por uma comunidade desejante - revista Icarahy
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por uma comunidade desejante - revista Icarahy
POR UMA COMUNIDADE DESEJANTE Antonio Andrade* RESUMO: Meu trabalho busca entender a relação entre o estético e o históricopolítico, tendo em vista, sobretudo, as noções de produção desejante, de agenciamento coletivo e de socius (cf. Deleuze & Guattari, 1966). Tais noções me fazem definir a idéia de “comunidade desejante” como uma forma de reflexão sobre a mobilidade incessante do pensamento e da forma literária na contemporaneidade. Esta pesquisa forma parte do meu projeto de doutorado em Literatura Comparada, que tenta aprofundar esse conjunto de questões a partir das obras de Néstor Perlongher e Severo Sarduy – escritores hispano-americanos que produziram, principalmente, entre as décadas de 1970 e 1990. Por isso, ao longo da exposição, procurarei traçar um breve quadro teórico sobre a questão da comunidade na literatura atual, para que, com isso, possa demonstrar a produtividade dessa perspectiva na leitura de alguns dos textos dos autores mencionados. Palavras-chave: Néstor Perlongher, Severo Sarduy, comunidade, neobarroco, produção desejante. * Doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor de Língua Espanhola e Literaturas Hispânicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e do Colégio Pedro II. ABSTRACT: My paper seeks to understand the relation between the aesthetic and historical-political, aiming in particular the notion of desiring-production, of collective agency and socius (cf. Deleuze & Guattari, 1966). Such notions make me define the idea of "community desiring" as a form of reflection on the constant mobility of thought and literary form in the contemporary world. This research is part of my doctoral studies in comparative literature, which broadens the range of issues from Néstor Perlongher’s and Severo Sarduy’s oeuvres. Perlongher and Sarduy are Latin American writers who produced mainly between the 1970s and 1990s. So as we proceed, I shall provide a brief theoretical background on the question of community in the current literature. With that, I intend to demonstrate the productivity of this perspective in reading some of the texts of the authors mentioned. Keywords: Néstor Perlongher, Severo Sarduy, community, Neo-Baroque, desiringproduction. I. Introdução O propósito da minha comunicação é apresentar, em um primeiro momento, um esboço do quadro teórico-metodológico do meu projeto de doutorado em Literatura Comparada, que vem sendo desenvolvido no Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense. Em seguida, tentarei demonstrar a produtividade que a vinculação entre desejo e comunidade traz para a leitura comparativa dos escritores hispano-americanos Néstor Perlongher e Severo Sarduy, os quais constituem objetos de análise da minha pesquisa. II. Quadro teórico-metodológico Venho tentando desenvolver, em minha tese, uma análise que demonstre a pertinência de questões de ordem político-ideológica no debate sobre o neobarroco. Tal posicionamento teórico vai na contracorrente da tradição crítica que coloca esse tipo de produção, quase sempre, sob um quadro teórico pós-estruturalista de ênfase exclusiva à vaziez do signo e à proliferação de uma escrita que não tem como fim a construção fechada e coerente de um sentido, e sim a entrega a uma deriva infinita que resulta apenas na desconstrução de modelos de composição e de interpretação literários. Para isso, decidi privilegiar a análise comparada das obras de Néstor Perlongher e Severo Sarduy, porque suas trajetórias literárias, políticas e intelectuais, tanto em seus países de origem quanto fora deles, exigem claramente uma forma de leitura oposta ao habitual close reading dos trabalhos sobre escritores pós-modernos. Ou seja, a forte imbricação entre a produção artística e o contexto sócio-histórico solicita uma abordagem que entrecruze questões concernentes à recente história política latino-americana, ao modo como os homossexuais construíram o seu posicionamento e os seus lugares de enunciação – em países como Argentina, Cuba e Brasil – e ao fazer poético desses escritores que não só se identificaram como se empenharam em definir o que seria o estilo neobarroco hispano-americano. O que quero, neste trabalho, não é evidentemente estabelecer uma ligação direta da linguagem com a realidade em uma espécie de mimese imediatista. Almejo, ao contrário, indiciar, ao mesmo tempo, a tensa e produtiva relação entre a linguagem e aquilo que lhe é exterior, entre o texto poético e o que não se reduz à estrutura do poema no momento de sua enunciação. Nesse sentido, acredito – junto com Adrián Cangi (2004) e, sobretudo, com Jorge Panesi (1996) – que tanto a poética perlongheriana quanto a sarduyana carregam uma interessante dimensão política e performativa por configurarem duas formas de devir que não se submetem à lógica hegemônica e desestruturam, todo tempo, as próprias formações discursivas que tratam de estabilizálas: refiro-me ao devir da experiência da comunidade e ao devir do desejo relegado ao âmbito da marginalidade. Claro que a construção desse objetivo de pesquisa provém da minha percepção dos problemas mais freqüentes na produção de Perlongher e Sarduy, a saber: a violência e a repressão praticadas pela ditadura militar argentina e pela Revolução Cubana, a diferença entre as práticas comunitárias hispânicas e dos lugares de exílio, bem como as relações ora conflituosas ora harmônicas entre o erotismo gay e o contexto sociocultural latino-americano. Em outras palavras, penso que haja uma conexão entre esses elementos, no entanto o que é mais instigante é o fato de que a voz desses poetas/escritores não se identifique a nenhuma discursividade heróica que se crê detentora do ponto de vista politicamente correto. Pelo contrário, seus textos reivindicam, ao passo que desarticulam, categorias genéricas reconhecíveis, mantendose assim no limiar entre a fala comum/coletiva e a incomunicabilidade de uma linguagem literária em movimento de expansão infinita. É justamente nessa tensão entre fala e segredo, proliferação discursiva e incomunicabilidade, que se indicia o modo como a comunidade hoje se apresenta, compartilhando algo que precisamente parece estar sempre subtraído à possibilidade de ser considerado como parte de uma comunhão (cf. BLANCHOT, 2002: 20). Há que se ressaltar, entretanto, que esse caráter inconfessável da comunidade não significa indizível, não só pelo fato de a comunidade dizer-se no silêncio, mas também por ser a não comunicação deste segredo de onde provém toda a fala. Para Maurice Blanchot, segundo a leitura de Jean-Luc Nancy, o segredo implica algo consabido, “não está então por comunicar, sendo ele mesmo ao mesmo tempo o saber da comunicação”i (NANCY – In: BLANCHOT, op. cit.: 112). É importante chamar atenção, portanto, que o ponto de vista blanchotiano sobre a comunidade não representa uma simples afirmação do vazio, e sim a verificação da inconfessabilidade dessa experiência no mundo contemporâneo, regido pela instabilidade dos valores éticos e pelo declínio e/ou relativização das ideologias. Em sua análise, Nancy afirma que Blanchot, com o ensaio “A comunidade inconfessável”, solicitava um pensamento que não se detivesse “na negação da comunidade comunial” e que pensasse “para além desta negatividade, em direção a um segredo do comum que não é um segredo comum” (Ibidem: 108). Tal relação entre o poético e o comum, ou melhor, entre a fragmentação da subjetividade e a fala coletiva encarnada em um “nós”, constitui a tensão artísticocriativa que me interessa assinalar através das obras dos autores estudados. E faço isso lançando mão de instrumentos teóricos variados em respeito ao hibridismo dos textos e à necessidade de imbricação aí entre aspectos biográficos e literários – entre política, produção intelectual e literatura. A propósito disso, Leonor Arfuch (2002) aponta, nessa linha, a relação entre a noção de “espaço biográfico” e a construção de narrativas da comunidade. Além disso, sobre a necessidade de uma abordagem transdisciplinar da poesia, Heloísa Buarque de Hollanda afirma que “Já em 1979 (...), Lyotard havia nos mostrado que a produção científica [na pós-modernidade] (...) se faria preferencialmente através da expertise e da criatividade na articulação das informações disponíveis e na interpretação desta articulação” (grifos da autora – HOLLANDA, 2001: 45). Sendo assim, venho comparando, no desenvolvimento das análises, diversos procedimentos observados nas atividades do Perlongher poeta, contista, militante homossexual, antropólogo e pesquisador. Da mesma maneira, tento fazer dialogar as operações praticadas pelo Sarduy poeta, romancista, ensaísta, crítico de arte e de literatura. Busco assim evidenciar, na medida do possível, processos de homologia entre esses diferentes procedimentos. Decerto, torna-se forçoso tanto quanto apropriado, em um tipo de trabalho como este, que focaliza a tensão entre linguagem literária e pensamento político-filosófico, valorizar a heterogeneidade de formas de expressão e modos de atuação, transcendendo os limites entre vida e obra, de modo a observar como tais discursos se localizam no contexto do debate sobre a passagem do utópico ao pós-utópico, ou do moderno ao pósmoderno. Sem dúvida, tanto a obra e a trajetória de Perlongher quanto a de Sarduy vêm impondo uma dificuldade de classificação à crítica especializada, que confirma em cada um deles o seu lugar problemático entre a experimentação verbal e a experiência histórica. Tal questão pode ser identificada, por exemplo, em um ensaio sobre a poesia de Perlongher onde Florencia Garramuño afirma que (...) se o conceito de neobarroco ajuda a entender a relação crítica com a modernidade que proporia essa pregagem da matéria e o ornato indecodificável, o certo é que, além disso, no contexto argentino, a poesia de Perlongher se insere em um movimento mais amplo de recusa simultânea da vanguarda e de seu hermetismo formal, por um lado, e de oposição à retórica realista engajada e ao valor informacional do texto literário, por outro. (GARRAMUÑO, 2004: 105) Esse fragmento pode ser associado também a uma resenha onde Roland Barthes reconhece o caráter histórico que o texto de Sarduy teria se lido de maneira contextualizada, embora festeje a abrangência mallarmeana que a sua linguagem neobarroca alcança na tradução em francês: (...) si cette histoire est présente dans le texte de Severo Sarduy, national et “maternel” comme toute langue, ce texte nous dévoile aussi la face baroque qui est dans l’idiome français, nous suggérant ainsi que l´écriture peut tout faire d’une langue, et en premier lui rendre sa liberté. (BARTHES – In: SARDUY, 1999: 1.729) Procuro, desse modo, desestabilizar a dicotomia entre os campos de força presentes na contemporaneidade, perseguindo, em lugar disso, as tensões por eles formadas. É lógico que, não obstante tenha de estabelecer inúmeras vezes necessárias relações entre o neobarroco (cubano, meso-americano) e o neobarroso (argentino, rioplatense), ou ainda entre estes estilos e os poetas que se dizem ligados a eles, não desejo corroborar a definição de estéticas homogêneas – paradoxalmente calcadas sob a afirmação positiva do excesso e da proliferação do significante –, e sim demonstrar que o que os aproxima, ainda que de formas distintas, é mais um modo de relação entre o poético e o político, por meio do conceito de comunidade, do que o apego a uma etiqueta literária em voga. III. Desejo e comunidade A vinculação entre desejo e comunidade, no âmbito do meu projeto de pesquisa, se dá, sobretudo, devido à importância que nesses escritores tem a configuração do que podemos chamar de “olhar desejante” – olhar este que quase sempre passa pela atração ao marginal – imbricado à construção de uma voz assumidamente homoerótica. Isso faz com que o aspecto político presente na idéia de comunidade se desvincule da noção tradicional de militância praticada principalmente nas décadas de 1960 e 1970. Perlongher, inclusive, critica acidamente em seus ensaios e escritos militantes o posicionamento machista dos partidos e organizações de esquerda na Argentina. É sabido também que a decisão de se exilar em Paris, para Sarduy, decorre da instauração de um regime revolucionário em Cuba, a partir de 1959, que excluía qualquer tipo de postura e prática sexual, ideológica ou artística que não se filiasse aos padrões estipulados pelos seus líderes. Além disso, no âmbito da discursividade e do debate estético-filosófico, creio que exista um ponto de articulação entre os pensamentos de Deleuze/Guattari e JeanFrançois Lyotard que pode servir como um elemento basilar da argumentação que venho construindo na tese. Esse ponto seria a correspondência entre os fluxos desterritorializados da produção desejante e a proliferação do significante poético, o que solicitaria uma forma de conceber criticamente, como um ato infinito de “peregrinação”, tanto a noção de comunidade (ética ou estética), tal como se queira compreendê-la, quanto de pensamento que rege esta comunidade: “Tenho a impressão de ter sempre sonhado poder descrever e realizar as peregrinações do pensamento pelo fluxo das formas libertando-as de sua dependência, desse ponto considerado fixo. Sabe lá Deus por quê” (LYOTARD, 2000: 55). Pode-se perceber tal correspondência em diversos momentos do trabalho de Sarduy. Note-se um exemplo de como sua escrita ensaística tenta associar as dobras provenientes da expressão metafórica do desejo às estratégias narrativas adotadas pelo escritor chileno José Donoso em Un lugar sin límites: Os verbos de significação agressiva (chutar, bater) encontram-se “duplicados” por outros de conotação sexual (ofegar), por metáforas do desejo (os homens estão famintos), de penetração (seus corpos grudentos e duros ferindo o seu), de gozo (seus corpos quentes retorcendo-se). Uma frase, finalmente, como se o discurso subterrâneo aflorasse, explicita a alegria sádica: “deleitados até o fundo da confusão dolorosa”. (...) Este jogo de “reviravoltas”, que esbocei, poderia se estender a toda a mecânica narrativa: ao esquema narrativo do conto dentro do conto, Donoso substitui o da inversão dentro da inversão. (SARDUY, 1979: 47-48) Deve-se ressaltar ainda que essa tensão entre linguagem e desejo que leva a poética neobarroca ao redobramento sucessivo, à “inversão dentro da inversão”, manifesta-se também na própria escrita de Sarduy. Como bem apontou Haroldo de Campos, só é possível entender a contestação sarduyana em relação aos problemas socioculturais da comunidade cubana/latino-americana através de sua múltipla atividade literária: “O gesto crítico de Severo Sarduy é antes de mais nada um gesto escritural” (CAMPOS – In: SARDUY, op. cit.: 7). Do mesmo modo, é possível identificar no trabalho de Perlongher a presença de uma reflexão sobre o modo de composição poético e a sua conseqüente inserção no solo do político. Vejam-se dois fragmentos de depoimentos do poeta argentino a propósito deste tema: Acaso si lo que escribí tuvo alguna repercusión es porque, en el plano de la expresión, esto provoca movimientos y cambios. (PERLONGHER – In: CARRERA/ARIJÓN, 1992: 114) Mi generación yo creo que casi no la hubo, porque fue cortada al medio por ese festival sanguinolento de la dictadura. Pero es con el silenciamiento sepulcral de la dictadura que yo – y creo que muchos otros – empiezo a escribir más seriamente, o serialmente. (Ibidem: 116) Notamos assim que, nesses dois escritores, é possível verificarmos alguns aspectos produtivos para o debate sobre a noção de comunidade, bem como sobre os modos como ela se encena na literatura. Um desses aspectos mais importante é, na minha opinião, a formação de um paradoxo que tem lugar na obra de ambos e que se observa a partir do hiato constituído entre a vontade de defesa democrática da liberdade sexual e a configuração de uma “comunidade desejante” – tanto nos seus textos literários quanto nos não-literários – que a todo o tempo escapa às amarras racionais do discurso político. Cito a propósito disso um trecho de Guy Hocquenghem, teórico francês muito utilizado por Perlongher em seu ensaio antropológico intitulado O negócio do michê: “Em relação à razão sexual, seja ela homossexual, existe na Loucaii uma ‘escolha irracional’ que se situa nos limites da Arte e da Vida e fora da política” (grifos meus – HOCQUENGHEM, 1980: 17). IV. Consideração final Exatamente por ter consciência de que há ainda muitas etapas a serem cumpridas para a finalização desta pesquisa – e por querer explicitar isso aos leitores – gostaria de concluir, depois de todo esse percurso, reafirmando a indagação que constitui o problema principal da tese: como se dá a relação entre política e desejo na escrita neobarroca hispano-americana? Ou de outro modo: que resultado crítico e estético pode surgir da configuração de dicções poéticas marginais homoeróticas atravessadas pelas tensões sócio-históricas inerentes à formação das comunidades? Recebido em outubro de 2009 Aprovado em novembro de 2009 NOTAS i Tradução minha a partir da edição em língua espanhola. Termo utilizado por Hocquenghem para definir o homossexual latino, lançando mão de uma gíria que se utiliza em espanhol. ii V. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARFUCH, L. El espacio biográfico. Dilemas de la subjetividad contemporánea. México: FCE, 2002. BLANCHOT, M. La comunidad inconfesable. Madri: Arena Libros, 2002. CANGI, A. Papeles insumisos. Imagen de un pensamiento. In: PERLONGHER, N. Papeles insumisos. Buenos Aires: Santiago Arcos, 2004, p. 7-32. CARRERA, A.; ARIJÓN, T. Teoría del cielo. Buenos Aires: Planeta, 1992. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Lisboa: Assírio & Alvim, 1966. GARRAMUÑO, F. Os cadáveres da história na poesia de Néstor Perlongher. Sibila, São Paulo, n. 7, p. 94-106, 2004. HOCQUENGHEM, G. A contestação homossexual. São Paulo: Brasiliense, 1980. HOLLANDA, H. B. Políticas da teoria. In: TORRES, S. (org.). Raízes e rumos. Perspectivas interdisciplinares em Estudos Americanos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2001, p. 42-55. LYOTARD, J.-F. Peregrinações. Lei, forma, acontecimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. PANESI, J. Detritus. In: CANGI, A.; SIGANEVICH, P. (Comps.) Lúmpenes peregrinaciones. Ensayos sobre Néstor Perlongher. Rosário: Beatriz Viterbo, 1996, p. 44-61. PERLONGHER, N. O negócio do michê. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987. SARDUY, S. Escritos sobre um corpo. São Paulo: Perspectiva, 1979. -----. Obra completa. Vol. II. Colección Archivos. Madri: ALLCA XX, 1999.