo de adaptação e aprendizado, mediante o qual deixará de ser um mero “organismo biológico” para tornar-se um “organismo cultural”, ou um “corpo”. Durante esse processo, o organismo biológico terá que se capacitar para preencher uma lista interminável de quesitos, que vão desde a maneira de se vestir, andar, gesticular e tomar atitudes no dia a dia, até o completo “espelhamento” dos “estereótipos de corpo” em vigor na sociedade, tendo para isso que lançar mão muitas vezes da cirurgia plástica, uma vez que a natureza não tem compromisso de atender nenhuma disposição estética na produção dos seus organismos biológicos. Até que possa ser reconhecido e aceito como um corpo de homem ou de mulher, o organismo biológico precisará passar por um severo e contínuo adestramento sociopolítico-cultural, assim como sofrer inúmeras e drásticas adaptações físicas, éticas, estéticas, psíquicas e atitudinais. Em primeiríssimo lugar, deverá dominar uma linguagem, sem a qual não será possível expressar o que a sociedade quer que o organismo biológico seja. A lin135 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz guagem é o meio através do qual o corpo é construído a partir do organismo biológico, memdiante a literal “incorporação” dos diversos discursos sociopolítico-culturais existentes sobre o corpo. Dessa forma, podemos afirmar que o corpo não existe a priori. Ao contrário, ele vai se formando, surgindo com o tempo, como resultado do ajustamento do organismo biológico aos modelos socioculturais de corpos masculinos e corpos femininos, estabelecidos pela sociedade de uma determinada época e lugar. Ninguém nasce com um corpo de homem ou de mulher: constrói um, aprendendo a ser um. Embora aparente ter a mesma substância material do organismo biológico, o corpo é basicamente imaterial, sem nenhuma substância. Ou melhor, sua substância é inteiramente discursiva: histórica, sociopolítica e cultural. Enquanto o organismo biológico é obra da natureza, o corpo é uma construção social, um conjunto de discursos normativos que existem a priori aos indivíduos, traduzidos num sem número de conceitos, atributos, estereótipos e práticas culturalmente definidas. Enquanto o organismo biológico é uma estrutura neuro-anatômica e fisiológica, o corpo é uma sequência de comportamentos e práticas estereotipadas, continuamente repetidas pelas pessoas, o que produz nelas a ilusão da existência de uma "substância material". Ainda que se valha da base material propiciada pelo organismo, o corpo em si não passa de uma criação do campo da linguagem. Como aquela série de desenhos isolados que, quando folheados juntos, de forma acelerada, produzem a ilusão de movimento nos desenhos animados. O organismo biológico é classificado como macho ou fêmea exclusivamente em razão da existência de um pênis ou de uma vagina na hora do nascimento. Hoje em dia, esse procedimento de verificação é feito em momento ainda mais precoce, no útero da mãe, através do exame de ultrassom. Essa, porém, que parece ser uma inocente diferenciação do organismo biológico em função do seu papel no processo reprodutivo hu- 136 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz 1.2 Corpo Não Existe e Gênero Não Está no Corpo Ninguém se torna homem simplesmente pelo fato de nascer um organismo biológico macho, assim como ninguém se torna mulher por ser um organismo biológico fêmea. Essa crença tenta reduzir o gênero a um simples (e simplório) determinismo biológico universal que, no caso dos seres humanos, há O CORPO HUMANO ESTÁ SUJEITO AO muitos milhares de anos foi radi- ASSÉDIO DAS FORÇAS SOCIAIS Anthony Giddens calmente substituído pelas disposições da cultura. Tal como o corpo, Conforme se segue nesta argumentação, não somente o gênero é uma criação gênero é uma construção social de puramente social, que carece de uma natureza político-cultural, histórica essência estabelecida, mas o próprio corpo humano está sujeito a forças socie local, isto é, um discurso normali- ais que o moldam e alteram de várias zador da conduta humana. Como formas. Podemos dar aos nossos corpos significados que desafiem o que é norJudith Butler enfatiza em toda a sua malmente visto como natural. Os indivíobra, não há nenhuma identidade duos podem escolher entre construir e reconstruir seus corpos como bem deseou essência anterior à expressão jarem - por meio de exercícios, dietas, ou performance de identidade: é piercings, adotando um estilo pessoal, a cirurgias plásticas e sendo mulher que alguém se tor- submetendo-se operações de mudança de sexo. A tecnologia está confundindo as fronteiras de na mulher. corpos físicos. Portanto, conforO corpo é uma criação do nossos me se segue nesta argumentação, o corcampo do simbólico, continuamente po humano e a biologia não estão “damas estão sujeitos ao agenciamento reificado no campo do imaginário dos”, humano e às escolhas pessoais no intericoletivo. É uma sequência de ações or de diferentes contextos sociais. estereotipadas, exaustivamente (GIDDENS, 2005, p. 106) repetidas pelos indivíduos, produzindo a ilusão de substância ou de coisa original. Ao desconstruirmos o corpo em todas as suas camadas discursivas sobrará, no final, apenas um organismo biológico, de um lado – o corpo da roupa - e um monte de disposições psicossociais, políticas e culturais que ensejam a criação do "corpo": a roupa. O corpo é modelado, portanto, segundo as disposições do contexto sociopolítico-cultural em que vive o indivíduo, materializando-se de acordo com a identificação de cada pessoa com os modelos de conduta relativos à categoria de gênero em que ela foi classificada ao nascer. Ao mesmo tempo em que o corpo vai se formando a partir do ajustamento do organismo aos modelos de corpos fornecidos pela cultura, a 144 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz identidade de gênero, é formada da interação entre o eu subjetivo de cada pessoa e a sociedade. Segundo Hall120, o “sujeito” tem um núcleo ou essência interior que ele considera o seu “eu real”, mas mesmo esse núcleo interno é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais à sua volta, em conformidade com os modelos identitários que esses mundos lhe oferecem. Nós nos projetamos nos modelos culturais de identidade que a sociedade nos oferece, e é a partir dessas projeções que criamos em nós a noção da pré-existência de uma dada identidade. Através da socialização, internalizamos os atributos, significados, valores e expressões dos modelos identitários que a cultura tem para nos oferecer, tornando-os parte de nós ou, melhor ainda, nos transformando no próprio modelo que nos serviu de inspiração. Mais uma vez revisitando Simone de Beauvoir (por mais enfadonho que seja), ninguém “nasce” mulher; aprende a ser. A gente se torna mulher ou homem através da repetição reiterada e contínua de gestos, práticas, atitudes, uso de vestuário, exercício de papéis sociais, etc., especificados nos modelos identitários de homem e de mulher que nos é fornecido pela sociedade numa determinada época e local. Gênero não é um “atributo natural” do organismo humano, herdado biologicamente através do órgão genital que a pessoa traz entre as pernas, como acredita o grande público, inteiramente despreparado, preconceituoso e desinformado sobre assuntos relacionados a sexo, gênero e orientação sexual. Gênero não resulta, portanto, da presença física de um pênis ou de uma vagina. Está no cérebro, na cabeça, entre as orelhas e resulta da identificação de cada pessoa com um dos dois grandes discursos identitários “oficiais” – masculino e feminino – ou com ambos ou com nenhum deles. Gênero é um atributo que não se estabelece a partir de dotes físicos, mas a partir da subjetividade de cada indivíduo. Diferentemente do sexo genital, que é uma contingência biológica, herdada geneticamente, o gênero é discursivo, produzido culturalmente. Uma construção sociopolítico-cultural compreendendo, na prática, um elenco de papéis, atribuições e normas de conduta que devem ser aprendidas e performatizadas (representadas) pelo indivíduo ao longo de toda a sua existência. 145 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz 1.3 Simbologia, Significados e Transformações do corpo Nós nos acostumamos com a ideia de que, como seres humanos, somos basicamente corpóreos, isto é, todos possuímos corpos. Mas o corpo não é algo que possuímos intrinsicamente, como decorrência de sermos organismos biológicos. Tampouco o corpo pode ser considerado algo físico, existindo fora de contextos político-culturais e históricos de uma da sociedade. Por trás da sua aparente “materialidade”, não existe nada mais social, político, econômico e cultural – numa palavra: discursivo – do que o corpo. São os discursos sobre o corpo que produzem o que chamamos de corpo. Apesar do gigantesco esforço das abordagens deterministasbiologizantes para provar que o corpo é uma imutável e inexorável criação da natureza, ele não passa, na verdade, de uma criação cultural, resultante do processo civilizatório. “Nossos corpos são profundamente afetados por nossas experiências sociais, assim como pelas normas e pelos valores dos grupos a que pertencemos”121, afirma Anthony Giddens. Essa ideia do corpo como um portador de normas de conduta é compartilhado por Judith Butler em seu ensaio Criticamente Queer (1997), onde a autora escreve que “a formulação do corpo como um modo de dramatizar ou ratificar possibilidades oferece um modo de entender como uma norma cultural é personificada e ordenada”122. A antropóloga inglesa Mary Douglas chamou o corpo de “um microcosmo do corpo social, uma poderosa forma simbólica, um recipiente no qual são inscritas e permanentemente reforçadas as normas centrais, as hierarquias e até os comprometimentos metafísicos de uma cultura através do exercício diário da linguagem corporal”123. Segundo ela, os símbolos ancorados no corpo humano são usados para expressar a experiência social, e vice-versa: o corpo humano é ensinado pela sociedade a expressar a sua individualidade124. 147 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Toda cultura força o corpo humano a incorporar e representar significados sociais, ao mesmo tempo em que o naturaliza, a fim de que tal incorporação de sentidos pareça ser um puro e simples determinismo biológico. O corpo jamais poderá ser revestido com significados universais porque o seu simbolismo está sempre a serviço dos dispositivos sociais de controle de determinada época e lugar. O aprendizado dos usos e significados corporais acontece intensamente durante a infância, mas não se restringe somente a essa fase da vida. As pessoas continuam a transformar e a ressignificar seus corpos incessantemente, ao longo de toda a sua existência, dispensando velhos modos de ser por novos estilos de vida, todos socialmente construídos a partir das matrizes culturais de inteligibilidade em vigência numa determinada época e local. Através do corpo, o homem se apropria da substância da sua vida, traduzindo-a para os outros, servindo-se dos sistemas simbólicos que compartilha com os membros da comunidade, nos mostra Le Breton em A Sociologia do Corpo125. Segundo ele, do corpo nascem e se propagam as significações que fundamentam a existência individual e coletiva; ele é o eixo da relação da pessoa com o mundo, o lugar e o tempo nos quais a existência toma forma através da fisionomia singular de um ator. Para Le Breton, o corpo não existe; não podemos visualizá-lo. O que podemos vislumbrar são homens e mulheres, pois essa visão do corpo enquanto elemento isolado da pessoa a quem corporifica, ao contrário do que ocorre em comunidades tradicionais, é recorrente em sociedades individualistas, onde o corpo coloca os limites e é isolado do sujeito a quem dá fisionomia126. Le Breton nos sugere, ainda, atentar para a ambiguidade e a efemeridade do elemento corpo pois, mais do que um construto de onde se extraem fontes de certezas, ele é, sobretudo, capaz de produzir questionamentos. Foucault127 afirma que o corpo é resultado do jogo do poder, e o poder penetra na própria essência dos indivíduos, tocando seus corpos e inserindo-se nas suas ações e atitudes, nos seus discursos, nos seus pro- 148 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz 1.4 Corporificação e Corporalidade da Pessoa Transgênera Minha pele foi a primeira roupa que eu vesti, antes mesmo de chegar a esse mundo e que aqui deixarei, ao deixar a vida, quando essa roupa não me servir mais. Letícia Lanz O que constitui a fixidez do corpo, os seus contornos, os seus movimentos, é totalmente material, mas essa materialidade deve ser repensada como efeito do poder, como o efeito mais produtivo do poder. Judith Butler140 Nascer com o órgão genital de macho é o primeiro requisito para alguém ter acesso ao “adestramento sociopolítico-cultural” que vai transformá-lo em homem, assim como nascer com o órgão genital de fêmea é o critério básico para alguém ser matricu- Meu corpo é meu território lado na escola onde se aprende a ser mu- Faço dele o que eu quiser lher. Machos são educados para se com- Não me venha impor suas regras para eu ser homem ou ser mulher portarem e interagirem na sociedade de acordo com as normas do gênero mascu- Um órgão genital não define o ser que existe em mim lino, ou seja, para serem homens. Fêmeas Mas se quiser mudar meu corpo são educadas para se comportarem e in- Eu mudo na boa, sim! teragirem na sociedade de acordo com as Não estou atrás de rótulos normas do gênero feminino, isto é, para Só desejo ser feliz Deixe-me viver como eu quero serem mulheres. É assim que funciona. vá cuidar do seu nariz! Entretanto, em que pese sua lógica cartesiana, esse processo não é absoluta- Letícia Lanz mente infalível nem está isento de inúmeras tensões e contradições. Muitos indivíduos, ainda em criança, não se submetem de forma passiva, tranquila, confortável, natural e espontânea a esse “processo compulsório” de capacitação sociopolítico-cultural que os obriga a viver como homem ou como mulher. Embora a maioria dos “descontentes” simplesmente se omita de qualquer confrontação, muita gente reage, recusando terminantemente adotar, na prática, a identidade de gênero que a sociedade lhe reservou, em função do seu sexo biológico. É daí que advêm todos os intermináveis conflitos vividos pelas pessoas transgêneras ao longo de suas vidas. 155 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Pelos motivos mais variados, as pessoas transgêneras simplesmente não se encaixam nem se reconhecem, de forma plena ou, pelo menos, suficientemente confortável, nos papéis e nos estereótipos da categoria de gênero em que foram classificadas ao nascer, ou seja, não se submetem às expectativas sociais de desempenho, criadas em razão do seu sexo biológico. Seu comportamento, de forte atração pelos papéis e estereótipos do gênero oposto ao seu (ou, dito de outra forma, de forte repulsa às normas de conduta da categoria de gênero em que foram enquadradas ao nascer), é uma prova contundente da inexistência de relação direta, natural e espontânea entre sexo (biológico) e gênero (sociopolítico-cultural). A incorporação das normas de conduta associadas à categoria de gênero em que uma pessoa foi classificada ao nascer dá a ela uma estabilidade sociopsíquica e uma segurança absoluta para se apresentar socialmente como homem ou como mulher. Quando, entretanto, essa incorporação se torna problemática, quando surgem conflitos entre o enquadramento de gênero recebido ao nascer, o sexo biológico e os interesses existenciais da pessoa, o resultado é um permanente clima de incerteza, insegurança e tensão entre a identidade de gênero individualmente percebida e o desempenho socialmente cobrado da pessoa. Para ser homem, não é absolutamente imprescindível ter “corpo de homem”, e sim agir sociopsíquica, cultural e politicamente como homem, o que significa performatizar o discurso social do homem. A identidade de gênero do sujeito não é de maneira nenhuma dependente do seu corpo físico, mas da repetição contínua e reiterada de atos socialmente atribuídos a identidades sociais específicas. 156 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz PESSOAS TRANS NÃO TÊM VOZ NESTA TEORIZAÇÃO Susan Stone Os corpos são as telas onde vemos projetados os ajustamentos momentâneos que emergem das lutas em curso entre crenças e práticas defendidas por diferentes comunidades acadêmicas e médicas. Essas lutas se desenrolam em arenas sempre muito distantes do corpo. Cada uma delas é uma tentativa para se ganhar um terreno mais elevado, de caráter profundamente moral, no sentido de dar uma explicação oficial e definitiva para a forma como as coisas são e, consequentemente, para a forma como elas devem continuar a ser. Em outras palavras, cada uma dessas contendas é a cultura falando através da voz de um indivíduo. As pessoas que não têm voz nesta teorização são as próprias pessoas trans. Tal como acontece com os homens, que teorizam sobre as mulheres desde o início dos tempos, os teóricos de gênero têm visto as pessoas trans como uma gente destituída de agência. Como no caso das mulheres genéticas, as pessoas trans são infantilizadas, consideradas muito ilógicas ou irresponsáveis para alcançar a verdadeira subjetividade ou clinicamente apagadas por critérios de diagnóstico; ou então como se tivessem sido construídas por algum teórico feminista radical, como robôs de um insidioso e ameaçador patriarcado, um exército alienígena projetado e construído para se infiltrar, perverter e destruir as mulheres “reais”. Também nessa construção as pessoas trans têm sido resolutamente cúmplices, ao não desenvolverem um contradiscurso eficaz. Aqui, nas fronteiras de gênero no final do século XX, com a hegemonia falocrática vacilando e a arrogância das linguagens e terminologias de origem heteroglóssica, as epistemologias da prática médica masculina branca, a raiva das teorias feministas radicais e o caos do gênero como experiência vivida encontram-se todas no campo de batalha do corpo transexual: um lugar muito contestado de inscrição cultural, uma máquina para a produção de um tipo ideal. Representação no seu nível mais mágico, o corpo transexual é memória aperfeiçoada, inscrito com a “verdadeira” história de Adão e Eva como a conta ontológica da diferença irredutível, uma biografia essencial que é parte da natureza. (STONE, 1993, p.10-11). Se ainda somos lembradas como fantasmas permanentemente ameaçando a ordem “natural” das coisas, é porque a nossa existência “abjetada” cumpre a função de dar materialidade aos corpos que a nossa cultura reconhece e legitima como normais e inteligíveis, devidamente sexuados e generificados dentro do dispositivo binário de gênero. Para desespero da ordem vigente, a “normalidade” depende essencialmente da “anormalidade” para existir. Sem bruxa, não há fada. 170 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz 2. Roupa O hábito não faz o monge, Mas faz com que o monge apareça de longe Letícia Lanz Não há nenhum gênero primário que uma drag esteja imitando porque gênero é uma espécie de imitação para a qual não existe nenhum original. Judith Butler C orpos humanos são, antes de tudo, corpos vestidos: decorados com desenhos, cobertos com peles, folhas ou penas, usando roupas tribais ou os últimos lançamentos da São Paulo Fashion Week, enfeitados com adornos dos mais diversos tipos e materiais. A roupa é um fato básico da vida social de todas as culturas até hoje conhecidas. Todas elas decoram o corpo de alguma maneira, seja com tecidos, peles de animais, penas de pássaros, folhagens, roupas, tatuagens, cosméticos ou outras formas de ornamento corporal149. O que vestimos – ou deixamos de vestir – é resultado de inúmeros fatores e condicionantes sociopolíticos, econômicos e culturais. A escolha da roupa que vestimos resulta de uma combinação entre o nosso desejo individual de expressar ao mundo o nosso eu e a observância de regras sociais de conduta. A roupa afeta e reflete a percepção que cada um tem de si mesmo, atuando como um filtro e fazendo a conexão entre o nosso eu interno e o nosso eu social, isto é, entre o nosso eu individual e o meio que nos cerca. Como Bell assinalou, nossas roupas são tão parte de nós que é muito difícil alguém ficar indiferente a elas: é como se o tecido fosse uma extensão natural da pele, ou até mesmo da alma150. O fato de a nudez ser considerada um ato rebelde e perturbador da ordem social indica o quanto a roupa é um aspecto fundamental nas nossas relações interpessoais. Mas a roupa é tão fundamental para a apresentação social do corpo que até os nossos modos de ver e representar a nudez são dominados pelos códigos de vestuário151. 171 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Por outro lado, existe também a gigantesca e onipresente Gilles Lipovetsky pressão social para a conformidaEnquanto as mulheres têm acesso em de, permanentemente exercida massa aos trajes de tipo masculino e os sobre os corpos e que age sobre homens reconquistam o direito a uma eles como um imperativo moral. Se certa fantasia, novas diferenciações surgem, reconstituindo uma clivagem estru- estivermos vestidos de modo inatural das aparências. A homogeneização da dequado para um dado ambiente, moda dos sexos só tem existência para um olhar superficial; na realidade a moda não vamos nos sentir não apenas desdeixa de organizar signos diferenciais, por confortáveis, mas também como se vezes menores, mas não supérfluas, num fôssemos alvos de crítica e reprosistema em que precisamente é “o nada que faz tudo”. Da mesma maneira pela vação social. qual um traje está fora de moda, agrada ou De acordo com Bell, usar as desagrada por uma nuança mínima, assim também um simples detalhe basta para roupas “certas” é tão importante discriminar os sexos. Os exemplos são que mesmo as pessoas que não se inúmeros: homens e mulheres usam calinteressam por aparência procuças, mas os cortes e muitas vezes as cores não são semelhantes, os sapatos não têm ram vestir-se de maneira adequada nada em comum, um chemisier de mulher a fim de evitar algum tipo de cense distingue facilmente de uma camisa de homem, as formas dos maiôs de banho são sura social. Toda regulamentação diferentes, assim como as das roupas de das peças de vestuário que pobaixo, dos cintos, das bolsas, dos relógios, dem/devem ser usadas exclusivados guarda-chuvas. Um pouco em toda parte, os artigos de moda reinscrevem, por mente por um dos dois gêneros intermédio dos pequenos “nadas”, a linha oficiais funciona, a priori, como divisória da aparência. É por isso que os cabelos curtos, as calças, paletós e botas mecanismo de exclusão, opressão, não conseguiram de modo algum dessexu- censura e reprovação à livre manializar a mulher; são, antes, sempre adapfestação das identidades de gênetados à especificidade do feminino, reinterpretados em função da mulher e de sua ro152. diferença. (LIPOVETSKY, 1989, p. 131) Assim, os códigos sociais de vestuário (dress codes), junto com medidas disciplinares legais relacionadas a desempenho de gênero, restringem enormemente o âmbito de ação individual, aumentando a pressão sobre as pessoas para que elas se ajustem aos padrões de aparência e comportamento de gênero. Os códigos de vestuário transformam o corpo em um objeto não apenas significativo mas perfeitamente reconhecível de uma cultura, além de ser também as referências pelas quais os corpos se orientam para se tornar apropriados, “decentes” e aceitáveis dentro dos contextos A CLIVAGEM ESTRUTURAL DAS APARÊNCIAS 172 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz 2.1 Roupa e Expressão de Gênero We all came to this world naked. The rest is drag. (A gente nasce nu, e o resto é montagem.) Rupaul161 Corpos que não se conformam, corpos que desrespeitam as convenções da sua cultura e se apresentam sem as roupas apropriadas subvertem os códigos sociais de conduta mais básicos que existem, arriscando-se a serem excluídos, humilhados ou ridicularizados. Joanne Entwistle162 Eu sou o que eu visto ou o que eu visto é que me faz ser quem eu sou? Desde criança que ouço alguém render-se à ladainha de que “essa roupa não é para o meu cor- A ROUPA É QUE NOS USA po”. Esse lamento, particular- Virginia Woolf mente comum entre pessoas Embora parecendo simples frivolidades, as cuja anatomia não corresponde roupas, dizem alguns filósofos, desempenham às proporções dos corpos idea- mais importante função que a de nos aquecerem, simplesmente. Elas mudam a nossa opilizados pela cultura, indica que nião a respeito do mundo, e a opinião do é necessário ter (ser?) um cor- mundo ao nosso respeito. [...] Assim, bem se po específico para poder vestir pode sustentar a tese de que são as roupas que nos usam, e não nós que usamos as roudeterminado tipo de roupa. Ou pas; podemos fazê-las tomar o molde do braço seja, de forma objetiva e direta, ou do peito; elas, porém, modelam nossos corações, nosso cérebro, nossa língua, à sua não é a pessoa que usa a rou- vontade. [...] O homem encara o mundo de pa, mas a roupa é que usa a frente como se ele fosse feito para seu uso e de acordo com o seu gosto. A mulher lança-lhe pessoa. um olhar de esguelha, cheio de sutileza, e até A roupa não é apenas o de desconfiança. Se usassem as mesmas rouconjunto de vestes, acessó- pas, é possível que sua maneira de olhar tivesse vindo a ser a mesma. [...] A diferença entre rios e adornos que cobrem o os sexos tem, felizmente, um sentido muito corpo das pessoas, mas, so- profundo. As roupas são meros símbolos de coisa profundamente oculta. [...] Embretudo, um conjunto de alguma bora diferentes, os sexos se confundem. Em normas de conduta que nos cada ser humano ocorre uma vacilação entre são impostas em razão do um sexo e outro; e às vezes só as roupas conservam a aparência masculina ou feminina, nosso sexo genital. quando, interiormente, o sexo está em comDentre os signos distinti- pleta oposição com o que se encontra à vista. (WOOLF, 1978, p. 104-105) vos de gênero que a pessoa transgênera busca se apropriar no seu processo de transição para a categoria de gênero com a qual se identifica, a roupa constitui sempre o re- 179 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz curso que está mais à mão, a possibilidade mais imediata de incorporação e vivência das normas do gênero oposto ao seu, que deseja materializar e representar no próprio corpo, mesmo sendo este corpo considerado como um container inadequado para tal fim. Essa atitude mostra claramente que roupa não serve simplesmente para “cobrir o corpo”. Muito ao contrário, é o corpo que “habita” a roupa. É através da roupa que o corpo incorpora uma parcela muito representativa dos discursos sociopolítico-culturais sobre o corpo sexuado e generificado. Ao contrário dos “corpos vestidos” que se submetem de maneira mecânica e inconsciente aos códigos de vestuário, a pessoa transgênera vive na contramão dos códigos de vestuário, desconstruindo-os e subvertendo-os de modo totalmente consciente e deliberado. A roupa da pessoa transgênera é a roupa proibida, a roupa deslocada do corpo, a roupa reservada ao gênero oposto, indevidamente usada pelo “gênero posto”, o que configura na nossa cultura a milenar transgressão social chamada travestismo. A maioria das pessoas transgêneras descobre, ainda na infância, que não é qualquer corpo que está autorizado a entrar em qualquer roupa: é preciso ter o corpo especificamente requerido por uma roupa específica. E isso não tem nada a ver com questões estéticas, mas com normas de conduta de gênero. A partir daí, a luta da pessoa transgênera é com (contra) o seu próprio corpo, a fim de ajustá-lo à "roupa" sociopolítico-cultural. Roupa que é muito mais do que vestuário e adereços. Roupa que é norma de funcionamento da sociedade, dispositivo de conduta, imagem e reconhecimento público. Roupa que encontra um corpo quase sempre incongruente com ela, no caso da maioria das pessoas transgêneras. Usar aquelas roupas definitivamente fazia com que eu me sentisse mulher. Era como se eu estivesse entrando para um mundo ao qual eu já sentia que pertencia, mas cujo acesso me era permanentemente negado. Essa fala da transexual Fernanda N. deixa claro o quanto a roupa, enquanto discurso de gênero, “materializa” o corpo transgênero. 180 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz 2.2 Travestilidade: A Roupa no Corpo Errado? Travestilidade não é algo que a gente é, mas algo que a gente faz, a primeira e mais básica tentativa de expressar ao mundo quem a gente é. Letícia Lanz A forma mais comum e imediata de se reconhecer a identidade de gênero de uma pessoa é através da sua expressão de gênero, isto é, do modo como ela se apresenta publicamente: a roupa que está vestindo, o modo de andar, falar, gesticular e se comportar em situações específicas. Gênero representa um código de conduta social que se utiliza de símbolos específicos para construir uma linguagem própria com a qual determina, fiscaliza e controla modos específicos da pessoa ser e estar no mundo em função da genitália que ela traz entre as pernas ao nascer. Expressar uma identidade de gênero é, portanto, conduzir-se de acordo com o código de conduta social específico para a categoria de gênero na qual a pessoa deseja se expressar. Desse ponto de vista, o gênero pode ser visto como um avatar ao qual a pessoa empresta seu corpo para a plena manifestação desse mesmo avatar. Embora ninguém precise necessariamente travestir-se para expressar sua transgeneridade (há muitas outras formas de se fazer isso), a verdade é que a travestilidade (travestismo, transvestismo ou crossdressing) é a mais comum de todas as práticas de expressão das identidades transgêneras. Essa prática chega a ser emblemática da própria transgeneridade, ao ponto de transgêneros MtF serem vulgar e pejorativamente chamados de “homens vestidos de mulher”. Por ser a forma mais visível de transgressão das normas de conduta de gênero e por representar, ao mesmo tempo, a primeira oportunidade de reinserção nessas mesmas normas, há milhares de anos o travestismo tem sido o veículo clássico de expressão da pessoa transgênera, a maneira dela expressar o seu senso de pertencimento ao gênero 187 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz oposto ao seu ou, em última análise, a um gênero diferente daquele em que foi enquadrada ao nascer e com o qual não se identifica nem se sente confortável. A travestilidade é uma presença constante na história da humanidade, sendo provavelmente tão velha quanto a própria divisão da sociedade em dois gêneros. Ao longo da história, desde tempos imemoriais e, naturalmente, em sociedades que instituíram vestuário diferenciado para cada um dos sexos, sempre houve homens e mulheres que ousaram transgredir essas normas, a despeito das pesadas sanções estabelecidas para os infratores na maioria dessas sociedades. Travestir-se significa, literalmente, vestir roupas do gênero oposto ao da pessoa que se traveste. Travestilidade, portanto, é uma prática que só tem sentido numa sociedade rigidamente estratificada em duas categorias opostas de pessoas e com vestuário criteriosamente especificado para cada uma delas. Como afirmava a ativista transgênera norte-americana Virginia Prince, referindo-se ao uso indiscriminado da palavra transvestite em países anglo-saxões: “hoje em dia a palavra travesti está sendo usada de maneira tão indiscriminada que, em síntese, tudo que ela nos diz é que alguém está se travestindo. Em resumo, ela nos diz que alguém está se travestindo, não quem a pessoa é”165. Através dessa fala, Prince afirma muito apropriadamente que travestilidade não é algo que uma pessoa é, mas algo que ela faz. E faz motivada pelas mais variadas razões, desde 188 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz 2.3 Travestismo Ritual O travestismo ritual é uma das práticas religiosas mais antigas da humanidade170. Seus registros já são encontrados em cultos do altoneolítico, dedicados à Deusa-Mãe. Ainda que muitas culturas de culto à Deusa reverenciassem as mulheres e as virtudes femininas, o culto à Deusa-Mãe aconteceu até mesmo em culturas essencialmente patriarcais, como a grega e a romana. Onde ocorresse o culto à Deusa-Mãe, ele sempre vinha acompanhado de alguma forma de travestismo masculino – isto é, de homens se vestindo e se portando como mulheres 171. Como Merlin Stone tão bem descreve em sua obra When God Was a Woman (1978), há cerca de 10.000 anos os homens começaram a tentar se apropriar de uma parcela do conhecimento mágico-religioso, até então domínio exclusivo das mulheres. Seu objetivo era apossar-se dos poderes mágicos atribuídos à mulher, e o método mais comumente usado para isso era trajar-se com roupas de mulher, ou seja, travestir-se, de tal forma que os espíritos os considerassem aceitáveis para o recebimento dos seus favores e bênçãos vindos do além. Tacitus descreveu os sacerdotes de certas tribos germânicas como muliebri ornatu172, isto é, homens vestidos de mulher. Os sacerdotes escandinavos que comandavam os rituais do nascer e do pôr-do-sol em honra do Haddingjar (Castor e Polux, os Gêmeos Celestes) também se apresentavam usando roupas e penteados femininos. Mesmo Thor, o deus do trovão na mitologia nórdica, só recebeu o seu martelo mágico e foi ungido com poderes especiais depois de vestir as roupas e adereços da deusa Freya e fingir ser uma noiva. Na Argólia, antiga região da Grécia, durante a celebração da Hubritska, os homens se transformavam em mulheres usando vestidos e véus femininos, de forma a assumirem temporariamente os poderes mágicos femininos, numa clara violação de uma 196 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz interdição específica: – o domínio exclusivo da mulher nas artes mágicas e nas práticas religiosas. A Hubritska era uma “Festa da Devassidão”, semelhante ao carnaval atual, na qual o travestismo e as orgias eram presença constante. Os sacerdotes cretenses de Leukippe, a Mãe Égua-branca, sempre usavam vestes femininas. O mesmo faziam os sacerdotes de Héracles, em honra à deusa Omphale, personificação do omphalos. O filósofo judaico Moisés Maimonides disse que os homens no seu tempo vestiam roupas de mulher para invocar a ajuda da deusa Vênus. Um dos exemplos mais conhecidos de travestismo ritual são os Gallae (ou Galli)173 sacerdotes que, na Roma Antiga, se autocastravam em sangrentos rituais públicos e se travestiam de mulher para dedicar-se integralmente aos serviços do culto à deusa Cybele, a Magna Mater. Também é fato notoriamente reconhecido que, desde tempos imemoriais, o travestismo masculino sempre foi uma prática altamente erótica, largamente usada para fins erótico-sexuais. Onde quer que apareça ao longo da história, o “erotismo travesti” adiciona uma nova dimensão às práticas sexuais sagradas. Templos pagãos em todo o Oriente Médio obtinham fundos para a sua manutenção através da hospedagem de prostitutas femininas e masculinas chamadas respectivamente de gedeshim174 e gedeshoth. As prostitutas masculinas sagradas sempre se vestiam como mulheres. Esta prática foi particularmente objeto de perseguição pelos judeus monoteístas. A maioria das passagens no Velho Testamento que condenam a atividade homossexual são especificamente dirigidas contra os qedeshim, um fato que se perdeu nas sucessivas traduções e adaptações da bíblia, resultando hoje em dia na cruel perseguição que cristãos fundamentalistas movem contra a população de gays e transgêneros. O travestismo era também um fato corriqueiro nos ritos romanos de Lupercalia e os Idos do Janeiro. Esse costume prevaleceu até a época 197 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz 202 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz 3. Identidade de Genero e Sexualidade Eu sou aquele que sou. Êxodo, 3:14 Ser ou não ser: eis a questão. Shakespeare, em Hamlet, ato 3, cena 1 A socióloga transgênera Raewyn Connel, responsável por alguns dos mais importantes estudos sobre masculinidades183, viveu até recentemente, tal como eu por muitas décadas, em uma categoria de gênero com a qual ela não se identificava. O depoimento de Raewyn é o nosso ponto de partida para uma investigação bastante delicada sobre identidade de gênero, expressão de gênero e sexualidade das pessoas transgêneras. Desde que eu me lembre, lá na infância eu já me identificava como mulher, mas tinha plena consciência de que tinha um corpo masculino. Essa é a grande contradição da experiência transexual das pessoas. Da mesma maneira que todos têm suas contradições. Talvez seja essa a minha versão de multidão queer. Considero sexualidade e gênero inerentemente contraditórios, embora as contradições tenham intensidades diferentes e formas diferentes. E na minha vida eu assumi esta forma. (Raewyn Connel em entrevista a Miriam Adelman, 2013). A identidade de gênero da pessoa trans é formada a partir da sua profunda identificação com estereótipos, símbolos culturais e códigos de conduta relativos ao gênero oposto àquele em ela foi classificada ao nascer. Com efeito, a pessoa transgênera pode ser tomada como prova viva e cabal de que ninguém nasce homem ou mulher. A rigor, esse processo de subjetivação, que dá origem à identidade transgênera, em nada difere do processo de subjetivação que produz a identidade cisgênera, exceto pelo fato de ele ocorrer num corpo que a sociedade considera como “errado” para tal fim, uma vez que, dentro das normas oficiais de gênero, a incorporação de signos femininos só pode ser feita “no” e “pelo” organismo da fêmea, assim como a incorporação de 203 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz signos masculinos necessita de um organismo macho. Embora esses sejam mitos que a visão pós-estruturalista põe por terra, como já mostramos, ainda permanecem completamente ativos e causando estragos . Os caminhos e as razões que levam as pessoas a constituírem sua identidade de gênero estão profundamente instalados dentro da psique de cada uma, muito mais do que em algum determinismo da natureza ou em pressões da sociedade. Ao romperem os limites entre o homem e a mulher enquanto categorias oficiais de gênero, as pessoas transgêneras rompem os seus próprios limites existenciais, friamente estabelecidos pelos rótulos de identidade de gênero que cada uma recebe ao nascer, em função da sua genitália, e que são permanentemente ratificados pelos discursos oficiais que compõem o imenso e todo-poderoso arsenal do dispositivo binário de gênero. A identidade de gênero protagoniza a maior parte dos conflitos vividos pelas pessoas transgêneras. A modelagem da identidade da pessoa transgênera é um processo extremamente conflituoso, uma vez que grande parte das escolhas e ações que ela deve realizar nesse sentido está invariavelmente em franco desacordo com as normas de conduta do gênero em que foi classificada ao nascer. Mas, apesar da sua incongruência com o gênero que lhe foi atribuído, a pessoa transgênera, como toda e qualquer pessoa nesse mundo, sente necessidade e tem direito de ter uma identidade. Como afirma De Cupis, “o indivíduo, como unidade da vida social e jurídica, tem necessidade de afirmar a própria individualidade, distinguindo-se dos outros indivíduos, e, por consequência, ser conhecido por quem é na realidade. O bem que satisfaz esta necessidade é o da identidade, o qual consiste, precisamente, no distinguir-se das outras pessoas nas relações sociais”184. Do ponto de vista sociocultural, a identidade de gênero está inexoravelmente vinculada à genitália da pessoa. Não é de se surpreender, portanto, o esforço que muitas pessoas transgêneras rea- 204 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz 224 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz 4. Status Socioeconomico Mas é preciso viver E viver Não é brincadeira não Quando o jeito é se virar Cada um trata de si Irmão desconhece irmão E aí! Dinheiro na mão é vendaval Dinheiro na mão é solução E solidão! Paulinho da Viola, Pecado Capital N o Brasil, os estudos sobre identidades transgêneras têm focalizado quase sempre pessoas oriundas de estratos socioeconômicos mais à base da pirâmide social. Com efeito, em razão da sua grande exposição pública por sua atuação no mercado do sexo, a transgressão de gênero esteve por muito tempo associada unicamente à identidade travesti, como se esse fenômeno se tratasse apenas de mais uma deformidade social produzida pela indigência econômica, política e cultural do nosso povo. Transgeneridade está longe de ser um fenômeno localizado entre pessoas do gênero masculino, com orientação homossexual, na faixa etária abaixo dos 30 anos e nos estratos socioeconômicos mais baixos da população, espelhando baixa renda, baixa escolaridade, subemprego, desemprego, submundo e prostituição. Transgênero não é exclusivamente homem, homossexual, jovem, pobre e com baixa escolaridade. Pode ser homem ou mulher, pobre ou rico, jovem ou velho, analfabeto ou pósgraduado, operário ou alto executivo, assim como pode ter orientação sexual homo, hétero, bi, pan ou assexual. A transgressão de gênero vai muito além do mundo das travestis de rua, estando presente ao longo de toda a pirâmide social e não apenas concentrado na base. As travestis são apenas a “ponta de iceberg” desse amplo e complexo fenômeno de desvio social. Há pessoas transgêneras de ambos os sexos, com todos os tipos de orienta- 225 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz ção sexual, em todas as classes socioeconômicas, em todas as etnias, em todas as faixas etárias, em todos os ofícios e profissões, em zonas urbanas e rurais e em todas as partes do território nacional. Até mesmo em todas as religiões, inclusive naquelas que se apressam em declarar não possuir pessoas transgêneras entre os seus fiéis, como se isso fosse motivo de orgulho. Inegavelmente, é sempre mais confortável ser uma pessoa transgênera nos estratos socioeconômicos mais elevados do que na base da pirâmide social (como, de resto é para qualquer outra coisa nesse mundo). Não que, pelo fato de a pessoa ser rica, desaparecesse instantaneamente o estigma, a discriminação, a exclusão social e todas os demais confiscos e violências contra os seus direitos civis. Na verdade, o grau de repressão e repúdio a pessoas transgêneras pode ser ainda mais ostensivo nas classes socioeconômicas mais elevadas. Porém, ter mais recursos financeiros disponíveis aumenta sensivelmente o leque de possibilidades de expressão da pessoa transgênera, seja em público, seja de modo privado, livrando-a dos enormes, constantes e onipresentes constrangimentos a que são submetidas as pessoas transgêneras que não têm o mesmo cacife. O grande espetáculo pirotécnico-midiático em que se transformou a recente transição de Caitlyn Jenner é um claro exemplo disso. Em pouco mais de dois meses, o medalhista olímpico Bruce Jenner deixou um armário de muitas décadas e sua posição de chefe do clã das Kardashians para tornar-se uma estrela do show business, com direito a ser capa da revista Vanity Fair192. Estima-se que sua transição relâmpago, cheia de luxo e glamour, e completamente inacessível para a esmagadora maioria da população transgênera do mundo, teria custado, por baixo, cerca de US$400.000,00, entre cirurgias, roupas, acessórios e inúmeras assessorias especializadas. Tal como Caitlyn Jenner, que foi recebida com mais de um milhão de felicitações do público americano em sua página no Facebook, se uma pessoa rica e/ou famosa assumir publicamente sua identidade transgênera, no Brasil e no mundo, será no 226 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz 5. Famí lia e Socializaça o Quem realmente nos ama, é capaz de nos amar mesmo quando não correspondemos aos modelos de pessoa que a sociedade gostaria que a gente fosse. Letícia Lanz M enino de classe média baixa, família muitíssimo católica. Com 9 ou 10 anos, eles me perguntavam insistentemente o que eu queria ser quando eu crescesse. Ao formular a questão, todos já traziam no bolso o seu próprio "projeto de mim", de modo que a pergunta em si era totalmente secundária. Apenas uma forma mais elegante de introduzir as suas expectativas ao meu respeito. - Você vai ser padre, não é? Você tem todo o jeito de padre. - Você tem que ser professor. Tem muito jeito para ensinar. - Acho que você vai ser advogado, pois fala e escreve muito bem. - Se a política não fosse tão podre, eu queria que você fosse um político, pois é muito bom pra falar e pra lutar pelas coisas. Mal sabiam eles que, intimamente, a minha resposta era uma só, sempre aqui, na ponta da língua: - Eu quero ser mulher. Teriam ficado muito infelizes. Teriam me mandado conversar com uma dúzia de padres e irmãs de caridade, para eles avaliarem o que é que estava acontecendo comigo. Em nome do “meu próprio bem”, teriam até me internado, sem nenhum remorso, para eu ser tratada por “especialistas”, num sanatório para portadores de transtornos mentais. Naquela época, não havia aparecido os tarjas-pretas, que consertam qualquer doidice, deixando a pessoa abobada. A forma mais comum de tratamento era o choque elétrico. Como se não bastasse o permanente estado de choque emocional em que eu vivia. Mas o que mais me doía mesmo era imaginar que ninguém se importava com o meu projeto de vida. Por mais que elas o condenassem, mesmo sem nunca terem sabido dele, era a minha forma de ser feliz. Ainda chorando aqui por ter escrito esse relato. Triste e feliz por estar conseguindo falar de feridas que não fecham, mesmo que eu já 231 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz tenha plantado um canteiro de rosas amarelas na imensa lacuna existencial que ficou dentro de mim. A família, especialmente na figura dos pais, representa um fator decisivo na formação – saudável ou, mais comumente, neurótica – da pessoa transgênera. Ela funciona como o primeiro e mais importante balizamento social de conduta, o primeiro grande divisor de águas entre o certo e o errado, o bem e o mal, o pecado e a virtude e por aí afora. Os pais (e familiares) influenciam de maneira drástica tudo que uma pessoa será ou deixará de ser nesse mundo. Eu, como de resto todo mundo, fui influenciada, sim e, aliás, pessimamente influenciada. No pior SEXO E GÊNERO NÃO SÃO ASSUNTOS sentido possível do termo influên“DE FAMÍLIA”, MAS AGRESSIVIDADE É cia, em que ele passa a significar José Ângelo Gaiarsa deformação, uma vez que a influênNão se trata de grandes discursos ou cia familiar se deu exatamente na grandes condenações explícitas contra a contramão de mim mesma, me imsexualidade. Antes, é todo um conjunto de indiretas, alusões, insinuações, caras, pedindo categoricamente de extons de voz, todos eles dizendo para a pressar ao mundo, desde cedo, a criança, mil vezes, de mil modos diferentes: - “olha aqui, bichinho, é melhor você pessoa que eu sempre fui. Pais heterossexuais, cisgênenão pensar nessas coisas. É melhor você não perceber muito bem que tem pinto ros, zelosos guardiães da sociedade ou xoxota. É melhor você não imaginar muito, é melhor você não mexer e, sobre- patriarcal-machista, farão de tudo, tudo – pelo amor de Deus! – não vá me- sim, para que seus rebentos sejam xer no de mais ninguém”. [...] E Freud, afinal, era um otimista; as crianças não iguaizinhos a eles, sem direito a são apenas castradas, elas são decapita- nenhuma originalidade. das. [...] No lar, sabe-se, ninguém odeia Em toda a minha infância e ninguém. Em família, como estamos adolescência fui sistematicamente todos cansados de saber, as pessoas se amam muito, muito, muito. Implícitas “desaconselhada” (leia-se: impedinessas tolices catastróficas vão, não uma, mas duas negações: a da agressão e a da da, bloqueada, reprimida e interdivisão. É preciso ser cego para NÃO ver as tada) de assumir minha condição de agressões que ocorrem em família. Japessoa transgênera como uma mamais tratamos estranhos tão mal quanto tratamos aos membros da nossa família. nifestação absolutamente normal e (GAIARSA, 1988, p. 21-23) espontânea do meu “ser no mundo”. Ao contrário, ensinaram-me a ver minha identidade de gênero como algo vergonhoso e a me sentir culpada por querer desrespeitar as normas do binômio masculino-feminino. Ensinaram-me a ver o meu comportamento como reprovável, repulsivo e socialmente inadequado, que eu deveria 232 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz darem conta da “transgressão” do seu comportamento, desenvolvem sucessivas ações visando eliminar ou, pelo menos, manter sob controle a expressão da transgeneridade dos seus filhos, maridos e namorados. A primeira e mais óbvia estratégia será um conjunto de intervenções destinadas à dissuasão da pessoa transgênera, baseadas em técnicas de admoestação, persuasão e sedução verbal do tipo desista disso, isso não é pra você, como é que você pode querer uma coisa dessas?, o que é que os outros vão pensar?, é uma vergonha pra nossa família, você quer expor nossa família ao ridículo, isso é contra a lei de Deus, etc., etc., etc. Diante da “intransigência” da pessoa transgênera em abandonar seu comportamento gênero-desviante, serão tentadas sucessivamente novas estratégias de domesticação do desejo: barganha de concessões, imputação de limites, restrições, constrangimentos e humilhações de toda espécie. O objetivo é enfraquecer de todas as maneiras a já combalida autoestima da pessoa transgênera, levando-a a desistir inteiramente da sua almejada mudança de gênero. A “barganha de concessões”, ou jogo do “se você fizer isso, eu faço aquilo”, é um dos expedientes mais comumente reportados por pessoas transgêneras nas suas relações com pais e familiares. Por mais manipuladora que possa ser, ainda assim a barganha de concessões é infinitamente melhor, enquanto estratégia dissuasiva, do que a aterradora sequência de ameaças, constrangimentos, humilhações morais e castigos físicos que fazem parte do elenco do terrorismo familiar de gênero. Todavia, o eminente deputado federal conservador Jair Bolsonaro, numa inesquecível e insuportável declaração195 à mídia, dentro da ignorância e truculência que caracterizam as suas falas, disse que “ter filho gay é falta de porrada”, sugerindo aos pais que tratem seus filhos LGBT com o chicote, como forma de “curá-los”. Uma recomendação absolutamente intolerável, em pleno século XXI, quando os castigos físicos foram abolidos até mesmo das casas de correção para jovens delinquentes. 241 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz 6. Escola Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda. Paulo Freire200 Ser livre é soltar tudo que está preso. A educação – assim chamada – prende tudo o que é ou está livre... José Ângelo Gaiarsa201 C onsiderando o pressuposto universal de que as instituições de ensino, particularmente as instituições públicas, devem ser receptivas a qualquer categoria de pessoas, independentemente de sexo, gênero, classe social, credo religioso, raça ou etnia, pouquíssimas escolas reconhecem, apoiam, legitimam ou, pelo menos, toleram a manifestação de qualquer tipo de diversidade no espaço escolar. Estudantes transgêneros não constituem exceção nessa dificuldade estrutural da escola em lidar com a diferença. Apesar de cada vez mais presentes em todos os graus de ensino, as pessoas transgêneras continuam completamente invisibilizadas pela escola, ainda à espera de tratamento menos preconceituoso, menos discriminatório e mais acolhedor. No Brasil, é tabu até mesmo a escola reconhecer e aceitar a existência de alunos transgêneros no seu corpo discente, assim como a existência de professores e auxiliares transgêneros nos seus quadros funcionais. Embora diretores, professores e funcionários das escolas não possam mais ignorar solenemente as pessoas transgêneras como sempre fizeram, ainda estão muito distantes de compreender e legitimar essa parcela da população, resistindo tremendamente até mesmo em aprender a linguagem adequada para descrever sua forma de ser e suas experiências de vida. A maioria das pessoas que atuam na escola, seja como diretor, professor ou funcionário, desconhece inteiramente o que vem a ser uma pessoa transgênera, desconhecimento que também atinge os próprios alunos transgêneros, quase sempre desorientados – ou mal orientados – quanto à sua própria identidade de gênero. Por regra, aluno transgênero é apenas um aluno homossexual que insiste em usar roupas do gênero oposto. 247 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Em geral a escola só se torna consciente da condição transgênera quando surge uma crise interna, como um conflito envolvendo o uso de banheiros por alunos em transição para outra categoria de gênero. Não consta que haja no BraA ESCOLA DIVIDE, SEPARA E REFORÇA AS DIFERENÇAS ENTRE AS PESSOAS sil alguma instituição de ensino, Guacira Lopes Louro pública ou privada, que mantenha, Diferenças, distinções, desigualdades... A de um lado, políticas de orientação escola entende disso. Na verdade, a escola produz isso. Desde seus inícios, a institui- e apoio aos seus alunos sobre ção escolar exerceu uma ação distintiva. questões relacionadas à identidade Ela se incumbiu de separar os sujeitos — de gênero e, por outro, políticas de tornando aqueles que nela entravam distintos dos outros, os que a ela não tinham tolerância zero a manifestações de acesso. Ela dividiu também, internamente, preconceito, discriminação e vioos que lá estavam, através de múltiplos mecanismos de classificação, ordenamen- lência contra pessoas LGBT, em to, hierarquização. A escola que nos foi especial contra pessoas transgênelegada pela sociedade ocidental moderna ras, de longe as mais prejudicadas começou por separar adultos de crianças, católicos de protestantes. Ela também se por todas as formas de bullying, fez diferente para os ricos e para os pobres intolerância e discriminação dene ela imediatamente separou os meninos tro da escola. das meninas. Concebida inicialmente para acolher alEm se tratando de pessoas guns — mas não todos — ela foi, lentatransgêneras, o descaso das escomente, sendo requisitada por aqueles/as aos/às quais havia sido negada. Os novos las não só é absoluto como absolugrupos foram trazendo transformações à tamente generalizado . Para se ter instituição. Ela precisou ser diversa: organização, currículos, prédios, docentes, uma ideia, apesar dos inúmeros e regulamentos, avaliações iriam, explícita sucessivos apelos e recomendaou implicitamente, "garantir" — e também ções dos poderes públicos, a maioproduzir — as diferenças entre os sujeitos. E necessário que nos perguntemos, então, ria das escolas simplesmente descomo se produziram e se produzem tais conhecem ou não autorizam o uso diferenças e que efeitos elas têm sobre os sujeitos. A escola delimita espaços. Servin- do "nome social" para as diversas do-se de símbolos e códigos, ela afirma o atividades pedagógicas, mesmo que cada um pode (ou não pode) fazer, ela sabendo que ele é apenas um posepara e institui. Informa o "lugar" dos pequenos e dos grandes, dos meninos e bre substituto do nome civil, que das meninas. (LOURO, 1997, p. 57-58) em nada vai afetar os registros burocráticos da escola, mas que trará um imenso alívio para os alunos transgêneros, impedidos pela emperrada legislação em vigor de alterarem o seu nome civil de maneira fácil, simples e rápida, como ocorre em outros países. 248 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz por professores e funcionários, demonstra o quanto a escola foi e está organizada unicamente para atender a pessoas cisgêneras, devidamente enquadradas (satisfeitas e confortáveis) nas identidades de homem e de mulher. Na escola, não há espaço para expressão da diversidade de gênero: apenas para confirmação dos estereótipos da masculinidade e da feminilidade compulsórias. As pessoas transgêneras são classificadas e tratadas na vala-comum da homossexualidade, sem nenhuma consideração pela identidade de gênero e pela própria orientação sexual de cada uma. Estruturalmente planejada para lidar apenas com alunos cisgêneros e heterossexuais, qualquer variação nesse arranjo é visto como transgressão às próprias normas de funcionamento da escola. Por isso ela continua sendo um ambiente basicamente hostil às identidades gênerodivergentes. Pessoas transgêneras desafiam padrões tradicionais de homem e mulher e são essas duas categorias identitárias que fundamentam a própria existência da escola. Que o digam os banheiros escolares, tão rigidamente divididos por categoria de gênero e sistematicamente vigiados, para que nenhum aluno cruze essa “perigosa” fronteira. 255 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz 256 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz 7. Arma rio e Transiçao O real não está no início nem no fim, ele se mostra pra gente é no meio da travessia. Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas Quando estiver atravessando o inferno, não pare. Winston Churchill A rmário é sinônimo de opressão, de exclusão, de intolerância, preconceito, medo e discriminação. Longe de ser um equipamento de proteção individual para as pessoas que nele se refugiam, é um dispositivo de normatização, regulação e permanente vigilância sobre a adequação sociopolítico-cultural das condutas individuais de gênero. Em contextos sociopolíticos altamente transfóbicos como o que vivemos, o armário se insinua como uma forma segura e até desejável de sobrevivência individual. Mas é apenas uma terrível e muito sedutora prisão para a qual as pessoas vão “de livre e espontânea vontade”, e de onde exercem uma constante fiscalização sobre si próprias, poupando a sociedade de ter que levar a cabo outros tipos mais drásticos de intervenção. É o medo do gigantesco aparelho coercitivo de gênero montado pela sociedade que estimula a maioria das pessoas transgêneras a buscarem a segurança e a invisibilidade social proporcionada pelo armário. Ao se refugiar nele, um contingente enorme de homens e mulheres desidentificados com a categoria de gênero em que foram classificadas ao nascer buscam legitimamente se defender da rejeição familiar, escolar, profissional e religiosa, resultante do imenso estigma que paira sobre as pessoas transgêneras no nossa sociedade. Ingressando livremente em suas próprias prisões, acabam contribuindo para a manutenção dos valores (como a assimetria entre as duas categorias oficiais de gênero, homem e mulher) e das instituições (como o casamento e a família tradicionais) estabelecidos pela ordem cisgênero-heteronormativa. 257 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Apesar do aparente conforto e segurança do armário, logo se descobrirá sua face sombria, que obriga a pessoa a praticar atos moralmente reprováveis como enganar, mentir, ludibriar, dissimular, fingir, negar, esconder, reprimir e disfarçar, dentre tantos outros expedientes que, além de altamente estressantes, não produzem nenhum resultado prático além de abafar temporariamente seus O ARMÁRIO É O SIMBOLO MAIOR conflitos íntimos e manter recalcadas DA REPRESSÃO ÀS PESSOAS TRANSGÊNERAS algumas das características mais auLetícia Lanz tênticas e naturais da sua individualiPor sua própria vontade e decisão, dade. toda pessoa transgênera tem o direiEm vez de conseguir levar uma to de permanecer no armário pelo tempo que quiser. Mas não é admissí- vida normal na sociedade, ao optar vel que a maior parte da população gênero-divergente permaneça no pelo armário a pessoa transgênera fica armário a vida inteira, pressionada condenada a viver duas vidas, passanpelos valores de uma sociedade hostil e hipócrita, que não reconhece e do a dispender uma enorme quantidamuito menos aceita o direito de cada de de energia para criar e manter uma pessoa ser o que é e de poder expres- fachada pública que lhe permita dessar ao mundo a categoria de gênero com a qual se identifica, sem ser frutar de aprovação, respeito e recoduramente reprimida, repudiada, nhecimento, coisas que a pessoa teme estigmatizada e excluída do convívio perder a todo instante, caso sua “idensocial. tidade secreta” venha a ser revelada. No armário, a espontaneidade da vida é substituída por uma autovigilância contínua, onde tudo deve ser controlado, onde todas as ações, contatos e movimentos diários da pessoa devem ser rigorosamente medidos e monitorados a fim de que jamais escape nenhum sinal que denuncie a existência da sua identidade oculta. O temor de ser descoberta impõe a necessidade de a pessoa arma205 rizada estar sempre alerta para “não dar pinta” e escorregar feio. Esse temor é tão forte, que a maioria sucumbe e entra em pânico diante da simples ideia de ter o seu “refúgio” revelado aos olhos curiosos, zombeteiros e ameaçadores do mundo exterior. Muitas simplesmente não resistem, tirando a própria vida ao serem descobertas ou denunciadas. Popularmente, armário é sinônimo de covardia e incapacidade de assumir com dignidade o seu “ser no mundo”. Mas se, por um lado, viver no armário pode ser considerado como demonstração de fraqueza em assumir integralmente a própria identidade transgênera, por outro não 258 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz 7.1 Autorrepressão e Autoaceitação Vá em frente, entra numa boa Porque a vida é uma festa Não controle, não domine, não modere Tudo isso faz muito mal Deixe que a mente se relaxe Faça o que mandar o coração Por isso canta, dança, grita ô ô ô ô ô ô ô Não se reprima Não se reprima Não se reprima Menudo, Não se Reprima. Temendo expor-se ao estigma e às represálias sociais reservadas aos indivíduos que não se enquadram no binômio masculino-feminino, grande parte das pessoas transgêneras continuará negando e adiando indefinidamente, a maioria pela vida inteira, a expressão da sua identidade transgênera no mundo exterior. Paradoxalmente, essa imensa parcela da população transgênera, que vive refugiada no armário, nunca perdeu a esperança de poder expressar-se livremente à luz do dia, quando a sociedade, finalmente, compreender e reconhecer a legitimidade do seu comportamento, hoje considerado como transgressão às normas de gênero. Enquanto não se realiza essa esperança – totalmente irrealista nas condições do mundo atual – uma verdadeira multidão de pessoas transgêneras continua (sobre)vivendo nas sombras, alimentando, sem perceber, o mesmo monstro que tanto a aterroriza. Trata-se do monstro da autorrepressão, sustentado pela autocensura, pelo excesso de autocrítica, pela vergonha, pela culpa, pela incapacidade de se aceitar como alguém diferente dos demais. Muito mais do que qualquer forma de controle externo, é a autorrepressão, imposta a nós por nós mesmos, que nos mantém escravos do modelo de conduta da categoria de gênero – homem ou mulher – que nos foi imposta pela sociedade desde que nascemos. É principalmente por causa do mecanismo de autorrepressão que não nos permitimos expressar a pessoa que a gente é – e não por falta de aceitação das outras pessoas à livre expressão da nossa personalidade transgênera. 267 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz O fato de poder ser aceita ou rejeitada pelo outro cumpre, inegavelmente, um papel decisivo na maioria das nossas escolhas. Mas o que quase nunca compreendemos é que a aceitação da gente pela gente mesma cumpre um papel muitíssimo mais importante, pois nada adiantaria o outro me aceitar e me autorizar a levar a vida do jeito que eu quero se eu mesma não me aceito e não me permito viver desse jeito. Ao contrário, quando eu alcanço a minha plena autoaceitação, o outro pode me rejeitar e até me proibir de viver do meu jeito que, de um jeito ou de outro, eu acabo vivendo do jeito que eu quero. Para que os demais me aceitem e me respeitem como pessoa transgênera é necessário, em primeiro lugar, que eu aceite e respeite a identidade de gênero com a qual eu me identifico e na qual eu quero me expressar. Os outros percebem claramente os sinais que emitimos quando a gente não se aceita e acabam interagindo conosco de acordo com esses sinais. Será muito difícil convencer quem quer que seja a me aceitar se até eu mesma tenho vergonha e me sinto culpada de ser como sou e de ter os desejos que tenho. Se a gente acredita que transgeneridade, em qualquer uma das suas manifestações, é algo doentio, perverso, vexatório, ridículo e pecaminoso, postura extremamente comum no meio transgênero, tudo na gente inevitavelmente deixará isso transparecer: – o tom da nossa voz, as palavras que empregamos, os nossos gestos, enfim toda a nossa postura física, mental e emocional. Do mesmo modo, se reconhecemos e aceitamos a nossa identidade transgênera como uma componente muito especial, prazerosa e enriquecedora da nossa personalidade, isso também transparecerá para os outros em todos os nossos atos, levando-os a interagir conosco de maneira muito mais natural e positiva. De quebra, essa reação favorável dos ou- 268 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz 7.2 Assumir-se, Revelar-se e Transformar-se I'm coming out I want the world to know Got to let it show I'm coming out I want the world to know I got to let it show da canção I’m Coming Out, lançada por Diana Ross em 1980 e até hoje um dos “hinos” LGBT no mundo inteiro. Se for para entrar uma bala na minha cabeça, que seja para destruir as portas de todos os armários. Harvey Milk, líder LGBT dos EUA. Não importa a fase da vida em que uma pessoa se conscientize da sua identidade transgênera, assumir e transicionar sempre será um processo lento, difícil e complicado. De um lado, sempre estará a própria pessoa transgênera, oscilando entre os extremos da autoaceitação e da autorrepressão. De outro, a sociedade que, em função das suas rígidas normas de conduta de gênero, vai considerá-la transgressora, estigmatizá-la e submetê-la às sanções e penalidades sociopolíticas e culturais por se tratar de uma pessoa sociodesviante. Sair do armário – desarmarizar – não é para qualquer pessoa, não. Embora a pessoa transgênera esteja buscando somente um espaço para ser “ela mesma” no mundo em que vivemos, sem nenhuma intenção de ferir quem quer que seja, e muito menos de "causar" nos grupos e ambientes que frequenta, sua desarmarização vai implicar num sem número de enfrentamentos, desde os de caráter individual, da pessoa com ela mesma, até os enfrentamentos diretos e indiretos com as outras pessoas, em casa, na rua, na escola, no trabalho e até em locais de recreação e lazer. Todos esses enfrentamentos produzem muito desgaste e desconforto físico, mental e emocional, requerendo energia, coragem e determinação incomuns para serem encarados de frente, já que não há nenhuma forma eficiente de se fugir deles sem abortar todo o processo. Descobrir-se, assumir-se e aceitar-se como pessoa transgênera significa, assim, sofrer expulsão sumária daquela zona de conforto representada pelo “paraíso da normalidade social”. O chão se abre debaixo dos nossos pés a cada novo passo, a cada nova revelação 271 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz manutenção da ordem vigente, em que duas e somente duas categorias de gênero reinam absolutas, para o sossego do patriarcado... Finalizando, podemos concluir que, seja do ponto de vista social, político, cultural e/ou psicológico, sair do armário é sempre uma ação libertadora, por mais sofrida que seja. Sentir-se suficientemente empoderada para afirmar diante do mundo a própria identidade alivia o medo, a vergonha e a culpa que afligem a pessoa transgênera, recuperando a sua autoestima e a sua autoconfiança, abaladas pela infâmia de viver encarcerada no próprio cárcere-armário, às vezes por muitas décadas. Pode-se dizer que a transição só se completa quando a pessoa transgênera aprende a orgulhar-se de aspectos e atributos pessoais considerados impróprios e abjetos pela sociedade. Essa atitude de recuperação e proteção da autoestima, tão afetada pelas investidas do mundo, é o único remédio capaz de produzir efeitos antidepressivos, antiparalisantes e desneurotizantes. Do ponto de vista psicanalítico, “elaborar” a vergonha e a culpa de ser transgênera depende de um elevado nível de autoperdão e autoacolhimento, acompanhados de uma ampla, total e irrestrita legitimação do próprio desejo. Esse é um processo que pode levar anos, décadas ou jamais vir a acontecer na vida de uma pessoa, pois não se desenvolve dentro de um tempo cronológico, mas dentro de um tempo psicológico, político, social e cultural. 284 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz 8. Passabilidade A preocupação com transição e cirurgia objetifica a pessoa transgênera. Laverne Cox T ão essencial quanto polêmico dentro dos Estudos Transgêneros, o tema da passabilidade focaliza o quanto uma pessoa transgênera consegue expressar os estereótipos da categoria de gênero que deseja expressar ao mundo. Ou seja, o quanto a pessoa se parece ou não com o que a sociedade diz que um homem, uma mulher ou outra identidade qualquer tem que ser. Passar é a mesma coisa que ser reconhecida, pela sociedade, como alguém em conformidade com as normas de gênero. Não há nenhum exagero em se afirmar que passar é a maior de todas as obsessões das pessoas transgêneras. Em inúmeros aspectos, passar deve ser considerado como algo fundamental para a população transgênera, da segurança contra ataques de violência transfóbica à satisfação pessoal de ser publicamente reconhecida como alguém que a pessoa sente que é. Trata-se de uma equação simples em que passar é igual a ser reconhecida e aceita pela sociedade. Quanto mais passável, mais habilitada ao convívio “normal” no mundo cisgêneroheteronormativo e menos a chance de ser estigmatizada e violentada como transgressora de gênero. Passar teria, assim, também uma função protetora, na medida em que as pessoas transgêneras que não passam convincentemente ficam teoricamente muito mais expostas à violência real e simbólica por parte da população cisgênera. “A coisa toda sobre passar diz respeito à sobrevivência”, afirmou a atriz e militante transgênera norte-americana Laverne Cox em entrevista publicada em 2014. “Termos a possibilidade de transitar em segurança pelas ruas, sem ser reconhecidas por estranhos como pessoas trans é uma questão de segurança. Caso contrário, seremos alvos permanentes para a violência”209. De acordo com Kaplan210, do mesmo modo que a transgressão da norma é severamente punida, a conformidade com a norma é generosa285 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz mente recompensada, ainda que, muitas vezes, a recompensa não seja mais do que a pessoa ser poupada da punição. Seja a pessoa cisgênera ou transgênera, a expressão da sua identidade de gênero afeta profundamente as possibilidades de convivência e aceitação das outras pessoas. QuanO QUE QUEREMOS DIZER COM to mais ajustada aos estereótipos de PASSABILIDADE Ruth Pearce (*) gênero vigentes na sociedade, maiHá uma série de discussões por aí sobre ores são as chances de a pessoa se como uma pessoa transgênera pode sentir segura e aceita pelos demais. passar como homem ou como mulher. Elas vão desde dicas simples de como se Da mesma forma, quanto menos montar até debates mais complexos próxima dos padrões culturalmente sobre o valor da passabilidade, e o que idealizados de homem e de mulher, nós queremos dizer quando usamos esse termo. Passabilidade para mim se refere mais dificuldades a pessoa tem de basicamente a duas coisas: a certeza de se sentir acolhida e aceita pela socique os outros veem o nosso gênero como nós desejamos que ele seja visto, e poder edade. Traduzindo em miúdos, se o circular em segurança, ou seja, como entrevistador achar que uma pesquestão de sobrevivência (ficando de tal soa “não se parece exatamente” maneira imperceptíveis que não nos tornemos alvos de ataques transfóbicos). com o que ela diz ou aparenta ser, Dessa maneira, embora eu esteja inclina- especialmente em termos de idenda a argumentar que devemos tentar minimizar a importância da passabilida- tidade de gênero, é pouco provável de em comunidades trans - afinal, nem que o processo de admissão tenha todo mundo consegue passar, e uma bom termo ou mesmo que siga adipessoa pode perder tanto tempo se preocupando com isso que acaba descartando ante. a possibilidade de sair de casa - eu acho Existem pessoas transgêneque todo mundo tem o direito de trabalhar no sentido de conseguir passar. ras que alcançaram um nível de Tudo que puder reduzir o perigoso e autoestima muito acima da média e incômodo assédio público tem que ser que, por isso mesmo, conseguem se visto como uma coisa boa. (PEARCE, impor socialmente, mesmo sem ter 2010) qualquer compatibilidade com os (*) Ruth Pearce, jovem ativista trans inglesa se apresenta como punk, DJ, promoter e pesqui- estereótipos de gênero em vigor. sadora pós-graduanda em Sociologia na Universidade de Warwick-UK. Publica o blog Mas elas constituem uma minoria ‘Trans Activist”. altamente evoluída, que adquiriu a consciência e possui os meios para lidar com os embustes, subornos e estratagemas dos dispositivos de controle social. A aparência física de Martine Rothblatt211, por exemplo, a executiva transgênera mais bem paga do mundo, lembra muito pouco a figura estereotipada de uma mulher. 286 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz amente cisgênero ou se se trata apenas de uma exagerada idealização do gênero oposto – uma fantasia estética, erótica e sensual – levada às últimas consequências, de forma absolutamente obsessivo-compulsiva. 296 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz 9. Visibilidade Social da Pessoa Transgenera O essencial é invisível aos olhos. Antoine de Saint-Exupéry, em O Pequeno Príncipe. O que não é visto não é condenado. Letícia Lanz Q ual é o tamanho da população transgênera? Como ela se distribui em termos de idade, escolaridade, raça e etnia, estado civil, classe socioeconômica, orientação sexual, etc.? Será que se trata realmente de uma minoria ou será que, na verdade, transgêneros representam um número considerável de pessoas, das quais apenas uma pequena fração aparece publicamente? A cientista e ativista transgênera norte-americana Lynn Conway afirma que “as minorias não contam até que sejam contadas”215, mas, como ela própria reconhece, estimar o tamanho da população transgênera do planeta é uma tarefa muito difícil. Assim mesmo, com base em estudos existentes, a Drª Conway estima que a população transgênera corresponda a um percentual entre 2% e 5% da população em geral, sendo que 0,2% (2 em 1000) correspondem à identidade transexual216. É sempre muito difícil e complexo fazer tal estimativa. Em nível mundial, nenhuma organização de defesa dos direitos civis das pessoas transgêneras arriscou dizer qual é o percentual de pessoas transgêneras dentro da população em geral, assim como, até agora, nenhum censo oficial realizado em algum país do mundo incluiu a opção transgênero em seus levantamentos. No dia a dia, nenhuma organização pública ou privada oferece a opção “transgênero” em suas fichas de identificação, além das alternativas tradicionais de homem e mulher ou masculino e feminino. Por outro lado, se essa alternativa fosse oferecida, é provável que bem poucas pessoas se identificassem como tal, uma vez que a maioria das pessoas transgêneras não gosta de se abrir a respeito da sua condição, muitas por “passarem” perfeitamente bem como membros do outro gênero e muitas outras por viverem armarizadas ou ainda estarem muito inseguras de revelar publicamente a sua “outra” identidade. 297 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz O maior problema na contagem dessa população começa na sua própria identificação: quem deve ser contado como transgênero? No Brasil, alguns movimentos nacionais organizados em torno das identidades travesti e transexual, na contramão da terminologia adotada internacionalmente, não só não reconhecem o termo transgênero como coletivo das identidades gênero-divergentes como ainda deslegitimam abertamente toda e qualquer identidade além das suas duas representadas. Da mesma forma, desqualificam abertamente a massa de pessoas transgêneras que permanecem “armarizadas”, mesmo sabendo que, caso “desarmarizassem”, a maioria dessas pessoas iria se reconhecer como transexual ou travesti. As pessoas podem se descobrir e/ou se revelar transgêneras em qualquer estágio ou circunstância de vida: ainda como crianças ou em plena adolescência; adultos jovens, na meia idade ou já idosos; solteiros, casados, divorciados; com ou sem filhos. Algumas pessoas transgêneras vão se revelando naturalmente, na medida em que crescem, simplesmente adotando condutas mais condizentes com a identidade de gênero autopercebida, ou seja, expressando-se publicamente de modo considerado masculino, sendo mulher, ou fazendo coisas consideradas femininas, sendo homem. Para essas pessoas transgêneras que vão se revelando ao mesmo tempo em que vão crescendo, não existe a questão do armário e muito menos da necessidade de revelação pública da sua condição, uma vez que já abraçam abertamente o seu desvio do dispositivo binário de gênero, enfrentando desde sempre toda a pesada carga de sanções sociais por cometerem essa transgressão. Da mesma forma, pode até ser verdade que algumas pessoas transgêneras, como afirmam diversos crossdressers, jamais sintam necessidade de expressar suas identidades gênero-divergentes em público, contentando-se em expressá-las de modo reservado, em ambiente fechado. As evidências, porém, demonstram que esse discurso não corresponde exatamente à verdade dos fatos. Na maioria dos casos, basta conseguir empoderar-se um pouco mais para essas pessoas assumirem publica- 298 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Dialogando com os Estudos Existentes no Brasil sobre Identidades Transge neras Transgênero não é uma identidade de gênero, mas uma circunstância sociopolítica e cultural de transgressão das normas de conduta do dispositivo binário de gênero. Letícia Lanz Que haja paz entre nós e que não sejamos instrumentos da nossa própria opressão. (Let there be peace among us, and let us not be instruments of our own oppression.) Rev. Barbara C. Harris218 Ser uma pessoa transgênera é viver dentro de um discurso onde outras pessoas estão sempre investigando você, descrevendo você, falando por você e colocando o máximo de distância possível entre o especialista e a pessoa gênero-divergente, considerada por isso mesmo como alguém deficiente. (To be differently-gendered is to live within a discourse where other people are always investigating you, describing you, speaking for you and putting as much distance as possible between the expert speaker and the deviant and therefore deficient subject.) Pat Califia Se me pedem um rótulo, digo que sou translésbica. Isso é a mesma coisa que mostrar um vidro de maionese com o rótulo em uma língua desconhecida. Explicar para as pessoas que eu sou um produto bio-tecnológico, autoconstruído e pós-identitário daria muuuuuuuuito trabalho. Jasmine Moreira219 A s inúmeras pesquisas sobre identidades transgêneras, realizadas no Brasil nas últimas décadas, demonstram ter havido um esforço significativo para a compreensão de como a transgressão das normas binárias de gênero se encaixa e é tratada na nossa sociedade, como também representam uma tentativa bem sucedida para a inauguração dos Estudos Transgêneros no meio acadêmico nacional. Esses trabalhos constituem referências obrigatórias para quaisquer novas investigações no território transgênero, ainda que nenhum deles tenha enfocado especificamente a transgeneridade como desvio sociopolítico-cultural, independentemente das identidades e expressões de gênero abrigadas por esse fenômeno. Tomados em seu conjunto, os estudos existentes apresentam como traço característico o seu foco de interesse voltado para uma única e es309 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz pecífica identidade gênero-divergente, sem a preocupação de correlacioná-la com as demais identidades que compõem a população transgênera. Do ponto de vista sociopolítico, essa tendência contribuiu para a criação e a manutenção de uma visão bastante fragmentada, dispersa e muitas vezes até parcimoniosa da populaSOBRE TERMOS E DEFINIÇÕES ção transgênera do país que, por Juliana Gonzaga Jayme essa e outras razões, tende a não É importante explicitar - na definição êmica o que são travestis, transformistas, transexu- ser vista nem reconhecida como ais e dragqueens. As travestis dizem que são um todo único. “'mulheres” dia e noite, pois interferem no Ao lado de serem estudacorpo por meio de roupas, maquiagem, cabelo e trejeitos femininos e através de medica- das de forma isolada umas das mentos (hormônios femininos) e silicone em outras, nesses estudos as identipartes do corpo. No entanto, afirmam que não desejam fazer a cirurgia de transgenitali- dades são focalizadas muito mais zação, querem manter o órgão sexual mascu- como identidades sexuais do que lino. A diferença entre as transexuais e as como identidades gênerotravestis, é que as primeiras afirmam que nasceram com o corpo errado. Seriam mulhe- divergentes, notoriamente transres presas em um corpo de homem. O órgão gressoras do dispositivo binário sexual é visto como um apêndice, portanto, algo que deve ser retirado. Assim, a transexu- de gênero, que é o que realmente al é aquela que fez (ou deseja fazer) a cirurgia são. Esse, aliás, é o fato que consde transgenitalização. Para as transformistas o tempo define o masculino e feminino. Di- titui a matriz sociopolíticozem: eu sou homem de dia e mulher de noite. cultural da transgeneridade, e O corpo é modificado com maquiagem, roupa, não a sexualidade das pessoas espuma para fazer seios e ancas. Diante de uma transformista “montada” não é possível gênero-divergentes. Ademais, os saber se se trata de homem, mulher, travesti estudos existentes partem semou transexual. A transformação pretende ocultar inteiramente o masculino. A diferença pre do pressuposto que todas as entre transformistas e dragqueens refere-se identidades gênero-divergentes ao fato de que essas últimas não têm a preotêm orientação homossexual, o cupação das transformistas em “parecer mulher”. A maquiagem é recarregada, a rou- que de certa forma transforma pa exagerada, com altas plataformas, cabelos esses trabalhos em estudos sobre coloridos etc. O termo transgênero é utilizado para reunir todas essas categorias tratadas casos especiais de homossexuaaqui, mas mantendo as diferenças. (JAYME, lidade. 2004, p. 2-3) Trazendo uma visão muito mais sexualizada do que politizada das identidades gênero-divergentes, podemos afirmar que, no Brasil, o fenômeno transgênero vem sendo estudado de modo fragmentado e bastante despolitizado, muito mais como simples corolário de homossexualidade220, do que como fenômeno socio- 310 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz lógico de transgressão das normas de conduta de gênero, transgressão essa que gera o estigma e todo o elenco de sanções negativas a que a pessoa transgênera está submetida na nossa sociedade, como temos mostrado neste estudo. Não por simples acaso, grande parte dos estudos existentes focaliza a identidade travesti. Trata-se do grupo transgênero de maior visibilidade no país, certamente pela sua ostensiva presença em ruas, praças e avenidas de praticamente todas as cidades brasileiras, mesmo as de pequeno porte, em função da sua participação na indústria do sexo. É esse status que, para o bem e para o mal, fez da travesti a expressão transgênera de maior tradição e destaque nosso panorama sociopolítico e cultural. Com menor frequência, encontramos estudos sobre a identidade transexual e a identidade crossdresser e, com frequência menor ainda, sobre dragqueens e transformistas. São ainda muito escassos os estudos acadêmicos sobre outras categorias transgêneras, como homens trans, andróginos, intersexuados, dragqueens, homens femininos, mulheres masculinas e outras identidades gênero-divergentes221. É preciso reconhecer o pioneirismo desses estudos, absolutamente fundamentais para o mapeamento, análise e entendimento do fenômeno transgênero no Brasil. Em nenhum momento as críticas aqui eventualmente apresentadas têm o objetivo de diminuir a importância, a seriedade e o mérito desses estudos, destinando-se tão somente a apontar novos rumos para a pesquisa das identidades transgêneras no Brasil. 311 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz 312 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Estudos sobre a Identidade Travesti N a paisagem acidentada e descontínua do território transgênero, a identidade travesti se destaca como detentora do maior número de estudos e pesquisas já realizados dentro da temática da transgressão de gênero no Brasil. Por vários motivos, seria mesmo de se esperar essa concentração de interesse acadêmico na identidade travesti. Em primeiro lugar, a travesti é uma identidade gênero-divergente tipicamente brasileira, verdadeira instituição nacional. Muita gente, inclusive, supõe que, em português, a palavra travesti tenha o mesmo significado que transvestite, que é o seu termo correlato em inglês. Entretanto, muito ao contrário, dentro da cultura brasileira, o significado da palavra travesti é bem diferente do significado da mesma palavra em inglês, em que transvestite, hoje em desuso, significa crossdresser, ou seja, que ou aquele (especialmente homem) que se veste com roupas culturalmente próprias do gênero oposto ao seu. Embora as características tão próprias e particulares da travesti brasileira222, as identidades mais próximas da nossa travesti seriam shemale ou tranny que, em inglês, designam a pessoa transgênera MtF atuando na indústria do sexo. Tanto shemale quanto tranny, são hoje considerados termos altamente ofensivos por grande parte da comunidade transgênera norte-americana223. Ainda que, por influência do Brasil, possam ser encontradas versões assemelhadas à travesti em diversos outros países da América Latina, suas características sociológicas e antropológicas fazem dela um produto cultural único, só existente no Brasil. A travesti é o cartão de visitas do mundo transgênero nacional, a ponta mais visível do enorme iceberg da transgeneridade no Brasil. Dentre as imagens mais solidamente construídas no passado, e ainda muito presente no imaginário coletivo brasileiro, está a da travesti de rua: transgressora, delinquente, indecorosa, imoral, obscena, anticon- 313 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz zação. O que fazer, nessa hora, tendo em vista o conceito, tão ampla e ingenuamente aceito até nos meios acadêmicos do país, da travesti como alguém que “convive muito bem” com sua genitália de macho? Que considera seu pênis como um importante diferencial para o seu trabalho de profissional do sexo e, portanto, jamais pensaria em se submeter à cirurgia de readequação genital? Nessa hora, o que ela é? Ou o que passa a ser? Transexual? Nesse caso, será que ela esteve até agora mentindo para si mesma e para as outras pessoas? Foi precipitado ou inadequado o rótulo de travesti que ela se deu ou que lhe deram (muitos dos estudos existentes chegam a afirmar que a pessoa “já nasce travesti” e “já nasce transexual”)? Ou, como afirmam muitas transexuais, as identidades de travesti e crossdresser são apenas “estágios” de descoberta e/ou aceitação da transexualidade, essa sim, estrutural e irreversível? Ou será que também aqui se aplica a clássica (e enfadonha, de tanto que é citada) observação de Simone de Beauvoir de que “ninguém nasce mulher: aprende a ser”?245 A minha principal crítica é, portanto, quanto à imprecisão e falta de diferenciações categóricas e inequívocas entre as definições de travesti, transexual, crossdresser, dragqueen, etc., definições essas que, apesar da sua inconsistência, são tratadas como verdades inquestionáveis, apesar dos enormes conflitos e contradições existentes na sua formulação. 328 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Estudos sobre a Identidade Transexual A o contrário da crença popular, existente até mesmo dentro do gueto transgênero, ser uma pessoa transexual não significa “estar presa em um corpo que não é o seu” e, em razão disso, passar o tempo todo pensando única e exclusivamente em mudar de corpo e, naturalmente, de sexo. Embora essa fosse também a crença comum entre "especialistas" do século passado, ser reconhecida como uma pessoa transexual não implica em a pessoa querer se submeter à cirurgia de reaparelhamento genital ou a qualquer outro tipo de tratamento clínico ou cirúrgico visando a readequação do seu corpo. Por desejo e iniciativa própria, uma pessoa transexual realmente pode passar por cirurgias e tratamentos hormonais, mas essa não é a regra geral. Seja por razões pessoais, econômicas ou de qualquer outra natureza, muitas outras pessoas que se reconhecem como transexuais não colocam nenhuma cirurgia ou tratamento hormonal nos seus planos, preferindo manter o mesmo corpo que têm. É preciso ficar claro que cirurgias, hormonizações ou outras intervenções médicas não são capazes de legitimar a transexualidade de ninguém. Por se tratar de um processo de identificação altamente subjetivo, ou seja, inteiramente particular de cada pessoa, a única coisa que legitima a identidade de alguém é a sua própria autoidentificação numa dada categoria de gênero. Até algum tempo atrás, era também comum afirmar-se que a diferença fundamental que se via entre a identidade transexual e as demais identidades transgêneras – travesti e crossdresser em especial – seria a “profundidade de convicção” de cada uma dessas identidades quanto à sua feminilidade. As “convicções” das travestis e dos crossdressers não seriam lá “tão profundas” assim, quando comparadas à convicção da transexual MtF... Segundo Brierley246, a transexual expressa com total convicção a crença de que sua personalidade é essencialmente feminina, que ela está 329 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz presa em um corpo de homem. Que o seu sexo genital está em Jorge Leite Jr. conflito com a sua mente e o asA criação e a diferenciação dos conceitos pecto físico em conflito com o que clínicos de travesti e transexual, expressos a sociedade convencionou chapelo esforço histórico de nomear distintamar de mulher. Isso a obrigaria a mente tais categorias, parece exprimir não apenas a lógica da especificação teórica enfrentar uma luta permanente entre “disfunções sexuais”, “transtornos de para se livrar de todo e qualquer identidade de gênero” e “identidades políticas” vistas como substancialmente diferen- vestígio físico, psicológico e social tes, segundo os manuais médicos ou as de masculinidade, a fim de viver organizações militantes, mas também a antiga moralização do discurso científico, integralmente “a mulher que sennotada por Lanteri-Laura, da divisão entre te ser”. Nessas condições, a tranos “bons” e os “maus” desviantes sexuais. sexual buscaria não apenas o Desta forma, aqueles que estão mais próximos dos valores sócio-morais vigentes no reconhecimento público da sua período e sofrem com seus “transtornos” identidade de mulher, mas tamsão os perversos e os que, intencionalmente ou não, afrontam estes mesmos valores não bém a oportunidade de se casar considerando suas “disfunções” como um com um homem e, em alguns problema, mas como uma característica, são casos, ter filhos por adoção ou os pervertidos. [...] Assim, talvez o conceito de travesti tenha mantido boa parte da barriga de aluguel. periculosidade do antigo pervertido sexual, Na sua narrativa de vida, a enquanto a noção de transexual evoca o trágico destino do perverso. Nas próprias transexual geralmente alega ter definições de travestismo fetichista do CID- preferido brinquedos de menina, 10 ou do fetichismo transvéstico do DSM-IV assim como buscado a companhia (a ordem dos termos de um manual é contrária à do outro, mas ambos concordam de meninas para suas brincadeique é uma parafilia), o foco é o prazer e a ras na infância. Embora a prática “aparência” do sexo oposto. Já quanto ao transexualismo do CID-10 ou o transtorno da travestilidade tenha começado de identidade de gênero do DSM-IV, estes se muito cedo em sua vida, a transeapresentam em outra categoria específica xual recusa a se ver como uma de problemas, onde a questão é centrada no sofrimento, mal-estar e desconforto, estan- travesti, por considerar-se “mudo o tema do prazer totalmente ausente do lher de verdade”, em todos os diagnóstico. (LEITE JR., 2008, p. 191) sentidos e para todos os efeitos. Também faz questão de declarar que o ato de se travestir não é guiado por nenhum desejo de produzir excitação e orgasmo, o que para ela seria “fetichismo” caso acontecesse, mas pela obtenção de um sentimento de alívio, felicidade, bem-estar e relaxamento de tensões. A DIVISÃO ENTRE OS “BONS” E OS “MAUS” DESVIANTES 330 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz recursos médicos e jurídicos. A indagação moral que permanece pouco explorada, e que este estudo se propõe a investigar, é: quais seriam os fundamentos éticos que justificariam as restrições ao exercício da autonomia da pessoa transexual para o acesso às transformações corporais e de identidade desejadas? Em particular: é moralmente legítima a tutela da psiquiatria, a medicalização e a judicialização de uma condição sexual para o acesso a direitos de cidadania, garantidos nos estatutos éticos e legais nas sociedades democráticas, para todas as pessoas, indistintamente? (VENTURA, 2010, p.11 e 12). Quando comparados aos estudos existentes no país sobre outras identidades gênero-divergentes, os estudos sobre a identidade transexual apresentam maior consistência teórica na sua formulação, assim como maior alcance prático nas suas conclusões. Ainda assim, padecem, como todos os demais estudos, da mesma falta de uniformidade conceitual do perfil das identidades estudadas, o que faz com que muitas vezes não se saiba exatamente qual é a identidade que está sendo focada, dada a sua extrema semelhança e superposição com outras identidades gênerodivergentes, estudadas por outros autores com outros nomes. Ao contrário do foco de interesse principal estar dirigido à manifestação de uma sexualidade “devassa”, como acontece nos estudos sobre a identidade travesti, ou de um mero e inocente hobby diletante de final de semana, como acontece com os estudos sobre crossdressers, quando se trata da identidade transexual o foco migra para a “dor” emocional, que essas pessoas sentem e para a qual buscam lenitivo na própria dor física de cirurgias de feminização (ou masculinização) e de reaparelhamento genital. Assim, enquanto a travesti tende a ser vista e tratada como ardilosa (e escandalosa) transgressora das normas de conduta de gênero – uma delinquente –, e crossdressers como pessoas alegres e diletantes que cultivam “a arte de ser mulher”, a transexual tende a ser vista como alguém doente, exposta a um contínuo sofrimento, carente de tratamento e cura, através de intervenções medicas, de natureza psiquiátrica, psicológica e cirúrgica. 352 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Estudos sobre a Identidade Crossdresser A identidade crossdresser chegou ao Brasil na década de 1980 com a missão de ser a “salvação da lavoura” das pessoas transgêneras de classe média/média-alta, até então maciçamente armarizadas. De nova, essa nova identidade não tinha nada, uma vez que nada mais era do que a velha identidade travesti, travestida de “menina bem comportada” para atender os anseios de manifestação pública de gente impossibilitada de se identificar como travesti ou transexual. Enquanto as travestis são vistas, no Brasil, como delinquentes e as transexuais como doentes, os crossdressers (ao contrário de outras identidades gênero-divergentes, eles preferem ser tratados na forma masculina) desejam ser vistos como praticantes de um hobby, de um passatempo, que consiste em se vestir de mulher da forma mais idealizada e requintada possível, ao contrário das dragqueens que, propositalmente, exageram ao máximo as suas montagens. Se a transexual representou, no Brasil, a separação do “bom desvio” do “mau desvio” de gênero, personificado pela travesti, o “crossdresser” representou uma porta de entrada, um canal de expressão até então inexistente, para a manifestação da transgeneridade de pessoas pertencentes a estratos sociais mais elevados da população. Em meados da década de 1990, valendo-se do aparecimento do novo e superpotente canal de comunicação da internet, um grupo de pessoas tomou emprestado do inglês o termo crossdresser introduzindo seu uso na língua portuguesa, com o objetivo de designar pessoas transgêneras caracteristicamente pertencentes aos estratos socioeconômicos mais favorecidos que, em tese, teriam “a fantasia” de usar roupas femininas, ou seja, de praticar o travestismo (crossdressing)”258, hoje chamado de travestilidade. 353 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz O termo crossdresser, portanto, foi introduzido no Brasil apenas como um eufemismo de travesti, pois crossdressers nada mais são do que transvestites, o que, como já explicamos, corresponderia a travestis, no português do Brasil, não fosse a conotação altamente pejorativa que essa palavra tem entre nós. Em seu estudo Crossdressing Masculino – uma visão psicanalítica da sexualidade crossdresser, tese de doutorado em psicologia clínica, apresentada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 2006, Eliane Kogut diz preferir o termo crossdressing a travestismo, explicando a razão da sua escolha a partir de uma abordagem histórica da identidade crossdresser: O termo travestismo foi cunhado pelo médico alemão Magnus Hirschfeld em 1910, para designar aqueles que, independentemente de suas inclinações sexuais, têm prazer em vestir roupas do sexo oposto. Hirschfeld investigou inúmeros casos e discriminou as diversas incidências do travestismo, diferenciando-as da homossexualidade. Ao longo do tempo, contudo, o termo passou a agregar significados pejorativos até tornar-se associado à prostituição e eventualmente a comportamentos antissociais. Assim, procurando se desvincular do estigma do termo, muitos travestis preferem, atualmente, se autodenominar pelo termo crossdresser. Além disto, surgiu ao longo dos anos 70 e 80 uma “nosologia popular” na qual os próprios praticantes diferenciam crossdresser de travesti, de dragqueen, e de transexual. Nesta tese adotaremos, preferencialmente, o termo crossdresser (menos carregado de preconceito), advertindo ao leitor que ambos os termos são equivalentes. (KOGUT, 2006, p. 9) Como se vê, nos próprios pressupostos da pesquisadora há uma perfeita equivalência entre travestismo e crossdressing. Entretanto, no âmbito do seu estudo, ela diz que adotará o termo crossdresser, em lugar de travesti, por ser “menos carregado de preconceito”. O foco do estudo de Kogut é, portanto, os crossdressers ou, como ela própria diria, “travestis de classe média/alta”, cujo perfil socioeconômico nunca se ajustaria ao perfil predominante entre as travestis. Mas suas análises e conclusões, longe de explorarem esses importantes aspectos sociopolíticos e culturais dos crossdressers, resvala como quase todos os demais estudos sobre identidades transgêneras no Brasil para a ques- 354 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz status sociopolítico-econômico, comprometeria de modo irreparável a sua reputação de “homens sérios” e “machos ilibados”. Sem falar no quiproquó que estaria criado com seus familiares, colegas de trabalho, amigos e inimigos caso viesse à tona esse aspecto tão fundamental da sua personalidade. Concluindo, o surgimento da identidade crossdresser serviu para que um grande número de pessoas transgêneras de classe média e média alta deixasse os seus armários de forma “menos traumática”, uma vez que, no seu discurso absolutamente falso e dissimulado, crossdresser se apresenta como um homem heterossexual que quer “apenas se divertir”, praticando o hobby de se vestir de mulher. Na prática, não é nada disso. Grande parte dos crossdressers acaba sempre se descobrindo como pessoas transexuais, prontos a levar suas mudanças corporais às últimas consequências, coisa que não estariam dispostos a admitir nem para si mesmos, quando começaram a deixar seus armários para furtivas e inocentes “saídas” noturnas de fins-de-semana. 364 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Identidades? Para Que Identidades? A maioria das pessoas são outras pessoas. Seus pensamentos são opiniões de alguma outra pessoa, suas vidas uma imitação, suas paixões uma citação. Oscar Wilde, em De Profundis267. O debate que trouxemos, a respeito da travesti que “resolve” fazer cirurgia de transgenitalização e de crossdressers que em pouco tempo fora do armário “descobrem-se” transexuais, mostram como são artificiais e arbitrárias as conceituações sobre identidades gênero-divergentes, no Brasil e no mundo. O único fator comum, visivelmente concreto, entre essas identidades é a sua notória transgressão do dispositivo binário de gênero, com todas as consequências sociopolíticas, econômicas e culturais que esse ato insurgente representa em suas vidas. O resto são “filigranas identitárias”, criadas e mantidas por discursos médico-jurídicos de patologização e tutela da condição transgênera e defendidas a ferro e fogo pelos movimentos organizados de representação identitária existentes no país. Na verdade, no Brasil, as definições de identidades gênero-divergentes têm servido muito mais como mecanismos de opressão do que como estratégias libertárias, na medida em que criam e ratificam hierarquias baseadas em corpos sexuados e estereotipados, promovendo a segregação e justificando a exclusão de pessoas e grupos dentro do próprio mundo transgênero. Identidades transgêneras que não estão compreendidas nas rígidas definições identitárias e delimitações territoriais fixadas pelo chamado “movimento organizado”, que se apresenta como representante de travestis e transexuais no Brasil, mas que, na verdade, é apenas um braço do movimento de homossexuais, tendem a ser inteiramente invisibilizadas no cenário nacional. E junto 365 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz com elas, que naturalmente também são parte integrante da população transgênera do país, a sua forma de ser, as suas escolhas pessoais e o seu estilo de vida. É notável, no meio trans, a abundância de posições pra-lá-deconservadoras e reacionárias na defesa intransigente de certos modelos identitários. O principal motivo alegado para tal fervor é “forçar” o poder público a reconhecer e legitimar sociopoliticamente essas identidades e, em função disso, desenvolver, implantar e manter políticas públicas de interesse desses segmentos. É inegável que tais ações políticas produziram alguns ganhos para determinados grupos de pessoas transgêneras o que, na opinião dos membros e das lideranças desses segmentos, mais do que justificaria a sua continuidade e intensificação. O problema é que uma estratégia de ação baseada na afirmação de uma dada identidade específica conduz, necessariamente, a uma deliberada exclusão e isolamento dos demais grupos e pessoas transgêneras cujo perfil não se enquadra nos dogmas identitários do grupo que luta exclusivamente pela sua própria afirmação. Pode-se até compreender a função dos rótulos identitários numa negociação de políticas públicas, mas é totalmente indesejável que certas identidades gênero-divergentes queiram estabelecer supremacia sobre as demais, criando e mantendo uma hierarquia e um sistema de exclusão dentro do próprio gueto transgênero, como acontece hoje em dia. Excetuada a figura da travesti, cuja ostensiva presença “na pista”268, em praticamente todas as cidades brasileiras e o pioneirismo nos movimentos sociais reivindicatórios fazem com que ela seja mais vista e identificada pela população, houve, ao longo do tempo, uma invisibilização de outras identidades transgêneras nos relatos produzidos no país. E, tal como ocorre com outros grupos sociais proscritos e estigmatizados, criou-se uma enorme lacuna de registros sistemáticos a respeito do perfil e da conduta da maioria das identidades transgêneras na sociedade brasileira, completamente obscurecidas pela dupla travesti-transexual. É decepcionante e constrangedor constatar que em pleno século XXI ainda existam pessoas insistindo em falar de “identidades de gênero” como se fossem entidades definitivamente prontas e acabadas, verdadeiros “enlatados”, perfeitamente definidas e completamente distintas umas das outras. A começar das duas identidades oficiais - homem e mulher - 366 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz (In)Conclusoes O mais importante, quando alguém tem que dar conta de uma reflexão, é que o que ele diga não valha pelo conteúdo do que ele disser, mas pelo próprio fato de dizê-lo. [...] Mas o que posso esperar como o melhor é que o que digo seja dito com tal força, com tal atitude, que determine atitudes em vocês. J.D. Nasio270, O Olhar em Psicanálise. P or que, em pleno século XXI, continua sendo prática corrente a negação dos direitos civis das pessoas transgêneras, direitos de cidadania que são assegurados, sem nenhuma restrição, aos homens e mulheres cisgêneros? O que fundamenta, explica e justifica o estigma, a invisibilização social, a privação de oportunidades e a indigência legal-moral a que são condenadas as pessoas transgêneras em nossa sociedade? Todos os bloqueios e interdições ao pleno exercício da cidadania das pessoas transgêneras resultam da sua transgressão ao dispositivo binário de gênero, da sua inobservância ao critério de classificação e hierarquização dos seres humanos com base no órgão genital presente em cada indivíduo ao nascer. Também mostramos que, por causa daquilo que a sociedade ainda considera ser uma transgressão, as pessoas transgêneras são "repositórias" de um dos mais antigos estigmas da humanidade: a condenação sobre toda e qualquer forma de expressão de gênero fora do binário oficial "masculino/feminino", tornando-se, por isso mesmo, vítimas preferenciais de inúmeras formas de violência real e simbólica. Assim, é óbvio que eventuais distúrbios mentais numa pessoa transgênera são muito mais “efeito” – e efeito maldito – da maneira como as estruturas sociais, políticas e culturais respondem ao comportamento transgênero do que “causa” da transgeneridade, como ainda defende uma expressiva parcela da medicina e da psicologia. A tendência, amplamente dominante, tanto na educação, na medicina, na psicoterapia e na justiça, quanto em muitos meios acadêmicos brasileiros, continua sendo de tratar a condição transgênera – ou transgeneridade – como mera variação da homossexualidade e como patolo373 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz gia, mais precisamente como “transtorno mental” ou, nos termos “amaciados” do DSM V, como “disforia”. Essa tendência reflete o atraso da sociedade brasileira no reconhecimento dos direitos civis das pessoas transgêneras, como já ocorreu em diversas partes do mundo, inclusive na Argentina e no Uruguai. Respaldada por um machismo exacerbado e por crenças religiosas fundamentalistas, a sociedade brasileira continua submetendo as pessoas gênero-divergentes a uma elevadíssima carga de estresse físico e mental resultante do intenso e contínuo constrangimento sociopolíticocultural a que elas são expostas. Essa tortura cruel e mesquinha, praticada em nome de coisas como “cura” e “reajustamento social”, leva as pessoas transgêneras a um quadro de total esgotamento físico e mental, que pode resultar em suicídio, modalidade eleita com muita frequência como forma da pessoa se livrar de uma carga existencial que se tornou insuportável. São essas pesadíssimas demandas psicossociais e políticas, permanentemente lançadas, interna e externamente, sobre os seus ombros por uma sociedade que se considera “normal”, que fazem as pessoas transgêneras se sentirem “mentalmente atormentadas” e “socialmente desajustadas”. É muito doloroso saber-se uma pessoa desde sempre “inadequada” ao convívio social “normal”, como também é doloroso saber que, para ser reconhecida como “adequada”, é necessário aprender a fingir, a dissimular e a esconder a sua verdadeira identidade. A sociedade brasileira necessita muito – e urgentemente – de educação e esclarecimento a respeito da condição transgênera. Sem um nível adequado de formação e informação, continuará prevalecendo a visão arcaica do estigma bíblico sobre pessoas transgêneras e as consequências absolutamente nefastas da sua aplicação. 374 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Epí logo: O Corpo da Roupa Nas curvas do desejo heteronormatizado, o corpo abjeto da pessoa transgênera sempre será objeto de atração, estranhamento e violência. Letícia Lanz A qui termina a viagem de observação e reconhecimento ao território transgênero” que me propus a fazer, no prólogo deste trabalho, junto com quem quisesse me acompanhar. Estou convicta de que as pessoas que se dispuseram a vir comigo foram descobrindo, ao longo da jornada, que o “território transgênero” é o próprio “corpo transgênero”. É a ele que eu me referia como a “costa com muitos arrecifes e bancos de areia” onde “a navegação é basicamente cheia de surpresas”. Onde, “mesmo em dias de águas calmas, jamais se pode confiar inteiramente no que se vê na superfície, à flor da água”. E, como também adverti lá no início da viagem, “tal e qual o piloto de um barco numa costa acidentada, a atenção do pesquisador no território transgênero deve estar permanentemente voltada para o que permanece sob as águas, abaixo da superfície; para o que não é visto e/ou que não se deixa ver; para as formações absolutamente transitórias, que deixam marcas nada mais do que instantâneas e passageiras na geografia do litoral”. Quem me acompanhou nessa jornada pôde vislumbrar alguns dos numerosos conflitos, contradições e paradoxos existentes na complexa cartografia transgênera, acidentes geográficos que colocam a pessoa gênero-divergente permanentemente tensionada entre transgredir ou se conformar às normas de gênero. Em meio à forma muitas vezes caótica, revoltada e repetitiva do meu “diário-de-bordo”, espero ter sido capaz de descrever o enorme desespero existencial da pessoa transgênera ao constatar que não é, e que provavelmente, de forma integral como muitas desejam, nunca poderá ser “o corpo da roupa”, isto é, o corpo “perfeitamente generificado”, heteronormal-cisgênero, assujeitado e submisso ao dispositivo binário de gênero que delimita, impõe e regula todas as suas ações como pessoa no mundo. 383 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz O corpo da roupa é um “cabide” feito para pendurar exclusivamente a roupa da categoria de gênero em que esse corpo foi classificado ao nascer. O corpo da roupa é o corpo vestido, isto é, “investido” de todo o aparato institucional que transforma um organismo biológico em uma entidade culturalmente inteligível. A roupa incorpora a norma e o corpo vestido é a norma corporificada. O corpo da roupa é o corpo construído para atender as exigências da roupa-norma: não pode deixar dúvidas de que ele é caNão podemos continuar a desenvolver os corpos de acordo com as roupas que a paz de vestir a roupa e corporisociedade já tem pronta e classificada para ficar a norma. O corpo da roupa vesti-los, de acordo com suas característi- é, assim, um corpo fabricado, cas genitais primárias e secundárias. Está mais do que na hora de legitimar os corpos forjado, modelado e, ao mesmo como eles são e deixar que cada pessoa tempo, dividido e dilacerado escolha livremente a roupa que quer usar. As roupas, inclusive e principalmente as pelas normas que o constituem. roupas institucionais, é que têm que se Ao contrário de ser um tipo adequar aos corpos, não o contrário. de máscara ou verniz superficial, Precisamos entender que o que não faz sentido é gênero. Que toda e qualquer encobrindo uma suposta verdadeiclassificação baseada em gênero é fictícia e ra natureza do nosso corpo, a rouarbitrária, só servindo para criar hierarquias e desigualdades entre as pessoas. O pa tem o poder de criar tipos espefim do gênero será o fim de uma enorme cíficos de corpos, estabelecendo chaga de separação e desigualdade entre distinções quanto a gênero, classe os seres humanos. social, status econômico, religião, Letícia Lanz idade e subcultura, diferenças essas que, sem o concurso da roupa, dificilmente poderiam ser expressas de maneira tão clara, visível e significativa. Os corpos são muitos, mas a roupa-norma é uma só. Para todos. E a sociedade não só se gaba dessa “igualdade” da “norma para todos” como só pode existir graças a ela. O corpo transgênero transgride o dispositivo que rege a normalidade social. Ele “não devia” estar dentro daquela roupa e, no entanto, está, contrariando as normas binárias de gênero. Ele é o corpo que viola os discursos normativos de gênero, que não se encaixa nas matrizes culturais de inteligibilidade, que escapa aos rígidos controles de conduta de gênero. 384 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz que somos; não precisamos de ser reconhecidos como isso ou aquilo só para sermos aceitas por uma sociedade que basicamente nos rejeita e nos repele e na qual definitivamente também não vale a pena viver. De um ponto de vista altamente idealizado, poder-se-ia imaginar a população transgênera como sendo baluarte de um movimento de vanguarda, voltado para o fim do gênero enquanto instituição política da sociedade. O corpo transgênero é essencialmente um corpo libertário, mas pode ser também um corpo reacionário da pior espécie: um corpo que busca sua readequação para inserir-se no modelo que o excluiu, fato que certamente constitui um dos paradoxos mais evidentes e alucinantes da transgeneridade. Não me oponho e apoio inteiramente a transformação do corpo enquanto território de tensões e lutas infindáveis no processo de corporificação e subjetivação da identidade transgênera. Mas o corpo abjeto que resulta dessas transformações pode ser um guerrilheiro antigênero ou um apologista do dispositivo binário de gênero. Fico com a primeira opção. 395 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Yo Quisiera Ser Travesti Pol Asenjo* Yo quisiera ser travesti ser batato y tener tetas de aceite de camiones y motores asesinos silicona industrial en mis venas embebida lentamente hasta morir en jeringas oxidadas que se clavan y me inflan y revientan los pezones traga grasa corazón de gomería uñas cuadradas dedos de chongo cierra sus dedos un poco de sangre Adiós oh adiós a dios reptan mis pedazos collar roto de babosas peregrinas maldito camino de baba que lame el polvo del piso que pisa el amado bruto cogiéndome cogiéndose al puto el bello camión que aplasta riendo a perras preñadas ese chongo magnolia lechosa oh árbol brutal yo quisiera ser travesti con la cara deformada por las crudas cirugías té canasta y colágeno en la pensión de traviesas retiradas nos tomamos unos mates vino pastas las travestis no conocen la anestesia porque la belleza las achura y las carnea y la que se acuerde de gritar no ha nacido para esto hay que ser macho y apretar morder la bala hay que cortar y serruchar martillar y clavar clavos para domar esta dura carne dura para ser esa gran yegua que es un sueño de caballos yo quisiera ser travesti ellas son lo que no logra la terapia ser la carne y la sangre del deseo 396 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz la genuina eucaristía yo quisiera ser travesti porque las travestis son crisálidas que se matan por vivir. (*) Pol Asenjo é poeta e dramaturgo. Nasceu e vive em Buenos Aires. 397 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz 398 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Diciona rio Transge nero Esta é uma versão revista e ampliada do Dicionário Transgênero, que mantenho em meu site desde 2006. http://www.leticialanz.org/dicionario-transgenero/ A Ponham abaixo, de uma vez por todas, as portas dos armários, levantem-se e comecem a lutar. Harvey Milk, ativista LGBT ADÉ (do bajubá) – homossexual masculino; bicha. AFEMINADO (efeminado) – diz-se do macho biológico que se comporta socialmente de maneira considerada própria ou assemelhada aos padrões de feminilidade estabelecidos pela cultura. AFEMINAR (efeminar) – adquirir, particularmente estando na condição de macho biológico, formas (inclusive físicas), modos, gostos, atitudes e/ou comportamentos próprios ou semelhantes ao que é social e culturalmente considerado como feminino. AGÊNERO – diz-se do indivíduo que se nega a ser enquadrado em qualquer categoria de gênero; pessoa que não se interessa por gênero ou tem aversão por quaisquer tipos de classificações de gênero. ALIBà (do bajubá) – polícia, guarda, policial. AMAPÔ (ou amapoa) – fêmea genética (ou o órgão genital feminino), em bajubá. (veja mona). ANDROFILIA – termo criado por Magnus Hirschfeld, no início do século XX, para designar a atração sexual e/ou romântica que indivíduos - fêmeas ou machos - sentem por machos adultos. Antônimo: ginofilia. (veja orientação sexual). ANDROGINIA MÍSTICA (ou alquímica) – o andrógino é uma presença bastante comum no ocultismo e em textos místicos e alquímicos. A maior parte dos mitos e histórias relacionadas à androginia refere-se a uma raça de andróginos que teriam habitado o planeta em tempos imemoriais. Esse mito foi até mesmo citado por Platão em O Banquete. Na mitologia grega, os seres andróginos eram geralmente caracterizados por possuir elementos do Sol (masculino) e da Lua (feminina) em um corpo e alma entrelaçados. Os alquimistas acreditavam que os seres andróginos eram divinos e detinham a capacidade de afastar o mal. Eram frequentemente mostrados derrotando serpentes, dragões e até mesmo o demônio. Certas tradições ocultas referem-se a Adão como sendo um ser andrógino, cuja “queda da graça” teria sido marcada exatamente pela sua divisão em sexos separados. A Redenção ocorre quando a dualidade de sexos é transcendida e macho e fêmea são novamente reunidos num todo pleno e harmonioso. No ocultismo, o orgasmo simboliza o andrógino místico, que momentaneamente reúne almas separadas e traz os participantes de volta para mais perto do “Absoluto”. A androginia tornou-se um tema muito popular em 399 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz textos alquímicos após a publicação do poema Sol e Lua no Rosarium Philosophorum, em 1550, um dos primeiros livros contendo imagens alquímicas. Outro fator de popularidade da androginia como tema recorrente entre os alquimistas deve-se ao fato de que Hermes (o deus grego da viagem e do submundo) tinha um filho hermafrodita. ANDRÓGENO (do grego andros=homem e geno=gerador) – designação genérica dos hormônios masculinos e/ou das substâncias masculinizantes. Obs.: a palavra é usada mais frequentemente no plural. Exemplo: hormônios andrógenos e antiandrógenos. ANDRÓGINO (ou bigênero; do grego andros=homem e gino=mulher) – indivíduo que apresenta, simultaneamente, características físicas e comportamentos de homem e de mulher, obscurecendo ou eliminando, por assim dizer, a rígida divisão social existente entre o gênero masculino e o gênero feminino. A imprecisão do andrógino pode ser considerada uma condição psíquica em que o indivíduo não se identifica nem como homem nem como mulher, mas como os dois, como uma espécie de gênero híbrido entre os dois ou como nenhum dos dois. Para ressaltar sua dualidade psíquica, o andrógino pode adotar corte de cabelo, penteado e modos inteiramente dúbios, usando vestuário e adereços femininos, no caso de homens, ou masculinos, no caso de mulheres. Isso torna muito difícil definir a que gênero pertence uma pessoa andrógina pertence apenas pela sua aparência. Paralelamente a isso, muitos andróginos podem apresentar também traços e características físicas do sexo oposto ao seu, o que acentua ainda mais a sua androginia. Não devem, contudo, ser confundidos com indivíduos intersexuados (conhecidos como hermafroditas no passado), que são aqueles que nascem com os dois órgãos genitais (pênis e vagina). Como acontece com todo o segmento transgênero, também os andróginos são considerados como homossexuais (ou bissexuais) pela maioria das pessoas, o que não é verdade. A androginia (como o travestismo ou o crossdressing) é uma expressão de gênero, nada tendo a ver com orientação sexual (ou identidade sexual). Pessoas andróginas (assim como travestis, crossdressers ou dragqueens) podem ter orientação homossexual, heterossexual, bissexual ou assexual. O andrógino foi considerado uma figura sagrada em diversas culturas ancestrais, como os berdaches, (two-spirit people) entre os nativos da América do Norte e Central e os bissu, do Sulawesi. Shiva Ardanarishvara, representação andrógina de Shiva (metade homem/metade mulher) é uma das entidades mais fortemente cultuadas na religião hindu. Obs.: cuidado com a grafia de “andrógeno”, que significa praticamente o oposto de andrógino. AQUÉ (do bajubá) – dinheiro, grana. ARMÁRIO (inglês: closet) – em analogia ao local físico onde se guarda roupas e calçados, o termo refere-se ao “estado de ocultação e resguardo”, extremamente penoso e desconfortável, em que pessoas transgêneras permanecem até assumirem sua condição para um número maior de pessoas. Em virtude do forte estigma e consequentes represálias sociais a homens que se travestem, pode-se supor que a maioria absoluta dos transgêneros M2F passarão a vida inteira “trancados” em seus armários, vivendo em clima de grande sofrimento e ansiedade. ARMARIZADO (inglês closeted) – neologismo derivado de armarizar, também um neologismo, significando estar ou permanecer no armário. Diz-se da pessoa LGBT que está ou que permanece no armário, sem poder ou sem querer revelar ao mundo a sua condição. ASSEXUAL – diz-se da pessoa sexualmente inativa, que não sente atração sexual por ninguém, nem do sexo oposto nem do próprio sexo, sendo, portanto, completamente desinteressada em participar de qualquer tipo de atividade sexual. Pessoa totalmente indiferente a sexo, que não tem atração física ou romântica nem por machos nem por fêmeas. AUTOGINEFILIA (ou autoginecofilia) – o termo autoginecofilia, que significa literalmente “amor (atração) a si mesmo como fêmea”, foi criado por Ray Blanchard, na época psicólogo clínico do Clarke Institute of Psychiatry, em Toronto, Canadá, com o objetivo, segundo 400 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz ele, de aprimorar os critérios de classificação das pessoas transgêneras. Partindo do fator “excitação sexual”, Blanchard dividiu a população transgênera em dois grupos aos quais denominou, respectivamente, de autoginefílico (ou autoginecofílico) e androfílico. (veja androfilia e orientação sexual). B Nem pagando ponho óculos escuros! Óculos escuros é coisa de bicha. Eu sou um roqueiro macho. Nelson Gonçalves BAJUBÁ (ou pajubá) – língua baseada em diversas idiomas e dialetos africanos (nagô, ioruba, quimbundo, kikongo, umbundo, egbá, ewe e fon), usada inicialmente em terreiros de candomblé e posteriormente adotada como forma de comunicação entre travestis de rua, que acabou se estendendo a todo o universo LGBT no Brasil. BERDACHES (ou, em inglês, two spirit people= pessoa de dois espíritos) – datam de 1530 os primeiros relatos de colonizadores europeus dando conta da existência de gêneros alternativos na maioria dos povos nativos norte-americanos. Embora as inúmeras variantes e peculiaridades dos gêneros alternativos identificados pelos europeus, seus representantes foram genericamente denominados de berdaches, vocábulo provavelmente derivado de bardaj, termo utilizado na Pérsia para designar homens afeminados e parceiros sexuais passivos. Sociologicamente o berdache poderia ser descrito como uma solução elegante e generosa para acolher indivíduos desadaptados à dualidade masculino/ feminino. Contudo, muito além de solução respeitosa para o possível impasse institucional criado por homens considerados “covardes”, relativamente aos padrões de gênero vigentes na tribo, os berdaches constituíram um segmento de pessoas tidas como abençoadas pelos deuses. Por serem, ao mesmo tempo, homem e mulher e, portanto, estarem mais completos e equilibrados do que um homem ou uma mulher isoladamente, os nativos norte-americanos acreditavam (e seus remanescente ainda acreditam) que a identidade berdache fosse o resultado da intervenção de forças sobrenaturais, de onde viriam seus “poderes especiais”, mito sancionado pela mitologia tribal, que os tornou conhecidos como “possuidores de dois espíritos”. Os berdaches sobreviveram até hoje em muitas comunidades nativas norte-americanas devido à sua importância dentro da tribo, onde sempre desempenharam, dentre outros, os papéis de aconselhadores espirituais, médicos, adivinhos e xamãs. Embora isso já não seja mais tão comum hoje em dia, no passado os berdaches masculinos podiam também desempenhar papéis dentro do grupo familiar, atuando como esposas dos guerreiros, posição social em que recebiam o mesmo tratamento dado às mulheres casadas. Berdaches masculinos foram localizados em mais de 155 tribos norte-americanas. As únicas exceções documentadas foram os apaches e comanches. Em aproximadamente um terço desses grupos, um gênero alternativo também existiu para fêmeas que desenvolveram um estilo de vida masculino, tornando-se caçadores, guerreiros e chefes. Elas também foram muitas vezes chamadas pelo mesmo nome de berdaches e às vezes através de um termo distinto, constituindo, dessa forma, um quarto gênero. Assim, “o terceiro gênero” geralmente refere-se a berdaches masculinos e às ve- 401 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz zes a berdaches masculinos e femininos, enquanto “o quarto gênero” sempre se refere a berdaches femininos. Em muitas culturas tribais, os xamãs mais potentes eram “indivíduos de dois espíritos”, como dá conta o testemunho de muitos pesquisadores em seus estudos de campo. Mesmo quando os xamãs não eram necessariamente “pessoas de dois espíritos”, os pesquisadores os descrevem como possuindo a marca da transgeneridade, além de terem orientação sexual basicamente homo ou bissexual. Nesses casos, a distinção entre o xamã e o berdache era semelhante à distinção entre um mago poderoso, capaz de conjurar as forças da natureza e a de um sacerdote dedicado, um mediador, um líder dos rituais, um cuidador ou um “revelador de verdades”. Os nativos das Américas não só toleravam como respeitavam a transgeneridade como uma manifestação sagrada. A homofobia e a transfobia foram trazidos para as Américas pelo colonizador europeu e sua moral judaico-cristã. Em virtude da sua crença religiosa, os europeus que vieram conquistar a América perseguiram os berdaches implacavelmente. Vasco Nunes de Balboa, por exemplo, ao descobrir alguns berdaches no lugar onde hoje fica o Panamá, lançou-os vivos aos seus cães, para ser devorados. BDSM – acrônimo representando um conjunto de práticas sexuais relacionadas a dominação e submissão, criado a partir de: - B&D – Bondage & Discipline, ou seja, escravidão e disciplina - D&S – Dominance & Submission, ou seja, dominação e submissão - S&M – Sadomasochism, ou seja, sadomasoquismo. BIBA – homossexual masculino. É uma forma mais carinhosa do que bicha, viado ou boiola. Empregada geralmente na forma feminina: a biba. BICHA (também usada na forma diminutiva: bichinha) – designação genérica de caráter ofensivo dada, depreciativamente, a qualquer indivíduo que não se comporta estritamente de acordo com os rígidos padrões de conduta do gênero masculino. Um indivíduo pode ser chamado de “bicha” pelo simples fato de estar usando uma roupa diferente ou apaixonar-se por uma mulher de maneira romântica. “Coisa de bicha”: diz-se de qualquer atitude, indumentária ou procedimento que a sociedade machista (incluindo uma grande maioria de mulheres conservadoras) considera “fora” dos vetustos padrões de conduta que ainda vigoram para o gênero masculino. Pelo seu caráter pejorativo, o termo bicha equivale ao termo “queer” nos EUA. Nota: o termo “bicha” é comumente usado de maneira carinhosa entre pessoas LGBT com as quais se tem maior intimidade. (veja viado). BIGÊNERO – o mesmo que andrógino. BISSEXUAL (ou simplesmente bi) – diz-se da pessoa que tem atração sexual tanto por indivíduos do mesmo sexo quanto pelos do sexo oposto. Pessoa que tem atração física e/ou romântica tanto por machos quanto por fêmeas, indistintamente. BOFE – na gíria LGBT refere-se ao homem em geral, não necessariamente heterossexual. BOIOLA – designação pejorativa, de natureza depreciativa e homofóbica, dada a homossexuais do sexo masculino e, por extensão, a qualquer homem que se comporte de maneira “suspeita” tendo em vista os padrões de conduta masculina estabelecidos pela sociedade. (veja bicha, viado). BOMBADEIRA – pessoa com prática, em geral travesti, na aplicação clandestina de silicone industrial para fazer o corpo de outras travestis. Trata-se de um recurso perigosíssimo, capaz de provocar sérios danos ao organismo das pessoas que foram “bombadas”. BONECA – travesti atuando na indústria do sexo, geralmente veiculada em anúncios como “boneca transex”. 402 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz C Crossdressing não é algo que a gente é, mas algo que a gente faz, e faz motivadas pelas mais diversas razões. Virginia Prince CAÔ (ou caó) – mentira, embuste, tramoia. CHAUVINISMO MASCULINO – Veja machismo. CIRURGIA DE REAPARELHAMENTO GENITAL (inglês SRC: Sex Reassignment Cirurgy) – a única “cura” proposta pela medicina para os casos crônicos de GID (Gender Identity Disphoria, no DSM V ou Gender Identity Disorder até o DSM-IV). Trata-se da intervenção cirúrgica, vulgarmente conhecida como “operação para mudança de sexo”, mediante a qual se busca retificar o sexo de nascimento de uma pessoa transexual de modo a fazê-lo concordar com a sua identidade de gênero. Existem duas categorias de cirurgias de redesignação sexual: a) cirurgias de reconstrução genital - que se referem especificamente ao aparelho genital (por excelência são a vaginoplastia e a faloplastia); b) cirurgias feminilizantes ou masculinizantes - que se referem à adequação de características sexuais secundárias (como a mamoplastia ou a cirurgias faciais). Nota – A Comunidade Transgênera Norte-Americana passou a considerar essa denominação inapropriada (e até ofensiva). A denominação politicamente correta hoje em dia é “cirurgia de confirmação de gênero” (gender confirmation cirurgy). CISGÊNERO (do grego cis = em conformidade com; conforme + gênero) – a pessoa que se encontra bem ajustada ao rótulo de identidade de gênero (mulher ou homem) que recebeu ao nascer em função do seu órgão genital (macho ou fêmea). Indivíduos cisgêneros estão de acordo, e normalmente se sentem confortáveis, com os códigos de conduta (incluindo vestuário) e papéis sociais atribuídos ao gênero a que pertencem, ao contrário de indivíduos transgêneros que, de muitas e variadas formas, se sentem desajustados em relação aos rótulos de gênero que originalmente receberam ao nascer. Nota 1: cisgênero não é identidade, mas a condição sociopolítica-cultural da pessoa que vive em plena conformidade com a classificação de gênero – homem ou mulher – recebida ao nascer em razão da sua genitália de macho ou de fêmea. Nota 2: só pelo fato de estarem bem adaptados aos gêneros que receberam ao nascer, não significa que indivíduos cisgêneros tenham, automaticamente, orientação heterossexual como acreditaria o senso-comum. Eles podem ter diferentes tipos de orientação sexual: hétero, bi, assexual e homossexual, a mesma coisa acontecendo no campo transgênero. A crença generalizada é de que toda pessoa cisgênera é necessariamente heterossexual, da mesma forma que toda pessoa transgênera é vista necessariamente como homossexual, o que não é verdade. CISSEXISMO (do inglês cissexism) – discriminação, de natureza transfóbica, que ocorre no nível estrutural da sociedade. Essa é a forma de segregação de pessoas transgêneras que existe nas leis, políticas e valores no nível macrossocial, assim como nas práticas que privilegiam pessoas cisgêneras sobre pessoas transgêneras ou gênero-divergentes. O cissexismo pode ser considerado como o conjunto de atitudes e comportamentos que normalizam e valorizam pessoas cisgênero em detrimento de pessoas transgênero, em 403 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz normas oficiais de gênero, como acontece com a maioria cisgênera da população, as pessoas transgêneras se caracterizam por afrontar ou violar essas normas de muitas e de variadas maneiras, praticando delitos que vão desde faltas muito superficiais, como vestir-se, eventualmente, com roupas culturalmente designadas para uso exclusivo do gênero oposto ao delas, até atos que poderiam ser classificados como de total insubmissão à ordem binária de gêneros, como o total repúdio ao enquadramento de gênero recebido ao nascer (e a consequente busca pelo reenquadramento na categoria de gênero oposta àquela na a qual a pessoa foi enquadrada ao nascer). Por constituir transgressão das normas do sistema binário de gênero, normas que são a base e o fundamento de toda a nossa fabulosa estrutura sociopolítica e cultural, a condição transgênera tem sido historicamente proscrita, estigmatizada e invisibilizada pela sociedade. UÓ (do bajubá) – pessoa, coisa ou situação feia, ruim, desconfortável, desagradável, aborrecida, etc. Termo usado frequentemente na expressão “uó do borogodó”. V VIADO (e não “veado”) - termo com o qual no Brasil são largamente designados machos homossexuais e, por extensão, transgêneros em geral, como CDs, travestis, transformistas, dragqueens e transexuais, dentre outros. O termo pode ter se originado da redução da palavra “transviado” (que ou aquele que se transviou), de uso comum no Brasil, na década de 1950, para designar um jovem transgressor de costumes e normas de conduta social (ver bicha). 432 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Bibliografia Geral ADELMAN, Μiriam. Reviews: Gender Matters: Malcolm Barnard, ed., Fashion Theory: A Reader. International Sociology, 23, 2008, 735 – 739. ______________________. Paradoxos da identidade: a política de orientação sexual no século XXI. Revista Sociologia Política, Curitiba, 14 : p. 163 - 171, jun. 2000. ADELMAN, Μiriam; RUGGI, Lennita. Sociología contemporânea y el cuerpo. In Sociopedia, Isa, 2013a. ADELMAN, Μiriam; RIAL, C. Uma trajetória pessoal e acadêmica: entrevista com Raewyn Connell. Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 424, janeiro-abril de 2013b. ADELMAN, Μiriam; AJAIME, Emmanoelle; LOPES, Sabrina Bandeira; SAVRASOFF, Tattiana. Travestis e transexuais e os outros: identidade e experiências de vida. In: Gênero, v. 4, n. 1, p. 65-100, Niteroi, 2º sem., 2003. AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo. Outra Travessia (Revista de Pós-Graduação em Literatura) nº5. UFSC, Florianópolis, 2005. ANESHENSEL, Carol S.(ed.) ; PHELAN, Jo C. (ed.). Handbook of the Sociology of Mental Health. New York : Springer, 1999. APA–American Psychological Association. Answers to your Questions About Transgender People, Gender Identity and Gender Expression. Washington-DC : American Psychological Association, 2011. ARCHER, John and LLOYD, Barbara Bloom. Sex and gender. New York : Penguin, 1982 BABIE, Earl. The practice of Social Research. Belmont-CA : Wadsworth, 2007. BANDURA, Albert. Social Learning Theory. Englewood Cliffs, NJ : Prentice-Hall, 1977. BANDURA, Albert; AZZI, Roberta Gurgel; POLYDORO, Soely Aparecida. Teoria Social Cognitiva: Conceitos básicos. Porto Alegre : Artmed, 2009. BARSTOW, Anne Llevellyn. Witchcraze – A new history of the european witch hunts. San FranciscoCA : Pandora, 1994. BARTHES, Roland. Análise estrutural da narrativa. Petrópolis : Vozes, 1976. BASTIDE, Roger. Sociologia do Folclore Brasileiro. São Paulo: Editora Anhambi, 1959. BAUMEISTER, R. F. Gender and erotic plasticity: sociocultural influences on the sex drive. Sexual and Relationship Therapy Vol. 19, No. 2, May 2004. BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Vol. II: A Experiência Vivida. São Paulo : Difusão Europeia do Livro, 1967. BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. BEM, Sandra Lipsitz. The Lenses of Gender: Transforming the Debate on Sexual Inequality. New Haven-CT : Yale University Press, 1994. BEEMYN, Genny. A Presence in the Past: A Transgender Historiography. Journal of Women's History, Volume 25, Number 4, pp. 113-121, 2013. BELL, David ; BINNIE, Jon. The sexual citizen : queer theory and beyond. Cambridge-UK : Polity Press, 2000. BELL, Q. On Human Finery. London: Hogarth Press, 1976. BELL, Diane; CAPLAN, Patricia Wazir; KARIM, Jahan Begum. Gendered Fields: Women, Men, and Ethnography. New York & London: Routledge, 1993. BENEDETTI, Marcos Renato. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro : Editora Garamond, 2005. BENEDICT, Ruth. Anthropology and the Abnormal. Journal of General Psychology, 10, 1934, p. 59-80. 433 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz BENTO, Berenice. A Reinvenção do Corpo: Sexualidade e Gênero na Experiência Transexual. Rio de Janeiro : Garamond, 2006. BERDAHL, Jennifer L. The sexual harassment of uppity women. Journal of Applied Psychology, 92, 425–437. BETTCHER, Talia; GARRY, Ann. Introduction. In: Hypatia - Special Issue: Transgender Studies and Feminism: Theory, Politics, and Gendered Realities 24 (3), 2009. BICCHIERI, Cristina. The Grammar of Society: the Nature and Dynamics of Social Norms, New York: Cambridge University Press, 2006. BLAIKIE, Norman. Designing Social Research. Cambridge-UK : Polity Press, 2009. BOCKTING, Walter O. Transgender Coming Out: Implications for the Clinical Management of Gender Dysphoria. In: BULLOUGH, Vern; BULLOUGH, Bonnie; ELIAS, James (eds.). Gender Blending. AmherstNY : Prometeus Books, 1997. BOLÍVAR, A. Profissão Professor: o itinerário profissional e a construção da escola. Porto Alegre : EDIPUCRS, 2001. BORGATTA, Edgar F. (ed.); MONTGOMERY, Rhonda J. V. (ed.). Encyclopedia of Sociology. New York : Mc Millan, 2000. BORNSTEIN, Kate. Gender Outlaw: On Men, Women and the Rest of Us. New York: Routledge. 1994. _____________________. My Gender Workbook. New York : Routledge, 1998. _____________________. Gender Terror, Gender Rage. In STRIKER, Susan; WHITTLE, Stephen. The Transgender Studies Reader. New York : Routledge, 2006. BOSWELL, Holly. The Transgender Alternative [1991]. In Transgender Tapestry #98, Summer 2002. BRIDGES, George S.; DESMOND, Scott A. Deviance Theories. In: BORGATTA, Edgar F.; MONTGOMERY, Rhonda J. V. (ed.). Encyclopedia of Sociology, vol.1. NY : Macmillan, 2000. BRIERLEY, Harry. Transvestism: A handbook with case Psychologists and Counsellors. Oxford-UK : Pergamon Press, 1979. BRUM, ELIANE. Meus desacontecimentos – A história da minha vida com as palavras. São Paulo : Leya Brasil, 2014. BRUNER, J. Atos de significação. Porto Alegre: Artmed, 1997. BULLOUGH, Vern L. Homosexuality, a History. New York : New American Library, 1979. BULLOUGH, Vern; BULLOUGH, Bonnie. Crossdressing, sex and gender. NY : Penguin, 1993. BULLOUGH, Vern; BULLOUGH, Bonnie; ELIAS, James (eds.). Gender Blending. Amherst-NY : Prometeus Books, 1997. BUTLER, Judith. Bodies That Matter. New York : Routledge, 1993. __________________. Critically Queer. In Playing with Fire: Queer Politics, Queer Theories. Ed. Shane Phelan. New York & London: Routledge.11-29, 1990a. ___________________. Cultural Identity and Diaspora. In Rutherford J. (org.). Identity. London : Lawrence & Wishart, 1990. ___________________. Gender Performance: The TransAdvocate interviews Judith Butler by Cristan Williams, May 1, 2014. Disponível em http://www.transadvocate.com/ gender-performance-thetransadvocate-interviews-judith-butler_n_13652.htm. Acessado em 29-05-2014. ___________________. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York & London: Routledge, 1990b. ___________________. Gender Trouble - Feminism and the Subversion of Identity. New York and London : Routledge, 1999. ___________________. Imitation and Gender Insubordination. In ABELOVE, Henry; BARALE, Michele Aina; HALPERIN, David M. (ed.). The Lesbian And Gay Studies Reader. New York : Routledge, 1993. ___________________. La cuestión de la transformación social. In: BECK-GERNSHEIM, Elisabeth; BUTLER, Judith ; PUIGVERT, Lidia. Mujeres y Transformaciones Sociales. Barcelona : El Roure Editorial, 2001. 434 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz WALKER, Barbara. The Woman’s Encyclopedia of Myths and Secrets. New York : Harper & Row, 1983. WALTERS, Suzanna Danuta. All the Rage: The Story of Gay Visibility in America. Chicago : University of Chicago Press, 2003. WEEKS, Jeffrey. O Corpo e a Sexualidade. In LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da Sexualidade. in LOURO, Guacira Lopes (org.). O Corpo Educado - Pedagogias da Sexualidade. Belo Horizonte : Autêntica, 2000. _________________. Sexuality. New York : Routledge, 1986. WELLER, Vivian. A hermenêutica como método empírico de investigação. Caxambu/MG. XXX Reunião Anual da ANPED. GT Filosofia, 2007. WEST, Candace and ZIMMERMAN, Don. Doing gender. Gender and Society, June ,1987, 1(2):125–151. WIDE, Oscar. De Profundis. Phoenix-Library.org, 2001. WILLIAMS, Kipling D.; FORGAS, Joseph; von HIPPEL, William. The social outcast: ostracism, social exclusion, rejection and bullying. New York : Psychology Press, 2005. WOOLF, Virginia. Orlando. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1978. YOUNG, Lisa. Out of the closets, into the streets. In Womenspeak, nov, 19, 1979. Disponível em http://newspaperarchives.vassar.edu/cgi-bin/vassar?a=d&d=Womanspeak 19791119-01.2.21. Acessado em 14-06-2014. 445 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz Notas THURER, 2005, p. 67. BRUM, 2014, p. 111. 3 Viado (com “i”) é a forma mais comum de designação (chula) do homossexual masculino, ou gay, no Brasil (VIP, A.; LIB, F. 2006). Penso equivaler perfeitamente ao “queer” na língua inglesa. (N. da A.) 4 Refrão da música Walk in the wild side, de Lou Reed, do Velvet Underground, em que ele faz uma espécie de apologia às mulheres transgêneras que fizeram parte, como ele próprio fez, do projeto “pop-libertário” de Andy Wharol. A letra da música faz alusão direta a cada uma dessas mulheres trans, inclusive da mais famosa delas, Candy Darling: “Holly came from Miami, FLA / Hitch-hiked her way across the USA / Plucked her eyebrows on the way / Shaved her legs and then he was a she / She says, “Hey, babe / Take a walk on the wild side”/ She said, “Hey, honey/ Take a walk on the wild side / Candy came from out on the Island / In the backroom, she was everybody”s darlin” / But she never lost her head / Even when she was giving head / She says, “Hey, babe / Take a walk on the wild side” / Said, “Hey, babe / Take a walk on the wild side”/ And the colored girls go doo do doo do doo” 5 Cissexismo: discriminação transfóbica de natureza estrutural que ocorre no próprio nível estrutural/institucional da sociedade. Essa forma de discriminação existe nas leis, políticas públicas, valores morais e práticas da vida diária, privilegiando pessoas cisgêneras sobre pessoas transgêneras. O cissexismo está também relacionado ao conjunto de atitudes e comportamentos que valorizam e normatizam as pessoas cisgêneras, ao mesmo tempo em que mantêm invisíveis as pessoas transgêneras, tratando-as como inferiores e sociodesviadas (GROLLMAN, Eric. What Is Transphobia? And, What Is Cissexism. Disponível em http://kinseyconfidential.org/transphobia/. Acessado em 02-032014). 6 Weber foi longe demais na defesa da neutralidade axiológica, recomendando que os professores ficassem restritos a apresentações estritamente científicas, abstendo-se inteiramente de expressar quaisquer tipos de comentários de natureza moral. Em seu texto clássico sobre neutralidade axiológica (1917), enfatizou que o cientista social jamais deveria fazer doutrinação moral fingindo estar apresentando ciência empírica pura. Quando as teorias sociais são cotejadas com a prática, juízos de valor são necessariamente requeridos. Tais julgamentos não são proposições científicas de natureza empírica mas apreciações críticas da realidade, baseadas em valores morais. Strauss (1953) levantou uma objeção importante contra o imperativo de neutralidade axiológica weberiano dizendo que se os juízos de valor não são científicos, então eles não são baseados na razão sendo, portanto, arbitrários. Mas se juízos de valor são arbitrários, por que deveríamos obedecê-los? Dessa forma, por que os cientistas sociais deveriam respeitar o imperativo moral da neutralidade axiológica? Além disso, se os valores são arbitrários, a atividade científica também o é, uma vez que requer uma série de juízos de valor nas suas formulações. Em outras palavras, se a base lógica da neutralidade axiológica for aceita, então a base racional para a formulação de juízos de valor é prejudicada e, consequentemente, a atividade científica se torna totalmente arbitrária. O ideal de neutralidade deveria proteger a ciência da interferência indevida de juízos de valor, que resultem na invalidação da própria ciência, uma vez que a seleção de problemas científicos e a utilização prática da ciência são puramente arbitrários. De acordo com Strauss, a fim de evitar essas posições niilistas os fundamentos da neutralidade axiológica devem ser questionados, e deve-se admitir que uma ciência dos juízos de valor, ou seja, uma ciência da moral, é possível. (N. da A.) 7 BORNSTEIN, 1998, p. 5. 8 FREUD, 1933. 9 BEAUVOIR, 1967, p. 9. 10 Em 2008, Thomas Beattie, que nasceu mulher, mas depois de cirurgia e tratamento hormonal passou a viver como homem, deu a luz a uma menina em um hospital do Oregon, nos EUA. Em janeiro de 2014, o transexual Alexis Taborda, 27, que nasceu mulher, foi o primeiro homem a dar à luz na Argentina. Casado oficialmente com a também transexual Karen Bruselario, nascida homem, para engravidar ele aceitou parar o tratamento hormonal que fazia para ter feições masculinas. (N. da A.) 11 THURER, 2005, p. 3. 12 THURER, 2005, p. 1. 1 2 446 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz STONE, 2006, p. 230. FORREST, Susan. Transgender Studies Faculty Cluster Hire at University of Arizona. Posted on August 30, 2013. Disponível em http://www.learningtrans.org . Acessado em 22-06-2014. 15 If queer theory was born of the union of sexuality studies and feminism, transgender studies can be considered queer theory’s evil twin: it has the same parentage but willfully disrupts the privileged family narratives that favor sexual identity labels (like gay, lesbian, bisexual, and heterosexual) over the gender categories (like man and woman) that enable desire to take shape and find its aim (STRYKER, 2004, p. 1). 16 HUFFPOST GAY VOICES. University of Arizona Helps Transgender Studies Take a Bold Leap Forward. Posted: 09/04/2013 5:01 pm. Disponível em http://www.huffingtonpost.com/mitchkellaway/university-of-arizona-transgender-studies_b_3854427.html. Acessado em 21-09-2013. 17 FREUD, Collected Writings, 1924. 18 WEST & ZIMMERMAN, 1987. 19 BUTLER, 1990. 20 SCOTT, 1995, pp. 71-99. 21 Segundo Agamben, para Foucault dispositivo: 1) É um conjunto heterogêneo, que inclui virtualmente qualquer coisa, linguístico e não linguístico no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de segurança, proposições filos6ficas, etc. a dispositivo em si mesmo e à rede que se estabelece entre esses elementos. 2) 0 dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre em uma relação de poder. 3) É algo de geral (um reseau, uma "rede") porque inclui em si a episteme que, para Foucault, é aquilo que em uma certa sociedade permite distinguir o que é aceito como um enunciado científico daquilo que não é científico (AGAMBEN, 2005, p. 9). 22 Segundo o Dicionário Houaiss, “que perdeu ou teve alteradas as qualidades próprias de sua espécie (diz-se do ser vivo); abastardado”. (N. da A.) 23 KAPLAN & GREWAL, 2006, p. 32. 24 MEAD, 2000, p. 47. 25 WEEKS, 2000, p. 29. 26 MOORE, 1997, p. 813. 27 FAUSTO-STERLING, 2000. pp. 40–78. 28 FAUSTO-STERLING, 2000, pp. 40–78. 29 FAUSTO-STERLING, 1985, p. 8. 30 Obra sem tradução para o português (N. da A.) 31 FAUSTO-STERLING, 2000, p. 3. 32 FAUSTO-STERLING, 2000, p. 5 33 LIPKIN, 1999, p. 74. 34 KAPLAN & GREWAL, 2006, p. 32. 35 GIDDENS, 2005, p. 105. 36 BUTLER, 1990b, p. 273. 37 CONNELL, 1987, p. 132. 38 LAURETIS, 1994, p. 208. 39 LAURETIS, 1994, p. 207. 40 RUBIN, 1975, p. 159. 41 LAURETIS, 1994, p. 212. 42 Sobre a noção de desconstrução, ver o trabalho de Jonathan Culler, Sobre a Desconstrução: teoria e crítica do pós-estruturalismo. 43 BUTLER, 1990b, p. 276. 44 BUTLER, 1990a, p. 7. 45 BUTLER, 1990b, p. 2. 46 BUTLER, 2001, p. 22. 47 BUTLER, 1997, pp. 19-20. 48 BUTLER, 1999, p. 43. 49 BUTLER, 1990a, p. 138. 50 BUTLER, 2004, p. 127. 51 BUTLER, 1990b. 52 BUTLER, 1997, p. 61. 13 14 447 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz BUTLER, 2001, p. 22. VALENTINE, 2000, p. 25. 55 O termo cisgênero tem circulado na Internet pelo menos desde 1994, quando apareceu no alt.transgendered usenet em um correio enviado por Dana Leland Defosse. Nele, Defosse não define o termo e parece assumir que os leitores já estão familiarizados com ele. A cunhagem do termo, segundo ela, deve ser atribuída a Carl Buijs, um homem transexual da Holanda, que usou o termo em diversas publicações suas na Internet. Buijs afirmou mais tarde, em outro correio, que “quanto à origem do termo, eu apenas o compus e coloquei em uso”. (N. da A.) 56 Fontes adicionais utilizadas na elaboração da lista de privilégios cisgêneros: www.amptoons.com/blog/archives/2006/09/22/the-non-trans-privilege-checklist; www.geocities.com/girlinside123/privilege.html; www.tgboards.com/articles/privilege/. 57 O Midia Reference Guide da GLAAD está disponível on line e pode ser acessado para download em http://www.glaad.org/publications/reference. 58 Disponível em http://www.apa.org/topics/lgbt/transgender.aspx; acesso em 14-09-13. 59 FEINBERG, 1997. 60 Literalmente “o caminho da mulher”, na língua falada em Samoa. (N. da A.) 61 A lista com o nome desses países está disponível em http://76crimes.com/76-countries-wherehomosexuality-is-illegal/ 62 "Não haverá traje de homem na mulher, e nem vestirá o homem roupa de mulher; porque, qualquer que faz isto, abominação é ao SENHOR teu Deus" (Deuteronômio 22:5) 63 Veja, p. ex., o excelente trabalho de Riane Eisler, O Cálice e a Espada, onde esse tema é exaustivamente trabalhado. (N. da A.) 64 BULLOUGH & BULLOUGH, 1997, p. 213. 65 BULLOUGH, 1993, pp. 204-207. 66 BULLOUGH, 1993, pp. 204-207. 67 Magnus Hirschfeld, Die Transvestiten: Eine Untersuchung uber den erotischen Verkleidungstrieb milanfangreichem casuistuchen und historischen Material (Leipzig: Max Spohr, 1910). For an English translation, see Transvestites: The Erotic Drive to Cross Dress, trans. Michael Lombardi-Nash (Buffalo, NY: Prometheus Books, 1991). 68 HIRSCHFELD, 2003. 69 BULLOUGH, 1993, pp. 207-215. 70 O Segundo trabalho clássico a respeito de travestismo (crossdressing) foi escrito por Havelock Ellis, Eonism and Other Supplementary Studies (Philadelphia: F. A. Davis, 1928) e publicado como o volume 7 dos seus Studies in the Psychology of Sex. Embora esse trabalho estivesse disponível há muito tempo e fosse frequentemente citado pelos seus estudos de caso, seus pressupostos e fundamentos teóricos foram ignorados pela maioria dos pesquisadores americanos sobre o tema até a década de 1970, quando houve uma reavaliação de sua contribuição (BULLOUGH and BULLOUGH, 1993, p. 368). 71 BULLOUGH, 1993, pp. 207-215. 72 Havelock Ellis, Eonism and Other Supplementary Studies, vol. 6 in Studies in the Psychology of Sex (Philadelphia: F. A. Davis, 1926). O caso D’Eon é tratado em detalhes no capítulo 6. 73 STEKEL, W. Sexual Aberrations: The Phenomenon of Fetishism in Relation to Sex (translated from the 1922 original German edition by S. Parker ed.). Liveright Publishing. 74 CALIFIA, 2003; HILL, 2007. 75 A polêmica envolvendo Rupall e o Movimento Transgênero foi amplamente explorada pela imprensa norte-americana. Ver, por exemplo, “RuPaul”s “tranny” debate: the limits and power of language”, May 27 2014. Disponível em http://theconversation.com/ rupauls-tranny-debate-the-limits-and-power-of-language-27220. 76 STONE, 1993. 77 RAYMOND, 1979. 78 Em 1998, Leslie Feinberg descreveu o “Trans liberation movement” como algo que vinha “varrer o palco da história”: “we are again raising questions about the societal treatment of people based on their sex and gender expression. This discussion will make new contributions to human consciousness. And trans communities, like the women’s movement, are carrying out these mass conversations with the goal of creating a movement capable of fighting for justice of righting the wrongs. We are a 53 54 448 O CORPO DA ROUPA Letícia Lanz adas. A partir dessa pesquisa, eu tive meios para exercer um monitoramento discreto da evolução das histórias pessoais de cada associada. (N. da A.) 267 WILDE, 2001, p. 16. 268 Por “pista” se entende genericamente o local de trabalho das travestis de rua, seja ele rua, avenida, beco, praça, hotel, motel ou qualquer outro local onde os clientes podem ser encontrados. (N. da A.) 269 Ver LIMA, 2010; DUQUE, 2008; JAYME, 2004. 270 NASIO, 1995, p. 13. 271 “Identity categories tend to be instruments of regulatory regimes, whether as the normalizing categories of oppressive structures or as the rallying points for a 1iberatory contestation of that very oppression” (BUTLER, 1993, p. 308). 272 Miriam Adelman confirma essa observação: “pensamos que elas ocupam posições tanto dentro como fora da ordem de gênero hegemônica da nossa sociedade. Fora, porque rompem com normas sobre quem pode ser considerado homem ou mulher, masculino ou feminino. Dentro porque também reproduzem ou ficam presas a dicotomias preestabelecidas” (ADELMAN, 2003, p. 92). 273 Essa perspectiva é apresentada por Miskolci e Pelúcio: “infelizmente, algumas pesquisas se apropriam de conceitos butlerianos, mas os distorcem por meio de uma concepção voluntarista do sujeito. Nestes estudos, é como se o sujeito pudesse, por simples vontade, decifrar e moldar a realidade social e histórica segundo seus desejos individuais. Isto se volta contra a visão da própria autora, para a qual é claro o caráter distinto da realidade e o que dela poderia ser criado. A prática teórica permite apontar o que pode ser modificado socialmente, mas apenas por meio de uma crítica do gênero como uma modalidade de regulação das identidades. Neste sentido, a análise não pode inferir dos sujeitos – além de seus desejos conflituosos com a ordem de gênero vigente – um plano ou mesmo a capacidade de romper com as normas socialmente impostas. Pode, isto sim, apontar formas de subjetivação que resistem de maneira a constituir sujeitos singulares, seres que produzem diferenças” (Miskolci, R. Pelúcio, Larissa. Fora do sujeito e fora do lugar: Reflexões sobre performatividade a partir de uma etnografia Entre travestis. Niterói, Revista Gênero, v. 7, n. 2, p. 255-267, 1. sem. 2007 pg. 255). 274 FOUCAULT, 1995, p. 243. 275 A polêmica Conchita Wurst, vencedora do Eurovision 2014, é a persona artística de Tom Neuwirth, cantor austríaco que faturou a Copa do Mundo da música, o Festival Eurovision, em 2014. [...] Mas o que chama mesmo atenção em Conchita é a escolha por fazer uma apresentação em drag com barba. [...] O movimento LGBT europeu aplaudiu a vitória não apenas como uma manifestação de liberdade pela adoção de identidade reversa, mas por um tipo de sexualidade que adota posturas e símbolos de ambos os sexos. [...] Para o lado conservador da Europa, foi uma bomba – manifestações contrárias foram feitas na Áustria, Rússia, e em vários outros países. Mas a apresentação ultramoderna de Conchita Wurst não apenas chegou à sala de todos, como conquistou a grande maioria dos votos, consagrando-se a grande vitória do ano (Rafael Losso, A polêmica Conchita Wurst, vencedora do Eurovision 2014. Disponível em http://www.updateordie.com/2014/05/15/ polemica-vencedora-eurovision/. Acessado em 15-05-2014). 276 A crítica contundente de Judith Butler foi feita em relação a grupos representativos dentro do movimento feminista mas pode ser perfeitamente estendida a todo e qualquer movimento social de natureza identitária, como é o caso do movimento de travestis e transexuais no Brasil. Sugiro uma leitura do tópico “women as the subject of feminism”, da obra Gender Trouble, páginas 1 a 6 da edição em inglês.(BUTLER, 1990b, pp. 1-6). 456