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Revista da Faculdade Social da Bahia. Ano 12, n. 2, agosto/dezembro 2013 2013.2.indd Faculdade Social da Bahia - Diálogos Possíveis Av. Oceânica 2717, Ondina, Salvador, Ba Prédio Central - Sala 117 - Fone: (71) 4009 3696 e-mail : [email protected] Diálogos possíveis: revista da Faculdade Social da Bahia. Ano 12, n.2 (ago/dez. 2013) -- . __ Salvador: FSBA, 2013 25 cm. Semestral ISSN 1677-7603 Seguindo as orientações da NBR 6021 A revista passa a partir de 2004 a adotar a designação de ano em substituição à antiga denominação de volume. 1. Educação-Brasil-Periódicos. 2. Comunicação socialPeriódicos. I. Título. II. Faculdade Social da Bahia. CDU: 378 Direção: Rita Margareth Costa Passos Editor e Revisor: Prof. Dr. José Euclimar Xavier de Menezes Conselho Editorial / Editorial Advisory Board: Adriana Farias Gehres - Universidade do Estado de Pernambuco Alexandra Alvarez - Universidad de los Andes - Venezuela Antônio de Jesus Tavares - Universidade Federal de Sergipe Clovis Renan Jacques Guterres - Universidade Federal de Santa Maria José Antônio Pinho - Universidade Federal da Bahia José Euclimar Xavier Menezes – Universidade Católica do Salvador e Faculdade Social da Bahia Luiz Alberto Sanz - Centro Laban - Rio Tau Golin - Universidade de Passo Fundo Luis Ernesto Behares - Universidad de la República del Uruguay Mônica Salomon - Universidad Autónoma de Barcelona Neusa Demartini Gomes - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Rosana Zucolo - UNIFRA, Centro Universitário Franciscano Victor Gentilli - Universidade Federal do Espírito Santo Tereza Cristina de Oliveira – Faculdade Social da Bahia Elaine Costa Fernandez – Univeristè Toulouse le Mirail/Universidade Federal de Pernambuco Eda Terezinha de Oliveira Tassara - USP-SP Eugenia Scabini – Università Cattolica del Sacre Coure/Milão/Itália Maria Cecília Leite de Moraes – Centro Universitário Adventista/SP Tchirine Mekideche - Universitè de Argel/Argélia Elaine Pedreira Rabinovich – Universidade Católica de Salvador Jaroslaw Merecki – Pontificia Università Lateranense/Roma Antoinette Fauve-Chamoux – Ècole des hautes études en sciences sociales/Paris Programação visual, diagramação e editoração eletrônica / Visual programing, electronic diagramming and editing: Leonardo Alves dos Santos 2013.2.indd IOSSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRI Mulheres na política sob uma perspectiva histórica e de gênero: da França à Guiné (17891958) Antoinette Fauve-Chamoux - EHESS-França 7 Women in politics in historical and gender perspective: from France to Guinea (1789-1958) Antoinette Fauve-Chamoux - EHESS-France 35 Complemento Antoinette Fauve-Chamoux - EHESS-França 60 Complement Antoinette Fauve-Chamoux - EHESS-France 69 Diálogos epistolares como fontes para a história das ciências: a correspondência de Miguel Rolando Covian Eneida Nogueira Damasceno, Marina Massimi 78 A viagem do Windhuk: apontamentos sobre migração, sofrimento ético-político e identidade Diane Portugueis, Omar Ardans 90 Algumas observações sobre a filosofia do amor em Dietrich Von Hildebrand e Karol Wojtyla Jaroslaw Merecki 104 Some remarks on the philosophy of love in Dietrich Von Hildebrand and Karol Wojtyla Jaroslaw Merecki 112 Comuna da terra: relação entre sujeitos na paisagem híbrida campo cidade Ana Paula Soares da Silva FFCLRP-USP/RP/ IEA-USP 121 Redes de cuidado de crianças com paralisia cerebral Camila Ferrari de Almeida, Elaine Pedreira Rabinovich 144 Terapia ocupacional e família na vida de portadores da síndrome de down: duas histórias bem sucedidas Pessia Grywac, Maria Cecília L Moraes, Zan Mustacchi 163 Qual o tipo de famìlia para o futuro? Nicola Reali 178 Quale tipo di famiglia per il futuro? Nicola Reali 192 Infâncias Maria de Fátima Pessôa Lepikson 206 Construção da imagem e estética corporal entre fisiculturistas Azenildo M. Santos, Thomas Zacharias 226 2013.2.indd aos leitores 2013.2.indd Apresentação O segundo volume de 2013 da revista Diálogos Possíveis reitera a política de disseminação da ciência, com vistas à incorporação dos protocolos internacionais que este editor, junto à Diretoria Geral da Faculdade Social da Bahia decidiram implementar. Isto significa que, desde 2012, a Revista Diálogos Possíveis vem procedendo uma série de ajustes nos seus mecanismos de atração dos pesquisadores de projeção nacional e internacional para confiar ao periódico a publicação dos resultados dos seus trabalhos de nível avançado. Exatamente por isso decidimos somente publicar doutores pesquisadores em parceria com seus orientandos e/ou colegas de execução de projetos de pesquisa. Mas não somente: a política editorial implementada tem investido fortemente na internacionalização do dispositivo: alguns dos textos disponíveis, desde 2013.1, passam a ser publicados na língua original (francês, inglês, italiano e espanhol) juntamente com a tradução em português de nossa responsabilidade. Isso implica uma forte aposta na ampliação da rede de colaboradores e de leitores. Isso repercute, inclusive, na composição do Comitê Científico que confere suporte à Diálogos. Neste número temos 1 artigo em inglês e dois em italiano. São 12, advindos de várias regiões do Brasil e do âmbito internacional (França e Itália) e de vários centros de pesquisa especializados nas temáticas dos artigos aqui apresentados. Os temas, per si, já indicam o quanto temos apostado na sinergia para a promoção do diálogo interdisciplinar: Da Escola de Altos Estudos de Paris, a historiadora da Família, Profa. Dra. Chamoux, propõe um estudo comparativo da questão de gênero entre a Guiné e a França colocando o seu foco na participação feminina na vida política dessas nações; Damasceno e Massimi nos propõem a reflexão sobre o uso de documentos epistolares como território que cria condições para que a produção em História das Ciências seja efetivada; Portugais e Ardans debatem o sofrimento em perspectiva ético-política para visitar histórias de vida de migrantes num dos mais difíceis cenários políticos da história do Brasil, propondo a afetividade como norte de ordenamento dos sujeitos inseridos neste cenário; Em perspectiva filosófica, Merecki coteja a fenomenologia em Von Hildebrand e Wojtyla para refletir a filosofia do amor; Mirando etnograficamente o modo como uma população urbana acessa ao Sistema Único de Saúde, Tavares pensa a igualdade social e a participação democrática como sendo os desafios relevantes da vida citadina do Brasil de hoje; Silva propõe refletir sobre a Comuna da Terra a partir das experiências de trânsito de crianças e adultos em assentamentos; Almeida e Rabinovich desenham suas conclusões de pesquisa junto à Rede Sarah com cuidadoras de crianças com paralisia cerebral, repensando, sobretudo, o que ocorre com essas mulheres que abdicam de várias dimensões de suas vidas para se dedicarem aos cuidados dos seus filhos acometidos com esta grave morbidade; Grywac et al apresentam os resultados de pesquisa acerca de famílias que aditam aos seus cotidianos a responsabilidade com a terapêutica de membros com síndrome de Down, alertando que, malgrado as dificuldades enfrentadas, há relatos familiares acerca do êxito na 2013.2.indd participação dos projetos terapêuticos; Em seu texto “Que tipo de família para o futuro”, Nicola Reali nos convida a refletir sobre a dinâmica familiar indispensável para o enfrentamento das mudanças que ocorrem na sociedade contemporânea, que solicita ou dissemina vários arranjos familiares; Lepikson apresenta com sua proposição indicadores da vulnerabilidade das crianças no Brasil de hoje e, finalmente, Santos e Zacharias discutem a alteridade a partir da tendência de uma hiper valorização do corpo, tomando como paradigma o impacto do fisioculturismo na contemporaneidade. Aditivo importante: A FSBA detém a propriedade intelectual e administrativa da Revista. Mas passa a contar, desde 2013, com a forte parceria do Programa em Família na Sociedade Contemporânea/UCSal, cuja rede de cooperação nacional e internacional redimensiona as chamadas em editais para os pesquisadores aqui presentes. Essa parceria é selada como colaboração intelectual que se mostra muito fecunda às duas instituições, convergentes no esforço de internacionalização do periódico que doravante chancelam. Editor Prof. Dr. José Euclimar Xavier de Menezes Editor da Revista Diálogos Possíveis/FSBA Docente e pesquisador do Programa em Família na Sociedade Contemporânea/UCSal (Capes 5) 2013.2.indd 1 Mulheres na Política sob uma Perspectiva Histórica e de Gênero: da França à Guiné (1789-1958) Antoinette Fauve-Chamoux: [email protected] Coordenadora de seminários acadêmicos na Ècole des Hautes Etudes en Sciences sociales/Paris, junto ao Centre de recherches historiques; Responsável do Bureau des Echanges culturels de l’EHESS; Condecorada com a Ordre du Mérite Polonais; Dama da Ordre des Palmes Académiques; Temas de interesse: História das Civilizações da Europa; História da família, História urbana, História das mulheres, Modelos comparados de reprodução familiar, demografia histórica. 2013.2.indd BSTRACTRESUMOABSTRACTRESUMOABSTRAC Resumo A Revolução Francesa de 1789 levou ao desenvolvimento de novos sistemas políticos, baseados na democracia, que se expandiram pelo mundo. A primeira parte deste artigo explorará a presença e as ações, no começo da França moderna, de mulheres relacionadas aos movimentos da Revolução Francesa. A segunda parte vai se referir ao grau de participação política de mulheres do Império Francês, sob a constituição colonial francesa (Code de l’indigénat), focalizando a África francesa Ocidental. Será enfocado como um estudo de caso, o que aconteceu na Guiné durante a metade do século XX, quando as mulheres desempenharam um importante e único papel político neste novo estado africano independente e socialista. Palavras-chave mulheres ativistas; impérios coloniais; direito ao voto. Abstrac The French revolution of 1789 led to the development of new political systems, based on democracy, which expanded worldwide. The first part of this article will explore the presence and actions, in early modern France, of women related to French Revolution movements. The second part will concern the degree of political participation of women of the French Empire, under the French colonial constitution (Code de l’indigénat), focusing on French West Africa. It will focus, as a case study, what happened in Guinea during the mid-20th century, when women played an important and unique political role in this new African independent and socialist state. Keywords activist women; colonial empires; right to vote. 8 A Revolução Francesa de 1789 levou ao desenvolvimento de novos sistemas políticos, baseados na democracia, que se expandiram pelo mundo. Para a conferência que aconteceu em Aligarh, em fevereiro de 2012, os participantes foram encorajados a estudar quanto a participação das mulheres na estrutura política foi efetiva sob diferentes sistemas políticos. Como historiadora europeia da época moderna, sempre pesquisei as mulheres nos arquivos, tentando segui-las em seu curso de vida e reconstruir sua mentalidade e agência específica na sociedade. Tive de fazer uma escolha para este estudo, como uma mulher historiadora, olhando para as mulheres na política no passado. Decidi explorar a questão em duas direções. A primeira parte explorará a presença e as ações, no começo da França moderna, de mulheres relacionadas aos movimentos da Revolução Francesa. A segunda parte vai se referir ao grau de participação política de mulheres do Império Francês, sob a constituição colonial francesa (Code de l’indigénat), focalizando a África francesa Ocidental. Selecionei, como um estudo de caso, o que aconteceu na Guiné durante a metade do século XX, quando as mulheres desempenharam um importante e único papel político neste novo estado africano independente e socialista. PROCURANDO MULHERES ATIVAS NOS ARQUIVOS E NA LITERATURA HISTÓRICA Como uma historiadora demógrafa e social, observei milhares de nascimentos, casamentos e mortes de mulheres nos registros das paróquias do período moderno inicial, antes da Revolução Francesa que aconteceu em 1789. Mulheres casadas trabalhavam como mães e donas de casa, criavam crianças e tomavam conta de idosos, mas também produziam bens e mercadorias para o mercado. As mulheres pagavam impostos enquanto solteiras ou viúvas. Nos censos, eram mencionadas como membros de sua moradia ou chefes da casa com ou sem uma ocupação, negócio ou status social declarado. Tomavam conta de casas, administravam fazendas, vendiam nas ruas e compravam em vários mercados, trabalhavam em lojas, no lar, ou eram empregadas domésticas em casas particulares ou instituições. Mulheres eram mencionadas em relatórios de notários, assinavam (ou não) seus contratos de casamento ou um testamento, transmitiam propriedades a crianças ou outras pessoas (parentes ou não) Também transmitiam conhecimento, normas culturais e valores simbólicos. Algumas tinham problemas com várias cortes de justiça. Mas a presença feminina na política era rara, quase inexistente. Certamente, em alguns contextos rurais e urbanos, apareciam em papeis fiscais e mesmo em listas da milícia, quando, sendo cabeças do lar, esperava-se que respondessem às requisições das 9 autoridades municipais, como no início do período moderno na cidade de Rheims Champagne (FAUVE-CHAMOUX, 2000). Segundo Regine Pernoud, antes de 1498, nas assembleias urbanas ou nos distritos rurais do reino francês, as mulheres, quando eram chefes de família, sendo solteiras ou viúvas, possuíam o direito ao voto (PERNOUD, 1980).1 Este era para eleger representantes para as guildas (confrarias) de artesãos ou lojistas, ou para eleger habitantes locais para alguma responsabilidade municipal. Viúvas nobres, dotadas com um feudo e abadessas religiosas podiam votar em representantes nos États Généraux [Estados Gerais]. Estudando papeis de gênero no século XVI em Lyon, uma grande e próspera cidade francesa, Natalie Z. Davis considerou que algumas mulheres eram ocasionalmente politicamente visíveis na vida pública de sua cidade. Mas nunca ao ponto de poder se tornar um membro da Assembleia dos habitantes ou parte do Conselho municipal (DAVIS, 1979, p. 120). Mas isto era diferente em algumas comunidades do Pireneu onde as mulheres podiam ser herdeiras e representavam sua “casa” e família nas Assembleias Gerais de sua vila, se fossem chefes de famílias, sendo viúva ou solteira (FAUVE-CHAMOUX, 2002). Algumas reformistas mulheres, revolucionárias e feministas do primeiro momento, apareceram durante o século XVIII, a época do Iluminismo, em: 1) sua demanda por liberdade, escolha individual, sexualidade, parentalidade; 2) sua demanda por identidade política, nacional, cultural – incluindo religião; e 3) sua luta por direitos e educação. Até o desenvolvimento da história das mulheres como uma disciplina acadêmica nos 1970s, as mulheres que tentavam se parecer com homens eram objetos de atenção. Algumas eram suspeitadas de ser homossexuais e eram chamadas de Amazonas ou Lésbicas (BLANC, 2003; DeJEAN, 1989). Nas últimas décadas do século XX, as historiadoras mulheres conseguiram trazer as mulheres à luz. As mulheres apareceram como proprietárias, produtoras, como esposas de agricultores, e artesãs nas lojas, indústrias de algodão ou trabalhadoras em fábricas. Elas tinham algum poder econômico, familiar ou comunitário; transmitiam bens materiais e não materiais (habilidades, cultura, linguagem e segredos) em vários níveis das sociedades. Mas as mulheres como uma força na política permaneceram dificilmente visíveis (BRIDENTHAL; KOONZ, 1977; HUFTON, 1992, 1997), mesmo quando elas não estavam apenas restritas à esfera privada e totalmente submissas a alguma dominação masculina (SOGNER, 1988). Gostaríamos agora de considerar como mulheres tiveram parte 1 Durante o começo do Antigo regime, para as mulheres adultas francesas, o direito ao voto, quando chefe de família, foi suprimido por um edital real registrado pelo Parlamento Francês em 1498. Mais tarde, outro edital, em 1593, também registrado pelo Parlamento de Paris, proibiu qualquer mulher de exercer uma ocupação oficial para o Estado, como um empregado civil. 10 na Revolução Francesa, mulheres da classe operária que se expressavam nas ruas, como também mulheres educadas que desencadearam as ideias feministas. MULHERES DA CLASSE OPERÁRIA E OS DEBATES REVOLUCIONÁRIOS FRANCESES Em 05 de outubro de 1789, um grupo de mulheres parisienses se organizou e marchou para Versalhes, residência do Rei Louis XVI, quinze milhas distante. Estavam aborrecidas devido ao alto preço do pão. No caminho, homens a elas se juntaram. Alcançaram Versalhes às 4 horas, ganharam uma audiência com o rei. Ele concordou com as demandas quanto ao preço da comida e aceitou retornar a Paris, desde que pudesse trazer consigo seus membros familiares. Jacques Louis David (1748-1825) pintou esta típica mulher trabalhadora da época, uma “mulher do povo de Paris”, uma maraîchère plantando e vendendo vegetais frescos no mercado.2 Depois deste episódio de outubro de 1789, um grupo de mulheres apresentou à Assembleia Nacional uma petição propondo um decreto dando igualdade às mulheres. A Declaração dos Direitos dos Homens e Cidadãos foi adotada em 26 de agosto de 1789 pela Assemblée nationale constituante [a Assembleia Nacional Constituinte]. Ela fez uma estrita distinção entre cidadãos franceses que tinham plenos direitos políticos e aqueles que não o tinham3. Aqueles considerados para ter plenos direitos políticos eram chamados cidadãos “ativos”. Eles deviam ser homens franceses, ter ao menos 25 anos de idade, pagar impostos equivalentes a pelo menos três dias de trabalho, e não podiam ser definidos como empregados (THOURET, 1996). Isto significa que mulheres, crianças, menores, pobres, escravos, estrangeiros, serventes e muitos outros foram privados de direitos políticos O conceito de “cidadãos passivos” foi então forjado para compreender aquelas populações que foram excluídas dos direitos políticos. Mulheres adultas estavam orgulhosas de serem “cidadãs”, mas elas não tinham direito ao voto. Durante a Revolução Francesa, muitas mulheres estavam acostumadas a seguir os debates políticos enquanto tricotavam (citoyennes tricoteuses) para negociantes. O ano de 1793 foi marcado, em Paris, por um forte comprometimento político de mulheres trabalhadoras vindas de círculos populares na luta contra o partido Girondista e os moderados. Encontrámo-las tricotando meias de lã nos lugares públicos dos encontros das “sessões” de Paris ou na assembleia da 2 Um famoso retrato pintando por Jacques Louis David está preservado em Lyon, Musée des Beaux-Arts, frequentemente chamado de “A pescadora”. 3 Em 29 Setembro 1789, Jacques-Guillaume Touret apresentou um relatório “sobre a Base da Elegibilidade Política” para o Comitê Constitucional da Assembleia Nacional (TOURET, 1996). Este constituiu a principal base para a legislação subsequente para as qualificações para votar. 11 Convention [Convenção]4, além dos sans culottes, defendendo a ação dos líderes Jacobinos5. Tricotar meias era para elas um trabalho regular, uma atividade proto-industrial. Os comerciantes lhes davam o material bruto (aqui bolas de lã) e encomendavam o trabalho a ser feito. Na época, algumas mulheres recebiam um pequeno suporte financeiro do Clube dos Jacobinos para passar horas escutando os debates e agindo como apoiadoras devotadas dos revolucionários: os Jacobinos davam às mulheres 40 soles por dia para se sentar e ficar na galeria para aplaudir as moções revolucionárias, o que está atestado por uma ilustração da época [Figure 1]. De modo algum estavam perdendo o seu dia de trabalho. Nas províncias francesas, as mulheres organizaram grupos de discussão chamados “Clubes” ou “Sociedades para mulheres” (ver mapa in GODINEAU, 1988, p. 114). Estas eram mulheres mais de classe média, esposas dos homens locais ativos nos movimentos revolucionários. Elas se engajavam em ações sociais e disseminação de novidades. Também discutiam o projeto referente ao divórcio (a lei permitindo o divórcio na França foi promulgada em 30 de agosto de 1792).6 Mirabeau, a famosa figura revolucionária disse: «sem as mulheres não teria havido revolução"7 (AUBAUD, 1993). Contudo, algumas mulheres pagaram com suas vidas o que expressavam em palavras ou ações a favor do reconhecimento dos direitos das mulheres, quando defendiam pessoas vulneráveis e lutavam contra a escravidão. Este foi o caso de Olympe de Gouges, que foi enviada à guilhotina em 1793. OLYMPE DE GOUGES (1748-1793) E A DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DAS MULHERES (1791) “Marie Gouzes”, nascida Manon Philipon8 e conhecida por Olympe de Gouges (1748-1793), era uma escritora francesa e uma feminista pioneira. Nascida em 1748, numa família de Montauban, uma cidade da província no sudoeste da França, era a filha de um mestre artesão e sua mãe era a filha de um rico negociante/fabricante têxtil (maître tondeur de 4 A Convention foi a primeira Assembleia eleita da Primeira República (1792–1804). 5 Veja gravura por Pierre-Etienne Lesueur, « Les tricoteuses jacobines ou de Robespierre », Musée Carnavalet, Paris, Réunion des Musées Nationaux (Figure 1). Um grande número destas mulheres recebia 40 pence por dia para vir ao comício dos Jacobinos e aplaudir as moções revolucionárias, Ano 2” [1793-1794]. 6 Em 30 de agosto de 1792, a Assembleia Legislativa Francesa declarou que o casamento podia ser solvido pelo divórcio Reabilitou o divórcio, uma categoria legal existente sob a lei romana, que a lei canônica católica havia suprimido. A lei autorizando o divórcio na França foi adotada em 20 de setembro de 1792 pela Assembleia Nacional e modificada por decretos de 1793 e 1794. O divórcio foi incluído no Código Civil Napoleônico de 1804, mas suprimido posteriormente sob o regime político da Restauração pela lei de 8 de maio de 1816. Após décadas de debates, o divórcio foi restaurado apenas no fim do século XIX, sob a Terceira República Francesa, com a lei de 27 de julho de 1884 (FAUVE-CHAMOUX, 2001). 7 O Conde de Mirabeau, nascido em 1749, embora um nobre, foi eleito em 1789, em Aix-en-Provence como um delegado do TerceiroEstado. Morreu de doença em 2 de abril de 1791, como Chanceler da Assemblée Nationale (eleito em 30 de janeiro de 1791). 8 Olivier Blanc (2003) retificou numerosas asserções errôneas concernentes à vida e origens familiares de Olympe de Gouze. 12 draps). Um dos rumores que circulava sobre suas origens era que sua mãe tinha sido amante do marquês Jean-Jacques Le Franc de Pompignan, escritor de peças. Ela recebeu uma boa educação em Montauban (LACOURT, 1900). Com a idade de 17 anos, em 1765, casou-se com Louis-Yves Aubry, um oficial que servia a casa de Gourgues, uma família nobre. Após três anos de casamento e um filho, abandonou seu marido e foi para Paris – onde sua irmã estava vivendo – procurando celebridade. Mudou o nome para Olympe de Gouges, organizou um teatro e se tornou uma escritora bem sucedida. Em setembro de 1785, foi mandada para a cadeia na Bastilha, por um drama teatral antiescravagista, intitulado L’esclavage des Noirs [A escravidão dos Negros] (CHALAY; RAZGONNIKOFF, 2006), posteriormente publicado em 1792 sob o título: L’esclavage des Noirs ou l’heureux naufrage [A escravidão dos Negros ou o feliz naufrágio]. Inspirada pela Déclaration des droits de l’homme et du citoyen [Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão] adotada em 26 de agosto de 1789 pela Assembleia Nacional Francesa Constituinte, Olympe de Gouges publicou a Déclaration des droits de la Femme et de la Citoyenne [Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã] in 1791, construída em um estrito paralelo à Déclaration de 1789, com o mesmo número de artigos. A primeira página era uma introdução (Preâmbulo), declarando o seguinte: “Mães, meninas, irmãs, todas representantes da nação, peçam para ser representadas na Assembleia Nacional. Considerando que a ignorância, a desatenção ou o desprezo pelos direitos das mulheres são as únicas causas das infelicidades públicas e da corrupção dos governos, resolvemos expor numa solene declaração, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados das mulheres, de modo que esta declaração, constantemente presente a todos os membros da sociedade, recorde-os sem cessar seus deveres, de modo que os atos do poder das mulheres e aqueles do poder dos homens possam ser comparados todo o tempo visando qualquer instituição política e, portanto, mais respeitados, de modo que as queixas dos cidadãos, baseadas daí em simples e indisputáveis princípios, sempre se dirija à preservação da constituição, aos bons costumes e à felicidade de todos”. “Consequentemente, o sexo que é superior em beleza como em coragem nos sofrimentos maternais, reconhece e declara, na presença e sob os auspícios do 13 Supremo Ser, os seguintes direitos da Mulher e da Cidadã.” (Preâmbulo, Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, 1791). Olympe de Gouges foi uma pioneira ao pedir a instituição do divórcio – primeiro e único direito conferido à mulher pela Revolução9 – que foi adotada por instigação do partido Girondista alguns meses mais tarde. Ela também pediu a abolição do casamento religioso e sua substituição pelo casamento civil, um contrato assinado por parceiros sexuais que coabitam. Sugeriu que crianças nascidas de uniões consensuais podiam ser reconhecidas por seus pais como legítimas. Tudo isto era realmente revolucionário na época, mesmo quando Gouges lutou pela paternidade livre e reconhecimento de crianças nascidas fora do matrimônio. Uma de suas anotações aponta para um novo sistema de cuidado de saúde mãe e criança dentro de um estado de bem-estar (ver Lettre au Peuple ou projet d’une caisse patriotique, par une citoyenne, setembro 1788). Horrorizada com o nível de mortalidade materna em hospitais urbanos, sugeriu a criação de hospitais específicos para a maternidade (MOUSSET, 2003). OLYMPE DE GOUGES: CORAJOSO E FATAL UM COMPROMISSO Olympe propôs dezessete artigos em sua Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã (1791), espelhando os dezessete artigos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, começando, como mencionado acima, pelo Preâmbulo, e terminando com um Pós-âmbulo. O Artigo X é particularmente interessante, dado que, condenada à morte, posteriormente morreu em Paris em 06 de novembro de 1793, executada pela guilhotina. “Uma mulher tem o direito de subir no cadafalso; ela deve igualmente ter o direito de subir o rostrum, desde que suas demonstrações não perturbem a ordem pública legalmente estabelecida” (Artigo X, Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, 1791). Olympe de Gouges proclamava o direito das mulheres de participar na vida política e no sufrágio universal. Em 03 de julho de 1790, Nicolas de Condorcet já havia proposto, sem sucesso, dar o direito ao voto para mulheres em um artigo no Journal de la société de 1789 (CONDORCET, 1790). Seu 9 Ver acima, nota 7. 14 argumento era que: “Seria necessário provar que os direitos naturais das mulheres não são exatamente os mesmos que o dos homens ou mostrar que as mulheres não são capazes de exercê-los, o que é insustentável” (Sur l'admission des femmes au droit de cité, 03 julho de 1790). E, além da instituição do divórcio (30 de agosto de1792), já mencionada, o feminismo de Olympe encorajou a adoção de vários outros decretos oficiais que almejavam melhorar a condição das mulheres e reconhecer seus direitos (SIEDZIEWSKI, 1998). Comparando, Mary Wollstonecraft, uma feminista inglesa-irlandesa, pode parecer menos arrojada, a respeito das posições de conquista e corajosas de Olympe de Gouge. Wollstonecraft publicou em 1792 A Vindication of the Rights of Woman, With Strictures on Political and Moral Subjects, [A Reivindicação dos Direitos da Mulher, com Compressões sobre Sujeitos Políticos e Morais] imediatamente traduzida para o francês (WOLLSTONECRAFT, 1792a & 1792b) em que ela estava procurando “persuadir as mulheres a se esforçar para adquirir força, tanto da mente quanto do corpo, e convencê-las de que frases suaves, susceptibilidade de coração, delicadeza de sentimento, e refinamento no gosto, eram quase epítetos de fraqueza” (WOLLSTONECRAFT, 1792). Neste ensaio, a autora insistia na igualdade entre homens e mulheres, particularmente quanto ao acesso à educação, mas não muito no possível papel das mulheres como atores políticos, mesmo se elas reivindicavam que os direitos civis e políticos pertenciam a ambos os sexos. A Vindication of the Rights of Woman é considerado na Inglaterra como o primeiro livro feminista, escrito por uma mulher. Ele foi imediatamente disseminado na França como « Défense des droits de la femme» [Defesa dos direitos da mulher]– um título mais neutro em francês do que em inglês10 (WOLLSTONECRAFT, 1792b) –, e publicado também por Peter Edes em Boston. Na realidade, Mary Wollstonecraft (1759-1797) morou em Paris por um tempo em 1792, e daí foi inspirada por Olympe de Gouge. Mary foi testemunha da política de Terror de Robespierre. Seria interessante averiguar em que medida Mary estava em contato pessoal com Olympe, que era uma celebridade na época. De qualquer modo, se ela não se arriscou muito neste texto, de sua experiência em Paris, depois de seu retorno à Inglaterra, Mary Wollstonecraft posteriormente publicou An historical and moral view of the origins and progress of the French Revolution and the effect it has produced in Europe [Uma visão histórica e moral das origens e do progresso da Revolução Francesa e o efeito que produziu na Europa] (1794). Na visão de Mary, a esfera política não constituía um lugar privilegiado onde a 10 A palavra francesa “defesa” é mais suave do que “vindicação”. 15 emancipação das mulheres podia ocorrer enquanto, por seu lado, Olympe de Gouge foi até o fim de seu comprometimento político. Nos seus escritos da primavera de 1793, Olympe denunciou o aumento no poder da ditadura do partido da montanha, expressando os perigos da ditadura particularmente com o implemento, em 06 de abril de1793, de um Comitê de Saúde Pública (Comité de Salut Public), que podia mandar membros do parlamento para a prisão. Depois da acusação de deputados do partido Girondista na Assembleia Convention em 02 de junho de1793, Olympe protestou com vigor, o que era considerado contra a lei de Março de 1793, recebendo uma severa repressão devido aos seus escritos questionando os republicanos. Olympe foi presa e condenada à morte pela Corte Revolucionária, em agosto de 1793. Foi finalmente executada e morreu no cadafalso em 06 de novembro de 1793. Pagou sua ação política com sua vida, mas muitas mudanças sociais que ela propôs contribuíram mais tarde para melhorias da condição humana na sociedade humana, homens e mulheres juntos. Não morreu por nada. Em particular, a escravidão foi abolida na França em 1794, depois de sua morte e, certamente, Olympe de Gouges foi uma ardente advogada da abolição. ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO NA FRANÇA (FEVEREIRO DE 1794): UMA HISTÓRIA MUITO LONGA No fim do século XVII, seguindo Jean-Baptiste Colbert, seu primeiro ministro, o Rei Louis XIV havia regulamentado as condições dos escravos com o Code Noir [Código Negro] (1685) que se referia apenas às colônias francesas porque a escravidão havia sido abolida na França Metropolitana desde o século XIV11; qualquer escravo trazido à França Metropolitana seria imediatamente considerado livre (NIORT, 2007). O Code Noir [Código Negro] de 1685 regulamentou o status civil dos escravos, retomando, ao mesmo tempo, disposições tomadas por Louis XIII em seu édito de 23 de abril 1615 contra os judeus e impondo aos escravos a obrigação de ser Católicos e batizados. Os Artigos 9 e 13 fixam o status civil dos escravos e como ele é transmitido aos filhos. A condição de escravidão era hereditária. Os filhos de escravos nasciam escravos e não podiam se casar sem a autorização de seu respectivo dono (artigo 11). As mulheres se beneficiavam de direitos específicos: uma mulher escrava que se cassava com um homem livre se tornava imediatamente livre e seus futuros 11 Em 13 de julho de 1315, o rei da França, Louis X, o “Hutin”, por édito real, proclamou que, de acordo com a lei natural, todos nascem livres [selon le droit de nature, chacun doit naître franc]. Desde então, qualquer escravo colocando o pé no solo francês deveria ser libertado [le sol de France affranchit l’esclave qui le touche][o solso da França liberta o escravo que o toca]. 16 filhos eram todos livres. Uma mulher livre que se casasse com um homem escravo daria nascimento a filhos livres. Por outro lado, se crianças nasciam de uniões ilegítimas, seriam escravas. Qualquer criança nascida de um escravo pertencia ao dono da escrava mãe se o dono do marido não fosse a mesma pessoa. A família escrava era protegida em princípio, desde que os pais escravos fossem legalmente casados por um padre católico: marido e esposa casados e seus filhos abaixo da idade de puberdade, se estivessem sob o poder de um mesmo dono, não podiam ser presos e vendidos separadamente (Code Noir, 1685, artigo 47). Com a Revolução Francesa em 04 de abril de 1792, foi garantida plena cidadania a pessoas de cor livres. A revolta dos escravos, na maior colônia francesa, a da ilha de São Domingo em 1791, marcara o começo da Revolução Haitiana liderada por Toussaint L’Ouverture. Depois desta revolta, a instituição da escravidão foi primeiramente abolida em São Domingo em 1793 por Sonthonax, que era o Comissário enviado a São Domingo pela Convention, a fim de salvaguardar a fidelidade da população à França revolucionária. Em 04 de fevereiro de 1794, a Convention, sob a liderança de Maximilien Robespierre, aboliu a escravidão na França e em suas colônias. Abbot Grégoire e a Sociedade dos Amigos dos Negros (Société des Amis des Noirs), nas mãos de Jacques Pierre Brissot, haviam sido ativos no movimento abolicionista que tinha colocado uma importante base para construir a ação anti-escravagista. O primeiro artigo desta lei declarava que a « escravidão estava abolida » nas colônias francesas, enquanto o segundo artigo declarava que os donos de escravos seriam ressarcidos por uma compensação financeira do valor de seus escravos. A Constituição da França, aprovada posteriormente pela Convention em 22 de agosto de 1795, estabeleceu o governo Diretório. The Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão tinha de incluir que a escravidão estava abolida. Como mencionado acima, em setembro de 1785, Olympe de Gouges já havia sido enviada para a cadeia na Bastilha, devido um drama teatral intitulado L’esclavage des Noirs [A Escravidão dos Negros], mais tarde publicada em 179212. Além disto, Reflexões sobre homens negros (1788) foi um ensaio também publicado por Olympe de Gouges, que havia permitido a ela se tornar um membro da Société des Amis des Noirs. Como abolicionista, ela foi posteriormente mencionada por Abbot Grégoire, na “Lista dos Homens 12 De acordo com seu Prefácio – onde ela explica seu argumento –, Olympe de Gouges enviou o texto de seu teatro drama em 1783 para a Comédie Française, sob o título de L’esclavage des Noirs, que foi primeiro impresso em 1786, representado em dezembro de 1789 e reimpresso com o Prefácio em 1792 (GOUGES, 1792). O texto do manuscrito dado em 28 de dezembro de 1789 ao encenador, antes da encenação, foi conservado na coleção da Comédie-Française em Paris. Esta versão censurada foi recentemente publicada pela primeira vez (GOUGES, 2006). 17 corajosos” (sic) que advogavam a causa dos “desafortunados Pretos” (1808). Antes da Revolução, ela havia escrito: “A sorte dos Negros sempre me interessou por seu triste destino. Aqueles a quem eu podia questionar, nunca satisfizeram nem minha curiosidade nem meu raciocínio. Eram tratados como brutos, seres a quem o Céu havia amaldiçoado; mas avançando na idade, vi claramente que era a força e o preconceito que os condenava a esta horrível escravidão, que a Natureza não tinha nenhum lugar nisto e que o inesgotável e poderoso interesse dos Brancos tudo havia feito”. (Réflexions sur les hommes nègres) [Reflexões sobre Homens Negros] (1788). Mas a escravidão, abolida em 1794, foi restaurada em 1802, para as colônias francesas, alguns anos depois, por Napoleão, atendendo ao lobby colonial. Porém, a França foi dramaticamente derrotada em Sao Domingo. Este país adquiriu a independência e trouxe um fim à escravidão em 01 de janeiro de 1804. Logo após, a Inglaterra baniu a importação de escravos da África em suas colônias em 1807 (Act for the abolition of the slave trade) [Ato para a abolição do comérdio de escravos], e os Estados Unidos a seguiu em 1808. A Inglaterra aboliu completamente a escravidão através do Império Britâncico com o Slavery Abolition Act [Ato da Abolição da Escravidão] de 1833, enquanto a escravidão nos Estados Unidos foi somente abolida em 1865 com a 13 a Emenda da Constituição Norte-Americana. Nas colônias francesas, a escravidão foi re-abolida em 27 de abril de 1848, pelo decreto-lei Schœlcher13, e nesta mesma época, a França começou a colonizar a África. A população nativa na África, em vários países, foi transportada para minas, para florestas e plantações de borracha sob condições de trabalho isoladas e duras, muitas vezes comparadas à escravidão. Comparativamente, Julia Seibert mostrou como homens e mulheres negras estavam sofrendo de trabalho “não livre » no Congo Belga colonial, no começo do século XX (SEIBERT, 2012). Frederick Cooper recentemente publicou reflexões provocantes não somente sobre a natureza da colonização como também sobre o modo de escrever sua história atualmente e sobre o processo de descolonização (COOPER, 2005).14 O volume de Cooper de 2005 é principalmente um 13 O estado francês, sob a Segunda República (1848–1852), comprou os escravos dos colonos (colonizadores brancos; Békés na língua Creole), e os libertou. 14 Prasenjit Duara comentou e discutiu o livro de Frederick Cooper (2005): “To think like an empire”: An essay based on Frederick Cooper's Colonialism in Question: Theory, Knowledge, History”. DUARA, P. History and Theory, 46.2, 2007, 292–298. 18 trabalho interpretativo e sua escrita apresenta interessantes perspectivas comparando situações em ambos impérios coloniais, francês e britânico, distinguindo diferentes contextos legais e sócio-econômicos (COOPER ; BURBANK, 2012). Porém, surpreendentemente, a dimensão de gênero não é considerada por Cooper. Gostaríamos de aprender mais sobre o que aconteceu no Império francês colonial depois da abolição da escravidão, entre fevereiro de 1794 e 1802 e depois de 1848 e se houve alguma mudança no grau de participação das mulheres na vida de sua comunidade, sob as leis, regras e costumes locais coloniais e, se possível, comparar a legislação e a prática com outros regimes coloniais. Uma pesquisa internacional recente editada por Marcel van der Linden oferece conclusões bastante pessimistas sob o título The Long-term Consequences of the Abolition of the Slave Trade [As Consequências a longo prazo da Abolição do Comércio de Escravos] (van der LINDEN, 2011). E mesmo para Pieter C. Emmer, comparando situações, na Inglaterra, França e Holanda e o mercado de trabalho colonial no século XIX, “como sempre, o problema está com os franceses” (EMMER, 2011). A legislação referente às pessoas nativas no Império Francês durante os séculos XIX e XX era específica. O CODE DE L’INDIGÉNAT FRANCÊS,1881 Estabelecido em 1881, o Code de l’indigénat [Código do nativo] era um código legal específico para os povos nativos no Império francês, definindo o modo de governá-los (COQUERY-VIDROVITCH 2007a; 2007b; M’BOKOLO, 2004). Originalmente, a palavra “nativo” significa quem foi gerado no local, ou quem é “do lugar”. Mas o uso que foi feito desta palavra nas sociedades coloniais levou a distinguir entre aqueles que tinham o poder (os colonizadores) que não estavam submetidos a este código, e aqueles que estavam a ele submetidos, os nativos. Este era também um código de penas aplicável apenas aos “sujeitos” do Império Francês, esmagadoramente homens e mulheres nativos das colônias. Incluía um grupo de dispositivos repressivos legais e estatutários somente contra os nativos, aplicado pela administração colonial (ASIWAJU, 1979; MANN, 2009). Este regulamento foi instituído pela primeira vez na Argélia em 1881 e então exportado à maioria dos outros territórios do Império Francês colonial. Seus efeitos no Império Francês colonial nos séculos XIX e XX foram múltiplos. Na realidade, o Código contradizia os princípios básicos da lei penal francesa afirmada durante a Revolução. Concebido como um “modo prático” de impor a ordem colonial, foi frequentemente denunciado como um “monstro legal” por seus contemporâneos. 19 Instituído primeiramente durante a conquista da Argélia, estabelecido pela lei de 28 de junho de 1881, o Code de l’indigénat definia “especiais violações dos nativos”. Duas categorias de cidadãos eram distinguidas: os cidadãos franceses (de origem metropolitana) e os sujeitos franceses, isto é africanos negros, os argelianos, os da Malásia, os das Índias Ocidentais, os de Málaga, etc., assim como os trabalhadores migrantes. Os sujeitos franceses submetidos ao Code de l’indigénat estavam privados da maior parte de sua liberdade e de seus direitos políticos; homens e mulheres conservavam apenas o seu status civil pessoal, religioso e de identidade habitual. Este regime foi estendido à Cochinchina em 1881, Nova Caledônia e Senegal em 1887, Annam Tonkin em 1897, Camboja em 1898, Madagascar em 1901, à Afrique Occidentale Française (AOF) in 1904, e à Afrique Equatoriale Française (AEF) em 1910. Tunísia e Marrocos escaparam do Code de l’indigénat porque estavam sob um regime de protetorado específico. No seu trabalho em preparação, Emmanuelle Saada enfatiza as inter-relações entre a lei e a violência no império colonial francês nos séculos XIX e XX e contribui para uma história mais ampla das incapacidades legais e da lei de “exceções” de regimes de direitos mais amplos no império francês (SAADA, no prelo). Seu estudo está na intersecção da história da lei colonial francesa e da história da lei, conectando a história intelectual e política à análise das práticas administrativas e legais. Considera que o sistema legal pósrevolucionário francês, baseado na universalidade do “sujeito” na situação de dominação colonial, delineava dentro de si mesmo um espaço “fora da lei”, marcado como “temporário” e “excepcional”. Tanto mulheres quanto homens sofriam desta situação até os movimentos de descolonização. Enquanto Frederick Cooper não considerou a dimensão do gênero da questão, Catherine Coquery-Vidrovitch estava fortemente ligada a uma abordagem de gênero da história colonial africana. LEGISLAÇÕES COLONIAIS CONSUETUDINÁRIOS AFRICANOS VERSUS Em 2007, em um número especial do Cahiers d’Etudes Africaines, Catherine Coquery-Vidrovitch editou uma rica coleção de estudos dedicados a legislações e costumes. Investigou o estado da arte e a quantidade de conhecimento acumulado sobre história da lei que considerou o gênero na África. Demonstrou que a presença das mulheres na lei e na justiça era mais estudada e evidenciada em publicações inglesas do que nas francesas (COQUERY-VIDROVITCH 2007a; 2007b). Depois ela comparou pesquisas recentes em 20 todo o continente africano de modo a confrontar as diversas evoluções no Império colonial britânico e em territórios ultramarinos e no Império colonial francês. O assim chamado Grands Coutumiers, coletados pelos oficiais coloniais franceses nos 1930s, constituem importantes e úteis fontes históricas sobre a lei privada, como são, em regiões de fala inglesa, as coleções de julgamentos da corte, e mais tarde, Family codes. Coletados nos arquivos e casos de jurisprudência, os casos da corte são extremamente informativos sobre a posição feminina e sobre os direitos consuetudinário. Três tópicos principais parecem ter sido bem estudados por historiadores da África, até o momento: 1) questões tratando do casamento (inclusive regras de sharî’a e “bruxaria” de mulheres e rituais populares), 2) poligamia, divórcio, relações extramaritais, adultério, herança e 3) a questão do dote brideprice [preço da noiva] (lobolo), algumas vezes impropriamente chamada de dote, que tem um papel principal a fim de se poder compreender como as mulheres nativas africanas levavam em conta as leis sobre a terra e leis trabalhistas e defendiam seus direitos tradicionais à propriedade e ativos. Baseados na perspectiva de Coquery-Vidrovitch, pudemos seguir a evolução básica dos direitos das mulheres da época pré-colonial ao presente, passando através das leis coloniais consuetudinários e as leis coloniais ocidentais. Tomaremos a oportunidade de um encontro internacional futuro na África do Sul para aprender mais sobre o trabalho em andamento nas universidades africanas15. Parece que as mulheres foram habilidosas em distorcer leis que limitavam seus direitos consuetudinários. Realmente, em Madagascar, sabiam muito bem como usar e manipular leis, sob o regime francês, de modo a melhorar suas condições legais com o passar do tempo. Jacqueline Ravelomanana dá exemplos de como mulheres nativas foram bem sucedidas em impor seus costumes matrimoniais tradicionais em Madagascar (RAVELOMANANA, 2012). Sob os sistemas coloniais, as mulheres tentaram o seu melhor para se tornar mais visíveis. O caso das mulheres da Guiné é particularmente interessante, dado o tópico do presente estudo. Encorajadas pro seus líderes, foram pioneiras na luta por sua emancipação e liberdade política. A Guiné foi inicialmente parte do Império colonial francês e da Afrique Occidentale Française (AOF) [África Ocidental Francesa]. AOF era uma federação de territórios coloniais franceses na África (Figura 2). 15 Ver a sessão organizada conjuntamente por Antoinette Fauve-Chamoux, Béatrice Craig e Jacqueline Ravelomanana sobre “Gender, property and legal reforms, 18th-20th centuries”, XVIth World Economic History Congress, Stellenbosch University, South Africa, 9-13 July 2012, uma conferência internacional organizada pela International Economic History Association (IEHA), com The Economic History Society of Southern Africa e The Department of Economics, Stellenbosch University. 21 A federação existiu de 1895 até 1960. Incluiu: 1) Mauritânia; 2) Senegal; 3) Sudão francês (agora Mali); 4) Guiné francesa (agora Guiné); 5) Côte d'Ivoire (Costa do Marfim); 6) Dahomey (agora Benin) e 7) Nigéria. O Volta Superior [Upper Volta], agora Burkina Faso (com a cidade de Ouagadougou como capital) formou a oitava colônia; o Upper Volta francês foi, durante um período, dividido entre os seus vizinhos. O Sudão francês também continha uma larga porção do que é atualmente a parte oriental da Mauritânia.16 MULHERES DA GUINÉ NA POLÍTICA GANHANDO O SEU DIREITO AO VOTO (1958) Através do vasto Império colonial francês, a Guiné (com uma população então de 2.5 milhões de pessoas) foi o único território a votar "Não" á proposição oferecida pelo Président du Conseil Charles de Gaulle quando o Presidente Francês era René Coty.17 A qustão era sobre uma nova Constituição, na Quinta República18 Nas colônias francesas, o referendum também almejava criar uma “Comunidade Francesa” (Communauté Française). A Guiné foi o único país a rejeitar o referendum e alcançar imediata independência.19 Os homens da Guiné votaram pela independência da França e este país deixou a Afrique occidentale française (AOF). Com esta importante mudança política e uma Constituição para a Guiné, as mulheres da Guiné ganharam o direito ao voto (1958). Na época da campanha política para o Referendum, compuseram uma canção expressando conjuntamente a identidade nacional, um voto pela independência e em apoio ao líder da Guiné, Sékou Touré: A Guiné diz “Não” De Gaulle diz “Sim” Devemos votar “Não” 16 Para mapas da situação, recomendamos consultar as seguintes figuras para o continente africano: 1) Mapa da África colonial em 1913 (antes da I Grande Guerra), incluindo as colônias alemãs; 2) Mapa da África colonial depois da II Grande Guerra, depois da partilha das colônias alemãs, com etapas no processo de descolonização (THOBIE, et al., 1990, p. 603); 3) Mapa da África em 1968, com sucessivos passos de descolonização (THOBIE et al., 1990, p. 606-7). A Afrique Occidentale Française (AOF) [África Ocidental Francesa] foi uma federação criada em 1895 que incluía Guiné Francesa (agora Guiné). 17 O referendo de 28 de setembro de 1958 pediu ao povo francês ratificar o projeto de Constituição preparado por um Comitê de Consulta Constitucional e pelo Parlamento sob a égide de Michel Debré e do Presidente do Conselho, General de Gaulle. O referendum tentou também criar uma Comunidade Francesa nas colônias francesas. A Guiné foi o único país a rejeitar o referendum e alcançar a independência. 18 Para a adoção da Constituição Francesa, a questão era: “Você aprova a Constituição que é proposta a você pelo Governo da República?” O povo da Guiné (apenas homens) seguiu as instruções dadas por Sékou Touré e 94.4 % votaram "não". Rejeitaram a Comunidade Francesa. 19 Quando os resultados oficiais foram publicados na França, foram publicados em separado para a Guiné, dizendo que: “A Comissão nacional encarregada de contar os votos especificou: referente ao território da Guiné, a Comissão notou que, por uma maioria de votos, o eleitorado deste território rejeitou a Constituição e, em consequência, recusou a integração à Comunidade A Comissão decidiu, em decorrência, não inserir os resultados deste território nos resultados globais do referendum e fazê-los aparecer à parte”. 22 Camarada Sékou Touré, devemos escolher o “Não” Sim, devemos escolher o “Não,” Sékou Touré Sempre, votamos “Não” (CAMARA, 1979, p. 111). Sem a Guiné, uma nova Constituição republicana foi adotada na França em 04 de outubro de 1958, junto com a Quinta República. Os resultados deste Referendum Constitucional foram uma vitória considerável para o ramo de Guiné do Rassemblement Démocratique Africain (RDA) [Reunião Democrática Africana], um partido político oficialmente chamado Parti démocratique de Guinée [Partido democrático da Guiné]. RDA tinha membros em cada um dos catorze territories da África Francesa Ocidental, África Francesa Equatorial e as Nações Unidas dos territórios de Togo (até 1955) e Camarões (MANNING, 1988; SCHACHTER MORGENTHAU, 1964, p. 400). Enquanto todos os outros ramos da RDA, na África, havia decidido apoiar a política de de Gaulle, o RDA da Guiné, sob a liderança de Sékou Touré (1922-1984), um jovem membro de um sindicato (Union générale des Travailleurs d’Afrique Noire) [União geral dos Trabalhadores da África Negra] que assumira a liderança do Parti démocratique de Guinée em 1952, encontrou o modo de completar uma imediata independência da França, iniciando uma onda de descolonização que, posteriormente, varreu a África. Sékou Touré estudara os escritos de Marx e a vida de Vladimir Lenin e, como primeiro Presidente da Guiné, organizou um regime socialista (KABA, 1988). O bisavô de Sékou Touré, Almamy Samory Touré (1830-1900), um Malinke, havia resistido à colonização francesa na África Ocidental no passado. Havia, na época, escolhido ser muçulmano (BOAHEN, 1990). Na Guiné, as pessoas pertencentes ao grupo étnico Malinke estavam muito engajadas em redes de comércio e suas comunidade muçulmanas associadas haviam conectado diversas partes do que se tornaria a Guiné20 (SCHMIDT, 2005a). No século XIX, os impérios politico-religiosos do líder de Tukulor, El-Hadj Umar b. Said Tall, e o líder Malinke, Samori Touré, reuniram vastos territórios. De acordo com historiadores africanos, a despeito dos esforços dos líderes dos partidos para construir uma nação, rivalidades étnicas e de classe eram permanentes.21. Sékou Touré e seus amigos do movimento nacionalista, tendo já o 20 Povo Jallonkee (Susu, Limba, Landuma, Baga, Bassari) e povo Fulbe (Peul e Tukulor,) que residiam na região de Futa Jallon da Guiné, comerciavam bastante com os povos da costa (SCHMIDT, 2005a, p. 991). 21 Os principais grupos étnicos da Guiné francesa eram: Susu, Baga-Landuma-Mikifore-Nalou, Limba, Peul, Coniagui-Bassari, Malinke, Jallonke, Kpelle-Kissi-Loma (SCHMIDT, 2005a). Para mais dados sobre a história das relações étnicas e religiosas na Guiné, ver Rodney, 1968. Na Guiné, o francês e a língua oficial. 23 apoio das massas rurais, tentou deliberadamente uma ampla aliança com as mulheres populares da Guiné. O crescente papel das elites educadas no Ocidente era muito contestado nas bases. Mas os historiadores consideram que o legado da interação política, econômica, religiosa e cultural unia os habitantes da Guiné entre si. Para Eric Hobsbawm, os moradores da Guiné tinham « a consciência de ter pertencido a uma entidade política duradoura» (HOBSBAWM, 1990). Prasenjit Duara, de uma perspectiva comparativa, realizou uma proposta similar para a China, Índia e Japão pré-modernos (DUARA, 1996). Usando a variedade das fontes documentais e orais, Elisabeth Schmidt atribuiu o extraordinário sucesso da Reunião Demográfica Africana à sua capacidade de formar uma ampla aliança étnica, classe e de gênero, cuja força estava enraizada em seu apoio entre as massas não-alfabetizadas, principalemente mulheres. Considerando as disputas locais quanto a etnicidade, classe e identidades de gênero, Schmidt reinterpreta a história nacionalista da Guiné e seus movimentos anticoloniais com uma abordagem “de baixo para cima” (SCHMIDT, 2005a; 2005b). As mulheres da Guiné foram consideradas como formando uma categoria quasi autônoma dentro do movimento nacionalista (BAYART, 1981). Adotando o conceito de Bayart de uma “ação de baixo para cima” popular, E. Schmidt analisou o ativismo político das mulheres lojistas, costureiras e camponesas como parcialmente conservador e parcialmente transgressivo. Elas se uniam ao movimento como mães e esposas, respondendo à chamada explícita da RDA, e mais tarde influenciaram os objetivos do partido assim como os métodos de ação escolhidos, especialmente após a greve de 1953 (SCHMIDT, 2005b). Mulheres que compuseram canções que traziam a mensagem através do território não eram alfabetizadas. Se fosse criada uma nova canção, todas as mulheres a aprendiam e a cantavam em conduções coletivas, ensinando uma à outra durante a manhã, quando estavam indo ao mercado. Quando havia um evento politico, uma das líderes do partido vinha ao mercado com a canção para ensiná-la às outras mulheres. A administração colonial tentou duramente por todos os meios quebrar a contestação popular. O anúncio oficial de Barry Diawadou como o vencedor e de Sékou Touré como o perdedor das eleições de 1954 criou muita raiva contra o estado colonial, particularmente entre as mulheres populares que prepararam slogans subversivos e canções de protesto que cantavam nos mercados, dizendo que as autoridades coloniais haviam fraudado as eleições (CAMARA, 1979; SCHACHTER-MORGENTHAU, 1964; SURET-CANALE, 24 1964a, 1964b, 1971).22 “O partido único roubou nossos votos”. As mulheres não podiam votar, mas cantavam: “Olhem, povo, para a RDA Olhem, povo, para a RDA Mulheres da RDA, uni-vos Ria comigo, Touré Ria comigo, Touré” (SCHMIDT, 2005a, p. 1010). Uma interessante foto foi tirada em 1954 no mercado de Conakry mostrando atividades comerciais destas mulheres ativistas23 (Figure 3) e outro documento da mesma época mostra as mulheres de Malinke trabalhando em atividades têxteis em casa, na frente de suas casas, em sua comunidade no vilarejo e com seus membros familiares, velhos e jovens (Figure 4). Em certas ocasiões, algumas mulheres usavam os uniformes do grupo RDA e que se referiam a símbolos.24 Participavam da reorganização do partido, e tentavam mudar a hierarquia sexual: formando milícias, algumas mulheres se vestiam como homens e adotavam algumas novas maneiras de comportamento como se, de algum modo, outras formas de transgressão já existiam antes da colonização (RIVIÈRE, 1968). Entrevistada em 08 de abril de 1991 por Idiatou Camara, recordando o dia em que ela foi recrutada para o partido RDA, Aissatou N’Diaye, de origens TukulorSenegalesa (não do grupo Malinke, mas definitivamente uma mulher muçulmana convicta), lembrou que ela e uma amiga haviam sido chamadas para uma reunião com Sékou Touré: “Na nossa chegada, ele nos pediu para ajudá-lo a mobilizar mulheres… Também disse que não tinha nada material, nenhum dinheiro ou ouro, para oferecer em troca. Se as mulheres o ajudassem, fariam isto pelo amor de Allah, seu Enviado, e por sua causa … Pediu-nos para fazer este trabalho em nome de Allah e de seu Profeta, Maomé” (SCHMIDT, 2005a, p. 995, citando CAMARA, 1979). Se a mobilização política das mulheres da classe trabalhadora da Guiné não resultou realmente em uma emancipação completa, além de ganhar no final o grande 22 Com as eleições territoriais de 1957, Sékou Touré foi eleito Presidente do Conselho. O Parti démocratique de Guinée (PDG) se tornou então o único partido da Guiné. 23 Ver fotos tiradas em 1954 no mercado Conakry e mulheres de Malinke fiando e tingindo roupas. Reproduzido por permissão de FR.CAOM. Aix-en-Provence (SCHMIDT, 2005a, pp. 1008 & 1011) (Figures 3 e 4). 24 O uniforme da RDA era uma roupa djellaba branca da Guiné, com um boné branco para os homens (SCHMIDT, 2005a, p. 978 & 994). O símbolo do partido era o elefante. 25 direito ao voto, papeis tradicionais de gênero foram certamente mudados nos anos 1950s, nesta sociedade em sua maioria muçulmana. Na França, em contraste, a secularização da sociedade estava massivamente progredindo, mas levou um longo tempo para as mulheres ganharem o direito ao voto. LUTAS DE MULHERES FRANCESAS NO ENTREGUERRAS PELO SUFRÁGIO E RESPONSABILIDADE POLÍTICA Na França, depois de 1900, membros do parlamento prepararam projetos que permitiriam o sufrágio às mulheres, mas todas as propostas foram interrompidas pelo Senado. Grupos de mulheres, chamadas “suffragettes”, formaram associações e começaram a clamar pelo direito ao voto (Figure 5). Entre1919 e 1936, a Chambre des députés [Câmara dos deputados] propôs várias vezes o voto para mulheres, mas o Senado nunca registrou a questão em sua agenda25. Nascida em 1893, no Norte da França, Louise Weiss era uma jornalista engajada em lutar pela igualdade dos direitos civis e políticos para as mulheres e homens. Ela militou ativamente pelo voto das mulheres. Em 1934, fundou a associação “La Femme nouvelle” [A nova mulher]. Foi uma candidata simbólica às eleições 1935 e 1936 em Paris, e organizou várias ações espetaculares, pretendendo atrair a atenção da imprensa (BERTON, 1999). Em 06 de outubro de 1934, abriu uma loja para mulheres no Champs-Elysées e colocou na vitrine um mapa do mundo com um grande cartaz: “Mulheres americanas votam, mulheres inglesas votam, mulheres chinesas votam... Mas mulheres francesas não votam” (BERTON, 1999). Em 1935, no dia das eleições municipais, Louise Weiss se acorrentou à coluna da Praça da Bastilha com outras mulheres ativistas e discursou para a multidão (Figura 6): “este lugar evoca para nós o Antigo Regime e a Declaration des droits de l’homme. Esta nobre e tão conhecida Declaration é, na realidade, uma obraprima de egoísmo: os autores apenas esqueceram das mulheres” (WEISS, 1970, p. 89). Em 02 de junho de 1936, na frente do Senado, Louise Weiss, com ativistas de seu grupo, La femme nouvelle26 [A 25 Para mais informação sobre a história das mulheres francesas como cidadãs, ver o web site oficial: www.assembleenationale.fr Após a II Grande Guerra, uma vez o direito ao voto existindo para as mulheres, Louise Weiss prosseguiu sua atividade como uma jornalista. Comprometeu-se, então, para a paz e para a construção da Europa. Morreu em 1983, aos 90 anos de idade. Casou-se em 1934, mas se divorciou dois anos após. Sobre o fracasso de sua experiência marital, ela claramente concluiu que o divórcio, se não família, trouxe sua liberdade “De tudo, pela falta de felicidade, o casamento e especialmente o divórcio me trouxe um status civil que 26 26 nova mulher] ofereceu aos senadores pares de meias com a inscrição: “mesmo se vocês nos derem o direito ao voto, os buracos em suas meias serão consertados”. Em 1936, com o governo da Front Populaire [Frente Popular], três mulheres foram designadas por Leon Blum como vice-secretárias do Estado27, entre elas estava Suzanne Lacore, encarregada da proteção às crianças (Figure 7). Louis Weiss foi abordada por Blum, mas declinou do convite, pois, disse:28 “Lutei para ser eleita, não para ser indicada”. Em 1942, durante a II Guerra Mundial, o General de Gaulle declarou que “logo que o inimigo for expulso do território, todos homens e todas as mulheres de nossa França29 elegerão a Assembleia Nacional,” e, em 21 de abril de 1944, antes da França estar liberada da ocupação alemã, ele ratificou um texto proposto pelo Governo Provisório da República Francesa situado em Algiers, cujo artigo 17 declarava o voto das mulheres e institucionalizava sua elegibilidade: as mulheres foram declaradas eleitoras e elegíveis segundo as mesmas condições dos homens. Finalmente, as mulheres votaram pela primeira vez na França em 29 de abril de 1945 para eleições municipais e, mais tarde, em 21 de outubro de 1945, para “eleições gerais”, referente à Assembleia constituinte e a um Referendum30 (Figure 8). Mas notamos que é apenas em 1989 que uma mulher, Catherine Trautmann, tornou-se uma prefeita de uma grande cidade, Strasbourg, e somente em 1991 que uma mulher se tornou Primeira Ministra, Edith Cresson. CONCLUSÃO No início da Europa moderna, as mulheres nunca estiveram restritas à esfera privada. Todas as mulheres, rurais ou urbanas, transmitiam conhecimento, normas culturais e valores simbólicos, e tinham um amplo acesso à esfera pública, de acordo com as regras locais de suas comunidades sociais. Podiam circular sozinhas, comprar ou vender mercadorias no mercado, simplesmente sair para visitar pessoas da família e parentes, trabalhar fora de casa, diariamente ou, quando não havia um esposo (sendo solteira ou viúva), estar empregada por meses ou anos em uma casa privada ou em uma instituição. Uma vez casada, tinham de escolher um trabalho compatível com a vida familiar e suas responsabilidades, mas podiam ter facilitou minha experiência e me abriu possibilidades sentimentais que, sem ter passado por estes eventos, eu não teria tido. Assim, não paguei muito caro por estes acontecimentos infelizes” (WEISS, 1970, p. 16). 27 Suzanne Lacore estava encarregada da proteção às crianças (Figura 7), Irène Joliot-Curie encarregada da pesquisa científica e Cécile Brunschvicg, encarregada da educação, que era uma amiga próxima a Louise Weiss, e também de origens judaicas. 28 Em francês: “J'ai lutté pour être élue, pas pour être nommée”. 29 Em francês : “les hommes et les femmes de chez nous”, o que significa que, nas colônias, os nativos seriam ainda excluídos. 30 Para este Referendum de 21 outubro 1945, duas questões foram perguntadas: 1/ Necessita-se de uma nova constituição? (Faut-il une nouvelle constitution?) e 2/ É necessário limitar os poderes de uma Assembleia constituinte eleita simultaneamente? (Faut-il limiter les pouvoirs de l’Assemblée constituante élue simultanément ?) Referente ao equilíbrio quanto ao gênero na Assembleía, em 1945, apenas 5,6 % dos deputados eleitos eram mulheres. 27 ajuda doméstica paga ou não paga seja para lidar com crianças pequenas ou cuidar de membros familiares doentes e/ou dependentes. Contudo, a presença feminina na política era rara. As mulheres não eram iguais aos homens e não votavam. Na maioria dos países ocidentais, como nos países com uma história colonial, o sufrágio feminino foi concedido após uma longa luta. Na maioria dos países, as mulheres não puderam votar até alguma época do século XX. Na França, a mudança referente ao direito ao voto ocorreu em 1944. As mulheres francesas votaram pela primeira vez em 1945 e puderam entrar no Senado em 1946. Anteriormente, as mulheres se reuniriam ocasionalmente para protestos por alimento ou outros assuntos. Na época da Revolução Francesa, algumas feministas pioneiras como Olympe de Gouges na França (ou Mary Wollstonecraft na Inglaterra) começaram a publicar ensaios (Declaration of the Rights of Woman and of the Female Citizen, 1791, para a primeira; A Vindication of the Rights of Woman, With Strictures on Political and Moral Subjects, 1792, a fim de unir debates abertos e ação política, clamando por direitos iguais para homens e mulheres. Para os países sob o regime colonial francês, historiadores estiveram estudando muitas questões como direitos das mulheres e sua presença nas cortes jurídicas segundo os arquivos locais. Mais precisa ser realizado para comparar o nível da participação feminina na vida política sob constituições coloniais específicas. Seria interessante explorar mais, numa perspectiva comparativa, em que medida as mulheres nativas foram ativas na política, em movimentos nacionalistas e nos processos de descolonização. Na África colonial francesa, as mulheres da Guiné formaram uma categoria específica e quasi autônoma dentro do movimento nacionalista, levando a uma precoce descolonização (LOCOH, 2001). Escolho apresentar sua ação e mentalidade nos anos 1950s como um estudo de caso, no presente artigo, dadas suas especificidades culturais e religiosas. Porém, as mulheres da Guiné parecem ter sido amplamente manipuladas por homens políticos e por líderes do partido nacionalista de seu país. O espetacular movimento politico das mulheres populares terminou na Guiné em setembro de 1958, com a independência. Significativamente, a maioria das mulheres da Guiné que, na época, estiveram comprometidas com a ação política nos anos 1950s, recusou posteriormente a comentar este período de suas vidas, quando estiveram ativas fora da casa, dando apoio ao líder Sékou Touré em nome de sua nação e em nome de Allah (CAMARA, 1979). Em contraste, na França, figuras independentes individuais, como Louise Weiss, certamente não foram manipuladas e usaram a mídia para alcançar sua meta: obter 28 igualdade de direitos civis e políticos para as mulheres e, no final, o direito de voto para cidadãs mulheres francesas (1944). O direito ao voto foi garantido às mulheres francesas um século e meio após que a Revolução Francesa de 1789 proclamou: Liberdade, Igualdade, Fraternidade [Liberté, Egalité, Fraternité]. REFERÊNCIAS ASIWAJU, Anthony I., 1979, «Control through coercion, a study of the indigenat regime in French West African Administration, 1887-1947», Bulletin de l'IFAN, Dakar, 41 (1), pp. 35-71. AUBAUD, Camille, 1993, Lire les femmes de lettres, Paris, Dunod. BAYART, Jean-François, 1981, « Le politique par le bas en Afrique : questions de méthodes », Politique africaine, 1, pp. 5382. BERTIN, Célia, 1999, Louise Weiss, Paris, Albin Michel. 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I decided to explore the question in two directions. My first part will explore the presence and actions, in early modern France, of women related to French Revolution movements. The second part will concern the degree of political participation of women of the French Empire, under the French colonial constitution (Code de l’indigénat), focusing on French West Africa. I selected, as a case study, what happened in Guinea during the mid-20th century, when women played an important and unique political role in this new African independent and socialist state. LOOKING FOR ACTIVE WOMEN IN ARCHIVES AND HISTORICAL LITERATURE As a female historical demographer and social historian, I observed thousands of female births, marriages and deaths in early-modern parish registers, before the French Revolution took place in 1789. Married women worked as mothers and house keepers, raised children and looked after ageing people, but they also produced goods and merchandise on the market. Women paid taxes as single women or widows. In censuses, they were mentioned as members of their household or heads of household with or without an occupation, business or social status declared. They ruled houses, were running farms, sold on the streets and bought on various markets, worked in shops, at home, or were domestic servants in private houses or institutions. Women were mentioned in notarial records, signed (or not) their marriage contracts or a will, transmitted properties to children or to other people (kin or not). They also transmitted knowledge, cultural norms and symbolic values. Some had problems with various courts of justice. But female presence in politics was rare, mostly inexistent. Certainly, in some rural and urban contexts, they appear on fiscal roles and even on the lists of the militia, when, being heads of household, they were expected to answer to the requisitions of the municipal authorities, as in early modern Rheims Champagne city (Fauve-Chamoux, 2000). According to Regine Pernoud, before 1498, in the urban assemblies or rural districts of the French kingdom, women, 36 when they were heads of their family, being single or widow, possessed the voting right (Pernoud, 1980).31 This was to elect representatives of the guilds of craftsmen, or storekeepers, or to elect local inhabitants to some municipal responsibility. Noble widows endowed with a fief and religious abbesses could vote for representatives at the États Généraux. Studying gender roles in 16th century Lyon, a large and prosperous French town, Natalie Z. Davis considered that some women were occasionally politically visible in the public life of their city. But it had never been to the point however that they could become a member of the Assembly of inhabitants or part of the municipal Council (Davis, 1979, p. 120). But this was different in some Pyrenean communities, where women could be heiresses, and represented their “house” and family at the General Assemblies of the village, if they were heads of household, being a widow or single (FauveChamoux, 2002). Some female reformers, revolutionaries and early feminists appeared during the 18th century, the time of enlightenment, in 1) their quest for freedom, individual choice, sexuality, parenthood, 2) their quest for political, national, cultural identity – including religion – and 3) their fight for social rights and education. Until the development of women’s history as an academic discipline in the 1970s, women who tried to resemble men were subjects of attention. Some were suspected to be homosexual and were called Amazons or Lesbians (Blanc, 2003; DeJean, 1989). In the last decades of the 20th century, female historians succeeded in putting women in the light. Women appeared as owners, producers, being peasant wives, artisans in shops, cottage industry and factory workers. They had some economic, family or community power; they transmitted material and non material assets (skills, culture, language and secrets) at various levels of societies. But women as a force in politics remained hardly visible (Bridenthal and Koonz, 1977; Hufton, 1992, 1997), even when they were not always restricted to the private sphere and totally submitted to some male domination (Sogner, 1988). We would like to consider now women who took part in the French Revolution, women from the working class who expressed themselves in the streets, but also educated women who launched feminist ideas. 31 During the early Ancien regime, for adult French women, the right to vote, when head of household, was suppressed by a royal edict registered by the French Parliament in Paris in 1498. Later, another edict, in 1593, also registered by the Parliament of Paris, forbad any woman to take an official occupation or office for the State, as a civil servant. 37 WORKING CLASS WOMEN REVOLUTIONARY DEBATES AND FRENCH On 5 October 1789, a group of Parisian women organized themselves and marched on Versailles, residence of King Louis XVI, 15 miles away. They were angry over the high price of bread. On the way, men joined. They reached Versailles at 4 o’clock, gained an audience with the king. He agreed to their demands about food prices and he accepted to return to Paris, provided he could bring his family members. Jacques Louis David (1748-1825) painted such a typical working woman of the time, a « femme du peuple de Paris », a maraîchère woman growing and selling fresh vegetables on the market.32 After this October 1789 episode, a group of women presented to the National assembly a petition proposing a decree giving women equality. The Declaration of the Rights of Man and the Citizen had been adopted on 26 August 1789 by the Assemblée nationale constituante [the National Constituent Assembly]. It made a strict distinction between French citizens who had full political rights and those who did not.33 Those who were deemed to hold full political rights were called “active” citizens. They must be French males, at least aged 25 years old, paid taxes equal to at least three days work, and could not be defined as servants (Thouret, 1996). This means that women, children, minors, poor people, slaves, foreigners, servants34 and many others were deprived of political rights. The concept of “passive citizens” was then forged to encompass those populations that had been excluded from political rights. Adult women were proud to be “citoyennes”, but they had no right to vote. During the French Revolution, many women used to follow political debates while knitting (citoyennes tricoteuses) for merchants. The year 1793 was marked in Paris by a strong political commitment of working women stemming from popular circles in the fight against the Girondist party and the moderate. We find them knitting woollen socks or stockings in the public stands of the meetings of Paris “sections” or the Convention35 assembly, besides the sans culottes, defending the action of the Jacobins leaders.36 Knitting socks and stockings was for them a regular job, a proto-industrial 32 A famous portrait painted by Jacques Louis David is preserved in Lyon, Musée des Beaux-Arts, often called “The fishwoman”. On 29 September 1789, Jacques-Guillaume Touret, presented a report “on the Basis of Political Eligibility” for the Constitutional Committee of the National Assembly (Touret, 1996). It constituted main basis for subsequent legislation on qualifications for voting. 34 To be considered as an “active citizen”, it was necessary “to not be at the moment a servant, that is to say, in personal relationships that are all too incompatible with the independence necessary to the exercise of political rights” (Touret, 1996, p. 82). 33 35 The Convention was the first elected Assembly of the First Republic (1792–1804). See estampe by Pierre-Etienne Lesueur, « Les tricoteuses jacobines ou de Robespierre », Musée Carnavalet, Paris, Réunion des Musées Nationaux (Figure 1). A large number to these women received 40 pence a day to come to the stand of the Jacobins and applaud the revolutionary motions, Year 2” [1793-1794]. 36 38 activity. Merchants gave them raw material (here balls of wool) and ordered work to be done. At the same time, some women received a little financial support from the Jacobins Club for spending hours listening to the debates and acting as devoted supporters of the revolutionaries: the Jacobins gave women 40 sols a day for sitting and standing in the gallery to applaud the revolutionary motions, which is attested by an illustration of the time [Figure 1]. In no way they were losing their working time. In the French provinces, women organized discussion groups called “Clubs” or “Societies for women” (see map in Godineau, 1988, p. 114). These were more middle class women, wives of local men active in the revolutionary movements. They engaged in social actions and news dissemination. They also discussed the project concerning divorce (the law allowing divorce in France was promulgated on August 30th, 1792).37 Mirabeau, the famous revolutionary figure said: «without the women there would have been no revolution"38 (Aubaud, 1993). Nevertheless some women paid with their life what they expressed in words or action in favour of the recognition of women’s rights, when they defended vulnerable people and were engaged against slavery. Such was the case of Olympe de Gouges, who was sent to the guillotine in 1793. OLYMPE DE GOUGES (1748-1793) AND THE DECLARATION OF THE RIGHTS OF WOMEN (1791) “Marie Gouzes”, born Manon Philipon39 and went by Olympe de Gouges (1748-1793) was a French writer and early feminist. Born in 1748, in a family of Montauban, a French south-western provincial city, she was the daughter of a master artisan and her mother was the daughter of a rich textile merchant/fabriquant (maître tondeur de draps). One of the rumours that circulated about her origins was that her mother had been the mistress of marquess Jean-Jacques Le Franc of Pompignan, playwrite. She received a good education in Montauban (Lacourt, 1900). Aged 17, in 1765 she married Louis-Yves Aubry, a catering officer serving for the house of Gourgues, a noble family. After three years of marriage and a child, a son, she deserted her husband and went to Paris – where her sister was living – looking for celebrity. She 37 On August 30th, 1792, the French legislative Assembly declared that marriage could be solved by divorce. It rehabilitated divorce, a legal category existing under Roman law that Catholic Canon law had suppressed. The law authorizing the divorce in France was adopted on September 20th, 1792 by the National Assembly and modified by decrees of 1793 and 1794. Divorce was included in the Napoleonic Civil code of 1804, but later suppressed under the Restoration political regime by the law of 8th May, 1816. After decades of debates, divorce was restored only at the end of the 19th century, under the Third French Republic, with the law of July 27th, 1884 (Fauve-Chamoux, 2001) 38 The Comte de Mirabeau, born 1749, while a noble man, was elected in 1789, at Aix-en-Provence as a delegate of the Tiers-Etat. He died from illness on 2 April 1791, while being Chair of the Assemblée Nationale (elected on 30 January 1791). 39 Olivier Blanc rectified numerous erroneous assertions concerning Olympe de Gouze’s life and family origins (Blanc 2003). 39 changed her name to Olympe de Gouges, organized a theatre and became a successful female writer. In September 1785, she was sent to jail in Bastille, for an anti-esclavagist theater drama, entitled L’esclavage des Noirs (Chalaye and Razgonnikoff, 2006), later published in 1792 under the title: L’esclavage des Noirs ou l’heureux naufrage. Inspired by the Déclaration des droits de l’homme et du citoyen [Declaration of the Rights of Man and of the Citizen] adopted on 26 August 1789 by the French National Constituent Assembly, Olympe de Gouges published the Déclaration des droits de la Femme et de la Citoyenne [Declaration of the Rights of Woman and of the Female Citizen] in 1791, constructed as a strict parallel of the 1789 Déclaration, with the same number of articles. The first page was an introduction (Preambule), stating as follows: “Mothers, girls, sisters, all representatives of the nation, ask to be represented in the National Assembly. Considering that the ignorance, the oversight or the contempt of women rights are the only causes of the public misfortunes and the corruption of the governments, we resolved to expose in a solemn declaration, the inalienable and sacred natural rights of the woman, so that this statement, constantly present to all members of the society, reminds them ceaselessly their duties, so that the acts of the power of the women, and those of the power of the men will be able to be compared all the time with the purpose of any political institution, and therefore more respected, so that the complaints of the citizens, based henceforth on simple and indisputable principles, always turn in the preservation of the constitution, the good customs, and in the happiness of all.” Consequently, the sex which is superior in beauty as in courage in the maternal sufferings, recognizes and declares, in presence and under the auspices of the Supreme Being, the following rights of the Woman and the Citizen.” (Preambule, Declaration of the Rights of Woman and of the Female Citizen, 1791)40 . Olympe de Gouges was a pioneer when she asked for the institution of divorce – first and only right conferred to the women by the Revolution41 – which was adopted at the 40 41 Translation by Antoinette Fauve-Chamoux, from the French. See above, note 7. 40 instigation of the Girondist party, a few months later. She also asked for the abolition of religious marriage and its replacement by civil marriage, a contract signed by cohabiting sexual partners. She suggested that children born from consensus unions could be recognized by their parents as legitimate. All this was really revolutionary at the time, even when Gouges fought for free paternity search and recognition of children born out of wedlock. One of her calendar entries attests to a new system of mother and child health care within a welfare state (see Lettre au Peuple ou projet d’une caisse patriotique, par une citoyenne, septembre 1788). Horrified by the level of maternal mortality in urban hospitals, she suggested the creation of specific maternity hospitals (Mousset, 2003). OLYMPE DE GOUGES: A COURAGEOUS AND FATAL POLITICAL COMMITMENT Olympe proposed seventeen articles in her Declaration of the Rights of Woman and of the Female Citizen (1791), mirroring the seventeen articles of the Declaration of the Rights of Man and of the Citizen, beginning, as mentioned above, with a Preambule, and ending with a Postambule. Article X is particularly interesting, given that, condemned to death, she later died in Paris on November 6th, 1793, executed by the guillotine. “A woman has the right to mount the scaffold; she must equally have the right to mount the rostrum, provided that her demonstrations do not disturb the legally established public order” (Article X, Declaration of the Rights of Woman and of the Female Citizen, 1791). Olympe de Gouges claimed for women their right to participate in political life and universal suffrage. On 3 July, 1790, Nicolas de Condorcet had already proposed, without success, to give the right to vote to women in an article of the Journal de la société de 1789 (Condorcet, 1790). His argument was42 that: “It would be necessary to prove that the natural rights of women are not exactly the same as those of men or to show that women are not capable of exercising them, which is unbearable.” (Sur l'admission des femmes au droit de cité, 3 July 1790). And, other than the institution of divorce (August 30th, 1792), already mentioned, Olympe’s feminism encouraged the adoption of several other official decrees which aimed at 42 «Il faudrait prouver que les droits naturels des femmes ne sont pas absolument les mêmes que ceux des hommes ou montrer qu'elles ne sont pas capables de les exercer, ce qui est insoutenable.» 41 improving the condition of women and recognizing their rights (Siedziewski, 1998). By comparison, Mary Wollstonecraft, an English-Irish feminist, may seem rather set back, with regard to the conquering and courageous position of Olympe de Gouge. Wollstonecraft published in 1792 A Vindication of the Rights of Woman, With Strictures on Political and Moral Subjects, immediately translated into French (Wollstonecraft, 1792a & 1792b) where she was seeking “to persuade women to endeavour to acquire strength, both of mind and body, and to convince them that the soft phrases, susceptibility of heart, delicacy of sentiment, and refinement of taste, are almost synonymous with epithets of weakness” (Mary Wollstonecraft, 1792). In this essay, the author insisted on the equality between men and women, particularly for access to education, but not much on the possible role of women as political actors, even if she claimed that civil and political rights belonged to both sexes. A Vindication of the Rights of Woman is considered in England as the first feminist book, written by a woman. It was immediately disseminated in France as « Défense des droits de la femme » – a title more neutral in French than in English43 (Wollstonecraft, 1792b) –, and published also by Peter Edes in Boston. Actually, Mary Wollstonecraft (17591797) lived in Paris for a while in 1792, and therefore was inspired by Olympe de Gouge. Mary was a witness of Robespierre’s politic of Terror. It would be interesting to check to which extent Mary was in personal contact with Olympe, who was a celebrity of the time. Anyway, if she did not take much risk in this writing, from her experience in Paris, upon her return to England, Mary Wollstonecraft later published An historical and moral view of the origins and progress of the French Revolution and the effect it has produced in Europe (1794). In Mary’s view, the political sphere did not constitute the privileged place where an emancipation of women could take place while, for her part, Olympe de Gouge went to the end of her political commitment. In her essays of spring 1793, Olympe denounced the increase in power of the dictatorship from the mountain party, expressing the dangers of dictatorship particularly with the implementation, on April 6th, 1793, of a Committee of public safety (Comité de Salut Public), which could send members of parliament to prison. After the indictment of deputies of the Girondist party in the Convention Assembly, on June 2nd, 1793, Olympe protested with vigour, which was considered against the law of March, 1793 allowing severe repression of the writings questioning the republicans. Olympe was arrested and condemned to death by the Revolutionary Court, in August 1793. She was finally executed 43 The French word “défense” is softer than “vindication”. 42 and died on the scaffold, 6th November, 1793. She paid her action in politics with her life, but many social changes that she proposed contributed later to improvements of the human condition within human society, men and women together. She did not die for nothing. In particular, slavery was abolished in France in 1794, after her death, and, for sure, Olympe de Gouges had been an ardent advocate of abolition. ABOLITION OF SLAVERY IN FRANCE (FEBRUARY 1794): A VERY LONG STORY At the end of seventeenth century, following JeanBaptiste Colbert, his prime minister, King Louis XIV had regulated the conditions of slaves with the Code Noir (1685) that applied only to the French colonies because slavery had been abolished in Metropolitan France since the 14th century44; any slave brought to Metropolitan France would be immediately considered free (Niort, 2007). The Code Noir of 1685 regulated the civil status of slaves, recalling at the same time dispositions taken by Louis XIII by his edit of 23 April 1615 against Jews and stating obligation for slaves to be Catholics and baptised. Articles 9 and 13 fixed the slaves’ civil status and how it was transmitted to children. Slavery condition was hereditary. Children of slaves were born slaves and they could not get married without the authorization of their respective masters (article 11). Women benefited from specific rights: a female slave who married a free man became immediately free and her future children were all free. A free woman who married a slave would give birth to free children. On the other hand, if children were born from illegitimate unions, they would be slaves. Any child born to a slave belonged to the master of the slave mother if the master of the husband was not the same person. The slave family was protected in principle, provided that the slave parents were legally married by a catholic priest: slave husband and wife, and their children below the age of puberty, if they were under the power of same master could not be seized and sold separately: let us declare invalid seizures and selling which could occur (Code Noir, 1685, article 47). With the French Revolution, on April 4th 1792, all free colored people were granted full citizenship. The revolt of slaves in the largest French colony of St. Domingue island in 1791 had marked the beginning of the Haïtian Revolution led by Toussaint L’Ouverture. After this revolt, the institution of slavery was first abolished in St. Domingue in 1793 by Sonthonax, who was the Commissioner sent to St. Domingue 44 On 13 July 1315, the king of France, Louis X le Hutin, by royal edit, proclaimed that, according to natural law, anyone is born free [selon le droit de nature, chacun doit naître franc]. Since then, any slave setting foot on the French ground should be freed [le sol de France affranchit l’esclave qui le touche]. 43 by the Convention, in order to safeguard the allegiance of the population to revolutionary France. On 4th of February 1794, the Convention, under the leadership of Maximilien Robespierre, abolished slavery in France and in its colonies. Abbot Grégoire and the Society of the Friends of the Blacks (Société des Amis des Noirs), in the hands of Jacques Pierre Brissot, had been active in the abolitionist movement which had laid important groundwork in building an anti-slavery action. The first article of this law stated that “slavery was abolished” in the French colonies, while the second article stated that slave-owners would be indemnified with a financial compensation for the value of their slaves. The Constitution of France, passed later by the Convention on 22 August 1795, established the Directory government. The Declaration of the Rights of Man and the Citizen had to include that slavery was abolished. As mentioned above, in September 1785, Olympe de Gouges had already been sent to jail in Bastille, for an antiesclavagist theater drama, entitled L’esclavage des Noirs [The Slavery of Blacks], later published in 179245. Moreover, Reflections on the Negros men (1788), was an essay also published by Olympe de Gouges, which had allowed her to become a member of the Société des Amis des Noirs. As an abolitionist, she was later posthumously mentioned by Abbot Grégoire, in the “List of the brave Men” (sic) who pleaded the cause of the “unfortunate Blacks” (1808). Before the Revolution, she had written: “The sort of Negros, always interested me in its pitiful fate. Those whom I could question never satisfied my curiosity and my reasoning. They are treated brutes, beings which the Sky had cursed; but by moving forward in age, I saw clearly that it was the strength and the prejudice which had condemned them to this horrible slavery, that the Nature had no part in this and that the inequitable and powerful interest of the Whites had made everything.” Réflexions sur les hommes nègres [Reflections on the Negros Men] (1788). But slavery, abolished in 1794, was restored in 1802, for the French colonies, a few years later, by Napoleon, giving up to the colonial lobby. But France was dramatically defeated 45 According to her Préface – where she explains her argument –, Olympe de Gouges sent the text of her theatre drama in 1783 to the Comédie Française, under the title L’esclavage des Noirs, which was first printed in 1786, represented in December 1789 and reprinted with a Préface in 1792 (Gouges, 1792). The text of the manuscript given on December 28th, 1789 to the prompter man, before the performance, was preserved in the collection of the Comédie-Française in Paris. This censored version has been recently published for the first time (Gouges, 2006). 44 in Saint-Domingue. This country achieved independence and brought an end to slavery on 1st January 1804. Soon later, Britain banned the importation of African slaves in its colonies in 1807 (Act for the abolition of the slave trade), and the United States followed in 1808. Britain fully abolished slavery throughout the British Empire with the Slavery Abolition Act of 1833, while slavery in the United States was only abolished in 1865 with the 13th Amendment to the U.S. Constitution. In the French colonies, slavery was re-abolished on 27 April 1848, by the decree-law Schœlcher46, and about the same time, France started colonising Africa. The Native population in Africa, in several countries, was transported to mines, forestry, and rubber plantations under isolated, harsh working conditions, often compared to slavery. Comparatively, Julia Seibert has shown how black men and women were suffering from “unfree” labor in Belgium colonial Congo, at the beginning of the 20 th century (Seibert, 2012). Frederick Cooper recently published provocative reflections not only on the nature of colonialism but also on the way of writing its history nowadays and about the process of decolonization (Cooper, 2005).47 Cooper’s 2005 volume is principally an interpretive work and his writings present interesting overviews comparing situations in both French and British colonial empires, distinguishing different legal and socio-economic contexts (Cooper and Burbank, 2012). But, surprisingly, the gender dimension was not considered by Cooper. We would like to learn more about what happened in the French colonial Empire after the abolition of slavery, between February 1794 and 1802 and after 1848 and whether there was any change in the degree of participation of women in the life of their community, under colonial laws, rules and local customs and, if possible, compare legislation and practice with other colonial regimes. Recent international research edited by Marcel van der Linden offer rather pessimistic conclusions under the title The Long-term Consequences of the Abolition of the Slave Trade (van der Linden, 2011). Even, for Pieter C. Emmer, comparing situations, in Britain, France, the Netherlands and the colonial labour market in the 19th century, “as always, the trouble is with the French” (Emmer, 2011). The legislation concerning the native people in the French Empire during 19th and 20th centuries was specific. THE FRENCH CODE DE L’INDIGENAT, 1881 46 The French state, under the Second Republic (1848–1852), bought the slaves from the colons (white colonists; Békés in Creole language), and freed them. 47 Prasenjit Duara commented and discussed Frederick Cooper 2005 book: “To think like an empire”: An essay based on Frederick Cooper's Colonialism in Question: Theory, Knowledge, History”, History and Theory, 46.2, 2007, 292–298. 45 Established in 1881, the Code de l’indigénat was a specific legal code for the native people in the French Empire, defining the way of governing them (Coquery-Vidrovitch 2007a; 2007b; M’Bokolo, 2004). Originally, the word “native” means the one who was engendered on the spot, or who is “of the place”. But the use which was made of this word in colonial societies lead to distinguish between those who had the power (the colonists) who were not subjected to this code, and those who were subjected to it, the natives. This was also a penal code applicable only to the “subjects” of the French Empire, overwhelmingly the native men and women of the colonies. It included a bunch of repressive legal and statutory dispositions against the only natives, applied by the colonial administration (Asiwaju, 1979; Mann, 2009). This regulation was instituted for the first time in Algeria in 1881 and then exported to most of the other territories of the French colonial Empire. Its effects in the French colonial empire of 19th and 20th centuries were multiple. Actually, the Code contradicted the basic principles of French penal law affirmed during the Revolution. Conceived as a “practical way” to impose colonial order, it was often denounced as a “legal monster” by its contemporaries. Set up at first during the conquest of Algeria, then established by the law of June 28th, 1881, the Code de l’indigénat defined “special breaches of the natives”. Two categories of citizens were distinguished the French citizens (of metropolitan origin) and the French subjects, that is the black Africans, the Malagasies, the Algerians, the West Indians, the Melanesians, etc., as well as the migrant workers. The French subjects subjected to the Code de l’indigénat were deprived of the major part of their freedom and of their political rights; men and women kept only their personal civil status, religious and customary identity. This regime was extended to Cochinchina in 1881, New Caledonia and Senegal in 1887, Annam Tonkin in 1897, Cambodia in 1898, Madagascar in 1901, in Afrique Occidentale Française (AOF) in 1904, and in Afrique Equatoriale Française (AEF) in 1910. Tunisia and Morocco escaped the Code de l’indigénat because they were under a specific protectorate regime. In her work in progress, Emmanuelle Saada stresses the interrelations between law and violence in the French colonial empire in the 19th and 20th centuries and contributes to a broader history of legal incapacities and the law of “exceptions” from broader rights regimes in the French empire (Saada, forthcoming). Her study stands at the intersection of the history of French colonial rule and the history of law, connecting intellectual and political history with the analysis of administrative and legal practices. She considers that the postrevolutionary French legal system, based on the universality of 46 the “subject” in the situation of colonial domination, delineated within itself a space “outside law,” marked as “temporary” and “exceptional.” Women as men suffered from this situation up to the decolonization movements. While Frederick Cooper did not consider the gender dimension of the question, Catherine Coquery-Vidrovitch was heavily concerned by a gender approach of African colonial history. COLONIAL CUSTOMS LEGISLATIONS VERSUS AFRICAN In 2007, in a special issue of Cahiers d’Etudes Africaines, Catherine Coquery-Vidrovitch edited a rich collection of studies dedicated to legislations and customs. She investigated the state of the art and the amount of knowledge accumulated then for a gendered history of law in Africa. She demonstrated that women’s presence in law and justice were more studied and evidenced in English publications than in French ones (Coquery-Vidrovitch 2007a; 2007b). Therefore she compared recent research all over the African continent so as to confront diverse evolutions in the British colonial Empire and overseas territories, and in the French colonial Empire. The so-called Grands Coutumiers collected by French colonial officers in the 1930s, constitute important and useful historical sources on private law, as are, in English speaking regions, collections of court judgments, and, later on, Family codes. Collected in archives and in jurisprudence files, court cases are extremely informative about female position and customary rights. Three major topics appear to have been well studied by historians of Africa, up to now: 1) questions dealing with marriage (including the sharî’a rules and women’s “witchcraft” and popular rituals), 2) polygamy, divorce, extramarital relations, adultery, heritage and 3) the brideprice question (lobolo), sometimes improperly called dowry, which plays a major role in order to understand how African native females took account of land customary laws and labour laws and defended their traditional rights to property and assets. Based on Coquery-Vidrovitch’s overview, we could follow the basic evolution of women’s rights from pre-colonial times to the present, passing through colonial customary laws and western colonial laws and we shall take the opportunity of a coming international meeting in South Africa to learn some more about work in progress in African universities48. It seems that women were keen to distort rules that intended to limit their customary rights. Actually, at Madagascar, they knew quite well how to use and manipulate laws, under French 48 See the session jointly organized by Antoinette Fauve-Chamoux, Béatrice Craig and Jacqueline Ravelomanana on “Gender, property and legal reforms, 18th-20th centuries”, XVIth World Economic History Congress, Stellenbosch University, South Africa, 9-13 July 2012, an international conference organized by the International Economic History Association (IEHA) with The Economic History Society of Southern Africa and The Department of Economics, Stellenbosch University. 47 regime, so as to improve their legal conditions over time. Jacqueline Ravelomanana gives examples of how native women succeeded in imposing their traditional matrimonial customs in Madagascar (Ravelomanana, 2012). Under colonial systems, women tried their best to become more visible. The case of Guinean women is particularly interesting, given the topic of the present study. Encouraged by their leaders, they were pioneer in fighting for their emancipation and political freedom. Guinea was formerly part of the French colonial Empire and of Afrique Occidentale Française (AOF) [French West Africa]. AOF was a federation of French colonial territories in Africa (Figure 2). The federation existed from 1895 up to 1960. It included 1) Mauritania; 2) Senegal; 3) French Sudan (now Mali); 4) French Guinea (now Guinea); 5) Côte d'Ivoire (Ivory Coast); 6) Dahomey (now Benin) and 7) Niger. Upper Volta, now Burkina Faso (with Ouagadougou city as capital) formed the eighth colony; French Upper Volta, was, for a period, parcelled between its neighbours. French Sudan also contained a large portion of what is today the eastern part of Mauritania.49 GUINEAN WOMEN IN POLITICS GAINING THEIR RIGHT TO VOTE (1958) Throughout the vast French colonial empire, Guinea (a population then of 2.5 million people) was the only territory to vote "No" to the proposition offered by Président du Conseil Charles de Gaulle while the French President was René Coty.50 The question was about a new Constitution, within a Fifth Republic.51 In the French colonies, the referendum also aimed at creating a “French Community” (Communauté Française). Guinea was the only country to reject the referendum and to reach immediate independence.52 Male Guinean people voted 49 For situation maps, we recommend to consult the following figures for the African continent: 1) Map of colonial Africa in 1913 (before World War I), including the German colonies; 2) Map of colonial Africa after World War II, after the sharing of the German colonies, with steps in decolonisation process (Thobie, et al., 1990, p. 603); 3) Map of Africa in 1968, with successive steps of decolonisation (Thobie et al., 1990, p. 606-7). The Afrique Occidentale Française (AOF) [French West Africa] was a federation created in 1895 which included French Guinea (now Guinea). 50 The referendum of 28 September 1958, asked French people to ratify the project of Constitution prepared by the Constitutional Consultative Committee and the Parliament under the aegis of Michel Debré and of Président du Conseil, General de Gaulle. The referendum intended also to create a French Community in the French colonies. Guinea was the only country to reject the referendum and to reach independence. 51 For adoption of the French Constitution, the question was: “Do you approve the Constitution which is proposed to you by the Government of the Republic?” Guinean people (only men) followed instructions given by Sékou Touré and 94.4 % voted "no". They rejected the French Community. 52 When the official results were published in France, they gave separate figures for Guinea, saying that: “The national Commission in charge with the counting of votes specified: “As regards the territory of Guinea, the Commission noted that, by a majority of the votes, the electorate of this territory rejected the project of Constitution and, as a consequence, refused the integration to the Community. The Commission decided, as a consequence not to insert the results of this territory into the global results of the referendum and to have them appear apart.” 48 for independence from France and this country left Afrique occidentale française (AOF). With this main political change and a Constitution for Guinea, Guinean women finally gained the right to vote (1958). At the time of the political campaign and the Referendum, they had composed a song expressing all together national identity, a vote for independence and in support of the Guinean leader, Sékou Touré: Guinea says “No” De Gaulle says “Yes” One must vote “No” Comrade Sékou Touré, one must choose the “No” Yes, one must choose the “No,” Sékou Touré In any case, we vote “No” (Camara, 1979, p. 111). Without Guinea, a new republican Constitution was adopted in France on 4 October 1958, together with the Fifth Republic. Results of this Constitutional Referendum were a considerable victory for the Guinean branch of the Rassemblement Démocratique Africain (RDA) [African Democratic Rally], a political party officially called Parti démocratique de Guinée. RDA had members in each of the fourteen territories of French West Africa, French Equatorial Africa, the United Nations trust territories of Togo (until 1955) and Cameroon (Manning, 1988; Schachter Morgenthau, 1964, p. 400). While every other RDA branch, in Africa, had decided to stay behind de Gaulle politics, the Guinean RDA, under the leadership of Sékou Touré (1922-1984), a young trade unionist (Union générale des Travailleurs d’Afrique Noire) who had taken leadership of the Parti démocratique de Guinée in 1952, found the way to complete an immediate independence from France, initiating a wave of decolonization that later swept across Africa. Sékou Touré had studied Marx writings and the life of Vladimir Lenin and, as first President of Guinea, organised a socialist regime (Kaba, 1988). Sékou Touré’s great-grandfather, Almamy Samory Touré (1830-1900), a Malinke, had resisted French colonisation in West Africa in the past. He had then chosen to be a Muslim (Boahen, 1990). In Guinea, people belonging to the Malinke ethnic group were heavily engaged in trading networks and their associated Muslim communities had connected diverse parts of what would become Guinea53 (Schmidt, 2005a). In the nineteenth century, the politicoreligious empires of the Tukulor leader, El-Hadj Umar b. Said Tall, and the Malinke leader, Samori Touré, had brought 53 Jallonke people (Susu, Limba, Landuma, Baga, Bassari) and Fulbe people (Peul and Tukulor,) who were residents of the Futa Jallon Guinean region, traded extensively with coastal peoples (Schmidt, 2005a, p. 991). 49 together vast territories. According to Africanist historians, despite the nation-building efforts of party leaders, ethnic and class rivalries were permanent54. Sékou Touré and his friends of the nationalist movement, having already support from the rural masses, tried deliberately a large alliance with popular Guinean women. The growing role of Western-educated elites was much contested at the grassroots. But historians consider that the legacy of political, economic, religious, and cultural interaction linked Guineans to one another. For Eric Hobsbawm, Guineans had « the consciousness of having belonged to a lasting political entity » (Hobsbawm, 1990). Prasenjit Duara, in comparative perspective, made similar claims for premodern China, India, and Japan (Duara, 1996). Using a variety of archival and oral sources, Elisabeth Schmidt attributed the African Democratic Rally’s extraordinary success to its ability to form a broad ethnic, class, and gender alliance, whose strength rooted in its support among the non-literate masses, particularly women. Considering local disputes over ethnicity, class and gender identities, Schmidt reinterprets the nationalist history of Guinea and its anti-colonial movements with a “bottom up” approach (Schmidt, 2005a; 2005b). Guinean women were considered as forming a quasi autonomous category within the nationalist movement (Bayart, 1981). Adopting Bayart’s concept of popular “bottom up political action”, E. Schmidt analyzed the political activism of female shopkeepers, needlewomen, peasants, as partly conservative and partly transgressive. They joined the movement as mothers and wives, answering the explicit call of the RDA, and later influenced the objectives of the party as well as the methods of action chosen, especially after the 1953 strike (Schmidt, 2005b). Women who composed the songs that carried the nationalist message throughout the territory were not literate. If there was a new song, all the women learned it and sang it in the collective taxis, teaching one another in the morning when going to the market. When there was a political event, one of the party leaders came to the market with the song to teach it to the other women. The colonial administration tried hard by all means to break popular contesting. Official announcement of Barry Diawadou as the winner and Sékou Touré as the loser of the 1954 elections created great anger against the colonial state, particularly among popular women who prepared subversive slogans and songs of protest that were sang on the markets, saying that the colonial authorities had rigged the elections (Camara, 1979; Schachter-Morgenthau, 1964; Suret-Canale, 54 The main ethnic groups in French Guinea were: Susu, Baga-Landuma-Mikifore-Nalou, Limba, Peul, Coniagui-Bassari, Malinke, Jallonke, Kpelle-Kissi-Loma (Schmidt, 2005a). For more on the history of ethnic and religious relations in Guinea, see Rodney, 1968. In Guinea, French is the official language. 50 1964a, 1964b, 1971).55 “The other party has stolen our votes.” Women were not allowed to vote, but they sang: “Look, people, at the RDA Look, people, at the RDA RDA women, unite Laugh with me, Touré Laugh with me, Touré” (Schmidt, 2005a, p. 1010). An interesting photo was taken in 1954 on Conakry market showing commercial activities of these activist women56 (Figure 3) and another document of the same period presents Malinke women working on textile activities at home, in front of their house, in their village community and with their family members, old and young (Figure 4). On occasions some women wore the RDA group uniforms and referred to symbols.57 They participated in the reorganization of the party, and tried to change sexual hierarchy: forming militias, some women dressed as men and adopted some new behaviour manners, even if, in some ways, other forms of transgression already existed before colonization (Rivière, 1968). Interviewed on 8 April, 1991 by Idiatou Camara, recalling the day when she was recruited into the RDA party, Aissatou N’Diaye, from Tukulor-Senegalese origins (not of the Malinke group but definitely a convinced Muslim woman), reminisced that she and a friend had been called to a meeting with Sékou Touré: “Upon our arrival, he asked us to help him mobilize women… He also said that he had nothing material, not money or gold, to offer in return. If the women would help him, they would do it for the love of Allah, his Envoy, and their cause… He asked us to do this work in the name of Allah and his Prophet, Mohammed” (Schmidt, 2005a, p. 995, citing Camara, 1979). If the political mobilization of working class Guinean women did not really result in a full emancipation, besides gaining the final great right to vote, traditional gender roles were certainly moved during the 1950s, in this mostly Muslim society. In France, by contrast, secularisation of society was massively progressing, but it took a long time for women to gain the right to vote. 55 With territorial elections of 1957, Sékou Touré was elected President of Council. The Parti démocratique de Guinée (PDG) became then the unique party of Guinea. 56 See photos taken in 1954 on Conakry market and Malinke women spinning and dyeing cloth, Reproduced by permission of FR.CAOM. Aix-en-Provence (Schmidt, 2005a, pp. 1008 & 1011) (Figures 3 ad 4). 57 The RDA uniform was a white Guinean djellaba robe, with a white payer cap for men (Schmidt, 2005a, p. 978 & 994). The symbol of the party was the elephant. 51 FRENCH WOMEN INTER-WAR FIGHTS SUFFRAGE AND POLITICAL RESPONSIBILITY FOR In France, after 1900, members of parliament prepared bills that would allow women suffrage, but all proposals were stopped by the Senate. Groups of women, called “suffragettes”, formed associations and began to claim for the right to vote (Figure 5). Between 1919 and 1936, the Chambre des députés proposed several times the vote for women, but the Senate never registered the question on its agenda58. Born in 1893 in Northern France, Louise Weiss was a journalist engaged in fighting for equality of civil and political rights for women and men. She militated actively for women’s vote. In 1934, she had founded the association “La Femme nouvelle” [The new Woman]. She was a symbolic candidate at the elections of 1935 and 1936 in Paris, and organized several spectacular actions, intending to draw the attention of the press (Berton, 1999). On October 6th, 1934, she opened a shop for women on the Champs-Elysées and she placed in the window a map of the world with a large caption: “American women vote, English women vote, Chinese women vote... But French women do not vote” (Berton, 1999). In 1935, the day of the municipal elections, Louise Weiss chained herself to the column of the Bastille place with other activist women and harangued the crowd (Figure 6): “this place evokes for us the end of the Ancien Regime and the Declaration des droits de l’homme. This noble and so renowned Declaration is in reality only a masterpiece of egoism: its authors have just forgotten the woman” (Weiss, 1970, p. 89). On 2 June 1936, in front of the Senate, Louise Weiss, with activists of her group, La femme nouvelle59 offered to senators pairs of socks wearing the inscription: “even if you give us the voting right, holes in your socks will be repaired”. In 1936, with the Front Populaire government, three women were appointed by Leon Blum as vice-secretaries of State60, among them was Suzanne Lacore, in charge with the 58 For more information on the history of French women as citizens, see the official web site: www.assembleenationale.fr After World War II, once the voting right existed for women, Louis Weiss pursued her activity as a journalist. She engaged then for peace and for the construction of Europe. She died in 1983, aged 90. She had been married in 1934 but divorced two years later. About the disaster of her marital experience, she clearly concluded that divorce, if no family, brought her freedom. “All in all, for lack of happiness, the marriage and especially divorce brought me a civil status which facilitated my existence and opened me sentimental possibilities that, without having passed by these events, I would not certainly have met. Thus, I have not paid at a too high price their unfortunates requirements" (Weiss, 1970, p. 16). 60 Suzanne Lacore was in charge with the protection of children (Figure 7), Irène Joliot-Curie in charge with scientific research, and Cécile Brunschvicg, in charge with education, who was a close friend of Louise Weiss, and also from Jewish origins. 59 52 protection of children (Figure 7). Louis Weiss was approached by Blum, but she declined the invitation, for, she said:61 “I fought for being elected, not for being appointed”. In 1942, during World War II, General de Gaulle declared that “once the enemy will be kicked off the territory, all men and women from our France62 will elect the National Assembly,” and on 21st April, 1944, before France was freed from the German occupation, he ratified a text proposed by the Provisional Government of the French Republic sitting in Algiers, which article 17 stated the vote of women and institutionalised their eligibility: women were declared voters and eligible according to the same conditions as for men. At last, women voted for the fist time in France on April 29th, 1945 for the municipal elections and later, on 21 October 1945, for a “general elections” day, concerning the constituent Assembly and a Referendum63 (Figure 8). But we note that it is only in 1989 that a woman, Catherine Trautmann, became a mayor of a large city, Strasbourg, and only in 1991 than a woman became Prime Minister, Edith Cresson. CONCLUSION In early modern Europe, women were never restricted to the private sphere. All women, rural or urban, transmitted knowledge, cultural norms and symbolic values, and had a large access to the public sphere, according to local rules of their social communities. They could circulate alone, buy or sell goods on the market, simply walk far away to visit their family members and relatives, work outside home, daily or, when they had no spouse (being single or widowed), be servants for months or years in a private house or an institution. Once married, they had to choose a job compatible with family life and responsibilities, but could rely on paid or unpaid domestic help either to deal with small children or to look after sick and/or dependant family members. But female presence in politics was rare. Women were not equal to men and did not vote. In most western countries as in countries with a colonial history, female suffrage was accorded after long fighting. In most countries, women were not able to vote until sometime during the twentieth century. In France, change concerning the right to vote for women happened in 1944. French women voted for the first time in 1945 and could enter the Senate in 1946. Previously, women would gather occasionally for food riots or other 61 In French : “J'ai lutté pour être élue, pas pour être nommée”. In French : “les hommes et les femmes de chez nous”, which means that, in the colonies, natives would still be excluded. 63 For this Referendum of 21 October 1945, two questions were asked: 1/ Is a new constitution needed? (Faut-il une nouvelle constitution? ) and 2/ Is it needed to limit the powers of the constituent Assembly which id elected simultaneously? (Faut-il limiter les pouvoirs de l’Assemblée constituante élue simultanément ?) Concerning the gender balance at the Assembly formed in 1945, only 5,6 % of elected deputies were females. 62 53 protests. At the time of the French Revolution, some early feminist women as Olympe de Gouges in France (or Mary Wollstonecraft in Britain) began to publish essays (Declaration of the Rights of Woman and of the Female Citizen, 1791, for the former and for the latter, A Vindication of the Rights of Woman, With Strictures on Political and Moral Subjects, 1792), in order to join open debates and political action, claiming for equal rights for men and women. For the countries under French colonial regime, historians have been studying many questions as women’s rights and their presence in law courts from local archives. Some more needs to be done to compare the level of female participation to political life under specific colonial constitutions. It would be interesting to explore further, in a comparative perspective, to what extent native women were active in politics, in nationalist movements and in decolonisation processes. In French colonial Africa, Guinean women formed a specific and quasi autonomous category within the nationalist movement, leading to early decolonisation (Locoh, 2001). I chose to present their action and mentalité in the 1950s as a case study in the present article, given their cultural and religious specificities. But Guinean women seem to have been largely manipulated by political men and leaders of the nationalist party of their country. The spectacular political movement of popular women ended in Guinea in September 1958, with independence. Significantly, most Guinean women of the time, who had been committed in political action in the 1950s, refused later to comment on this period of their life when they were active outside home, supporting the leader Sékou Touré in the name of their nation and in the name of Allah (Camara, 1979). By contrast, in France, individual independent figures, as Louise Weiss, were certainly not manipulated and used the media for achieving their main goal: obtaining equality of civil and political rights for women, and at last, the right to vote for French female citizens (1944). The right to vote was granted to French women a century and a half after the 1789 French Revolutionists proclaimed: Freedom, Equality, Brotherhood [Liberté, Egalité, Fraternité]. REFERENCES ASIWAJU, Anthony I., 1979, «Control through coercion, a study of the indigenat regime in French West African Administration, 1887-1947», Bulletin de l'IFAN, Dakar, 41 (1), pp. 35-71. AUBAUD, Camille, 1993, Lire les femmes de lettres, Paris, Dunod. 54 BAYART, Jean-François, 1981, « Le politique par le bas en Afrique : questions de méthodes », Politique africaine, 1, pp. 5382. BERTIN, Célia, 1999, Louise Weiss, Paris, Albin Michel. 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Reproduzido de Thobie et al., 1990, p. 603. 62 [Figura 3] Mulheres no mercado em Conakry, 1954. Reproduzido com a permissão de FR.CAOM. Aix-enProvence. Segundo Elisabeth Schmidt (2005a), as mulheres iam ao Mercado todos os dias. Se havia uma nova música, elas a aprendiam e cantavam nos taxis, ensinando uma à outra. Quando havia um acontecimento, a líder ia ao Mercado com a canção para ensiná-las às outras mulheres. 63 [Figura 4] Mulheres de Malinke tecendo e tingindo roupas que depois vão vender no mercado, em sua vila, com membros da família, 1954. Reproduzido com a permissão de FR.CAOM. Aix-enProvence. 64 [Figura 5] Cartão francês ano1915: “Porque a mulher deve votar”, mostando um grupo de “sugragetes” exibindo cartazes conclamando o direito ao voto. Nos cartazes que carregam, pode-se ler, da esquerda para a direita: « Para lutar contra a imoralidade, a mulher deve votar» ; « Para combater o alcoolismo» ; « Sociedade para a melhoria do destino da mulher e pela reinvindicação de seus direitos» ; « Para lutar contra a ( ?), a mulher deve votar» ; « Para impedir a guerra, a mulher deve votar» ; « Para defender a família, a mulher deve votar». 65 [Figura 6] Louise Weiss, líder das ativistas femininas da Femme Nouvelle, segurando cadeias, presas por elas ao monumento, place de la Bastille, Paris, e fazendo uma fogueira, proclamavam com posters: « As mulheres francesas devem votar » [La française doit voter], 1935. Louise Weiss disse à imprensa e à multidão: "este lugar evoca para nós o fim do antigo regime e a Declaração dos direitos do homem. Esta nobre e tão renomada Declaração é, na realidade, uma obra prima do egoísmo: seus autores esqueceram as mulheres (Weiss, 1970, p. 89). 66 [Figura 7] Em 1936, a deputada francesa Suzanne Lacore, um membro do Comitê Nacional das Mulheres Socialistas, tornou-se sub-secretária de Estado, encarregada da proteção das crianças. Ao mesmo tempo, Cécile Brunschvicg, presidente da União Francesa pelo voto das mulheres (U.F.S.F.), era sub-secretária do Éstado, encarregada da educação e Irène Joliot-Curie era sub-secretária do Estado, encarregada da pesquisa científica. 67 [Figura 8] Mulheres francesas votando pela primeira vez. Eleições gerais de 21 de outubro de 1945. Para este Referendo de 21 de outubro de 1945, duas questões foram perguntadas: 1. É necessário uma nova constituição? E 2. É necessário limitar os poderes de uma Assembléia constituinte que é eleita simultaneamente? Referente ao equilíbrio quanto ao gênero na Assembléia formada em 1945m apenas 5,6 % dos deputados eleitos eram mulheres. 68 1C Women in Politics in Historical and Gender Perspective: from France to Guinea (1789-1958) Antoinette Fauve-Chamoux: [email protected] 69 [Figure 1] French Revolutionist Knittting Women [Les tricoteuses jacobines ou de Robespierre] Estampe by Pierre-Etienne Lesueur, Musée Carnavalet, Paris, Gouache, © RMN. Engaged in proto-industrial work, many working class women were knitting woollen socks and stockings for merchants and, during the French Revolution, in Paris, they attended political meetings and, as says the caption, « A large number to them received 40 pence a day to come to the stand of the Jacobins and applaud the revolutionary motions, Year 2» [1793-1794]. 70 [Figure 2] Map of colonial Africa in 1913 (before World War I), including the German colonies Reproduced from Thobie et al., 1990, p. 603. 71 [Figure 3] Market women in Conakry, 1954. Reproduced by permission of FR.CAOM. Aix-en-Provence. According to Elisabeth Schmidt (2005a), women went to the markets every day. If there was a new song, all the women learned it and sang it in the taxis, teaching one another. When there was an event, the leader went to the market with the song to teach it to the other women. 72 [Figure 4] Malinke women spinning and dyeing cloth that they would later sell on the market, in their village, with family members, 1954 Reproduced by permission of FR.CAOM. Aix-en-Provence. 73 [Figure 5] French post card c. 1915: “Pourquoi la femme doit voter” [Why the Woman must vote], showing a group of “suffragettes”, exhibiting panels claiming for the right to vote. On the panels that they carry we can read, from left to right : « Pour lutter contre l’immoralité, la femme dit voter » ; « Pour combattre l’alcoolisme » ; « Société pour l’amélioration du sort de la femme et la revendication de ses droits » ; « Pour lutter contre la ( ?), la femme doit voter » ; « Pour empêcher la guerre, la femme doit voter » ; « Pour défendre la famille, la femme doit voter ». 74 [Figure 6] Louise Weiss, leader of the female activists of Femme Nouvelle, holding chains, attached together with them to the monument, place de la Bastille, Paris, and making a fire, proclaimed with posters « The French woman should vote » [La française doit voter], 1935. Louise Weiss told the media and the crowd: "this place evokes for us the end of the ancient regime and the Declaration des droits de l’homme. This noble and so renowned Declaration is in reality only a masterpiece of egoism: its authors have just forgotten the woman" (Weiss, 1970, p. 89). 75 [Figure 7] In 1936, French deputy Suzanne Lacore, a member of the National Committee of Socialist Women, became soussecrétaire d'État, in charge with protection of children. At the same time, Cécile Brunschvicg, présidente de l’Union Française pour le suffrage des femmes (U.F.S.F.), was soussecrétaire d'État, in charge with education and Irène JoliotCurie was sous-secrétaire d'État, in charge with scientific research. 76 [Figure 8] French woman voting for the first time, General elections of 21 October 1945 For this Referendum of 21 October 1945, two questions were asked: 1/ Is a new constitution needed? and 2/ Is it needed to limit the powers of the constituent Assembly which id elected simultaneously? Concerning the gender balance at the Assembly formed in 1945, only 5,6 % of elected deputies were females. 77 2 Diálogos epistolares como fontes para a História das Ciências: a correspondência de Miguel Rolando Covian Eneida Nogueira DAMASCENO: [email protected] CV: http://lattes.cnpq.br/5100371665212423. Mestra em Ciências pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Campus de Ribeirão Preto, Brasil. Área de pesquisa: História da Psicologia. Marina MASSIMI: [email protected] CV: CV: http://lattes.cnpq.br/1824675277001228. Graduada em Psicologia pela Università degli Studi di Padova, Mestre e Doutora em Psicologia pela USP. Atualmente é Professora Titular de História da Psicologia da Universidade de São Paulo, campus de Ribeirão Preto. 78 BSTRACTRESUMOABSTRACTRESUMOABSTRAC Resumo É discutida neste trabalho a relevância do gênero correspondência epistolar enquanto fonte primária para a produção da História das Ciências. No caso específico deste artigo, dedicado à correspondência do neurofisiologista Miguel Rolando Covian, destacamos os campos da História da Medicina, da Psicologia e da Biologia. Abordamos também os aspectos jurídicos que protegem as correspondências epistolares como documentos pessoais, colocando-as sob a condição de restrição de acesso por determinado período de tempo, a partir de cuidados éticos pertinentes com relação às informações de caráter pessoal e íntimo que elas contêm. Nesse sentido, a preservação destes documentos em condições adequadas para que resistam ao tempo se faz impositiva. Cartas levam em seu conteúdo não só informações sobre seus correspondentes, mas também fragmentos de sua época, resultando, assim, em um gênero de fonte multidisciplinar. Palavras-chave Correspondência epistolar; Fontes históricas; História das ciências. Abstrac It is discussed in this paper the relevance of the genre of written correspondence as a primary source for the production of the History of Science, and in the specific case of this article, we highlight the fields of medicine, psychology and biology standing out the epistolary correspondence of the neurophysiologist Miguel Rolando Covian. Legal aspects that protect epistolary correspondence as personal documents, placing them under a restricting access condition for a certain period of time, raise relevant ethical issues respecting to personal and intimate information that it contains. In this sense, it is urgent to preserve such documents in appropriate conditions. The content of the letters shows not only information about the correspondents, but also fragments of that period of time, resulting in a genre of multidisciplinary source. Keywords Epistolary correspondence; Historical sources; History of sciences. 79 INTRODUÇÃO O objetivo deste trabalho é destacar o papel relevante das correspondências epistolares enquanto fontes primárias para a produção da História das Ciências. Não nos referimos somente à importância destes documentos, mas também à pertinência de organização, catalogação e disponibilização dos mesmos. A dificuldade encontrada por pesquisadores e estudiosos em achar acervos de correspondências devidamente catalogados muitas vezes prejudica uma pesquisa promissora. E no trabalho historiográfico, conforme assinala Marrou (1978, p.55), só podemos alcançar o passado através dos traços inteligíveis para nós que este passado deixou. Ainda segundo Marrou, “A escrita da História faz-se com documentos” e define: “Constitui um documento toda a fonte de informação de que o espírito do historiador souber tirar qualquer coisa para o conhecimento do passado humano, encarado sob o ângulo da pergunta que lhe foi proposta. É perfeitamente obvio que é impossível dizer onde começa e onde termina o documento; pouco a pouco a noção se alarga e acaba por abranger textos, monumentos, observações de todo gênero”. (MARROU, 1978, p. 62) O trabalho com correspondências pessoais revela seu caráter delicado no que tange à intimidade do autor com a qual o historiador vai se deparar, revelando-se uma possível armadilha no caso de um plausível entusiasmo por parte desse, uma vez que documentos pessoais abstraem o seu autor do campo das manifestações públicas. Segundo Prochasson (1998, p. 7), “As armadilhas que as correspondências estendem aos historiadores são, no entanto, numerosas. A impressão de pegar desprevenido o autor de uma carta que se destinava unicamente ao seu correspondente, o sentimento de violar uma intimidade, garantia de autenticidade, quando não de verdade, são, às vezes, bastante enganadores. Existem correspondências que traem uma autoconsciência que não engana ninguém. Existem cartas ou documentos privados cujo autor mal disfarça o desejo, talvez inconsciente, de torná-las, o quanto antes, documentos públicos”. 80 Para Prochasson, (Idem) a correspondência está inserida na categoria de arquivos privados, assim como diários, cadernetas, agendas, etc. e afirma: “Essa documentação deve constituir uma base arquivística útil para a construção da história da construção de uma obra ou de uma personalidade”. De fato, a controvérsia existente com relação ao gênero correspondência epistolar integrar as fontes para a produção da pesquisa histórica, não elimina, com as devidas ressalvas e o uso de um método de pesquisa apropriado e rigoroso, o valor histórico heurístico desse gênero de fontes. Além do mais, as cartas revelam o universo interior de seus autores. Para Stein (2003, p. 583), as cartas são documentos nas quais é possível conhecer “o modo de ser próprio de um homem: esse modo de ser se nos mostra através das múltiplas formas de expressão nas quais o ‘interior’ se ‘exterioriza’”. Os diálogos epistolares trazem em seus conteúdos, de modo geral, registros de fatos, emoções, sentimentos, vivências e experiências escritas de próprio punho pelo sujeito que as vivencia; esses escritos registram, de acordo com o regime de temporalidade, pessoas, acontecimentos e sentimentos relativos ao período em que foram produzidos. Nesse sentido, independente das intenções do autor(es) quanto ao fato de serem essas missivas posteriormente divulgadas ou não, cartas epistolares projetam-se como documentos de destacado valor histórico, na medida em que podemos entender que uma correspondência epistolar traduz fragmentos de sua época. As missivas endereçadas a indivíduos de seu círculo de relações pessoais podem conter informações que dificilmente serão encontradas em outros escritos do autor como livros, artigos, aulas, etc.. Neste âmbito, o historiador deve estar ciente que adentra o campo da ética ao deparar-se com aspectos da vida pessoal dos correspondentes e com o respaldo legal estabelecido juridicamente com a finalidade de proteger a intimidade relatada nas correspondências epistolares por determinado período de tempo. O respeito à legislação vigente neste sentido traduz também o respeito à ética. Esta reflexão nos remete imediatamente à questão da preservação destes documentos que guardam em si memórias que contribuirão para a construção da História. Massimi (2012, p.3), afirma, “A memória disponibiliza, portanto, o material para o trabalho histórico: por meio da própria memória, os atores do processo histórico buscam salvar o passado para servir à edificação do presente e do futuro”. Paes (1969, p. 7/8), na apresentação de seu livro Grandes Cartas da História, recorre a trechos da correspondência epistolar trocada entre Abelardo e Heloise e entende que para Heloise, “a boa carta é aquela que, para além do sentido 81 ostensivo das palavras, deixa entrever a alma – interesses, preocupações, idiocrasias, paixões – de quem a escreve”. Grandes personagens da história deixam seu legado pessoal e intelectual, seus sentimentos mais profundos registrados em epístolas que consistem por si só em valiosos documentos para a reconstrução histórica em vários de seus segmentos, não só por conter, escritos de próprio punho, informações subjetivas quanto aos seus pensamentos, sentimentos, preferências e emoções, como também informações de cunho tão pessoais que deixam entrever traços de caráter de seu autor que poderiam passar despercebidos, não fossem estes registros. Desse modo podemos entender a expressão de Prochasson (Ibid. p. 3), Essa documentação “constitui aquilo com que sonha todo historiador da cultura, do biógrafo que corre atrás daquele dossiê completo (...)” O estudo destas correspondências possibilita investigações mais completas sobre personagens importantes no cenário histórico, bem como oferece informações complementares do contexto em que viveram. Como exemplo, voltamos a Paes (Ibid. p. 135), que ao publicar algumas cartas de Napoleão Bonaparte, mostra duas missivas que contém forte e muito bem escrito teor político e militar e também mostra outras duas cartas nas quais o poderoso chefe político e militar reclama como um menino apaixonado da falta de atenção dispensada a ele por sua esposa Josefina que passa tempos sem lhe enviar notícias ou não o espera quando ele deixa compromissos militares só para ir vê-la. A intencionalidade destes exemplos reside na necessidade de reflexão sobre o excesso de reservas com relação à convicção de que os autores epistolares podem sucumbir ao desejo de projetar sua imagem no futuro com a elaboração de escritas intencionais; se uma rigidez for mantida neste ponto, corre-se o risco de perder informações singulares no que diz respeito à vida desses autores: seu tempo, seu trabalho, sua personalidade, enfim, a subjetividade inerente a cada um, bem como ao contexto histórico que o cercou. Alcir Pécora (2001, p. 30), ao analisar as cartas de Santo Inácio, detecta que as correspondências da Companhia dos Jesuítas eram uma das suas grandes preocupações, “O que se escreve é ainda mais de cuidar que o que se fala, porque o escrito fica e dá sempre testemunho...”. Cartas constituem-se num arquivo de elevado valor histórico, pois contém o testemunho de quem as escreveu. Massimi (2002, p. 14), ao referir-se às pesquisas desenvolvidas acerca da correspondência epistolar dos jesuítas, especialmente ao conjunto de cartas denominado Indipetae, afirma: “As cartas que compõem a Indipetae contém expressões muito significativas do trabalho 82 de investigação acerca de si mesmos para o qual os jovens jesuítas eram treinados em sua formação. Além de se constituírem num interessantíssimo referencial para se entender o significado do “além-mar” na mentalidade de jovens europeus dos séculos XVI e XVII.” Considerando este papel histórico informativo, a epistolografia firma-se como considerável fonte de produção histórica, a partir da aplicação rigorosa de métodos cuidadosamente escolhidos. Neste ponto fechamos o foco na História das Ciências quando reconhecemos e temos como objeto de trabalho a correspondência de um cientista, neste caso específico, o neurofisiologista Miguel Rolando Covian. Cartas epistolares apresentam, de modo geral, conteúdo diversificado, os interlocutores falam sobre assuntos diversos: seu cotidiano, seu trabalho, suas emoções e sentimentos, abrindo, deste modo, amplas possibilidades de pesquisas. Assim, as cartas do Covian oferecem este leque de temáticas. Além do mais, como cientista, Covian registra em suas missivas parte da história das Ciências da sua época, com destaque para a História da Medicina, da Neurofisiologia, da Psicologia e da Biologia. Segundo Massimi (1997, p. 19), As cartas [...], além de constituir relatos ricos em informações, testemunham também a experiência subjetiva que, por meio da escrita, reflete sobre o mundo no qual se situa. Nestes relatos os acontecimentos históricos são apresentados com a linguagem própria e particular de quem viu e vivenciou tais acontecimentos como parte integrante de sua biografia. Nesse sentido, possibilita-nos compreender relações, atitudes, sensibilidades e emoções daqueles homens em seu contexto histórico determinado.” MIGUEL ROLANDO COVIAN: BREVE BIOGRAFIA Miguel Rolando Covian nasceu no dia 7 de setembro de 1913, na cidade de Rufino, Argentina. Estudou medicina na Faculdade de Medicina de Buenos Aires e graduou-se médico em 1942. Desde então passou a dedicar-se integralmente ao ensino e à pesquisa e nesse período recebe a orientação daquele que, segundo Hoffmann (2005, p. 39) seria seu mestre por toda a vida, Bernardo Houssay. Segundo Vichi (2002, p. 39), Covian sempre dizia que seu maior título era ter sido discípulo de Bernardo Houssay. Covian trabalhou no Instituto de Medicina e Biologia de Buenos Aires de 1945 à 1948. A seguir, estagiou por três anos como bolsista da Fundação Rochfeller na Universidade de Johns 83 Hopkins na cidade de Baltimore. Retornando à Argentina, continuou seu trabalho no Instituto de Biologia e Medicina Experimental, onde, segundo Vichi (2002, p.39), fundou o primeiro laboratório de neurofisiologia da Argentina, atuando ali como chefe até 1955, quando então recebeu o convite do prof. Dr. Zeferino Vaz para trabalhar na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Segundo Vichi (2002, p.39), sua chegada e trabalho nesta escola médica tornar-se-ia decisiva para a consolidação do recém criado Departamento de Fisiologia, o qual dirigiria até 1974. O setor seria dos melhores centros humanos do país (VICHI, 2002, p.39). Ainda segundo Hoffmann (2005, p. 39), Covian naturalizou-se brasileiro em 1971. Atuou como docente de 1955 a 1992, desempenhando um papel fundamental na formação da Instituição e se tornou uma personalidade marcante nos meios acadêmicos. Credita-se principalmente a Covian o empenho em impulsionar o desenvolvimento do departamento de fisiologia, transformandoo em um grande centro de ensino e pesquisa do país. Um médico dedicado aos seus mestres que, com certeza, influenciaram sua formação humanista, dedicado à ciência e a religião. “sua religiosidade era expressa por meio do carisma e por sua opção clara por uma ciência humanista” (BUENO, 2005, p.33). Covian critica a desumanização do homem pela sua falta de silêncio, de tempo para meditar e entrar em contato com sua essência, chama esse homem de homem-monstro, produto da época atual, um raro espécime desumanizado, metade homem, metade robô, escravizado pela técnica e pressionado pela eficiência. (HOFFMANN; MASSIMI, 2008, p.61/62). “No final dos anos 50, previu o avanço da técnica e, como consequência, a desumanização da ciência, viu que o saber científico e o saber humanístico se divorciariam no contexto da revolução científica dos séculos XIX e XX” (BUENO, 2005, p. 47). Para Covian, no processo de humanização, a ciência e a técnica têm importante papel a desempenhar, para isso a técnica deve ser colocada a serviço do seu autor, deve assim ser sacralizada, “é preciso sacralizar o profano para salvar o homem humanizando-o” (HOFFMANN; MASSIMI, 2007, p. 63). E diz ainda, “O verdadeiro homem de ciência tem uma natural disposição para o trabalho silencioso e meditativo. Diria que sua atitude é religiosa, ainda que negue Deus” (Idem p. 63). Propõe que o cientista seja culto, que busque a sapiência da filosofia para conseguir integrar e sintetizar os diversos setores do conhecimento. (BUENO, 2005, p.47). Segundo Vichi (2002, p.40), sempre reflexivo em suas considerações, Covian diria em 2 de abril de 1957: “Vivemos uma crise de valores..., esse fato é tão objetivo que não necessita ser analisado, mas o que é triste é que essa ausência de valores está dando origem a uma juventude cética a tal ponto que o ceticismo chegou a ser uma pose elegante”. 84 OS DIÁLOGOS EPISTOLARES Poliglota, Covian se correspondia com cientistas de várias partes do mundo. Trocava idéias e experiências, descrevia experimentos, expressava suas opiniões, expunha seus sentimentos, ensinava, orientava seus alunos, quando estes estavam estagiando fora do Brasil, tecendo, assim, uma vasta rede de informações e conteúdos ímpares para a construção da história das ciências, uma vez que são contados a partir das vivências cotidianas do autor e, portanto, sem o polimento da escrita acadêmica ou puramente literária, revelando-se, então, referências suplementares pelas quais anelam tantos historiadores da ciência. Mais uma vez retomando Stein (2003, p. 583), “O modo de ser de uma pessoa se expressa também em formas que podem seguir existindo separadas dela: em sua letra, no estilo que se reflete em suas cartas ou em outras manifestações literárias e também nos efeitos que ele produz em outros homens. Coletar estas fontes é o trabalho preliminar do historiador que se completa na tarefa de compreendê-las por meio de suas linguagens específicas e de tornar acessível aos outros esta individualidade por ele compreendida” Covian mantinha uma posição intelectual favorável à aproximação entre ciência e religião, tema este largamente enunciado em sua correspondência. Era um homem religioso, entretanto, não fazia proselitismo. A subjetividade deste cientista religioso firma-se em seus escritos. Escrevendo para outros cientistas vai, talvez sem o perceber, escrevendo parte da história das ciências e também das instituições científicas das quais era membro. Escrevendo para amigos, entre eles, monges, padres e filósofos desenvolve seu pensamento firmando-se com um cientista humanista preocupado com os frios rumos que, segundo ele, via a ciência enveredar a partir do desenvolvimento acelerado da técnica. Em seu artigo “Memória e História na História da Psicologia: Dois exemplos de produção de documentos” Massimi (2012, p.7) apresenta a correspondência de Covian como “exemplo de atividade de preservação e apresentação do dado histórico possibilitadas por escolhas realizadas pela memória dos atores do processo histórico” e insere esta correspondência na dimensão da “estrutura dinâmica das relações entre memória e história” 85 ASPECTOS LEGAIS Produzida no período entre 1955 a 1985, a correspondência de Covian está sob proteção legal. Sob a égide de domínio privado, esta correspondência encontra-se em condição de restrição de acesso, sob responsabilidade da instituição que a guarda64. Este intercâmbio epistolar estendia-se como uma rede científica e social por diversos países, envolvendo esta correspondência em alta complexidade com relação aos aspectos legais que a resguardam. Ainda em vida, Covian outorgou à Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto o direito de guarda de todo material pertencente a ele que fosse encontrado em sua sala no Departamento de Fisiologia dessa Faculdade ao registrar em cartório uma Escritura de Testamento. Este documento, parte dos resultados de nosso trabalho, foi encontrado durante o desenvolvimento de nossa pesquisa e encaminhado à Reitoria da Universidade pela Dra Anette Hoffmann – membro da equipe de Covian – dando início ao processo de legalização de guarda deste material, no qual se encontra incluída essa correspondência. A legislação determina que a restrição de acesso aos documentos pessoais se dê por um prazo mínimo de setenta anos a contar de 1º de janeiro do ano subsequente ao falecimento do autor(es)65, devendo a instituição responsável pela custódia destes documentos estabelecer regras pertinentes a esse acesso de acordo com as disposições legais estabelecidas. Esse período de setenta anos determinado pela legislação vigente para proteção às informações pessoais contidas nas cartas epistolares torna ainda mais premente a necessidade de meios adequados de preservação desses documentos, pois, ainda que o avanço tecnológico apresente meios imediatos de preservar a informação, não podemos deixar de reconhecer o valor do documento original enquanto fonte primária. Cartas epistolares, principalmente quando em grandes quantidades, constituem-se em um acervo histórico muito delicado, a correspondência de Covian encontra-se redigida à mão, em sua maioria, e também datilografada, o papel é fino, sendo algumas cartas escritas em papel de seda. Manusear estes documentos de suporte tão frágil requer vontade, disciplina e cuidados especiais. Trabalho este que demanda tempo e pessoas com experiência e voltadas a esta tarefa, mas, geralmente, por falta de pessoal treinado e com tempo disponível para um trabalho tão delicado e demorado, alguns acervos, especialmente aqueles constituídos de papéis soltos, como correspondências, 64 65 FMRP – Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP – Universidade de São Paulo. Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Disponível em < http://planalto.gov.br/ccivil03/leis/l9610.htm > 86 anotações, etc. permanecem arquivados, porém, com seu conteúdo desconhecido e, portanto, praticamente inacessível. A compilação e sua disponibilização para a pesquisa é tão importante quanto a própria pesquisa, uma vez que a ineficiência na organização e arquivamento do material pode resultar numa dificuldade de acesso que pode, inclusive, levar-se a crer na inexistência do material, quando ele pode estar perdido no acervo, isso pode ocasionar até a desistência do trabalho por parte do pesquisador. Marrou (1978 p. 61) discorre sobre esta questão quando discute a acessibilidade ao documento de pesquisa: “Por mais aperfeiçoados que se encontrem, em certos setores, os instrumentos de trabalho de que dispomos, como os seus compiladores não puderam ter presentes nem mesmo ter concebido como possíveis todas as perguntas que nós somos levados a fazer aos documentos, não nos fornecem os meios de descobrir estes”. A correspondência epistolar constitui-se em um vasto campo de investigação e pode responder a inúmeros questionamentos e vários enfoques de pesquisa. Para Marrou (1978, p. 75), só podemos alcançar o passado através dos traços inteligíveis para nós, que este passado deixou, “na medida em que estes traços subsistiram, em que nós os encontramos e em que somos capazes de interpretálos” e completa: “Encontramos aqui a primeira e a mais pesada das servidões técnicas que pesam sobre a elaboração da História”. Apesar de ser um cientista admirado e respeitado, Covian se reconhecia um homem solitário. Mahfoud e Massimi (2007, p. 221) assim se expressam com relação a este conjunto epistolar: “Dois tipos de vivências emergem como estruturantes: relacionamentos significativos vivenciados como pertença, essenciais ao amadurecimento de sua personalidade e a seu processo de formação, e a vivência da solidão, sempre presente, mas tomando significados diferentes ao longo da vida”. A atividade epistolar possuía um traço determinante na vida deste cientista. Quatro anos antes de sua morte, Covian relata a um amigo que reler as cartas guardadas o levava a rever sua vida com as pessoas amadas que fizeram parte dela. E ao reconhecer-se como um homem solitário afirma: “Escribo para acompañarme” (Massimi – 2012, p.10). CONCLUSÃO A questão relativa ao trabalho com correspondências é ampla e abrangente, entretanto, podemos reconhecer que o gênero correspondência epistolar engloba variados graus de acessibilidade a informações que se estendem por uma multiplicidade disciplinar que vai de dados biográficos, regime 87 de temporalidade, descrição do cotidiano, memória, passa por aspectos jurídicos e chega à produção da História. Entendemos que os historiadores das ciências, bem como as instituições responsáveis pela guarda destes acervos devem conter em suas preocupações o olhar cuidadoso para este gênero de fontes, visando não apenas fazer respeitar a legislação vigente quanto ao tempo de restrição de acesso, resguardando especialmente o aspecto ético desta imposição legal, como também o empenho no sentido de preservar estes acervos e as informações que eles contêm, disponibilizando os recursos necessários para que possam ser arquivados em condições apropriadas para sua preservação através do tempo. A correspondência do neurofisiologista Miguel Rolando Covian encontra-se sob a custódia da F.M.R.P. – Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – U.S.P. - Universidade de São Paulo, o acesso à esse material, devido às determinações legais citadas neste artigo, está sujeito à autorização expressa dessa instituição que o guarda. No entanto, esta correspondência encontra-se higienizada, classificada e arquivada em condições ideais para sua preservação, guardando em seu conteúdo suas contribuições para o futuro da História das Ciências, especialmente, a História das Neurociências. REFERÊNCIAS BUENO, Patrícia Moura de Souza. A essência da universidade: um estudo sobre a vida e obra de Miguel Rolando Covian. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto/USP. Orientadora: Marina Massimi. Ribeirão Preto, 2005. 144p. HOFFMANN, Anette. Resgate da memória de uma experiência universitária: a História de Miguel Rolando Covian. 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Nesta instituição integramos o NEPIM- Núcleo de Estudos e Pesquisas em Identidade Metamorfose na qualidade de alunos do mestrado no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social com apoio do CNPq. Omar ARDANS: CV: http://lattes.cnpq.br/4329829851022890 - Universidade Federal de Santa Maria. Departamento de Psicologia. 90 BSTRACTRESUMOABSTRACTRESUMOABSTRAC Resumo O presente texto discorre sobre possibilidades de emancipação frente a vivências de opressão, geradas pela condição do ser imigrante. Para tanto, relatamos, a partir de um fato histórico dado no Brasil, a experiência de uma população de imigrantes alemães durante o governo de Getúlio Vargas, no momento político conhecido por “Estado Novo”. Levamos em conta, relatos da referida população e buscamos, sob o prisma do sofrimento compreendido como ético-político, debater possibilidades de emancipação. Pretendeu-se dar luz a importância da afetividade relacionada ao desenvolvimento de potencialidades, projetos de futuro e também identidades. Palavras-chave migração, alemães, sofrimento ético-político, identidade Abstract This paper addresses the possibilities of emancipation from the oppressive experiences faced due to the condition of being an immigrant. For this purpose, we provide the account of a historical event that took place in Brazil regarding the experiences of a group of German immigrants during the “New State” political period under the Getúlio Vargas administration. We took into account reports from the aforementioned group and debated the possibilities of emancipation from the scope of what is understood to be ethic-political suffering. The intention was to focus on the importance of affection in relation to the development of potentials, projects for the future, and also identities. Keywords migration, Germans, ethic-political suffering, identity 91 O Windhuk foi uma luxuosa embarcação alemã que realizava viagens turísticas entre a Alemanha e África do Sul. Mais moderno da frota, o navio invocava no nome o passado colonialista da Alemanha. Em sua décima terceira viagem, em julho de 1939, foi surpreendido pela eclosão da Segunda Guerra Mundial, fato que obrigou o navio a refazer seu itinerário. Devido a mudanças nos cálculos do trajeto e a falta de combustível, o Windhuk ancorou no Brasil, no porto de Santos, em sete de dezembro de 1939. Ao ouvir o aviso do Comandante sobre a mudança da rota estabelecida, os passageiros e tripulantes (250 tripulantes e mais de 400 passageiros, turistas de safáris, casais em lua de mel, comerciantes de ouro e diamantes, etc.) tinham duas escolhas: permanecer na Cidade do Cabo (onde o navio estava ancorado até então) ou seguir adiante, apesar da mudança de rota e destino. Na Cidade do Cabo, o navio seria confiscado para servir aos Aliados. A maioria dos passageiros de diferentes países desembarcou e alguns tripulantes tentaram a fuga em botes salva vidas, não se sabendo até hoje seu destino. Os alemães, contudo, não desembarcaram. “Nós, alemães do Reich devemos permanecer à bordo” foi o comentário. (ÉPOCA online, 200466) Em uma noite o Windhuk partiu em fuga. O destino, a princípio, era a cidade de Bahia Blanca, na Argentina. No entanto, para domar ondas gigantescas era necessário outro plano. Além disto, fora descoberto que ficariam sem óleo antes mesmo de alcançarem a costa. O navio escalou como alternativa o mapa da América do Sul rumo ao Brasil. Iniciou-se então uma viagem rumo ao desconhecido Brasil e a um destino totalmente fora dos planos. Antes de chegarem ao Porto de Santos, os marinheiros do Windhuk pintaram o casco de preto e os chineses que trabalhavam na lavanderia confeccionaram uma nova bandeira. Os ideogramas chineses deveriam convencer os brasileiros de que era o navio japonês Santo Maru a aproximar-se. O comentário foi de que quando os funcionários do porto os viram, todos loiros e com olhos azuis, começaram a rir copiosamente. E assim se deu a entrada do Windhuk em terras brasileiras. Por dois anos os alemães do Windhuk foram muito felizes. De fugitivos da Marinha inglesa, transformaram-se em galãs europeus, de férias nos trópicos. “Foi o paraíso da minha vida, férias, praia de Segunda à Segunda e meninas” relata Otto. Ressaltamos que durante a Segunda Guerra Mundial o Brasil vivia o período conhecido por Estado Novo, mas manteve-se neutro até 1939. Dados de Dietrich (1997) 66 A maior parte dos dados e também relatos sobre o Windhuk teve como fonte a revista Época online. Para maiores informações consultar http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR64926-6014,00.htm 92 mostram que o Brasil, durante o período inicial da guerra, desfrutou do poder de barganha. Getúlio Vargas manteve dissimulada neutralidade perante aliados e eixistas, favorecendo as negociações comerciais. Entretanto, após a ajuda financeira norte-americana para a construção da siderúrgica de Volta Redonda, o governo brasileiro aliou-se aos Estados Unidos, Inglaterra e França na luta contra os países do Eixo, em 31 de agosto de 1942. (DIETRICH, 1997; RAMOS et al. 2009). A partir de então, imigrantes alemães não eram mais bem vindos. Passaram a ser perseguidos e até mesmo presos em campos de concentração, criados para abrigar exclusivamente prisioneiros do Eixo - alemães, italianos e japoneses - nas cidades de Pindamonhangaba, Guaratinguetá, Bauru, Ribeirão Preto e Pirassununga, no interior Paulista. Segundo relatos levantados pela revista Época (2004) os prisioneiros foram amontoados em caminhões e levados para o confinamento em chamados Centros de imigração. “Este foi o inferno de minha vida” comenta o mesmo Otto, “Éramos bichos” ressalta Erwin Dietrich. O Brasil manteve, por anos, pessoas presas devido a sua origem. “Nosso navio não era de guerra, por que nos foram tirados anos de vida? Dormíamos em estábulos, como gado. À noite éramos fechados e não tínhamos banheiro. Uma vez nos deixaram pelados de castigo, por dias” conta Erwin Dietrich, prisioneiro em Bauru-SP aos 18 anos de idade. Sayad (1998) destaca a existência de uma lógica de segregação e de dominação geradoras de racismos, uma vez que o imigrante, por não ser um autóctone (alguém do lugar), tem a igualdade de direitos recusada. “[...] não sendo o imigrante um nacional, isso justifica a economia de exigências que se tem para com ele em matéria de igualdade de tratamento frente à lei e na prática” (SAYAD, 1998, p. 58). Usando-se como pretexto as desigualdades, a igualdade de fato “torna-se impossível devido à desigualdade de direito” (ibidem). Deve se considerar, no caso dos ex-tripulantes do Windhuk, uma imigração que se deu de modo forçado, sem preparo ou planejamento prévio. O mesmo autor coloca ainda o uso do termo etnocentrismo como desculpa para descrever qual imigrante é “educável” ou “consertável” ou ainda “evoluível”, sobretudo, quando este é julgado por aqueles que estão em posição dominante. Desta forma, é justificado todo o incentivo ao discurso pronunciado sobre as iniciativas moralizantes às quais os imigrantes são submetidos. Tudo isso são coisas que se gosta de confundir e encarar apenas do ponto de vista daqueles que tomaram essa iniciativa: a ação educativa, no sentido amplo do termo (na verdade ação civilizadora), exercida sobre essa “classe perigosa”, esses “nativos desnaturados”, esses “selvagens” 93 vindos de outro continente - geográfico e ainda mais cultural e de outro tempo [...]. (SAYAD, 1998, p. 61) Magalhães (1998) coloca que discriminações sofridas por imigrantes “teutos” e seus descendentes, em virtude de sua origem, provocou nestes a convicção de que eram efetivamente estrangeiros e o seriam para sempre no Brasil. A discriminação sempre esteve presente, já no início das imigrações no século XIX, ainda que de forma sutil. Seja pelo fato de professarem a religião protestante, utilizarem idioma estrangeiro ou mesmo por serem trabalhadores braçais. Além disto, cabem em paralelo, reflexões de Sayad (1998) e Koltai (1997) quanto à condição produzida pelo significado do “ser imigrante”. Sayad (1998) afirma que a imigração sofre de uma contradição dupla, porque representa um estado provisório que se prolonga indefinidamente, ao mesmo tempo em que se torna um estado definitivo e vivido com o sentimento de provisório. Para o senso comum, estrangeiro é alguém que vem de outro lugar, que não está em seu país e que, ainda que em certas ocasiões possa ser bemvindo, na maioria das vezes é passível de ser mandado de volta para seu país de origem, repatriado. “A categoria sócio-política que o estrangeiro ocupa o fixa numa alteridade que implica numa exclusão, necessariamente.” (KOLTAI, 1997, p. 8). Pierre Bourdieu (1998) em sua introdução a Sayad (1998) traz interessante definição do “ser imigrante”: [...] o imigrante é atopos, sem lugar, deslocado, inclassificável. Nem cidadão e nem estrangeiro, nem totalmente do lado do mesmo, nem totalmente do lado do outro, o “imigrante” situase neste lugar “bastardo” de que Platão também fala, a fronteira entre o ser e o não-ser social. Deslocado, no sentido de incongruente e inoportuno, ele suscita o embaraço; e a dificuldade que se experimenta em pensá-lo - até na ciência, que muitas vezes adota, sem sabê-lo, os pressupostos ou as omissões da visão oficial apenas reproduz o embaraço que sua inexistência incomoda cria. Incômodo em todo lugar, e doravante, tanto em sua sociedade de origem, quanto em sua sociedade receptora, ele obriga a repensar completamente a questão dos fundamentos legítimos da cidadania e da relação entre Estado e a Nação ou a nacionalidade. Presença ausente, ele nos obriga a questionar não só as reações de rejeição, que, ao considerar o Estado como uma expressão de Nação justificase pretendendo fundar a cidadania na comunidade da língua e de cultura (quando não de “raça”). [...] o “imigrante” funciona, como podemos notar, como um extraordinário analista 94 das regiões mais obscuras do inconsciente. (BOURDIEU, 1998, p.11-12) Há de ser levado em consideração, neste contexto relacionado ao “ser imigrante”, o que Appadurai (2009) retrata em seu ensaio, quanto à violência em larga escala exercida por maiorias sobre minorias, violência associada a aspectos culturais. O autor promove tal relação, quando entende que, em se tratando de uma determinada cultura, maiorias numéricas precisam de minorias que abarquem sua angústia e ansiedade, necessitando, desta forma, de um objeto que eleve sua sensação de completude, o que justificaria, em seu entendimento, a ocorrência de estereótipos, preconceitos até xenofobias e genocídios. O medo é direcionado aos imigrantes (pequenos números), que por sua vez, corporificam o grande medo do abstrato. São, neste contexto de exorcismo do novo, transformados em “identidades anômalas” (APPADURAI, 2009, p. 40). Se, de um lado, podem ser vistos como necessários, são, ao mesmo tempo, mal recebidos, rechaçados, considerados parte principal do fracasso das estruturas econômicas. Para as maiorias, “os pequenos números (minorias) levam ao fantasma da conspiração” (idem, p.52) ou “pequenos números carregam interesses especiais” (idem, p. 53). Com o surgimento do ideário nacionalista das elites brasileiras, principalmente durante a Segunda Guerra Mundial, o anti-germanismo revelou-se de maneira contundente. Naqueles anos de guerra, em nome da defesa da Pátria, depredaram-se lojas, associações e entidades “teutas”. Os retratos de familiares e também de seus ídolos nacionais eram quebrados, suas bandeiras rasgadas e proibida a circulação de periódicos na língua alemã. Nos jornais, notícias de toda ordem justificavam e estimulavam tais represálias: os teutobrasileiros eram condenados como espiões, traidores e perversos inimigos de todos os povos sendo merecedores, portanto, de uma pena capital: “Viva o Brasil, morte à Alemanha, gritavam os populares nas ruas das cidades.” (MAGALHÃES, 1998, p. 15). Os alemães sofreram com a política nacionalista do governo Vargas uma série de decretos publicados que atingiram seus costumes, o cotidiano e valores. Ficou proibido falar seu idioma em público, reunir-se para atividades políticas ou manter escolas essencialmente alemãs (PERAZZO, 2009). Cabe aqui a observação de Stuart Hall, quanto ao lugar da língua expresso na cultura: “[...] Falar uma língua não significa apenas expressar nossos pensamentos mais interiores e originais; significa que já estão embutidos em nossa língua nossos sistemas culturais.” (HALL, 2011, p. 40) Como estas experiências marcaram a vida destes sujeitos? 95 Além disto, questionamos a condição de opressão vivenciada por passageiros e tripulantes do Windhuk durante o confinamento e sua condição de imigração “à força” produzida por uma situação não planejada. Na busca pelo descobrimento do mundo, realização de sonhos e vivência de liberdade, qual fora o significado de estar preso? Atrevemo-nos ir além, pensando a condição específica destes sujeitos: o que significa estar preso a uma condição da qual não se pode fugir e nem se pode negar: a própria origem? Seriam estes prisioneiros de fato livres ao serem libertados? Como se configuraria seu futuro a partir de então? Para se pensar a problemática suscitada, busca-se apoio na categoria denominada “sofrimento ético-político” (SAWAIA, 2011) que nos auxilia a compreender a dimensão e os desdobramentos cuja condição de exclusão provoca nos sujeitos. [...] se os brados de sofrimento evidenciam a dominação oculta em relações muitas vezes consideradas como parte da natureza humana, o conhecimento dos mesmos possibilita a análise da vivencia particular das questões sociais dominantes em cada época histórica, em outras palavras, da vivência do mal que existe na sociedade. Estudar exclusão pelas emoções dos que a vivem é refletir sobre o “cuidado” que o Estado tem com seus cidadãos. Elas são indicadoras do (des)compromisso com o sofrimento do homem, tanto por parte do aparelho estatal quanto da sociedade civil e do próprio indivíduo. (SAWAIA, 2011, p. 101, aspas da autora) Segundo Sawaia, ao introduzir-se a emoção com o sentido ético-político, obrigam-se as ciências humanas em geral, e a Psicologia Social em especial, a incorporar o corpo do sujeito, até então desencarnado e abstrato, nas análises econômicas e políticas. (SAWAIA, 2011, p.102) Quanto à condição vivida por estes imigrantes, cabe salientar as emoções, justamente por estas serem sociais e, portanto, fenômenos históricos, cujo conteúdo e qualidade estão sempre em construção. Cada momento histórico prioriza uma ou mais emoções como estratégia de controle e coerção social. Hoje, por exemplo, a culpa muda o caráter de expiação, de pública à individual e privada (SAWAIA, 2011 p. 104). Trata-se aqui da emoção vivida, que não diz respeito somente ao eu individual, mas ao sofrimento do excluído, portanto, aos fundamentos da coesão social e da legitimidade social. Ela revela o sofrimento pela consciência de como a lógica 96 excludente opera no plano do sujeito e é amparada pela subjetividade, assim constituída. (idem, 2011) Reportamo-nos ainda a mesma autora, para ressaltar que o sofrimento psicossocial pode redundar em morte biológica. Lembremos como exemplo, do banzo (doença misteriosa que matava o negro escravo brasileiro) gerado, sobretudo pela tristeza advinda do sentimento de estar só e humilhado, por causa de ações legitimadas pela política de exploração e dominação, seja ela econômica ou política. Pensemos aqui, condições semelhantes, vividas pelos sujeitos ex-tripulantes do Windhuk, resultado de uma política advinda de um momento sócio-histórico específico. O sofrimento éticopolítico varia historicamente, mas é por meio de suas nuances que podemos compreender como os sujeitos foram afetados e de que forma o foram, nas diversas facetas produzidas pela sociedade em questão. Em síntese, o sofrimento ético político abrange as múltiplas afecções do corpo e da alma que mutilam a vida de diferentes formas. Qualifica-se pela maneira como sou tratada e trato o outro na intersubjetividade, face a face ou anônima, cuja dinâmica, conteúdo e qualidade são determinados pela organização social. Portanto, o sofrimento ético-político retrata a vivência cotidiana das questões sociais dominantes em cada época histórica, especialmente dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade. Ele revela a tonalidade ética da vivência cotidiana da desigualdade social, da negação imposta socialmente às possibilidades da maioria apropriar-se da produção material, cultural e social de sua época, de se movimentar no espaço público e de expressar desejo e afeto. (SAWAIA, 1995 apud SAWAIA, 2011 p. 106) Para elucidar o que foi tratado em parágrafos anteriores, expomos alguns relatos e histórias vividas pelos integrantes do Windhuk nos campos de concentração em São Paulo: “Eu me tornei mais elástico e vivi feliz” (Otto Kramper, 84 anos) “Embarquei para conhecer o mundo, ser livre. Não queria me casar.” (Hilde, 88 anos). Hilde casou-se em Santos, na cabine do piloto. Engravidou já confinada no campo de concentração em Pindamonhangaba. Como era casada, tinha o direito a viver numa casa com o marido e as outras duas únicas mulheres da tripulação. Comprou o enxoval na cidade, escoltada por soldados com fuzis. Pariu com a silhueta de um deles recortada a janela do hospital. Os companheiros fizeram um berço para seu filho. Depois do final da guerra, Hilde transformou-se em uma das primeiras especialistas em ortóptica do Brasil. Depois que seu marido morreu, em 1963, Hilde voltou à Alemanha algumas vezes. Na última, alugou um carro e dirigiu por 97 12.000 kilômetros, sozinha aos 78 anos de idade e sentia-se livre. Aos 88 pretende repetir o feito. Heinz, 83 anos, só conseguiu voltar à Alemanha 50 anos depois do fim da Guerra, quando já tinha se tornado brasileiro demais. “Fui e já fiquei louco para voltar para o Brasil. Não Vou mais.” Quanto aos contextos supracitados, propõe-se a reflexão de Almeida (2005): Movendo-se no tecido socialmente construído, o individuo pode estabelecer as pontes e as mediações entre sua condição e suas possibilidades, tipificando e ao mesmo tempo, individualizando sua trajetória. As relações entre a biografia e o contexto social onde ela se desenrola, a sociedade em última instância, têm múltiplas direções; não constituem vias de mão única. A existência do projeto dificulta se não impede uma acomodação passiva do sujeito diante das circunstâncias, provocando uma atitude de reserva, e mesmo de resistência, nas suas relações com seu entorno social, isto é, com seus outros significativos e com o meio social mais geral. Evidentemente, a realização do projeto exige do individuo uma boa dose de criatividade a às vezes de discernimento frente a oportunidades inesperadas para delinear uma ação consequente, condizente com sua realidade. (ALMEIDA, 2005, p. 84) Com base nos relatos, pensamos ser possível o surgimento de potencialidades advindas justamente desta condição: o sofrimento vivido. Inspiramo-nos, para tanto, em Espinosa. Para o filósofo, o movimento interno do corpo e o nexo interno das ideias na alma constituem a essência do homem. Esta denomina-se conatus - esforço para perseverar na existência, poder para vencer obstáculos exteriores a esta, poder para expandir-se e realizar-se plenamente. Cada conatus está relacionado com outros e cada um pode realizar grandes esforços em sua relação com os outros, para poder se preservar. O mundo exterior surge como um conjunto de causas que possibilitam aumentar ou diminuir o poder do conatus de cada um. A ação consiste em apropriar-se de todas as causas exteriores que aumentem o poder do conatus. Espinosa [2004] define: Somos ativos quando em nós ou fora de nós ocorre algo de que somos a causa adequada, isto é, quando em nós ou fora de 98 nós ocorre algo que depende apenas de nosso poder. Somos passivos, ao contrário, quando em nós ou fora de nós ocorre algo de que somos causa inadequada, quando o que ocorre em nós ou fora não depende de nosso próprio poder. (p.17) A ação é uma potência positiva, a paixão, um declínio da potência. O homem é livre quando, conhecendo as leis da natureza e as de seu corpo, não se deixa vencer pelo exterior e sabe dominá-lo. A essência humana é definida pelo desejo. O desejo é a tendência interna do conatus a fazer algo que conserve ou aumente sua força. O desejo do homem livre é o desejo no qual, entre o ato de desejar e o objeto desejado, deixa de haver distância para haver união. (ESPINOSA [2004], p.17) Potência aqui compreendida como direito que cada indivíduo tem de ser, de se afirmar e de se expandir, cujo desenvolvimento é condição para se atingir a liberdade. Logo, o homem é potência de vida, de ação e de expansão e isto pode ser aumentado ou diminuído através do que o corpo imagina que está sentindo e se apropria destas imagens criadas. Desta forma, muito do que podemos perceber nos relatos, pode se tratar do que Espinosa sugere com “bons encontros” - que geram afecções positivas e levam a expansão dos sujeitos rumo a formas de emancipação - ou “maus encontros” que levam a afecções tristes - paixões tristes, rumo à passividade. Por afetos, Espinosa entende as afecções do corpo pelas quais a potência de agir deste é aumentada ou diminuída, secundada ou reprimida e ao mesmo tempo, as ideias destas afecções. Entendemos assim os mecanismos de exclusão como manifestações carregadas de emoções, como o medo diante do desconhecido e outras dificuldades vividas no cotidiano, mas cuja emoção pode também gerar ação para mudança. Cabe ainda refletir sobre a formação de um projeto emancipatório, relacionado ao momento histórico e social, junto à interferência das emoções neste. Podemos ir além, considerando o desenvolvimento da identidade neste âmbito. Esta, também ligada ao projeto emancipatório, com importante ênfase nas relações que decorrem ao longo da vida. [...] a identidade pessoal não pode ser entendida como fenômeno meramente individual, mas acima de tudo relacional. Ela se constitui a partir de nossas relações sociais, definindo, consequentemente, nossa localização na sociedade. (CIAMPA, 2003, p. 8) Identidade é relacional. Depende, para existir de algo de fora dela: a saber, de outra identidade, de uma identidade 99 que ela não é, mas que, entretanto, oferece condições para que ela exista. A identidade é assim, marcada pela diferença. (WOODWARD, 2003, p.9) Gonzalez Rey (2004) ao falar de identidade trata-a como noção subjetivada do sujeito que só aparece na confrontação com experiências novas, que impedem o sujeito de identificar tais experiências como próprias. Traz para tanto, como exemplo, o migrar enquanto forte experiência pessoal que só pode ser vivenciada dentro de um processo de identidade quando o sujeito mantiver seu campo de produção de sentidos diante da nova condição de vida, ou ao contrário, gerar novos sentidos que o permitam reconhecer-se no novo espaço de vida assumido (p.158-159, grifo nosso). Os imigrantes do Windhuk, em sua vivência no confinamento, ainda que em situação de exclusão, abandono e humilhação, conseguiram produzir sentidos potentes o suficiente para que, não apenas sobrevivessem à situação estabelecida, como ainda, vislumbrassem possibilidades de adoção da nova pátria para si, construindo novas condições objetivas de vida. Esta produção de sentidos pôde configurar o futuro destes, que possibilitou escolhas entre manterem-se prisioneiros de uma condição dada, ou passarem desta para outra melhor, reconstruída. Em se supondo este movimento como emancipatório, Almeida (2005, p. 94) acrescenta: “ (...) não seria reconstruir o que foi reprimido, ou capacitar-se para a vingança” enquanto Habermas, 1987 (apud ALMEIDA, 2005, p. 94) adverte: Capacidade de construir novas identidades a partir das identidades rompidas ou superadas e de integrá-las de tal modo com as velhas, que o tecido das próprias interações se organiza na unidade de uma biografia peculiar e que, por ser capaz de responder por ela, pode lhe ser atribuída como sua. Com o fim da Guerra, em 1945, os alemães do Windhuk foram libertados, porém, poucos retornaram à Alemanha. Qual seria o significado disto? Reconhecer os mecanismos em que se deu a inclusão-exclusão destes sujeitos, compreender como vivenciaram e lidaram com o sofrimento e a partir deste, como se desenvolveram novas potencialidades provindas de afecções é uma provável forma de delinearem-se respostas possíveis a tal questão. [...] conhecer o sofrimento ético-político é analisar as formas sutis de espoliação humana por trás da aparência de integração social, e, portanto, entender a exclusão e a inclusão como as duas faces modernas de velhos e dramáticos problemas, a desigualdade social, a injustiça e a exploração. (SAWAIA, p. 107) 100 Em 1948, um dos integrantes do Windhuk fundou um restaurante em Moema (localizado na cidade de São Paulo) com o mesmo nome. Desde então, ocorrem encontros anuais com os ex-tripulantes do navio e suas famílias; hoje em dia, com suas viúvas e também netos. O sentido destes encontros anuais pode estar na manutenção das emoções proporcionadas pelos bons encontros estabelecidos entre os membros participantes desta aventura. No fortalecimento das relações de afeto e também do conatus, o grupo se potencializa e assim, em sua relação com a imigração outrora vivenciada como segregação, encontram formas de inclusão na atualidade compartilhando da construção de sentidos que esta vivência lhes trouxe ou ainda lhes traz. Entretanto, há também aqueles que não querem relatar suas histórias e preferem manterem-se calados. Retrato de um passado difícil: é este o caso de um extripulante do Windhuk, abordado em um destes encontros no referido restaurante. O silêncio é prova da medida do sofrimento ético-político que segmenta, cala e penetra no sujeito... É possível, mesmo em tal conjuntura, estar presente e compartilhar de afetos que a experiência em grupo gerou, e ainda gera, nos ex- tripulantes e também, possivelmente, em seus familiares e pessoas próximas. Conclui-se, desta forma, que compreender o sujeito sob o prisma do “sofrimento ético-político” é localizá-lo historicamente, entender sua singularidade, acompanhar sua trajetória e ainda, entrever o surgimento de potencialidades e possibilidades emancipatórias emanadas das construções destes encontros. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, J.A.M. Sobre a anamorfose: identidade e emancipação na velhice. Doutorado em Psicologia Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005. APPADURAI, A. O medo ao Pequeno número. Ensaio sobre a geografia da raiva. São Paulo: Iluminuras/ Itaú Cultural, 2009. BOURDIEU, P. Um analista do inconsciente. Prefácio. In. SAYAD, A. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: EDUSP, 1998, p. 11-12. CIAMPA. A.C. A identidade Social como Metamorfose Humana em Busca da Emancipação: Articulando Pensamento Histórico e Pensamento Utópico. 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É Pesquisador do Pontifício Instituto João Paulo II; Diretor científico da revista Ethos da Universidade Católica de LublinoMembro extraordinario da Pontifícia Academia São Tomás; Professor da Pontifícia Universidade Lateranense. (Tradução: Euripedes Brito Cunha Júnior) 104 ABSTRACTRESUMOABSTRACTRESUMOABSTRA Resumo Em meu artigo, eu não pretendia oferecer uma análise histórica da relação mútua entre Hildebrand e Wojtyla. Até onde posso falar sobre as obras de Wojtyla, não encontramos qualquer referência direta a Hildebrand, e vice-versa. Eu não quero dizer que Wojtyla não conhecia o pensamento de Von Hildebrand. Pelo contrário, é bem possível que ele conhecesse ao menos algumas das obras filosóficas de Hildebrand, já que - como sabemos - ele estudou a ética de Max Scheler e, em geral, estava interessado no movimento fenomenológico. Por outro lado, nas obras de Tadeusz Styczen, que foi um dos colaboradores mais próximos de Wojtyla e seu sucessor na cadeira de ética na Universidade Católica de Lublin, freqüentemente encontramos referências às obras de Von Hildebrand. Assim, parece-me que podemos considerar que Wojtyla conhecia a filosofia de Von Hildebrand, mas ele não pertencia ao grupo de seus interlocutores diretos. Também é interessante notar que na Encíclica Veritatis splendor de João Paulo II, encontramos terminologia - a qual eu tentarei mostrar mais tarde - que é muito semelhante à de von Hildebrand, de modo que, ao menos neste caso, podemos fundamentar nossa suposição de alguma influência direta de Hildebrand sobre Wojtyla. Ao mesmo tempo, por razões metodológicas, as obras de João Paulo II não podem ser vistas como uma simples continuação do pensamento do filósofo Karol Wojtyla. No entanto, independentemente das considerações históricas, podemos dizer uma coisa com certeza. Não é difícil notar uma afinidade profunda entre as abordagens desses dois filósofos, especialmente o modo como filosofia do amor é tratada. Ambos os pensadores reconhecem amor como a única resposta adequada ao valor da pessoa, e, nesse sentido, os dois são Personalistas éticos. Até onde eu posso observar, esta afinidade pode ser explicada simplesmente como um resultado do uso do método fenomenológico adotado por ambos, isto é, como o resultado de uma análise cuidadosa das experiências humanas. Hildebrand e Wojtyla seguem o programa do fundador da fenomenologia, Edmund Husserl, como expresso em seu famoso adágio: "zu zurück Sachen selbst" (ir ao encontro das coisas em si mesmas). Von Hildebrand e Wojtyla certamente subscreveriam o postulado de Husserl: "Nicht von den Philosophen, sondern von den Sachen und muss Problemen der Antrieb zur Forschung ausgehen" ("Não das filosofias, mas das coisas e dos problemas deve partir o impulso da ciência") . Em seu artigo sobre a ética e antropologia de Wojtyla, Tadeusz Styczen refere-se à prioridade de "intuição" (em alemão: Einsicht, que pode ser traduzido também como "intuição") sobre "opinião" (em alemão: Ansicht). Styczen diz: "A reflexão antropológica de Karol Wojtyla é caracterizada pelo fato de que o autor não sabe como serão suas opiniões definitivas sobre a pessoa humana; ele só sabe que eles têm de ser subordinadas sem restrições à experiência do homem. No início conta apenas experiência, intuição só, que é a experiência do mundo e, ao mesmo tempo, minha própria a experiência como pessoa neste mundo." Palavras-chave Intuição; experiência; Hildebrand; Wojtyla 105 Hildebrand certamente compartilha esta convicção sobre a prioridade de experiência na investigação filosófica; ele usa este método de filosofar em suas inúmeras obras e em seu livro A Essência do Amor examina um caso de sua aplicação magistral. Como já mencionei, o personalismo ético constitui outro ponto de encontro entre Hildebrand e Wojtyla. Em suas opiniões, a pessoa constitui a mais elevada epifania do ser, e por isso é digno que se afirme para seu próprio bem. Este é o primeiro ponto que eu gostaria de enfatizar na minha digressão. De acordo com von Hildebrand, cada valor induz para a resposta adequada a sua posição na hierarquia de valores. Por isso, há respostas adequadas aos valores de coisas inanimadas. Por exemplo, admiramos a beleza de uma paisagem ou de uma obra de arte. Animais induzem um outro tipo de resposta, uma vez que - como seres sensíveis - eles não podem ser tratados da mesma forma como coisas não-sensíveis (a este respeito a tradicional classificação jurídica entre pessoas e coisas parece ser inadequada, pois os animais não são pessoas, nem coisas). No entanto, do ponto de vista moral, as pessoas humanas são superiores a todos os outros valores que encontramos no mundo visível. Kant definiu estes valores como "um fim em si mesmo" (Selbstzwecke). Enquanto todas as outras coisas do mundo, em determinadas circunstâncias, podem ser utilizadas como um meio para as finalidades não propriamente suas, as pessoas em todas as circunstâncias não podem ser tratadas apenas instrumentalmente. Elas nunca podem ser vistas apenas como meios. Em seu livro Amor e Responsabilidade Karol Wojtyla - depois de ter criticado a ética do utilitarismo propõe sua própria formulação do princípio kantiano: "Toda vez que o objeto de uma ação é a pessoa, você não deve esquecer que você não está lidando apenas com um meio, como 67 instrumento, mas que uma pessoa é sempre um fim em si mesma." De acordo Wojtyla, esta norma – chamada por ele de "a norma personalista" – constitui o fundamento de toda o ordenamento moral. Devemos compreender bem esta norma. Ela não obsta qualquer tipo de "uso" da pessoa. Em seu comentário sobre a fórmula kantiana, prof. Robert Spaemann salienta a importância da palavra "apenas". Ao viver em comunidade, não podemos evitar o "uso" mútuo do outro, mas isso não significa necessariamente ir contra a norma personalista. Esta norma proíbe-nos de reduzir o outro apenas ao estado de objeto, com a exclusão de qualquer reciprocidade, como acontece, por exemplo, no caso da escravidão, ou quando uma pessoa é tratada apenas como uma fonte de 67 K. Wojtyla, Amore e responsibilità, in: id., Metafisica della persona. Tutte le opere filosofiche e saggi integrativi, Bompiani 2003, p. 479 (tradução: Jaroslaw Merecki). 106 fornecimento de tecidos ou órgãos para os outros (e enquanto a escravidão é geralmente ilegal, o segundo caso de instrumentalização é comum atualmente). Na escola de ética Lublin, a norma personalista foi expressa pelo prof. Tadeusz Styczen na fórmula, inspirada por Wojtyla, "persona est affirmanda per seipsam". Esta fórmula enfatiza que, para que um recurso seja moralmente bom, o objeto da ação, isto é, o bem da pessoa, deve permanecer em primeiro lugar. Este personalismo difere de várias formas de eudemonismo que vêem a felicidade do sujeito como o principal motivo da ação moral. Parece-me, que a crítica ao eudemonismo desenvolvida pela escola Lublin de ética personalista é muito próxima da crítica do conceito tomista de bonum, que encontramos nas obras de Von Hildebrand. Podemos resumi-la da seguinte forma: Se a nossa percepção do bem é totalmente determinada pelo desejo natural, compreendida como appetitus, então só há uma possível motivação para a ação: algo é bom na medida em que satisfaz o desejo do sujeito. Com base neste conceito de bem, a outra pessoa é um bem apenas na medida em que ela contribui para a felicidade do sujeito, mas não como um bem que tenha méritos próprios. Em outras palavras, podemos distinguir dois tipos de bons: um bom como appetibile (e este tipo de bem é conceituada na noção tomista) e um bom como affirmabile. Em Tomismo, é neste segundo tipo de bem que podemos encontrar a noção de bonum honestum. No entanto, parece não estar integrada à noção geral do bem em Tomaz de Aquino. Estes dois tipos de bens exigem duas respostas diferentes a partir do tema: no caso de o bem como appettibile, a resposta é motivada pelo meu próprio bem, enquanto que no caso de o bem como affirmabile, a resposta é motivada pelo bem do objeto de minha ação. Isso exige uma reformulação da filosofia tomista da ação. No contexto desta discussão, é interessante notar que, já na Idade Média, Duns Scotus - que forneceu o complemento filosófico à especulação teológica de Anselmo de Aosta – distinguiu dois diferentes movimentos da ação: a affectio commodi, quer dizer, fazendo uso da terminologia de von Hildebrand, a tendência do sujeito para escolher o que é subjetivamente satisfatório, enquanto o affectio iustitiae é a tendência natural de retribuir com justiça aos méritos para seu próprio bem. Nesta segunda tendência, Duns Scotus viu a expressão real de liberdade do homem.68 Portanto, podemos dizer que, de fato, o amor, entendido em seu sentido ético, significa "fazer justiça ao que merece ser reconhecido para seu 68 “Secundum autem affectionem commodi nihil potest velle nisi in ordine ad se, et hanc haberet si praecise esset appetitus intellectivus sine libertate sequens cognitionem intellectivam, sicut appetitus sensitivus sequitur cognitionem sensitivam. Ex hoc volo habere tantum quod, cum amare aliquid in se sit actus liberior et magis communicativus quam desiderare illud sibi et conveniens magis voluntati inquantum habet affectionem iustitae saltem innatae”, Duns Scotus, Ordinatio III, suppl. dist. 26; in: Duns Scotus on the Will and Morality, A.B. Wolter OFM (ed.), Washington 1986, p. 178. 107 próprio bem". Outro nome para o amor é "afirmação da pessoa por si mesma". Neste ponto de nossa reflexão, levantar a questão: Qual é o conteúdo próprio da norma personalista? O conteúdo da norma personalista é amor. De acordo com a Karol Wojtyla "A pessoa é tão boa que só o amor constitui a atitude adequada e válida frente a si."69 Em outras palavras, o bem que a pessoa é (o bem da pessoa) suscita uma resposta específica e do conteúdo desta resposta é o amor. Mas – podemos perguntar – o que é a natureza do amor, qual é o tipo de resposta? É amar um fenômeno emocional ou é, ao invés, uma postura ao agir? No início de seu livro sobre o amor von Hildebrand coloca esta questão. Ele responde que o amor é uma resposta afetiva de valor. Por outro lado, com a crítica da etica schilleriana desenvolvida por Wojtyla em sua tese de pós-doutorado, uma de suas principais objeções foi o chamado "emocionalismo", isto é, a redução do contato/conteúdo cognitivo com o domínio de valores da esfera emocional. No contexto da nossa digressão é válido questionar o criticismo de Wojtyla também pode ser aplicado a von Hildebrand? Minha resposta é negativa. Se é verdade que, para von Hildebrand amor é uma resposta emocional, no nosso caso, é uma resposta emocional ao valor da pessoa. Assim, ele não sustenta que esta resposta seja independente da razão e da liberdade. Pelo contrário, quando as emoções apresentam valores de uma forma que é existencialmente vívida e atraente, a tarefa da razão é avaliar se um determinado valor é adequado para mim, nesta situação concreta, enquanto a tarefa da ação consiste em sancionar ou não sancionar as emoções que sentimos em um determinado momento. Enquanto Scheler reduz o papel da razão, a fim de não comprometer a autenticidade da resposta humana a valores, Von Hildebrand acertadamente ressaltou a importância do juízo da razão e da postura da ação. Podemos considerar um outro ponto de encontro entre von Hildebrand e Wojtyla em suas respectivas filosofias de amor. Eu já havia apontado que para os dois só o amor é a resposta adequada para o valor da pessoa. No entanto, esta resposta não pode ser limitada à posição subjetiva. A outra pessoa se presta a ser meramente admirada ou teoricamente ratificada, mas em qualquer situação concreta que ela requeria pela ratificação entendida como "atitude prática". Considere, por exemplo, o sacerdote e o levita da parábola do Bom Samaritano: ambos, provavelmente, tinham profunda admiração pela dignidade da pessoa do viajante deixado para morrer. O problema consistia no fato de que sua admiração permaneceu ineficaz em frente a este homem encontrado no caminho para Jerusalém. De modo geral, podemos dizer que a 69 Wojtyla, Metafisica della persona, op. Cit., p. 495 (tradução: Jaroslaw Merecki). 108 dignidade de qualquer pessoa, na maioria dos casos, não é afirmada diretamente, mas é, antes, afirmou, direcionando os bens que a pessoa precisa: se alguém está com fome, sua dignidade é confirmada através dos alimentos que dão ele, se alguém tem sede, não é suficiente que apenas se admire sua dignidade pessoal, temos que dar-lhe algo para beber. Aqui von Hildebrand faz uma distinção muito útil entre os valores, aqueles bens subjetivamente satisfatórios e aqueles que satisfazem às necessidades objetivas da pessoa. Na terminologia de Hildebrand, podemos dizer que o reconhecimento eficaz do bem da pessoa é mediada através desses bens objetivos para a pessoa. Este princípio também é válido quando se trata de minha própria pessoa. Há bens que são apenas subjetivamente satisfatório para mim, e não são bens que servem objetivamente ao restabelecimento da minha pessoa. Da mesma forma Wojtyla distingue entre "o que me apetece fazer" e "o que eu realmente quero." Sabemos que nem todos os bens que nos atraem conscientemente são idênticos aos que desejamos em um nível mais profundo de nosso ser pessoal. Na terminologia de Hildebrand: um bem subjetivamente satisfatório não é sempre o objetivo bom para a pessoa. Assim, podemos dizer que o bem da pessoa (isto é, a sua dignidade pessoal) é afirmada através dos bens (objetivos) para essa pessoa. É interessante notar que a terminologia muito semelhante pode ser encontrado na Encíclica Veritatis splendor de João Paulo II. Eu não posso dizer se, neste caso, podemos reconhecer uma influência direta de von Hildebrand sobre João Paulo II. No entanto, no número 79 da encíclica, lemos que a lei natural é um "complexo ordenado de 'bens pessoais' que servem ao 'bem da pessoa': o bem que é a própria pessoa e sua perfeição.” A distinção aqui entre o "bem da pessoa" e "bens pessoais" permite uma interpretação personalista do conceito tradicional da lei natural. O valor da pessoa, que constitui a base de toda a ordem moral, é assegurado através de vários bens que servem à pessoa e pertencem à sua natureza. Assim, as assim chamadas inclinações naturais obtêm a significância moral, na medida em que dizem respeito ao que é objetivamente bom para a pessoa.70 Aqui podemos ver mais claramente a relação necessária entre ética e antropologia. Para ambos, von Hildebrand e Wojtyla, a ética não é deduzida a partir da antropologia (desde o início que, assim, evitar a objeção de Hume da falácia naturalista). A ética é deduzida não da antropologia, nem da metafísica. Seu ponto de partida é a experiência moral. Por outro lado, a ética precisa ser informado pela antropologia: temos de conhecer a natureza da pessoa, se quisermos confirmá-la de forma efetiva. 70 Cfr. L. Melina, “Bene della persona” e “beni per la persona”, “Lateranum” LXXVII, 1 (2011), p. 89-113. 109 Há um outro ponto importante de encontro entre von Hildebrand e Wojtyla. Trata-se da natureza do amor conjugal. Consideramos: Qual é a especificidade do amor esponsal dentro da visão do amor como a resposta adequada para o valor da pessoa? Embora eles usem uma terminologia diferente, tanto von Hildebrand e quanto Wojtyla vêem esta especificidade como a entrega incondicional da própria pessoa para a outra. Von Hildebrand pontua o fato de que o amor sempre se refere a uma pessoa individual. Wojtyla, por outro lado, diz que ao se apaixonar por uma pessoa do sexo oposto, o ser descobre a singularidade da própria pessoa, entre todas as outras pessoas. Considerando que, em seu sentido ético, amor responde ao valor único da pessoa, entre todas as coisas (um discípulo de Wojtyla, prof. Tadeusz Styczen, diria que o modo de existência pessoal é ontologicamente diferente e axiologicamente superior a toda a existência não-pessoal), o amor esponsal responde ao valor único de que essa pessoa tem de concreto para mim acima de todas as outras pessoas. Daí a pergunta: Como eu e como devo responder a este valor único? Uma resposta adequada é nada menos do que uma dádiva incondicional de si mesmo para o outro. Somente as pessoas são capazes de tamanha dádiva, porque somente as pessoas têm a estrutura característica de auto-possessão. Apenas um ser que possui a si mesmo é capaz de dar a si mesmo. Amor esponsal diz: "Eu quero pertencer a você e eu quero que você me pertença." Em Von Hildebrand, encontramos um conceito que descreve essa experiência. É o conceito de intentio unionis. No amor esponsal a intentio unionis atinge sua maior intensidade, porque pelo dom recíproco é criado o vínculo de pertencimento mútuo. De acordo com Von Hildebrand "amor recíproco inclui 'intenção unitiva' recíproca e esta por sua vez implica que esta união é a fonte de felicidade para ambos os lados."71 Significativamente, von Hildebrand pontua que a experiência de pertencer a outra pessoa contribui de volta para a auto-realização do sujeito. Embora cada pessoa pertença a si mesmo em primeiro lugar [n.b.: em A Pessoa que Age Wojtyla se refere à estrutura de posse de si mesmo para a pessoa; enquanto em A Essência do Amor von Hildebrand lembra-nos que a pessoa não pode ser objeto de posse], no amor esponsal de cada pessoa quer entergar-se, a fim de pertencer ao outro. Paradoxalmente, ao dar-se ao outro, nem a pessoa perde sua subjetividade; pelo contrário, justamente pelo dom de si a subjetividade de cada pessoa encontra a sua máxima realização. Em nossa cultura contemporânea, tendemos a compreender a liberdade como independência completa, pensamos que só somos realmente livres quando podemos fazer tudo "do nosso jeito." A experiência do amor esponsal transforma essa ideia em sua cabeça. A dinâmica natural desse 71 D. Von Hildebrand, Essenza dell’amore, Bompiani 2003, p. 381 (tradução: Jaroslaw Merecki). 110 amor pode nos ajudar a compreender melhor as palavras que os cristãos repetem todos os dias: "Seja feita a Tua vontade." REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA Duns Scotus, Ordinatio III, suppl. dist. 26; in: Duns Scotus on the Will and Morality, A.B. Wolter OFM (ed.), Washington 1986. Husserl, E., Philosophie als Klostermann, Frankfurt a.M. 1965. Strenge Wissenschaft, K. Wojtyla, Amore e responsibilità, in: id., Metafisica della persona. Tutte le opere filosofiche e saggi integrativi, Bompiani 2003. Styczeń, T., Comprendere l’uomo, Lateran University Press, Città del Vaticani 2005. D. Von Hildebrand, Essenza dell’amore, Bompiani 2003. 111 4A Some Remarks on the Philosophy of Love in Dietrich von Hildebrand and Karol Wojtyla Jarosław MERECKI 112 BSTRACTRESUMOABSTRACTRESUMOABSTRAC Abstract First of all I would like to thank the organizers of this conference for the invitation. The translation of the book of Dietrich von Hildebrand Das Wesen der Liebe (The Essence of Love) is an important event, because one of the most original works dedicated to the phenomenon of love is now available to the English reader. For me the opportunity to speak today about the philosophy of Hildebrand and Wojtyla constitutes at the same time an occasion to recall the years of my formation at the Catholic University of Lublin in Poland and at the International Academy of Philosophy in the Principality of Liechtenstein, where I could study the philosophy of these two great thinkers, all the while benefiting from the wisdom of such professors as Tadeusz Styczen, Rocco Buttiglione, Josef Seifert, John Crosby and others. I see this contribution also as an expression of the gratitude I owe them. In my paper I do not intend to offer a historical analysis of the mutual relation between Hildebrand and Wojtyla. As far as I can tell in the works of Wojtyla we do not find any direct reference to Hildebrand and viceversa. I do not want to say that Wojtyla did not know the thought of von Hildebrand. On the contrary, it is quite possible that he knew at least some of the philosophical works of Hildebrand, since – as we know – he studied the ethics of Max Scheler, and in general was interested in the phenomenological movement. On the other hand, in the works of Tadeusz Styczen, who was one of the closest collaborators of Wojtyla and his successor in the chair of ethics at the Catholic University of Lublin, we frequently find references to the works of von Hildebrand. So it seems to me that we can speculate that Wojtyla knew the philosophy of von Hildebrand, but he did not belong to the group of his direct interlocutors. It is also interesting to note that in the encyclical Veritatis splendor of John Paul II we find terminology – which I will try to show later – that is very similar to that of von Hildebrand, so at least in this case we might be justified in assuming some direct influence of Hildebrand on Wojtyla. At the same time, for methodological reasons, the works of John Paul II cannot be seen as a simple continuation of the reflections of the philosopher Karol Wojtyla. Keywords Intuition, experience, Hildebrand, Wojtyla 113 Nevertheless, independently of the historical considerations we can state one thing for sure. It is not difficult to note a profound affinity between these two philosophers’ approaches, especially as the philosophy of love is concerned. Both thinkers recognize love as the only adequate response to the value of the person, and in this sense, both of them are ethical personalists. As far as I can see, this affinity can be explained simply as a result of the use of the phenomenological method adopted by both of them, that is, as the result of the careful analysis of human experience. Hildebrand and Wojtyla follow the program of the founder of phenomenology, Edmund Husserl, as expressed in his famous adage: “zurück zu Sachen selbst” (back to things in themselves). Von Hildebrand and Wojtyla would certainly subscribe to that postulate of Husserl: “Nicht von den Philosophen, sondern von den Sachen und Problemen muss der Antrieb zur Forschung ausgehen” (“The impulse to investigation should not come from philosophers, but from things and problems.”)72. In his paper on the ethics and anthropology of Wojtyla, Tadeusz Styczen refers to the priority of “intuition” (German: Einsicht, which can be translated also as “insight”) over “opinion” (German: Ansicht). Styczen says: “The anthropological reflection of Karol Wojtyla is characterized by the fact that the author does not know how his definitive opinions on the human person will be; he only knows that they have to be subordinated without restriction to the experience of man. At the beginning counts only experience, only intuition, that is the experience of the world and at the same time the experience of my own person in this world.”73 Hildebrand certainly shares this conviction about the priority of experience in the philosophical investigation; he uses this method of philosophizing in his numerous works and in his book The Essence of Love see a case of its masterful application. As I already mentioned, ethical personalism constitutes another point of encounter between Hildebrand and Wojtyla. In their view the person constitutes the highest epiphany of being, and for this reason deserves to be affirmed for his/her own sake. This is the first point I would like to emphasize in my reflection. According to von Hildebrand, every value calls for the response adequate to its position in the hierarchy of values. Therefore there are proper responses to the values of inanimate 72 E. Husserl, Philosophie als Strenge Wissenschaft, Klostermann, Frankfurt a.M. 1965, p. 71. “La reflessione antropologica di Karol Wojtyla si distingue per il fatto che all’inizio l’autore è come se non sapesse quali saranno le sue opinioni definitive sull’uomo; egli sa soltanto che esse devono essere subordinate senza riserve all’esperienza dell’uomo. All’inizio conta soltanto esperienza, soltanto intuizione, cioè l’esperienza del mondo e, nel contempo, di me stesso in esso”, T. Styczeń, Comprendere l’uomo, Lateran University Press, Città del Vaticani 2005, p. 148. 73 114 things, e.g. we admire the beauty of a landscape or of a work of art. Animals call for another type of response, since – as sentient beings – they cannot be treated in the same way as non-sentient things (in this respect the traditional juridical division between persons and things appears to be inadequate, since animals are neither persons nor things). However, from the moral point of view human persons are superior to all other values which we encounter in the visible world. Kant has defined these values as “ends in themselves” (Selbstzwecke). While all other things in the world under certain circumstances may be used as a means to ends not their own, persons in all circumstances can be treated only instrumentally. They can never be seen merely as means. In his book Love and Responsibility Karol Wojtyla – after having criticized utilitarianism in ethics – proposes his own formulation of the Kantian principle: “Every time when the object of an action is the person you should not forget that you are not dealing only with a means, an instrument, but that a person is always an end in him/herself.”74 According to Wojtyla this norm – called by him “the personalistic norm” – constitutes the foundation of the whole moral order. We should understand this norm well. It does not preclude any sort of “using” of the person. In his commentary on the Kantian formula, prof. Robert Spaemann stresses the importance of the word “only”. While living in community we cannot avoid the reciprocal “use” of each other, but this does not necessarily go against the personalistic norm. This norm forbids us from reducing the other only to the status of object, excluding any reciprocity, as happens for example in the case of slavery, or when one person is treated only as a source of tissues or organs for others (and while slavery is generally illegal, the second case of instrumentalization is widespread today). In the Lublin school of ethics the personalistic norm was expressed by prof. Tadeusz Styczen in the formula, inspired by Wojtyla himself, “persona est affirmanda per seipsam”. This formula emphasizes that, for an action to be morally good, the object of the action, that is, the good of the person, ought to stand in the first place. In stressing this personalism differs from various forms of eudemonism which see the happiness of the subject as the principal motive of the moral action. It seems to me, that the critique of eudemonism developed by the Lublin school of personalistic ethics is very 74 K. Wojtyla, Amore e responsibilità, in: id., Metafisica della persona. Tutte le opere filosofiche e saggi integrativi, Bompiani 2003, p. 479 (my translation). 115 close to the critique of the Thomistic concept of bonum, which we find in the works of von Hildebrand. We may summarize it as follows: If our perception of the good is totally determined by natural desire, understood as appetitus, then there is only one possible motivation for action: something is good in as much as it satisfies the desire of the subject. On the basis of this concept of good, the other person is a good only insofar as he/she contributes to the happiness of the subject, but not as a good which merits to be affirmed for its own sake. In other words, we distinguish two kinds of good: a good as appetibile (and this type of good is conceptualized in the Thomistic notion) and a good as affirmabile. In Thomism it is this second type of good which can be found in the notion of bonum honestum, however, it seems not to be integrated in Thomas’ general conception of the good. These two types of goodness require two different responses from the subject: in the case of the good as appettibile the response is motivated by my own good, whereas in the case of the good as affirmabile the response is motivated by the good of the object of my action. This requires a reformulation of the Thomistic philosophy of the will. In the context of this discussion it is interesting to note that, already in the Middle Ages, Duns Scotus – who gave the philosophical complement to the theological speculation of Anselm of Aosta – distinguished two different movements of the will: the affection commode, that is, to put it in the terminology of von Hildebrand, the tendency of the subject to choose what is subjectively satisfying, while the affection iustitae is the natural tendency to render justice to what merits affirmation for its own sake. In this second tendency, Duns Scotus saw the actual expression of human freedom.75 Therefore, we can say that, in fact, love, understood in its ethical sense, means “to render justice to what merits to be affirmed for its own sake”. Another name for love is “to render justice to what merits to be affirmed for its own sake”. At this point of our reflection we take up the question: What is the proper content of the personalistic norm? The content of the personalistic norm is love. According to Karol Wojtyla “The person is such a good that the only love constitutes the adequate and valid attitude in front of him/her.”76 In other words, the good that the person is (the good of the person) calls forth a specific response and the content of this response is love. 75 “Secundum autem affectionem commodi nihil potest velle nisi in ordine ad se, et hanc haberet si praecise esset appetitus intellectivus sine libertate sequens cognitionem intellectivam, sicut appetitus sensitivus sequitur cognitionem sensitivam. Ex hoc volo habere tantum quod, cum amare aliquid in se sit actus liberior et magis communicativus quam desiderare illud sibi et conveniens magis voluntati inquantum habet affectionem iustitae saltem innatae”, Duns Scotus, Ordinatio III, suppl. dist. 26; in: Duns Scotus on the Will and Morality, A.B. Wolter OFM (ed.), Washington 1986, p. 178. 76 Wojtyla, Metafisica della persona, op. Cit., p. 495 (my translation). 116 But – we may ask – what is the nature of love, what type of response is it? Is love an emotional phenomenon or is it, instead, a stance of the will? At the beginning of his book on love von Hildebrand poses this question. He answers that love is an affective response to value. On the other hand, with the criticism of the Schelerian ethics developed by Wojtyla in his postdoctoral thesis, one of his main objections was so-called “emotionalism”, that is, the reduction of the cognitive contact/content of with the realm of values to the emotional sphere. In the context of our reflection it is worthwhile to ask if Wojtyla’s criticism can also be applied to von Hildebrand? My answer is negative. While it is true that for von Hildebrand love is an emotional response, in our case, it is an emotional response to the value of the person. He does not thereby maintain that this response is independent of reason and freedom. On the contrary, when emotions present values in a way that is existentially vivid and attractive, the task of reason is to assess whether a given value is right for me in this concrete situation, while the task of the will consists in sanctioning or not sanctioning the emotions I feel in a given moment. While Scheler reduces the role of the will in order not to compromise the authenticity of the human response to values, von Hildebrand rightly underscored the importance of the judgment of reason and the stance of the will. We can consider another point of encounter of von Hildebrand and Wojtyla in their respective philosophies of love. I have already indicated that for both of them only love is the adequate response to the value of the person. However, this response cannot be limited to the subjective stance. The other person is not merely to be admired or theoretically affirmed, but in any concrete situation he/she calls for the affirmation understood as “practical attitude”. Consider, for instance, the priest and the Levite in parable of the Good Samaritan: both apparently had deep admiration for the dignity of the person of the traveler left for dead. The problem consisted in the fact that their admiration remained ineffective in front of this man encountered on the way to Jerusalem. Generally speaking we can say that the dignity of any person, in most cases, is not affirmed directly, but is, rather, affirmed by addressing those goods which the person needs: if somebody is hungry, his dignity is affirmed through the food we give him, if somebody is thirsty, it is not enough that we only admire his personal dignity, we have to give his something to drink. Here von Hildebrand makes a very helpful distinction between values; those goods that are subjectively satisfying and those that satisfy the objective needs of the person. In Hildebrand’s terminology we can say that effective affirmation of the good of the person is mediated through those objective goods for the person. This principle is also valid when it comes to my own person. There are goods which are merely subjectively 117 satisfying for me, and there are goods which objectively serve the flourishing of my person. Similarly Wojtyla distinguishes between “what I feel like doing” and “what I really want.” We know that not all those goods which attract us consciously are identical with those that we desire at a deeper level of our personal self. In Hildebrand’s terminology: a subjectively satisfying good is not always the objective good for the person. Thus we may say that the good of the person (that is, his or her personal dignity) is affirmed through the (objective) goods for that person. It is interesting to note that very similar terminology can be found in the encyclical Veritatis splendor of John Paul II. I cannot say if in this case we can claim a direct influence of von Hildebrand on John Paul II. However, in number 79 of the encyclical, we read that the natural law is an “ordered complex of ‘personal goods’ which serve the ‘good of the person’: the good which is the person himself and his perfection.” The distinction here between the “good of the person” and “personal goods” allows for a personalistic interpretation of the traditional concept of natural law. The value of the person, which constitutes the basis of the whole moral order, is affirmed through various goods which serve the person and belong to his nature. Thus the so-called natural inclinations attain moral significance insofar as they pertain to what is objectively good for the person77. Here we can see more clearly the necessary relation between ethics and anthropology. For both von Hildebrand and Wojtyla ethics is not deduced from anthropology (from the very beginning they thereby avoid the Humean objection of naturalistic fallacy). Ethics is deduced from neither anthropology nor from metaphysics. Its original point of departure is moral experience. On the other hand, ethics needs to be informed by anthropology: we have to know the nature of the person if we are to affirm him/her effectively. Another important point of encounter between von Hildebrand and Wojtyla. It concerns the nature of spousal love. We consider: What is the specificity of spousal love within the vision of love as the adequate response to the value of the person? Although they use different terminology, both von Hildebrand and Wojtyla see this specificity as the unconditional giving of one’s own person to the other. Von Hildebrand points to the fact that love refers always to an individual person. Wojtyla, on the other hand, says that in falling in love with a person of the opposite sex one discovers the uniqueness of one’s own person among all other persons. Whereas, in its ethical sense, love responds to the unique value of the person among all things (a disciple of Wojtyla, prof. Tadeusz Styczen, would say that the mode of personal existence is ontologically different and axiologically higher 77 Cfr. L. Melina, “Bene della persona” e “beni per la persona”, “Lateranum” LXXVII, 1 (2011), p. 89-113. 118 than all non-personal existence). Spousal love responds to the unique value that this concrete person has for me above all other persons. Hence the question: How do I and how should I respond to this unique value? An adequate response is nothing less than an unconditional gift of oneself to the other. Only persons are capable of such giving, because only persons have the characteristic structure of self-possession. Only a being that possesses himself is able to give himself. Spousal love says: “I want to belong to you and I want you to belong to me.” In von Hildebrand we find a concept that describes this experience. It is the concept of intentio unionis. In spousal love the intentio unionis reaches its highest intensity, because by the reciprocal gift is created the bond of mutual belonging. According to von Hildebrand “Reciprocal love includes a reciprocal ‘unitive intention’ and this in its turn implies that this union is the source of happiness for both sides.”78 Significantly, von Hildebrand points out that the experience of belonging to another person contributes in turn to the self-realization of the subject. Although each person belongs to himself first of all [n.b.: in The Acting Person Wojtyla refers to the structure of self-possession for the person; while in The Essence of Love von Hildebrand reminds us that the person cannot be an object of possession], in spousal love each person wants to give himself/herself away in order to belong to the other. Paradoxically, by giving oneself to the other, neither person loses his/her subjectivity; on the contrary, precisely by selfgift the subjectivity of each person finds its highest realization. In our contemporary culture we tend to understand freedom as complete independence, thinking that we are only really free when we can do everything “our way.” The experience of spousal love turns this idea on its head. The natural dynamics of such love can help us understand better the words that Christians repeat every day: “Thy will by done.” BIBLIOGRAFIA Duns Scotus, Ordinatio III, suppl. dist. 26; in: Duns Scotus on the Will and Morality, A.B. Wolter OFM (ed.), Washington 1986. Husserl, E., Philosophie als Klostermann, Frankfurt a.M. 1965. Strenge Wissenschaft, K. Wojtyla, Amore e responsibilità, in: id., Metafisica della persona. Tutte le opere filosofiche e saggi integrativi, Bompiani 2003. 78 D. Von Hildebrand, Essenza dell’amore, Bompiani 2003, p. 381 (my translation). 119 Styczeń, T., Comprendere l’uomo, Lateran University Press, Città del Vaticani 2005. D. Von Hildebrand, Essenza dell’amore, Bompiani 2003. 120 ipação e movimentos sociais em saúde: esvaziamento 5 Comunas da terra: relações entre sujeitos na paisagem híbrida campo-cidade * Ana Paula Soares da SILVA: [email protected] Endereço Av Bandeirantes, 3900. Bairro Monte Alegre, Ribeirão preto (SP), CEP 14040-901. Telefone: (16) 3602 3659. CV: http://lattes.cnpq.br/9207972960390849: Docente do curso de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação da FFCLRP-USP, coordenadora do grupo SEITERRA/CINDEDI-USP, membro do Laboratório de Psicologia Socioambiental e Intervenção (LAPSI-USP). 121 * Agradecimentos à FAPESP e à Pró-reitora de Cultura e Extensão da USP pelo financiamento aos projetos de pesquisa e extensão do grupo de pesquisa Subjetividade, Educação e Infância nos Territórios Rurais e a Agrária (SEITERRA/CINDEDI-USP). Resumo O texto busca refletir sobre alguns processos vividos por adultos e crianças em um assentamento rural caracterizado como Comuna da Terra. Este tipo de assentamento provoca mudanças culturais nas dinâmicas de poder entre cidade e campo e contrapõe modelos hegemônicos de relação dos sujeitos com o ambiente natural. O material empírico é proveniente de atividades de extensão desenvolvidas em Ribeirão Preto (SP). Palavras-chave assentamento rural; relações cidade-campo; reforma agrária; comuna da terra. Abstrac This article aims to think over the processes experienced by adults and children in a rural settlement named Land Commune. This type of settlement provokes cultural changes in power dynamics between town and country. In addition, is opposed to hegemonic models of relationship with natural environment. The empirical material comes from extension activities in a rural settlement in Ribeirão Preto (SP). Keywords rural settlement; city-country relationship; land reform; land commune. BSTRACTRESUMOABSTRACTRESUMOABSTRAC 122 1. INTRODUÇÃO A ampliação no número de assentamentos rurais da reforma agrária, verificada nos anos de redemocratização do país após o período da ditadura civil-militar79, tem chamado a atenção de pesquisadores de diversas áreas para este contexto. Não são poucas as pesquisas que buscam compreender os processos gerados no interior das dinâmicas de implantação dos assentamentos, abordando desde aspectos referentes à viabilidade econômica às mudanças produzidas na subjetividade e nas condições de vida dos assentados (Leite, Heredia, Medeiros et al, 2004; Simonetti, 2011). Os assentamentos rurais, na realidade brasileira, são resultado de intensos processos sociais, econômicos, políticos e culturais. As áreas destinadas para a reforma agrária, em suas origens, como assinalam Leite e colaboradores (2004, p. 40), geralmente contaram com a existência de conflitos que, juntamente com “as inciativas dos movimentos sociais”, constituíram-se no motor das desapropriações. Na atualidade, os assentamentos consistem na efetivação de política pública, prevista pela Constituição de 1988 (Brasil, 1988), como instrumento de reorganização da estrutura fundiária e de garantia da função social da terra. Conforme artigo 186 da Constituição Federal de 1988, a garantia desta função exige o cumprimento simultâneo: do aproveitamento racional da produção; da utilização adequada dos recursos naturais; da observância às disposições que regulam as relações de trabalho; do favorecimento do bemestar dos proprietários e dos trabalhadores. Essa definição, além de orientar a disputa jurídica e política acerca da posse da terra, aponta um horizonte a ser seguido nos planos de assentamentos que necessitam construir alternativas ao uso anterior da área que foi desapropriada. Em torno dos assentamentos, seja no momento de sua constituição seja posteriormente, na sua implantação cotidiana, sujeitos sociais disputam concepções de diversas ordens relativas: aos modelos de sociedade vigentes e desejados; aos projetos de desenvolvimento para o país; às formas de uso e ocupação do solo; às relações cidade e campo; às práticas sociais e de sociabilidade. No limite, as disputas de acesso à terra colocam em confronto os entendimentos sobre a democratização dos bens naturais e construídos, materiais e simbólicos, presentes no seio da sociedade brasileira. 79 Dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA demonstram que, até 1994, havia 58.317 famílias assentadas. Este número, em 2012, totalizava 1.258.205. Fonte: INCRA, DT/Gab-Monitoria - Sipra Web 31/01/2013. Disponível em http://www.incra.gov.br/index.php/reforma-agraria-2/questao-agraria/numeros-da-reforma-agraria/file/1148-familias-assentadas 123 Essas disputas, travadas no âmbito das realidades regionais e locais, resultam em uma variedade de tipos de assentamentos rurais. Esta variedade é dependente, dentre outras coisas, do ciclo de vida do assentamento, dos projetos de produção individual e coletiva, das formas de organização no espaço do assentamento, das flutuações nas políticas de financiamento e de crédito, do tamanho da área ocupada e do número de famílias ali presentes, da integração ao mercado consumidor local, do uso de tecnologias ou inovação produtiva, da presença de reservas naturais na área assentada, da distância em relação aos centros urbanos. Mais recentemente, como elaboração construída no interior de movimentos sociais do campo e da cidade, surge um tipo novo de assentamento denominado Comuna da Terra. A proposta de Comunas da Terra é construída, segundo Goldfarb (2011), no final dos anos 90 e início dos anos 2000, como uma das estratégias do movimento social, particularmente pensada para regiões próximas a grandes centros urbanos. Como registro inicial desta proposta, a autora identifica a monografia de Delwek Matheus, intitulada “Comunas da Terra – um novo modelo de assentamento rural do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra”, apresentada, em 2003, no curso Realidade Brasileira, da UFJF e Escola Florestan Nacional Florestan Fernandes. Nela, o autor sistematizou as discussões que vinham ocorrendo em São Paulo na direção estadual do MST. As Comunas da Terra inserem-se num contexto de ampliação dos debates acerca da reforma agrária, a partir de uma compreensão de que esta problemática está intrinsecamente relacionada à questão urbana. Três elementos são fundamentais na sua formulação: a vinculação originária de seus sujeitos com a cidade; a produção baseada em práticas e princípios agroecológicos; a priorização da concessão e do uso coletivos da terra. Estes três elementos, para além de se constituírem em meras propostas que conjuntamente caracterizariam as Comunas da Terra, são posições contra-hegemônicas aos seus pares antagônicos. No caso da vinculação com os centros urbanos, é comum a presença de discursos que, apoiados nas estatísticas da distribuição geográfica da população, questionam a pertinência da reforma agrária no momento atual, uma vez que grande parcela da população não possuiria vínculo com o campo. Na proposta de constituição da Comuna da Terra, esse fato não seria em si um problema. Ao contrário, como parte de um diagnóstico acerca da precarização das condições de vida nas cidades, a inserção na reforma agrária e o acesso à terra seriam uma alternativa para parcela da população que vive nessas condições. Essa alternativa constrói-se não teoricamente, mas a partir da realidade vivida por moradores na cidade São Paulo. 124 Tanto Gomes (2004) quanto Goldfarb (2011) relatam a origem das Comunas da Terra na formação, em 2001, do assentamento Dom Tomás Balduíno, localizado próximo à cidade de São Paulo, em Franco da Rocha. Gomes (Idem) testemunhou de perto o processo que levaria à criação desse assentamento. Como membro do grupo Fraternidade do Povo de Rua, que desenvolvia ações originalmente junto a moradores de rua e, posteriormente, a moradores de cortiços e favela, o autor vivenciou a aproximação deste grupo ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST e ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. Também presenciou a ocupação de uma área pelo grupo e a mudança de seu nome para Centro de Formação Campo-Cidade. Desta aproximação, resulta a criação do assentamento Dom Tomás Balduíno, numa perspectiva de transformação social e de enfrentamento da exclusão vivida pelas pessoas que faziam parte dos projetos desenvolvidos pelo Centro de Formação Campo-Cidade. Outros assentamentos passaram a compor o leque de atuações deste centro. O autor acompanhou assim o que denomina de “itinerários de sentidos”, vividos na transição de pessoas em situação de rua para a condição de assentados, em um espaço situado nos limites da cidade, caracterizado por ele como rururbano. Para Goldfarb (2011), a proposta implantada no assentamento Dom Tomás Balduíno “vinha sendo gestada já desde antes, com os acampamentos Nova Canudos, na região de Iara e Terra Sem Males, na região de Porto Feliz e depois Campinas” (p. 23). Segundo a autora, o que havia de comum era a forte presença de famílias cuja origem estava atrelada à cidade, embora algumas tivessem, no passado, ligações com o mundo rural. Com a presença destas famílias, pode-se falar no que a autora chama de uma “heterogeneização do sujeito da reforma” (p. 81), resultado de um processo de atuação nas fronteiras da cidade que, sem substituir a necessidade da reforma agrária em áreas interioranas, amplia o número de pessoas envolvidas com a luta pela democratização do acesso à terra. Goldfarb (Idem) afirma que, em 2011, as Comunas da Terra somavam, em São Paulo, “sete assentamentos, além de diversos assentamentos” (p. 23). Nesse processo, a reforma agrária absorve uma quantidade de famílias que, vivendo há muito tempo na cidade, alimentam desejos de retomar origens e valores rurais perdidos em suas histórias de vida e, ao mesmo tempo, possuem dificuldades em realizar-se em espaços muito distantes dos centros urbanos. Esse fenômeno coaduna-se inclusive com as transformações que vem vivendo o campo brasileiro, apontadas por alguns autores como a emergência de “novas ruralidades” (Carneiro, 2011). Nesses espaços, não necessariamente de assentamentos, verifica-se a pluriatividade 125 econômica, em que membros das famílias desenvolvem atividades no campo e na cidade. As atividades mistas, agrícolas e não agrícolas, seriam a criação de condições para a manutenção da família nesse novo rural. Na Comuna da Terra, nos limites entre o campo e a cidade, junto com a construção de novos sujeitos, constroem-se também novos espaços e paisagens. Os limites borrados destas faixas exercem forças no jogo da expansão urbana e do movimento de diferentes sujeitos na ocupação dos espaços vazios. Campo e cidade, mais do que polaridades, são compreendidos como movimentos complexos com interpenetrações. As trocas entre os sujeitos e as movimentações de via dupla, nestes espaços de interface, são bastante intensas. Trazer a reforma agrária para estas áreas conduz ao questionamento das formas de ocupação do espaço e da sua identificação simbólica a grupos sociais. A paisagem, que “trata da dimensão das formas que expressam o movimento da sociedade” (Cavalcanti, 2008, p.52), modificase e o entorno da cidade vive uma dinâmica renovada, o que implica relações de complementaridade ou de tensionamentos geoespacias e socioculturais. O segundo elemento que compõe a proposta das Comunas da Terra, ou seja, a produção baseada preferencialmente em práticas e princípios agroecológicos, exerce função específica nos debates em torno das melhores formas de produção e manejo agrícolas. Este debate, que vincula o assentamento à questão ambiental, é bastante recente para o movimento o social. Beduschi Filho (2003), Maciel (2007) e Goldfarb (2011) discutem como, por vezes, esta relação é bastante conflituosa, em particular quando existem áreas de preservação ambiental nos assentamentos. Nessas localidades, é comum a contraposição de discursos e sujeitos ambientalistas e assentados. A possibilidade de agregar o manejo dos bens naturais à renda é ainda tema pouco incorporado na prática agrícola e também na cultura dos assentados. As Comunas da Terra representam assim um movimento contrário à forma dominante de produção agrícola, forma esta que inclui o uso de agrotóxicos e a mecanização. Aderida aos discursos críticos sobre os transgênicos e de seus impactos na soberania alimentar e no controle das sementes, assim como ao questionamento do uso de agrotóxicos e da indústria de produtos agroquímicos, a proposta da Comuna da Terra vê, na escolha do modo de produção, a criação de uma materialidade que tensiona com o modelo dominante. A viabilidade ambiental é colocada em mesmo pé de igualdade, ou melhor, é concebida como intrinsecamente vinculada à viabilidade econômica dos assentamentos. Nesse processo, diferenciam-se os sujeitos assentados, desdobrando-se em 126 sujeitos com preocupações e práticas ecológicas, o que os faz assumir responsabilidades na preservação ambiental. Essa escolha, originária nos movimentos sociais, foi incorporada pelo Estado ao possibilitar a elaboração de Planos de Desenvolvimento Sustentável – PDS. Embora nem todos os assentamentos que optam pelo PDS possam ser identificados como Comunas da Terra, nelas, necessariamente, o PDS se apresenta como modelo de produção do assentamento. Isto implica os assentados em compromissos também com a preservação e recuperação dos recursos naturais. A questão agrária mescla-se, assim, à questão ambiental, ampliando os desafios na efetivação do assentamento. O terceiro elemento que poderíamos identificar como caraterístico das Comunas da Terra diz respeito à titulação coletiva da área e, consequentemente, à indução a processos também coletivos de organização social e de trabalho. Como PDS, na Comuna da Terra, não ocorre uma titulação privada individual, mas a concessão de direito real de uso para formas cooperadas de organização dos assentados (Goldfarb, 2011). A terra, portanto, não se tornará, como nos assentamentos convencionais, uma propriedade com titulação privada e será sempre pública. Por parte do Estado, o reconhecimento das Comunas da Terra e a sua viabilização por meio do PDS permitem a regulação das áreas limítrofes da cidade, que sofrem pressão para comercialização. Por outro lado, é também o reconhecimento de que a pressão para a reforma agrária e para o acesso à terra não existe apenas em áreas afastadas dos centros urbanos, mas está presente em espaços que concentram a população e que apresentam dificuldades em incluí-la nas políticas de moradia e de emprego. Nos PDSs, é necessário um Plano de Uso do espaço do assentamento, definindo-se as áreas de produção coletiva, de moradia e de produção familiar. O percentual da área a ser preservada ou recuperada ambientalmente depende das legislações e de acordos estabelecidos entre os institutos de terra nacional ou estadual, assentados e, por vezes, Ministério Público, como é o caso de assentamentos da região de Ribeirão Preto (SP), onde um Compromisso de Ajustamento de Conduta, discutido entre os assentados, órgãos do governo e representantes da sociedade civil, definiu as obrigações dos diferentes sujeitos na implantação do modelo agroflorestal dos assentamentos. Esta organização coletiva do espaço gera uma dinâmica social também intensa, alinhando-se a ou confrontando-se com projetos pessoais de uso da terra. O estabelecimento das áreas de produção familiar tenta garantir assim um equilíbrio entre as possibilidades de manejo em grupo e individual, entre os projetos e os desejos pessoais e coletivos. De toda forma, tratase de um modo de organização no espaço que se contrapõe à 127 cultura de relação com a terra, geralmente privatista, patrimonialista e degradadora. A conjunção dos três elementos que caracterizam o que se pode chamar de Comuna da Terra indicia que o que se projeta no horizonte dos assentados não é apenas a reforma agrária, entendida como a colocação de famílias em determinadas áreas. Trata-se de um tipo de sociabilidade e de convivência entre sujeitos, com a natureza e com a propriedade radicalmente contrário ao modelo predominante. Pode-se ainda prever, portanto, desafios que exigem a capacidade criativa para a construção destas novas formas de relações, de construção e requalificação de um espaço em disputa, de desconstrução de elementos culturais fortemente arraigados na nossa sociedade. Questão agrária, questão urbana e questão ambiental configuram campos de atuação dialogada das Comunas da Terra, na construção de alternativa a modos dominantes de se relacionar e de viver. Desta forma, as Comunas da Terra constituem-se em verdadeiros laboratórios sociais, uma vez que ali os sujeitos propõem-se a agir e transformar o espaço, a criar estratégias de relação com o entorno e a projetar a mediação com o ambiente natural em novas bases culturais. São múltiplas, portanto, as possibilidades de abordagem e de investigação dos processos vividos pelos sujeitos nesse tipo de assentamento. Neste texto, é a vivência nos limites com a cidade que procuramos explorar, investigando as tensões iniciais com o entorno e os desafios ao projeto de criação dos filhos em uma área fronteiriça. Temos defendido que os aspectos que caracterizam as Comunas da Terra implicam a presença de elementos particulares que medeiam a relação entre os sujeitos do campo e da cidade. Acreditamos que a escolha do assentamento na proximidade com a cidade nem sempre significa aceitação do entorno à sua presença. As áreas de interface periurbanas são apontadas, por alguns autores, como aquelas que possuem as piores condições em termos de oferta de políticas públicas (Furtado, 2011). Dadas as características dessas áreas, supõe-se que a chegada de um novo grupo explicita tensões que necessitam ser manejadas. Por outro lado, também defendemos que a proximidade com a cidade refletese em desafios na construção dos vínculos entre as gerações e pode tornar frágeis os projetos familiares e coletivos pensados para as gerações seguintes. Com este enfoque, este trabalho tem por objetivo refletir sobre alguns processos vividos por adultos e crianças no momento de implantação de um assentamento rural, localizado no município de Ribeirão Preto (SP), caracterizado como Comuna da Terra. Pretende-se dar visibilidade às relações com o entorno a partir da negociação inicial da presença dos assentados naquele espaço, assim como apontar 128 algumas tensões presentes na atualidade, quando se observa as pressões da cidade sobre as novas gerações. 2. CONTEXTO DA PARTICIPANTES PESQUISA, MATERIAIS E 2.1 O contexto da pesquisa O material analisado e aqui apresentado foi construído durante a inserção prolongada em um assentamento localizado na região de Ribeirão Preto (SP). Essa região tem como atividade econômica principal a monocultura da cana de açúcar. A paisagem rural é predominantemente tomada por grandes imóveis rurais onde se desenvolve a cultura da cana, sendo possível identificar alguns remanescentes de floresta que constituem áreas de reserva legal. Poucos e pequenos sitiantes sobrevivem neste espaço. Os trabalhadores rurais geralmente moram nas periferias das cidades circunvizinhas a Ribeirão Preto e trabalham no corte da cana ou nas usinas de produção de açúcar e álcool. Não raro, observa-se um movimento sazonal destes trabalhadores que, durante a safra, migram para a região, geralmente das regiões nordeste e norte do país. O grau de urbanização da região, de acordo com a Fundação SEADE, em 2010, era de 99,72%. A cidade de Ribeirão Preto funciona como polo regional. Sua base econômica funda-se basicamente na oferta de serviços. O setor de comércio tem papel de destaque, o que atrai também os consumidores das cidades do seu entorno e emprega grande parcela da população residente em Ribeirão Preto. Dados disponibilizados pela Fundação SEADE indicam que a participação dos serviços no total do valor adicionado, em porcentagens, era de 80,78 em 2010, maior do que a média regional (67,29) e estadual (69,05). O setor agropecuário correspondia a uma participação de 0,33%, bem menor que os valores regional (3,50) e estadual (1,87). No Índice Paulista de Responsabilidade Social – IPRS, Ribeirão Preto classifica-se no Grupo 2 que agrupa aqueles municípios que, embora com níveis de riqueza elevados, não exibem bons indicadores sociais80. O setor imobiliário cumpre papel central na definição da paisagem local, na transformação dos bairros residenciais em áreas comerciais, na desvalorização ou valorização de determinadas áreas, na movimentação que cria novas zonas de ocupação. As áreas limítrofes e rurais foram transformadas, 80 Fonte Fundação Sistema Estadual de Análise de http://www.seade.gov.br/produtos/perfil/perfilMunEstado.php Dados 129 SEADE – Perfil Municipal. Disponível em nos últimos anos, principalmente pela presença de condomínios residenciais, empreendimentos diferenciados e setorizados para populações de maior ou menor renda. A área total do município é de 650 km² e a rural é de 320,32 km²81. A área em que se localiza o assentamento era disputada por empreendedores para expansão imobiliária destinada à população de baixa renda. Para aquele espaço, havia projetos de loteamento popular. O assentamento, assim como o bairro vizinho, localizase em uma área de recarga do Aquífero Guarani82. Esse fato dá uma particularidade a esse assentamento e influencia o modelo de produção a ser implantado. A iniciativa do pedido de desapropriação da área para fins de reforma agrária aconteceu em 2000, quando a Promotoria de Justiça do Meio Ambiente e Conflitos Agrários requisitou ao INCRA a desapropriação devido elevado passivo ambiental e suspeita de improdutividade econômica. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, que havia chegado à região de Ribeirão Preto em 1999, ocupa a antiga fazenda em 2003 e, em 2005, ocorre a desapropriação para fins da reforma agrária, por meio de decreto presidencial. O modelo de assentamento escolhido, discutido entre representantes dos assentados, órgãos do governo e membros da sociedade civil, foi o sistema agroflorestal (SAF). Sua proposta consiste no manejo de espécies da flora nativa, unindo a preservação do meio ambiente à exploração econômica e agrícola. Os SAFs são definidos como “formas de uso e de manejo da terra nas quais árvores ou arbustos são utilizados em associação com cultivos agrícolas e/ou com animais, numa mesma área, de maneira simultânea ou numa sequência temporal” (May & col, s/d). Uma vez que grande parte da área era destinada ao cultivo da cana de açúcar, restaram poucas áreas verdes. O modelo do assentamento prevê assim a recomposição da reserva legal, junto com o manejo de árvores frutíferas, grãos, verduras e hortaliças. O projeto de assentamento prevê áreas de produção coletiva (de forma cooperada), áreas de produção familiar e áreas de uso comum para atividades sociais, culturais e de lazer (Firmiano, 2008). Atualmente, o assentamento é dividido territorialmente em quatro movimentos sociais. Do total de 550 famílias, 260 estão ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem terra – MST. O trabalho aqui apresentado é desenvolvido junto a essas famílias. 81 Fonte Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto (SP). Disponível em http://www.ribeiraopreto.sp.gov.br/crp/dados/local/i01area.htm As águas subterrâneas do Aquífero Guarani distribuem-se em uma extensão total de 1,2 milhão Km² no Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai. Do total, 840 mil Km² encontram-se no Brasil, nos Estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Fonte www.geomundo.com.br 82 130 2.2 Materiais e Participantes O material sobre o qual foi feita a análise é proveniente da inserção em um projeto de extensão universitária, desenvolvido junto a adultos e crianças, desde 2007, no espaço/tempo que o MST denomina de Ciranda Infantil. Na Ciranda, as crianças participam de atividades livres ou orientadas por temas relativos ao assentamento e às suas vidas. Objetiva-se que elas se apropriem dos espaços, tempos e relações do assentamento por meio de atividades lúdicas. Os encontros acontecem aos sábados e reúne em torno de 25 crianças e adolescentes dos 3 aos 16 anos de idade. Nossa participação, que conta com o apoio do Setor de Educação do Assentamento e com o Centro de Formação Dom Hélder Câmara, consiste em colaborar com os adultos na organização das atividades para as crianças. Ao longo deste acompanhamento, as atividades foram registradas por meio de videogravação, audiogravação, desenhos, fotografias e memórias escritas. Os registros, realizados no período de 2007 a 2012, ajudam-nos numa perspectiva de análise que engloba aspectos temporais. Foram selecionados 12 videogravações que contêm dinâmicas de dramatização sobre a ciranda, discussões coletivas dos cirandeiros, pequenas conversas com as crianças, acompanhamento de atividades de desenho e de brincadeira das crianças. Essas atividades foram transcritas na íntegra. Também foram realizadas entrevistas, no início de maio de 2013, com sete adultos responsáveis pela organização das atividades junto às crianças ou cuja posição era destacada na implantação do projeto agroflorestal. As entrevistas também foram transcritas. O material foi tratado de forma a identificar as significações dominantes sobre a vivência nas fronteiras entre o campo e a cidade. Nessa análise, considera-se que as relações dos sujeitos são mediadas por relações socioespaciais. Compartilha-se com Pol (1996) o entendimento de que, na apropriação espacial, ocorre simultaneamente a açãotransformação e a identificação simbólica do espaço. Isto significa que o espaço nunca pode ser concebido apenas nas suas características físicas ou por seus limites geográficos. A construção de um espaço é acompanhada por processos de significações sobre ele. Estes processos, por sua vez, estão intrinsicamente articulados aos grupos sociais que ocupam e se apropriam destes espaços. Por isto, a significação dos grupos é mediada pelos espaços e a significação dos espaços é mediada pelas relações entre os grupos. O (auto)reconhecimento grupal e a categorização do eu acontecem assim como parte de um processo de ocupação do espaço. Segundo Moranta e Urrútia (2005), a autoatribuição das qualidades do entorno torna-se definidora das identidades pessoais e grupais. Para Tassara 131 (2005), a identidade só pode assim ser pensada como uma identidade topológica, uma vez que está ancorada nos territórios, em lugares específicos. Em relação às tensões presentes nos projetos de criação dos filhos em área fronteiriça, buscamos compreender as expectativas dos pais como parte do que Bastos (2001) denomina de modos de partilhar. Modos de partilhar podem ser vistos como uma categoria de análise que permite compreender as relações entre gerações em contextos situados. É útil para compreender as práticas que envolvem as novas gerações no processo de socialização da família, concebidas como processos de coconstrução de modos de partilhar a existência. Na análise, entre os diferentes modos de partilhar a vivência no assentamento, ressalta-se o aspecto das expectativas dos adultos em relação à criação dos filhos no espaço fronteiriço assentamento – cidade. 3. RESULTADOS 3.1 A relação com o entorno: de confrontos a hibridismos As relações do assentamento com o bairro vizinho e com a cidade passaram por um processo de negociação, nem sempre fácil. A chegada do grupo de acampados ao local provoca, por parte dos moradores, reações de rejeição, manifestadas de diferentes formas. Nas entrevistas, esse momento inicial é descrito por atos de discriminação e tentativas de identificação dos assentados com uma possível piora na qualidade dos serviços públicos, conforme aparece no relato de Valter83, um dos entrevistados: “Falava que o postinho estava cheio, porque o sistema de saúde não suportava mais uma quantidade de gente dessa”. Em relação a situações de preconceito e humilhação sofridos pelos assentados no bairro, são vários os relatos. Aqui, escolhemos trazer a vivência dos adultos em situação de compra em supermercados e das crianças na escola. As duas foram escolhidas pela relação que possuem com a questão da terra e das marcas visíveis que esta deixa no corpo dos assentados, identificando-os enquanto grupo. Em 2009, em uma das atividades videogravadas na Ciranda, Ruth – uma das responsáveis pelos trabalhos com as crianças – descreve sua vivência: Ruth: Uma faxineira do [nome do supermercado] que não gosta do Sem-Terra, ela não gosta! Se você entra lá, ela vai atrás... limpando. Ela vai batendo o rodo nas suas pernas. Um dia eu falei para ela “O que a senhora tá fazendo?”. “Ah, Sem-Terra, vocês entram tudo 83 Os nomes dos participantes foram modificados para garantir o anonimato. Alguns dos nomes foram escolhidos pelos próprios participantes. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – IPUSP. 132 sujando, Sem-terra, que não sei o quê, não sei o quê”. Eu falei assim “Eu vou continuar sendo Sem-Terra, que é a minha identidade. Só que a senhora vai continuar limpando este chão”. Aí, sabe, nesse dia, eu estava até boa... Fui embora. Quando foi outro dia, saiu o dinheiro pra gente tá fazendo a compra. Aí eu chamei “Vamos lá! Vamos”. E fomos pra lá. Fizemos manifestação, entramos, carimbamos [com pés de terra] todinho o mercado. É uma coisa assim que eu acho que vale a pena e ela... Aí nesse dia, fomos lá conversar com o gerente, a respeito dela. Então, desse dia pra cá, ela melhorou. Vale a pena ela chegar pra nós e conversar, não bater o rodo nas nossas pernas, né. Tinha pessoas que saiam de lá chorando. Então, é uma coisa assim que, “é da roça, é da roça!”. Entendeu? Também Marta se junta na partilha da experiência de discriminação, vivida em outro supermercado, num relato com tom de desabafo. Marta: Só que eu fui num mercado, o de baixo, fui eu e minha filha e a gente foi comprar umas coisinhas lá. E... o homem ficava atrás da gente. Nós estava no corredor ele estava lá. Eu falei “Ah, senhor, o que que está acontecendo?”. “É porque já me roubaram aqui dentro, mas se me roubaram não sabem quem é”. Aí eu falei: “Olha, peço desculpa pro senhor, mas o senhor não precisa andar atrás de mim. Eu sou Sem-Terra, mas eu não me curvo por pouca coisa. O senhor pode ficar despreocupado. E também não vou levar mais nada”. Saí do mercado dele e fui pra outro mercado. Não tem necessidade de comprar onde a pessoa fica duvidando ou vigiando. Eu acho muito crítico isso aí, porque é uma discriminação muito grande. Não é só em mercado... É na maioria dos lugares que às vezes você entra tem a discriminação do Sem-Terra. Estas situações trazidas pelos adultos também se reproduziam com as crianças, no contexto da escola. No assentamento, não há instituição educacional, o que exige o deslocamento de crianças e jovens, por meio por meio de transporte escolar, para as escolas situadas no bairro vizinho ou em outra localidade na cidade. A mãe de uma delas, também responsável pelos trabalhos com as crianças, descreve uma das situações vividas por um de seus filhos. Samara: E, ontem, [nome do filho] recebeu uma advertência pela primeira vez. Eu nunca tinha recebido; nenhum dos meus filhos nunca recebeu, foi a primeira vez ontem. A escola me ligou pedindo pra eu ir lá porque o meu filho, no início da aula, se pegou mesmo com um menino lá e derrubaram cadeira lá e os dois foram pra diretoria. Aí eu fui ver o que estava acontecendo. É porque, já fazia dias que, o [nome do filho], né, é da oitava série, fazia dias que ele falava pra mim que o menino chegava pra ele, a hora que ele chega na sala, o menino fala assim: “E aí, olha os pé do sem-terra. Olha os pé do sem-terra!”. Mas ontem, ele apelou mesmo com o menino porque o menino falou assim: “Nossa, além de vocês serem semterra vocês são fedido!” Aí ele apelou com o menino “Não tô fedido, não!”. “Ah, sem-terra é fedido mesmo moço”. Aí ele apelou, aí 133 brigaram os dois e foram pra diretoria. Aí falou ela assim “Ah, você e ele devem ser do mesmo jeito”. Aí já colocou assim, “se esse da cidade já tem esse modo, imagina um sem-terra também”, né. Daí meu filho disse “Não. Eu nunca vim pra diretoria. Pode olhar melhor aí”. Aí ela olhou “Ah, é mesmo, é verdade. É, mas como eu já liguei pra sua mãe agora não tem jeito” ((simula fala da professora)). Outros dois assentados contam sobre a reação das crianças e da escola na tentativa de lidarem com as marcas de terra que identificam, principalmente, os lugares de pertencimento das crianças assentadas. Lúcio: A faxineira da escola ela pediu pra mim assim “Oh, Lúcio, não tem como você fazer uma cirandinha com essas crianças de vocês? A gente reconhece que lá tem barro, tal. Faz uma cirandinha com eles, de lá pra cá, quando for entrar no portão e faz uma filinha deles e vê, tem essa torneira aqui, para eles indo limpar os pezinhos deles, porque, quando eles chegam na classe, os outro coleguinha fica apontando. Aí fica, tem criança que fica chorando porque sujou a classe”. Aí ela falou “Não é discriminação. É pra ajudar eles, prá não ficarem discriminado entre eles”. Ruth: É uma coisa que assim, que a gente presencia todos os dias. As nossas crianças, as nossas crianças elas usam dois sapatos. Um, elas entram até o ônibus e o outro, a maioria, quando tá chovendo, elas tiram aquele e põem o outro, e põe num saquinho e deixa lá dentro do ônibus mesmo, né. Elas que sentem na pele dentro da sala de aula e dentro da escola. A discriminação e o preconceito vividos no bairro, manifestados por adultos e por outras crianças na escola, são enfrentados de diferentes formas pelos assentados. Ruth e Marta procuram impor, na relação com aquelas pessoas, uma condição de dignidade, num movimento em que reafirmam suas identidades de sem terra e reivindicam o reconhecimento de si enquanto pessoa e enquanto membro de um grupo. No caso de Ruth, ela relata com prazer o dia em que retorna ao supermercado e exerce ali sua posição de superioridade, inclusive “carimbando” o chão com terra. Seu movimento de afirmação de identidade provoca ainda, em resposta, uma fala que coloca a faxineira em uma condição inferior em relação a ela, assentada. Estas trocas permeiam as relações dos sujeitos em interação no espaço híbrido, mas ao mesmo tempo também homogêneo em reação à classe social, dividida pela inserção ou não no projeto do assentamento. Como posicionamento de superioridade, Samara relata que outra faxineira lhe diz sobre sua decisão de não participar do assentamento: “ah, eu dei a vaga pra quem precisa, imagina, eu não preciso daquilo lá”. As crianças, por sua vez, desenvolvem estratégias também diversas: choram, carregam sapatos adicionais, usam sacos plásticos nas pernas, brigam na defesa de si mesmas. 134 Reações que, por vezes, buscam um distanciamento da identidade de sem terra e, por outras, procuram defendê-la. Professores e funcionários da escola, ao tentarem lidar com a situação e ajudar as crianças, não raro, reforçam preconceitos. Este processo de forte tensão, que incide na vida e na auto-identificação dos assentados, modifica-se ao longo do tempo. Outras estratégias são criadas que passam principalmente pela abertura do assentamento para que os moradores do bairro e da cidade conheçam sua realidade e suas propostas. Samara e Valter, na entrevista realizada em 2013, já transcorridos dez anos da chegada ao local, afirmam sobre a relação com a cidade: Samara: Eu acho que é boa. Às vezes, eu não posso dizer 100% assim, que nem tudo é... assim. Eu vejo que vai sempre melhorando. Porque no início, as pessoas quando não conhecem e tem um acampamento, ali perto, as pessoas, por falta de conhecimento, fala: “Ah...”. Ficam meio cismadas, meio com medo. Depois começam a conversar com as pessoas, conhecer as pessoas e daí, pouco a pouco, começam a vir no assentamento, começam a levar os produtos. Às vezes, conhece alguém, faz amizade... Nem vendo, falo “Pega!”. Dá milho, dá uma abóbora. Faz amizade com todo mundo. A gente anda na cidade e já conhece as pessoas, e é conhecido. Valter: Hoje em dia está muito tranquilo. O pessoal leva os produtos ali, o pessoal do bairro vem aqui dentro também passeando, fazendo caminhada. O estranhamento inicial, em grande parte ligado ao imaginário acerca do movimento social que identifica os assentados – o MST –, com o passar do tempo, dá lugar a relações de aproximação. Para os assentados, é o conhecimento que quebra as visões pré-concebidas, mediadas pelos meios de comunicação e pelos discursos do senso comum. As práticas de aproximação são variadas, com iniciativas que partem tanto dos assentados como de diversos segmentos sociais. O assentamento passou assim a receber, constantemente, aqueles que manifestavam interesse em conhecer aquela dinâmica social, como por exemplo, professores da rede pública e de centros de pesquisa, estudantes universitários, assentados de outras localidades do país e a mídia local. Este movimento colaborou para fortalecer os laços sociais, mas, também, a auto-identificação positiva dos assentados no pertencimento àquele espaço, transformando-o em lugar de auto-referência e de vida. Quando se considera que as origens dos assentados não se encontram naquele lugar, este movimento, entendido como apropriação do espaço, tornase importante para suas identidades e seus processos de enraizamento. 135 As dinâmicas de troca entre o assentamento e a cidade, dada a liminaridade do espaço, são bastante intensas. Conforme ressalta Samara, ao responder sobre o por quê da mudança nas relações: “Eu acho que é a convivência do assentado... o assentamento e a cidade... Esta coisa de estar indo lá na cidade e eles vindo pro assentamento”. As amizades, as relações de parentesco com moradores da cidade, a inserção mista das famílias em atividades agrícolas e empregos na cidade, a venda de produto, os usos partilhados dos serviços e equipamentos púbicos, por exemplo, vão construindo redes de relacionamentos sociais e afetivos que aproximam e misturam os moradores do assentamento e da cidade. As identidades previamente concebidas de sem terra aos poucos são reconstruídas a partir de relações concretas. A essa identidade renovada, somam-se aquelas de mãe, trabalhadora, colega, amiga. Diferenciações iniciais dão espaço para identificações posteriores, sem que isto signifique a perda da diferenciação socioespacial dos grupos, que se relacionam nos limites borrados entre o assentamento e o bairro e entre o assentamento e a totalidade da cidade. 3.2 A relação entre os adultos e as crianças: cuidados no espaço fronteiriço A proximidade com a cidade, inerente à proposta da Comuna da Terra, também tem efeitos nas práticas educativas, mais particularmente, nas expectativas que os adultos criam na formação de seus filhos. Realizar o desejo de voltar ao ambiente rural, para muitos, significa também garantir aos filhos uma educação diferenciada daquela acontecia na cidade. Saul, expressa este desejo da seguinte forma: Saul: Meus meninos é dentro de casa, não é moda antiga, mas a gente explica como é que é a vida aqui dentro, como é o comportamento daqui, o comportamento lá de fora. Porque se você planta hoje, daqui dez anos essa semente nasce, daqui cinco anos. Tem hora que a semente brota antes, tem hora que demora, mas ela nasce. Então este comportamento aqui vai servir pro dia de amanhã. Vai servir prá família deles. Eles tão plantando a semente. Vão falar: “meu pai criou desse jeito”. Se tiver certo, pega aquela semente e conserva. A família vai criando a tradição. Meu pai, nós era da roça, mas tinha conhecimento de vida. A educação pensada por Saul contrapõe os comportamentos da cidade aos do campo. Cidade para ele é lugar de “perigo” enquanto a roça significa “sossego”. Resgatar o rural de sua infância representa retomar as tradições familiares e, consequentemente, vincular as gerações. 136 O assentamento também representa fartura, o que fornece as condições materiais para a educação e o cuidado dos filhos: Saul: Você tá dando um alimento saudável pros filhos, um frango criado no quintal. É um porquinho; você vai lá no chiqueiro e mata, e joga na mesa. As crianças veem aquilo, já criam um ânimo de vida. As possibilidades que o espaço do assentamento cria para as crianças foram também destacadas por Samara como aspecto positivo em relação à cidade: Samara: Essa coisa do espaço, de ficar mais livre, de ter, de poder sair, poder brincar. E lá na cidade, os espaços são menores, tudo mais limitado. São comuns as manifestações dos adultos de que as crianças do assentamento são diferenciadas em relação às da cidade, são privilegiadas pelo espaço amplo, possuem maior liberdade de locomoção, convivem com o ambiente natural, conhecem os processos de vida e de morte de plantas e animais, podem subir em árvores, comer frutos frescos e nadar no rio. Vários relatos aparecem neste sentido, em diferentes momentos de nossa inserção no assentamento. Essas descrições trazidas pelos adultos, em alguns momentos, aproximam a infância de seus filhos à vivência da infância pessoal em área rural. Idealizam assim a infância de seus filhos nas lembranças de suas infâncias. Manifestam, no engajamento ao movimento social e na conquista da terra, a busca de condições que concretamente permitam que seus filhos tenham estas vivências. Em outros momentos, ao contrário, essas descrições aparecem para dar força ao argumento de que estão construindo alternativas diferentes às suas infâncias. Por exemplo, em uma das atividades desenvolvidas em 2008, Zélia afirma: Zélia: acho que dou muito valor a uma criança, porque eu não tive...a minha infância. No tempo de eu aproveitar a infância, eu, não só eu, como meus irmão, os dois mais velhos, nenhum deles teve. Desde pequenininho já tava no meio da roça trabalhando, ajudando meu pai, minha mãe... pobre, eles precisava disso. A volta à roça, nos limites da periferia urbana, requer, entretanto, a negociação de imagens e concepções acerca do rural atual que, por vezes, aparece mais fundado em uma percepção romantizada e polarizada em relação à cidade do que necessariamente real. A própria Samara, de alguma forma, menciona as insatisfações das crianças pela escolha dos pais: “Os que vieram mais velhos, eles não se identificaram muito. Eles acham assim, que tem mais facilidade na cidade”. 137 A preocupação nos limites com a cidade é enunciada principalmente em relação às drogas. Saul expressa os intercâmbios dos filhos e a proteção assegurada no respeito que ele construiu: “Até esses carinhas, maconheiro, esses meninos de maloca, jovenzinho, quando os meus meninos passa, fala: ‘Aquele é filho do Saul. Deixa ele quieto’”. Ruth também verbaliza a presença desta preocupação, em uma das atividades videogravadas em 2008. Ela havia participado de uma reunião do Conselho de Segurança do bairro e informava sobre os debates gerados acerca da presença das drogas nos arredores do assentamento: Ruth: Eles tão com um grande problema com relação ao... entorpecente em Ribeirão Preto. E, assim, tá aumento a cada dia. E a gente vê isso mesmo que tá aumentando, se ramificando e a nossa preocupação aqui dentro é se ramificar aqui dentro. A gente tá observando tudo isso e a gente vê realmente que tem essa grande possibilidade, infelizmente, de tá vindo aqui pra dentro, né. Porque, no mesmo momento que eles estão aqui dentro, estão lá fora. Eles estudam lá fora, os amigos são de lá de fora. Então, é conscientizar mesmo, é vê o lado bom e o lado ruim dessa... Além do trânsito diário e das relações construídas, também as próprias famílias, às vezes, dividem-se morando parte na cidade e parte no assentamento. Mestre, por exemplo, possui três filhos e apenas uma delas mora com o pai; os outros dois vivem com a ex-esposa na cidade. Esta forma de partilhar a educação dos filhos entre membros da cidade e do assentamento não é rara, seja com ex-companheiros, seja com companheiros ou parentes, como, por exemplo, avós, morando na cidade. Segundo Mestre, além da filha que mora com ele, outro filho pensa em se engajar no projeto de sistema agroflorestal do assentamento: Mestre: A minha preocupação qual é? É deixar isto para as próximas gerações, construir isto. Eu fico feliz de ver o Dinho [filho de um amigo] empenhado, isso é muito fantástico, fazendo cursos. Essa relação com a família é muito interessante. Dois dos meus filhos têm bastante interesse. O envolvimento e a vinculação das gerações mais novas ao assentamento e à cidade acontecem de diferentes formas. Crianças que nascem no assentamento possuem, segundo os assentados, relações mais integradas àquele ambiente. Uma dificuldade maior, neste sentido, é mais frequente entre os filhos mais velhos. A juventude sofre com mais intensidade as pressões da cidade do que as crianças menores. Do ponto de vista dos assentados, estar no assentamento é parte de um projeto negociado pelos membros da família, em seus diferentes papéis e gerações. Entretanto, o 138 aspecto geracional também aparece nas práticas coletivas organizadas para as crianças como forma de partilhar a vivência no espaço do assentamento. Essa mediação alinha as gerações em torno de um projeto coletivo. Lúcio –um dos assentados responsáveis pela organização das atividades com as crianças – assim se manifesta sobre as expectativas em relação ao trabalho desenvolvido: Lúcio: Todas as coisas que nós fazemos com as crianças nós mostramos pra eles como foi construído. Quando chegar outras crianças, essas que começaram primeiro, podem falar assim: “Nós começamos dessa forma”. Tem uma história lá no final. A gente tem que trabalhar dessa forma com eles, né. Porque quando chegar lá no final, aí tem uma história bem bonita. Ao depositar as esperanças de continuidade das atividades coletivas com as crianças, Lúcio avalia positivamente as ações desenvolvidas hoje, capazes de serem contadas posteriormente com certo orgulho. Este espaço das atividades coletivas e partilhadas constrói-se como uma ferramenta que os assentados criam e que cumpre múltiplas funções. Para os assentados, ele é visto como um instrumento importante para a apropriação do espaço pelas crianças e para a construção da identidade sem terra. É também apontado para aproximar as gerações no assentamento e vincular os sujeitos de diferentes idades nos projetos familiares e coletivos. Nossa análise, contudo, focada pelo interesse nas tensões com o entorno, mostrou que outra função é cumprida pelas atividades coletivas. São várias as manifestações dos responsáveis pelas atividades com as crianças sobre possíveis contribuições deste trabalho para o fortalecimento das crianças no enfrentamento do “mundo lá fora”. Estas manifestações oscilam do otimismo às limitações desse trabalho diante da força deste mundo. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Acompanhar as significações dos sujeitos a processos vividos na implantação de um assentamento, baseado na proposta de Comuna da Terra, significa a imersão em um contexto bastante complexo, que faz questionar algumas de nossas pretensas certezas, por exemplo, sobre a viabilidade da reforma agrária na atualidade, as relações de poder entre campo e cidade, as expectativas dos adultos em relação à educação das crianças. Muitas das vezes, estas certezas apoiam-se em construções culturais que fragmentam e polarizam a dinâmica social e pouco contribuem para seu entendimento. No caso do assentamento estudado, é evidente que os sujeitos, embora não desempenhassem atividades agrícolas quando do envolvimento com o movimento social, desejavam, 139 para si e para seus filhos, habitar em um espaço que lhes permitisse uma vinculação, mesmo que simbólica, com o rural que um dia fez parte de suas vidas. Como diz Saul: “Nada melhor do que um lugar assim. (...) Lugar saudável. Perto da cidade. Tudo que você planta dá”. Esse sujeito, múltiplo que é pela sua vinculação híbrida, questiona discursos, práticas e políticas que se orientam por concepções dicotômicas de campo e cidade e, consequentemente, dos sujeitos que neles habitam. Esse sujeito, agora assentado, não encontrou espaço na vida das periferias urbanas. Na concretude dos laços que estabelece com a cidade e pela mobilidade que impõe interconexões diárias, realiza-se assim, sendo híbrido mesmo. Exige, por este motivo, novos discursos, práticas e políticas que o reconheçam nesta sua identidade. Sua permanência na luta por aquele lugar – quando outros tantos desistiram em algum momento da longa jornada até a conquista de condições mínimas de moradia e de vida – atesta a intensidade do desejo do espaço fronteiriço para a sua realização pessoal e familiar. Esse processo, entretanto, não se dá de forma harmônica. Ao contrário, são tensas as relações, permeadas que estão de valorações, imagens e concepções mútuas sobre os grupos sociais aos quais pertencem os sujeitos que ocupam aqueles espaços. Essa intensidade, no caso acompanhado, foi maior no início do assentamento, que fez mudar drasticamente a paisagem local e os usos dos espaços coletivos, questionando a infraestrutura e provocando os sujeitos a olharem-se por meio do olhar do outro. Nesse processo, preconceitos mútuos foram vividos, associados principalmente à vinculação do espaço ao grupo identitário dos assentados (sem terra). Afetaram adultos e crianças, reproduziram-se por diversos sujeitos, materializaram-se por meio de ações de diferentes gerações. Contudo, o que o caso nos indica é que as próprias relações de proximidade e interdependência entre o assentamento e o entorno constituíram a base para as desconstruções de concepções, medos e receios imaginados. Neste processo, a abertura do assentamento para o “externo” e as estratégias de interação promovidas, ao longo de dez anos de sua existência, produziram relações que hoje atestam apropriações do espaço da cidade pelos assentados e do assentamento pelos habitantes do entorno. Estas relações, que falam de um movimento de diferenciação discriminativa em direção a uma integração socioespacial, não significam, contudo, ausência de receios, desejos de manutenção de alguns limites e diferenciações de valores. Estes processos evidenciam-se com mais clareza quando se volta o olhar para as relações intergeracionais e para as expectativas dos pais em relação à criação dos filhos naquele espaço. 140 São as vivências das novas gerações que explicitam, na atualidade, os desafios de se morar nas áreas fronteiriças. Para os assentados, estar no assentamento pode permitir recuperar parte do que significam como mais característico dos modos de vida rural – maior tranquilidade, vida mais saudável, contato com a natureza –, perdido nas suas histórias pessoais. Nos limites da cidade, entretanto, são fortes os “perigos” que ela, cidade, impõe para a manutenção deste projeto. Assim, no espaço projetado fronteiriço, diálogos e tensões se estabelecem entre a geração antecessora e a atual. Ao mesmo tempo em que os adultos projetam os desejos e sonhos da geração atual para as próximas gerações, eles sentem esses projetos ameaçados pelas pressões da cidade. Morar na fronteira é também lidar cotidianamente com esse risco. REFERÊNCIAS BASTOS, A. C. S.. Modos de partilhar: a criança e o cotidiano da família. Taubaté: Cabral Editora Universitária, 2001. BEDUSCHI FILHO, L. C. Assentamentos rurais e conservação da natureza: do estranhamento à ação coletiva. São Paulo: Iglu, FAPESP, 2003. BRASIL. 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CV: http://lattes.cnpq.br/1594550972937138 - Mestre, Doutora e Pós Doutora/USP. Docente Adjunto IV do Programa de Pós Graduação em Família na Sociedade Contemporânea. Pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados/USP. Líder dos GP´s LAPSI e Família e desenvolvimento humano/CNPq. 144 *Trabalho baseado na dissertação de Mestrado defendida em dezembro/2011 pela UCSAL (Universidade Católica do Salvador). Título: “Costurando as redes de cuidado de crianças com Paralisia Cerebral”, orientado por Elaine Pedreira Rabinovich. Local onde a pesquisa foi realizada: Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação-Unidade Salvador. BSTRACTRESUMOABSTRACTRESUMOABSTRAC Resumo A Paralisia Cerebral é desordem caracterizada por alteração do movimento secundária a uma lesão não progressiva do cérebro em desenvolvimento. Este trabalho visou compreender o processo do cuidar de crianças com grave comprometimento considerando a rede social da mãe-cuidadora. A pesquisa foi realizada com cinco mães de crianças atendidas pela Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação - unidade Salvador. Aplicou-se entrevista semiestruturada e aplicação do mapa de rede, utilizando a Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano para a análise. As mães-cuidadoras passaram por uma transição ecológica após o nascimento dos filhos: todas abandonaram suas atividades laborativas e/ou educacionais; a rede social pessoal encolheu, restringindo-se à família, notadamente mulheres, poucos amigos e ao Hospital de Reabilitação, donde mostrou-se sobrecarregada e frágil na medida devido a seus componentes acumularem funções. Estes resultados sinalizam a importância da família e Centro de Reabilitação e a necessidade de apoio na ação do cuidar. Palavras-chave Apoio social; mães; paralisia cerebral; paralisia cerebral/psicologia. Abstrac Cerebral Palsy is a disorder characterized by movement impairment secondary to a nonprogressive lesion of the brain in development. The work aims to understand the caring process of children with severe severe impairment considering the mother's social network. The survey was conducted with five participants, children´s mothers follow in SARAH Network of Rehabilitation Hospitals - unit Salvador. Semi-structured interviews and network map application were used. The analysis was performed by the Bioecological Human Development theory. Mothers went through an ecological transition which began after the birth of the children with cerebral palsy: all mothers left their work and / or educational activities; the social network was reduced and restricted to family, revealing womens a few friends and the Rehabilitation center. The social network seems to be fragile and overloaded of caring work, as the participant accumulates functions. These results show the importance of the family, the Rehabilitation Center and the demand of support on the caring process. Keywords Social support; Mothers; Cerebral Palsy/Psychology. 145 INTRODUÇÃO A Paralisia Cerebral (PC) é considerada a incapacidade física mais comum na infância; a teoria médica a define como sendo uma desordem caracterizada por alterações de movimento, secundária a uma lesão não progressiva do cérebro em desenvolvimento no período fetal ou infantil (BAX, 2005). No Brasil, estima-se que cada 1.000 nascidos vivos, sete são portadoras de PC (PIOVESAN, VAL FILHO, LIMA, FONSECA, MÜRER, 2002). Neste diagnóstico, encontra-se um amplo espectro de apresentações, destacando-se a tetraplegia espástica, na qual se pressupõe que houve dano cerebral difuso e grave, com lesão piramidal acometendo os quatro membros, tronco e pescoço. Nestes casos, o prognóstico de marcha é desfavorável e esperase uma maior associação com comorbidades, como por exemplo, distúrbios de deglutição, fonação e respiração, epilepsia e retardo mental (CAMPOS DA PAZ JR., BURNETT, NOMURA, 1999). Desde 1991, a Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação tem prestado assistência médica qualificada, formando profissionais de saúde, desenvolvendo pesquisas científicas e gerando tecnologias em reabilitação, sendo hoje referência nacional e internacional na área. Este histórico possibilitou a criação de um método próprio de tratamento, denominado Método SARAH (JOHNSON DA, ROSE, 2008; SÁ, RABINOVICH, 2004; WOOLFSON, 2004). A proposta é a oferta de acompanhamento longitudinal às múltiplas demandas da PC fundamentado em um método de trabalho próprio, cuja família, criança e centro de reabilitação compõem uma grande equipe (SÁ, RABINOVICH, 2004). Uma desordem neurológica na infância afeta a família, na medida em que aumenta o nível de estresse entre os pais. Os cuidadores assumem de forma recorrente múltiplo e novos papéis, agregando responsabilidades (SÁ, RABINOVICH, 2004). Uma fonte importante de apoio neste contexto pode ser oferecida pelas pessoas que são significativas para estas mães, ou seja, pelos indivíduos que compõem a sua rede social. Este termo está relacionado a um grupo de referência que se torna co-construtor da identidade do sujeito, colabora para o desenvolvimento de sentimentos de bem-estar, oferece suporte para o enfrentamento de crises e estimula hábitos de cuidado à saúde (SLUZKI, 1997). A rede social pessoal pode ser registrada em forma de um mapa mínimo, conforme proposto por Sluzki (1997)7. Este recurso configura-se um instrumento de coleta de dados pelo seu potencial gráfico, visto que facilita a compreensão das interações que os indivíduos estabelecem (CAMINHA, 2002; FARIAS, MORE, 2012; SANTOS AD, MORE, 2011). O 146 mapa pode ser sistematizado em quatro quadrantes (família, amigos, relações de trabalho/ escola, relações comunitárias), sobre os quais se inscrevem três áreas (relações íntimas, relações cuja intimidade é menos expressiva e relações ocasionais). O conjunto dos habitantes desse mapa mínimo constitui a rede social pessoal do informante, sendo caracterizado como sendo um registro estático do momento a que se refere (vide exemplo adiante). O modo pelo qual o cuidador é constituído só pode ser compreendido através da observação das relações e do próprio processo. Neste sentido, a abordagem bioecológica do desenvolvimento humano (BRONFENBRENNER, 1995) auxilia esta compreensão, na medida em que sinaliza a importância do desenvolvimento ser estudado globalmente. Neste modelo, são representados quatro aspectos multidirecionais inter-relacionados, o que é designado como modelo PPCT: "pessoa, processo, contexto e tempo". A Pessoa é compreendida a partir das constâncias e mudanças na vida do ser humano em desenvolvimento, no decorrer de sua existência. Consideram-se, nesta análise, as características do indivíduo, suas convicções, nível de atividade, além de suas metas e motivações. O Processo proximal envolve o a interação da pessoa com outras pessoas, contextos, objetos e símbolos. O contexto subdivide-se em níveis de interação entre os quatro sistemas, que Bronfenbrenner (BRONFENBRENNER, 1995; BRONFENBRENNER, MORRIS, 1998) descreveu como um meio ambiente ecológico. O primeiro deles, o microssistema é definido como o espaço de interação de diferentes pessoas, em relações face a face, baseadas em reciprocidade e estabilidade. O conjunto de microssistemas consiste no mesossistema. Este lócus está em constante modificação, pois é ampliado / reduzido / modificado ao longo da vida. O exossistema foi postulado como um ou mais ambientes na qual a pessoa não participa face a face, mas cujas decisões tomadas, direta ou indiretamente, influenciam na sua vida (BRONFENBRENNER, 1995). O contexto mais amplo, denominado macrossistema, abrange todos os outros sistemas mencionados até aqui. Nele estão presentes os valores culturais, sociais, religiosos, políticos, educacionais, legais e econômicos, bem como a ideologia de uma sociedade. A dimensão Tempo possibilita a compreensão das mudanças e continuidades que ocorrem ao longo do desenvolvimento, pois consiste na sequência de eventos que constituem a história e as rotinas de uma pessoa. Funciona como um organizador social e emocional. Muitos trabalhos em saúde têm sido desenvolvidos utilizando conceitos de Bronfenbrenner (BONFIM, BASTOS, CARVALHO, 2007; CECCONELLO AM, KOLLER, 2003; POLETTO, KOLLER, 2008; RABINOVICH, SANTANA, 147 2008). Neles, a abordagem bioecológica do desenvolvimento humano mostrou-se útil para compreendermos o processo de cuidar uma vez que parte da premissa de que o desenvolvimento só pode ser entendido se devidamente contextualizado e a partir da interação dinâmica de quatro dimensões: pessoa, processo, contexto e tempo (RABINOVICH, SANTANA, 2008; MOLINARI, SILVA, CREPALDI, 2005). Neste estudo, pretende-se descrever a partir do ponto de vista das mães, o processo de cuidar de crianças com PC tetraplegia espástica. A relevância desta produção reside na necessidade de traçar os objetivos do programa de reabilitação em consonância com as possibilidades da cuidadora em implementá-lo, haja vista que é centrado, entre outros aspectos, na compreensão do diagnóstico e treinamento da família. MÉTODO A pesquisa teve cunho qualitativo de caráter exploratório e descritivo, com enfoque indutivo, devido à flexibilidade e adaptabilidade de trabalhos desta natureza (BONFIM, BASTOS, CARVALHO, 2007). O projeto foi devidamente apresentado e aprovado à Comissão Científica da Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação; posteriormente, submeteu-se a apreciação do Comitê de Ética desta mesma instituição (CONEP nº. 710). A amostra seguiu o seguinte critério de inclusão: serem mães de crianças com paralisia cerebral – tetraplegia espástica, funcionalmente classificada como nível V no Sistema de Classificação da Função Motora Grossa (GMFCS) e Sistema de Classificação da Função Manual (MACS); com idade variando entre quatro e sete anos; apresentando como comorbidade a obstipação, epilepsia, disfagia e retardo mental inespecífico; serem as principais cuidadoras dos filhos; residirem em Salvador; serem alfabetizadas; não apresentarem transtornos de humor; estarem envolvidas em um programa de reabilitação proposto pela Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação – unidade Salvador - por, pelo menos, um ano; não realizarem tratamentos desta natureza em outros serviços. No universo de famílias aptas para participar, a frequência regular e com intervalos próximos foi um critério de inclusão por facilitar o acesso às mesmas. Foram excluídas do estudo as cuidadoras que apresentavam muitas faltas não justificadas ou eram acompanhadas por outra psicóloga na mesma instituição; estes critérios, somados, definiram uma amostra composta de cinco participantes que compuseram todo o número de famílias do Hospital SARAH Salvador com tal perfil. O critério da idade estabelecido para as crianças foi baseado no grau de independência esperado para esta fase do desenvolvimento, 148 pois entre 4-7 anos as atividades de vida diária são, no mínimo, co-participativas. A coleta de dados foi composta por três momentos. Inicialmente, foi realizada a leitura do prontuário da criança, para entender a história da sua patologia e as especificidades de cuidados. As etapas seguintes sucederam nas próprias dependências do Hospital (três casos) ou na residência das famílias (dois casos). O critério de escolha da locação da entrevista relacionou-se à segurança do bairro de moradia da participante. As participantes responderam questões básicas que possibilitaram à compreensão das suas condições sócio familiares e posteriormente, participaram de uma entrevista semiestruturada, sendo sua íntegra gravada e transcrita para possibilitar a análise dos dados. Por fim, foi realizada a composição do “mapa de rede” (SLUZKI, 1997). A análise de dados foi composta de três etapas complementares no que diz respeito à operacionalização das informações colhidas: ordenação das informações, classificação dos dados e análise final. Tais dados sofreram a análise do modelo PPCT, parcialmente. O foco desta análise residiu diretamente na pessoa, contexto e tempo, devido à complexidade de uma avaliação de todo o modelo. A dimensão tempo, que necessariamente investiga a influência das mudanças e continuidades ao longo do desenvolvimento do sujeito, foi inferida a partir dos relatos das participantes. Não obstante, sabe-se que o aspecto processo proximal está presente em todo o trabalho de forma indireta, na medida em que envolve a relação entre a pessoa, os seus múltiplos papéis e atividades realizadas em todos os contextos, ao longo do tempo. RESULTADOS Apresentaremos apenas um caso seguido, contudo, da discussão envolvendo todos os casos estudados. Luciana e Rosa Luciana, 32 anos, é mãe de Rosa, sete anos. Reside com seus cinco filhos (quatro meninas de 14, 13, oito e sete anos - e menino de 11 anos), em casa alugada. As crianças e sua mãe compõem a família de Luciana. A gravidez não foi planejada; a princípio, o médico acreditou tratar-se de um mioma, o que gerou atraso para o início do pré-natal. Com 31 semanas de gestação, evidenciou-se malformação encefálica através de ultrassonografia; a mãe não sabia, até então, dos riscos que a criança estava exposta. Rosa nasceu prematura de oito meses, por meio de parto normal, com período expulsivo rápido. Nega uso de oxigênio, mas evoluiu com icterícia, necessitando de fototerapia por um dia. Recebeu alta no segundo dia de vida sugando bem. Mesmo não tendo claro o diagnóstico, realizou fisioterapia e hidroterapia externamente, 149 mas acabou interrompendo estes tratamentos porque a filha chorava muito, mostrando-se desconfortável. A família foi encaminhada para o hospital SARAH por sugestão de uma agente comunitária, quando a criança tinha três anos de idade; guardava, na época da admissão, a expectativa de descobrir o motivo do atraso no neurodesenvolvimento, pois já tinha passado por outros especialistas (neurologista, pediatra e ortopedista), que não lhe repassaram nenhuma definição clara. Também gostaria de receber uma prescrição de cadeira de rodas, visando à facilitação dos deslocamentos da criança. Em todas as consultas para seguimento individual a cuidadora compareceu sozinha. Rosa passou a conciliar bem o sono, após introdução de medicação específica. A criança permanece a maior parte do tempo na cama, cadeira de rodas, na rede ou sentada entre as pernas dos familiares. Nas atividades de vida diária, Luciana informa ser difícil o momento de troca de roupa, devido à hipertonia dos membros superiores. Estudou até a 2ª série e considera sua leitura/escrita pouco fluentes; valora muito o estudo, e por isso, decidiu retomar os estudos este ano, mas conseguiu frequentar apenas dois dias letivo por conta da difícil rotina. Luciana trabalha esporadicamente como lavadeira e recebe pouco retorno financeiro com esta atividade. Nesses momentos, Rosa fica sob os cuidados dos irmãos. Basicamente a família sobrevive com o Benefício de Prestação Continuada (BPC) do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), concedido a Rosa. Luciana não sabe o paradeiro do pai das crianças há seis anos, pois fugiu de casa com todos os filhos desejando quebrar um ciclo de violência física e psicológica que já perduravam anos. A decisão aconteceu após a descoberta da deficiência de Rosa. Luciana não frequenta igreja e não possui uma religião. Possui fé em Deus independente de qualquer prática religiosa e reza diariamente. Figura 1: Mapa de Rede – Luciana 150 DISCUSSÃO Definições do Cuidar As participantes definiram o cuidar como a assistência e suprimento diário das necessidades básicas da criança, tais como a oferta de alimentação, controle das medicações e banho, consequentes de um vínculo afetivo, identificado como “amor”. O cuidar foi identificado como uma tarefa acoplada à maternidade (BONFIM, BASTOS, CARVALHO, 2007) ao considerá-lo uma condição naturalizada do feminino. A antítese do cuidar, sob a ótica dos papéis familiares foi apresentada por Patrícia, ao referir-se ao esposo e pai de Clara: “O pai passa a semana toda ausente e diz que cuida dela. Mas ele só pega, bota no colo e fica assistindo televisão. Ele não olha pra ela, não faz nenhuma brincadeira para ela se desenvolver, não dá comida nem remédio. Eu não acho que isso seja cuidar”. O cuidar de uma criança portadora de necessidades especiais implica em uma atenção peculiar, um “cuidado dobrado”. O desgaste e cansaço foram apontados por todas as mães como consequência do cuidar, mas compensado pelo retorno que ele proporciona. No que tange à satisfação com o cuidado oferecido, todas as participantes acreditam que fazem o melhor dentro do possível, embora refiram que a condição financeira interfere diretamente. A presença, frequência e intensidade das alterações clínicas foram relacionadas à qualidade e oferta de cuidado. Cuidar e a Pessoa A lesão cerebral, assim como outros acontecimentos inesperados, pode ser considerada como um evento crítico que desencadeia respostas em todo o grupo familiar (BRONFENBRENNER, MORRIS, 1998). Diante dele, algumas mudanças subjetivas ocorreram e agregaram valor à história de vida das mães-cuidadoras. A sabedoria foi uma característica aditada neste percurso, que surge associada à capacidade de eleger prioridades, sem a angústia corrosiva ao descartar o objeto preterido. Luciana, por exemplo, frisa que, apenas após o nascimento de Rosa, conseguiu finalmente romper um ciclo de violência que já se estendia por 15 anos, advinda da sua relação com seu ex-marido: “foi ela que me deu força, eu não podia ficar mais naquela casa. Ela precisava de mim, eu precisava estar inteira pra cuidar dela”. Na época, Luciana articulou-se com a sua mãe e fugiu de casa com todos os cinco filhos. 151 A perda da intimidade queixada pelas mães está relacionada ao prejuízo na privacidade (MOLINARI, SILVA, CREPALDI, 2005). As pessoas que oferecem suporte tendem a invadir as fronteiras que delimitam a sua vida. O drama familiar é exposto reiteradas vezes devido à obviedade do fenômeno. Os olhares na rua e os questionamentos frequentes, relacionados à criança deficiente, expõem a deficiência da família. O esvaziamento dos contatos sociais foi um marcador na vida de todas as mães participantes do estudo, pois deixaram de trabalhar ou estudar, alterando significativamente a sua dinâmica. Com o abandono destas atividades, deixaram seus anseios e sonhos individuais, canalizando suas energias e esforços em direção à oferta de cuidado. A solidão é uma consequência deste processo e apresenta às mães o caráter paradoxal do cuidado. Dedicar-se aos trabalhos do lar e cuidar das crianças pode implicar em não conseguir conciliar ou harmonizar sob alto custo emocional e físico, duas esferas da vida cotidiana (MOLINARI, SILVA, CREPALDI, 2005). As mães-cuidadoras sentem-se sós, mesmo cercadas de pessoas, e dizem não conseguir encontrar o apoio desejado, o que as leva a sentir o peso do excesso de trabalho e as irregularidades do desempenho. Neste caminho, a solidão encontra o cansaço. As mães-cuidadoras estão expostas a um alto nível de estresse crônico. Este dado merece atenção, na medida em que é crescente o número de mães solteiras ao longo das últimas décadas e o aumento da proporção de mães divorciadas. Assim, o foco das intervenções em saúde deva levar em consideração o nível do cansaço dos pais devido à relação direta entre fadiga e qualidade do cuidado (SÁ, RABINOVICH, 2006). Cuidar e o Contexto No microssistema das mães, ou seja, nas relações que são estabelecidas face a face, destaca-se primariamente à família. A presença e o apoio regular oferecidos pelas avós foram significativos. Esta ajuda centra-se na prestação de cuidados e suporte financeiro à criança, colaborando de forma próxima com as mães que vivem sós ou assim se sentem. Novamente é retomado o caráter cuidador da maternidade, pois neste caso, existe a disponibilidade e conjugação de esforços de duas pessoas, a mãe e a sua própria mãe. As avós, independente de estarem aposentadas ou com a vida laboral ativa, não cobrem todas as necessidades de cuidados das crianças; não obstante, sua ajuda é muito valorizada: “não sei o que seria de mim sem minha mãe. Ela é velhinha, você precisa ver, nem carrega Rosa direito, mas ela me ajuda assim, com palavras” (Luciana). Apenas um avô participa do mapa de rede das mães; este membro oferece ajuda financeira o que recorda os papéis sociais de provedor econômico, ainda 152 aliado à figura masculina, mesmo este cenário estando em franco transformação (REINA, RABINOVICH, 2010). As mães-cuidadoras contam com a participação ocasional de outros familiares, como irmãs, que compartilham apenas o trabalho doméstico. O marido, presente em algumas famílias, não foi identificado como um companheiro que colabora ou divide as tarefas, independente de exercer atividades laborativas (WOOLFSON, 2004; URBANO, HODAPP, 2007) em relação à conjugalidade nas famílias afetadas pela deficiência. Os referidos autores consideram que, em relações já frágeis, a deficiência tende a ser mais um fator tensional. Não houve divórcio após o nascimento das crianças. Dois relacionamentos terminaram ainda na gestação; estes pais não ajudam financeiramente, não visitam ou estabelecem algum nível de contato com as crianças, o que configura abandono. No microssistema, é ausente ou pouco frequente a utilização dos apoios formais, tais como escola, creche, auxiliar do lar, ou informais, como as babás eventuais. Esta falta de apoio, tanto institucional quanto familiar, coloca as mães em situação de risco, advindos do trabalho diário. O Hospital SARAH foi um microssistema importante elencado pelas mães como fonte de suporte, na medida em que compôs todos os mapas de redes das participantes. A ajuda material e de serviços, cuja colaboração é baseada em conhecimentos especializados, foi sinalizada como fonte de segurança. Os profissionais de saúde externos ao centro de reabilitação foram lembrados e alguns deles compõem a rede das mãescuidadoras, principalmente pela ajuda material e de serviços. Por não serem profissionais de saúde e por tratar-se de cuidados dirigidos ao filho, questionam recorrentemente suas competências. Tais dificuldades se agigantam com a constatação da necessidade de aprender a realizar procedimentos ou técnicas, tais como a alimentação via gastrostomia, identificação das múltiplas manifestações de crise convulsiva e cuidados com a higiene. Acrescenta-se a isso a sensação de impotência ou despreparo para a execução de manobras tão específicas. Medo de não conseguir, medo de errar e causar desconforto são desabafos recorrentes. Neste momento, o centro de reabilitação também assume a função de regulação social, reafirmando responsabilidades e papéis, neutralizando desvios de comportamento. A função de apoio emocional também foi desempenhada pelo centro de reabilitação, visando avalizar o calor e o acolhimento afetivo, tão necessário diante da sua vivência dolorosa. O acesso a novos contatos foi identificado como mais um papel deste serviço, pois abriu a possibilidade de ampliação da rede materna para outras pessoas que não faziam parte dela, seja através da participação de atividades em 153 grupo, seja incentivando a retomada de atividades educacionais ou laborativas, quando possível. A instituição igreja não foi apontada como alicerce no processo de cuidar. Duas mães tinham uma vida religiosa ativa, frequentavam e participavam desta comunidade antes de serem mães. Devido à irritabilidade e choro das crianças diante de barulho intenso e gente aglomerada, abandonaram esta prática. Entretanto, a relação com Deus foi evidenciada, pois neste processo solitário de cuidar, segundo elas, Deus oferece companhia. O mesossistema, que corresponde aos microssistemas, necessita ser compreendido conjuntamente para entendermos o lócus de desenvolvimento das mães-cuidadoras. Faz-se necessário analisar a estrutura, funcionalidade e atributos dos vínculos que compõem a rede das mães-cuidadoras14. Todas as redes, conforme pode ser observado no mapa abaixo, são consideradas pequenas, na medida em que são compostas de poucos membros. Esse dado é preocupante, pois, diante de qualquer tensão ou reorganização destas relações a rede das mães pode reduzir, e num efeito contrário, aumentar a solidão. A densidade é considerada baixa, ou seja, a conexão entre os membros pode ser considerada pouco significativa, devido à falta de contato regular entre as esferas que compõem os quadrantes. Um exemplo deste desenho é o fato das pessoas da família que oferecem suporte comparecem pouco ao centro de reabilitação e com a equipe de referência não ter uma relação direta. Em caso de situações de crise, esta distância retarda a chegada da ajuda, pois dificulta a comunicação. Em relação aos atributos de vínculos, os mesmos componentes assumem múltiplas funções, sobrecarregando-os. Observamos, igualmente, uma tendência à centralização do apoio em alguns membros da família, em poucos amigos e basicamente no centro de reabilitação no quadrante comunidade, o que fala a favor de pouca flexibilidade. Esse contexto, ao longo do tempo, pode causar estresse nestas relações (SLUZKI, 1997). Por outro lado, a intensidade e frequência do vínculo entre as mães e as pessoas que compõem sua rede podem ser consideradas adequadas, o que reflete compromisso com a relação. Este fato é facilitado pela tecnologia, que permite a comunicação e contato entre os integrantes que residem fisicamente longe. Existe uma homogeneidade nas redes, na medida em que a grande maioria dos seus componentes é do sexo feminino, tem o mesmo nível cultural e socioeconômico, o que novamente faz pensar em uma rigidez estrutural. Em relação à funcionalidade das redes, observamos que a família, notadamente as avós e irmãs, oferecem apoio emocional, na medida em que adotam atitudes positivas, como empatia, compreensão e apoio. A função de companhia social, que implica na realização de atividades conjuntas, deixa a desejar. 154 As tarefas domésticas podem ser divididas por outras pessoas que residem com a mãe-cuidadora, mas aquelas que envolvem a criança são basicamente realizadas sozinhas. O empobrecimento das redes sociais está relacionado ao processo de urbanização. O tamanho, densidade e heterogeneidade da cidade fomentam relações frágeis, transitórias e desconectadas, inclusive com pessoas que estão fisicamente próximas, tais como os vizinhos e membros da família extensa. Para estes autores, a solidão oferta a sensação de desamparo diante da crise, tais como ao deparar-se com doenças crônicas, por falta de suporte social. A estrutura precária dos bairros populares onde residem também foi foco de queixas. Esta realidade dificulta o trânsito da família dentro do bairro, à socialização da criança na comunidade e o acesso das mães em contextos de lazer. O mundo urbano não está preparado para as adaptações exigidas pelos portadores de deficiência, sendo projetado apenas para os considerados aptos (CARVALHO-BARRETO, BUCHERMALUSCHKE, ALMEIDA, 2009); desta forma, a organização do microssistema sofre influencia do mesossistema, na medida em que as idéias vinculadas à segregação, diferença e falta estão fortemente presentes na cultura. O meio social foi sinalizado como dúbio, na medida em que oferece sinais contraditórios de preconceito e apoio. Novamente esta questão relaciona-se com o poder do macrossistema, aqui representado pela política, valores e ideologia que perpassam a deficiência, no mesossistema. O exossistema é definido como o contexto no qual o sujeito em desenvolvimento não mantém contato direto, mas cujas decisões afetam sobremaneira a sua vida (BRONFENBRENNER, 1995). O benefício de renda concedido pelo INSS oferece a ajuda financeira que garante a sobrevivência da família; entretanto, as mães-cuidadoras foram unânimes ao afirmar que este é insuficiente para as despesas. Como nenhuma delas trabalha regularmente, necessitam fazer trabalhos esporádicos, pouco remunerados, ou contar com a ajuda de outras pessoas da família ou amigos próximos. Os projetos sociais do governo federal foram apontados como fonte de ajuda direta, sugerindo novamente a relação do exossistema com o microssistema: “o que me ajudou muito foi à casa que ganhei do programa minha casa, minha vida. Quando parei de pagar aluguel sobrou dinheiro pra outras coisas, comprei até geladeira” (Luciana). Cuidar e o Tempo A compreensão das mudanças e continuidades ao longo da história de um indivíduo possibilita o entendimento da sua rotina e contexto atual (BRONFENBRENNER, 1995). É possível perceber, através deste trabalho, que a vivência 155 temporal das mães foi marcada após o recebimento do diagnóstico. Suportado o choque inicial e a inserção na nova rotina, o mesotempo, caracterizado pelo passar de dias, semanas e anos, surge como um importante organizador social e emocional das mães-cuidadoras. Neste momento, as mães revisitam seu passado e percebem o impacto do cuidar na sua vida. O tempo foi apontado como fundamental para que as mães aprendessem a lidar com as muitas variáveis que envolvem o cuidado. Este tempo não é cronológico, mas sim, singular a cada uma delas, dependendo do seu contexto, história de vida, da menor ou maior influência das matrizes socioculturais do cuidado. Por outro lado, este marcador oferece o cansaço e a rotina. Referindo-se à divisão das tarefas, mas já pensando na continuidade dos cuidados quando envelhecer ou estiver impossibilitada de cuidar, Luciana sinaliza: “acaba que todo mundo ajuda, meus filhos todos. Me ajudam também com Rosa, um penteia o cabelo, outro dá comida. Eu acho que filho tem que ajudar, se um dia eu faltar, eles vão cuidar” (Luciana). A falta destas pessoas angustia as demais mães-cuidadoras. Passado o impacto inicial do recebimento do diagnóstico, prognóstico e ao saber o que se pode esperar desta criança, a vida da família passa por um período de estabilização. Quando questionadas em relação aos sonhos, a ausência deles evidencia a inserção destas mães em um tempo que parece atemporal, na medida em que a vida congela: “Não faço planos, não. Eu tenho uma parede em minha frente, não sei se um dia vou poder atravessar essa parede, pular esse muro. Eu só vejo o tempo passando” (Simone). A desistência ou modificações importantes nos planos de vida foram uma realidade. Quando conseguem fazer planos, estes estão atrelados ao desejo de ter uma vida tranquila, à necessidade da saúde para poder continuar cuidando ou a uma melhor infraestrutura para prestar a assistência necessária. Mesmo diante destes desejos, uma interrogação imensa se presentifica, tornando o mesotempo um enigma, pois não se sabe se isso um dia, finalmente, tais desejos irão se concretizar. Estas respostas são preocupantes, pois revelam que as mães-cuidadoras podem estar perdendo a confiança no futuro; esta certeza necessária é fundante, já que provoca o estresse para enfrentar os problemas e desloca os sujeitos do imobilismo. Teria a esperança cedido lugar à resignação? Nenhuma participante verbalizou a esperança de ver os filhos andando, falando, entendendo, ou melhores do ponto de vista neurológico. O tempo lhes ofereceu dados incontestáveis. Por um lado, esse fato reflete boa compreensão em relação ao diagnóstico e prognóstico. Mas, por outro, a ausência e dificuldades em fazer planos reflete uma incerteza em relação 156 ao futuro, que parece entrar em suspensão. Trata-se da desistência da busca pela normalização da vida e preservação de si mesmo. Apenas Luciana conseguiu vislumbrar vida e essência no futuro. Embora seja a possuidora da rede social mais esvaziada, a perspectiva positiva pode estar relacionada à presença de outros filhos, que lhe oferecem a possibilidade de continuidade do núcleo, a permanência de outros escrevendo a biografia social e familiar21; em última instância, é a garantia da existência do macrotempo: “quero ter minha casa, poder cuidar da minha filha porque ela vai precisar de minha ajuda sempre, né? Quero ver os outros meninos trabalhando pra ter tudo o que precisam e que eu nunca consegui dar” (Luciana). Para finalizar, apresentamos o “mapa do cuidar”, um arranjo gráfico, inspirado no mapa de rede7 e no modelo PPCT (BRONFENBRENNER, MORRIS, 1998) 12, que organiza e conclui o que é, o que causa e o que proporciona a ação de cuidar de crianças tão dependentes nas vidas de suas mãescuidadoras. Figura 2: Mapa do Cuidar (baseado no Mapa de Rede) Quando mais próximo do centro, maior é a intimidade das mães com esta característica, pessoa, evento, sentimento, vivência, contexto, entre outros. Quanto mais longe deste núcleo, o oposto é verificado. Conforme observado em todo o trabalho, o processo proximal está presente indiretamente neste mapa, pois todo o contexto, características da pessoa ao longo do tempo, está sendo abraçado por esta mola que propulsiona o desenvolvimento. 157 CONSIDERAÇÕES A maior sobrevida das crianças frente a agravos pré, peri ou pós natais, doenças crônicas e traumas decorre dos benefícios da rápida evolução da medicina, bem como das deficiências da saúde no Brasil. As necessidades especiais que estas crianças apresentam geram demandas de cuidado, normalmente supridas por uma figura feminina. A mãecuidadora necessita manter a constância, vigilância e intensidade na atenção oferecida, pois seus filhos portadores de PC forma tetraplegia espástica são uma população considerada mais instável clinicamente, e, portanto, mais vulneráveis a intercorrências. Não obstante, o cuidar foi percebido por estas mães como uma ação voltada ao outro, mas não a si mesma. A família, e em especial, a mãe cuidadora, passou por uma transição ecológica com o nascimento da criança portadora PC. O processo proximal foi diretamente afetado, desde quando o diagnóstico foi dado. O olhar que torna a criança um “outro diferente”, e não apenas diverso, incide diretamente na relação dos próximos a ela, alterando dinâmicas. O contexto, em especial o micro e mesossistema, sofreram impacto. As redes sociais pessoais experimentaram redução, tornando-se mais dispersas, menores, homogêneas e pouco densas. As pessoas que compõem estas redes acumularam funções, embora tendam a incentivar comportamentos promotores de bem-estar, a dividir cuidados e a emitir reações de alarme. As famílias, notadamente as figuras femininas de mãe e irmã, ocupam lugar privilegiado na rede, oferecendo suporte emocional, sendo guia cognitivo e de conselhos, bem como oferecendo ajuda material e de serviços. O rompimento do modelo hospitalocêntrico aproximam as equipes de saúde e as famílias, sem ambas estarem preparadas para dominar, mesmo que parcialmente, o universo uma da outra. As famílias passaram a ser o foco das ações governamentais por seu papel protetor, que de fato, as caracteriza. Este descritor, entretanto, exige do cuidador um alto preço emocional e físico, devido à estrutura social precária e falta de apoio direto. O exossistema foi afetado com o abandono do emprego da cuidadora e queda do padrão financeiro da família, por exemplo, enquanto o macrossistema, representado pelo preconceito social diante da deficiência, leis protetivas, dentre outros, imputaram à criança e à sua família um status em que ambas enveredaram pelo caminho da anormalidade, por um lado, mas ofereceram a condição econômica de sobrevivência, sob outro ângulo. Em relação à Pessoa, os recursos e a demanda, notadamente, mostraram-se relevantes no desenvolvimento das mães-cuidadoras. O repertório da criança, neste caso, não interferiu negativamente na interação com sua cuidadora, pois 158 houve o acolhimento em um nível psicológico. Embora cientes do prognóstico motor e cognitivo desfavoráveis, as crianças não estavam suscetíveis a receber cargas ansiosas e/ou depressivas das cuidadoras, que, mesmo diante de toda vivência impactante e dolorosa, conseguiram elencar ganhos na vida desde o nascimento do filho. A vivência do Tempo foi marcada agudamente, pois as perspectivas em torno da criança se modificaram, assim como a perspectiva de futuro da própria família (macrotempo). No que diz respeito ao microtempo, a cuidadora estava ancorada em um modo mais amplo de contemplar a vida, absorvendo a temporalidade como vida. Compreender a criança, não apenas como portadora de PC, mas como membro de uma família, e esta família como objeto de cuidado, corresponde a uma visão de desenvolvimento como molar, com todas as suas implicações práticas. Interessou, neste trabalho, a compreensão acerca de como a família organiza internamente os cuidados, quais os ajustes, que recursos internos ou externos ao núcleo são ativados, e a utilização de ajuda formal ou informal. Esta proposta ofereceu um olhar entrecruzado sobre a organização do cuidado, dentro e fora da esfera privada. Para as mães, o cuidar envolve uma articulação estreita com sua história, instrumentos, recursos sociais e familiares. Mesmo imersa em tantos âmbitos, é uma ação solitária. As mães estão sós e queixam-se desta sensação. Por um lado, pedem ajuda e acreditam ser necessária a divisão das tarefas; em contrapartida, referem que não há quem cuide melhor, quem de fato se dedique, por mais que ame. O limite entre querer, precisar e aceitar ajuda parece tênue, sendo ele influenciado pelo medo das crianças não serem verdadeiramente bem cuidadas. Faz-se necessário atentar, por conta disto, sobre um fenômeno circular que parece ocorrer nestes casos. A falta de divisão de cuidados e a intensa dedicação das mães geram insegurança nas cuidadoras, que tendem a não confiar na qualidade da atenção oferecida pelos outros, quando estes tentam se aproximar. Para compreender melhor estas nuances, sugerem-se estudos futuros que se proponham a escutar as pessoas envolvidas, mesmo que indiretamente, na tarefa de cuidar. A abordagem bioecológica do desenvolvimento humano, associada à compreensão das redes sociais pessoais, mostrouse útil para compreender o processo de cuidar. Da mesma forma, este estudo possibilitou evidenciar que o cuidar de uma criança portadora da manifestação mais grave de PC pede que olhemos para a rede social, mesmo que esvaziada, como uma fonte importante de suporte para as mães. 159 REFERÊNCIAS BAX, M., GOLDSTEIN, M,, ROSENBAUM, P., et al. Proposed definition and classification of cerebral palsy. Dev Med Child Neurol, v. 47, n. 8, p. 571-6, April 2005. BONFIM AC, BASTOS AC, CARVALHO AMA. A família em situações disruptivas provocadas por hospitalização. Rev Bras Crescimento Desenvolv Hum, v. 17, n.1, p. 84-94, 2007. BRONFENBRENNER, U. Uma família e um mundo para o bebê XXI: sonho e realidade. In: GOMES-PEDRO J. (Org.). Bebê XXI: criança e família na viragem do século. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; 1995. p. 115-126. BRONFENBRENNER, U., MORRIS, P. 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MORAES: [email protected] CV: http://lattes.cnpq.br/2247166440691024 - Mestra e Doutora em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública pela USP. Professora Assistente do Centro Universitario Adventista (SP), Coordenadora de Curso de Pós-Graduação do Centro Universitario Adventista (SP), Professora Assistente das Faculdades Metropolitanas Unidas, terapeuta ocupacional da Prefeitura Municipal de São Paulo, - Editora Assistente e Membro do Corpo Consultivo da Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano . Zan MUSTACCHI: CV: http://lattes.cnpq.br/4419319234242523 - Mestre e Doutor em Farmácia (Análises Clínicas) pela Universidade de São Paulo. 163 BSTRACTRESUMOABSTRACTRESUMOABSTRAC Resumo Este artigo tem por objetivo relatar o esforço da família no desenvolvimento e evolução de portadoras de Síndrome de Down que passaram pela intervenção da Terapia Ocupacional. Destaca a participação da família, no processo formativo destes indivíduos. O referencial metodológico utilizado foi a pesquisa social. Os sujeitos foram duas mulheres adultas portadoras da condição, seus pais e professores Os resultados ressaltam o sucesso de ambas e a consciência de suas limitações. Palavras-chave Terapia Ocupacional; Síndrome de Down; Educação. Abstrac This study aims to report the development and evolution of Down Syndrome patients that were attended through Occupational Therapy interventions. The family participation is highlighted in the upbringing and formation process of these persons. The methodological reference used was the social research. Subjects were two adult Down Syndrome women, their parents and teachers. The results underscore the success of both women and the awareness of their limitations. Keywords Occupational Therapy; Down Syndrome; Education. 164 INTRODUÇÃO O homem é um ser histórico, aprende a ser por meio da interação social. Não pode ser estudado isoladamente, ou seja, fora de seu em torno, pois “se torna humano em função da experiência de ser social” (BOCK et al, 1999). Os traços herdados por ele, em contato com o ambiente geram um indivíduo, um ser particular e específico. O ser humano não se constitui apenas pela herança genética, mas também, pelo que adquire ao longo da vida, pela apropriação da cultura criada por gerações antecedentes. São significativas as diferenças sociais entre os seres humanos, e um dos motivos é a oportunidade de acesso ao conhecimento e à cultura. A desigualdade social reforça a inequidade entre os indivíduos. Evidencia-se a importância do aspecto contextual na determinação das capacidades intelectuais do homem. O trabalho, a atividade e, a ação sobre o mundo faz com que a espécie humana se torna pensante, consciente e intencional. Essa reflexão circunstancia a diversidade entre seres humanos, destacando aqueles considerados diferentes como, por exemplo, os portadores de síndrome de Down. A referida condição está associada a marcas e atributos sociais que um indivíduo carrega e, cujo valor pode ser negativo ou pejorativo (BOCK et al, 1999). Consequentemente, provoca a exclusão demonstrando a dificuldade da sociedade em lidar com o diferente. Esta dificuldade tem sido transmitida entre gerações. Cabe ressaltar a ação das terapias de apoio, em particular a terapia ocupacional, na quebra de pressupostos e paradigmas. Esta parceria propiciou a duas pessoas portadoras da síndrome de Down a conquista de um lugar privilegiado, considerando os parâmetros existentes. SÍNDROME DE DOWN A Síndrome de Down foi descrita pela primeira vez há mais de 100 anos. Lejeune, em 1959, afirmou que as crianças portadoras da síndrome possuíam um cromossomo extra, isto é, ao invés de dois cromossomos no par 21, possuem três, originando o termo trissomia do 21 (SCHWARTZMAN, 1999). A trissomia livre representa 95% dos casos de Síndrome de Down (3). Posteriormente, geneticistas detectaram outras formas cromossômicas: a translocação, isto é, quando o braço longo excedente do 21 liga-se a um cromossomo qualquer representa 4% dos casos de síndrome de Down e, o mosaicismo, em que uma das linhagens apresenta 47 cromossomos aparece em 1% dos casos. (SCHWARTZMAN, 1999). O aumento da idade da mãe eleva a probabilidade da ocorrência dessa anomalia pelo fato de os óvulos serem mais velhos (BRUNONI, 1999). 165 O neonato portador da Síndrome de Down apresenta alterações fenotípicas ligadas à suspeita do diagnóstico. Entre estas citam-se: braquicefalia (achatamento da parte posterior da cabeça); hipoplasia da região mediana da face (o rosto tem contorno achatado, principalmente em consequência dos ossos faciais pouco desenvolvidos e nariz pequeno); fontanelas anterior e posterior mais ampla do que na população geral; pescoço curto; inclinação das fendas palpebrais; pequenas dobras de pele no canto interno dos olhos, base nasal achatada; orelhas pequenas e de implantação baixa, a borda superior da orelha (hélix), muitas vezes, dobrada. A estrutura da orelha é ocasionalmente alterada e, os canais do ouvido são estreitos. A boca apresenta-se pequena e a língua protrusa. As mãos são pequenas com clinodactilia do quinto dedo das mãos, geralmente este dedo é levemente curvado para dentro. Também apresentam ausência da falange do dedo mínimo. Os pés são pequenos, com distância aumentada entre o primeiro e segundo dedos dos pés. A pele da nuca é excessiva; a hipotonia muscular e a frouxidão dos ligamentos são, também, importantes características desta síndrome. (BRUNONI, 1999; MUSTACCHI & RAZONE, 1990). A confirmação de que o bebê é portador da Síndrome de Down pode ser determinada somente por meio do resultado do cariótipo - exame genético. Atualmente, um marcador ultrassonográfico pode sugerir se um feto é portador da síndrome, a partir de medida obtida da nuca, denominada translucência nucal. Durante a metade final da gravidez, podem ser observadas outras malformações tais como os defeitos cardíacos e o comprimento do osso da perna (PUESCHEL, 1995). Os exames de amniocentese e amostra do vilo corial podem confirmar o diagnóstico. FAMÍLIA E SÍNDROME DE DOWN A família representa um grupo social primário que influencia e é influenciado por outras pessoas e instituições. Famílias são as primeiras agências socializadoras da criança, cabendo-lhes estabelecer condições propiciadoras de um bom desenvolvimento (TRANCREDI & REALI, 2001). Responde pela sobrevivência da criança, e faz a mediação entre o indivíduo e a sociedade, exercendo papel fundamental na transmissão de valores ideológicos e, cultivando a manutenção dos valores culturais (BOCK et al, 1999). A cultura que a família reproduz em seu interior é, portanto, a cultura que a criança internalizará. Funciona como um sistema, onde existe interdependência entre os familiares, e cada membro é essencial ao sistema, pois suas ações afetam os demais componentes (MERINFELD, 1998). 166 O nascimento de uma criança reorganiza a família e provoca o re-arranjo de papéis. Representa um começo, começo de sua própria vida, começo para os pais. O fundamental nessa ideia é a possibilidade de renovar e regenerar a existência (CASARIN, 1999). A chegada de um bebê com o diagnóstico de qualquer anomalia, muitas vezes, causa choque nos pais e faz aflorar sentimentos negativos, evidenciando a ambivalência e possível rejeição (MURPHY, 1995). Assim, um bebê com Síndrome de Down, além de provocar as mudanças de um nascimento, acarreta enorme impacto para os pais e para a família. Adaptarse a uma condição que, por vezes, remodelará a família é uma situação tanto delicada, como imprevisível. As questões funcionais da família, dinâmica e equilíbrio, e até a garantia da sobrevivência desta família estarão mobilizadas pela presença deste novo membro (MERINFELD, 1998). Sobre esta circunstância foi escrito (CASARIN, 1999): ... a presença da Síndrome de Down num membro da família gera uma problemática que afeta diversos aspectos da vida familiar. (...) Surgem problemas nos aspectos econômicos, social e emocional; a criança apresenta problemas de comportamento e os pais não têm preparo para lidar com eles. O desconhecimento da anomalia é uma fonte de tensão que compromete a situação atual e projetos futuros. Apesar de essa constatação ter sido feita há mais de 50 anos, observa-se que atualmente os pais vivenciam dificuldades semelhantes, embora hoje a quantidade de informação acumulada sobre a síndrome seja maior e mais acessível. Isso talvez seja uma indicação que o conhecimento intelectual é de ajuda limitada, pois a síndrome atinge a estrutura pessoal e familiar de forma mais ampla (p.272). Considera-se que o momento do diagnóstico, a gravidade da deficiência e, as possíveis intervenções são de fundamental importância neste contexto. O significado que a família atribui à patologia e a maneira como se adapta à situação influenciam diretamente o desenvolvimento do portador. 167 DESENVOLVIMENTO NA SÍNDROME DE DOWN E A TERAPIA OCUPACIONAL As crianças portadoras de Síndrome de Down precisam ser estimuladas desde a mais tenra idade. Sabe-se que esta condição sindrômica impõe limitações à criança e, dentre estas, destaca-se o atraso no desenvolvimento (FEBRA, 2009). As crianças com síndrome de Down têm habilidade e capacidade para aprender, entretanto o ritmo de aprendizagem costuma ser mais lento. Esta lentidão está associada, em parte, ao atraso no desenvolvimento motor. O progresso da criança dependerá de estímulos, muitos deles em “setting” terapêuticos. Enquanto que uma criança da população geral começa a falar por volta dos 12 a 24 meses, a criança portadora de síndrome de Down inicia sua oralidade entre os três e cinco anos de idade e, em alguns casos muito mais tardiamente. As principais queixas trazidas pelos pais de crianças destas crianças acontecem na faixa etária entre seis e dez anos de idade. Constata-se que muitos pais tendem a tratar seus filhos, na faixa etária mencionada, como se fossem bebê. Este tratamento pode estar relacionado a falta de orientação a família e pode resultar em falta de autonomia para a criança. A pessoa portadora de Síndrome de Down, assim como qualquer outra pessoa precisa encontrar um lugar, um papel e uma função para si mesma no contexto em que vive, e este é um fator muito importante para um desenvolvimento saudável (CASARIN, 1999). Existem muitas estratégias para intervir com a criança portadora da síndrome de Down. Em áreas específicas, indica-se a intervenção de um terapeuta ocupacional, profissional que visa conectar o indivíduo e atividade, para a promoção de produtividade com sentido. ... o paciente em atividades destinadas a promover o restabelecimento e o máximo uso de suas funções, com o propósito de ajudá-lo a fazer frente às demandas de seu ambiente de trabalho, social, pessoal e doméstico, e a participar da vida em seu mais pleno sentido84. O atendimento terapêutico ocupacional pode vir a somar como um tratamento facilitador voltado para as atividades da vida diária (AVD) e vida prática (AVP) da pessoa portadora de síndrome de Down. Nas atividades da vida diária de uma criança, o brincar tem um papel fundamental porque nesta cria-se uma importante zona de desenvolvimento e, ainda dentro deste seguimento, AVD, contempla-se a questão escolar. Com os 84 Definição fornecida pela Federação Mundial de Terapia Ocupacional, retirada do site da Abrato: www.abrato.hpg.com.br. 168 déficits próprios da síndrome, como por exemplo, o atraso no desenvolvimento; a família e os serviços de apoio serão primordiais para que, não apenas a inserção, mas a continuidade na vida escolar seja uma realidade. O sucesso dos casos aqui apresentados ilustra esta possibilidade. METODOLOGIA Este trabalho utilizou como referencial a pesquisa social, na qual o objeto de estudo é essencialmente qualitativo (MINAYO, 2010). A autora salienta que a pesquisa qualitativa, em Ciências Sociais, lida com um nível de realidade que não pode ser quantificado. ... ou seja, ela trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes. Esse conjunto de fenômenos humanos é entendido aqui como parte da realidade social, pois o ser humano se distingue não só por agir, mas por pensar sobre o que fazer por interpretar as suas ações dentro e a partir da realidade vivida e partilhada com seus semelhantes (MINAYO, 2010, p.21). Participantes Participaram da pesquisa duas mulheres portadoras de Síndrome de Down, com idades de 30 e 35 anos, seus pais e pessoas significativas (que sob a óptica da pesquisadora foram importantes na formação dos sujeitos e tiveram forte influência na vida de ambas). Instrumentos Foram duas entrevistas semiestruturadas diferentes: a primeira dirigida às portadoras de Síndrome de Down e a segunda destinada aos familiares e pessoas significativas Destaca-se que a pesquisadora elaborou as questões. Adicionalmente, informações sobre o contexto socioambiental, desenvolvimento e evolução das portadoras, desde a infância, foram obtidas por meio dos dois prontuários. Estes prontuários pertencem à clínica, onde os dois sujeitos da pesquisa foram atendidos. O uso dos dados foi liberado pelas pacientes, assim como por seus pais, mediante consentimento. As entrevistas foram gravadas com autorização dos participantes, transcritas e resumidas Para o tratamento dos dados, houve análise de conteúdo, utilizando-se unidades de registro temáticas, isto é, dividindo os assuntos em temas: família, terapia, projetos de 169 vida e trabalho remunerados. Seguem-se as informações solicitadas para concretização da pesquisa: Pergunta aos pais/pessoas significativas: Qual foi a sua influência sobre a escolha do trabalho de ...................? Pergunta aos participantes: Por que escolheu trabalhar como professora/auxiliar de administração? DADOS DO PRONTUÁRIO: Nome: Data Nascimento: Sexo: feminino Nº. irmãos: Idade do pai: Idade da mãe: Nascimento e descrição do parto: Duração: Local: Duração parto: Peso: Tipo de parto: História do desenvolvimento: Os pais notaram o problema pela primeira vez quando? Data do início de tratamento na clínica de reabilitação e idade do paciente: Recebia orientação: distancia ou presencial Evolução da escolaridade: Pré escola. Fundamental. Médio Atividades terapêuticas Outras atividades Atividades remuneradas APRESENTAÇÃO DOS CASOS Por tratar-se de relato de casos, trabalhou-se com a apresentação dos mesmos. O propósito do procedimento foi facilitar a compreensão das histórias relatadas. Optou-se por mostrar os casos de maneira independente. Caso1 D. nasceu no Estado do Rio Grande do Norte e iniciou tratamento com a pesquisadora, em São Paulo, com quatro 170 meses de idade. Na época, os pais não tinham nenhuma informação sobre a patologia. O diagnóstico foi feito logo após o parto, o que deixou os pais em choque, pois “aquele não era o bebê esperado”. Na época do nascimento da filha, a mãe estava com 39 anos, e o pai tinha 40anos, ambas as pessoas com formação universitária e, bem sucedidas profissionalmente. O casal já tinha um filho. A família passou a vir a São Paulo a cada dois meses para receber orientação de uma equipe multiprofissional. O prosseguimento do tratamento era feito pela família e profissionais escolhidos pela equipe paulista, no Rio Grande do Norte. D. começou a andar com 30 meses, e era bastante hipotônica. Desde pequena, frequentou uma escola normal. Os pais de D. tinham grande envolvimento no tratamento da filha e com o tema, fundando uma associação de Síndrome de Down. Relatam que anteriormente, na localidade de sua residência, as crianças portadoras da patologia ficavam em casa “escondidas”, a fim de não serem vistas pela sociedade. Após o surgimento da Associação e o movimento iniciado pelos pais, outras crianças, igualmente portadoras da síndrome, receberam tratamento significativamente diferente. Na avaliação da pesquisadora, D. tinha Um bom contato com o irmão e com os pais. Saíam juntos assiduamente. D. estudou em duas escolas de ensino regular. Cursou Magistério em escola estadual, e atualmente é auxiliar de professora na mesma escola que frequentou. A escolha pela profissão ocorreu após estágio em pré-escola como auxiliar de professora, durante o último ano do ensino fundamental. Adora crianças e tem facilidade em trabalhar na área. Os pais não têm dúvida a respeito da influência de uma professora do ensino fundamental na escolha profissional de D. Além dessa atividade, D. faz teatro e dá palestras em diversas instituições sobre a Síndrome de Down. Relata sua experiência mostrando como venceu os preconceitos sociais e conquistou o lugar que hoje ocupa. Seus pais sempre estiveram ao lado, incentivando suas atividades e lutando pelas conquistas. A participante relata, dentro de suas limitações, que conhece as implicações de ser portadora da síndrome, entende o preconceito e percebe as dificuldades enfrentadas no trabalho. Caso 2 R., por sua vez, iniciou tratamento em terapia ocupacional com 25 dias de idade. Logo ao nascer, havia dúvidas sobre o seu diagnóstico, confirmado com o resultado do cariótipo. Começou a andar sozinha com 18 meses e passou a frequentar uma escola maternal para crianças típicas. Por 171 opção dos pais, com quatro anos foi transferida para uma escola especializada. Ainda hoje, R. estuda em escola especial. Quando nasceu, sua mãe estava com 26 anos e seu pai 29 anos. Ambos trabalham fora e se enquadram na classe média. R. tem dois irmãos, é a filha do meio. Desde pequena, pratica atividade física em um clube tradicional esportivo, que até então não contava com associados atípicos. Assim como a mãe, valoriza muito os esportes e a aparência física. Atualmente, é campeã nacional, panamericana e internacional na modalidade que pratica em competições paraolímpicas; além de bater recordes brasileiros em competições em que é a única atleta portadora da Síndrome de Down. Trabalha em uma loja de departamentos e, também, como auxiliar em uma academia de esportes. Atualmente, está namorando. Pensa em se casar, ter uma vida independente e cursar o ensino superior. O objetivo dos pais, ao lado de terapeutas, é conscientizá-la sobre os obstáculos reais para a consecução dos projetos e possíveis conquistas, partindo das escolhas da participante. RESUMO DAS HISTÓRIAS A síntese das histórias emoldura, em parte, o estofo para a formação destes sujeitos, evidencia-se a singularidade de cada uma delas. O resumo mostra que a patologia não foi empecilho para o desenvolvimento destas pessoas. Ao contrário, ambas alcançaram posições de destaque, conscientes das limitações e dificuldades, ocasionalmente trabalhados pelos profissionais envolvidos. Os casos apresentados mostram a formação de duas pessoas portadoras de Síndrome de Down. Educar uma criança nesta condição é tarefa complexa, com necessidade de adaptação curricular específica nas escolas (MILLS, 1999): “... as dificuldades de aprendizagem, os distúrbios de conduta, a problemática de sua integração completam, mas não esgotam o quadro da educação do aluno com Síndrome de Down” (p. 233). A educação das participantes da pesquisa ocorreu de maneira diferente: uma frequentou escola especial e a outra uma escola regular. Este fato parece estar associado ao contexto sócio-histórico de cada uma delas. O mesmo fato pode ser creditado quanto à escolha pela formação educacional das portadoras. Cabe ressaltar a influência familiar: os pais de D. optaram pelo ensino regular, investindo na adaptação do currículo escolar às exigências de sua filha. Foram obrigadas a criar estratégias e parcerias com 172 os educadores, para que D. fosse inserida naquele contexto educacional. Por outro lado, os pais de R. optaram por uma instituição educacional planejada para crianças atípicas. Simultaneamente, R. frequentou um clube tradicional esportivo, o que garantiu a inserção em um ambiente de crianças típicas. Esses fatos elucidam novamente a questão historicidade e da singularidade do ser humano, além é claro da influência do contexto doméstico na formação do indivíduo. Observa-se que mesmo optando por caminhos diferentes, cada participante atingiu o seu objetivo específico com destaque. “... o portador de Síndrome de Down também possui 22 outros pares de cromossomos, que lhes conferem um pool de diversidade” (BISSOTO, 2005, p. 87). O progresso alcançado pelos alunos com Síndrome de Down, nas duas últimas décadas, pode ser devido não somente à eficácia da estimulação precoce, mas sem dúvida, também a outras situações específicas, principalmente com relação a atitudes familiares mais positivas, melhor atenção na área de saúde, atendimento educacional adequado (MILLS, 1999). Com relação à estimulação precoce (MUSTACCHI & RAZONE 1990) acrescentam: ... a estimulação precoce é uma série de exercícios que visa a desenvolver as capacidades da criança, de acordo com a fase de desenvolvimento em que ela se encontra. O desenvolvimento global da criança depende muito do ambiente em que vive, devendo ser tranquilo, fornecendo a criança estímulos variado. É importante realizar as atividades de estimulação diariamente, buscando sempre o envolvimento da família, a fim de que haja uma continuidade no que a criança vivencia, utilizando, paralelamente, um trabalho de fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional (4, p.87). O pensamento dos autores remete aos aspectos abaixo listados: 1. A necessidade de estimulação precoce dos portadores de Síndrome de Down com equipe multiprofissional. No tocante a esse fato e, particularmente em relação à Terapia Ocupacional, nota-se que ambas as participantes começaram muito cedo a 173 intervenção com esse profissional. Houve ganhos expressivos, principalmente no que se refere às atividades práticas da vida diária, isto é, da rotina, como alimentação, hábitos de higiene, vestuário, fazer compras, e nos aspectos escolares tais como coordenação motora, equilíbrio, lateralidade entre outros. O trabalho da Terapia Ocupacional contribuiu para a autonomia e a adaptabilidade dos indivíduos construídos por meio do autoconhecimento propiciado na intervenção; 2. Destaca-se que o desenvolvimento é fruto de características próprias de cada pessoa, somado ao que a pessoa obtém do seu mundo somando, ainda ao que o mundo disponibiliza para cada um através das pessoas que o cerca. Considera-se tanto o mundo animado como o inanimado, ou seja, o conjunto do “em torno”. Esta junção é um traço determinante para /e no desempenho do indivíduo (LEITE DE MORAES & MORON, 1999). 3. A importância do envolvimento da família na intervenção: ambas contaram precocemente com a participação da família. É ressaltado que (PUESCHEL, 1995) : “... é muito importante deixar a mãe perceber tanto as capacidades e as forças positivas do seu bebê, como as suas fraquezas. Deve-se orientar a mãe a respeitar o ritmo do seu filho” (p. 218). A autora discorre ainda sobre um aspecto fundamental: seria aconselhável que o envolvimento da família ocorresse por meio de orientações sistemáticas voltadas aos aspectos neuropsicomotores, principalmente pelo fato de o bebê portador de Síndrome de Down ser muito hipotônico. ... a hipotonia interfere nas aquisições do desenvolvimento motor da criança; nas habilidades, nas suas interações com o ambiente, retarda ou bloqueia sua exploração, diminuindo ou produzindo déficit de sensações e vivências, dificultando o desenvolvimento cognitivo (GUSMAN, 1999, p.176). Em relação ao desenvolvimento do portador, algumas considerações devem ser assinaladas: 1. As diferentes formas de manifestação da trissomia provocariam variações clínicas, físicas e na capacidade cognitiva dos portadores (BISSOTO, 2005). Entretanto, existem poucos estudos comparativos que mostram as reais diferenciações entre os três grupos de portadores. A autora enfatiza: “... há diferenças no potencial intelectual e nas habilidades de linguagem entre os portadores de mosaicismo e os portadores de forma típica da síndrome”. Ambas as participantes da pesquisa são portadoras da trissomia típica; 174 2. A Síndrome de Down frequentemente provoca complicações clínicas que interferem no desenvolvimento global do portador. As mais comumente encontradas são as cardíacas, hipotonia, respiratórias e sensoriais, principalmente visão e audição (BISSOTO, 2005). É importante salientar que ambas atingiram o nível de desenvolvimento relatado igualmente em decorrência das poucas complicações clínicas enfrentadas na vida. Finalmente, a literatura revela que o nascimento de uma criança com Síndrome de Down acarreta mudanças na família e, que a repercussão do fato dentro desta família é determinante na vida da criança. O fato vai ao encontro dos dados obtidos neste trabalho, principalmente no caso de D., pelo choque que os pais sofreram,. Os mesmo afirmaram: “... tivemos que matar o bebê esperado, vivenciar o luto, para depois aceitar o novo bebê”. Entretanto, após o luto e com orientações de profissionais especializados, tiveram grande envolvimento no tratamento da filha, lutando por sua inserção na sociedade. CONCLUSÃO Tendo em vista a singularidade humana, e a formação da identidade a partir das experiências vividas, considera-se a importância da família no processo formativo deste indivíduo. Depreende-se que cada portador de Síndrome de Down possui um desenvolvimento particular, em consequência de condições genéticas e sócio-históricas próprias. Destaca-se a importância do acesso aos portadores de Síndrome de Down ou, outra deficiência qualquer, e seus familiares a diferentes formas de tratamento. Todo indivíduo atípico transcende a mera patologia; por este motivo, o terapeuta ocupacional e outros profissionais transmitem aos familiares a possibilidade da sua inclusão. Como aqui se observou a inclusão não “chega” à família, como dádiva ou benesse; ao contrário, cabe a seus membros buscá-la, cotidiana e incessantemente, como direito legítimo de todo ser humano. Não há dúvida sobre o desejo de “tratar e curar”, mas ainda não há a procura efetiva pela qualidade de vida, incluindo o portador de deficiência, a partir de suas próprias forças. Historicamente, sempre foi mais fácil segregá-lo. Reafirma-se a certeza que a prática pela busca pela inclusão, deve ser iniciada pela família, componente basilar e emblemático de todo o processo, amando, aceitando e fundamentalmente acreditando no filho ou na filha. “Socializar essa prática é uma das chaves para inclusão” (LEITE DE MORAES & MORON, 1999). 175 REFERÊNCIAS BISSOTO, M.L. O desenvolvimento cognitivo e o processo de aprendizagem do portador de Síndrome de Down: revendo concepções e perspectivas educacionais. Ciências e Cognição, v. 2, n. 4, p.80-88, 2005. BOCK, A.M.B et al. Psicologias: uma introdução ao estudo de Psicologia. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999. BRUNONI, D. Aspectos epidemiológicos e genéticos. In: SCHWARTZMAN, J.S. (org.). Síndrome de Down. São Paulo: Mackenzie: Memnon, 1999, p.32-43. CASARIN, S. Aspectos psicológicos na Síndrome de Down. In: SCHWARTZMAN, J.S (org.). Síndrome de Down. São Paulo: Mackenzie: Memnon, 1999. p.263-85; FEBRA. M.C.S. Impactos da deficiência mental na família. Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra para a obtenção do grau de Mestre em Saúde Pública. Coimbra, 2009. GUSMAN, S. Fisioterapia na Síndrome de Down. In: In: SCHWARTZMAN, J.S (org.). Síndrome de Down. São Paulo: Mackenzie: Memnon, 1999. p.167-205. LEITE DE MORAES, M.C., MORON, A. F. Alguns pressupostos teóricos para “um emprego” do conceito de desenvolvimento. Rev Bras Cres Desenv Hum, v. 9, n.1, p. 35-40, 1999. MERINFELD, E.G. A abordagem estrutural na terapia familiar. In: ELKAIM, M. (org.). Panorama das terapias familiares, vol.1. São Paulo: Summus, 1998. p. 225-259. MILLS, N.D. A educação da criança com Síndrome de Down. In: In: SCHWARTZMAN, J.S (org.). Síndrome de Down. São Paulo: Mackenzie: Memnon, 1999. p. 232-262. MINAYO, M.C.S. O desafio da pesquisa social. In: MINAYO, M.C.S (org.). Pesquisa Social. Rio de Janeiro: Vozes, 2010. p.9-29; MURPHY, A. Nasce uma criança com Síndrome de Down. In: PUESCHEL, S. (org.). Síndrome de Down: guia para pais e educadores. Campinas: Papirus, 1995. p. 23-31. 176 MUSTACCHI, Z., RAZONE, G. Síndrome de Down: aspectos clínicos e odontológicos. São Paulo: CID Editora, 1990. PUESCHEL, S. Diagnóstico pré-natal. In: PUESCHEL, S. (org.). Síndrome de Down: guia para pais e educadores. Campinas: Papirus, 1995. p.65-76. SCHWARTZMAN, J. S. Generalidades. In: In: SCHWARTZMAN, J. S. (org.). Síndrome de Down. São Paulo: Mackenzie: Memnon, 1999, p.16-31; TRANCREDI, R. M. S. P., REALI, A. M. M. R. Visões de professores sobre as famílias de seus alunos: um estudo na área da educação infantil. Trabalho apresentado na 24ª Reunião da Anped, Caxambu – Minas Gerais, 2001. 177 8 Qual o tipo de famìlia para o futuro? Nicola REALI: [email protected] CV: Professor do Pontificio Istituto Pastorale Redemptor Hominis da Pontificia Università Lateranense/Roma. 178 BSTRACTRESUMOABSTRACTRESUMOABSTRAC Resumo «Tempora sunt tria praesens de praeteritis, praesens de praesentibus, praesens de futuris […] praesens de praeteritis memoria, praesens de praesentibus contuitus, praesens de futuris exspectatio»85. Esta famosa afirmação de “As confissões” de Santo Agostinho, que conheceu (junto a todo décimo primeiro livro da mesma obra) infinitas leituras e interpretações das quais seria impossível dar conta brevemente, resulta todavia útil para introduzir-nos diretamente no tema que nos foi pedido expor. Perguntar-se, de fato, qual o tipo de família se pode pensar , idealizar e/o (talvez) esperar para o futuro, é uma interrogação que se põe no tema diretamente – primeiro ainda que a questão sobre “tipo” de família – a questão do futuro e, então aquela da temporalidade que ocorre reconhecer ao viver humano na Família. Em outros termos, a questão pertence aquele complexo de argumentações que procuram tornar inteligível ao homem, historicamente existente, aquela dimensão tão fundamental da sua vida que é representada pela própria temporalidade. Certamente a esta observação deve ser subitamente contestado que não se trata genericamente de compreender a temporalidade do vivente, mas da família, portanto a pergunta sobre o futuro da família não pode confundir-se indistintamente com aquela sobre o futuro do homem, mas deve ser elaborada mantendo intacta a sua especificidade. Contemporaneamente, não se pode notar, todavia, que, se esta precisão parece indiscutível na maneira igualmente coercitiva, o esquecimento que no futuro da família está o do homem e, enquanto tal, é igualmente danosa. Falar da família sem tematizar quando (e quais condições) em definitivo se podem declarar “humanos” o homem e a mulher é, de fato, um esquecimento que privaria qualquer consideração sobre o aspecto da família necessário para compreender a intrínseca plausibilidade “humana” da relação entre os sexos, que alí se realiza. Neste senso se compreende como o haver evocado a sugestão agostiniana sobre a experiência que o homem tem do tempo pode resultar útil a responder à pergunta do título proposto, pergunta que a este ponto pode ser tranqüilamente reformulada sem correr o risco de mal entender a correspondência em jogo: indicar qual o “tipo” de família teremos no futuro é tentar mostrar que “tipo” de futuro caracteriza a vida do homem e da mulher em família. Palavras-chave Família; Futuro; Conjugalidade 85 «I tempi sono tre: il presente del passato, il presente del presente e il presente del futuro […] il presente del passato è la memoria, il presente del presente è la visione, il presente del futuro è l’attesa»: AGOSTINO, Confessionum, XI, 20,26. 179 1. MATRIMÔNIO E FAMÍLIA Procuremos, então, tentar iluminar esta questão iniciando propriamente da tentativa de mostrar que coisa significa caracterizar a família como lugar no qual se realiza uma verdadeira experiência de humanidade do homem e da mulher. Deste ponto de vista pode ser útil, antes de tudo, assinalar brevemente o quadro dentro do qual a teologia contemporânea (de modo particular a teologia moral) procurou iluminar o problema em questão. A reação que a vários títulos, e em vários modos, recentemente se estruturou contra o ideal racionalístico (que unanimemente vem reconhecido como parte integrante da assim dita “teologia manualística), empurrou na direção de uma revisitação do tema da família que tomou os movimentos de uma reelaboração dos seus pressupostos antropológicos. Em particular, é largamente difusa a convenção que era impossível preservar uma visão substancialista do sujeito da qual se deduz a essência do vínculo conjugal e, conseqüentemente, se fez ampla a tentativa de restituir o valor reflexivo à dimensão de historicidade que contradistingue inexoravelmente a vida do homem.Produziuse, assim, uma denúncia da estratégia da teologia precedente, unida a uma refutação de uma visão meramente jurídica do laço familiar que declarou implausível proceder através de uma preventiva declaração da identidade da família, a qual seria a indicação dos comportamentos morais adequados. A supremacia da experiência sobre a norma tornou-se, deste modo, o cavalo de batalha de uma teologia que, por sentir-se finalmente livre dos laços do racionalismo moderno, tinha, todavia, o problema de não degenerar num historicismo que a tinha conduzido entre os braços daquele difuso ceticismo pós-moderno sobre a identidade da família que se queria combater. Deste modo, a teologia procurou remediar deste perigo, de uma parte rebatendo o valor universal das imagens tradicionais da família, de outro procurando na filosofia um modelo de pensamento que pudesse ser útil a esta reafirmação. A escolha, quase unanimemente, caiu sobre esta que de maneira extremamente geral e grosseira podemos chamar a filosofia dialógica ou da interpessoalidade. Na prática, pegouse emprestado este dado da filosofia (em parte moderna e em parte contemporânea) identificando nele o princípio normativo da experiência familiar, já que é universalmente acessível. O procedimento, embora declinado com condições uma vez ou outra diferentes (a caridade, o dom, a responsabilidade, a solidariedade)86, conduziu sempre ao mesmo resultado: 86 Tra gli altri, cfr. G. GATTI, Morale matrimoniale e familiare, in ID., Corso di morale, vol. III: Morale sessuale, educazione dell'amore, LDC, Torino 1979, pp. 161-327; G. B. GUZZETTI, Per vivere in pienezza il matrimonio e la famiglia, Ufficio diocesano per la famiglia, Milano 1980; D. TETTAMANZI, I due saranno una carne sola. Saggi teologici sul matrimonio e famiglia, LDC, 180 sublinhar a impossibilidade de abandonar a instituição familiar como forma originária daquela dimensão universal do viver humano que é a relação eu-tu. Deste modo, todavia, não se pode não notar que a tentativa de compreender o elemento específico da família utilizando como recurso as categorias da interpessoalidade, paradoxalmente confirmou as dificuldades conexas ao modelo teológico que si queria superar. O problema é ilustrável partindo da modalidade com a qual se assumiu o princípio da interpessoalidade : retirando a atenção da descrição da norma para a fundação da norma, pensou-se em reencontrar na noção de interpessoalidade o enraizamento “ontológico” da mesma norma. Assim fazendo, é a noção de interpessoalidade que assume a função de elemento qualificante de uma teologia que, uma vez afirmada a estrutura fundante da relação eu-tu, pode sucessivamente dirigir a sua atenção para a justificação da identidade da família como da realidade universalmente dotada de valor, e, logo, objeto do querer. Na pacífica convenção de ter encontrado uma nova base “natural” para o discurso teológico, o argumento pode sucessivamente declinar a especificidade cristã da família, de uma parte refazendo-se ao mistério trinitário (como modelo originário da relação interpessoal87) e de outra introduzindo o tema da graça para significar a dimensão salvífica da estrutura familiar onde «nos salvamos ou nos perdemos juntos»88. Índice desta reproposição das dificuldades imputadas ao esquema precedente é a dificuldade da teologia recente de integrar na reflexão sobre família o tema do matrimônio. Em outros termos, o peso na argumentação vem a assumir a premissa de tipo interpessoal, termina por configurar o momento matrimonial somente como o ato que sanciona publicamente o início da experiência familiar, já que esta é já explicada pelo princípio interpessoal. Não se procura, de fato, mostrar a identidade da família partindo do matrimônio, mas se enucia somente o princípio segundo o qual o matrimônio é reservado àquela relação de casal que quer assumir (ou que pode assumir) todos os direitos e deveres que competem à família enquanto tal. Símile procedimento esquece, no entanto, de indicar a necessidade a partir da qual matrimônio e família não podem ser considerados separadamente, já que não vem esclarecida a razão pela qual uma relação de casal deve originar-se do matrimônio, a partir do momento que a mesma relação é explicada pela “lei universal” da interpessoalidade e não do matrimônio. Torino 1986; ID., La famiglia e l’ethos del dono, in ID., La famiglia, via della chiesa, Massimo, Milano 1987, pp. 146-162; L. CICCONE, Per una cultura della vita a partire dalla famiglia. Responsabilità generosa nel dono della vita, LDC, Torino 1988. 87 88 Cfr. G. MAZZANTI, Teologia sponsale e sacramento delle nozze. Simbolo e simbolismo nuziale, EDB, Bologna 2001, pp. 247-277. GATTI, Morale matrimoniale …, op. cit., p. 225. 181 A formalidade com que este argumento sobre a família assume o momento matrimonial, torna-se, todavia, mais evidente no caso da família cristã. Aqui, de fato, a afirmação segundo a qual à base da família cristã se põe inequivocadamente o sacramento do matrimônio é freqüentemente entendida de modo reduzido no que diz respeito aquilo que propriamente está em jogo. A explicação mais usual chega a fixar o caráter originário da família no sacramento,na medida em que este último aparece “divinamente instituído”. Razão pela qual, diante da impossibilidade de referir no sacramento a identidade da família, se opera um genérico apelo à “vontade” de Deus (ou de Jesus) a fim de mostrar que a família não surge somente da resposta a “necessidade” do homem e da mulher. O argumento, todavia, não traz novidade significativa, porque, agora uma vez mais, a necessidade de ligar os dois momentos não aparece intrínseco a relação entre matrimônio e família, mas no positivistico chamado a uma vontade instituinte. Assim fazendo, o sacramento do matrimônio se configura como o início público de uma família cristã, cuja identidade, não obstante, se encontra para além do mesmo sacramento. Há, em resumo, na teologia contemporânea uma forte tendência de separar matrimônio e família que, embora nunca afirmada, não obstante pesa notavelmente no desenvolvimento do relacionamento. Prova disto é que, se quiséssemos tentar oferecer uma resposta à pergunta que se propôs ao início, esquecendo o intrínseco nexo que liga a família ao matrimônio, seremos forçados a chegar a uma aporia insuperável. Esta última é a evidente impossibilidade de argumentar sobre o futuro do homem e da mulher que vivem em família de maneira diferente de uma genérica argumentação sobre o futuro de cada vivente. Sobre esta formulação pesaria, pois, a consciência que não teria um quê existencial a dar a diferença específica ao futuro da família, a qual – o que é mais grave – seria absorvida na história de todas as pessoas que pertencem ao tempo destinado a escorrer para a morte. 2. A “VISÃO VULGAR DO TEMPO” A aporia que chega a reflexão mais usual sobre a família, obriga, portanto, a procurar uma nova solução para a pergunta inicial partindo do laço, que ocorre reconhecer como vinculador, entre matrimônio e família. Que coisa significa para o homem e para a mulher que vivem em família o antecedente do matrimônio? E, mais precisamente, por que para pensar o futuro da experiência familiar ocorre fazer referência ao momento passado do matrimônio? A pergunta, como se vê, põe no tema a questão do futuro da família a partir do seu passado, coisa que evidentemente pede para ser 182 especificada partindo do laço que necessariamente o futuro possui com o passado. Para poder desenvolver adequadamente esta tarefa, talvez, convém, antes de tudo, indicar – em negativo – a quais condições isso resultaria impossível. Deste ponto de vista é útil em primeiro lugar mostrar a imprecisão de uma reflexão que se limitasse a considerar a medida objetiva do tempo (o tempo do relógio) independentemente da sua verdade subjetiva (o tempo vivido)89. A perpétua rotação de um ponteiro em torno de um ponto fixo sobre um quadrante ou o incessante suceder-se de cifras sobre uma tela apresenta somente uma “sucessão de instantes” que na realidade não diz absolutamente nada sobre a maneira com a qual o homem faz a experiência do tempo. Prova disto é que qualquer um que tenha experimentado quanto um tempo objetivamente breve ( a espera de um ônibus) pode ser na realidade longo e, ao contrário, quanto um tempo objetivamente longo (férias) pode ser breve. Não há necessidade, então, de deter-se ulteriormente a mostrar similar apresentação do tempo, no nosso caso, seria inútil. Resulta vantajoso, ao invés, indicar como existe uma outra visão que, aparentemente respeitosa do “tempo vivido”, conduz também ela a um impasse que produziria a possibilidade de responder à pergunta que se pôs. Tal solução ultimamente é reconduzível àquilo que Heidegger chamou o “conceito vulgar do tempo”: a re(con)dução do passado e do futuro ao presente90. Em outros termos, passado e futuro seriam um duplo “não-tempo”, sobre pacífica convenção que só o presente “é” o tempo do qual o homem pode fazer experiência: o passado termina e o futuro começa no mesmo momento em que o presente começa ou termina. Portanto, a equivalência entre presente e ser, conduziria à afirmação da inexistência ôntica do passado e do futuro como aquilo que respectivamente “não-é-mais” e “não-é-ainda”. Nesta interpretação que, sempre seguindo Heidegger, une a história da metafísica de Aristóteles a Nietzche (passando por Hegel), a mútua relação entre passado e futuro seria disponível só no “aqui e agora” da consciência humana que ao presente se assegura a presença do passado e do futuro. No nosso caso, então, o único horizonte temporal da família seria aquele da atividade intencional do sujeito que, ao presente, antecipa a presença do futuro e extrai das suas reminiscências o tempo já transcorrido. O matrimônio se encontraria, portanto, confinado no passado entendido como uma entidade ou uma localidade no qual jazeriam as recordações esquecidas que a anámnesis poderia extrair. 89 Tra gli altri, cfr. J. -Y. LACOSTE, Notes sur le temps. Essai sur les raisons de la mémoire et de l’espérance, PUF, Paris 1990; C. ROMANO, L’événement et le temps, PUF, Paris 1999; E. FALQUE, Métamorphose de la finitude. Essai philosophique sur la naissance et la résurrection, Cerf, Paris 2004. 90 M. HEIDEGGER, Essere e tempo, §§ 81-82, tr. it., Longanesi, Milano 1976, pp. 502-520. 183 Neste ponto deveria estar claro que conferir um favor indiscutido ao presente não ajuda uma real compreensão da temporalidade, já que a experiência do tempo põe em crise justamente este unívoco privilégio do presente e corrompe a idéia que não existe passado e futuro sem presente. Nunca como neste caso, de fato, a celebração do presente vai no mesmo passo com uma redução da linguagem que, enquanto tende a substantivar os tempos (“o passado, “o futuro”), proclama ao mesmo tempo aquela substancialidade que termina por homologar-lhe à duas entidades ou localidades91. Assim, não deve suscitar admiração afirmar como a linguagem mesma pode rebater a “visão vulgar do tempo”, denunciando, de uma parte, a escolha – ainda uma vez unilateral – de privilegiar uma dicção puramente privativa do passado e do futuro (aquilo que “não-é-mais” e “não-é-ainda”), de outra, evidenciando que do passado e do futuro se pode falar também nos termos daquilo que “era” (essente stato) e “será”. Se a primeira definição, de tipo adverbial, tem caráter privativo; a segunda, de tipo verbal, tem-no positivo. Antes, se pode por fim dizer que a segunda acentua o caráter “real” do passado e do futuro já que ambas são afirmadas não em relação a uma falta de ser (“não-é mais” “não-é ainda”), mas por referência às suas realidades efetivas: “era” e “será”. Quanto a esta segunda indicação é sabido que justamente Heidegger, no quadro de uma ontologia do Dasein baseada no Sorge (cuidado), tenha-lhe imposto a legitimidade, chegando a decretar o primado do futuro que na “resolução precussora (vorlaufende Entschlossenheit)» antecipa o «percurso (Vorlaufen)» da morte. As diferenças das três instâncias temporais são, portanto, postas a partir de uma unidade presumida que o futuro garantisse à temporalidade e que, não por menos, se contrapõe claramente ao privilégio do presente próprio da “visão vulgar do tempo”. A antítese que, neste caso, se cria entre a afirmação do caráter “privativo” e daquele “real” do passado e do futuro sanciona a clara oposição entre as duas, dando à reflexão sucessiva uma inconciliabilidade radical. A lição de Heidegger é, então, de resistir a todos os custos, refutando cada compromisso e cada tentação de acordo entre as duas visões. Todavia, é licito reter que esta escolha heideggeriana possa a bom direito ser posta em discussão, afirmando, contrariamente ao filósofo alemão, que provavelmente ambas as visões têm os mesmo direitos de coexistir e que, antes, justamente da sua recíproca implicação possa emergir uma compreensão do tempo que – não limitando-se a afirmar o primado do presente – consente a abertura de novas perspectivas. 91 In questo senso sarebbe preferibile non parlare più de “il passato” e de “il futuro”, ma ipotizzare una nuova terminologia, come propone, per esempio, P. Ricoeur parlando di “passeità” e “futurità”. In proposito cfr. P. RICOEUR, Ricordare, dimenticare, perdonare. L’enigma del passato, tr. it., Il Mulino, Bologna 2004. 184 3. REALIDADE, PERDIDA E AUSÊNCIA Perguntamo-nos, pois, qual é essa recíproca implicação, iniciando por colocar em evidência que a memória do passado e a espera do futuro é ligada indissoluvelmente a uma dupla e simultânea experiência: de uma parte o caráter “real” do passado e do futuro afirma quanto o homem reencontra nele a condição da sua atividade, de outra o passado e o futuro implicam uma ausência respectivamente anterior e irreal que determina a impossibilidade do homem de intervir sobre aquilo que aconteceu e acontecerá. Em outros termos, faz parte da experiência de cada um verificar como o passado é aquilo sobre o qual não é dada nenhuma possibilidade de intervenção por parte do homem, já que isso é definitivamente perdido e, então, “não-é-mais”. Mas, igualmente, essa experiência não é dissociada da consciência que ninguém pode desfazer-se do seu passado, a partir do momento que aquele que “não é mais” aconteceu realmente e, como tal, se repercute sobre a vida presente. Do mesmo modo nada é tão mais ausente da vida do aquele que “não-é-ainda”, mas nada é tão determinante para a vida de um homem quanto aquilo que “será” o seu futuro: a espera do futuro, de fato, é quanto mais fortemente individua a experiência humana tanto menos é a disposição do homem. Como conseqüência, o caráter de perda do passado e de ausência do futuro não contradizem a realidade efetiva com a qual o homem percebe o seu passado e o seu futuro, antes, constituem-lhe um elemento essencial. A perda do passado e a ausência do futuro se encontram indissoluvelmente ligados à “realidade” do passado e do futuro de modo tal a poder afirmar que o passado “não-é-mais” só porque “era” (e vice-versa) e o futuro “não-é-ainda” só porque “será” (e vice-versa). O passado, de fato, é alguma coisa de absolutamente perdido e sobre o qual não se pode intervir, mas justamente esta sua definitividade não lhe impede de ter sido aquilo que realmente determina o presente do vivente. Analogamente, o futuro é efetivamente ausente, mas esta sua ausência não lhe veta de poder ser verdadeiramente o constitutivo da decisão atual do homem. O passado e o futuro podem, então, ser observados partindo da ligação que esses têm com o presente, à condição, porém, de estabelecer ao mesmo tempo a ligação que o presente possui com o passado e com o futuro. Noutros termos, se o presente é o não ser mais do passado e o não ser ainda do futuro, neste caso, só na ligação ao presente se pode pensar o passado e o futuro, porque só no presente “aquilo que era” não é mais e “aquilo que será” não é ainda. Todavia, isto não pode fazer esquecer que existe também uma ligação do presente com o passado e com o futuro, a partir do momento que só no passado aquilo que agora “não é mais” era, e só no futuro aquilo que no presente “não é ainda” será. 185 O privilégio do presente próprio da “visão vulgar do tempo” cai e com ela dacai também a possibilidade de descrever a temporalidade favorecendo indiscriminadamente uma das suas dimensões. Se deve, antes de tudo, salvaguardar a unidade do tempo humano, e, também, valorizar das três suas instâncias. É por isso, neste caso, que a fórmula sintética da “visão vulgar do tempo” – segundo a qual “não existe passado e futuro sem presente” – há de ser refutada na sua unilateralidade, mas a sua refuta não se condensa, por assim dizer, na mera indicação da sua parcialidade: em jogo não há somente a batalha contra o privilégio do presente, senão a requisição de restituir ao presente a sua pertença a unidade do tempo, deixando aparecer “ao presente” o peso real do passado e do futuro. Nada mais que a temporalidade mesma pode permitir igual restituição, pela qual não se trata de cancelar (em nome de uma razão pós-moderna) a afirmação que “não existe passado e futuro sem presente”, mas somente de indicar que essa deve – obrigatoriamente – andar a passos juntos à outra, segundo a qual “não existe presente sem futuro e sem passado”. Neste senso se compreende como a citação inicial de Agostinho pode ser assumida qual fio condutor do argumento proposto. A ligação, de fato, que o Bispo de Hipona vê entre as três dimensões da temporalidade não é exclusivamente endereçada a afirmar – como sugerem os críticos modernos e pós-modernos – uma “metafísica da presença”. Agostinho está seguramente preocupado em assinalar aquilo que chamamos o caráter privativo do passado e do futuro, que ao presente adquirem “presença”, mas tal atenção não é separável do fato que existem três diferentes formas de conhecimento do tempo (a memória, a visão e a espera). Isto significa que, agora, não se trata simplesmente de reduzir o presente, transferindo a consciência do momento atual ao passado e ao futuro, mas no reconhecer que “havia” e “haverá” um modo de ser do homem, diferente daquele presente e que só pode ser conhecido respeitando a sua diferença do hoje do vivente. Neste senso, para Agostinho, se dá um tríplice presente porque a memória e a espera são o presente respectivamente do passado e do futuro a partir do momento que, não só faz recordar o passado e imaginar o futuro, mas pertencem ao passado e ao futuro enquanto uma se realizou no passado e a outra se realizará no futuro. Portanto, Agostinho pode afirmar que existe um presente que é realmente do passado e do futuro e que se põe como requisito indispensável à consciência da unidade do tempo, já que a condição que torna possível pensar a presença do ausente ao presente é quanto efetivamente pertence ao passado e ao futuro, logo, quanto “era” e “será”: «I tempi sono tre: il presente del passato, il presente del presente e il presente del futuro […] il presente del passato è la memoria, il 186 presente del presente è la visione, il presente del futuro è l’attesa». 4. O EVENTO E A PROMESSA O êxito ao qual está junto o confronto com a “visão vulgar do tempo” permite, a este ponto, retomar o fio do argumento sobre futuro da família. A respeito às aporias anteriormente assinaladas, agora, se pode, ao menos, evidenciar que qualquer que seja o discurso sobre a família deve necessariamente integrar o momento do matrimônio. A exigi-lo não está somente a positivística declaração que não existe família sem matrimônio, mas a evidente necessidade que o homem tem de retornar à realidade do seu passado, enquanto anteriormente passado e, por isso, efetivamente real. O que temos até aqui evidenciado: não existe presente sem passado e sem futuro, e a memória do passado não tem nunca a forma da pontualidade da intuição sensível ou intelectual, no sentido que o homem não recorda o próprio passado da maneira que conhece o seu presente. A memória, para retomar mais uma vez Agostinho, é do passado; a ele pertence e, portanto, o reviver o passado para o homem não é somente o fazer emergir imagens mais ou menos nítidas do esquecimento, esforçandose para transferir o próprio eu no tempo ido. Senão, se trata de ocupar-se do homem que cada um de nós era e de confrontarse com a sua realidade efetiva. Confrontar-se significa agir e interagir, logo, avizinhar o próprio passado equivale colocar em jogo as próprias paixões, desejos e espera: todos os elementos seriam abstrato limitar retrospectivamente, porque estes pertenceram, pertencem e pertencerão ao homem. Sinteticamente, trata-se de reconhecer que o passado tem uma relação indiscutível com o presente e o futuro e que, propriamente tal relação, determina a qualidade da recordação. Agostinho a recordou juntando o presente do passado ao presente do futuro, agora se trata de fazê-lo valer especificamente para realidade da família, com a advertência, todavia, de reconhecer que neste caso não está questão somente o peso que a proteção ao futuro faz pesar sobre a recordação (no sentido de como os projetos, as esperas e desejos influenciam a apreensão do passado) mas também o influxo que o passado exerce sobre o futuro. Deste ponto de vista, o matrimônio é alguma coisa de privilegiado: este, qualquer que seja o seu contexto (religioso ou civil), representa um evento passado que tem um influxo direto sobre o futuro. O matrimônio, de fato, obriga e a obrigação que estabelece tem, desde o primeiro instante, o caráter da promessa futura. A promessa de uma comunhão de vida estabelecida por interesses comuns, a promessa de um empenho recíproco, a promessa de dar-se reciprocamente uma descendência, a promessa (por que não?) de um amor eterno. 187 Certo, em alguns casos a promessa poderá não ser mantida, e, então, o matrimônio será um fardo que o passado faz pesar sobre o futuro, em outros casos será um recurso sobre qual construir o próprio futuro. Em todos os casos, porém, pertence intrinsecamente ao matrimônio este caráter de promessa, e como tal é imediatamente evidente que a memória do matrimônio não se reduz no retornar a reapropriar-se do seu significado, mas também no reconhecer que o futuro deve fazer as contas com aquele momento passado que realmente influi sobre o advir. Esta posição tem, todavia, que ser precisada já que, se a promessa aparece incontestavelmente como o sinal do peso que o matrimônio exercida sobre o futuro da família, não por menos ocorre reconhecer que a promessa é diretamente possibilitada só pelo matrimônio. Em outros termos, o matrimônio não é o evento transcorrido que a promessa transfere sobre o futuro da família: o decidir-se prometer – e então o obrigar-se pelo futuro – é o modo com o qual o homem transmite o fato acontecido como memória do passado. Por conseqüência, antes de prometer, o homem viu, sentiu e experimentou aquilo que sucedeu, e então foi alcançado e tocado pelo fato acontecido. Viria, neste caso, dizer que o matrimônio reclama a promessa de mesma base de sua essência, enquanto este antecipa a possibilidade de poder prometer por parte do homem e, logo antecipa seu futuro. Assim, se compreende que não tem sentido contradizer a definitividade do matrimônio (já que o passado não pode ser mudado) à incerteza do futuro da família, a partir do momento que o fato do qual não se pode desembaraçar é justamente o inexaurível recurso do futuro da família. Antes, a diferença está justamente aqui: continuar aprisionados ao sentimento doloroso do irreversível que faz aparecer a história da família como o cemitério das promessas não mantidas, ou aprender a repetir continuamente o evento original da família fazendo ressurgir – nas nossas promessas – todas as promessas que o matrimônio possui, também aquelas que não foram mantidas. 5. O SACRAMENTO: DOM E TAREFA Pensar sobre o futuro da experiência familiar se encontra deste modo inevitavelmente conjugado ao momento passado do matrimônio naquele binômio de promesssa-evento que não por nenhuma sigla, emblematicamente, também é a base sobre a qual repropõe uma leitura teológica da família. É indubitável, de fato, que a ligação evidenciada entre a promessa e o evento do matrimônio induz a uma retomada do ensinamento da Escritura que, contra cada determinismo possível, fixa na fórmula do “mito” genesíaco o evento originário ao qual se olha para interpretar a totalidade da vivência afetiva do homem e da mulher. A retomada daquele 188 evento, que liberta que é chamada a operar no dispositivo ritual colocado a disposição do sacramento, aparece, ao mesmo tempo, como um dom e uma tarefa: o dom de uma totalidade que, representando a unidade das formas históricas com a qual o homem se atua, se oferece ao homem como o espaço no qual ele pode pouco a pouco efetivamente determinar a si mesmo, sem nunca porém afirmar de uma vez por todas. O mito, então, predispõe uma visão da relação transcendência/liberdade na qual se evitam os extremos de uma pura passividade do homem e de um insensato ativismo antropológico: a atividade do homem é necessariamente antecipada na figura absolutamente originária da condição humana, a qual assume a forma de uma história humana além do humano que torna humana a história do homem, já que doa a este último a possibilidade concreta de dar forma a si mesmo. O relacionamento à diferença da transcendência se caracteriza, portanto, no mito como relação a um evento absoluto que, propriamente por esta característica, pode ser ritualmente repetido. Aquilo que funda a vivência histórica do homem não pode ter a forma do princípio do qual se pode deduzir as escolhas humanas, mas deve caracterizar-se como uma história de liberdade absoluta que se doando concretamente compreende todas as possibilidades da liberdade humana, e, portanto, se revela como a verdade do homem que necessita ser continuamente repetida para favorecer-nos a retomada na forma de um acontecimento novo e livre. A verdade do mito é, portanto, aquilo que consente à liberdade de ser tal e esta última, por sua vez, tornar a manifestação e a atuação da verdade porque a verdade mesma no seu acontecer já a tem implicada92. Como conseqüência a “representação” mítica da experiência culmina no reconhecimento que a figura, por si, absolutamente originária da condição humana, que se repetindo consente à liberdade ser ela mesma, deve assumir a forma de um evento. Aquilo que unifica o senso de particularidade do tempo da liberdade finita deve acontecer na forma de quanto é indisponível à liberdade, por isso adia para uma iniciativa transcendente que deve ter a forma do evento onde verdade e liberdade coincidem. Só o evento da revelação cristológica dá razão a uma compreensão da existência do homem tornada possível unicamente a partir de uma origem da qual o sujeito não dispõe e que lhe torna acessível simbolicamente, graças ao evento da sua atuação definitiva. O simbolismo desta doação vem, portanto, compreendida no sentido de que aquilo que indica o caráter livre do fundamento não separadamente da liberdade humana: somente reconhecendo em ato a iniciativa através da qual Deus já pôs 92 In proposito cfr. N. REALI, Fino all’abbandono. L'eucaristia nella fenomenologia di J. -L. Marion, Città Nuova, Roma 2001, pp. 271-284; S. UBBIALI, La teologia della famiglia in Italia. A proposito dell’uomo, la donna e l’originario simbolo della vita, in «La Famiglia» XXVI (1992), pp. 5-17. 189 no tempo de Jesus o cumprimento da liberdade, é possível para o homem reconhecer e atuar efetivamente na própria condição de homem livre. A tarefa do sacramento é propriamente aquela de tornar presente o evento absoluto da redenção humana, que tendo tomado a forma de um ato de liberdade, se põe como manifestação da identidade de Deus e do homem. Repetido ritualmente, já que é absoluto, o evento toma a forma da mediação simbólica da atuação da fé, uma vez que a existência do homem vem aberta por uma origem que não é a disposição da liberdade humana, mas torna-lhe acessível na doação simbólica que o sacramento garante. O símbolo sacramental não tem, portanto, somente o significado daquilo que indica o caráter livre da liberdade de Deus – pelo qual Ele se dá e se retrai, se doa e se esconde – muito menos especifica platonicamente a retomada àquele aspecto espiritual do dado material que se sela à atitude naturalista do olhar do sujeito. O rito litúrgico da celebração identifica no símbolo do sacramento a necessidade da presença da liberdade de Deus e do homem para que nos possa ser manifestação da verdade absoluta. Diante do exposto esperamos que, deste modo, se possa garantir uma consideração apropriada e não nominalística do movimento de inclusão que existe entre matrimônio e família, juntamente ao esclarecimento do motivo que explica, entre outros, a necessária distinção entre matrimônio e família. A partir do momento que o sacramento oferece a irrecusável promessa de amor de Cristo à sua igreja, isto se torna o único âmbito no qual o homem pode decidir pela orientação do seu amor: a família não surge sobre o pressuposto de uma impossível adequação do amor de Cristo, mas da possibilidade efetiva de poder repetir o único amor de Cristo. A família tem um único ponto a olhar para entender que “tipo” de futuro possui: o matrimônio. REFERENCIA BIBLIOGRÁFICA CICCONE, L., Per una cultura della vita a partire dalla famiglia. Responsabilità generosa nel dono della vita, LDC, Torino 1988. FALQUE, E., Métamorphose de la finitude. Essai philosophique sur la naissance et la résurrection, Cerf, Paris 2004. GATTI, G., Morale matrimoniale e familiare, in ID., Corso di morale, vol. III: Morale sessuale, educazione dell'amore, LDC, Torino 1979. GUZZETTI, G. B., Per vivere in pienezza il matrimonio e la famiglia, Ufficio diocesano per la famiglia, Milano 1980. 190 HEIDEGGER, M., Essere e tempo, §§ 81-82, tr. it., Longanesi, Milano 1976. LACOSTE, J. -Y., Notes sur le temps. Essai sur les raisons de la mémoire et de l’espérance, PUF, Paris 1990. MAZZANTI, G., Teologia sponsale e sacramento delle nozze. Simbolo e simbolismo nuziale, EDB, Bologna 2001. REALI, N., Fino all’abbandono. L'eucaristia nella fenomenologia di J. -L. Marion, Città Nuova, Roma 2001. RICOEUR, P., Ricordare, dimenticare, perdonare. L’enigma del passato, tr. it., Il Mulino, Bologna 2004. ROMANO, C., L’événement et le temps, PUF, Paris 1999. TETTAMANZI, D., I due saranno una carne sola. Saggi teologici sul matrimonio e famiglia, LDC, Torino 1986. -------------------- La famiglia e l’ethos del dono, in ID., La famiglia, via della chiesa, Massimo, Milano 1987. UBBIALI, S., La teologia della famiglia in Italia. A proposito dell’uomo, la donna e l’originario simbolo della vita, in «La Famiglia» XXVI (1992). 191 8A Quale tipo di famiglia per il futuro? Nicola REALI 192 BSTRACTRESUMOABSTRACTRESUMOABSTRAC Riassunto «Tempora sunt tria praesens de praeteritis, praesens de praesentibus, praesens de futuris […] praesens de praeteritis memoria, praesens de praesentibus contuitus, praesens de futuris exspectatio»93. Questa famosa affermazione de «Le confessioni» di S. Agostino, che ha conosciuto (insieme a tutto l’undicesimo libro della stessa opera) infinite letture ed interpretazioni delle quali sarebbe impossibile dare conto brevemente, risulta tuttavia utile per introdurci direttamente nel tema che ci è stato chiesto di esporre. Chiedersi, infatti, quale tipo di famiglia si dà da pensare, ipotizzare e/o (forse) da sperare per il futuro, è un interrogativo che mette a tema direttamente – prima ancora che la domanda sul “tipo” di famiglia – la questione del futuro e, dunque, quella della temporalità che occorre riconoscere al vivere umano nella famiglia. In altri termini, la questione appartiene a quel complesso di argomentazioni che cercano di rendere intelligibile all’uomo storicamente esistente quella dimensione così fondamentale della sua vita che è rappresentata dalla propria temporalità. Certamente a questa osservazione deve essere subito obiettato che qui non si tratta genericamente di comprendere la temporalità del vivente, ma della famiglia, pertanto la domanda sul futuro della famiglia non può confondersi indistintamente con quella sul futuro dell’uomo, ma deve essere elaborata mantenendo intatta la sua specificità. Contemporaneamente non si può non notare, tuttavia, che, se questa precisazione appare indiscutibile, in maniera altrettanto cogente la dimenticanza che nel futuro della famiglia ne va dell’uomo in quanto tale è altrettanto dannosa. Parlare della famiglia senza tematizzare quando (e a quali condizioni) in definitiva si possano dichiarare “umani” l’uomo e la donna è, infatti, una dimenticanza che priverebbe qualsiasi considerazione sulla famiglia del risvolto necessario a comprenderne l’intrinseca plausibilità “umana” della relazione tra i sessi che lì si realizza. In questo senso si capisce come l’aver evocato il suggerimento agostiniano sull’esperienza che l’uomo ha del tempo può risultare utile a rispondere alla domanda del titolo proposto, domanda che a questo punto può essere tranquillamente riformulata senza correre il rischio di fraintenderne la posta in gioco: indicare quale “tipo” di famiglia ci sarà in futuro è tentare di mostrare quale “tipo” di futuro caratterizza la vita dell’uomo e della donna in famiglia. Parole Chiavi Famiglia, Futuro, Coniugalità 93 «I tempi sono tre: il presente del passato, il presente del presente e il presente del futuro […] il presente del passato è la memoria, il presente del presente è la visione, il presente del futuro è l’attesa»: AGOSTINO, Confessionum, XI, 20,26. 193 1. MATRIMONIO E FAMIGLIA Proviamoci, allora, a tentare di illuminare questa questione iniziando proprio dal tentativo di mostrare che cosa significhi caratterizzare la famiglia come il luogo nel quale si realizza una vera esperienza di umanità dell’uomo e della donna. Da questo punto di vista può essere utile, anzitutto, segnalare brevemente il quadro entro cui la teologia contemporanea (in particolar modo la teologia morale) ha cercato di illuminare il problema in questione. La reazione che a vario titolo, e in vario modo, recentemente si è strutturata contro l’ideale razionalistico (che unanimemente viene riconosciuto come parte integrante della cosiddetta “teologia manualistica), ha spinto in direzione di una rivisitazione del tema della famiglia che ha preso le mosse da una rielaborazione dei suoi presupposti antropologici. In particolare si è largamente diffusa la convinzione che fosse impossibile perseverare in una visione sostanzialistica del soggetto dalla quale dedurre l’essenza del vincolo coniugale e, conseguentemente, si è fatto largo il tentativo di restituire valore riflessivo alla dimensione di storicità che contraddistingue inesorabilmente la vita dell’uomo. Si è prodotta così una denuncia dell’astrattezza della teologia precedente, unitamente ad un rifiuto di una visione meramente giuridica del legame familiare che ha dichiarato implausibile procedere attraverso una preventiva dichiarazione dell’identità della famiglia, cui seguirebbe l’indicazione dei comportamenti morali adeguati. La supremazia dell’esperienza sulla norma è diventata così il cavallo di battaglia di una teologia che, pur sentendosi finalmente libera dai lacci del razionalismo moderno, aveva tuttavia il problema di non degenerare in uno storicismo che l’avrebbe condotta tra le braccia di quel diffuso scetticismo post-moderno sull’identità della famiglia che si voleva combattere. In questo modo la teologia ha cercato di ovviare a questo pericolo, da una parte ribadendo il valore universale dell’immagine tradizionale della famiglia, dall’altro cercando nella filosofia un modello di pensiero che potesse essere utile a questa riaffermazione. La scelta, quasi unanimemente, è caduta su ciò che in maniera estremamente generale e grossolana possiamo chiamare la filosofia dialogica o dell’interpersonalità. In pratica si è preso in prestito questo dato della filosofia (in parte moderna in parte contemporanea) identificando in esso il principio normativo dell’esperienza familiare, poiché universalmente accessibile. Il procedimento, seppur declinato con dizioni di volta in volta differenti (la 194 carità, il dono, la responsabilità, la solidarietà) 94, ha condotto sempre al medesimo risultato: sottolineare l’impossibilità di abbandonare l’istituzione familiare quale forma originaria di quella dimensione universale del vivere umano che è la relazione io-tu. In questo modo, tuttavia, non si può non notare che il tentativo di comprendere l’elemento specifico della famiglia facendo ricorso alle categorie dell’interpersonalità, ha paradossalmente ribadito le difficoltà connesse al modello teologico che pur si voleva superare. Il problema è illustrabile partendo dalla modalità con cui si è assunto il principio dell’interpersonalità: spostando l’attenzione dalla descrizione della norma alla fondazione della norma, si è pensato di ritrovare nella nozione di interpersonalità il radicamento “ontologico” della norma stessa. Così facendo, è la nozione di interpersonalità ad assumere la funzione di elemento qualificante di una teologia che, una volta asserita la struttura fondante della relazione io-tu, può successivamente rivolgere la sua attenzione alla giustificazione dell’identità della famiglia come della realtà universalmente dotata di valore, e, quindi, oggetto del volere. Nella pacifica convinzione di aver trovato una nuova base “naturale” al discorso teologico, il ragionamento può successivamente declinare lo specificità cristiana della famiglia da una parte rifacendosi al mistero trinitario (come modello originario della relazione interpersonale95) e dall’altra introducendo il tema della grazia per significare la dimensione salvifica della compagine familiare dove «ci si salva o ci si perde insieme»96. Indice di questa riproposizione delle difficoltà imputate allo schema precedente è la difficoltà della teologia recente ad integrare nella riflessione sulla famiglia il tema del matrimonio. In altri termini il peso che nel ragionamento viene ad assumere la premessa di tipo interpersonale, finisce per configurare il momento matrimoniale solamente come l’atto che sancisce pubblicamente l’inizio dell’esperienza familiare, poiché questa è già spiegata dal principio interpersonale. Non si cerca, infatti, di mostrare l’identità della famiglia partendo dal matrimonio, ma si enuncia solamente il principio secondo cui il matrimonio è riservato a quella relazione di coppia che voglia assumere (o che possa assumere) tutti i diritti e doveri che spettano alla famiglia in quanto tale. Simile procedimento dimentica, tuttavia, di indicare la necessità a partire dalla quale matrimonio e famiglia non possono essere considerati 94 Tra gli altri, cfr. G. GATTI, Morale matrimoniale e familiare, in ID., Corso di morale, vol. III: Morale sessuale, educazione dell'amore, LDC, Torino 1979, pp. 161-327; G. B. GUZZETTI, Per vivere in pienezza il matrimonio e la famiglia, Ufficio diocesano per la famiglia, Milano 1980; D. TETTAMANZI, I due saranno una carne sola. Saggi teologici sul matrimonio e famiglia, LDC, Torino 1986; ID., La famiglia e l’ethos del dono, in ID., La famiglia, via della chiesa, Massimo, Milano 1987, pp. 146-162; L. CICCONE, Per una cultura della vita a partire dalla famiglia. Responsabilità generosa nel dono della vita, LDC, Torino 1988. 95 Cfr. G. MAZZANTI, Teologia sponsale e sacramento delle nozze. Simbolo e simbolismo nuziale, EDB, Bologna 2001, pp. 247-277. 96 GATTI, Morale matrimoniale …, op. cit., p. 225. 195 separatamente, poiché non viene chiarita la ragione per cui una relazione di coppia deve originarsi dal matrimonio, dal momento che la relazione stessa è spiegata dalla “legge universale” dell’interpersonalità e non dal matrimonio. La formalità con cui questo ragionamento sulla famiglia assume il momento matrimoniale, diventa ancor più lampante nel caso della famiglia cristiana. Qui, infatti, l’affermazione secondo cui alla base della famiglia cristiana si pone inequivocabilmente il sacramento del matrimonio è spesso intesa in modo riduttivo rispetto a ciò che propriamente vi è in gioco. La spiegazione più consueta arriva a fissare il carattere originario della famiglia nel sacramento, nella misura in cui quest’ultimo appare “divinamente istituito”. Ragion per cui, di fronte all’impossibilità di reperire nel sacramento l’identità della famiglia, si opera un generico appello alla “volontà” di Dio (o di Gesù) al fine di mostrare che la famiglia non sorge solamente dalla risposta al “bisogno” dell’uomo e della donna. Il ragionamento, tuttavia, non apporta significative novità, perché, ancora una volta, la necessità di legare i due momenti non appare intrinsecamente al rapporto tra matrimonio e famiglia, ma nel positivistico richiamo ad una volontà istituente. Così facendo, il sacramento del matrimonio si configura come l’inizio pubblico di una famiglia cristiana, la cui identità, nondimeno, è da reperire al di là del sacramento stesso. C'è, insomma, nella teologia contemporanea una spiccata tendenza a separare matrimonio e famiglia che, seppur mai affermata, nondimeno pesa notevolmente nella sviluppo del ragionamento. Prova ne è che, se volessimo tentare di offrire una risposta all’interrogativo che si è proposto all’inizio, dimenticando l’intrinseco nesso che lega la famiglia al matrimonio, saremmo costretti a giungere ad un’aporia insuperabile. Quest’ultima è l’evidente impossibilità di argomentare sul futuro dell’uomo e della donna che vivono in famiglia in maniera differente da una generica argomentazione sul futuro di ogni vivente. Su questa impostazione graverebbe, allora, come un macigno la consapevolezza che non vi sarebbe alcunché di esistenziale a dare differenza specifica al futuro della famiglia, la quale – cosa ancor più grave – sarebbe assorbita nella vicenda di tutti coloro che appartengono al tempo destinato a scorrere verso la morte. 2. LA “VISIONE VOLGARE DEL TEMPO” L’aporia cui giunge la riflessione più consueta sulla famiglia obbliga, pertanto, a cercare una nuova soluzione alla domanda iniziale partendo dal legame, che occorre riconoscere come vincolante, tra matrimonio e famiglia. Che cosa significa per l’uomo e la donna che vivono in famiglia l’antecedente del matrimonio? E, più precisamente ancora, perché per pensare il 196 futuro dell’esperienza familiare occorre fare riferimento al momento passato del matrimonio? La domanda, come si vede, mette a tema la questione del futuro della famiglia a partire dal suo passato, cosa che evidentemente chiede di essere specificata partendo dal legame che necessariamente il futuro possiede col passato. Per poter svolgere adeguatamente questo compito, forse, conviene anzitutto indicare – in negativo – a quali condizioni esso risulterebbe impossibile. Da questo punto di vista è utile in primo luogo mostrare l’imprecisione di una riflessione che si limitasse a considerare la misura oggettiva del tempo (il tempo dell’orologio) indipendentemente dalla sua verità soggettiva (il tempo vissuto)97. La perpetua rotazione di una lancetta attorno ad un punto fisso su un quadrante o l’incessante susseguirsi di cifre su uno schermo presenta solamente una “successione di istanti” che in realtà non dice assolutamente nulla della maniera con cui l’uomo fa esperienza del tempo. Prove ne è che chiunque ha sperimentato quanto un tempo oggettivamente breve (l’attesa di un autobus) può essere in realtà lungo e, viceversa, quanto un tempo oggettivamente lungo (vacanza) può essere breve. Non c'è bisogno, dunque, di soffermarsi ulteriormente a mostrare come simile presentazione del tempo, nel nostro caso, sarebbe letteralmente inutile. Risulta vantaggioso, invece, indicare come esista un’altra visione che, apparentemente rispettosa del “tempo vissuto”, conduce anch’essa ad una impasse che precluderebbe la possibilità di rispondere alla domanda che si è posta. Tale soluzione ultimamente è riconducibile a ciò Heidegger ha chiamato il “concetto volgare di tempo”: la ri(con)duzione del passato e del futuro al presente98. In altri termini passato e futuro sarebbero un doppio “non-presente” o un doppio “nontempo”, sulla pacifica convinzione che solo il presente “è” il tempo del quale l’uomo può fare esperienza: il passato termina e il futuro comincia nel momento stesso in cui il presente comincia o finisce. Pertanto, l’equivalenza tra presente ed essere, condurrebbe all’affermazione dell’inesistenza ontica del passato e del futuro come ciò che rispettivamente “non-èpiù” e “non-è-ancora”. In questa interpretazione che, sempre seguendo Heidegger, accomuna la storia della metafisica da Aristotele a Nietzsche (passando per Hegel), la mutua relazione tra passato e futuro sarebbe disponibile solo nel “qui e ora” della coscienza umana che al presente si assicura la presenza del passato e del futuro. Nel nostro caso, dunque, l’unico orizzonte temporale della famiglia sarebbe quello dell’attività intenzionale del soggetto che, al presente, anticipa 97 Tra gli altri, cfr. J. -Y. LACOSTE, Notes sur le temps. Essai sur les raisons de la mémoire et de l’espérance, PUF, Paris 1990; C. ROMANO, L’événement et le temps, PUF, Paris 1999; E. FALQUE, Métamorphose de la finitude. Essai philosophique sur la naissance et la résurrection, Cerf, Paris 2004. 98 M. HEIDEGGER, Essere e tempo, §§ 81-82, tr. it., Longanesi, Milano 1976, pp. 502-520. 197 la presenza del futuro ed estrae dalle sue reminiscenze il tempo ormai trascorso. Il matrimonio si troverebbe, pertanto, confinato nel passato inteso come un’entità o una località in cui giacerebbero i ricordi dimenticati che l’anámnesis potrebbe estrarre. A questo punto dovrebbe essere chiaro che conferire un favore indiscusso al presente non aiuta una reale comprensione della temporalità, poiché l’esperienza del tempo mette in crisi proprio questo univoco privilegio del presente e corrompe l’idea che non esiste passato e futuro senza presente. Mai come in questo caso, infatti, la celebrazione del presente va di pari passo con un riduzione del linguaggio che, mentre tende a sostantivare i tempi (“il passato”, “il futuro”), ne proclama allo stesso tempo quella sostanzialità che finisce per omologarli a due entità o località99. Così, non deve suscitare meraviglia affermare come il linguaggio stesso possa ribaltare la “visione volgare del tempo”, denunciando, da una parte, la scelta – ancora una volta unilaterale – di privilegiare una dizione puramente privativa del passato e del futuro (ciò che “non-èpiù” e “non-è-ancora”), dall’altra, evidenziando che del passato e del futuro se ne possa parlare anche nei termini di ciò che “è stato” (essente stato) e “sarà”. Se la prima definizione, di tipo avverbiale, ha carattere privativo; la seconda, di tipo verbale, lo ha positivo. Anzi, si può perfino dire che la seconda accentua il carattere “reale” del passato e del futuro poiché entrambi sono affermati non in relazione ad una mancanza d’essere (“non-è più” “non-è ancora”), ma per riferimento alla loro realtà effettuale: “è stato” e “sarà”. Quanto a questa seconda indicazione è noto che proprio Heidegger, nel quadro di un’ontologia del Dasein incentrata sulla Sorge (cura), ne abbia imposto la legittimità, giungendo a decretare il primato del futuro che nella «risolutezza precorritrice (vorlaufende Entschlossenheit)» anticipa il «precorrimento (Vorlaufen)» della morte. Le differenze delle tre istanze temporali, sono, pertanto, poste a partire dall’unità presunta che il futuro garantisce alla temporalità e che, nondimeno, si contrappone nettamente al privilegio del presente proprio della “visione volgare del tempo”. L’antitesi che in questo modo si crea tra l’affermazione del carattere “privativo” e di quello “reale” del passato e del futuro sancisce la netta opposizione tra le due, consegnando alla riflessione successiva un’inconciliabilità radicale. La lezione di Heidegger è, dunque, di resistere a tutti i costi rifiutando ogni compromesso e ogni tentazione di accordo tra le due visioni. Pur tuttavia, è lecito ritenere che questa scelta heideggeriana possa a buon diritto essere messa in discussione, affermando, contrariamente al filosofo tedesco, 99 In questo senso sarebbe preferibile non parlare più de “il passato” e de “il futuro”, ma ipotizzare una nuova terminologia, come propone, per esempio, P. Ricoeur parlando di “passeità” e “futurità”. In proposito cfr. P. RICOEUR, Ricordare, dimenticare, perdonare. L’enigma del passato, tr. it., Il Mulino, Bologna 2004. 198 che probabilmente entrambe le visioni hanno pari diritto di coesistere e che, anzi, proprio dalla loro reciproca implicazione possa emergere una comprensione del tempo che – non limitandosi ad affermare il primato del presente – consente l’apertura di nuove prospettive. 3. REALTÀ, PERDITA E ASSENZA Chiediamoci, allora, quale sia questa reciproca implicazione, iniziando col mettere in evidenza che la memoria del passato e l’attesa del futuro è legata indissolubilmente ad una duplice e simultanea esperienza: da una parte proprio il carattere “reale” del passato e del futuro afferma quanto l’uomo ritrovi in essi la condizione della sua attività, dall’altra il passato e il futuro implicano un’assenza rispettivamente anteriore e irreale che determina l’impossibilità dell’uomo ad intervenire su quello che è successo e succederà. In altri termini fa parte dell’esperienza di ognuno verificare come il passato è ciò su cui non è data nessuna possibilità di intervento da parte dell’uomo poiché esso è definitivamente perso e, quindi, “non-è-più”. Ma, parimenti, questa esperienza non è dissociabile dalla consapevolezza che nessuno può disfarsi del suo passato, dal momento che quel che “non è più” è realmente accaduto e, come tale, si ripercuote sulla vita presente. Allo stesso modo niente è tanto più assente dalla vita di quel che “non-è-ancora”, ma nulla è tanto più determinante per la vita di un uomo quanto ciò che “sarà” il suo futuro: l’attesa del futuro, infatti, è quanto più fortemente individua l’esperienza umana tanto meno è a disposizione dell’uomo. Di conseguenza il carattere di perdita del passato e di assenza del futuro non contraddicono la realtà effettiva con cui l’uomo percepisce il suo passato e il suo futuro, anzi, ne costituiscono un elemento essenziale. La perdita del passato e l’assenza del futuro si ritrovano indissolubilmente legate alla “realtà” del passato e del futuro in modo tale da poter affermare che il passato “non-è-più” solo perché “è stato” (e viceversa) e il futuro “non-è-ancora” solo perché “sarà” (e viceversa). Il passato, infatti, è qualcosa di inderogabilmente perso e sul quale non si può intervenire, ma proprio questa sua definitività non gli impedisce di essere stato realmente ciò che determina il presente del vivente. Analogamente il futuro è effettivamente assente, ma questa sua assenza non gli vieta di poter essere veramente il costitutivo della decisione attuale dell’uomo. Il passato e il futuro possono, dunque, essere osservati partendo dal legame che essi hanno col presente, a condizione, però, di stabilire contemporaneamente il legame che il presente possiede col passato e col futuro. In altri termini, se il presente è il non essere più del passato e il non essere ancora del futuro, allora solo nel legame al presente si 199 può pensare il passato e il futuro, perché solo nel presente “ciò che è stato” non è più e “ciò che sarà” non è ancora. Tuttavia, questo non può fare dimenticare che esiste anche un legame del presente al passato e al futuro, dal momento che solo nel passato ciò che ora “non è più” è stato; e solo nel futuro ciò che al presente “non è ancora” sarà. L’univoco privilegio del presente proprio della “visione volgare del tempo” cade e con esso decade anche la possibilità di descrivere la temporalità favorendo indiscriminatamente una delle sue dimensioni. La complessità dell’esperienza temporale fa intuire che il profilo riflessivo capace di accostare la questione del tempo deve salvaguardarne anzitutto l’unità. Ma tale unità rimanda a un interesse per la piena valorizzazione della specificità delle tre istanze del tempo che – proprio perché si tratta dell’unico tempo – emerge dalla loro reciproca implicazione. È per questo, allora, che la formula sintetica della “visione volgare del tempo” – secondo cui “non esiste passato e futuro senza presente” – ha da essere rifiutata nella sua unilateralità, ma il suo rifiuto non si condensa, per così dire, nella mera indicazione della sua faziosità: in gioco non c'è solamente la battaglia contro il privilegio del presente, semmai la richiesta di restituire al presente la sua appartenenza all’unità del tempo, lasciando apparire “al presente” il peso reale del passato e del futuro. Null’altro che la temporalità stessa può permettere simile restituzione, per cui non si tratta di cancellare (in nome di una ragione postmoderna) l’affermazione che “non esiste passato e futuro senza presente”, ma solamente di indicare che essa deve – obbligatoriamente – andare di pari passo assieme all’altra secondo cui “non esiste presente senza futuro e senza passato”. In questo senso si comprende come l’iniziale citazione di Agostino possa essere assunta quale filo conduttore del ragionamento proposto. Il legame, infatti, che il Vescovo d’Ippona vede tra le tre dimensioni della temporalità non è esclusivamente indirizzata a affermare – come suggeriscono i critici moderni e postmoderni – una “metafisica della presenza”. Agostino è sicuramente preoccupato di segnalare quello che abbiamo chiamato il carattere privativo del passato e del futuro, che al presente acquistano “presenza”, ma tale attenzione non è separabile dal fatto che esistono tre differenti forme di conoscenza del tempo (la memoria, la visione e l’attesa). Questo significa che, allora, non si tratta semplicemente di raddoppiare il presente, trasferendo la coscienza del momento attuale al passato e al futuro, quanto nel riconoscere che “c'è stato” e “ci sarà” un modo di essere dell’uomo differente da quello presente e che può essere conosciuto solo rispettando la sua differenza dall’oggi del vivente. In questo senso per Agostino si dà un triplice presente perché la memoria e l’attesa sono il presente rispettivamente del passato e del futuro dal momento che, non solo fanno 200 ricordare il passato e immaginare il futuro, ma appartengono al passato e al futuro in quanto si l’una si è realizzata nel passato l’altra si realizzerà nel futuro. Pertanto, Agostino può affermare che esiste un presente che è realmente del passato e del futuro e che si pone come requisito indispensabile alla conoscenza dell’unità del tempo, poiché la condizione che rende possibile pensare la presenza dell’assente al presente è quanto effettivamente appartiene al passato e al futuro, dunque, quanto “è stato” e “sarà”: «I tempi sono tre: il presente del passato, il presente del presente e il presente del futuro […] il presente del passato è la memoria, il presente del presente è la visione, il presente del futuro è l’attesa». 4. L’EVENTO E LA PROMESSA L’esito a cui è giunto il confronto con la “visione volgare del tempo” permette, a questo punto, di riprendere il filo del ragionamento sul futuro della famiglia. Rispetto alle aporie precedentemente segnalate, adesso, si può per lo meno evidenziare che qualsivoglia discorso sulla famiglia deve necessariamente integrare il momento del matrimonio. A richiederlo non è solamente la positivistica dichiarazione che non esiste famiglia senza matrimonio, ma l’evidente necessità che l’uomo ha di ritornare alla realtà del suo passato, in quanto anteriormente passato e, per questo, effettivamente reale. Lo si è or ora evidenziato: non esiste presente senza passato e senza futuro, e la memoria del passato non ha mai la forma della puntualità dell’intuizione sensibile o intellettuale, nel senso che l’uomo non ricorda il proprio passato alla maniera con cui conosce il suo presente. La memoria, per riprendere ancor una volta Agostino, è del passato; ad esso appartiene e, pertanto, il riandare al passato per l’uomo non è solamente il far emergere immagini più o meno nitide dall’oblio, sforzandosi di trasferire il proprio io nel tempo andato. Semmai, si tratta di occuparsi dell’uomo che ciascuno di noi è stato e di confrontarsi con la sua realtà effettiva. Confrontarsi significa agire e interagire, quindi, avvicinare il proprio passato equivale mettere in gioco le proprie passioni, desideri e attese: tutti elementi che sarebbe astratto limitare retrospettivamente, perché essi sono appartenuti, appartengo e apparterranno all’uomo. In breve, si tratta di riconoscere che il passato ha un rapporto indiscutibile col presente e il futuro e che, proprio tale relazione, determina la qualità del ricordo. Agostino ce lo ha ricordato congiungendo il presente del passato al presente del futuro, adesso si tratta di farlo valere specificatamente per la realtà della famiglia, con l’avvertenza, tuttavia, di riconoscere che in questo caso non è in questione solamente il peso che la protensione al futuro fa pesare sul ricordo (nel senso di come i 201 progetti, le attese e desideri influenzano l’apprensione del passato), quanto l’influsso che il passato esercita sul futuro. Da questo punto vista, il matrimonio è qualcosa di privilegiato: esso, qualunque sia il suo contesto (religioso o civile), rappresenta un evento passato che ha un influsso diretto sul futuro. Il matrimonio, infatti, obbliga e l’obbligazione che stabilisce ha, fin dal primo istante, il carattere della promessa futura. La promessa di una comunione di vita stabilita da una comunanza di interessi, la promessa di un impegno reciproco, la promessa di darsi reciprocamente una discendenza, la promessa (perché no?) di un amore eterno. Certo, in alcuni casi la promessa potrà non essere mantenuta, e, allora, il matrimonio sarà un fardello che il passato fa pesare sul futuro, in altri casi sarà una risorsa sulla quale costruire il proprio futuro. In tutti i casi, comunque, appartiene intrinsecamente al matrimonio questo carattere di promessa, e come tale è immediatamente evidente che la memoria del matrimonio non si riduce nel riandare a riappropriarsi del suo significato, quanto nel riconoscere che il futuro deve fare i conti con quel momento passato che realmente influisce sull’avvenire. Questa posizione ha, tuttavia, da essere precisata poiché, se la promessa appare incontestabilmente come il contrassegno del peso che il matrimonio esercita sul futuro della famiglia, nondimeno occorre riconoscere che la promessa è direttamente resa possibile solo dal matrimonio. In altri termini, il matrimonio non è il nudo evento trascorso che la promessa trasferisce sul futuro della famiglia: il decidersi di promettere – e quindi l’obbligarsi per il futuro – è il modo con cui l’uomo trasmette il fatto accaduto come memoria del passato. Di conseguenza, prima di promettere, l’uomo ha visto, sentito e sperimentato quel che è successo, e quindi è stato raggiunto e toccato dal fatto accaduto. Verrebbe, allora, da dire che il matrimonio reclama la promessa dal fondo stesso della sua essenza, in quanto esso anticipa la possibilità di poter promettere da parte dell’uomo e, dunque, anticipa il suo futuro. Così, si comprende che non ha senso contrapporre la definitività del matrimonio (poiché il passato non può essere cambiato) all’incertezza del futuro della famiglia, dal momento che il fatto del quale non ci si può sbarazzare è proprio l’inesauribile risorsa del futuro della famiglia. Anzi la differenza sta proprio qui: rimanere imprigionati nel sentimento doloroso dell’irreversibile che fa apparire la storia della famiglia come il cimitero delle promesse non mantenute, oppure imparare a ridire continuamente l’evento originante della famiglia facendo risorgere – nelle nostre promesse – tutte le promesse che il matrimonio possiede, anche quelle che non sono state mantenute. 202 5. IL SACRAMENTO: DONO E COMPITO Pensare il futuro dell’esperienza famigliare si ritrova in questo modo inevitabilmente congiunto al momento passato del matrimonio in quel binomio di promessa-evento che non per nulla sigla, emblematicamente, anche la base sulla quale riproporre una lettura teologica della famiglia. È indubbio, infatti, che il legame evidenziato tra la promessa e l’evento del matrimonio induce a una ripresa dell’insegnamento della Scrittura che, contro ogni possibile determinismo, fissa nella formula del “mito” genesiaco l’evento originario al quale guardare per interpretare la totalità della vicenda affettiva dell’uomo e della donna. La ripresa di quell’evento, che libertà che è chiamata ad operare nel dispositivo rituale messo a disposizione dal sacramento, appare contemporaneamente come un dono e un compito: il dono di una totalità che, rappresentando l’unità delle forme storiche con cui l’uomo si attua, si offre all’uomo come lo spazio in cui egli può di volta in volta effettivamente determinare se stesso, senza però mai affermare una volta per sempre. Il mito allora predispone una visione del rapporto trascendenza/libertà in cui si evitano gli estremi di una pura passività dell'uomo e di un insensato attivismo antropologico: l'attività dell'uomo è necessariamente anticipata nella figura assolutamente originaria della condizione umana, la quale assume la forma di una storia umana al di là dell'umano che rende umana la storia dell'uomo, giacché dona a quest'ultimo la possibilità concreta di dare forma a se stesso. Il rapporto alla differenza della trascendenza si caratterizza pertanto nel mito come relazione ad un evento assoluto che, proprio per questa sua caratteristica, può essere ritualmente ripetuto. Ciò che fonda la vicenda storica dell'uomo non può avere la forma del principio da cui dedurre le scelte umane, ma deve caratterizzarsi come una storia di una libertà assoluta che donandosi concretamente comprende tutte le possibilità della libertà umana, e pertanto si rivela come la verità dell'uomo che necessita di essere continuamente ripetuta per favorirne la ripresa nella forma di un accadimento nuovo e libero. La verità del mito è pertanto ciò che consente alla libertà di essere tale e quest'ultima, a sua volta, diventa la manifestazione e l'attuazione della verità perché la verità stessa nel suo accadere l'ha già implicata100. Di conseguenza la «rappresentazione» mitica dell'esperienza culmina nel riconoscimento che la figura di per sé assolutamente originaria della condizione umana, che ripetendosi consente alla libertà di essere stessa, deve assumere la forma di un evento. Ciò che unifica il senso della particolarità del tempo della libertà finita deve accadere nella 100 In proposito cfr. N. REALI, Fino all’abbandono. L'eucaristia nella fenomenologia di J. -L. Marion, Città Nuova, Roma 2001, pp. 271-284; S. UBBIALI, La teologia della famiglia in Italia. A proposito dell’uomo, la donna e l’originario simbolo della vita, in «La Famiglia» XXVI (1992), pp. 5-17. 203 forma di quanto è indisponibile alla libertà, per questo rimanda ad un'iniziativa trascendente che deve avere la forma dell'evento dove verità e libertà coincidono. Solo l’evento della rivelazione cristologica nel suo carattere insuperabilmente evenemenziale dà ragione di una comprensione dell'esistenza dell'uomo resa possibile unicamente a partire da un'origine di cui il soggetto non dispone e che gli diviene accessibile simbolicamente, grazie all'evento della sua attuazione definitiva. La simbolicità di questa donazione va pertanto compresa nel senso di ciò che indica il carattere libero del fondamento non separatamente dalla libertà umana: soltanto riconoscendo in atto l'iniziativa attraverso cui Dio ha già posto nel tempo di Gesù il compimento della libertà, è possibile per l'uomo riconoscere e attuare effettivamente la propria condizione di uomo libero. Compito del sacramento è proprio quella di rendere presente l'evento assoluto della redenzione umana, che avendo preso la forma di un atto di libertà, si pone come manifestativo dell'identità di Dio e dell'uomo. Ripetuto ritualmente poiché assoluto, l'evento prende la forma della mediazione simbolica dell'attuazione della fede, poiché l'esistenza dell'uomo viene dischiusa da un'origine che non è a disposizione della libertà umana, ma diviene ad essa accessibile nella donazione simbolica che il sacramento garantisce. Il simbolo sacramentale non ha quindi solamente il significato di ciò che indica il carattere libero della libertà di Dio – per cui Egli si dà e si ritrae, si dona e si nasconde – né tanto meno specifica platonicamente il richiamo a quell'aspetto spirituale del dato materiale che si cela all'attitudine naturalistica dello sguardo del soggetto. Il rito liturgico della celebrazione identifica nel simbolo del sacramento la necessità della presenza della libertà di Dio e dell'uomo perché ci possa essere manifestazione della verità assoluta. Va da sé che, in questo modo, si possa garantire una considerazione appropriata e non nominalistica del movimento d’inclusione che esiste tra matrimonio e famiglia, unitamente al chiarimento del motivo che spiega l’altrettanto necessaria distinzione tra il matrimonio e la famiglia. Dal momento che il sacramento offre l’inderogabile promessa di amore di Cristo alla sua chiesa, questo diventa l’unico ambito in cui l’uomo può decidere dell’orientamento del suo amore: la famiglia non sorge sul presupposto di un’impossibile adeguazione dell’amore di Cristo, ma dalla possibilità effettiva di poter ridire l’unico amore di Cristo. La famiglia ha un unico punto al quale guardare per capire che “tipo” di futuro possiede: il matrimonio. 204 BIBLIOGRAFIA CICCONE, L., Per una cultura della vita a partire dalla famiglia. Responsabilità generosa nel dono della vita, LDC, Torino 1988. FALQUE, E., Métamorphose de la finitude. Essai philosophique sur la naissance et la résurrection, Cerf, Paris 2004. GATTI, G., Morale matrimoniale e familiare, in ID., Corso di morale, vol. III: Morale sessuale, educazione dell'amore, LDC, Torino 1979. GUZZETTI, G. B., Per vivere in pienezza il matrimonio e la famiglia, Ufficio diocesano per la famiglia, Milano 1980. 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A proposito dell’uomo, la donna e l’originario simbolo della vita, in «La Famiglia» XXVI (1992). 205 9 Infâncias Maria de Fátima Pessôa LEPIKSON: [email protected] CV: http://lattes.cnpq.br/7702914755827440 - Doutor pelo PPGE/UFBA; Mestre em Educação pelo CED/UFSC; Graduada em Serviço Social pela Escola de Serviço Social/UCSAL; professora e coordenadora da Escola de Serviço Social/UCSAL. 206 BSTRACTRESUMOABSTRACTRESUMOABSTRAC Resumo A despeito da melhoria dos indicadores sociais do Brasil, a realidade de grande parte das crianças e adolescentes ainda é de elevado nível de desproteção. Tem-se, em função do conhecimento e das pesquisas realizadas ao longo dos últimos anos, a responsabilidade social e acadêmica de socializar o conhecimento sobre uma cruel realidade. Apesar dos direitos conquistados a partir da década de 80 e das ações afirmativas dos últimos anos, até hoje milhões de crianças e adolescentes brasileiros vivem em situação de extrema vulnerabilidade, mas este quadro pode e precisa ser revertido. Este, portanto, é o objetivo primordial deste texto. Para alcançá-lo, discuto as ideias construídas sobre a infância a partir de sua condição de classe. Concluo o texto demonstrando que a condição de inserção socioeconômica dos sujeitos em questão diferencia tempos de vida coetâneos, não só em relação ao seu presente, como também nas suas possibilidades de inserção social futuras. Palavras-chave infâncias, proteção, desigualdade social. Abstract Despite the improvement of social indicators in Brazil, the reality of its most children and adolescents is still a high level of defenselessness. As a function of the knowledge acquired during my research work over the last years, has the social and academic responsibility of socializing my conclusions about this cruel reality. Despite the rights gained from the 80s and affirmative actions in recent years, even today millions of Brazilian children and adolescents are living in a situation of extreme vulnerability, but this situation can and must be reversed. This is, therefore, the primary objective of this paper. To reach it, I discuss ideas built about children taking in account their class condition. Concluding demonstrate how the socioeconomic condition of the children of similar age have different time of living, not only in relation to their present, but also on their potential for future social inclusion. Keywords Childhoods; Protection; Social Inequality. 207 A INFÂNCIA NA SOCIEDADE A infância como categoria social não esteve sempre presente na história da humanidade, ao menos tão demarcada, assistida e valorizada. Nas diferentes civilizações e culturas as crianças e adolescentes foram percebidas e “tratadas” das mais diversas e contraditórias formas. O surgimento da preocupação com a infância se deu entre os séculos XII e XVII. Até este período os adultos só a tomava como objeto de sua atenção a partir dos oito anos de idade101. Em relação às ideias construídas sobre a infância, já na idade média, este "ser de pouca idade”102 foi aproximado ou distanciado da convivência familiar e do mundo dos adultos103. Ao analisar a presença da criança na sociedade, Ariès (1978) destaca não só os diferentes sentimentos que ela desperta, mas também, a posição que ocupa, a evolução de sua participação no mundo dos adultos e o tratamento à ela dispensado. Como bem expressa Gouvêa (1990, p.66). A demarcação de fronteiras entre o universo adulto e o mundo infantil foi um processo lento, em que a criança foi apreendida de diferentes formas pela sociedade e mais especificamente pela família, educadores, eclesiásticos e posteriormente por médicos psicólogos, pedagogos e psicanalistas. Isto não significa afirmar que não houvesse um reconhecimento da criança enquanto tal, mas esta participava em comum com o adulto nos espaços de trabalho, jogos e brincadeiras. Não havia, portanto, uma preocupação, como atualmente, de separar a criança num mundo próprio, livre dos perigos do mundo adulto. Vale ressaltar que, não só a criança, mas também a família se diluía num espaço social que transcendia a convivência doméstica. Nesse período a ordem cultural era demarcada pela supremacia da sociedade sobre o indivíduo. A família era mais definida como um grupo vinculado à preservação dos bens do que por sua vinculação afetiva ou 101 Antes disto, as famílias abastadas, normalmente, entregavam suas crianças aos cuidados de uma ama de leite até a idade em que esta era entregue a uma outra família que deveria educá-la. Ao retornar do período em que eram entregues a ama de leite, as crianças assumiam o status de componente do grupo familiar com todos os direitos e deveres então decorrentes desta condição (ver ARIÈS 1978). 102 Ainda não se definia, como aponta Ariès, diferenças significativas em relação a faixa etária referente a idade cronológica entre a infância e a adolescência. 103 A este respeito ver Cerizara, em seu estudo sobre Rousseau coloca que ao estudar a infância ele " execra a ideias de que as crianças só sejam objetos de atenção dos adultos depois de terem passado o período crítico que vai do nascimento até por volta dos oito anos [...] O regresso ao lar constituía uma nova etapa na vida da criança - a maioridade. Por tal razão, ao retornar, a criança assume o status de membro do grupo, com todos os direitos e os deveres decorrentes" (CERIZARA, 1990,p. 44-45). 208 moral.104 Os primeiros cuidados e a preservação das crianças eram de responsabilidade das amas até que estas fossem entregues a outra família, na qual seria educada. A educação restringia-se ao aprendizado de normas, valores e regras sociais. Aponta Gouvêa que (p. 69) Num universo marcado por uma rígida hierarquia, onde cada indivíduo tinha seu lugar na estrutura social definida pela genealogia, a socialização consistia basicamente no aprendizado das normas e regras do seu grupo social. No dizer de Poster 'a criança nobre estava inserida num mundo público e complexo em que a lição básica dizia respeito ao conhecimento o lugar de cada um ...' a vida para os camponeses tinha um padrão fixo governado por inúmeras tradições que não eram postas em dúvida pelo indivíduo. Se a aprendizagem das posições sociais, até então, dos nobres e camponeses se revelavam próximas, apesar do lugar social ocupado nas estruturas sociais, esta proximidade vai sendo demarcada mais intensamente com o surgimento das relações capital/trabalho, ou seja, separação dos meios de produção e produtores. O século XVII caracterizou-se por modificações de ordem social e econômica. O surgimento do capitalismo engendrou uma nova organização das relações de trabalho que determinou por sua vez, a reorganização das relações cotidianas. A presença e importância das crianças tomam nova conotação. Esta conotação passa, tanto no meio familiar, como entre os educadores e moralistas, a ter valor e a ocupar espaços sociais específicos. Os sentimentos105 despertados pelas crianças na sua relação com os adultos são então modificados. A este respeito Ariès (op.cit.) destaca os sentimentos despertados de paparicação e irritação em relação à infância. São sentimentos contrários que demarcam o lugar social e o tratamento dispensado à infância da época. Na primeira infância a criança era reconhecida por sua fragilidade e dependência física. Por sua inocência e graça se tornou alvo central das atenções da família, sendo vista como objeto de benevolência e paparicação (brinquedo dos adultos). Contraditoriamente, o segundo sentimento, gestado por 104 A este respeito ver Gouvea, 1990, p.67. Ariès coloca que o sentimento de infância diz respeito a “consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue, essencialmente, a criança do adulto, mesmo do jovem" (Ariès, p. 134). O sentimento de infância, expresso por Piacentini, “não está circunscrito às idades da vida, nem a uma periodização fixada pelos ciclos da natureza ou da organização da sociedade, que poderia ser sintetizada, a grosso modo, em infância, juventude e velhice. Não se liga, também, a uma idéia de dependência. (...) Trata-se de uma sensibilidade em relação à infância”. (PIACENTINI, 199, p. 01). 105 209 educadores e moralistas, transpõe a criança da posição de entretenimento dos adultos para objeto de preocupação. A característica relativa à inocência infantil é contraposta à característica de ignorância e irracionalidade. Surge o sentimento de irritação em relação à infância e a necessidade de sua moralização. Tal preocupação tinha mais um cunho moralizante do que propriamente uma preocupação com a boa saúde: “um corpo mal enrijecido inclinava à moleza, à preguiça, à concupiscência, a todos os vícios”(ARIÈS, 1978 p. 164). Com o controle e a moralização da infância pretendia-se prepará-la para o exercício de seus papéis inerentes ao mundo adulto. Nesta ótica, educadores e moralistas direcionam preocupações e ações específicas106. Com o sentimento de “irritação” o objetivo da educação da infância passa a ser o de penetrar na mentalidade das crianças para melhor adaptá-las, torná-las homens racionais e cristãos. Nesta perspectiva, as escolas operam como mecanismos orientados para a redução da convivência promíscua entre as idades e, mais tarde, para separar situações de classe que conviviam, sem distinção, num mesmo espaço com propósitos indistintos, visando a preparação do “homem honrado, proba e racional” (idem, p. 163). A partir de então, a ideia de infância é construída de forma fragmentada em fases determinadas e seu período de desenvolvimento e dependência prolongado. As escolas, concorrendo com a família, ou mesmo, substituindo-a tornaram-se, aí, agentes retentores e disciplinadores da infância e preparadores para o futuro. INFÂNCIAS E JUVENTUDES A ideia de infância na sociedade moderna não corresponde à visível desigualdade social vivida pelas diferentes infâncias em todo o planeta. (MARCHI, 2007). Ao analisar a dinâmica das concepções e sentimentos despertados pelo ser infantil ou juvenil, especialmente aqueles vítimas dos processos desiguais de inserção social, contradições decorrentes da divisão social são desvendadas107. Este desvendar aponta para a construção histórica de diferentes e antagônicas posições sociais ocupadas por estas crianças e adolescentes. As relações histórica, econômica, política e cultural revelam, assim, que a infância e juventude não só heterogêneas, mas, especialmente, contrastantes. O desvendar da heterogeneidade infanto-juvenil, construída por relações capitalistas excludentes, aponta para a dinâmica de relações que nega aos e às meninas que vivenciam 106 107 No que diz respeito ao controle e moralização da infância Rago, 1987, oferece significativa contribuição. Ver Kramer (1992) 210 situações de extrema pobreza o direito de se desenvolver a partir de sua condição infanto-juvenil. Condição essa reconhecida, com mais ou menos intensidade, por mais ou menos tempo, como vulnerável, dependente dos cuidados e proteção de um adulto e, especialmente, como tempo de formação para o mundo adulto (a partir de épocas e sociedades específicas). O reconhecimento deste tempo de formação, entretanto, não impediu que, ao longo da história, as infâncias e juventudes fossem tratadas de forma contraditória à sua própria condição infantil. É importante ressaltar que aqui é considerada, especial e não exclusivamente, as desigualdades sociais e econômicas, visto que se reconhece que a riqueza da diversidade cultural produz indivíduos e relações culturalmente diferentes. Apesar desta peculiaridade cultural e histórica a infância é reconhecida como vulnerável e em tempo de formação, por esta razão, carente de cuidados especiais. Cuidados estes que são dispensados até que o indivíduo seja considerado apto para assumir um lugar social determinado pelas relações de produção Para os meninos e para as meninas em situação de pobreza as atenções dispensadas limitaram-se a responder o que as representações108 das classes dominantes construíam sobre os direitos, capacidade e importância social do pobre, ou melhor dizendo, corresponderam à condição social que foi determinado e permitido. Tais representações, inclusive, se contrapuseram às representações e definições sobre as características necessidades infanto-juvenis. INFÂNCIAS TRABALHO HETEROGÊNEAS, ESCOLA E O lugar da infância das camadas populares tem relação direta com o modo de produção, com a política, a organização e as relações engendradas pela sociedade capitalista. Com o surgimento do capitalismo as formas de organização e divisão das relações de trabalho e das relações cotidianas são alteradas. A nova posição ocupada pelo mundo do trabalho aponta para a necessidade de estender o controle sobre o trabalhador para além dos espaços de trabalho, no caso, a fábrica. O modelo burguês pautado em relações de privacidade, intimidade, aparência e familiaridade, torna-se, então, hegemônico. (GOUVEA, op.cit. p. 69-70). Nas famílias burguesas passam a ser priorizadas as relações cotidianas, a privacidade dos espaços, as relações domésticos e a conjugação de esforços dos pais na criação dos 108 Adoto aqui o conceito de Cury sobre representação: "A representação é um complexo de fenômenos do cotidiano que penetra a consciência do indivíduo, assumindo um aspecto abstrato quando essa percepção do imediato está desvinculada do processo real que determina a sua produção.(...) é a projeção, na consciência do sujeito, de determinadas condições históricas petrificadas" (CURY, 1979, p. 24). 211 filhos e filhas. Estes colocados como o centro das atenções e dos recursos do casal. Na medida em que a família passa a centralizar sua vida nas relações cotidianas do grupo doméstico o sentimento despertado pela infância também é alterado. Neste espaço familiar mais íntimo e reduzido, a criança passa a ocupar lugar central e os pais a se ocuparem mais da educação dos filhos e filhas. Nas camadas populares, no entanto, nem sempre a sua organização correspondeu ao modelo dominante. A este respeito Gouvea (op.cit) destaca a relação e interação cotidiana entre o mundo da casa e o mundo da rua, isto é, a vizinhança. A concepção burguesa de infância, como ser que precisa de cuidado, ser escolarizado e preparado para a vida adulta se contrapunham à necessidade de inserção precoce da criança no mundo adulto tão logo pudesse dispensar dos cuidados de um adulto. Na sociedade capitalista industrial, portanto, o lugar social e o papel da criança foi visivelmente diferenciado a partir de sua condição material objetiva. TEMPOS E TIPOS DE FORMAÇÃO As grandes escolas e universidades ao reterem, por um longo período, a infância e a juventude, visando a preparação para a inserção no mundo adulto, criaram uma divisão que até hoje repercute na vida e destino da criança e do jovem: nem todas as crianças e adolescentes podiam aguardar que a escola lhes proporcionasse o certificado e habilitação exigidas para a inserção no mundo adulto do trabalho. Estas precisavam, e precisam ainda hoje, responder às necessidades imediatas de sobrevivência decorrentes da sua condição de classe. O jovem operário que obtém o certificado de conclusão do primeiro grau e não passa por uma escola técnica ou um centro de aprendizagem entra direto para o mundo adulto do trabalho, que continua a ignorar a distinção escolar das idades. E aí ele pode escolher seus camaradas numa faixa de idade mais extensa do que a faixa reduzida da classe do colégio. O fim da infância, a adolescência e o início da maturidade não se opõem como na sociedade burguesa, condicionada pela prática dos ensinos secundário e superior (idem, p.177). Esta situação foi a propulsora do modelo de regime escolar que restringia o tempo de formação e instrução por classes social. Com a dilatação do tempo de escolarização, as crianças se tornaram mais ausentes de casa e do controle da família, e, com isto, maior importância passou a ser dada a 212 escola como espaço de formação. A família viu, assim, sua função educativa dividida com a escola. O fato é que o prolongamento da infância e da juventude, decorrente especialmente do extenso ciclo de formação escolar, gerou possibilidades de acesso diferenciados para a população burguesa e aristocrata em relação às classes trabalhadoras, aqui percebida como forte candidata aos processos geradores de situações de exclusão.109 As classes trabalhadoras, compelidas historicamente pela necessidade de garantir a sua sobrevivência, inclusive de inserir precocemente seus filhos e filhas no mundo do trabalho em prejuízo do tempo de escolarização, na melhor das hipóteses reduziam o tempo de estudos, habilitação profissional e formação integral. [...] e, a partir do século XVIII a escola única foi substituída por um sistema de ensino duplo, em que cada ramo correspondia não a uma idade, mas a uma condição social: o liceu ou o colégio para os burgueses ( o secundário) e a escola para o povo (o primário). O secundário é um ensino longo. O primário durante muito tempo foi um ensino curto [...] Do momento que o ciclo longo foi estabelecido, não houve mais lugar para aqueles que, por sua condição, pela profissão dos pais ou por fortuna, não podiam segui-lo nem se propor a seguir até o fim (idem, p. 193). Esta passou a se responsabilizar pelo repasse dos conhecimentos, valores, moral, pela preparação profissional adequados às exigências do mercado e pela formação da juventude para a futura inserção no modo de vida adulto. A escola, portanto, como espaço de formação voltado para o futuro, “implica uma grande dose de segregação do mundo adulto e um longo adiamento da maturidade social, que assim se desconecta da maturidade sexual e biológica” (ABRAMO, 1994. p.3). A figura da escola contribuiu, então, para definir a categoria juventude pautada na condição de classe das famílias. Visto que só alguns segmentos da burguesia e setores da aristocracia “podiam – e incorporavam a perspectiva de manter seus filhos e filhas longe da vida produtiva e social, para prepará-los para funções futuras" (idem, p. 60). Instituiu-se, assim, a escola como um instrumento de legitimação e de camuflagem das desigualdades (acesso e desempenho). Não quero aqui estabelecer uma compreensão simplista da escola. Ela, como as demais instituições sociais, faz parte de um modelo social pautado em divisões da 109 A respeito das situações que geram a exclusão ou as situações de risco veremos mais adiante no cap. 3. 213 sociedade em classes sociais distintas cujos interesses, são contraditórios e dinâmicos. A dinamicidade das relações permite, inclusive, que na própria escola sejam construídas relações que provocam rupturas dos mecanismos que a constrói como repassadora de valores e interesses específicos. A escola, mesmo reconhecida pelo seu potencial de contradizer as estruturas que a gera, historicamente, tem sido colocada a serviço do capitalismo, como bem expressa Cury De modo mais eficaz quando os efeitos contraditórios desse exercício são neutralizados pelo sistema. Essa neutralização pela limitação ao acesso do saber (barreiras à democratização do ensino), pela alteração do saber que transmite de modo que se possa limitar, pela exclusão e ou seleção, o poder de desvelamento sobre a estrutura social (CURY, 1995, p. 79). Quer se tratasse da noção de “reprodução,” da noção de “aparelho ideológico” ou de “escola capitalista, as diversas abordagens culminaram sempre na visão de um ensino portador de um nítido caráter de classe” (NOGUEIRA, p. 11). Na primeira metade do século XIX esta ideia foi reforçada pela necessidade de inserção da mão de obra infantil na indústria têxtil. As diferentes possibilidades do tempo e tipo de formação, a partir da condição de classe, inegavelmente reforçaram as desigualdades sociais, ou seja, as formas e oportunidades de inserção do mundo adulto, especialmente no mundo do trabalho bem remunerado e reconhecido socialmente. Nogueira destaca elementos significativos, não só em relação à exploração do trabalho infantil, mas o processo de luta pelos direitos daqueles inseridos precocemente no mundo dos adultos.110 A partir da Revolução Industrial, foi constante a luta da classe operária pelos direitos negados à população infanto-juvenil “operária” contra a sua inserção desmesurada no trabalho industrial, precoce, forçado e explorado.111 O processo de exploração e exclusão dos trabalhadores adultos, no entanto, não poupou as crianças (juntamente com as mulheres) da responsabilidade precoce de contribuir com as despesas domésticas. As crianças e os adolescentes das classes trabalhadoras, especialmente a partir do capitalismo urbano-industrial, foram prejudicados no seu direito de vivenciar a infância como as 110 Marx previa a união do trabalho, ensino, ginástica considerando, inclusive, o tempo livre como exigência para a formação integral do indivíduo (Nogueira, 1993). 111 A respeito da participação dos operários adultos na luta pelos direitos do trabalhador infantil ver Marx, Nogueira e Rago (1985). 214 demais em decorrência da imposição de assumir, precocemente, responsabilidades inerentes ao mundo adulto, ou seja, garantir a própria sobrevivência, subsistência e proteção. Sendo assim, as crianças e os adolescentes viram sequestrado o seu direito à infância e juventude como período de proteção, formação e preparação para o futuro em função da precocidade com que lhes foi retirada a possibilidade de convivência familiar, escolarização completa e que lhes era apresentada a responsabilidade da auto-subsistência e autoproteção. A exploração desenfreada da força de trabalho no capitalismo se, por um lado, deteriorou as condições de vida da classe empobrecida, ampliando a população submetida a múltiplas situações de exclusão, por outro, cada vez mais concentrou nas mãos de poucos, não só os meios de produção, mas as possibilidades de acesso aos mecanismos de socialização e de reprodução do saber instrumental, ou seja, os conhecimentos que viabilizariam a inserção, participação e aceitação pelo modelo vigente. A escola e o trabalho foram, assim, grandes responsáveis pela diferenciação dos tempos da vida, na medida que reforçaram um modelo segregacionista determinante dos tempos de escolarização e especialização da educação. O tempo que esta passou a reter a infância, logicamente já determinado pela realidade da classe social, passou a demarcar, junto com o trabalho, a intensidade das rupturas dos tempos de transição, se brusca ou tênue, da juventude para as responsabilidades inerentes ao mundo adulto. Vale aqui acrescentar que o direito universal à educação imprimiu uma nova relação entre a população infanto-juvenil das camadas pauperizadas e a escola. Esta, no entanto, não considera as experiências diversas trazidas por seus estudantes. A escola, na sociedade hodierna além de não atender as especificidades dessa população, tem se constituído como palco de violência demandando um sério e substancial olhar sobre a Escola que se tem e aquela que a sociedade contemporânea demanda. (GOMES, 2013) O trabalho infantil, por sua vez, na sociedade contemporânea é expressamente combatido, mas, como aponta Marchi (op. cit): “o afastamento das crianças do mercado de trabalho e das ruas é antes exceção do que condição de vida das crianças em contextos de pobreza em todo o mundo” (p. 553). A condição de vida dessa população de vida desigual imprime, inclusive, uma diferenciada forma de transição para o mundo adulto. JUVENTUDE E TRANSIÇÃO 215 A noção de juventude, como a de infância, não é homogênea. Ela demarca um tempo de transição determinado por uma condição histórica, por um modo de produção determinado, por relações sociais e políticas específicas e por práticas culturais próprias. “A definição do tempo de duração dos conteúdos e significados sociais desses processos modificam-se de sociedade para sociedade e, na mesma sociedade, ao longo do tempo e através das divisões internas”(ABRAMO, 1994, p.1). A sua definição portanto, está condicionada por relações sociais dinâmicas que afetam diretamente o indivíduo. Conforme Carmo (1990, p. 10)., o conceito de juventude “será relativo e dinâmico de acordo com as condições sociais também variáveis" A passagem da condição infantil ou juvenil para a vida adulta, portanto, varia conforme a época, a cultura e, especialmente as relações de produção de cada sociedade. Se pensada a juventude como categoria homogênea, esta seria uma mera, (simples e natural continuação da infância. A juventude conforme define Carmo, é uma fase do comportamento do indivíduo em que ele não exerce ainda o papel de adulto como pleno titular das instituições sociais, mas faz-se jovem quando seu status e papéis já se esgotam no interior da família mas também não ainda maduros para serem individuados como adultos, isto é, caracterizados pelas responsabilidades sancionadas socialmente (idem. p. 10). O termo juventude normalmente está relacionado com um período da vida, uma determinada faixa etária, localizada entre a infância e a vida adulta. Nesta fase encerra-se o período de desenvolvimento físico do indivíduo e o período de mudanças psicológicas e sociais e se “inicia assim a sua entrada para o mundo adulto (ABRAMO, op. cit. p. 1). Nas sociedades capitalistas urbano-industriais o período de transição para a vida adulta é difícil e complexo. A divisão do trabalho, a especialização econômica e o distanciamento das famílias de outros espaços institucionais reforçam “a descontinuidade entre o mundo dos adultos, implicando em tempo longo de preparação que, comparado ao das sociedades primitivas, é menos institucionalizado e com papéis menos definidos” (idem, p. 3). O tempo de transição visto como um “entre-tempos e entre-situações”, isto é, o ser criança e o ser adulto, o depender e o assumir responsabilidades, faria do jovem um ser de impotência, de “meio de caminho”. Os tempos não são fragmentados e as relações estabelecidas neste período não são homogêneas e repetitivas. Se as relações estabelecidas com a família, o mundo dos adultos e o ambiente “extra-casa”, já se 216 fizeram diferentes; se a escola já reteve uma parcela desta infância por tempos diferenciados e, se desde cedo, uma parcela destes jovens já conviveu como o mundo das responsabilidades de manutenção do grupo doméstico, obviamente, os tempos de transição, ocorreram de formas e intensidade diferenciadas. Inclusive, com mais ou menos impacto, isto é, rupturas entre o tempo passado, o tempo presente e a relação com o tempo futuro se deram de modo diferenciado (isto em decorrência de realidades distintas). No dizer de Freire, no processo de transição há uma profunda ruptura entre o passado e o futuro, ambos presentes conflitantes. O tempo de trânsito é um tempo de crise, de opções e esforços. Não se dá de forma imediata visto que os temas, valores, comportamentos ainda oscilam entre o dinamismo do trânsito se dá através de idas e vindas, avanços e recuos que confundem o homem (FREIRE, 1983). A situação “de ser um ser em transição” coloca o jovem, a depender de sua condição de classe, em uma posição marginal provisória ao sistema produtivo ou, contraditoriamente, para a sua definitiva inserção precária, prematura e marginal no sistema de produção capitalista 112. O jovem, em sua relação com o mundo adulto, passa a vivenciar momentos de conflitos decorrentes das novas exigências sociais. Nesse ponto, Lapassade (1968) aponta para as crises da juventude. As crises juvenis decorrentes dos processos de ruptura com a família e escola nos grupos em situação de exclusão são diluídas ao longo do prematuro distanciamento da convivência e dependência doméstica e, consequentemente, da aproximação precoce com o mundo adulto das relações de produção. Talvez, a priori, pudéssemos interpretar esta situação como um privilégio dos jovens adultos caso a divisão do trabalho, característico da industrialização, da tecnicidade e das aceleradas mudanças nas ciências e tecnologias de ponta característicos da sociedade hodierna que a acompanha, não requisesse também uma especialização sempre maior. Para isto, precisa, inevitavelmente, de especialização específica. A juventude em situação de pobreza extrema, portanto, ao ser inserida precocemente no mundo adulto do trabalho não tem tempo nem condições, até porque já aprendeu outro modo de se relacionar com a sociedade em geral e com o mundo adulto do trabalho em particular, para acompanhar as exigências decorrentes do modo contemporâneo das relações de produção, isto é, não foi preparada funcionalmente para nele ser inserida. O processo de formação do jovem deveria possibilitar, ao menos, a sua inserção, ou melhor, dizendo, a sua preparação 112 Não quero aqui delimitar a transição como elemento exclusivo da infância e juventude. Destaco sim, a transição juvenil como um tempo de transição para as novas responsabilidades e papéis sociais esperados pelos padrões e representações de determinadas sociedades e tempos históricos. 217 para que viesse assumir as expectativas em relação às responsabilidades inerentes aos adultos113. O surgimento de novos papéis exige do jovem o preparo e a formação para tomar e assumir decisões. O jovem, portanto, deveria ser formado para escolher e tomar decisões. Este direito nem sempre é dado a todos, especialmente o de escolher os caminhos a tomar e nem ao menos a participação na construção de um "projeto de vida". ADULTIZAÇÃO PRECOCE Se usarmos o artifício da simples memória do recurso da imagem, dos inúmeros artigos de jornal ou, ainda, dos meios de comunicação de acesso ao grande público, constataremos a presença de pequenos seres cronologicamente coetâneos mas que a condição social de classe impôs situações de vida visivelmente contrastantes. Ao dirigir a atenção para os espaços públicos de circulação, perceberemos claramente que a infância e a juventude empobrecidas, involuntariamente se contrapõem aos conceitos e cuidados específicos previstos para os seres de pouca idade. Nestes espaços de circulação, enquanto as ideias, trazidas pela memória das imagens dos espaços públicos, crianças e adolescentes caminham protegidos por um adulto, outros pequenos seres cronológica e legalmente (mas nem tanto fisicamente) semelhantes aos primeiros, quase que saltitam independentes da companhia de adultos, pelos bancos das praças, pelas ruas do centro. Atravessam as avenidas entre os carros com a desenvoltura que não é comum, nem mesmo entre a maioria dos adultos. Independentes da companhia de um adulto, não deixam de comer por falta de quem lhes provenha a alimentação. A intimidade com que abordam os transeuntes, e que definem espaços para batalhar, garantir a sobrevivência diária, “descolar uma canto para dormir,” demonstra, com nitidez, que existem “infâncias e infâncias e juventudes e juventudes"114. Ao contrário dos seus pares pertencentes a outras classes sociais, os meninos e meninas e meninas em situação de exclusão têm as suas vidas submetidas a constantes situações de risco visto que 113 Segundo Abramo estes papéis correspondiam à profissão, ao casamento, à cidadania política, dentre outros. (p.170) A respeito da precocidade que estes meninos e meninas precisam "batalhar", Moraes explica que esta “é uma dinâmica dos meninos e meninas e das meninas , que se encontram nas ruas. O desenvolvimento da infância cede lugar desde cedo para as preocupações, atividades para que costumeiramente são exercidas só na vida adulta”... “O termo batalhar é muito utilizado por eles, e pode ser entendido como sair para pedir, ou para roubar. É interessante perceber o quanto o ato de buscar algo básico (alimento) para a vida, passa a ser pesado, difícil, sacrificado. Esse termo traz consigo toda a representação que esses meninos e meninas e essas meninas criam para o ato que irá garantir a sua sobrevivência (o alimento) A batalha representa esses movimento de busca de alimento ou de dinheiro, através do roubo ou da esmola, para suprirem suas necessidades diárias. Mais que isso, a batalha diária está relacionada ao movimento permanente de circular, de se manter, de procurar estratégias de permanência na rua” (MOARES, 1997: p. 77). 114 218 [...] quem vive na rua precisa de agilidade, flexibilidade e muito movimento corporal, para sustentá-la. Daí precisar mudar sempre de espaço e procurar outro território. A rua constitui-se em transitoriedade permanente, dada a sua insegurança total. Não é possível prever o que vai acontecer na próxima hora, no próximo dia. Há que estar sempre preparado para agir ou reagir, criar e recriar, inventar e reinventar formas, maneiras de sobreviver na rua ou mesmo viver na rua, o que conta é a troca e o consumo imediato daquilo que se ganha. A rua é apropriada pelos menores de rua, e isso demonstra o embate e o confronto com os outros interesses, muitas vezes contraditórios. (GRACIANI, 1997, p 131). A condição de classe e as situações vividas sobrepujam, portanto, a condição biológica da idade ou ao menos o que dela se espera social, econômica e culturalmente. Como bem coloca Ariès (op.cit. p. 40), as idades da vida não correspondem às etapas biológicas, mas às funções sociais. Se cruzarmos as imagens provocadas pela nossa memória (construirmos estes dois grupos de infância e juventude contrastantes) com os sentimentos que a infância desperta na sociedade concluiremos que, de fato, são duas categorias extremamente distintas. Os sentimentos, despertados por estes meninos e meninas muitas vezes transitam entre o desconforto e compaixão à irritação e autodefesa (o adolescente que representa risco e, por isso, necessita de ser controlado, disciplinado e contido). Para o grupo dos meninos e meninas que tem como relação básica à proteção da família e da escola, o grupo daqueles que vivem em situação de rua permanente "até mete medo". Como bem colocam Silva e Cláudia Milico (1995, p. 32) no trabalho de pesquisa que resultou na publicação Vozes do Meio-fio, "a relação da sociedade com a pobreza mudou. Com a intensificação do quadro de pobreza nacional a relação de ajuda e responsabilidade que se tinha com o pobre foi substituída pelo medo". Os autores, em suas entrevistas, perceberam que As fantasias de nossos entrevistados exprimem um desolador sentimento de vulnerabilidade, que não cessa nem quando nos espaços mais íntimos, nos logradouros mais familiares, esse medo é sem trégua porque o cotidiano mostra o quanto se infiltram tentacularmente em todos os desvãos da cidade assaltantes, gatunos, mendigos doentes, crianças de rua [...]Dão 219 base a tais fantasias em desprezo extremo pelo marginal, tipo difuso, retratado na imaginação medrosa apenas com traços negativos: ontologicamente devastado porque se funda na carência, socialmente devastados porque suas relações são predatórias". (idem, p. 32) Vale ressaltar que ao apontar a diversidade do lugar social conforme condições de classe, não implica que exista, necessariamente, no imaginário social uma diferenciação flagrante entre os meninos e meninas (as) a partir de sua situação social e econômica. O sentimento despertado pela infância ainda é carregado de uma conotação de dependência e de fragilidade. Ver a criança ter que buscar seu próprio sustento provoca, no adulto, um sentimento de desconforto ou de piedade cristã, como aponta Vogel, (1991, p. 145). Em primeiro lugar, o quotidiano na rua impôs o ‘pedir’. Esse recurso está inscrito, seja na piedade cristã, seja, mais recentemente, no desconforto gerado por um fenômeno convencionalmente incluído na noção de ‘dívida social.’Apelar com êxito para esse tipo de sentimento é, talvez, a primeira lição da arte de sobrevivência diária nas ruas. O esmolar, o pedir, torna-se uma das estratégias da batalha diária, sendo utilizada principalmente enquanto a sociedade ainda enxerga com comoção e pena. Esses sentimentos são mais fortes quando as crianças que esmolam são pequeninas, mostrando- se enquanto “presas fáceis ao perigoso mundo da rua (...) Os adolescentes têm maior dificuldade em conseguir comida pedindo, quase sempre têm que roubar, ou utilizar os pequenos para conseguir” (MORAES, p. 87). Saber usar as prerrogativas dos sentimentos despertados pela condição infantil denota que estes sentimentos nem sempre condizem com uma interpretação parcial, a-histórica e descontextualizada sobre a fragilidade de ser infantil. Não se quer com isto defender a ideia de que a criança não precise de proteção, mas que, de fato, não depende com a intensidade que lhe é atribuída, nem é tão dependente como os adultos querem e a tornam. Ao dirigirmos a atenção para os meninos e meninas e meninas de modo de vida adulto, aqueles que repartem, com seus pares e com os transeuntes, os espaços públicos contemporâneos, pode-se identificar a cruel distinção entre as idades semelhantes e as aberrantes diferenças nas possibilidades de viver a infância e a juventude como tempo de formação biológica, emocional e funcional. São 220 [...] crianças que não têm um desenvolvimento peculiar adequado a sua idade. Não dispõem de um espaço de proteção, nem de afeto, nem de 'pessoas de referência apoio, orientação (...) desde muito cedo, têm sua vida condicionada à luta pela sobrevivência (GRACIANI, 1997, p. 123-124). Sobre a luta pela sobrevivência, faz-se necessário reproduzir as palavras de Jerusa Vieira Gomes onde destaca que essa "luta" não pode se tornar um tom impessoal. (GOMES, 1995, p. 65) O tom impessoal, acadêmico não nos pode impedir de ter em mente que me parece essencial: a expressão 'luta pela sobrevivência' refere-se à luta travada por uma ou mais pessoas, no dia a dia, de maneira a garantir o mínimo necessário à subsistência individual ou de um grupo doméstico. É crucial mantermos viva a consciência de estarmos lidando com a concretude da vida humana, e não com alguma coisa abstrata, como a linguagem acadêmica pode induzir-nos a pensar". Diante das circunstâncias e tratamentos diversos apresentados, foi imposta aos meninos e meninas e meninas das classes populares a adultização precoce, como se refere Graciani (1997, p. 126) [...] pode-se dizer que esses jovens de ou na rua não tiveram adolescência, como outros privilegiados da sociedade. Vivem num processo de 'adultização precoce', obrigados a serem arrimo de famílias e/ou complementadores da renda familiar, sofrendo um processo de mortificação interna, com danos indeléveis para a sua personalidade e identidade. Os meninos e meninas e meninas protegidos (as) por sua vez, ao serem amparados por um prolongado tempo (até pelo acúmulo de atividades decorrentes dos processos de preparação para o futuro) talvez não possam viver livremente a infância mas, certamente, não terão sacrificado o seu futuro. Hoje, em pleno século XXI, grande contingente dos meninos e meninas em situação de múltiplas exclusões luta sozinho (a) pela sobrevivência, enquanto os outros (as) são amparados (as) por instituições de proteção e formação, que 221 cuidam e protegem a infância incluída. Dispensam a esta, atenção qualificada, de modo a evitar que experiências prematuras lhe criem traumas e transtornem o seu desenvolvimento integral. O sistema a protege e retém, o máximo possível, a sua dependência em relação aos adultos e ao prazo de formação. A precocidade de inserção, no modo de vida adulto, se por um lado restringe as possibilidades de formação e preparação funcional para a sua inserção social, esta mesma perda estimula o desenvolvimento de características, tais como: criatividade, autonomia, capacidade de resistência e solucionar problemas imediatos, que não deveriam ser relegados e sim valorizados. Revendo a questão, sob este prisma, a formação das crianças submetidas a situações de exclusão não deveria ser pautada nas suas faltas, mas pelo potencial adquirido na luta pela sobrevivência diária. Maltratados pela sociedade podem ser nela inseridos se devidamente respeitados e consideradas a sua experiência de vida, como por exemplo, a sua autonomia e capacidade de sobreviver em situações adversas. Sob esta ótica o fundamental no processo educativo, não seria o que eles não trazem, o que não aprenderam, mas o aproveitamento daquilo que lhes potencializa para responder positivamente na construção de seu projeto de vida, da sua participação ativa processo.115 Esta perspectiva, inclusive, lhes abriria novas e importantes possibilidades de crescimento. CONSIDERAÇÕES FINAIS Temos, até então, duas construções distintas determinadas a partir de formas de inserção social diversas: o adolescente “tipo estudante” que desperta sentimentos de esperança no futuro e o grupo que a simples presença é vista como ameaça e sujeito ao controle repressivo do Estado. Os primeiros são reconhecidos e protegidos como cidadãos que estão sendo formados para assumir a sua cidadania e o comando das decisões. Este grupo, portanto, precisa ser mais do que protegido, formado e preparado para tomar decisões e coordenar instâncias deliberativas e executoras. O segundo grupo é, em geral, considerado uma ameaça à ordem social. A "falta" de quem controle e eduque, da suposta falta de disciplina, de valores e princípios norteadores faz com que sejam vistos (e ajam) como agressivos, rebeldes e irresponsáveis. A impotência ou insuficiência de instituições que consigam frear e dar limites a esta juventude, (como assim alardeia a imprensa conservadora e comprometida com a manutenção da ordem e do status quo sobre este segundo grupo), lhe impõe o estigma de perigoso. 115 A este respeito ver Costa. 1990c. 222 Para os adolescentes do primeiro grupo o tempo de transição e sua inserção no mundo adulto são retardados e cuidadosamente construídos de forma promissora, ao menos dentro das possibilidades de inserção que a conjuntura social e econômica globalizada tem permitido. Em sentido oposto, o segundo grupo é atendido em instituições de assistência que nem sempre lhe permite a inserção social adequada. Talvez a independência e a autonomia, a priori, pudessem ser interpretados, como já ressaltado, como um privilégio dos jovens pauperizados, em relação à sua inserção no mundo adulto. Assim poderia ser interpretado, caso a tecnicidade da divisão do trabalho não impusesse a necessidade de instrução, preparação e formação. Não respondendo às exigências das relações modernas de produção, o distanciamento dos meios de escolarização e formação oficial se tornam obstáculos para a sua inserção adequada no modo de vida adulto (como percebido pelo modelo dominante). Os meninos e meninas e meninas em situação das camadas populares (pauperizadas) ao serem inseridos (as), precocemente, no mundo adulto do trabalho, não correspondem, portanto, as exigências decorrentes do modo de produção contemporâneo, isto é, não são habilitados (as) “funcionalmente” para nele ser inserido. É uma situação paradoxal: de um lado, jovens preparados para batalhar e sobreviver nas condições mais desfavoráveis e extremas, mas que são excluídos por não corresponderem às expectativas do modelo vigente. Do outro, jovens protegidos que não sobreviveriam em situações exigentes, mas que estão preparados para manter a reprodução do modelo. Finalmente o que se tem na sociedade hodierna: uma infância e juventude com fome e “safas”, mas totalmente desamparadas pela sociedade. A outra infância e juventude, embora cuidadas e protegidas têm medo de seres coetâneos que não frequentam a escola e nem são protegidos por sua famílias e muito menos pela sociedade. Esta sociedade certamente precisa ser urgentemente revista! REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMO, Helena Wendel. Cenas Juvenis: punks e darks no espetáculo urbana. São Paulo, Editora Página Aberta Ltda, 1994. ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. São Paulo Editora Guanabara, Koogan, 1981. 223 CARMO, Francisco. Situações e Aspirações da Juventude nos Açores. Ponta Delgada, Tipografia Barbosa e Xavier Ltda, 1990. CERIZARA, Ana Beatriz. Rousseau: a educação na infância. São Paulo, Ed. Scipione, 1990. CURY, Carlos R. Jamil. 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Thomas ZACHARIAS, PhD: Lecturer of the Department of Educational Studies, Goldsmiths University of London, UK. * O presente estudo faz parte de um projeto maior sobre os sentidos do corpo em relação à imagem corporal entre homens praticantes de musculação em uma grande cidade do Nordeste do Brasil. Os dados deste projeto foram apresentados em forma de seminário no 16th Annual Congress of the European College of Sport in Liverpool, 2011. 226 BSTRACTRESUMOABSTRACTRESUMOABSTRAC Resumo A sociedade de consumo contemporânea é caracterizada hoje, com ênfase na aparência do corpo. O objetivo deste estudo incidiu sobre a estética motivações dos fisiculturistas do sexo masculino para exercer a prática de musculação para melhorar a sua aparência corporal. Uma vez que alguns estudos sugerem que as normas culturais do corpo masculino ideal estão crescendo cada vez mais muscular Métodos: Empregando uma abordagem etnográfica, com entrevistas em profundidade, que investigou qualitativamente a construção da imagem corporal entre 7 fisiculturistas (20-30 anos de idade) em uma academia de calsse economica baixa no Nordeste do Brasil. Utilizou-se o Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) a fim de tabular e organizar os dados qualitativos obtidos durante as entrevistas semi-estruturadas. Aderindo à Teoria das Representações Sociais, esta técnica permite a síntese de narrativas individuais - escrito no singular, primeira pessoa - em "uma só voz", a fim de expressar o "pensamento da comunidade". Em outras palavras, o discurso de sete indivíduos se torna um. Resultados: Principais temas que surgiram "O objetivo do meu treino é para chegar à perfeição" e "amizades influenciaram a minha formação", entre outros. As interpretações DCS para estes temas são: “Por questões estéticas resolvi praticar musculação, pela influência de amigos, saúde e ver o pessoal malhando. As pessoas começam a notar, e as meninas. Faço muito a sério, a definição é o alvo, a perfeição, o corpo fica desenhado, embora tenha pessoas que prefiram volume”. Discussão: Com base em nossos resultados, acreditamos que este grupo de fisiculturistas - com o nítido propósito de modificar seus físicos para atender às expectativas pessoais e / ou sociais - é mais suscetíveis a práticas de comportamento de alto risco e transtornos tais como o abuso de esteróides anabolizantes e dismorfia muscular. Pesquisas futuras devem fornecer aos profissionais de saúde c estratégias eficazes para lidar com esta proplema de saúde pública. Abstract The consumer contemporary society is characterized today with emphasis on body appearance. The aim of this study focused on the aesthetics motivations of male bodybuilders to engage in the practice of bodybuilding to improve their body appearance. Once some studies suggest that cultural norms of the ideal male body are growing increasingly muscular. Methods: Employing an ethnographic approach, with in-depth interviews, we qualitatively investigated body image construction among 7 bodybuilders (20-30 yrs of age) in an economically impoverished bodybuilders’ gym in Northeast of Brazil. We used the Discourse of the Collective Subject (DCS) in order to tabulate and organize the qualitative data obtained during the semistructured interviews. Adhering to the Theory of Social Representation, this technique permits synthesis of individual narratives – written in the singular, first person – into “one voice” in order to express "community thought". In other words, the discourse of seven individuals becomes one. Results: Principal themes that emerged included “the objective of my workout is to reach perfection” and “friendships influenced my training”, among others. The DCS interpretations for these themes are: "For aesthetic reasons, I decided to practice bodybuilding", "Definition, perfection, and keeping my body ‘taut’ are my goals”, "People prefer muscle mass”, "I work out very seriously”, "I was influenced by friends, a desire for good health, and by seeing other guys working out", and "Other people, especially girls, began to notice". Discussion: Based on our results, we believe this group of bodybuilders – with the apparent purpose of modifying their physiques to meet personal and/or societal expectations – to be more susceptible to high-risk behavioural practices and disorders such as anabolic steroid abuse and muscle dysmorphia. Future research should provide health professionals with effective strategies to address this public health concern. 227 Introdução A aparência física, incluindo hiper-musculosidade masculina, atualmente tem se tornado um imperativo existencial no mercado de consumo e relações de alteridade. Pesquisas atuais sugerem que as normas culturais do físico ideal masculino tem evoluído para um ideal cada vez mais musculoso, e que a modificação e o melhoramento cosmético do corpo através de uma serie de regimes e tecnologias pode ser usado para construir uma aparência bonita e alguma forma uma melhora de si (Featherstone, 2010; Leit et al, 2002; Leit et al, 2001). Contudo, quais são os ideais de imagem e masculinidade os indivíduos, as quais os sujeitos estão expostos à aparência física como modelo para modificarem seus corpos? Quais as motivações para os homens praticantes de musculação buscarem corpos cada vez mais musculosos? Lê Breton (2006:9) fala que “a expressão corporal é socialmente modulável, mesmo sendo vivida de acordo como o estilo particular do indivíduo”. Discorre ainda o autor que é pela corporeidade que o homem faz do mundo a extensão de sua experiência e o transforma em tramas que são familiares e coerentes, que são disponíveis à ação e permeáveis à compreensão. Bydlowski e colaboradores (2004) chamam a atenção do quanto os meios de comunicação têm hoje um grande papel na determinação da construção de ideais e comportamentos dos indivíduos, acompanhando e, às vezes, provocando reações na sociedade. Em se tratando de influência, os meios de comunicação parecem exercer manutenção da hegemonia, quer dizer, dos valores e práticas da sociedade atual, propagando e reedificando modelos específicos de feminilidade e masculinidades considerados ideais. Pode-se notar que nesta mesma sociedade o consumo é supervalorizado: o indivíduo é “medido” pelo que possui ou consome e não pelo que é, e dessa maneira, sugerindo que o corpo também é um capital, passível de ser melhorado, gerido e modificado (Goldemberg, 2010). Featherstone (2010; 1991) também corrobora para tal afirmação onde quando analise que em uma cultura com ênfase no consumo, aspecto muito evidente na cultura brasileira, os anúncios, a imprensa popular, imagens da televisão e dos filmes, proporcionam uma proliferação de imagens do corpo estilizados; como se a a lógica e verdade dessa cultura dependesse do cultivo de um apetite insaciável de consumir imagens. A hegemonia do apelo ao corpo e à imagem, remete-nos à Zygmunt Bauman (1998) onde o autor afirma que o sujeito que não se encaixa nessa sociedade de predomino pós-moderno de consumo, pode ser interpretado por seus pares como um ser impuro. Normam (2011), em estudo conduzido no Canadá com homens entre 1315 anos de idade constata que a mídia e o discurso contemporâneo sobre o corpo colocam os homens desde 228 estágios muito precoces em uma Double-blind, onde o corpo é alvo de preocupação estética, sendo esse segmento convocado a cuidar e transformar o corpo, mas de forma secreta, para não serem vistos como homossexuais ou ter sua masculinidade posta em dúvida. Este é um fator importante na construção do conjunto de motivos que levam os homens à não só o uso de anabolizantes, mas métodos insalubres de busca de um corpo nos moldes do ideal da cultura midiática ocidental. Nesse sentido a insatisfação corporal pode está fortemente relacionada com a exposição de “corpos ideais” pela mídia, assim contribuindo nas últimas décadas para o surgimento de compulsões na buscar da forma física perfeita nos “templos” do corpo, eufemismo para as academias de ginástica segundo alguns autores, lugar de culto ao corpo (Estevão & Bagrichevsky, 2004). Mais recentemente no Brasil Abrahin e colaboradores (2013), investigaram a prevalência do uso de EAA entre 117 estudantes e professores de educação física que atuam em academias de ginástica, como o maior percetentual de prevalência entre os profissionais especialistas (39,3%) e como principal motivação para o uso de EAA a estética (75,6%). Nós investigamos o uso e abuso ilícito de EAA, e constatamos o uso irrestrito dessas substâncias como prática comum na busca da melhoria aparência por parte de fisiculturistas homens, mas não obstante as mulheres estarem na mesma linha com repercussões bem especificas (Santos, Rocha & Da Silva, 2011). Não obstante, um ponto muito importante a observar este tipo de uso e abuso de AAS entre os jovens fisiculturistas amadores, é que em sua maioria eles não são atletas competitivos ou desejam um objetivo no esporte, mas eles são, como nós chamamos, os praticantes recreacionais (mesmo fazendo por estética ou saúde, diferente daqueles que consideram um estilo de vida). Em um relatório pesquisa preliminar descrevemos e documentamos pela primeira vez a venda e injeção por instrutores na academia de ASS em uma pesquisa no Brasil, não por atletas profissionais, mas apenas pela 'boa aparência' (Santos, Rocha & Da Silva, 2011). Entretanto é importante destacar que essa relação de apresentação de corpos ideais pela mídia não implica em uma organização mecânica de adesão do público à busca dessas imagens corporais. Diversos fatores como raça, renda, escolaridade e etnia se entrecruzam nesse processo. O indivíduo não é uma folha em branco, onde a mídia imprime seus ideais de maneira rápida e inexorável. Logo, trata-se de uma correlação, não de uma relação de causa-efeito. Em uma meta análise realizada por Groesz, Levine e Murnen (2001), a partir de 25 estudos sobre o efeito da mídia de massa no ideal de magreza, os resultados apresentados reforçaram a hipótese de que as perspectivas socioculturais produzem um ideal de magreza que propaga a insatisfação 229 corporal a partir da comunicação de massa, na medida em que estes veículos difundem tipos físicos praticamente inatingíveis para a maioria das populações, o que pode estar relacionado à busca de um corpo hegemônico a qualquer preço. Neste sentido tomamos como base um estudo desenvolvido realizado entre jovens, do sexo masculino, fisiculturistas, fixados em uma grande cidade do nordeste brasileiro que tinham por objetivo a melhoria da aparência física, aumento da massa corporal e muscularidade. A escolha do desenho metodológico da pesquisa citada, para atingir os objetivos estipulados, recaiu sobre o método etnográfico, etendo sido escolhida uma academia considerada adequada para os fins do estudo. A academia escolhida na ocasião era freqüentada eminentemente por sujeitos delimitados para a pesquisa: fisiculturistas dedicados, favorecendo a abordagem e observação participante. Após esta etapa metodológica, houve uma revisão bibliográfica e escolha do repertório teórico interpretativo para abordagem do fenômeno e sua articulação com o método etnográfico, buscando garantir coesão epistemológica. Iniciado o campo, um dos primeiros elementos evidenciados e importantes foi a condição sócio-econômica e demográfica sobre a população das academias. Por este motivo escolheu-se por conveniência uma população que estivesse inserida num segmento sócioeconômico mais equânime, porém buscando garantir a diversidade necessária para uma maior riqueza dos dados. Assim tratou-se da camada média residente na região metropolitana da cidade. Considerou-se que essa população poderia atender o perfil que se esperava encontrar na observação e entrevistas. No primeiro momento as entrevistas foram realizadas nas instalações da academia previamente descrita pelo primeiro autor da pesquisa. No procedimento metodológico inicial, estimou-se 15 participantes para comporem a mostra do estudo. Todavia no decorrer das entrevistas foi observado que certas informações/idéias se repetiam, determinando que um bom número para mostra fosse sete sujeitos, entrevistados em profundidade. Para identificação dos indivíduos adotamos nomes fictícios de substâncias usadas como anabolizantes, para garantirmos o sigilo dos entrevistados. Figura 1. No segundo momento metodológico, uma vez gravadas e transcritas as entrevistas, estas foram convertidas em narrativas, onde aplicou-se a metodologia de análise do Discurso do Sujeito Coletivo. Segundo Lefrève - método desenvolvido pelo autor em 2000- (Lefèvre F, Lefèvre, AMC. 2010; Lefèvre F, Lefèvre, AMC. 2003). Tal metodologia tem por finalidade tornar mais clara as representações sociais das questões levantadas no estudo, evidenciando as idéias e representações coletivamente compartilhadas. Basicamente, o 230 procedimento metodológico consiste em: 1. selecionar o conteúdo essencial de cada depoimento; 2. associar à estes conteúdos selecionados uma descrição sucinta de seus sentidos; 3. agrupar os depoimentos de sentido semelhante numa categoria ou conjunto; 4. reunir o conteúdo destes depoimentos de sentido semelhante em discursos únicos, os chamados Discursos do Sujeito Coletivo, redigidos na primeira pessoa do singular. Buscou-se dessa forma, confrontar os dados coletados em campo com a literatura condizente com o tema da pesquisa. Aderindo à Teoria das Representações Sociais, esta técnica permite a síntese de narrativas individuais - escrito no singular, primeira pessoa - em "uma só voz", a fim de expressar "comunidade de pensamento". Em outras palavras, o discurso de sete indivíduos se torna um. Em outras palavras, o discurso de sete indivíduos se torna um. Sujeito 4: “Durateston” Sujeito3: “Primobolan” Sujeito 5: “Creatine” Sujeito2: “Deposteron” Sujeito1: “Testosterone” Sujeito 6: “Deca” Discurso do Sujeito Coletivo DSC “Por questões estéticas resolvi praticar musculação, pela influência de amigos, saúde e ver o pessoal malhando. As pessoas começam a notar, e as meninas. Faço muito a sério, a definição é o alvo, a perfeição, o corpo fica desenhado, embora tenha pessoas que Sujeitot 7: “Halotestin” prefiram volume”." Figure 1 . Diagrama de DSC - Motivação. O nome do sujeito foi modificado para manter o anonimato e usar o nome de substâncias que eles usaram. A utilização da técnica de construção do Discurso do sujeito Coletivo – DSC - viabilizou o desenvolvimento da pesquisa e possibilitou identificar as representações que o 231 grupo possui e explicita como foram articuladas as motivações das práticas de mudança corporal, no caso presente, a adesão ao fisiculturismo. O início da análise partiu da confecção de um quadro associado aos objetivos. Na primeira coluna a categoria Motivação / Estética (relação de outras motivações), na segunda os discursos literais de cada entrevistado, na terceira coluna foi colocado o DSC para os discursos dos entrevistados e na quarta coluna foi extraída a idéia central do DSC. A idéia central é a afirmação, o ponto principal destacado nos discursos dos sujeitos que possibilitou captar os sentidos das falas e dos depoimentos. Resultados e Discussão Idéias centrais encontradas: “... é que hoje eu não faço prioritariamente por estética, faço por que me sinto bem” “As amizades me influenciaram, mas principalmente por que me viciei...” “Eu sempre quando faço minhas coisas, levo tudo a serio” “A minha malhação é para buscar a perfeição” “Tô satisfeito mais não 100%, quero melhorar mais um pouco...” “o corpo começa a ficar mais desenhado, as roupas começam a ficar mais apertadas, as meninas já começam a notar” DSC – Motivação “Por questões estéticas resolvi praticar musculação, pela influência de amigos, saúde e ver o pessoal malhando. As pessoas começam a notar, e as meninas. Faço muito a sério, a definição é o alvo, a perfeição, o corpo fica desenhado, embora tenha pessoas que prefiram volume”. Perspectiva analítica desde a análise do DSC - Motivação De acordo com Sabino (2002: 157) o corpo além de representar a verdade do indivíduo, é também sua vitrine e seu suporte indentitário. A imagem por ele exposta apresenta-se como suposta via para o sucesso ou o fracasso. Diante do imperativo de permanecer sempre jovem, forte, magro, bonito e com aparência saudável, muitas vezes não se hesita em consumir drogas, exercícios e produtos com o objetivo de aperfeiçoar esta vitrine-máquina [...] assim, enquanto a forma física é alçada a novo objeto de adoração da sociedade de consumo, o corpo, enquanto conteúdo torna-se mero objeto de troca monetária. Portanto, percebemos uma considerável associação entre imagem corporal e processo de embodiment; ainda que o corpo e a imagem não sejam sinônimos, nem 232 únicas vias na construção da identidade de um indivíduo, parece estar claro que a imagem corporal é uma via importantíssima no caso dos sujeitos investigados, posto que eles são não o corpo, mas a imagem que eles recebem como reflexo nas relações de alteridade, nas relações com o outro (ser reconhecido como forte, atraente, perfeito e desenhado). Neste caso, a imagem corporal parece ser referida de maneira simbólica e não como um elemento perceptivo, que poderia ser medido ou avaliado objetivamente do ponto de vista psicométrico. Na análise dos enunciados proferidos, percebe-se uma procura pela melhoria estética, com uma busca que relacionase fortemente a sentimentos de prazer e insatisfação dentro do ambiente da academia, indicando certa ordem de modelos e ideais “intra-grupo”, mas não descolados da sociedade, como pode-se facilmente perceber nas imagens masculinas de embalagens de suplementos e nos modelos de corpos tomados como ideais a serem atingidos. A musculação converte-se em ritual ascético/obsessivo e o corpo metaforiza-se em máquina, e o que faz a máquina funcionar são as substâncias utilizadas para potencializar esse corpo/máquina. No entanto, não existe no Mundo anabolizantes (Santos, 2007) uma hierarquização daqueles que estão iniciando e os que já são considerados veteranos e os fisiculturistas (Sabino, 2002), tratando-se desse chamado mundo anabólico uma cultura com valores, imagens e ideais específicos a serem atingidos O sentimento de insatisfação com a imagem, euforia, obsessividade e compulsão podem levar a transtornos da imagem corporal, denominado Transtorno Dismórfico Corporal (TDC) aqui tomado no sentido psiquiátrico do termo, e não de maneira simbólica no sentido social abordado nessa pesquisa. A alteração na percepção da imagem corporal é acompanhada por uma alteração radical na dieta, que passa a ser hiperprotéica e acompanhada de diversos suplementos alimentares a base de aminoácidos (Assunção, 2002, Pope, et al, 1993, Pope, et al, 1997). Como argumenta Rodrigues (2006:62) “Arranhando, rasgando, perfurando queimando a pele – imprimi-se cicatrizes – signos que são formas artísticas ou indicadores de status [...] . E ainda discorre que “[...] reconhecemos no nosso corpo e no das pessoas que conosco se relacionam um dos diversos indicadores da nossa posição social e o manipulamos cuidadosamente em função desse tributo. Vemos no nosso próprio dia-a-dia o corpo se tornando cada vez mais carregados de conotações: liberado física e sexualmente na 233 publicidade, na moda, nos filmes e romances; cultivado higiênica, dietética e terapeuticamente; objeto de obsessão de juventude, elegância e cuidados (2006:63)”. Existe nessa prática prazer em ver em si a forma desejada sendo esculpida no corpo, e, paradoxalmente, insatisfação, pois a perfeição na maioria das vezes é o objetivo, e quase sempre o modelo de perfeição é mutável e móvel, sempre se deslocando para um ideal mais distante do atingido pelo praticante. Os exercícios físicos, por ocupar horas e dedicação do dia do indivíduo, chegam a comprometer as atividades sociais, ocupacionais e recreacionais (Pope et al, 1997; Pope, Phillips & Olivardia, 2000; Pope, Katz, Hudson, 1993). Os relacionamentos pessoais e românticos (Pope et al., 1997), convertendo a vida em um projeto corporal pelo qual se paga qualquer preço. C.D., 30 anos, afimar: “A minha malhação é para buscar a perfeição”. M.L., 30 anos, outro dos entrevistados assume: “Tô satisfeito mais não 100%, quero melhorar mais um pouco...” . Como já referido, Le Breton (2003) afirma que cada uma dessas práticas corporais se explicam por uma razão particular, ritual ou estética: ritos propiciatórios, marca tribal, signo de status social, ritos de passagem etc. A questão que envolve as rotinas do bodybuilder diz respeito ao controle de seu corpo, que se converte nos casos extremos, no controle de sua existência. Ele está preocupado em adquirir massa muscular; a seus olhos, a gordura é um parasita que mobiliza uma estratégia permanente de alimentação (Le Breton, 2003: 41). Se Le Breton compara o corpo a uma máquina que pode ser montada, o bodybuilder constrói seu corpo a maneira de um anatomista montando seu corpo peça por peça preso apenas à aparência subcutânea (Le Breton, 2003:42). É buscada a força muscular em si, em sua dimensão simbólica de restauração de identidade. O mesmo autor ainda coloca que pouco a pouco o corpo se apaga e com ele a civilidade, em seguida à civilização dos costumes, estes passam a regular os movimentos mais íntimos e os mais ínfimos da corporeidade (2006:20). Ao que foi investigado podemos concordar com o que concluiu Le Breton, que o fisiológico esta subordinado à simbologia social. Por fim, há uma influência sócio-cultural no comportamento do homem que impõe marcas ao seu corpo, chegando a alterar a imagem que ele tem de si. Essa imagem corporal trata-se justamente do risco, pois uma vez convertida em ideal de existência e projeto de vida, todos os preços possíveis serão pagos na busca do que, ao cabo é impossível, que é o conceito de perfeição, por natureza não atributo do humano. 234 Algumas limitações da pesquisa Estamos conscientes de que todas as técnicas de avaliação, existem algumas vantagens e desvantagens de usar informante-chave, como poderíamos descrever alguns deles supomos em nossa pesquisa. Entre as vantagens: 1. Oportunidade de estabelecer relatório / Confiança e obter uma "visão de dentro, pode fornecer informações detalhadas sobre as causas do problema, Permite esclarecer ideias e informações em base contínua, permite-lhe obter informações de diversas pessoas, incluindo minoria ou" maioria silenciosa "pontos de vista (isso foi um dos principais pontos de vista do informantechave). As desvantagens que podemos observar entre: 1. Informantes podem dar-lhe as suas próprias impressões e preconceitos, 2. Tempo para selecionar bons informantes e construir a confiança (mesmo nesta pesquisa, temos um muito bom informante-chave); pode-se ignorar as perspectivas dos membros da comunidade que são menos visíveis no processo. (Baseado na Universidade de Illinois Extension ServiceGabinete de Planeamento e Avaliação de Programa) SUMÁRIO Temos testemunhado o interesse e pesquisas com a pressão na imagem corporal em mulheres. Existem algumas particularidades neste campo de pesquisado como o associado TDC com os modelos de corpo magro como anorexia nervosa e bulimia. Nos últimos anos temos observado um interesse crescente em distúrbios psiquiátricos que envolvem imagem corporal entre os homens. Na história, problemas de imagem corporal não têm sido um problema dos homens, esses problemas eram exclusivos no pensamento de ser o território apenas as mulheres. Acreditava-se que os homens fossem imunes a pressões para obedecer as regras para a forma corporal definida para a sociedade (Grieve, Truba, Bowersox, 2009). Além disso, os homens têm estado a frente de uma pressão crescente dos meios de comunicação para cumprir uma forma magra, muscular. Muitas vezes, os homens estudados com maior nível de musculosidade com o uso de esteróides, nunca estavam satisfeitos com o seu físico não melhorada. Como Pape et al (1997), nos anos de 1990 observou, uma reflexão interessante "Por que eu deveria voltar a ser Clark Kent, quando eu posso ser o Superman?" Parece ser muito comum e real. Pope et al (1997) descreveu a nova forma de TDC, denominado "dismorfia muscular". Esta pesquisa mostrou, com base nos relatórios apresentados aqui, parece que este grupo de fisiculturistas com o objetivo aparente de modificar suas expectativas físicas para atingir pessoal e / ou social - podem ser mais suscetíveis a práticas de alto risco e distúrbios comportamentais, como 235 abuso de esteróides anabolizantes, e substancias para melhorai da aparência e da desempenho (APED), sofrimento ou prejuízo em áreas sociais, ocupacionais, ou outras importantes de funcionamento e comportamentos, como fundada em outros estudos (Baghurst & Kissinger 2009; Pope et al, 1997; Pope, Phillips, Olivardia, 2000; Pope, Katz, Hudson, 1993, Maida & Armstrong, 2005). A literatura sobre imagem corporal e distúrbios associados as mulheres é extensa, em contraste com a literatura com o a imagem corporal em homens. E os estudos concentram-se no padrão magresa, obesidade, aptidão e resistência diferente deste estudo, mas musculosidade em homens é uma importante dimensão adicional na investigação imagem corporal (Olivardia et al, 2004). Pesquisas sobre as motivações são muito limitados com um foco etnográfico. A musculosidade e a capacidade de retratar sinais de poder parece ser, para os homens uma espécie de avaliação. As pesquisas indicam que é invasivo atribuir a mídia que a média -ou ao social e culturalidade- oriente e pode levar alguns homens / garotos a adotar estratégias como dietas pouco saudáveis, expressar atitudes mais positivas sobre o doping mais do que meninas, abuso de AAS e de substâncias para melhora do desempenho (PES), e as estratégias de fortalecimento muscular e programas de exercícios excessivos (Santos, Rocha & Da Silva, 2011; Zelli, Lucidi, Mallia, 2010; Baghurst, Kissinger, 2009; McCreary & Saucier, 2009; Cafri, Thompson, Ricciardelli, McCabe, Smolak & Yesalis, 2005; Bahrke & Yesalis, 2004). Este impulso para de físicos dotados muscularidade, e inalcançáveis para o homem médio, pode refletir nas pressões sociais e dos meios de comunicação sobre os homens modernos para tornarem-se cada vez mais musculoso foram descritos em todas as formas de mídia e até mesmo em bonecos de brinquedo (Olivardia, Pope, Borowiecki, & Cohane, 2004; Pope et al., 1999). Considerações finais O presente estudo concorda com as proposições de Le Breton (2006) de que todo comportamento pode ser explicado por uma motivação especial, razão, estética, ritual, ou de propiciação. Analisou-se assim, as motivações de fisiculturistas para o aprimoramento estético (dentro dos limites teóricos de satisfação e insatisfação). A pesquisa desenvolvida por Leit, Pope e Gray (2001) sobre as expectativas culturais de musculosidade em homens, construída a partir da análise de posteres de homens em uma revista destinada ao público feminino, observou que entre os homens, os ideais culturais de musculosidade podem contribuir para a baixa auto-estima em relação ao seu corpo. Pope e Katz 236 (1994), vão mais longe e apontam que para esses indivíduos um possível caminho para a busca de “corpos perfeitos”, seria o abuso de esteróides anabólico-androgênicos (EAA). A relação do uso de EAA e a imagem corporal em fisiculturistas homens foi analisada por Blouin e Goldfield (1995), onde os autores observam que entre as preocupações com a imagem corporal podem ser maiores para aqueles que se encontram abaixo do peso em relação a média para altura. Tal insatisfação pode acarretar em sérios problemas de auto-estima e sentimento de inadequação social. Como resultado esses homens que se vêem com baixo peso podem buscar na musculação, hormônios masculinos e EAA obter um visual “hipermersomórfico” (proporcionalmente musculoso) exagerado. Estas tendências dos ideais culturais para a imagem corporal podem contribuir para o crescimento de quadros psicopatológicos importantes (Leit, Pope & Gray, 2001). Vale destacar, como já referimos que nesse aspecto os meios de comunicação não são a principal forma propagadora de ideologias das camadas dominantes que podem aquilatar ou estigmatizar determinados valores ou mesmo segmentos sociais. Outras variáveis nesse complexo jogo podem estar inseridas e composto por diferentes ordens e ideologias. Por ideologias, neste trabalho, entendem-se como conjuntos de significados e sentidos existentes na vida social que atuam como corpos de idéias de determinados grupos ou camadas sociais (Santos e Silva, 2008). Baseado nos relatos aqui apresentados, deduz-se que este grupo de fisiculturistas - com o nítido propósito de modificar seus físicos para atender às expectativas pessoais e/ou social podem ser mais suscetíveis a práticas de alto risco e distúrbios comportamentais, tais como o abuso de esteróides anabolizantes, transtorno da imagem corporal, prejuízo nas relações sociais e alta vulerabilidade à agravos na saúde. Pensa-se que mais pesquisas podem fornecer aos profissionais de saúde e atores sociais ligados as práticas corporais instrumentos, estratégias e políticas de prevenção e cuidado quanto a este fenômeno de risco com proporções consideráveis; aos quais o segmento masculino está mais vulnerável que o feminino. Os estudos que apontam o riscos da busca de um corpo perfeito e de imagens inatingíveis já estão difundidos nas mídias, políticas públicas, escolas e meios pedagógicos, que não podema ser considerado a solução desde uma vez que ainda não existe uma politica nacional com programas de prevenção. O mesmo não acontece no Brasil, deixando a população masculina considerávelmente menos informada e mais vulnerável á agravos. Um outro ponto de grande relevância que nós consideraramos é que o uso de AAS têm sido considerado no Brasil uma epidemia silenciosa negligenciada. Todos os anos muitos jovens não atletas morrerem em conseqüência de AAS tentando melhorar a 237 aparência e apenas "ter uma boa aparência". O ser atleta, não justificaria, mas a dieferenciação para um atleta cercado por uma estrutura e discplina esta muito longe dos padrões "domésticos" de uso de PES. Referências ABRAHIN, OSC. Prevalência do uso e conhecimento de esteroides anabolizantes androgênicos por estudantes e professores de educação física que atuam em academias de ginástica. Rev Bras Med Esporte – Vol. 19, N o 1 – Jan/Fev, 2013. ASSUNÇÃO, SSM. Dismorfia muscular. Rev Bras Psiquiatr 24(Supl III): 80-4, 2002. BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1998 [1997], p. 13-26. BAGHURST, T; KISSINGER, D B. (2009). Perspectives on Muscle Dysmorphia. International Journal of Men’s Health, Vol. 8, No. 1, 82-89. BAHRKE, MS; YESALIS, CE. Abuse of anabolic androgenic steroids and related substances in sport and exercise. 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Cada número trata de questões relativas ao ensino superior privado e à produção e difusão do conhecimento. dos Temas A revista da FSBA publicará temas que enfoquem questões relativas às áreas de conhecimento em que estão concentrados os cursos que oferece, a saber: Artes Cênicas, Administração - Recursos Humanos e Gestão de Negócios, Comunicação Social – Jornalismo e Publicidade e Propaganda, Direito, Educação Física, Fisioterapia, Psicologia, Normal Superior – Séries Iniciais do Ensino Fundamental e Educação Infantil, Pedagogia, Ciências da Religião. Incluem-se ainda os assuntos referentes ao modelo de organização das instituições de ensino privado, pesquisa e extensão, seus efeitos sobre a formação de recursos humanos, sobre a produção e difusão do conhecimento, e análise conjuntural. da Publicação 1 As colaborações para publicação na revista Diálogos Possíveis deverão ser inéditas. 2 As contribuições recebidas serão submetidas à apreciação de membros do Conselho Editorial ou consultores ad hoc , dentro de suas especialidades. 3 O Conselho Editorial poderá sugerir ao autor, quando necessário, modificações de ordem temática e/ou formal. 4 Artigos encomendados terão prioridade na publicação. 5 Os trabalhos recebidos não serão devolvidos aos autores. 6 Os artigos devem ser apresentados em conformidade com as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas(ABNT). 7 O(s) autor(es) deve(m) apresentar uma síntese biográfica de, no máximo, duas linhas, na qual devem constar formação profissional, cargo/função, titulação, local de trabalho e endereço eletrônico. 8 O resumo deve ser informativo, e vir acompanhado de três a cinco palavras-chave. 9 O resumo e as palavras-chave devem ser acompanhados de sua versão para o inglês. 10 O sistema de chamada das citações deve ser o alfabético (autor/data) ou numerada. 11 Os trabalhos devem ser digitados em Word (versão 6.0, no mínimo), em fonte Times New Roman, corpo 12, espaço 1/5, com, no máximo, 20 páginas, e devem vir revisados, acompanhados de disquete em Word for Windows. 12 Arquivos inseridos/colados no documento, como imagens e tabelas, deven ser enviados separados do documento. 13 Em casos excepcionais, podem ser encaminhados via internet para o e-mail [email protected] e/ou [email protected] 14 A lista de referências deve ser ordenada alfabeticamente, segundo a autoria dos documentos. 15 As notas devem ser de fim de página. 242