Texto Completo – pdf - Relationships, Society and Culture

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Texto Completo – pdf - Relationships, Society and Culture
AGNALDO GARCIA
(ORG.)
RELACIONAMENTO
INTERPESSOAL
Olhares Diversos
VITÓRIA - 2005
1ª Edição – 2005
CAPA e EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Edson Maltez Heringer
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Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
(Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, RJ, Brasil)
Relacionamento interpessoal - olhares diversos / Agnaldo Garcia (org.). –
Vitória : UFES, Programa de Pós-Graduação em Psicologia ; Vitória
- ES, 2005.
116 p. : 21cm
Inclui bibliografia.
ISBN 1. Relacionamento Interpessoal. 2. Psicologia cognitiva. 3. Psicologia
educacional. I. Garcia, Agnaldo.
CDU 149.922
É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação, para qualquer finalidade, sem autorização por
escrito dos editores. Reservados todos os direitos de publicação em língua portuguesa à UFES e Unilinhares.
SUMÁRIO
Apresentação .................................................................................. 5
1. Relacionamento Interpessoal
Uma Área de Investigação ......................................................... 7
Agnaldo Garcia
2. Relacionamento e Biologia
Uma abordagem evolucionista das relações
pais-filhos e padrastos-enteados .............................................. 29
Rosana Suemi Tokumaru e Margareth Pereira Bergamin
3. Relacionamento e Antropologia
Amizade – Tão perto, tão longe .............................................. 41
Geovanna Tabachi Silva
4. Relacionamento e Administração
A confiança como elemento das relações
interpessoais no ambiente organizacional ............................... 51
Marilene Olivier
5. Relacionamento e Medicina
Relacionamento Interpessoal e Saúde - Avanços recentes
nos estudos sobre o relacionamento médico-paciente ............. 73
Agnaldo Garcia
6. A Amizade da Infância à Terceira Idade
Olhares Diversos ..................................................................... 93
Isis Fiorio Albertassi, Lorena Queiroz Merizio,
Maria Tereza Bragança Boreli,
Rodrigo dos Santos Scarabelli e Agnaldo Garcia
APRESENTAÇÃO
A realização do Mini Congresso da International Association for Relationship Research (Associação Internacional para a Pesquisa do Relacionamento), em Vitória, no ano de 2005, representou um marco histórico para a
pesquisa sobre o relacionamento interpessoal em nosso país. Este livro, que
traz textos de participantes do evento, mostra um pouco da riqueza do tema,
quanto à diversidade de áreas que lidam com relações interpessoais.
O objetivo deste livro é apresentar a natureza interdisciplinar das pesquisas na área, as diferentes perspectivas ou os modos diversos de olhar
para as relações entre as pessoas. Os capítulos procuram mostrar a contribuição de várias disciplinas, que se somam para a compreensão das relações
interpessoais. O primeiro capítulo apresenta um panorama da área de estudos sobre relacionamento interpessoal, de acordo com as principais publicações seriadas (periódicos especializados) da própria sociedade internacional (IARR). Neste capítulo, Garcia procura organizar, do ponto de vista
teórico, os tipos de relacionamento mais estudados, os processos investigados e o seu contexto. Representa, assim, uma amostra da pesquisa sobre
relacionamento interpessoal no sentido mais restrito. A contribuição das ciências naturais e sociais é abordada em dois capítulos. Em um deles, Tokumaru e Bergamin revelam como as ciências biológicas têm influenciado a
pesquisa sobre o relacionamento, discutindo a abordagem evolucionista das
relações entre pais e filhos e entre padrastos e enteados. No capítulo seguinte, Tabachi aborda o relacionamento interpessoal, particularmente as relações de amizade, do ponto de vista da Antropologia. Os dois capítulos seguintes mostram como as ciências sociais aplicadas e as ciências da saúde
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Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
lidam com aspectos desse amplo campo de investigações. Olivier apresenta
uma contribuição do ponto de vista da administração, discutindo a confiança como elemento das relações interpessoais no ambiente organizacional.
Em relação à área da saúde, Garcia discute os avanços recentes na pesquisa
sobre o relacionamento entre médico e paciente. No último capítulo, Albertassi, Merizio, Boreli, Scarabelli e Garcia apresentam uma síntese de dados
de pesquisas sobre a amizade na infância e na terceira idade, realizadas no
Núcleo Interdisciplinar para o Estudo do Relacionamento Interpessoal, da
UFES.
Esperamos que este livro, além de informar, também desperte o interesse de estudantes e profissionais de diferentes áreas, como Psicologia, Ciências Sociais, Biologia, Administração, Medicina, Enfermagem, entre outras,
para as relações interpessoais.
Agnaldo Garcia
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RELACIONAMENTO INTERPESSOAL:
UMA ÁREA DE INVESTIGAÇÃO
Agnaldo Garcia
A pesquisa sobre relacionamento interpessoal apresentou um desenvolvimento expressivo nas últimas três décadas, resultado da contribuição
de autores de diferentes disciplinas e orientações teóricas. Mesmo entre
seus precursores, esta diversidade esteve presente, como é o caso de Harry
Sullivan (psiquiatra) e Fritz Heider (psicólogo da Gestalt), entre outros.
Não obstante os avanços da área, seu vasto campo de estudo ainda apresenta lacunas importantes, do ponto de vista empírico e teórico. De modo
geral, a área está em franco desenvolvimento, ainda que este não seja homogêneo, nem do ponto de vista conceitual, nem do ponto de vista geográfico. Alguns temas recebem uma maior atenção e grande parte das pesquisas se concentra na América do Norte e Europa.
Dois autores se destacam na história mais recente da ciência do relacionamento interpessoal: Steve Duck e Robert Hinde. Cada um contribuiu
com a área de uma maneira distinta. Robert Hinde escreveu três livros de
natureza teórica que contribuíram para a organização da área (especialmente Hinde, 1997). Steve Duck, além de uma vasta produção escrita sobre o tema, ainda esteve à frente da organização de sociedades e da publicação de periódicos científicos da área. Historicamente, Steve Duck teve
uma participação importante na organização da International Society for
the Study of Personal Relationships (ISSPR) e do primeiro periódico especializado em relacionamento interpessoal, o Journal of Personal and
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Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
Social Relationships. Em 2002, a ISSPR fundiu-se com outra sociedade
internacional dando origem à International Association for Relationship
Research (IARR) que, hoje, representa a maior sociedade científica internacional sobre o tema, responsável pela publicação de dois importantes
periódicos. Este livro também representa um produto da atividade da IARR,
uma vez que reúne textos de autores brasileiros que participaram do primeiro congresso oficial da sociedade na América do Sul, realizado em
Vitória, em 2005.
As possibilidades de pesquisa sobre o relacionamento interpessoal
são inúmeras. Este capítulo procura apresentar, ainda que de forma esquemática, algumas tendências da literatura recente desta área de investigação, quanto aos temas e conceitos investigados. O presente esboço
se baseia em aproximadamente 100 artigos publicados nos dois principais periódicos internacionais, específicos sobre relacionamento interpessoal, o Journal of Social and Personal Relationships (2004) e a Personal Relationships (2003 e 2004), ambos publicados pela IARR.
A partir de um levantamento inicial do material bibliográfico, foram
propostas algumas categorias de análise. Os artigos foram reunidos em
quatro grupos quanto ao tipo ou natureza do relacionamento estudado (relacionamentos em geral, românticos, familiares e de amizade). Poucos textos tratavam de outras formas de relacionamento, como o com vizinhos
(Thomese, van Tilburg & Knipscheer, 2003) ou com personagens favoritos da televisão (Cohen, 2004). Dentro de cada um destes grupos de estudos, foram destacados três aspectos: as propriedades dos participantes, as
dimensões do relacionamento e o contexto. Ainda podem ser mencionados alguns trabalhos sobre metodologia (Hess, 2003; Mills, Clark, Ford &
Johnson, 2004), não discutidos neste capítulo. Este pequeno roteiro ou
mapa dos estudos sobre o relacionamento interpessoal visa não apenas
apresentar um panorama dos estudos da área, mas também incentivar novos pesquisadores para que venham a se interessar e contribuir com investigações sobre este tema fascinante.
1. Relacionamentos em Geral
Um primeiro aspecto que chama a atenção no conjunto das referências
selecionadas é o nível de especificidade a que se referem. Enquanto um
grupo de trabalhos limita-se a discutir algum aspecto de um determinado
tipo de relacionamento (romântico, familiar e amizade, especificamente),
outros, a priori, não se restringem a um tipo específico de relação interpes8
Relacionamento Interpessoal: Uma Área de Investigação
soal. Este grupo de artigos foi reunido neste item. Uma vez identificados os
diferentes grupos, procurou-se uma forma que permitisse uma caracterização clara do conteúdo desses trabalhos. Após diversas leituras, três aspectos
se destacaram como elementos que poderiam representar o conteúdo desses
estudos, uma vez que, de forma mais ou menos explícita, estavam presentes
em todos os textos investigados. Estes três aspectos se referiam aos participantes, às dimensões do relacionamento e ao contexto. As considerações
seguintes procuram mostrar a diversidade de cada um destes aspectos.
1) Os Participantes - Os participantes de um relacionamento apresentam
características individuais que o afetam diretamente. Estas características podem ser físicas ou psicológicas, mais ou menos estáveis. Entre as principais
propriedades dos participantes estão a idade, o gênero, a etnia e certos aspectos psicológicos, que ocupam um papel central em vários dos textos revisados. Entre as características demográficas, as mais comumente integradas aos
estudos são as relativas a gênero (Suh, Moskowitz, Fournier & Zuroff, 2004)
e idade (Aartsen, Tilburg, Smits & Knipscheer, 2004). Particularmente, no
caso da variável idade, esta poderia ser considerada como uma ‘síndrome’,
uma vez que a ela estão associadas diversas outras características físicas (como
perda de certas possibilidades físicas) e psicológicas (cognitivas e emocionais). De modo geral, as publicações analisadas concentram-se nos adultos,
com um menor número de investigações sobre crianças, adolescentes ou idosos. As características individuais de natureza psicológica e social também
interferem no relacionamento, como a auto-estima (Abe, 2004), a timidez (Ward
& Tracey, 2004) e a memória (Frye & Karney, 2004).
Independentemente de sua natureza física ou psicológica, as propriedades individuais podem ser mais ou menos estáveis. Mesmo alterações de
curta duração nas características dos participantes de um relacionamento,
como a manifestação de emoção intensa, podem ter efeitos avassaladores
sobre a relação com o outro. Entre os atributos pessoais e individuais dos
participantes, há fatores físicos e psicossociais, alguns mais estáveis e outros mais instáveis ou flexíveis. Um exemplo de características que desempenham um papel mais ou menos estável são as condições de saúde do participante, que afetam o relacionamento e são afetadas por ele. Apesar dos
estudos sobre relacionamento e saúde incluírem as condições físicas de seus
participantes, estes serão tratados junto com outras dimensões do relacionamento, uma vez que saúde e relacionamento interpessoal se influenciam
mutuamente.
2) As Dimensões do Relacionamento – Herdamos, juntamente com
nossa tradição cultural, um repertório de termos e expressões para nos refe9
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
rir aos relacionamentos os quais, freqüentemente, são incorporados aos estudos sobre relações interpessoais. Há uma série imensa de termos e expressões que caracterizam um relacionamento, ou um de seus aspectos. Na literatura referente aos relacionamentos em geral, várias dimensões têm sido
investigadas, como o compromisso (Le & Agnew, 2003), o perdão (Younger, Piferi, Jobe & Lawler, 2004), a similaridade (Fraley & Aron, 2004), a
percepção interpessoal (Solomon & Knobloch, 2004) e o apoio social e
emocional (Magdol & Bessel, 2003; Burleson, 2003). É comum, contudo,
que diversas dimensões sejam analisadas concomitantemente. Um exemplo
é a discussão da colaboração, reciprocidade e preferência por similaridade
nos relacionamentos próximos (Cole & Teboul, 2004). Algumas dimensões
recebem uma atenção maior, como é o caso da comunicação, do apego e, de
forma sintética, o lado escuro dos relacionamentos.
A comunicação é, ao mesmo tempo, uma das dimensões mais amplas e
investigadas dos relacionamentos em geral e também com uma elaboração
teórica mais expressiva. A comunicação é tão importante para esta área de
investigação que os próprios relacionamentos têm sido considerados como
diálogos (Baxter, 2004). A comunicação afeta o curso do desenvolvimento
de uma relação (Sunnafrank & Ramirez, 2004; Dindia, Timmerman, Langan, Sahlstein & Quandt, 2004; Afifi, Dillow & Morse, 2004) e influencia
outras dimensões do relacionamento, como intimidade e satisfação (Emmers-Sommer, 2004), além de outros aspectos (Young, 2004).
O apego é outra dimensão que se destaca nos relacionamentos em geral.
Os estudos sobre o apego apresentam duas características: uma maior elaboração teórica e a tentativa de aglutinar outras dimensões e condições de
contexto em seu entorno. Comumente são investigados estilos, modelos ou
dimensões do apego. O apego interfere na cognição social, em particular,
sobre o processamento de informações (Rowe & Carnelley, 2003) ou em
processos de atribuição (Sumer & Cozzarelli, 2004), está relacionado a
motivos sexuais (Schachner & Shaver, 2004), atua na composição de redes
sociais (Doherty & Feeney, 2004), relaciona-se com auto-estima e tratamento parental (Luke, Maio & Carnelley, 2004), assim como com depressão e
agorafobia (Strodl & Noller, 2003). O destaque teórico para o apego foi um
dos pontos mais expressivos das pesquisas apresentadas na Conferência Internacional da Associação Internacional para a Pesquisa do Relacionamento
(IARR), realizada em Madison, Wisconsin em 2004. De certa forma, o apego teve um desenvolvimento expressivo a partir dos estudos realizados por
Bowlby e Ainsworth, a partir dos anos quarenta, com uma série de novos
avanços nas últimas décadas.
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Relacionamento Interpessoal: Uma Área de Investigação
A designação “lado escuro dos relacionamentos”, de uso corrente na área,
reúne dimensões de natureza diferente com um ponto em comum: representam o lado mais difícil, danoso para os participantes, ou negativo para o relacionamento. Reflete uma certa tendência maniqueísta de ver os relacionamentos como positivos (light side) ou negativos (dark side). Neste grupo, incluem-se diferentes dimensões que prejudicam, ou podem mesmo por fim a um
relacionamento. Entre os aspectos negativos investigados, estão a agressão e a
violência (Beach, Kim, Cercone-Keeney, Gupta, Arias & Brody, 2004, Klein,
2004), as ameaças ao relacionamento (Brase, Caprar & Voracek, 2004) e a
suspeita (Ickes, Dugosh, Simpson & Wilson, 2003). Violência e agressão, infelizmente, são um tema comum, com destaque para a influência do gênero do
agressor e da vítima (Beach, Kim, Cercone-Keeney, Gupta, Arias & Brody,
2004, Klein, 2004). Estes não prejudicam apenas as relações entre as pessoas,
mas também a integridade física e psicológica dos participantes, com conseqüências como sintomas depressivos (Beach, Kim, Cercone-Keeney, Gupta,
Arias & Brody, 2004). Quanto à saúde propriamente dita, se, por um lado o
estado de saúde afeta o relacionamento, este também afeta as condições de
saúde de seus participantes (Lewis, Butterfield, Darbes & Johnston-Brooks,
2004; Drew, Heesacker, Frost & Oelke, 2004).
3) O Contexto – O terceiro elemento cuja presença é marcante nos estudos sobre os relacionamentos em geral é o contexto. Este é representado por
fatores ambientais, geográficos, ecológicos, sociais, culturais, econômicos,
tecnológicos, entre outros. O contexto e suas influências assumem um papel
de destaque em vários estudos sobre o relacionamento, justificando, por exemplo, a edição de um fascículo dedicado exclusivamente ao tema (Surra & Perlman, 2003). Há uma gama imensa de fatores contextuais, como os sociais,
históricos e culturais (Realo, Kästik & Allik, 2004; Goodwin & Gaines, 2004)
que influenciam a própria natureza das relações entre as pessoas.
2. Relacionamento Romântico e Sexual
No senso comum, o termo relacionamento, quando utilizado separadamente, parece referir-se a algum tipo de relação romântica. O relacionamento romântico e sexual (incluindo o casamento) foi, dentro da amostra selecionada, o tipo mais investigado. Um grupo de estudos dentro deste tópico se
concentra no casamento.
1) Relacionamento Romântico e Sexual - Os estudos sobre o relacionamento romântico e sexual em geral também envolvem características dos
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Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
participantes, dimensões dos relacionamentos e aspectos do contexto. Quanto
aos participantes, os aspectos pessoais ou individuais considerados vão desde características demográficas (como idade, gênero e etnia) até características pessoais (como a auto-estima) e sua influência no relacionamento romântico (Bellavia & Murray, 2003), ou como este pode afetar o crescimento
pessoal (Tashiro & Frazier, 2003). Apesar da maioria dos autores tratarem
de relacionamentos heterossexuais, há algumas referências sobre casais homossexuais (Elizur & Mintzer, 2003).
As dimensões analisadas no relacionamento romântico e sexual, como
um todo, podem ser agrupadas em quatro categorias: a) processos gerais; b)
apego; c) ciúme e infidelidade; e, d) saúde e violência (os itens c e d poderiam, eventualmente, ser reunidos em uma categoria mais abrangente ligada
ao lado escuro dos relacionamentos). Entre os processos gerais, há estudos
sobre comunicação (Kaplar & Gordon, 2004) e percepção interpessoal (Mak
& Marshall, 2004). A comunicação pode incluir diferentes aspectos, como
as mentiras (Kaplar & Gordon, 2004) e os scripts (Conley & Rabinowitz,
2004). Outras dimensões gerais incluem a qualidade da interação e do relacionamento (Galliher, Welsh, Rostosky & Kawaguchi, 2004) e a interdependência (Knobloch & Solomon, 2004).
O apego é um fator que recebe uma atenção particular neste tipo de
relação interpessoal, exercendo influência sobre outras dimensões do relacionamento, como o compromisso (Tolmacz, 2004) e experiências sexuais
(Gentzler & Kerns, 2004). Em alguns casos, é denominado de apego romântico (Schmitt et al., 2003).
O ciúme e a infidelidade são dois aspectos comumente presentes no relacionamento romântico e sexual. As investigações abordam o ciúme (Sagarin
& Guadagno, 2004; Rydell, McConnell & Bringle, 2004), a infidelidade
(Becker, Sagarin, Guadagno, Millevoi & Nicastle, 2004) ou a ocorrência
simultânea de ambos (Buunk & Dijkstra, 2004). A infidelidade apresenta
dois lados distintos: a emocional e a sexual (Buunk & Dijkstra, 2004; Becker, Sagarin, Guadagno, Millevoi & Nicastle, 2004), com resultados diferentes para a relação. Os estudos sobre ciúme e infidelidade também primam por levarem em conta as diferenças de gênero (Buunk & Dijkstra, 2004;
Sagarin & Guadagno, 2004). Em relação ao ciúme, vários aspectos têm sido
analisados, como sua natureza extrema (Sagarin & Guadagno, 2004), sua
relação com outras dimensões do relacionamento, como o compromisso
(Rydell, McConnell & Bringle, 2004). No caso da infidelidade, as dimensões investigadas envolvem sua natureza (Cann & Baucom, 2004), a influência do gênero (Becker, Sagarin, Guadagno, Millevoi & Nicastle, 2004;
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Relacionamento Interpessoal: Uma Área de Investigação
Cann & Baucom, 2004), e a relação com outras dimensões do relacionamento romântico, como o compromisso (Cann & Baucom, 2004), o sofrimento e o perdão (Cann & Baucom, 2004). De forma geral, tem sido comum aos estudos sobre ciúme e infidelidade as considerações sobre sua
natureza, a influência do gênero e suas relações com o compromisso.
O relacionamento romântico também apresenta um lado obscuro, englobando problemas de saúde e com violência (além do ciúme e da infidelidade).
O relacionamento romântico pode ter efeitos negativos para a saúde, estando
associado com sintomas depressivos (Davila, Steinberg, Kachadourian, Cobb
& Fincham, 2004; Segrin, Powell, Givertz & Brackin, 2003) e solidão (Segrin, Powell, Givertz & Brackin, 2003). O lado obscuro dos relacionamentos
românticos ainda conta com o comportamento violento, especialmente partindo da figura masculina (Wood, 2004).
Os diversos aspectos do contexto (como o geográfico, social e cultural)
interferem no relacionamento romântico. Do ponto de vista físico ou geográfico, a distância, por exemplo, afeta diretamente o relacionamento (Sahlstein, 2004). Do ponto de vista cultural, mesmo os feriados, como o ‘Dia dos
Namorados’, podem afetar o relacionamento romântico (Morse & Neuberg,
2004). Ainda fazem parte do contexto cultural, as normas subjetivas (Etcheverry & Agnew, 2004) e as crenças românticas (Weaver & Ganong, 2004) e
as relações entre cultura e história pessoal (Yum, 2004).
2) Casamento - Há uma significativa produção sobre o relacionamento
conjugal, desde os aspectos metodológicos (Karney, Kreitz & Sweeney,
2004; Kurdek, 2003a) até questões teóricas. As dimensões investigadas
no casamento incluem processos gerais como, por exemplo, as relações
sexuais (Hinchliff & Gott, 2004). Contudo, neste item, se destacam as dificuldades no casamento, incluindo a questão da saúde e questões étnicas
(Leslie & Letiecq, 2004).
As dificuldades conjugais oferecem um amplo campo de investigação,
incluindo saúde e enfermidade. A enfermidade é parte integrante do casamento, e esposo e esposa atuam de forma e prevenir e enfrentar doenças,
gerando narrativas e scripts relacionados a ela (Walker & Dickson, 2004)
ou exercendo controle e apresentando comportamentos voltados para a
saúde e o bem-estar (Helgeson, Novak, Lepore & Eton, 2004), sofrendo a
influência do gênero (Badr, 2004). O parceiro influencia nas tomadas de
decisão sobre comportamentos voltados para a saúde (Rempel & Rempel,
2004) e os cônjuges efetuam trocas que promovem a saúde (Franks, Wendorf, Gonzalez e Ketterer, 2004).
Ao lado dos problemas de saúde física, os cônjuges ainda podem enfren13
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
tar problemas psicológicos e sociais nos casamentos. Algumas dificuldades
estão ligadas ao estresse e suas conseqüências (Cano, O’leary & Heinz, 2004),
como os sintomas depressivos (Cranford, 2004). Dificuldades emocionais
podem resultar de eventos dolorosos (Feeney, 2004) e gerar sofrimento
marital (Kurdek, 2003b). Entre as dificuldades enfrentadas no casamento
estão os diferentes tipos de conflito (Holman & Jarvis, 2003) e a infidelidade (Previti & Amato, 2004). Relacionados às dificuldades, estão o diálogo e
a busca de solução para os problemas no casamento (Sanford, 2003).
O contexto físico, social, geográfico, econômico, histórico ou cultural
exerce uma influência importante sobre o casamento (Levinger e Levinger,
2003). Também fazem parte do contexto, a vizinhança e as pressões financeiras que o casal sofre (Cutrona, Russell, Abraham, Gardner, Melby, Bryant
& Conger, 2003). Quanto ao contexto físico, mesmo os objetos na habitação
do casal podem refletir a história do relacionamento (Lohmann, Arriaga &
Goodfriend, 2003).
Além do casamento, um número menor de pesquisas trata do divórcio
(Terhell, van Groenou & van Tilburg, 2004). Em alguns casos, as relações
entre casais são comparadas com as relações entre colegas de quarto (Sanford & Rowatt, 2004), namorados (Kachadourian, Fincham & Davila, 2004)
e dos que vivem juntos (Stafford, Kline & Rankin, 2004).
3. Relacionamento na Família
A família extensa abre inúmeras possibilidades de contatos sociais, envolvendo pais, filhos, irmãos, primos, tios, avós, cunhados, noras, genros,
sogros, sobrinhos, entre outros. Dentre os diversos relacionamentos familiares, os mais investigados são entre esposo e esposa (já discutidos como
relacionamento romântico) e entre pais e filhos (participantes), ou seja a
ênfase recai sobre a família nuclear e suas relações. Recentemente, novas
situações também têm surgido, como a relação de pais e mães homossexuais
com seus filhos (Hequembourg, 2004).
A comunicação é uma das dimensões mais investigadas entre pais e filhos,
comumente se referindo a problemas de comunicação entre as gerações, sobre
temas específicos, como no caso do uso de álcool e outras drogas (Caughlin e
Malis, 2004; Miller-Day & Dodd, 2004), quanto à disposição para a doação
de órgãos (Morgan, 2004) ou dificuldades na comunicação entre filhos adotivos e seus pais (Baxter, Braithwaite, Bryant & Wagner, 2004). O apego é
outra importante dimensão investigada, em relação ao papel paterno (Feeney,
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Relacionamento Interpessoal: Uma Área de Investigação
Alexander, Noller & Hohaus, 2003) ou quanto à relação entre mãe e filha
adulta (Obegi, Morrison & Shaver, 2004). Outro aspecto investigado é o apoio
social (Riggio, 2004). No caso da saúde, há uma inter-relação entre relacionamentos na família e a condição de saúde de seus membros (Bylund & Duck,
2004), com influências recíprocas. A presença de uma enfermidade como o
câncer apresenta conseqüências para as interações familiares (Beach & Good,
2004). Por outro lado, a família também influencia no cuidado com a saúde
(Petronio, Sargent, Andea, Reganis & Cichocki, 2004).
A família ainda representa um contexto importante para o desenvolvimento de características ligadas ao relacionamento, como é o caso do compromisso (Weigel, Bennett & Ballard-Reisch, 2003) e de valores (Knafo,
2003; Yang & Rettig, 2003). Mesmo as situações de conflito entre os pais
afetam as relações com os filhos (Riggio, 2004).
As relações familiares de natureza interpessoal acompanham as transformações da sociedade e uma série de tópicos seriam de interesse para a
pesquisa, como as relações entre os familiares após o divórcio, na constituição de famílias já resultantes de separação, ou as relações entre três gerações, diante do aumento da expectativa de vida, de transformações no mundo do trabalho, com a presença crescente da mulher demandando novas
relações familiares, a maior evidência de relacionamentos homossexuais.
Também pouco se sabe sobre relacionamento entre irmãos ou pais e filhos
adultos, entre outros. Há um extenso campo de investigação ultrapassando
os limites do casal e seus filhos.
4. Amizade
Diferentemente das relações familiares, que existem independente-mente
da vontade dos indivíduos, a amizade é considerada um relacionamento com
um maior grau de liberdade, na escolha de amigos e na sua continuidade. Há,
proporcionalmente, um menor número de estudos sobre a amizade quando
comparado ao relacionamento romântico ou familiar, sendo as dimensões estudadas na amizade, na literatura considerada, mais restritas.
Os estudos envolvem amizades no ambiente escolar, no ambiente de trabalho e mesmo entre pessoas que já mantiveram uma relação amorosa. Desta forma, participam destes estudos estudantes, companheiros de trabalho e
ex-namorados. Vários relatam o desenvolvimento histórico da amizade, como
as transformações nas amizades de alunos do segundo grau em sua transição
para a universidade (Oswald & Clark, 2003), as relações de amizade após a
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Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
dissolução de um relacionamento romântico (Busboom, Collins, Givertz &
Levin, 2002) e a deterioração de amizades no local de trabalho (Sias, Heath,
Perry, Silva & Fix, 2004). Nestes casos, o contexto parece ser um elemento
importante, como é o caso do ambiente universitário ou o ambiente de trabalho. Entre as dimensões consideradas estão o controle e a satisfação (Morry,
2003), a influência das amizades sobre a saúde (Petronio, Sargent, Andea,
Reganis & Cichocki, 2004) e questões de apego (McElwain & Volling, 2004).
Quanto ao contexto, as influências culturais associadas a regiões geográficas também afetam a amizade, gerando características particulares em
diferentes países ou regiões (Adams & Plaut, 2003). A tecnologia é outra
influência, especialmente no campo da informática e das comunicações. O
acesso cada vez mais amplo à Internet, por exemplo, gera amizades online,
cujas propriedades, assim como sua relação com as amizades face-a-face,
ainda precisam ser investigadas em maior profundidade (Chan & Cheng,
2004). Outras formas de relacionamento, de certa forma próximas às amizades, são pouco investigadas, como a relação entre pares, incluindo temas
como aceitação e rejeição pelos colegas (Bellmore & Cillessen, 2003) ou as
relações com vizinhos (Thomese, van Tilburg & Knipscheer, 2003).
As relações de amizade constituem um tema de pesquisa com uma importância crescente, face às mudanças que a sociedade vem sofrendo. Algumas transformações históricas, culturais e tecnológicas possivelmente podem estar na origem de novos padrões de amizades. Entre as mudanças históricas e sociais com influência potencial sobre as relações de amizade está
a redução histórica no tamanho da família (com um menor número de filhos) resultando em uma rede de relações mais restrita. A urbanização aumenta as possibilidades de contato entre as pessoas, abrindo espaço para o
surgimento de amizades. Os avanços tecnológicos permitem uma amplificação dos contatos sociais. Avanços nos serviços de telefonia e informática,
com o crescimento das comunidades virtuais, por exemplo, propicia um
número, intensidade e freqüência de contatos cada vez maior. O acesso cada
vez mais cedo à escola expõe a criança a seus pares em uma fase mais precoce de sua vida que em gerações passadas. O tempo cada vez mais longo
no sistema escolar, incluindo a universidade, também aumenta o tempo de
exposição aos colegas e amigos em potencial. O crescimento dos grupos de
convivência de idosos tem aumentado a possibilidade de encontros e o desenvolvimento de amizades Estes, entre outros fatores, possivelmente provocam transformações nas relações de amizade em todas as faixas etárias.
As transformações qualitativas e quantitativas face aos novos meios de comunicação e novas formas de organização da sociedade contemporânea cer16
Relacionamento Interpessoal: Uma Área de Investigação
tamente exercem uma pressão constate nas relações de amizade, possivelmente no sentido de relações mais numerosas e mais intensas. Pode-se dizer
que o ideal de uma sociedade democrática e igualitária seria abrigar relações entre semelhantes, de caráter recíproco, como é o caso das amizades.
5. Conclusão
A literatura analisada, apesar de sua composição heterogênea, abordando diferentes temas sobre o relacionamento e de sua orientação em função
de uma corrente de investigadores (ambas a publicações são da IARR), fornece elementos para se construir um esboço das tendências da investigação
sobre relacionamento interpessoal. A partir dos estudos analisados, cada qual
com um nível de especificidade, procurou-se identificar e propor algumas
características da área. Tal esboço, necessariamente, não faz jus a áreas específicas, como a amizade ou o relacionamento romântico. Procura ser, na
realidade, um esboço das características da área mais ampla do relacionamento interpessoal.
Primeiramente, a literatura tem abordado os relacionamentos como um
todo ou então se dedica a um tipo específico. Nos casos em que um tipo é
explicitado, três formas de relacionamento se destacam como as mais intensamente investigadas: o relacionamento romântico (incluído relações no casamento e divórcio), o familiar (excetuando as relações românticas, com ênfase
nos pais e filhos) e a amizade. Casos menos investigados incluem o relacionamento com pares ou colegas e com vizinhos, por exemplo. No caso dos relacionamentos românticos e sexuais, os estudos cobrem fases distintas, desde a
busca e escolha de um companheiro, o namoro e o casamento em diferentes
estágios (com diferentes períodos de duração). Os dados indicam a predominância de estudos sobre relações românticas e sexuais sobre outras relações
familiares, com um expressivo número de investigações sobre o casamento. O
material analisado incluiu poucas publicações sobre outras formas de relacionamento, como entre colegas de trabalho ou entre profissionais e seus clientes. A integração entre estes estudos enfocando os relacionamentos familiares
ou informais (como a amizade) e os relacionamentos mais formais, determinados pela estrutura social e econômica, permitira um avanço significativo na
área, permitindo uma visão mais ampla dos relacionamentos.
Tomando-se o conjunto dos textos analisados, três aspectos se destacaram
por sua presença constante. Estes elementos que compõem um relacionamento
se referem aos participantes, às dimensões do relacionamento e ao contexto.
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Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
a) Participantes dos Relacionamentos. Um relacionamento consta,
basicamente, das pessoas que dele participam, das dimensões do relacionamento propriamente dito e do contexto no qual esse relacionamento se dá.
Do ponto de vista individual, diferentes propriedades dos indivíduos são
relevantes para os relacionamentos, desde aquelas mais estáveis (como idade, gênero e etnia) até as mais instáveis (como aspectos psicológicos, sociais e condições de saúde), que sofrem modificações com maior facilidade,
como no caso de transformações físicas e psicológicas trazidas pelas enfermidades. Outras propriedades de natureza psicológica e social, mais flexíveis, têm sido incluídas nos estudos sobre o relacionamento, como a autoestima, o estresse, a timidez, entre outras.
b) Dimensões do Relacionamento. Os estudos sobre o relacionamento
geralmente giram em torno de uma ou mais de uma de suas dimensões. Estas, em grande parte, representam dimensões do senso comum que vem sendo empregadas para caracterizar, descrever ou explicar os relacionamentos
há longo tempo, com características históricas ou culturais. Estas são incorporadas aos estudos sobre o relacionamento como dimensões. Outras já trazem uma maior influência da própria ciência, como é o caso do apego e da
comunicação. Quanto à sua natureza, estas dimensões são complexas e heterogêneas, de abrangência diferenciada, incluindo, de maneira distinta, aspectos processuais ou de estado, de caráter moral, ético, emocional, cognitivo, entre outros. Por vezes, diferentes dimensões são investigadas em diferentes tipos de relacionamentos. A infidelidade, por exemplo, é típica dos
estudos das relações românticas. Outras dimensões são mais amplas, como
é o caso da comunicação. Hinde (1997) apresenta uma série dessas dimensões, que descrevem os relacionamentos e sua dinâmica. Entre estas, podem
ser citadas o compromisso, a confiança, a agressão, o ciúme, o respeito, a
proximidade, a intimidade, o perdão, o apoio social, a comunicação interpessoal e o apego, entre outras. Usualmente, os estudos sobre o relacionamento se estruturam em torno de uma (ou mais) destas dimensões.
A utilização de noções provenientes do senso comum, por um lado, permite manter uma boa comunicação com a sociedade em geral, mas, por outro,
também favorece a fragmentação teórica, uma vez que, comumente, estas dimensões não se inserem em perspectivas teóricas mais abrangentes, mas representam dimensões independentes. Elas podem ter uma história mais ou
menos ligada ao pensamento científico. Algumas são seculares, como a confiança, o ciúme e o perdão, e trazem uma imensa carga de significados culturais
e de valor. Ainda assim, são dimensões específicas cuja integração com outras
dimensões nem sempre é facilmente conseguido. Estas também representam
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Relacionamento Interpessoal: Uma Área de Investigação
um desafio para sua investigação, partindo da própria conceituação e delimitação do seu significado. Várias vezes, envolvem uma complexa rede de influências, incluindo as religiosas, éticas e culturais, entre outras.
Outras dimensões já revelam uma natureza mais integrada à ciência,
apresentando uma maior elaboração teórica, tendo se tornado dimensões
mais técnicas, como é o caso da noção de apego e seus derivados, investigado sob diversos aspectos. Outra dimensão ampla, a comunicação, reúne diferentes processos e também apresenta uma elaboração teórica expressiva.
Estas dimensões de caráter mais teórico e científico também revelam um
maior potencial de hegemonia sobre o campo teórico da área e, por vezes,
tendem a ocupar um papel central nas tentativas explicativas. Quando se
trata do relacionamento como um diálogo, por exemplo, abre-se uma via
para se aplicar princípios teóricos da comunicação em sua explicação.
As diversas dimensões investigadas no relacionamento interpessoal também não são integradas em um sistema teórico comum. Não há uma única
orientação teórica nestes estudos e diferentes explicações concorrem para explicar aspectos ligados ao relacionamento interpessoal. Também não existe,
até o presente, um conceito central que tenha condições de aglutinar, em torno
de si, todas as contribuições teóricas para a área. Isto se torna ainda mas complicado com as contribuições provenientes de diferentes áreas do conhecimento, que vêm se somando na construção de uma ciência do relacionamento.
Mesmo a definição destas dimensões não é algo simples e imediato.
A área, contudo, apresenta algumas tendências para agrupar seus dados. Uma tendência presente é a orientação dualista, agrupando as dimensões do ponto de vista de seus aspectos positivos e negativos. Esta tendência que, possivelmente tem sua origem no próprio senso comum e no trabalho de aconselhamento, marca sua presença, por exemplo, na consideração de um lado escuro dos relacionamentos (dark side) e de um lado
claro dos mesmos (light side). Neste sentido, tentativas de organização da
área, seja do ponto de vista das relações entre as dimensões empregadas,
seja na busca de princípios explicativos em diferentes níveis, são necessárias, assim como a construção, ainda que provisória, de modelos teóricos,
desde os mais restritos até os mais genéricos. Em suma, há carência tanto
do ponto de vista empírico, com dados restritos sobre muitas das dimensões envolvidas, quanto do ponto de vista teórico, com uma carência de
sistemas teóricos que possam contribuir para a construção de uma ciência
do relacionamento interpessoal.
c) O Contexto do Relacionamento. O contexto representa os diversos
aspectos do ambiente no qual os relacionamentos se dão. Inclui o ambiente
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Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
físico, ecológico, geográfico, histórico, social, cultural e econômico, entre
outros, relevantes para o relacionamento. Visando uma maior sistematização, essas condições podem ser tratadas como macro ou micro-contexto. O
macro-contexto estaria relacionado ao ambiente mais amplo, como as condições históricas e geográficas de um país, continente ou região e suas características físicas, sociais, culturais e econômicas. O micro-contexto representaria essas dimensões de forma mais próxima do indivíduo, como as
condições históricas e geográficas de seu local de habitação e suas características físicas, sociais, culturais e econômicas. As relações entre os participantes, as dimensões do relacionamento e o contexto, são dialéticas, no sentido de que cada uma delas interfere sobre a outra.
Os relacionamentos apresentam uma natureza específica, envolvendo
diferentes dimensões e participantes com propriedades específicas e se dá
em um contexto complexo. Os indivíduos, as dimensões e o contexto exercem influência uns sobre os outros. O avanço de uma ciência do relacionamento interpessoal, como proposta por Hinde (1997), depende não apenas
de estudos empíricos, que possam aumentar o conhecimento sobre os diferentes tipos de relacionamento em sua complexidade, assim como de estudos teóricos que possam integrar os inúmeros aspectos da pesquisa sobre o
relacionamento interpessoal, criando sistemas teóricos cada vez mais abrangentes. Talvez por vivermos os relacionamentos interpessoais de modo tão
próximo e intenso em nosso dia-a-dia, sua teorização se torna uma tarefa
das mais difíceis e complexas.
Entre as possibilidades de avanço teórico para o futuro dos estudos sobre o relacionamento, está a tentativa de integração, de forma mais efetiva,
dos princípios explicativos empregados nos relacionamentos familiares e
espontâneos com aqueles empregados nas relações determinadas pelas novas condições sociais e econômicas. Um ser humano mantém contatos diários com outras pessoas durante toda a sua vida. Estes contatos não envolvem apenas familiares e amigos, mas muitas outras pessoas, com as quais
pode apenas interagir momentaneamente, como estranhos, ou pode manter
um relacionamento de longo prazo, como com outros colegas de trabalho,
com prestadores de serviço em diferentes modalidades. Uma ciência do relacionamento interpessoal, em sentido amplo, deveria levar em conta essa
diversidade de relacionamentos, procurando integrar as contribuições de
diferentes áreas para as quais as relações humanas são relevantes, como a
educação, a enfermagem, a administração, a medicina, o direito, entre outras. Muito foi feito nas últimas décadas no campo do relacionamento interpessoal, mas muito ainda resta a realizar.
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UMA ABORDAGEM EVOLUCIONISTA DAS
RELAÇÕES PAIS-FILHOS E PADRASTOS-ENTEADOS
Rosana Suemi Tokumaru
Margareth Pereira Bergamin
O bebê humano nasce completamente dependente dos adultos que o cercam. No entanto, a influência dos adultos sobre o desenvolvimento da criança não é homogênea. Desde Bowlby, muito se tem investigado a respeito da
formação de laços particularizados entre adultos e crianças, principalmente
entre mães e filhos (Hrdy, no prelo).
As mães têm sido as principais cuidadoras de seus filhos, apesar da variabilidade individual e diferenças sócio-histórico-culturais (Hrdy, 2001). O
fornecimento de cuidado à criança pode ser entendido como a realização de
“qualquer comportamento que aumente a aptidão” dela (Cluton-Brock, 1991).
O termo “aptidão” refere-se ao aumento na sobrevida e taxa de reprodução
advindo do cuidado recebido. A partir dessa definição podemos considerar
que os cuidados maternos iniciam-se antes do nascimento do bebê já que
durante a gravidez a mãe nutre e abriga o feto em desenvolvimento.
O fornecimento de cuidados não é isento de custos. Sabe-se que a gestação e a lactação envolvem custos energéticos altos (Prentice & Prentice, 1995,
Prentice & Goldberg, 2000) e tem-se encontrado correlação positiva entre o
número de gravidezes e a diminuição do período de vida (Thomas et al., 2000).
Tanto o alto custo energético direto, com a produção de leite e modificações
fisiológicas, como também o custo indireto, com o dispêndio de tempo e a
realocação de tarefas, além do estado altricial do bebê ao nascer e consequen29
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
temente o longo período necessário para seu desenvolvimento até a maturidade, fazem do cuidador humano um investidor de longo prazo.
De acordo com a teoria do investimento parental de Trivers (ClutonBrock, 1991), os pais investem em seus filhos como forma de aumentar seu
sucesso reprodutivo. A partir dessa teoria, duas previsões podem ser feitas.
A primeira é que os pais serão os principais interessados em fornecer cuidados aos seus filhos. No entanto, não na mesma medida. A mãe humana tem
certeza da maternidade e, portanto, pode garantir seu sucesso reprodutivo
ao investir em seu bebê. O pai, dada a fecundação interna, não tem certeza
da paternidade, e pode condicionar o fornecimento de cuidado à diminuição
desta incerteza.
A outra previsão é que o investimento no cuidado com a criança variará
em diferentes contextos de acordo com os custos envolvidos. Daí a relação
íntima entre o investimento em cuidados e o contexto no qual ocorre. Esta
previsão tem sido confirmada. Em culturas baseadas na caça e na coleta, as
mães levam os bebês consigo durante o forrageio. Há relatos de infanticídio
quando ocorre nascimento de gêmeos. Nestas condições, a presença de dois
bebês tornaria impossível a coleta de alimentos pela mãe e o infanticídio
tem sido interpretado como uma solução adaptativa para a manutenção do
sucesso reprodutivo das mulheres nestas culturas. O infanticídio também
tem sido observado em culturas indígenas em casos de desconfiança de paternidade e intervalos muito curtos entre partos consecutivos. Também aqui,
interpreta-se o infanticídio como uma solução para a ausência de cuidado
paterno, no primeiro caso, e a dificuldade de fornecer cuidados suficientes
para ambas as crianças, no segundo (Daly & Wilson, 1994a; Hrdy, 1994,
Gosso & Otta, 2005).
O infanticídio parece ser uma solução extrema e, efetivamente, aparece
raramente (Hrdy, 1994). Uma outra forma de lidar com a presença de altos
custos no fornecimento de cuidados parece ser o abandono. Mães em condições de extrema pobreza ou cujo status social poderia ser abalado pela presença de um filho, podem optar pelo abandono como forma de garantir a
sobrevivência do bebê (Hrdy, 1994; vom Sall, 1994). O abandono, do ponto
de vista evolutivo, só faz sentido se houver outros cuidadores disponíveis. A
adoção de crianças abandonadas por pessoas aparentadas pode ser explicada, em termos de sucesso reprodutivo, a partir do ganho de aptidão abrangente, ou seja, o investimento em uma criança aparentada propicia, para o
indivíduo que fornece os cuidados, meios de propagar os genes que compartilha com ela (Hrdy, no prelo, Hawkes et al., 1998, Geary & Flynn, 2001).
No entanto, não apenas pessoas aparentadas adotam crianças ou forne30
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
cem cuidados complementares aos fornecidos pelos pais. Pessoas não aparentadas também se tornam cuidadoras. Estas pessoas não obtêm aumento
de seu sucesso reprodutivo ou ganhos em termos de aptidão abrangente, no
entanto, supõe-se que podem formar vínculos e alianças que poderão trazer
ganhos futuros sob a forma de trocas recíprocas. Alguns estudos que comparam os cuidados oferecidos às crianças adotadas aos oferecidos aos filhos
biológicos indicam que crianças adotadas podem receber mais investimentos (Gibson, 2004; Bussab & Oliveira, 2005)
A reciprocidade nos relacionamentos humanos tem sido bastante investigada. Supõe-se que mecanismos psicológicos tenham evoluído com a finalidade de manter vigilância sobre o comportamento dos outros indivíduos e
sobre a disposição que demonstram em cooperar em troca de cooperação
(Pinker, 2004; Dennet, 1998). O reconhecimento individual, a memória factual e o desenvolvimento de sentimentos, como a culpa e o amor, têm sido
vistos como compondo um mecanismo psicológico desenvolvido para um
tipo de interação social baseada em reciprocidade (Key & Aiello, 1999).
Uma relação particular entre cuidador e criança ocorre quando os pais
biológicos formam novos vínculos com adultos não aparentados. Atualmente, mudanças significativas na estrutura familiar têm ocorrido em todo
o mundo. Estatísticas oficiais mostram que na Austrália, nos Estados Unidos e na maior parte dos países europeus tem ocorrido um grande número
de divórcios e é crescente a quantidade de casais que passam a morar
junto sem oficializarem a união (Tomison, 1996). Também há um número
cada vez maior de pais solteiros. No Brasil, segundo informações do IBGE
(2004), o número de separações judiciais e divórcios vêm aumentando
gradativamente. De 1993 a 2003, o volume de separações aumentou em
17,8% e o de divórcios em 44%. Em 2003, na separação judicial nãoconsensual, a proporção de mulheres requerentes (72%) foi superior a de
homens (28%). No entanto, nas ações de divórcio não-consensual, as diferenças entre homens e mulheres foram menores: 46,6% foram requeridos
pelos homens e 53,4%, pelas mulheres. Os analistas do IBGE supõem que
o crescimento da porcentagem de homens que requerem o divórcio nãoconsensual esteja associado ao fato de eles recasarem em maiores proporções do que as mulheres. A proporção de casais com filhos menores de
idade nas separações judiciais (61,9%) foi mais alta do que nos divórcios
(45,3%). Em sua grande maioria, a responsabilidade da guarda dos filhos
menores ficou com as mães (91,4%). Somente em 3,5% das separações e
4,2% dos divórcios, ambos os pais ficaram responsáveis pela guarda de
filhos menores.
31
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
Essas mudanças têm trazido preocupações quanto aos efeitos das diferentes estruturas familiares nos comportamentos dos pais e dos filhos (Tomison, 1996). Pesquisas realizadas no Canadá, Grã-Bretanha e Estados
Unidos mostram que crianças que moram com um pai biológico e um não
biológico correm mais riscos de morte e maus tratos que crianças que moram
com ambos os pais biológicos (Daly & Wilson, 1994b, 1996, 1998). Outros estudos não encontraram resultados semelhantes aos de Daly e Wilson (Temrin et a.l, 2000, 2004) que, em réplica a estes autores (Daly &
Wilson, 2001), apontaram a existência de problemas metodológicos que
teriam impedido o aparecimento do chamado “Efeito Cinderela” nestes
estudos. No entanto, apesar do debate a respeito da universalidade do “Efeito Cinderela”, outros estudos mostram diferenças entre os cuidados recebidos por crianças que moram com ambos os pais genéticos e crianças que
moram com um pai genético e outro não aparentado.
Anderson et al. (1999a e b) propõe que a questão do investimento paterno humano não esteja relacionada diretamente com a co-residência entre pai/padrasto e criança ou mesmo, apenas, com a certeza de paternidade. Os autores partem de um desdobramento da Teoria do Investimento
Parental de Trivers que discrimina entre ‘esforço parental’ e ‘esforço reprodutivo’ como forças competitivas que compõe o investimento parental.
As fêmeas da maior parte das espécies de mamíferos, dado o maior investimento prévio na produção de gametas, gestação e amamentação, tendem
a investir mais em esforço parental. Os machos, com maior potencial reprodutivo, tendem a investir mais em esforço reprodutivo. No caso humano, discutem os autores, o esforço reprodutivo não envolve apenas a busca
de parceiro, mas também, a manutenção da relação com a nova parceira.
Segundo eles, em uma espécie como a nossa, na qual ambos os sexos podem prover cuidados, demonstrações de habilidade ou desejo de fornecer
cuidados às crianças podem ser atrativos para o estabelecimento e manutenção de novas relações.
Um ponto na argumentação destes autores merece destaque. Eles apontam que o aumento no sucesso reprodutivo não explica completamente o
estabelecimento de novas relações amorosas já que em muitas delas não há
descendência. Dizem eles que “…apesar dos biólogos evolucionistas enfocarem primariamente os resultados obviamente relacionados ao aumento de
aptidão tais como a fertilidade e fecundidade, as relações humanas são motivadas por mais que somente considerações reprodutivas.” (1999a, pág.
409). Os autores parecem contrapor a explicação funcional para o estabelecimento de novas relações amorosas, ou seja, o aumento no sucesso repro32
Relacionamento e Biologia: Uma abordagem evolucionista das relações pais-filhos e padrastos-enteados
dutivo, à explicação causal, que segundo eles, leva em conta “...considerações econômicas tais como a reciprocidade” e “...os prazeres da companhia
e do sexo...”. O que os autores parecem não levar em conta é que os sentimentos de reciprocidade, prazer e companheirismo podem ser características humanas selecionadas ao longo da evolução justamente por terem levado à formação de vínculos entre homens e mulheres tendo como resultado o
aumento de seu sucesso reprodutivo. Vale lembrar aqui que as explicações
funcionais e causais não se contrapõem, mas sim, se complementam.
O ponto central da teoria destes autores - de que o investimento paterno
depende do relacionamento amoroso - é demonstrado a partir dos dados
obtidos em uma população da cidade de Albuquerque no Novo México,
USA (Anderson et al., 1999a). Os autores compararam homens que estavam
em relacionamento amoroso com as mães de seus filhos biológicos com
homens que estavam envolvidos com outras mulheres que tinham filhos de
parceiros anteriores. Os autores compararam quantos dos filhos em cada
situação tinham a probabilidade de freqüentar a universidade e receber bolsa de estudos, quanto dinheiro era gasto com as crianças e jovens e o tempo
que os homens passavam com as crianças de 5 a 12 anos de idade em cada
situação. Constatou-se que os homens que estavam em um relacionamento
com as mães de seus filhos biológicos eram os que mais investiam nestas
crianças. No entanto, os homens que tinham um enteado no atual relacionamento diferiram pouco de homens que tinham filhos biológicos de um relacionamento anterior quanto ao investimento, dando mais dinheiro para os
enteados do relacionamento atual de 18 a 24 anos e passando mais tempo
com os enteados de 5 a 12 anos que com os filhos biológicos de relacionamentos anteriores. Os enteados de relacionamentos anteriores foram os que
receberam menos investimentos masculinos. Estes resultados foram obtidos
também com uma população Xhosa residente em Cape Town, África do Sul
(Anderson et al., 1999b).
Flynn et al, 1999, também encontraram diferenças entre crianças que
residiam com padrastos e crianças que residiam com os pais biológicos.
Meninas de 0 a 10 anos e meninos de 10 a 20 anos que residiam com padrastos apresentaram menor peso que crianças de mesma idade, incluindo seus
meios-irmãos co-residentes. O peso dos recém nascidos nestes dois grupos
de crianças não era diferente. Um resultado interessante é que as crianças
que residiam com padrastos apresentaram menor índice de assimetria flutuante. Têm-se encontrado correlação positiva entre este índice e a ocorrência
de parasitoses, subnutrição, doenças e estresse em várias espécies (Hrdy,
2001). A hipótese dos autores, de que crianças que moram com pais biológi33
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
cos apresentariam índices menores de assimetria, não foi confirmada.
Dentre os Hazda, uma população de caçadores-coletores da Tanzânia,
observou-se que os pais brincaram, conversaram e cuidaram (carregar, pegar no colo, alimentar, limpar e pacificar) mais de seus filhos biológicos que
de seus enteados (Marlowe, 1999). Os homens que residiam apenas com
filhos biológicos trouxeram mais alimentos para casa que aqueles que residiam com pelo menos um enteado, além de seus próprios filhos biológicos.
O autor nota que durante entrevistas realizadas com os Hadza, todos diziam
que se esperava que os padrastos cuidassem de seus enteados da mesma
maneira que os pais biológicos. No entanto, quando se perguntava se eles
realmente não diferiam, apenas 54,3% reafirmou que não havia diferença
enquanto 47,5% disse que os homens se sentiam mais próximos de seus
próprios filhos. O autor interpreta seus resultados como demonstrando que
o fornecimento de cuidado paterno representa, principalmente, esforço parental e não apenas esforço reprodutivo, já que é direcionado principalmente para a própria prole. No entanto, não comparou homens em diferentes
contextos de envolvimento amoroso como fizeram Anderson e colaboradores, citados acima.
Diferenças entre os cuidados recebidos de mães e madrastas foram identificadas no estudo de Case e Paxson, 2000. As autoras mostraram que crianças Norte-Americanas que moravam com as madrastas apresentaram significativamente menor probabilidade, que crianças que moravam com as
mães biológicas, de: fazer visitas de rotina ao dentista e médico, ter local
usual para receber cuidado médico, usar cinto de segurança e conviver com
não-fumante. As autoras concluem que as mães biológicas são as principais
responsáveis pelo cuidado com a saúde de seus filhos e que as madrastas
não são substitutas maternas nesse domínio.
A parte das discussões sobre o significado funcional do fornecimento de
cuidado masculino e considerando as implicações de uma nova relação amorosa no fornecimento de cuidado dos pais e mães biológicos, nosso próprio
trabalho realizado com uma amostra da população da Grande Vitória, ES,
Brasil, também indicou diferenças entre pais biológicos e não biológicos. O
objetivo de nosso estudo foi avaliar a freqüência do tipo de cuidado fornecido por pais, mães, padrastos e madrastas às crianças que moram com eles.
Nós distribuímos questionários aos responsáveis por crianças de 0 a 12 anos
de idade matriculadas em 32 escolas da Grande Vitória. As questões eram
sobre composição familiar e a freqüência (muitas vezes, às vezes, poucas
vezes, nunca) com a qual o respondente realizava cada uma das seguintes
atividades com a criança: conversar com a criança, levá-la para passear,
34
Relacionamento e Biologia: Uma abordagem evolucionista das relações pais-filhos e padrastos-enteados
dar presentes, levá-la ao médico, brincar com a criança, levá-la a escola,
ajudar nas atividades escolares, cuidar da alimentação, cuidar da higiene,
corrigir atitudes inadequadas (adaptado a partir de Ades, 1998). Foram
obtidos 1155 questionários respondidos. Destes, 89,4% das crianças moravam com o pai e mãe biológicos, 8,66% com a mãe e o padrasto e 1,9%
moravam com o pai e a madrasta.
As mães, independentemente de viverem com o pai biológico ou o padrasto de seus filhos, foram as principais respondentes (77% e 85%, respectivamente) e madrastas responderam mais freqüentemente (45,4%) que padrastos (6%). Este resultado pode indicar a maior responsabilidade feminina pela supervisão das atividades escolares das crianças nas famílias da Grande Vitória.
Tanto os pais (40,9%) quanto as mães (85%) que viviam com os parceiros que não eram os pais biológicos de seus filhos responderam o questionário mais freqüentemente que aqueles vivendo com os pais biológicos de
seus filhos (15,3% dos pais vivendo com mães e 76,96% das mães vivendo
com pais). Podemos inferir que pais e mães que vivem com parceiros que
não são pais biológicos de seus filhos têm responsabilidade aumentada na
supervisão das atividades escolares de seus filhos. No entanto, quando somamos a porcentagem de pais e mães biológicos vivendo juntos que responderam o questionário (92,3%) e comparamos com a soma da porcentagem
de mães vivendo com padrastos (91%) e pais com madrastas (86,4%) vemos que pais e madrastas e mães e padrastos juntos responderam menos que
pais e mães biológicos juntos. Ou seja, parece-nos que ainda que os pais que
moram com os padrastos e madrastas de seus filhos tenham responsabilidade aumentada, eles não atingem, em conjunto, o mesmo nível de responsabilidade que a de pais biológicos vivendo juntos.
Em famílias constituídas por mães e pais biológicos, houve maior porcentagem de mães que disse realizar com muita freqüência as atividades de:
levar a criança para passear (40% das mães e 25% dos pais marcaram
“muitas vezes”), levar ao médico (50,7% das mães e 34% dos pais), cuidar
da alimentação (mães, 91,9%, pais, 70,2%) e cuidar da higiene (mães,
91,8%, pais, 71,5%). Nas atividades conversar com a criança, dar presentes, levá-la a escola, ajudar nas atividades escolares e corrigir atitudes
inadequadas, a diferença entre pais e mães foi menor que 15%, com maior
percentagem para as mães. A única atividade na qual os pais marcaram mais
“muitas vezes” foi brincar com a criança (pais, 45,6%, mães, 38,6%). Mães
que moram com o pai da criança parecem ser mais responsáveis por cuidar
da saúde da criança, alimentá-la e cuidar da higiene. Atividades relaciona35
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
das com educação e lazer são divididas com o pai biológico.
Em famílias constituídas por mães e padrastos, as mães foram as principais responsáveis por cuidar da alimentação (69,41%) e cuidar da higiene
(81,18%, padrastos, 33,3% em ambas as categorias), e por brincar com a
criança (mães, 28,8%, padrastos, 0%), ajudar nas atividades escolares (mães,
69,4%, padrastos, 33,3%) e corrigir atitudes inadequadas (mães, 83,5%,
padrastos, 66,6%). Padrastos diferiram das mães biológicas em menos de
15% na freqüência de levar a criança para passear, dar presentes, levar ao
médico e levar à escola. Nestas últimas três atividades, os padrastos mostraram porcentagens maiores que as mães ao marcar “muitas vezes”. As mães
que vivem com um parceiro que não é o pai biológico da criança parecem
ser mais responsáveis por um número maior de atividades que as mães que
vivem com os pais biológicos das crianças. No entanto, apesar do maior
número de atividades pelas quais são as principais responsáveis, a porcentagem com que marcaram “muitas vezes” em cada uma delas diminuiu, em
média, 19% em relação às mães que moram com os pais de seus filhos. Estes
resultados indicam que as mães que vivem com os padrastos de seus filhos
dividem menos tarefas com o parceiro que as mães que vivem com os pais
biológicos de seus filhos. Entretanto, apresentam menos freqüentemente cada
uma das categorias de cuidado que as mães que vivem com os pais biológicos de seus filhos.
Os padrastos estiveram menos freqüentemente envolvidos com a criança
que os pais biológicos. Houve uma diminuição de 41,8%, em média, na freqüência com que os padrastos marcaram a opção “muitas vezes” em relação
aos pais biológicos. Os padrastos parecem restringir a sua relação com o enteado a atividades relacionadas ao transporte da criança, como levá-la à escola
e ao médico e a dar presentes. Uma diferença que nos chamou atenção entre
pais e padrastos ocorreu na atividade de brincar. Em nossa amostra, os pais
que moram com as mães de seus filhos assinalaram mais vezes que as mães a
opção “muitas vezes” enquanto nenhum dos padrastos o fez. Cinqüenta por
cento dos padrastos disse brincar “às vezes” com seus enteados.
Nas famílias constituídas por pais biológicos e madrastas, as madrastas
marcaram mais freqüentemente que os pais a opção “muitas vezes” nas atividades de: levar a criança para passear (madrastas, 50%, pais, 11,1%),
levar ao médico (madrastas, 40%, pais, 0%), e ajudar nas atividades escolares (madrastas, 70%, pais, 44,4%). Nas atividades de: conversar com a
criança, dar presentes, brincar, levá-la a escola, cuidar da alimentação,
cuidar da higiene e corrigir atitudes inadequadas, pais biológicos e madrastas parecem dividir a responsabilidade, diferindo em menos de 15%.
36
Relacionamento e Biologia: Uma abordagem evolucionista das relações pais-filhos e padrastos-enteados
Apesar de esta diferença ser pequena, os pais tiveram maior porcentagem
que as madrastas na maioria das atividades, ao contrário de pais que vivem
com a mãe biológica da criança, que apresentaram maior percentagem apenas em brincar com a criança. Parece que os pais que vivem com as madrastas dividem mais a responsabilidade pelos cuidados com a criança que
aqueles que vivem com as mães biológicas. Apesar dos pais terem apresentado um aumento na freqüência com que realizavam algumas atividades, a
freqüência total diminuiu, em média, em 3% em relação aos pais que vivem
com as mães biológicas das crianças.
As madrastas mostraram uma diminuição de 5,3% na freqüência total
com que marcaram a opção “muitas vezes” em relação às mães biológicas
que vivem com os pais das crianças, e tiveram um aumento de 5,35% em
relação às mães biológicas que vivem com pais não biológicos das crianças.
O aumento foi nas atividades: levar para passear, levar para a escola, ajudar nas atividades escolares e corrigir atitudes inadequadas. A diminuição
na freqüência média de fornecimento de cuidados pela madrasta em relação
à mãe biológica que mora com o pai da criança foi relativamente pequena
quando comparada a diminuição do fornecimento de cuidado que o padrasto apresenta em relação ao pai que mora com a mãe de seus filhos. A madrasta parece assumir maior responsabilidade pelos enteados que o padrasto
e se envolver em um maior número de atividades de cuidado.
Quando comparadas às mães que moram com padrastos, as madrastas
apresentam mais freqüentemente alguns dos cuidados avaliados. O envolvimento das mães em uma nova relação amorosa parece levá-las a investir
mais em outras atividades além das de cuidado aos seus filhos. Se estes
resultados forem confirmados em outros estudos, uma investigação mais
profunda é necessária para identificar estas atividades.
De modo geral, estes resultados mostram que os relacionamentos dos
pais biológicos com os filhos diferem do relacionamento de pais não biológicos na direção esperada, quando considerada a teoria do investimento parental: crianças vivendo com um pai biológico e um não biológico recebem
mais cuidado do pai biológico. No entanto, as crianças que moram com um
pai biológico e outro não biológico recebem menos cuidado total de ambos
os pais que as crianças que vivem com ambos os pais biológicos.
Muitas questões devem ainda ser respondidas para compreendermos as
diferenças entre o relacionamento de pais e filhos e padrasto/madrastas e
enteados. As análises aqui apresentadas tratam de diferenças entre estruturas familiares, entretanto, dada a variabilidade das relações humanas esperamos encontrar também diferenças entre famílias com uma mesma estrutu37
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
ra. Estas diferenças podem estar relacionadas às características individuais
dos pais, padrastos e crianças envolvidas.
Restam ainda questões cruciais quanto às diferenças intra-familiares no
fornecimento de cuidados e aos efeitos dos cuidados recebidos de pais e
padrastos no desenvolvimento das crianças com as quais convivem. No
momento atual em que vivemos a obtenção de respostas a estas questões
podem nos levar, por um lado, a compreender melhor a dinâmica das relações entre crianças e seus cuidadores e, de outro lado, a estabelecer critérios
de avaliação do impacto destas relações ao longo da vida da criança.
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40
3
AMIZADE: TÃO PERTO, TÃO LONGE
Geovana Tabachi Silva
Inicio com o seguinte questionamento teórico: como podemos identificar o significado das palavras liberdade, respeito à vida, solidariedade, amizade, sem considerarmos que elas não representam verdades atemporais?
Tarefa impossível? Talvez para os metafísicos modernos sim. Mas, para
a perspectiva relacional que será adotada aqui, essa tarefa se expõe não só
possível como condição heurística para a descrição do tema proposto, qual
seja: a analogia indivíduo e sociedade pensada a partir das relações interpessoais de amizade em camadas pobres moradoras da favela1 da Mangueira, no Rio de Janeiro.
Como as definições de amizade não são fixas, porém objeto de negociação, elas possuem conteúdos distintos de acordo com os contextos em que se
situam. Amizade aqui é considerada uma categoria que designa a capacidade
dos indivíduos estabelecerem laços de circulação de informações entre si, que
exprimem seus interesses, seus gostos, suas opiniões, seus segredos e paixões,
formando com isso, uma rede de sociabilidade.
1
Enquanto categoria sociológica, as favelas têm sido tradicionalmente vistas como uma zona
geo-ecológica “especial” da cidade, visualmente identificáveis por apresentarem formas de
organização sócio-espaciais próprias, diferenciadas entre si e internamente (Velho, G. &
Machado, L.A . Anuário Antropológico 1976 .Organização Social do Meio Urbano. Rio de
Janeiro: Brasileiro,1977.
41
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
Essas redes podem se estabelecer espontaneamente entre os indivíduos,
como é o caso das amizades. Também podem ser organizadas conforme a
convivência cotidiana de parentesco e de vizinhança ou organizadas em espaços sociais com determinados fins e propósitos, formais ou informais, como
no trabalho, nos clubes ou associações de moradores.
Com a intenção de dilatar a percepção das relações interpessoais das
camadas populares, busco também investigar como os espaços compartilhados pelos indivíduos, tanto de liberdade como de risco, se desenham na
favela, uma vez que não se pode negar que seus moradores vivem sobre
constante tensão fruto do domínio dos traficantes.
Para compreender a dinâmica da política local, é relevante saber que na
favela a lei que regula a vida dos moradores e visitantes é imposta pelos
“bandidos”. Mesmo que na favela da Mangueira haja “livre” circulação dos
moradores e não moradores, é primeiramente a lei do tráfico que organiza a
vida social. Como se houvesse uma “tensão introjetada” nas relações.
Embora meus interlocutores digam que vivem normalmente suas vidas
“sem” intervenção dos traficantes, pude constatar a posteriori, pois ainda
hoje mantenho contatos com o morro, que essa é uma maneira de relativizar
o problema e conviver com a venda de drogas e a violência que tudo isso
gera, já que as condições sócio-materiais que vivem não permite alteração
nessa estrutura.
A concepção do ser humano como indivíduo moderno implica no reconhecimento de uma ampla liberdade de escolha. Porém são as “marcas sociais” que irão delimitar o campo de possibilidades dos indivíduos, acarretando em experiências, eventos e em circunstâncias distintas. Que marcas são
essas? Gênero, geração, classe social, família, origem. Todas categorias fornecem um processo de modelação da subjetividade, dando sentidos diversos para o “eu” que precisam ser explorados.
Ulrich Beck caracteriza a sociedade moderna mediante uma individualização tripla: a) deslocamento das formas sociais historicamente prescritas
como a família, o matrimônio, a profissão; b) a perda da segurança obtida
mediante normas, crenças e conhecimento da ação; c) estabelecimento de
novos vínculos na forma de dependência do mercado de trabalho, do consumo e da mídia2.
Com isso, faz-se necessário que os indivíduos passem a configurar suas
vidas de forma condizente com as novas condições de existência. É preciso
2
Ortega, F. (1999). Amizade e Estética da Existência em Foucault. RJ: Ed. Graal, p.155.
42
Relacionamento e Antropologia: Amizade - Tão perto, tão longe
que o próprio indivíduo seja o arquiteto da sua rede de relações sociais.
Assim, é importante produzir outras formas de pensar, sentir e agir já que
parte dos conceitos que organizavam a dinâmica da sociedade industrial
foram dissolvidos. Como alternativa capaz de produzir outras subjetividades, as relações de amizade podem ser condizentes com a complexidade de
nosso tempo.
Nesse sentido, a amizade em sua dimensão sociopolítica pode apresentar-se como uma alternativa. Uma relação de amizade enquanto crítica social, enquanto “transversal à ordem da instituição, sem ser revolucionária funcionando como espaço para o desvio, sendo uma forma de se esquivar das
convenções sociais”. As reflexões de Foucault localizam na amizade um
elemento transgressivo, pois para ele, falar de amizade é falar de multiplicidade, intensidade, experimentação, desterritorialização3.
Se essa pesquisa fosse proposta em outro contexto histórico, talvez ela
não tivesse a relevância que procuro lhe dar. Refiro-me ao momento histórico em que temas sobre favelas não deixam de ser notícia e habitarem o
imaginário coletivo, principalmente por se caracterizarem por um universo
tomado pela violência e medo, devido à “guerra” vivida entre os traficantes
de drogas, a polícia e o asfalto. Porém, mesmo diante dessa tensão e das
“faltas” materiais e simbólicas, o morador da favela não deixa de viver sua
poética.
Chamo de poética o desdobramento do cotidiano, a vida habitual de pessoas comuns, cuidando de seus afazeres domésticos, levando os filhos à
escola, ao balé, ao futebol, conversando com os vizinhos nas portas de suas
casas, cuidando dos próprios cabelos ou massageando o da vizinha, indo
trabalhar dentro ou fora da comunidade, fazendo festas (muita festa!) e estabelecendo ou desestabelecendo seus vínculos sociais e amistosos. O aspecto prosaico do dia-a-dia.
Nesse contexto pode-se observar a teoria de Mauss (1974), e a necessidade ou não de novos enfoques sobre dar, receber e compartilhar. Assim,
para Marcel Mauss, ainda que a dádiva seja um princípio “primitivo”, valeria a pena buscar entender “se” e “de que maneira” esse princípio operaria
mesmo hoje dentro da chamada sociedade Ocidental4.
Assim, tem-se a idéia na qual a amizade é pensada enquanto um fenômeno social integrado que envolve um conjunto complexo de atos de recipro-
3
4
Ibidem, p.157.
Mauss, M. (1974). Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU, v. 1.
43
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
cidade, no qual os atores participam trocando falas, gestos, olhares, silêncios, enfim, todo tipo de mensagem que se possa produzir para a realização
permanente da sociedade.
Como coloca Mauss, o que é trocado sob a forma de dádivas não são
apenas bens econômicos, “trata-se, antes de tudo, de gentilezas, banquetes,
ritos, serviços militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras em que o
mercado é apenas um dos momentos e onde a circulação de riquezas constitui apenas um termo do contrato muito mais geral e muito permanente”
(p. 45). Assim as amizades podem ser pensadas como dádivas, na medida
em que com elas circulam, enquanto signos, valores e competências culturais que permitem a manutenção dos vínculos sociais estabelecidos nesse
espaço de sociabilidade.
Nesse intenso espaço de sociabilidade da favela, os participantes compartilham mais do que símbolos e valores, compartilham códigos e regras
socialmente produzidos e negociados diariamente no sentido de orientar e
manter as relações sociais que se estabelecem no cotidiano das interações.
Assim, o valor das coisas trocadas está principalmente nos vínculos sociais
que se estabelecem entre os sujeitos.
Tal abordagem remete à possibilidade de conceber os processos como
fenômenos de reciprocidade num local que considero ser exotizado pelo
Estado, pela mídia, pelos cidadãos, estrangeiros, pesquisadores, tanto pelo
aspecto prosaico quanto por sua negatividade.
Em outras palavras, tudo se passa como se os morros ou as favelas se
caracterizassem pela dicotomia “bom” “mal”. Como se por um lado só houvesse tiroteio, venda de drogas, invasão da polícia, e meninas e meninos
rebeldes e viciados indicando todo seu lado “ruim”, perigoso, sujo, e por
outro, seu lado “bom”, do samba, dos projetos de dança, teatro, hip-hop que
“deram certo” e retiraram as pessoas da situação de miséria, material ou
simbólica, em que viviam. Essa maneira de se produzir o universo “favela”,
acaba por manter encoberto um conjunto de práticas que conformam toda
uma dinâmica de existência dos moradores escapando a esta dicotomia o
cotidiano de pessoas comuns.
Não quero me expressar de forma romântica e negar toda a violência
urbana da qual somos vítimas diariamente, mas criar estereótipos e tomá-los
como verdade também levam a violência de outra espécie – a violência simbólica. Muito embora aqui não trato da violência física ou simbólica como
categorias centrais de meu estudo, que os moradores da favela vivem e vêem
muito próximas, elas se inserem no corpus do proposto estudo etnográfico.
Procurei demonstrar na pesquisa do mestrado de que modo, em uma
44
Relacionamento e Antropologia: Amizade - Tão perto, tão longe
favela, a amizade figura como elemento simbólico, ao mesmo tempo que
“regula” trocas e o comportamento das pessoas e, conseqüentemente, o contexto no qual estão inseridos. Assim, considero que quando falo de amizade
estou fazendo alusão à emoção, sensibilidades e performances, palco ativo
da “vivência” ou “experiência” dos sujeitos.
As amizades na cultura contemporânea ocidental emergem com outra
responsabilidade, já que os vínculos amistosos encontram-se num lugar de
transição ou regulação na morfologia social, porque elas passaram a ser a
“via alternativa” nas quais as relações sociais se desdobraram. Assim como
a família e as relações sexuais, as relações de amizade foram tocadas pela
concepção individualista do sujeito. Outrora, ensejavam laços permanentes,
baseados na honra e ultrapassando o tempo e o espaço, bem como as fronteiras políticas, onde o ideal era a valorização da lealdade; esse ideal de
amizade se alterou sensivelmente e não se trata mais de uma categoria naturalizada e nunca problematizada.
O ideal moderno ocidental de amizade está associado á relações “voluntárias”, íntimas e informais, em que os compromissos são “abertos” e baseados
em “escolhas”, sendo pautados na vontade e no desejo, ao invés de compromissos estabelecidos via contrato explícito, ou constituídas de atributos institucionais, tais como o casamento e as relações trabalhistas, pautados nas trocas racionais e na divisão formal de trabalho.
Embora a amizade se constitua num primeiro momento, de um ideal
moral pautado na “escolha”, na intimidade e na pessoalidade, nem sempre
essa “escolha” se dá por questões somente subjetivas. O que procuro apontar refere-se ao fato de que mesmo se em outras circunstâncias não se escolhesse relacionar com essas pessoas, a convivência as coloca num grau de
intimidade, de informalidade, que nem sempre remete a uma amizade. Porque mesmo que os moradores da favela – parentes, vizinhos ou os conhecidos – não mantenham um vínculo amistoso e apenas se relacionem cordialmente, penso que não é possível negar a cumplicidade de se co-habitar em
moradias tão próximas.
Num lugar onde se tem porta com porta, parede com parede, janela com
janela, a intimidade acaba sendo partilhada de maneira compulsória, mesmo
que seja velada. Porém, torna-se um questionamento saber se a relação de
convivência remete ao amigo em alguns momentos e, em outros, o que se
tem é a cumplicidade cotidiana. Ou seja, as características tradicionais do
amigo implicam em afinidade, confiança, cumplicidade, lealdade, sinceridade, porém essas categorias podem aparecer sem que o vínculo amistoso
tradicional seja condição.
45
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
Os limites impostos pelo próprio processo de difusão do ideário moderno na sociedade ocidental são marcados, por vezes, por descontinuidades
ou mesmo rupturas entre sua configuração hegemônica de valor, o individualismo, e a configuração de valor hierárquica. Nesse sentido, nota-se que a
produção interiorizada de pessoa, não atravessa todos os espaços sociais da
mesma forma.
Segundo estudos, é uma tendência que as classes populares sejam marcadas por ideologia personalista e hierárquica do mundo em contraposição
às classes médias, marcadas por ideário individualista e igualitário5. Assim,
os segmentos sociais pobres produzem estilos de vida diversos se distinguindo principalmente pelas condições de acesso a eles. Como essas caracterizações não cobrem a intensidade dos vínculos sociais é importante ampliar a discussão, buscando etnograficamente outros modelos mais próximos do contexto a ser observado.
O fato de nas classes populares as pessoas serem pobres, algumas excluídas do processo de produção, as coloca em situação sócio-material desprivilegiada em relação às camadas médias. Em relação a si própria, as classes
populares, também não são homogêneas. O fato de ser pobre não necessariamente o isola de ser parte integrante do todo, embora sofram a ação dessa
integração.
Contudo, como aponta Silver (1989), uma vez excluídos do processo
produtivo de trabalho, das trocas de mercado e transações burocráticas –
onde muitos trabalham, mas não têm condições de ter uma vida diferente –
estão quase totalmente voltados para a manutenção de atividades essenciais,
cumprindo os compromissos básicos da vida diária, onde se inserem as relações pessoais e afetivas6.
Desse modo, a amizade pode ser vista como uma dádiva. Aquilo que
circula na sociedade em prol do laço social, que mescla, ao mesmo tempo,
liberdade e obrigação, interesse e desinteresse, uma vez que além do interesse, há obrigação, espontaneidade e prazer.
Conceituar ou definir amizade não é tarefa fácil, mesmo quando se pensa o termo etnograficamente. Em princípio é um conceito familiar, porém
basta uma pequena reflexão para se constatar sua complexidade e observar
que é possível encontrar mais de uma definição satisfatória para a palavra
5
6
Duarte, L. F. (1988). Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas. Rio de Janeiro:
Zahar.
Silver, A (1989). Amizade e confiança como ideais morais: uma abordagem histórica.
Tradução: Rodrigo Aga. Archives Européenes de Sociologie, 30 (2), 274-297.
46
Relacionamento e Antropologia: Amizade - Tão perto, tão longe
amizade. Basta para isso tomá-la em contextos específicos e em distintos
cenários da história.
Se consultarmos a definição de amizade num dicionário, ela se apresentará como um “substantivo feminino abstrato que indica afeição, estima,
dedicação recíproca entre pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes”
(Koogan/Houaiss,1993). Porém, se formos buscar na história em épocas
diferentes esse entendimento apresentará conteúdos e significados distintos.
Na concepção ocidental moderna, a noção de pessoa está voltada para o
indivíduo autônomo capaz de escolher sem interferências externas. Amizade é concebida enquanto uma relação expressiva, uma revelação mútua dos
desejos expressos na relação, do “eu”, da intimidade e da confiança, onde as
normas da relação são elaboradas e negociadas entre amigos. Seria o refúgio da vida pública e de todas as suas obrigações de maneira que fiquem
assegurados os aspectos privado e pessoal, afetivo, voluntário e igualitário
da amizade7.
A noção nativa de amizade que encontrei, enquanto sinônimo dos termos confiar, ajudar, colaborar, compreender, compartilhar, resolver, entregar, dividir, oferecer apresenta-se como discurso que “deve ser compreendido enquanto atos pragmáticos e performances comunicativas não apenas sobre sentimentos, mas também sobre questões tão diversas quanto
conflitos sociais e relações de gênero” 8. Dito de outro modo, a amizade é
tomada como uma palavra que designa um modo de ação, onde importa
tanto o que é dito quanto o contexto no qual se insere.
Embora a igualdade não seja um conceito universal e não seja condição
para que o vínculo amistoso se estabeleça, sua valorização é relevante, além
disso, a identidade entre amigos também é outro aspecto comum na constituição da amizade. Entretanto, numa relação de igualdade ou de desigualdade o que vai regular as trocas é a confiança, que indicará uma simetria respeitável de sentimentos e serviços. Por isso, faz-se necessário saber quais
formas de relacionamento, igual ou desigual, serão consideradas como critérios para se estabelecer tal afetividade.9
Assim, emerge tanto relações “pessoais” como relações “impessoais”. O
“pessoal” remete esfera do privado e o “impessoal” ao domínio público e
7
8
9
Rezende, C.B. (2002). Os significados da amizade: duas visões de pessoa e sociedade. Rio
de Janeiro: FGV.
ibidem, p.26.
Silver, A (1989). Amizade e confiança como ideais morais: uma abordagem histórica.
Tradução: Rodrigo Aga. Archives Européenes de Sociologie, 39 (2).
47
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
contratual. Entretanto, na sociedade moderna a relação de amizade irá se
estabelecer à medida em que for “mais voluntária possível”, considerando
o contexto envolvido. Ou seja, a cultura contemporânea permite, como afirma Simmel, que a “impessoalidade” tome outro sentido. O fato da relação
de amizade ser constitutiva apenas de elementos desejáveis a liberta de compromissos “instrumentais”, dando-lhe caráter “voluntário” e “pessoal”. Desse
modo, permite-se dizer que as relações entre amigos assumam características tanto iguais, quanto desiguais, pessoais, quanto impessoais.
Como as amizades são constituídas de modo diferenciado, de acordo
com a relação estabelecida e seus pilares sejam a confiança, o tempo e a
intimidade, outras categorias como sinceridade, inveja, tempo, igualdade,
(im)pessoalidade, gênero e sexo, também são elementos constitutivos da
subjetividade formadora da relação e se apresentam de maneira situacional,
onde ações as contingenciam e por elas são contingenciadas.
Sendo assim, a melhor maneira de conhecer o outro, ter credibilidade moral
e ser íntimo é através da confiança. Pelas vias da confiança se amenizam as
incertezas e inseguranças trazidas pela modernidade, podendo-se circular tanto em contextos institucionais quanto domésticos, á medida que a categoria
confiança ‘horizontaliza’ as trocas entre amigos, e pode ser observada tanto
em discursos de camadas médias quanto de camadas populares.10
Estabelecer limite entre essas duas esferas seria reprimir as potencialidades dos laços entre os amigos, haja vista que o ideal de amizade pode ser
entendido como um padrão pelo qual se avaliam os comportamentos, não
efetivamente como se dão na prática. Torna-se mais relevante aqui ás intenções, a solidariedade com o problema do outro, o desejo e a vontade de
ajuda mútua.
Foi nesse sentido que, como em Buffault (1996), precisei “distinguir a
amizade da sociabilidade e do convívio, que não a resumem” 11. O que encontrei em campo foram fragmentos singulares de amizade, que me permitiram entender o quão complexa ela é e o quanto de cuidado ela exige de uma
análise, o qual me dedicarei em tê-la.
Talvez, e provavelmente, quando eu retornar ao local da pesquisa, alguns dos laços de amizade estarão desfeitos, outros realizados. Reafirmando que o perto corpóreo da convivência diária massificante também é o
10
11
Rezende, C.B. (2002). Os significados da amizade: duas visões de pessoa e sociedade. Rio
de Janeiro: FGV.
Vicent-Buffault, A. (1996). Da amizade: uma história do exercício da amizade nos séculos
XVIII e XIX. Rio de Janeiro: Zahar , p.230.
48
Relacionamento e Antropologia: Amizade - Tão perto, tão longe
longe das “afinidades”, reconfigurando um outro desenho do diagrama que
se constitui o espaço de alta densidade demográfica que é a Mangueira. Tão
perto, tão longe.
Referências
Duarte, L. F. (1988). Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas. Rio de
Janeiro: Zahar.
Mauss, M. (1974). Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU, v. 1
Ortega, F. (1999). Amizade e Estética da Existência em Foucault. Rio de Janeiro: Ed.
Graal.
Rezende, C.B. (2002). Os significados da amizade: duas visões de pessoa e sociedade.
Rio de Janeiro: FGV.
Silver, A (1989). Amizade e confiança como ideais morais: uma abordagem histórica.
Tradução: Rodrigo Aga. Archives Européenes de Sociologie, 30 (2), 274-297.
Velho, G. & Machado, L.A. (1977). Anuário Antropológico 1976. Organização Social
do Meio Urbano. Rio de Janeiro: Brasileiro.
Vicent-Buffault, A. (1996). Da amizade: uma história do exercício da amizade nos
séculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro: Zahar.
49
4
A CONFIANÇA COMO ELEMENTO DAS RELAÇÕES
INTERPESSOAIS NO AMBIENTE
ORGANIZACIONAL
Marilene Olivier
1. Introdução
A história revela grandes conquistas e perdas incomensuráveis, tendo
como mola propulsora a confiança ou seu reverso. Eventos ocorreram porque os homens confiaram uns nos outros e grandes catástrofes também se
fizeram presentes pela desconfiança. O ser humano é um ser social que carrega consigo o paradoxo da necessidade de conviver com outras pessoas e,
ao mesmo tempo, as dificuldades de manter essas relações de forma harmoniosa, equilibrada.
A sociedade é constituída de pessoas que se agruparam, se organizaram
e construíram redes complexas de relacionamentos. Tanto o funcionamento
quanto as relações existentes nessas redes são determinadas por valores e
normas de natureza: pessoal, jurídica e social. Em qualquer dimensão estudada existe um elemento que se evidencia como básico, fundamental, para a
qualidade desses relacionamentos, que é a confiança.
O tema vem sendo abordado por diversos ângulos já faz mais de duas
décadas, mas ainda não se chegou a um consenso sobre seu significado e
não existem estudos no sentido de um mapeado do que já existe produzido.
No caso da administração a confiança vem sendo tratada dentro do paradigma funcionalista, por meio de propostas da economia de mercado e dos
51
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
interesses do capital, no sentido de atrelar dois focos, quais sejam: moderar
o risco envolvido e garantir benefícios futuros. Assim, foi tratada enquanto
relações entre blocos econômicos, países, governos (setor público), cadeias
produtivas, arranjos produtivos, empresas e consumidores.
No levantamento realizado, observou-se que existem poucos trabalhos
com foco no indivíduo e nas relações interpessoais, no âmbito organizacional. Dessa forma, foram identificados os conceitos de confiança nas pesquisas já encetadas para, então, discutir o tema considerando-se as relações
interpessoais nesse ambiente.
2. Conceituação
Toda discussão requer que se faça ex-ante, uma definição dos principais
conceitos que a envolvem. No entanto, ao se tratar da confiança a proposta
torna-se difícil, pois apesar de ser uma expressão amplamente referenciada
no cotidiano das pessoas, não existe um consenso entre os autores sobre
uma definição única (Hosmer, 1995). Confiança é um construto complexo,
de difícil entendimento. Autores tendem a ver a confiança no contexto de
suas respectivas áreas de atuação acadêmica, o que gera diferentes definições e, algumas vezes, contribui para a confusão a respeito do conceito e de
como ela ocorre.
Na década de 1990 Hosmer (1995) e Rousseau, Sitkin, Burt e Camerer
(1998) já afirmavam que o termo estava sendo usado com sentidos diversos
resultando em uma variedade de definições que dificulta o mapeamento de
seus significados. Esses autores deixam o leitor com a impressão de que
pouco pode ser feito para entender a origem da confiança organizacional ou
os níveis de influência da confiança entre indivíduos (Mayer, Davis & Schooman, 1995).
Devido a essa variedade, o termo confiança é freqüentemente aplicado
de forma inconsistente e inapropriada, gerando dificuldade mesmo entre
pesquisadores no momento de decidir sobre seu significado e quando ele
ocorre. Devido a essa particularidade, de acordo com Mello e Teixeira (2004)
a confiança é um construto em construção.
Muitas definições focam a tendência do indivíduo para correr risco tornando-o vulnerável e ao mesmo tempo aberto a receber um benefício ou um
prejuízo, pois o risco está implícito no processo. Isso vem sendo interpretado de acordo com área na qual o pesquisador está inserido. A vertente mais
recente está relacionada aos valores, sobretudo os coletivistas.
52
Relacionamento e Administração: A confiança como elemento das relações interpessoais no ambiente organizacional
Romano (2003) buscou identificar as principais características da confiança, em termos de construto, quais sejam: natureza, componentes e dimensões. Quanto à natureza a confiança pode ser atitudinal, social, adaptativa e
funcional. Esse tratamento ajuda a compreender um pouco o que ela é e o
que não é. Os componentes da confiança, por seu lado, definem os sentimentos a ela inerentes, que são: hipotético; conseqüencial e motivacional.
Em termos da dimensão, contempla os julgamentos que os níveis de confiança provocam, podendo a confiança ser: simétrica, incremental e condicional. O trabalho abrange boa parte do conteúdo tratado por outros autores,
como se pode perceber ao comparar a classificação com o resumo do Quadro 01 no qual se pode ver que os conceitos envolvem sentimentos, atitudes,
comportamentos e valores.
Conceito
Autores
Comportamento
Deutsch (1958); Curral e Judge (1995)
Crença
Giffin (1967); Holmes e Zanna (1985);
Schlenker, Helm e Tedeschi (1973)
Estado psicológico representado
por uma pré-disposição
Cook e Wall (1980); Mayer, Davis e
Schoorman (1995); Mcallister (1995); Mishra
(1996); Doney, Cannon e Mullen (1998);
Williams (2001) Rotter (1967) Whitener,
Brout, Korgaurd, Werner (1998)
Expectativa sobre a conduta do
outro
Rotter, 1967; Frost, Stimpson e Maughan
(1978); Rempel, Holmes e Zanna (1985);
Curral e Judge (1995); Mayer, Davis e
Schoorman (1995)Lewicki McAllister e Bies
(1998, p. 439)
Credibilidade
Butler (1999)
Lealdade
Rich (1997)
Confidência
McAllister (1995)
Cooperação e colaboração
Burt e Knez (1996); Powell, (1996); Mayer,
Davis e Schoorman (1996)
Risco e vulnerabilidade
Sheppard e Sherman (1998); Doney, Cannon e
Mullen (1998); Giddens (1991); Johnson,
George e Swap (1982); Mayer, Davis e
Schoorman (1995); Elangovan e Shapiro (1988)
Atitude
Rotter (1967); Scott (1980); Costa, Roe e
Taillieu (2001); Jones e George (1998);
Rousseau et al (1998)
53
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
Conceito
Autores
Forma de manifestação
Luhmann (1988); Mayer, Davis e Schoorman
(1995)
Fenômenos subjetivos definidos
por experiências psicológicas
Kee e Knox (1970)
Pensamentos, sentimentos e
intenções comportamentais,
intuição (cognitiva, afetiva,
comportamental)
Clark e Payne (1997); Cummings e Bromiley
(1996); McKnight, Cummings e Chervany
(1998); Whitner, Brodt, Korsgaard e Werner
(1998)
Função dos valores pessoais,
experiência de vida,
personalidade (dimensão
psicológica)
Doney, Cannon e Mullen (1998); Harris e
Dibben (1999); Mayer, Davis e Schoorman
(1995); Whitener, Brout, Korgaurd, Werner
(1998)Jones e George (1998)
Função dos valores culturais
Whitener, Brout, Korgaurd, Werner (1998);
Harris e Dibben (1999); Doney, Cannon e
Mullen (1998); Whitener, Brout, Korgaurd,
Werner (1998)
Credibilidade e benevolëncia
Ganesan (1994)
Bem comum (valor social)
Misztral (1996)
Princípio moral, Capacidade de
comprometer-se com padrões
sociais
Tocqueville (2000)
Virtude
Tonnies (2002)
Mecanismo de integração social
(atitudinal)
Parsons (1974)
Quadro 1: Focos de Estudo sobre a Confiança
Para estudar a confiança no âmbito das relações interpessoais, é preciso
analisa-la enquanto um fenômeno subjetivo, definido pelas experiências
psicológicas do indivíduo, que culminam em atitudes, podendo então ser
caracterizada em termos de pensamentos, sentimentos, intuição e intenções
comportamentais. Dessa forma, interliga três componentes: sentimentos de
natureza cognitiva, afetiva e comportamental. Porém é importante registrar
que, enquanto comportamento a classificação sofre críticas, porque é possível encontrar cooperação entre as pessoas, sem que necessariamente um
comportamento de confiança seja observado. Essa cooperação poderia ser
fruto, por exemplo, de normas e regras estabelecidas, ou até mesmo de ambientes nos quais o dual coerção-submissão é o imperativo.
54
Relacionamento e Administração: A confiança como elemento das relações interpessoais no ambiente organizacional
Dentro de uma perspectiva psicológica a confiança pode ser tratada também como um traço pessoal, característico de cada indivíduo. Os estudos
abordam aspectos das diferenças individuais de personalidade e o efeito que
possuem sobre o desenvolvimento da confiança. Nesse sentido abre diversas possibilidades em termos do grau de predisposição a confiar em um
outro, com base na sua experiência de vida, em contextos e situações similares. Deve-se então levar em consideração duas outras características pessoais de quem confia, como elementos influenciadores das relações de confiança: a auto-eficácia de quem confia e seus valores.
Considerando então que a confiança seja uma função dos valores pessoais, que guiam comportamentos e crenças, acredita-se que eles possam ser
elementos facilitadores ou de retardamento da construção inicial da confiança, do processo de formação da confiança adotado e do tipo de relação
que se estabelece. Esses valores culturais segundo a concepção de Schwartz
podem ser classificados em duas dimensões, a individualista e a coletivista,
que serviram de base para o trabalho de Gouveia, Martinez, Meira e Milfont
(2001) e Hofstede (2001) e Triandis et al.(1988). Estes últimos identificarm
dimensões de valores culturais que incluem: distância do poder, aversão à
incerteza, machismo versus feminismo, orientação de curto prazo versus
orientação de longo prazo e o dual individualismo-coletivismo, pode ser
entendido segundo três fatores, quais sejam: competição, preocupação com
os demais e distância do grupo, o que permite trabalhar com contínuos de
escala tipo Likert em pesquisas de natureza quantitativa.
A base para estruturação dos valores coletivistas é o grupo, que define as
normas sob as quais as pessoas adotarão seu comportamento, de forma individual. Há uma submissão ou uma congruência entre os interesses do indivíduo e do grupo, o que parece gerar mais harmonia, reduzidos níveis de competição e insegurança, resultando na presença de um número menor de fatores estressores. Essa interdependência pode ser assimilada como um dever
moral, uma vez que indivíduos cuja orientação seja coletiva tendem a interagir de forma cooperativa e interdependente, com alta lealdade para com
os demais e para com a organização, pois o grupo se torna mais importante
do que o indivíduo. Assim, confiança é importante para a construção de
blocos de comportamentos coletivos bem como para a operacionalização
das organizações sociais e das instituições (Triandis & Hui, 1990; Triandis
et. al, 1988, Doney, Cannon & Mullen, 1998; Gouveia, Martinez, Meira &
Milfont, 2001) .
Para os individualistas o foco está nas preferências de cada um e na
análise de custo-benefício. Indivíduos com essa orientação tendem a intera55
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
gir de forma competitiva, com baixa lealdade para com os outros e para com
a organização (Doney, Cannon & Mullen, 1998), dificultando a formação
de relações de confiança. A Interdependência assume um caráter utilitarista
em termos de trocas sociais (Triandis & Hui, 1990). Essa orientação é egocêntrica, pois, conforme Gouveia, Martinez, Meira e Milfont (2001), coloca
o indivíduo acima dos grupos em todos os aspectos. Isso conduz à possibilidades de relacionamentos freqüentes, porém, sem a garantia de estabilidade. São chamados relacionamentos contratuais, nos quais a confiança pessoal parece intimamente ligada aos padrões de comportamento descritos
pelo utilitarismo racional.
A racionalidade individual surge quando o potencial de ganhar é maior
do que de perder e a confiança nas relações tem como base a garantia das
sanções negativas. No caso das relações interpessoais essa dimensão não
existe, pois está fora do contexto legal e formal. Por outro lado, se o cálculo
racional dos objetivos e realizações não for capaz de reduzir os fatores de
risco ao mínimo, ou ator não conseguir perceber os fatores de incerteza,
excedendo sua capacidade racional, então a confiança pode ser vista como
um recurso psicológico, podendo até se transformar em uma obrigação moral para com seu parceiro. Ainda dentro dessa construção, a confiança pessoal pode, também, ser mútua quando funciona como capital social e serve
para a regulação e para a predição de relações. Ela torna-se então um recurso essencial na integração social e a base atitudinal para as relações solidárias entre os indivíduos e as instituições que fazem parte deste sistema (Parsons, 1974).
3. Confiança e ambiente organizacional
Para compreender melhor a confiança nas relações interpessoais, faz-se
necessário resgatar as idéias centrais de Bowlby (1994) (apud Bowlby &
Dutra, 2004) e, também de Abreu (2005) que traçaram sua origem a partir
da infância. Em suas discussões sobre os estágios de desenvolvimento, eles
mostram que a criança aprende a confiar bem cedo e exploram o desenvolvimento da confiança para indivíduos ao longo de um contínuo, com a confiança em um extremo e a desconfiança em outro. As pessoas têm dificuldade em seus relacionamentos até se sentirem seguras de que podem confiar
naqueles que deles fazem parte. A Teoria do Apego torna-se então relevante
para a compreensão do papel da confiança nos relacionamentos.
Dentro dessa linha a definição desenvolvida por Lewicki, McAllister e
56
Relacionamento e Administração: A confiança como elemento das relações interpessoais no ambiente organizacional
Bies (1998) trata a confiança como uma expectativa positiva sobre a conduta do outro, com quem o sujeito se relaciona, o que abre a possibilidade de
tornar-se vulnerável, uma predisposição natural a confiar, que influencia o
quanto a pessoa será capaz de se entregar à outra, antes de obter informações adicionais que permitam avaliar melhor em quem se está confiando.
Nesse sentido, implica em assumir o risco inerente da relação, o que remete
ao pressuposto de que quem confia tem algo a perder. No entanto, a confiança pode assumir também um caráter de gratuidade, de doação, de solidariedade, a partir do qual o risco, a perda, deixa de existir. Nem todos os autores
concordam com a existência da dicotomia confiança-desconfiança.
Estudos das relações interpessoais de confiança no contexto organizacional tendem a concentrar-se nos gestores, ignorando o potencial social dos
benefícios que podem emergir entre os colaboradores. Ao se investigar a
influência da confiança entre os colegas de trabalho sobre o ambiente organizacional e suas atitudes pode-se dizer que a confiança revelou-se um preditor significativo da percepção do suporte organizacional e do grau de comprometimento emocional. Há, portanto, a possibilidade de as organizações
melhorarem as relações afetivas entre os indivíduos em seu ambiente com o
desenvolvimento de relações interpessoais que incluam a confiança como
elemento central. Um dos caminhos percorridos foi o da aprendizagem e
desempenho organizacional (Zand, 1972; Adams, 2004), mas nota-se claramente que essa escolha para estudo sofreu a influência do paradigma fordista e do foco funcionalista de gestão predominante no meio empresarial. Os
autores afirmam a importância de entender melhor a confiança organizacional, porque a sobrevivência das organizações na economia globalizada depende em parte dos indivíduos que a compõem. Essa influência chega a tal
ponto, que até os dias atuais o conceito é mal interpretado, ignorado em sua
essência ou utilizado como ferramenta para otimização dos recursos, sem a
preocupação com as pessoas. Entende-se que a confiança deva ser tratada
como um elemento natural das relações e não usada como elemento de produtividade no curto prazo.
Pesquisadores afirmam que a confiança interpessoal entre os empregados
constitui-se no lubrificante do desenvolvimento do capital social nas organizações (Spagnolo, 1999). Porém, ao se tomar o conceito de capital social
como o valor inerente encontrado nas relações humanas construtivas e nas
conexões dentro do local de trabalho como um fator de sustentação da vantagem competitiva (Barney, 1991; Nahapiet & Ghoshal, 1998), como um elemento de redução do custo das transações (Barney & Hanson, 1994), como
fator motivacional da aprendizagem organizacional (Bouty, 2000), como esti57
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
mulador para se compartilhar do conhecimento, como estímulo à inovação
(Cooke & Wills, 1999) e facilitador de melhores desempenhos financeiros
(Waddock & Graves, 1997), vê-se, mais uma vez, uma concepção utilitarista
para a confiança, baseada nos resultados funcionais que dela advêm. Com
mais ênfase isso aparece em trabalhos que incorporaram uma dimensão econômica ao conceito, como no caso de Wicks, Berman e Jones (1999) e Jones
e George (1998) que acreditam que as organizações deveriam adotar a confiança como uma boa estratégia para retorno dos investimentos, uma vez que a
atitude da pessoa que confia é funcionalista por natureza. Este elemento conduz a aos extremos racionais de confiar ou desconfiar. Porém, dado a natureza
subjetiva da experiência relacionada à confiança, de acordo com Kee e Knox
(1970) (apud Romano, 2003) não é aconselhável defini-la na perspectiva de
um recurso, muito embora as atitudes daquele que confia tendam a seguir
caminhos de seus próprios interesses. Ou seja, quando um indivíduo confia no
seu colega de trabalho, ele fará um julgamento favorável das suas atitudes, de
modo geral, sendo o inverso também verdadeiro, ou seja, quando não existe a
confiança, elementos desfavoráveis permearão as relações entre os sujeitos
envolvidos.
Assim, a confiança é considerada funcional quando a atitude a ela referente, em qualquer nível, produz, necessariamente, resultados esperados por
aquele que confia. Segundo Zand (1972) essa funcionalidade dá à confiança
e aquele que dela faz uso, um caráter de controle, no sentido de manejar as
coisas de acordo com seu interesse. Para Das e Teng (1998) alguns autores
admitem a existência de uma relação linear entre a confiança e o controle,
mas isso pode ser um equívoco. Há possibilidade de que ao existir a confiança exista também um certo grau de influência sobre o outro, ou sobre a
situação, por meio da confidência. Parece lógico que indivíduos que não
confiam em seus colegas de trabalho também possuem um baixo grau de
confidência em relação a eles, diminuindo o nível de confiança entre ambos.
Entretanto, uma relação linear entre confiança e controle não é suficiente
para explicar a natureza funcional da confiança em todos as situações.
Em termos gerenciais autores como Creed e Miles (1996) (apud Adams,
2004) afirmam que os custos decorrentes da falta de confiança são maiores
do que os investimentos que nela se faz. Davenport e Pruzak (1998) (apud
Adams, 2004) encorajam os líderes a tornarem a confiança visível e clara e
a adotarem um modelo de confiança no ambiente organizacional, pois a
falta da confiança pode reduzir a amplitude das relações interpessoais no
trabalho dificultando o compartilhamento de informações, idéias e o sentimento de pertencer à organização. Esses argumentos estão alinhados com
58
Relacionamento e Administração: A confiança como elemento das relações interpessoais no ambiente organizacional
práticas gerencias relacionadas às pessoas, que se configuram como dominadoras e reguladoras.
A partir desse raciocínio, no contexto gerencial, a confiança significa então, segurança de procedimento. Mas em termos de relacionamentos, trata-se
do quanto se pode contar com o outro, considerando seus valores pessoais, ou
seja, crer na honradez daquele com quem se mantém um relacionamento. Como
as pessoas temem o que desconhecem, a confiança nasce do cumprimento dos
acordos, da manutenção da palavra empenhada, da garantia de se apoiar o
outro, e isso leva tempo. Ainda é utópica a idéia da tendência de se confiar no
outro por intuição ou de forma natural, sem conhecimento prévio daquele que
se encontra pela primeira vez em uma relação. A crença de que o ser humano
tem boa índole, é cooperativo por natureza, confiável, ético, solidário, tolerante ainda não está constituída. Diante do mundo globalizado, no qual não há
mais espaço para a estabilidade e longevidade do vínculo empregatício, o
tempo de permanência das pessoas nas organizações tem diminuído a cada
dia. Além disso, por decorrência da estrutura do mercado de trabalho no tocante a oferta de mão-de-obra e disponibilidade de vagas, passou a existir
uma competição acirrada entre as pessoas não só fora como no ambiente organizacional. As exigências por produtividade, qualidade e demais procedimentos tem levado os trabalhadores e as empresas a se tornarem mais preocupados consigo mesmos, com seus objetivos. A qualidade das relações se resume
ao cumprimento das obrigações contratuais e, não raro, à submissão dos empregados às condições determinadas por processos de produção que invadem
a esfera da privacidade das pessoas, alterando suas relações familiares e sociais de forma negativa. Dessa maneira, parece haver no ambiente de trabalho
uma certa dificuldade em se manter a qualidade das relações interpessoais,
devido à redução nos níveis de confiança, que transcende os aspectos meramente legais.
Ao se considerar as teorias de gestão mais recentes, observa-se, pelo menos no discurso, que os controles tradicionais baseados na autoridade e no
poder parecem ceder lugar ao auto-gerenciamento e auto-controle, à descentralização das decisões e ao compartilhamento de informações. Isso requer
um comportamento cooperativo e de confiança entre os indivíduos, grupos e
elementos que representam as organizações na cadeia e nos arranjos produtivos. No entanto, essa confiança adquire um tom de garantia da competência e
da execução, ganhando um ar de artificialidade que não atende aos reclames
das relações interpessoais, ficando apenas na esfera da formalidade. Por outro
lado, um grande número de empresas tem, também, implementado programas
de qualidade total, cujas regras e funcionamento mostram claramente a falta
59
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
de confiança nas pessoas e em seu desempenho, uma vez que o nível de controle é muito alto e intensos são os imperativos das auditorias. De modo geral,
os gestores desempenham um papel crucial no desenvolvimento da confiança
desde que eles controlem o fluxo da informação quer seja compartilhando ou
não essa informação, o que é coerente com as observações de Albrecht e Travaglione (2003); Laschinger, Finegan, Shamian, e Casier (2000) de que os
estudos sobre a confiança nas relações interpessoais tendem a se concentrar
na confiança dos gestores ou na reciprocidade da confiança inerente ao subordinado a que a confiança organizacional se refere. Esse foco é compreensível
considerando-se o impacto da confiança do gestor sob diferentes relatos de
fatores de desempenho. Entretanto as pesquisas sobre a confiança no gestor,
de modo geral, ignoraram as relações de confiança em nível dos empregados.
Apesar disso, na opinião de Chattopadhyay e George (2001); McAllister (1995);
Cook e Wall (1980), o problema dos seus efeitos ainda não tem recebido uma
atenção sistematizada. O que se pode perceber, apesar de tudo, é que o grau de
confiança nas organizações depende da filosofia gerencial, das ações organizacionais, da estrutura e da expectativa de reciprocidade dos empregados.
A confiança já foi tratada também sob uma vertente humanista, que hoje
se encaixa no conceito da gestão holística em relação ao ser humano. Para
Cook e Wall (1980, p. 39) a confiança é “a extensão com alguém mostra
boas intenções para com o outro por meio de confidências em suas palavras
e ações”. Guibert e McDonough (1986, p. 175) já afirmavam que “confiança é relevante se ou não um indivíduo é capaz de valorizar o que o outro é e
demonstrar respeito por ele particularmente quando esse indivíduo necessita e quando outras pessoas consideram aquela ação momentaneamente competitiva”. Carnavale e Wechsler (1992, p. 473) descrevem a confiança como
uma expectativa da “ética, da clareza e do comportamento que não intimida
e causa ansiedade, tensão para com os direitos do outro”. Segundo Mishra
(1996, p. 265) (apud Tschannen-Moran & Hoy, 2004) a confiança é “a cumplicidade de alguém a ponto de se tornar vulnerável ao outro baseado na
crença de que a outra parte é competente, aberta, cautelosa e confiável.” As
definições oferecidas por Currall e Judge (1995); Mayer e Davis (1999);
Albrecht e Travaglione (2003) defendem essa proposição afirmando que a
“confidência para agir” é uma das características da confiança. Por fim, a
definição dada por McAllistar (1995, p. 25), embora anterior a algumas,
consolida as idéias da confiança enquanto identificação interpessoal ao afirmar que é “a extensão do quanto alguém se faz confidente a outro e está
pronto para agir em termos de palavras, ações e decisões desse outro”. Aquele
que confia faz um investimento emocional na relação, demonstrando um
60
Relacionamento e Administração: A confiança como elemento das relações interpessoais no ambiente organizacional
cuidado e uma certa preocupação a respeito da outra parte envolvida, quando ela não apresenta os elementos necessários para garantir uma relação
satisfatória.
Barnard (1974), Whitener, Brout, Korgaurd, Werner (1998) já afirmava
que uma das responsabilidades fundamentais do líder é incentivar a cooperação entre empregados e grupos dentro das organizações que só sobreviverão,
crescerão e permanecerão no mercado se a integridade e a confiança estiverem presentes entre seus valores. Para eles existem cinco categorias que caracterizam esse processo: consistência comportamental (integridade), compartilhamento, descentralização do controle, comunicação e demonstração de
cuidado (proteção). Essas cinco categorias aparecem também no trabalho de
Shockley-Zalabak, Ellis e Winograd (2000) como os fatores da confiança no
ambiente organizacional. Acredita-se, portanto, que os pesquisadores ainda
estejam aprendendo sobre a confiança nas organizações, considerando-se os
efeitos dos dispositivos de confiança nas atitudes das pessoas.
Ao se observar os trabalhos de Gurtman (1992), Sorrentino, Holmes,
Hanna e Sharp (1995), percebe-se que já existia a vertente que acreditava na
inclinação natural das pessoas para confiarem no outro. Mais recentemente,
estudos feitos por Tan e Tan (2000) e Laschinger, Finegan, Shamian, e Casier (2000) sugerem que a confiança influencia emocional e continuamente o
comprometimento. Andersson e Bateman (1997), Butler (1999), e Rousseau e Tijoriwala (1999) registram que as atitudes tendem a mudar quando
não há confiança entre as pessoas. Em termos mais amplos, a confiança
pode ser ainda um conjunto de pensamentos para operacionalizar comportamentos de cidadania (Robinson; Morrison, 1995), satisfação no trabalho
(Cunningham; MacGregor, 2000) e reduzir aquilo que não traz satisfação
(Cook; Wall, 1980).
Numa outra dimensão para o ser humano, Sheppard (1998) enfatiza que
existe um contrato psicológico de confiança entre a empresa e seus empregados, que se quebrado, pode desestabilizar ambos os lados envolvidos na
relação, aparecendo emoções fortes que podem ser traduzidas em raiva e
frustração. Na mesma via, Bies e Tipp (1996) (apud Adams, 2004) afirmam
que a mentira, o roubo e o abuso de autoridade são elementos que podem
causar a quebra da confiança e, ao mesmo tempo, gerar sentimentos de vingança e violência.
Como se vê, existe uma necessidade de se clarificar o conceito, devido à
sua importância para as relações de trabalho. Embora vasta, observou-se
uma certa deficiência na bibliografia disponível, pois os pesquisadores não
têm conseguido explorar (identificar e analisar) as origens da confiança or61
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
ganizacional por meio da análise das relações entre adultos e da propensão
à confiar que trazem individualmente para o ambiente de trabalho. Essa propensão à confiança é a base da confiança interpessoal desenvolvida entre
crianças e aqueles que dispensam os primeiros cuidados (usualmente a mãe)
(Bowlby & Dutra, 2004, Abreu, 2005; Collins & Read, 1990; Hinde, 1998;
Klohnen & Bera, 1998). As primeiras relações entre as crianças, modificadas por experiências, de vida têm mostrado substancial influência nas relações íntimas entre adultos, como reportam Bartholomew (1990), Hazan e
Shaver (1987), Johnson (1981) e outros pesquisadores.
É lamentável que o apego (sentimento) nas relações de adultos e a confiança interpessoal tenham sido ignoradas ou tratadas superficialmente nos
estudos de administração, em que pese amplamente demonstrada a dimensão de sua importância para as pessoas enquanto seres humanos, fora das
organizações, sobretudo no ambiente familiar. Os gestores não têm dado a
devida atenção a elementos como amizade e confiança nas relações dentro
do contexto laboral. De acordo com Pistole (1993), Wheeless e Grotz (1976)
a formação de amigos no ambiente de trabalho é facilitada pela abertura
emocional de cada um (emotional self-disclosure – ESD). Isso significa que
a troca de informação emocional nessas relações é de natureza recíproca.
Acredita-se, portanto, que a ESD possa desempenhar um papel importante
na equipe de trabalho nas organizações no sentido de desenvolver um ambiente de confiança não artificial, mas surgido naturalmente das relações interpessoais. Infelizmente tanto gestores quanto pesquisadores da área de
administração têm ignorado a ESD no ambiente de trabalho e as possibilidades afetivas entre adultos como elementos de coesão organizacional, de consistência e veracidade das interações entre as pessoas, não como homens
fragmentados, mas como seres holísticos.
Embora as relações interpessoais assumam papel de destaque no ambiente
organizacional, pouco tem sido trabalhado nos últimos anos em torno desse
fator. É difícil compreender tal situação quando se observa um número expressivo de pesquisas em torno de comprometimento e equipes de alto desempenho. É difícil conceber o estudo desses temas sem os elementos que o compõem, tais como: confiança, amizade, tolerância, desprendimento, cooperação, solidariedade, valores, justiça, equilíbrio, medo, emoções. Eles têm sido
excluídos do contexto de trabalho por serem considerados elementos que a
ele não pertencem, por não se caracterizarem como mecanismos de ação cujos resultados sejam facilmente identificáveis. Dentro dessa lógica os gestores
não concordam com essas aberturas, porque os benefícios desse tipo de gestão ainda são desconhecidos, ou seja, não foram objeto de pesquisas de rela62
Relacionamento e Administração: A confiança como elemento das relações interpessoais no ambiente organizacional
ção de causa e efeito, garantindo o retorno do investimento realizado. As diversas citações deste trabalho já mostraram que pesquisadores têm argumentado que elevar os níveis de confiança no ambiente organizacional pode facilitar e melhorar as equipes de trabalho e a consecução dos objetivos organizacionais (Kurstedt, 2002; Zand, 1972), porém, de acordo com Wicks, Berman
e Jones (1999) há também aqueles que argumentam que despender recursos
com projetos cujos resultados são desconhecidos é um risco muito alto. Mais
recentemente, Adams (2004) afirma que em suas experiências nas organizações tem encontrado que os custos de condução de intervenções sobre confiança são preferíveis e são mais importantes como benefícios. O autor destaca
ainda a importância de se estudar como as relações de apego (afetividade)
entre adultos e a ESD influenciam a confiança organizacional. Porém, ao longo da pesquisa realizada, Ganesan (1994) foi o único autor encontrado que
descreveu a confiança em duas dimensões mais humanísticas que são: credibilidade e benevolência, o que fortalece o argumento de que o foco que o
assunto vem sendo tratado é o da lógica do retorno.
O Quadro 2 apresenta um resumo dos olhares e leituras de diversos
autores.
Conceito
Autores
Elemento fundamental para a
motivação, para a produtividade, para os relacionamentos e
funciona como uma vantagem
competitiva para os negócios.
Braddach e Eccles (1989); Creed e Miles
(1996); Ring e Van de Vem (1994); Wicks,
Berman, e Jones (1999)
Elemento facilitador de
cooperação e colaboração
Dodgeson (1993); Zucker, Darby, Brewer, e
Peng (1996)
Exercício de cidadania
Deluga (1995); Konovsky e Pugh, (1994);
McAllister (1995)
Elemento de solução de conflito
Parks, Henager e Scamahorn (1996)
Atitudes que conduzem à
satisfação no trabalho
Andeleeb (1996) e Rich (1997)
Comprometimento
organizacional
Yamagishi, Cook, e Watabe (1998) Brockner,
Siegel, Daly, Tyler e Martin (1997)
Comprometimento organizacional e critérios de medida como a
percepção de justiça
Brockner, Siegel, Daly, Tyler, e Martin
(1997)
63
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
Conceito
Autores
Satisfação do consumidor
Chow e Holden (1997); Swan, Bowers, e
Richardson (1999)
Fator crítico na descentralização
e compartilhamento de
informações
Mishra (1996)
Elemento que promove
cooperação entre indivíduos,
grupos e organizações
Jones e George (1996)
Adams (2004)
Elemento de redução da
incerteza e complexidade
organizacional
Hummels e Roosendaal (2001)
Elemento gerador de
comprometimento no grupo e
diminuidor do estresse
Costa, Roe e Taillieu (2001)
Elemento para aprendizagem
organizacional
Adams (2004)
Perfis de gestores
Mello e Teixeira (2004)
Classificação geral (natureza,
componentes, dimensões)
Romano (2003)
Relações entre valores e
confiança
Harris e Dibben (1999)
Níveis de confiança (guanxi e
xinren)
Kriz e Fang (2004)
Moderar riscos e garantir
benefícios futuros
Riscos e incerteza
Chow e Holden (1997)
Bradach e Eccles (1989)
Moorman, Zaltaman e Deshpande (1992)
Credibilidade e benevolência
Ganesan (1994)
Resultado da interação
Rotter (1967, 1980); Johnson-George e
Swap (1982); Scott (1980); Couch, Adams e
Jones (1996); Sheppard e Sherman (1998)
Atitudinal
Maioria
Quadro 2: Confiança nas Organizações
Não se pode negar que a situação do mercado de trabalho tem levado os
empregados a uma relação de extrema dependência da empresa. De acordo
com Teixeira, Popadiuk e Zebinato, (2004, p. 1), “[...] eles têm receio de
serem enganados, de terem sua auto-estima e os seus destinos profissionais
afetados por líderes não confiáveis”. Assim, para se sentirem mais seguros,
64
Relacionamento e Administração: A confiança como elemento das relações interpessoais no ambiente organizacional
vivem em permanente estado de alerta na tentativa de identificar se as pessoas com quem convivem falam a verdade, ou seja, desejam ser percebidos
como merecedores de confiança e buscam uma relação de interdependência. Na pesquisa por eles realizada foram identificadas três dimensões consideradas importantes pelos liderados em termos de relações confiáveis: respeito, honestidade e crédito no empregado. Embora esse trabalho já traga
algum avanço sobre o tema, o objeto da confiança, continua não muito claro, devido a inconsistências que existem nas definições a respeito dos três
fatores sociais que estão relacionados à confiança: aquele que confia, o objeto (sujeito) da confiança e o contexto no qual ela se dá. É importante então, resgatar o conceito proposto por Rotter (1967, 1980) e Jones e George
(1998) de que a confiança pode ser definida como uma evolução dos valores de quem confia, associado aos de Johnson-George e Swap (1982) e Butler (1999) que consideram para sua definição os atributos do objeto ou
sujeito de confiança e de Scott (1980) e Sheppard e Sherman (1998) que
incluem a estrutura do contexto.
Mello e Teixeira (2004) identificaram perfis de gestores de acordo com
o dual individualismo-coletivismo, que são: gestor pai, gestor amigo e gestor competidor. Gestores do tipo pai tendem a adotar posturas justas e benevolentes para com seus subordinados, acreditando no próximo, buscando
estabelecer relacionamentos de aceitação e confiança. Preferem estabelecer
relacionamentos caracterizados por dependência profunda, onde a outra parte
está subordinada ao seu controle e orientação, podendo também se envolver
em relacionamentos de interdependência desde que esta seja superficial.
Gestores amigos também são orientados ao coletivo, mas preferem se manter junto aos grupos dos quais participam. Inicia novos relacionamentos confiando no outro (com menor desconfiança inicial) favorecendo ambientes
que levem a uma confiança mútua. Por acreditar e ter fé no empregado,
preferem relacionamentos baseados em interdependência profunda, onde
suas atividades e resultados estão em relação direta com o comportamento
dos demais membros da equipe. Por fim, o gestor competidor coloca os
objetivos pessoais acima de tudo. Valorizam pouco as relações de companheirismo e amizade, mantendo-se distantes do grupo. Para eles confiança
só se constrói com o tempo, mediante comprovações do comportamento
dos envolvidos. Suas relações iniciais são de desconfiança e tendem a aceitar menos falhas e erros de seus subordinados, mostrando assim, menos tolerância e menor grau de benevolência. O perfil parece incluir o que Chow e
Holden (1997) já afirmavam, ou seja, que a confiança está atrelada a moderar o risco envolvido e garantir benefícios futuros.
65
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
Por fim, é importante ressaltar ainda o estudo de Kriz e Fang (2004) que,
embora tenham enfocado as relações interpessoais no sentido comercial (relações comerciais com chineses) apresenta uma construção teórica que merece uma análise quanto ao dia a dia nas organizações, trata-se dos conceitos
de guanxi e xinren. De acordo com Davies et al (1992) há registros de que
fazer negócio na China é particularmente difícil e que a chave que diferencia os chineses e os negócios ocidentais está na prática da desonestidade.
Para os chineses a honestidade possui importância muito grande nas relações interpessoais.
Conforme afirma Fukuyama (1995) os chineses tradicionalmente tem
passado para a família e para os amigos mais próximos como construir relações interpessoais. Knipis (1997) (apud Ridings; Gefen; Arinze, 2004) relata que o conceito de guanxi envolve desde a família, o clã, até o vilarejo, no
que diz respeito às relações de trabalho. As pessoas de negócio na China
têm expandido esse conceito para além da família e de seus parentes (gingi)
incluindo-o nas relações de negócio por meio da aplicação do que os behavioristas agora chamam “tit for tat” e reciprocidade (Ridley, 1996 apud Rilling et al. 2002). Para os sociólogos guanxi quer dizer “relacionamento”,
enquanto para o mundo dos negócios ele tem um significado mais abrangente, ou seja, conexão. De acordo com Bian (1997) guanxi literalmente significa “relacionamentos” ou “relações”, mas para Hwang (1987), em se tratando de negócios o conceito vai além: trata-se de um conjunto de conexões
interpessoais que facilitam a troca de favores entre as pessoas.
Xinren é definida como confiança profunda nas relações interpessoais,
na China. No mundo ocidental o que se chama confiança, para os chineses é
o guanxi. Com o avanço dos estudos, foram identificados níveis profundos
de confiança que é exatamente o que diferencia o conceito quando comparado com o mundo ocidental. Ao se analisar as respostas obtidas nas pesquisas
e tirando-se uma generalização, a confiança profunda existente nas relações
interpessoais entre chineses pode ainda ter associação com um nível de shengan, ou seja, sentimentos emocionais profundos. O xinren é construído a
partir de um contanto inicial, mas só se completa por meio da proximidade
absoluta. A confiança profunda ou xinren não é baseada na ajuda unilateral,
mas nos sentimentos e emoções que envolvem as duas partes.
4. À Guisa de Conclusões
Como se vê a confiança é ainda um objeto de estudo a ser explorado,
sobretudo quanto a ser um construto único que pode ser aplicado consisten66
Relacionamento e Administração: A confiança como elemento das relações interpessoais no ambiente organizacional
temente em contextos diversos. Existem ainda muitas situações para as quais
não se tem resposta. Não se sabe, por exemplo se a confiança é tratada dentro de construtos variados quando diz respeito a pessoas com as quais se tem
relações de afeto diferentes, como no caso da família e do trabalho. Isso
vale também para o ambiente organizacional, pois não se conhece a forma
pela qual a confiança é construída em termos de chefia e subordinados.
Os valores dos gestores podem ser considerados elementos responsáveis
por promover comportamentos confiáveis. Ao que parece, gestores que possuem valores universais como compreensão, entendimento e proteção ao bemestar dos outros, têm maior probabilidade de se engajarem em comportamentos confiáveis. A demonstração de preocupação com seus empregados parece
gerar mais confiança do que elementos de controle, dominação e poder. Gestores que valorizam a benevolência criam ambientes relacionais mais propícios a que as pessoas falem a verdade e mantenham suas promessas, facilitando
o estabelecimento da confiança, ao contrário dos que valorizam o hedonismo,
por exemplo. As empresas engajadas no princípio da Economia de Comunhão
ou Economia Solidária, diferentemente daquelas com características exclusivamente capitalista, têm demonstrado que é possível conciliar a estabilidade
no mercado, os lucros e a confiança interpessoal durante os processos de produção, as relações de trabalho e fora dele. Esses gestores têm dado demonstração de que é possível tratar o homem enquanto elemento integrado a todas
as suas dimensões: física, cognitiva, espiritual. Não há como interagir com o
outro, se a confiança não estiver presente.
Desta forma, percebe-se uma relação intrínseca entre os valores culturais e a importância que se dá à confiança quanto a cooperar ou não com os
demais. A presença da confiança e da visão do homem como um ser integrado tem se mostrado como uma nova forma de gerenciar, que também possui
seu espaço no mercado e, aos poucos vai dando sinais da relação entre essa
maneira de agir e os valores que permeiam o viver, o sentir, o inter-relacionar-se, o ser.
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5
RELACIONAMENTO INTERPESSOAL E SAÚDE AVANÇOS RECENTES NOS ESTUDOS SOBRE O
RELACIONAMENTO MÉDICO-PACIENTE
Agnaldo Garcia
A diversificação de serviços disponíveis à população em uma sociedade
cada vez mais complexa amplia as possibilidades de encontros também diversificados dentro de uma rede social e profissional. Ao lado dos relacionamentos com nossos familiares e amigos, interagimos com um número crescente de pessoas desempenhando diferentes papéis profissionais na prestação de serviços. Uma das relações mais investigadas entre cliente e prestador de serviço é a existente entre médico e paciente. Como outros relacionamentos profissionais, ele também está cercado por considerações técnicas e
éticas. O objetivo deste capítulo, contudo, é discutir aspectos da literatura
sobre o relacionamento médico–paciente do ponto de vista da ciência do
relacionamento interpessoal.
As condições nas quais o profissional médico interage ou se relaciona
com um paciente são muito variáveis. A tendência atual é que este encontro
sofra uma influência crescente das empresas de saúde, dos planos de saúde
ou de agências do governo que controlam a prestação destes serviços. O
encontro pode se dar entre o médico e seu paciente no consultório, mas
também em situação hospitalar, em visitas domiciliares, entre outros. Há
uma série de estudos sobre esta forma particular de relacionamento que, de
modo geral, é estudado em situação de consultório, com ênfase no processo
73
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
de comunicação, seja na fase de levantamento de dados e diagnóstico, seja
na fase de passar instruções sobre o tratamento para o cliente. Nos parágrafos abaixo, são apontados diversos aspectos que vêm sendo estudados, como
confiança, adesão ao tratamento e comunicação, entre outros.
1. Relacionamento Médico-Paciente – Uma Introdução
O PubMed, registra quase 1000 trabalhos sobre o relacionamento médico-paciente, desde os anos 50. O presente capítulo tem como base uma seleção de artigos publicados entre 2000 e 2005, com conteúdo voltado para
questões de relacionamento interpessoal. Apesar do uso corrente da expressão “relacionamento médico-paciente”, sua utilização tem sido contestada
por alguns autores, face às condições atuais desta relação. Em vários artigos, os autores empregam o termo “encontro”. Potter e McKinlay (2005)
consideram a possibilidade de hoje não mais existir um “relacionamento”,
mas apenas um encontro, sendo a utilização do primeiro termo inapropriada. Diante das transformações históricas, os autores propõem um modelo
para o relacionamento médico-paciente no século XXI. Argumentam que os
pacientes deveriam continuar a ser educados sobre como usar seu tempo
com médicos efetivamente e os médicos deveriam continuar a melhorar sua
comunicação com pacientes. Argumentam que não é o médico ou o paciente
que precisam mudar, mas as pressões e limitações do contexto organizacional no qual este encontro ocorre. Diversos temas são abordados dentro destas relações profissionais. Walker, Arnold, Miller-Day, Webb (2002), por
exemplo, identificaram cinco temas centrais para a construção deste relacionamento: controle, negociação de papéis, confiança, compromisso com o
cuidado da saúde e questões de tempo e dinheiro.
Em nosso país, a literatura sobre o tema ainda é escassa. Em pesquisa
recente, de natureza ampla, Franco, Bastos e Alves (2005) investigaram a
relação médico-paciente no Programa Saúde da Família, procurando articular a abordagem da vigilância da saúde com o modelo ecológico do desenvolvimento humano, enfatizando o papel do contexto. A partir de observações de consultas de médicos de saúde da família, encontraram diferenças
entre a implementação do Programa Saúde da Família em três municípios
da Bahia. Quanto à orientação das práticas, a vigilância da saúde não foi
incorporada pelos médicos observados e os problemas de saúde freqüentemente não eram tratados de modo contextualizado. Os autores consideram
que a abordagem da vigilância da saúde mostra-se eficiente para avaliar e
74
Relacionamento e Medicina: Avanços recentes nos estudos sobre o relacionamento médico-paciente
aperfeiçoar o Programa Saúde da Família, com potencial para implementar
a relação entre o médico e o paciente.
A qualidade da relação entre médico e paciente está diretamente relacionada com os resultados obtidos com a prática médica, tratando-se, portanto, de uma questão central. Assim como nos relacionamentos em geral, este
pode ser avaliado do ponto de vista da qualidade percebida sob diversos
pontos de vista. Em uma época em que a qualidade de vida se destaca como
valor social, a alta qualidade dos serviços disponíveis à população, inclusive no atendimento médico, representa um alvo a ser atingido.
Alguns autores têm verificado alterações históricas nos índices de percepção de qualidade do relacionamento por parte dos pacientes. Murphy,
Chang, Montgomery, Rogers e Safran (2001), investigando a percepção da
qualidade no período entre 1996 e 1999, em cuidados primários, face a
mudanças no ambiente de cuidado médico, encontraram declínios significativos em três das quatro escalas de qualidade do relacionamento: comunicação, tratamento interpessoal e confiança. Houve melhoria somente no conhecimento do paciente por parte do médico. Os autores consideram esses
dados preocupantes, especialmente se significarem uma tendência.
Há uma preocupação justificada de que a qualidade do relacionamento
médico-paciente tenha como conseqüência o prejuízo dos resultados esperados com o atendimento médico. Giron, Bevia, Medina e Talero (2002)
apontaram a relação percebida pelos médicos entre a escassez de recursos
(como pouco tempo com cada paciente, sobrecarga de trabalho e falta de
treinamento) e a baixa qualidade dos serviços. Problemas relacionados a
fatores psicossociais no encontro clínico (como no caso da comunicação
durante a entrevista clínica) agiram como fatores intermediários entre a escassez de recursos e a qualidade dos serviços. Os pacientes, por sua vez,
perceberam uma relação entre consultas curtas, sobrecarga de trabalho por
parte do médico, problemas de comunicação do paciente e erro, assim como
conflito, no encontro clínico. Os autores argumentam que há relação entre a
atitude humanista do médico e um melhor resultado quanto à solução de
problemas de saúde e sugerem que os processos envolvidos no relacionamento com o paciente desempenham um papel mediador entre os recursos
de cuidado à saúde (geralmente escassos) e os resultados dos encontros clínicos. Também indicam que melhorar o cuidado e o relacionamento requer
uma abordagem multi-dimensional, além dos fatores individuais ligados ao
médico e ao paciente.
Ainda considerando aspectos mais amplos do relacionamento médicopaciente, alguns estudos têm investigado as dimensões demográficas dessa
75
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
relação, em particular a questão da similaridade étnica e de gênero. A qualidade do relacionamento sofre a influência de condições externas e internas
ao próprio relacionamento. Ferguson e Candib (2002) encontraram, em revisão da literatura, evidência de que raça, etnia e linguagem influenciam a
qualidade da relação entre médico e paciente. Pacientes pertencentes a minorias, especialmente com dificuldades de idioma, têm menor probabilidade de gerar respostas empáticas dos médicos, estabelecer relação com eles,
receber informação suficiente e ser encorajados a participar do processo de
decisão médica. A literatura sugere maior diversidade étnica dos médicos
possibilitando aos pacientes das minorias escolher profissionais de seu próprio grupo social. A literatura ainda recomenda que estes pacientes deveriam ter seu nível de satisfação aumentado através de um melhor uso da linguagem e sentirem-se mais conectados e envolvidos em tomada de decisão
com médicos da mesma etnia. Os autores sugerem aos médicos a necessidade de se tornarem mais efetivos em desenvolver relacionamentos e em se
comunicar com pacientes de minorias étnicas e raciais.
Além da influência de características étnicas, a idade e o gênero do paciente também interferem no relacionamento (Honegger, Scheuer e Buddeberg, 2001). Estereótipos similares de gênero apareceram nas descrições
apresentadas por médicas e médicos do paciente idoso típico masculino e
feminino. Um aspecto particular deste relacionamento é a questão da participação em pesquisa clínica. Para Chen, Miller e Rosenstein (2003), os
médicos deveriam estar preparados para discutir a participação em pesquisa
clínica com os pacientes, com vantagens para o seu relacionamento com os
pacientes e para os alvos gerais da medicina.
Alguns aspectos, em especial, têm recebido maior atenção na literatura,
como é o caso da confiança, adesão ao tratamento, comunicação e satisfação.
2. Confiança
A confiança é uma das dimensões investigadas nos relacionamentos em
geral, na esfera familiar, nas díades românticas e nas amizades. Mas presença de confiança também é um elemento essencial nos relacionamentos com
profissionais. No caso da prática médica, a confiança tem sido um dos temas
mais investigados e representa uma pedra angular para essa atividade. A
confiança do paciente em seu médico pode afetar sua satisfação e os resultados com a saúde.
A confiança está relacionada com a própria utilização da medicina cientí76
Relacionamento e Medicina: Avanços recentes nos estudos sobre o relacionamento médico-paciente
fica. Franco e Pecci (2003) relacionaram confiança e o uso de terapias alternativas complementares. Segundo os autores, a confiança no médico interfere na
busca de terapias alternativas (como homeopatia e ervas), que podem interferir ou interagir negativamente com o tratamento. O uso dessas terapias estava
correlacionado com a insatisfação com o modo pelo qual a causa da doença
havia sido investigada e como o diagnóstico e o tratamento haviam sido comunicados, componentes do relacionamento médico-paciente. Os autores enfatizam a importância da educação médica para lidar com a relação com pacientes e a habilidade para transmitir confiança em procedimentos e tratamentos médicos.
A confiança no médico, contudo está sujeita a mudanças no contexto
histórico. Segundo Chaitin, Stiller, Jacobs, Hershl, Grogen e Weinberg
(2003), as mudanças no sistema de saúde têm contribuído para a deterioração da confiança que os pacientes depositavam nos médicos. Relatam o
caso de unidades de tratamento intensivo, caracterizadas pela tecnologia
crescente e a integração de múltiplas especialidades. Entre os fatores responsáveis por esta deterioração indicam a presença de vários sub-especialistas encarregados do cuidado do paciente em diferentes fases de avaliação e tratamento. Devido à natureza passageira destas interações entre
médico e paciente, não se estabelece um forte laço entre eles antes de
decisões críticas terem de ser tomadas, referentes ao cuidado com o paciente. Como resultado, especialistas diversos (como oncologistas e médicos de unidades de terapia intensiva) podem confrontar-se com discussões
sobre a situação terminal do paciente que, no passado, era responsabilidade do médico primário, gerando conflitos de comunicação. Para melhorar
essa situação, os autores procuraram estimular o diálogo e melhorar a comunicação para evitar mal-entendidos e reduzir a ansiedade entre membros das equipes participantes.
A confiança está alicerçada em fatores ligados aos pacientes, aos médicos, e às condições culturais, ambientais e estruturais. Pesquisas recentes
têm evidenciado que fatores como maior religiosidade, menor desejo por
autonomia e relacionamentos de maior duração entre o médico e o paciente
estão associados com maior confiança (Tarn, Meredith, Kagawa-Singer,
Matsumura, Bito, Oye, Liu, Kahn, Fukuhara e Wenger, 2005), no caso de
japoneses e americanos japoneses. Neste estudo, entre os americanos japoneses, os mais aculturados relataram maior confiança nos médicos, especialmente se estes eram japoneses (similaridade étnica). A forma como o médico se comporta e se comunica com o paciente também afeta os níveis de
confiança deste (Fiscella, Meldrum, Franks, Shields, Duberstein, McDaniel
77
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
e Epstein, 2004). O comportamento ou a comunicação centrada no paciente,
explorando sua experiência da doença, estavam associados com maior confiança no médico. Cada minuto adicional gasto com a visita também estava
associado com aumento na confiança do paciente.
Uma inovação no relacionamento entre o médico e o paciente que interfere diretamente na questão da confiança é a introdução de um terceiro (uma
pessoa de confiança), como uma nova possibilidade no atendimento médico,
prevista por lei em alguns locais (Manaouil, Moutel, Callies, Duchange Graser, Jarde e Herve, 2004). A pessoa de confiança acompanha o paciente em
seu tratamento e auxilia em decisões médicas ou em decisões sobre participação em pesquisa biomédica. Nos locais onde a lei o permite, essa pessoa pode
interferir nos cuidados recebidos pelo paciente no hospital, em casa ou no
consultório médico. A pessoa de confiança pode ser um parente, um amigo ou
mesmo o médico. Ela pode ser de auxílio, por exemplo, em atividades médicas de rotina, quando os pacientes precisam ser acompanhados, e também em
casos de diagnóstico ou prognose sérios ou quando o paciente é incapaz de se
expressar.
A confiança no médico pode ser observada em situações pouco comuns.
Ogbogu, Fleischer, Brodell, Bhalla, Draelos e Feldman (2001), por exemplo, verificaram a influência da confiança no médico na aquisição de produtos dermatológicos no próprio consultório. Os médicos entrevistados relataram que os pacientes compram esses produtos devido à confiança que depositam neles, enquanto os pacientes enfatizaram que o fazem devido ao conhecimento médico.
Como em outros casos, as mudanças estruturais históricas nos sistemas
de saúde, como a especialização crescente e o avanço da tecnologia, têm
afetado as relações de confiança. Esta contudo, ainda representa um dos
elementos básicos no relacionamento médico-paciente. Entre as tendências recentes, está inserção da figura de uma ‘pessoa de confiança’ para
representar o paciente, transferindo a confiança devida ao médico, ou aos
médicos, para uma pessoa em particular. Essa prática, de certa forma, representa uma tentativa de concentrar a confiança em uma única pessoa
(como no passado, no médico da família), responsável por assegurar que o
tratamento seja conduzido de forma adequada.
3. Adesão ao Tratamento
O relacionamento entre médico e paciente exerce efeitos diretos sobre o
comportamento do paciente em termos de sua adesão ao tratamento. Alguns
78
Relacionamento e Medicina: Avanços recentes nos estudos sobre o relacionamento médico-paciente
estudos recentes investigaram esse aspecto importante para o sucesso do
tratamento e sua associação com o relacionamento médico-paciente. A adesão ao tratamento dá uma indicação da medida na qual o comportamento
pessoal coincide com a orientação médica. A adesão à medicação é crítica
para o sucesso do tratamento, prevenção de doenças e promoção da saúde.
Entre os atributos do relacionamento médico-paciente investigados por
Kerse, Buetow, Mainous, Young, Coster e Arroll (2004), apenas a confiança e a concordância entre ambos estavam significativamente relacionados à adesão ao tratamento (no caso, tomar a medicação). Consultas com
níveis superiores de concordância médico-paciente (relatada pelo paciente) estavam associadas com maior adesão à medicação (aumento de um
terço). Os autores sugerem que uma maior compreensão e a busca de maior acordo entre médico e paciente podem melhorar a adesão ao tratamento. No caso de cirurgias de transplante, a adesão do paciente ao tratamento
é, segundo Pumilia (2002), um dos critérios psicossociais básicos para a
sua realização. Segundo o autor, a habilidade para prever e facilitar a adesão do paciente é um desafio para médicos de todas as áreas. Como a
acuidade dessa previsão depende de informação do paciente, de pessoal
médico e de familiares, com base em dados subjetivos, o autor ainda aponta
a necessidade de pesquisas para prover medidas objetivas para se prever a
adesão ao tratamento.
Melhorar a adesão ao tratamento é uma preocupação constante na prática médica. No caso da Pediatria, Winnick, Lucas, Hartman e Toll (2005)
encontraram um alto índice de falta de adesão na terapia com medicamentos. Segundo os autores, pelo menos um terço dos pacientes não completam
regimes de tratamento de prazo relativamente curto. Para os autores, a adesão poderia ser melhorada com um aperfeiçoamento da comunicação, decorrente de um relacionamento pessoa-a-pessoa entre médico e paciente (ou
acompanhante).
Associada à adesão ao tratamento, está a intenção de tratamento. Goldring, Taylor, Kemeny e Anton (2002) investigaram o impacto do relacionamento médico-paciente nas intenções de tratamento (tomada de decisão no
tratamento de doenças crônicas), em particular, quanto a tomar um medicamento. Para pacientes mais sintomáticos, custos e benefícios prediziam essas intenções, contudo, para pacientes menos sintomáticos, custos desempenharam um papel mais importante. A intenção de seguir o tratamento recomendado pelo médico estava associada principalmente à tomada de decisão
compartilhada entre médico e paciente. Os dados obtidos sugerem que uma
consideração integrada de fatores de relacionamento, crenças sobre saúde e
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Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
condição física pode ajudar a compreender as intenções de tratamento entre
os doentes crônicos.
A adesão ao tratamento é uma necessidade para a prática médica e as
pesquisas indicam que o nível de concordância e compreensão e a qualidade
da comunicação na relação entre médico e paciente afetam a adesão, de
modo que, conhecer este aspecto do relacionamento, é importante para aumentar a probabilidade de sucesso do tratamento. De certa forma, a adesão
ao tratamento está relacionada com o conceito de compromisso, que é estudado nos relacionamentos em geral.
4. Comunicação
A comunicação entre médico e paciente é um dos aspectos mais investigados no seu relacionamento. Vários dos trabalhos publicados estão voltados
para questões de comunicação quando o paciente se encontra em estado terminal (como em alguns casos de câncer) enquanto outros abordam a dinâmica
da comunicação no relacionamento.
A Dinâmica da Comunicação - Um estudo empírico da dinâmica da comunicação empreendido por Rhodes, Vieth, He, Miller, Howes, Bailey, Walter, Frankel e Levinson (2004) revelou diversos pontos de interesse na comunicação entre médico e paciente, em um centro de emergência médica. Entre
os dados obtidos, constataram que o tempo gasto na introdução, levantamento
do histórico médico e exame físico era, em média, de 7 minutos e 31 segundos. Os residentes se apresentaram em apenas 2/3 dos encontros, raramente
(8%) indicando seu status profissional. Apesar da tendência do médico em
começar com uma questão aberta (63% dos casos), somente 20% dos pacientes completaram sua queixa sem interrupção (geralmente uma questão fechada). A discussão de pontos referentes ao diagnóstico, ao curso esperado da
doença, ao uso de medicamentos, ao acompanhamento e sintomas que deveriam levar ao retorno, ocupou menos de 65% do tempo total disponível. Em
poucos casos (somente 16%), os atendentes perguntaram aos pacientes se eles
tinham alguma questão e o provedor dos serviços de saúde nunca checou com
o paciente se este havia compreendido a informação. Segundo os autores, os
dados indicam falhas importantes na comunicação entre médico e paciente,
tendo o encontro entre eles sido caracterizado por sua brevidade e pela carência de informações importantes para a saúde do paciente.
Outro estudo da dinâmica da comunicação, realizado no Japão (Ishikawa,
Takayama, Yamazaki, Seki e Katsumata, 2002), investigou a comunicação
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Relacionamento e Medicina: Avanços recentes nos estudos sobre o relacionamento médico-paciente
entre médico e paciente e a satisfação deste em consultas, no caso de câncer.
Os pacientes se mostraram mais satisfeitos com as consultas nas quais o médico usava mais questões abertas. Por outro lado, o direcionamento pelo médico
estava negativamente associado à satisfação do paciente. Pacientes que faziam mais perguntas estavam menos satisfeitos com a consulta. A dinâmica da
comunicação médico-paciente também foi investigada por Wilson e Kaplan
(2000), nos casos de HIV positivo. Apesar de estudos prévios indicarem que a
qualidade superior da comunicação médico-paciente está associada a melhores resultados para a saúde, tais efeitos são pouco conhecidos para pacientes
com HIV. Conforme os autores, alguns fatores estavam associados a um melhor nível de comunicação. Entre estes estavam visitas mais longas (especialmente para os homens) e um relacionamento médico-paciente mais longo. A
comunicação também se mostrou superior quando o paciente era do gênero
feminino. O fato de a doença estar em um estágio menos avançado também
estava associado a uma melhor comunicação. Médicas e médicos homossexuais se comunicaram melhor.
Outras pesquisas investigaram o resultado de programas específicos de
treinamento de habilidades de comunicação para médicos e pacientes (Sliwa,
Makoul e Betts, 2002), visando melhorar seu relacionamento. As percepções dos pacientes antes e depois do treino foram registradas, fornecendo
evidência de que 14, das 18 dimensões investigadas, haviam apresentado
uma melhoria, indicando a relevância de tais programas.
Outras pesquisas investigaram temas mais específicos, como o controle
na comunicação médico-paciente. Street Jr, Krupat, Bell, Kravitz e Haidet
(2003) investigaram o controle no relacionamento entre médico e paciente e
seu efeito sobre a comunicação em encontros médicos. Pacientes que preferiam controle compartilhado eram participantes mais ativos (expressavam
mais opiniões, preocupações e questões) do que pacientes que preferiam o
controle do médico. A participação ativa do paciente e a busca de parceira
por parte do médico se influenciaram mutuamente. A participação ativa do
paciente estimulava a busca de parceria por parte do médico e vice-versa.
Em outros casos, a teoria dos jogos e a economia da informação foram utilizadas para levantar hipóteses sobre os processos envolvidos em decisões
de tratamento (De Jaegher e Jegers, 2001), como um jogo de transmissão de
informação estratégica.
A Comunicação em Situações Difíceis - Estas situações geralmente se
referem à gravidade da doença ou ao risco de morte do paciente. Em alguns
casos, contudo, a dificuldade também pode estar relacionada a outros pontos, como a necessidade do médico comunicar ao paciente as restrições que
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Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
sofre para solicitar procedimentos caros. Levinson, Kao, Kuby e Thisted
(2005) relatam que muitos médicos recebem incentivos financeiros para limitar pedidos de testes e procedimentos caros. A dificuldade, neste caso,
está em como transmitir esta informação ao paciente sem minar a sua confiança. As estratégias de revelação que obtiveram os melhores resultados apelavam para as emoções e para a “negociação”, enquanto a estratégia do “inimigo comum” e “negar influências” foram as percebidos mais negativamente. Esta informação passada aos pacientes aumenta a confiança e fortalece o
relacionamento entre médico e paciente.
Geralmente, as dificuldades de comunicação estão vinculadas à gravidade da enfermidade. Vários estudos estão relacionados ao câncer. Hawighorst,
Schoenefuss, Fusshoeller, Franz, Seufert, Kelleher, Vaupel, Knapstein e
Koelbl (2004) investigaram o relacionamento médico-paciente no caso de
tratamento do câncer genital. Mulheres com um alto nível de ansiedade se
queixavam de falta de informação, o que estava associado à insatisfação no
relacionamento com o médico. Conforme os autores, nestes casos, há a necessidade de se aplicar estratégias de informação antes da cirurgia para reduzir ansiedade, antecipando futuros problemas na qualidade de vida, e para
melhorar a interação com o médico antes de opções de tratamento estressantes. Em outro caso de câncer, o problema investigado foi o desenvolvimento
de falso otimismo sobre recuperação na comunicação do médico com pacientes com câncer de pulmão (The, Hak, Koeter e van der Wal, 2001). O
falso otimismo geralmente se desenvolveu durante a primeira utilização de
quimioterapia e tendia a desaparecer quando o tumor reaparecia e foi resultado de uma associação entre ativismo médico e adesão do paciente ao tratamento e ao plano de recuperação. Conforme indicado pelos autores, soluções para esse problema requerem uma abordagem ativa. Entre as soluções
possíveis, estão os “agentes de tratamento”, que estariam fora do relacionamento médico-paciente.
Ainda com relação ao câncer, Baile e Aaron (2005) revisaram a literatura sobre a comunicação médico-paciente em oncologia. Os autores apontam que a oncologia contemporânea reconhece a importância da parceria
com o paciente e a família ao lidar com a doença. Os pacientes também
avaliam seus médicos como importantes fontes de apoio ao informarem
sobre a doença, discutirem opções de tratamento e as preocupações do
paciente, assim como pelo encorajamento recebido. Por esta razão, tem
crescido o reconhecimento de que a qualidade da relação entre médico e
paciente está diretamente associada com os resultados obtidos no tratamento do câncer. Segundo os autores, há evidências de que a comunicação
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Relacionamento e Medicina: Avanços recentes nos estudos sobre o relacionamento médico-paciente
efetiva e empática com o paciente de câncer e a família pode influenciar
resultados desejáveis no cuidado com o câncer, que afetam a qualidade de
vida do paciente, a satisfação com os cuidados recebidos e os resultados
médicos. Também há evidência de que habilidades de comunicação e interpessoais podem ser ensinadas e aprendidas. Os autores consideram as
habilidades de comunicação como básicas no cuidado ampliado contra o
câncer, as quais poderiam ampliar o papel de apoio do oncologista, especialmente em momentos decisivos, como no diagnóstico, na recorrência e
na transição para cuidado paliativo.
De forma geral, Moss (2001) enfatizou a necessidade de melhorar a comunicação entre médicos e pacientes e famílias em situação terminal. O
autor argumenta que tal melhoria atende o desejo dos pacientes e famílias
para obter mais informação, fortalece o relacionamento médico-paciente,
representa um modo compassivo de engajar o paciente e a família em um
processo de tomada de decisão compartilhada, estimula a colaboração entre
o médico, o paciente e a família, e permite aos pacientes e famílias lidar com
a realidade da situação e planejar apropriadamente o futuro.
5. Empatia
A empatia, entendida como a habilidade para compreender a situação
de outra pessoa, é um elemento importante para a comunicação efetiva.
Heidenreich (2001) revisou a literatura sobre a empatia no relacionamento médico-paciente. Segundo o autor, a empatia é uma qualidade buscada
por pacientes e um ideal buscado por médicos e pela educação médica.
Esta, contudo, deve ser distinguida de conceitos relacionados, como simpatia e compaixão. Nossa capacidade de empatia está baseada em habilidades emocionais e intelectuais. Empatia é basicamente um modo de compreensão que pode ser expresso por meio de comunicação e refere-se à
atitude fundamental do médico em relação ao paciente. É considerada fundamental na medicina e pode ser vista como uma virtude na prática médica. Bylund e Makoul (2005) examinaram as oportunidades criadas pelos
pacientes para os médicos se comunicarem empaticamente e como os médicos respondem a tais oportunidades no encontro médico. Nas oportunidades empáticas, os médicos freqüentemente responderam reconhecendo,
dando prosseguimento ou confirmando as afirmações do paciente. As seqüências tendiam a ser mais longas em duração quando o médico usava
uma resposta mais empática.
83
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
6. Satisfação
Satisfação é um aspecto investigado em uma ampla gama de relacionamentos interpessoais. A satisfação do paciente com o relacionamento com
seu médico sofre a influência de diferentes fatores, desde o estilo do médico
até o tempo gasto com consultas.
A insatisfação com os serviços médicos não é algo recente, mas remonta
aos séculos passados. Louis-Courvoisier e Mauron (2002) encontraram sentimentos de frustração e insatisfação semelhantes aos atuais já no século
XVIII, conforme indicado em cartas de pacientes. Propõem que os problemas persistentes são devidos à dissonância básica entre os modos comuns
de percepção do paciente e o modo sistemático de perceber a realidade do
médico. Estes diferentes modos de perceber refletem a inevitável separação
entre a natureza privada e singular da experiência da doença e a instância
geral e anônima da teoria médica, um traço permanente do relacionamento
médico-paciente. Em sintonia com o atual movimento das humanidades
médicas, os autores crêem que o envolvimento de médicos com a literatura
e as artes os ajudaria a explorar a divisão entre a experiência do paciente e o
conhecimento sistemático impessoal da medicina.
Os estilos de interação do médico, assim como a duração das visitas,
afetam a satisfação dos pacientes com o cuidado recebido. Flocke, Miller e
Crabtree (2002) encontraram quatro estilos de interação entre médico e paciente: o estilo focado na pessoa, o biopsicossocial, o biomédico, e o estilo
com alto controle pelo médico. Os médicos com o estilo focado na pessoa
tiveram os melhores escores em quatro de cinco medidas de qualidade do
relacionamento e satisfação do paciente. Em contraste, médicos com o estilo de alto controle tiveram os escores mais baixos. Médicos com um estilo
focado na pessoa faziam as visitas mais longas, enquanto médicos com alto
controle apresentaram as visitas mais curtas. O estilo de interação focado na
pessoa parece ser o mais congruente com a qualidade de cuidado primário
relatado pelo paciente. Adams, Smith e Ruffin (2001) observaram os efeitos
do estilo participativo do médico (envolvendo os pacientes no processo de
tomada de decisão de tratamento) nos resultados com o tratamento da asma
e satisfação do paciente. Médicos com estilo participativo faziam visitas
clínicas mais longas, geravam maior satisfação no paciente e apresentavam
uma relação mais longa com o paciente. Os escores mais altos foram encontrados para visitas com mais de 20 minutos e quando o paciente tinha um
relacionamento com duração superior a seis meses com um médico em particular. Estes escores também estavam associados à posse de um plano de
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Relacionamento e Medicina: Avanços recentes nos estudos sobre o relacionamento médico-paciente
ação escrito para lidar com a asma e a preferências por autonomia nas decisões de controle da asma.
Mudanças na tecnologia nos modernos serviços de atendimento à saúde
não indicaram redução na satisfação dos pacientes. Garrison, Bernard e Rasmussen (2002) investigaram o efeito do uso de computadores sobre a satisfação do paciente com o atendimento médico concluindo que a maioria dos 304
pacientes (74.6%) avaliou positivamente o impacto do computador na qualidade do atendimento. Neste aspecto, as habilidades computacionais do médico também esteavam associadas à satisfação dos pacientes com a visita.
Em estudo realizado no Brasil, Pereira e Azevedo (2005), avaliaram, em
uma Unidade de Saúde de Rio Branco, o nível de satisfação dos pacientes
com o relacionamento médico-paciente. Entre os resultados obtidos, 64% dos
pacientes consideraram que a relação com o médico interfere diretamente na
evolução do caso e, com relação à comunicação, 70% dos pacientes não consideraram suficientes as informações oferecidas pelos médicos. No geral, 70%
dos pacientes consideraram-se satisfeitos com sua relação com o médico, cuja
avaliação estava associada ao modo de comunicação entre eles.
A satisfação por parte dos médicos também tem sido investigada. Segundo Bascunan (2005), nas últimas décadas, a deterioração no relacionamento médico-paciente (com aumento da desconfiança) influenciou o grau
de satisfação de médicos com sua prática, levando à frustração e desencantamento com a profissão. Os pacientes estão progressivamente assumindo
as decisões de cuidado com a saúde. Segundo os autores, a reconstrução do
laço entre pacientes e médicos dentro do novo cenário é indispensável para
melhorar o grau de satisfação de ambos, pacientes e profissionais.
7. Dificuldades e Conflitos
Várias dificuldades no relacionamento médico-paciente têm sido abordadas na literatura. Estas podem ser devidas à natureza do paciente (como
ter pacientes difíceis, ou ter um médico como paciente), podem ser devidas
às condições de atendimento (como as limitações no atendimento em instituição hospitalar), podem ser impostas pela própria enfermidade ou, ainda,
por conflitos de interesse entre médico e paciente.
O fato de o paciente ser médico gera dificuldades de relacionamento.
Segundo Tyssen (2001), o médico que presta serviço a outro médico pode
ser vítima de sentimentos de competência profissional inferior, super-identificação e apresentar uma sociabilidade demasiada com o paciente. A pró85
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
pria organização pode dificultar este relacionamento, como no caso das “consultas de corredor”. Os médicos, freqüentemente, são tratados de forma diferenciada. Como pacientes, tendem a negar seus sintomas e sentem-se envergonhados e relutantes em aceitar o papel de paciente. Contudo, conforme o autor acima, pacientes médicos deveriam ser tratados como pacientes
comuns. Em outros casos, a origem da dificuldade no relacionamento se
origina da própria natureza da enfermidade. No caso da esclerose lateral
amiotrófica, uma doença progressiva com prognóstico negativo, por exemplo, Pasetti e Zanini (2000) sugerem que o relacionamento com o paciente
não deveria ser somente informativo, científico e interpretativo-deliberativo, mas basear-se em uma sólida aliança terapêutica visando buscar os interesses do paciente, respeitando sua autonomia (valores pessoais) e seu bemestar físico. Para os autores, este é o único modo de enfrentar os conflitos
(especialmente em estágios avançados da doença) sem os riscos associados
com o desejo de fuga ou adotar soluções extremas (como eutanásia). Como
em qualquer outra atividade profissional, existem pacientes ‘difíceis’. Conforme Hahn (2001), essa dificuldade do médico no relacionamento com o
paciente está associada a algumas características: psicopatologia do paciente, estilos interpessoais abrasivos, múltiplos sintomas físicos e diferenças
entre paciente e médico nas expectativas sobre o tratamento.
O ambiente de trabalho também pode dificultar as relações entre médico
e paciente, como é o caso do ambiente hospitalar. No hospital, conforme
Weiberg (2002), entre as dificuldades, estão as tensões causadas pelo paternalismo versus autonomia, especialmente quando os pacientes estão em contato com mais de uma pessoa pertencente à equipe da instituição. Outra
dificuldade de origem institucional é a contenção de custos à qual os médicos podem ser submetidos. Gorawara-Bhat, Gallagher, Levinson (2003) investigaram como os médicos percebem os conflitos de interesse entre paciente e provedor de serviços de saúde, concluindo que os conflitos de interesse financeiro prejudicam os encontros entre médicos e pacientes. Nestes
casos, sugerem a utilização de estratégias de comunicação para responder a
estas preocupações e discutir conflitos de interesse. Segundo os autores, as
emoções dos pacientes devem ser consideradas e a negociação deve identificar um alvo comum para médico e paciente.
8. Autonomia
Um dos princípios norteadores do mundo moderno é a busca de autonomia e a ênfase na liberdade. No atendimento de saúde, a autonomia do paci86
Relacionamento e Medicina: Avanços recentes nos estudos sobre o relacionamento médico-paciente
ente se opõe à atitude paternalista do médico. O conflito entre paternalismo
e autonomia do paciente é algo antigo. Ainda que a tarefa da medicina não
seja banir o paternalismo, ela deve preservar o respeito pelo paciente como
uma pessoa (Bruhn, 2001). A autonomia na relação entre médico e paciente
está associada a características do médico, do paciente e às condições externas (inclusive históricas). Do ponto de vista do médico (em relação à idade
e à especialidade), Falkum e Forde (2001) observaram que os índices de
paternalismo aumentaram com a idade e os psiquiatras apresentaram os índices mais baixos de paternalismo (entre médicos noruegueses), enquanto
as especialidades somáticas apresentaram os índices mais altos. Por outro
lado, os psiquiatras apresentaram os mais altos índices de consideração pela
autonomia do paciente, enquanto os cirurgiões apresentaram o menor. Médicos de laboratório e cirurgiões pertenciam mais ao tipo paternalista do que
os clínicos gerais, e os médicos se mostraram mais paternalistas que as médicas. Entre os que defendiam a autonomia, havia mais mulheres e mais
médicos na faixa dos 40 anos do que na faixa dos 60 anos. Do ponto de vista
do paciente, Bruhn (2001), revisando a literatura sobre os limites da autonomia no relacionamento médico-paciente, constataram a preferência dos pacientes por ter controle decisório sobre os resultados do tratamento, mas
deixar decisões técnicas sobre como atingir estes resultados para os médicos. Do ponto de vista das condições externas, Woodward (2001) aponta
para novas direções que o conflito paternalismo x autonomia têm tomado
nos últimos anos, com a administração do paciente sendo transferida dos
médicos para os planos de saúde e empregadores, resultando em perda da
autonomia tanto por parte do médico quanto do paciente.
9. Continuidade e Mudanças
A continuidade no tratamento com um mesmo médico é uma característica que traz maior satisfação para o paciente. As condições atuais do atendimento médico, contudo, nem sempre permitem que isto aconteça. Diferentes dimensões da continuidade de cuidado têm sido identificadas. Saultz
(2003) identificou três dimensões: continuidade informacional, longitudinal
e interpessoal (de interesse particular para os cuidados primários). Para o
autor, futuras pesquisas deveriam procurar compreender melhor a dimensão
interpessoal da continuidade do cuidado. A continuidade é um aspecto fundamental no caso de doenças crônicas. No caso da asma, por exemplo, os
pacientes associaram continuidade de cuidado e qualidade de sua interação
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Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
com o médico (Love, Mainous, Talbert e Hager, 2000). Por causa disso,
mudanças nos sistemas de cuidado à saúde que promovem descontinuidade
com médicos individuais podem ser particularmente prejudiciais para pacientes com doenças crônicas. Finalmente, Facchini (2004), investigando as
mudanças de comportamento em tratamentos de longo prazo (doenças crônicas), concluiu que o paciente deve ser um participante ativo e respeitado,
exercendo um papel fundamental no processo de mudança. De acordo com
o autor, os médicos deveriam capacitar e estimular seus pacientes para que
estes venham a encontrar suas próprias soluções e motivações e se tornem
responsáveis por sua saúde. Intervenções de longo prazo, bem sucedidas e
efetivas, requerem um tratamento centrado na adesão e no auto-cuidado.
Relacionamentos em geral são fenômenos históricos que apresentam início, desenvolvimento e, possivelmente, um fim. O relacionamento em questão também se apresenta como algo que se mantém no tempo e a continuidade ou mudanças nessa relação podem afetar diretamente os resultados que o
tratamento médico pode atingir.
10. Conclusão
O relacionamento médico-paciente ocorre dentro de uma estrutura de
atendimento à saúde que está em constante modificação, criando ou delimitando as possibilidades deste relacionamento. Dos aspectos deste relacionamento acima discutidos, vários podem afetar positivamente o curso do tratamento e da recuperação do paciente ou gerar um maior índice de satisfação.
Desta forma, seja pelos resultados objetivos obtidos, seja pela satisfação
dos clientes com o serviço oferecido, o relacionamento é uma dimensão
relevante dos serviços de saúde oferecidos à população.
A investigação do relacionamento entre médico e paciente tem ocupado
uma posição de destaque entre os estudos sobre as relações entre prestadores de serviços e seus clientes, podendo contribuir efetivamente para uma
teoria geral dos relacionamentos. Algumas particularidades quanto a pontos
específicos desse relacionamento são evidentes nestes estudos, como é o
caso do interesse pelos efeitos do relacionamento na adesão ao tratamento.
A falta de adesão ao tratamento, por exemplo, pode comprometer os resultados que poderiam ser alcançados com novas formas de tratamento e novos
medicamentos. Neste caso, um bom relacionamento entre médico e paciente pode significar a própria inserção e o acesso, por parte dos pacientes, a
novas formas de tratamento, resultado, por vezes, de anos de pesquisa médica com altos investimentos.
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Relacionamento e Medicina: Avanços recentes nos estudos sobre o relacionamento médico-paciente
Um diálogo maior entre a ciência do relacionamento interpessoal e o
campo específico dos estudos sobre este relacionamento poderia trazer benefícios para as duas áreas de investigação. De modo geral, deve-se apontar
que tal relacionamento não se encerra nas determinações éticas da prática
profissional, em questões em torno de confidencialidade, entre outros temas. Trata-se de um relacionamento complexo por sua própria natureza,
onde o paciente é, ao mesmo tempo, um objeto de investigação (um conjunto de processos fisiológicos que podem apresentar problemas) e o sujeito
que contribuirá ou não com as medidas necessárias para o seu próprio tratamento e cura. Todas as conquistas da medicina podem ser prejudicadas por
falhas no relacionamento médico-paciente, como no caso da falta de adesão
ao tratamento, na falta de confiança no relacionamento com o médico, ou na
dificuldade de comunicação entre o médico e o paciente.
Do ponto de vista teórico, a investigação deste relacionamento pode fornecer dados para se avançar na compreensão de outros relacionamentos profissionais, em outros campos do saber. Do ponto de vista prático, as propriedades deste relacionamento afetam diretamente os resultados do tratamento. Levando-se em conta uma visão mais empresarial da medicina, as dimensões do relacionamento médico-paciente estão diretamente relacionadas com a qualidade do atendimento. Em um mercado competitivo, os diversos aspectos aqui abordados, como confiança, adesão ao tratamento, comunicação, empatia, satisfação, dificuldades e conflitos, autonomia, continuidade no tratamento, contribuem para que estes serviços apresentam diferentes níveis de qualidade. Um bom relacionamento entre médico e paciente
pode contribuir para a obtenção de resultados favoráveis no tratamento do
paciente. Um relacionamento precário, por outro lado, pode resultar em um
atendimento de qualidade inferior, com prejuízo nos resultados para o paciente, mesmo diante dos avanços no conhecimento médico. Desta forma, a
situação ideal para a prática médica seria aliar os avanços no conhecimento
médico e nos recursos tecnológicos disponíveis a uma melhoria progressiva
na qualidade das relações humanas envolvidas.
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6
A AMIZADE DA INFÂNCIA À
TERCEIRA IDADE – OLHARES DIVERSOS
Isis Fiorio Albertassi
Lorena Queiroz Merizio
Maria Tereza Bragança Boreli
Rodrigo dos Santos Scarabelli
Agnaldo Garcia
O objetivo deste capítulo é apresentar parte dos resultados que vêm sendo obtidos em pesquisas realizadas por membros do “Núcleo Interdisciplinar para o Estudo do Relacionamento Interpessoal” (NIERI), da Universidade Federal do Espírito Santo. Os dados e discussões apresentadas a seguir
são uma síntese de quatro pesquisas realizadas por alunos do Curso de Psicologia da UFES, sob a orientação do último autor, as quais foram apresentadas na Mini Conferência da International Association for Relationship
Research, realizada em Vitória, em 2005.
Três dos estudos relatados abordam a amizade na infância. As relações
de amizade representam uma área de pesquisa em franco desenvolvimento,
principalmente nos últimos 20 anos, acompanhando a consolidação dos estudos sobre relacionamento interpessoal na literatura internacional. Apesar
das relações de amizade já terem sido discutidas por Aristóteles, em sua
Ética a Nicômaco, o interesse da Psicologia pela amizade e, particularmente, pela amizade na infância, ainda é recente. Ainda assim, tal temática é
pouco explorada e quase inexistente na produção científica nacional. A amizade desempenha um papel relevante na vida social da criança, em seus
93
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
aspectos emocionais, sociais e cognitivos, proporcionando oportunidade para
o desenvolvimento emocional, a socialização, o desenvolvimento de valores éticos e morais, além de representar um dos relacionamentos que maior
satisfação traz à vida da criança.
A literatura sobre a amizade na infância é diversificada. Estudos clássicos sobre a amizade infantil têm revelado diferentes propriedades dessa forma de relação social (Freeman & Kasari, 2002; Garcia, 2002; Garcia, 2005b;
Ray, Cohen & Secrist, 1995; Schneider, Wiener & Murphy, 1994; Wiener &
Schneider, 2002; Gottman, Gonso & Rasmussen, 1975, Rubin, 1980; Erwin,
1993; Bukowski, Newcomb & Hartup, 1996, entre outros). Entre os aspectos psicológicos da amizade na infância investigados estão: a agressividade
(Brendgen, Vitaro, Turgeon & Poulin, 2002), o conflito (Hartup, French,
Laursen, Johnston et al., 1993; Schneider, Fonzi, Tomada & Tani, 2000), a
rejeição (Brendgen, Little & Krappmann, 2000), os preditores de amizades
(Dunn, Cutting e Fisher, 2002), amizades em crianças com necessidades
especiais ou deficiência física (Freeman & Kasari, 2002; Wiener & Schneider, 2002; Mulderij, 1997), amizades entre crianças de idade pré-escolar
(Garcia-Werebe & Baudonniere, 1988), a dinâmica temporal da amizade
(Berndt, Hawkins & Hoyle, 1986; Parker & Seal, 1996), amizade na infância e desenvolvimento emocional (Salisch, 2001) e amizade e aceitação pelos colegas (Schneider, Wiener & Murphy, 1994). O conhecimento disponível sobre os aspectos psicológicos da amizade na infância é devido, basicamente, ao material fornecido por pesquisas realizadas no exterior, em países
desenvolvidos.
Garcia (2005a), em uma revisão crítica da literatura recente sobre os
aspectos psicológicos da amizade na infância, propôs doze grupos temáticos ou tópicos que vêm sendo investigados: aspectos metodológicos; conceitos clássicos (como similaridade e simetria, entre outros); amigos e redes de amigos, colegas e popularidade; amizade e família; cooperação e
competição, compartilhar e comportamento pró-social; rejeição, negligência, abuso, depressão e solidão; aspectos cognitivos (percepção, expectativas e conceito), afetivos (emoções) e culturais na amizade; deficiência
física e mental; estabelecimento, estabilidade e mudança da amizade; apoio
social; conflito e agressividade; e escola, ajustamento e competência social. A partir da análise dessa literatura destacou os seguintes pontos da literatura sobre a amizade na infância nos últimos dez anos: a) a presença de
orientações teóricas diferentes; b) a presença de estratégias metodológicas diversificadas; c) a falta de uma abordagem teórica da amizade; d) o
predomínio do estudo de dimensões da amizade, em detrimento da amiza94
A Amizade da Infância à Terceira Idade: Olhares Diversos
de como um todo; e) a carência de investigações em culturas e países em
desenvolvimento; f) a carência de estudos de natureza mais amplamente
social e cultural. O autor ainda propôs algumas possíveis orientações de
pesquisa empírica e teórica visando a organização de uma estrutura teórica para os estudos da psicologia da amizade na infância, como uma subárea de uma ‘ciência do relacionamento interpessoal’, conforme proposta
por Robert Hinde (1997).
O primeiro estudo cujas conclusões são aqui sintetizadas diz respeito ao
relacionamento entre a criança e seu animal de estimação, particularmente o
cão. Crianças estabelecem relações duradouras e intensas com esses animais, que também afetam seu desenvolvimento. A relação entre a espécie
humana e os animais de estimação é antiga. Konrad Lorenz (1997), Prêmio
Nobel de Medicina ou Fisiologia de 1973, em seu livro sobre as relações
entre o homem e o cão (publicado originalmente em 1950), descreveu algumas das propriedades desse relacionamento. A relação estabelecida entre o
cão e o seu dono constitui uma rede complexa de emoções. Segundo o autor,
possuir um cão com uma personalidade que espelha a nossa confere-nos um
sentimento de equilíbrio e de tranqüilidade interior. O tipo de cão que uma
pessoa escolhe revela dados acerca dela mesma. Assim como ocorre nas
relações humanas, as semelhanças conduzem à satisfação de ambos os lados. De acordo com Lorenz (1997), pode-se perceber semelhanças no comportamento do dono e do cão que convivem por um longo tempo. Ainda de
acordo com o autor, o cão deixou de ser apenas um animal destinado à vigilância da residência, passando a ocupar um lugar na instituição social e familiar.
O relacionamento entre as crianças e os animais de estimação tem mostrado aspectos relevantes para a saúde e a socialização da criança, com possibilidades terapêuticas (Garcia, 2000) ou indicando problemas comportamentais futuros, como é o caso da crueldade infantil contra animais (Garcia,
1999). Ainda possibilita o desenvolvimento da capacidade para lidar com
aspectos não-verbais do relacionamento social e o desenvolvimento emocional (Garcia, 2001). A literatura sobre o tema geralmente aborda as relações
entre a criança e os animais em termos de atitudes ou comportamento social
(e.g., Ascione, 1992; DeViney, Dickert & Lockwood, 1983; Gage & Margnuson-Martinson, 1988).
A presente pesquisa buscou abordar a relação entre a criança e o animal
de estimação da perspectiva dos estudos sobre o relacionamento interpessoal, particularmente dos estudos sobre a amizade na infância, procurando
investigar as semelhanças e diferenças entre esta forma de relacionamento e
95
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
uma amizade típica com outra criança. Os animais, em especial os cães,
despertam a atenção e o afeto das crianças desde a mais tenra idade. Em
diversos âmbitos da vida social, afetiva e intelectual da criança, o relacionamento que estabelece com um cão é benéfico, uma vez que promove, entre
outros aspectos, uma maior capacidade para se relacionar afetivamente com
outras pessoas, favorecendo a aprendizagem de fatos fundamentais da vida,
como o nascimento, a procriação e a morte. Ainda possibilita o despertar da
consciência e da responsabilidade das crianças em termos ecológicos e éticos, perante a natureza e os seres vivos, o que auxilia o desenvolvimento de
práticas humanitárias, visto que o animal é um ser vivo. Sob esse aspecto, a
interação criança-animal possui um alto valor terapêutico, seja no tratamento de problemas físicos ou psicológicos.
O segundo trabalho cujos resultados são brevemente apresentados aqui
se refere a um levantamento de aspectos gerais da amizade entre alunos de
uma escola pública com idade entre sete e doze anos. Esta investigação deu
seqüência a estudos realizados com crianças matriculadas no ensino fundamental da rede particular de ensino (Garcia, 2004). A presente investigação,
de caráter exploratório e descritivo, procurou apresentar novas informações
sobre as relações de amizade de crianças da rede pública de ensino.
O terceiro trabalho, cujos resultados são brevemente discutidos neste
capítulo, trata da amizade entre crianças com necessidades especiais e seus
colegas, tema de pesquisa recente e praticamente inexplorado em nosso país.
As amizades são uma importante fonte de motivação e de satisfação para as
crianças e conhecer os fatores envolvidos nas amizades entre crianças com
necessidades especiais e seus pares pode ajudar a promover sua integração
social em um ambiente positivo e apoiador, contribuindo para sua qualidade
de vida e bem-estar social (Tavares & Garcia, 2003; Coelho & Garcia, 2003).
Estudos sobre amizade em crianças portadoras de deficiência incluem
casos de deficiência física (Tamm & Prellwitz, 2001; Mulderij, 1997); crianças com deficiências de aprendizagem (Wiener & Schneider, 2002; Weiserbs & Gottlieb, 2000; Siperstein, Leffert & Wenz-Gross, 1997); portadoras de Síndrome de Down (Freeman & Kasari, 2002) e autismo (Bauminger
& Kasari, 2000; Danko & Buysse, 2002) ou com deficiências de desenvolvimento (Freeman & Kasari, 1998). De forma mais ampla, Garcia (2002)
realizou uma revisão sobre amizade, enfermidade e deficiência na infância e
na adolescência. De modo geral, estes estudos apontam para duas direções:
o reconhecimento das relações de amizade entre as crianças portadoras de
necessidades especiais (o que nem sempre foi reconhecido) e a discussão da
especificidade ou de propriedades diferenciadas para essas relações de ami96
A Amizade da Infância à Terceira Idade: Olhares Diversos
zade, que seriam, em última instância, parcialmente diferentes das amizades
entre duas crianças típicas. Quanto ao primeiro ponto, mesmo nos casos em
que as interações sociais são bastante prejudicadas por algum tipo de deficiência, como é o caso do autismo, os autores têm identificado e descrito
relações de amizade (ao menos em casos de crianças autistas com alto desempenho), como é o caso de Bauminger e Kasari (2000) e Danko e Buysse
(2002). Quanto ao segundo ponto, usualmente as relações de amizade envolvendo crianças com algum tipo de deficiência apresentam qualidades
particulares, como uma tendência à assimetria, ou preferência por crianças
mais jovens, ou são consideradas amizades emergentes (Freeman & Kasari,
2002).
Finalmente, o quarto trabalho aqui relatado investigou aspectos da amizade na terceira idade. Diversos pesquisadores, apontados por Findlay (2003),
evidenciam a relação entre a qualidade dos relacionamentos sociais, entre eles
a amizade, e a saúde e o bem-estar do idoso. O aumento do isolamento social
entre pessoas acima de 65 anos está diretamente relacionado ao crescimento
de taxas de mortalidade, hipertensão arterial, depressão, aumento do risco de
senilidade e até suicídio. Assim, a manutenção dos vínculos com familiares e
amigos é importante para a saúde e o bem-estar do idoso. Todavia, existem
dificuldades para o idoso manter uma amizade, pois suas relações mais próximas, íntimas e apoiadoras tendem a se restringir aos familiares (Stevens, 2001),
que dificilmente podem suprir todas as características positivas e a satisfação
dos relacionamentos com amigos. Os idosos ainda preferem pedir auxílio para
amigos e vizinhos que para seus familiares quanto aos problemas diários (Gottlieb, 1985). Os amigos podem ser fontes de apoio em circunstâncias estressantes, como no período de aposentadoria, perda do cônjuge, mudança para
um asilo, entre outras (Stevens, 2001). Além disso, relações recíprocas, com
vínculo afetivo e pouca pressão social, como as com amigos, são mais relevantes para a auto-estima e para o bem-estar psicológico do que as com os
familiares (Antonucci & Akiyama, 1995). Segundo Litwak (1985), tratando
de idosos, amigos são mais confiáveis do que familiares para compartilhar
assuntos mais pessoais e desempenham papel significativo para introduzir o
idoso na sociedade. De acordo com Adams e Bliesner (1995), com amigos
não se tem temor de que segredos e intimidades sejam disseminados, como
aqueles confiados a familiares. Assim, as relações de amizade são de grande
importância para o idoso. Além disso, segundo Shea, Thompson e Bliesner
(1988), os idosos preferem amizades já existentes em detrimento de amizades
novas. Segundo Hartup e Stevens (1997), amigos antigos são especialmente
valiosos para sustentar valores, pensamentos e outros códigos de comporta97
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
mento estimados pelo idoso em um mundo em constante processo de mudanças, permitindo que eles dividam experiências e interpretações de eventos
passados e presentes. Entretanto, o idoso encontra dificuldades para manter
seu círculo de amizades e, mais ainda, para fazer novos amigos, de maneira
que o risco de isolamento social ou do sentimento de solidão pode aumentar
gradativamente com a idade. Esse sentimento de solidão dificilmente se reduz
significativamente, ou isso ocorre com muito esforço, mesmo com a promoção de programas que privilegiam o encontro entre os idosos (Stevens, 2001).
Somente colocar idosos em contato para conhecer novas pessoas não é suficiente para que amizades efetivamente sejam feitas ou que se reduza o isolamento social ou o sentimento de solidão, pois tais lugares não são pontos de
encontro naturais, baseados em interesses mútuos em se relacionar com alguém (Stevens, 2001).
Trabalhos de cunho mais teórico em relação à amizade na terceira idade
incluem a aplicação da teoria de continuidade (Finchum & Weber, 2000) e a
consideração da continuidade e mudanças nessas amizades (Filed, 1999).
Segundo Carstensen (1991), as pessoas selecionam companheiros de acordo com suas percepções sobre os custos (energia despendida, experiências
emocionais negativas) e os benefícios (suporte social, experiências positivas) envolvidos. Com o envelhecimento, há uma tendência a preferir-se
manter os relacionamentos já estabelecidos e mais íntimos, com seus melhores amigos e familiares, com quem já se tem experiências positivas há
muitos anos. Há uma tendência para interagir menos freqüentemente com
amigos mais casuais e colegas, pela energia requerida e pelos benefícios
menores e menos certos. Por isso, é possível que a redução de contato com
outrem não signifique a perda das amizades mais importantes e íntimas estabelecidas, mas apenas quanto a relacionamentos mais superficiais e periféricos (Ferraro & Farmer, 1995). Adams e Torr (1998) e Adams e Bliesner
(1995) sugerem como possíveis focos de análise a estrutura da amizade e os
processos nela envolvidos. Estrutura relaciona-se ao tamanho da rede de
relações, sua densidade e homogeneidade ou heterogeneidade (nível de semelhança entre os amigos quanto ao sexo, raça, classe social, grupo religioso, idade, entre outros fatores). Os processos envolvidos incluem aspectos
cognitivos (lealdade ou compromisso, confiança, interesses ou valores em
comum, aceitação, empatia, apreço, respeito, entre outros.); afetivos (compatibilidade, atenção, preocupação com o outro) e comportamentos (sociabilidade, auto-revelação, assistência, atividades feitas em conjunto, entre
outros) envolvidos no relacionamento (Adams, Bliezner & Vries, 2000). É
necessário conhecer a qualidade das amizades e a dinâmica de funciona98
A Amizade da Infância à Terceira Idade: Olhares Diversos
mento e não somente reconhecer sua existência (Adams e Blieszner, 1995).
Várias diferenças entre gêneros também são apontadas nas amizades entre
idosos (Adams, Blieszner & Vries, 2000). Enquanto a amizade entre as
mulheres é face-a-face, devido à tendência de repartirem experiências de
maior conteúdo emocional, aquela entre homens é lado-a-lado, devido às
atividades em conjunto. As mulheres têm mais oportunidades para estabelecer, manter e expressar vínculos afetivos, o que se relaciona com os diferentes processos de socialização de homens e mulheres. Por fim, é possível que
os vínculos entre amigos na terceira idade sejam preservados, resgatados e
até fortalecidos pelos idosos. Neste período de vida, em que não precisam
mais cuidar dos filhos, as reduzidas obrigações e tarefas diárias podem ter
um efeito positivo nas oportunidades para fazer, manter e melhorar relações
de amizades (Adams, Blieszner e Vries, 2000). Ademais, complementam
estes autores, quanto maior o período de vida, maior terá sido, provavelmente, a vivência de relacionamentos íntimos, gerando uma grande experiência e conhecimento adquirido quanto à dinâmica dos relacionamentos de
amizade.
A amizade na terceira idade apresenta relevância social e científica,
apesar da falta de informações e elaborações teóricas sobre o tema. Em
países como o Brasil, com uma população de idosos em crescimento, maiores informações sobre suas amizades podem auxiliar na elaboração de
políticas públicas para o bem-estar, a saúde e a integração social do idoso.
1. A Amizade entre Crianças e Animais
O objetivo deste trabalho foi investigar e descrever o relacionamento
entre crianças de 7 a 10 anos com seus cães de estimação (10 meninos e 10
meninas) e comparar aspectos desse relacionamento com as relações de
amizade com outras crianças, a partir da literatura. Para isto, foram obtidos
os relatos das crianças, dos pais, além da observação do comportamento das
crianças em companhia dos cães. O estudo do relacionamento entre pessoas
e seus animais de estimação pode fornecer informações valiosas sobre o
indivíduo e seus relacionamentos com outras pessoas.
Entre os cães dos vinte entrevistados, havia doze Poodles, dois da raça
Lhasa Apso, dois sem raça definida, um York Shire, um Pincher, um Husky
Siberiano e um labrador. A predominância dos poodles possivelmente esteja relacionada ao espaço disponível, com várias famílias residindo em
apartamentos. Também são consideradas raças mais dóceis, sociáveis e
99
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
passíveis de adestramento os escolhidos por famílias que querem que os
filhos estabeleçam vínculos com aos animais, sem a preocupação de um
comportamento mais agressivo por parte do cão. O tipo de cão que uma
dada pessoa escolhe revela dados acerca da mesma. Assim como ocorre
nas relações humanas, características ou comportamentos semelhantes
conduzem à satisfação de ambos os lados. De acordo com Lorenz, “num
dono e no seu cão, quando já estão juntos há algum tempo, semelhanças
de conduta são facilmente perceptíveis” (Lorenz, 1997, p. 101).
Os dados obtidos pela presente pesquisa indicam que ter um cão como
companheiro é similar a ter um amigo. A companhia dos cães, contudo, costuma restringir-se ao espaço doméstico (a criança raramente sai para passear com o cão, quando ela assume um papel assimétrico). Desempenhar atividades em comum é outra marca do relacionamento entre a criança e o animal. A atividade mais freqüente entre a criança e o cão foi o brincar, geralmente com objetos do cão, além de correr. O brincar em conjunto é um
ponto de similaridade com as amizades. As brincadeiras, contudo, podem
ser mais assimétricas (buscar objeto) ou simétricas (correr e perseguir, com
alternância de papéis). O brincar com o cão é, aparentemente, uma atividade
mais assimétrica do que o brincar com outra criança (o que, contudo, pode
ocorrer na interação com crianças mais novas). Conversar é uma das principais atividades com os amigos. Apesar das crianças também “conversarem” com seus cães, a comunicação apresenta propriedades diferentes da
conversa com outra criança. Por outro lado, a comunicação não-verbal
também é muito importante. De qualquer forma, há uma comunicação intensa entre a criança e seu animal de estimação, ainda que esta apresente
uma natureza diferente da comunicação com outra criança. Do ponto de
vista do relacionamento entre criança e cão, o fato da criança participar de
cuidados relativos ao cão indica outro ponto de assimetria no relacionamento. Esta assimetria, contudo, também pode ser observada entre irmãos,
quando a criança participa dos cuidados de um irmão menor.
Existem interações agressivas entre as crianças e seus cães de estimação.
Usualmente, estas interações são vistas como justificadas e causadas por um
motivo claro. A agressividade se dá dos dois lados: a criança e o cão. A
existência de episódios de conflito ou de agressividade não impede que uma
relação seja considerada como amizade. As relações de dominância, que
são muito comuns entre homens e cães, apontam para um relacionamento
assimétrico, em que um deles exerce poder sobre o outro, que obedece. Dar
e receber ordens, do ponto de vista do relacionamento interpessoal, indica
um relacionamento assimétrico, o que não seria típico de uma relação de
100
A Amizade da Infância à Terceira Idade: Olhares Diversos
amizade, ainda que amizades entre crianças de idades diferentes possam
apresentar elementos assimétricos.
O comportamento amistoso, na forma de acariciar, possivelmente é mais
intenso com relação aos cães de estimação do que com relação a um amigo.
Algumas posturas adotadas pelos cães nas interações físicas, como de ventre para cima, indicam uma postura de submissão (novamente assimétrica).
Contudo, há um intenso relacionamento afetivo e o gostar do cão é similar
ao gostar de um amigo. O lamber também faz parte do comportamento do
cão em relação a seu filhote. Novamente, parece haver uma adaptação do
repertório da espécie, que se estende para o convívio com o ser humano que,
por sua vez, interpreta esses comportamentos de acordo com seus relacionamentos com outros seres humanos.
Do ponto de vista social, os pais consideraram o cão como amigo do
filho. Entre os motivos alegados, está o fato do cão ser boa companhia, por
brincarem juntos ou apresentarem boa interação, pelo cão demonstrar gostar da criança e por ser carinhoso. Outros motivos incluem o fato da criança
e o cão gostarem de ficar juntos, por um não ficar sem o outro (forte laço
entre ambos), pelo cão sentir falta da criança e pelo cão auxiliar na segurança da casa.
O contato entre a criança e o cão, em comparação com as relações de
amizade com outras crianças, mostra algumas semelhanças notáveis. Um
dos pontos mais significativos das amizades infantis é o papel da atividade
comum como mediador das relações de amizade, especificamente o brincar.
Desta forma, quando a criança manifesta sua ‘amizade’ pelo cão, pode-se
destacar que, ao brincar com seu animal de estimação, ela está desempenhando a principal atividade que desempenharia com um amigo humano
(ainda que o brincar com o cão exiba padrões particulares de atividades). O
fato do cão e da criança participarem conjuntamente de brincadeiras comuns, como perseguir, caçar, ir à busca de uma presa, ou brincar com o
outro como se fosse uma presa, também pode ser observada entre filhotes de
cães (entre filhotes de carnívoros em geral). Possivelmente, o cão brinca
com a criança de forma semelhante a como brincaria com outro cão. Por
outro lado, as crianças também participam de brincadeiras que envolvem
perseguição, com comportamentos similares aos empregados no contexto
de caça. Desta forma, o cão e a criança conseguem brincar em conjunto pela
similaridade do seu repertório geral de brincadeiras. Isto é uma indicação de
que os laços entre a criança e seu animal de estimação, principalmente cães
é, pelo menos, semelhante aos laços de amizade que unem duas crianças.
Outra dificuldade, de natureza teórica, é que o arcabouço conceitual para
101
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
explicar o comportamento social dos animais é de natureza diversa daquele
utilizado para interpretar as relações humanas. Isto é, em parte, resolvido
com a aproximação dos estudos sobre o comportamento animal e os estudos
de Psicologia Social, como empreendidos por Robert Hinde
(1979,1987,1997).
As respostas dadas pelas crianças quanto a como se relacionam com
seus cães, os sentimentos e motivações envolvidos, também são semelhantes àqueles que apresentam em relação a outras crianças que consideram
como amigos. Gostar, buscar a companhia, chamar, conversar aparecem nas
duas situações. Já algumas formas de agir, como cuidar da higiene do cão,
acabam por ficar a cargo dos pais. Este comportamento está mais relacionado a cuidados parentais de modo que, enquanto para a criança o cão ocupa o
lugar de um amigo (e mesmo de um irmão), para os pais ele ocupa a posição
de alguém que necessita de cuidados, como uma criança. Isto não impede
que os adultos, eventualmente, também brinquem com seus cães, da mesma
forma que brincam com seus filhos.
Os estudos sobre o relacionamento interpessoal geralmente envolvem
pessoas, de ambos os lados. Os estudos de relacionamento entre seres humanos e outros animais tornam-se muito mais complexos, pelas diferenças entre as espécies. Nesta investigação, procuramos interpretar o relacionamento entre a criança e seu animal de estimação (no caso, cães) como
uma amizade. Há uma série de pontos de aproximação entre as amizades
típicas entre duas crianças e o relacionamento com o cão de estimação,
especialmente em atividades compartilhadas, como o brincar. Por outro
lado, o relacionamento envolve alguns cuidados ou relações de dominância e outras formas de assimetria que não seriam típicos de relações de
amizades (o que não significa que não existam assimetrias em amizades
típicas). Ainda assim, poderíamos denominar o relacionamento entre criança e seu cão de estimação como uma relação particular de ‘amizade’,
com alguns pontos em comum com a relação de amizade com outras crianças e alguns pontos diferenciados. Possivelmente, outras espécies de animais de estimação mostrarão uma inserção diferente na família ou na sociedade. O próprio cão, como animal de estimação, possivelmente apresenta relações diferenciadas com diferentes membros da família, o que, ainda
poderá sofrer a influência da própria raça do cão, assim como da estrutura
familiar na qual está inserido.
Segundo Lorenz, “todo o encanto do cão reside na profunda amizade e
na força dos laços (...) que o ligam ao homem” (Lorenz, 1997, p. 12). Em
quase a totalidade das respostas e observações, nota-se esse encanto pelo
102
A Amizade da Infância à Terceira Idade: Olhares Diversos
cão que chega a ocupar, por vezes, o lugar de um irmão, de um filho. Na
sociedade atual, com a redução do número de filhos por casal, o animal de
estimação passa a ser uma companhia importante para a criança. É com o
cão que a criança poderá contar nos mais diversos momentos, seja para ‘desabafar’ ou para se distrair. A relação entre a criança e o cão traz alegria,
além de ser instrutiva, do ponto de vista social. Mesmo quando a criança
possui um outro irmão, é no cão que ela encontra uma companhia fiel, sempre disposta a brincar: Segundo uma das crianças entrevistadas: “eu tenho
ela pra brincar. Antes, só tinha meu irmão. A gente brinca com ela. Ela melhorou lá em casa”. Questões que não seriam contadas para outras pessoas,
são contadas para os cães, e as crianças, na maioria das vezes, afirmam que
o cão entende o que está acontecendo. Os pais confiam na relação estabelecida entre os filhos e os cães, certos de que um alegrará o outro. Os cuidados
mais voltados à alimentação e higiene cabem à mãe, enquanto as ordens,
geralmente, são dadas pelos pais. O cão é uma importante presença no seio
da família, na medida em que todos se envolvem com ele, chegando a considerá-lo como um membro da família.
O relacionamento entre a criança e seu animal de estimação reflete uma
diversidade de influências. Transformações do ambiente físico, como mudanças nos locais de habitação, influenciam a disponibilidade de espaço e
fazem surgir novas formas de comportamento entre criança e cão. Mudanças sociais, como aquelas atingindo a estrutura familiar, com famílias menores e pais com mais atividades fora de casa, abrem novos espaços para os
animais de estimação, especialmente na classe média, no meio urbano. Cães
pequenos, que podem viver em ambientes restritos e conviver com as crianças, são característicos de nossa sociedade urbana contemporânea. Mesmo
mudanças culturais (incluindo a valorização dos animais, sua presença constante nos meios de comunicação, incluindo o cinema e a literatura) e econômicas (expansão da indústria e comércio voltado para esses animais) influenciam o modo como as pessoas reagem aos animais.
2. Relações de Amizade em Crianças
Portadoras de Necessidades Especiais
O objetivo do presente trabalho foi investigar as amizades entre crianças
portadoras de necessidades especiais e seus pares, procurando descrever a
rede de amigos e as propriedades da amizade a partir de entrevistas e observações em seu ambiente social, levando em conta, também, a percepção dos
103
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
pais e professores. A presente pesquisa procurou obter dados a partir de
diferentes fontes, visando a reunir o maior número de informações possível,
tendo em vista que métodos tradicionais, como entrevistas com o participante, nem sempre resultam em dados satisfatórios, especialmente quando
se trata de pesquisa envolvendo crianças com necessidades especiais.
Das crianças que participaram da pesquisa, três apresentavam Síndrome
de Down. Os outros três incluíam casos de autismo, hiperatividade e Síndrome de Willis. O primeiro ponto a destacar, a partir dos dados obtidos, foi
a identificação da presença de relações de amizade em todos os casos observados, com exceção do menino com autismo. Assim, pode-se inferir que a
capacidade de comunicação é um dos fatores básicos para possibilitar uma
amizade.
Fazendo uma análise comparativa entre os participantes, poucos casos
de amizade foram recíprocos, sendo a maioria, unilateral, partindo da criança com necessidades especiais, baseado em algum interesse na atividade da outra criança. A atividade de brincar desempenhou um papel fundamental nas relações de amizade com crianças típicas, mostrando-se como
um veículo mediador tanto nos casos de amizade unilateral, quanto nas
amizades recíprocas. As brincadeiras preferidas pelos participantes foram
as mesmas de outras crianças, o que pôde contribuir para o estabelecimento de amizades. Estas, na infância, são em grande parte, baseadas na participação nas mesmas atividades (especialmente brincar). Também foram
observadas diferenças importantes em situação de sala de aula e situação
de recreio, quanto às interações sociais com outras crianças. No recreio,
as interações acontecem mais vezes, enquanto na sala de aula, geralmente,
as crianças com necessidades especiais não acompanham as mesmas atividades que os colegas. Este fato observado indica, novamente, a importância da brincadeira para a integração dessas crianças. Possivelmente, o que
ocorre é que, ao brincarem juntas, as semelhanças entre as crianças, e não
as diferenças, são ressaltadas.
As crianças com necessidades especiais geralmente indicaram crianças
típicas como amigas (na maioria dos casos de forma não recíproca). Este é
um importante ponto de discussão, uma vez que a similaridade é considerada um fator central nas relações de amizade. As crianças indicadas como
amigas pelos participantes usualmente não os indicaram espontaneamente
como amigos, mas, diante de uma questão direta, alguns reconheciam estas
crianças como amigos, o que não ocorreu em todos os casos. O reconhecimento das crianças com necessidades especiais como amigos pelas crianças
típicas parece decorrer do interesse destas em relação a eles. Assim, as cri104
A Amizade da Infância à Terceira Idade: Olhares Diversos
anças típicas consideram como amigos as crianças com necessidades especiais que os procuram para brincar ou que demonstram gostar delas.
Os pais, em sua maioria, indicaram como amigos de seus filhos crianças
de outros ambientes, que não a escola (como vizinhos), e consideraram as
relações de amizade de seus filhos superficiais, em decorrência da deficiência, com exceção dos pais de um menino com Síndrome de Down e de uma
menina com Síndrome de Willis. Os pais parecem ver mais dificuldades de
relacionamento dos filhos com deficiências do que professoras e colegas da
escola. Para a maioria dos colegas, a restrição em relação às crianças com
necessidades especiais parece estar não na deficiência em si, mas no tipo de
comportamento e preferências que estas têm. Dentre os quatro tipos de deficiência observados, os casos de Síndrome de Down e de Willis foram o que
menos apresentaram restrições nas relações de amizade, conforme professores e pais. O menino hiperativo, embora tenha sido considerado por pais e
professores como tendo relações de amizade prejudicadas, ao ser observado,
comportou-se com os amigos de modo similar às outras crianças (típicas).
As relações de amizade são importantes para o bem-estar social e psicológico de crianças típicas e com necessidades especiais. A busca por
amigos por parte destas crianças, observada nesta pesquisa, indica que
elas também valorizam a amizade. Cabe às famílias e às instituições de
ensino facilitarem essas amizades, levando em consideração as características destas crianças e a natureza da amizade na infância.
3. Psicologia da Amizade na Infância –
Um Estudo na Escola Pública
O objetivo da presente pesquisa foi investigar e descrever aspectos psicológicos da amizade na infância entre crianças brasileiras, residentes na
Grande Vitória, freqüentando o ensino fundamental em escola pública municipal de Vitória. Foram investigados os seguintes aspectos da amizade: (a)
a rede de amigos; (b) o ciclo da amizade; (c) cooperação e competição; (d)
atividades com amigos; (e) o melhor amigo, (f) amizade na família, (g) amizade na escola; (h) emoções e amizade; e, (i) avaliação da amizade. Os dados obtidos apresentam um panorama geral e descritivo das relações de
amizade construído a partir de entrevistas com 40 crianças de 7 a 12 anos,
alunos da primeira à quarta série. Dentro de cada um destes itens, a partir
dos dados obtidos, alguns pontos podem ser destacados.
(a) Quanto à rede de amigos, a maior parte deles pertence ao mesmo
105
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
gênero e, geralmente, freqüentam os mesmos locais (escola e vizinhança).
As idades das crianças entrevistadas e dos amigos mencionados são bastante próximas. A proximidade e a semelhança surgem como fatores importantes no estabelecimento de relações de amizade. Apesar dos adultos terem
raramente sido citados em um primeiro momento, a maioria das crianças
informou ter amigos adultos, idosos e também um animal de estimação como
amigo, diante de uma questão direta. A existência de um melhor amigo foi
indicada pela maioria dos participantes. A rede de amigos é composta primeiramente por outras crianças, mas, possivelmente, poder-se-ia indicar uma
rede de amigos de ‘segunda ordem’, incluindo adultos, idosos e mesmo animais. (b) O ciclo da amizade envolve todas as fases, desde o primeiro contato até o possível término da mesma. No estabelecimento de amizades, os
participantes geralmente informam fazer amizades facilmente. Por outro lado,
a maioria não relatou nenhum término de amizade. (c) A cooperação e a
competição foram reconhecidas na amizade. A maioria reconheceu a ajuda
por parte de seus amigos, enquanto apenas uma parte indicou competir com
os amigos. (d) A atividade mais citada em companhia dos amigos foi o brincar (com o melhor amigo, também foi citado o conversar). (e) O melhor
amigo pode ser uma única pessoa ou várias, geralmente do mesmo gênero e
de idade próxima à da criança. Algumas vezes, o melhor amigo é um parente
(irmão ou irmã, primo ou prima, e mesmo a avó). Dois participantes citaram
todos os amigos como melhores amigos. Na maioria dos casos, os participantes conhecem o melhor amigo há bastante tempo (desde a creche onde
estudaram, antes da escola atual). A maioria conhece o melhor amigo há
pelo menos quatro anos. (f) A amizade na família, usualmente, considera-se
tendo início no ato do nascimento. Na família, o pai e, especialmente a mãe,
foram considerados como amigos pelos participantes, assim como os irmãos,
além de outros membros da família, como primos, tios e avós. (g) Os locais
mais importantes e freqüentes de encontro são a escola, a rua (perto de casa)
e a casa do amigo ou a própria casa. Na escola, durante as aulas, os amigos
participam das atividades escolares e também conversam e brincam. Durante o recreio, basicamente, os amigos brincam (pique, bola), se encontram
para lancharem juntos. A minoria sabe a data do aniversário do melhor amigo (geralmente, as meninas). Entretanto, a maioria dos participantes conhece os pais do melhor amigo e costuma freqüentar a sua casa. As conversas
são sobre as próprias brincadeiras e sobre os assuntos de escola. (h) As
emoções estão intimamente relacionadas à amizade. Raiva, medo, tristeza e
alegria estiveram presentes. A alegria foi o sentimento mais freqüentemente
associado à amizade. As meninas sentem mais medo e mais raiva. Esta pare106
A Amizade da Infância à Terceira Idade: Olhares Diversos
ce ser apenas uma diferença de gênero e não de idade. (i) Quase todos os
participantes consideraram importante e desejavam ter mais amigos. As qualidades dos amigos estão relacionadas à sua sociabilidade (ser educado e
saber respeitar os colegas) e ao tipo de atividades realizadas em comum
(como brincadeiras interessantes). Por outro lado, a maioria dos participantes não percebe defeitos em seus amigos. Os defeitos mais citados foram a
implicância com os colegas e o costume de bater nos colegas. O brincar nas
relações de amizade foi a atividade mais citada entre os amigos. Os fatores
responsáveis pelo término da amizade foram, os mais freqüentes, brigas e
mentira. Estes dados, em seu conjunto, dão uma visão ampla, ainda que
preliminar, dos principais aspectos da amizade entre crianças de 7 a 12 anos,
alunos de uma escola pública de Vitória.
Em suma, pode-se concluir que as amizades representam uma importante forma de relacionamento social na faixa etária investigada, especialmente
com os pares, mas também se mostrando como fator de socialização com
adultos. São relações muitas vezes duradouras, baseadas em cooperação e
girando em torno do brincar como atividade mediadora. Escola e vizinhança são os locais principais para as amizades que ainda representam uma
importante parte da vida emocional da criança. Conforme Hinde (1979, 1987,
1997), a amizade, como um relacionamento interpessoal, sofre a influência
da estrutura sócio-cultural (se dá dentro de um contexto social complexo) e
do meio ambiente físico (depende do espaço e suas características), além de
envolverem diferentes níveis de complexidade, desde a criança como indivíduo, a influência dos grupos (como a família), até a sociedade como um
todo.
4. As Amizades dos Idosos em Ambiente
Familiar e nas Instituições
O objetivo geral da presente pesquisa foi investigar as relações de amizade de idosos vivendo em instituições e em ambiente familiar (residência).
No decorrer da investigação, procurou-se identificar e descrever a rede de
amigos, o conteúdo e a qualidade da amizade, a partir de entrevistas, comparando-se os as amizades nos dois ambientes, considerando, ainda, as diferenças de gênero.
Quanto à rede de amigos, houve uma diferença significativa entre os
idosos morando em ambiente familiar e os que vivem em situação de asilo.
Os primeiros parecem dispor de uma rede social mais ampla e diversificada,
107
Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
interagindo com pessoas da família e de fora, mantendo maior contato com
amigos, com os quais podem se relacionar em diferentes ambientes (em
casa, na igreja, na vizinhança, em centros de convivência, entre outros). A
rede de amigos dos idosos vivendo em instituições parece ser sensivelmente
mais restrita. Estes idosos ainda se referem aos amigos de fora da instituição, mesmo que tenham perdido contato com eles após passarem a residir
no asilo, situação relatada por praticamente todos os entrevistados. As idosas, inclusive, tentam evitar contato com outras senhoras da instituição, dificultando ainda mais o desenvolvimento de uma relação de amizade. Ambos
os gêneros ainda se ressentem da falta de visitas dos amigos que deixaram
para trás, alguns apontando não entender o motivo.
Para os idosos que vivem em casa, houve uma tendência para privilegiar-se os relacionamentos de amizade mais antigos, considerados melhores, com maior grau de intimidade e trazendo maior satisfação. A preferência dos idosos por relacionamentos mais antigos, em detrimento dos
mais recentes, já havia sido observada por Shea, Thompson e Bliesner
(1998). Estes participantes, mesmo afirmando estarem abertos a novos
relacionamentos, demonstraram pouco empenho em buscá-los. Eles se dizem satisfeitos com suas atuais amizades, sentindo pouca necessidade de
fazer novos amigos. Apenas duas mulheres estabeleceram amizades mais
recentes (de dois e quatro anos). Para praticamente todos os moradores do
asilo, a internação significou o distanciamento ou perda das amizades
previamente estabelecidas, afetando negativamente seu bem-estar devido
à perda de importante fonte de trocas de experiências, valores, memórias e
histórias em comum (Hartup & Stevens, 1997). Os que citam parentes
como amigos continuam a receber suas visitas, mas o caráter esporádico
destas talvez não garanta que as funções dessas amizades estejam sendo
cumpridas satisfatoriamente. Mesmo que esses idosos tenham relatado o
início de novos relacionamentos com internos e visitantes, após a mudança para o asilo, possivelmente tais amizades não sejam suficientes e qualitativamente interessantes, pois só sua existência não garante serem satisfatórias para o idoso (Adams e Blieszner, 1995).
A análise do conteúdo e dos processos envolvidos na amizade dos idosos desses dois grupos sugere que as amizades mais novas, estabelecidas
após a internação no asilo, embora relevantes, mostram-se mais superficiais
e insatisfatórias. Essa importância se revela pela carga afetiva com que falam de seus amigos e pela relevância que estes parecem ter no contexto de
internamento, o que é indicado pelos benefícios que recebem da relação de
amizade. Além disso, a maneira como expressaram essa importância sugere
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A Amizade da Infância à Terceira Idade: Olhares Diversos
uma maior dependência e carência afetiva, comparados com os idosos que
vivem em casa, o que também pode ser notado quando realçam os benefícios que poderiam proporcionar aos amigos, e por apreciarem na amizade, o
fato de serem ouvidos e saberem que os amigos se importam com eles. Todavia, os idosos em situação de asilo tendem a dialogar sobre assuntos menos pessoais e, por vezes, percebem as conversas de forma negativa (não há
mais nada para fazer ou conversam para o tempo passar), não obstante os
que têm preferência por manter relacionamento com visitantes falem dessa
atividade de maneira mais positiva. Por outro lado, todos os idosos que vivem em casa demonstraram maior satisfação em conversar com seus amigos, atividade que envolve uma variedade maior de assuntos e graus diferentes de intimidade, ocorrendo em múltiplas situações e locais. Isso se contrapõe à descrição da rotina maçante no asilo pelo outro grupo, talvez contribuindo para que até o conversar torne-se mais desgastado e monótono.
Ademais, os idosos que vivem em casa também podem realizar um leque
maior de atividades em diferentes locais juntamente com seus amigos, facilitando a inserção do idoso na sociedade, considerada uma das funções da
amizade na terceira idade (Litwak, 1985). Estes apreciam e valorizam a confiança conquistada nesses relacionamentos, algo que parece não se encontrar suficientemente estabelecido entre os participantes do asilo e seus novos amigos. Se este grupo tende a apontar os benefícios que seus amigos
teriam ao se relacionarem com eles, os participantes que vivem em casa, por
outro lado, falam de suas características pessoais e benefícios do relacionamento em si para a amizade, sugerindo estarem mais convictos de seu valor
para a relação, indicando um nível mais elevado de auto-estima.
A internação no asilo parece levar à perda de vínculo com amigos antigos e menor grau de confiança e profundidade nos novos relacionamentos
formados, embora haja grande dependência deles, inclusive emocional. Nem
sempre, se mostram satisfeitos com o conteúdo desses relacionamentos. Os
dados referentes ao sentimento de solidão e satisfação com as amizades
contribuem ainda mais para esclarecer as diferenças. A despeito da satisfação percebida, há uma insuficiência desses relacionamentos para afastar sentimentos de solidão, bastante presentes (75% dos participantes do asilo sentem-se moderadamente ou muito sozinhos). Essa insuficiência é apontada
não só pelo pequeno número de amigos e por não serem plenamente confiáveis, como também pela impossibilidade de suprir a falta de relacionamento com familiares, principal motivo conectado à solidão experimentada. Os
familiares podem ser, nesse contexto, as únicas fontes disponíveis de valores, histórias, lembranças e fatos a serem partilhados com esses idosos, já
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Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
que as antigas amizades, em sua maioria, se perderam. Os idosos que vivem
em casa mostraram-se satisfeitos com suas atuais amizades, não sentindo
necessidade de fazer novos amigos. Dos oito participantes desse grupo, cinco declararam não se sentir sozinhos e dois, pouco sozinhos.
Os relacionamentos de coleguismo e o estabelecimento de novas amizades também apresentam diferenças significativas entre os dois grupos.
Os idosos vivendo em ambiente familiar, embora não empenhados em fazer efetivamente novos amigos, mostraram-se abertos ao estabelecimento
e manutenção de relacionamentos com outras pessoas nos diferentes espaços que participam (igrejas, centros de vivência, entre outros), divergindo
da afirmação de Carstensen (1991) de que há uma tendência para os idosos interagirem menos freqüentemente com amigos mais casuais e colegas. Quanto ao grupo de participantes que vivem no asilo, há pouca relação com outros internos, sendo que os motivos divergem segundo o gênero. Para as mulheres, há uma tentativa deliberada de se afastarem umas
das outras, evitando maiores contatos, pois há uma grande desconfiança
entre elas, além de conflitos e temores de serem vítimas de comentários e
fofocas. Por isso, restringem suas amizades a uma ou duas internas, além
daquelas com visitantes. Parece que, para elas, conviverem cotidianamente na mesma instituição produz efeitos semelhantes a certos aspectos do
relacionamento familiar, como a menor exposição para revelar assuntos
de maior intimidade dada a preocupação de que sejam motivos de comentários entre os familiares (Litwak, 1985). Os homens trazem queixas diferentes. Mostraram-se abertos a estabelecer novos relacionamentos no asilo, mas revelaram que boa parte dos outros internos não está em condições
de saúde para manterem diálogo.
Os idosos citaram mais outros internos como amigos do que as idosas,
que preferem estabelecer vínculos mais próximos com visitantes ou com
apenas uma ou duas internas. Relatos de desafetos e desconfianças não apareceram entre os homens sobre os outros moradores do asilo. Se, neste ambiente, as mulheres evitam novos contatos e relacionamentos, essa situação
não se repete para o grupo que vive fora dele. Pelo contrário, a abertura para
relações casuais e com colegas chama atenção entre as mulheres, além de
relatarem terem estabelecido amigos mais recentes (menos de 15 anos, algumas com amizade de dois e quatro anos) após terem ficado viúvas. Estabelecer ou reforçar laços de amizade parece ser uma das estratégias adotadas
por essas mulheres para lidar com a situação de viuvez, abrindo portas para
o estabelecimento de novas amizades.
Concluindo, os dados sugerem que as relações de amizade dos idosos
110
A Amizade da Infância à Terceira Idade: Olhares Diversos
diferem quando residem em sua própria residência (com ou sem os familiares) e quando moram em uma instituição. Os dados ainda apontam para
diferenças de gênero entre as amizades de idosos e idosas. Apesar das diferenças, as amizades representam, para os dois grupos, uma importante fonte
de bem-estar social e psicológico, contribuindo para o enfrentamento de
situações difíceis (como superar a solidão advinda com a perda de um cônjuge), situações de enfermidade, momentos de maior afastamento de filhos
e outros parentes, gerados pela vida em instituição.
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Psychology, 30 (2), 127-141.
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Relacionamento Interpessoal – Olhares Diversos
OS AUTORES
AGNALDO GARCIA - Doutor em Psicologia pela USP. Professor do
Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento da UFES e do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFES. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.
GEOVANA TABACCHI SILVA – Mestre em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política da Universidade Federal Fluminense. Professora da FAESA.
ISIS FIORIO ALBERTASSI – Aluna de Graduação da UFES. Participante do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC).
LORENA QUEIROZ MERIZIO - Aluna de Graduação da UFES. Participante do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC).
MARGARETH PEREIRA BERGAMIN – Aluna de Graduação da UFES.
Participante do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
(PIBIC).
MARIA TEREZA BRAGANÇA BORELI - Aluna de Graduação da
UFES. Participante do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC).
MARILENE OLIVIER - Doutora em Administração. Professora do
Departamento de Administração da UFES e do Programa de Pós-Graduação em Administração da UFES.
RODRIGO DOS SANTOS SCARABELLI - Aluno de Graduação da
UFES. Participante do Programa Institucional de Voluntários de Iniciação
Científica (PIVIC).
ROSANA SUEMI TOKUMARU - Doutora em Psicologia pela USP.
Professora do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento da
UFES e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFES.
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EDITORAÇÃO
Edson Maltez Heringer
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IMPRESSÃO
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